Jose Fernandes E - Book

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MARCELO RIBEIRO

GOVERNO DO ESTADO DE SERGIPE

Governador
Belivaldo Chagas Silva

Secretário de Estado do Governo


Elder Sandes Vieira

SEGRASE - SERVIÇOS GRÁFICOS DE SERGIPE

Diretor-Presidente
Ricardo José Roriz Silva Cruz

Diretor Administrativo-Financeiro
Filadelfo Alexandre Silva Costa

Diretor Industrial
Mílton Alves

Gerente Editorial
Jeferson Pinto Melo

Conselho Editorial
Antônio Amaral Cavalcante
Cristiano de Jesus Ferronato
Ezio Christian Déda Araújo
Irineu Silva Fontes
João Augusto Gama da Silva
Jorge Carvalho do Nascimento
José Anselmo de Oliveira
Ricardo Oliveira Lacerda de Melo
MARCELO RIBEIRO

JOSÉ FERNANDES

Aracaju
2018
Copyright©2018 by Marcelo Ribeiro
CAPA
Carlos Augusto Dantas Arcieri
Quadro: ''Sergipanidade'', de José Fernandes
(Acervo da Embaixada do Brasil na Argentina)
DIAGRAMAÇÃO
Carlos Augusto Dantas Arcieri
Cícero Guimarães Neto

REVISÃO
Yuri Gagarin Andrade Nascimento

PRÉ-IMPRESSÃO
Marcos Nascimento / Dalmo Macedo
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Elaborado por Neide Maria J. Zaninelli - CRB-9/ 884
Bibliotecária Neide Maria J. Zaninelli - CRB-9/ 884

R484j Ribeiro, Marcelo


José Fernandes [recurso eletrônico] / Marcelo Ribeiro. – Aracaju
: Editora Diário Oficial do Estado de Sergipe - Edise, 2018.
124 p.; il.: 21 cm. E'book PDF.

Modo de acesso: world wide


web: https://segrase.se.gov.br/
ISBN 978-85-53178-12-4

1. Pintura. 2. Exposição. 3. Plástica. 4. Artista. I. Titulo.



CDU 75(81)

Editora filiada

Editora Diário Oficial do Estado de Sergipe - EDISE


Rua Propriá, 227 · Centro
49010-020 · Aracaju · Sergipe
Tel. +55 (79) 3205 7421
[email protected]
JOSÉ FERNANDES
SUMÁRIO

Prefácio....................................................................................................................................... 9
Capítulo I................................................................................................................................11
O Boêmio operário

Capítulo II..............................................................................................................................43
Fragmentos do percurso

Capítulo III...........................................................................................................................65
O Pintor

Capítulo IV............................................................................................................................77
The Northeast ou Os Zés nossos de cada dia

Exposições e Prêmios...............................................................................................91
Capítulo V..............................................................................................................................99
Anexos

A Ressurreição de Zé............................................................................................... 109

Zé Fernandes na Mídia........................................................................................ 113


MARCELO RIBEIRO

PREFÁCIO

O texto sobre o nosso querido amigo José Fernandes ficou,


durante alguns anos, adormecido no meu computador. A inten-
ção de publicar hibernara. Recentemente, o jornalista Mílton Al-
ves, após visita a Zé, ligou para mim e solicitou o trabalho. Queria
publicá-lo, dentro da política de incentivo à cultura do governo,
como homenagem ao que consideramos um dos nossos maiores
artistas. De pronto, concordei com a ideia. Quero deixar aqui re-
gistrado ser Zé merecedor de muitas outras homenagens.
Adoentado, com problemas de coluna, de vista e controlando
a diabetes, Zé não mais frequenta bares, já não exerce com plenitu-
de o seu ofício de aglutinador. O fiel grupo que se reunia em torno
de sua mesa se dispersou.
Mas Zé é grande guerreiro. Busca forças interiores e continua
trabalhando diuturnamente em seu ateliê. Tem produzido muitos e
fascinantes quadros. Revigora-se com a sua arte. Mantém-se pródi-
go e generoso. As dores não o impedem de persistir bem-humorado
e solícito. Tem tido a graça de contar com Cynthia, sua eterna musa,
mulher dedicada e que muito tem servido de bálsamo para suas
dores físicas e da alma. Quem os conhece de perto sabe da grandeza
do casal.

Marcelo Ribeiro

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MARCELO RIBEIRO

CAPÍTULO I

O BOÊMIO OPERÁRIO

Inconfundível. Basta vê-lo a vez primeira. Uma figura ímpar.


Pudera: corpulento, um metro e noventa e dois de altura, desen-
gonçado, andar vagaroso – arrastado mesmo – e com as pernas
arqueadas, tronco envergado para diante, um falar ruidoso, olhos
castanhos (meio esbugalhados, semelhantes aos das crianças do
pintor Tiepolo Giovanni Battista, um dos mestres italianos do sé-
culo XVIII) e gargalhadas infantis. Olheiras. Raramente dispensa o
chapéu panamá made in China. Bem-humorado, Zé vive à cata de
motivos para sorrir. Não que lhe seja a vida o mar de rosas que os
antigos falavam. Ora, perdeu o genitor José Alves dos Santos muito
cedo, aos três meses de idade, em acidente com cavalo.
Em compensação, ganhou novo pai quando a mãe, Maria do
Carmo de Almeida, “uma mulher valente, de fibra, que me passou
muita segurança”, casou-se novamente, dessa vez com Altamiro
Carvalho, o Rei Momo mais famoso de Sergipe. Todos com raízes
familiares fincadas no município de Lagarto. “Um verdadeiro pai,
pessoa muito conhecida em Aracaju. Um humilde rico de amizades.
Abriu as portas para mim. Se não fosse ele não teria chegado aonde
cheguei. Deu o empurrão inicial, através dos seus múltiplos amigos,
para que meu trabalho fosse conhecido. A partir daí, caminhei com
minhas próprias pernas”. De muita valia o apoio também recebido
da mãe, das irmãs Joelma e Jussara, da tia Eurides. Desde cedo, um
arregaçar de mangas, a necessidade premente de cair em campo, ir
à luta, conquistar o pão. Foi operário de fábrica de tecidos e expe-
rimentou trabalhar com telex em agência de notícias. Teve carteira

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JOSÉ FERNANDES

profissional registrada e outros babados. A inquietude, contudo,


não o deixou se acomodar. Arrumados os picuás, bateu pernas, caiu
na estrada, ganhou mundo. Deu as caras em Brasília, Rio de Janeiro,
São Paulo, Goiânia, Recife e Salvador. E daí? A vida é mesmo assim.
“A vida não é de brincadeira” pilheriava, sério, Vinicius de Moraes.
Apanhou, caiu, aprendeu, levantou-se e, arranhado, seguiu em fren-
te. Foi longo o caminho para alcançar o privilégio de viver da arte,
comprar o aipim, o cuscuz – e a cerveja, é claro – com o que mais
gosta e sabe fazer: a pintura. Um valente e obstinado. Vitorioso.
Acontece que José Fernandes é artista nato, daqueles que
conseguem extrair cores vivas e até berrantes dum dia cinzento, ne-
buloso. Faz brotar, da ponta dos pincéis, flor mimosa em pútridos e
esmaecidos mangues. Coloca seiva em paisagens campestres estur-
ricadas, restitui vida à naturezas-mortas. Dá voz a imagens. Clareia
o breu. Um feiticeiro. Façanha de quem é amante do belo, exerce
domínio das paletas, exibe intimidade com cores e formas – tratan-
do-as, deduz-se, de comadres. Desprezou rótulos, não se permitiu
escravo de escolas, moldou um estilo, fez-se assinatura. José Fer-
nandes. Ou Zé. Ou, ainda – para poucos –, Zé Grandão. “Mas sempre
assinei José Fernandes. Sempre”. Dispensou o sobrenome. Burilou
o dom de captar a lindeza encoberta do que se nos apresenta diu-
turnamente e, de modo personalíssimo, exercitou registrá-la nas
telas, possibilitando-nos o prazer de usufruí-la, oferecendo demo-
craticamente acomodações para que degustemos todos o banquete.
Consegue, com a mágica do seu ofício, transformar a tristeza em
euforia, um esgar em riso, um olhar em convite. Sabe o traste onde
mora o segredo do negócio. E não se faz de rogado. Assim como o
compositor popular, percebe que o negro – não o branco – é a soma
de todas as cores, uma questão de sensibilidade. Tudo se faz maté-
ria-prima para a sua arte: objetos, frutas, o barco e o céu, o mar e o
rio, o peixe e a pomba, o cavalo e o bode, o galo de briga, a cerâmica,

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MARCELO RIBEIRO

as nuvens, o ar e o cheiro das coisas. Mais: as mulheres e as flores,


a sanfona e o zabumba, o triângulo e a cantoria. Nada escapa ao es-
pírito sagaz. Aprendeu a traduzir o sentimento da nossa gente, des-
cortinar paisagens oníricas e bucólicas. Trazer às telas o verdejar
da esperança. Uma obra pletora de sensualidade – suas musas têm
olhar dissimulado, seios rijos, fartura de coxas e nádegas. Abundân-
cia igualmente de luz, sergipanidade à flor da pele, interação per-
feita com o meio em que vive. “Aracaju tem um detalhe: é a cidade
que tem a melhor luminosidade para o artista, pois nos dá sombra
e luz de maneira diferente das outras cidades. O Rio de Janeiro é
parecido, mas a luz daqui é diferente”. Sabemos, os sergipanos, que
procede a fama de a nossa capital ser a mais clara cidade do Brasil.
Assim falam prosadores e poetas. Nós apenas corroboramos.
Usa cores fortes, quentes: azul, amarelo, verde, vermelho.
Tons expressionistas que o fascinam. Trabalha as tintas com espá-
tula, pincel e até com as mãos, se necessário. Segue o impulso do
momento. Vezeiro estar com os antebraços manchados por cores
diversas. Os dedos e as mãos, nem se fala. Buscam suas telas exaltar
a liberdade, o sagrado direito de viver, amar e ser feliz. Daí clama-
rem pela promoção da igualdade e justiça social. Algumas chegam
a causar impacto, nelas embutido o grito da denúncia, o pincel em-
prestando voz aos que se veem obrigados a emudecer. Quase sem-
pre, porém, não se faz necessário recorrer à agressividade; a arma
é o pensamento. O escritor e acadêmico Carlos Heitor Cony, discor-
rendo sobre a obra de Charles Chaplin, assinala: “É comum ao ar-
tista denunciar. De certa forma, todas as obras de arte denunciam
alguma coisa. Mas, em geral, a denúncia torna-se, de alguma forma,
cúmplice da própria denúncia. A violência, por exemplo, denuncia-
da violentamente. A intolerância denunciada intolerantemente. Em
Chaplin, a denúncia é mais uma revolta, sem cumplicidade possí-
vel. Ele não julga: condena a seu modo”. De fato, todos os admira-

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JOSÉ FERNANDES

dores do trabalho do genial inglês aprendemos, com as peripécias


de Carlitos, ser perfeitamente possível esbofetear a hipocrisia dos
homens e a injustiça social fazendo uso inteligente da doçura, do
sonho, da ironia, do lirismo.
A pintura de Zé, observa Euclides de Oliveira Santos: “é
das que conversam com a gente, tomam conta sem agressão, com
suave persistência. Não está à procura de um desenhinho arru-
madinho, e sim de uma combinação variada de cores. Não se im-
pressiona com detalhes. Olhando atentamente os seus quadros,
encontramos ricas composições que funcionam como trabalhos
diferentes. Alguns nos dão a impressão de mistério e presença de
vida. Outros traduzem paisagens cheias de colorido, que é o pró-
prio ‘habitat’ de José Fernandes”.
Retrata, com singeleza e autenticidade, nosso cotidiano. “Te-
nho muito orgulho de ser daqui. Quando fui ao programa de Leda
Nagle (Sem Censura, na TV Educativa, Rio de Janeiro, dia 12 de no-
vembro de 2003), levei obras de artistas locais (CDs de João Moura
e do forrozeiro Zé Américo, fotos e revistas de Sergipe); o jornalista
Osmário Santos chegou a dizer que levei um caçuá sergipano”. Um
parêntese: enquanto aguardava a hora de participar, enxugou algu-
mas geladinhas num bar em frente à estação da TV; o velho amigo
Virgílio providenciou um colírio para disfarçar a vermelhidão dos
olhos. Durante o programa, início de discussão com o ator Hugo
Carvana, que “esquecera” de haver dito, aqui em Aracaju, que o Te-
atro Tobias Barreto era um dos melhores do Nordeste. Nesses ar-
roubos de Zé, a coerência do ardoroso defensor da cultura regional,
contundente crítico da “importação” de valores durante as nossas
festas, principalmente na época junina. Chega a exagerar: integran-
do uma comissão de artistas, toma a palavra e estronda diante do
governador em exercício: “Governador, quem entende de arte é
quem faz arte; esse pessoal que cuida da cultura em nosso Estado e

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MARCELO RIBEIRO

assessora o governo é pela-porco, não entende de nada e promove


essa vinda de gente de fora”. Indagado sobre o episódio, ri bastante
e diz que sua irreverência a ninguém surpreende: “Quando me con-
vocam para essas coisas, sabem que não sou de ficar calado; abro o
verbo, digo o que acho. Sou desse jeito. Já chamam sabendo!”. Fica
sério, lamuria: “Em Sergipe, o cenário já foi melhor. Hoje as galerias
envelheceram, a televisão tem contribuído muito para isso e as pes-
soas, infelizmente, preferem ir ao shopping a visitar uma exposição.
Além disso, há também a falta de costume da valorização da cultu-
ra, no teatro, na dança, poesia e nos mais diversos segmentos. Falta
uma política cultural no Estado que faça com que o mercado de arte
seja movimentado. Os órgãos de cultura do Estado gastam muito
com coisas que não são nossas, como o Pré-Caju. Esta é a verdade”.
A insatisfação, partilhada por vários artistas, é bem antiga e persis-
te ao longo do tempo. Ismar Barreto, compositor e cantor, chegava
às raias da indignação. Gravou: “E por falar no tal cachê/seis meses
pra receber a esmola/e os de fora é em dólar...cash!!!/no rádio não
nos ouvem não/e se pedir pra tocar é guerra!!!/somos ‘artistas da
terra’”. Destemido, sabia o doce bruto lancetar a ferida, espremer
o carnegão: “Os sergipanos não gostam dos seus artistas, do seu
próprio povo, dos seus médicos”. Erivaldo de Carira, cantor e sanfo-
neiro, tem visão mais amena e prática: “O problema é o empresário.
Como o cachê do artista local é miúdo, ele não se interessa. Quer
trazer é artista da mídia nacional, pra receber uma comissão gorda”.
O artista plástico Zé Fernandes – foi menino do interior – cul-
tiva uma sincera atração pelo universo da sanfona. Fez-se amigo dos
tocadores, reverencia-os e até os protege. Volta e meia cobra das
autoridades a sua contratação em eventos oficiais. Vai à imprensa,
denuncia panelinhas, ensaia contendas, grita, faz misérias. Nesse
ponto, sintonia com um grande amigo seu, o irrequieto e saudoso
João de Barros: “Barrinhos se travestia de jornalista, radialista, co-

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JOSÉ FERNANDES

lunista e apresentador de televisão para defender a nossa cultura”.


É rica sua história como defensor das artes e dos artistas.
Numa roda de conversas sobre o setor, exalta a luta de alguns e as-
sume, por instantes, uma inusual humildade: “Sou apenas um pingo
de éter”. Logo se recompõe, retoma as rédeas e eleva, orgulhoso, o
tom de voz para informar que, como diretor da Galeria Álvaro San-
tos – fundada em 26 de setembro de 1966 pelo prefeito Godofredo
Diniz Gonçalves – durante um ano e seis meses (período de 1995 a
1996), soube buscar patrocínios em Brasília, na Caixa Econômica
Federal, para alavancar a cultura da terra. “Consegui fazer um bom
trabalho. Tenho consciência disso. Batalhei pela reforma da galeria
junto ao prefeito e realizei cerca de três a quatros exposições men-
sais, que motivaram a volta do público ao espaço cultural da Álvaro
Santos. Fiz contato com empresas, a fim de elas adquirirem os tra-
balhos dos colegas e com isso ia se formando um mercado. O papel
do diretor de uma galeria é promover e difundir”. O falecido artista
plástico Eurico Luiz, paulista sergipanizado, sempre batalhou para
que não ficassem restritas ao caráter comercial; deveriam servir
como formadoras de público­­, promovendo cursos de arte e estética.
Criticava: “Hoje em dia, as galerias viraram simplesmente pontos
de emprego para determinados políticos ou determinadas pessoas
e deixaram de ter a função educativa”. Embora tenha havido con-
siderável melhora, ainda se pode apontar falta de incentivo para
artistas, além da inexistência de intercâmbio com outros estados.
Em 2002, Leonardo Alencar já advertia para a necessidade
da realização de leilões, como acontece em várias cidades: “Se os
leilões acontecessem por aqui, a realidade seria outra. Os colecio-
nadores daqui ou mesmo aqueles que gostam de adquirir bons qua-
dros valorizariam mais o artista local e eles perceberiam o investi-
mento histórico que estariam fazendo”. Atualmente, José Fernandes
anda radiante com o trabalho do leiloeiro Joel Cocenza: “Joel é do

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MARCELO RIBEIRO

ramo, confio nele. Estou muito satisfeito porque com os leilões de


Joel tenho sido contemplado com a valorização da minha obra. Além
disso, devido aos amplos conhecimentos dele com galeristas do Sul,
abre-se a perspectiva de ampliação de mercado para os artistas da-
qui”. Joel promete batalhar pela inserção de quadros de Zé em ca-
tálogos de respeito, nível TNT. Justifica o porquê: “José Fernandes é
muito bom artista. Sua pintura tem personalidade. É original, criou
estilo. De grande beleza o seu uso das cores. É incrível como conse-
gue harmonizar a tela”. O professor e colecionador Cândido Augus-
to não perdoava a “falta de evolução da casta de Sergipe”. Dizia que
os inúmeros artistas “deveriam merecer o respeito das autorida-
des, mas não é isso que acontece”. Voltando à Galeria Álvaro Santos:
em sua reinauguração, uma individual mais que oportuna e justa de
Florival Santos, grande mestre, incentivador de Fernandes, e que foi
o primeiro diretor da Casa.
O cidadão José Fernandes Alves dos Santos, Carteira de Iden-
tidade Nª 300.181/SSP-SE e CPF: 155472215-20, é nordestino, filho
do Lagarto, interior de Sergipe. Um matuto sem disfarces. Granda-
lhão que se equilibra – mal – em sandálias de couro, como a gritar
suas origens, parido que foi do ventre do povo, das entranhas do
agreste. É no convívio das feiras, do mercado municipal (onde mui-
tas vezes toma café da manhã), no meio da multidão, no dia a dia
dos humildes e dos olvidados – mendigos, lavadeiras, cordelistas,
meninos de rua, fateiras e pescadores – e das histórias e estórias de
cangaceiros que revigora sua inspiração. Atribui, e com apenas nove
anos de idade, à fisionomia melancólica de um mendigo o mote para
o seu primeiro trabalho pictórico. Encontrara, precocemente, a sua
praia. Usava papel, paredes e calçadas para riscos & rabiscos. Tor-
nou-se poeta da gente e das cores, dos sonhos e dores, da claridade
e da paz. Cantante do amor, das flores campesinas e da harmonia.
Bairrista e universal, sua obra é registro do nosso andejar, vitrine

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JOSÉ FERNANDES

dos nossos costumes, sonhos daqui e de acolá, aspiração da Huma-


nidade. Talvez seja o artista plástico sergipano mais popular, páreo
duro para a reputação de outro Zé, o Inácio, também espécime raro
e uma das suas grandes admirações: “Aprendi muito de cor através
dele. Ele tinha razão ao dizer que o sol daqui é totalmente diferente
do que observamos em outras cidades. Hoje, sou o que sou graças
ao velhinho”. Acontece que Inácio era mais espontâneo, ingênuo,
instintivo; Fernandes, embora também impulsivo, é mais cerebral,
sabe da importância de beber na fonte, usar as mãos em concha.
Corre à procura, explora o manancial, sacia a sede. Pertinaz obser-
vador, um expressionista – “com tendência à vanguarda”, frisa – que
consegue transpor para as telas sua grande sensibilidade social e
artística. Matreiro, sabe – usemos uma expressão que ouvíamos no
longínquo tempo do curso primário – a hora de a onça beber água.
Antenado, faz marketing, recorre a profissionais do ramo, divulga e
vende fácil seu peixe. Vive do ofício. Um artista dos nossos dias. Zé
Grandão não é brinquedo; sabe o escolado malandro da capital a
importância da mídia na divulgação de trabalhos artísticos.
Quando, no meio duma prosa, se levanta e, circunspecto, vai
para debaixo da mangueira da pracinha do Conjunto Inácio Bar-
bosa com o celular ao ouvido, podemos apostar: está negociando
uma nova obra com algum secretário de Estado ou de Prefeitura
(da capital ou do interior); ou ainda – quem sabe? – com dirigentes
de órgão público ou privado. A depender da magnitude do trabalho
e da grana acertada, oferece parceria a colega em que confie; Bené
Santana é um deles. Adauto Machado, outro. Verdade que o des-
prendimento e a solidariedade são qualidades inatas ao seu jeito
de ser. É comum doar quadros para causas nobres (a Ação Solidária
de Barrinhos foi aquinhoada com grande painel), presentear ami-
gos. Fornece obras para sorteios, maneira de os garçons arrecada-
rem uma graninha extra no Natal. “A amizade é a melhor coisa do

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MARCELO RIBEIRO

mundo; não há dinheiro que pague. Meus amigos são meu tesouro”.
Tem razão. Se, à tardinha, lamenta não ter conseguido, horas antes,
estacionar o carro ao tentar apanhar os exames da esposa, Peruca,
amizade antiga, saca o celular e toma providências. Tranquiliza-
-o: um motoboy já está a caminho trazendo os exames. Quando a
esposa de Bigode capricha na cozinha, recebe Zé, numa caçarola,
um suculento bife de panela, ainda quentinho. Outro lhe traz um
bom charuto cubano, que Zé fuma babando-o – e babando-se todo.
Cospe pra todo lado. Muito já vi cajarana, trazida por Góes, servir
de tira-gosto da branquinha. “Mas eu gosto mesmo é de cerveja. E
prefiro Skol”. Assim vai Zé, cercado de gente e de mimos, levando a
vida. Ou se deixando, tanto faz, por ela levar.
Confessa admiração por valores contemporâneos: Tintiliano
(“Tem mostrado um talento fantástico”), Caã (“Trabalha muito em
prol da cultura sergipana”), Edidelson (“Excelente; além de cartu-
nista, artista plástico”) e outros. Reconhece a valorização, no mer-
cado externo, de Véio, Zeus, Adauto Machado, Hortência, Leonardo
Alencar. Empolga-se com o talento do jovem Rodrigo de Freitas, da
Teaser Propaganda (“Esse menino tem feito um trabalho fabuloso
com a minha obra”). Esporadicamente, pisa na bola ao tecer autoe-
logios, minimizar o valor de colegas, arrotar vantagens. É de 1984
a afirmação de que sua pintura era “A mais importante do Nordeste
e a mais atual”. Gabola, quer sempre ser o melhor, a estrela. Verbor-
rágico, mente um bocado. Dê-se bom desconto ao que proclama.
Defeitos do Zé.
A importância que dou ao pintor Horácio Hora é um dos
nossos desencontros. Afinamos em reverenciar o trabalho do es-
tanciano Zé do Dome (“Acho que minha obra se identifica com os
trabalhos elaborados por José de Dome, principalmente os traços
e as cores, que coincidem com aqueles utilizados em meus qua-
dros e painéis”). Reconheço a importância de Zé Inácio, Florival

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JOSÉ FERNANDES

Santos e Jenner Augusto, suas maiores influências. Admiramos


muito Van Gogh e Picasso. Mas rechaço por inteiro a tentativa
de encolher a obra grandiosa (embora não muito comercial) de
Jordão de Oliveira. Por outro lado, valoriza em demasia o goiano
Siron Franco – “Grande imaginário e linguagem fantástica, traços
perfeitos e sempre modernos” –, cuja obra não me sensibiliza. Ca-
maleão (a peça é do Lagarto, vimos), vez por outra alterna elogios
exacerbados com críticas arrasadoras – nem parece, em tais mo-
mentos, do signo do equilíbrio, um libriano de 19 de outubro de
1959 – disparados, muitas vezes, à mesma pessoa. Fica o dito por
não dito, e por conta do dia, da hora, do minuto, da birita. Da lua,
talvez. Um despautério irresponsável, desprovido, parece-nos, de
peçonha. Apesar de tais idiossincrasias (muitas vêm à tona por ta-
garelice, mania de falar mais que o necessário, chegando às raias
da inconveniência), cativa amigos, agrega pessoas, promove en-
contros. Aqui ou acolá, um desentendimento espalhafatoso, em-
bora passível de reconciliação. É extensa a lista de pequenas esca-
ramuças, em geral motivadas por tolices. Ismar Barreto, Ludwig,
Marinho Neto, Hugo Maia, Pedro “Rico” e muitos outros provaram
o seu fel. “Coisas da bebida”, desconversa.
Chegou a defender-se, em entrevista de 1982, da acusação de
‘língua grande’: “Eu acho que sou sincero, digo o que penso, o que
sinto, o que vejo; daí incomodar algumas pessoas, que geralmente
são as provocadoras das minhas declarações positivas. O homem
deve ter uma definição do que quer, principalmente o artista, que
deve ter uma sensibilidade maior para as coisas, os fatos, e por isso
sente mais de perto as falsetas, as embromações e maquinações
surgidas. É uma anticultura que foge ao conhecimento dos intelec-
tuais, críticos de arte, jornalistas. Mistificam certas pessoas, que
aos olhos da sociedade aparecem, inclusive, como entendedores de
arte, intelectuais e não passam de enganadores. Daí Sergipe não se

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MARCELO RIBEIRO

encontrar em um melhor estágio em termos artísticos, atrapalha-


do pelas panelinhas que pululam a disseminar intrigas. Isso não é
língua grande. É o desabafo de quem conhece de perto as manhas
de um meio, que não devia se permitir certas coisas”. Completava:
“Arte e cultura não podem ser feitas com desuniões ou grupinhos,
mas sobretudo com altruísmo e pensamentos elevados. Com cada
um vendo o seu colega artista não como um concorrente, mas como
uma pessoa de sensibilidade”.
Não foi o que ocorreu entre ele e outro pintor, há alguns anos.
Escolhido pelo prefeito de então para reformar a Praça Fausto Car-
doso, no centro da cidade, viu-se Zé diante do problema: a esposa
do prefeito já fizera convite a outro profissional. Este, ao ser jogado
para escanteio, planejou uma vingança nada civilizada: contratou
dois pistoleiros para eliminar o rival. “Soube disso quando estava
com minha esposa numa loja comercial. Os pistoleiros desistiram
de me matar devido ao meu jeito desligado, bonachão. Fiquei com
tanto ódio que tive vontade de pegar o coleguinha, amarrá-lo e sair
arrastando-o pelas ruas”.
Genuinamente polêmico, não foge de assuntos delicados.
Quando, por exemplo, em 2006 – em evento realizado no Ginásio
Constâncio Vieira, e através de sua guia espiritual Eugênia –, foi
apresentada uma carta de Maria de Nazaré, psicografada pelo mé-
dium Benjamin Teixeira, não se furtou o espírita José Fernandes
a emitir, através da imprensa, sua opinião: “É preciso um estudo
profundo antes de divulgar. As pessoas precisam manter a mente
em equilíbrio. Quando pinto, por exemplo, poderia dizer que estou
recebendo Picasso, Van Gogh, Gauguin. Porque cada ser humano,
em qualquer profissão, tem, no momento da criação, influências.
Da natureza, do cosmos, de tudo. Eu acho que é preciso um respeito
maior com essas coisas. Os pastores, padres e mentores religiosos
precisam ter muito cuidado, porque não somos imbecis. Nossa Se-

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JOSÉ FERNANDES

nhora não vai programar plateia em telão para aparecer. Acho que
ele (Benjamin) é uma pessoa importante para o espiritismo, um es-
tudioso, mas acho que a pessoa tem que ser desprovida de vaidade,
como Chico Xavier, por exemplo”. E informa ao repórter, na ocasião,
ter mediunidade desenvolvida.
Provocador, aos 19 anos de idade já distribuía bordoadas:
“Hoje muitos artistas são considerados verdadeiros artistas, quan-
do na realidade quase não criam nada. Eles são capazes de fazer
quinhentas vezes o mesmo desenho de um beato ou um casario e
esculpir na madeira ou passar para uma tela. Não estão preocupa-
dos em criar, em renovar, buscar algo de novo. O que importa a essas
pessoas é a quantidade. Quanto a mim, tenho uma posição comple-
tamente oposta. O que importa é criar, é renovar e, principalmente,
pesquisar”. Meses antes já denunciara: “As artes passam por uma
fase de desintegração moral e disciplinar”. Em 1997, fez questão de
manifestar seu repúdio à revogação, por parte do Conselho Esta-
dual de Cultura, do tombamento do Cine-Teatro Rio Branco: “Foi
ali que tudo começou em termos de teatro em Aracaju. Por ali pas-
saram grandes nomes como o de Bidú Sayão, Tito Shipa e Procópio
Ferreira. Um país sem memória não significa nada. Isso mostra que
o Governo não tem nenhum respeito com o artista e com a história
de Sergipe”. O velho prédio do calçadão da João Pessoa foi derruba-
do, dando lugar a loja comercial.
Quem o tem próximo, sabe tratar-se de pessoa do bem. Lem-
bra-me Waldemar Cunha, outro sujeito de boa índole, manso e
sonhador. Em torno da mesa de bar de Waldemar, uma legião de
pessoas “assina o ponto”, seja no Brandy´s, no Iate, em restaurantes
refinados ou em seu refúgio no Mosqueiro, o “Coió da pólvora”. Nos-
so Zé joga como titular nesse time seleto que congrega. Sua mesa é
eclética: servidores públicos, pessoal da música – Paulo Lobo, Giló,
Menezes, Edgard, Guerreiro, Zé Andrade e até o coroa Menino do

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MARCELO RIBEIRO

Rio sempre aparecem –, advogados, professores, policiais, sindica-


listas, médicos, corretores, jornalistas, radialistas, desembargado-
res, desocupados, pintores, aposentados, psicólogos, poetas, polí-
ticos, o diabo. O lagartense Elito Vasconcelos, velho companheiro,
tenta explicar a confraria: “Zé é assim, eu sou assim, nós somos as-
sim”. O fotógrafo e cantor Sílvio Rocha sintetiza: “Zé é de arrombar”.
Há muito o conheço, então frequentador assíduo do Bar do
Cajueiro, no Conjunto Inácio Barbosa. Solícito, ilustrou meu primei-
ro livro, “Confissões”. E o do colega médico Washington Menezes,
“Sexualidade do terceiro milênio”. Esclarece: “Gostei de ilustrar os
livros porque eles se identificam com o meu trabalho – sexualidade
e poesia”. Não há muito mudou seu “escritório” para o bar de Angé-
lica, a cerca de 100 metros do anterior. Ali, dá o expediente todos os
dias da semana, desde o fim da manhã até à noitinha. Quando a pro-
prietária decidiu fechar aos domingos – “Também sou filha de Deus,
preciso descansar” –, ao chegar durante a manhã da segunda-feira,
encontrou um “despacho” na porta do bar: terrina com velas, sal,
garrafa de pitu, o escambau. Assustou-se. Mas logo percebeu ser
arte do ‘macumbeiro’ Zé Fernandes, que muito se ria do outro lado
da rua, a cerca de vinte metros do local. Falar em estrambotismo,
conta que o avô materno, bicho brabo e valente, atirou num genro,
quando soube que a filha tomara uma surra. Os tiros não pegaram
“porque o cabra tinha o corpo fechado. Meu avô, então, preparou o
chumbo com sangue de mênstruo. Tiro e queda. Dessa segunda vez,
o marido da minha tia estrebuchou e morreu”. Pergunto: “E você
acredita nisso – corpo fechado X menstruação –, Zé?”. “É claro que
sim!!!”, a resposta é enfática, definitiva.
É nesse “local de trabalho” (Noel Rosa, o boêmio da Vila, cha-
mava de escritório o local das farras) que recebe os amigos, atiça
brincadeiras, ri de si e dos outros, joga conversa fora, ouve e diz
besteiras. Quando em vez, faz-nos levantar às pressas, que o ho-

23
JOSÉ FERNANDES

mem tem o vezo de libertar, despudoradamente, fétidos flatos. Não


se constrange – provocando gostosas e barulhentas risadas – ao
contar episódio acontecido num ônibus do Rio de Janeiro, nas ban-
das de Copacabana. Ao eliminar uns desses torpedos, percebeu que
o mau cheiro teimava em não se diluir no ar. Um carioca – a turma
do Rio não dá moleza – não titubeou em apontar para nosso herói e
alardear sem piedade: “Você sujou as calças, não adianta disfarçar.
Desça”. Mil olhares recriminadores percorrendo-o de cima a baixo,
perdeu Zé o rebolado. Desenxabido, desceu no primeiro ponto, en-
trou num bar e pediu a um garçom para comprar uma calça nova
e uma cueca que o livrassem do vexame. E que ficasse, “faz favor”,
com o troco. Recentemente, outro episódio hilário e malcheiroso
ocorreu por aqui. Sabemos, os bebedores, quanto a cerveja pro-
move fermentação. Certa tardinha, o excesso de consumo provo-
cou uma revolução na barriga de Zé. Cólicas e mais cólicas, intensa
distensão abdominal. Aperreado, arrastou-se para o sanitário (na
época, ainda não reformado), desceu apressadamente as calças e,
por falta da tampa, decidiu despachar o “produto interno bruto”
sem sentar-se, apenas abaixando-se um pouco. Não contava, po-
rém, com a força vulcânica dos gases que circundavam a matéria
pastosa. Resultado: um imenso e disforme painel monocromático,
de péssima qualidade e odor repugnante, “adornou” toda a parede
do quartinho. Angélica, estômago e nariz sensíveis, não se viu em
condições para efetuar a faxina. Rosinha muito menos. Sobrou o en-
cargo para Ferreirinha, irmão das duas – estômago de avestruz; e
nervo olfativo, ao que se presume, de urubu.
Corriqueiro que as conversas molhadas por cervejas e cer-
tos comentários apimentados atinjam altos decibéis, chegando a
incomodar a vizinhança. Algumas vozes, então, exercem papel mo-
derador. A confabulação prossegue. Não pense nosso(a) leitor(a),
precipitadamente, que todo o prosear gire em torno de abobrinhas

24
MARCELO RIBEIRO

ou patifarias. Rememoram-se ali fatos pitorescos, quase sempre li-


gados à cultura e arte sergipanas. Um ponto de encontro de pen-
santes, reduto de boêmios. Uma atraente e necessária resistência
à dispersão provocada pelo crescimento acelerado da província e
ao isolamento proporcionado pelo uso doentio dos abomináveis
aparelhinhos modernos. Debatem-se ali, no coió, desde as excelên-
cias da gosma do inhame como lubrificante (não registraremos os
detalhes técnicos proferidos pelo didático professor Fernandes em
respeito ao recato de alguns) às preocupações sociais, angústias
existenciais, fraquezas humanas, efemeridade da vida. Tenta-se não
dar corda a conversas políticas, que mais desagregam. Infelizmen-
te, teima a “pustema” em empestar o ambiente.
Bem melhor que se enredar nas paixões políticas – que con-
seguem a incrível façanha de emburrar pessoas reconhecidamente
inteligentes – é ouvir episódio passado por João de Barros, o Bar-
rinhos, ao jornalista Adiberto de Souza: nos terríveis tempos da di-
tadura, um artista da terrinha, radicado em capital nordestina de
maior porte, dirige-se ao Comando Militar da Região e reivindica
uma conversa com o maioral da farda. Encara a temida autoridade:
“General, tenho informações seguras de que o senhor é homosse-
xual, veado”. Ante o olhar de fuzilamento do interlocutor, de pronto
acrescenta: “Isso não tem a menor importância, porque eu também
sou. Fica entre nós. Aliás, vim aqui para convidá-lo a visitar meu
ateliê; pinto e também vendo obras sacras. Antes de ir, telefone que
eu acerto com rapazinhos amigos para que a gente faça uma reu-
niãozinha mais íntima, informal, o senhor me entende”.
Mais interessante ainda é ouvir Zé Andrade rememorando o
brilho de Ubirajara Quaranta, um sergipano que estudou engenha-
ria em Ouro Preto. A ele já me referi em livro sobre a Tropicália.
João Mello, o saudoso compositor de Sergipinho (Tão pequenini-
nho, mas tão bonitinho/que dá gosto a gente ver) dizia-o “talentoso,

25
JOSÉ FERNANDES

excepcional músico” e que foi “quem começou entortando acordes


e com uma batida diferente do samba”, antes mesmo do baiano João
Gilberto. O mineiro Zé Andrade (é de turma posterior à de Quaran-
ta) ficou impressionado com a qualidade do Coral que o então es-
tudante de engenharia criou naquela cidade histórica. Guarda com
carinho os registros fonográficos do grupo. Ubirajara compôs, a pe-
dido do diretor francês Jacques Dormenson, a trilha sonora do filme
O Arrastão (Les amants de la mer), laureado mundo afora. Após a
formatura, graduou-se – pela Universidade de Paris – em Doctor of
Sciences em Corrosão e Tensão em meio líquido. Sua tese foi sobre
um grande navio petroleiro que se partiu ao meio em pleno oceano.
Passou-nos Andrade um delicioso texto (Informativo 14/2007 – Se-
mop, BH) escrito pelo colega Kleber Farias Pinto, outro sergipano
da referida escola. Desse modo ficamos sabendo que no aniversário
da mineira Ana Lúcia Paula Fernandes, seu pai, João de Lima Paula,
então diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ofereceu um
jantar em apartamento da Raul de Pompéia. Os convidados? Gente
como Sérgio Ricardo, Vinicius, Tom Jobim. Os estudantes Kleber e
Ubirajara, que estavam na cidade, se encostaram ao piano, apre-
ciando o preciosismo do jovem músico e maestro. O atrevido Bira
teve a petulância de “invadir o teclado pontificado pelo tal do Jobim
com dois acordes musicais”. A reação do gênio? “Arrastou a bun-
da para a metade do banco do piano e puxou o ‘pau-de-arara’ para
sentar-se junto. E a quatro mãos saíram poemas musicais”. Anos
depois, encontrou Kleber o Tom no Bar do Veloso (atual Garota de
Ipanema), sorvendo o uisquinho de sempre. “Ele relembrou do epi-
sódio e eu disse que meu colega estava estudando Stress Corrosion
em Paris. Ele disse: ‘Vá dizer a seu compadre para tomar vergonha
na cara e ter coragem como eu tive, largando a arquitetura e vindo
fazer música. Neste assunto ele é GENIAL. Eu preciso reencontrar
esse Mister Stress Corrosion. É assim que agora eu vou tratá-lo. Que

26
MARCELO RIBEIRO

deixe pra lá essa tal de engenharia!’”. Em dezembro de 1959, Kleber


encontrou a dupla Jobim e Vinicius, agora em Brasília, compondo a
Sinfonia da Alvorada. Teve o prazer de ouvir a música e a primeira
estrofe de ‘Água de beber’, composta no Catetinho e incorporada
como a primeira música da nova capital. Curioso saber que, pró-
ximo ao Catetinho (um palácio de madeira, alusão ao palácio ca-
rioca), havia um córrego. O maestro perguntou a um operário se a
água era potável. A resposta: “É água de beber, sim senhor”. Nascia
a composição famosa. Voltou Jobim à carga: “Onde está o cretino?”.
Ubirajara Quaranta Cabral dedicar-se-ia à pesquisa e à docência na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou mais de 50 traba-
lhos na área técnico-científica.
Na mesa de bar nascem também ideias luminosas, muitas
advindas do – como diz o compositor-cantor e publicitário Paulo
Lobo – “nosso maluco beleza”, um expert em criar eventos cultu-
rais. É da lavra de Zé a iniciativa do passeio de barcos, conhecido
como Tó-tó-tó (prefiro à grafia tototó, por ser mais onomatopaico),
produzido pelo jornalista Osmário Santos. Voltaremos ao evento.
Empenha-se agora o boêmio no projeto Homem do Rio, uma home-
nagem aos pescadores dos rios sergipanos. Ali no atracadouro do
Bar do Cajueiro, uma figura mascarada chegaria num barco peque-
no e depositaria em fogueira grande diversos frutos do mar para
serem degustados pelo público presente. A recepção ficaria a cargo
de grupos folclóricos em meio a tochas e um grande show pirotéc-
nico. Assim dar-se-ia a inauguração festiva. A partir daí, uma linha
regular de barcos serviria para moradores do conjunto (e dos con-
juntos vizinhos), visitantes e turistas se deslocarem para o centro
da cidade, evitando o uso de automóveis e ônibus. Yes, uma hidro-
via. Promover-se-ia, duma só tacada, um triplo benefício: empre-
gos para os barqueiros, uma nova opção turística e uma vigilância
maior da população e dos órgãos públicos quanto à despoluição dos

27
JOSÉ FERNANDES

rios Sergipe e Poxim. A ideia de Zé surgiu durante faina etílica no


bar do Cajueiro, em pleno feriado duma Sexta-feira Santa, e obteve
total e imediata aprovação de Paulo Lobo e do jornalista e boêmio
Cleomar Brandi. Já dispõe até de música-tema, recentemente com-
posta por Edgard do Acordeon. “Ainda este ano, sai o projeto”, diz
Zé, algumas garrafas vazias em volta, e sem muito convencimento.
Alardeia: “Desta vez não vou deixar escapar das minhas mãos”.
De volta aos rabiscos sobre o temperamento: não é somente
o riso; Zé tem, também, alma de menino, pureza de espírito. Amiú-
de se emociona, indo fácil do riso às lágrimas, um imbricar de sen-
timentos. Levanta-se abruptamente, emposta a voz e faz discursos
empolados (e/ou embolados) nem sempre levados a sério. Tudo –
ou quase tudo –culminando em galhofaria. Concomitantemente, é
capaz de encher os olhos de lágrimas ao relembrar a aparição “para
o mundo todo, para o mundo todo” do amigo (e integrante do sé-
quito) Edgard do Acordeon, durante as transmissões da Copa de
Mundo de 2014. Enaltece aos gritos o trabalho de Erivaldo de Cari-
ra e de outros bambambãs dos acordes, menção especial para Mes-
trinho (trabalha com Gilberto Gil) e Erivalzinho, talentosos filhos
de Erivaldo. Retribui o sanfoneiro: “Zé é o amigo de ontem, de hoje,
de amanhã”. Como bom nordestino, Zé comove-se com o legado mu-
sical de Luiz Gonzaga. Óbvio que tal admiração mereça pinceladas
do caipira-pintor. Comenta o crítico de arte Luduvice José: “Troca a
roupagem das madonas, pescadores e pés descalços do mato, enca-
rapaçando-os de caipiras festeiros do ciclo junino, encaixando-os
entre bandeirolas, desfiles e casamentos na roça, como se os ato-
res de sempre do seu figurativo vibrante continuassem em cena,
apenas com personagens diferentes”. Nessas ocasiões, é permitido
ao espectador “escutar na surdez das telas o forrofiar cadenciado
nas musicais firulas nordestinas do arriar fivela, do bate-coxas que
encantam a brasilidade embandeirada dos arraiais no evocar a mu-

28
MARCELO RIBEIRO

sicalidade autêntica da região na mesclagem do xote, xaxado, baião,


herança indelével do querido e imortal Luiz Gonzaga e seus segui-
dores”. Nessas ocasiões, mostra-se o trabalho prenhe de alma, como
se fora um autorretrato.
Recorre ao estoque de superlativos, quando algo lhe agra-
da. Brada: “Você é doido! Eu sou doido! Todo artista é maluco...”.
E exagera tanto nos elogios que deixa constrangido o homenagea-
do do momento. Emociona-se ao recordar histórias do moldureiro
Osvaldo, da Galeria Zé de Dome, um grande amigo nosso. Osvaldo
caracterizava-se pela competência e retidão. Marceneiro desde os
14 anos, fez-se moldureiro dos artistas pela qualidade singular da
sua técnica e o escancarado amor com que executava os trabalhos.
Vibrava com o sucesso dos nossos artistas lá fora. Fez do seu canti-
nho a verdadeira casa do artista. Inúmeros os pintores da terra que
muito devem a Osvaldo e a sua sensibilidade, seu desprendimento,
sua garra, seu estímulo. Um homem simples, mas de apurada sen-
sibilidade quando o assunto era arte. “Osvaldo e dona Isabel, sua
mulher, batizaram minha filha Alice. Foi a maneira que encontrei
para homenageá-lo”, informa, voz embargada, teatralizada.
Mostra-se Zé Fernandes feliz ao conseguir juntar músicos e
animar as reuniões. Consegue a proeza de promover o encontro do
acordeão de Edgard com o balanço e o batuque de algum grupo pa-
godeiro que surja no pedaço. Uma festa só, o – a essa altura do cam-
peonato – já oscilante Zé ensaiando alguns desencontrados passos
de indefinida, destrambelhada dança. E volta a cutucar a política
cultural: “No São João poderiam ser resgatados os grandes trios pé-
de-serra, investindo em valores locais”. Se o assunto resvala para
futebol, o torcedor do Fluminense e do Sergipe se emociona – novo
motivo de choro – com a projeção mundial do jogador Diego Costa,
conterrâneo do Lagarto.
Durante o “expediente”, pode, desviando o olhar, empolgar-

29
JOSÉ FERNANDES

se com crianças ou adolescentes que jogam uma pelada no campo


da pracinha em frente e prometer-lhes ajuda para um campeona-
to, fornecendo camisas e troféus. Convoca os presentes a colaborar
com o evento que em sua cabeça germina. Cumprimenta ruidosa-
mente os passantes. Muitos fazem questão de mudar o trajeto para
apertar-lhe as mãos. Todos o conhecem. Explica-se: há muito se
empenhou em levar melhorias para a comunidade do Inácio (mo-
rou vários anos nas ruas Carlos Gomes e Castro Alves), recorrendo
ao prestígio pessoal e amizades com autoridades para embelezar
praças e outros espaços, promover festas culturais. Novas ofertas
de quadros para sorteios, pinta murais para embelezar o recanto,
criou, como vimos, o Tó-tó-tó – um modo de despertar atenção do
povo e das autoridades para a preservação do Meio Ambiente (o re-
gistro de peixes, tão presentes em sua obra, serviriam como denún-
cia e súplica contra a poluição de rios e córregos), especialmente do
Poxim, que por ali serpenteia em busca do oceano. “Quando eu era
menino tomava banho nesse rio”. Esclareceria, no jornal Cinform,
em março de 2004: “Vendo a sujeira na margem do rio Sergipe, tive
a ideia. Agora, há uns três meses, eu e o Osmário locamos um tó-
tó-tó e realizamos o primeiro passeio. Era uma coisa pequena e ga-
nhou corpo. Não esperávamos a grandeza do evento”. A finalidade,
plenamente atingida, foi a de mostrar às autoridades a real situação
dos rios Sergipe e Poxim. O propósito foi amadurecido em grupo,
nas mesas do bar Cajueiro. O músico João Moura testemunhou as
discussões. No dia 17 de março de 2013, compareceram mais de
duas mil pessoas. Estudantes, políticos, jornalistas, populares, ar-
quitetos, professores, artistas, médicos, historiadores, geógrafos,
químicos, engenheiros, crianças e idosos, além dos amantes do
Meio Ambiente, uniram-se contra a despoluição dos rios. Um su-
cesso. A coordenação ficou, mais uma vez nessa 10ª edição, com
o ambientalista Osmário Santos. A festa contempla ainda muita

30
MARCELO RIBEIRO

música, com participação de percussionistas e forrozeiros. A data é


proposital, para coincidir com o aniversário da cidade.
O primeiro evento, em 2004, contou com cerca de 400 pesso-
as e ganhou bela e deliciosa crônica de Cleomar Brandi, onde res-
salta a participação, (afora Zé e Osmário) de figuras como Toninho
Torres, Zé Costa, César Macieira, Luís Alberto e outros. Uma Topic
apanhou os “grandes navegadores” no bar do Cajueiro e os levou
ao bar de Aninha, no bairro Industrial. Após generosa rodada de
cerveja e uísque (muitos dos intrépidos navegantes morriam de
medo do balanço da pequena embarcação), vieram pelo rio Sergipe,
costeando a cidade, beirando o mercado, passando pelo Iate Clube,
pela prainha 13 de julho, mergulharam por baixo das duas pontes,
adentraram o manguezal e chegaram à enseada do Poxim. No tra-
jeto, foram efusivamente saudados em frente ao bar do Sapatão; o
jornalista Adiberto à frente da turma. Acenos também no mercado.
Houve até a etílica intervenção do professor Zé Costa que, já trôpe-
go e meio, insistia para que o comandante da embarcação (não, não
era o famoso Vasco Moscoso de Aragão) de pequeno curso apontas-
se a proa em direção à República de Itabaiana, numa rota somente
por ele, Costa, conhecida. Ao chegar ao píer do Inácio Barbosa, re-
cebidos os aventureiros por sanfoneiro e retardatários: Bosco Men-
donça, Waldemar Cunha e outros.
Vibra o pintor com o fato de o Conjunto atualmente se des-
tacar como novo centro gastronômico. Bruno, proprietário do ba-
dalado Bistrô (ou Séo Inácio), é dos seus maiores incentivadores.
Além de colecionador, enriqueceu o restaurante com belo painel e
várias outras pinturas de Zé Fernandes. Há um filtro de água com as
cores do Zé sobre o balcão. Até as placas dos sanitários – masculino
e feminino – são da lavra do artista. Este optou por remuneração
parcelada e a perder de vista: crédito para bebidas e comidas.
Andou metido com política (candidato a vereador pelo PFL,

31
JOSÉ FERNANDES

número 25113 e com o slogan ''Cultura e arte para o povo''). Teria


sido motivado pela vontade de realizar projetos na área social e pela
falta de representação cultural na Câmara. Acostumado a conviver
com a comunidade carente, sabia da necessidade de se implantar
programas sociais que impulsionassem as condições econômicas.
Logo viria a decepção: “É um jogo de cartas marcadas. Luta-se mui-
to por nada”. Mas não se furta a participar ainda hoje de campanhas
eleitorais. Alternam-se candidatos e partidos. Rebate ao acusarem-
no de incoerências no setor, de ser um vira-casaca: “Se eles não são
coerentes, por que haveria eu de ser?”. E distribui gargalhadas.
Outra grande frustração envolve um trabalho para a TV Ser-
gipe. Passemos aos fatos: quando a emissora, afiliada da Rede Glo-
bo, resolveu mexer no gigante relógio do Parque da Sementeira (o
Parque Governador Augusto Franco), com belo design do excelente
Hans Donner, fez boa escolha ao indicar o artista plástico José Fer-
nandes para decorá-lo. O lagartense fez jus à confiança. Teria, inclu-
sive, doado o painel de oito metros de largura por catorze metros
de altura. À beleza do trabalho do artista global, acrescentou, com
invulgar talento, as pitadas de cores e temas locais, mas com co-
notação universal, num casamento perfeito entre o tempo e a arte.
Um inquestionável equilíbrio, uma admirável e repousante harmo-
nia. Impossível se detectar o menor resquício de choque entre o
trabalho dos dois magos. Ao contrário, madonas, pombas, peixes e
barcos auxiliavam-nos a acompanhar com suave ternura o passar
das horas, ressaltando a beleza dos ponteiros do relógio do Milênio,
de Hans. O relógio, recordemos, fazia a contagem regressiva para
os 500 anos do descobrimento. Pois bem: no início de março de
2009, o que era uma das obras-primas de Zé foi retirada (pela Em-
surb?) e, pasmem, passou a servir de lona para cobrir terra preta e
estrume. Fotografias estampadas em jornais desencadearam vee-
mentes protestos de jornalistas, políticos artistas, intelectuais e do

32
MARCELO RIBEIRO

próprio povo. Gente daqui e de todo o Brasil. Uma ignomínia. Houve


quem o aconselhasse a entrar com pedido de indenização contra o
município. A presidente da Emsurb, Lucimara Santos, manifestou
solidariedade ao artista e diz ter averiguado que a obra foi abando-
nada pelos responsáveis pelo relógio. Os garis, ignorando o valor
artístico, teriam feito uso do trabalho para proteger o estrume das
intempéries do tempo.
Apesar de mudar-se para o outro lado da pista, junto ao
Emes, sua alma permanece no Inácio Barbosa, ali vagueia sob a
sombra de cajueiros e da frondosa mangueira. Diz, da boca pra fora,
esperar morrer aboletado na cadeira cativa do bar de Angélica.
Conversa mole. Vejamos até quando dura a fidelidade ao recanto.
De qualquer maneira, passa-nos a impressão de não mais ansiar
por grandes novidades. Parece ter conquistado, enfim, a mansuetu-
de. A inquietação juvenil há muito arrefeceu. Sabe que já fez muito.
Tem plena consciência de que a Arte é que imortaliza. Pixinguinha
deslocava-se do subúrbio e ia para o centro do Rio, ocupar a sua
cadeira do bar Gouveia. Fernando Pessoa é escultura, sentado numa
cadeira de tabacaria, em Lisboa. Drummond, em bronze, mora no
calçadão de Copacabana. Jobim, ainda jovem, traz, em Ipanema, o
violão no ombro direito. José Fernandes, o Zé, é nossa estátua viva
a circular pelo Aracaju – do mercado ao Coió da Angélica, do Bar do
Cajueiro ao Séo Inácio; do bar de cabo Duda, na orla da Atalaia, às
margens do rio Sergipe, no bairro Industrial.
Não causa espécie, após enxugar inúmeras “loirinhas”, con-
fundir a geografia dos espaços ou mesmo das pessoas. Um exemplo:
refestelado no bar do Camilo, na Coroa do Meio, decidiu esticar até
a Atalaia. Despediu-se da turma, ligou o carro, deslocou-o uns dez
metros, desligou, caminhou de volta e sentou-se com o mesmo gru-
po, convencido, agora, de estar no bar do Cabo Duda. Há inúmeras
outras histórias anacrônicas. Ofereceu, numa farra também no Ca-

33
JOSÉ FERNANDES

milo, carona a Adiberto de Souza. Após cochilar bastante, levantou-


se, acionou o carro e foi até o edifício em que o amigo morava. Lá,
pediu ao porteiro que o ajudasse a carregar o jornalista. Só que há
muito Adiberto, sóbrio, já chegara ao apartamento, e dirigindo seu
carro próprio.
Rotineiramente, bebe 12 a 15 garrafas diárias de cerveja, al-
moça (o rango é “importado”, pois o “coió” não tem estrutura culiná-
ria; pode a gororoba vir de motoboy ou então recorre Zé ao vizinho
Al’Bar) e realimenta o espírito. Possível vê-lo usar a bebida alcoóli-
ca para engolir remédio para a pressão arterial elevada. Usa bebe-
ragens naturais para controlar (???) a diabetes. Prescreve, para os
colegas de mesa e copo, o “Amargo”, um produto à base de carqueja,
camomila, chá verde e hortelã com aroma natural amargo. “Protege
o fígado que é uma beleza”, proclama. Volta e meia, mostra-se tiete
dos filhos, André Fernandes e Alice Maria. Geralmente deixa o carro
com a filha, volta para casa de carona. O primogênito, empresário,
mais afinado com o temperamento da mãe; “Alice, jornalista, tem
mais o meu jeito de ser”.
Não é incomum perder-se no meio duma conversa, esquecer
o fio da meada. Faz de conta, na ocasião, que a concluiu. Entabula
outra: “Já contei que dormi na cama em que dormia Vinicius, lá
em Itapuã?”. E os olhos de pitomba saltam das órbitas e passeiam
pelas ruas e vielas da velha São Salvador, nos bons tempos em que
fez amizade com Jenner, Carlos Bastos, Kennedy, Calazans Neto e
outros bambas. Se a memória empaca, volta a remoer assuntos já
esclarecidos. Ouço, pela enésima vez: “Não lhe entreguei o DVD
com a homenagem que fizeram a mim na Galeria Zé de Dome? Ah!
Não??! Ficou ótimo. Vou trazer”. Novamente não trará. Não estra-
nho que se deslembre de que estava eu presente e até depus sobre
sua obra. “Ah! Foi mesmo. E tudo ficou muito bom, não é!?”, esca-
moteia. Embaralha-se com a tecnologia do celular, balança impa-

34
MARCELO RIBEIRO

cientemente a cabeça. Há poucos dias, irritado, jogou o aparelho


longe, espatifando-o. Cessada a ira, adquiriu unidade mais atuali-
zada. Usa, como é de se esperar, o mínimo dos múltiplos recursos
oferecidos pela engenhoca.
O tempo passa, cai a noitinha. Cala-se. Dá-se o instante de
ensimesmamento. Uns goles a mais e é chegada a hora de as pálpe-
bras pesarem sobre os olhos avermelhados. Cochila. Parece alheio
à prosa em volta. Repentinamente, mexe-se na cadeira, expele mais
umas três ventosidades e, malandramente e com um riso de canto
de lábio, abre uma das pálpebras. Somente uma. Funciona como gag
sua. Acha graça dos derradeiros alívios ou da reação que provocam
(vez por outra algum forasteiro estranha o ruído e o odor). Não se
vexa. Ri muito. Num crescendo, é tomado por entrecortado riso tão
para dentro que chega a se engasgar. Ficam o rosto e o pescoço intu-
mescidos pelo sangue. Levanta a cabeça, tosse, dá uma cusparada,
torce o pescoço, pede a saideira. Espia as horas. Já é noite, hora de
encerrar as atividades. Levanta-se desajeitadamente e vai à pada-
ria (colada ao bar) comprar pães e, às vezes, ovos. Informa que, ao
chegar a sua casa, na rua I, 82, Loteamento Rio Poxim (haja paciên-
cia da esposa Cynthia Maria Costa, uma orientadora escolar que o
tolera desde 1987), tomará um banho, sorverá uma sopa reforçada
para dar sustância ao corpanzil e entregar-se-á ao sono profundo
(a cevada é o seu Rivotril). Dorme cedo, chumbado. “Se não tiver
bebido, rolo muito no colchão, não durmo”.
Desde 1993 trocou óleo por acrílico: seca rápido e traz ris-
co menor de envenenamento; sempre lhe vem à lembrança a in-
toxicação letal de Portinari. A diabetes dificulta a cicatrização de
eventuais ferimentos nas mãos. Que já se mostram trêmulas. Não
descuida, contudo, o biriteiro – ofício é ofício – do seu dever diário.
Afinal de contas, faz-se merecedor das considerações do experiente
e premiado Leonardo Alencar: “É uma pintura que se lê e se pe-

35
JOSÉ FERNANDES

netra. Forte de características pessoais e de muita respeitabilidade


plástica”. Como não se valer, pois, do dom que por Ele lhe foi dado?
''É ééééééééééééé!!!'', costuma detonar, já um tanto pra lá de Mar-
rakech, perdão, da Colônia Treze, quase chegando ao Jenipapo – po-
voados do seu berço.
Espicha-se na cama grande o menino enorme, amigo de mui-
tos, desafeto de poucos, artista do povo, patrimônio já histórico da
nossa terrinha. Quem viver, verá. Quem vive, desde agora vê. É!!!
Sonha com os painéis que vem fazendo para a Bica do La-
garto, trabalho grande, parceria com Bené. Na mente entorpecida,
pululam flores, pombas, mulheres, barcos, cajus, céu e mar. Entrega
ao velho fígado a imensa tarefa da faxina: processar a sobrecarga
diária de álcool, eliminar toxinas. Para o cérebro, trabalho mais
prazeroso: reordenar o arquivo, enriquecido com o desfile de ima-
gens do dia, elaboração de novas ideias, justaposição de elementos
diversos, que a pintura do bicho é, também, cerebral, não vive tão
somente de inspiração.
Aproveito eu o interregno do merecido descanso da matéria
para rebater eventual crítica sobre a recorrência de temas em sua
pintura. A verdade é que sempre encontra jeito novo de distribuí-
-los no quadrilátero, e harmonizar as composições. Também a José
se pode aplicar o que disse Caetano Veloso sobre João (Gilberto):
“Faz sempre a mesma coisa que não é a mesma”.
Renovado, acorda de madrugada e vai pintar, pintar, pintar
e pintar. Nesses instantes de solidão, o encontro consigo, o soltar
de rédeas das suas angústias, a necessidade de se exprimir, o aten-
dimento aos reclamos da sua calejada sensibilidade. São muitas as
encomendas, “Graças a Deus”. Quadros de bom tamanho, que não
aprecia o pintar diminuto; sente, como Caravaggio, necessidade de
grandes espaços. Painéis e murais aconchegam melhor seu talento,
oxigenam mais o espírito livre.

36
MARCELO RIBEIRO

Embalam o sono desintoxicante poemas ao artista ofereci-


dos. É de Ieda Vilela o Arauto Alado:
Andarilho,/viajando/em tempo insondável/no infinito das
cores.../arauto alado,/na embriaguez do voo/com visões apoca-
lípticas/pintando o amanhã.../saltimbanco,/em mergulho profun-
do/no oceano do sempre/pescando/a beleza/trágica/na esperan-
ça/do reencontro.
Araripe Coutinho, falecido há pouco, também se fez presente:
“Pintar é morrer um pouco/e se acham isso pouco ou muito/
pintar é se suicidar na tela/querer o mundo em suas mãos/o pintor é
um poeta que se revela/não tanto pela imagem/pela cor/sobretudo
pela dor/traduzida em desespero em aquarela/em óleo sobre a tela/
o pintor pinta o deserto da alma/da fera que corrói a carne/e brinca
de riscar seu nome/num portal de sombras, de velas/de pombas/o
pintor sabe que seu futuro é eterno/sabe da sua solidão de esperas,
sua nudez, seu fardo/o pintor é um demônio mascarado de Deus”.
Bem possível que, na calada da madrugada, desça com sua-
vidade (apesar do destrambelhamento) os degraus de nuvem para
não despertar o sonho que ainda insista, por acaso, em dormir.

37
JOSÉ FERNANDES

Com o pai, Altamiro Carvalho, e amigos

Ao lado da esposa Cynthia

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MARCELO RIBEIRO

Minha mãe Carmosa, minha irmã Joelma e minha prima -1968

Tia Eurides, Jussara e Joelma, minhas irmãs

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JOSÉ FERNANDES

Retrato - 1977

Com o Governador Jackson Barreto

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MARCELO RIBEIRO

Com a filha Alice Fernandes, Luís Caldas, Rogério e Garcez

Com o jornalista Gilson Souza e esposa Cynthia

41
JOSÉ FERNANDES

Retrato José Fernandes

Retrato José Fernandes

42
MARCELO RIBEIRO

CAPÍTULO II

FRAGMENTOS DO PERCURSO

Quem chega ao Lagarto – é assim que o lagartense, carinho-


samente, se refere à cidade –, localizada a 75 quilômetros de Ara-
caju, depara-se com escultura de gosto duvidoso do ágil réptil sáu-
rio, muito conhecido do povo interiorano, parceiro do agricultor no
combate aos insetos. Antes de se tornar cidade (em 1880), denomi-
nava-se Vila de Nossa Senhora da Piedade. Foi a terceira vila mais
antiga de Sergipe, perdendo apenas para São Cristóvão e Itabaiana.
Dá-se o início da sua colonização por volta de 1575, iniciativa de
jesuítas da turma do padre Manoel da Nóbrega. Assim como Araca-
ju, teria a sua população indígena dizimada pelo sanguinário Luis
de Brito, governador de então, responsável pela morte de Surubi
e aprisionamento de Serigy. Localizada na região centro-sul, é a
maior cidade do interior de Sergipe, com uma população estimada
em 2013 – pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – de
100.330 habitantes, sendo o terceiro município mais populoso do
estado. Sua hidrografia é composta pelos rios Vaza-Barris, Piauí,
Jacaré, Piauitinga de Cima, Machado e Caiça; e pelos riachos Oiti,
Pombos, Flexas e Urubutinga. O solo é rico em argila, calcário, már-
more, enxofre e pedras de revestimento. Suas áreas de preservação
são as piscinas do povoado Brejo e o Balneário Bica (uma fonte na-
tural, localizada no perímetro urbano, agora embelezada por tra-
balho de seu filho-pintor). Dos cerca de cem povoados, destaque
para a Colônia Treze e o Jenipapo (ambos reivindicando autono-
mia), Açuzinho, Açu, Caraíbas, Brasília, Brejo, Gameleiro. Há predo-

43
JOSÉ FERNANDES

minância de ascendência portuguesa em sua população mista e a


maioria dos habitantes reside na zona urbana. A tumultuada políti-
ca local ainda sofre resquícios de décadas de polarização entre dois
grupos, Saramandaia e Bole-Bole, denominações calcadas em velha
e já bolorenta novela da Rede Globo. A economia gira essencialmen-
te em torno dos produtos agrícolas (tabaco e frutas cítricas), mas é
significativa a criação de bovinos, equinos, ovinos, suínos, galináce-
os. Sua indústria centra-se no tabaco (mais da metade da produção
é exportada para outros estados), mas é robusta no setor de emba-
lagens, concessionárias de veículos, fábricas de móveis, fábricas de
velas, indústrias de produtos químicos e indústrias do gênero ali-
mentício. Há, também, um importante cultivo da mandioca, heran-
ça indígena. Bem servida de instituições bancárias, Lagarto oferece
bom ensino superior: Faculdade José Augusto Vieira, Universidade
Vale do Acaraú, Universidade Tiradentes (EAD), Instituto Federal
de Sergipe e o Campus Avançado da Saúde da Universidade Federal
de Sergipe. Um município rico em grupos folclóricos (o filho Sylvio
Romero ficou muito conhecido pelo trabalho de pesquisa no setor):
Chegança, Parafusos, Taieiras, Cangaceiros, Zabumba, Quadrilhas,
Silibrina (uma comemoração antecipada da festa junina).
É um vizinho, o simão-diense Monsenhor Daltro, nascido em
1828 e que dedicou 36 anos de sua vida à comunidade, quem, se-
gundo assinala o historiador Claudefranklin Monteiro Santos, me-
lhor representa aquele povo. Daltro governou a Vila de 1840 a 1892,
tendo construído o prédio da Prefeitura, o Hospital Nossa Senhora
da Conceição, um leprosário, as torres da Matriz e o cemitério Se-
nhor do Bonfim. Há divergências históricas relacionadas ao batis-
mo da cidade. A mais festejada – e simpática – atribui à existência
de uma enorme pedra com forma similar ao réptil. O historiador
Adalberto Fonseca assegura ter-se encontrado – no riacho Macuna
– restos de uma pedra em forma de lagarto (ou teiú), usados para

44
MARCELO RIBEIRO

calçar uma rua e colocar meio-fio numa das praças, a da Piedade.


Esta versão ganhou o auxílio luxuoso do intelectual e político Lau-
delino Freire – filólogo respeitado, membro da Academia Brasileira
de Letras e autor de festejado dicionário –, um dos filhos ilustres da
terra. Outra tese é a de que seria decorrente de brasão, em forma
dum lagarto, de família portuguesa (Rodrigo de Noronha), contem-
plada com uma sesmaria naquela região. O que importa é que a lo-
calidade é berço de gente importante, em Sergipe e no Brasil: Sylvio
Romero – professor, escritor, jornalista, filósofo, folclorista, o maior
discípulo de Tobias Barreto; Aníbal Freire – escritor e membro da
Academia Brasileira de Letras; Joel Silveira – jornalista e escritor de
renome; Ranulfo Prata – médico e escritor, autor do primeiro livro
sobre Lampião; Abelardo Romero – sobrinho-neto de Sylvio, jor-
nalista e escritor talentoso; e muitos outros. Dos contemporâneos,
destacam-se os nomes de Aglaé Fontes de Alencar, Beatriz Góis e
Luiz Antonio Barreto.
José Fernandes vem desse ninho de “cobras”, e nascido em
outubro de 1959, numa fazendola (vizinha da fazenda Buril – de
Batalhinha, irmão do radialista que chegou a ser vereador de Ara-
caju) dos avós Ildefonso e Ana, e localizada nas bandas do Mato
Alto. Informa Zé que a fazenda de Pedro Ribeiro (meio-irmão de
Ribeirinho e Cabo Zé, e pai do lendário Pititó) também ficava por
perto. Na sede do município, na Avenida Contorno, mantinha o
velho Ildefonso uma casa de apoio para a família. Após ficar viúva,
Maria do Carmo, com o pequerrucho Zé (dois anos de idade) a
tiracolo, decide migrar para a capital. Zé nascera aos oito meses
de gestação (não estranhemos), após o susto de uma vaca cho-
car-se com a casa. Aqui, aboletam-se na rua também chamada de
Lagarto, onde cresce o pimpolho. Aos quatro anos, o contato com
os livros, com professora particular, da qual já não lembra o nome.
Frequentava a escola, jogava bola e, desde cedo, rabiscava dese-

45
JOSÉ FERNANDES

nhos de gente, plantas, bichos. Um universo à parte, somente seu.


Dona Elze foi a sua professora, também particular, do curso pri-
mário. As aulas aconteciam na residência dela, na Avenida Pedro
Calazans. Do tempo da infância, agradáveis lembranças dos ami-
gos João Garcez, Sávio, Bobô Cruz, Dôra, Roberto, Cacau e Orfélia
Cruz – figuras importantes em sua vida.
Contou para Ailton Cardoso, autor do opúsculo Arte e Vida:
“Eu estava no minigolfe quando vi um senhor. Parecia um mendi-
go, ou alguém muito triste e cansado. O desenhei e resolvi passar
para uma tela de estopa, que eu mesmo preparei. Quando termi-
nei, descobri o que eu queria fazer na vida. Foi como um fulgor, um
clarão, tomasse a minha mente. E naquele instante percebi como
seria minha trilha. Aos nove anos de idade, descobri, fascinado, que
começava a entrar em um mundo novo, de cores e emoções”. Uma
revelação. Pouco depois faria um desenho marcante, misto de so-
nho e realidade, de cores fortes, onde misturava aves, nuvens, mar
e plantas, prenúncio de temas recorrentes em sua extensa produ-
ção. Paulatinamente, alicerçava um estilo. Continuaria, com o pas-
sar dos anos, a burilar desenhos variados que retratavam pessoas,
aves, frutas, plantas, moringas, peixes. “Sempre tive fome de tinta,
só consigo fazer alguma coisa com pincel e com cor; não gosto de
usar lápis em meus trabalhos”. Não é profissional chegado a esbo-
ços. Nada escapava ao seu olhar curioso, ávido por descobrir o se-
gredo da vida e a beleza das coisas. Uma visão para um mundo mais
bonito. “No princípio, o meu estilo era primitivo, pintando casas,
árvores, marinhas... Depois descobri minha personalidade artística.
Tudo ficou mais colorido e com as cores vivo até hoje”.
O exame de admissão foi para o Colégio Leite Neto. Adoles-
cente de 14 anos e já decidido a ser pintor, esbarra na dificulda-
de para aquisição do material. O jeito foi, enquanto aluno do Leite
Neto, trabalhar na fábrica de tecidos Unibrás. Lá, destacou-se ao

46
MARCELO RIBEIRO

desenhar o pano para o corte. Afoito, largou o emprego e passou a


dedicar-se à arte. Chegou a pintar em compensado e em papelão,
com tinta à base de água. Em depoimento a Osmário Santos, revela:
“Conseguia papelão de caixas que iam ao lixo e, até mesmo, caixas de
sapatos e pincéis usados em construções. Tinha habilidade: cortava
a parte dura, pegava uma vareta e conseguia prender os cabelos,
montando praticamente um novo pincel”. As primeiras incursões
em tecidos foram em lençóis e fronhas de casa, rasgados para servir
de telas. “Pegava os panos e impermeabilizava com cola; somente
quando conheci Florival foi que ele me ensinou como realmente se
preparava uma tela”. Receberia estímulo moral e material dos ami-
gos Virgílio e Dinho – lençóis subtraídos das residências maternas.
O pintor Pancetti, um marujo, valia-se dos grossos tecidos das velas
de barcos da Marinha. Aos dezessete anos, o rapazelho sergipano já
se sustentava com a pintura. O apoio de Fernando Silva, da Casa das
Tintas, amigo dos tempos da puberdade, foi fundamental. Durante
o curso científico no Colégio Atheneu (não chegaria a concluí-lo de-
vido à pintura), andou Fernandes envolvido com política estudantil
e participava das atividades culturais. No meio dos movimentos,
fez amizade com Paulo Mendonça, seu primeiro marchand. Supõe
que da politização da época advém sua preocupação social, costu-
meiramente estampada em obras: “Sempre gostei de conhecer e
conversar com pessoas marginalizadas, crianças de rua, mendigos,
lavadeiras, pescadores”. Sentia-se impelido a retratar o desalento
e a aflição que captava nas sofridas fisionomias. Mas gostava tam-
bém de pintar violeiros. Do tempo da juventude, a fascinação pelo
Carrossel do Tobias, no Parque. “A turma se encontrava lá na pra-
ça, na época de Natal”. Ainda trabalharia, aos dezoito anos de idade
e durante apenas sete meses, na Agência Nacional de Notícias, hoje
Empresa Brasileira de Notícias. Inicialmente auxiliar administrativo,
logo passou a operador de telex. O chefe era Rubens Ribeiro Cardoso.

47
JOSÉ FERNANDES

A pedido de Zé, Anselmo, artista plástico, também foi trabalhar na


Agência. Reconhece o colega: “Deu-me a força que faltava, incen-
tivou-me; disse-me que valia a pena tentar”. Com autorização de
Rubens, Anselmo montou no local de trabalho um pequeno ateliê.
Sopa no mel para os dois jovens pintores. Uma inspeção de gente
de Brasília, porém, colocou areia no brinquedo. Desfez-se o ateliê.
Autodidata e observador, esmerou-se Fernandes em apri-
morar o traço ao conviver com amigos artistas. Apresentado por
Wellington, fez amizade com Florival Santos e passou a frequentar
com regularidade sua casa-ateliê da rua Duque de Caxias, no bair-
ro São José, perto da Agência de Notícias. Foi lá, na casa do pintor,
que ouviu admoestação do chefe Rubens: “Meu filho, meu filho,
você tem um futuro pela frente. Você quer deixar esse emprego
por não saber o que ele representa. Isso não pode acontecer. Um
emprego federal... e você fica nessa pintura!” Pressionado, Zé res-
pondeu que só queria mesmo era saber de pincéis e, no outro dia,
caiu fora da Agência.
Rememora, embevecido: “Florival foi o artista que mais in-
fluenciou minha carreira. Famoso, respeitado pelo público, não se
recusava a orientar, um altruísta. Chegava a interromper o que es-
tava fazendo para dissipar dúvidas minhas”. O mestre percebera,
de imediato, o talento do pupilo. Registraria: “José Fernandes vem
pesquisando com seriedade e com um bom tratamento de matéria.
Verdadeiro, sem ser exato. Porque a arte só começa com a verdade
interior. Com suas formas, suas cores traduzindo sentimentos. Daí
ser o jovem pintor uma grata revelação dos últimos tempos em Ser-
gipe, com um futuro promissor”. A ele, deve José “O ofício da arte,
a disciplina, a humildade, a seriedade e, principalmente, objetivos
determinados que me realizam como artista plástico”. Wellington,
Gervásio, Adauto, Argollo e muitos outros também beberam na fon-
te, naquela “Escola de Belas-Artes Florival Santos”. O irmão e pintor

48
MARCELO RIBEIRO

Álvaro Santos morreu cedo, mas deixou nome firmado, gente graú-
da das nossas artes plásticas.
Assim como Jordão de Oliveira (nos tempos iniciais, em Ser-
gipe), José Fernandes estudava cuidadosamente a natureza para
retratá-la: Barra dos Coqueiros e a então ainda agreste Coroa do
Meio (com seu manguezal e palhoças de pescadores) eram locais
sempre frequentados. Ia, com outros artistas (Inácio entre eles) e
de barquinho, deleitarem-se todos com a virgindade do local.
Ainda tentou adaptar-se, em 1978, a um emprego, ligado à
área artística, contratado pela Emsetur: auxiliar de restauração de
peças sacras do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão, na equipe
montada por Eliane Fonseca. Depõe: “Foi um trabalho dignifican-
te e recompensador, porque muito aprendi. Eliane Fonseca é uma
excelente profissional, a quem muito devo, pois além do estímulo
em termos de pintura, muito me ensinou no trato de peças que ne-
cessitam de restauração, me dando o real valor do que representa
um acervo para a cultura e arte de um Estado. É o reconhecimento
justo a uma pessoa que realmente entende”. Uma Nossa Senhora da
Piedade, em madeira, e datada do século XIX, pertencente ao Museu
de Arte Sacra (fundado por Dom Luciano Cabral Duarte), foi uma
das belas peças restauradas por José Fernandes. Ele e Clóvis Fon-
seca cuidariam da restauração do teto da igreja de Nossa Senhora
da Conceição, em Itabaianinha. Chegaria, adiante, a restaurar dois
painéis do amigo Jenner Augusto: o do aeroporto Santa Maria (par-
ceria com Adauto Machado) e o do edifício Walter Franco, no centro
da cidade. Ainda com Adauto, restauraram, em 2011, o painel de
Eurico Luiz no muro do calçadão externo do Parque dos Cajueiros.
Há pouco, não se interessou pela restauração das obras de Jenner
no Cacique Chá: a remuneração que ofereceram era, argumenta, ir-
risória para a grande responsabilidade.
Ainda jovem, após muito matutar, a decisão crucial: dedicar-

49
JOSÉ FERNANDES

se de vez e exclusivamente ao ofício de pintar. Perseverante e astu-


to, deu corda elástica ao seu talento, e dele passou a viver. Saliente-
se que aos 15 anos de idade já ganhava prêmio com a pintura. Fora
através do pai Altamiro que conhecera Wellington, Washington, Da-
niel e Osvaldo, pintores igualmente jovens e sonhadores. O convívio
com colegas redundou em preocupação com o lado técnico. Passou
a comprar material de pintura na Livraria Regina (na rua João Pes-
soa) de seu Apóstolo, uma casa aberta para a literatura e Artes em
geral. Época em que era muito difícil vender quadros em Sergipe.
Ainda em 1976 participou de exposição coletiva de artistas
sergipanos na galeria Álvaro Santos. No ano seguinte, coletiva na
Aliança Francesa, na rua Pacatuba. Em 1978, Amostragem Sergi-
pe, uma coletiva em Salvador, Bahia. Guloso, abiscoitava medalhas
(de prata e de ouro) no Salão Atalaia e no Salão Nacional de Artes
Plásticas do VII Festival de São Cristóvão. Em 1979, exposição cole-
tiva na Galeria Funarte, no Rio de Janeiro. Dá-se, aqui em Aracaju,
sua primeira individual, na Álvaro Santos. Agoniado, deixa a cidade
e passa dois anos fora, fixando-se de quinze a trinta dias em cada
local e retornando a Aracaju para rever parentes. Em 80, nova cole-
tiva: Artistas da América do Sul, em Brasília, na Galeria Opus. Nova
premiação no sergipano Salão Atalaia. 1981 é o ano do primeiro
Prêmio de Aquisição (categoria pintura a óleo), em Brasília. Par-
ticipa da Fundação do Art Belle e também se faz presente no 1º
Salão de Artes Plásticas da Aeronáutica, no Centro de Convenções
da capital federal. Foi um dos proprietários do Ateliê Art Belle, onde
se fazia restauração de imagens, pinturas e objetos de arte, além
de aulas de desenho livre e artístico. Ficava no segundo andar do
Ed. Taguacenter, em Taguatinga Norte, Brasília. De volta a Sergipe,
exposição com Anselmo Rodrigues e Wellington, sempre na galeria
localizada no parque Olímpio Campos.
Junto com André Cunioli (fotógrafo), Anselmo e Marinho

50
MARCELO RIBEIRO

Neto (arquiteto e fotógrafo), participam do Movimento das Artes,


aqui em Aracaju, uma sacudidela no marasmo artístico de então.
Leonardo Alencar juntar-se-ia ao grupo. A ideia aflorara após ex-
posição promovida por Luduvice José. Destrincha Marinho Neto:
“Surgiu de uma insatisfação dos artistas com relação ao mercado de
arte em Aracaju, definindo sua posição dentro da sociedade como
tal. O grupo se reuniu com o objetivo de fazer um trabalho sério,
independente, que dependesse tão somente do próprio trabalho
como artista atuante e não como figura marginal da sociedade”.
Em suma: buscava-se restaurar a dignidade da arte no Estado. Le-
onardo ressaltou, na época, a importância da integração do artista
plástico com os arquitetos locais: “Antes, os administradores pro-
vinciais traziam os mestres de obra de São Paulo”. Época (década
de 80) em que praticamente só existia a Galeria Álvaro Santos, da
Prefeitura de Aracaju. Recebeu a iniciativa dos rapazes e elogios de
Eurico Amado, um conhecido amante das Artes: “Carregaram tijo-
lo por tijolo. Só que, ao contrário dos operários, são donos de sua
produção e, por isso, puderam dá-la ao povo de Sergipe. As pessoas
em Sergipe estão acontecendo com uma fidelidade muito grande
à semente da terra. É um movimento das artes, portanto, algo que
evolui de forma abrangente, envolvendo mentes. É político, per-
meia a sociedade, revela novos valores, desmascara outros, desmi-
tifica, desmistifica, abre caminhos, denuncia. Revolve a hierarquia
das qualificações sociais. Exalta o ser antes do ter”. O grupo ansia-
va por um movimento consciente, de todos os artistas. A intenção
era aproximá-los, discutir problemas, expor novas ideias, criar um
mercado de arte. Um primeiro passo. O ideal, não atingido in totum,
seria a conscientização – de todo o artista sergipano e do povo – da
necessidade da arte. O movimento chegou a receber crítica pela au-
sência de Wellington.
Zé aplicar-se-ia, adiante, em levar a arte ao povo do Conjunto

51
JOSÉ FERNANDES

Augusto Franco, pintando um mural com tema ecológico, em par-


ceria com a Associação de Bairros do local e com apoio da Ludus
Artes (a galeria de Luduvice), num prédio da Secretaria de Saúde.
O suporte material veio de casa de comércio de tintas. Apesar dos
aplausos e do regozijo dos moradores, políticos e comerciantes
inescrupulosos mancharam o grande muro com inscrições e propa-
gandas. Um abominável desrespeito.
Mais duas coletivas – do Banco Itaú e outra da Celi Imobili-
ária. Já consagrado, representa Sergipe, em 1983, no Circuito Nor-
deste de Artes Plásticas. Participa de mais duas coletivas – na Álva-
ro e na Galeria J. Inácio, da Biblioteca Epifânio Dórea. É da época a
afirmação de que “Algo já melhorou em relação às artes em Sergipe,
pois iniciativas particulares vêm mudando hábitos e criando pina-
cotecas em residências, que, até então, dispunham nas paredes de
estampas e reproduções artísticas e, hoje, já mostram trabalhos dos
nossos artistas. Grande colaboração devemos à imprensa”.
Em 1984, exposições em Lagarto e em Aracaju, uma delas na
Ludus (localizada na rua Vila Cristina, próxima ao Batistão). Vati-
cina: “A galeria do Luduvice profissionalizou o mercado de arte. Os
artistas, até então, vendiam os quadros de porta em porta”. O jorna-
lista e crítico, criterioso, selecionava as obras, valorizava os artistas,
separava o joio do trigo. Em 1985, exposição individual em Aracaju
e coletiva em Brasília. Nos anos seguintes, diversas exposições em
Aracaju e em Salvador. Houve exposições em Porto Alegre, na Gale-
ria Tina Zapolli (Tina é esposa de Marinho Neto, radicado naquela
cidade desde 1986). Chegou Zé Fernandes a lançar álbum de xilo-
gravuras em 1987. Destaque para, em 1990, exposição coletiva no
exterior, na Dodge House Gallery, em Rhode Island, Estados Unidos.
Exporia também em Miami e em Guadalajara, no México.
Venceu concursos de cartazes das universidades brasileiras,
participou de exposições em São Paulo, Feira de Santana e nova-

52
MARCELO RIBEIRO

mente em Brasília. Um danado. Funda – com Pedro da Silva, Tati


Lima, Ana Sacramento e Wellington – a Associação dos Artistas de
Sergipe, tendo ocupado cargos de Tesoureiro e, depois, Presiden-
te. Em pouco tempo, eram quase cem os associados. Conseguiram
alcançar o objetivo primordial: congregar os artistas plásticos. Ir-
requieto, Zé Fernandes não para: idealiza e coordena Encontros
Culturais e Esportivos do Conjunto Augusto Franco. Assinala o ve-
terano Leonardo: “Ele tem um importante trabalho como animador
cultural. Está sempre incentivando colegas e promovendo novos
espaços de divulgação artística”. Novos prêmios e assume a direção
da Galeria Álvaro Santos em 1995. Nunca deixará de pintar e, natu-
ralmente, expor. É a sua vida. Uma das suas características, vimos, é
o domínio das cores e da técnica de murais e grandes painéis. Sen-
te-se livre, solto. Dono de traços marcantes e originais, fidelidade
canina às origens, não carecemos nós de procurar assinatura para o
reconhecimento. Asseguramos, de longe, tratar-se de trabalho seu.
Inconfundíveis, suas telas proclamam o cromatismo nordestino, a
concepção da cor como equivalente cromático da luz.
Em 1996 seu nome integrou o livro “Artes Plásticas Brasil 96
– seu mercado, seus leilões”, de autoria de Maria Alice do Amaral e
Júlio Louzada, filho, impresso em São Paulo. Aliás, um dos poucos
sergipanos ali contemplados. O texto é da lavra do crítico conter-
râneo Luduvice José: “Tenho acompanhado a trajetória do artista
plástico José Fernandes, desde quando, em certame reunindo pin-
tores, conseguiu se sobressair dos demais auferindo a primeira co-
locação. De lá para cá, sempre tem conseguido reunir sucesso, ado-
tando uma postura criativa e agressiva, passando por fases que, ora
lembram pássaros e flores campesinas, em composições de cunho
social mesmo tendo aparência romântica...”. Elogia Luduvice a nor-
destinidade da pintura, com o “Calor dos amarelos e vermelhos que
se mesclam entre azuis que procuram a brancura delineando vo-

53
JOSÉ FERNANDES

lumes de muita luz. (...) É um voo alto, sintetizando uma amostra-


gem de arte, buscando fazer do ato de pintar o arcabouço perene do
exercício íntimo, como um êxtase transcendente a povoar o infinito
do mundo interior de sonhos, de fatos construídos à cumplicidade
dos pincéis e das tintas que se mancomunam num conúbio promo-
vido pela tara de criar, de fazer, de externar, revelando as tessituras
da memória que, mesmo passado, enfoca a identidade do presente”.
Singela é a explicação da presença constante – chega a ser
marca – de palomas em seu trabalho: numa manhã fria, ao abrir a
janela, deparou-se com uma delas aboletada no muro do ateliê. As
visitas da ave branca passaram a sistemáticas, “Todos os dias, na
mesma hora”. Nada mais natural, pois, que ganhasse tão doce ami-
ga a eternidade das telas. “Parecia que queria fazer parte de mim,
adentrar a pintura”. Trouxe sorte: “Mal acabava de pintar uma tela
e a vendia, porque as pessoas olhavam e se apaixonavam”. Ora, têm
as pombas, ao longo da história, servido de inspiração para poetas,
pintores, escultores. Ostentam, liricamente, toda uma simbologia
de paz, fraternidade, meiguice, serenidade, harmonia. Como des-
conhecer a mística da pomba universal do mestre Picasso, um dos
ídolos do nosso pintor? As de Zé, traços originais, caracterizam-se
pela opulência, são quase todas bem gordinhas. “Se você reparar
bem, são garças”, confidencia, para surpresa minha. Outra grande
fonte inspiradora é o mar, sua vastidão e seus mistérios. “A praia
me reoxigena”. Daí ter frequentado com muita assiduidade o bar
Toca do Índio, na passarela do Caranguejo e a Cabana da Vera, no
Mosqueiro. A conversa com os pescadores, a silhueta dos peixes e a
luz do dia e do entardecer eram processadas na mente e ganhavam
as vibrantes cores de telas.
Suas boas relações com o pessoal da fábrica de pincéis Ti-
gre – alguns lhe atribuíam o papel de garoto-propaganda da Tigre,
por participar das coletivas ‘Pinturas ao Vivo Tigre’ em São Paulo,

54
MARCELO RIBEIRO

Maceió e Recife – e a amizade com o representante de tintas da


Sherwin Williams, Antônio Freitas, o Toninho (irmão do amigo e
poeta Torres, ex-funcionário da Caixa Econômica Federal), indubi-
tavelmente contribuíram para Zé Fernandes arvorar-se a colorir e
proporcionar alegria à comunidade do conjunto onde morava. Um
benemérito, mui corretamente já foi dito, reconhecido pela popu-
lação. Uma curiosidade: o competente chargista Álvaro era tam-
bém garoto-propaganda da Tigre, que veio instalar uma fábrica
de pincéis no município de Socorro. Adauto Machado fazia parte
do grupo de apoio.
No segundo semestre de 2007, polêmica feia com a Funca-
ju, por ocasião da segunda edição da exposição coletiva “Imagem
e Imaginação”, organizada para comemorar o 41º aniversário da
Galeria Álvaro Santos, uma das unidades da fundação. A mostra ob-
jetivava ampliar o acervo artístico, escolhendo uma das obras apre-
sentadas – pintura ou escultura. Estabelecia o regulamento que ha-
veria participação popular – além da comissão de três jurados – na
escolha da peça. O artista escolhido foi João Valdeni. Zé teria sido
o preferido dos visitantes, com cerca de 120 votos. Para ele, vai-
doso artista de raízes populares, inadmissível não ser o campeão.
Acontece que os três membros da Comissão de Curadoria (o artista
plástico Adauto Machado, o diretor da galeria Fernando Cajueiro
e o diretor da Difusão Cultural da Funcaju Alisson Couto) não es-
colheram o quadro de Fernandes. Preterido pelo júri, achando um
desrespeito à vontade popular, fez o artista o maior escarcéu, com
repercussão na imprensa. Furibundo, denunciou ter sido destrata-
do pelo diretor da galeria e pela própria presidente da Fundação.
Recebeu apoio do artista plástico e chargista Edidelson, que ponde-
rou: “Por ter sido aclamado pelo povo, acredito que o voto deveria
ter sido dado a Fernandes. A opinião popular é julgamento contun-
dente, expressivo e que deve ser respeitado”. A argumentação da

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JOSÉ FERNANDES

presidente Lucimara (hoje, exercendo mandato de vereadora) foi


de que os critérios da mostra foram amplamente divulgados e que
os votos populares e da comissão técnica tinham pesos diferentes.
“O do povo representa dois pontos na contagem final. Já o do júri,
um ponto cada um”. Negou ter tratado mal o artista. Zé nunca se
conformou com o resultado: “Uma injustiça. O Cajueiro me disse
que mesmo que eu tivesse mil votos populares, nem assim ganha-
ria. Achei isso imoral. Um jogo de cartas marcadas. A opinião do
povo deve ser respeitada. Ééé!”.
Insurgiu-se também contra a nomeação do médico Luís San-
des para presidente da Funcaju: “Na época que eu era diretor da
Álvaro Santos eram as empresas privadas que patrocinavam qua-
se todos os eventos; agora, colocam como presidente da Funcaju o
médico Luís Sandes, para assumir um cargo totalmente contrário
a sua área e que hoje poderia ser ocupado por uma pessoa liga-
da à pintura, ao teatro ou às artes em geral”. Sandes deu resposta
elegante, delicada, contemporizadora, pedindo aos críticos apenas
uma oportunidade.
Ainda recentemente, em 2013, a Gráfica e Editora J. Andrade
homenageou-o com o kit “Traços de personalidade e cores de sergi-
panidade”. E o Shopping Jardins distribuiu, como brinde do Dia das
Mães, 12.000 latinhas colecionáveis, reproduzindo quatro de suas
obras. Sucesso absoluto. Já recebeu votos de louvor da Assembleia
Legislativa, da Câmara de Vereadores e do Conselho Estadual de
Cultura. Em outubro de 2014, outorgaram-lhe o título de Cidadão
Aracajuano. Reservamos, adiante, um capítulo específico para o re-
gistro das exposições e prêmios.
Ufano, não camufla o brilho do olhar ao informar que suas
obras fazem parte das coleções de diversas personalidades: Dilma
Rousseff, Caetano Veloso, Arlete Sales, Boris Casoy, Cauby Peixoto,
Ângela Maria, Tom Cavalcanti, Giliard, Wando e Joana. “Até da de

56
MARCELO RIBEIRO

Ray Connif e de diversos embaixadores (alguns governantes os pre-


senteavam com quadros do artista)”. Acrescenta que várias estão
em museus, a exemplo do MAM, em São Paulo, e do MAB, em Bra-
sília. No exterior espalham-se, entre outros países, na Alemanha,
no Japão e nos Estados Unidos. Cita a pintura Êxito, de 1981 e que
se encontra na Alemanha Ocidental, numa coleção particular, como
um dos seus melhores trabalhos. Outra tela que considera das mais
expressivas é Mocidade perdida, medalha de bronze do Salão Nor-
con, e que faz parte do acervo do comerciante e ex-deputado es-
tadual Walker Carvalho. “De qualquer posição que você fixar, ela
(figura de menina de 15 anos) está olhando e mostrando algo di-
ferente pra você, através da expressão do olhar. Dá uma resposta a
cada posição que você vê”.
Aqui em Aracaju, inúmeros painéis: Celi Praia Hotel, Salão
Nobre da Prefeitura de Aracaju, Centro Médico Odontológico, Clí-
nica São Marcelo, Tribunal de Contas, Sebrae, dezenas de edifícios.
O múltiplo Vieira Neto (jornalista, crítico de arte, poeta, es-
critor, ator, teatrólogo) traça com perspicácia um perfil do pintor e
seu trabalho: “Continua mantendo-se à margem do trajeto oficial
do modernismo, escapando às influências que marcaram mesmo os
nossos mais talentosos criadores. E a sua pintura continua a não se
parecer com a de ninguém. Olhando os seus quadros, vamos pen-
sando: é um mágico, um inventor, é místico, tem lirismo de menino,
é audacioso, irônico, possui sabedoria secular, sua coragem não tem
limites, caminha de pé firme pela beira do abismo da cor, joga como
quer com as leis da composição, não há ninguém mais livre do que
ele. Não há limites para a poesia plástica de José Fernandes e o seu
reino mágico da cor”.
O colecionador José Carlos Torres endossa a originalidade
das criações “que não imitam nem permitem imitações, é via de
mão única, é porta-estandarte a desfraldar seu nome aos aprecia-

57
JOSÉ FERNANDES

dores da arte”. Já Luduvice José, quem mais escreveu sobre a obra


de José Fernandes, prefere ressaltar a formatação que vincula o
artista ao ser político. Vê, nos traços rápidos e precisos, o “amal-
gamar de situações, pintando numa fúria sobejamente conhecida,
notadamente por mim, que assisti muitos dos seus quadros, hoje
figurando em acervos no Brasil e no exterior, serem pintados (...),
como se uma força estranha comandasse cada pincelada nervosa,
a escolha de matizes e o término, invadindo quadriláteros alvos
e enchendo-os de pura poesia social. Uma maratona, um êxtase”.
Mais: “Tem sido um arauto a defender o artista e as artes sergipa-
nas, condenando o mercantilismo que, infelizmente, tem grassado
entre os ‘artistas’ que se esgueiram buscando mais o mercado que
a arte, no afã imediatista de quem edifica pelo telhado e esquece a
base que sustentaria a construção”. Luiz Fernando Ribeiro Soutello,
historiador e membro do Conselho Estadual de Cultura e da Acade-
mia Sergipana de Letras, registra: “Desde a sua primeira exposição,
sua obra já denotava um recado definido, através do trato da tinta,
da cor e do traço, das cenas repletas dos ‘seres sem biografia’. Seres
que nada têm de especial, sofridos, amargurados, vividos, apanha-
dos pelas vicissitudes da vida, entes que observam ‘calados’ (e so-
nhando) o tempo implacável passar sobre eles, deixando nossas as
suas marcas”.
Relata o pintor: “Não sou de esquerda, centro ou direita. Sou
as minhas ideias, o meu trabalho. Sou a criança faminta, suja de
lama, que sobrevive em uma palafita, sou o menino desnudo que
dorme nas calçadas, sou o trabalhador desempregado, que volta
para casa sem alimento para a família. E quem quer trabalhar o faz
em qualquer lugar, em qualquer sigla. Partido algum faz o homem;
o homem é que faz o partido e a política”. Acrescenta: “O artista tem
que ser independente e não pode esperar pelo poder público. Ló-
gico que os incentivos são importantes, mas é necessário produzir,

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MARCELO RIBEIRO

como tantos fizeram e fazem, mesmo sem a ajuda do governo. Ao


longo da minha carreira, já produzi mais de cinco mil telas e não
dependi do setor público para desenvolver minha arte. É preciso
entender que não dá pra viver sem ela. A arte é o pensamento do
homem e é dessa inspiração que, verdadeiramente, dependemos”.
O consagrado Adauto Machado salienta que para se conhecer
um artista é de fundamental importância o convívio. Melhor ainda
quando o depoimento é dado por alguém que o acompanhou em lu-
tas, glórias, alegrias e decepções: “Tenho andado o bastante ao lado
do amigo, grande Zé, grande no tamanho e no coração e gigante na
arte que faz”.
Conclui Luduvice: “é um cidadão consciente, politizado,
que decanta sua arte num processo de vida almejando acordar
a cidadania sepultada com a morte da esperança”. Eurico Amado
exclama: “Talento que espichou seu corpo até dois metros de al-
tura, pode-se dizer que aprisiona em linhas tortas a expressão em
tristes castelos de seres urbanos interiormente torturados. Sua
pintura é um poema de protesto”.
Um adendo: por ocasião do recebimento do Prêmio Norcon
(escolhido por unanimidade), em 1978, sua tela arrancou dum es-
tarrecido Ivo Vellame – artista plástico, marido de Malba Cabral (fi-
lha de Mário), professor da Escola de Belas-Artes da Bahia, da qual
foi diretor – um elogio deveras gratificante: “Nunca vi nada igual!”.

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JOSÉ FERNANDES

Com Rita Peixe e Zé Peixe

Da direita para esquerda: Edgard do Acordeon, Chico Fox, José Fernandes, Reginaldo, Álvaro e Heleno

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MARCELO RIBEIRO

Doutora Miriam, esposa Cynthia e Albano Franco

Esposa Cynthia

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JOSÉ FERNANDES

Com os tios: Zezé, Zefinha e Francisquinho.

Família: a filha Alice, a esposa Cynthia, o filho André, a nora Jane e a neta Maria Luíza.

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MARCELO RIBEIRO

No Iate Club: Armandinho, Paulo Lobo e Marcelo Ribeiro

Retrato José Fernandes

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MARCELO RIBEIRO

CAPÍTULO III

O PINTOR

O pintor José Fernandes, autodidata (contudo, não renega as


influências), teimoso, agoniado (“Eu nunca paro; estou sempre bus-
cando coisas novas”), se define como um expressionista e abstrato.
Sua pintura seria “Uma evolução entre o abstrato e a abstração”.
Enfatiza ser livre e solto o seu trabalho, e que se preocupa em uti-
lizar uma linguagem brasileira. Aduz: “Eu fui um dos primeiros a
trabalhar com o expressionismo por aqui. Eu e Anselmo Rodrigues”.
O expressionismo surgiu no final do século XIX e início do
século XX. Época de grandes transformações sociais, políticas e
culturais, principalmente no velho continente europeu, varrido
por renovadora onda de efervescência no ramo da cultura. Não
ignoramos o acelerado desenvolvimento tecnológico de então. De
modo marcante e transformador, surgiram a fotografia e o cinema.
Temendo novas convulsões sociais – tipo Revolução Francesa, cuja
reivindicação por demais conhecida é Liberdade, igualdade e fra-
ternidade –, cuidaram os governantes de promover reformas labo-
rais, segurança social, ensino obrigatório. Num processo irreversí-
vel de conscientização e cobrança de direitos, a população passou a
esperar mais dos artistas, gente que sempre militou na vanguarda.
A Teoria da Relatividade de Einstein e a revolução causada pela psi-
canálise de Freud reforçariam a indagação do papel do homem (e o
artista, historicamente, na linha de frente) na sociedade. Procurou
o vienense dar racionalidade ao trabalho da pintura, mas suas con-
clusões, nesse campo, a muitos não convenceu. Notável e intrigante

65
JOSÉ FERNANDES

é sua ambiguidade em relação aos artistas. Oscila o modo de tratá-


-los: às vezes os enaltece por conseguirem – driblando a censura e
até a realidade – da massa bruta de impulsos primitivos, sexuais e
agressivos moldar produtos finos, delicados, diamantes culturais,
com os quais, indubitavelmente, se deleita. Adiante, contesta-os e
critica sua ânsia de buscarem poder, glória, sucesso financeiro e
amoroso. Ora os vê como cúmplices, antecessores, visão privile-
giada; ora não lhes dá tanta importância. Tacha-os de, a princípio,
introvertidos, próximos à neurose. Afastar-se-iam da realidade
para encontrar em suas fantasias prazeres frustrados, a renitente
questão da libido. Mas admite que o verdadeiro artista consegue
compartilhar o prazer das suas descobertas. Há quem saliente em
Freud um alheamento diante das obras de pintores modernistas
contemporâneos. E o atribuem ao seu conservadorismo. Insofismá-
vel é o fato de que tão fortes foram as suas ideias e descobertas
que passaram a catalisar criações mundo afora, e nos mais diversos
setores: literatura, pintura, escultura, cinema, teatro. Incontestável,
a marca freudiana em personalidades como Buñuel, Breton, Miró,
Picasso, Hitchcock, Dalí, Chirico, Marcel Duchamp, Giacometti, Ma-
gritte, Cartier-Bresson e muitos outros. É nele e no materialismo
histórico de Marx que finca o surrealismo as suas bases, apesar do
amor não correspondido. Via Freud com reservas a empolgação
do movimento com a sua doutrina; discordava da aplicação sur-
realista aos seus conceitos. Teria a franqueza de dizer a Dalí (cuja
pintura é eivada de sonhos, fantasias e sexualidade): “O que me in-
teressa em sua arte não é o inconsciente, mas o consciente”. Trot-
sky, exilado no México, em conversa com Breton teria igual per-
cepção: “Você invoca Freud, mas não faz ele o oposto? Freud eleva
o inconsciente ao consciente. Não estão vocês tentando encobrir
o consciente sob o subconsciente?”. Deixemos Freud entregue às
suas acachapantes teorias.

66
MARCELO RIBEIRO

Fez-se mister a procura por novas formas de expressão,


objetivando integrar a obra ao povo, tentar representar o in-
consciente coletivo. Surge um movimento na Alemanha que re-
cebe o nome de Expressionismo. Apesar de o movimento abran-
ger áreas diversas (arquitetura, artes plásticas, música, cinema,
teatro, literatura, fotografia, dança), a pintura foi a primeira a
se manifestar. Brotou como resposta ao ainda jovem Impressio-
nismo francês (Monet, Manet, Degas, Pissaro e outros notáveis).
Originado em Paris entre 1860 e 1870, o Impressionismo teria
sido, por seu lado, uma resposta dos artistas diante do surgi-
mento e popularização da fotografia, que retratava o real com
indiscutível fidelidade. Em vez de dobrar-se ao advento da novi-
dade, propuseram os artistas encontrar um novo jeito de captar
o mundo de forma subjetiva, dando ênfase à luz e ao movimento.
Já o movimento expressionista teve como parceiro de caminhada
inicial o Fauvismo (feras), cuja maior expressão é Henri Matis-
se. Em oposição à “impressão” delicada e cuidadosamente retra-
tada pelos artistas citados, veio o Expressionismo (em alemão
quer dizer retorcer) propor novo enfoque, uma visão diferente,
opondo-se ao positivismo associado aos movimentos impressio-
nista e naturalista. Propugnava uma visão individual do artista,
sua expressão. Priorizava, assim, o sentimento, não a descrição
objetiva da realidade. Isso abria, portanto, a possibilidade de se
deformar o que fosse retratado, não seguir apenas a descrição.
Tinha o artista liberdade para colocar a sua visão intimista, li-
berta, se bem que, embutida na obra, houvesse a preocupação
com o social, as desigualdades do mundo, o protesto contra as
injustiças. Permeando tudo, um olhar pessimista da vida. Pode-
se desse modo, entender porque teria surgido na Alemanha an-
gustiada e tensa do início do século passado, durante os anos
que precederam a 1ª Guerra Mundial (1914 a 1918) e também

67
JOSÉ FERNANDES

no período que se estendeu de 1918 a 1939, quando eclode a


2ª Grande Guerra. Registra a angústia existencial da conturbada
época. Para romper com o estabelecido, valeram-se os artistas
da paleta forte, deformação da realidade, largas pinceladas eiva-
das de emotividade e de simbolismo, cores berrantes e, até, irre-
ais, para retratar o que lhes vinha à alma. Sim, um novo modo de
captar e registrar a existência. Mais que um programa artístico
coletivo, um enfoque teórico, um conceito ideológico. O mexer
na angústia e melancolia funcionando como catarse. Um movi-
mento heterogêneo, acolhendo tendências diversas, abrigando
diferentes níveis intelectuais. Permitia-se agressividade da cor,
falta de tranquilidade das formas, fantasia, primitivismo e, pode-
se mesmo afirmar, o adicionamento de pitadas significativas de
exagero. Uma pintura subversiva.
Apesar de surgir o movimento vanguardista na Alemanha, o
termo (já usado bem antes em livros) é atribuído ao pintor francês,
Julien-Auguste Hervé, quando se referiu aos quadros do Salão dos
Independentes de Paris, em 1901. Da palavra francesa “expressio-
nisme”, viria a designação alemã, registrada no catálogo duma ex-
posição em Berlim, no ano de 1911, reunindo obras francesas e ale-
mãs. Em verdade, o expressionismo sempre existiu, independente
da época e dos lugares. Se entendermos a palavra como a defor-
mação da realidade para buscar uma expressão mais emocional e
subjetiva da natureza e do ser humano, podemos aplicá-la a vários
artistas. Desse modo, poderiam figurar como expressionistas obras
de Pieter Brueghel, O velho, El Greco e do espanhol Francisco Goya.
De igual modo, podemos enquadrar o italiano radicado na França,
Amedeo Modigliani (seus retratados esbanjam introspecção psico-
lógica, ar melancólico e desolado), o russo Chagall, os mexicanos
Rivera, Orozco e Siqueiros (temática social revolucionária), e os
nossos Portinari (inegável influência de Picasso, deu um salto ao

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MARCELO RIBEIRO

retratar os desvalidos, operários, cangaceiros e agricultores brasi-


leiros), Anita Malfatti (introdutora das vanguardas europeia e nor-
te-americana no Brasil), Osvaldo Goeldi (basicamente, um xilógra-
fo) e Lasar Segall (lituano naturalizado brasileiro).
O nazismo abominou o movimento, carimbando-o de “Arte
degenerada”, imoral, subversiva, comunista, destruidora de va-
lores e símbolo da decadência da arte moderna. Cerca de 15.000
obras de diversos museus foram confiscadas, atingindo não ape-
nas as alemãs. No rol da intolerância, peças de Van Gogh, Picas-
so, Edvard Munh, Braque, Chagall, Matisse, Gauguin e muitos ou-
tros. Várias obras de arte foram destruídas pela sanha doentia
de Adolf Hitler – só em 1939, 5.000 obras. Um louco demolidor
extremamente perigoso.
Paul Cézanne, Paul Guaguin e Van Gogh são considerados ta-
lentosos precursores do Expressionismo. Ora, o movimento, em es-
sência, tem raízes no simbolismo e do pós-impressionismo, além da
reconhecida sintonia, através da cor, com o fauvismo. Alguns críti-
cos dão a Cézanne, Guaguin e Van Gogh, devido à evolução das suas
obras, o rótulo genérico de pós-impressionistas. Cézanne manteria
uma preocupação especial com a “soberania da forma”. Estudava
as obras clássicas, barrocas e românticas. Nutria admiração extre-
mada por Velásquez e Caravaggio. Foi reverenciado por Picasso:
“É mesmo o pai de todos nós”. Foi o genial Cézanne quem iniciou,
com visão extremamente original, a desfragmentação da realidade,
reduzindo as formas a cilindros, cones e esferas, que redundaria
no cubismo, além de colocar a cor por camadas, trabalhando com
manchas. Guaguin, com suas pinceladas leves, planas e arbitrárias,
cores vivas, criava atmosferas de difícil classificação, situadas entre
a realidade e o onírico/mágico, e que, torna-se cristalino, refletia
mais seu mundo interior, bastante irrequieto. Amargou a incom-
preensão dos seus contemporâneos, que recriminavam suas cores

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JOSÉ FERNANDES

“exageradas e irreais”. Vincent Van Gogh trouxe para a pintura o


estado de alma –melancólico, amargurado, torturado – com uma
incrível e destemida liberdade, pinceladas sinuosas, cores violen-
tas, distorção de imagens. Uma estremeção. Indubitavelmente, uma
fantástica e perturbadora maneira de ver objetos, pessoas, sol, céu,
estrelas, trigais, girassóis. Sensível, sofrido, sincero, aplicado e es-
pontâneo muita vez procurou, nas telas, cantar a vida, proclamar
a esperança. Quando estava deprimido, porém, pintava girassóis
murchos. Rompido com o amigo Gauguin, teceu ciprestes retorci-
dos como tochas vivas. Vincent foi um dos poucos pintores aberta-
mente respeitado e admirado por Picasso. Este não o conheceu pes-
soalmente. Chegou a Paris em 1900; Van Gogh morrera em 1890.
Verdade que o cubista, quando jovem, voltara-se mais para Gauguin
e Ingres (chegava a passar horas no Louvre observando as obras
deste), mas, com o passar dos anos, viu-se curvado ao imenso ta-
lento de Van Gogh. Chegaria a dizer, ao final da vida, que o holandês
era “O maior de todos”. Segundo a viúva de Picasso, Jacqueline, ad-
mirava Cézanne, mas gostava muito mesmo era de Van Gogh. Uma
questão de identificação. Diria, até: “As pessoas não entendem que
eu sou Van Gogh.” Com absoluta justiça, o inovador Vincent é reco-
nhecido como um dos pioneiros da arte moderna. E considere-se
o fato de só ter pintado durante dez anos (dos 27 aos 37 anos de
idade, quando se suicidou). Um gênio.
O Grito, do norueguês Evard Munch, é, talvez, o maior repre-
sentante do expressionismo. Com pinceladas nervosas e cores ir-
reais, conseguiu transpor para a tela o sentimento de desespero,
desamparo, solidão, falta de comunicação do personagem retrata-
do. Uma tela universal. A maior parte da obra de Munch é triste,
sombria, deprimente.
José Fernandes tem muito do expressionismo, com sua li-
berdade de cores e de temas, a simplificação de formas e das linhas,

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MARCELO RIBEIRO

o descompromisso com os detalhes, o deformar proposital das


imagens, o compromisso social – o uso da obra como uma arma-
denúncia, auscultando o grito dos excluídos, registrando a sede de
justiça do povo humilde. Também ele usa pinceladas grossas, áspe-
ras, marteladas, dinamismo improvisado, abrupto, inesperado – ca-
racterísticas do grupo. Derrama, de igual modo, emoções intensas,
um espraiar de sentimentos. Mas, temperamento festeiro, foge do
patético, do sombrio, do trágico. Ao contrário: coloca o colorido do
seu trabalho a serviço da esperança, exalta a beleza da vida. Enche
de guizos os nossos olhos. Teima em promover alegria. Produz mo-
mentos de felicidade. Com esmerado tino e sensibilidade aguçada,
cria uma atmosfera de paz, de suavidade, convidando a todos para
um mergulho em seu mundo confortador, onde predominam pom-
bas, mulheres, flores, frutas, luz e oxigênio. Explosão de cores co-
memorando o viver. Lembremo-nos do velho Luiz Gonzaga, o per-
nambucano que conseguia cantar, com contagiante alegria, temas
por demais tristonhos.
Embora expoente entre nós, do expressionismo, não abre
mão do par de asas que o assegurem livre, um libertário dentro
do próprio movimento libertador. Ousadia, espírito de aventura.
Aqui e ali, traços abstratos, uma abstração sua. Convém não es-
quecer que deriva o abstracionismo do expressionismo.
Um profissional simples e acessível. Vaidoso e humilde.
Amigo e provocador. Loroteiro de marca maior. Inconstante,
afirma e negaceia. Manso e agoniado. Delicado e bruto. Doce
e agressivo. Um poço de contradições. Um homem e artista do
Bem. Acima de tudo, responsável por um conjunto de obras que
sensibiliza todas as camadas da população.
Ainda que tenha sido por demais trágico o seu existir (suas
pinceladas nervosas e enérgicas, o uso de cores primárias e as for-
mas contorcidas que caracterizam a dramaticidade de suas telas

71
JOSÉ FERNANDES

revelavam o seu tormento), o mestre Van Gogh, também buscou,


como Zé Fernandes, fazer da pintura um ato de fé, uma celebração,
recorrendo ao poder sublimador da arte. Dizia: “Procuro exprimir
as mais terríveis paixões humanas. Quero pintar o retrato das pes-
soas como eu as sinto e não como as vejo”. Como foi observado por
um dos seus biógrafos, “só ele sabia quão doloroso era sentir tão
intensamente o, para outros agradável, esplendor dos vermelhos,
verdes, azul do céu e o confortante e luminoso amarelo. Unicamen-
te ao final de seus dias se entristeceu sua arte, mas, ainda assim,
não permitiu que esse seu ensombrecimento do ânimo reprimisse
sua vitalidade, e dominasse a paisagem de modo que a nós chegasse
também a dominar a tristeza. Sua enlouquecida vontade redentora
do humano e dos homens decidiu que todo o sofrimento recaísse
sobre ele e ninguém mais.”
A loucura de Zé é bem mais mansa, menos densa, domestica-
da, controlada. Dispensa internamento. A insanidade de todos nós.
Mas, assim como a do imortal e angustiado Vincent Willen Van Gogh,
assombrosamente santa: espalha benefícios. Essa é a diferença.

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MARCELO RIBEIRO

Amigo Ismar Barreto

Amigos: Mosquito, Vital Farrias e Heitor

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JOSÉ FERNANDES

Bloco Pomba do Zé: Edgard do Acordeon, Fox, José Fernandes, Paulo Diamente, Paulo Lobo, Assum Preto e Henrique

No Restaurante Confraria do Cajueiro, da esquerda para a direita:


Erivaldo de Carira, Edgard do Acordeon, José Fernades e Ribeiro.

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MARCELO RIBEIRO

José Fernandes, Cynthia, Thaísa e Torres na Bica de Lagarto

Amigos: Osmário e Afonso

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JOSÉ FERNANDES

No Parque dos Cajueiros restaurando a obra de Eurico Luiz com Adauto Machado

Na minha residência com o jornalista argentino Andre Coniolis

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MARCELO RIBEIRO

CAPÍTULO IV

THE NORTHEAST
ou
OS ZÉS NOSSOS DE CADA DIA

Certa vez, viajando de carro do Recife para Aracaju, vieram-


me, de estalo, os versos: “Seminuas, descabeladas (cabelo sarará),
esturricadas, braços levantados/a gritar silenciosamente/e em vão/
sua agonia, sua sede, sua inanição/essas árvores da beira da estrada/
em tempo de seca/são mulheres e homem vergados, crianças que não
crescerão/e velhos já gravetos”. Nada excepcional. Apenas um flash.
Coisa miúda, de uma simplicidade de faca ou pedra, diria o pernam-
bucano João Cabral de Melo Neto. Noutra ocasião, similar tentativa
de rascunhar um trisco da alma da nossa gente: “Seca, fome, cercas,
sede,/estacas, arame farpado:/assim se espicha o menino,/a vida
afora cercado./Por lhe faltar horizonte,/quase nunca espreita a fren-
te,/um olho voltado pra cima,/outro pregado no chão./Aprende cedo,
amuado,/que tino é falar bem pouco/pois sina de nordestino/pobre
e de letras parcas/(um dos tantos Severinos)/é ser seco, ser calado,/
áspero, desconfiado,/adaptado às pedreiras,/um calango do sertão”.
Puro leriado. Graciliano – mestre é mestre – usou duas palavras
para escrever um compêndio, dizer tudo: Vidas Secas.
O Nordeste – “The Northeast” do título é uma pilhéria em
cima da discriminação com que nos trata a gente do sul – é uma
nação. Poderiam os poemetos acima se reportar aos irmãos ou à
paisagem ressequida de qualquer dos nossos estados – Maranhão,
Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
Sergipe, Bahia. Temos laços históricos, linguísticos; somos unidos

77
JOSÉ FERNANDES

por crenças, origens, costumes, tradições, dinamismo, perseveran-


ça, solidariedade, obstinação. Um modo parecido de existir. Despro-
vidos de rima, temos nós o mesmo carma, a mesma sina. Um co-
mum DNA. Minas Gerais tirou fino em da nossa família fazer parte.
Mas o pessoal de Minas é mais maneiro; somos mais marcados, ras-
cantes, sintéticos. Temos nosso linguajar curtido. O José do mineiro
Drummond é o nosso Zé. E o até da turma de baixo é nosso inté.
Apois, por muito tempo nem sabíamos se automóvel era homem ou
mulher... Um povo bravo, audaz, teimoso, em luta permanente con-
tra as adversidades, muita vez castigado pela inclemência dum sol
forte – que a muitos traz o receio de que Deus provenha do ama-
relo. População mística – vive aguardando o juízo final – e mítica,
que não se cansa de apreciar histórias mirabolantes de milagreiros,
cangaceiros, justiceiros (admiravelmente explorados nos filmes do
baiano Glauber). É sua utópica, quixotesca vingança, “A volta do
cipó de aroeira em cima do lombo de quem mandou dar” de que
nos fala a canção. Consome com avidez os romances rocambolescos
pendurados nos cordões das feiras, embasbaca-se com os repentis-
tas, nutre a esperança da vitória do bem sobre o mal nesta terra do
sol, na peleja de Deus contra o diabo, em guerras do fim do mundo.
Um povo humilde, arisco, espezinhado, cismado até, mas solícito,
generoso e que resiste a dobrar-se diante dos muitos percalços com
que se defronta. Faces encovadas que não deixam de abrir-se em ri-
sos, embora por vezes lhes faltem os incisivos superiores. Homens,
mulheres, velhos e crianças calejados por tiros, tocaias, gemidos,
milagres, políticos embusteiros, messias de araque, promessas vãs,
miséria, fome e sede. Cidadãos que andam atabalhoadamente, mui-
tas vezes sem rumo definido, assentados em alpercatas de couro
com solado de pneu velho. Muitos, descalços, dormindo ao relento.
Outros – com gibão, perneira e sapatos de couro – vivem trepados
em cavalos, desviando-se de galhos retorcidos, correndo atrás de

78
MARCELO RIBEIRO

reses e de ilusões perdidas.


Crédulos que se esmeram em pendurar desbotados retratos
de família junto ao Coração de Jesus e da Sagrada Família. E que
não se cansam de olhar para cima quando lhes ronca a barriga. De
por nada se benzer. De esmurrar ponta de faca (ou de punhal). Um
povo esperançoso, acobreado, que faz promessas a São José “Para
a água vim” e engrossa as procissões, “Que se arrastam como co-
bras pelo chão”. Gente boa, carente e ingênua, temente, ludibriá-
vel, fácil massa de manobra para os governantes de plantão – de
esquerda, direita ou centro. Um povo que não merece a vida de
gado, severina, que leva.
Uma população de alma festeira. Basta uma cantoria, um ron-
car de fole, um tilintar qualquer e surge uma incontrolável alegria
nas pernas. O baião e o xote comem, então, no centro. Mas logo vêm
os tais momentos da vida. Hora de curvar-se ao lamento dos aboios
ou persignar-se diante das “incelenças”.
Não importam as peculiaridades de cada vila, as dobras de
cada estrada, a poeira, as matas, os riachos, os açudes, a falta de
água e de graça, os engenhos de açúcar de Zé Lins, a miscigenação
de Gilberto Freyre, o floreio de Alencar, a literatura refinada de Mon-
tello, a secura de Graciliano, a resposta bem-humorada de Ivanildo
Vilanova (por um Nordeste independente), o frevo de Capiba, o xote
das meninas, a poesia de Patativa, Bandeira e Oliveira das Panelas, a
picardia de Jorge Amado, a perspicácia dum Ariano, o clamor dum
Castro Alves, o saber (em alemão) dum Tobias Barreto, a saga de
Lampião, a teimosia do Zé do Burro de Dias Gomes, o ABC de Cuí-
ca do Santo Amaro, os bonecos de Vitalino, ufa! A labuta de cada
um: somos um só povo seguindo em frente, indo todos, e danados,
para Catende. O bonachão Ascenso Ferreira nos conduz. Levamos,
no matulão, rapadura, carne de bode, farinha seca, beiju de tapioca,
mandioca, milho, fruta-pão, sarolho, pé-de-moleque, malcasado e

79
JOSÉ FERNANDES

outras guloseimas. Quando a chuva vier, e o sertão virar um rio –


mar é querer demais, um desaugero, – teremos carne-de-sol com
pirão de leite, panelada, paçoca com banana, buchada de carneiro,
sarapatel, fritada de aratu, peixe na brasa, feijoada, cocada, queijo
de coalho, mariola, quebra-queixo, doce de batata e de abóbora, je-
nipapada e cajuína, num banquete de lamber beiços. Fartura a mi-
gué. As criações engordando no pasto verde (ingual aos olhos de
Rosinha), os engenhos moendo, as cachoeiras gemendo, água muita
molhando a terra, a palma e a goela. Pra completar, umas bicadas
da moça branca, que não somos de ferro. Não precisaremos mais
escolher entre “Subir pra São Pedro ou descer pra São Paulo”.
Contra o quebranto e o despeito de alguns sulistas de caras
amarradas, sal grosso, muitas novenas e algumas carrancas do nos-
so Velho Chico. Se preciso for, velas, farinha, sal e galinha preta dos
nossos terreiros. Estamos em dia com o Senhor do Bonfim, com
Irmã Dulce e até com Iansã, a Santa Bárbara dos padres. Somos uma
terra de “Brancos mulatos e de preto doutor”. Libertamos os escra-
vos antes que o Império o fizesse. O santo Bom Jesus Conselheiro
nos alumia. Em noites de lua, temos as canções brejeiras de Dorival;
o mar, bem bonito, quebrando na praia e a Marina morena tropi-
cana, cheiro de cravo e canela, querendo agradar, carente de um
cafuné, doida por um fungado no cangote. Sibite, a danada sempre
procura uma vadiação, adentra livros do baiano Jorge para “dar de
comer a rola” de macho que não dê chabu.
Somos, sim sinhô, duma região singular, bela e rude, de rico
folclore e padrões culturais e ecológicos só nossos. O jumento é
nosso irmão e, enquanto engomamos a calça, aguardamos a volta
da asa-branca que arribou durante a última brabeza da seca. Te-
mos, no prosear do paraibano Chico César, a capacidade de entor-
tar o corpo para que a lata fique reta, pois “A força nunca seca pra
água que é tão pouca”. O que dói, denunciou o irmão alagoano Zé

80
MARCELO RIBEIRO

Cândido, é a ronda dos carcarás de olho nos borregos, e a intermi-


tente necessidade nossa de caçar e comer camaleões e teiús, caatin-
ga adentro. Mas mantemos a fé no padim Ciço e, logo mais à noite,
naquele pé da serra, botaremos a roupa domingueira e picaremos a
mula pro arrasta-pé, um assustado de arromba, chumbrego de pri-
meira, com sanfona, triângulo e zabumba, um dançar agarradinho,
um chamego – pena que algumas quengas exagerem na lavanda e
fiquem cheirosas de enjoar – sem sair do lugar, peneirando e pe-
neirando, que também somos filhos Dele. Antes mesmo da sanfo-
na, que dizem ser das Oropa, já castigávamos a rabeca; o som é por
demais parecido. Somos o povo forte de Euclides, não o lasso de
Lobato. Gente que planta, sonha e dança. A nossa mãe, paraibana e
muié macho, “É mãe solteira e trabalhou como empacotadeira nas
Casas Bahia”. Nem tudo – oxênte, vige, vôte – é mandacaru, aroeira,
pindoba e xique-xique. Ou Raso da Catarina. Há velas no Mucuripe,
na Barra de São Miguel, no Rio Vermelho. Lençóis de dunas, pedras
furadas, coqueiros, brisa e fala nordestinas. E faróis, lá nos Reis
Magos de Natal. Iemanjá aceita de bom grado nossas oferendas, na
Lagoa do Abaeté, enquanto chega o tal “Dia branco” que Geraldo
Azevedo anuncia. E Rosinha, e Rosinha, e Rosinha? A disgramada
se amancebou com um pé-rapado e ficou nas bandas de Propriá. A
saudade dói qui nem jiló. Pru mode disso, garro o cigarro de páia, que
meus óios vive a se moiá. Enquanto trevesso essa frase, embico umas
ceuvejas, qui a dô é de lascá.
Puxemos a rédea, retomemos o prumo, embiquemos pro Ser-
gipe: Luiz Antonio Barreto, Mário Cabral & José Calasans. Nomes
sempre a lembrar, ícones da nossa cultura. Calasans e Mário foram
morar em Salvador, mas nunca se desergipanizaram. Luiz Antonio
(o dele e o de Maia não tinham acento), sempre entre nós, afirma-
va: “Desde sempre, em minha vida, aprendi o amor à minha terra.
Quem não ama a sua própria terra, não é capaz de amar terra al-

81
JOSÉ FERNANDES

guma e em tempo algum”. Dedicaram os três suas vidas ao estudo


e à divulgação da nossa cultura. Sempre que nos propusermos a
escrever sobre algo sobre nossa gente e seus costumes, iremos en-
contrá-los no meio do caminho.
Calasans, mais voltado para a História (revolucionou o estu-
do sobre os primórdios do Aracaju) e para o folclore sergipano – a
partir deste, o despertar para o estudo de Canudos, tornando-se re-
ferência mundial. Basta lembrar que o Prêmio Nobel Mário Vargas
Lhosa veio à sua procura para colher dados para o livro A Guerra
do Fim do Mundo. Disse o peruano tê-lo como o mais profundo co-
nhecedor da história do Conselheiro. A obra de Calasans, observa
Mário Cabral, “Vária e múltipla, máxime a do historiador, interessa,
cada vez mais, aos críticos, estudantes, professores e universidades,
como um valioso e sempre vivo instrumento de consulta e análise,
claro e lúcido”. Há quem divida a história de Canudos em antes e
depois de Calasans.
Cabral, mais versátil, fez de tudo: romancista, poeta, filó-
sofo, historiador, crítico literário (sua atividade maior, segundo
Luiz Antonio), ensaísta, jornalista. Mário Cabral foi o maior cro-
nista de Aracaju, um dos nossos maiores intelectuais. Seu primo-
roso Roteiro de Aracaju continua insuperável.
Luiz Antonio Barreto era, igualmente, homem de mil instru-
mentos. Basicamente, um jornalista e incansável pesquisador. Casou-
se com a cultura, um artífice das Letras. Seu nome tornou-se sinônimo
de história, pesquisa, conhecimentos. Trabalhos seus extrapolaram os
limites da província e se fizeram conhecidos no Brasil e no exterior
(Itália e Portugal, principalmente). Pena brilhante, português escor-
reito, escrevia com facilidade sobre tudo e todos: de Lampião a San-
to Souza, de Cândido Aragonez de Faria ao Hotel Marozzi, de Antônio
Conselheiro a Pinduca, de João Ribeiro ao Carrossel de Seu Tobias, de
Abelardo Romero a Luiz Ouro – o Lourão, nossa voz de Ouro ABC.

82
MARCELO RIBEIRO

Foquemos a pintura local: em 1946 foi realizado, em nossa


capital, o I Salão Sergipano de Pintura. Mário foi o crítico oficial
e seu trabalho foi publicado no jornal Correio de Aracaju. Relata,
no Espelho do Tempo: “Dos vários pintores, Florival Santos era o
mais experiente e brilhante”. Havia telas de Jenner Augusto, Wal-
ter Costa, Avani Torres, Núbia Marques, Iêda Matos, Letícia Costa,
Odete Pina e Constância Prata. Jenner era ainda um principiante.
Artisticamente, sobreviveriam ele e Florival. Dizia, na ocasião, a
pena de Mário: “A arte pela arte é um fenômeno do marginalismo
destinado a desaparecer. O pintor, como o poeta, deve ser compre-
endido pelo povo, isto é, deve possuir um sentido socializante e co-
letivista. Quem pinta, escreve, esculpe ou compõe sem que o seu
trabalho constitua, pela sua clareza e pela sua objetividade, uma
mensagem às grandes massas humanas, nestes dias tumultuosos
do após-guerra, realiza obra de reacionarismo porque coloca a arte
fora do gosto e da compreensão populares. Isso não implica, abso-
lutamente, o abastardamento da arte nem seu declínio. O problema
fica resolvido com a sua exteriorização. A pintura contemporânea,
a pintura realizada depois do esmagamento do nipo-nazi-fascismo
não pode nem deve ser a pintura super-realista, ignorando os ob-
jetivos e os princípios plástico-pictóricos para se entregar às ma-
nifestações do inconsciente com todo o seu cortejo de sonhos, su-
gestões, obscuridades e simbolismos. Se a pintura sergipana não
tomou, ainda, os rumos atuais do assunto social, como o muralismo
da Rússia, do México e da Espanha, enveredou, porém, pelo roteiro
da humanidade artística. Nossa pintura é moderna, obedecendo,
porém, aos eternos cânones da construção geométrica, do desenho
naturalista e do legítimo decorativismo”. Profetizava Mário que Jen-
ner Augusto, por se tratar de uma nítida vocação de pintor, brilharia
na pintura contemporânea.
Acertou na mosca. O sergipano foi para Salvador, recebeu

83
JOSÉ FERNANDES

ajuda inicial de Carybé, adentrou a roda de amigos de Jorge Ama-


do, pesquisou e trabalhou bastante, amadureceu, tornou-se nome
exponencial da pintura brasileira. Deixou o impressionismo da fase
inicial, mergulhou nos temas sociais – alagados, favelas, palafitas,
casebres, céu e mar, e fez uso de cores fortes e vibrantes. Sofreu o
impacto da pintura de Portinari. O empastamento mais vigoroso
das tintas serviu como luva para dar mais sentido dramático às
telas. Tomou o caminho do expressionismo. Inegável, a influência
exercida sobre o conterrâneo Fernandes. Jordão de Oliveira, araca-
juano de 1900 e falecido no Rio de Janeiro (onde recebeu prêmios
e chegou a Professor Catedrático da Escola Nacional de Belas-Ar-
tes) em 1980, era outra grande admiração de Mário. “Há telas em
que a leveza da tinta parece fugir ao toque do pincel, quase uma
pátina de tempo e luz, nuvem esgarçada no surgir da manhã. Uma
das glórias mais autênticas da pintura brasileira”. Relatou Jorge
Amado que, conversando com Candido Portinari, dele ouviu em
relação ao colega Jordão: “Esse conhece o ofício como ninguém e
possui uma sensibilidade de poeta”. Lembra Jorge: “Portinari não
tinha o elogio fácil”.
Luiz traçou, para o livro Brasil/Arte do Nordeste, um pa-
norama da nossa pintura. Após rememorar que Sergipe passou
longo tempo subordinado política e culturalmente à Bahia (nossa
emancipação política é de 8 de julho de 1820), considera que o
contato cultural persistiu ao longo do tempo. Há motivos: as duas
primeiras escolas de ensino superior de Sergipe – Faculdade de
Economia e Escola de Química – só viriam a ser criadas em 1948,
no primeiro governo de José Rollemberg Leite. Até o meado do
século passado, em termos de estudos superiores, havia para os
sergipanos duas saídas: estudar Medicina (na Bahia) ou Direito
(em Salvador ou na famosa “Escola do Recife”, dos conterrâneos
Tobias Barreto, Sylvio Romero, Fausto Cardoso e Gumersindo Bes-

84
MARCELO RIBEIRO

sa). No caso da vizinha Bahia, mais procurada, nossos jovens por


lá escreviam e publicavam. Assinala o escritor e político baiano
Luiz Viana Filho que a arte acompanha o poder político e o poder
econômico, “A bem dizer, inseparáveis”.
Evidentemente que a presença dos jesuítas entre nós, no iní-
cio da colonização brasileira, proporcionou a realização de diversas
obras religiosas nos tetos, altares e paredes dos diversos templos
de São Cristóvão, Maruim, Divina Pastora. Dessa fase inicial, holo-
fotes para José Joaquim da Rocha e Teófilo de Jesus, que também
decoraram diversos templos baianos. É de José Joaquim (não se
sabe onde nasceu) os fabulosos painéis das cúpulas da matriz da
Conceição da Praia, e da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Ro-
sário. A matriz do Pilar e a igreja dos Aflitos – ainda em Salvador – e
a matriz da cidade de Cachoeira também ostentam trabalhos seus.
Teófilo, um discípulo seu, deixaria obras no mosteiro da Graça, no
Colégio dos Órfãos de São Joaquim, ou na Ordem Terceira de São
Domingos. Para muitos, o discípulo teria superado o mestre.
A Horácio Pereira da Hora atribui Luiz Antonio Barreto o pio-
neirismo da arte genuinamente sergipana, nosso primeiro nome
da arte local. Menino pobre de Laranjeiras e não afeito aos estu-
dos tradicionais, desde cedo mostrara talento para o desenho, a
carvão e a lápis, rabiscando paredes, calçadas, papéis, o que pela
frente encontrasse. Teve estudos, custeados pelo Estado, em Paris.
Para Luiz, Horácio expressou “O sentimento nacional, romântico,
telúrico”, e, mesmo morando na França (onde faleceu aos 37 anos
de idade), não esqueceu sua terra e sua gente, permanentes mo-
tivos e personagens. Tão ligado às origens, suas últimas palavras
foram voltadas para a pátria distante: “Loin de mon pays”. Pode-
se afirmar que fez uma escola de artistas, que ainda hoje guardam
compromissos com a sergipanidade, oculta ou às claras. São dele as
telas que retratam expressivas figuras da aristocracia da época (os

85
JOSÉ FERNANDES

retratos a crayon do comerciante e político português radicado em


Laranjeiras Agostinho José Ribeiro Guimarães e de sua filha Maria
Nazareth fazem parte do acervo do Museu-Palácio). Reportou-se a
sua obra à figura do índio (Cecy e Pery), à fé e à devoção. Somente
depois dele teria Sergipe uma arte definida, na sequência do tempo
e da estética, renovando as linguagens. Oséas (chegou a fazer cópia
de “Cecy e Pery”) e Jordão de Oliveira (autor do mural da entrada
do Museu-Palácio de Sergipe) descendem, artisticamente, de Hora.
Discordo eu da visão de alguns, ao proclamarem que não mostra
Horácio, apesar de ter estudado em Paris, “Qualquer voo indepen-
dente, além de um copista de artistas consagrados”. Certamente os
que o criticam se referem à obra A Virgem, assumidamente uma
cópia (em iguais dimensões da obra original) de Murillo, uma das
grandes admirações do laranjeirense ao chegar a Paris. Era comum
pintores iniciantes postarem-se, no Museu do Louvre, em frente
às obras de pintores consagrados. Contemplando-as, estudavam e
passavam a copiá-las, como um exercício. Até o inovador Picasso
frequentava o museu para estudar. Mais recentemente, tivemos o
rebelde Iberê Camargo seguindo a recomendação de seu professor
francês e prestando-se a copiar clássicos em museus parisienses.
Sorveu Horácio a satisfação de obter reconhecimento do intelectual
João Ribeiro, em artigo publicado em jornal do Rio de Janeiro, em
1881. E mereceu crítica positiva do polêmico Gumersindo Bessa,
em Cecy e Pery:, “Horácio fez ato de adiantada cultura, revoltando-
se contra o ensino tradicional, contra o absolutismo na arte, contra
o regime autoritário da Academia, para acolher e cultivar a arte ver-
dadeira, a arte sem pedantismo, a arte essencialmente expressiva”.
Admitamos que, tanto a Horácio como a Jordão, faltou a ou-
sadia do salto da modernidade, iniciativa fundamental para a con-
sagração dum Portinari, como exemplo. É de Di Cavalcanti a frase:
“A nossa arte tem de ser como a nossa comida, o nosso ar, o nos-

86
MARCELO RIBEIRO

so mar. Tem de ser reveladora da nossa cultura...”. Candido soube


levar o dito ao pé da letra, principalmente quando se voltou para
a temática social, retratando a saga da migração nordestina. Mas
rechacemos com firmeza a tentativa de minimizarem o valor dos
dois grandes pintores sergipanos. Afinal de contas, não desconhe-
cemos que, descoberto o Brasil em 1500, fomos mal colonizados
pelos portugueses, e muito tempo nos foi subtraído. Era-nos proi-
bido a imprensa antes da vinda da comitiva real; por séculos tive-
mos literatura (europeia) no Brasil, não do Brasil. De igual modo,
foi bastante lenta a brasilidade da nossa pintura. Pouco ou quase
nada a pintura brasileira absorveu do silvícola e do negro, embora
reconheçamos sua contribuição para sedimentar as bases funda-
mentais das raízes culturais.
Com a chegada da Missão Artística Francesa, em 26 de março
de 1816, patrocinada por D. João VI, é que se inicia o ensino das
belas-artes no Brasil. Trouxeram os artistas importados o estilo ne-
oclássico, vigente na Europa de então, caracterizado por uma volta
às formas artísticas da antiguidade clássica, grega e romana. Justo
reconhecer, após a Independência, o incentivo quase paternalista
de D. Pedro II às artes, à ciência e às letras. A descoberta da naciona-
lidade só viria mais adiante, e aos poucos. Houve certa dificuldade,
mesmo aos pintores que estagiavam em Paris, para acompanhar a
revolução provocada pela pintura vanguardista de Cézanne, Sisley,
Pissaro e Degas. O italiano Eliseu Visconti, aqui estabelecido, foi dos
poucos a absorver os princípios do impressionismo.
No pré-modernismo (produção dos primeiros 20 anos do
século XX) encontramos, além duma miscelânea literária, com
várias tendências e estilos, uns poucos ousarem buscar o novo –
caso, na pintura, da expressionista Anita Malfatti. No livro sobre a
Tropicália (Lá do lado de cá), abordamos o tema. À Malfatti (em
1914, após regressar da Europa entusiasmada com o trabalho dos

87
JOSÉ FERNANDES

pós-impressionistas) e ao lituano Lasar Segall (em 1913) devemos,


com exposições que passaram despercebidas, as primeiras mani-
festações de arte moderna no Brasil. Após nova viagem – agora aos
Estados Unidos –, em dezembro de 1917 Malfatti, incentivada por
Di Cavalcanti, expôs quadros que provocaram exacerbadas reações,
inclusive artigo demolidor do intelectual Monteiro Lobato: “Misti-
ficação e paranoia”. Condenava o que chamou de “arte caricatural”.
Suas fases posteriores revelam uma pintora menos ousada, talvez
reflexo da virulência do escritor. Mostrou prestígio Lobato: de 53
telas vendidas, 10 foram devolvidas. A Semana de Arte Moderna,
marco divisório na história das artes brasileiras, ocorre no Teatro
Municipal de São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. A
intenção do movimento era dupla: colocar a cultura brasileira a par
das correntes de vanguarda do pensamento europeu, ao tempo em
que se pregava a tomada de consciência nacional. Em novembro de
1921, houvera no Rio uma exposição de caricaturas numa livraria,
promovida pelo pintor Di Cavalcanti; verdadeiramente, uma reu-
nião de amigos. Pouco depois, na casa de Paulo Prado, um cafeicul-
tor milionário, na capital paulista, chegaram ao nome de Semana
de Arte Moderna. Pensou-se, então, em algo simples, tipo um sarau,
mas a ideia evoluiu. A Semana reuniu pintores, poetas, músicos,
escultores, intelectuais. Oswald de Andrade, figura mais agitada e
marcante, exaltava a necessidade de se “digerir” a cultura impor-
tada, a fim de criar uma arte brasileira autêntica, sem decalques.
Essa inspiração de antropofagia ter-lhe-ia ocorrido ao receber, em
1928, um quadro – presente da esposa Tarsila – estranho; ao pes-
quisar num dicionário de tupi-guarani um nome para a obra, agra-
dou-se do nome Abaporu, o homem que come (a tela, adquirida por
milionário argentino, pertence ao museu Malba, de Buenos Aires).
Assim nasceram o Manifesto e o Movimento Antropofágico. Surpre-
endente observar que Oswald, homem de grandes posses, criticava

88
MARCELO RIBEIRO

acidamente a burguesia paulista. Tarsila, uma das suas mulheres,


era uma pintora acadêmica muito rica (possuía 23 fazendas) e não
participou da Semana, mas se tornou uma referência do movimen-
to, após conhecer o grupo. Funcionaria como uma semeadora de
ideias, enquanto a Oswald caberia o trabalho de pregação. Outro
fato interessante é o recusar do pernambucano, Vicente Rego Mon-
teiro o convite de Oswald de Andrade para integrar o movimento.
Radicado desde o ano anterior em Paris, julgava haver antecipado
a Antropofagia, embora sem teorizar sobre o assunto e com princí-
pios diversos. A exposição de dez obras suas durante a Semana de
22 foi iniciativa do escritor e diplomata Ronald de Carvalho.
Para encerrar o capítulo, embora fatalmente ocorram im-
perdoáveis omissões, não deixemos de registrar nomes de alguns
dos nossos numerosos expoentes contemporâneos, uma pequena
amostra da pujança da pintura entre nós. Iniciemos com o incrí-
vel tropicalista (antes da Tropicália) J. Inácio, inovador, provocador,
precursor da ecologia, um espírito – assim como Zé Fernandes –,
libertário, desprezando escolas e dogmas. Florival e Álvaro Santos,
irmãos propriaenses, nomes por demais respeitados. Jenner Au-
gusto, Antonio Maia, José de Dome, Gilvan Rocha (médico, político,
pintor, desenhista, chargista), Adauto Machado – que estudou na
França e Canadá –, Leonardo Alencar (que morou em Salvador e
expôs em galerias de Paris e Londres). Otaviano Canuto e Oziel Dó-
ria; Gervásio (mora no Rio, andou por Paris), Joubert Moraes, Luiz
Mangueira, Márcia Guimarães, Caã – o talentoso filho de Inácio, que
sofreu forte influência paterna (como ficar imune?), mas libertou-
se e criou um estilo admirável, firmando-se como um dos melhores
da terra. A sensualidade das suas mocinhas interioranas é toque de
mestre. Melcíades, Balthazar (parente de Horácio), Daniel, Núbia
Marques, Celso Oliva, Rita Nunes, Anete Sobral (a pintora das pra-
ças, jardins, procissões), Félix Mendes (nome da Galeria da UNIT);

89
JOSÉ FERNANDES

Bosco Rollemberg (excelentes trabalhos em couro), Wellington,


Washington, Dionéia (nascida em Salvador, há muito entre nós),
Fernando Cajueiro, Hortência Barreto, Jacira Moura, Jorge Luiz,
José Lima, Pythiu, Elias, Bené, Cláudio, Edidelson, Poconé, Anselmo
Rodrigues, Ismael Pereira (um alagoano sergipanizado), Joel Dan-
tas, Tintiliano, Elias, François Hoald, Adriana Hagenbeck, Deolando,
Eurico Luiz (paulista de nascimento, sergipano por adoção), Fábio
Sampaio, Pedro da Silva, Samuel Batista, Denise, Vitor Fabiano e
muitos – uma ruma – outros. Infelizmente, alguns já não se encon-
tram entre nós.
Quase todos sergipanos da gema, nordestinos com muito
orgulho, Zés nossos de cada dia. Acuma eu, você e o Fernandes.

90
MARCELO RIBEIRO

EXPOSIÇÕES & PRÊMIOS

1976
- Participa de exposição coletiva de artistas sergipanos, na
Galeria de Arte Álvaro Santos, em Aracaju-SE.

1977
- Participa de exposição coletiva na Aliança Francesa, em
Aracaju-SE.

1978
- Participa da exposição coletiva Amostragem Sergipe, em
Salvador-BA.
- É premiado com a medalha de prata, pela exposição no Sa-
lão Atalaia, em Aracaju-SE.
- Recebe o Prêmio Norcon, pela participação no Salão Nacio-
nal de Artes Plásticas do VII Festival de Arte de São Cristóvão-SE.
- Participa da equipe de restauração do Museu de Arte Sacra
de São Cristóvão-SE.

1979
- Participa da exposição coletiva na Galeria Funarte, Rio de
Janeiro-RJ.
- Faz sua primeira exposição individual, na Galeria Álvaro
Santos, em Aracaju-SE.

1980
- Participa da exposição coletiva Artistas da América do Sul,

91
JOSÉ FERNANDES

na Galeria Opus, em Brasília-DF.


- É premiado com a medalha de bronze, pela participação no
Salão Atalaia, em Aracaju-SE.

1981
- Participa do 70º Salão da Fundação Cultural do Distrito
Federal, e é agraciado com o XX-Prêmio de Aquisição, na categoria
pintura a óleo.
- Funda o Art Belle, em Brasília-DF.
- Participa do XX-Salão de Artes Plásticas da Aeronáutica, no
Centro de Convenções de Brasília-DF.

1982
- Participa do curso de atualização para professores de Edu-
cação Artística, em Aracaju-SE.
- Faz exposição, com Anselmo Rodrigues e Wellington, na Ga-
leria Álvaro Santos, em Aracaju-SE.
- Idealizou, juntamente com Anselmo Rodrigues, Cunioli e
Marinho Neto, o Movimento das Artes, que alavancou o mercado de
arte de Sergipe, em Aracaju-SE.
- Participa de exposição coletiva no Banco Itaú, em
Aracaju-SE.
- Participa de exposição coletiva de Natal, na Celi Imobiliária,
em Aracaju-SE.

1983
- Faz exposição individual na Galeria Álvaro Santos, em
Aracaju-SE.
- Participa da exposição coletiva Salão da Mulher, na Galeria
J. Inácio, em Aracaju-SE.
- É selecionado para representar Sergipe no Circuito Nordes-

92
MARCELO RIBEIRO

te de Artes Plásticas.

1984
- Participa de exposição coletiva na Primeira Semana de Arte
Contemporânea de Lagarto-SE.
- Faz exposição individual na Ludus Artes Galeria, em
Aracaju-SE.
- Participa da exposição coletiva Salão de Marinhas, também
na Ludus, em Aracaju-SE.
- Participa de exposição coletiva durante a realização do Con-
gresso da O.I.C.I., no Campus Universitário, Sergipe.

1985
- Faz exposição individual na inauguração da Galeria Portina-
ri, em Aracaju-SE.
- Participa de exposição coletiva na inauguração do Museu
de Brasília-DF.

1986
- Participa da exposição coletiva Retrospectiva Memória, no
Centro de Criatividade, em Aracaju-SE.

1987
- Lança álbum de xilogravuras.
-Participa de exposição coletiva no Centro de Convenções de
Salvador-BA.

1988
- Faz exposição individual na Galeria Álvaro Santos, em
Aracaju-SE.
- Participa da exposição coletiva na Galeria Portinari, em

93
JOSÉ FERNANDES

Aracaju-SE .
- É homenageado pela Rede de Televisão Aperipê, de Aracaju-SE,
com o documentário ‘Memória José Fernandes’.

1989
- Participa de exposição coletiva José de Dome, em Aracaju-SE.

1990
- Participa de exposição coletiva, promovida pela Galeria José
de Dome, no Hotel Parque dos Coqueiros, em Aracaju-SE.
- Participa de exposição coletiva na inauguração da Galeria
Oficina D’Arte, em Aracaju-SE.
- Participa de exposição coletiva na Dodge House Gallery, em
Rhode Island, Estados Unidos da América.

1991
- Vence o concurso de cartazes das Universidades Brasileiras
- Participa de exposição coletiva na Galeria Tina Zapolli, em Por-
to Alegre-RS, com outros 22 artistas do Brasil, Argentina e Uruguai.
Sobre o evento, o Jornal Zero Hora (Porto Alegre) ressaltou: “A bra-
silidade, o lado onírico na pintura, aparece no trabalho do sergipa-
no José Fernandes”.
- Funda a Associação dos Artistas de Sergipe (Artes Plásticas).
- É eleito Tesoureiro e depois Presidente da Associação dos
Artistas de Sergipe.

1993
- Participa da exposição coletiva Artistas de Sergipe e Ceará,
na Galeria Sebrae, em Brasília-DF.
- Participa da exposição coletiva Artistas Brasileiros, no Mu-
seu de Arte Brasileira, em São Paulo-SP.

94
MARCELO RIBEIRO

- É premiado no Salão Bradesco, em Aracaju-SE.


- Faz exposição individual na Caixa Econômica Federal, em
Aracaju-SE.
- Faz exposição individual na Galeria Álvaro Santos,em
Aracaju-SE.

1994
- Faz exposição individual no Engenho e Arte, em Aracaju-SE.
- Participa de exposição coletiva na Galeria Tina Zapolli, em
Porto Alegre-RS.

1995
- Participa da Comissão de Seleção de Artes Plásticas, no X-
Festival de Arte de São Cristóvão/SE.
- Participa de exposição coletiva na Galrina Tina Zapolli, em
Porto Alegre-RS.
- É nomeado diretor da Galeria de Arte Álvaro Santos (feve-
reiro de 1995 a setembro de 1996).

1997
- Participa da Escolar/97, promovida por Pincéis Tigre, em
São Paulo-SP.
- Idealiza, coordena e participa da exposição Cem Artistas no
Pelourinho, em Salvador-BA.

1999
- Faz exposição individual no espaço Cultural Yázigi, em
Aracaju-SE.

2000
- Idealiza e participa da coordenação do I-Encontro Cultural

95
JOSÉ FERNANDES

e Esportivo do Conjunto Inácio Barbosa, bairro Inácio Barbosa, em


Aracaju-SE.
- Participa do catálogo ‘Rumos, Artes Plásticas Sergipe 2000’,
patrocinado pelo Banco do Estado de Sergipe.

2003
- Idealiza o projeto Aracaju de Tó-tó-tó.

2010
- Faz exposição individual no espaço Galeria de Arte Álvaro
Santos, em Aracaju-SE para comemorar os 35 anos de carreira.

2011
- Participa do projeto Caju na Rua com o patrocínio da
Prefeitura de Aracaju.

2012
- Faz exposição individual na Galeria Zé de Dome,
Aracaju-SE

2013
- Foi tema do kit ‘Traços de personalidade e cores de sergipa-
nidade’ da Gráfica e Editora J Andrade, que o homenageou com um
projeto gráfico que incluiu calendário, sketch book, blocos e caixa.
O material, com tiragem de pouco mais de 2.000 unidades, foi con-
siderado item raro e disputado pelos admiradores de sua obra.

- Como brinde da promoção do Dia das Mães do Shopping


Jardins (Aracaju-SE), teve 4 de suas obras reproduzidas em
12.000 latinhas colecionáveis, que esgotaram antes mesmo do
fim da promoção.

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MARCELO RIBEIRO

2014
- Idealiza o projeto Homem do Rio.
- O painel Sergipanidade, medindo 1mx2m, é incorporado ao
acervo da Embaixada do Brasil na Argentina.

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MARCELO RIBEIRO

DEPOIMENTOS

CAPÍTULO V

ANEXOS

VELHAS AMIZADES

“Apesar de sermos conterrâneos, conheci o artista plástico


JOSÉ FERNANDES no final da década dos anos 80, em Aracaju. Na-
quela época, os movimentos artísticos e culturais em Sergipe esta-
vam em plena efervescência. E o ZÉ FERNANDES (como carinhosa-
mente é chamado pelos amigos) sempre participou intensamente
desses movimentos.
Aliás, falando em participação, esta é uma característica pró-
pria do ZÉ FERNANDES. Enxerga eventos, artísticos ou não. Lá está
ele. Bingos, festas beneficentes ou qualquer outro que tenha como
objetivo ajudar alguém.
Posso afirmar que, além da sensibilidade artística, ao criar
e pintar suas telas com temas regionais, o ZÉ FERNANDES possui
grandes virtudes que me fizeram admirá-lo ainda mais e querer
bem. E duas delas me chamam a atenção, e posso citá-las.
O ZÉ FERNANDES tem uma grande capacidade de aglutinar,
reunir, liderar uma mesa, enfim, chamar a atenção dos outros para
um ponto de convergência, pelo menos pra beber, falar de arte, ar-
tistas e temas mais variados ou simplesmente jogar conversa fora;
até mesmo em velório. Foi assim, quando criou e movimentou a
‘Confraria do Cajueiro’, no bar do Cajueiro, Inácio Barbosa.
Lembro-me muito bem que, no afã de encontrar os amigos
às sextas-feiras, na Confraria do Cajueiro, começava a me telefonar
às 11 horas da manhã, me convencendo a ir ao bar. Nesse afã, chega

99
JOSÉ FERNANDES

DEPOIMENTOS

até a exagerar nas suas afirmações, e a mentir para tentar conven-


cer. E convence!
Depois, quando saturado, eis que me aparece o ZÉ FERNAN-
DES já em outro local, outro ponto de encontro: o bar da mangueira,
também no Inácio Barbosa. Aliás, ele é craque em promover pontos
comerciais, através de encontros de amigos, artistas e jornalistas.
É um verdadeiro agitador cultural e de pontos etílicos. Ele se
destaca não só como agitador, mas também como se diz lá na nossa
terra – Lagarto –, como um grande ‘loroteiro’. Um loroteiro do bem,
pois, suas lorotas não fazem mal a ninguém.
Contudo, o que me emociona nesta convivência salutar são
a grande sensibilidade e a demonstração de companheirismo que
o ZÉ FERNANDES tem para com seus amigos. Sente as dificuldades
e as dores dos amigos e, não tenho dúvidas, é capaz de despir-se
para acalentar alguém que sinta frio ou dividir um pão para saciar
a fome de outrem.
Essas suas qualidades demonstram que se trata de um ho-
mem espirituoso, retratadas nas suas belas obras. Afinal de con-
tas, como sempre digo, a inspiração do ZÉ FERNANDES é inesgo-
tável; isso porque surge da sua mente agitada e inquieta, do seu
imenso coração!”

Elito Vasconcelos

100
MARCELO RIBEIRO

DEPOIMENTOS

Ao grande mestre

“Falar do artista plástico JOSÉ FERNANDES não é fácil, prin-


cipalmente do homem e da pessoa que é. Como profissional, vejo-
-o como um dos melhores artistas plásticos de Sergipe, com várias
obras reconhecidas nacional e internacionalmente. Um profissional
que ama o que faz, acredita em seu talento, a ponto de viver do que
produz, o que não é fácil. Mas – assim vejo –, a seu modo ele curte a
vida muito bem, sempre cercado de amigos.
Como pessoa, eu vejo naquele homem tão grande o coração
de uma criança, muito sensível, ao ponto de ser chamado carinho-
samente pelos seus amigos de Zé Chorão, Zé Dorminhoco, Zé Gran-
dão. Posso até estar enganado, mas acredito que Zé é incapaz de fa-
zer mal a uma pessoa. Onde ele está sempre passa energia positiva
para todos. Zé, quando é amigo de alguém, mostra-se fiel e sincero;
se não ajuda, também não atrapalha.
Tem um jeito todo seu, mas não tenho dúvidas de que é um
bom pai, bom marido, bom amigo. Eu me sinto honrado e feliz por
fazer parte das suas amizades.”

Edgard do Acordeon

101
JOSÉ FERNANDES

DEPOIMENTOS

"AMIGOS PARA SEMPRE"

Era uma tarde de verão de março de 1976, eu acompanhava


um colega de minha nova escola de nome Ubaldino, que desde a
nossa apresentação pediu que eu apenas o chamasse pelo apelido
de “Dino”, esse acompanhamento tinha como objetivo um passeio
de adaptação ao Conjunto Residencial Presidente Médici, local de
minha nova residência e onde minha família reside até os dias atu-
ais.  Voltando ao passeio daquela tarde, meu anfitrião foi perfeito na
apresentação de meu mais novo lar, tudo era muito diferente para
aquele menino de onze anos de idade, que acabava de chegar do Rio
de Janeiro, mais precisamente da cidade de Cabo Frio. O sotaque, o
povo, as comidas, ou seja, um modo de vida totalmente diferente do
que eu tinha vivido no alto de meus onze anos.
Ao final do passeio, nos dirigimos até a sua residência, pois
o mesmo haveria de me apresentar a sua família; acontece que ao
chegar à frente da sua casa percebi através da janela de uma casa
em frente a sua que havia, em seu interior, um rapaz empunhando
paleta e pincel tendo a sua frente um cavalete e uma tela em seus
retoques finais. Afastei-me do meu anfitrião, atravessei a pequena
rua e parei em frente ao muro daquela casa, fiquei por alguns ins-
tantes apreciando maravilhado àquela cena, a qual eu guardo em
minha memória até os dias atuais. Eu assistia ali, em minha frente,
uma cena que até então só tinha visto em fotos de revistas ou em
gravuras de livros: era um artista em seu momento de criação, con-
fesso que até hoje o cheiro das bisnagas de tinta óleo ainda estão
presentes em minha memória. Fui “acordado” por Dino, que perce-
bendo meu interesse naquela casa, me fez transpor o portão, entrar
pelo jardim e parar na janela daquela casa, momento em que fui

102
MARCELO RIBEIRO

DEPOIMENTOS

apresentado àquele rapaz que viria a ser meu melhor amigo: José


Fernandes. Peço desculpas aos meus tantos outros amigos, mas ZÉ
é diferente, os artistas são diferentes, eles têm a capacidade de nos
atrair e de nos tornar cúmplices de sua arte.
Pois bem, sou amigo de José Fernandes desde aquela tarde
de verão que já se vão trinta e oito anos, dos quais só me dei conta
de todo esse tempo quando nesse momento parei para fazer esse
cálculo; foram anos intercalados de uma convivência bem próxi-
ma e às vezes de um afastamento natural entre amigos de infância
que se tornam adultos e vão viver suas vidas, mas que nunca se
deixaram esquecer.
São muitas as histórias de nossas “aventuras”, as mais sig-
nificativas foram registradas na Atalaia Nova e nas viagens a La-
garto, lugar de seu nascimento, como também onde ficávamos
hospedados, na casa de sua avó materna, na realidade eram tem-
pos de muita alegria e felicidade, mesmo com poucos ou nenhum
recurso financeiro.
A pintura era a sua vida e ele não só tinha certeza, como tam-
bém afirmava que viveria de sua arte. Todas as manifestações artís-
ticas sempre lhe despertaram interesse mas a paixão pelo futebol,
mais precisamente pelo Clube Esportivo Sergipe e pelo Fluminense,
sempre foram permanentes.
Essa paixão pelo futebol era a única coisa que o tirava do
mundo das artes e o levava, religiosamente, a uma “pelada”, todas
as tardes, na quadra do Colégio Médici. Entretanto, o “processo”
não consistia em apenas colocar um short, item que ele só usava
para jogar bola, e uma camiseta, para isso acontecer existia todo
um ritual, que iniciava com um banho bem demorado, a escolha de
uma camiseta, das muitas que seu pai Altamiro ganhava, pois era
membro da Associação dos Cronistas Desportivos de Sergipe-ACDS,
e por fim banhar-se de perfume. Quando lhe perguntavam o porquê

103
JOSÉ FERNANDES

DEPOIMENTOS

de todo aquele ritual ele dizia que fazia parte de sua preparação
para entrar em campo e apresentar-se como o melhor centroavante
em quadra.
Temos uma diferença de idade relativamente pouca, para os
dias atuais, mas para um garoto de 11 anos, um amigo de 15 anos
é praticamente um adulto; e foi assim que eu acompanhei o início
da trajetória artística de Zé, suas  participações em exposições co-
letivas e o seu momento de glória que foi a sua primeira exposição
individual na Galeria de Arte Álvaro Santos.
Confesso que escrever não é uma das minhas aptidões, mas
falar de José Fernandes, ou simplesmente Zé, não é difícil, pois sou
um dos seus fãs. Zé é uma dessas pessoas que existem poucas nos
dias atuais, e não estou me referindo ao seu dom artístico, estou
me referindo ao ser humano; isso mesmo, Zé é uma dessas pessoas
humanas na verdadeira concepção da palavra; encontrei uma frase
de Cícero que define José Fernandes: Viver sem amigos não é viver.

Virgílio Dantas

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MARCELO RIBEIRO

DEPOIMENTOS

DIGRESSÕES SOBRE JOSÉ FERNANDES

Muitas são as alcunhas, os apelidos com os quais esse grande


pintor ou artista plástico é reconhecido: Zé Fernandes, Zé, Zezão, Zé
Grandão, Fernandes; mas fiel ao próprio nome, assina suas obras
como José Fernandes.
Além de grande companheiro de boemia e um excelente ami-
go, José Fernandes é um artista singular, que reconhece o valor de
outros grandes artistas e o seu próprio, altaneiro sobre ser quem
é como pessoa e como artista, que além de uma admiração espe-
cial pela arte livre e preciosa dos grandes pintores sergipanos Zé
de Dome e J. Inácio, demonstra um grande orgulho da convivência
com este último, o saudoso e querido pintor baixinho de cabelos
brancos, o conhecidíssimo pintor das bananeiras, embora o fosse
de muita coisa mais.
A singularidade do destacado pintor se revela por batalhar
sempre pela valorização das artes, dos artistas e da cultura local,
por não temer experimentações em temas, forma ou tamanho dos
trabalhos e, de maneira genuína, imprimir em sua obra característi-
cas que fogem ao enquadramento tradicional como impressionista
(arte que rompe com o realismo e a estética acadêmica e que sem
mistura de pigmentação nem contorno nítido foca em pinceladas
soltas a observação dos efeitos de luz e movimento nas coisas e ou
objetos) ou expressionista (corrente que busca recriar o mundo
visto exprimindo subjetividade, sentimentos, usando cores fortes,
distorção, dramaticidade).
Se olharmos talvez independente de dogmas e generosamen-
te, como bom lagartense (importante cidade do interior sergipa-
no) apreciador das feiras livres e das múltiplas manifestações do

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JOSÉ FERNANDES

DEPOIMENTOS

rico patrimônio cultural sergipano, José Fernandes segue uma via


própria e até mescla os estilos, foge do academicismo mas não im-
prime dramaticidade, produz telas com muita luz e cor mas sem
focar especificamente em seus efeitos, usa pinceladas leves mas
não propriamente soltas. Sua obras, geralmente impregnadas de
doçura e lirismo mas às vezes eroticamente insinuantes e ou até
mesmo exotéricas, iluminam e instigam, ao tempo que fazem refe-
rências culturais e destacam as cenas do cotidiano, mesmo aquelas
impressas no rio de corredeiras de sua memória boemia, na sua
alma ciganamente inquieta, ou na sua insana produtividade criativa
no eterno despertar de suas madrugadas. É um artista com uma
pintura efetivamente marcante, reconhecida e reconhecível: cenas
nordestinas, de mercados e feiras livres, com pescadores, gente do
povo, frutas, flores que às vezes lembram estrelas, um estilizado e
misterioso pássaro como uma espécie de pomba branca a evocar
os vôos espirituais e de liberdade como também os sonhos e a paz,
peixes e outros animais, e as famosas mulheres de beleza e vida
própria, com a profundidade dos mares nos olhos, promessa de pa-
raíso nos lábios e sensualidade de bailarina nas ondas de seus cabe-
los, como novas Helenas a provocar os deuses antigos e os eternos
guerreiros que levamos impressos em nossos genes sonhadores.
Pura arte, sergipana e universal.

Antonio Torres, poeta.

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MARCELO RIBEIRO

DEPOIMENTOS

DIVAGACIONES SOBRE JOSÉ FERNANDES

Muchos son los alias, los apodos con los que el gran y popular
pintor es reconocido: Zé Fernandes, Zé, Zezão, Zé Grandão, Fernandes.
Pero fiel al propio nombre, firma sus lienzos como José Fernandes.
Además de buen compañero de bohemia y un excelente ami-
go, José Fernandes es un artista único, que reconoce el valor de otros
grandes artistas y bien así el suyo, altivo sobre ser quien es como per-
sona y como artista, que confiesa una admiración especial por el arte
libre y precioso de los grandes pintores sergipanos Zé de Dome e J.
Inácio, con mucho orgullo y sincero reconocimiento por la conviven-
cia con el último, el muy querido artista bajito de cabellos blancos, el
súper conocido pintor de las bananeras, aunque lo fuera magistral-
mente de muchas otras cosas.
La singularidad del destacado pintor José Fernandes se revela
todavía más por su lucha constante por la valoración de las artes, los
artistas y la cultura local, por no temer experimentaciones, ya sea en
temas, forma o tamaño de sus trabajos y, de manera genuina, impri-
mir en su obra características que huyen al encaje tradicional como
impresionista (arte que rompe con el realismo y la estética acade-
micista y que, sin mezcla de pigmentación ni contorno nítido, pone
en pinceladas sueltas la observación de los efectos de la luz y el mo-
vimiento de cosas y objetos) o expresionista (corriente del arte que
busca recrear el mundo observado exprimiendo subjetividad, senti-
mientos, usando colores fuertes, distorsión y dramatismo).
Si miramos independiente de dogmas y quizás con generosi-
dad, como buen lagartense (designación de los nacidos en Lagarto,
importante ciudad del Estado de Sergipe) conocedor de las ferias
libres y de las múltiples manifestaciones del rico patrimonio cultu-

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JOSÉ FERNANDES

DEPOIMENTOS

ral sergipano, José Fernandes sigue una vía propia y hasta mezcla
estilos, huye del academicismo pero no presenta dramatismo, produ-
ce lienzos con mucha luz y color pero sin destacar específicamente
sus efectos, usa pinceladas ligeras pero no propiamente sueltas. Sus
obras, generalmente impregnadas de lirismo y dulzura pero a veces
eróticamente insinuantes o hasta mismo exotéricas, alumbran e ins-
tigan, al tiempo que hacen referencias culturales y destacan escenas
del cotidiano, mismo aquellas impresas en las aguas turbulentas del
río revoltoso de su memoria bohemia, en su alma gitanamente in-
quieta, y en su insana productividad creadora en el eterno insomnio
de sus madrugadas. Es un artista con una pintura efectivamente so-
bresaliente, reconocida y reconocible: escenas nordestinas, de mer-
cados y ferias libres, con pescadores, gente del pueblo, frutas, flores
que a veces nos recuerdan estrellas, un misterioso pájaro tipo paloma
blanca que no nos deja olvidar los vuelos espirituales y de libertad ni
mucho menos los sueños y la paz, peces y otros animales, y las famo-
sas mujeres de belleza y vida propia en su imaginario callejero, con la
profundidad de los mares en los ojos, promesa de paraíso en los labios
y la sensualidad de bailarina en las olas de sus cabellos, como nuevas
Helenas a provocar los dioses antiguos y los eternos guerreros que
llevamos impresos en nuestros genes soñadores. Puro arte, de Sergipe
y universal.

Antonio Torres, poeta.

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MARCELO RIBEIRO

A RESSUREIÇÃO DE ZÉ

Inquietude da vida inteira, não causou surpresa o cansaço


de Zé em frequentar o Bar da Angélica, no Inácio Barbosa. Motivos
para o abandono ele arranjou de sobra, o que não convém trazer à
baila. Voltou a aparecer na Confraria do Cajueiro, ali perto. Estimu-
lou-me a lançar, em sua companhia, o livro “Algumas histórias de
minha infância (e adolescência)” numa tarde de sábado. Enquanto
eu autografava o livro, ele oferecia à venda camisas com pinturas
suas. Um sucesso. Chegou, inclusive, a pintar um quadro de gran-
des dimensões à vista do numeroso público. Adiante, organizou na-
quele espaço o lançamento, em tarde também muito concorrida, do
DVD do seu amigo Erivaldo de Carira. Mais: viabilizou a presença
luxuosa de Mestrinho, filho de Erivaldo, um talentoso jovem que
se vem firmando no Sul como um dos grandes sanfoneiros do país
(trabalhando com Gilberto Gil, Elba e outras feras).
Do ponto de vista pessoal, vem Zé tomando decisão sensata:
pensa em deixar de dirigir. Mas como continuar trabalhando no “es-
critório”? Ora, logo encontrou a solução: o bar e restaurante Parada
Oriental, a cerca de 30 ou 40 metros de casa. Mais uma vez, conso-
lida o papel de aglutinador e passa ali a receber a legião de amigos:
músicos, poetas, boêmios, pintores, escritores, comerciantes, servi-
dores públicos. Risonhos, Gil e Sandra, os proprietários, pensam em
ampliar o toldo para abrigar melhor a nova e diversificada clientela.
O próprio Zé cuida de divulgar o local e desperta a curiosidade de

109
JOSÉ FERNANDES

muitos que veem suas postagens nas redes sociais.


Nas primeiras horas do ano 2016, provoca-me o traste um
tremendo choque: noticiava o WhatsApp o falecimento do meu
amigo. Dizia o texto, postado às 23:40 da noite anterior: “Não pode-
ria haver início de ano mais triste para a cultura sergipana. Morreu
nesta noite o artista plástico José Fernandes, um dos mais impor-
tantes nomes da pintura contemporânea em Sergipe. Os amigos
estão consternados com a perda”. Logo abaixo, uma foto de José
Fernandes no caixão, com o velho chapéu na cabeça (Ismar Barreto
também fora velado com o inseparável panamá), camisa branca e
mãos cruzadas sobre o peito. Verdade que o morto parecia se es-
forçar em conter um sorriso, mas, paciência, Zé sempre teve essa
“velha cara safada” de quem vive à cata de rir de si e dos outros. Cer-
tamente, teria falecido pensando em algo jocoso, e brincado com a
morte. Provável que se tivesse recordado de alguma das mortes do
velho Quincas Berro D’ água e não quisesse fazer feio. Sempre fora
de rememorar tempos que passara na Bahia, onde fizera amizades
com o pessoal das Artes. Tudo teria feito para merecer, no além, a
boa companhia do velho boêmio baiano. Quem sabe, no instante
da foto já estivessem degustando umas “loirinhas”, e se rissem da
nossa pasmaceira, ainda presos no vale de lágrimas.
Superando com esforço o baque, entrei em contato com o
cantor e compositor Paulo Lobo (sabê-lo-ia, bem depois, cúmplice
da empreitada). A resposta foi tranquilizadora: mais uma patacoa-
da do Zé. A foto fora tirada na noite anterior. Recebendo um amigo
que possui funerária, Zé perguntou se havia algum caixão no carro.
O esquife foi colocado no chão em frente à Parada e o grandalhão
nele se acomodou.
Choveram telefonemas de gente conhecida. E eu, agora ali-
viado e satisfeito, desmentia a notícia de mau gosto. A consterna-
ção era geral. À tarde, ante meu protesto contra a infeliz galhofa, o

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MARCELO RIBEIRO

artista cria, com a conhecida entonação teatral, mil razões, que me


levam a rir: um protesto contra o abandono da cultura sergipana,
contra o caos instalado no país, um repúdio aos rumos da econo-
mia, um grito de alerta contra as pessoas pífias, contra os pela-por-
cos etc. etc.
Noutro momento, já mais comedido, libera uma gargalhada e
justifica: “fiz isso para dar uma sacudidela nesse marasmo em que
vivemos. Nada acontece nesta terra!!!. Foi uma das coisas mais cer-
tas que fiz ultimamente”.
Para comemorar a ressureição e estremecer a quietude,
nada mais oportuno que uma tarde regada a alguns engradados
de cervejas, umas doses de uísque (do declamador Ventura) e co-
medidos copinhos da cachaça (com sabor de aniz) bem branqui-
nha – que Edgard do Acordeon traz no carro para ser degustada
em ocasiões para lá de especiais. A rodada gastro-etílica-musical,
iniciada às 13h, estendeu-se, era de se esperar, noite adentro. Uma
maravilha. Pudemos apreciar o rico cancioneiro nacional (Cartola,
Orestes Barbosa, Alceu Valença, Zé Ramalho, Gonzagão, Ednardo
etc., sem descuidar de preciosidades locais e de relembrar indelé-
veis boleros). Músicos e cantores de primeira linha se revezavam:
Russo, Zé Andrade, Paulo Lobo, Sílvio Rocha, Edgard, o talentoso
Assum Preto (cego, esparge contagiante alegria, enquanto canta e
toca vários instrumentos), Álvaro e muitos outros. Entre um copo
e outro, podia-se admirar a sólida amizade entre Edgard e Assum
Preto. E a comovente solicitude do artista plástico Fox, em conduzir
Assum ao sanitário, servir-lhe a cevada, levá-lo para fumar longe
do aglomerado de mesas (foram mais de duas dezenas de amigos).
Violões, sanfona, timbau e instrumentos artesanais (fabricados na
hora, com copos ou latas de refrigerantes preenchidos parcialmen-
te com grãos de arroz) criavam o fundo musical para o desfile de
várias vozes (profissionais a amadoras). Tudo sob o olhar gratifica-

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JOSÉ FERNANDES

do do surpreendentemente silencioso (respeito às apresentações?)


“maestro” Zé Fernandes. A feijoada foi 0800, ofertada pelos donos
da casa. O caldinho de feijão exigindo “replay”. O memorável dia 24
de janeiro de 2016, um domingo. Onde? Na Parada, evidentemente.
O servidor público Reginaldo, o empresário Paulo Vasconcelos e o
jornalista Gilson Sousa não me deixam mentir. Assim se deu mais
um dos eventos culturais promovidos pelo artista plástico Fernan-
des. Zé é (como Inácio era), um artista genuíno. Bendita loucura dos
dois. Amém.

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MARCELO RIBEIRO

Zé Fernandes na Mídia

Entre cores e telas


 
Entre cores e telas, pincéis e ideias
Surgiu esse mundo azul
Praia de Atalaia, São Cristóvão e Barra
Os valores de um lindo caju
Contam as histórias de dias de glória
Da nossa grande Aracaju
Fazendo da arte, caranguejo fim de tarde
Seu ponto comum...
 
Marcar com os amigos numa sexta-feira, cerveja e um botequim
Jogar conversa fora, violão e uma roda, com meu pai um cavaquinho
Escutar Aloysio, Edgar e o Russo, professor, menino do Rio
Essa é a história que fica e volta que faz parte de mim...
 
Aracaju, terra de saudade, seu povo invade o país norte a sul
Levando consigo sergipanidade, beleza e arte, cultura Brasil
Aracaju, terra de saudade, seu povo invade o país norte a sul
Levando consigo grandes personagens, Zé Fernandes, bem
sabe, um quadro surgiu...

Cleyton e Aloysio  Dantas

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MARCELO RIBEIRO

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Colofão

Tiragem 250 exemplares


Formato 15x21cm
Tipologia Adobe Garamond Pro, 12
Euphemia, 12
Papel Off-set 75g/m² (miolo)
Cartão Triplex 250g/m²
99 788553
788553 178025
178124

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