O Conservadorismo de Eduardo Prado: A Combinação Dos Repertórios Antigo e Moderno Do Pensamento Político Ocidental (1879-1901)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL


(PPGHIS)

O conservadorismo de Eduardo Prado: a combinação dos


repertórios antigo e moderno do pensamento político
ocidental (1879-1901)

Rodrigo Perez Oliveira

Tese de doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em História Social como
parte dos requisitos para obtenção do título
de Doutor em História Social.

Orientador: Professor Dr Felipe Charbel

Rio de Janeiro

Novembro de 2015
3
Ficha catalográfica:

OLIVEIRA, Rodrigo Perez. O conservadorismo de Eduardo Prado: a combinação dos repertórios


antigo e moderno do pensamento político ocidental (1879-1901). Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2015.
(Tese de Doutorado)

4
Banca Examinadora

Professora Doutora Andrea Daher.

Professor Doutor André Freixo Lemos.

Professor Doutor Rodrigo Turin.

Professor Doutor Valdei Lopes Araujo.

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Agradecimentos

A conclusão de uma tese de doutoramento representa o encerramento de um


longo ciclo de formação. O curioso é que, para a minha geração, esse ciclo é básico,
pois qualquer pretensão a ocupar um lugar no petit comité dos historiadores
profissionais demanda que o postulante tenha, obrigatoriamente, a posse do título de
doutor. Portanto, aquilo que há alguns anos significava a coroação de uma carreira já
trilhada no ensino e na pesquisa, hoje é o requisito fundamental para o início de uma
trajetória na universidade. Seja como for, se básico ou avançado, a verdade é que, no
meu caso, esse ciclo durou exatos dez anos. Por isso, me sinto na obrigação de dedicar
algumas palavras de carinho aos que, dentro e fora da academia, colaboraram, de
alguma forma, para que este trabalho existisse.

Desde 2005, quando iniciei o curso de graduação, a vida se tornou bem animada,
principalmente naquilo que se refere à construção de intensos vínculos de amizade. Eu
estaria mentindo se dissesse que foram muitas as amizades edificadas. Desconfio que se
tivessem sido muitas, talvez, elas não seriam tão intensas. É impossível citar o nome de
todos, mas começo homenageando aqueles que, no espaço da sala de aula, me
emprestaram os ouvidos, na condição de alunos. Como considero o magistério um
constante exercício de formação, as aulas que ministrei nos últimos anos foram
fundamentais na construção deste trabalho. Eu confesso que, em diversas ocasiões,
utilizei minhas aulas como pretexto, e os meus alunos como cobaias, para o ensaio de
muitos dos argumentos que foram desenvolvidos nesta tese. O leitor desconhecido não
saberá reconhecer quando for o caso. Já o leitor aluno, se atento, se sentirá familiarizado
com o texto e, talvez, se considerará uma espécie de coautor. Acho justo que seja assim.

Entre os mais chegados, é impossível não destacar os membros do grupo de


estudantes que orbitava ao redor do Professor Manoel Salgado: Fábio Laurandi, Ivan
Norberto (In Memorian), Fausto Ventura e André Freixo. Não menos importantes são
os colegas de trabalho, do lado dos quais, eu experimento o desafio de construir uma
universidade de qualidade no mundo corporativo, onde a lógica do capital se sobrepõe a
todas as outras. Agradeço, especialmente, a Rodrigo Rainha, personagem central na
minha formação profissional, à Géssica Gaio, pela afinidade intelectual e pela profunda
interlocução, e à Josélia Castro, cuja trajetória é, em todos os sentidos, inspiradora.

6
À Erilane, mãe do pequeno Manoel, agradeço pela parceria e paciência
incondicionais. A minha vida seria muito mais difícil, e a aventura da tese, talvez,
inviabilizada, se ela não fosse tão paciente, tão parceira. Ao pequeno Manoel, que ainda
não é capaz de entender as particularidades da vida acadêmica, eu, apenas, peço
desculpas.

Ao meu orientador, Professor Felipe Charbel, agradeço, imensamente, a


generosidade. Iniciamos as nossas relações acadêmicas em um momento de luto, logo
após a morte do professor Manoel Salgado, e, nos últimos cinco anos, desenvolvemos
um trabalho baseado no diálogo e no respeito à autonomia intelectual. Com certeza
absoluta, não fosse a orientação do Professor Charbel, esta tese não teria essa forma.
Espero que o meu texto não o desabone.

Ao Professor Manoel Salgado (In Memorian), eu mais que agradeço: reconheço


uma dívida que é impagável. Eu não seria o que sou, em todos os sentidos, não fosse o
meu encontro com o Professor Manoel no espaço da universidade pública, gratuita e de
qualidade. Espero que o que sou, o que me tornei, não o desabone.

Agradeço às professoras Adriana Barreto de Souza e Maria da Glória Oliveira,


pela generosa, e importante, participação no exame de qualificação, que deu outros
rumos à pesquisa. Aos professores Andrea Daher, André Freixo, Rodrigo Turin e Valdei
Araújo, membros da banca examinadora, agradeço a generosidade da leitura.

Por último, agradeço à sociedade brasileira, que financiou a minha formação,


por intermédio da educação pública, desde as primeiras letras. Espero que, de alguma
forma, eu possa contribuir, com a minha atuação como professor e como pesquisador,
para a construção de um país mais justo.

7
As pessoas fariam roda para o ouvir. Um homem com uma boa
história é quase um rei. (José Eduardo Agualusa. Teoria geral do
esquecimento.)

8
9
O conservadorismo de Eduardo Prado: a combinação dos repertórios antigo e
moderno do pensamento político ocidental (1879-1901)
Resumo

O objeto de estudos desta tese de doutorado é o pensamento político de Eduardo Paulo da Silva Prado
(1860-1901), que foi um dos escritores mais atuantes no cenário intelectual brasileiro dos últimos anos do
século XIX. Tendo ganhado notoriedade pelo seu combate às instituições republicanas fundadas em
novembro de 1889, Eduardo Prado é considerado um dos principais representantes do pensamento
político conservador brasileiro. Neste estudo, eu examino a extensa produção intelectual de Eduardo
Prado, que teve inìcio em 1879, quando, nas páginas do jornal ―O Correio Paulistano‖, foi publicada a sua
primeira crônica política, e teve fim em 1901, quando o autor morreu, vítima da epidemia de febre
amarela que então assolava as principais cidades brasileiras. Ao longo desses vinte dois anos, portanto,
Prado visitou os mais diversos gêneros textuais, indo das crônicas políticas à historiografia, passando
pelas crônicas de costume, pelos relatos de viagem e pela prosa literária. Por isso, em virtude de uma
produção tão extensa, acredito que a dicotomia ―monarquia X república‖, que já foi bastante explorada
pela bibliografia especializada, não esgota a contribuição de Eduardo Prado para a história do pensamento
social brasileiro. Sendo assim, eu estou interessado, especialmente, na performance discursiva do autor,
visando mostrar como ele, nas suas práticas político/intelectuais, combinou os elementos constitutivos
dos repertórios antigo e moderno do pensamento político ocidental.

Palavras Chave: Eduardo Prado, Pensamento Político, Uso de Repertórios

Abstract

The study object of this doctoral thesis is the political thought of Eduardo Paulo da Silva Prado (1860-
1901), who was one of the most active writers in the Brazilian intellectual scene of the last years of the
nineteenth century. Having gained notoriety for his fight against republican institutions founded in
November 1889, Eduardo Prado is considered one of the main representatives of the Brazilian
conservative political thought. In this study, I examine the extensive intellectual production of Eduardo
Prado, which began in 1879, when, in the pages of the newspaper "O Correio Paulistano", was published
his first chronic political, and ended in 1901 when the author died, victim of yellow fever epidemic which
then destroyed the main Brazilian cities. Throughout these twenty two years hence Prado circulated by
various genres, ranging from chronic policies to historiography, through the usual chronicles, the travel
accounts and literary prose. Therefore, by virtue of such an extensive production, I believe that the
dichotomy "monarchy X Republic", which was already well explored by professional literature, does not
exhaust the Eduardo Prado's contribution to the history of Brazilian social thought. So I'm interested
especially in the discursive performance of the author, aiming to show how he, in his political /
intellectual practices, combined the elements of ancient and modern repertoires of western political
thought.

Key words: Eduardo Prado, Political Thought, Use repertoires

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11
Sumário

Introdução ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 13

Prologo da Unidade I ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ p. 26

1-As primeiras crônicas políticas de Eduardo Prado ------------------------------------------------------------------------------------ p.32

2 – Os textos antirrepublicanos--------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 54

3- Os textos sobre o republicanismo americano------------------------------------------------------------------------------------------- p. 78

3.1 - O republicanismo hispano-americano nas ―Viagens‖------------------------------------------------------------------------------- p. 84

3.2- O lugar nos EUA no pensamento político conservador de Eduardo Prado ------------------------------------------------------- p. 99

3.3- O problema das formas de governo no livro ―A Ilusão Americana‖ -------------------------------------------------------------- p. 106

Prólogo da Unidade II -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 118

4 – A vita activa de um proprietário engajado ------------------------------------------------------------------------------------------- p. 124

5- O elogio à intimidade da casa e a defesa da propriedade privada ------------------------------------------------------------------ p. 154

5.1- O jusnaturalismo nos escritos de juventude de Eduardo Prado-------------------------------------------------------------------- p. 159

5.2- Eduardo Prado na Faculdade de Direito de São Paulo ------------------------------------------------------------------------------ p. 170

5.3- As críticas à política macroeconômica desenvolvida pelos primeiros governos republicanos --------------------------------- p. 180

6 - Eduardo Prado na República das Letras ------------------------------------------------------------------------------------------------ p. 186

6.1- Eduardo Prado entre os ―Vencidos na Vida‖ ----------------------------------------------------------------------------------------- p. 190

6.2- Eduardo Prado na Academia Brasileira de Letras ------------------------------------------------------------------------------------ p. 214

6.3- Eduardo Prado no IHGB ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 230

Unidade III --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 238

7 - O empirismo político/intelectual no conservadorismo de Eduardo Prado --------------------------------------------------------- p. 240

7.1- O bacharelismo como a fonte dos infortúnios da nação --------------------------------------------------------------------------- p. 242

7.2- As críticas ao militarismo político -------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 254.

7.3 – As críticas ao idealismo jurídico republicano ------------------------------------------------------------------------------------ p. 269

8 - Tradição e temporalidade no conservadorismo de Eduardo Prado -------------------------------------------------------------- p. 290

8.1- A valorização da tradição----------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 293

8.2- A República e o tempo histórico no conservadorismo de Eduardo Prado --------------------------------------------------- p. 305

8.3- O prognóstico como um exercício de domesticação do tempo --------------------------------------------------------------- p. 316

9 – A historiografia conservadora de Eduardo Prado ------------------------------------------------------------------------------- p. 328

9.1- A historiografia como argumentação política ---------------------------------------------------------------------------------- p. 334

9.2 – A interlocução historiográfica nas correspondências de Eduardo Prado ------------------------------------------------- p. 345

9.3 – Os escritos historiográficos de Eduardo Prado ------------------------------------------------------------------------------ p. 357

Conclusão --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 384.

Bibliografia ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 392.

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Introdução

Definindo caminhos

Sempre toma a pena num momento de pressa social, ou moral, como se agarra
uma espada que rechaça ou conduz. Todos os seus livros políticos são, pois,
panfletos, ainda que não se componham de uma folha ou folha e meia de papel
repleta de veneno. Prado concebeu todos os seus livros em um momento de
urgência1. (Eça de Queirós) (Grifos Meus)

Em seu monarquismo entravam elementos muito diversos. Humilhava-o a


inauguração de levantes e pronunciamentos militares vigentes na América
espanhola, do que o Brasil tinha se mantido imune; chocava seus instintos de
artista ver abolida uma instituição antiga, a única antiguidade americana, elo que
prendia uma cadeia ininterrupta de nove séculos; indignava-o a indiferença, a
bestialização dentro do país; ofendia-o a ironia do estrangeiro; e em todos esses
sentimentos confirmou-o o rumo que assumiam as coisas 2. (Capistrano de
Abreu) (Grifos Meus)

Inicio esta tese sobre o pensamento político conservador de Eduardo Paulo da


Silva Prado (1860-1901), um dos intelectuais mais atuantes do fin-de-sciecle3 brasileiro,
com o testemunho de dois dos seus principais amigos e interlocutores: respectivamente,
Eça de Queirós (1845-1900) e Capistrano de Abreu (1853-1927). Eduardo Prado nasceu
na cidade de São Paulo, no dia 27 de fevereiro de 1860, sendo o filho mais novo do
casamento entre Martinho (1811-1891) e Veridiana (1825-1910). O autor foi criado nos
quadros da família Prado, a detentora de uma das maiores fortunas da elite cafeicultora
paulista e um dos principais esteios da Monarquia brasileira. Nas duas citações, Eça de
Queirós e Capistrano de Abreu apontam as características que me parecem ser as mais
importantes da produção letrada de Eduardo Prado e, dessa forma, me ajudaram a
elaborar a chave de leitura que acompanha a minha análise até o fim deste estudo. Para
Eça Queirós, os textos de Eduardo Prado foram sempre produzidos em ―momento de
urgência‖, tendo sido, portanto, escritos em função do desejo do autor em intervir nas
disputas políticas que agitaram a história do Brasil em um momento marcado por
profundas transformações institucionais. Já Capistrano de Abreu, ao dizer que no
1
QUEIRÓS, Eça de. Eduardo Prado. In: PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol. 01). São Paulo: Escola
Tipográfica Salesiana, 1904. p. 14.
2
ABREU, Capistrano de. Necrológio de Eduardo Prado. ―Jornal do Comércio‖. 05 de setembro de 1901.
3
O filósofo húngaro Marx Nordau (1849-1923) foi um dos primeiros autores a utilizar o termo fin-de-
sciecle para designar o niilismo característico do pensamento filosófico ocidental nos últimos anos do
século XIX. Para o autor, o otimismo racional e científico começou a dar os seus primeiros sinais de
cansaço nesse período, levando à decomposição dos grandes cânones racionalistas. Nordau era um crítico
do relativismo finissecular e um defensor do restabelecimento da tradição racionalista. Ver NORDAU,
MAX. Degeneração. Rio de Janeiro: Laemmert, 1986 e NORDAU, MAX. As mentiras convencionais de
nossa civilização. Lisboa: Empresa do Almanaque Enciclopédico Ilustrado, 1987.

14
monarquismo de Eduardo Prado ―entravam elementos muito diversos‖, chamou atenção
para o ecletismo da atuação político/intelectual do nosso autor, destacando a
plasticidade da performance discursiva de Prado, que nos seus textos antirrepublicanos
teria utilizado elementos pertencentes a diversas tradições do pensamento político
ocidental.

O objeto desta tese é, justamente, o pensamento político de Eduardo Prado, que


foi herdeiro da matriz ideológica do conservadorismo moderno, tal como delineada por
autores como Edmund Burke (1729-1797) e Alexis de Tocqueville (1805-1859). O
argumento central que tento sustentar é que o meu personagem, entre o final da década
de 1870 e o início do século XX, mobilizou valores constitutivos do vocabulário
político ocidental antigo e moderno, o que demonstra como esses repertórios, antes de
se excluírem, podem ser combinados por um autor diretamente envolvido com os
conflitos políticos do seu tempo. Acredito, portanto, que os textos de Prado devem ser
tratados como escritos de circunstância, o que torna fundamental a reconstrução do
ambiente intelectual que serviu como palco para a sua atuação discursiva. Somente
assim, acredito, o observador do século XXI, afastado uma centena de anos da cena
original desses debates, pode entender a lógica das suas intervenções. Nesse sentido, o
exercício da contextualização, tão estimado pelos historiadores profissionais, funciona,
aqui, como a ambientação necessária e capaz de tornar a voz de Eduardo Prado mais
audível. Sendo assim, é no campo de estudos da história do pensamento social e
político, que possui como objetivo central a análise de linguagens historicamente
construídas e transmitidas de texto a texto ao longo da prática discursiva, que pretendo
situar esta tese.

Desde o final dos anos 1960, o campo da história do pensamento social e


político vem sendo movimentado por acalorados debates teóricos4. Não é minha
intenção, nesta introdução, fazer um inventário dessas discussões, e nem, tampouco,
elaborar um prelúdio teórico, como se a discussão teórico-metodológica estivesse
descolada do exercício analítico que desenvolvo nas próximas páginas. O que estou
querendo dizer é que as opções teóricas que eu fiz neste trabalho somente fazem sentido

4
Esses debates se tornaram especialmente vigorosos no final dos anos 1960, quando Quentin Skinner
publicou, na revista ―History and Theory”, o seu ensaio metodológico intitulado “Meaning and
understanding in the history of ideas”. Nesse texto, o autor dialogava com os estudos de Peter Laslett,
John Pocock e John Dun, estabelecendo as propostas norteadoras do contextualismo discursivo que,
posteriormente, se tornariam emblemáticos da ―Escola de Cambridge do pensamento polìtico‖.

15
se levarmos em consideração a natureza da documentação examinada. Como o leitor
verá nas próximas páginas, Prado estreou no cenário político/intelectual brasileiro em
1879, quando foi publicada, nas páginas do jornal ―Correio Paulistano‖, que na época
era o periódico oficial do Partido Conservador paulista, a sua primeira crônica política.
A partir desse momento, até o ano de 1901, quando ele morreu vitimado pela febre
amarela, o nosso autor se aventurou pela prosa literária, escreveu crônicas de costumes,
relatos de viagem e textos sobre a história da colonização portuguesa na América,
material que constitui uma extensa produção que lhe permitiu ser reconhecido como um
dos principais representantes da inteligência brasileira da época. Não à toa, ele foi um
dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras e sócio do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tendo sido consagrado pelos dois mais importantes
grêmios literários em funcionamento no Brasil na transição do século XIX para o século
XX. Nesta tese, eu examino essa grande produção, abarcando os textos de juventude até
os escritos historiográficos, nos quais Prado desenvolveu uma intepretação do Brasil
que teve vinda longa na história da historiografia brasileira. O meu objetivo principal é
mostrar como o autor combinou os valores constitutivos dos repertórios antigo e
moderno do pensamento político ocidental.

Uma produção tão extensa e variada não se presta às sistematizações mais


rígidas, sendo necessário, acredito, compreender como Prado modificou o teor da sua
intervenção em função das circunstâncias sociais em que estava vivendo e das
especificidades dos meios materiais que veicularam os seus textos. Por isso, a noção de
―performance discursiva‖ é uma das mais importantes para a reflexão que estou
desenvolvendo, pois ela me permite fazer mais do que, tão somente, contextualizar os
textos escritos por Eduardo Prado nas suas respectivas conjunturas de produção, mas,
também, perceber como a lógica intrínseca aos materiais faz com que textos produzidos
pelo mesmo autor, na mesma época, possam apresentar sensíveis diferenças entre si. Os
formatos de publicação, portanto, interferiram, diretamente, nas formas através das
quais os conteúdos dos textos foram percebidos, o que demandou de Prado todo um
esforço de adaptação às demandas que eram específicas para cada um desses meios. Por
isso, não estou operando, neste trabalho, com uma concepção mais rígida de
―pensamento‖, como se fosse possìvel, através de um exercìcio de empatia
interpretativa, compreender uma essência estável da reflexão de Eduardo Prado. O que

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os textos possibilitam é a análise controlada e, acima de tudo, limitada, das
performances discursivas do autor examinado.

Não podemos supor, então, que Eduardo Prado se comportou da mesma maneira
nas páginas do grande e poderoso ―Correio Paulistano‖, do pequeno e efêmero jornal
estudantil ―A Comédia‖, do importante jornal carioca ―Gazeta de Notìcias‖, da ―Revista
de Portugal‖ e da ―Revista Moderna‖. Em cada um desses lugares, ele agiu de forma
distinta, tentando adaptar seu texto às demandas editoriais específicas, ao gosto de um
público específico e, obviamente, a uma situação histórica específica. Por isso, tive a
preocupação de analisar os textos segundo a lógica de seus respectivos meios. Sendo
assim, de acordo com as particularidades dos documentos que analiso, o contextualismo
discursivo proposto pela Escola de Cambridge, em especial pelas reflexões teóricas de
Quentin Skinner, constitui a arquitetura teórica deste trabalho.

Ao longo dos anos 1970, no espaço acadêmico inglês, autores como Quentin
Skinner, John Pocock e John Dunn delinearam aquilo que passou a ser conhecido como
a ―Escola de Cambridge‖ de história do pensamento polìtico. Podendo ser pensada
como uma metodologia da história intelectual, a proposta analítica dos autores de
Cambridge sugere que a compreensão do significado dos textos políticos produzidos no
passado só é possível mediante a reconstituição dos contextos linguísticos e normativos
em que tais textos foram concebidos. Para Pocock, o historiador do pensamento político
deve buscar “modos de discurso estáveis o suficiente para estar disponíveis ao uso de
mais de um locutor e para apresentar o caráter de um jogo definido por uma estrutura
de regras para mais de um jogador”5. Esta abordagem preza pelo embate discursivo,
pela relação dialógica desenvolvida entre escritores contemporâneos. O autor chama
esses ―modos de discurso estáveis‖ de langue, que, em outra parte do texto, ele define
como ―modos de enfrentar essas questões, comum a vários autores mais ou menos
contemporâneos‖. Nesse sentido, o que o analista deve fazer é, nas palavras de Skinner,
―compreender uma ideia ou teoria no interior do contexto em que foram produzidas‖ 6.

5
POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Ed USP, 2003. p. 41.
6
SKINNER, Quenty. Meanin and undhestanding in the history of ideas. In TULLY, James. Meanin and
Context: Quentin Skinner and his cristics. New Jersey: Princenton University Press, 2003. pp. 29-78. p.
30.

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Ainda que existam variações que distinguem as propostas desses autores, que
costumam ser definidos como os ―fundadores da Escola de Cambridge da história do
pensamento polìtico‖, há elementos metodológicos comuns que nos permitem tratá-los
no mesmo horizonte teórico, como, por exemplo, a filiação deles à filosofia analítica de
Wittgenstein, para quem a realidade material não precede a linguagem, sendo, portanto,
materialidade social e produção linguística fenômenos coetâneos e indistinguíveis, e à
história das ideias proposta por Collingwood. Por isso, a máxima wittgensteiniana de
que ―as palavras são atos‖ e a metodologia collingwoodiana, segundo a qual ―toda
história é uma história do pensamento, de pensamentos que se materializam nos
documentos que herdamos do passado‖7, podem ser consideradas constitutivas da base
sobre a qual se assenta o edifício teórico dos historiadores de Cambridge e, de alguma
maneira, a inspiração mais elementar da abordagem que desenvolvo nesta tese. Sendo
assim, na esteira das considerações de Wittgenstein e Collingwood, John Pocock e John
Dunn foram os primeiros a propor um diálogo mais intenso entre os historiadores do
pensamento político e os filósofos políticos. Nas palavras de Dunn, ―tanto a
especificidade histórica quanto a sofisticação filosófica serão mais bem alcançadas se
ambas forem perseguidas em conjunto‖8. Esta combinação entre os métodos da história
do pensamento político e da filosofia política permite, segundo os autores, fazer da
história do pensamento político uma atividade mais reflexiva e, da teoria política, uma
atividade mais histórica. Essa sugestão me parece ser bastante adequada para a minha
proposta de análise nesta tese, na medida em que estou interessado em compreender
como Eduardo Prado atualizou, nas suas práticas discursivas, os repertórios do
pensamento político ocidental com os quais ele teve contato ao longo da sua trajetória.
Não estou querendo dizer, com isso, que o nosso autor estava interessado em discutir
filosofia política, mas sim que ele tinha, no seu arsenal conceitual, elementos filosóficos
que inspiraram a sua participação nos conflitos políticos que agitaram a história do
Brasil nas últimas décadas do século XIX.

O meu objetivo nesta pesquisa é, portanto, lançar luz sobre as especificidades


das experiências nas quais o pensamento político de Eduardo Prado foi forjado. Estou
interessado em compreender os lugares que as intervenções do autor ocuparam nos seus

7
COLLINGWOOD, Robin George. The Idea of History. Londres: Cambridge University press: 1946, p.
63.
8
DUNN, John. ―The identity of the history of ideas‖. In: Political obligation in historical context: essays
in political theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1980. p. 14.

18
respectivos cenários de produção. Por isso, a minha investigação é formada dois
procedimentos distintos e complementares entre si: a reconstrução da biografia de
Eduardo Prado, o que demanda o estudo das condições sociais e políticas pelas quais o
nosso autor circulou naquele final de século XIX, e o exame dos seus textos a partir das
tradições de pensamento com as quais ele travou contato ao longo da sua vida. O tema
do antirrepublicanismo, por exemplo, é um dos mais conhecidos da trajetória de Prado,
sendo, por isso, um assunto incontornável para todo estudioso interessado na vida e na
obra desse personagem. Porém, acredito que o esforço do nosso autor em desestabilizar
a jovem república brasileira não nos autoriza a defini-lo, de forma mais apressada, como
um antirrepublicano. Antes é necessário problematizar como Prado tratou as concepções
de ―República‖, ―Liberdade‖ e ―Monarquia‖.

Ao examinar os textos que Eduardo Prado produziu entre 1889 e 1895, no calor
dos conflitos que ele travou com as autoridades republicanas, percebo que ele estava
municiado do repertório da filosofia política antiga, principalmente naquilo que se
refere ao tratamento que Aristóteles deu à ideia de ―República‖, tema que, na
modernidade, seria retomado por pensadores como Rousseau, Montesquieu e Hannah
Arendt. Para esses autores, o que definia um regime político como republicano não era a
forma institucional do governo, mas sim a garantia de que os homens seriam livres, as
leis respeitadas e o bem comum garantido pelo equilíbrio das instituições. Dessa
maneira, o conceito ―República‖, se tratado na perspectiva do pensamento político
antigo, não é incompatível com o regime político monárquico. Por isso, Eduardo Prado,
que mais de uma vez definiu a República implantada pelo golpe militar de novembro de
1889 como ―tirânica‖ e a Monarquia chefiada por D. Pedro II entre 1840 e 1889 como
―uma verdadeira república‖, pode ser definido, acredito, como um monarquista
republicano. No entanto, também é possível defini-lo como ―antirrepublicano‖, desde
que tenhamos em tivermos em vista certa concepção moderna de República, que
somente após a independência dos EUA passou a ser tratada como a antítese da
Monarquia.

O que estou querendo dizer é que ao confrontar a República brasileira, Eduardo


Prado não estava desqualificando a ideia de ―República‖ em si, mas sim o seu
significado moderno e as especificidades do seu desdobramento na política brasileira. A
minha proposta de análise é, portanto, a imersão no vocabulário político utilizado por
Eduardo Prado, pois, dessa forma, acredito ser possível contribuir para uma melhor

19
compreensão a respeito da circulação e do uso dos valores constitutivos do repertório
político ocidental na cena político/intelectual Brasileira dos últimos anos do século
XIX.

Naquilo que se refere ao exame do uso que Prado fez dos diferentes repertórios
do pensamento político ocidental, um documento específico é imprescindível para esta
pesquisa: é o ―Catálogo da Biblioteca de Eduardo Prado‖, que foi organizado pelo
livreiro Alfred Gazeau e publicado em 1916. De acordo com o catálogo, no momento da
sua morte, Prado tinha, aproximadamente, 14.000 volumes no seu acervo, que são
classificados pelo livreiro em diversas categorias, tais como agricultura, almanaques,
jurisprudência, religião, história e polìtica. Segundo Gazeau, ―por motivos
desconhecidos‖, a maior parte desse acervo foi parar no jockey club de Buenos Aires,
onde foi destruída por um incêndio que aconteceu em 1953. O mais importante nesse
material, para mim, é o cuidado que o livreiro teve de especificar as edições dos títulos
que faziam parte do acervo, o que me permite ter alguma noção a respeito dos interesses
bibliográficos de Eduardo Prado. Eu tenho a clareza de que a presença, por si só, de um
determinado livro no acervo do nosso autor não significa, necessariamente, que ele
tenha lido o texto e, tampouco, o utilizado. Porém, quando somadas à análise dos textos
escritos por Prado, as informações contidas no catálogo servem como um importante
complemento, já que podem validar, ou não, algumas suspeitas. Em outras palavras:
escrevendo no calor dos conflitos do seu tempo, Eduardo Prado estava mais preocupado
em intervir nessas disputas do que em elaborar debates conceituais mais sofisticados.
Por isso, ele não agiu como um teórico da política e quase não se preocupou em
explicitar as suas referências. No entanto, nas franjas dessas intervenções, é possível
identificar a mobilização de alguns elementos pertencentes aos repertórios antigo e
moderno do pensamento político ocidental. Ao confrontar os escritos de Eduardo Prado
com o catálogo da sua biblioteca, eu acredito ter sido capaz de mapear as principais
referências do pensamento político do nosso autor. O leitor dirá se a empreitada foi bem
sucedida. Espero que eu tenha conseguido ser, pelo menos, convincente.

Eduardo Prado não é um desconhecido pela bibliografia especializada na história


política e intelectual do Brasil nos últimos anos do século XIX. Muito pelo contrário, o
escritor já foi tratado por estudos dos mais diversos tipos, que desde os primeiros anos
do século XX se debruçam sobre a sua vida e obra. Ao longo desta tese, eu trato,
oportunamente, destes estudos. Por ora, quero destacar os textos que foram os

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responsáveis por delinear o lugar de Eduardo Prado na história do pensamento social e
político brasileiro. A primeira biografia da qual tenho notícia já apresenta o nosso autor
como um monarquista convicto, católico, conservador, ultramontano e inimigo
inveterado da República militar. Trata-se do artigo ―Monarquismo de Eduardo Prado‖,
escrito por Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, e publicado
em 13 de setembro de 1901 no ―Comércio de São Paulo‖, folha que havia sido
propriedade de Eduardo Prado e um dos principais canais dos seus ataques à República.
Nesse trabalho, Afonso Celso define o nosso personagem como um ―monarquista que
não titubeou no ataque à tirania que entre nós atendia pelo nome de República‖ 9. A
intepretação do Visconde de Outro Prado foi retomada pelos autores que,
posteriormente, se dedicaram ao tema. O Padre Severiano Rezende, por exemplo, que,
em 1908, escreveu uma série de artigos para o jornal ―Diário de São Paulo‖ sobre a vida
religiosa de Eduardo Prado, disse que

Nosso objetivo aqui é propagandear o exemplo de fé daquele foi certamente um


dos maiores ícones do catolicismo brasileiro. Toda a ação de Eduardo Prado foi
motivada única e exclusivamente pelo seu amor à Igreja fundada por Cristo (...)
Não estamos tratando de um político, mas sim de um beato10.

Nesta tese, eu me esforço em mostrar que, de maneira alguma, a defesa do


catolicismo foi o único motivo que moveu Eduardo Prado na sua trajetória política e
intelectual. Contudo, não há como negar a importância dos artigos do Padre Severiano
Rezende para a construção da imagem de Eduardo Prado como um escritor conservador
e católico. Essa imagem foi retomada na década de 1960, quando, por ocasião das
festividades em homenagem ao centenário de nascimento do nosso autor, foram escritas
duas das suas principais biografias: os trabalhos de Sebastião Pagano 11 e de Cândido da
Mota Filho12. Ambos os estudos assemelham-se no aspecto laudatório a partir do qual
foi abordada a

biografia desse moço rico, que morreu rico e que sempre parecia mais
preocupado com o bom-gosto do que com o bom senso (...) Na vida de Eduardo
encontra-se o Brasil. Nela se revelou uma consciência sensível ao destino
nacional e um modo corajoso e profundo de ver o que aconteceu, o que acontecia
e o que ia acontecer(...) Esse era Eduardo Prado, o anjo do Brasil 13.

9
―Comércio de São Paulo‖. 01 de setembro de 1901.
10
―Diário de Notìcias‖. 23 de outubro de 1908.
11
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed Cetro, 1960.
12
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967.
13
Idem. p.4.

21
Não é diferente a caracterização que saiu da pena de Sebastião Pagano, que
definiu Eduardo Prado como ―uma das mais superiores inteligências que já
alvoreceram no Brasil; Eduardo Prado foi o baluarte do bom senso que diante da
insensatez republicana lutou em defesa das perenes tradições da monarquia católica‖14.
Esses dois autores produziram um sólido trabalho de mapeamento da documentação e,
por isso, a leitura das referidas biografias é obrigatória para qualquer pesquisador
interessado em estudar a vida e a obra de Eduardo Prado. Esses estudos, portanto,
definiram a perspectiva interpretativa através da qual a trajetória política de Eduardo
Prado vem sendo tratada por estudos mais recentes.
Examinar com alguma atenção o pensamento político conservador moderno é
fundamental para a compreensão das intervenções discursivas de Eduardo Prado na
cena intelectual brasileira finissecular. Por isso, neste trabalho, eu problematizo a ideia,
já bastante veiculada pela bibliografia especializada, de que Prado fora um escritor
monarquista e conservador, o que não quer dizer que eu negue essa afirmação. Para
mim, portanto, o monarquismo conservador de Eduardo Prado é o ponto de chegada, e
não o de partida, pois o que estou propondo é, exatamente, a problematização do
conservadorismo de Eduardo Prado, buscando compreender como o autor se apropriou,
ao longo da sua trajetória, dos valores conservadores. Do final dos anos 1870 a meados
da década 1880, Prado ainda não era um defensor aguerrido da Monarquia e mostrou-se
um conservador bem pouco ortodoxo, ao mobilizar, por exemplo, os valores
pertencentes à doutrina do direito natural, que é rejeitada pelo conservadorismo
moderno. Eduardo Prado, então, ao longo dos vinte e dois anos de sua vida pública, se
tornou conservador e monarquista, na esteira das transformações institucionais que
marcaram a história política do Brasil nesse período e à luz do seu contato com os mais
diversos repertórios do pensamento político ocidental. Examinar essa formação é um
dos principais objetivos centrais desta tese.
Segundo Karl Mannheim, as linhas mestras do conservadorismo moderno foram
delineadas entre o século XVIII e o século XIX, quando autores como Edmund Burke e
Alexis de Tocqueville, ambos citados no catálogo da biblioteca de Eduardo Prado,
rejeitaram o conteúdo da filosofia do direito natural, pois
os conservadores voltam suas críticas aos conceitos de estado de natureza do
contrato social, de direitos universais do homem. Nos seus aspectos
metodológicos, o pensamento liberal-burguês é atacado em várias frentes: ao
racionalismo daquele pensamento, os conservadores opõem os de história, vida e

14
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967.

22
nação como os conceitos fundamentais para organizar a experiência social; à
tendência dedutiva da escola baseada no direito natural, eles contrapõem a
irracionalidade da realidade15.

Para Mannheim, o conservadorismo é uma reação à Revolução Francesa, uma


reação que não deve ser lida na chave de negação da modernidade, mas sim como uma
modernidade alternativa à modernidade burguesa. Ainda segundo o autor, ―para o
conservadorismo, a modernidade burguesa recalcou aquilo que há de mais vital no
pensamento humano, solapando tudo quanto é tradição. Apenas entre a nobreza,
camponeses e pequena burguesia as tradições seriam mantidas vivas, ficando a
burguesia e o proletariado cada vez mais imersos na nova ordem‖. Nesse sentido, a
―mentalidade conservadora deu origem a uma contralógica elaborada à base dos fatores
intelectuais ameaçados pela vitória do racionalismo burguês, sendo um pensamento
eclético que jamais fechou um sistema doutrinário, tendo bebido em diversas fontes da
tradição ocidental‖. Também o sociólogo americano Robert Nisbet, outro importante
especialista no tema do pensamento polìtico conservador moderno, afirma que ―ao
negar a liberdade individual propagada pelos revolucionários, os conservadores dos
séculos XVIII e XIX se assentaram em uma noção de liberdade oriunda da antiguidade,
16
mais preocupada com o corpo polìtico do que com os indivìduos‖ . Sendo assim,
então, a negação da lógica abstrata do pensamento burguês, a defesa das tradições e da
harmonia social, a sobreposição da liberdade civil à liberdade liberal e o ecletismo no
uso dos repertórios seriam, de acordo com as considerações de Karl Mannheim e Robert
Nisbet, os elementos mais característicos do conservadorismo moderno.
Os valores conservadores foram fundamentais para a cultura política brasileira
oitocentista, o que não significa que o conservadorismo nacional tenha sido a mera
repetição do conservadorismo europeu. Em um estudo específico sobre o tema, o
historiador Cristian Edward Linch afirma que, no Brasil, o pensamento conservador
teve que lidar com as transições e continuidades vividas pela sociedade brasileira ao
longo do tempo, muito diferentes das que estão na raiz do conservadorismo europeu,
que o autor chama de ―clássico‖. Para Linch, o conservadorismo brasileiro assumiu a
forma de um comportamento político marcadamente monarquista, na medida em que,
entre nós, o discurso conservador foi construìdo, de forma mais clara, ―entre as décadas

15
MANNHEIM, Karl. Conservative thought. Londes: ED P&C, 1987. p. 32.
16
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 45.

23
de 1830 e 1850, quando essa ideologia ganhou a forma de um modelo institucional,
conformou um tipo particular de conservadorismo liberal, que parte de um determinado
diagnóstico dito realista ou sociológico da sociedade brasileira, considerada ainda na
menoridade devido aos males de sua formação social‖17. Essa conjunção entre o
conservadorismo e o monarquismo, no Brasil, deu origem, ainda de acordo com as
considerações de Cristian Edward Linch, à noção de que a sociedade brasileira ―vivia
um tipo de menoridade social, o que justifica a ação tutelar de um Estado relativamente
autônomo da sociedade, incumbido de fundar a ordem nacional de cima para baixo e, a
partir dela, promover reformas efetivas, mas seguras, no sentido de veicular o progresso
nacional‖. Por isso, diz o autor, ―o tema das instituições polìticas ocupa o primeiro
plano das preocupações dos conservadores brasileiros‖. Cristian Edward Linch
concentra a sua análise nos escritos dos fundadores da Monarquia brasileira, como, por
exemplo, o Marquês de Caravelas (1768-1836) e o Visconde de Cachoeiras (1770-
1840) e, por isso, não chega a abordar o conservadorismo brasileiro na segunda metade
do século XIX, o que faz com que o pensamento político de Eduardo Prado não tenha
sido contemplado pela sua pesquisa. Porém, ainda assim, eu identifico, nos escritos do
nosso autor, a mesma preocupação com as instituições políticas, o mesmo realismo
sociológico e a mesma importância atribuída ao papel tutelar do Estado que podem ser
encontrados nos textos dos primeiros conservadores brasileiros.
Entre os principais valores conservadores, segundo os estudos de autores como
Karl Mannheim, Robert Nisbet e João Pereira Coutinho, podemos destacar a definição
da perspectiva sociológica empírica como a melhor forma de interpretar a realidade e
atuar politicamente nela e o esforço em defender as tradições do potencial destruidor da
velocidade da temporalidade moderna. Ao longo da sua trajetória, Prado fez uso desses
valores, quando, por exemplo, interpretou a proclamação da República brasileira à luz
das influências da ―retórica bacharelesca‖ junto aos oficiais do Exército e dos efeitos da
temporalidade moderna nas tradições nacionais. Para o nosso autor, desde os anos 1870,
em virtude as ascendência de Benjamin Constant (1836-1891) sobre os cadetes da
Escola Militar da Praia Vermelha, os oficiais do Exército estavam, cada vez mais, se
dedicando à abstração das discussões filosóficas, em detrimento da dimensão prática da
profissão das armas. Ao formular a sua crítica dessa forma, Prado mobilizou valores
17
EDWARD, Cristian. Conservadorismo e monarquismo no pensamento político brasileiro. In: NUNES,
Gabriela; BOTELHO, André. Revisão do pensamento conservador: ideias e política no Brasil. São
Paulo: Ed. Hucitec, 2010. pp. 25-51. p. 26.

24
constitutivos de uma tradição filosófica que, em última instância, nos remete a
Aristóteles, especialmente à noção de phronesis, que é definida pelo filósofo grego
como uma espécie de saber ético/político de natureza prática.
Por outro lado, a filiação de Eduardo Prado ao pensamento filosófico clássico
não o impediu de, no seu esforço de interpretação da conjuntura política que deu origem
à proclamação da República brasileira, mobilizar, também, valores modernos. Entre
esses valores, destaco a noção de ―tempo acelerado‖, que foi utilizada pelo autor para
sugerir que o nascimento da República foi, em alguma medida, o resultado do desapego
das novas gerações pelas tradições mais valiosas da nacionalidade brasileira. Para
Prado, portanto, a intervenção militar de novembro de 1889 era o resultado da
aceleração dos ritmos das transformações da sociedade brasileira, o que implodiu o
vínculo de solidariedade entre passado e presente, fazendo com que o futuro da nação
fosse uma incógnita. Segundo o nosso autor, o novo regime, em algum momento futuro,
poderia ser derrubado pelo mesmo ritmo temporal desagregador que lhe permitiu
nascer. Dessa forma, Prado, na sua análise da proclamação da República, combinou
elementos analíticos do repertório conceitual antigo e moderno, em uma atuação
político/intelectual eclética o suficiente para permitir a convivência de diferentes
tradições do pensamento político ocidental.
Os nove capítulos que constituem este trabalho estão organizados em três
unidades, sendo cada uma delas composta por três capítulos. Na primeira unidade, eu
examino o uso que Eduardo Prado fez do da noção ―liberdade‖, mostrando como ele
combinou o repertório do republicanismo cívico latino com o do liberalismo, o que
evidencia como na prática discursiva do nosso autor não são claros os limites que
separam a liberdade civil antiga da liberdade individual moderna. Na segunda unidade,
eu analiso como Prado tratou o problema da dicotomia ―público X privado‖ através da
combinação de valores antigos, como a vita activa republicana, e modernos, como o
privatismo doméstico. Já os capítulos da terceira unidade, diferente do que acontece
antes, não estão vinculados por um eixo temático único, estando voltados ao exame dos
elementos que me parecem ser os mais importantes do conservadorismo de Eduardo
Prado, como, por exemplo, o empirismo político/intelectual, a defesa das tradições e o
elogio à ação colonial portuguesa nos trópicos.

25
26
Unidade I

O uso da noção “liberdade” no conservadorismo


de Eduardo Prado: a combinação entre o
republicanismo cívico latino e o liberalismo
moderno

27
Prólogo

Senhores, o que um inglês, um homem francês e um cidadão dos Estados Unidos


da América entendem hoje pela palavra "liberdade"? Para cada um deles é o
direito de ser sujeito apenas às leis, e não ser nem detido, preso, condenado à
morte ou maltratado de alguma forma, pela vontade arbitrária de um ou mais
indivíduos. É o direito de cada um expressar a sua opinião, escolher uma
profissão e praticá-la, para alienar bens, e até mesmo a abusar deles; de ir e vir
sem permissão e se sem ter que prestar contas de suas motivações ou empresas.
É o direito de todos de se associarem com outros indivíduos, seja para discutirem
os seus interesses, ou a professarem a religião que eles e seus associados
preferem, ou mesmo simplesmente para ocuparem os seus dias ou horas de uma
forma que é mais compatível com as suas inclinações ou caprichos. 18. (Benjamin
Constant) (Grifos Meus)

Desde que nossa República submeteu-se à jurisdição e ao controle de umas


poucas pessoas poderosas, o resto de nós fomos obnoxii, vivendo em
subserviência a elas19. (Salústio)

Os dois trechos acima abordam o tema da liberdade, que, de acordo com os


estudos de Quentin Skinner, é um dos mais polissêmicos do vocabulário político
ocidental. O historiador inglês afirma que a ―liberdade‖ tem, pelo menos, dois
significados diferentes: a perspectiva do humanismo cívico20, derivada da tradição
romana, e a perspectiva liberal, que ganhou seus contornos mais nítidos em autores
como Thomas Hobbes (1588-1679), John Stuart Mill (1806-1873) e Isaiah Berlin
(1909-1997)21. Skinner afirma, ainda, que a diferença entre as duas perspectivas é tão
grande que chegou a motivar polêmicas dentro da teoria política britânica ao longo do
século XVII, destacando-se, aqui, as discussões travadas entre James Harrington (1611-
1677) e Thomas Hobbes. O objetivo desta unidade é analisar como Eduardo Prado
18
CONSTANT, Benjamin. ―The Liberty of Ancients Compared with that of Moderns.‖ Political
Writings.Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 18.
19
SALÚSTIO. Bellum Catilinae em Sallust. J. C. Rolfe. Londres, 1931. p. 27.
20
Alguns autores afirmam que os valores do republicanismo cívico latino foram fundamentais para o
humanismo cìvico. O termo ―humanismo cìvico‖ foi utilizado pela primeira vez em 1955 por Hans Baron
no livro “The crisis of Early Italian Renaissance”. Como os estudos de Baron são fundamentais para a
reflexão que desenvolvo nesta unidade, preferi manter a terminologia usada pelo autor. Para Baron, a
tradição intelectual do humanismo cívico foi forjada na Península Itálica durante o renascimento, onde
algumas repúblicas teriam recuperado os valores cívicos da antiguidade greco-romana, como, por
exemplo, as ideias de patriotismo, de governo popular e de devoção ao serviço público. O estudo de
Baron criticou o texto ―A civilização do Renascimento na Itália‖ de Jacob Burckhardt, para quem o
principal legado dos tempos do renascimento para a modernidade havia sido a configuração da noção de
indivíduo. Contra a interpretação de Burckhardt, Baron definiu a renascença não como o momento da
consolidação de regimes monárquicos ou tirânicos, nos quais o homem teria encontrado a sua própria
individualidade, mas sim como ―a época do surgimento de uma vida polìtica rica, centrada em valores
próximos aos que haviam estado no centro da existência das cidades livres do passado‖. (p. 46). O livro
de Baron foi seminal para os estudos sobre o pensamento político ocidental na medida em que inaugurou
uma discussão que posteriormente seria retomada por autores como John Pocock, Quentin Skinner, Iseult
Honahan e Bernard Bailyn. Essa discussão será melhor desenvolvida mais adiante.
21
Sobre essa discussão, conferir os já citados títulos: Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed.
UNESP, 1999 e Hobbes e a Liberdade Republicana. São Paulo: Ed. UNESP, 2010.

28
combinou essas duas concepções de liberdade, mostrando que as fronteiras que separam
os repertórios conceituais antigo e moderno não são tão rígidas, como sugeriram alguns
autores22. Pretendo demonstrar que, a despeito das diferenças, a liberdade civil e a
liberdade liberal não são excludentes entre si, podendo mesmo ser combinadas nos
escritos de um mesmo autor, como podemos perceber nos textos de Eduardo Prado.
Essa combinação mostra que o vocabulário político mobilizado pelo personagem
estudado nesta tese foi marcada pela plasticidade de um letrado que tinha em seu
repertório elementos dos vocabulários políticos antigo e moderno, sendo as respectivas
conjunturas de atuação fundamentais para a definição dos seus lances discursivos.

O primeiro trecho que serve como epígrafe deste prólogo foi escrito por Henri-
Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), em 1815. Já o segundo é muito mais
antigo, tendo saído da pena de Salústio (86 a.c-34 a.c), em 54 a.c. O importante é que,
cada um a seu modo, tanto Benjamin Constant como Salústio, tentaram definir o
conceito de liberdade, sendo, portanto, representantes, respectivamente, do liberalismo e
da tradição cívica romana. Examinar com mais cuidado as especificidades de cada uma
dessas definições é fundamental para a compreensão do conservadorismo de Eduardo
Prado.

Partindo do princípio de que existiam semelhanças entre os governos inglês,


francês e estadunidense oitocentistas, Benjamin Constant definiu a liberdade praticada
nesses paìses, entre outras coisas, como o direito de ―de ir e vir sem permissão e sem ter
que prestar contas de suas motivações ou empresas‖. Para o filósofo franco-suíço, um
homem é livre quando não encontra qualquer tipo de coerção para agir de acordo com a
sua vontade. Trata-se de uma definição muito semelhante àquela que Hobbes já tinha
desenvolvido no século XVII. Em um estudo específico sobre o pensamento político de
Hobbes23, Skinner afirma que, para o autor do ―Leviatã‖, ―a única coisa verdadeira no
mundo inteiro é o movimento‖, sendo necessário que a concepção hobbesiana de
liberdade seja tratada, portanto, como um subtipo de uma ideia mais geral a respeito do
movimento dos corpos. Nas palavras do próprio Hobbes:
22
Há na bibliografia especializada alguns estudos que propõem a existência de uma dicotomia mais rígida
entre as concepções antiga e moderna de liberdade. A matriz da dicotomia liberdade antiga positiva X
liberdade moderna negativa pode ser encontrada nos escritos de Benjamin Constant, tendo sido,
posteriormente, aprofundada por autores, como, por exemplo, o filósofo americano Gerald Mac Callum e
o filósofo inglês Isaiah Berlin. Nesta unidade, eu me afasto dessa tradição analítica e dialogo com autores
que propõem a existência de limites mais porosos entre os repertórios antigo e moderno, como, por
exemplo, Quentin Skinner, Phillip Petitt e John Pocock.
23
Trata-se aqui do já citado Hobbes e a Liberdade Republicana. São Paulo: Ed. UNESP, 2010.

29
Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por
oposição os impedimentos externos ao movimento) e não se aplica menos às
criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque de tudo o que
estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de
certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo
externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além24. (Grifos Meus)

Formulação semelhante pode ser encontrada no livro ―On Liberty‖, escrito por
Stuart Mill e publicado em 1859. Nesse texto, o filósofo inglês não abordou diretamente
o problema da liberdade individual, mas sim o da liberdade civil, principalmente
naquilo que se refere aos instrumentos legítimos através dos quais a sociedade pode
cercear a liberdade dos indivíduos.

Somente quando a ação individual compromete a harmonia coletiva, a sociedade,


que tem seu correlato cerceador na impessoalidade do Estado, é legítima para
interferir na vida privada, colocando limites ao movimento do transgressor e
reconduzindo-o à normalidade. Em casos como esse, a intervenção não se trata
do cerceamento da liberdade civil, mas sim do cerceamento da liberdade
individual, que somente é tolerável quando não consiste em ameaça aos outros
membros da coletividade25. (Grifos Meus)

Acredito que a recorrência do problema do movimento dos corpos nos textos de


Thomas Hobbes, Benjamin Constant e Stuart Mill seja suficiente para sinalizar a
importância do tema para a moderna discussão do problema da liberdade. O que é mais
importante para a reflexão que desenvolvo nesta unidade é o fato de que no repertório
moderno, a liberdade é frequentemente definida a partir de uma falta, ou seja, da
ausência de impedimentos ao livre movimento. Por isso, costuma-se dizer que o
liberalismo moderno está baseado em uma noção negativa de liberdade26.

Já no trecho de Salústio, o termo chave na definição da liberdade é dado pela


palavra “obnoxii”, que, segundo Skinner, ―é utilizada para descrever aqueles que estão
expostos a maus ou vivem à mercê de outros‖ 27. Para o historiador inglês, esses valores
são fundamentais para o humanismo cívico, que é tratado como um desdobramento
direto do argumento jurídico legal e moral romano, sendo a liberdade pensada em uma
concepção estritamente política e em oposição à escravidão. Além de Salústio, Skinner
destaca os textos de Tito Lívio como importantes para a compreensão dessa liberdade
civil.

24
SKINNER (APUD), (op cit). p. 126.
25
MILL, John Stuart. On Liberty. (Ed.) Alan Ryan. Mill: The Spirit of the Age, On Liberty, the Subjection
of Women. London & New York: Norton. 41-131. p. 58.
26
Sobre a discussão a respeito da concepção negativa de liberdade típica do liberalismo moderno, destaco
o livro BERLIN, Isaiah. Freedom and its Betrayal: Six Enemies of Human Liberty. (Ed.) Henry Hardy.
London: Pimlico, 1975.
27
SKINNER, Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 45.

30
Quando Lívio fala, por contraste, dos mecanismos pelos quais Estados livres
perdem sua liberdade, ele invariavelmente iguala o perigo envolvido com o da
queda na escravidão. Seus livros iniciais utilizam terminologia legal padrão para
explicar a ideia de servidão pública, descrevendo comunidades sem liberdade
como vivendo in poteste, dentro do poder ou sob o domínio de uma outra nação
ou Estado28.

Diferente do que podemos perceber nas definições apresentadas pelos autores


vinculados à tradição liberal, para a tradição civil, o estatuto da liberdade está na
presença da capacidade de autogoverno e não tão somente na ausência de impedimento
ao livre movimento. Por isso, ainda de acordo com os estudos de Skinner, o
republicanismo cívico se baseia, entre outras coisas, em uma noção positiva de
liberdade. Para o republicanismo cívico, então, qualquer coação à plena capacidade de
autogoverno é prontamente identificada como servidão. É possível dizer, portanto, que
essa tradição é muito mais exigente do que o liberalismo naquilo que se refere à
conceituação da liberdade. Não é à toa que Skinner afirma que a concepção civil de
liberdade foi altamente subversiva nos primórdios da Inglaterra moderna29.

A estratégia dos teóricos ingleses da liberdade cívica consistiu em se apropriar


do supremo valor moral da liberdade e aplica-lo exclusivamente a certa formas
um tanto radicais de governo representativo. Isto finalmente permitiu-lhes
estigmatizar com o oprobrioso nome de escravidão vários governos – tais como
o Ancién Regime na França e o mando dos ingleses na América do Norte – que
eram amplamente vistos como legítimos e mesmo progressistas 30.

Por si só, a presença das tópicas do republicanismo cívico no vocabulário


político da Inglaterra moderna é um indício de que essa tradição não morreu na
antiguidade ou no renascimento, estando presente nos textos de inúmeros pensadores
modernos, o que demonstra o quanto é difícil delimitar de maneira mais rígida as
fronteiras entre os conceitos antigo e moderno de liberdade. Para James Harrington,
Maquiavel foi o principal responsável por essa sobrevivência na medida em que
encontrou a definição da liberdade antiga nos textos de Lívio e a legou ao mundo

28
SKINNER (op cit). p. 46.
29
Outros autores, como, por exemplo, John Pocock e Newton Bignoto destacam a importância do
humanismo cívico no debate político inglês ao longo do século XVII. Para esses autores, os escritos de
James Harrington foram fundamentais para esse debate na medida em que introduziram a ciência política
maquiavélica no cenário intelectual britânico. Para Pocock, o ―Oceana”, que é o principal texto de
Harrington, ―é uma revisão importante da teoria polìtica inglesa à luz dos conceitos tirados do humanismo
cívico e do republicanismo de Maquiavel‖, p. 388. Já para Bignoto, ―Um outro ponto importante da
leitura que Harrington fazia de Maquiavel é a adoção do modelo da República armada. Assim como para
o humanismo cívico italiano, e muito particularmente para o secretário florentino, para Harrington,
somente um povo armado e que se ocupa das coisas da guerra como de seus próprios interesses pode
pretender ser livre.‖ p. 184.
30
Idem. p. 55.

31
moderno31. É, exatamente, a combinação entre as concepções antiga e moderna de
liberdade o fio condutor da análise que eu desenvolvo nesta unidade. A combinação
entre esses dois tipos de liberdade é fundamental para os escritores que, entre os séculos
XVIII e XIX, delinearam o pensamento conservador moderno. Ao criticarem, por
exemplo, a Revolução Francesa, autores como Edmund Burke e Alexis de Tocqueville
examinaram o conceito de liberdade defendido pelos pensadores adeptos da filosofia do
direito natural e desenvolveram uma forma alternativa de tratar o assunto. Analisar com
cuidado esse tratamento conservador do problema da liberdade é fundamental para
compreensão do pensamento político de Eduardo Prado.

Ainda que jamais tenha discutido conceitualmente essas questões, o nosso autor
mobilizou as concepções civil e liberal de liberdade ao longo de sua trajetória,
combinando esses repertórios ao sabor das circunstâncias. Consigo identificar três
momentos nos quais ele utilizou de forma mais intensa o conceito ―liberdade‖ nas suas
intervenções político/intelectuais. Por isso, esta unidade está dividida em três capítulos,
sendo cada um deles dedicado a um desses momentos: no primeiro capítulo, eu examino
alguns textos de juventude de Eduardo Prado, principalmente aqueles que foram
escritos no final da década de 1870, quando ele redigia crônicas políticas para o jornal
―Correio Paulistano‖, que na época era um dos principais órgãos da imprensa paulista.
No segundo capítulo, eu analiso os textos antirrepublicanos que foram escritos e
publicados no ano de 1897, quando Prado se envolveu pessoalmente na discussão a
respeito da ―questão do habeas corpus dos monarquistas‖, que foi um dos principais
episódios do conflito entre os monarquistas inconformados e as autoridades
republicanas. No terceiro capítulo, estou interessado nos textos nos quais o nosso autor
tentou representar o Brasil através do contraponto do republicanismo americano, o que
aconteceu, especialmente, no primeiro volume das ―Viagens‖ e no livro ―A Ilusão
Americana‖.

31
Idem. p. 47.

32
Capítulo 1

As primeiras crônicas políticas de Eduardo Prado: a combinação dos repertórios civil e


liberal

Que não pense o sr João Batista Pereira que estamos aqui para fazer arruaça
contra a ordem pública. O que desejamos é a liberdade para definir por nós
mesmos os rumos de nossa atuação, liberdade que não pode ser cerceada por
quem quer que seja. E que também não pense o sr Batista Pereira e o seu séquito
liberal que nos contentamos com as simples garantias jurídicas de ir e vir, isso é
pouco para essa mocidade. Queremos mesmo as liberdades e garantias plenas de
ter opinião e não mais viver sob a situação de opressão que infelizmente amarga
a nossa amada província32. (Eduardo Prado) (Grifos Meus)

A perseguição ao camarada Magalhães Castro é a evidência inquestionável dos


tempos sombrios em que vivem os paulistas. Felizes eram os tempos das
administrações dos srs Joaquim Manoel Gonçalves de Andrade e Antônio Aguiar
Barros, quando até mesmo os adversários políticos, os mesmos que hoje se
locupletam nas altas esferas da administração provincial, podiam livremente
circular sem qualquer tipo de impedimento 33. (Eduardo Prado) (Grifos Meus)

As duas citações mostram a ferrenha militância do jovem Eduardo Prado, então


com apenas dezoito anos de idade, nas fileiras do Partido Conservador paulista. O
episódio que deu origem a ambos os trechos é o mesmo: o meeting acadêmico
organizado pelo Clube Acadêmico Constitucional no pátio da Faculdade de Direito de
São Paulo, em 11 de outubro de 1878. O objetivo dos estudantes envolvidos no ato era
protestar contra o governo provincial, que na época era chefiado por João Batista
Pereira, membro do Partido Liberal. Os jovens exigiam, entre outras coisas, completa
liberdade para as manifestações acadêmicas e o afastamento das patrulhas policiais das
instalações da faculdade e das suas intermediações.

Não é gratuito o fato de a mobilização contra o governo de Batista Pereira ter


partido do Clube Acadêmico Constitucional, que era uma agremiação ligada
diretamente ao Partido Conservador paulista. Essa ligação fazia com que o jornal
editado pelo clube, ―O Constitucional‖, encontrasse espaço privilegiado de propaganda
nas páginas do ―Correio Paulistano‖34, que era o órgão de imprensa oficial do Partido
Conservador em São Paulo.

32
―O Constitucional‖. 20 de outubro de 1878.
33
―Correio Paulistano‖. 13 de outubro 1878.
34
A história do jornal ―Correio Paulistano‖ é emblemática do cenário polìtico/partidário da Monarquia
brasileira, que durante a maior parte da existência desse regime político foi marcado pelos conflitos entre
os Partidos Liberal e Conservador. O referido periódico foi fundado em 1854 por Roberto Azevedo
Marques, com o compromisso inicial de manter independência em relação aos grandes partidos políticos.
Apesar da promessa de neutralidade partidária, sob aspecto algum o ―Correio Paulistano‖ ficou
indiferente às disputas protagonizadas por conservadores, liberais e republicanos, características das
últimas décadas de vida da Monarquia brasileira. Durante seus primeiros vinte anos de existência, o

33
O editorial de ontem da folha acadêmica ―O Constitucional‖ deu mais uma prova
do enorme talento e patriotismo dos jovens reunidos do Clube Acadêmico
Constitucional. O artigo editorial, perfeitamente escrito, defende a monarquia
como a única forma de governo capaz de felicitar o país; profliga a mudança da
situação e considera-a justamente como comprometedora da estabilidade da
monarquia e de nossas instituições35.

Tanto o Partido Conservador como o Clube Acadêmico Constitucional, assim


como as suas respectivas folhas, estavam, em 1878, em conflito aberto e declarado com
o Partido Liberal, que era situação, tanto em São Paulo como no governo central da
Monarquia. Portanto, a estreia de Eduardo Prado nos debates políticos aconteceu em um
momento no qual o seu grupo político era oposição. Os textos do jovem cronista foram
publicados em três jornais diferentes: os já citados ―Correio Paulistano‖ e ―O
Constitucional‖ e o pequeno e efêmero ―A Comédia‖, onde Eduardo Prado pôde se
aventurar pela prosa literária e pelas crônicas de costume.

De toda a extensa produção letrada de Eduardo Prado, os textos de juventude


foram aqueles que menos atraíram a atenção dos estudiosos que já se interessaram pela
trajetória desse personagem. Cândido da Mota Filho, um dos seus biógrafos, apresenta
esse perìodo como um momento no qual Eduardo Prado ―tomou seus primeiros contatos
com a academia de direito. Sua personalidade começava a apurar-se. Fazia planos, dava
opiniões , discutia teses filosóficas, escrevia nos jornais e tomava parte em sabatina nas
aulas do professor João Teodoro Xavier, sobre temas do Direito Natural‖36. Para o
biógrafo, portanto, os tempos da faculdade de direito foram fundamentais para a
formação da personalidade de Eduardo Prado. Em relação à atuação política do escritor
conservador nesse período, Mota Filho afirma que:

Eduardo, realmente, não estava ainda vinculado a uma posição política. Havia
em sua família, monarquistas, republicanos e alheios aos interesses políticos. Seu
pai não fora político e sua mãe era simpatizante do regime monárquico, ficando
apenas nas opiniões ocasionais ou na evocação de certos acontecimentos. E, nas
discussões políticas em casa, Eduardo não tomava parte. Não dava razão ao seu
irmão, conselheiro do Império, nem ao outro, deputado republicano. Suas

Correio Paulistano foi claramente republicano, fato que mudou após janeiro de 1875, quando o referido
jornal passou a ser controlado pelo Partido Liberal, o que gerou a insatisfação de alguns republicanos que,
tais como Prudente de Morais e Campos Salles, fundaram a ―Provìncia de São Paulo‖, que se tornou a
principal rival do ―Correio Paulistano‖. No dia 04 de dezembro de 1877 aconteceu mais uma mudança no
perfil polìtico/editorial do ―Correio Paulistano‖; o jornal que em seus primórdios fora republicano,
passara, repentina e bruscamente, para as fileiras conservadoras. Sobre a história político/editorial do
―Correio Paulistano‖, recomendo a leitura do livro de Lillia Schwarz. Retrato em Branco e Negro:
jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
35
Idem. 20 de outubro de 1878.
36
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 5.

34
inclinações deixavam sempre a política, muito embora atentamente observasse o
desenvolver dos acontecimentos37.

O exame dos primeiros escritos de Eduardo Prado mostra, ao contrário do que


afirma Mota Filho, uma vida política bastante movimentada e uma identidade partidária
claramente definida. Apesar de ter avançado um pouco mais na análise da atuação
política de Eduardo Prado no período aqui examinado, Sebastião Pagano, outro
biógrafo, também não se preocupou em dedicar maior atenção aos textos escritos e
publicados no final da década de 1870.

Como estudante ainda, pertenceu ao Club Constitucional e redigiu o


―Constitucional‖, ao lado de Santos Werneck e Francisco Badaró, assim como
contribuiu com a coluna ―Crônicas da Assembleia‖ para o importante jornal
―Correio Paulistano‖. Mas, fora da polìtica, fazia literatura, sem deixar ligar uma
coisa à outra, como o fez com ―A Comédia‖, que dirigiu com Valentin
Magalhães e Raul Pompeia (...) O jovem Eduardo Prado era um dos membros
mais aguerridos da juventude conservadora paulista 38.

Como os chamados ―escritos de juventude‖ não foram contemplados nas


coletâneas dos textos de Eduardo Prado que foram publicadas post morten, em 1904, o
estudo de Sebastião Pagano foi fundamental para o mapeamento da documentação
analisada neste primeiro capítulo. Sem essa biografia, dificilmente eu conheceria os
títulos dos periódicos que abrigaram os primeiros textos do personagem analisado, já
que, por algum motivo que desconheço, nem o próprio Eduardo Prado jamais fez sequer
um comentário a respeito desse momento da sua trajetória político/intelectual.

No exercício da crítica política ao governo do Partido Liberal, Prado utilizou,


com grande frequência, a ideia de ―liberdade‖, fazendo-o a partir da combinação entre
os repertórios antigo e moderno. É possível perceber essa combinação nas duas
epígrafes que abrem este capìtulo. Na posição de um dos redatores do ―O
Constitucional‖, Eduardo Prado foi um dos principais lìderes do já citado metting de
outubro de 1878, chegando mesmo a discursar na ocasião. Ao advertir as lideranças
liberais que as simples garantias jurídicas de ir e vir não eram o suficiente para acalmar
os ânimos dos estudantes ali reunidos, ele exigiu um regime pleno de liberdades, o que
envolvia, entre outras coisas, o direito de reunião sem constrangimento por parte das
forças policiais.

37
Idem. p. 32.
38
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed Cetro, 1960, pp. 14-15.

35
Ao formular a advertência nestes termos, Eduardo Prado parece afirmar que as
garantias jurídicas poderiam muito bem ser burladas pelo poder opressor, já que a
constituição vigente no momento definia a liberdade como o direito fundamental do
39
cidadão brasileiro ―de ir e vir sem constrangimentos de qualquer natureza‖ . Nesse
sentido, no diagnóstico de Eduardo Prado, a inspiração liberal da constituição de 1824
possibilitava ao governo garantir o direito à livre movimentação sem, contudo, instaurar
um verdadeiro regime de liberdades plenas. Acredito, então, que a partir das palavras de
Eduardo Prado seja possível inferir a existência da reivindicação de uma liberdade de
alcance mais amplo, uma reivindicação na qual a liberdade não é pensada apenas como
o livre trânsito. Para ilustrar a matriz conceitual do discurso de Eduardo Prado, cito um
trecho escrito por John Milton (1608-1674), que foi um importante representante do
republicanismo cìvico inglês, um ―teórico neorromano‖, nas palavras de Quentin
Skinner.

É certo que somente podem se dizer homens livres aqueles que vivem em
nações livres e que têm o poder em sim mesmos de remover ou abolir qualquer
governo supremo que lhes reduza à condição de servidão, ainda que esse
governante supremo os agrade com uma liberdade ridícula e de fachada, própria
para burlar bebês40. (Grifos Meus)

De forma alguma, eu estou supondo que Eduardo Prado é um teórico


neorromano, tal como Skinner definiu John Milton. Como disse antes, o nosso autor não
foi um teórico, mas sim um letrado combativo que teve a militância política como uma
das principais marcas da sua trajetória. Porém, percebo certa semelhança nas
formulações de Milton e Prado, principalmente naquilo que se refere ao
descontentamento com certa concepção de liberdade considerada limitada e insuficiente.
Para ambos os autores, o direito de livre trânsito é pouco para a definição do estatuto da
liberdade plena. Ao tratar a questão nesses termos, tanto Prado como John Milton estão
operando com uma concepção de liberdade que ganhou os seus contornos jurídicos mais
sólidos no Digesto romano, promulgado em 533 pelo Imperador Justiniano (483-565).
Nesse código, que é fundamental para a tradição jurídica ocidental, a liberdade de uma
pessoa consiste, essencialmente, no fato de ela não se encontrar sob o domínio de outra
pessoa. A partir disso, Quentin Skinner diz que, na tradição do direito civil romano, tal
como o Digesto coloca, ― aprendemos que todos os homens e mulheres são ou livres ou
escravos‖, sendo a escravidão ―uma instituição do ius gentium pela qual alguém é,
39
BRASIL. Constituição de 1824; art. 7.§3.
40
MILTON, J. Eikonoklastes em Complete Prose Works of John Milton. Merrit Y. Hughes (Ed). New
Havens, Conn, 1962, vol III, pp. 336-601, p. 413.

36
contrariamente à natureza, sujeito ao domìnio de outro‖. Na interpretação do historiador
inglês, essa forma de tratar o direito civil conduziu a uma noção de liberdade que,
mesmo não estando explícita no texto do código romano, define como livre o ser
humano ―que não está sob o domìnio de mais ninguém, mas é sui iuris, capaz de agir
em seu próprio direito. Do mesmo modo segue-se que carecer de liberdade pessoal
significa não ser sui iuris, mas ao contrário, estar sob o poder ou sujeito à vontade de
outra pessoa‖41.

Segundo o catálogo da biblioteca de Eduardo Prado, que, como já comentei na


introdução desta tese, foi publicado em 1916, sob a organização do livreiro Alfred
Gazeau, o nosso autor, em algum momento, adquiriu uma edição, em língua francesa,
do ―Digesto Romano‖. Segundo a classificação elaborada pelo organizador do catálogo,
o volume do ―Digesto” está inserido na rubrica ―Jurisprudência‖, junto com outros
importantes textos da tradição jurìdica ocidental, como a ―Lei das Doze Tábuas‖,
também em edição francesa, e a ―Carta Magna‖, em edição portuguesa. Não há como
saber quando Eduardo Prado incorporou o tratado basilar do direito civil romano ao seu
acervo e, portanto, não tenho condições de afirmar se, nos tempos em que estudava na
Faculdade de Direito de São Paulo, ele já tinha tido contato com esse texto. Ainda
assim, acredito que nos textos do jovem cronista seja possível identificar a presença do
repertório do direito civil romano, com a concepção de liberdade civil que lhe é
constitutiva.

Por outro lado, na segunda epígrafe deste capítulo, que está separada da primeira
por apenas sete dias, Eduardo Prado acusa o governo de Batista Pereira de perseguir o
estudante Magalhães Castro, que também era um dos redatores do ―O Constitucional‖,
ao demiti-lo do cargo de amanuense da Assembleia Provincial, em represália à sua
participação no manifesto organizado pelo Clube Acadêmico Constitucional. Para
Eduardo Prado, a demissão foi motivada por questões políticas e demonstrava que
Magalhães Castro não podia circular livremente e participar de uma manifestação
acadêmica sem sofrer punições administrativas. Ao evocar os governos dos
conservadores Joaquim Manoel Gonçalves de Andrade e Antônio Aguiar Barros, que
governaram a Província de São Paulo entre janeiro e fevereiro de 1878, Prado afirmou

41
SKINNER, Quentin. Visions of Politics. 3 vol. Cambridge: Cambridge University Press: 2002, pp. 22-
23.

37
que esses Presidentes de fato instauraram em São Paulo um regime de plenas liberdades
na medida em que não impuseram obstáculos à livre movimentação de seus adversários.
Diferente do que fez no discurso de 20 de outubro, o nosso autor definiu o estatuto da
liberdade com base apenas no direito à livre circulação, no melhor estilo liberal.
Também é possível comparar a argumentação desenvolvida por Prado na segunda
epígrafe com a teoria política de outro pensador envolvido nos debates políticos
ingleses do século XVII, Thomas Hobbes:

Mas sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer coisa que
não seja um corpo, há um abuso de linguagem; porque o que não se encontra
sujeito ao movimento não se encontra sujeito a impedimentos. Portanto, quando
se diz, por exemplo, que o caminho está livre, não se está indicando qualquer
liberdade do caminho, e sim daqueles que por ele caminham sem parar 42.

Para Skinner, a definição hobbesiana de liberdade é uma das principais matrizes


do liberalismo, que define a privação da liberdade como a situação na qual o homem
livre é ―detido por algum impedimento externo de exercer seus poderes – sua força e
sua inteligência – à vontade‖43. Pelos mesmos motivos expostos há pouco, também não
tenho o interesse de definir Eduardo Prado como um teórico do liberalismo, mas tão
somente como um ator político versado em alguns fundamentos dessa tradição e
disposto a mobilizá-los nas ocasiões oportunas. No acervo bibliográfico de Eduardo
Prado constam, também, os textos de escritores mais vinculados a essa tradição liberal,
como, por exemplo, o ―Liberdade‖, de Stuart Mill, e o ―Leviatã‖, do próprio Thomas
Hobbes, sendo os textos classificados sob a rubrica ―`Polìtica‖.

Por mais que a teoria política moderna, desde o século XIX, proponha a
existência de diferenças algo nítidas entre as liberdades civil e liberal, os textos de
Eduardo Prado, um escritor engajado nos conflitos políticos do seu tempo, demonstram
que na prática discursiva essas diferenças não são facilmente perceptíveis, o que
permitiu a combinação entre os dois repertórios. Com isso, não desejo afirmar que
Prado se valeu conscientemente dos vocabulários cívico e liberal, mas tão somente que
colocou em prática valores com os quais travou contato ao longo da sua formação.
Examino com mais cuidado a formação intelectual de Eduardo Prado ao longo desta
tese, onde discuto, também, a relação do autor com os sistemas filosóficos modernos,
como, por exemplo, o liberalismo e o positivismo.

42
HOBBES, Thomas. O leviatã. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1996, p. 146.
43
SKINNER (op cit). Hobbes e a Liberdade Republicana, p. 145.

38
Parece que quando o assunto em pauta é o governo dos seus aliados, a liberdade
liberal é o bastante para Eduardo Prado. Porém, quando se trata do governo dos seus
adversários, o nosso personagem é mais exigente e se apropria de uma noção antiga de
liberdade bastante próxima do repertório do direito civil romano. A combinação entre as
perspectivas liberal e cívica de liberdade pode ser identificada ainda em outras partes
dos escritos de juventude de Eduardo Prado, que precisam ser lidos, acredito, a partir da
inserção da sua atuação no cenário político/partidário brasileiro, que estava passando
por profundas transformações desde o final da década de 1860.

Definitivamente, já não era o mesmo o jogo político brasileiro na época da


estreia de Eduardo Prado nos debates públicos. Essa situação de oposição, de
marginalização política, seria impensada nos tempos áureos do Partido Conservador,
entre as décadas de 1840 e 1870, quando homens como Visconde de Paraná, Visconde
de Itaboraí, Visconde de Uruguai e Duque de Caxias davam as cartas na política
nacional. Há certo consenso na historiografia especializada na história política da
Monarquia brasileira a respeito da importância do início da década de 1840 para a
estabilização do regime monárquico e para a consolidação de um mecanismo eficiente
de dominação política capaz de silenciar as vozes dissonantes que, nas regiões
periféricas do território nacional, levantaram a bandeira separatista durante o período
regencial44. Ilmar Mattos, por exemplo, afirma que na ocasião do golpe da maioridade,
em 24 de maio de 1840, a ―moeda colonial‖45 começou a ser restaurada, já que as
―nações burguesas‖ passaram a ocupar o lugar outrora reservado à metrópole
portuguesa e a coroa assumiu o lugar antes ocupado pelos colonos. Nesse sentido, o
autor afirma que o golpe da maioridade, portanto, não deve ser visto como uma grande
ruptura, mas sim como uma espécie de continuidade da lógica colonial mercantil.

O aparelho centralizador de uma ―monarquia ilustrada‖ aparecia não apenas


como a mais eficaz maneira de se evitar os perigos e sobressaltos de uma
Revolução, como também se apresentava como a melhor possibilidade de
alcançar os ideais máximos da prática ilustrada: a beneficência e o bem-estar46.

44
É possível citar como exemplos dos estudos afinados com essa interpretação tanto os já considerados
clássicos de Sérgio Buarque de Hollanda, José Murilo de Carvalho e Ilmar Rohloff de Mattos como
aqueles mais recentes de Marcelo Basile.
45
Ilmar Mattos propõe que a relação colonial seja pensada como uma moeda, na qual ―de um lado, a
―cara‖, ou a face metropolitana, que se apresenta por meio de reino ou do Estado Moderno, e do outro, a
―coroa‖, ou a face colonial, na forma da região, face geralmente oculta, impossìvel de ser pensada
isoladamente da primeira, mas guardando também existência própria, um processo particular que não se
restringe à mera reprodução da história metropolitana ou dos sucessos de outra região qualquer.‖ p. 32.
46
MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004, p. 84.

39
Para Ilmar Matos, o funcionamento pleno desse aparelho político destinado a
consolidar essa monarquia ilustrada pode ser situado entre 1840 e 1870, no período que
ele chama de ―Tempo Saquarema‖, quando o consenso entre a elite polìtica brasileira
esteve pautado no objetivo de garantir a continuidade dos monopólios acumulados
durante o período colonial.

Nesses termos, e somente nesses termos, a garantia da unidade do império se


constituía na garantia de uma continuidade também. O caráter de permanência
que a Monarquia encenava simbolizava a continuidade dos monopólios que se
constituíram havia muito47.

José Murilo de Carvalho também acredita na existência de um consenso entre as


elites brasileiras no período compreendido entre 1840 e 1870. Para o autor, esse
consenso se explica em parte pela homogeneidade ideológica dos grupos dirigentes em
virtude da submissão desses quadros ao mesmo treinamento político/administrativo nas
cadeiras do curso de Ciências Jurídicas ministrado na Universidade de Coimbra.

Valores e linguagens comuns também tornaram possível um acordo básico sobre


a forma da organização do poder. Houve tendências mais ou menos
centralizantes, mais ou menos democráticas, mais as divergências não iam além
dos limites estabelecidos pela manutenção da unidade nacional, pelo controle
civil do poder e pela democracia limitada dos homens livres 48.

A definição da década de 1840 como um momento fundamental para a


construção do Estado brasileiro e consolidação da unidade territorial sob a égide do
sistema político monárquico pode ser encontrada, também, em estudos mais recentes e
produzidos por uma geração de historiadores que foi formada a partir da leitura dos
textos de autores como José Murilo de Carvalho e Ilmar Mattos, como, por exemplo,
Marcelo Basile. Ao analisar o período regencial (1831-1840), esse autor se debruça
sobre as memórias que foram construídas ao longo do Segundo Reinado a respeito dos
anos em que o trono brasileiro esteve vago. Para Basile, na perspectiva conservadora,
que encontrou em lideranças como Justiniano José Rocha (1812-1862) e Paulino José
Soares de Souza, o Visconde de Uruguai (1807-1866), os seus principais representantes,
os anos da regência foram marcados pelo ―excesso de liberdade, fraqueza do governo,
insuficiência das leis, instabilidade das instituições, descentralização política e
radicalismo dos grupos de oposição‖ 49. Já na perspectiva das lideranças liberais, como

47
Idem, p. 103.
48
CARVALHO, José Murilo de. José Murilo de. A construção da ordem/O teatro das sombras. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 42.
49
BASILE, Marcelo. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In. GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. pp. 53-119. p. 55.

40
Francisco de Salles Torres Homem (1812-1876) e Theophilo Otoni (1813-1872), a
memória das regências ganhou contornos mais positivos, sendo o período considerado
como ―a singular fase de triunfo das liberdades necessárias ao progresso da nação;
momento que teria sido abortado a partir da ascensão do ―regresso‖‖ 50. Naquilo que se
refere à década de 1840, Basile também destaca a existência de um consenso por parte
das elites políticas em torno da necessidade de reduzir os conflitos internos a esses
grupos, que estavam atemorizados pela experiência regencial, considerada anárquica.
Nas palavras do autor, ―essa vivência e esse teor, transportados para a memória
nacional, tiveram papel fundamental na relativa homogeneização ideológica da elite
política do Segundo Reinado, no estabelecimento do tempo saquarema e, enfim, nos
rumos doravante seguidos pela polìtica imperial‖ 51.

Já não mais existiam o consenso e a homogeneização na época em que Eduardo


Prado começou a escrever a coluna ―Crônicas da Assembleia‖ no jornal conservador
―Correio Paulistano‖, o que aconteceu em fevereiro de 1879. O tabuleiro do jogo virou
em 05 de janeiro de 1878, quando o imperador, sob os protestos das lideranças
conservadoras, demitiu o gabinete ministerial presidido pelo Duque de Caxias (1803-
1880) e convocou o liberal João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu (1810-1926) para
organizar o novo ministério. O ato imperial, que tanto desagradou o Partido
Conservador, pode ser mais bem compreendido se inserido no cenário de
desestabilização partidária, que começou com a crise ministerial de 1868 e que teve a
fundação do Partido Republicano, em 1870, como um dos seus principais
desdobramentos. Sérgio Buarque de Hollanda é um dos autores que defendem a
hipótese de que a recomposição partidária de julho de 1868, que culminou coma queda
do gabinete ministerial presidido por Zacarias de Góis e Vasconcelos (1815-1877), que
ficou conhecido como o ―gabinete progressista‖ 52, e a ascensão do gabinete ministerial

50
Idem.
51
Idem, p. 99.
52
De acordo com a análise desenvolvida por Sérgio Buarque de Hollanda, a expansão do crédito e as
transformações no sistema financeiro na década de 1850 transformaram os costumes políticos. Foi nesse
momento que o Imperador D. Pedro II, em setembro de 1856, convocou o então Conde de Caxias para
presidir o primeiro dos seus três gabinetes ministeriais, que durou até maio de 1857. Para o autor, Caxias
não conseguiu dar continuidade ao programa da conciliação que havia sido tão bem desenvolvido pelo
recém-finado Marquês de Paraná (1801-1856). Nesse sentido, o gabinete Caxias desestabilizou a coesão
do Partido Conservador, o que ficou claro quando José Antônio Saraiva (1823-1895) e Antônio Coelho de
Sá Albuquerque (1821-1868) abandonaram o Ministério. ―Era manifesto agora o malogro da tentativa
empreendida pelo Marquês de Caxias no sentido de uma unificação dos vários matizes do Partido Liberal
oriundo do regresso visando, talvez, numa segunda etapa, absorver os liberais mais transigentes‖. p. 81.
Sérgio Buarque de Hollanda afirma que o resultado da estratégia de Caxias foi o inverso: os

41
presidido pelo Visconde de Itaboraí (1802-1872), marcou o início da série de crises
institucionais que ajudariam a corroer o Estado monárquico. Para Sérgio Buarque de
Hollanda,

A substituição do ministério, tal como foi feita, além de deixar claros o artifício e
a burla em que todo o sistema assentava, dissipou as esperanças daqueles que
achassem viável uma amálgama de elementos tão díspares. Apanhados de
supetão pela extraordinária desenvoltura de que o rei se mostrou capaz, ao fazer
o uso dos desmedidos poderes de que efetivamente dispunha, os [liberais]
históricos e os progressistas renunciaram, ao menos no âmbito parlamentar, às
suas divergências, para cerrarem fileira em volta do estadista que os caprichos de
São Cristóvão acabavam de sacrificar tão duramente 53.

O retorno dos conservadores ao poder, com a formação do gabinete Itaboraí,


acentuou mais ainda a tensão entre as elites políticas, o que levou à outra ruptura, dessa
vez dentro do Partido Liberal: Zacarias de Góes, Nabuco de Araújo (1813-1878) e José
Bonifácio, o moço, (1827-1866) publicaram em 1869 o manifesto ―Ou a Reforma ou a
Revolução‖, que deixou claro a pressão que o ―Novo‖ Partido Liberal faria em pró das
reformas na Monarquia brasileira54. Os ―novos‖ liberais se distinguiam da ala mais
radical do antigo Partido Liberal, que insistia em expandir a prática política para além
das fronteiras parlamentares. Para Ângela Alonso, foi por obra desses ―radicais‖ que
surgiu, em 1870, o Partido Republicano, que tinha a proposta de representar uma
alternativa ao status quo imperial55. A partir de então, as relações entre as forças
políticas, agora aglutinadas em três partidos, seriam especialmente conflituosas, sendo a
intervenção imperial de janeiro de 1878 um exemplo desses conflitos.

Analisando as três últimas décadas de vida da Monarquia brasileira, o


historiador Ricardo Salles afirma que a transição entre os anos 1860 e 1870 foi marcada
pela mudança de gerações políticas, o que, segundo o autor, constituiu importante
elemento no cenário da crise das instituições monárquicas. Caxias era um dos poucos
veteranos do tempo saquarema ainda vivo no final da década de 1870 e foi contando
com o seu prestígio político que o Imperador aceitou a indicação do Visconde de Rio

conservadores insatisfeitos gravitaram para o outro lado, dando origem à coligação partidária que ficou
conhecida como ―Liga Progressista‖, que foi chefiada por Zacarias de Góis e Vasconcelos. Ver
HOLLANDA, Sérgio Buarque. HOLLANDA, Sérgio Buarque. Capítulos de História do Império. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.
53
Idem. p. 146.
54
CARVALHO, José Murilo de. O teatro das sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2006.
55
ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil – Império. São Paulo:
Paz e Terra, 2002.

42
Branco (1810-1880), outra importante liderança conservadora, que em junho de 1875
recomendou o nome do velho soldado para substituí-lo na chefia do governo.

Como senador conservador de maior prestígio e herói da vitória contra o


Paraguai sua convocação para o comando do gabinete visava recompor as
relações do Estado com a Igreja Católica, abaladas pelo enfrentamento dos
bispos com Rio Branco, que o precedera como Presidente do Conselho de
Ministros. Visava também recompor as bases do próprio Partido Conservador,
rachado em torno da aprovação da Lei do Ventre Livre, conduzida a ferro e fogo
pelo mesmo Rio Branco contra a oposição tenaz dos representantes fluminenses,
paulistas e mineiros do partido56.

Contudo, já estavam bastante desgastados tanto o prestígio político de Caxias


como a capacidade do Partido Conservador em comandar um arranjo institucional
fundado no consenso entre as elites políticas. O gabinete Caxias caiu em janeiro de
1878, quando, após dez anos de ostracismo, os liberais voltaram ao poder. A reação do
Partido Conservador foi de insatisfação, como podemos observar no texto de um jovem
cronista que naqueles dias tinha o seu primeiro texto publicado em um grande jornal
paulista.

Em um discurso notável pela polidez e simplicidade da oratória, o ilustre sr


Martim Francisco Jr, representante da maioria, historiou os eventos de 05 de
janeiro de 1878, quando S. A. Real usou de forma ilegal as suas prerrogativas
constitucionais e dissolveu o ministério chefiado pelo ilustre Duque de Caxias 57.
(Grifos Meu)

O cronista é Eduardo Prado e o jornal é o ―Correio Paulistano‖, onde ele redigiu


a coluna ―Crônica da Assembleia‖ quase que diariamente entre fevereiro de 1879 e
novembro de 1881. Nesses textos, o autor, mirando-se no exemplo da imprensa
europeia, relatava as sessões legislativas realizadas na Assembleia Provincial de São
Paulo de forma aparentemente neutra, como se estivesse apenas narrando os debates
parlamentares, tal como se deram. No entanto, fica muito claro que, a despeito da
pretensa neutralidade, os textos em questão tinham o objetivo de fazer oposição aos
governos liberais. É exatamente isso que Eduardo Prado tenta fazer já na sua primeira
crônica, onde define como ilegal a intervenção de D. Pedro II na ocasião da demissão
do Ministério Caxias. Uma crítica dessa natureza partindo da pena de um cronista
vinculado editorialmente ao Partido Conservador é um indício de que algo havia
mudado no equilíbrio entre as forças políticas.

56
SALLES, Ricardo. As águas do Niagra. 1871: a crise da escravidão e o ocaso saquarema. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 46.
57
―Correio Paulistano‖. 14 de fevereiro de 1879.

43
Uma das principais características da doutrina jurídica na qual esteve baseada a
Monarquia brasileira foi a despolitização do Poder Moderador, que foi sempre definido
como uma competência administrativa e imparcial do ponto de vista político. Isso pode
ser percebido nos estudos jurídicos desenvolvidos por Paulino José Soares de Souza, o
Visconde de Uruguai (1807-1866), que fez do poder pessoal do imperador um dos
principais temas dos seus escritos. O autor defendia uma dimensão bem ampla desse
papel e insistiu na distinção entre o poder executivo, a faceta política da autoridade
imperial, e o poder moderador, a faceta administrativa e mais útil aos interesses
públicos na medida em que, de forma imparcial, ou seja, sem comprometimento político
de natureza alguma, tinha o dever de garantir o equilíbrio e impedir que um grupo
político específico monopolizasse o poder.

A centralização administrativa não atingiria o seu fim precípuo que é garantir a


eficiência da administração dos negócios públicos se não fosse controlada por
um poder cuja fonte é a mais completa neutralidade administrativa. É exatamente
essa a principal função de S.M. Imperial no nosso regime político e
administrativo; se colocar acima da superioridade de forma a estar imune às
clivagens que emanam no seio delas e dessa posição imaculada conduzir a
marcha do Estado, corrigindo-a e fazendo-a mudar de rumo quando for
necessário58. (Grifos Meus)

Ao definir como golpista o ato do Poder Moderador, Eduardo Prado questionou


o princípio da imparcialidade, que era fundamental para a legitimidade constitucional
desse dispositivo. De fato, as instituições não eram mais tão sólidas e o golpe militar
republicano, aplicado dez anos depois da publicação da primeira crônica de Eduardo
Prado, foi o desfecho dessa crise institucional. O mesmo Eduardo Prado, que na
primeira metade da década de 1890, se esforçou para ver restaurada a Monarquia,
chamou, em 1879, o Imperador D. Pedro II, a quem ele acompanhou na alcova, de
golpista. O comportamento político/intelectual do nosso autor variou de acordo com as
circunstâncias e analisar a dinâmica dessa performance é um dos principais objetivos
desta tese.

Eduardo Prado não esteve sozinho nas críticas ao Imperador D. Pedro II, pois
Antônio Prado, o seu irmão mais velho, principal liderança do Partido Conservador
Paulista e o dono do ―Correio Paulistano‖, também se manifestou publicamente contra a
intervenção de janeiro de 1878 e contra os governos liberais, que utilizaram de todas as

58
SOUZA, Paulino José Soares de. Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1865. p. 143.

44
armas ao seu dispor para enfraquecer o líder conservador em seu próprio nicho político.
Por isso, foi reaberto, em agosto de 1878, um processo, arquivado pela justiça imperial
desde 1859, no qual Antônio Prado e seu pai eram acusados de assassinato.

No ano de 1858, em uma das inúmeras fazendas da família Prado, aconteceu o


assassinato de Marzagão, feitor da referida propriedade. Segundo o parecer da época,
publicado na íntegra na edição de 18 de setembro de 1878 do jornal a ―Tribuna Liberal‖,
não havia provas suficientes para responsabilizar Martinho e Antônio Prado pelo
ocorrido. Porém, inesperadamente, pelo menos para Antônio Prado, surgiu, em agosto
de 1878, um novo dado que, de acordo com o desembargador Rodrigo Isidoro da
Fonseca, justificava uma nova apreciação para o caso: tratava-se do depoimento da mãe
da vítima, que acusava os réus de terem tramado o assassinato do seu filho.

Esta denúncia, que seria desprezada se a honra fosse bastante para livrar os
homens de bem dos botes da calúnia e o Imperador capaz de ser menos afeito às
influências do Partido Liberal, deu lugar a rigoroso inquérito policial, verdadeira
devassa, no qual tomaram parte o chefe de polícia da província, e o delegado do
termo de Mogy Mirim onde se dera o crime 59. (Grifos Meus)

As relações entre o Imperador e a facção paulista do Partido Conservador, que


durante décadas haviam sido marcada pela harmonia, tornaram-se, após a dissolução do
Ministério Caxias, tensas e conflituosas. Por isso, não era incomum ver escritores
vinculados ao Partido Conservador, como Eduardo Prado, criticarem de forma mais
contundente o Imperador, chegando mesmo a demonstrar certa simpatia pelos
Deputados republicanos, como podemos perceber na crônica publicada no dia 15 de
fevereiro de 1879. Ao comentar o discurso proferido pelo Deputado republicano Cesário
Nazareno, Eduardo Prado escreveu:

Depois de um estirado nariz de cera que diz que temos a carta constitucional (!)
e não vivemos em esse regime livre, o orador declara que o governo atual não
inspira confiança à democracia; se alguns republicanos saudaram o golpe de 5 de
janeiro já perceberam o quão nefasto foi o ato de Sua Alteza Real. (...) O ilustre
Deputado Republicano foi aplaudido de pé, o que foi muito justo visto o apuro
da análise e a peça oratória que apresentou a todos os presentes 60. (Grifos Meu)

Não estou sugerindo que os conservadores paulistas, e Eduardo Prado,


especialmente, tenham aderido à causa republicana. Porém, estou convencido de que no
momento em que Eduardo Prado faz a sua estreia no mundo da política partidária, os
conservadores nutriam pouca simpatia pelo Imperador e pelo tratamento dispensado

59
Jornal ―Correio Paulistano‖. 04 de outubro de 1878.
60
―Correio Paulistano‖; 15 de fevereiro de 1879.

45
pela Monarquia para com o seu partido. Isso, por si só, já serve ao menos para nuançar a
pecha de monarquista ―convicto‖, que a literatura especializada atribuiu a Eduardo
Prado.

A crônica publicada em 20 de fevereiro de 1879 é fundamental para a análise


que desenvolvo neste capítulo. O tema é o governo de João Batista Pereira.

Desde que assumiu a presidência, o sr Batista Pereira, inepto e violento, declarou


crua guerra à assembleia provincial, cujos atos resolveu anular. Não foi menos
violenta a guerra travada contra todos aqueles que ousassem exercer a natural
liberdade do cidadão em auxiliar na condução da marcha pública. Justo o Sr
Batista Pereira que se diz liberal agiu como o mais despótico dos Césares. Não se
é liberal apenas no nome, é preciso sê-lo também na demonstração de respeito ao
direito do cidadão, o proprietário respeitado que é o motor do progresso da
nação, de interferir em tudo que lhe diz respeito 61. (Grifos Nossos)

Ainda que não tenha sistematizado com o rigor digno de um teórico da política,
o nosso autor tratou, no trecho citado, o problema da liberdade nos moldes do repertório
do direito civil romano. O calor das circunstâncias e o objetivo de se opor ao governo
liberal fez com que as tópicas cívicas não fossem claramente delimitadas, estando
diluídas na argumentação de Prado. Por isso, é fundamental que a análise tente, ao
mesmo tempo, buscar os fragmentos dessas tópicas e reconstruir o palco da intervenção
do autor. Não é fortuito o fato de esses elementos cívicos terem sido novamente
mobilizados em função do ataque aos liberais. Tendo sido formado no seio de uma
importante família brasileira, Eduardo Prado foi treinado desde menino para o uso
político da palavra. A lógica desse treinamento será analisada com mais cuidado no
decorrer desta tese. Por ora, parece-me suficiente dizer que o autor tinha um senso de
circunstância providencial ao polemista político e sabia que a condição de oposição
demandava um arsenal discursivo mais forte e a concepção cívica de liberdade foi a
munição utilizada.

A hora adiantada em que escrevemos esta, obriga-nos a dar um transunto muito


imperfeito da sessão de hoje, que entretanto esteve interessantíssima, pelo debate
importante que se travou entre a maioria e a facção democrática moderna. O
tema dos debates parlamentares não poderia ser mais conveniente para o atual
momento da história da província: o regime de liberdades, ou melhor, a falta de
um regime de liberdades62.

Com essas palavras, Eduardo Prado iniciou a sua crônica publicada em 21 de


fevereiro de 1879. O autor divide os parlamentares presentes na referida sessão
legislativa em dois grupos: a maioria e a facção democrática moderna. No decorrer da

61
Idem. 20 de fevereiro de 1879.
62
Idem. 21 de fevereiro de 1879.

46
narrativa é possìvel perceber que Prado utiliza o termo ―maioria‖ para designar o grupo
dos Deputados conservadores e o termo ―facção democrática moderna‖ para designar,
ironicamente, os Deputados liberais. Penso que, nesse caso específico, o recurso da
ironia pode ser analisado tanto como uma estratégia utilizada por Eduardo Prado no
ataque ao seu grupo político rival como um indício de uma crítica à noção de liberdade
apregoada pelos seus adversários.

Lido o expediente, veio à tribuna o sr Martin Jr, um genuíno democrata


moderno, que numa sofrível peça retórica, propôs que a Assembleia
representasse ao poder legislativo sobre a conveniência de ficarem isentos do
serviço militar os cidadãos que estiverem ligados por contrato de locação de
serviços ao trabalho da lavoura. Afirmando ser um defensor da liberdade
individual, o digníssimo parlamentar afirmou que o cidadão precisa ser livre para
cuidar com tranquilidade dos seus próprios interesses. Espanta a todos os
paulistas de bom senso a forma como ilustre deputado democrata moderno
defende a liberdade do sujeito e ignora a servidão do povo, como se o povo
também não estivesse com sua liberdade em perigo sob a égide do governo de
qual S. Exc. é o mais aguerrido defensor63. (Grifos Meus)

Há inúmeros elementos presentes na citação que podem ser desdobrados em


função da compreensão do conteúdo cívico das críticas políticas que Prado fez ao
Partido Liberal, que na crônica de 21 de fevereiro foi personificado em Martin Jr. Ao
apontar a insuficiência da liberdade reivindicada pelo referido parlamentar, chamando-
o, ironicamente, de ―democrata moderno‖, Prado esboçou uma crìtica à própria
concepção moderna de liberdade. Para ele, de pouco adiantaria a ―liberdade do sujeito‖
se o ―povo‖ está submetido à servidão. É como se para o autor, o sujeito fosse
inseparável do povo, como se a parte não existisse sem o todo. Nesse sentido, na
medida em que o povo paulista era servo do governo liberal, na época comandado por
Laurindo Abelardo Pereira (1828-1885), de nada adiantaria a Assembleia Legislativa
liberar o agricultor do serviço militar obrigatório: a liberdade individual não tinha
nenhum valor frente à servidão coletiva.

Portanto, diante de um cenário geral de poucas liberdades políticas, a defesa de


Martim Jr da dispensa do trabalhador agrícola do serviço militar seria tão somente um
engodo, um lance de ―retórica sofrìvel‖, para utilizar os termos do próprio Eduardo
Prado. Guardadas as devidas particularidades que diferenciam as conjunturas políticas
do Brasil do século XIX e da Inglaterra do século XVII, mais uma vez percebo
semelhanças entre o discurso oposicionista de Eduardo Prado e a argumentação
desenvolvida pelos teóricos neorromanos ingleses, que estão sendo aqui pensados de

63
―Correio Paulistano‖. 21 de fevereiro de 1879.

47
acordo com a interpretação desenvolvida por Quentin Skinner. O historiador inglês
afirma que ―a pista para a compreensão do que esses autores querem dizer ao pregar a
liberdade de comunidades inteiras reside no reconhecimento de que eles tratam o mais
64
seriamente possìvel a antiga metáfora do corpo polìtico‖ . Skinner identifica a
metáfora do corpo político nos escritos de diversos autores ingleses neorromanos, como
Nedhan, Harrington e, principalmente, Neville, que no ―Plato Redivius”, levou mais
longe do que os outros a comparação da sociedade política com o corpo humano,
estando ambos igualmente sujeitos à possibilidade de privação da liberdade.

Essas suposições trazem consigo várias implicações constitucionais, as quais os


teóricos neorromanos quase invariavelmente endossam. Uma é que, se um
Estado ou comunidade for livre, as leis que o governam – as regras que
regulamentam seus movimentos corporais – devem ser decretadas com o
consentimento de todos os seus cidadãos, os membros do corpo político como
um todo. Na medida em que isso não ocorre, o corpo político será levado a agir
por uma vontade outra que não a sua própria, e será neste grau privado de sua
liberdade65.

As semelhanças entre a oposição conservadora de Eduardo Prado ao Partido


Liberal e a teoria política dos neorromanos ingleses do século XVII ficam ainda mais
perceptìveis na ―Crônica da Assembleia‖ de 05 de março de 1879.

Tendo vindo à tribuna para pedir informações acerca dos negócios de Mogi das
Cruzes, o ilustre sr Correa, deputado pela maioria, aproveita o ensejo para
explicar os motivos que impeliram à abstenção do Partido Conservador daquele
município. Ali, como em quase todas as localidades da província, a situação
liberal inaugurou o regime de violência e de arbítrio. O orador enumera vários
atos escândalos postos em prática pelo governo, para convencer aos
conservadores que seus esforços seriam totalmente ineficazes na contenda
liberal. De forma acertada argumenta o digno orador que a participação eleitoral
fica sem efeito quando o povo tem sua liberdade tolhida pela tirania dos
governantes66. (Grifos Meus).

Ao relatar o discurso do deputado conservador, Eduardo Prado justificou a


decisão tomada pelo diretório do Partido Conservador paulista de não mais participar
das eleições realizadas na Província de São Paulo. Para o autor, de nada adiantaria o
cumprimento do ritual eleitoral se a verdade do voto era tolhida com a violência e com
as fraudes típicas do cenário político brasileiro da época. Novamente, temos aqui a
afirmação da incompatibilidade entre a liberdade individual e a servidão do corpo
político, do povo, para utilizar o mesmo termo que Eduardo Prado. Portanto, para o
nosso autor, ainda que o eleitor paulista tivesse garantido o seu direito de ir às urnas, o

64
SKINNER, Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 31.
65
Idem. pp. 33-34.
66
―Correio Paulistano‖. 05 de março de 1879.

48
fato de o governo liberal impedir, por meios violentos e fraudulentos, a atuação da
oposição conservadora e a devida contagem dos votos anularia completamente a
liberdade do corpo político paulista.

Sendo assim, as crônicas políticas escritas por Eduardo Prado no final dos anos
1870 demonstram como o repertório do direito civil romano foi apropriado pelo nosso
autor, particularmente naquilo que se refere à definição da liberdade como a antítese da
escravidão. Os meios através dos quais o repertório do direito civil romano chegou a
Eduardo Prado não são claros para mim. Já comentei que, no acervo bibliográfico de
Eduardo Prado, é possível encontrar textos de importantes representantes da tradição
cìvica, além do próprio ―Digesto Romano‖. Porém, acredito ser necessário explorar
outra possibilidade: o tratamento que o pensamento conservador moderno deu ao tema
da liberdade pode ser importante para compreendermos melhor por que a concepção
antiga de liberdade foi tão importante para Eduardo Prado. Para Alexis de Tocqueville,
que é um dos mais importantes representantes do pensamento conservador moderno,
―os homens que têm a paixão pelos prazeres materiais descobrem, via de regra, como as
agitações da liberdade perturbam o bem estar, antes de perceber como a liberdade seve
67
para proporcioná-lo‖ . Aqui, a discussão de Tocqueville a respeito da liberdade está
subordinada à crítica que o autor faz ao individualismo moderno, que faz com que o
cidadão considere a liberdade política, pensada, também, como o direito à ampla
participação no governo da cidade, um impedimento à consolidação dos seus interesses
individuais. Na interpretação de Marcelo Jasmin, ―[para Tocqueville], a liberdade
moderna, calcada na paixão pelo bem estar, deseja e representa o fim do homem
polìtico‖68.

Alexis Tocqueville, portanto, está operando com um conceito antigo e


republicano de liberdade, o que demonstra como o conservadorismo é constituído por
diversos repertórios. Por isso, segundo Karl Mannheim, os escritores conservadores
―tendem a serem versáteis, na medida em que se utilizam de diferentes tradições de
pensamento‖ 69. Nas suas crônicas políticas, Eduardo Prado jamais citou explicitamente

67
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia: Ed. USP, 1983. pp. 147-
148.
68
JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: A historiografia como ciência política. Belo Horizonte: ED
UFMG/IUPERJ, 2005. p. 63.
69
MANNHEIM, Karl. Conservative thought. Londes: ED P&C, 1987. p. 39.

49
os textos de Tocqueville, ainda que o livro ―A Democracia na América‖ estivesse lá, no
acervo bibliográfico do nosso autor, classificado sob a rubrica ―diplomacia‖. O que
estou querendo dizer, portanto, é que a noção de liberdade cara ao direito civil romano
foi mobilizada por Eduardo Prado, quando, nas suas crônicas políticas, ele se tornou
uma das principais vozes de oposição aos governos liberais em atuação na imprensa
paulista.

No entanto, a inspiração civil da argumentação de Eduardo Prado não fez com


que os valores constitutivos da tradição liberal moderna não tenham sido apropriados
pelo nosso autor. É possìvel perceber, nas mesmas ―Crônicas da Assembleia‖, como ele
fez outro uso da ideia de liberdade, um uso mais próximo da tradição liberal do que da
tradição cívica. Nas ocasiões nas quais o nosso autor não se referiu diretamente ao
Partido Liberal e se dedicou a examinar os feitos políticos do Partido Conservador, o
tom da argumentação se tornou mais moderado, assim como os critérios para a
definição do estatuto da liberdade plena mostraram-se menos exigentes, como é possível
perceber na ―Crônica da Assembleia‖ de 07 de março de 1879. Essa crônica deixa claro
que, nas especificidades do cenário político/partidário paulista do final dos anos 1870,
não era o Partido Republicano o principal adversário dos conservadores. Para Ricardo
Salles, nesse momento, o advento da República ainda não era visto como um fato
consumado, mas sim como uma possibilidade esperada para o fim do século, para
depois da morte do velho Imperador70. Portanto, por mais que os republicanos
defendessem as mudanças na forma de governo, isso não foi o suficiente para
transformá-los no alvo dos ataques do grupo liderado por Antônio Prado. O que
aconteceu foi justamente o contrário: conservadores e republicanos se aliaram na
oposição aos governos liberais.

Lido o expediente, obteve a palavra pela ordem o sr Queiroz Telles.O orador lê e


fundamenta um projeto propondo a verba de 8:000$ para o conserto da estrada
que vai de Itatiba a Jundiaí; expõe a conveniência dessa medida e responde,
algumas vezes com chiste, aos muitos apartes que lhe são opostos,
principalmente pelo sr M. Prado Jr. Em seguida obteve urgência para também
fundamentar um projeto o sr Martinho Prado Jr. O fogoso representante de
Araras desta feita não falou em repúblicas; ao contrário, discorreu com muito
juízo sobre necessidades da nossa província, e incluiu pedindo a decretação de
uma verba de 25:000$ para construção de uma ponte sobre o rio Migi-Guasaú
para comunicação com a estrada do Ribeirão Preto. Em resposta a vários apartes,
o orador trata de sustentar a conveniência do projeto, encarecendo a produção do
município de Ribeirão Preto, que de per si pode produzir mais que toda a

70
SALLES, Ricardo. As águas do Niagra. 1871: a crise da escravidão e o ocaso saquarema. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

50
província. (Toda galeria aplaudiu efusivamente o parlamentar republicano).
(Grifos Meus)71.

Foi exatamente Martinho Prado Jr (1843-1906), chamado de Martinico, o outro


irmão de Eduardo, quem destoou do conservadorismo característico da família Prado72.
Ele compunha no final da década de 1870, junto com Campos Salles e Prudente de
Moraes, o ―triunvirato republicano‖ em ação na Assembleia Provincial paulista. Seus
discursos chamaram atenção pela vivacidade e pela agressividade com que atacavam a
Monarquia e, especialmente, as pessoas de D. Pedro II e do Conde D‘Eu. Entre 15 de
fevereiro e 23 de março, o jornal republicano ―Provìncia de São Paulo‖ publicou uma
série de críticas políticas assinadas por Martinico, que acusava D. Pedro II de
despotismo, o Conde D‘Eu de conspiração e os polìticos monárquicos de corrupção. A
despeito da militância partidária republicana do seu irmão, Eduardo Prado elogiou a sua
atuação parlamentar. A segunda parte do discurso de Martinico, que foi transcrito na
ìntegra pelo autor das ―Crônicas da Assembleia‖, aponta não apenas para a aparente
parceria entre os Partidos Conservador e Republicano, mas também para a presença de
elementos do repertório liberal na argumentação de Eduardo Prado.

Entra em 2° discussão o projeto n° 40 deste ano que transfere o dia da eleição


provincial para 15 de outubro. Fala o sr M. Prado Jr. O orador diz pouco, mas diz
bem. Há interesse público na transferência projetada, porque é conveniente que
estejam aprovadas pela câmara dos deputados todas as eleições primárias. O
projeto tem por fim obviar a imoralidade do governo que pode querer adiar as
eleições primárias das paróquias anuladas, de modo que não possam os futuros
eleitores concorrer para a eleição de deputados provinciais; e também tornar
mais saliente a subserviência do presidente, se ele quiser conformar-se com esse
plano escandaloso. A sugestão do ilustre deputado republicano lembra os
saudosos tempos da administração conservadora, quando o governo não usava de
estratagemas legais para tolhi o cidadão no pleno exercício do voto73. (Grifos
Meus)

Ao comparar o projeto de Martinico com as práticas das administrações


conservadoras passadas, o autor estabeleceu um padrão de comparação desfavorável ao
governo liberal e ao mesmo tempo tentou construir certa memória que aponta os tempos
dos governos conservadores como superiores, do ponto de vista do exercício das
liberdades políticas. O mais interessante é o critério utilizado na formulação do elogio
ao Partido Conservador: a ausência de ―tolhimento‖ do cidadão durante o processo

71
―Correio Paulistano‖. 07 de março de 1879.
72
Martinho Prado (1843-1906), chamado ao longo de sua vida de Martinico, foi voluntário na Guerra do
Paraguai, deputado pelo Partido Republicano entre 1878 e 1880 e um dos mais bem sucedidos produtores
de café do século XIX, sendo um dos fazendeiros pioneiros naquilo que se refere ao estímulo da
imigração italiana. Ver Darrel Levi (op cit).
73
Idem.

51
eleitoral. Não há aqui as exigências de ampla liberdade do corpo político que
encontramos nas crônicas nas quais Prado se refere diretamente aos governos do Partido
Liberal.

Sem oferecer ao leitor maios informações a respeito dos tão elogiados tempos
das administrações conservadores, Eduardo Prado limita-se a dizer que esses governos
não tolhiam o livre trânsito do eleitor durante o processo eleitoral, como se essa
ausência de impedimento fosse o suficiente para definir o cidadão como um homem
livre. Acredito que a teoria política de Hobbes nos oferece uma importante chave de
leitura para conservadorismo do jovem cronista do jornal ―Correio Paulistano‖. De
acordo com os já citados estudos de Skinner, para Hobbes, a ideia de que é possível
viver como um homem livre sob o poder de um governo instituído é uma contradição
aporética, já que o pensador inglês afirma que não é possível ser livre no Estado social,
que deve a sua existência ao objetivo de restringir a liberdade natural dos homens.
Porém, Skinner afirma que Hobbes admite que a vida social permitiu aos seres humanos
a experimentação de um outro tipo liberdade: a liberdade típica dos súditos, que aceitam
abrir mão da liberdade natural para viverem em paz74.

Hobbes é assim levado a duas conclusões contrastantes sobre a liberdade dos


súditos, alinhando plenamente a sua doutrina com a de outros monarquias como
Digges, Bramhall e Filmer. Primeiro, ele insiste em que o alcance de sua
liberdade civil depende basicamente do ―Silêncio da Lei‖. Se a lei deseja que
você aja ou abstenha-se de agir de alguma coisa maneira específica, ela vai
cuidar de aterrorizá-lo à conformidade. Mas a conclusão contrastante de Hobbes
é que, desde que não haja lei à qual sua vontade deva se conformar, você
permanece em plena posse de sua liberdade como súdito 75. (Grifos Meus)

Certamente, Eduardo Prado leu Hobbes em algum momento da sua formação


acadêmica, apesar de eu não ter encontrado nenhuma referência direta. Porém, isso não
significa que ele tenha aplicado, deliberadamente, a teoria política hobbesiana nas
polêmicas que travou com o Partido Liberal no final da década de 1870. Contudo,
acredito que ele tenha se valido da mesma concepção de liberdade, que segundo
Skinner, é uma das peculiaridades do pensamento político liberal, para qualificar os
governos dos seus correligionários como defensores das liberdades individuais.

Na crônica publicada em 09 de março, Prado voltou a mencionar os anos nos


quais o Partido Conservador havia governado a Província de São Paulo, que mais uma

74
SKINNER, Quentin. Hobbes e a Liberdade Republicana. São Paulo: Ed. UNESP, 2010. p. 87.
75
Idem. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 21.

52
vez foram definidos como momentos de respeito às liberdades políticas dos cidadãos
paulistas. Como costumava fazer nas suas crônicas, o autor narrou os debates
parlamentares, atribuindo falas aos Deputados, que quase sempre eram colocados em
posição de conflito.

Prevalecendo-se da ordem do dia, tomou a palavra o sr Prudente de Moraes que,


depois de ter fundamentado um projeto sobre a abolição de loterias, leu uma
indicação para que a assembleia representasse ao corpo legislativo sobre limites
da província com a de Minas.O distinto membro do triunvirato republicano fez
um luminoso discurso para provar que a Serra da Mantiqueira e o Rio Sapucaí
são as divisas naturais e legítimas das duas províncias, e que a de Minas está na
posse usurpada de parte considerável do território paulista.À vista do
consciencioso e aprofundado estudo que fez o ilustrado representante dos
documentos históricos que leu à assembleia, ficaram cabalmente demonstradas
as proposições do orador, que ao terminar seu importantíssimo discurso, foi
aplaudido e felicitado pelos deputados presentes, a exceção da bancada liberal,
que não sabe apreciar as grandes inteligências. O ilustre deputado [liberal]
Martins Jr, que parece não conhecer a virtude do silêncio balbuciou seis ou sete
palavras inaudíveis contra o pronunciamento do dr Prudente de Morares, nada
que fosse digno de nota e nem capaz de ofuscar o brilho da peça retórica do
orador republicano76.

Em nenhuma das ―Crônicas da Assembleia‖, Eduardo Prado narrou uma disputa


retórica travada entre parlamentares vinculados aos Partidos Conservador e
Republicano. Invariavelmente, os embates se davam ou entre conservadores e liberais
ou entre republicanos e liberais, sendo que na narrativa de Prado, os liberais eram
sempre derrotados, o que reforça o argumento de que pelo menos na São Paulo do final
da década de 1870, o alinhamento político entre os partidos não atendia à dicotomia
Monarquia X República, mas sim à polarização governos liberais X oposição
conservadora/republicana.

Toma a palavra em nome da facção democrata moderna [Partido Liberal] o sr


Martim Jr. O orador diz que um juiz de paz receiou que sete praças sitiassem
uma cidade, que durante as eleições os conservadores do Bananal mandaram vir
capoeiras da corte, e que afinal fizeram acordo.

O sr A. Nogueira: - Foi um ato de humanidade. (apoiados).

O sr Martim Jr: - Mas perderam o direito de falar.

O sr Celidônio:- Não apoiado. Cederam em consequência do abuso dos liberais.


(apoiados).

O orador diz mais algumas apalavras e assenta-se bruscamente, porque o sr


presidente ponderou-lhe que estava falando fora de ordem. Entrando-se na
discussão das materiais da ordem do dia fala o sr Correia, lembrou dos tempos
em que a maioria [Partido Conservador] governava legitimamente essa província

76
―Correio Paulistano‖. 09 de março de 1879.

53
e os eleitores podiam se encaminhar sem obstáculos para os sítios eleitorais 77.
(Grifos Meus)

No trecho destacado da citação, Prado novamente utiliza o argumento da


ausência de restrição ao livre trânsito dos eleitores como o principal critério para elogiar
os governos conservadores. Temos, outra vez, a noção de liberdade sendo tratada na
perspectiva e individual e moderna. De acordo com a argumentação do autor, o Partido
Conservador teria defendido a liberdade do cidadão paulista com a garantia da ausência
de impedimento à livre movimentação durante o processo eleitoral. Estamos, aqui,
diante de uma performance discursiva um tanto diferente daquelas nas quais Prado
acusava os governos liberais de tirania. Essa parece ter sido a grande característica do
conservadorismo de Eduardo Prado nos tempos da sua estreia na arena das polêmicas
político/partidárias: a filiação partidária ao Partido Conservador paulista, do qual o seu
irmão mais velho era o principal líder, e a mobilização da perspectiva antiga, e cívica,
da ideia de liberdade em função da oposição aos governos dos Partidos Liberais. Porém,
nesse exercício de oposição, Prado também se empenhou em construir uma memória
dos governos conservadores, onde nuançou o seu discurso com uma perspectiva de
liberdade individual, no melhor estilo liberal e moderno.

A combinação entre as concepções antiga e moderna de liberdade pode ser


encontrada, também, em outros momentos da trajetória político/intelectual de Eduardo
Prado, como, por exemplo, nos textos escritos no calor da ―questão do habeas corpus
dos monarquistas‖, que movimentou o cenário polìtico brasileiro no ano de 1897. A
análise desses textos mostra que a combinação entre os repertórios políticos antigo e
moderno pode ser percebida, também, em um momento no qual o nosso autor estava
diretamente envolvido nos conflitos com as autoridades republicanas.

77
Idem.

54
Capítulo 2

Os textos antirrepublicanos: a combinação entre as liberdades civil e liberal em função


do enfrentamento com as autoridades republicanas

Mas pela proibição da polícia, proibição cominatória, fortalecida pela ameaça do


emprego da violência, não estava ameaçada a liberdade dos peticionários? Não
poder entrar e estar simultaneamente com outras pessoas numa casa não é
restrição à liberdade física do indivíduo? Não é fisicamente, não é com o seu
corpo, que um indivíduo comparece a uma reunião? Não é seu corpo que é
expulso dela? Não é seu corpo que é impedido de estar num certo e determinado
lugar em certas circunstâncias? Tudo, absolutamente tudo, faz parte da liberdade
e não tão somente o engodo do ―livre ir e vir‖ que a República chama de
liberdade78. (Grifos Meus).

Não tivemos o exemplo da República francesa para citar aos que entendem que
no Brasil todos os direitos individuais encontram uma restrição no §4° do art. 90
da Constituição, e poderíamos dizer que a razão desta divergência é que,
segundo afirma e demonstra Leveleye, a República é menos favorável à
liberdade do que a Monarquia Constitucional, que no caso do Brasil jamais
apresentou os constrangimentos que hoje angustiam o cidadão brasileiro 79.
(Grifos Meus)

As duas citações foram extraídas de textos escritos por Eduardo Prado ao longo
de 1897, quando o autor estava diretamente envolvido com a ―questão do habeas corpus
dos Monarquistas‖, assunto que teve grande repercussão na imprensa da época. Ainda
que o tema tratado nos trechos seja o mesmo, acredito ser possível apontar uma suave
diferença entre eles naquilo que se refere ao uso da categoria ―liberdade‖, o que reforça,
acredito, a hipótese de que ao longo de sua trajetória, o nosso autor combinou os
repertórios políticos antigo e moderno.

A polêmica começou em janeiro de 1897, quando a polícia invadiu a casa


Augusto de Souza de Queirós, onde o Centro Monarquista costumava se reunir para
discutir as suas estratégias políticas. Na ocasião, algumas importantes lideranças
monarquistas, incluindo o dono casa, foram presas e enquadradas no §4° do artigo 90 da
constituição de 1891, que proibia como ―objeto de deliberação, no congresso, e
discussão pública, projetos tendentes a abolir a forma republicana-federativa de
governo‖80, tendo, inclusive, negado o seu pedido de habeas corpus, que foi impetrado
pelos advogados do grupo, entre os quais estava Eduardo Prado.

A historiadora Maria de Lourdes Mônaco Janotti escreveu um importante


trabalho a respeito da atuação dos monarquistas nos primeiros anos de vida da

78
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 22 de janeiro de 1897/ Coletâneas. (vol. III), p. 67.
79
PRADO, Eduardo. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo: Livraria Civilização, 1897. p. 31.
80
BRASIL. Constituição de 1891.

55
República81. A autora afirma que após a proclamação da República consagraram-se
duas versões sobre o acontecimento: o do consenso nacional e o da indiferença da
população. Porém, segundo Janoti, a análise dos fatos demonstra que

os primeiros anos republicanos caracterizaram-se pelas várias decretações de


estado de sítio, pelo arbítrio e violência como formas de resolver os
desentendimentos da classe dominante e neutralizar as manifestações das
contradições entre as diferentes classes sociais (...) o movimento monarquista
foi temido como uma constante ameaça ao regime republicano e, por isso,
consequentemente, tomaram medidas de defesa contra os chamados subversivos
do regime, isto é, os monarquistas 82.

Portanto, os monarquistas foram vistos como inimigos pelos primeiros governos


republicanos, que desenvolveram um forte aparato repressor contra o grupo. A atuação
de Eduardo Prado junto ao movimento monarquista também foi detectada por Maria de
Lourdes Mônaco Janotti, que afirma ter sido o nosso autor um dos mais importantes
monarquistas da época.

Nos ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil”, título do livro que reuniu os artigos
da ―Revista de Portugal‖, Eduardo Prado conseguiu realizar a primeira
sistematização das críticas à República brasileira, contendo já os seus escritos a
maioria dos elementos que caracterizaria todo o discurso monarquista 83.

Também Gilberto Freyre no seu livro já bastante conhecido ―Ordem e


Progresso‖ reconheceu a importância de Eduardo Prado para o movimento monarquista
durante a década de 1890 ao definir o nosso autor como ―um dos profetas da
deterioração social do Brasil em consequência da República federativa‖84. Para Freyre,
a grande contribuição de Eduardo Prado para o debate político brasileiro do período foi
referente ao tema das relações entre o Brasil e EUA, que é o assunto tratado no próximo
capítulo, onde o trabalho do antropólogo pernambucano será mobilizado com mais
cuidado. É possível, ainda, identificar outra contribuição de Eduardo Prado para o
ensaismo freyreano: o argumento de que, no Brasil, a colonização portuguesa
domesticou a hostilidade natural dos trópicos e fundou uma grande civilização moderna.
A interpretação do Brasil desenvolvida por Eduardo Prado é examinada na última
unidade desta tese.

81
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da república. São Paulo: Editora Brasiliense,
1986.
82
Idem. pp. 05-06.
83
Idem. p. 30.
84
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Editora Global: São Paulo, 2004. p. 190.

56
Não é uma das tarefas mais difíceis encontrar nos textos escritos pelo próprio
Eduardo Prado referências explícitas à sua militância política monarquista, como, por
exemplo, no artigo ―O Banquete Monarquista‖, que foi publicado no ―O comércio de
São Paulo‖ 85 em 24 de outubro de 1895:

Nós, os monarquistas, isto é, a maioria do país, interessados na economia


doméstica da família brasileira, entendemos que, depois de uma longa
experiência de seis anos, é melhor despedir a cozinheira, isto é, a República. (...)
Devemos, portanto, todos, odiar o regime político que levou a nossa pátria à
beira do abismo86.

O que precisa ficar claro, aqui, é o fato de que a invasão da casa de Augusto de
Souza de Queirós e a negação do habeas corpus aos monarquistas presos fazem parte
do histórico dos conflitos travados entre os monarquistas e os governos republicanos,
que desde os primeiros anos da República se faziam presentes no cenário político
brasileiro. Um dos primeiros capítulos desses conflitos teve lugar fora do Brasil, já em
dezembro de 1889, quando, Eduardo Prado, assinando o pseudônimo ―Frederico da S.‖,
publicou na ―Revista de Portugal‖, dirigida por Eça de Queirós, o artigo ―Os
acontecimentos do Brasil‖. Em um primeiro momento, nem mesmo os quadros
monarquistas depostos pelo golpe militar republicano, como, por exemplo, Afonso
Celso de Assis Figueiredo (1836-1912), o Visconde de Rio Preto, sabiam quem era o
cronista que tentava comprometer a credibilidade da jovem República brasileira junto à
opinião pública internacional87. Ao longo desta tese, eu analiso os textos que Prado
escreveu para a ―Revista de Portugal‖ entre dezembro de 1889 e maio de 1890, que,
posteriormente, foram reunidos sob o tìtulo ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖, pois
acredito que nesse material seja possível compreender alguns dos elementos mais
importantes do pensamento político conservador do nosso autor, além da sua para a
bibliografia especializada no tema da transição da Monarquia para a República.

85
Entre março de 1895 e novembro de 1897, Eduardo Prado foi redator e proprietário do jornal ―O
Comércio de São Paulo‖, que se tornou o órgão oficial do clube monarquista, que era um grupo formado
por personalidades comprometidas com a restauração da monarquia. Tanto Sebastião Pagano como
Cândido da Mota Filho afirmam que foi nas páginas do ―Comércio de São Paulo‖ que Eduardo Prado
desenvolveu seus textos monarquistas mais incisivos. Também Maria de Lourdes Mônaco Janotti afirma
que o ―Comércio de São Paulo‖ foi o mais monarquista dos jornais da época, sendo reaberto em 1895 por
Eduardo Prado, Afonso Arinos (1868-1916) e Couto Magalhães (1837-1898). O jornal foi empastelado
em 1897, após a morte de Moreira César na Guerra de Canudos.
86
―O Comércio de São Paulo‖. 24 de outubro de 1895.
87
Para Cândido da Mota Filho, ―Afonso Celso, ao saber que o autor dos artigos de Frederico da S. eram
de Eduardo, de pronto, escreveu a ele em linguagem entusiástica‖. FILHO, Cândido Mota. A Vida de
Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 32.

57
Em 1897, já haviam ficado para trás os momentos mais tensos desse conflito,
como, por exemplo, o ano de 1893, marcado pelas Revoltas Federalista e da Armada.
Examino com mais cuidado a atuação de Eduardo Prado nesse período nos próximos
capìtulos. Por ora, meu objetivo é analisar a ―questão do habeas corpus dos
monarquistas‖, tendo especial atenção para a forma através da qual o nosso autor
utilizou o conceito de liberdade. Ele escreveu três artigos e um pequeno livro sobre o
assunto, fazendo das páginas do seu jornal ―Comércio de São Paulo‖ um importante
veículo de defesa dos monarquistas presos: trata-se dos artigos ―A justiça da
República‖, ―O Tribunal da Justiça‖ e ―Um protesto‖, também publicados em 1904, no
terceiro volume das ―Coletâneas‖, e o livro ―Anulação das Liberdades Polìticas‖,
publicado em dezembro de 1897.

Encontrei a primeira citação que abre este capìtulo no artigo ―Tribunal de


Justiça‖, que foi publicado no jornal ―Comércio de São Paulo‖ em 22 de janeiro de
1897. É possível perceber no trecho a crítica de Eduardo Prado à liberdade política
garantida pela República, o que o autor considera um ―engodo‖. Estamos aqui diante de
uma argumentação muito semelhante àquela que vimos ter sido desenvolvida nos
escritos de juventude: a mobilização de uma concepção mais exigente de liberdade no
exercício da crítica aos adversários políticos. Já na segunda citação, que foi extraída do
pequeno livro ―Anulação das Liberdades Polìticas‖, Eduardo Prado hierarquizou a
Monarquia e a República através do critério das liberdades políticas. Para o autor, no
Brasil, a Monarquia constitucional foi mais favorável que a República naquilo que se
refere à garantia das liberdades porque jamais constrangeu o livre movimento dos
cidadãos. Portanto, aquilo que não bastava para a definição da República com um
regime livre, tornava-se suficiente para a afirmação da Monarquia como um regime de
liberdades plenas. Nesse sentido, a minha hipótese, neste capítulo, é que, no calor dos
episódios da ―questão do habeas corpus dos monarquistas‖, Prado combinou os
conceitos antigo e moderno de liberdade, o que demonstra como a relação entre esses
repertórios não é, obrigatoriamente, de exclusão.

O tema da liberdade é central para o pensamento conservador moderno, como


podemos perceber nos escritos do filósofo irlandês Edmund Burke (1729-1797), que,
nos seus escritos sobre a Revolução Francesa, nas palavras de João Pereira Coutinho,
―permitiu que o conservadorismo se autonomizasse como uma resposta
antirrevolucionária, como uma reação à noção de liberdade propagada pelos

58
88
revolucionários‖ . O texto ―Reflexões sobre a Revolução Francesa‖, que Burke
escreveu em 1791, ainda no calor da experiência revolucionária, parece confirmar como
o autor tentou combater ―o sentido individual de liberdade que os revolucionários
89
franceses transformaram na sua causa mestra‖ . No capítulo anterior, eu comentei
como Alexis Tocqueville, outro importante pensador conservador, também criticou essa
noção moderna de liberdade, que ao se fundamentar no princìpio da ―liberdade
individual‖, ―renegou toda e qualquer dimensão coletiva e pública da liberdade
republicana, transformando-se em um valor privado e destinado, tão somene, ao
conforto do sujeito‖ 90, ainda nas palavras de João Pereira Coutinho.

Nesse sentido, ao rejeitar o conceito moderno de liberdade, o pensamento


conservador teve a tendência de se apropriar no conceito antigo de liberdade, que, como
já vimos, está mais baseado no ―corpo polìtico‖ e no princìpio da capacidade de
autogoverno do ―povo‖ do que na liberdade dos indivìduos. Eduardo Prado, um dos
herdeiros do conservadorismo de Burke e Tocqueville, também usou a liberdade civil
como argumento, ora pra desqualificar os governos liberais, ora para criticar a jovem
República brasileira. No entanto, ele não foi tão rigoroso como os pais fundadores do
pensamento conservador e combinou essa liberdade republicana com a liberdade liberal,
o que demonstra que as liberdades antiga e moderna não se excluem, ao menos nos
escritos de Eduardo Prado.

A combinação entre os conceitos antigo e moderno de liberdade pode ser melhor


compreendida se analisarmos com cuidado a argumentação desenvolvida em cada um
dos trechos que servem como epígrafes deste capítulo. No primeiro, por exemplo, ao
escrever ―Não poder entrar e estar simultaneamente com outras pessoas numa casa não
é restrição à liberdade fìsica do indivìduo?‖, Prado demonstra estar preocupado com
uma dimensão estritamente individual de liberdade, o que, de acordo com importantes
estudiosos do tema, como, por exemplo, Roberto Guerra, é uma das principais
características do liberalismo moderno. Segundo Guerra:

Todo liberalismo (do ―igualitário radical‖ ao ―conservador proprietarista‖)


comunga dos seguintes princípios, mobilizando-os de modo diferenciado: 1) uma
concepção individualista frente a toda perspectiva coletivista, entendendo o

88
COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São
Paulo: Três estrelas, 2014. p. 10.
89
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 32.
90
COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São
Paulo: Três estrelas, 2014. p. 12.

59
indivíduo como um ser autossuficiente, pré-político, portador direitos e
liberdades que lhes são inerentes; 2) em concordância com o princípio acima
exposto, a submissão da política e do Estado às leis gerais que servem ao
desenvolvimento dos indivíduos; 3) isso implica a primazia das leis sobre os
homens; 4) a assunção da divisão e equilíbrio entre os poderes a fim de se evitar
o abuso de poder; 5) a preferência da democracia representativa como meio mais
adequado para garantir os princípios anteriores91. (Grifos Meus)

Por outro lado, ao final da citação, Prado diz que ―tudo, absolutamente tudo, faz
parte da liberdade e não tão somente o engodo do ―livre ir e vir‖ que a República chama
de liberdade‖, o que demonstra que a percepção de liberdade que ele defende no texto
exige algo mais do que a simples liberdade de locomoção física. O que parece estar em
jogo na ―questão do habeas corpus dos monarquistas‖ é a reivindicação do direito a
intervir na discussão pública a respeito da organização política do Estado, o que para
Prado e seus correligionários significava restaurar a Monarquia. Por isso, o direito à
livre circulação parece pouco para o nosso autor. Para Skinner, é justamente essa
reivindicação ao direito de intervenção pública uma das principais características da
liberdade civil. Como já vimos, o historiador inglês argumenta que a liberdade civil é
definida pelos republicanos romanos, pelo humanismo cívico, por Maquiavel, no
Renascimento italiano, pelos defensores da autonomia do Parlamento na Inglaterra
revolucionária por oposição à condição de escravo.

Esse ponto da teoria republicana revela sua radical diferença com o liberalismo:
enquanto este entende que a supressão da liberdade se dá enquanto permanece a
interferência, qualquer que seja ela, de modo que, findada a interferência, volto a
ser livre, para a primeira tradição a ausência de liberdade já ocorre e continua
subsistindo simplesmente na ausência de direitos, ainda que não haja
interferência alguma92.

A segunda citação pode ser encontrada no livro ―Anulação das Liberdades


Polìticas‖, que tem o objetivo de mostrar que o §4° do artigo 190 da constituição de
1891, que proibia qualquer tentativa de mudança na forma do regime político, era um
93
―absurdo jurìdico e um atentado ao regime de liberdades plenas‖ . Prado, então,
analisa a constituição de diversas repúblicas do mundo, como, por exemplo, a francesa,
a suíça e a norte-americana, e afirma que em nenhuma delas se coloca tal restrição à
―liberdade de intervenção pública dos cidadãos‖94.

91
GUERRA, Roberto. O liberalismo conservador contemporâneo. Santa Cruz de Tenertie: Universidade
de La Laguna, 1998, p. 55.
92
SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 33.
93
PRADO, Eduardo. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo: Livraria Civilização, 1897. p. 43.
94
Idem. p. 44.

60
Na tentativa de desqualificar a República, o autor utiliza diversas estratégias,
entre estas a comparação com a Monarquia, que é sempre representada como um regime
político superior, principalmente naquilo que se refere à garantia da liberdade. É
exatamente essa comparação que ele faz no trecho ao afirmar que ―a República é menos
favorável à liberdade do que a Monarquia Constitucional, que no caso do Brasil jamais
apresentou os constrangimentos que hoje angustiam o cidadão brasileiro‖. Para o autor,
a República anulava as liberdades políticas porque angustia o cidadão, o indivíduo, com
constrangimentos, o que demonstra que nesse momento a perspectiva de liberdade
mobilizada é a liberal. Portanto, quando Prado discute o tema da liberdade na
Monarquia e na República, o faz a partir de todo um esforço de argumentação que
pretendia desqualificar a República e fazer proselitismo da Monarquia. É nessa
argumentação que percebo a combinação entre as tradições liberal e civil.

Como eu já disse inúmeras vezes, Eduardo Prado não estava interessado em


discutir teorias políticas, mas sim em atuar politicamente, posicionando-se, sobretudo,
como grande adversário dos governos republicanos. Por isso, é importante deixar claro
que a discussão liberdade liberal X liberdade civil é mais uma abordagem que eu
proponho do que uma preocupação deliberada de Prado. Proponho essa chave de leitura
porque acredito que os textos desse autor precisam ser compreendidos sob o ponto de
vista da performance discursiva, o que torna fundamental a ênfase da análise na
dinâmica do uso dos repertórios antigo e moderno. Portanto, desejo mostrar que o
conservadorismo de Prado é um dos desdobramentos possíveis da modernidade, ainda
que em diversos momentos seja crítico à modernidade revolucionária. Nesse sentido,
penso ser importante dedicar alguma atenção à história da discussão liberdade liberal X
liberdade cívica, que passou a estar presente no horizonte dos estudos sobre o
pensamento político ocidental apenas na segunda metade do século XX. Com isso,
pretendo evitar o equívoco de confundir os artifícios analíticos mobilizados no meu
exercício de interpretação com a performance efetiva de Eduardo Prado.

No inìcio deste capìtulo, eu comentei brevemente como o termo ―humanismo


cìvico‖ apareceu na historiografia especializada no pensamento polìtico moderno, o que
aconteceu em 1955, na ocasião da publicação do seminal livro ―The crisis of Early
Italian Renaissance‖, de Hans Baron. Para James Hankins, o livro de Baron

fez com que os estudiosos voltaram seu interesse para a existência de uma
tradição intelectual chamada por Baron de "humanismo cívico", forjada

61
principalmente em algumas repúblicas italianas durante o Renascimento que,
retomando traços da cultura greco-romana, sublinhava a importância dos ideais
de patriotismo, de governo popular e de devoção ao serviço público 95.

Um dos aspectos mais importantes do livro de Baron foi a crítica feita a outro
texto célebre sobre o perìodo: ―A civilização do Renascimento na Itália‖, de Jacob
Burckhardt, para quem a configuração do indivíduo foi o principal legado da
Renascença para a Modernidade. Para Newton Bignotto, ―esse homem-artista,
individualista ao extremo, certo de suas potencialidades e de sua capacidade para forjar
a sua própria vida, representava, para o escritor suíço [Burkhardt], o protótipo do que
viria a ser o homem moderno‖96. Contra essa interpretação, Baron definiu a Renascença
não como ―o momento de consolidação dos regimes monárquicos ou tirânicos, nos
quais o homem encontrou sua própria individualidade, mas sim a época do surgimento
de uma vida política rica, centrada em valores próximos aos que haviam estado no
centro da existência das cidades livres do passado‖ 97.

A formulação de Baron renovou os estudos sobre a Renascença italiana, sendo


fundamental para os trabalhos desenvolvidos posteriormente por autores como John
Pocock, Quentin Skinner, Philippe Petti, Iseult Honahan e Bernard Bailyn. Como para
os dois últimos autores a discussão a respeito da república estadunidense é fundamental,
acredito ser mais apropriado abordar os seus estudos no próximo capítulo, onde discuto,
especificamente, a forma como Prado representou a Monarquia brasileira a partir do
contraste com as Repúblicas americanas. Comento ainda neste capítulo os estudos de
Pocock, Skinner e Petti. Por enquanto, julgo ser o suficiente dizer que a percepção de
que a Renascença legou a tradição da liberdade cívica para o pensamento moderno
somente se tornou disponível no nosso horizonte analítico após a década de 1950, sendo
tal formulação, portanto, estranha para Eduardo Prado. Sob forma alguma, ele definia a
si mesmo como um herdeiro da Renascença. Muito pelo contrário, o nosso autor
rejeitava essa tradição, como podermos perceber no texto ―O catolicismo, a companhia
de Jesus e a colonização do novo mundo‖, onde Prado abordou a história da colonização
do Brasil à luz da ação catequética da Companhia de Jesus. Não estou interessado nesse
capítulo na historiografia eduardiana, que será tratada no nono e último capítulo desta

95
Hankins, James. Exclusivist republicanism and the non-monarchical republic. In: Political Theory,
2010,38, p.452-482.
96
BIGNOTTO, Newton. Origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 18.
97
Idem.

62
tese. Interessa aqui, especialmente, as críticas de Eduardo Prado à renascença,
considerada ―o luxo do paganismo que quase extirpou a cristandade da face da terra‖98.

Ao narrar a biografia de Inácio de Loyola (1491-1556), Prado utilizou a


trajetória de César Bórgia99 (1475-1507) como a antítese do fundador da ordem dos
Jesuítas. Enquanto Loyola foi representado como virtuoso e abnegado, Bórgia o foi
como egoísta e ímpio,

Como o príncipe perfeito, modelo inspirador de Maquiavel. (...). Foi César


Bórgia, com todos os seus crimes, a mais alta expressou do paganismo, que, por
um momento, pareceu vencer e sobrepujar o cristianismo na renascença. Essa
corrente pagã da renascença veio morrer com ele contra os duros rochedos
hispanos, de onde devia brotar, no castelo de Loyola, a fonte da renovação
religiosa do século. A maior habilidade política daquela geração de gênios,
aquela organização, que Maquiavel admirava, sucumbira ali, sem glória 100.
(Grifos Meus)

O fato de nos escritos de Eduardo Prado a rejeição à Renascença ter sido


combinada com a perspectiva cívica de liberdade pode causar certo estranhamento, que
é logo dissipado quando percebemos que as tradições antiga e moderna não se excluem,
mas sim se interpenetram, podendo mesmo coabitarem nos textos de um mesmo autor.
Por isso, a bibliografia que priorizou a relação de continuidade entre essas duas
tradições é fundamental para o tipo de análise que proponho nesta tese. Por exemplo,
John Pocock em seu livro ―The Maquiavellian moment” aprofundou ainda mais a
sugestão de Baron de que a Renascença havia funcionado como uma ponte de acesso
que possibilitou o contato dos valores do republicanismo clássico com a modernidade.
O historiador inglês chega a sugerir que o republicanismo clássico se tornou uma
linguagem própria na modernidade, que foi retraduzida por Maquiavel, sendo depois
obscurecida pelo contratualismo anglo-saxão e retomada nos discursos dos defensores
do Parlamento inglês contra o absolutismo de Carlos I, chegando mesmo a atravessar o
atlântico e se fazer notar da linguagem dos revolucionários das treze colônias.

Já Quentin Skinner não é tão tributário a Baron como Pocock, mas mesmo assim
endossa a ideia de que a relação entre as tradições cívica e liberal precisa ser lida
também na perspectiva da continuidade. No livro ―Fundamentos do Pensamento
Polìtico Moderno‖, Skinner defende a tese de que os valores do republicanismo clássico

98
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 04). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1907. p. 18.
99
Uma importante liderança política romana nos tempos da renascença que abandonou a vida religiosa
para se dedicar à política.
100
Idem. p. 20.

63
não foram recuperados pela Renascença, já podendo ser identificados no pensamento
escolástico medieval e na tradição retórica anterior ao renascimento. Apesar da ressalva
em relação às ―origens‖ da apropriação do republicanismo cìvico, Skinner não questiona
o argumento de Baron e Pocock, que destacam a importância dessa tradição para a
modernidade. Philippe Petti foi ainda mais longe do que Skinner e Pocock e implodiu,
integralmente, a dicotomia liberdade antiga republicana X liberdade moderna liberal.
Para o autor irlandês, ―a liberdade republicana não contém uma essência em particular,
uma vez que ela se define antes pela ausência do que pela presença de algo‖101. Nesse
sentido, a ênfase no critério da ausência faz com que Petti defina a liberdade
republicana como uma ―liberdade negativa‖, o que sugere a quase ausência de
diferenças entre os conceitos antigo e moderno de liberdade. Certamente, eu não
concordo com o estabelecimento de fronteiras mais rígidas entre as liberdades civil e
liberal, como propõe Isaiah Berlin. Porém, acredito que o caminho oposto, como o
trilhado por Petti, também não é o mais adequado para a compreensão das tensões
delineiam as relações entre os vocabulários políticos antigo e moderno. Por isso, a
minha abordagem prioriza o uso dos conceitos, o que me permite identificar a existência
de duas tradições distintas que são combinadas pelo nosso autor ao sabor das
conjunturas discursivas.

Após essa breve e importante digressão, retomo o fio da análise e me debruço


sobre a atuação política intelectual de Eduardo Prado na segunda metade da década de
1890. Ainda que as autoridades republicanas tenham reprimido os monarquistas no caso
do habeas corpus, seria equivocado supor que o governo civil de Prudente de Moraes
manteve o aparelho repressor desenvolvido por Floriano Peixoto entre 1891 e 1894. O
próprio Prudente de Moraes (1841-1902), em manifesto publicado na imprensa carioca
em 16 de novembro de 1894, um dia após a sua posse, deixou claro que a militarização
do Estado não era mais necessária.

O lustro da existência, que hoje completa a República Brasileira, tem sido de


lutas quase permanentes com adversários de toda espécie, que têm tentado
destruí-la, empregando para isso todos os meios (...) essa luta foi travada pela
coligação de todos os inimigos, a vitória da República foi decisiva para provar a
estabilidade das novas instituições, que tiveram para defendê-las a coragem, a
pertinácia e a dedicação do benemérito chefe de estado, auxiliado eficazmente
pelas forças de terra e mar. Graças a Deus e aos esforços do saudoso Floriano

101
PETTI, Phillip. 1996. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford
University Press. p. 61.

64
Peixoto a República hoje navega em águas mais calmas. A tempestade passou. É
chegado o momento da liberdade e da democracia102! (Grifos Meus)

O prosseguimento da administração do novo presidente confirmou que o projeto


de desmonte do aparelho repressor florianista não ficaria apenas no plano das
promessas. Segundo Luiz Antônio Simas, Prudente de Moraes administrou as forças
armadas de forma completamente diferente de como havia feito Floriano Peixoto. O
primeiro Presidente civil da República brasileira reduziu os efetivos do Exército,
prestigiou a Brigada Policial, dando-lhe o caráter de força de segurança privada,
promoveu oficiais contrários à participação castrense na política e negou promoções aos
que dela participavam, o que desagradou profundamente os jacobinos, que haviam sido
a principal base de sustentação do governo do Marechal de Ferro103.

A sucessão presidencial marcou o fim da presença de figuras do Exército na


Presidência da República, com exceção do Marechal Hermes da Fonseca, eleito para o
quadriênio 1910-1914. Além disso, a atividade política dos militares como um todo
declinou. O clube militar, que coordenava essas atividades, ficou fechado entre 1896 e
1901104. Nos governos de Prudente de Moraes e Campos Sales radicalizou-se a
animosidade, já existente no governo de Floriano Peixoto, entre as oligarquias civis e o
republicanismo militar dos jacobinos, concentrados no Rio de Janeiro.

Para tentar resistir às oposições dos militares inconformados, a administração


civil atuou em diversas frentes. Naquilo que se refere às manifestações de indisciplina
por parte de alguns setores do Exército, o governo colocou em prática um amplo projeto
de modernização e profissionalização que teve seu ponto alto na fundação do serviço de
Estado Maior, criado pela lei n° 403, sancionada pelo Presidente Prudente de Moraes
em 24 de outubro de 1896. Esse lei previa a criação de um periódico oficial que, sob o
controle direto do Estado Maior, promoveria a ―doutrinação dos oficiais do Exército
transformando-o em uma instituição moderna e capaz de acompanhar as evoluções da
arte da guerra‖105. Esse periódico foi a ―Revista Militar‖, que circulou entre 1899 e
1908.

102
Jornal ―O Paiz‖. 16 de novembro de 1894.
103
Luiz Antônio Simas. O evangelho segundo os jacobinos: Floriano Peixoto e o Mito Salvador da
República Brasileira. Dissertação de Mestrado. PPGHIS: Rio de Janeiro, 1994.
104
Idem.
105
ESTEVES, Diniz (ORG). Documentos históricos do Estado-Maior do Exército. Edição do Estado
Maior do Exército: Brasília, 1996. Lei número 403.

65
A bibliografia especializada na Primeira República (1889-1930) é quase
unânime em apontar os dois primeiros governos civis, ocupados, respectivamente, por
Prudente de Moraes (1894-1898) e Campos Sales (1898-1902), como o momento de
consolidação de uma estratégia de dominação política que permitiu às novas instituições
navegarem em águas mais calmas. Renato Lessa, por exemplo, afirma que por meio de
uma alteração artificiosa do regimento interno da Câmara dos Deputados, assegurou-se
que a representação parlamentar de cada Estado corresponderia ao grupo regional
dominante. Ao mesmo tempo, garantiu-se maior subordinação da Câmara ao Poder
Executivo. O propósito da Política dos Governadores, só em parte alcançado, foi o de
eliminar as disputas entre as facções nos Estados, reforçar o Poder Executivo e
inaugurar a ―rotinização do poder‖ na Primeira República106. O diagnóstico de Cristina
Buarque de Hollanda é parecido:

Foi o arranjo institucional de Campos Sales que instituiu rotina política na cena
republicana e retirou-a da órbita da absoluta imprevisibilidade. O caos originário
da República estaria fadado à reprodução indefinida se legado aos instrumentos
da política liberal, incapazes de organizar o cotidiano real da vida pública. A
principal novidade política de Campos Sales foi, portanto, a de opor um
princípio de vertebração social ao ambiente desordenado e arredio às instituições
do liberalismo político 107.

Na qualidade de um atento observador dos acontecimentos, Eduardo Prado e


seus aliados do clube monarquista certamente acreditavam que não teriam tantos
problemas com a administração civil como tiverem nos governos militares. É o próprio
autor quem diz no artigo ―A República e a Liberdade de Imprensa‖:

O sr Prudente de Moraes não tem mandado fuzilar, nem, mesmo, prende gente,
como fazia o sr Floriano. É verdade. O sr Prudente de Moraes tem reintegrado
alguns professores ilegalmente demitidos. É também verdade. Hoje, temos mais
liberdades que antes, pelo menos isso, algo de bom aconteceu nesses últimos
sombrios anos108.

Porém, até mesmo os civis não estavam dispostos a arriscar as instituições


republicanas e, contrariando a tendência de ampliação das liberdades políticas, não
hesitaram em reprimir duramente o Clube Monarquista. Não foi sem surpresa que
Eduardo Prado recebeu a notícia da prisão dos seus correligionários. Diz o autor que
―inocente como criança foi o cidadão brasileiro que acreditou que o fim da ditadura
militar significaria o retorno à democracia. Cada dia que passa fica mais claro que o mal

106
Renato Lessa. A invenção da República. Rio de Janeiro: Vértice, 2003.
107
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Modos da Representação Política: o experimento da Primeira
República Brasileira. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2009.
108
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 10 de dezembro de 1895/ Coletâneas. (vol. II), p. 86.

66
da república não está nos seus governos; o mal da república está na própria república‖
109
.

No artigo ―A justiça da República‖, Prado aborda o tema do habeas corpus dos


monarquistas. O autor inicia o texto citando os artigos 01, 02, 08 e 22 da constituição de
1891, mostrando que todos eles de alguma forma protegem o direito do cidadão à
liberdade, que é tratada no código constitucional na perspectiva moderna e liberal.
Prado afirma que a constituição não legitima a ação repressora do governo republicano.
Referindo-se aos artigos citados, o autor diz que:

Não há palavras mais claras, mais convincentes, mais apropriadas, mais


eloquentes do que estas em favor dos cidadãos que ingenuamente se dirigiram
ontem ao Tribunal de Justiça. A simples leitura destas disposições
constitucionais, que consagram os direitos imprescindíveis do cidadão bastava,
noutro meio, para garantir a concessão do habeas corpus110.

Acredito que a crítica de Eduardo Prado ao governo republicano chefiado por


Prudente de Moraes na ocasião do ―caso do habeas corpus dos monarquistas‖ pode ser
desdobrada em duas partes: primeiro, o autor acusou o governo de não cumprir os
dispositivos constitucionais ao ―proibir os monarquistas de praticar um ato que é
permitido a outros concidadãos seus, civis e militares, que todos os dias exercem o
direito de reunião, reunindo-se para fins polìticos‖111. Depois, em um exercício de
crítica jurídica mais profunda, questionou a constituição vigente, principalmente o já
citado dispositivo que criminalizava as tentativas de mudança do regime político.
Percebo que em cada uma dessas críticas, Prado mobilizou uma concepção específica de
liberdade, variando a perspectiva de acordo com as exigências da argumentação. Por
exemplo, na crítica ao governo, o autor diz que

Os suplicantes foram obrigados a retirar-se de uma casa onde se achavam, e lei


alguma lhes impunha essa retirada; foram obrigados pelas ameaças formais da
polícia, nas circunstâncias descritas na petição, a não mais se reunir, e lei alguma
lhes veda que se reúnam. O tribunal decidiu, porém, que poder ir, o ser impedido
de ir a uma reunião, é um ato que não tem nada com a liberdade de locomoção,
única liberdade para a qual cabe o habeas corpus112. (Grifos Meus)

Portanto, o autor afirma ser ilegal do ponto de vista jurídico a negativa do


habeas corpus já que a constituição vigente, mais especificamente o §22 do artigo 72,
onde consta ―Dar-se-á o habeas-corpus sempre que o indivíduo sofrer, ou se achar em

109
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 22 de janeiro de 1897/ Coletâneas. (vol. III), p. 67.
110
Idem. 17 de janeiro de 1897/ Coletâneas. (vol. III), p. 37.
111
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 17 de janeiro de 1897/ Coletâneas. (vol. III), p. 38.
112
Idem. pp. 37-38.

67
eminente perigo de sofrer violência, ou cação, por ilegalidade ou por abuso de poder‖,
garante esse direito113. Analisando o texto constitucional, Eduardo Prado chega a
conclusão de que

(...) o habeas-corpus deve ser dado, quer seja pedido ao começar o


constrangimento, quer depois de já perdurar por algum tempo. Sempre quer dizer
que não há exceções, nem quanto à pessoa, nem quanto às opiniões dos
violentados, nem quanto às autoridades culpadas. Dar-se-á sempre, manda a
constituição, dar-se-á sempre, sejam quais forem os impetrantes, sejam quais
forem as autoridades a quem esse habeas corpus possa desgostar ou contrariar114.
(Grifos de Eduardo Prado)

Na sua atuação na ―questão do habeas corpus dos monarquistas‖, Eduardo Prado


chegou a explicitar as suas referências, o que ele não fez com frequência ao longo da
sua trajetória polìtico/intelectual. No artigo ―Tribunal da Justiça‖, o autor argumenta
que

É incrível que nos últimos dias do século XIX, num país que é classificado entre
as nações civilizadas, numa grande cidade como é São Paulo, num tribunal, haja
magistrados que ousem negar que há direitos individuais intangíveis e que a
liberdade de pensamento, liberdade de voto, a liberdade de reunião, a
inviolabilidade do domicílio sejam imprescriptíveis, direitos naturais como
postulou Locke. A noção desses direitos nós a haurimos no século em que
nascemos, nas escolas em que estudamos, em tudo quanto nos cercava neste país,
na nossa mocidade; mas essa noção os juízes a perderam115. (Grifos Meus)

Prado acusa a República, portanto, de não respeitar os direitos mais naturais do


homem, como a inviolabilidade do domicílio. Ao fazer referência ao jusnaturalismo de
John Locke (1632-1704), o nosso autor buscou fundamentar a sua crítica em uma das
doutrinas jurídicas mais importantes da modernidade: justamente o direito natural, tão
importante para o discurso político revolucionário e tão criticado pelo conservadorismo
moderno. Nas palavras do historiador italiano Norberto Bobbio:

Quando se deseja aprofundar o significado histórico e o valor ideológico do


jusnaturalismo, o pensamento de Locke é especialmente instrutivo. A concepção
do jusnaturalismo volta-se agora para o indivíduo e sua liberdade perante o
Estado, reservando-se espaços onde o homem estaria imune à interferência
estatal. Podemos dizer que Locke é um dos principais representantes da principal
doutrina jurídica moderna116.

Em Locke, a terminologia ―direitos naturais‖ significa, portanto, um valor


anterior à existência do Estado, um tipo de direito de alcance coletivo e irrestrito, já que
tem sua origem no próprio Estado de natureza. Portanto, essa concepção de direito

113
Idem. p. 37.
114
Idem. p. 42.
115
PRADO, Eduardo. Comércio de São Paulo. 17 de janeiro de 1897 / Coletâneas. (Vol III) p. 76.
116
BOBBIO; Norberto. Diálogo em torno da República. São Paulo: Ed. Campus, p. 78.

68
natural é diferente de qualquer outra espécie de direito, já que não fundamenta a sua
existência no princípio da autoridade do Estado, sendo, por isso, inalienável por
qualquer tipo de poder. A concepção lockeana de jusnaturalismo aborda diretamente o
indivíduo e sua liberdade perante o Estado, sendo marcada pela preocupação em definir
uma esfera da vida na qual o sujeito possa estar livre do poder soberano. Para o próprio
Locke:

Para entender o poder político corretamente, e derivá-lo de sua origem, devemos


considerar o estado em que todos os homens naturalmente estão, o qual é um
estado de perfeita liberdade para regular as suas ações e dispor de suas posses do
modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir
licença ou depender da vontade de qualquer outro homem, tendo nas paredes da
sua casa as fortalezas de sua liberdade117. (Grifos Meus)

Ao mobilizar o preceito dos direitos naturais na defesa dos direitos dos


monarquistas presos à liberdade de reunião e de inviolabilidade da casa, Eduardo Prado
sabia exatamente o que estava fazendo, sabia perfeitamente que a doutrina se prestava à
sua argumentação. Nesse sentido, mesmo em um raro momento de discussão conceitual,
o que Eduardo Prado tinha em vista era a ação política e isso fez com que ele abrisse
mão de um dos fundamentos do pensamento conservador: a crítica à tradição do direito
natural. Acredito que discussão a respeito do jusnaturalismo de Locke é fundamental
para a compreensão das particularidades do conservadorismo de Eduardo Prado,
principalmente no que se refere ao tema das relações entre o espaço público e o espaço
privado, assunto que é tratado com mais cuidado na próxima unidade, especificamente
no quinto capítulo desta tese.

A perspectiva moderna da ideia de liberdade pode ser encontrada,


especialmente, nos textos nos quais Eduardo Prado comparou a República com a
Monarquia, o que aconteceu no artigo ―Um Protesto‖, que foi publicado no ―Comércio
de São Paulo‖ em 18 de março de 1897, onde o autor dá prosseguimento aos seus
ataques contra o governo republicano presidido por Prudente de Moraes.

Os homens que então se reuniram em Itu eram escravocratas e, por ódio ao


Império libertador, fizeram-se republicanos. Era natural. O império era a
liberdade e, por isso, foram eles para a República, coisa que na América do Sul
quer sempre dizer o confisco de todas as liberdades (...) A maioria da nação tem
tolerado todos os crimes. E é coisa de espantar a rapidez com o brasileiro parece
ter se desabituado da liberdade, que, durante mais de sessenta anos, lhe dera o
Império118.

117
Idem.
118
PRADO, Eduardo. Comércio de São Paulo. 18 de março de 1897 / Coletâneas. (Vol III) pp. 08-09.

69
Temos, aqui, um dos argumentos mais característicos do monarquismo
eduardiano: a associação do republicanismo latino-americano ao despotismo. O assunto
é desdobrado com maior atenção no próximo capítulo. Mais importante, nesse
momento, é entender as estratégias discursivas mobilizadas pelo nosso autor na
comparação das experiências republicana e monarquista no Brasil. Para isso, Prado
recorreu, frequentemente, à permissividade com a qual o governo da Monarquia teria
tratado os republicanos durante a década de 1880, argumentação que ofereceu o
contraponto ideal para os seus objetivos. Já que Eduardo Prado estava envolvido
diretamente na reação à repressão dos governos republicanos à atuação dos
monarquistas, a relação do governo da Monarquia com os republicanos na década
anterior mostrou-se o recurso argumentativo perfeito para o proselitismo que ele
desejava fazer. É exatamente nesse recurso argumentativo que consigo identificar a
mobilização do conceito ―liberdade‖ nos quadros da tradição liberal.

E não venham com a pergunta: onde estavam os monarquistas, no dia 15 de


novembro? Estavam em suas casas, confiados na paz pública, a que a Monarquia
acostumara os cidadãos, havia mais de meio século, e ignoravam a imensa
perfirdia que se tramava, perfirdia que esfaqueou o sistema que sempre tratou as
oposições com condescendência119.

Eduardo Prado toca em um ponto que foi revisitado pela historiografia que anos
mais tarde iria se debruçar sobre o problema da transição da Monarquia para a
República: a ausência de reação ao golpe militar republicano, como se ninguém
estivesse disposto a lutar pelo trono de D. Pedro II. Celso Castro, por exemplo, afirma
que ―pela quantidade de pontos estratégicos visados e providências a serem tomadas,
vê-se que os golpistas imaginavam fossem encontrar uma forte resistência. Daí a
necessidade que sentiam de contar com um militar importante e respeitado pela tropa,
como Deodoro‖120. Apenas o Barão de Ladário tentou defender a Monarquia ao disparar
duas vezes contra Deodoro, sendo imediatamente contido pelas forças golpistas.

Maria Tereza Chaves Mello afirma que desde o final dos anos 1870, a
Monarquia já não era vista como um sistema político capaz de solucionar os problemas
do Brasil, o que vez com que o caminho para a República fosse facilitado por certa
concordância da opinião pública da época, concordância que se manifestou sob a forma
da não intervenção.
119
Idem.
120
CASTRO, Celso. Os militares e a república: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar ed, 1995. p. 186.

70
À monarquia, no final do Império, estava associado o atraso, o impedimento da
modernização do país, diante do que a República aparecia como solução.
Supomos, então, que a aceitação da República [e a ausência de defesa da
Monarquia] deve ser explicada por uma disposição mental ao novo regime como
decorrência da incorporação de uma nova cultura democrática e científica na
década de 1880, tomando como recorte espacial, a cidade do Rio de Janeiro em
função de sua centralidade na vida do país121.

A argumentação de Ângela Alonso é bem parecida. Interessada,


especificamente, na chamada ―geração de 1870‖, a autora alega que esse movimento
intelectual veio à luz em um momento de profundos questionamentos ao regime
monárquico.

O movimento intelectual dos anos 1870 é uma das manifestações de contestação


ao status quo imperial. Esta contestação é ampla. Tanto o abolicionismo quanto o
republicanismo têm sobreposições com o movimento intelectual, mas não se
restringem a manifestações de letrados. O abolicionismo popular incorporou
como membros efetivos indivíduos que estavam fora do universo de cidadãos do
Império, como ex-excravos122.

Ambas as autoras criticam a linha interpretativa que encontrou em José Murilo


de Carvalho o seu principal representante. De acordo com a argumentação de Carvalho,
o golpe republicano derrubou a Monarquia justamente no momento em que o regime
político comandado por D. Pedro II contava com grande apoio popular. Para o autor, a
abolição do trabalho escravo aproximou a Monarquia do povo e a afastou dos setores
sociais que de fato tinham representatividade política.

Era nítida e distância entre a representação e a opinião pública que, pela primeira
vez, se organizava e se faria visível no movimento abolicionista. A pressão
imperial em favor da abolição final coincidia com a opinião pública, embora
fosse interpretada como interferência no processo parlamentar, a mesma
acusação feita em 1871. Ironicamente, o rei, no caso a princesa, estava ao lado
da opinião do povo, perdendo com isto a legitimidade junto aos partidos e à elite
política123.

José Murilo de Carvalho afirma, então, que a intervenção militar que instituiu a
República foi o produto da ação de setores das elites políticas, incluindo aqui o alto
escalão do oficialato do Exército, que estavam insatisfeitos com a Monarquia. Portanto,
o autor acredita que a derrubada desse regime político não traduziu as verdadeiras
aspirações da população brasileira. A visão de Eduardo Prado dos acontecimentos está

121
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 11.
122
ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil – Império. São Paulo:
Paz e Terra, 2002. p. 45.
123
CARVALHO, José Murilo de. O teatro das sombras. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2006. p.
411.

71
mais próxima da explicação de José Murilo de Carvalho do que das de Maria Tereza
Mello e Ângela Alonso. Para Prado, o golpe militar republicano ―não foi condizente
com o espírito do povo brasileiro, que exultante agradecia a coroa pela confraternização
124
da liberdade de 13 de maio‖ . Referindo-se ao tratamento que a Monarquia deu aos
republicanos durante a década de 1880, Eduardo Prado disse que:

O sr Silva Jardim, no tempo da sua propaganda, assistiu a muita ceia e a muito


jantar organizados pelos republicanos. Foi entre nós o último propagandista
político que se aproveitou da ampla liberdade que o Império sempre deu ao
pensamento e à ação dos seus adversários. Se o propagandista não tivesse
perecido tão cedo e viesse ao Brasil fazer propaganda contra o sr Prudente de
Moraes, estaria a essa hora preso e sem ter reconhecido o sagrado direito do
habeas corpus125. (Grifos Meus)

Para Prado, as diferenças entre a Monarquia e a República são muito claras:


enquanto a Monarquia permitiu plenas liberdades aos seus adversários, a República
reprimiu todos aqueles que se opuseram a ela. Novamente, temos aqui alguma
semelhança entre as argumentações de Eduardo Prado e José Murilo de Carvalho. Em
um importante trabalho sobre a biografia de D. Pedro II, Carvalho assevera que

[D. Pedro II] foi acusado de excesso de tolerância com a imprensa e com a
oposição, inclusive a republicana. Nada aconteceu a Silva Jardim quando pregou
em público o fuzilamento do conde D‘Eu. Pregar o assassinato de um polìtico
em pleno gozo de seus direitos era, e continua sendo, crime em qualquer país
democrático. O imperador fora também sempre contrário a excluir os
republicanos de cargos públicos. Ele próprio empregou um republicano,
Benjamin Constant, como professor de matemática de seus netos, e não o
incomodava que este ocupasse vários cargos públicos 126.

Também nesse aspecto, Maria Tereza Mello discorda de José Murilo de


Carvalho. A respeito da liberdade de imprensa na última década da Monarquia, a autora
acredita que

É polêmico o quanto os contemporâneos sentiam como real essa liberalidade.


Em variados tipos de textos assistimos a regulares reclamações sobre certas
censuras veladas, indignação com casos de empastelamento e agressões policiais
a jornais, assim como muito se criticava os ―a pedido‖ oficiosos nos jornais
favoráveis aos governos127.

Discussões historiográficas à parte, julgo ser pertinente a sugestão de que ao


definir a Monarquia como um regime que garantiu a ―liberdade‖ das oposições, Prado
utilizou a categoria no seu sentido moderno e liberal, ou seja, a partir do princípio da

124
PRADO, Eduardo. Comércio de São Paulo. 18 de março de 1897 / Coletâneas. (Vol III) p. 13.
125
Idem. p. 15.
126
CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 208.
127
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 230.

72
livre locomoção do corpo físico. Para o autor, portanto, a Monarquia tolerou a oposição
na medida em que não impôs limitação alguma, nem policial nem jurídica, à ação dos
republicanos. Tal como fiz há pouco em relação à concepção cívica de liberdade,
acredito que também é importante dedicar alguma atenção à história da categoria
―liberdade negativa‖ na historiografia especializada no pensamento político moderno.
Esse esforço de sistematização conceitual é importante para fortalecer a hipótese que
venho desenvolvendo nesta primeira unidade, que consiste na sugestão de que ao longo
da sua trajetória político/intelectual, Eduardo Prado mobilizou a categoria ―liberdade‖
tanto no seu sentido cívico como no sentido liberal, o que demonstra a plasticidade do
conservadorismo do nosso autor.

O principal formulador do conceito negativo de liberdade foi Isaiah Berlin


(1909-1997), que, no texto ―Quatro ensaios sobre a liberdade‖, afirmou que a única
liberdade possìvel e desejável no mundo moderno é a liberdade negativa, ou seja, ―a
ausência de obstáculos que impedem minhas decisões reais, senão também ausência de
obstáculos que impedem minhas decisões possíveis, para agir de determinada maneira,
se é isso o que quero"128. De acordo com a filósofa portuguesa Elisabeth do Rosário
Mendes Silva, é possível perceber a forte influência da teoria política de Hobbes no
pensamento de Berlin.

Partindo do pressuposto hobbesiano de que os homens procuram essencialmente


segurança, em detrimento da liberdade, felicidade ou justiça, Berlin caracterizou
e justificou os regimes totalitários como a remoção da liberdade de escolha
individual. Hobbes concebeu um Estado autoritário, alegando que o único
motivo que garantia a obediência dos súbditos ao Estado passava pela protecção
de pessoas e bens129.

Berlin desenvolveu a sua teorização política em um contexto histórico


fortemente marcado pela bipolarização da Guerra Fria. O autor, então, assumiu
declaradamente o seu alinhamento com o capitalismo norte-americano e associou a
liberdade positiva ao socialismo e aos governos autoritários. Para Newton Bignotto,

O conceito de liberdade negativa de Berlin, todavia, para ser bem compreendido,


inclusive com sua ―antropologia do homem egoìsta‖, deve ser remetido a uma
tradição intelectual mais antiga a qual ele pertence. Formulado inicialmente por
Jeremy Bentham, o conceito de ―liberdade negativa‖ significa a ausência de lei e
de impedimento para minha vontade irrestrita. O filósofo utilitarista, ferrenho
crítico da Revolução Francesa e da Independência e da Revolução americanas,

128
BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Ed. UNB, p. 144.
129
SILVA, Elisabete do Rosário Mendes. Liberalismo e os preceitos da ética cosmopolita de Isaiah
Berlin. Tese de Doutorado. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2011. pp. 18-19.

73
declarava que as leis não servem para a manutenção da liberdade, produzindo
sua redução130.

Levando em consideração as análises de Elisabete do Rosário Mendes Silva e


Newton Bignotto, penso ser razoável sugerir que Isaiah Berlin sistematizou
conceitualmente a perspectiva negativa de liberdade através de um constante diálogo
com a tradição do liberalismo. Essa sistematização conceitual é fundamental no
exercício da análise do pensamento conservador de Eduardo Prado. Ainda que o meu
personagem jamais tenha explicitado teoricamente a discussão, o conceito formulado
por Berlin possibilita a compreensão do discurso político de Prado, que encontrou no
liberalismo um importante fundamento filosófico para o seu conservadorismo.

Por outro lado, a tradição do humanismo cívico, mais particularmente a


concepção positiva de liberdade, também foi mobilizada pelo nosso autor, como
podemos perceber no livro ―Anulação das liberdades polìticas‖. O autor inicia o texto da
seguinte forma:

É crime o manifestar por escritos ou discursos, a vontade de mudar, por meios


não violentos a forma do governo? É crime manifestar a mesma vontade por atos
não violentos, como reuniões públicas ou em casas particulares, sem armas, sem
perturbação da ordem131?

A partir desses questionamentos, Prado analisa o §4° do artigo 90 da


constituição de 1891, que, como já sabemos, proibia qualquer manifestação contrária à
forma republicana de governo. Ao criticar esse dispositivo, o autor desenvolve uma
reflexão jurídica claramente antirrepublicana e defende o direito da comunidade política
brasileira à ampla participação política, inclusive na deliberação a respeito da forma de
governo.

A interpretação que a República deu ao nefasto dispositivo é que os cidadãos não


podem discutir sobre a forma de governo e que não podem julgar a forma
Republicana inadequada; que não podem agir, ainda que seja pacificamente, para
mudar a forma de governo e que somente têm liberdade de pensamento e
locomoção quando não criticam a forma de governo republicana. A liberdade de
pensamento e locomoção tem limite, os limites da República 132. (Grifos Meus)

Ao criticar o dispositivo constitucional, Prado mobilizou um conceito de


liberdade abrangente o suficiente para permitir ao povo brasileiro o poder de alterar a
forma de governo e restaurar a Monarquia. Com o objetivo de fundamentar a sua

130
BIGNOTO, Newton. República dos antigos, república dos modernos. In: Revista USP, São Paulo,
n.59, p. 36-45. pp. 53-54.
131
PRADO, Eduardo. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo: Livraria Civilização: 1897, p. 01.
132
Idem. p. 07.

74
argumentação, Prado analisa outras constituições, como, por exemplo, a dos EUA, onde
―os fundadores daquela República jamais sonharam com a possibilidade dessa restrição
absurda‖ e, citando Thomas M. Cooley (1780-1864), um importante jurista
estadunidense, escreve ―o povo fez a constituição, o povo pode desfazê-la, ela é sua
criação e não existe senão pela sua vontade‖133. Essa é uma das poucas referências
positivas que Prado fez aos EUA após a proclamação da República brasileira. Antes
disso, no livro ―Viagens‖ os elogios desse tipo são mais abundantes, como mostro na
próximo capítulo.

Para demonstrar o autoritarismo da República brasileira, Prado afirma que ―a


disposição do § 4° do artigo 90 da Constituição da República não se inspirou na
134
constituição dos Estados unidos e nem da de nenhum povo americano‖ . Ao afirmar
que a constituição da República brasileira era mais autoritária do que a constituição das
Repúblicas latino-americanas, Eduardo Prado tocou em um ponto bastante sensível para
o pensamento político brasileiro, que ao longo do século XIX associou o
republicanismo latino-americano à barbárie e ao despotismo. Não foi à toa, portanto,
que ele se empenhou em examinar as constituições do México, da Argentina, da
Bolívia, da Colômbia, do Chile e da Venezuela, mostrando que em nenhuma desses
países o direito do povo em alterar a forma política foi cerceado como no Brasil.

Pode até ser que nessas Repúblicas, que são tão conhecidas entre nós pelos
pronunciamentos e pelo militarismo, sejam capazes de calar pelo assassínio
todos aqueles que tenham a ousadia de alterar a forma do governo, mas a
possibilidade não é cerceada constitucionalmente, como acontece no Brasil. Por
aqui, a República conseguiu ser ainda mais despótica do que nos vizinhos
hispano-americanos135.

Para Prado, no Brasil, a República se mostrou ainda mais despótica, despotismo


que se materializou na criminalização de qualquer tentativa, ainda que pacífica, de
mudança do regime político. Mas o que é despotismo no vocabulário político de
Eduardo Prado? Acredito ser possível encaminhar uma reflexão sobre o problema
através da análise da ideia contrária ao despotismo, ou seja, a liberdade. No livro
―Anulação das liberdades polìticas‖, o nosso autor está comprometido com a defesa da
liberdade do povo brasileiro e não apenas do indivíduo. Para ele, o governo ―tem
compromisso com o bem comum e de nada adianta a garantia da felicidade de alguns

133
Idem. pp. 13-14.
134
Idem. p. 15.
135
Idem. p. 17.

75
136
indivìduos quando o povo está oprimido e triste‖ . Percebo na argumentação de
Eduardo Prado a forte presença dos valores do republicanismo cívico, que como já
vimos ao longo desses dois capítulos, define a liberdade mais em função da categoria de
―corpo polìtico‖ do que da de ―indivìduo‖, o que faz com que a liberdade civil seja
muito mais exigente do que a liberdade liberal. Essa concepção de liberdade também se
fez presente nos escritos de outros pensadores modernos, como, por exemplo, em Jean
Jacques Rousseau (1712-1778).

Essa pessoa pública que se forma assim pela união de todas as outras recebia
outrora o nome de cidade, e recebe hoje o de república ou de corpo político, que
e chamado por seus membros de Estado quando e passivo, soberano quando e
ativo, potência se comparado a seus semelhantes. Com respeito aos associados,
eles recebem coletivamente o nome de povo, e se chamam em particular de
cidadãos como participantes da autoridade soberana, e de súditos como
submissos as leis do Estado137.

A lógica de argumentação de Rousseau é muito parecida com aquela que foi


desenvolvida por Eduardo Prado no livro ―Anulação das liberdades polìticas‖. Ainda
que o filósofo suíço não esteja entre as principais referências mobilizadas por Prado,
acredito ser possível identificar a aproximação entre os dois naquilo que se refere à
prevalência da comunidade sobre o indivíduo. O filósofo brasileiro Renato Moscateli,
autor de um importante trabalho sobre as relações entre os pensamentos políticos de
Montesquieu e Rousseau, alega que

A solução proposta por Rousseau é que a associação civil deve colocar a forca da
coletividade em defesa da pessoa e dos bens de cada um de seus membros, mas
de tal maneira que eles continuem a obedecer apenas a si mesmos a respeito da
preservação de suas próprias vidas, permanecendo assim tão livres quanto antes
do pacto social. O caminho para gerar essa forma especial de convenção passa
pela alienação completa e irrestrita de todos os direitos dos associados a
comunidade. Somente uma alienação dessa natureza, ainda mais absoluta do que
aquela proposta por Hobbes, poderia estabelecer a igualdade civil sem a qual os
termos liberdade e sociedade tornam-se mutuamente exclusivos. Ao entregar sua
pessoa e seus bens a todos, o contratante não se entrega a ninguém em particular,
isto e, a nenhum outro individuo, o que e um requisito básico da liberdade para
Rousseau138.

Na crítica à constituição de 1891, Eduardo Prado não estava preocupado com a


liberdade na perspectiva dos indivíduos, ou seja, com o direito à livre locomoção física,
como aconteceu nos artigos de jornal nos quais defendeu o direito dos monarquistas
presos ao habeas corpus. A sua grande preocupação central no livro ―Anulação das

136
Idem. p. 75.
137
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. Martins Fontes: São Paulo, 1998. p. 34.
138
MOSCATELI, Renato. Rousseau frente ao legado de Montesquieu: imaginação histórica e teorização
política. Tese de Doutorado: UNICAMP, 2009, p. 78.

76
liberdades polìticas‖ era com a liberdade do povo brasileiro, mais especificamente com
o direito da comunidade política em se autogovernar e até mesmo mudar o regime
político de acordo com a sua vontade.

Todas as vezes que uma forma de governo contrarie os fins para que foi criada, o
povo tem o direito de mudá-la ou de aboli-la, de instituir um novo governo,
baseado sobre os princípios e de organizar os seus poderes na forma que lhe
parecer mais própria, para a garantia de sua felicidade139.

Esse foi o trecho da Declaração de Independência dos EUA que Prado citou na
sua defesa do direito do povo brasileiro de mudar pacificamente a forma de governo. É
exatamente nesse ponto que identifico as diferenças entre as argumentações que Prado
desenvolveu nos artigos publicados no ―Comércio de São Paulo‖ e no livro ―Anulação
das liberdades polìticas‖. Como tentei demonstrar anteriormente, nos artigos, o autor
concentrou a sua reflexão no tema do habeas corpus, que consiste em um dos mais
fundamentais aparelhos jurídicos modernos comprometidos com a garantia das
liberdades individuais. Já no livro, Prado deslocou a argumentação da escala individual
para a dimensão coletiva, demonstrando claramente que a sua preocupação em defender
a autoridade legal da comunidade política brasileira em intervir na política, inclusive
modificando a forma de organização do governo. Em cada um desses dois momentos,
Eduardo Prado utilizou o conceito de liberdade mais adequado aos interesses da sua
argumentação, combinando, assim, os vocabulários políticos antigo e moderno, o que
acredito ter sido a grande característica do conservadorismo do autor.

Até aqui, examinei a forma como Eduardo Prado combinou as liberdades civil e
liberal em textos produzidos em momentos de grande tensão política. No primeiro
capítulo, analisei a inserção de Prado nas disputas entre os Partidos conservador e
liberal paulistas no final dos anos 1870. Neste capítulo, o tema tratado foi a participação
do personagem no ―caso do habeas corpus dos monarquistas presos‖, de 1897, que foi
um dos episódios mais importantes da história dos conflitos entre monarquistas e
republicanos nos primeiros anos da República. Proponho, agora, o estudo dos textos
onde o objetivo fundamental de Prado era discutir o problema das formas de governo,
especialmente no que tange à dicotomia Monarquia X República. Acredito que também
nesses textos a ideia de liberdade foi pensada a partir da combinação das perspectivas
liberal e civil.

139
PRADO, Eduardo. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo: Livraria Civilização: 1897. pp. 14-
15.

77
78
Capítulo 3

Os textos sobre o republicanismo americano: a representação do Brasil a partir da


definição do outro

Afinal, o Presidente da República levanta-se, abre um folheto impresso,


contendo a fala; saca do bolso do colete uma luneta de tartaruga, instituição e
traste que, usado por um presidente da República, como por S. M. o Imperador,
mostra quanto a Monarquia brasileira é republicana, e, constrangindo o nariz de
s. exc. dá-lhe à voz as mesmas nasalidades dissonantes das nossas falas do trono.
É assim armado que o Presidente [do Chile], comovido, não como um
subdelegado ao agradecer a oferta de um retrato a óleo, mas como um honrado
cidadão sem petulâncias de ator ou de eterno falador endurecido, lê a sua
mensagem140.

Não teríamos conservado por tanto tempo aquela instituição iníqua, se a maior
nação da América não tivesse tentado legitimá-la, e se, da parte escravocrata dos
Estados Unidos, não nos viesse o incentivo, se não chegasse até nós a notícia de
que se dizia e do que se fazia nos Estados Unidos para defender a escravidão141.

Os dois fragmentos foram extraídos dos textos que compõem o corpus


documental analisado neste capìtulo: o primeiro volume das ―Viagens‖ e o livro ―A
ilusão Americana‖. Nos dois trechos, Prado se debruça sobre o tema das formas de
governo, fazendo-o através da combinação entre os conceitos antigo e moderno de
liberdade. Examinar como o autor mobilizou esses repertórios no seu esforço de
representar Brasil através do contraponto do republicanismo americano é o objetivo
deste capítulo.

Originalmente, os textos do primeiro volume das ―Viagens‖ foram publicados


sob a forma de uma coluna de periodicidade semanal no jornal carioca ―Gazeta de
Notìcias‖ entre 1882 e 1886, sendo a publicação em livro datada de 1902, ou seja, um
ano após a morte do autor. Considero os textos das ―Viagens‖, que contam ainda com
um segundo volume composto pelo diário que Eduardo Prado escreveu durante a sua
viagem à Índia e à Oceania, uma das partes mais instigantes da produção bibliográfica
do nosso personagem. Sobre os relatos de viagem do amigo brasileiro, Eça de Queirós
disse que:

Prado viajou vastamente, viajou intensamente: não como vagabundo, mas como
filósofo, para quem o mundo constitui aquele livro que louva Descartes, o mais
proveitoso de folhear, ainda que o mais dificultoso de compreender, porque esse
vive, e os outros livros são almas embalsamadas (...) Prado no seu correr pelo
mundo não se limitou a contemplar a face dos homens e as pedras das cidades.

140
Idem. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 95.
141
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. pp. 166-167.

79
Prado, ao contrário, desejou penetrar no viver dos homens e no organismo das
sociedades, sendo um tipo de Heródoto brasileiro142.

Ao definir Eduardo Prado como um ―Heródoto Brasileiro‖, Eça de Queirós


investiu os textos das ―Viagens‖ de valor antropológico. Considero ser pertinente a
relação traçada pelo romancista português, já que, de fato, é possível perceber nas
referidas crônicas o esforço de Eduardo Prado em traduzir o outro, no caso a América
Hispânica, para os leitores brasileiros da ―Gazeta de Notìcias‖. De acordo com François
Hartog, a narrativa herodoteana ―tem a preocupação de traduzir o outro em termos do
saber compartilhado pelos gregos e para fazer crer no outro que constrói elabora toda
143
uma retórica da alteridade ‖ . Portanto, no meu entendimento, a sugestão de Eça de
Queirós de que Prado atuou como um ―Heródoto Brasileiro‖ é uma pista que eu
pretendo seguir neste capítulo.

Os dois biógrafos de Eduardo Prado, os já citados Cândido da Motta Filho e


Sebastião Pagano, também comentaram os relatos das ―Viagens‖. Para Motta Filho,

As impressões de suas viagens, escritas, em forma de cartas, para a Gazeta de


Notícias, de 1882 a 1886, seriam apenas notas apressadas à espera de correções
posteriores. Mas as correções não vieram. Com os anos, com algumas críticas de
Eça de Queiroz e com maior serenidade de espírito, sua prosa tornou-se mais
leve e sua adjetivação mais sóbria144.

Essa é a única referência que encontrei sobre os textos das ―Viagens‖ no


trabalho de Motta Filho, que definiu esse material como uma espécie de prelúdio dos
textos posteriores, aos quais o biógrafo atribui maior valor literário145. Já na análise de
Sebastião Pagano, o diagnóstico é ligeiramente diferente.

Podemos dizer que Eduardo Prado começou seus trabalhos literários


propriamente ditos com uma série de artigos publicados em entre 1882 e 1886 na
―Gazeta de Notìcias‖ do Rio, sobre as suas viagens pela América, e que depois
foram reunidos em volume e publicados por aquele jornal que o deu
grandiosamente como prêmio aos seus assinantes em 1902. Trata-se de uma obra
deliciosa de se ler146.

Onde Motta Filho vê um texto rudimentar e imaturo, Sebastião Pagano identifica


uma prosa agradável e sedutora. A despeito das diferenças nas abordagens, nenhum dos
dois biógrafos dedicou maior atenção ao estudo das crônicas das ―Viagens‖, tendência

142
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesyana, 1904. pp. 09-11.
143
HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. p. 38.
144
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 304.
145
Idem.
146
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p.54.

80
que foi seguida pelos estudos posteriores que se debruçaram sobre a vida e a obra de
Eduardo Prado.

A situação é bem diferente em relação ao livro ―A Ilusão Americana‖, que


certamente é um dos mais conhecidos e comentados de toda a bibliografia eduardiana.
Tendo como tema as relações internacionais entre os países americanos ao longo do
século XIX, sendo especialmente crítico à adesão dos primeiros governos republicanos
à ―Doutrina Monroe‖147, o livro foi o primeiro a ser censurado pela República brasileira.
É possível encontrar tanto nos grandes jornais paulistas da época como nos documentos
privados da famìlia Prado inúmeras menções ao aprisionamento dos exemplares do ―A
Ilusão Americana‖.

São Paulo amanheceu com as forças policiais nas ruas e à cata dos exemplares
do livro do dr Eduardo Prado. Desde cedo as carroças com centenas de livros vão
e voltam na região central da cidade, sendo todos depois queimados. Há aqueles
que dizem que existe uma ordem de prisão contra o dr Eduardo Prado 148.

No mesmo dia 08 de dezembro de 1893, dona Maria Catarina, que era esposa do
irmão mais velho de Eduardo Prado, escreveu a seu filho, Paulo Prado, uma carta na
qual relatava a ação das forças policiais.

As coisas vão de mal a pior; aqui em São Paulo estes últimos dias só se fala no
livro de Eduardo Prado e na proibição de publicação do mesmo. Assim mesmo
venderam-se 200 e tantos, o livro posto à venta de manhã e a tarde já não se
achava sequer um exemplar. Dei sorte de encontrar este que te envio na casa da
sua vó (...). Hoje cedo por volta das 04 horas da madrugada foram não sei
quantos praças da cavalaria à tipografia e fizeram um alvoroço imenso e
tomaram todos os que ainda não estavam encadernados e carregaram em
carroças como se fosse lixo. Diversas pessoas que passavam com o livro na mão,
arrancavam e ameaçavam, que se dissessem qualquer coisa seriam presas.
Quanta infâmia! Meu Deus149.

Maria de Lourdes Mônaco Janoti também aponta para a grande repercussão do


livro de Eduardo Prado no final de 1893 e no início de 1894, quando o governo de
Floriano Peixoto enfrentava as Revoltas da Armada e Federalista e reprimia
violentamente toda e qualquer manifestação de oposição.

Quanto às relações exteriores, ―A Ilusão Americana‖, de Eduardo Prado, se


constituiu no texto mais revelador do pensamento monarquista. Publicado em 4
de dezembro de 1893, momento em que o governo brasileiro buscava a

147
Foi assim que ficou conhecida a Política Externa estadunidense para a América Latina ao longo do
século XIX. Lançada em 1823 pelo presidente James Monre, o lema ―A América para os Americanos‖
traduzia a pretensão dos EUA de se tornar o grande protetor das jovens nações americanas contra o
projeto colonial europeu.
148
―Estado de São Paulo‖. 08 de dezembro de 1893.
149
Coleção ―Paulo Prado‖. Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Cax. 08. Doc. 36.

81
aproximação com os EUA visando o apoio para a defesa do regime. O livro era
contundentemente contrário à república norte-americana150.

O livro ―A Ilusão Americana‖ colocou, definitivamente, o nosso autor na mira


da Ditadura Militar republicana, que já monitorava os seus passos desde a publicação
dos artigos dos ―Fastos da Ditadura Militar Brasileira‖. O livro ―A ilusão americana‖
somente foi publicado no final de 1893, mas se formos considerar verdadeiros os relatos
de Eça de Queirós, podemos dizer que Prado já estava trabalhando nos manuscritos
desde 1891. Em uma carta enviada para a sua esposa em 17 de agosto de 1891, o
romancista português comenta o entusiasmo de Eduardo Prado com a renúncia de
Deodoro da Fonseca.

Prado está muito entusiasmado com a queda de Deodoro e não sai do gabinete há
três dias, onde incansavelmente escreve outro libelo contra a jovem República
brasileira. Dessa vez, o amigo escreve contra a aproximação da Ditadura
brasileira com os EUA. Prado ainda não me deixou ver os manuscritos, mas
tenho a certeza de que lá vem mais um ataque 151.

Luiz Felipe D‘Ávila, biógrafo de Veridiana Prado, mãe de Eduardo, confirma a


versão de Eça de Queirós de que o nosso personagem viu na crise política que resultou
na renúncia de Deodoro da Fonseca a real possibilidade de restauração da Monarquia.
Para D‘Ávila, foi nesse momento que Eduardo Prado decidiu comprar o jornal
―Comércio de São Paulo‖, empreendimento no qual contou com a ajuda financeira de
Veridiana.

Incomoda com a passividade da elite, Veridiana não só emprestou o dinheiro


para o filho comprar o ―Comércio de São Paulo‖, como ajudou a imprimir a
folha editorial do jornal. Evidentemente, o comércio atacava o governo, criticava
a polìtica econômica e a ―imoralidade‖ da República. Um jornal tão crìtico ao
regime não podia contar com muitos anúncios, mas suas periódicas crises
financeiras eram resolvidas com a injeção do dinheiro de Veridiana 152.

Foi por esses dias, final de 1891, que Prado voltou ao Brasil e começou a dirigir
o ―Comércio de São Paulo‖, que, como já vimos no último capítulo, foi o principal
jornal monarquista da época. Não foi à toa que no mesmo dia em que as forças policiais
paulistas apreenderam os volumes do ―A ilusão americana‖, a sede do ―Comércio de
São Paulo‖ foi destruìda. Para Cândido da Mota Filho, Prado estava na sua fazenda do
―Brejão‖, situada no municìpio de Araras, interior de São Paulo, quando recebeu a carta
de Bernardino de Campos, então Presidente de São Paulo, lhe avisando que o governo
150
JANOTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da república. São Paulo: Ed. Brasiliente, 1992, p.
78.
151
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987, p. 93.
152
D‘AVILLA, Luiz Felipe. Dona Veridiana: a trajetória de uma dinastia paulista. São Paulo: Editora
Girafa, 2004, p. 342.

82
federal já havia ordenado a sua prisão. O biógrafo afirma que foi por sugestão de
Teodoro Sampaio que Eduardo Prado resolveu fugir do Brasil através de uma rota
incomum, já que as autoridades políticas estavam de prontidão nos portos de Santos e
do Rio de Janeiro. A saída mais segura era o porto de Salvador e, por isso, o nosso
personagem seguiu pelo sertão da Bahia, em um dos episódios mais conhecidos da sua
biografia. Existem várias versões para a fuga de Prado, destacando-se aquelas
produzidas por biógrafos e contemporâneos.

Evitando as estradas reais, guiado pelos sertanejos baianos que conseguira,


apeou na fazenda Umbuzeiro, à margem do rio Brumado e, depois dali, onde
recebera, como disse, um descanso memorável e um acolhimento fidalgo, foi
para a fazenda Vila Nova do major Teodoro de Castro Tanajura, também a cinco
quilômetros do Livramento. Foi daí, com o auxílio do Senador Luís Viana e do
Senador José de Aquino Tanajura, dentro de um plano previamente estabelecida,
que seguiu Eduardo para Salvador para, em seguida, galgar as escadas de um
navio inglês e seguir para a Europa153.

Já na pena de José Lins do Rego, a fuga de Eduardo Prado pelo sertão baiano
ganhou contornos épicos. No artigo ―Eduardo Prado e o Baiano‖, o autor conta a versão
que teria ouvido de Paulo Prado.

Quando foi obrigado a fugir do Brasil, no tempo de Floriano, em vista de suas


opiniões monarquistas, Eduardo Prado iludiu a polícia realizando a sua fuga pelo
interior do país, em costas de cavalo. Para tanto, deixou crescer a barba e vestiu-
se de matuto e assim iniciou a penetração através do sertão. Andou dias e dias.
Tudo marchava muito bem, como o incógnito mantido. A viagem ia longa. As
barbas de Eduardo Prado, cada vez mais sujas pela poeira das estradas, o fidalgo
paulista, cada vez mais um caipira, nos trajes e no falar. E assim atingiu a Bahia.
Parou numa casa, à beira do caminho, lugar perdido do mundo. Ali, Eduardo
sentiu-se inteiramente livre da perseguição da polícia de Floriano. Era um
homem salvo. E a conversa pegou com o dono da casa. Lá para as tantas,
Eduardo notou que o homem o fixava com atenção. De repente saiu-se com esta:
- Mas, dr Eduardo, afinal de contas, o que está fazendo o senhor, nestes trajes,
por este mundão de Deus? Eduardo sentiu-se descoberto e perdido. Não tardaria,
que na cidade próxima, estivesse nas malhas da polícia. O homem, depois de
saber de tudo, prontificou-se a conduzi-lo por um caminho mais arredado da
estrada real154.

Uma década separa as crônicas reunidas no primeiro volume das ―Viagens‖ do


livro ―A ilusão Americana‖. Nesse perìodo, o abolicionismo ganhou as ruas, a ―questão
militar‖ se intensificou, a República foi proclamada e Eduardo Prado se tornou um dos
principais líderes do movimento monarquista. A análise comparativa dos dois textos
mostra perfeitamente como a proclamação da República impactou Eduardo Prado de
forma tão profunda que a sua percepção política foi claramente modificada, em especial
a sua percepção a respeito do republicanismo americano. Ao longo da década de 1880,
153
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 256.
154
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed Cetro, 1960. pp. 193-194.

83
quando Prado viajava pela América Latina, consigo perceber nos seus textos o esforço
de comparar as Repúblicas hispânicas com a Monarquia brasileira, comparação que nem
sempre foi favorável ao regime político chefiado por D. Pedro II. Identifico nesses
relatos o interesse de Eduardo Prado em observar os costumes dos governos e
sociedades hispano-americanas, dando ênfase especial à compreensão de como as
jovens nações vizinhas estavam se desenvolvendo politicamente no sentido de garantir
as ―liberdades polìticas fundamentais dos seus cidadãos‖ 155. É o próprio Eduardo Prado
quem diz que não pretende estabelecer um ―tratado cientìfico sobre as nações hispano
americanas‖, mas tão somente

julgar por impressão tudo aquilo que vimos. As nossas opiniões não têm a
pretensão de ser baseadas na análise e no estudo profundo dos indivíduos e dos
fatos; por isso, só temos opinião sobe indivíduos, sobre como eles vivem, se em
liberdade ou em cativeiro. Julgar por impressão não é um método, e, justamente
por o não ser, tem produzidos poucos erros; um bocejo interrompe sempre as
demonstrações em certos assuntos. Precedida disto, a nossa opinião se apresenta
sem pretensão. 156 (Grifos Meus)

Já no livro ―A Ilusão Americana‖, o autor analisa, detalhadamente, a história da


política externa estadunidense e aponta a mentira que, segundo ele, caracterizava o
argumento da ―fraternidade americana‖, defendido pelos EUA e aceito pela República
brasileira.

Desejamos com esse livro contar a história do continente americano mostrando


que a fraternidade americana é uma mentira; tomemos as nações ibéricas da
América. Há mais ódios, mais inimizades entre elas do que entre as nações da
Europa157.

Percebo, portanto, uma diferença fundamental entre os dois textos aqui


examinados: nos relatos das ―Viagens‖, o autor reconhece a existência de virtudes no
republicanismo americano, aceitando que, a exemplo do que acontecia no Brasil,
algumas das Repúblicas vizinhas também tinham instituições políticas virtuosas. Por
outro lado, no livro ―A Ilusão Americana‖, Prado se esforça em demonstrar como na
América, a República sempre esteve associada ao despotismo e às anulações das
liberdades políticas, a começar pelos EUA, que gozava da posição de ser o país mais
poderoso do continente e tratava as outras nações como escravas. Nos dois textos,
portanto, Prado se debruçou sobre o tema da política americana, utilizando o conceito
de liberdade como principal ferramenta analítica nas suas considerações a respeito dos

155
Idem. p. 98.
156
Idem. pp. 63-64.
157
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 18.

84
regimes políticos que governavam os países do continente. O que pretendo fazer neste
capítulo é, portanto, analisar as especificidades desses dois textos, situando-os no
universo da obra de Eduardo Prado, mostrando como o autor combinou as concepções
antiga e moderna de liberdade no seu esforço de representar o Brasil através da análise
das características do republicanismo americano. Por isso, o este capítulo está dividido
em três partes: na primeira, eu examino como o nosso autor tratou, nos relatos das
―Viagens‖, o tema do republicanismo hispano-americano. Na segunda seção, eu
examino o lugar que os EUA da América ocupam no pensamento político de Eduardo
Prado. Na terceira seção, eu estou interessado, especialmente, em compreender como
Prado, no livro ―A Ilusão Americana‖, abordou o problema das formas de governo.

3.1- O republicanismo hispano-americano nas ―Viagens‖ de Eduardo Prado

Em um primeiro momento, nos relatos das ―Viagens‖, Prado compara os


costumes políticos das Repúblicas Hispânicas com os da Monarquia brasileira, tendo o
cuidado de apontar tanto as fragilidades da Monarquia como as virtudes das Repúblicas
vizinhas, entre as quais o autor destacou o caso chileno, ―que de todos os governos
americanos talvez seja aquele que mais teve êxito na defesa das liberdades dos
158
cidadãos‖ . Em alguns trechos das ―Viagens‖, o nosso autor chega mesmo a destoar
evidentemente do pensamento político brasileiro naquilo que se refere à avaliação do
republicanismo hispano-americano.

Quando um novo presidente recebe o poder, tem a certeza de que o transmitirá


pacificamente ao seu sucessor, como recebeu, como um legado de prosperidade,
devido à sabedoria dos homens públicos do Chile. Quem conhece o Uruguai, a
Argentina, o Peru, a Bolívia, o Equador, a Venezuela, a Colômbia e a Nova
Granada, admira-se de encontrar ex-presidentes da República como D. Joaquim
Peres e D. Annibal Pinto, vivos, de boa saúde, vivendo em suas casas, passeando
pelas ruas, contrariando a ideia geralmente aceita de que, nas Repúblicas
espanholas, as presidências levam sempre ao exílio ou à sepultura 159. (Grifos
Meus)

Em um estudo dedicado à trajetória político/intelectual de Cipriano Barata


(1762-1838), o historiador Marco Morel afirma que a imagem negativa que o
pensamento político monarquista construiu a respeito do republicanismo latino-
americano deve-se muito à memória dos anos regenciais. O autor acredita que esse
período foi marcado pela ampliação do debate político e pela inserção na esfera das

158
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 98.
159
Idem. p. 104.

85
disputas políticas formais de atores que até então excluídos160. Ilmar Mattos apresenta
um diagnóstico semelhante ao postular que a experiência dos conflitos regenciais foi
fundamental para a construção da identidade política das principais lideranças do
Segundo Reinado, que relacionavam a vacância do trono à República, à instabilidade e à
anarquia. Como as jovens nações latino-americanas eram governadas por Repúblicas, o
discurso político oficial da Monarquia brasileira associou esses países à barbárie e à
desordem. Portanto, ao elogiar as Repúblicas vizinhas, Eduardo Prado, membro do
Partido Conservador e monarquista convicto, mostrou que, naquele momento, em
meados da década de 1880, a sua adesão ao pensamento político hegemônico no Brasil
era relativa. O país ainda era governador por uma Monarquia e a rejeição à República
ainda não estava na agenda do nosso personagem.

A situação é bastante diferente nas páginas do livro ―A ilusão Americana‖, onde


autor denuncia a corrupção dos valores republicanos na América, que resultaram na
vitória do despotismo que, segundo Prado, podia ser identificada em todas as
experiências políticas republicanas vigentes no continente ao longo do século XIX,
incluindo aí o caso dos EUA. Como podemos perceber na segunda epígrafe deste
capítulo, o nosso autor responsabiliza os EUA pela manutenção da escravidão no Brasil
ao longo da segunda metade do século XIX. Em um momento de clara militância
antirrepublicana, Eduardo Prado acusou a República estadunidense de não apenas ser
incapaz de promover a liberdade, chegando mesmo a ser cúmplice com a escravidão.
Ainda que o autor não fale diretamente em liberdade, entendo o trecho como um ataque
aos EUA baseado em uma dimensão civil de liberdade, já que o autor evoca o estatuto
da escravidão para falar dos vícios políticos dos EUA. O que está em jogo não é apenas
as instituições desse país, mas o republicanismo americano. Já não temos aqui o mesmo
tom elogioso com o qual Eduardo Prado tratou, anos antes, o tema da forma de
governos dos países vizinhos. A proclamação da República no Brasil fez com que o
autor radicalizasse ainda mais o antirrepublicanismo característico do pensamento
monarquista brasileiro.

Olhemos para o México e para a Argentina e perceberemos o que a República


significou para o continente americano. Muitos brasileiros se iludiram ao viajar
para Buenos Aires e admirando as carruagens e contemplando a arquitetura

160
MOREL, Marco. Cipriano Barata. Editora Brasiliense: São Paulo, 1986.

86
riquíssima dos brancos pensaram ser o republicanismo americano sinônimo de
liberdade, por trás da ilusão existe a violência e a perseguição 161. (Grifos Meus)

O exame cuidadoso dos relatos das ―Viagens‖ e do livro ―A Ilusão Americana‖


evidencia as transformações operadas no pensamento de Eduardo Prado entre meados
da década de 1880 e início dos anos 1890. No primeiro trecho que abre este capítulo,
Prado demonstra admiração ao comentar o ritual político de abertura do calendário
legislativo chileno, chegando mesmo a apontar semelhanças com o ritual congênere
brasileiro. Para o autor, as semelhanças entre os regimes políticos brasileiro e chileno
mostravam o quanto a nossa Monarquia era republicana. Cabe aqui, então, uma
pergunta: qual a concepção de República Prado tinha em mente ao fazer essa
afirmação? Como era de se esperar, o autor não teve interesse em discutir essa questão,
mas acredito ser possível apresentar algumas proposições a respeito. Certamente, Prado
está trabalhando mais com conceito cívico de República, que de acordo com Maurízio
Viroli, designa ―uma forma ideal de Estado fundada sobre a virtude dos cidadãos e
sobre o amor pela pátria‖162, do que com o conceito moderno, que é formulado a partir
da contraposição à Monarquia163. Para Modesto Florenzano,

as Revoluções da América do Norte, de 1776, e da França, de 1792, reabilitam e


reinventam, a um só tempo, a republica enquanto forma de governo, que passa a
ser definida como o contraponto da Monarquia, como se a República fosse
equivalente à democracia e a Monarquia sinônimo de poder pessoal.164

Nesse sentido, ao afirmar que a Monarquia brasileira também era Republicana,


Prado estava operando fora dos quadros conceituais da modernidade, que, a partir da
experiência do século XVIII, passou a abordar a ―República‖ na perspectiva da forma
de governo e não das práticas políticas. No quarto capítulo desta tese, eu examino como
Prado mobilizou a tradição republicana clássica para questionar esse tratamento
moderno da ideia de República e criticar as autoridades republicanas brasileiras. No
entanto, não podemos generalizar e supor que a modernidade definiu a República
apenas como o contraponto da Monarquia. Alguns pensadores modernos, em diálogo
com o Republicanismo clássico, também fundamentaram a sua definição mais no
princípio da legalidade das práticas políticas do que no quesito das formas de governo.
Por exemplo, Rousseau, no ―Contrato Social‖, diz que:

161
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 59.
162
VIROLI, Maurizio. Republicanismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 65.
163
Já Montesquieu, no ―Espìrito das Leis‖, fala em três formas básicas de governo: a Monarquia, a
República e o Despotismo.
164
FLORENZANO, Modesto. República e Republicanismo.. Ed. 34: São Paulo, 1999. p. 78.

87
Chamo pois de república todo o Estado regido por leis, sob qualquer forma de
administração que possa conhecer, pois só nesse caso governa o interesse
público e a coisa pública passa a ser alguma coisa. Todo o governo legítimo é
republicano. (...) Isto equivale a dizer que, se, numa comunidade política, mesmo
se sob forma monárquica, ninguém está acima da lei, então o poder é republicano
e, ao contrário, não se deveria falar mais em republica quando uma comunidade
política que adota essa forma de governo cai sob a ditadura de uma ou mais
pessoas que se colocam acima das leis e, consequentemente, acima do bem
comum165. (Grifos Meus)

O fato de a concepção clássica de República poder ser encontrada, também, em


tratados de filosofia política modernos demonstra como os repertórios se combinam e se
interpenetram, o que também acontece nos escritos de Eduardo Prado. Percebo que na
comparação entre Chile e Brasil, o autor sugere que ambos os países se assemelham
porque ―garantem a plenitude das liberdades polìticas para os seus cidadãos, que têm a
certeza de estar vivendo sob a autoridade das instituições e não sob o arbítrio do poder
pessoal‖166.

A comparação entre Brasil e Chile vai longe, ora mostrando-se favorável a um


ora mostrando-se favorável a outro, sendo que o critério de comparação é sempre a
―garantia das liberdades dos cidadãos‖. Por exemplo, ainda em relação ao ritual de
abertura do calendário legislativo chileno, Eduardo Prado diz que:

A grandeza do salão, pode demais despido de ornamentos; a monotonia das


casacas pretas, apenas quebrada por uma ou outra farda destacada e pelos
dourados do corpo diplomático, que se enfileira numa extremidade; o ruído seco
dos tacões parlamentares sobre o mármore branco; o silêncio sepulcral que reina,
enquanto todos esperam pelo Presidente da República. Tudo isto aumenta a
sensação de respeito que vem das grandes portas abertas e da ideia de que se está
diante da representação de um povo livre 167. (Grifos Meus)

Se ao definir a Monarquia brasileira como Republicana, Eduardo Prado


mobilizou uma concepção cívica e pré-moderna de República, ao apontar a liberdade do
povo chileno, ele o fez a partir de uma perspectiva moderna e marcada pelo princípio da
representação política. Como vimos há pouco, o historiador brasileiro Modesto
Florezano afirma que a modernidade vinculou a República à Democracia, sendo o
princípio da representação política o elemento que possibilitou essa articulação168. O

165
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. Martins Fontes: São Paulo, 1998. p. 95.
166
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 97.
167
Idem. p. 91.
168
Articulação semelhante pode ser encontrada também na atuação dos republicanos brasileiros ao longo
da década de 1880, que se esforçaram em desconstruir a imagem que o pensamento monarquista oficial
construiu do regime político republicano. Maria Tereza Chaves Melo afirma que ―É esse arrazoado que
ganha as mentes no final do Império: as leis da História empurravam a evolução no sentido da
democracia. E esse termo não mais era entendido como um governo de representação, um governo
constitucional. A grande vitória da propaganda republicana foi estabelecer uma sinonímia entre

88
autor acredita que o texto ―O Senso Comum‖, de Thomas Paine, foi fundamental para a
delimitação da perspectiva moderna de representação política.

Paine foi não só o primeiro a propor, com o seu panfleto incendiário O Senso
Comum, de janeiro de 1776, explicitamente a independência das colônias
inglesas da América do Norte, e a adoção do regime republicano (―Está em
nosso poder começar o mundo de novo‖); foi, igualmente, o primeiro a
identificar republica com democracia e esta com o sistema representativo, como
se lê na seguinte passagem de ―Os Direitos do Homem‖ (segunda parte, 1792):
―Mantendo, então, a democracia como a base, e rejeitando os sistemas corruptos
de monarquia e aristocracia, o sistema representativo [ou seja, a republica] se
apresenta naturalmente, remediando de uma vez os defeitos da democracia
simples no tocante à forma. Enxertando representação na democracia, chegamos
a um sistema de governo capaz de abranger e confederar todos os vários
interesses e qualquer extensão de território e população 169. (Grifos Meus)

A mobilização da dimensão moderna e liberal de liberdade e a defesa de que o


princípio da representação política é fundamental para a garantia das liberdades plenas
também pode ser encontrada nos trechos onde Eduardo Prado comentou o regime
político brasileiro. Para o autor,
O fato de ser uma Monarquia não significa que o Brasil seja regido pelos
caprichos pessoais de um déspota; no Brasil, S. M. I. é mais um expectador da
política do que um interventor ativo; a política é assunto dos homens comuns que
disputam a preferência de um eleitorado livre, como em qualquer outro país
civilizado do mundo, sendo o Monarca o símbolo da tradição, aquilo que não nos
deixa esquecer de que temos raízes muito antigas170. (Grifos Meus)

Em um mesmo parágrafo, Prado mobiliza valores pertencentes aos vocabulários


moderno e pré-moderno, o que demonstra, mais uma vez, a combinação de repertórios
que eu acredito ser a grande característica do conservadorismo de Eduardo Prado. Ao
fazer questão de afirmar que a Monarquia não necessariamente deve ser confundida
com despotismo, ele mobilizou valores políticos que, em última instância, nos remetem
a Aristóteles, para quem a forma ideal de governo é aquela que equaciona a Monarquia,
a Aristocracia e a Politea. Nesse sentido, no Brasil, a presença de um Rei não teria se
desdobrado na afirmação do poder pessoal, mas sim na temperança de um regime
político que ao mesmo tempo é capaz de dar liberdade ao povo, na medida em que
respeita as leis, e garantir a manutenção das tradições civilizatórias que o Brasil herdou
da Europa. Por outro lado, no mesmo trecho, a liberdade é tomada como sinônimo de
direito à representação política, ao livre exercício do voto. Exatamente aí reside a
dimensão moderna da argumentação.

democracia e república. E democracia é entendida agora como o governo de todos, diferente de um


governo de privilegiados, constitucionalmente representados‖. p. 226.
169
FLORENZANO, Modesto. República e Republicanismo.. Ed. 34: São Paulo, 1999. p. 10.
170
Idem. p. 91.

89
Contudo, ainda que o tom com o qual Prado aborda a República chilena seja
profundamente elogioso, ele não deixa de apontar certa superioridade da Monarquia
brasileira, como podemos perceber no trecho onde o autor compara a fala do trono com
o discurso presidencial.
Não costuma ser das melhores a literatura dessas peças, e, estabelecida uma
comparação entre a fala do Trono do Brasil e a mensagem presidencial, não se
pode negar àquela uma imensa superioridade sobre esta; a fala imperial tem,
sobre a republicana, sem falar no sal de sabedoria que lhe dá o direito divino, o
grande merecimento de ser curta, de ter brevidade, a primeira virtude das falas,
de que se devem sempre capacitar – dos males, o menor é o preferido171. (Grifos
Meus)

A despeito dessa crítica, os relatos sobre o Chile oferecem ainda outros


exemplos que demonstram como esse país causou uma impressão positiva em Eduardo
Prado, mostrando que na década de 1880, o nosso autor foi capaz de dizer que uma
República hispânica poderia, em alguns aspectos, ser considerada melhor que a
Monarquia brasileira. Ao afirmar que ―a feição polìtica e social deste paìs merece ser
estudada muitas vezes, mais nas suas práticas de governo e parlamento do que nas suas
ideias172‖, Prado define a República chilena como um exemplo. Mas exemplo
exatamente de que? Uma possível resposta pode ser encontrada no trecho no qual Prado
narra a sua passagem por Valparaíso.
que é o primeiro do país e onde o ensino é excelente, notando-se com prazer a
preponderância que ali tem o ensino das ciências físicas e naturais, que dispõem
de excelentes laboratórios, de um museu e de uma biblioteca, que serviriam para
um estabelecimento de instrução superior; no Chile os estabelecimentos ginasiais
são superiores aos estabelecimentos de ensino superior brasileiros 173.

É nesse movimento de comparação que Eduardo Prado desenvolve uma sensível


análise da República chilena, utilizando, inclusive, uma argumentação muito parecida
com aquela que caracterizou o pensamento monarquista oficial. Porém, ao contrário do
que se possa imaginar, essa argumentação não foi utilizada para criticar o Chile.
O Chile deve os benefícios de que goza às tradições virtuosas implantadas em
sua administração pelos fundadores da República, à parte preponderante que a
classe educada e rica tomou na direção dos negócios públicos e ao cultivo
esmerado de todos os instintos conservadores. Estes instintos são poderosos;
algumas vezes, a sua influência é tal, que chegam a abafar a liberdades dos
indivíduos, mas nunca afeta a liberdade e o bestar social, que é a felicidade do
país174.

Para o autor, o sucesso da Chile no estabelecimento de um governo civilizado


está na capacidade dos ―instintos de conservação‖ da sociedade chilena em resistir à
171
Idem. p. 95.
172
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 90.
173
Idem. pp. 86-87.
174
Idem. pp. 106-107.

90
corrosão do tempo e manter viva a tradição que inspirou a ação dos fundadores da
República. O tema da resistência à corrosão do tempo é um dos mais importantes para a
compreensão do pensamento conservador de Eduardo Prado e, por isso, é tratado nesta
tese em um capítulo específico, o oitavo. O que interessa nesse momento é o uso da
ideia de liberdade. Acredito que no trecho em destaque, o nosso autor, mais uma vez,
priorizou a liberdade da comunidade à liberdade do indivíduo, o que, como já vimos nas
duas últimas sessões, é uma das principais características do repertório do direito civil
romano. Além disso, ao dizer que o abafamento da liberdade dos indivíduos não afeta o
bem estar social, ele demonstra está mais preocupado com a ordem do que propriamente
com liberdade dos cidadãos, o que era típico do pensamento monarquista brasileiro. Ao
analisar a tradição imperial brasileira, Ângela Alonso destacou as particularidades do
nosso liberalismo oitocentista que, segundo a autora, estava mais comprometido com a
ordem do que com a liberdade.
As reivindicações invariáveis mostram como os liberais viviam tão preocupados
em manter a ordem sociopolítica quanto os próprios conservadores, buscando
reformas internas ao status quo imperial. Seu slogan principal dá esta medida: a
liberdade na ordem. Seu liberalismo nada tinha de democrático. Concordavam
com os conservadores em manter o direito de voto generalizado, desde que
resguardada uma limitação pecuniária. Sua formulação do problema político
brasileiro estritamente liberal, não redundava na questão democrática ao modo
europeu ou norte-americano; não visava expandir os direitos políticos para a
maioria, mas garantir a opinião da minoria já participe do ―sistema
representativo‖175. (Grifos Meus)

No entanto, ao longo da sua argumentação, Prado fez uso de outros repertórios e


voltou a tratar a liberdade, também, no seu sentido moderno. Ainda em relação aos
―instintos de conservação‖ chilenos, o autor diz que
Manifestação por demais viva destes instintos é a eleição oficial, que aqui é uma
triste realidade; é a preponderância despótica do clero, hoje dominante da
sociedade, apesar de não estar no governo; é a força inquebrantável do governo,
que quer, pode e manda demasiado o que, se, por uma felicidade, tem até hoje
querido, pode quer, poder e mandar, um dia, o que é mau. Esta excessiva força
de autoridade neste país sufoca a empresa individual e faz com que o Chile, junto
com o Brasil, sejam igualmente autoritários. Seria possível dar o cetro ao
Presidente do Chile e a faixa ao Imperador do Brasil; as suas sociedades não
sentiriam a mudança nas indumentárias176. (Grifos Meus)

Diferente do que vimos antes, quando Prado elogiou o governo chileno pela sua
capacidade de manter a ordem social, agora o autor critica essa mesma capacidade,
fazendo-o através de uma leitura da ideia de liberdade baseada no indivíduo e, portanto,
moderna. A critica é estendida ao Brasil, o que demonstra mais uma vez o esforço de
175
ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: A geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo:
Paz e Terra, 2002. p. 69.
176
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 107.

91
Prado em aproximar os dois países. O que mais chama a minha atenção é o modo
através do qual o nosso personagem modifica os fundamentos da sua argumentação. Em
um parágrafo, ele mobiliza o repertório cívico para elogiar o governo chileno pela sua
capacidade de garantir ―o bem estar social‖ e a liberdade coletiva, ainda que a custo do
abafamento das liberdades individuais, o que é considerado pelo autor o elemento
fundamental que demonstra a sobrevivência dos tais ―instintos de conservação‖, que
seriam os principais responsáveis pelo alto grau de civilização da sociedade chilena.
Entretanto, no parágrafo seguinte, Eduardo Prado critica essa mesma autoridade, agora
considerada excessiva, acusando-a de sufocar a empresa individual. É por esses e outros
exemplos que estou convencido de que a chave interpretativa ideal para a compreensão
do pensamento conservador de Eduardo Prado é aquela que prioriza a combinação de
repertórios diferentes. Prado transita, livremente, entre os valores políticos moderno
antigo, usando-os sem outro critério que não o estabelecido pelas circunstâncias.
O jogo de relação e combinação dos vocabulários políticos antigo e moderno
pode ser encontrado, também, em outras crônicas das ―Viagens‖, como, por exemplo,
naquelas nas quais Prado narrou a sua visita ao Uruguai. O autor não foi tão generoso na
avaliação dos hábitos políticos uruguaios como foi na avaliação dos hábitos políticos
chilenos. Ainda assim, acredito que as críticas do autor não são dirigidas propriamente à
forma de governo republicana, mas sim às especificidades do governo uruguaio, o que
reforça o argumento de que os textos das ―Viagens‖ ainda não apresentam o
antirrepublicanismo visceral que pode ser encontrado nas páginas do livro ―A ilusão
americana‖.
O autor relata os problemas que teve na chegada ao Uruguai, quando foi
―condenado à prisão momentânea pelo Supremo tribunal de Justiça da Higiene desta
banda oriental e pouco hospitaleira a estar de quarentena em frente de Montevidéu‖177.
Eduardo Prado está criticando as medidas adotadas pelo governo uruguaio para impedir
a entrada de pessoas infectadas pela febre amarela no país. Apesar da irritação, ele
comentou, com certa jocosidade, um aviso que estava afixado nas paredes das
dependências onde os viajantes ficavam acomodados durante a quarentena: ―É proibido
aos quarentenários destruir o estabelecimento, deteriorar as janelas e as portas‖.
Se é preciso, peroraram todos, declarar ser proibido o destruir-se o
estabelecimento, isto é, incendiá-lo, arrancar as janelas, quebrar-lhe as portas,
isto num cartaz proibitivo, é porque em outras leis não eram proibidas estas
inocentes diversões. E, como não havia nenhum artigo proibindo assassinar os

177
Idem. p. 08.

92
quarentenários, muita gente se julgou arriscada a esta ato lícito, por isso, que não
era proibido pela lei. Foi, talvez, temor em excesso, justificado pelo temor dos
uruguaios com o contágio da febre amarela 178. (Grifos Meus)

O viajante não atribui a falta de hospitalidade ao regime político que governava


o Estado uruguaio, mas sim ao medo da doença, a uma conjuntura temporária, algo que
passaria tão logo o risco da epidemia fosse totalmente dirimido. Definitivamente, o
Uruguai não deixou uma boa impressão em Eduardo Prado, porém, não considero que
essa má impressão deva ser estendida à forma republicana de governo, pelo menos nos
textos das ―Viagens‖. Após o perìodo da quarentena, o autor se hospedou em um hotel
―que mais parecia o Palácio de São Cristóvão, tamanha era a falta de elegância da
mobìlia‖, onde foi realizado um baile em homenagem a um representante do Rei da
Itália, ―que vinha cercado de dignitários, que tal como no Brasil se aproximam de S. M.
o Imperador tão somente para estarem a sombra de sua imperial pessoal‖. Estes
comentários sugerem que o canhão de críticas de Eduardo Prado também se voltava,
eventualmente, ao regime político do seu país natal. Em relação ao baile, o autor disse
que:
Grande quantidade de tiros dados com pólvora oriental saudou a bandeira
italiana, para indicar que, como cada um dá o que tem, aqui dão... fumaças. (...)
E a música tocava e os botões dourados brilhavam nas fardas engomadas, sendo
a ilusão de garbo em uma República contaminada de militarismo 179. (Grifos
Meus)

Novamente, Prado não concentra sua crítica na forma de governo republicana,


mas sim no elemento corruptor dessa forma: o militarismo, assunto que seria revisitado
pelo nosso autor nos seus textos mais claramente antirrepublicanos, como aqueles que
ele escreveu entre 1890 e 1894 para atacar a primeira ditadura militar brasileira. Esse
argumento pode ser reforçado, acredito, com a leitura do seguinte trecho:

Fulano foi feito coronel e ministro, sob o governo de tal presidente. Edificou
logo uma bela casa, encheu-se de mobília parisiense e caríssima. Uma revolução
derrubou o presidente e o novo presidente nomeou mais um coronel, que fez o
mesmo que o outro; tudo isso mostrando como a República uruguaia está
corrompida em suas virtudes180.

A comparação com os relatos sobre o Chile pode ser útil na interpretação da


narrativa sobre o Uruguai. Para Eduardo Prado, o Chile se destacava no conjunto da
Hispano-América porque tinha sido capaz de conservar as ―virtudes‖ dos fundadores da

178
Idem. p. 11.
179
Idem. p. 19.
180
Idem. p. 24.

93
República. Já o caso do Uruguai foi diferente, pois lá a República vivia um momento de
corrupção das virtudes. Nas palavras do próprio Eduardo Prado, ―a República Uruguaia
está corrompida‖, o que não quer dizer que seja essencialmente corrompida. A grande
diferença entre Chile e Uruguai seria, então, a capacidade no caso chileno e a
incapacidade no caso uruguaio, de resistir à corrosão do tempo. Ainda que não seja esse
o momento de abordar de forma mais direta o problema da temporalidade, creio ser
importante mostrar como essa dicotomia virtude X corrosão temporal também pode ser
encontrada nos escritos de outro importante pensador moderno, Montesquieu, o que
evidencia a modernidade do conservadorismo de Eduardo Prado.
Um Estado pode mudar de duas maneiras: ou porque a constituição se corrige,
ou porque ela se corrompe. Se ele conservou seus princípios e a constituição
muda, e que ela se corrige; se ele perdeu seus princípios, quando a constituição
vem a mudar e que ela se corrompe. Em um caso, o tempo conserva no outro
corrompe181.

O Chile seria, portanto, um exemplo de como as virtudes republicanas podem


ser conservadas e o Uruguai um exemplo de como elas podem ser corrompidas. Tanto
em um caso como em outro, a República é definida como originalmente virtuosa, ainda
que nos relatos sobre o Uruguai, o autor não tenha falado isso diretamente.
Quando o viajante percorre as ruas de Montevidéu chega a se confundir,
acreditando estar transitando por uma caserna, tamanho é o número dos mastros
e a recorrência dos toques de trombetas; não nos convencemos de que tudo isso
estava na mente do legislador que esquadrinhou as instituições republicanas
deste país182.

Tal como podemos observar nos escritos sobre o Chile, Eduardo Prado também
se mostrou preocupado em avaliar até que ponto a República uruguaia garantia as
liberdades políticas dos seus cidadãos. Mais uma vez, ele fez ele combinou a liberdade
liberal com a liberdade civil.
As belas praças de Montevidéu, suas ruas, as lindas construções, vimo-las ainda,
sem esquecer a estátua da liberdade, na praça Cagancha. É uma alta coluna de
pedra, de grossura pouco respeitável, mas que é suficiente para indicar que, em
Montevidéu, a liberdade está tão alta que é inacessível a todos os homens que
desejem governar junto com o Presidente, como deve acontecer na verdadeira
democracia. E é bom, enfim, que a liberdade esteja em alguma parte. Não
convinha que se depreciasse, aparecendo em todos os cantos, já que no Uruguai
em todos os cantos há soldados e generais, prontos a erguer barreiras no caminho
do cidadão uruguaio183.

A citação mostra, com alguma clareza, a plasticidade do conservadorismo de


Eduardo Prado. Em poucas linhas, o autor foi capaz de tratar o tema da liberdade na

181
MONTESQUIEU. O espírito das leis. Rio de Janeiro: Ed. Saraiva, 1994. p. 325.
182
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 30.
183
Idem. p. 34.

94
chave dos vocabulários políticos antigo e moderno. Primeiro, ele apontou a
incapacidade da República uruguaia em garantir a liberdade dos cidadãos utilizando
como critério da crítica o direito à participação no governo, o que, como já sabemos,
caracteriza a liberdade civil, que se constrói a partir da contraposição ao estatuto da
escravidão e com base no princípio do autogoverno. Logo depois, o autor afirma que a
presença ostensiva dos militares nas ruas de Montevidéu funcionava como uma espécie
de barreira que cerceava a livre movimentação do cidadão uruguaio, o que retoma o
tema da livre movimentação dos corpos como o critério fundamental para a concepção
moderna e liberal de liberdade.
Essa combinação de repertórios também aparece nos relatos sobre a Argentina,
que foi alvo de críticas ainda mais severas do que as que foram direcionadas ao
Uruguai. De todas as crônicas que compõem as ―Viagens‖, aquelas que foram
destinadas à Argentina são as que mais se aproximam do teor crítico através da qual o
pensamento monarquista oficial brasileiro tratou o republicanismo hispano americano e,
ainda assim, em pouco se assemelham à virulência que podemos encontrar no livro ―A
Ilusão Americana‖. ―De todo o novo mundo, a República Argentina é aquela que mais
mostrou exemplos nefastos do mais vil nepotismo184‖. Em um primeiro momento, a
verborragia crítica de Eduardo Prado mira na formação do país vizinho. Ao falar sobre a
arquitetura da catedral de Buenos Aires, o autor ironiza a imagem esculpida na fachada
no edifìcio, usando o ensejo para questionar as ―virtudes‖ dos fundadores da República
Argentina :
Começada em 1589, sua construção terminou complemente e 1862, e na fachada,
que foi principiada em 1822, está representado, em alto relevo, José abraçando
seus irmãos, fato que a simbólica ironia dos portenhos ali fez consignar, porque
naquela data Buenos-Aires se reúne às outras províncias para formar a República
Argentina. Sabe-se que os irmãos de José não eram lá gente de contas virtuosas
muito limpas e, se viessem hoje, não escapariam ao júri e à penitenciária. Como
foi amável Buenos Aires representando as outras províncias nas pessoas
daqueles tratantes patriarcais185. (Grifos meus)

Por outro lado, quando menciona as formas através das quais as autoridades
argentinas estravam tratando o túmulo de San Martin (1778-1850), Prado parece
demonstrar certa admiração por esse líder independentista, o que parece sinalizar que,
também no texto sobre a Argentina, o autor não está empenhado em desqualificar a
forma republicana de governo.

184
Idem. p. 33.
185
Idem. p. 42.

95
Sob a abóbada de uma capela lateral, eleva-se o túmulo [de San Martin], que é de
bronze, sobre um alto pedestal, construído com grande variedade de mármores
belíssimos. Inscrições comemoram, em estilo arqui-pomposo e nada republicano,
os feitos do grande homem. O valente soldado paraguaio teria muito maior
elogio na simplicidade do seu nome. Isto compreendeu o artista que, na estátua
equestre de Belgrano, colocada numa das praças da cidade, nenhuma inscrição
gravou no mármore, ou no bronze, mostrando assim que não se admite a
possibilidade de um argentino não ter gravada no coração a imagem do herói que
a estátua representa. É pena que o abandono em que está a praça tenha deixado o
capim invadir as imediações da estátua. Será para alimentar cavalo do herói?
(Grifos Meus)

O que está em jogo para Prado não é a importância de San Martin, que é
definido como um ―herói‖, como um ―grande homem‖, mas sim o tratamento ―pouco
republicano‖ que o governo argentino deu à memória desse personagem. Apesar de o
autor não ter sido claro, acredito que a sua crítica se refere ao excesso de pompa
personalista, o que comprometeria o princípio da isonomia republicana. Temos aqui,
acredito, um elogio à República, que mais uma vez é pensada na perspectiva clássica,
ou seja, como um tipo de organização política comprometida com o respeito às leis e
com a garantia das liberdades plenas. Por outro lado, nos mesmos relatos, Eduardo
Prado ataca diretamente o republicanismo hispano americano ao apontar a falta de
estabilidade polìtica dos paìses vizinhos, ao dizer que ―nas Repúblicas espanholas é
coisa muito fácil ver um, ou mesmo, muitos presidentes da República, numa curta
permanência que um indivíduo tenha nesses países, sendo isso a prova cabal do
anarquismo que na América atende sob o nome da República‖ 186.

Estas palavras aparecem como um lampejo monarquista em um texto que, no


geral, não é hostil com a forma republicana de governo. Não acredito que essa mudança
no tom deva ser definida como contradição, até porque fazê-lo seria supor que o nosso
autor tinha o interesse deliberado em formular uma análise coerente e linear da
realidade. Por isso, as idas e vindas, as combinações entre valores aparentemente
destoantes, é algo a se esperar de um autor que não tinha o objetivo de construir um
sistema analítico mais rigoroso. Esse ir e vir, essa combinação que só aparentemente é
estranha e contraditória, se justifica pelo exercício do autor em escrever ao sabor das
circunstâncias. Se nos relatos de sua passagem pelo Chile e pelo Uruguai, Prado
destacou as virtudes do republicanismo hispano americano, no caso da Argentina, que
sem dúvida alguma foi o país vizinho que ele mais rejeitou, é a própria República quem
parece estar no centro da crítica, ainda que essa crítica tenha aberto espaço, por

186
Idem. p. 123.

96
exemplo, para o elogio a San Martin e para uma leve ironia à Monarquia brasileira:
―Também no Brasil o viajante desavisado pode se surpreender com a nomeação e
demissão de vários ministros em pouco tempo; ao caminhar pelas ruas da Corte, esse
viajante pode olhar um ex-ministro e pensar: lá se vai um ex-ministro, o mesmo que há
pouco era ministro‖ 187.

Não podemos esquecer que Eduardo Prado redigiu essas crônicas de viagem em
algum momento entre 1882 e 1886 e que anos antes, ele, a exemplo dos seus
correligionários conservadores paulistas, se envolveu em conflitos com os governos
liberais, chegando mesmo a definir como golpista a intervenção do poder moderador de
05 de fevereiro de 1878, como demonstrei no primeiro capítulo desta tese. Ao ler o
trecho citado, tenho a sensação de que essa lembrança ainda estava bem viva para
Eduardo Prado, que iguala a Monarquia brasileira às Repúblicas vizinhas naquilo que se
refere à instabilidade das instituições. Portanto, se nas crônicas sobre a Argentina, o
nosso autor criticou o republicanismo hispano americano com argumentos semelhantes
aos utilizados pelo pensamento político oficial da Monarquia brasileira, criticou também
a própria Monarquia, o que o mostra que os seus vínculos com discurso oficial
monarquista podem ser problematizados.
Quando Eduardo Prado estava na Argentina teve a oportunidade de presenciar os
debates parlamentares a respeito do projeto de vacinação obrigatória contra a febre
amarela. O tema chamou muito a atenção do nosso autor e é, exatamente, nessa
discussão que o vejo mobilizar, outra vez, a ideia de liberdade, sendo sempre pensada a
partir da combinação dos repertórios antigo e moderno.
Assistimos a duas curiosas discussões. A primeira sobre obrigatoriedade da
vacina. Dissertaram longamente todos os médicos da câmara sobre a vacina entre
os gregos e os romanos; a linfa oratória não corria como cristalina, sonorosa linfa
fugitiva, de camões; falta aos médicos argentinos os arrombos da boa retórica 188.

As críticas de Eduardo Prado não ficaram restritas apenas à incapacidade


retórica dos médicos argentinos, mas adentraram no cerne da discussão, no mérito da
obrigatoriedade da vacinação. Para o autor, o que estava em jogo não era tão somente
uma questão de saúde pública, mas fundamentalmente o compromisso da República
argentina com a defesa das liberdades políticas dos seus cidadãos.
[os médicos] fizeram preleções sobre a vantagem da vacina, deixando de laco a
questão do respeito à liberdade individual, e, querendo, sobretudo, dar uma

187
Idem. p. 123.
188
Idem. p. 117.

97
ingerência, cujos limites se não poderiam prever, em todos os atos privados,
proclamaram, enfim, a celebre ideia da ditadura para o bem, que tantos males
tem produzido e à qual seria até preferível à ideia da liberdade para o mal, se
socialmente não fosse um absurdo acreditar que a liberdade deva levar ao mal 189.
(Grifos Meus)

Estamos aqui diante de uma argumentação muito semelhante àquela que


Eduardo Prado desenvolveria anos mais tarde na ―questão do habeas corpus dos
monarquistas‖, que analisei no capìtulo anterior. Para Prado, o projeto da vacinação
obrigatória ia contra os direitos mais fundamentais dos indivíduos, como, por exemplo,
a liberdade individual e a inviolabilidade da casa. Ao formular o texto dessa forma,
Prado atuou como um escritor moderno, visitando um tema fundamental para o
pensamento político moderno. O autor também se mostrou intransigente com a adoção
do recurso da ditadura, o que torna ainda mais perceptível a modernidade da sua
argumentação. Também Rousseau e Montesquieu se interessaram pelo problema da
ditadura, tendo, entretanto, um posicionamento diferente do de Eduardo Prado. Cito
primeiro o suíço e depois o francês.
Dai se seguia que, em Roma, a ditadura somente devia durar pouco tempo;
porque o povo age por ímpeto, e não por seus desígnios. Era preciso que essa
magistratura se exercesse com estrondo, porque se tratava de intimidar o povo, e
não de puni-lo; que o ditador fosse criado apenas para um único assunto, e só
tivesse uma autoridade sem limites em razão desse assunto, porque era sempre
criado para um caso imprevisto190.

A intenção principal do povo é a de que o Estado não pereça, e é justamente para


salvaguardá-lo que a ditadura se faz necessária. Além disso, durante o exercício
de seu mandato, o ditador tem permissão para fazer tudo, exceto leis, visto que a
atividade legislativa continua sempre sendo uma prerrogativa do soberano, cujas
deliberações voltam a valer tão logo finda o período ditatorial 191.

A despeito das diferenças entre os pensamentos políticos desenvolvidos pelos


dois autores, é possível perceber que ambos legitimam a magistratura da ditadura, que
teria o objetivo de salvar o Estado em momentos de crise profunda. De acordo com
Renato Moscatelli, ―a ditadura deve ser vista [em Rousseau e Montesquieu], portanto,
como um remédio extremamente forte a ser administrado apenas quando os outros
tratamentos já perderam seu efeito, e somente em doses pequenas, sob o risco de se
acabar provocando a morte do corpo polìtico‖ 192.

189
Idem. pp. 117-118.
190
MONTESQUIEU. O espírito das leis. Rio de Janeiro: Ed. Saraiva, 1994. p. 278.
191
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. Martins Fontes: São Paulo, 1998. p. 130.
192
MOSCATELI, Renato. Rousseau frente ao legado de Montesquieu: imaginação histórica e teorização
política. Tese de Doutorado: UNICAMP, 2009. p. 176.

98
Ao comparar a argumentação de Eduardo Prado na crítica ao projeto dos
médicos argentinos em instituir a vacinação obrigatória contra a febre amarela com as
argumentações de Rousseau e Montesquieu a respeito da magistratura da ditadura,
percebo uma diferença notória; ao contrário dos dois filósofos, o nosso autor não
reconhece a utilidade da ditadura, chegando mesmo a afirmar que é um absurdo supor
que a liberdade possa conduzir ao mal. Acredito que ainda que de forma frouxa e pouco
sistematizada, Prado está nos apresentando certa forma de pensar o homem, que é
definido como um indivíduo naturalmente livre, liberdade essa que não pode ser
alienada, nem mesmo em momentos de crise. Essa argumentação é profundamente
liberal no seu conteúdo. Porém, como já estamos habituados, o tom da análise é
modificado poucas linhas depois e, novamente, Eduardo Prado transita do liberalismo
para o republicanismo cívico.
Sorte o povo argentino ter contato com a defesa de alguns advogados, que
prontamente apontaram a ilegalidade da representação médica; os advogados
mostraram que a republicana argentina não poderia abrir mão da legalidade
jurídica a preço de deixar de ser uma republica; os advogados, em peça retórica
bem superior à médica, defenderam a verdadeira liberdade do povo argentino
dizendo que impor autoritariamente a vacinação seria o mesmo que reduzir
aquele povo à posição de servidão193.

O conteúdo civil da argumentação de Prado pode ser percebido em dois


momentos da citação: primeiro, ele vincula a República ao princípio da legalidade
jurídica, o que, como já vimos antes, é uma forma de definir a República diferente
daquela que caracteriza o pensamento liberal, onde a República é definida como o
contraponto da Monarquia. Depois, Eduardo Prado afirma que ao derrubar o projeto
proposto pelos médicos, os advogados argentinos defenderam ―a verdadeira liberdade
do povo‖. Como assim ―a verdadeira liberdade do povo‖? Existia, então, para Eduardo
Prado, uma ―falsa liberdade‖? A questão não deve ser colocada nesses termos, mas sim
na perspectiva das diferenças entre a liberdade liberal e a liberdade civil. Quando Prado
fala em ―verdadeira liberdade‖, ele está se remetendo a uma concepção de liberdade que
não se restringe nem ao indivíduo e nem tampouco à ausência de obstáculos ao livre
movimento do corpo, mas sim à liberdade pensada como a negação da escravidão, como
autogoverno do corpo político. Por isso, ele fala em ―povo‖ e não em ―indivìduo‖. A
combinação dos repertórios antigo e moderno, das concepções civil e liberal de
liberdade, pode ser percebida, também, na forma através da qual Eduardo Prado
analisou a história e a política dos EUA.
193
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 118.

99
3.2- O lugar dos EUA no pensamento político conservador de Eduardo Prado

Nas suas viagens de meados dos anos 1880, Eduardo Prado visitou, também, os
EUA, nos apresentando uma instigante leitura a respeito dos costumes políticos desse
país. Essa leitura fica ainda mais instigante quando a comparamos com a leitura
posterior, ou seja, aquela que ele fez anos depois, nas páginas do livro ―A Ilusão
Americana‖. Esse exercìcio comparativo sugere que a proclamação da República
brasileira inseriu na produção político/intelectual de Eduardo Prado um elemento que
até então ainda não tinha se mostrado de forma explícita: o antirrepublicanismo. Outro
aspecto que merece destaque é a desigualdade com a qual os dois textos em questão
foram tratados pela historiografia posterior. Enquanto os relatos das ―Viagens‖ somente
foram mencionados pelos biógrafos Candido da Motta Filho e Sebastião Pagano, o livro
―A Ilusão Americana‖ foi contemplado por uma fortuna crìtica mais generosa, a
começar pelos próprios biógrafos. Para Cândido da Motta Filho, o livro ―A Ilusão
Americana‖ deu seguimento à tendência de manifestação política que Eduardo Prado
inaugurou dos ―Fastos da Ditadura Militar Brasileira‖, devendo, por isso, ―ser
194
considerado o seu escrito mais emblemático‖ . Realmente, uma rápida mirada no
prefácio de ambos os livros mostra que a relação proposta por Cândido da Motta Filho
faz sentido.

Ninguém duvidará então de que quem escreve estas linhas só atacou os


dominadores do Brasil porque, como homem civilizado e do seu século,
aborreceu a traição, amou a liberdade e detestou a tirania. (Grifos Meus) (Fastos
da Ditadura Militar Brasileira)

Disse um romano que os livros têm o seu destino, O deste não foi dos piores,
honrado como foi, com as iras dos inimigos da liberdade. A própria verdade não
proclamou felizes os que sofrem perseguidos pela justiça 195. (Grifos Meus)
(Ilusão Americana)

No entanto, acredito ser importante problematizar a afirmação de que os ―Fastos


da Ditadura Militar Brasileira‖ e o ―A Ilusão Americana‖ sejam, em si, os escritos mais
emblemáticos de Eduardo Prado. Podem até ser considerados os mais emblemáticos,
mas só se a perspectiva analítica adotada priorizar o problema do antirrepublicanismo.
Como não é esse o caso desta tese, que prioriza o problema do conservadorismo, os
textos em questão são aqui tratados como exemplos de uma produção intelectual
extremamente variada do ponto de vista temático e que esteve sempre marcada pelo

194
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 173.
195
Idem. p. 175.

100
signo do conservadorismo, o que implica na ausência de grandes sistematizações, um
acentuado senso de circunstância e a combinação entre os valores dos vocabulários
políticos antigo e moderno.

Também Gilberto Freyre, no livro ―Ordem e Progresso‖, destacou a atuação


monarquista de Eduardo Prado durante a década de 1890, definindo-o como ―o crìtico
brasileiro mais incisivo que a República brasileira de 89 teve nos seus primeiros anos‖.
(...) De Eduardo Prado é, ainda, o famoso ―A ilusão Americana‖, de oposição incisiva,
mas raramente bem documentada, à política do Brasil republicano em relação aos
196
Estados Unidos‖ . Freyre afirma que o tema das relações entre o Brasil e EUA foi a
principal contribuição de Eduardo Prado ao debate público brasileiro da época, sendo o
autor paulista ―aquele que mais contribuiu para que se desenvolvesse em numerosos
197
brasileiros do mil e novecentos a antipatia ao ―gigante louro‖ do continente‖ . Mais
recentemente, os trabalhos de Carlos Henrique Armani e Carmen Lúcia Felgueiras
também abordaram as crìticas que Eduardo Prado fez aos EUA no livro ―A Ilusão
Americana‖. Ambos os autores propuseram o exame dos textos que Eduardo Prado
escreveu sobre os EUA, indicando que ele tentou pensar o Brasil através da comparação
com a grande República norte-americana. Portanto, as reflexões que apresento neste
capítulo, de alguma forma, seguem as pistas sugeridas por esses dois historiadores.

Em um trabalho sobre o problema da temporalidade no pensamento social


brasileiro finissecular, Armani interpreta os textos que Eduardo Prado escreveu ao longo
dos anos 1890 à luz do interesse em definir uma ―ontologia‖ para o Brasil. O autor
acredita que Eduardo Prado e seus interlocutores pensaram essa ontologia a partir de
―exteriores constitutivos‖, pois ―os principais sujeitos dessa exterioridade foram a
América Hispânica, a América Anglo-Saxônica, a Europa e o próprio Brasil republicano
como outro Brasil, pelo menos para o monarquista Eduardo Prado e para alguns de seus
198
interlocutores, como Afonso Celso‖ . Armani argumenta, portanto, que Eduardo
Prado foi um antiamericanista por excelência, sendo que esse antiamericanismo é
pensado como um desdobramento da crítica à jovem República brasileira.

A principal denúncia apresentada por Prado em ―A Ilusão Americana‖ era de que


a autodeterminação das nações da América Latina estava ameaçada pelo primo

196
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Editora Global: São Paulo, 2004. pp. 73-74.
197
Idem. p. 186.
198
ARMANI, Carlos Henrique. Discursos da Nação: historicidade e identidade nacional no Brasil em
fins do século XIX. Porto Alegre: Ed. PUCRS, 2010. p. 12.

101
loiro do norte, que pretendia fazer da América um ―espaço vital‖ de sua
geopolítica, sob o eufemismo de fraternidade americana, sustentada pela
Doutrina Monroe. Significava para esses escritores, como pensava Nabuco em
1893, a perda de um continente199.

Carlos Henrique Armani apresenta uma informação que até então eu


desconhecia: Joaquim Nabuco teria sido a fonte de inspiração do livro ―A ilusão
americana‖. Seja como for, o grande mérito do trabalho de Armani está na apresentação
da interlocução que outros autores da época travaram com o livro de Eduardo Prado.
Entre os críticos do livro, Armani destaca a figura de Tristão Araripe Jr (1848-1911),
para quem os EUA não teriam uma postura imperialista, pois ―estavam imersos em uma
nova crença polìtica‖.

Não se trata mais de ambições prepotentes , nem dessas mesquinhas leis de


equilíbrio europeu (...) Amanhã, o que se debaterá é o equilíbrio dos continentes:
a transformação do direito internacional, de mediterrâneo em transoceânico: o
estabelecimento de princípios que sirvam de base à nova jornada que o mundo
vai empreender sob os auspícios de uma intercorrência industrial, de que os
gregos e os romanos não houveram sequer o pressentimento: enfim, a conquista
democrática do universo200.

Portanto, enquanto Prado acusava os EUA de subjugar as nações latino-


americanas, tratando-as como escravas, Araripe Jr acreditava que esse mesmo país
estava consolidando uma democracia mundial. Como o texto de Araripe Jr foi publicado
em 1902, ou seja, um ano após a morte de Eduardo Prado, não temos a chance de
analisar a resposta do nosso autor. Outro ponto de destaque no trabalho de Carlos
Henrique Armani é o seu empenho em mostrar que nem só de ataques é feita a relação
de Eduardo Prado com os EUA, já que em outros momentos o autor elogiou esse país,
como, por exemplo, nos ―Fastos da Ditadura Militar Brasileira‖, onde disse que ―A
ditadura militar brasileira pode até se chamar ―Estados Unidos do Brasil‖, mas todos
sabem que somente os ―Estados Unidos da América do Norte‖ corresponderiam na
história sempre à ideia de liberdade, dignidade e força moral‖ 201.

Há aqui uma boa pista para seguir, um rastro que conduz ao diálogo de Eduardo
Prado com um dos principais argumentos do repertório conservador moderno. Edmund
Burke (1729-1797), François René de Chateaubriand (1768-1848) e Alexis de
Tocqueville (1805-1859) são, segundo os estudos de Karl Mannheim e Robert Nisbet,
os principais responsáveis pelo delineamento do repertório do conservadorismo

199
Idem. p. 92.
200
Idem. p. 94.
201
Idem. p. 95.

102
moderno. No catálogo da biblioteca de Eduardo Prado, que está sendo tão importante
para a reflexão que estou desenvolvendo nesta tese, constam os textos escritos por esses
três autores, incluindo as ―Reflexões sobre a Revolução Francesa‖, de Burke, a
―Democracia na América‖, de Tocqueville, e a ―Viagem à América‖, de Chateaubriand,
todos classificados com a rubrica ―Polìtica‖ por A. Gazeau, o livreiro responsável pela
organização do catálogo. Apesar das especificidades que particularizam o pensamento
político desses três autores, é possível perceber a recorrência de alguns argumentos que
se tornaram fundamentais para a ―ideologia conservadora‖, para utilizar um termo caro
a Karl Mannheim. Entre esses argumentos, o elogio aos EUA é o mais importante para a
reflexão que estou desenvolvendo neste capítulo. Edmund Burke, por exemplo, nas suas
―Reflexões sobre a Revolução Francesa‖, diz que ―na América, os EUA [diferente dos
jacobinos franceses] não nivelaram a sociedade com pretexto de fundar a liberdade, mas
sim garantiram que o povo fosse livre para participar de todas as decisões do
governo‖202.

O caminho trilhado por Tocqueville no seu ―A democracia na América‖ é


semelhante, pois, afirma o autor, ―a herança da liberdade civil legada pelos puritanos
ingleses e a preocupação com o bem comum fizeram dos EUA o berço das virtudes
polìticas modernas‖ 203. Também Chateaubriand disse algo parecido:

Há duas espécies de liberdades praticáveis: uma pertence à infância dos povos; é


filha dos costumes da virtude; a outra nasce da velhice dos povos; é filha das
luzes e da razão; é essa liberdade dos Estados Unidos. Terra feliz que, em menos
de três séculos, passou de uma liberdade à outra quase sem esforço, com uma
luta que durou apenas oito anos. Hoje, o povo americano é o mais livre entre os
povos civilizados204.

Os três autores, portanto, marcados pelos impactos da Revolução Francesa,


valorizam a Revolução Americana como um paradigma de como é possível
salvaguardar as liberdades fundamentais do ―povo‖ sem violar as tradições mais
fundamentais. Nas palavras de Robert Nisbet, para esses autores conservadores, a
Revolução Americana ―fora motivada apenas pelo desejo de liberdade: liberdade para o
povo em relação a um governo que procurava impor ilegitimamente a sua vontade sobre
os direitos‖. Parece, então, que o elogio conservador aos EUA se fundamenta na
percepção antiga de liberdade, que, como já sabemos, valoriza o autogoverno do povo.
202
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 93.
203
TOQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia: Ed. USP, 1983. p. 150.
204
CHATEAUBRIAND, François-René. Viagem à América. Rio de Janeiro: EDIPRO, 2005. p. 39.

103
Por isso, a liberdade antiga é definida a partir do contraste com a escravidão. No livro
―A Ilusão Americana‖, Eduardo Prado utilizou um argumento semelhante para elogiar
os ideais dos fundadores da república norte-americana e para criticar a política externa
desenvolvida pelos EUA ao longo do século XIX.

Em mais de uma ocasião, Eduardo Prado teceu elogios aos EUA, a começar
pelas crônicas reunidas no livro ―Viagens‖. O tom elogioso pode ser percebido já no
início do relato:

Chegamos em Nova York às sete da manhã e pude ver o raiar do dia na principal
cidade do berço das liberdades políticas do novo mundo; o sol queimava a nossa
pele levemente, fazendo-nos lembrar que estávamos próximo ao calor do Brasil;
(...) estávamos chegando à vanguarda das liberdades modernas 205.

Algo parecido pode ser encontrado, até mesmo, nas páginas do ―A Ilusão
Americana‖, que como já sabemos tratou-se de um livro destinado a criticar a guinada
americanista da política externa brasileira nos primeiros anos da República. Para
Eduardo Prado, e esse é o argumento central do livro, os governos republicanos estavam
buscando a aproximação entre Brasil e EUA baseados na crença do principio da
fraternidade americana, que era o fundamento da Doutrina Monroe. O nosso autor
afirma que esse princípio era mentiroso, tratando-se tão somente de um pretexto
utilizado pelos EUA para a dominação dos países americanos. Mesmo assim, mesmo
em um livro de natureza crítica, o nosso autor identificou as virtudes dos fundadores da
República estadunidense, virtudes que teriam sido perdidas com o passar do tempo.

No último quartel do século passado, homens extraordinários, da velha estirpe


saxônia, revigorada pelo pluritanismo e alguns deles bafejados pelo filosofismo,
surgiram nas trezes colônias inglesas da América do Norte. Resolveram
constituir em nação independente a sua pátria, e não lhes entrou nunca pela
mente fazer proselitismo republicano na América. Nem isso era próprio de sua
raça, todos eram amantes da liberdade206.

Aqui, a natureza do elogio é um tanto quanto diferente. Se nos relatos das


―Viagens‖, Eduardo Prado definiu os EUA como o ―berço das liberdades polìticas‖ do
novo mundo, dando a entender que o país ainda ocupava essa posição, no trecho
extraìdo da ―Ilusão Americana‖, o autor sugere que os fundadores dos EUA, que são
definidos como ―homens extraordinários‖, não eram republicanos e amavam a
liberdade. O autor, então, parece desvincular as noções de liberdade e república,
deixando claro o seu posicionamento político antirrepublicano. Mas qual concepção de

205
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 182.
206
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 22.

104
liberdade que Eduardo Prado mobiliza nos seus textos sobre os EUA? Acredito que a
essa questão pode ser melhor pensada se dedicarmos alguma atenção ao lugar que os
EUA ocupam na teoria política moderna. Para isso, é fundamental retomar a discussão,
que já apresentei antes, quando destaquei importância dos estudos de Hans Baron sobre
o pensamento político florentino para a nossa atual percepção a respeito das tradições
politicas ocidentais. Como já sabemos, os estudos desse autor foram seminais para a
história do pensamento político porque foram inovadores naquilo que se refere às
relações entre os valores políticos antigos e modernos. Ao propor que a Renascença
reatualizou os valores políticos das cidades-estados antigas, Baron apresentou uma tese
que foi posteriormente desdobrada por diversos estudiosos, entre estes Bernard Bailyn,
que em 1967 publicou um estudo fundamental a respeito da história dos EUA. Ao
examinar os panfletos políticos escritos na época da revolução independentista, Bailyn
afirmou que:

O medo de uma conspiração ampla contra a liberdade no mundo de língua


inglesa – uma conspiração que se acreditava ter sido alimentada na corrupção e
sobe a qual se sentia que a opressão na América do Norte era apenas a parte mais
visível – estava no coração do movimento revolucionário207.

Na análise do autor, a motivação original dos conflitos travados entre o governo


da Inglaterra e as autoridades coloniais era a questão dos limites da ingerência do
parlamento inglês no território colonial. A grande novidade trazida por Bailyn se refere
às ―raìzes ideológicas‖ do movimento revolucionário. Diferente do que se pensava até
então, o autor afirma que essas raízes não estavam na filosofia política de Locke, mas
sim na tradição republicana que foi passada aos revolucionários americanos pelos
pensadores ingleses do século XVII. Nesse sentido, o autor acredita que a influência
mais notória dos revolucionários foi o pensamento político desenvolvido na antiguidade
clássica, que era de conhecimento ―universal entre colonos com algum grau de
educação, sendo as referências aos pensadores clássicos abundantes na literatura da
época‖208.

Os clássicos do mundo antigo estão em toda parte na literatura da revolução, mas


estão em toda parte como ilustrativos, não determinantes do pensamento.
Contribuíam com um vocabulário vívido, mas não com a lógica ou gramática do
pensamento, uma personificação universalmente respeitada mas não a fonte de

207
BAILYN, Bernard. As origens ideológicas da Revolução Americana. São Paulo: EDUSC Ed, 2003. p.
18.
208
Idem. p. 42.

105
crenças políticas e sociais. Eles intensificaram a sensibilidade dos colonos para
ideias e atitudes provenientes de outras fontes209.

Entre essas ideias que sensibilizaram os colonos, podemos destacar a liberdade


civil, com a qual estou trabalhando desde o início desta unidade. Alguns anos depois,
mais exatamente em 1975, John Pocock publicou o seu ―The Machiavellian Moment:
Florentine Political Thought and the Republican Tradition” e corroborou a tese de
Bailyn. Para esse autor, o discurso republicano clássico se manifestou em três
momentos na história do pensamento político ocidental moderno: na Florença durante a
transição entre os séculos XV e XVI, na Inglaterra no século XVII e nos EUA no século
XVIII. Para Pocock210, os ―EUA nasceram não como o primeiro ato polìtico do
iluminismo revolucionário, mas sim como o último grande ato do renascimento‖ 211.
O paradigma do republicanismo cívico sofreu muitas críticas ao longo dos anos
1990, tendo destaque aquelas que foram apresentadas por Gibson, mas também
conquistou muitos adeptos fora do mundo anglo-norte-americano, como, por exemplo,
Philipp Petti e M. Ozouf. Não acho necessário detalhar ainda mais essa discussão
historiográfica. Para os interesses deste trabalho, basta dizer que a sugestão de que os
valores cívicos foram fundamentais para o processo de construção dos EUA é bastante
fértil para o exame dos textos que Eduardo Prado escreveu sobre este país,
particularmente aqueles que compõem o primeiro volume das ―Viagens‖. Vejamos, por
exemplo, o que Eduardo Prado disse em 1886 sobre o congresso estadounidense.
Pequenas mesas dispostas em frente às poltronas fornecem aos representantes do
país comodidade, pena, tinta e papel, coisas que junto ao patriotismo e à
inteligência, bastam para que se façam boas leis, para que se construa uma nação
alicerçada nas mais plenas liberdades, no verdadeiro governo do povo212.

O tom elogioso é evidente, o que demonstra que na época, quando o Brasil ainda
era governado pela Monarquia, o nosso autor era um admirador dos EUA, situação que
mudaria drasticamente após o golpe republicano de 1889. Acredito que seja possível,
ainda, identificar nessa breve citação a combinação entre a liberdade liberal e a
liberdade cívica. É certo que Eduardo Prado não sistematiza nenhuma das duas
perspectivas, mas o seu elogio sinaliza o uso dessas tradições, o que demonstra que a
sugestão de Baron, Pocock e Bailyn de que os valores cívicos das cidades estados
antigas chegaram à modernidade pode servir como um bom modelo de análise para o

209
Idem. p. 45.
211
POCOCK. J. G. A. The Machiavellian moment. Princeton: Princeton Press, 1975. p. 326.
212
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 183.

106
estudo dos textos de um pensador conservador moderno, como foi Eduardo Prado. Ao
dizer que o Congresso estadunidense era a morada dos ―representantes‖ do paìs, o nosso
autor mobilizou os valores políticos pertencentes ao repertório liberal, que, como já
vimos, é constituído entre outros, pelo princípio democracia representativa, segundo o
qual o povo é livre porque vota e delega poder aos seus representantes. Por outro lado,
Eduardo Prado definiu a República ianque como um ―verdadeiro governo do povo‖, o
que sugere o princípio da auto governabilidade do corpo político, valor que é
fundamental para o repertório cívico. A argumentação é semelhante quanto Prado
aborda o empenho dos governos dos EUA em garantir as liberdades políticas dos
cidadãos.
Em nenhum país, o governo é tão responsável pelo bem estar do povo como nos
EUA, justamente porque nesse país o governo deixa o cidadão ao livre conduzir
de sua empresa individual. (...) Por seu turno, o cidadão típico dessa grande
República tem a tranquilidade necessária para cultivar a sua riqueza privada e
participar ativamente do governo da República 213. (Grifos Meus)

Nesse trecho, o elogio de Eduardo Prado é estendido ao cidadão comum, o que


nos coloca diante da questão das relações entre o público e o privado, assunto que é
examinado com mais cuidado no próxima unidade. Ainda que o tema da liberdade não
seja explicitamente mencionado, ele pode ser inferido. Prado alega que o grande mérito
do governo dos EUA é não intervir na vida privada do cidadão, deixando-o livre, no
sentido de não ser cerceado na sua iniciativa privada por nenhum obstáculo, para agir
como quiser. Por seu turno, o cidadão utiliza essa liberdade, tratada na sua dimensão
moderna e liberal, para cuidar dos seus interesses pessoais, o que não significa
necessariamente abandonar os interesses públicos e, por isso, ele atua, porque é livre,
também no governo da República. Nesse sentido, as liberdades antiga e moderna se
complementam, portanto, em uma experiência política que, segundo Eduardo Prado, é
virtuosa tanto na esfera do governo como na esfera dos cidadãos.

3.3 - O problema das formas de governo no livro ―A Ilusão Americana‖

Cerca de sete anos depois de redigir os relatos de sua viagem aos EUA, Eduardo
Prado voltou a escrever sobre esse país. Os tempos eram outros, assim como são outros
o estilo da narrativa e o tom da argumentação. Diferente dos textos das ―Viagens‖, o
livro ―Ilusão Americana‖ é marcado por um notório esforço de sistematização analìtica.

213
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 185.

107
Nesse livro, o nosso autor levanta um problema e apresenta uma tese, sendo a sua
escrita marcada por um sensível rigor metodológico e pelo constante apelo à
documentação, o que demonstra o interesse de Prado em investir o seu texto de
credibilidade científica. Outra diferença notória entre os dois textos está na dimensão
polìtica. Enquanto nas ―Viagens‖, Prado pretendia narrar suas experiências de viagem
para os leitores da ―Gazeta de Notìcias‖, atuando como um ―Heródoto brasileiro‖, como
bem o definiu Eça de Queirós, o livro ―A Ilusão Americana‖ é, claramente, um
manifesto de oposição à República brasileira. Por isso, ainda que o teor analítico desse
texto seja perceptível, não podemos esquecer que ele faz parte do projeto político
restaurador do qual Eduardo Prado foi um dos principais líderes. O vínculo do livro de
Eduardo Prado com sua política antirrepublicana fica claro já no prefácio à segunda
edição, que foi escrita em 1894, quando o nosso autor estava no exílio na Europa.
Eram jovens os nossos bisavós quando foi extinto o santo ofício. Deste então, em
nosso país, nunca mais o poder ousou interpor-se entre os nossos raros escritores
e o seu escasso público. Julgavam todos definitiva esta conquista liberal, mas o
governo republicano do Brasil, tristemente predestinado sempre contra a
civilização, a todos desenganou. Na República o livro não teve mais liberdade do
que o jornal, do que a tribuna, nem mais garantias do que o cidadão. Disse um
romano que os livros têm seu destino. O deste não foi dos piores, honrado, como
foi, com as iras dos inimigos da liberdade, que demonstraram como no Brasil o
governo da nação não é da alçada do povo214. (Grifos Meus)

Como é comum nos seus textos mais marcadamente antirrepublicanos, Eduardo


Prado também utilizou no livro ―A Ilusão Americana‖ o expediente da comparação com
a Monarquia. O autor afirma que depois da desativação do santo ofício, o Estado
brasileiro não tinha interferido na ação dos escritores, tendência que teria sido
interrompida pela República, o que representou, ainda de acordo com a argumentação
de Prado, um retrocesso naquilo que se refere à garantia das liberdades políticas. É
importante destacar que, nesse texto, a noção de ―liberdades polìticas‖ ganhou uma
especificidade: a liberdade de pensamento, o que vincula a argumentação de Eduardo
Prado ao repertório liberal, já que falar em liberdade de pensamento implica
necessariamente em defender a liberdade do indivíduo de pensar e escreve o que bem
entender, sem que seja constrangido por qualquer empecilho. Entretanto, a presença do
repertório liberal não implica na ausência do repertório cívico, como podemos perceber
na parte final da citação, quando Prado afirma que no Brasil o governo da nação foi
monopolizado por poucos, não estando mais sob a responsabilidade do corpo político,
do povo, como teria acontecido nos tempos da Monarquia.

214
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 16.

108
Não sou o primeiro a identificar a presença dos valores do republicanismo cívico
no livro ―A Ilusão Americana‖. Em um importante trabalho a respeito das
representações desenvolvidas por Eduardo Prado e Monteiro Lobado a respeito dos
EUA, Carmem Lucia Felgueiras apresentou uma interpretação semelhante.
Ocorre, portanto, que estarão unidos em sua concepção de República um
conceito agostiniano de tempo e a vertente polibiana do humanismo cívico,
quando afirma que a virtude da parte (ou partido, ou classe) governante,
precisamente por ser uma virtude particular, torna-se corrupta tanto pelo fato de
operar a junção de interesses públicos e privados quanto porque impede o
desenvolvimento da virtude nos grupos excluídos do poder215.

Deixo por enquanto em suspenso a questão da temporalidade, que é uma boa


sugestão da autora e que retomo no oitavo capítulo desta tese, para concentrar-me,
especificamente, no problema da presença dos valores pertencentes ao repertório da
tradição republicana no texto de Eduardo Prado. Acredito que esta presença não se
encontra apenas no livro ―A Ilusão Americana‖, mas em toda a obra de Eduardo Prado,
estando associada, sempre, ao liberalismo, o que demonstra que as relações entre os dois
repertórios não são, necessariamente, de exclusão recíproca.
Como já disse antes, o tema do livro é a diplomacia republicana, especialmente o
esforço dos primeiros governos da República em implantar no Brasil instituições
políticas semelhantes as dos EUA. Prado criticou esse esforço através de uma reflexão
que se desdobrou em dois argumentos: primeiro, ele se empenhou em mostrar que EUA
e Brasil eram realidades sociais completamente diferentes, sendo, portanto, um erro
postular que as instituições de um poderiam ser transportadas para o outro. Depois, ele
confrontou diretamente a afirmação de que os EUA eram os defensores da liberdade das
nações latino-americanos, argumento que era fundamental para a Doutrina Monroe. Na
articulação dos dois argumentos, vemos emergir o Eduardo Prado historiador, que se
destacaria na historiografia brasileira finissecular, sendo um interlocutor de importantes
historiadores da época, como, por exemplo, Capistrano de Abreu. Por isso, eu retomo o
exame do livro ―A Ilusão Americana‖ no nono capìtulo da tese, onde examino
especificamente a historiografia eduardiana, com o objetivo de compreender como o
nosso autor se colocou na fronteira entre a história magistral vitae, de inspiração
retórica, e a história científica, de inspiração historicista.
Esses dois argumentos podem ser encontrados já no primeiro parágrafo do livro:

215
FELGUEIRAS, Carmen Lúcia Tavares. O Futuro e suas Ilusões. Os Estados Unidos de Monteiro
Lobato e Eduardo Prado. Tese de Doutorado: Rio de Janeiro, IUPERJ, 1999. p. 157.

109
Pensamos que é tempo de reagir contra a insanidade da absoluta confraternização
que se pretende impor entre o Brasil e a grande República anglo-saxônia, de que
nos achamos separados, não só pela grande distância, como pela raça, pela
religião, pela índole, pela língua, pela história e pelas tradições do nosso povo216.

Carmem Lúcia Felgueiras identificou, com precisão, os vínculos entre a reflexão


desenvolvida por Eduardo Prado no livro ―A Ilusão Americana‖ e o movimento político
restaurador.
A ilusão americana constitui um violento ataque à política externa dos Estados
Unidos, principalmente em relação aos países latino-americanos, que seu autor
acompanha com detalhe e riqueza de informações, de 1823 a 1892, durante o
período de vigência da "doutrina Monroe". Com esse livro, Eduardo Prado
seguramente visava a produzir efeitos bastante abrangentes. Investindo contra a
diplomacia americana, ele julgava, por um lado, golpear a República brasileira
em seu flanco mais débil: a política externa que, necessitando de apoio,
procurava cada vez mais uma aproximação com os Estados Unidos. Entretanto, é
provável que ele também quisesse criar, por outro lado, antipatia de setores da
sociedade brasileira contra aquele país, no intuito de provocar uma definição
mais precisa da própria ideia de nação brasileira. A ilusão americana acabou
tendo, na época, um grande impacto no Brasil; o livro foi proibido, e sua
circulação, impedida, mal acabara de ser impresso. Para Eduardo Prado, no
entanto, essa reação do governo brasileiro era prova do acerto de suas ideias.
Acreditava também que a perseguição que passaram a lhe fazer e o exílio que se
seguiu favoreceriam a sua causa, que era, através do fortalecimento do
movimento pela restauração da monarquia, contribuir para implantar uma nação
com identidade própria217.

Como a dimensão antirrepublicana do livro ―A Ilusão Americana‖ já foi


devidamente apontada pela bibliografia especializada, me dedico a examinar como
Eduardo Prado tratou o tema das formas de governo. Ao criticar a política externa
desenvolvida pelos primeiros governos da República brasileira, o nosso autor pretendia
atacar a forma republicana de governo, o que se desdobrou, entre outras coisas, no
elogio ao regime monárquico. É nessa discussão a respeito das formas de governo que
estou interessado, especificamente forma como Prado usou a ideia de liberdade. Para
Eduardo Prado, a Monarquia seria superior à República porque é institucionalmente
mais capaz de garantir a liberdade. É importante destacar que a experiência monárquica
mobilizada por Prado na crítica ao republicanismo americano não foi a brasileira, mas
sim a inglesa. De forma alguma esse dado é pouco importante. O elogio ao sistema
político inglês pode ser encontrado também nos escritos de importantes pensadores
conservadores modernos, como, por exemplo, Edmund Burke e Montesquieu, que são
duas importantes referências para o pensamento político de Eduardo Prado.

216
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 17.
217
FELGUEIRAS, Carmen Lúcia Tavares. O Futuro e suas Ilusões. Os Estados Unidos de Monteiro
Lobato e Eduardo Prado. Tese de Doutorado: Rio de Janeiro, IUPERJ, 1999. p. 155.

110
A simpatia do nosso autor Eduardo Prado pelo sistema político britânico já pode
ser observada nos seus textos de juventude. Em 1880, ele passou a utilizar o
pseudônimo Tory, em uma clara referência ao Partido Conservador inglês. Na crônica
polìtica publicada no ―Correio Paulistano‖ em março de 1881, o autor escreveu que ―A
218
Inglaterra é o governo mais democrático do mundo‖ . Talvez, Eduardo Prado tenha
aprendido a admirar a Monarquia inglesa em casa, durante a infância, nas conversas
com seu irmão mais velho, Antônio. Da mesma forma como o próprio Eduardo faria
vinte anos depois, Antônio Prado viajou pela Europa, assim que se bacharelou,
chegando a morar em Londres durante dois anos. Em carta enviada ao pai em 1863,
Antônio Prado demonstra o seu deslumbramento com o regime político inglês, dizendo
que ―a Inglaterra conseguiu encontrar a fórmula ideal para fazer frear a Revolução. O
pacto entre o direito dinástico e os notáveis, todos andando juntos e harmonia e guiando
a coletividade para a civilização. Parece ser essa a fórmula ideal‖ 219.
Elogio semelhante pode ser encontrado nos escritos de Edmund Burke (1729-
1797), que era um apologista da Monarquia inglesa e definia esse sistema político como
o ideal para a modernidade porque era capaz de se colocar no meio termo entre a
autoridade despótica do chefe e a irresponsabilidade da plebe. Essa defesa do ―governo
dos melhores‖ fica particularmente evidente na análise que esse filósofo inglês fez da
experiência da Revolução Francesa. Para Burke, a cultura política da Revolução
Francesa, particularmente o jacobinismo, errou ao tentar definir a cidadania e a
liberdade moderna a partir dos critérios clássicos de cidadania e liberdade. O autor de
―A Vindication of natural society” considerou esse um ―erro primário e básico de
interpretação, um equívoco de análise que pecou por não reconhecer as especificidades
das experiências em questão‖220.
Nesse sentido, a argumentação de Burke contra a Revolução Francesa pode ser
dividida em dois momentos: no primeiro, ele aponta a especificidade histórica da
Atenas antiga e da França moderna e na segunda ele afirma a inaplicabilidade dos
valores clássicos à sociedades modernas. Burke definiu a Revolução Francesa como um
ataque à ordem Wigh implantada na Inglaterra em 1688. Esse ataque, ainda segundo ele,
esteve baseado no princípio antigo de cidadania, fundamentado, por sua vez, na
valorização da autonomia resultante da posse da propriedade real. Bastava, então, que o

218
―Correio Paulistano‖. 23 de outubro de 1881.
219
D‘AVILLA, Luiz Felipe. Dona Veridiana: a trajetória de uma dinastia paulista. São Paulo: Editora
Girafa, 2004. p. 265.
220
BURKE, Edmund. The works of the Edmund Burke. Rivington: Londres, 1826. p. 46.

111
sujeito atendesse alguns critérios, como idade, nascimento e filiação, e possuísse
condições de garantir a sua própria subsistência para que tivesse direito efetivo à voz
política. Para Burke, esse cidadão antigo era economicamente subdesenvolvido já que
lançava mão da escravidão, não tendo, por isso, a verdadeira virtude.
No livro ―A Ilusão Americana‖, Eduardo Prado apresenta uma crìtica
semelhante à Revolução Francesa. Essa crítica é um desdobramento do elogio que o
autor fez aos fundadores da República norte-americana, que, como vimos há pouco, o
ele chamou de ―homens extraordinários‖.
É altamente cômica a ignorante pretensão com que escritores francês superficiais
procuram ligar a revolução americana à revolução francesa, querendo por força
que as ideias revolucionárias francesas tenham influído na América, quando, a
ter havido alguma influência, foi antes da América sobre a França (...) Quando
rebentou a revolução, quando ela começou a exigir a liberdade de matar e
incendiar, houve em toda a América uma grande simpatia por Luís XVI e Maria
Antoniete, os antigos aliados, os generosos protetores da independência
americana. Pouco tempo depois, o governo de Washington rompeu relações
diplomáticas com a República francesa221. (Grifos Meus)

Para Prado, a Revolução Francesa extravasou os limites da liberdade a tal ponto


que aceitou o assassinato e a destruição. Ainda que a menção à categoria liberdade seja
breve, acredito ser possível sugerir que na crítica à Revolução Francesa, o nosso autor, a
exemplo de Burke, criticou a concepção cívica de liberdade. É como se Prado estivesse
defendendo a restrição da liberdade aos limites da ordem. Dessa vez, o autor não fala na
ausência de restrições ao livre movimento do corpo físico, mas a julgar pelos seus
outros escritos, creio que não seria um absurdo dizer que ao criticar a Revolução
Francesa, Prado está mobilizando o repertório político liberal. Essa inspiração liberal
pode ser percebida também no trecho onde Prado questiona a inspiração republicana dos
fundadores dos EUA.
Se os Estados Unidos na época da sua independência, tivessem encontrado um
príncipe inglês, como o Brasil encontrou um príncipe português, a monarquia se
teria estabelecido nos EUA; teríamos um país colossal e respeitador da liberdade
dos outros povos americanos. Por isso, a falta de fraternidade entre as Repúblicas
norte-americana e francesa. Na França, a República é a anomalia, nas origens, os
EUA eram a harmonia, tanto que poderiam ter se tornado herdeiros do regime
político da mãe britânica222. (Grifos Meus)

Ao afirmar que a República francesa é anômala, Prado, ainda que de forma nada
sistematizada, retomou o argumento de que o processo revolucionário francês excedeu
os limites da liberdade segura, comprometendo, portanto, a normalidade social.
Situação diferente teria acontecido nos EUA, onde o processo revolucionário foi

221
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. pp. 22-23.
222
Idem. p. 50.

112
virtuoso e não necessariamente republicano. O autor acredita que um Príncipe inglês
teria sido o suficiente para fazer do novo país uma Monarquia respeitadora da liberdade
das outras nações latino-americanas. Para Prado, se os EUA tivessem se tornado uma
Monarquia nos moldes ingleses, as nações latino-americanas seriam livres, ou seja, se
auto-governariam livremente e não sofreriam a opressão do imperialismo estadunidense.
Percebo aqui presença dos valores constitutivos do repertório cívico, já que Prado não
está interessado na dimensão individual dessa liberdade, mas sim na sua manifestação
no corpo político, nos povos latino-americanos; a liberdade aqui é definida a partir do
contraste com o imperialismo norte-americano. Essa presença fica ainda mais clara
quando Prado compara as atuações da Monarquia inglesa e da República estadunidense
na conjuntura da emancipação dos países latino-americanos.
Vejamos na história: que auxílio prestou o governo americano à independência
das colônias ibéricas da América? Qual tem sido a atitude dos Estados Unidos
quando estes países têm sido atacados pelos governos europeus? Com os tem
tratado o governo de Washington? Qual tem sido o papel dos Estados Unidos nas
lutas internacionais e civis da América Latina? Qual a sua influencia política,
moral e econômica sobre estes países? (...) À Inglaterra principalmente, e não
aos Estados Unidos, deve a América latina a força moral que lhe permitiu fazer a
sua independência. A independência das nações latinas da América em nada foi
protegida pelos Estados Unidos, que somente se manifestou a favor das
chamadas ―nações irmãs‖ depois da Inglaterra223.

Os elogios de Eduardo Prado à Monarquia inglesa podem ser melhor


compreendidos à luz dos escritos de Montesquieu, que ao longo do ―Espìrito das Leis‖
deixa clara a sua admiração pelo regime monárquico. Isso fica particularmente evidente
nas páginas nas quais o autor analisa a história das Monarquias modernas a partir dos
costumes das nações germânicas que invadiram o Império Romano. Ao examinar o
desenvolvimento dessas nações, Montesquieu afirma que ― é espantoso que a corrupção
de um povo conquistador tenha gerado a melhor forma de governo que os homens
224
puderam imaginar‖ . Quando comparadas às Repúblicas, as Monarquias, segundo
Montesquieu, são mais eficientes na resolução dos negócios públicos, o que não
significa necessariamente que o autor esteja fazendo apologia do poder pessoal. Para
Montesquieu, o mais importante de uma Monarquia é a virtuosidade do príncipe, já que
―é nas monarquias que veremos, em torno do príncipe virtuoso, os súditos receberem
sua influencia; e ali que cada um, ocupando, por assim dizer, maior espaço, pode
exercer essas virtudes que dão à alma não independência, mas grandeza‖225. Ao ler

223
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. pp. 24-25.
224
MONTESQUIEU. O espírito das leis. Rio de Janeiro: Ed. Saraiva, 1994. p. 117.
225
Idem.

113
essas palavras, podemos ficar inclinados a supor que a análise de Montesquieu não está
comprometida diretamente com a defesa das liberdades políticas. Essa impressão se
dilui no capìtulo ―Da Excelência do Governo Monárquico‖, onde o autor explica que a
existência de ordem sociais intermediárias sob o governo do príncipe faz com que o
Estado tenha mais estabilidade e não incorra no poder pessoal, uma vez que o príncipe
deve satisfações aos grupos que comanda, tendo seus poderes limitados pela lei, que é
definida como a ―materialização da vontade da nação‖. Porém, os elogios de
Montesquieu não se dirigem a todo e qualquer governo no qual a soberania esteja
depositada na pessoa do Príncipe, mas sim aqueles nos quais a nobreza seja uma classe
política ativa e capaz de manter conter os poderes do Monarca nos limites previstos pela
lei.
Naquilo que se refere especificamente à Monarquia inglesa, Montesquieu, a
exemplo de Burke, considerou o regime político inglês o mais próximo do ideal
moderno de organização polìtica, dada a ―coparticipação do povo de dos nobres no
comando da nação, o que faz com que a Inglaterra seja uma verdadeira República
226
disfarçada sob a forma de Monarquia‖ . Tal como Eduardo Prado fizera nas suas
crônicas de viagem, Montesquieu também não utilizou a categoria ―República‖ na sua
perspectiva moderna, mas sim no seu sentido clássico, de acordo com o qual um
governo pode ser chamado de republicano se for regulado pela soberania da lei e
conduzido segundo a vontade do povo.
Ao operar com a polarização Monarquia X República, Eduardo Prado estava
tentando discutir outro par antitético: liberdade X despotismo. Exatamente por isso, o
livro ―A Ilusão Americana‖ é tão importante para a reflexão que venho desenvolvendo
nesta primeira unidade. Como mostrei neste capítulo, essa polaridade perpassa o texto,
chegando mesmo a ser desdobrada em uma discussão a respeito da escravidão, que é
onde fica mais perceptível a presenta dos valores do republicanismo cívico na
argumentação de Eduardo Prado.
O nosso autor criticou veementemente o governo peruano por ter utilizado, na
década de 1880, o trabalho escravo chinês na produção de guano. A forma como
Eduardo Prado trata o posicionamento dos EUA e da Inglaterra a respeito nos leva ao
cerne da discussão a respeito da liberdade.
Esse tráfico de escravos amarelos era feito por umas casas americanas, e quase
sempre sob a bandeira estrelada que protegia a escravidão asiática (...) O

226
Idem. p. 224.

114
ministro americano Hurbulrth era o legítimo representante dos interesses
fundidos das casas americanas e dos políticos peruanos nos escândalos da
exploração do guano e dos mil negócios que, à sombra da diplomacia norte-
americana, tinham já arruinado o peru, tornando-o escravo do grande protetor do
norte227. (Grifos Meus)

Ao denunciar o envolvimento do ministro estadunidense com o tráfico de


escravos chineses, Eduardo Prado acusou a cumplicidade dos EUA com a mais ―vil de
todas as relações de trabalho‖. A associação dos EUA com o trabalho escravo foi o
principal argumento que o autor mobilizou na tentativa de desqualificar esse país,
mostrando-o como a matriz de um republicanismo americano vicioso. Para Prado, até
mesmo durante o processo de abolição da escravidão, ―que nos EUA tiveram uma
solução genuinamente republicana, isto é, a solução pela violência, pela força, pelo
grande fragor da guerra fratricida‖, os EUA mostraram-se despóticos 228. Diferente teria
sido o tratamento dado pela Monarquia inglesa ao problema da escravidão.
Recolhidos a bordo de um navio de guerra inglês, os desgraçados que tinham
escapado à ferocidade americana foram restituídos às suas ilhas, devendo sua
salvação ao espírito cristão da Inglaterra, às sociedades humanitárias compostas
de burgueses, de mulheres religiosas e de curas de aldeia, que naquele país, que é
o mais poderoso e livre do mundo têm bastante influência para mover a
imprensa, a opinião e o governo em favor de uns míseros selvagens, perseguidos
a milhares de léguas de distância229.

A correlação de forças apresentada por Eduardo Prado é bem clara: de um lado,


os EUA, representando a República e a escravidão, seja do negro, do chinês ou das
nações latino-americanas. Do outro lado, a Inglaterra, representando a Monarquia e a
liberdade, seja do negro, do chinês ou das nações latino-americanas. Como a liberdade é
definida nessa discussão como o oposto da escravidão, acredito que, pelo menos aqui,
não é no repertório liberal que o nosso autor está se movimentando, mas sim no do
republicanismo cívico.
Ao longo desta primeira unidade, eu apresentei uma proposta de análise do
conservadorismo de Eduardo Prado que priorizou a investigação do uso que o autor fez
da ideia de liberdade. Mostrando-se um escritor versátil e oportunista, Prado combinou,
ao sabor das circunstâncias, as concepções liberal e civil de liberdade, o que sugere que
os repertórios antigo e moderno não são, obrigatoriamente, excludentes entre si.
Acredito que a combinação entre esses repertórios é a principal característica do
conservadorismo de Eduardo Prado, podendo ser percebida, também, caso o exercício

227
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 86.
228
Idem. p. 131.
229
Idem. p. 85.

115
interpretativo priorize outro recorte conceitual. É exatamente isso que faço na próxima
unidade, onde examino os textos de Eduardo Prado à luz do problema das relações entre
vida pública e vida privada.

116
Unidade II

A vita activa e o privatismo moderno: o


conservadorismo de Eduardo Prado à luz da
combinação entre os repertórios da tradição
republicana e do jusnaturalismo moderno

117
118
Prólogo

E, assim como as leis antepõem a saúde de todos a de cada um, assim o varão
bom, sábio e obediente às leis, e não ignorante do dever civil, atenta mais à
utilidade de todos que a de um só ou à sua própria (...) É digno de nota aquele
que se lança à morte pela República, dando-nos testemunho de que devemos
230
amar mais a pátria do que a nós mesmos . (Cícero)

Se fosse exigido o consentimento expresso de todos para que alguém se


apropriasse individualmente de qualquer parte do que é considerado bem
comum, os filhos ou os criados não poderiam cortar a carne que seu pai ou seu
senhor lhes forneceu em comum, sem determinar a cada um sua porção
particular. Ainda que a água que corre na fonte pertença a todo mundo, quem
dúvida que no cântaro ela pertenceu apenas a quem a tirou? Seu trabalho a tirou
das mãos da natureza, onde ela era um bem comum e pertencia igualmente a
231
todos os seus filhos, e a transformou em propriedade . (John Locke)

Como já venho argumentando desde o início desta tese, os escritos de Eduardo


Prado representam um material de difícil trato na medida em que são bem numerosos - a
despeito da curta vida do autor - e extremamente variados do ponto de vista temático.
Por isso, acredito que, no caso específico do pensamento político desse autor, a análise
deve evitar a tentação de buscar formulações conceituais mais rígidas e priorizar a
dimensão circunstancial dos textos, o que demanda, por parte do analista, o esforço de
situar a performance do personagem em questão no calor das disputas políticas do seu
tempo. Na unidade anterior, eu apresentei inúmeros exemplos do engajamento político
de Eduardo Prado em diferentes momentos da história finissecular brasileira, tendo a
preocupação de analisar o uso que ele fez da ideia de ―liberdade‖. Nesta segunda
unidade, estou interessado, especialmente, nas manifestações de Prado a respeito do
tema das relações entre as esferas pública e privada, o que me permite examinar o
tratamento que o nosso autor deu a um dos assuntos mais importantes da história do
pensamento político ocidental232. Nunca é demais lembrar que esse tratamento não foi
explícito, tampouco teórico, mas sim prático. Nesse sentido, acredito que Eduardo
Prado abordou a dicotomia público X privado em ocasiões específicas, colocando em
prática os repertórios com os quais travou contato ao longo da sua trajetória.

Novamente, eu percebo nos documentos examinados a combinação entre valores


dos repertórios antigo e moderno, o que me parece ser a principal característica do
conservadorismo de Eduardo Prado. É, justamente, porque percebo essa combinação

230
CÍCERO. Do sumo bem e do sumo mal. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 114.
231
LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004. p. 139.
232
No livro ―Estado, governo e sociedade‖, Norberto Bobbio afirma que a dicotomia ―Público X Privado‖
é ―o binômio fundador do pensamento polìtico ocidental uma vez que subsume muitos outros e cujas
fronteiras são difusas e intercambiáveis‖. p. 13.

119
que inicio este prólogo com epígrafes extraídas dos escritos de dois importantes
representantes do pensamento político ocidental, ambos pertencentes ao acervo
bibliográfico do nosso autor: respectivamente, Cícero, que costuma ser associado à
tradição republicana233, e Locke, que é definido como um dos principais representantes
do jusnaturalismo moderno234. A dicotomia público X privado é tratada em ambas as
citações, sendo que isso é feito de formas distintas, o que não quer dizer que sejam
excludentes entre si.

A primeira citação foi extraìda do tratado ―Do sumo do bem e do mal‖ e precisa
ser situada no horizonte da filosofia política de Cícero, que, de acordo com os estudos
de Newton Bignotto, ―tem o objetivo de nortear o comportamento ideal do homem
235
público na República‖ . Portanto, o autor acredita que o pensamento político do
orador romano se relaciona de forma ambígua com a herança grega.

A visão política de Platão e Aristóteles está atrelada à polis e sua filosofia


política é inteiramente dedicada a ideias e problemas desse tipo de organização
política. Mas a polis deu lugar a grandes Impérios e os ideais políticos da
comunidade urbana centralizadas tiveram de ser reconstituídos para adequar-se à
ideia de uma comunidade universal, ao mesmo tempo, humana e ampla. Tornou-
se necessário aos romanos pensar em um novo modo de agir que se adequasse a
um novo espaço e tempos políticos236.

Para Bignotto, portanto, o pensamento político ciceroniano pode ser lido, ao


mesmo tempo, como um herdeiro do estoicismo e um crítico do epicurismo, o que é
fundamental para a argumentação que desenvolvo nesta unidade. Como para o
estoicismo, ainda na esteira das considerações de Bignotto, a natureza é uma razão
ordenadora superior que permite, através da linguagem, o vínculo político entre os
homens, que são definidos como naturalmente predispostos à vida política, há ao longo
da obra de Cícero o enaltecimento do envolvimento do homem com os assuntos
públicos, o que é definido pelo filósofo romano como um comportamento virtuoso. Por
outro lado, ao negar o epicurismo, que defendia o afastamento do sábio dos assuntos
relacionados à vida política, Cícero se mostrou um defensor do princípio da vida
pública ativa, que já tinha sido formulado pelos gregos, e que, posteriormente, veio a se
tornar uma tópica fundamental do pensamento político republicano, podendo ser

233
BIGNOTTO, Newton. As origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
234
BOBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: E. UNB, 1997.
235
BIGNOTTO, Newton. (op cit). p. 32.
236
Idem. p. 42.

120
encontrada nos escritos de pensadores como Maquiavel, Montesquieu e, principalmente,
Hannah Arendt.

Os estudos de Hannah Arendt são fundamentais para a reflexão que desenvolvo


nesta unidade, especialmente aqueles nos quais a autora se debruçou sobre o tema da
vita activa, que são o livro ―A Condição Humana‖ e a conferência ―Trabalho, obra e
ação‖.

A expressão vita activa é perpassada e sobrecarregada de tradição. É tão velha


quanto a nossa tradição de pensamento político, mas não mais velha que ela. E
essa tradição, longe de abranger e conceitualizar todas as experiências políticas
da humanidade ocidental, é produto de uma constelação histórica específica: o
julgamento de Sócrates e o conflito entre o filósofo e a polis237.

Para a autora, o princípio da vita activa nos remete à tradição da filosofia


política grega, podendo ser pensado como a negação de outro princípio: o da vida
contemplativa, que tem em Platão o seu principal representante238. Portanto, a filósofa
alemã relaciona a vita activa à askholia (ocupação, desassossego), termo com o qual
Aristóteles designava toda a ação pública do cidadão. Acredito que o princípio
republicano da vita activa pode servir como uma chave de leitura bastante fértil no
exercício de compreensão do pensamento conservador de Eduardo Prado,
particularmente em alguns de seus textos que foram produzidos na conjuntura da sua
oposição aos primeiros governos da República brasileira, o que demonstra como a
tradição republicana foi um dos repertórios mobilizados pelo nosso autor.

Por outro lado, não podemos esquecer que Eduardo Prado foi um escritor
bastante versátil e que mobilizou nas suas práticas político/intelectuais diferentes
repertórios. Por isso, a segunda citação, de autoria de John Locke, apresenta, também,
uma boa chave para a análise do pensamento político do nosso autor. O trecho foi
extraìdo do livro ―O segundo tratado sobre o governo civil‖, que é um dos mais
conhecidos da filosofia política lockeana. De acordo com os estudos do historiador
alemão Reinhart Koselleck, a filosofia polìtica de Locke pode ser considerada a ―matriz
espiritual do iluminismo burguês‖, principalmente naquilo que se refere à definição da
esfera privada como o lugar do segredo íntimo e do cuidado com o patrimônio pessoal,

237
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 20.
238
Para Hannah Arendt, a antiguidade grega legou ao cristianismo a ideia de que a vida contemplativa é
superior à vita activa. A autora acredita que a matriz desse princìpio é a metafìsica platônica, ―onde a
reorganização utópica da vida na pólis é dirigida pelo discernimento do filósofo e tem a função de tornar
possìvel o modo de vida do filósofo‖. (Idem, p. 24).

121
o que pode ser pensado, ainda de acordo com Koselleck, como o desdobramento do
esforço de Locke em limitar o alcance do poder civil.

O advento da inteligência burguesa tem como ponto de partida o foro interior


privado com o qual o Estado havia confinado seus súditos. Cada passo para fora
em direção à luz, um ato de esclarecimento. (...). Em 1670, sob o domínio
absolutista dos Stuart, John Locke, pai espiritual do iluminismo burguês,
começou a trabalhar em seu Ensaio sobre o entendimento humano, que se tornou
um dos escritos sagrados da burguesia moderno, servindo como orientação para
a defesa da existência de uma esfera privada e inviolável pelo Estado239.

O que mais me interessa nesta discussão é a importância que Locke atribuiu à


propriedade, que foi por ele definida como um direito natural do homem, o que no
jusnaturalismo lockeano significa um tipo de direito que é anterior à formação do
Estado. O filósofo inglês valorizou, também, a ―consciência crìtica ìntima‖, formulação
que é fundamental para a compreensão de alguns textos de Eduardo Prado. Nesse
sentido, ao apontar a existência de direitos pré-políticos que independem da atuação do
governo civil, Locke contribuiu para estabelecer as limitações do poder interventor
desse mesmo governo civil, tornando-se, dessa forma, o principal formulador da noção
moderna de esfera privada. Portanto, acredito ser possível apontar a presença dos
valores jusnaturalistas em alguns escritos de Eduardo Prado, principalmente naqueles
nos quais o nosso autor criticou a política econômica desenvolvida pelos primeiros
governos republicanos.

A hipótese que defendo nesta unidade é que tanto a tradição republicana como o
jusnaturalismo podem ser utilizados como chaves de leitura no estudo do
conservadorismo de Eduardo Prado. Ainda que na maior parte dos seus textos, o autor
não tenha se preocupado em explicitar suas referências, creio seja possível sustentar que
ele tenha utilizado os repertórios republicano e jusnaturalista, que foram mobilizados
nos escritos em que a dicotomia público X privado foi de alguma forma abordada. Essa
hipótese ganha força se dedicarmos atenção para alguns aspectos da biografia de
Eduardo Prado que sugerem o contato do nosso personagem com os repertórios da
tradição republicana e do jusnaturalismo. Esses elementos são oportunamente
explorados ao longo dos capítulos reunidos nesta segunda unidade.

Esta unidade encontra-se dividida em três capítulos, sendo que cada um deles se
debruça sobre um corpus específico dos escritos de Eduardo Prado, justamente aqueles

239
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à protogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: Ed. Contraponto, 1999. p. 49.

122
nos quais a dicotomia público X privado ganha destaque: no quarto capítulo, eu
examino as críticas de Eduardo Prado às estratégias efetivadas pelo governo de Prudente
de Moraes no combate à epidemia de febre amarela de 1896. Nessas críticas, o nosso
autor conclamou os fazendeiros paulistas organizar, à revelia do poder público, ações
240
voltadas ―à defesa dos interesses gerais e da saúde coletiva‖ , o que deu um claro
contorno republicano à sua argumentação.

Já no quinto capítulo, eu estou interessado nos textos nos quais Prado criticou a
política econômica de valorização do café desenvolvida pelos primeiros governos
republicanos, que na opinião do autor ―dilaceram a riqueza e a propriedade daqueles que
241
justamente ergueram com trabalho a sua prosperidade‖ e na atuação de Eduardo
Prado nas páginas do pequeno e efêmero jornal ―A Comédia‖ no inìcio da década de
1880, quando ainda era aluno da Faculdade de Direito de São Paulo. Nesses textos, o
nosso personagem se mostrou, respectivamente, um aguerrido defensor dos interesses
dos cafeicultores paulistas e um atento observador dos costumes das famílias paulistas,
o que o levou a mobilizar elementos fundamentais do repertório do jusnaturalismo
moderno.

No sexto capítulo, eu desenvolvo uma análise ligeiramente diferente e me


debruço sobre alguns textos de foro privado, especialmente aqueles de natureza
epistolar que nos permitem examinar o trânsito de Eduardo Prado por importantes
instituições de consagração intelectual no fin-de-sciècle brasileiro, como, por exemplo,
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Brasileira de Letras. O
objetivo é mostrar como a noção moderna de ―República das Letras‖ pode ser
importante no esclarecimento de alguns aspectos da trajetória político/intelectual do
nosso personagem.

240
PRADO, Eduardo. ―O Comércio de São Paulo‖. 24 de março de 1897.
241
Idem. 13 de agosto de 1895.

123
124
Capítulo 4

A vita activa de um proprietário engajado: os valores republicanos no conservadorismo


de Eduardo Prado

Compete, pois, aos proprietários o dever cívico de cuidar da higiene própria, e


nas povoações do interior os particulares podem fazer muito. Convém, porém,
que não esperem, para fazer alguma coisa, que o flagelo caia sobre eles. Em
tempos normais, reúnam-se, fundem hospitais de isolamento dirigidos por
associações, façam-se ouvidos do povo, e terão conseguido grande bem dando ao
povo o melhor de si. À classe dos agricultores, que é rica, cabe a direção virtuosa
deste movimento242. (Grifos Meus).

A citação foi extraìda do artigo ―Qual Recurso?‖, que foi assinado por Eduardo
Prado e publicado no jornal ―Comércio de São Paulo‖ em março de 1896. Por esses
tempos, o interior do Estado de São Paulo estava sendo assolado por uma grande
epidemia de febre amarela, que, de acordo com os estudos de Luís Tadeu Moraes
Figueiredo, matou 1/5 da população local243. O autor afirma que ―desde 1850, a febre
amarela ocorreu anualmente no Rio de Janeiro, com exceção de 1865, 1866 e 1867,
tendo causado o impressionante número de 58063 óbitos nesse período, numa cidade
que, em 1850, contava com 166000 habitantes‖244. As epidemias de febre amarela do
século XIX já foram abordadas por importantes historiadores brasileiros, merecendo
destaque os trabalhos de Sidney Chalhoub245 e de Margarida de Souza Neves246.
Concentrando as suas atenções no Rio de Janeiro, ambos os autores destacam a
importância das epidemias para a socialização da população da época: ―com efeito, a
febre amarela grassava na capital do império, e, para terror dos fluminenses da ―boa
sociedade‖ e dos estrangeiros, não distinguia entre ricos e pobres‖247.
Os impactos da epidemia de febre amarela no interior paulista, especialmente na
cidade de Ribeirão Preto, foram largamente abordados por Eduardo Prado ao longo de
1896. Acredito que a análise desses textos nos permita compreender a forma como o
autor mobilizou a tradição republicana, especialmente naquilo que se refere ao elogio da

242
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 25/03/1896.
243
FIGUEIREDO, Luís Tadeu Moraes. A Febre Amarela na Região de Ribeirão Preto na virada do
século XIX: Importância científica e repercussões. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
São Paulo: Janeiro de 1996. pp. 63-76
244
Idem. p. 64.
245
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e epidemia na corte imperial. Companhia das Letras:
São Paulo, 2013.
246
NEVES, Margarida de Souza. Uma cidade entre dois mundos: o Rio de Janeiro no final do século
XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial (Vol. III). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009. pp. 121-153.
247
Idem. p. 134.

125
vida pública ativa, em função de sua oposição ao governo presidido por Prudente de
Moraes. Como eu mostrei no prólogo desta unidade, a expressão vita activa foi cunhada
por Hannah Arendt para designar um tipo de comportamento público tido como
virtuoso pela tradição republicana.
Dada a tendência intrínseca de revelar o agente juntamente com o ato, a vita
activa requer, para sua plena manifestação, a luz intensa que outrora tinha o
nome de glória e que só é possível na esfera pública. Sem a revelação do agente
no ato, a ação perde seu caráter específico e tornar-se um feito como outro
qualquer248.

Por questões óbvias, não é possível encontrar a expressão vita activa nos escritos
de Eduardo Prado, assim como não encontramos, de forma explícita, a formulação das
tópicas pertencentes ao repertório republicano, o que, acredito, não compromete a
validade do argumento que estou desenvolvendo neste capítulo. Não podemos esquecer
que Prado não estava interessado em discutir teoria política, mas sim em intervir no
debate público, fazendo oposição às instituições republicanas. Os seus textos devem ser
lidos, portanto, no calor dos conflitos que agitaram a cena política brasileira na última
década do século XIX. O que proponho neste capítulo é a análise do teor dos escritos
oposicionistas de Eduardo Prado. Acredito que o discurso de oposição que o nosso autor
direcionou à República brasileira é constituído, também, por valores republicanos.
Como é possível, então, que um escritor antirrepublicano tenha mobilizado, nas suas
críticas à República, valores republicanos? O próprio Eduardo Prado nos ajuda a
compreender essa aparente contradição, ao dizer, nos ―Fastos da Ditadura Militar no
Brasil‖, que
O governo absoluto exercito por outro indivíduos não é a República, cujo
significado é o governo de todos, Alcunhem esta organização de república
quanto quiserem; a palavra não corresponderá de modo algum à realidade. Este
governo absoluto, que não foi eleito pela nação, tem nome na ciência desde o
249
tempo de Aristóteles, e esse nome é: tirania . (Grifos Meus)

Em um dos raros momentos de citação direta, Prado nos informa algo sobre o
que ele estava querendo dizer quando usava a palavra ―República‖. Como fica claro no
trecho, o nosso autor está circulando pelo repertório conceitual antigo, onde, como eu já
demonstrei no último capítulo, a República não é definida como a antítese da
Monarquia, mas sim a partir de um conjunto de critérios delineados pela tradição
republicana clássica. Em um estudo sobre o assunto, o filósofo brasileiro Sérgio

248
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 189.
249
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 104.

126
Cardoso afirma que, na história da cultura Ocidental, o termo ―República‖ não designa,
apenas, ―os regimes populares eletivos que se opõem aos regimes de governo
autocráticos ou hereditários (e ainda as monarquias eletivas, que podem ser
constitucionais) dificilmente se distanciam do compromisso com a ideia de ordens ou
condições sociais (com seus privilégios e prerrogativas de extração natural, religiosa ou
moral)‖, mas, também, ―a constituição mesma de um povo, suas instituições, regras de
convivência e agências de administração e governo, cujas orientações derivam de um
momento de instituição e fundação polìtica‖ 250. Alguns desses princípios estão diluídos
nos escritos de Eduardo Prado.
O governo provisório do Brasil não foi eleito pela nação: ninguém lhe conferiu a
missão de legislar; e, todavia, este ―simples agente temporário da soberania
nacional‖ tem legislado com frenesi, tem alterado todas as relações sociais,
políticas e jurídicas a seu único e bel prazer. O czar tem o seu Conselho da
Coroa, o padixá dos turcos tem uma espécie de representação dos interesses
nacionais juntos da sua pessoa. O generalíssimo Deodoro e os seus
escrevinhadores de decretos dispensam tudo isso e julgam-se, apesar de se
intitularem ainda governo provisório, com o direito divino de tudo inovar e
251
inverter na organização do país . (Grifos Meus)

Aqui, Prado aborda o tema das formas de governo e sugere que o tipo de
organização institucional, por si só, não é o suficiente para que um regime político seja
considerado republicano. O autor compara a República brasileira com as monarquias
russa e turca, dizendo que, apesar da nomenclatura, o governo brasileiro não deveria ser
chamando de ―republicano‖, pois inexistiam no paìs as instituições responsáveis por
fazer o povo participar ativamente do governo. Para Prado, então, o governo brasileiro
não era republicano, pois ―não foi eleito pela a nação‖, o povo não ―lhe conferiu a
missão de legislar‖. Mas o que Eduardo Prado entendia por ―legislar‖? Sem tratar
diretamente do assunto, o autor nos apresenta uma sugestão e nos direciona para um dos
princípios mais caros à tradição republicana ocidental.
Nos tempos do sistema parlamentar no Brasil, quando se tratava de uma reforma
qualquer, era ela a princípio aventada nas câmaras, nas circulares dos candidatos,
na imprensa; nos programas dos partidos, nos discursos do poder executivo; um
parlamento eleito a discutia largamente, depois de o Conselho de Estado a ter
examinado com madureza; e o poder legislativo, nomeado pela nação que
representava, transformava a ideia em lei. O país tomava, pois, alguma parte no
seu próprio governo, ou pelo menos influía no destino da nação um avultado
252
número de cidadãos . (Grifos Meus)

Na citação, Prado mobiliza, pelo menos, dois importantes valores republicanos:


ele parece estar pensando a concepção de ―República‖ a partir da ideia de que o povo

250
CARDOSO, Sérgio . Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p. 46.
251
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.71.
252
Idem. p. 70.

127
deve ―tomar parte no seu próprio governo‖. Na última unidade, eu analisei o uso que
Prado fez da noção de ―liberdade‖, mostrando como a liberdade cìvica, baseada, entre
outras coisas, no princípio do autogoverno do povo, foi apropriada pelo nosso autor em
diversos momentos da sua trajetória político/intelectual. Mas ele não para por aí e diz
que as instituições legislativas que faziam da Monarquia chefiada pelo Imperador D.
Pedro II uma ―verdadeira república‖, no sentido antigo do termo, representavam a
vontade da nação e transformavam a ―ideia em lei‖, a ―vontade popular‖ em ―bem
comum‖. Estamos, aqui, diante de um dos princípios mais importantes da tradição
republicana ocidental, algo que foi abordador por importantes pensadores, tais como
Aristóteles e Rousseau.
Segundo os estudos de Sérgio Cardoso, o moderno conceito de República, de
alguma forma, é herdeiro da politea aristotélica, que é uma ―expressão grega genérica
para as formas de associação de homens livres, as comunidades de cidadãos, definidas
por oposição àqueles por natureza despóticas, em que os governantes, um ou alguns,
governam como senhores a servos, em vista de si mesmos e segundo sua própria
vontade‖253. Ao comentar a ditadura militar que governou a República brasileira entre
1889 e 1894, Eduardo Prado disse que ―a nação dominada pela ditadura não encontra
jamais nessa ditadura a sua própria encarnação. A ditadura é o senhor; a nação é a
escrava, tratada com mais ou menos brandura, mas sempre escrava. O que constitui a
254
tirania não é a efusão do sangue; é a usurpação do direito‖ . Além da definição da
liberdade como a negação da escravidão, que, como já sabemos, é uma das principais
características da liberdade republicana, Prado acusa o governo brasileiro de ter
―usurpado‖ o direito, ―que é o mais sagrado princìpio de um governo republicano‖. É,
exatamente aqui, que o autor parece se aproximar do constitucionalismo republicano,
que, segundo a filosofia política de Aristóteles, é o requisito fundamental para a
―distribuição dos poderes públicos estruturada segundo uma finalidade especificamente
integradora das diversas partes ou classes da cidade, ordenada, enfim, em vista de sua
própria existência de sua produção e conservação como comunidade polìtica‖255.
É, justamente, o direito, para Aristóteles, a instância de racionalidade
responsável por transformar a ―simples vontade do povo‖ na ―vontade geral
republicana‖, evitando, assim, que a cidade sucumba à tirania da maioria. Portanto, para

253
CARDOSO, Sérgio . Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p. 47.
254
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 40.
255
CARDOSO, Sérgio . Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p. 52.

128
o filósofo, ―a vontade geral republicana‖ não é o simples somatório da vontade de cada
um dos cidadãos que fazem parte da comunidade polìtica, pois ―a vontade do povo é
sempre transitiva, quer isto ou aquilo, visa objetos (e, portanto, busca naturalmente o
terreno da economia); a vontade geral republicana, através disto ou daquilo, leis, as
condições da coexistência civilizada (e, assim, inscreve-se de imediato no registro
polìtico)‖ 256. Nesse sentido, a lei é pensada como o resultado do trabalho do legislador
filósofo, que, agindo como um tipo de ―herói cìvico‖, transforma a vontade do povo na
vontade geral republicana, em um processo que não é mimético, podendo, até mesmo,
ser contraditório. Na modernidade, a atuação do legislador foi destacada, entre outros,
por Jean Jacques Rousseau (1712-1778), para quem o legislador é
Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se em
condição de mudar, por assim dizer, a natureza humana; transformar cada
indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito solitário, em parte de um todo
maior do qual este indivíduo recebe, de algum modo, sua vida e seu ser, alterar a
constituição do homem para reforça-la; substituir por uma existência parcial e
moral a existência física e independente que todos recebemos da natureza. É
preciso, em uma palavra, que ele subtraia ao homem suas forças próprias para
lhe dar outras que lhe são estranhas e de que não possa fazer uso sem o auxílio
257
de outrem .

A lei, portanto, tanto em Aristóteles como em Rousseau, é definida como o


produto da inteligência do legislador e o elemento responsável por permitir aos homens
a vida política e civilizada. É, exatamente, isso que, para Prado, a República brasileira
colocava em risco ao extinguir a Monarquia, essa sim, constituída por instituições
capazes de, nas palavras do próprio autor, ―transformar a ideia em lei‖. No
conservadorismo monarquista de Eduardo Prado, a Monarquia era a República e a
República significava a tirania. Por isso, não é nada contraditório dizer que o nosso
autor, nas suas críticas políticas à República, desenvolveu uma argumentação de
inspiração republicana, mas de um republicanismo clássico, antigo, que não vê nenhuma
incompatibilidade entre a forma monarquista de governo e a organização política
republicana. O argumento se torna ainda mais sólido, acredito, se examinarmos a
atuação de Eduardo Prado na ocasião da epidemia de febre amarela no interior de São
Paulo, em 1896. Diante da ―calamidade da epidemia‖, Prado afirmou que ―o governo
258
nada pode fazer, cabendo aos particulares o exercìcio da intervenção virtuosa‖ .A
noção de virtude é fundamental para a compreensão do conteúdo republicano da
intervenção de Eduardo Prado, estando também presente na epígrafe que abre este

256
CARDOSO, Sérgio . Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p.59.
257
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 59.
258
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 25/03/1896.

129
capìtulo. Para o nosso autor, a ―classe dos agricultores‖ tinha a obrigação cìvica de agir
virtuosamente e conduzir o movimento de combate à epidemia.
Segundo Hannah Arendt, a relação entre virtuosidade e ação pública foi
inaugurada por Sócrates, ―que apontou um conjunto de atividades peculiares que
caracterizam o homem enquanto agente relacional com o mundo que habita, que
transforma e ao qual se condiciona‖259. A autora acredita que esse tipo de atividade
constitui uma modalidade particular de existência sobre a terra, que ela examina nos
seus trabalhos dedicados ao estudo da vita activa. Ainda que situe na ação política de
Sócrates o momento fundador do princípio republicano da vita activa, Hannah Arendt
afirma que foi Aristóteles o responsável pela sistematização conceitual desse princípio;
para a filósofa alemã, ao dizer que ―só pela prática pública dos atos justos, será o
homem justo, e pela prática pública de atos temperantes, o homem temperante; sem essa
prática, ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom‖260, Aristóteles definiu
textualmente a relação entre a justiça e a ação pública virtuosa. Essa relação também foi
formulada por Eduardo Prado, nos textos nos quais se empenhou em criticar a atuação
do poder público no combate à epidemia de febre amarela, o que o levou conclamar os
proprietários paulistas a tomarem a dianteira na organização das medidas adequadas. No
artigo ―Epidemia‖, de abril de 1896, o nosso autor diz:
Para esse imenso mal que se avizinha não se descobre remédio. A administração
pública não sabe, não quer, ou não pode vencê-lo; têm-se escoado rios de
dinheiro na faina do saneamento, e o estado sanitário piora consideravelmente.
Dir-se-ia que o dinheiro é mal gasto e em pura perda, o que Deus amaldiçoa os
esforços dos nossos administradores. Daí a urgência da intervenção pública dos
proprietários paulistas, daqueles que têm o dever agir com prudência e civismo
261
tão urgentes na atual situação . (Grifos Meus).

Na citação, Prado utiliza a expressão ―prudência‖, definindo-a como um


qualificativo que deve ser obrigatório para o cidadão-proprietário, que precisa agir com
racionabilidade e senso de circunstância. Portanto, para o nosso autor, a prudência e o
civismo estão vinculados diretamente à ação política do homem virtuoso, que deve
calcular a sua intervenção pública em função das particularidades das circunstâncias,
que no caso aqui examinado eram ―urgentes‖, ―catastróficas‖, para utilizar os temos do
próprio Eduardo Prado. O autor não se preocupou em desenvolver uma discussão
conceitual centrada na noção de ―prudência‖, o que é de se esperar, afinal, ele não

259
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 43.
260
Idem. p. 47.
261
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 19 de abril de 1896.

130
estava interessado em escrever um tratado filosófico, mas sim incitar os seus pares à
ação conjunta de combate à febre amarela e, consequentemente, apontar a
incompetência do governo da República em fazê-lo. Como Prado era um dos principais
opositores das autoridades republicanas, a sua performance deve ser lida também como
um exercício de crítica política, como um exercício que mobilizou valores pertencentes
ao repertório da tradição republicana. Por isso, proponho a aproximação da reflexão do
nosso autor do pensamento de um importante representante da tradição republicana
ocidental: Nicolau Maquiavel.
Em um estudo dedicado aos escritos políticos de Maquiavel e Guicciardini,
Felipe Charbel Teixeira destacou a centralidade do conceito prudência nos textos desses
dois importantes pensadores. Charbel acredita que o termo em questão foi ―empregado
para qualificar o bom juízo, a celeridade decisória e a aguçada capacidade de avaliar as
262
transformações e as sutilezas da realidade‖ . O autor argumenta que a prudência
adquire um novo estatuto nos textos de Maquiavel e Guicciardini ―precisamente por
estar no cerne de um olhar para os fenômenos políticos orientado pela valorização do
exame das minúcias da realidade, das condições dos tempos e das mudanças da fortuna‖
263
. Charbel argumenta, então, que o uso que Maquiavel e Guicciardini fizeram do
conceito de prudência não deve ser desvinculado no princípio da ação política, que pode
se dar também no exercício público da retórica.
A ênfase atribuída por Maquiavel e Guicciardini à efetividade analítica não opera
uma separação entre retórica e política; ao contrário, a ideia de verità effetualle,
compartilhada por ambos, realça a importância tanto do cálculo cuidadoso da
dinâmica da realidade como da produção, pelo orador e pelo homem das letras,
de efeitos persuasivos, sem os quais o ajuizamento, ele próprio condicionado por
preceitos ético-retóricos convencionais, não será reconhecido como prudente 264.
(Grifos do autor)

Nesse momento, o que mais me interessa na discussão proposta por Felipe


Charbel é a relação entre a prudência e a ação pública: ―não existe prudência sem
reconhecimento público: apenas os homens reputados dignos e honestos por seus pares
podem almejar glória e distinção‖ 265. É, exatamente, a afirmação de que somente a ação
pública prudente e calculada pode ser eficaz no combate à epidemia de febre amarela o
cerne da intervenção de Eduardo Prado. Por outro lado, a obrigação dessa ação não se
impunha, ainda segundo o nosso autor, a qualquer tipo de homem, mas tão somente ao

262
TEIXEIRA, Felipe Charbel. Retórica e Prudência e História em Maquiavel e Guicciardini.
Campinas: Ed. UNICAMP, 2010. p. 13.
263
Idem. p. 19.
264
Idem.
265
Idem. p. 13.

131
proprietário, que é apontado como corresponsável pelo bom andamento da coisa
pública. Se o governo falha, cabe, diz Eduardo Prado, ―aos proprietários patriotas e
virtuosos amparar as dores desse tão sofrido povo‖266.
Felipe Charbel não é o único autor a destacar a presença de valores republicanos
nos escritos de Maquiavel. Na sua análise do texto ―Discursos sobre a primeira década
de Tito Lìvio‖, Newton Bignotto afirma que
o papel do Estado, na obra de Maquiavel, é o de se opor, pela força de suas leis,
à ação destruidora dos desejos particularistas, é a sociedade justa, por sua vez, é
aquela que é capaz de encontrar uma solução pública para os problemas da
República267.

Para Bignotto, é, justamente, a importância que Maquiavel atribui ao espaço


público, que é definido pelo pensador florentino como a arena legítima para a resolução
dos assuntos de interesse da República, que o torna um representante da tradição
republicana. Os vínculos entre o pensamento político de Maquiavel e a tradição do
republicanismo cívico foram apontados ainda por outros autores, como John
McCormick268 e o já citado John Pocock. Penso não ser necessário aprofundar mais o
exame da bibliografia especializada no pensamento político de Maquiavel. Os trabalhos
de Felipe Charbel Teixeira e Newton Bignotto sinalizam, de forma satisfatória, como o
autor do ―Prìncipe‖ vinculou a prudência à ação pública do homem virtuoso, o que me
parece ser o ponto nevrálgico da argumentação de Eduardo Prado na ocasião da
epidemia de febre amarela no interior paulista.
Nesse sentido, o elogio de Eduardo Prado à ação pública, à vita activa, para
utilizar a terminologia formulada por Hannah Arendt, é inseparável da tópica do
proprietário/responsável, que pode ser encontrada tanto no repertório republicano, em
autores como James Harrington, como nos textos representativos do pensamento
político oficial da Monarquia brasileira, como aqueles que foram escritos por homens
como José Soares Paulino de Sousa, o Visconde de Uruguai (1807-1866) e Honório
Hermeto Carneiro Leão, o Marquês de Paraná (1801-1856). Portanto, a intervenção
discursiva de Eduardo Prado na ocasião da epidemia de febre amarela pode ser
interpretada tanto na perspectiva do repertório do republicanismo cívico como no
repertório do monarquismo brasileiro, o que não é, necessariamente, uma contradição.
Como eu já comentei diversas vezes, foi a modernidade que definiu a República como

266
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 19 de abril de 1896.
267
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano. São Paulo: Ed. Loyola, 1991. p. 95.
268
MCCORMICK, John P. Adressing the political exception: Machiavelic’s acidentes and the mixed
regime. The American of political Science Review, vol. 87, n. 4. Pp 888-900. Dec. 1993.

132
um regime oposto à Monarquia, sendo, portanto, a oposição Monarquia X República
uma construção do pensamento político moderno e não uma obrigatoriedade lógica. Por
isso, como o próprio Eduardo Prado demonstra, é perfeitamente possível identificar a
presença de valores republicanos no discurso monarquista. Tenho, aí, uma boa trilha a
seguir no meu exercício de análise do conservadorismo de Eduardo Prado. Ainda no
artigo ―Epidemia‖ diz o nosso autor:
Entendemos que é dever de todo monarquista dar lição de patriotismo aos
correligionários da República, revelando sua virilidade e pujança, a sua
tendência para o amor aos interesses públicos em detrimento das paixões
privadas, mostrando o quão são diferentes daqueles se apoderam da nação.
(Grifos Meus)

No trecho fica, mais uma vez, evidente o esforço de Prado em politizar o caso da
epidemia de febre amarela, usando-o como base para mais um de seus ataques aos
governos republicanos. Para o autor, enquanto o monarquista carrega em si o ―amor aos
interesses públicos‖, o correligionário da República é movido apenas pelas ―paixões
privadas‖, o que demonstra que ele utilizou uma argumentação republicana para atacar
os republicanos brasileiros, como se os monarquistas fossem mais republicanos que os
próprios republicanos. O teor republicano dessa argumentação pode ser melhor
compreendido se confrontado com os escritos de Hanrrigton, que, como já vimos na
primeira unidade desta tese, é um dos principais representantes do neorrepublicanismo
inglês do século XVII. Para Pocock, o ―Oceana‖, principal livro de Harrington, que
também fazia parte do acervo bibliográfico de Eduardo Prado, ―é uma revisão
importante da história da teoria política inglesa, à luz dos conceitos retirados do
269
humanismo cìvico e do republicanismo de Maquiavel‖ . De acordo com as palavras
do próprio Harrington:
Embora pareça se inclinar para a Antiguidade, o Leviatã se apoderou da espada
pública para justificar as atrocidades do arbítrio pessoal. Todo Monarca recebe
seu poder por convênio para proceder não a partir de suas simples verdades,
pretendo obrigar, conter ou restringir qualquer homem, mas sim garantir que
esses homens continuem empunhar a espada pública 270. (Tradução livre) (Grifos
Meus)

No trecho, Harrington faz aquilo que Newton Bignotto271 afirma ter sido a
principal característica do seu pensamento político: as críticas a Hobbes, que foi
apontado pelo autor da “Oceana” como o doutrinador de um arranjo político cujo único

269
POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment. Princeton: Princeton Press, 1975. p. 388.
270
HARRINGTON, James. The Commonwealth of Oceana. p. 326.
271
BIGNOTO, Newton. A má fama na filosofia política: James Harrington e Maquiavel. Belo Horizonte:
Discurso 24: 1994, pp. 173-191.

133
objetivo seria dar segurança política e jurídica para o cultivo dos interesses privados dos
cidadãos. É em defesa do envolvimento dos cidadãos nos assuntos públicos que
Harrington sai em ataque a Hobbes e aos outros defensores do absolutismo dos Stuart.
Para Harrington, ―os cidadãos são os responsáveis pelo bom uso da espada pública
272
porque eles também têm receio de terem ameaçadas a sua propriedade‖ . Como
podemos perceber, Harrington não desqualifica propriedade, destacando, pelo contrário,
a sua importância como o motor para a ação pública do proprietário. Para o autor, o
proprietário deve usar bem a ―espada pública‖ porque tem algo a perder, sendo, por
isso, diretamente interessado no bom andamento dos negócios públicos. Pelo menos nos
seus aspectos gerais, percebo alguma semelhança entre as argumentações de Harrington
e Prado. No seu esforço de conclamar os fazendeiros paulistas à ação voluntariosa de
combate à febre amarela, Eduardo Prado também utilizou o argumento do interesse,
como é possìvel perceber no já citado artigo ―Qual o Recurso‖?
No curto intervalo de duas semanas morrem os doentes aos milhares, implanta-se
a peste maldita e São Paulo não tardará a adquirir no mundo a reputação de um
das regiões mais insalubres do globo. Sabemos que não precisamos do
estrangeiro e que devemos ser nativistas, para sermos bons brasileiros; mas, não
havendo estrangeiros que para cá queiram vir, não haverá quem colha café. Não
havendo café, não haverá dinheiro no tesouro do Estado e a nossa prosperidade
estará em risco. É por isso que o fazendeiro paulista, que é a mola propulsora da
riqueza do Brasil, necessita agir, movido tanto pelo amor ao povo como pelo
instinto de zelo pela sua preservação273. (Grifos Meus)

Ao justificar a necessidade do envolvimento do fazendeiro paulista no combate à


epidemia, Prado mobilizou a tópica do proprietário/responsável, que, como demonstrei
acima, é constitutiva do repertório republicano. Para o nosso autor, os proprietários
paulistas deveriam agir motivados não apenas por uma abstrata noção de bem comum,
mas também por um ―zelo de autopreservação‖, já que a epidemia poderia assustar os
imigrantes europeus. Eduardo Prado, a exemplo dos seus irmãos Antônio e Martinico,
foi um grande entusiasta da imigração de trabalhadores europeus para o Brasil, tendo
agido como intermediário diplomático junto a diversos Estados europeus, buscando
sempre convencer os governos de que o Brasil, e principalmente São Paulo, reuniam
todas as condições para receber os cidadãos egressos do velho mundo. Analiso com
cuidado essa atuação no próximo capítulo, quando examino os vínculos de Prado com
os interesses da cafeicultura paulista.

272
“HARRINGTON. Op cit. p. 328.
273
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 24/03/1896.

134
A estratégia interpretativa que estou desenvolvendo nesta tese está baseada no
esforço de compreender a apropriação dos elementos constitutivos dos repertórios
políticos antigo e moderno nos escritos de Eduardo Prado. Como Prado não era um
homo academicus, a maioria dos seus textos não foi produzida em função dos
procedimentos discursivos típicos da escrita científica. Com algumas exceções, o nosso
autor quase não fez uso do recurso da citação bibliográfica direta, o que – é importante
destacar -, não é uma ausência, uma falha, mas sim aquilo que caracteriza as suas
intervenções. Porém, o fato de o texto de Prado não apontar, diretamente, as suas
referências conceituais não quer dizer que elas não existam. Por isso, o catálogo da
biblioteca de Eduardo Prado está sendo tão importante para a minha análise, pois,
através desse material, consigo mapear as possíveis leituras de Prado, buscando, no
material examinado, indícios da presença das ideias dos autores listados pelo livreiro
Alfred Gazeau.
Como já sabemos, Eduardo Prado era filho de uma tradicional família da elite
brasileira, tendo sido formado nos mais importantes espaços educacionais em
funcionamento no Brasil durante o século XIX. Acredito que dedicar alguma atenção à
formação desse personagem pode ser muito importante para o fortalecimento da
argumentação que estou desenvolvendo neste capítulo. Em outras palavras: percebo a
mobilização dos valores republicanos nos escritos de Eduardo Prado, como, por
exemplo, a liberdade civil, que analisei na primeira unidade, e a vita activa, que estou
examinando neste capítulo, não apenas porque os textos do autor e o seu acervo
bibliográfico sugerem essa presença, mas também porque a sua formação
político/intelectual aponta para o contato com essa tradição. O princípio do
proprietário/responsável é o ensejo adequado para o estudo da formação de Eduardo
Prado porque nos coloca diante de um dos principais valores do pensamento político
monarquista, que era de alguma forma reproduzido nas instituições educacionais
frequentadas pelos filhos das elites políticas brasileiras oitocentistas.
Muito se diz a respeito da grande República do Norte; há quem diga que se trata
da vanguarda política dos nossos atuais dias. Que seja lá! Aqui não, aqui não tem
terreno para esse fruto. Por aqui o ideal mesmo é a conservação da ordem, da
religião e da família; à imparcialidade do Poder Moderador e à responsabilidade
dos virtuosos proprietários cabe a prosperidade dessa terra 274. (Grifos Meus)

274
SOUSA, José Soares Paulino. Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1862. p. 243.

135
O pauperismo que diversas vezes têm levado às massas ao desatino
revolucionário, não explica completamente os desatinos revolucionários que
recentemente abalaram a tranquilidade da família pernambucana. O grande
responsável por esse abalo não foi a massa de ingênuos, mas sim os
proprietários, que tomados pelo individualismo nefasto colocaram os interesses
de suas casas acima da harmonia da coletividade. É preciso agir, mas não apenas
na bainha da espada; o sangue derramado costuma ter memória curta. É preciso
agir no coração e no espírito desses homens; eles precisam entender que a
posição que ocupam os coloca diante de deveres incontornáveis 275. (Grifos
Meus)

Os autores das duas citações acima estão entre os principais homens públicos da
história da Monarquia brasileira e estiveram entre aqueles que conduziram o país no
momento de maior instabilidade e incerteza desse regime político. Tanto José Soares
Paulino de Souza, Visconde de Uruguai após 1854, como Honório Hermeto Carneiro
Leão, Marquês do Paraná após 1851, são representativos da elite brasileira oitocentista
que, mirando-se no exemplo das tradicionais aristocracias europeias, se auto definiu
como corresponsável, junto com o governo Monárquico, por estabelecer e consolidar o
regime político que, segundo o grupo, seria o único capaz de garantir a sobrevivência do
Estado Nacional brasileiro. As duas citações são vazadas pela ideia do
proprietário/responsável e traduzem valores fundamentais do pensamento político
oficial da Monarquia brasileira, como, por exemplo, a dimensão estamental e
aristocrática da concepção de liberdade, a definição do poder moderador como uma
instância puramente administrativa e acima dos conflitos políticos e o princípio de que
as famílias proprietárias tinham a obrigação de auxiliar o Estado na manutenção da
ordem 276.
A primeira citação foi extraìda do ―Ensaio sobre o direito administrativo‖,
escrito por Paulino José Soares de Souza e publicado em 1862. Segundo José Murilo de
Carvalho, a Monarquia brasileira não teve o hábito de sistematizar seus valores em
textos dogmáticos, fato que coloca o analista diante do desafio de buscar os indícios
dessa cultura política em relatórios administrativos e discursos parlamentares277. O
Visconde de Uruguai foi um dos poucos líderes da época que se dedicou a escrever

275
LEÃO, Honório Hermeto Carneiro. Qual a causa da Revolução Praieira? A União: Recife, 24 de
dezembro de 1849. p. 147.
276
A importância da união entre as famílias proprietárias e o Estado Imperial para a manutenção de certa
concepção de ordem considerada fundamental tanto para a prosperidade dos negócios públicos como para
a saúde das finanças privadas foi diagnosticada com precisão pelo já citado trabalho de Ilmar Mattos. O
autor afirma que ―enobrecidas e condecoradas pelo Estado Imperial, essas famìlias ligaram suas vidas a
ele, ao qual não raro concebiam como instrumento de seus interesses corporativos.‖ (p. 79)
277
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem/ O teatro das sombras. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.

136
sobre o sistema, a teorizar sobre a Monarquia278. De acordo com o Visconde de
Uruguai, os ―virtuosos proprietários‖ também eram responsáveis pela administração dos
negócios públicos. Esse princípio pode ser encontrado, também, na segunda citação, que
é de autoria de Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, e refere-se à
Revolução Praieira, que aconteceu em Pernambuco em 1848. A principal causa da
Revolução Praieira, para Honório Hermeto, não foi a rebeldia das massas, o que já era
algo que ele e seus pares consideravam normal, dado o despreparo dessas pessoas. O
que tornava a revolta de 1848 ainda mais grave era o fato de ela ter sido tramada no seio
das elites locais, justamente aqueles que deveriam zelar pela tranquilidade pública.
Nessa chave de leitura, o egoísmo não é visto como um traço de caráter individual, mas
sim como o resultado do despreparo de um grupo ao exercício de determinadas
obrigações. Se a elite proprietária revolucionária era egoísta, como achava Honório
Hermeto, era porque faltava algo à sua formação. A melhor forma de evitar esse tipo de
manifestação egoísta era cultivar essa elite, educá-la, formá-la e torná-la capaz de levar
esses valores aos seus séquitos de dependentes279.
Era exatamente esse o objetivo das instituições de ensino em funcionamento no
Brasil durante o período monárquico. Esses espaços eram, sobretudo, centros de
socialização das elites, de treinamento para a ação pública que era considerada a sua
missão essencial. Esse objetivo pedagógico se materializou nos currículos, nos saberes
considerados obrigatórios para que esses grupos desempenhassem com eficácia as suas
atribuições. Eduardo Prado transitou por esses espaços, sendo versado nesses saberes,
treinado nessas competências. Ao longo da sua formação, ele frequentou duas dessas

278
Além do trabalho já citado, Paulino Soares escreveu os seus ―Estudos Práticos Sobre a Administração
278
das Provìncias‖, que foi publicado em 1865 . Junto com outros juristas, como, por exemplo, o mineiro
Bernardo Pereira de Vasconcelos, Paulino Soares participou de importantes ações naquilo que se refere à
história do direito no Brasil. Podemos destacar a ―Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834‖ de
1840, que, entre outras coisas, restringiu a liberdade dos governos provinciais. Essa lei deu início a um
processo de revisão da jurisdição imperial que culminaria no ―Código de Processo Criminal‖ de 1841,
que reformulou o código de 1832 e, entre outras coisas, restabeleceu o Conselho de Estado, que estava
inativo desde o Ato Adicional de 1834. Na prática, essas jurisdições substituíram o princípio eletivo,
adotado em larga escala durante o Período Regencial, pelo princípio hierárquico, conferindo amplos
poderes às autoridades nomeadas pelo poder central. Essas reformulações jurídicas relacionam-se,
sobretudo, com o movimento do ―Regresso Conservador‖, que tinha o objetivo de estabilizar a autoridade
monárquica após o conturbado período de vacância do trono.
279
De alguma forma, todas as instituições culturais ou educacionais criadas no Brasil durante a primeira
metade do século XIX tinham essa proposta. Nesse momento, ainda não havia entre nós a concepção de
que seria necessário um sistema educacional público destinado à totalidade da educação. Essa proposta
somente se faz presente no discurso dos governantes na segunda metade desse século. Sobre isso, ver os
trabalhos de Lillia Schwarcz: A longa viagem da biblioteca dos reis. São Paulo: Companhia das Letras,
2002 e O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

137
instituições: o Seminário Diocesano e a Faculdade de Direito de São Paulo. Acredito
que foi nos bancos do Seminário Diocesano de São Paulo que Eduardo Prado teve seus
primeiros contatos com textos pertencentes à tradição. Já nos bancos da Faculdade de
Direito, o nosso personagem se destacou como assíduo frequentador das sabatinas sobre
Direito Natural organizadas pelo professor João Teodoro Xavier (1828-1878), que foi
um grande conhecedor brasileiro da filosofia do direito natural. Por enquanto, analiso a
presença dos valores republicanos no ensino ministrado no Seminário Diocesano.
As mudanças que anuncio hoje são fundamentais para que o Seminário
Episcopal não preste um grande serviço apenas à fé, mas também aos interesses
públicos. A partir de agora não formaremos aqui apenas um clero ilustrado e
capaz de cultivar almas para o rebanho de Cristo, mas também estaremos
comprometidos com o interesse público, com a preparação daqueles que nas
academias do Império serão formados para o cuidado com os assuntos da
nação280.

Esse parágrafo faz parte do comunicado, publicado nos grandes jornais da


imprensa paulista em fevereiro de 1858, sobre as transformações no regulamento
interno do Seminário Diocesano de São Paulo, o Seminário Episcopal, como diziam os
contemporâneos. O texto foi assinado por D. Antônio Joaquim de Melo, então Bispo de
São Paulo e responsável direto pela instituição. A reformulação no regulamento do
Seminário fez parte de uma série de mudanças promovidas por D. Antônio na Igreja
católica paulista. O foco desse programa reformista, de acordo com Ana Paula
Sapaterra, estava na educação, na tentativa de fortalecer a pedagogia católica,
garantindo-lhe espaço na cultura científica moderna. Para isso, o Bispo achava
necessário combinar o tradicionalismo da teologia católica com o utilitarismo das
ciências modernas281. Nesse sentido, a partir de 1858, o Seminário, que havia sido
fundado em 1856 com a proposta exclusiva de formar sacerdotes, passa a ser composto,
também, por uma escola regular destinada a preparar os filhos das elites paulistas para
os exames de ingresso nas Faculdades imperiais. Foi essa escola regular que Eduardo
Prado frequentou durante os anos de sua primeira formação escolar. Os autores que
analisaram a biografia do autor (os já citados Cândido da Mota Filho e Sebastião
Pagano) afirmam que o nosso personagem teria iniciado os estudos na escola regular do
Seminário em 1868, quando contava oito anos de idade. De acordo com esses autores,
280
―O Mercantil‖. 06 de fevereiro de 1878.
281
SAPATERRA, Ana Paula. Colégios Católicos Femininos: A Educação no Colégio Nossa Senhora do
Patrocínio. VERBUM – Cadernos de Pós-Graduação, n. 1, p. 48-65, 2012. Para Ana Paula Sapattera, o
programa reformista liderado por D. Antônio Joaquim de Melo começou em 1851 e tinha o objetivo de
fortalecer a Igreja Católica diante dos avanços do laicismo moderno. Esse projeto dialogava diretamente
com as propostas do catolicismo ultramontano, que surgiu no século XVIII com o objetivo de reagir às
críticas mais violentas formuladas nos quadros da ilustração.

138
Eduardo Prado teria começado a ser alfabetizado por volta dos cinco anos de idade em
casa, onde professores particulares de confiança da família promoviam os primeiros
contatos dos filhos do casal Prado com as letras. Esses trabalhos silenciam a respeito da
documentação capaz de endossar um exame mais criterioso dos primeiros contatos do
nosso autor com os estudos formais. Eu também não encontrei nos arquivos da família
Prado e nos textos do próprio Eduardo Prado pistas capazes de sustentar a análise a
respeito desse período de sua vida. Porém, a julgar pela prática corrente na época entre
as famílias proprietárias, o programa de estudos, considerando o trabalho de Gilberto
Freyre, deveria ser relativamente simples, sendo composto pelas primeiras lições de
leitura e escrita em português, francês e latim e pela incursão nos cálculos mais básicos
de aritmética282.
O regulamento oficializado em 1858 permitiu que Eduardo Prado tivesse uma
trajetória ligeiramente diferente da dos seus irmãos mais velhos. Enquanto Antônio,
Martinho e Caio foram, de acordo com os estudos de Darrel Levi283, estudar na corte, no
tradicional Imperial Colégio D. Pedro II, Eduardo permaneceu em São Paulo. Àquela
altura já havia na capital paulista um estabelecimento de ensino capaz de atender os
filhos das elites locais. Como disse anteriormente, o Seminário foi inaugurado em 1856
e desde o início é possível observar suas estreitas relações com o governo provincial.
Houve, inclusive, certa polêmica em relação à liberação de dinheiro público para a
construção do prédio. No dia 26 de junho de 1854, o Correio Paulistano publicou uma
carta na qual D. Antônio Joaquim solicitava ao governo provincial auxílio financeiro
para a construção do Seminário. De acordo com o Bispo,

Um grande e importante seminário episcopal nessa província não seria


importante apenas para a administração eclesiástica, mas também para a cidade e
para a província. Um clero ilustrado é fundamental para que seja possível o
cultivo da fé em função dos valores mais civilizados deste século 284.

Entretanto, não eram todos os parlamentares que estavam de acordo com D.


Antônio Joaquim e algumas vozes se levantaram na Assembleia provincial contra o

282
Em ―Sobrados e Mocambos‖, Gilberto Freyre destaca a importância dos colégios de padres para a
formação escolar dos grandes personagens das letras e da política no período da Monarquia. Para Freyre,
foi nos bancos dessas escolas que essas elites desenvolveram o gosto pelas vidas nas cidades e pelo
cosmopolitismo cultural. O grande símbolo desse moço de hábitos urbanos e gosto intelectual apurado
foi, de acordo com as considerações de Freyre, o próprio Imperador Pedro II: ―Desertor da meninice –
que parece ter deixado sem nenhuma saudade – Pedro II foi, entretanto, o protetor do moço contra o
velho, no conflito, que caracterizou o seu reinado, entre o patriarcado rural e as novas gerações de
bacharéis e doutores.‖ (p. 193)
283
LEVI, Darrel E. A Família Prado. São Paulo: Cultura 70, 1977
284
―Correio Paulistano‖. 26 de junho de 1854.

139
atendimento à solicitação do Bispo. Entre os deputados que se opuseram à liberação de
dinheiro para a construção do Seminário, destacou-se Antônio Luiz de Melo Fonseca,
representante da cidade de Jacareí. O parlamentar, que fez questão de ser polido e
cuidadoso nas palavras, afirmou que:

Não nego que seja de extrema importância a fundação de um estabelecimento


escolar nessa província que esteja em plenas condições de receber os
vocacionados responsáveis por levar à posteridade a Igreja fundada por Cristo.
Porém, esse não é o momento, não temas receita para isso. (...) Fazê-lo seria uma
temeridade contra empreitadas que hoje são mais urgentes 285.

Mesmo com os protestos do Deputado Antônio Luiz, a Assembleia provincial,


na época presidida pelo líder liberal Carlos Carneiro de Campos, o Visconde de
Caravelas, liberou a quantia de quatro mil contos de réis para o empreendimento da
Arquidiocese paulista. Após quase dois anos de obra, o Seminário foi inaugurado em 09
de novembro de 1856, em um primeiro momento como uma casa exclusivamente
destinada para meninos que desejassem seguir o sacerdócio. Como já vimos, o próprio
Bispo, talvez desejando fortalecer a pedagogia do ―catolicismo ilustrado‖, fazendo-a
chegar também aos alunos que no futuro cursariam os estudos superiores nas faculdades
imperiais, alterou o regulamento interno do Seminário, dividindo-o em duas casas:

A primeira está destinada à vocação espiritual e comprometida com a formação


de um clero preparado para enfrentar as dificuldades que esses novos tempos
impõem aos homens de boa vontade (...) A segunda está destinada aqueles de
vocação mundana, que na tribuna guiarão o Brasil, preparando também a nação
para enfrentar esses mesmos tempos286 (MERCANTIL; 06 de fevereiro de 1858).

Podemos perceber pela citação que, para o Bispo, a boa formação era
fundamental tanto para o bom padre como para o homem público comprometido com a
administração do Estado. Ambos precisavam estar preparados para os desafios da
modernidade, para um mundo onde a tradição já não tem mais a soberania de antes. Em
um mundo no qual, de acordo com as palavras do próprio Bispo,

Os homens parecem vagar sem confiança, sem o auxílio da autoridade das


gerações mais velhas. É fundamental que tanto o pastor de almas como o homem
da política exerçam, cada qual ao seu modo, o papel de guias, de condutores dos
seus irmãos de fé e concidadãos, fazendo com que os menos preparados saibam
exatamente como se colocar diante das armadilhas desse século. É exatamente
essa a missão, religiosa e cívica, desse Seminário Episcopal que hoje se renova
para melhor atender aos interesses da Província e do País287. (Grifos Meus).

285
Idem. 16 de agosto de 1854.
286
―O Mercantil‖. 06 de fevereiro de 1858.
287
Idem.

140
Nesse momento, no Brasil, o sistema de ensino não era visto como um serviço
público destinado à instrução das massas em determinados saberes e habilidades
considerados fundamentais, mas sim como um conjunto de alguns centros de
treinamento e socialização dos filhos das elites. Esses espaços estavam destinados a
preparar quadros para o serviço público, que, se por um lado, ainda não era
completamente meritocrático, já que os ocupantes dos postos seriam recrutados entre as
famílias proprietárias, também não era, pelo outro lado, completamente estamental, já
que a qualificação era considerada fundamental para o bom exercício das funções. Não
estou interessando em examinar com mais cuidado a real efetividade desse tipo de
treinamento ou julgar se de fato os ocupantes desses cargos estavam preparados para
desempenhar com eficiência as suas atividades. O fundamental para a argumentação que
venho desenvolvendo neste capítulo é a compreensão dos valores político/pedagógicos
que caracterizavam as práticas educacionais desenvolvidas nesse tipo de instituição
escolar, especialmente no Seminário Diocesano de São Paulo.
Portanto, e isso é o mais fundamental para os meus interesses, Eduardo Prado
cursou as primeiras letras em um estabelecimento que tinha sua estrutura organizacional
baseada no princípio republicano do proprietário/responsável. A presença dos valores
republicanos no ensino ministrado no Seminário Diocesano de São Paulo não ficou
restrita à organização institucional, estando também presente no currículo ministrado.
No mesmo texto em que deu publicidade ao novo regulamento do Seminário, o Bispo
D. Antônio Joaquim apresentou o currículo que seria ensinado na escola voltada aos
leigos.

Etapas do ciclo escolar Conteúdos previstos no planejamento curricular

1° ano -Retórica
- Poética
- Introdução à Aritmética
- Língua Portuguesa
- Estudos Teológicos
-Retórica
- Poética
2° ano
- Estudos regulares de Aritmética e Álgebra
- Língua Portuguesa e Literatura Nacional
- Gramática Filosófica
- Estudos Teológicos
- Noções de Latim
-Retórica
- Poética
3° ano
- Estudos regulares de Aritmética e Álgebra
- Língua Portuguesa e Literatura Nacional

141
- Gramática Filosófica
- Estudos Teológicos
- Estudos Latinos
- História Natural
-História da Civilização
-Retórica
- Poética
4° ano
- Estudos regulares de Aritmética e Álgebra
- Língua Portuguesa e Literatura Nacional
- Poesia e Literatura Portuguesa
- Estudos Latinos
- Introdução à Física e à Química
- História da Civilização
- História da Igreja
- Introdução aos Estudos da Língua Francesa
- Estudos regulares de Aritmética e Álgebra
- Língua Portuguesa e Literatura Nacional
5° ano
- Poesia e Literatura Portuguesa
- Estudos Latinos
- Introdução à Física e à Química
- História da Civilização
- História da Igreja
- Estudos regulares da Língua Francesa
- Introdução aos Estudos da Língua Inglesa

Infelizmente, eu não encontrei na bibliografia especializada na história da educação


brasileira nenhum estudo dedicado especificamente ao currículo ministrado no
Seminário Diocesano de São Paulo, sendo o texto do Bispo D. Antônio Joaquim a única
referência que tenho para a análise dos primeiros estudos de Eduardo Prado. Mesmo
assim, acredito não ser um absurdo supor que ao estudar Retórica, Poética e História da
Civilização, o nosso autor tenha tido algum tipo de contato com textos de Aristóteles,
Cícero e Tito Lívio, onde os valores do tradição republicana, como a vita activa, a
liberdade positiva e o constitucionalismo aristotélico, são constitutivos. Como esses
valores também circulavam pelas discussões públicas travadas no Brasil durante o
século XIX, creio que o repertório republicano estava à disposição de Eduardo Prado,
sugestão que é confirmada na análise da produção letrada do autor. Em um pequeno e
revelador estudo, José Murilo de Carvalho propôs que a retórica seja adotada como
chave de leitura para a análise do pensamento político brasileiro oitocentista. O autor
acredita que, nesse período, os princípios retórica clássica circularam amplamente no
meio polìtico/intelectual brasileiro. Para Carvalho, ―o peso da retórica é facilmente
explicado pela análise da tradição escolástica portuguesa, sobretudo a que predominou
no Colégio das Artes e na Universidade de Coimbra‖ 288.

288
CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a Retórica como chave de leitura. Rio de
Janeiro: Topoi Vol. 01, p 130.

142
Após essa necessária digressão sobre a formação educacional de Eduardo Prado,
já podemos retornar aos seus textos, dando seguimento à análise da apropriação dos
valores republicanos. O uso que Eduardo Prado fez do repertório republicano no caso da
epidemia de febre amarela pode ser melhor entendido se dedicarmos alguma atenção às
críticas que ele dirigiu aos proprietários que não se envolveram diretamente no combate
à doença.
Já por mais de uma vez utilizamos as páginas desse veículo para conclamar os
fazendeiros paulistas à movimentação de combate ao flagelo que assola as
populações mais pobres. Diante da inércia do governo presidido pelo sr Prudente
de Moraes, restou apenas nós, os homens virtuosos, como o último esteio das
esperanças públicas. Porém, com grande pesar percebemos que os nossos apelos
não têm sido o suficiente para mover os fazendeiros paulistas do conforto das
suas casas289. (Grifos Meus)

Há, claramente, neste trecho, a menção à dicotomia público X privado, onde


Eduardo Prado define a esfera pública como o lugar da ação e do desassossego e a
esfera privada como o lugar do conforto e da quietude. Frustrado pela inércia dos seus
pares, o nosso autor os critica por terem preferido o conforto da casa à entrega
voluntariosa da rua, o que, para ele, ―foi a principal ruina que a República nos trouxe: o
anestesiamento e o entopercimento do espìrito público‖290. Para Prado, então, a apatia
dos fazendeiros paulistas diante da epidemia de febre amarela não poderia ser imputada
apenas a eles, mas também aos impactos perniciosos da República, que teria
desrepublicanizado o povo brasileiro. No mesmo texto, ele escreve:
Observa-se na fisionomia moral da sociedade, nestes tempos calamitosos, um
sintoma característico das épocas de decadência: os nobres sentimentos
abandonam a alma dos homens, onde são substituídos pelo amor dos prazeres, do
luxo e pelo seu consectário – o egoísmo. Quando uma cidade é invadida pela
epidemia, cuidam todos de abrigar-se em lugar seguro – as autoridades, o foro, a
Câmara Municipal, a polícia, todos. Esse é o maior daninho feito da República: a
decadência moral das nossas virtudes.

Eduardo Prado afirma que, no Brasil, a República significou a decadência de


alguns valores, entre esses as virtudes cívicas e o apreço dos cidadãos-proprietários
pelos negócios públicos. Não foi só nos artigos dos ―Fastos‖ e nos textos escritos sobre
a epidemia de febre amarela que Eduardo Prado mobilizou os valores da tradição
republicana. Em outros lugares, o nosso autor se valeu desses argumentos, como, por
exemplo, no artigo ―A aflição da lavoura‖.
Foi a tolerância dos lavradores para com a política que nos levou aos desmandos
da República, que nos atirou à toda sorte de desatinos. Foi a indiferença política
da classe mais rica da sociedade brasileira que deixou esta entregue a todas as

289
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 19/04/1896.
290
Idem.

143
audácia e a todas as fantasias. Queixam-se agora os fazendeiros da sorte e da
dureza dos tempos; queixam-se do governo, mas a verdade é que também
deixam queixar-se de si mesmos. O egoísmo dos fazendeiros é a causa de todos
291
os nossos males .

Nessa citação, que foi escrita cerca de cinco meses depois do conjunto de textos
que Prado escreveu sobre a epidemia de febre amarela, o autor continua criticando os
fazendeiros paulistas, acusando-os novamente de egoísmo, de se preocuparem mais com
os seus interesses privados do que com os interesses públicos. Porém, aqui Eduardo
Prado inverte a relação de causalidade que estabeleceu nos escritos anteriores. Se antes,
o autor afirmava que a República destruiu o espaço público e as virtudes cívicas dos
proprietários paulistas, agora, ele alega que o surgimento da República é que foi o
resultado da apatia política dos proprietários, dos cidadãos mais ricos, daqueles que
teriam a obrigação do engajamento e do zelo pela boa marcha da coisa pública.
Interpreto a crítica de Prado ao egoísmo dos proprietários como um desdobramento do
princípio da vita activa, podendo ser identificado também nos escritos de outros autores
vinculados à tradição republicana, como o próprio Maquiavel. A análise do texto
―Discursos sobre a primeira década de Tito Lìvio‖ evidencia o esforço de Maquiavel em
definir a República como o regime político baseado na virtude cívica, no patriotismo e
na defesa dos interesses públicos. Já no primeiro livro dos ―Discursos‖, Maquiavel
afirma a necessidade de os políticos contemporâneos se espelharem nos políticos
antigos para dirimir ―os vìcios que levaram tantos Estados e cidades da cristandade a
uma forma orgulhosa de preguiça‖292. A crítica à preguiça e ao ócio é uma das
principais caracterìsticas desse texto. A ―forma orgulhosa de preguiça‖ é definida por
Maquiavel como um elemento de corrupção que pode, no limite, levar à decadência da
República. Para o autor florentino, a República se corrompe quando os cidadãos ―se
esquecem de que devem estar mais preocupados com os interesses públicos do que com
os seus interesses particulares‖ 293.
As semelhanças entre as argumentações de Maquiavel e Prado são claras. Ainda
no artigo ―A Aflição da Lavoura‖, Eduardo Prado diz:
Vejam os fazendeiros que se desinteressam da política que uma penada
inconsciente de um funcionário inábil pode fazer-lhes perder milhares e milhares
de contos; vejam como o egoísmo é capaz de corromper a todos. Se há algo de
bom no nosso atual estado de coisas é a afirmação da imperiosidade do interesse
da classe dos agricultores na política, pois às vezes é preciso chegarmos à total

291
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 30/09/1896.
292
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Ed. UNB, 1994.
p. 12.
293
Idem. p. 13.

144
corrupção para que entendamos a importância do amor pelos assuntos
públicos294. (Grifos Meus)

Ao examinar a fundação da cidade de Roma, Maquiavel desenvolve uma


reflexão bastante parecida: ―Deve-se considerar se não é mais vantajoso selecionar, para
a sede de uma cidade, local infértil, onde os habitantes, constrangidos ao trabalho e
menos inclinados ao ócio, possam viver unidos sujeitos à concórdia pela sua situação de
295
pobreza‖ . Tanto Prado como Maquiavel, portanto, consideram que pode haver algo
de positivo nas circunstâncias desfavoráveis, que seriam mais capazes do que as
circunstâncias favoráveis de incitar, pela necessidade, o cidadão à ação, de demovê-lo
do ócio e do conforto de casa, de levá-lo a encontrar com os seus pares no espaço
público. A mesma rejeição ao ócio privatista pode ser identificada nos textos de Alexis
Tocqueville, A fertilidade das reflexões desenvolvidas por Tocqueville para este
capítulo fica ainda mais evidente diante do fato de que a segunda geração de intelectuais
da Monarquia brasileira, que veio à luz após a década de 1860, reuniu, de acordo com
Marcelo Jasmin296, alguns leitores da obra desse pensador francês. Nomes como
Tavares Bastos, André Rebouças e Rui Barbosa não esconderam a sua admiração pela
interpretação ―cuidadosa, responsável e crìtica‖ de Tocqueville a respeito da torrente
revolucionária do final do século XVIII. É importante lembrar que apesar de ser mais
jovem que Tavares Bastos, André Rebouças e Rui Barbosa, Prado conviveu com essa
geração, o que sugere que ele também teria tido contato com a obra de Tocqueville em
algum momento da sua trajetória, sugestão que é corroborada, como eu já disse antes,
pelo catálogo do seu acervo bibliográfico.
A sugestão me aparece bastante provável já que consigo perceber grandes
semelhanças entre os conservadorismos de Prado e Tocqueville, principalmente naquilo
que se refere às críticas à temporalidade e ao privatismo individualista modernos e a
defesa da vida pública ativa. Analiso o problema da temporalidade na próxima unidade.
Por ora, estou interessado na crìtica do autor da ―Democracia Americana‖ ao homem
moderno. A principal preocupação de Tocqueville é com a possibilidade da aplicação,
de fato, da liberdade nas sociedades modernas, caracterizadas, por sua vez, pelo
igualitarismo democrático das massas. Para isso, esse pensador adotou a polarização
entre democracia e aristocracia como a chave analítica primordial para interpretar a

294
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 30/09/1896.
295
MAQUIAVEL, Nicolau. (op cit). p.20.
296
JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência política. Belo Horizonte: Ed.
UFMG , 2005.

145
modernidade democrática; a aristocracia é caracterizada pelo caráter hierárquico da
desigualdade, que é considerada por Tocqueville como a garantia da harmonia e do
equilíbrio do corpo social. Nesse sentido, os privilégios da nobreza não são pensados
como produto de uma ordem injusta que desconsidera o princípio do mérito, mas sim
como o reconhecimento legítimo pelos deveres que lhes são inerentes.
O cerne da crítica de Tocquecville à democracia moderna está na extrema
individualização resultante na constituição da massa de iguais, na qual não existem
―pontos salientes‖ nos quais os homens ―pouco preparados‖ podem se apegar nos
momentos de crise. Esse individualismo provocaria o surgimento de um duplo
despotismo: a opinião pública e o Estado, ambos considerados por Tocqueville como
obstáculos à verdadeira liberdade. Para o autor, a liberdade moderna é fundamentada no
princípio do bem estar pessoal, algo que decreta o fim do homem público. Teria surgido
assim um mecanismo inédito de dominação para o qual o vocabulário político ocidental
ainda não estava preparado. Tocqueville afirmava que esse despotismo moderno se
desvinculou da concepção tradicional de despotismo, muito relacionada no ocidente à
cultura asiática, na medida em que era consentido. Ou seja, os homens modernos teriam
perdido a tal ponto o gosto pela liberdade em função do gozo individual de seus
prazeres frívolos que abriram mão de sua ação pública para melhor aproveitarem a
felicidade privada. Ao fazê-lo, teriam deixado de lado todos os ideais de virtude cívica
para melhor administrarem seus patrimônios e interesses privados.

De fato, é difícil conceber como homens que renunciaram inteiramente ao hábito


de se dirigir por si mesmos poderia conseguir escolher bem aqueles que devem
conduzi-los; e nada fará acreditar que um governo liberal, enérgico e sábio possa
sair dos sufrágios de um povo de servos297.

A mesma acusação que Eduardo Prado fez aos fazendeiros paulistas que não se
engajaram no combate à epidemia de febre amarela, Tocqueville fez ao homem
moderno. Para ambos os autores, a renúncia à vida pública era responsável pela
corrupção dos valores fundamentais da experiência política verdadeiramente virtuosa.
Prado chama os fazendeiros de egoístas e inertes, Tocqueville afirma que no mundo
moderno a única paixão pública é a segurança para o cultivo da propriedade privada.
Preocupados apenas com o cuidado de fazer fortuna, [os homens modernos] não
mais percebem o laço estreito que une a fortuna particular de cada um deles à
prosperidade de todos. Não é necessário arrancar a tais cidadãos os direitos que
possuem; eles mesmos os deixam escapar de bom grado. O exercício de seus

297
Idem. p. 69.

146
deveres políticos lhes parece um contratempo enfadonho que os desvia da sua
indústria298. (Grifos Meus)

Os textos de Eduardo Prado não apresentam a mesma sistematização conceitual


dos de Tocqueville, o que não impede que ambos os autores possam compartilhar as
mesmos valores, valores republicanos. Da mesma forma como Eduardo Prado faria
décadas mais tarde e Harrington e Maquiavel fizeram séculos antes, Toqueville
vinculou a prosperidade privada à prosperidade pública, sugerindo que é impossível ao
indivíduo uma prosperidade segura se no espaço público imperam a caos e a desordem.
Os agricultores convençam-se de que todo o seu mal está no mau governo que há
anos infelicita o Brasil. Intervenham na política os fazendeiros, resgatem o
mundo público que entre nós se perdeu! Melhores pela sua intervenção a
administração do país, e melhorada ficará também a sua condição. Cada um,
segundo as suas opiniões políticas: os monarquistas, como monarquistas, e os
republicanos, como republicanos – saiam da criminosa inação que têm estado. Se
a lavoura não quer perecer de todo, trabalhe para mudar as coisas 299.

As palavras de Eduardo Prado me levam a acreditar que ele considerava


inseparáveis as esferas pública e privada, sendo que a preocupação com a harmonia
social, o que somente seria possível a partir de uma postura de intervenção no debate
político, seria a melhor forma de cuidar da prosperidade privada. O nosso autor aponta a
necessidade de ―resgatar o espaço público‖, que teria sido esvaziado pela República
brasileira. Como vimos, a defesa do espaço público pode ser encontrada, também, nos
textos de outros pensadores vinculados à tradição republicana, como Harrington,
Maquiavel e Tocqueville, cujos escritos já foram examinados neste capítulo. Se para
Prado, no Brasil, o mundo público sucumbiu diante do privatismo e do despotismo dos
governos republicanos, para Harrington, Maquiavel e Tocqueville, o responsável foi a
experiência política moderna, que com seu arranjo estatal transformou o cidadão em um
proprietário ocioso e indiferente às discussões públicas.
Seria um tanto quanto exagerado definir Eduardo Prado como um pensador
republicano, inserindo-o na mesma tradição política de Harrington, Maquiavel e
Tocqueville, pois os rótulos parecem não funcionar muito com o nosso autor, que variou
os seus lances discursivos de acordo com as circunstâncias. Acredito ser mais seguro
afirmar que Prado mobilizou o repertório republicano em alguns momentos da sua
trajetória político/intelectual, sendo, portanto, a tradição republicana uma das chaves
possíveis, de forma alguma a única, para a análise do seu pensamento conservador.

298
Idem. p. 70.
299
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo”. 30/09/1896.

147
Apesar de ter sido particularmente evidente nos textos que Eduardo Prado
escreveu em meio à epidemia de febre amarela, a mobilização dos valores republicanas
pode ser identificada também em outros escritos, onde ele se municiou da argumentação
republicana para fazer críticas à República brasileira. Percebo esse tipo de apropriação
em mais dois textos especìficos: os artigos ―Uma lição de Aristóteles‖ e ―Eleições‖, que
foram publicados no jornal ―Comércio de São Paulo‖, respectivamente, em dezembro
de 1895 e em outubro de 1896. Por uma questão de organização da narrativa, inverto a
ordem cronológica e examino primeiro o texto ―Eleições‖.
De acordo com o calendário legislativo da República dos Estados Unidos do
Brasil, no mês de dezembro de 1896 seriam realizadas as eleições gerais para os cargos
do poder legislativo. Como já sabemos, Eduardo Prado era um ator político bastante
engajado e é de se esperar que o tema do pleito eleitoral tenha atraído a sua atenção. Já
no início do texto, o nosso autor usa o debate eleitoral para criticar os republicanos. O
que mais me interessa é o teor argumentativo da crítica:
Aproximam-se as eleições gerais, e, ao passo que os republicanos permanecem
quietos, apenas contemplando silenciosamente a movimentação à espera do
manifesto despótico e indiscutível dos chefes, nos arraiais monarquistas
principiou já a agitação nos espíritos. Os monarquistas revelam desta arte a sua
virilidade e pujança, a sua tendência para a discussão e para o confronto de
opiniões, afim de apurar onde está a maioria, a verdadeira opiniões pública do
partido, único sistema que constitui a base legítima para a democracia
moderna300. (Grifos Meus)

Mais uma vez, Prado estabelece uma hierarquização entre monarquistas e


republicanos, uma hierarquização que se fundamenta em um juízo de valor assentado
sobre princípios republicanos. Para o autor, os monarquistas são melhores porque têm
―tendência para a discussão e para o confronto de opiniões‖, enquanto os seus
adversários preferem quietude e à subordinação ao mando dos chefes do partido.
Identifico aqui a presença de uma dicotomia que é constitutiva do pensamento
republicano: a vita activa X a vida contemplativa. Para Hannah Arendt, como nos já
sabemos, a vita activa ocupa o espaço da polis, da ação pública e visível a partir da qual
o cidadão busca ser reconhecido como virtuoso pelos seus pares. Já a vida
contemplativa
só pode ocorrer fora da esfera dos negócios humanos e fora da pluralidade dos
homens. É o que vemos pela parábola da Caverna, na República de Platão, na
qual o filósofo, tendo-se libertado dos grilhões que o prendiam aos seus
semelhantes, emerge da caverna, por assim dizer, em perfeita singularidade, nem
acompanhado e nem seguido por outros301.

300
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 31/10/1896.
301
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p.29.

148
De acordo com as considerações de Hannah Arendt, a morte de Sócrates marcou
o início da sobreposição da vida contemplativa sobre a vita activa, sendo essa hierarquia
alimentada pelo idealismo platônico, levada às últimas consequências pelo cristianismo
e mantida na modernidade.
O abismo entre filosofia e política abriu-se historicamente com o julgamento e a
condenação de Sócrates (..). Nossa tradição do pensamento político teve início
quando a morte de Sócrates, fez Platão desencantar-se com a vida da Polis e, ao
mesmo tempo, duvidar de certos princípios fundamentais do ensinamento
socrático302.

É preciso atentar para o fato de que um dos principais objetivos da obra da


autora é compreender a existência do totalitarismo. Para Arendt, o totalitarismo não
significou o desvirtuamento da tradição filosófica ocidental, que historicamente se auto
representou como respeitadora dos direitos individuais e dos valores humanistas. Ao
contrário disso, ela acredita que o totalitarismo é, mesmo, um desdobramento coerente
com essa tradição, o que torna possível a sua explicação dentro dos quadros dos valores
ocidentais, apesar de, aparentemente, a sua existência beirar o absurdo.
Segundo a autora, portanto, impactado pela morte de Sócrates, Platão
reconfigurou as relações entre a filosofia e a política ao retirar do sábio a
responsabilidade pelo mundo comum. Assim, teve início um apolitismo que se reforçará
com o cristianismo e atingirá o seu ápice no privatismo moderno, o que levou à
destruição da concepção clássica, e republicana, de espaço público.

O cristianismo, com a sua crença num outro mundo cujas alegrias se prenunciam
nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vita
activa à sua posição subalterna e secundária; mas a determinação dessa mesma
hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação (theoria) como
faculdade humana, acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que
ocorreu na escola socrática e que, desde então, vem orientando o pensamento
metafísico e político de toda a nossa tradição303.

Portanto, e essa é uma das teses mais polêmicas de Hannah Arendt, a autora
acredita que a tradição filosófica ocidental não é inocente diante da emergência do
totalitarismo, que, de alguma forma seria, o desdobramento mais trágico da apatia
política do homem ocidental, o que teria permitido que a política deixasse de ser a
atividade humana mais nobre para se tornar o monopólio do Estado totalitário. Por isso,
para Arendt, a reconstrução do espaço público e a recuperação da dimensão

302
ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1993. p. 76.
303
Idem. A condição humana. pp. 24-25.

149
verdadeiramente republicana da tradição filosófica ocidental precisa ser uma das
principais prioridades do homem moderno, sendo a única forma de esvaziar
completamente a possibilidade da experiência totalitária.
Ainda que, obviamente, cada um dos dois autores – Eduardo Prado e Hannah
Arendt – tenha atuado em suas respectivas circunstâncias históricas, acredito que ambos
têm o mesmo propósito: a reconstrução do espaço público, pensado aqui como a arena
na qual coabitam os interesses plurais, e a afirmação da necessidade do envolvimento do
cidadão na politica, o que faz com que eles, cada um à sua maneira e em função de seus
objetivos específicos, tenham mobilizado o repertório republicano. Se formos utilizar a
terminologia de Hannah Arendt para examinar a performance republicana de Eduardo
Prado, acredito não ser um absurdo sugerir que, para esse autor, os correligionários da
República brasileira contrariaram o princípio fundamental da República ao se eximirem
da participação política ativa. Essa sugestão se torna ainda mais verossímil se
analisarmos o comentário de Prado a respeito da possibilidade da abstenção eleitoral,
que chegou a ser ventilada nos círculos monarquistas.
Espíritos respeitáveis pelas suas luzes e experiências opinam pela abstenção,
como remédio eficaz para derruir as instituições que estão aniquilando a nossa
pátria. Outros correligionários, ilustres por muitos títulos também, alvitram que a
abstenção seria um erro e retardaria a vitória da causa monárquica. Estamos
francamente ao lado destes e entendemos que é dever dos monarquistas levar o
seu voto às urnas. Um ideal político não pode esperar o triunfo, se não se
corporificar em um grande partido; ora, não se compreende um partido cujo
programa fosse a abstenção, a indiferença, o quietismo. Em tempos de grandes
conflitos é imprescindível que se estabeleça claramente as diferenças entre os
contendores; no Brasil, o quietismo é comportamento dos correligionários da
República304. (Grifos Meus)

Para o nosso autor, a abstenção política não seria a melhor forma de combater as
instituições republicanas, consideradas por ele inadequadas e danosas ao Brasil. Os
monarquistas deveriam, segundo as considerações de Prado, ir às urnas e manifestar
claramente, e pelas vias institucionais, o seu projeto político. A inação da abstenção não
teria valor político efetivo, além de ser estranha ao comportamento típico dos
monarquistas, sendo mais compatível com os republicanos, que seriam avessos ao
debate político amplo e democrático. Portanto, a argumentação que Eduardo Prado
desenvolve no artigo ―Eleições‖ está baseada no contraste entre dois tipos distintos de
comportamento polìtico: a inação, que ora ele chama de ―quietismo‖ e ―contemplação
silenciosa‖ e a ação, que ora ele chama de ―virilidade‖ e ―pujança‖. O autor define a
inação como o comportamento político típico dos republicanos e a ação como o

304
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 31 de outubro de 1896.

150
comportamento político típico dos monarquistas. O mais curioso dessa argumentação é
que, se levarmos em consideração as tradições políticas ocidentais, é o repertório
conceitual republicano quem valoriza a ação política, o que demonstra que na
perspectiva de Eduardo Prado a República brasileira não era uma República legítima,
sendo a Monarquia mais republicana do que a própria República. Como já sabemos
desde o capítulo anterior, essa não foi a primeira vez que Eduardo Prado formulou essa
argumentação.
Já no texto ―Uma lição de Aristóteles‖, Prado tem o objetivo de analisar a
proclamação da República brasileira à luz da filosofia política de Aristóteles. Esse é um
dos poucos escritos onde o nosso autor se esforça em apresentar uma discussão
conceitual um tanto mais rigorosa, mas que ainda assim está subordinada ao seu
objetivo principal, que era desqualificar as instituições republicanas. Nesse texto,
Eduardo Prado afirma a constância da natureza humana e, por isso, eu retomo a análise
desse material na última unidade desta tese, onde discuto o problema da temporalidade e
analiso a historiografia eduardiana. Por ora, o que me interessa no artigo ―Uma lição de
Aristóteles‖ é a crìtica que Prado fez ―à pretensão da República em governar sem
305
oposições‖ . Acredito que o esforço de Eduardo Prado em legitimar a existência da
oposição política possa ser inserido nos quadros da sua argumentação republicana,
principalmente naquilo que se refere à ideia que o espaço público precisa ser a arena de
discussão entre projetos políticos plurais. Novamente, vejo profundas semelhanças entre
as argumentações de Eduardo Prado e Hannah Arendt. Porem, desta vez, os autores
parecem se aproximar na tentativa de relacionar a pluralidade do debate democrático
com a virtuosidade política. Nas palavras de Hannah Arendt,
Na experiência da polis que, com alguma razão, tem sido considerada o mais
loquaz dos corpos políticos, e mais ainda na filosofia política que dela surgiu, a
ação e o discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais
independentes. A ênfase passou da ação para o discurso, e para o discurso como
meio de persuasão não como forma especificamente humana de responder,
replicar e enfrentar o que acontece ou o que é feito. O ser político, o viver numa
polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não
através de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém mediante violência,
ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas,
típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família, na qual o
chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos
impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à
306
organização doméstica . (Grifos Meus)

305
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 12 de dezembro de 1895.
306
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 36.

151
Ao elevar a persuasão à categoria de principal elemento do debate público, a
polis, segundo Hannah Arendt, definiu a pluralidade dos interesses como um elemento
inerente à vida política. Na verdade, a vida política somente existiria, segundo a autora,
porque é a única forma legítima de equacionar, através do debate dialógico, a
multiplicidade dos interesses e permitir que a cidade seja conduzida em função da ideia
de ―bem comum‖. Vejamos se, a despeito das particularidades de estilo e circunstâncias
históricas, Eduardo Prado não nos diz algo bem parecido com isso.
Pretendem os republicanos brasileiros que a sua República funcione sem
oposição. Ora, em política, ao menos em política democrática, isto é impossível.
Há de sempre haver oposição. Se não for oposição de princípios será pessoal e
oriunda desta simples fato: que no governo não há lugar para todos os tipos de
interesses e os que ficam de fora hão de ser oposição. Pretender governar sem
oposição é uma afronta à civilização307. (Grifos Meus)

Podemos perceber claramente que Prado não vislumbra a possibilidade de que


possa existir política democrática sem o conflito institucional entre o governo e as
oposições. Ao tentar extinguir a oposição, as autoridades brasileiras estariam, para o
nosso autor, violando a conditio sine qua non do convívio social civilizado, que, de
acordo com a tradição republicana, somente é possível em uma politea, para usar um
termo caro a Aristóteles. Como já era de se esperar, Eduardo Prado compara a
República com a Monarquia também no quesito ―liberdade de oposição‖.
Na Monarquia, como a tínhamos, se as eleições não eram perfeitas ao menos a
oposição tinha certeza de que, mais tarde, ou mais cedo, havia de ser governo. O
partido dominante gastava-se no poder, a oposição agitava livremente a opinião
pública e, se esta simpatizava com os oposicionistas, o Imperador, que
atentamente acompanhava o movimento, chamava logo a oposição para o
governo. Na República, tal como a temos, não é assim. Ou não haverá nunca
oposição, o que será o fim de toda liberdade política e a completa
desmoralização do país, ou haverá um governo certo de que nunca há de cair e,
portanto, sem escrúpulos, nem freio de espécie alguma, e onipotente, diante de
uma oposição sem esperança de vitória legal, aliada natural de todas as tentativas
revolucionárias. (Grifos Meus)

Há na citação inúmeros elementos que me permitem retomar aspectos


importantes da argumentação que venho desenvolvendo ao longo deste capítulo. Por
exemplo, ao comentar a atuação do Imperador no cenário político monárquico, Prado o
definiu como uma espécie de árbitro, como alguém que ―acompanhando atentamente‖ o
jogo político, porém sem se confundir com ele, e que tinha a temperança e a prudência
de interpretar corretamente os anseios da opinião pública e adaptar a correlação dos
grupos políticos em função desses anseios, calculando a sua intervenção sem nenhum
tipo de compromisso com os interesses envolvidos. Existe aqui alguma semelhança com

307
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 12 de dezembro de 1895.

152
a doutrina jurídica desenvolvida pelo Visconde de Uruguai, que tive a oportunidade de
examinar brevemente neste capítulo, que definiu o poder moderador como competência
administrativa e despolitizada.
Também é importante o fato de Eduardo Prado utilizar o critério da presença da
oposição para estabelecer a superioridade da Monarquia sobre República. Como eu já
demonstrei há pouco, o critério dessa hierarquização é a existência de um espaço
público de debate político plural, que, como vimos a partir das reflexões desenvolvidas
por Hannah Arendt, é um valor vinculado à tradição republicana. Bom, parece que
temos aqui certa contradição lógica: Eduardo Prado desqualifica a República brasileira
utilizando argumentos que elogiam a forma republicana de governo. Essa contradição
manifesta-se tão somente no plano da superfície, não resistindo ao aprofundamento da
análise. Por isso, eu destaquei na citação os termos que, acredito, são capazes de diluir
essa sensação de contradição e, ao mesmo tempo, retomar a hipótese que estou
desenvolvendo neste capítulo.
Ao citar a Monarquia e a República brasileiras, Eduardo Prado, deliberadamente,
utilizou os termos ―como a tìnhamos‖ e ―tal como a temos‖. Ao fazê-lo, o objetivo do
autor era dizer ao seu leitor, que sabia muito bem que o jornal ―Comércio de São Paulo‖
era um órgão do Partido Monarquista, que no Brasil essas experiências tinham suas
especificidades, não podendo ser pensadas a partir da perspectiva corrente no senso
comum político moderno, que ao definir a República como o contraponto da
Monarquia, identificou a primeira com a democracia e a segunda com o despotismo. Ao
utilizar os tais termos, Prado quis mostrar que esse lugar comum não se aplicava ao caso
brasileiro, já que, entre nós, a Monarquia incentivou a ação política dos
cidadãos/proprietários, que atuavam como corresponsáveis junto com o governo pelo
bom andamento dos assuntos públicos, e possibilitou a existência da oposição, o que é
fundamental para a pluralidade do debate político democrático. Por outro lado, a nossa
República teria esvaziado o espírito público dos proprietários, a ponto deles não terem
se engajado no combate à epidemia de febre amarela, e tinha o projeto de extinção das
oposições, estando, por isso, mais próxima de um tipo de governo despótico do que do
propriamente republicano.
A forma como Eduardo Prado manejou esses princípios republicanos mostra que
ele, de fato, conhecia esse repertório, o que não era uma particularidade sua, mas algo
comum aos membros das elites brasileiras oitocentistas. Como sabemos, esses homens
eram treinados em centros especializados que tinham o objetivo de prepará-los para a

153
vida pública. O tipo de educação que esses espaços ofereciam aos seus alunos - como
vimos neste capítulo para o caso do Seminário Diocesano de São Paulo - era marcado
pela presença de importantes tradições do pensamento político ocidental, como, por
exemplo, o republicanismo. Porém, outras tradições também eram importantes na
formação desses homens. Meu objetivo no próximo capítulo é examinar o uso que
Eduardo Prado fez de outra tradição fundamental para a história do pensamento político
ocidental: o direito natural, com a qual ele travou contato nos bancos da Faculdade de
Direito de São Paulo.

154
Capítulo 5

O elogio à intimidade da casa e a defesa da propriedade privada: a apropriação da


filosofia do direito natural nos escritos de Eduardo Prado

Sé é do sexo que os homens tanto gostam e a gramática põe sempre em segundo


lugar, há o vestido branco, o cor de cinza, e até o verde gaio de cetim,
envolvendo uma matrona destilando balanços faceiros e ostentando ademanes
quadragenários. Os homens apreciam e desejam na doce intimidade do lar, onde
a autoridade do legislador não pode tocá-los, onde é permitido o gozo dos
308
pequenos prazeres da existência . (Eduardo Prado) (Grifos Meus)

O governo terá forçosamente de ir procurar dinheiro onde há dinheiro, isto é, no


café. E por que modo? (...) Não resta, pois, à República outro recurso, além do
monopólio do café. Este monopólio é uma ideia que será de aplicação necessária,
fatal e indeclinável, se perdurar a atual constituição republicana, com a sua
absurda divisão de rendas e as enormes despesas militares e civis indispensáveis
para a República manter-se. O resultado do monopólio do café é o ataque frontal
ao direito mais primordial da classe responsável pela prosperidade do Brasil: a
309
propriedade dos fazendeiros de café . (Eduardo Prado) (Grifos Meus)

Mais de quatorze anos separam as duas citações, tempo suficiente para grandes
transformações no comportamento político de Eduardo Prado. O primeiro trecho foi
publicado no pequeno e efêmero jornal estudantil ―A Comédia‖ em março de 1881,
quando o nosso autor cursava o último ano da faculdade de direito, escrevia crônicas
políticas em alguns jornais paulistas e ainda não era um aguerrido defensor das
instituições monárquicas. A segunda citação foi extraìda do artigo ―A ruìna financeira
da República‖, que foi publicado no jornal ―Comércio de São Paulo‖ em novembro de
1895, quando Prado já era notoriamente um grande adversário dos governos
republicanos. A despeito das particularidades das conjunturas históricas nas quais as
citações foram escritas, é possível perceber algo em comum entre elas: em ambas são
mobilizados valores pertencentes ao repertório do direito natural. No primeiro caso, o
valor mobilizado é aquele que define o espaço privado como a esfera de intimidade,
como o locus da existência no qual o homem está protegido do poder da autoridade
civil. No segundo caso, Prado caracteriza a propriedade como um direito primordial, o
que o aproxima bastante da concepção de direito natural desenvolvida por John Locke.
O meu objetivo neste capítulo é analisar o uso dessa tradição filosófica nos escritos de
Eduardo Prado, mostrando que o jusnaturalismo é uma chave de leitura possível para a
análise do seu pensamento conserdador, o que demonstra como, em alguns aspectos, ele

308
PRADO, Eduardo. ―A Comédia‖. 05 de março de 1881.
309
Idem. ―Comércio de São Paulo. 14/11/1895.

155
destoou do conservadorismo moderno, tal como foi delineado por autores como
Edmund Burke e Alexis de Tocqueville.
Edmund Burke, nas suas críticas à Revolução Francesa, negou a ideia de que
existe um direito natural comum a todos homens e a todos as épocas, argumento que
serviu como combustível para a luta dos revolucionários contra o despotismo do Antigo
Regime. Também Tocqueville questionou a ―liberdade natural‖ que impulsionou os
jacobinos, dizendo que os direitos devem ser pensados à luz das circunstâncias
específicas de cada época, visando sempre a harmonia da sociedade. Nesse sentido, o
pensamento conservador momento tem como uma de suas principais características a
rejeição à doutrina do direito natural e a reivindicação de um pensamento jurídico
conjuntural que respeite as particularidades de cada ordenamento social. Segundo o
filósofo alemão Friedrich Meinecke, essa rejeição conservadora à teoria do direito
natural foi a fonte na qual o historicismo, no século XIX, bebeu para criticar as
abordagens metafísicas da história filosófica e desenvolver uma abordagem histórica
voltada ao exame dos eventos. No último capítulo desta tese, eu examino como Prado
mobilizou o aparato metodológico desenvolvido pela escola histórica alemã. Por ora,
desejo mostrar como, em alguns momentos da sua trajetória político/intelectual, o nosso
autor destoou do repertório conservador e se apropriou dos fundamentos do
jusnaturalismo, o que demonstra que a sua relação com o conservadorismo moderno
precisa ser analisada com cuidado, à luz das intervenções do autor na cena
político/intelectual brasileira finissecular. Nem sempre, Prado atuou como um
conservador típico, como um herdeiro de Burke e Tocqueville.
Como o leitor já sabe, o objeto de estudos desta tese é a performance letrada de
Eduardo Prado. Desde o início do meu texto, eu estou tentando mostrar que o autor
mobilizou, nas suas performances discursivas, elementos dos vocabulários políticos
antigo e moderno, que foram usados ao sabor das circunstâncias e sem um maior rigor
metodológico. Essa perspectiva de análise se fundamenta na ideia de que as tradições do
pensamento político ocidental não devem ser separadas por um rigoroso corte
cronológico, sendo, portanto, muito comum o diálogo entre elas. O caso da filosofia do
direito natural é sintomático desse tipo de combinação. Em um trabalho dedicado
especificamente ao tema, o filósofo francês Michel Villey destaca as raízes clássicas
dessa tradição filosófica.
Pode-se afirma que a teoria do direito natural é tão antiga quanto a filosofia
ocidental. É principalmente em Heráclito que os estudiosos reconhecem o início
das formulações da lei de natureza enquanto ditame da razão: o logos heracliano,

156
em particular, constitui o precedente da teoria estóica das razões seminais e, mais
remotamente, da teoria cristã da lex aeterna. Além disso, no conceito de logos
devemos reconhecer o contributo essencial de Heráclito para a filosofia jurídica.
É por ser comum a todos os homens que a razão (ou logos) seria o fundamento
310
da lei natural .

A análise de Alberto Ribeiro de Barros é bem parecida, sendo que o estudioso


brasileiro define o pensamento republicano de Cícero como a principal matriz clássica
do jusnaturalismo moderno, sugestão que é fundamental para a argumentação que estou
desenvolvendo nesta unidade. Nas palavras do autor:
Na sua filiação eclética, Cícero trouxe do estoicismo essa crença em um universo
racionalmente ordenado, na presença inata em todos os homens de uma razão,
que atribui a cada ser as características da sua essência e o fim para o qual está
direcionado, e principalmente na consubstancialidade desta razão com a alma
humana. A lei é a razão soberana introduzida na natureza, que nos ordena o que
devemos fazer e nos proíbe o contrário. Essa razão, quando ela se apoia e se
311
realiza no pensamento do homem, é lei .

As relações de continuidade entre o republicanismo cívico de Cícero e o


jusnaturalismo de autores modernos, como, por exemplo, Hobbes, ficam ainda mais
claras quando dedicamos alguma atenção aos textos escritos por esses dois importantes
pensadores ocidentais.
A reta razão, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável,
eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal o que proíbe e, ora com
seus mandamentos e ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos
bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem
derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento
nem pelo povo e nem pelo senado; não há o que procurar para ela outro
comentador ou intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, uma antes
e outra depois, mas uma sempre eterna e imutável, entre todos os povos e em
312
todos os tempos . (Grifos Meus)

Lei e razão são gêmeas; a falta de um é a deformidade do outro; são de um tipo


convertibilia [passível de ser convertido], e inseparáveis. A razão comum que
temos gravadas [engrafted] em nossas naturezas, é a lei, dirigindo o que nós
temos de fazer, proibindo o contrário, de acordo com Cícero. Pois a lei nada
mais é do que a razão dilatada e aplicada em diversas ocasiões e acidentes. E a
esse respeito, e a obrigação que devemos à lei, nada mais é do que obediência à
razão, que é a progenitora, das próprias leis; aqueles então que não as obedecem,
ficam mais próximos da natureza dos brutos e dos selvagens, do que os homens
313
dotados . (Grifos Meus)

Respectivamente, tanto Cícero como Hobbes definem a razão como o principal


elemento da natureza humana, sendo, portanto, a lei natural essencialmente racional, já

310
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2009,
p. 46.
311
BARROS, Alberto Ribeiro de. Direito Natural em Cícero e Thomas de Aquino. São Paulo: Ed. USP,
2010, p. 85.
312
Cícero. Da República. São Paulo: Ed. Escala, 2006. p. 65.
313
HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2004. P. 97.

157
que os homens não precisam de nenhum legislador para saberem o que é o bem e o que
é o mal, sendo o papel da autoridade, tão somente, coagi-los a praticar o bem e evitar o
mal. O próprio Thomas Hobbes, que segundo Norberto Bobbio314 é, junto com John
Locke, um dos principais representante do jusnaturalismo inglês, reconhece a dívida
para com o pensamento político de Cícero. Nesse sentido, não me parece ser nenhum
absurdo propor que Eduardo Prado, dono de um acervo bibliográfico no qual estavam
os escritos desses próceres do pensamento político ocidental, tenha mobilizado tanto os
valores do republicanismo cívico antigo como os valores do jusnaturalismo moderno. aa
relação entre as duas tradições é baseada mais na complementariedade do que na
ruptura.
A presença da correlação entre a natureza e a razão, tão cara a Cícero e a
Hobbes, pode também ser identificada em textos do próprio Eduardo Prado, como, por
exemplo, no artigo ―Escavação do Passado‖, publicado no jornal ―A Comédia‖ em 09
de março de 1881. Nesse texto, o nosso autor analisa a lei Eusébio de Queirós.
Muitos anos há que o tráfico, a importação de africanos para o nosso país, foi
pelas nossas leis abolido. Para conseguir isso muito lutaram os nossos
legisladores; a necessidade de braços para o trabalho, o uso arraigado de muito
tempo da importação dos negros, a abolição das leis que facultavam a
escravização dos índios, eram razões poderosíssimas que atuavam para impedir a
abolição do tráfico. A permanência de tamanho crime ia contra a razão, que é o
atributo mais natural dos homens, transformando-se no Brasil em um típico caso
315
de desvirtuamento jurídico . (Grifos Meus)

Para Prado, a legalidade do tráfico de escravos era um desvirtuamento jurídico


porque ia contra o princípio racional que define todos os homens como livres, tendo,
portanto, a lei Eusébio de Queirós o mérito de ajustar a jurisdição brasileira aos
parâmetros morais estabelecidos pela natureza humana. O autor não aprofundou a
reflexão sobre a escravidão e nem comentou as outras leis abolicionistas, mas utilizou O
princípio jusnaturalista que afirma ser a justa jurisdição a codificação da natureza
racional dos homens. Também existem elementos biográficos que sugerem o contato de
Eduardo Prado com o jusnaturalismo moderno, como, por exemplo, a sua proximidade
com João Teodoro Xavier, professor de direito natural da Faculdade de Direito de São
Paulo. Examino, ainda neste capítulo, esses aspectos biográficos. Por ora, dou
prosseguimento ao exercício de identificar os valores jusnaturalistas nos escritos de
Prado.

314
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Ed UNB, 1997.
315
PRADO, Eduardo. ―A Comédia‖. 09 de março de 1881.

158
No primeiro capítulo desta tese, examinei parte dos escritos de juventude de
Eduardo Prado, exatamente aqueles que foram publicados na coluna ―Crônicas da
Assembleia‖ do jornal ―Correio Paulistano‖ em 1879. Agora, eu examino outra parte
desses textos, especificamente os que foram publicados no jornal ―A Comédia‖ ao
longo do ano de 1881. Há diferenças muito importantes entre os dois jornais, fato que
considero ser fundamental para a compreensão da performance discursiva do jovem
Eduardo Prado. Se por um lado, como já vimos no primeiro capìtulo, o ―Correio
Paulistano‖ era um dos maiores jornais em circulação na capital paulista, o ―A
Comédia‖ era um periódico formado por jovens escritores, como, por exemplo, Raul
Pompeia, Afonso Celso e Assis Brasil, sendo, nas palavras de Brito Broca, ―uma
espécie de laboratório para escritores que teriam destaque na vida literária brasileira do
final do século XIX‖316. Com uma tiragem pequena, o jornal circulou por apenas um
ano, sendo Eduardo Prado, que em uma referência direta ao Partido Conservador inglês
assinava seus textos com o pseudônimo Tory, um dos seus redatores e escritores mais
participativos.
Quando comparados aos textos publicados no ―Correio Paulistano‖, os textos do
―A Comédia‖ mostram um escritor muito mais seguro e ousado, capaz de criticar as
instituições vigentes com ironias um tanto refinadas. O fato de textos escritos na mesma
época e pelo mesmo autor serem tão diferentes chama a atenção para a importância da
lógica intrínseca aos materiais examinados pelo historiador interessado nos estudos de
história intelectual. Eduardo Prado adaptava as suas intervenções às exigências
especìficas dos meios que abrigavam os seus textos. Se o ―Correio Paulistano‖ era um
jornal de clara identidade partidária, bastante lido e influente nas disputas políticas, o
nosso autor apresentou-se como um cronista pronto a defender os interesses do Partido
Conservador, o que na conjuntura da época, como já sabemos, significava fazer forte
oposição aos governos comandados pelo Partido Liberal. Por outro lado, o ―A
Comédia‖, na medida em que era um periódico de pequena circulação e dirigido por
jovens e intempestivos estudantes, possibilitou lances discursivos menos
comprometidos com os interesses partidários do seu grupo político.
Este capítulo, portanto, está dividido em três partes, sendo o uso do
jusnaturalismo o fio condutor que direciona a minha análise em todos eles. Na primeira
parte, eu examino o uso que Prado fez da teoria do direito natural em alguns dos seus

316
BROCA, Brito. A Vida literária no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2004, p. 79.

159
escritos de juventude, especificamente aqueles que foram publicanos no jornal
estudantil ―A Comédia‖. Na segunda parte, me debruço sobre alguns aspectos da
biografia do personagem que acredito serem importantes para a compreensão da forma
como ele se apropriou dos princípios do direito natural. Na terceira parte, examino as
críticas de Prado à política macroeconômica desenvolvida pelos primeiros governos
republicanos, pois acredito que, nesse material, o autor mobilizou um dos valores mais
caros ao repertório jusnaturalista: a definição da propriedade como um direito natural.

5.1- O jusnaturalismo nos escritos de juventude de Eduardo Prado

Como já vimos, nos textos publicados no ―Correio Paulistano‖, o nosso autor


atuou como um cronista contido, tentando sempre dar aos seus escritos certa dimensão
de neutralidade. A situação é bem diferente quando observamos a sua atuação nas
páginas do ―A Comédia‖, que, talvez pela menor tiragem e pela sua natureza
exclusivamente estudantil, parece ter imposto limites editoriais mais brandos, o que
permitiu que Eduardo Prado fosse mais ousado nas críticas ao governo, como é possível
perceber no texto ―O Olho da Providência‖, que foi publicado em 17 de maio de 1881.
Nesse texto, Prado critica diretamente a família real, a mesma que ele defenderia com
todas as forças anos mais tarde. A crítica se refere ao apoio dado pela Monarquia aos
familiares de uma senhora que, na infância, teve o olho arrancado pela Princesa Isabel.
Há uns vinte e tantos anos um golpe que a sereníssima princesa imperial
desfechou, por descuido, em um dos olhos de uma companheira sua de
travessuras, fez jorrar para a família da ofendida todas as graças e proteções. A
augusta família imperial utilizou largamente de todas as compensações para
indenizar a família da menina do olho perdido. Chegou até a associar-se ao país
nesta obra de compensação. As presidências das províncias, as deputações, as
rendosas varas de magistratura, as senatorias, as pastas ministeriais, têm sido
atiradas na cavidade pelo olho ausente. O que era um defeito, tornou-se um bem,
um Pactolo, um Potosí. Depois de fazer fortuna política do pai da pobre menina,
o olho foi consagrado também à felicidade do marido. Título de conselheiro,
nomeação de professor, deputado, presidente de província, tudo isso foi o feliz
esposo da distinta senhora. A delicadeza de sentimentos da família imperial é
digna de todos os elogios, apesar de acharmos esquisito a forma de deitar
gentilezas que não são do encargo de sua Majestade Imperial, mas sim do
317
país .

Eduardo Prado acusa o Imperador D. Pedro II de utilizar o tesouro público para


compensar a família da moça mutilada pela Princesa Isabel. Trata-se de uma crítica
bastante semelhante àquela que ele faria anos mais tarde aos governos republicanos,
que, como vimos no último capítulo, teriam, segundo o nosso autor, enfraquecido o
317
PRADO, Eduardo. ―A Comédia‖. 17 de maio de 1881.

160
espírito público do cidadão brasileiro em pró dos interesses privados. Para Eduardo
Prado, ao ―deitar gentilezas com os encargos do paìs‖, o Imperador estaria gerindo o
Estado brasileiro em função dos interesses privados da sua família, quando deveria fazê-
lo em função dos interesses públicos do povo brasileiro. Mais uma vez, acredito, temos
uma forte evidência de que o monarquismo que a bibliografia especializada atribui ao
nosso autor precisa ser pensado com mais cuidado. O monarquismo não estava lá desde
sempre, sendo antes o resultado da proclamação da República e dos rumos do novo
regime político do que uma característica essencial do pensamento político de Eduardo
Prado.

Da mesma forma como aconteceu com os outros escritos de juventude, os textos


de Prado que foram publicados no ―A Comédia‖ também não foram contemplados pelas
―Coletâneas‖ organizadas postumamente. Por isso, novamente, foi fundamental a leitura
das biografias escritas por Cândido da Mota Filho e Sebastião Pagano. Os dois autores
comentam a participação de Eduardo Prado nesse periódico. Para Mota Filho,
Foi nas páginas do jornal estudantil ―A Comédia‖ que Eduardo Prado deu vazão
à sua veia humorìstica e literária, principalmente no coluna ―Crônicas de
Costume‖ e no romance ―O Russinho‖, onde o jovem autor ironizou os
318
protocolos da pálida corte brasileira .

A argumentação de Sebastião Pagano é bastante semelhante, ainda que ele seja


mais preciso nas informações.
Mas, fora da política, fazia literatura, sem deixar ligar uma coisa à outra, como o
fez com ―A comédia‖, que dirigiu com Valentim Magalhães e Raul Pompéia.
Neste, dedicava-se a assuntos humorísticos. Escreveu aí, de colaboração, o
romance ―espanta-burguês‖ intitulado ―Russinho‖ cujos capìtulos revelam a
feição graciosa de seu talento(...)Quando Silva Jardim deixou o ―A Comédia‖
para se casar, Eduardo Prado assumiu por inteiro todas as responsabilidades,
inclusive as pecuniárias, e, embora fosse conservador como seus irmãos, a
―Comédia‖ tomou, estranhamente, a feição republicana, tanto que em 21 de abril
comemorou, ardentemente, o martírio de Tiradentes. Não no sentido que lhe dera
dom Pedro II, de protomártir da independência da pátria, e sim como um símbolo
das idéias republicanas e libertárias. Havia um pouco de troça no fundo disso
319
tudo, não pela figura do mártir, mas pelas ideias que lhe exploravam .

Nenhum dos dois autores se dedicou à análise dos textos publicados no jornal ―A
Comédia‖, material que permite uma melhor compreensão do uso que Eduardo Prado
fez da filosofia do direito natural. Essa apropriação fica clara na primeira citação que
abre este capítulo, onde o autor mobiliza um dos valores mais fundamentais para essa
318
FILHO, Cândido da Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967, p. 170.
319
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p. 15.

161
tradição filosófica: o elogio à intimidade e a definição da esfera privada como o lugar de
refúgio do indivìduo contra o alcance da autoridade civil. Durante a curta vida do ―A
Comédia‖, que circulou por apenas um ano, Eduardo Prado escreveu quase que
semanalmente a coluna ―Crônica dos Passeios‖, onde ele comentava o cotidiano
paulista. Esses textos são atravessados pelos valores jusnaturalistas. No mesmo dia 05
de março de 1881, logo abaixo do trecho que eu citei no início do capítulo, Eduardo
Prado escreve:
Um pitoresco espaço abaulado de relva que deleitava os olhos do Ezequiel
Freire, o floricultor, assim como os de todos os amadores de jardins, está sendo
destruído pelas ruas que a fantasia do diretor está traçando no belo tapete de
grama. Tudo bucólico, tudo pacífico, a doce e confortável intimidade do homem
320
moderno . (Grifos Meus)

Aqui, Prado está comentando o jardim da casa de uma ―prestigiosa famìlia


paulista‖ e, de forma explícita, definiu a casa como o conforto do homem moderno. Na
crônica seguinte, que foi publicada em 08 de março, a mobilização do princípio
jusnaturalista é ainda mais explícita. Ao comentar jocosamente a importância da garoa
paulista para a ―aproximação ente os sexos‖, ele compara a ―voluptuosidade sexual‖ dos
paulistas com a ―apatia sexual‖ dos peruanos.
O fato de nunca chover em Lima, segundo afirmavam os geógrafos, afastou os
homens das tentações feminis. As lindas limienses não podiam contar com a
chuva como parte de sua estratégia matrimonial (...)As jovens bem cismavam
que apesar dos pesares o mundo não havia de acabar, mas a situação era
intolerável. Tudo porque não tinham um só momento propício para uma curta
exibição de perna em dia chuvoso. O vestido curto pareceu-lhes a tábua de
salvação e dele fizeram a bandeira do partido feminil. Mas as exposições
permanentes acabam sempre por enfastiar; a facilidade do exame tirou o encanto
de uma olhadela a furto... Conclusão: esbotou-lhe a sensibilidade masculina.
Morfaram nas sacristias as estolas sacerdotais por falta de serviram para atar
sagrados laços; diminuiu a população e enfraqueceram as relações de família.
321
Chegaram os chilenos e a vitória foi sua .

Para Prado, as mulheres peruanas tinham dificuldade em contrair o matrimônio


porque o clima seco não lhes permite a possibilidade de ―mostrar os detalhes mais
ardentemente inocentes dos seus encantos‖. Diferente seria a situação de São Paulo,
onde

(...) a chuva tem clara função social. . Se apenas forma poçinhas de água, é causa
de levantar-se um bocadinho do vestido e de aparecer um bas de a be que pode
ser a centelha acendedora daquilo que os antigos sabiamente chamaram de facho
de himneo.

320
PRADO, Eduardo. ―A Comédia‖. 05 de março de 1881.
321
Idem. 08 de março de 1881.

162
Eduardo Prado argumenta, em tom jocoso, que a chuva serve como uma espécie
de elemento afrodisíaco na medida em que fez com que as moças levantem levemente a
barra do vestido, desnudando os tornozelos e despertando a ―centelha do vigor
masculino‖. O que mais me interessa nessa incursão de Eduardo Prado pelos prazeres da
intimidade, é justamente a definição da intimidade como a esfera do prazer. Não
podemos esquecer que o nosso ator estava escrevendo em um jornal estudantil que
circulava entre os próprios estudantes. Somente levando isso em consideração, somos
capazes de compreender as especificidades da sua atuação. Prado estava conversando
com os seus colegas de estudos e de farras. O desfecho da crônica mostra isso
claramente.
Agora, se desiludidas com o clima anticivilizador de Lima, quiseram morenas
descendentes dos castelhanos e dos incas, emigrar para terras mais propícias à
felicidade; se quiseram estabelecer com o concurso da associação de agricultura,
comércio e imigração, uma corrente de imigração de tranças pretas e olhos
grandes, de braços roliços, e cinturas finas, venha para São Paulo. A terra é boa.
Há a rapaziada da academia e o cabido da Sé, o que é mais, há frequentes vezes,
322
a chuva deleitosa, que lhes dará ocasião de levantar um pouco a saia e... .

Ainda que no texto, Eduardo Prado não demonstre a menor inclinação à


discussão conceitual, consigo identificar o uso do repertório jusnaturalista. A
formulação é curta e secundária na economia da narrativa, mas bastante reveladora: ―Os
peruanos viram abastardar-se a sua raça por falta de chuva, o que prejudicava-lhes o
gozo da intimidade, onde o homem moderno pode se entregar ao descanso das
liberdades quase primitivas‖323. (Grifos Meus)
Suponho que a interpretação dessa curta formulação possa ser desdobrada em
alguns aspectos: primeiro, o nosso autor afirma que a intimidade é um espaço de
maiores liberdades, de liberdades quase primitivas, estabelecendo assim, ainda que não
diretamente, uma importante diferença com o espaço público, onde o homem estaria
submetido diretamente ao controle da autoridade civil, sendo, portanto, menos livre.
Segundo, ao que me parece, Prado, ao menos nos textos examinados, não considera essa
liberdade privada como algo ruim, mas sim como um confortável refúgio de descanso
em relação ao poder político. Terceiro, a ideia de que a intimidade é o refúgio
disponível ao homem moderno, sugere o esforço, ainda que breve e sem a menor
sistematização, de definir uma especificidade para a modernidade, algo que não estaria
disponível ao homem pré-moderno. Todos esses elementos de alguma maneira estão

322
Idem.
323
Idem.

163
presentes também nos escritos políticos de John Locke, autor que, levando em
consideração o catálogo bibliográfico organizado por A. Gazeau, era bastante estimado
por Eduardo Prado.
Uma análise mais cuidadosa dos escritos de Locke, principalmente os textos
“Essay concerning toleration” e ―Letters concerning toleration”, ambos pertencentes
ao acervo do nosso autor, é importante para o fortalecimento da hipótese que estou
desenvolvendo neste capítulo. De acordo com Norberto Bobbio, foi nesses textos que
Locke sistematizou a sua defesa das liberdades privadas, argumento que viria a
influenciar toda cultura política moderna. Como já comentei brevemente no prólogo a
esta unidade, em um estudo específico sobre a modernidade, o historiador alemão
Reinhart Koselleck definiu a filosofia política de Locke como o fundamento do
iluminismo burguês, principalmente naquilo que se refere à delimitação da consciência
como um espaço legítimo de crítica política. De acordo com as considerações desse
autor, Locke argumentava que
Embora os súditos tenham abdicado de todo seu poder para colocá-lo à
disposição do Estado, e por isso não possam agir contra um cidadão além do que
é autorizado pelas leis do país, ainda assim eles conservam a capacidade de
formar uma opinião boa ou má, de aprovar ou reprovar os atos daqueles com
quem convivem e dialogam. Os cidadãos não têm nenhum poder executivo, mas
324
possuem e conservam o poder espiritual do juízo moral .

Para Koseleck, Locke afirma que as opiniões morais desenvolvidas pelos


cidadãos tendem a não ficar restritas apenas ao espaço privado, podendo mesmo ganhar
estatuto de lei, que foi aquilo que o próprio Locke chamou de ―Lei da Censura Privada‖,
―[que consiste] na autoridade dos cidadãos em impor as suas opiniões pelo
325
enaltecimento ou pelo descrédito‖ . Nesse sentido, o filósofo inglês parece
estabelecer, ao mesmo tempo, uma distinção e uma complementariedade entre os
espaços público e privado.
Espaço privado e espaço público não são de modo algum excludentes. Ao
contrário, o espaço público emana do espaço privado. A certeza que o foro
interior moral tem de si mesmo reside em sua capacidade de se tornar público. O
espaço privado alargar-se por força própria em espaço público, e é somente no
326
espaço público que as opiniões privadas se manifestam como lei .

Koselleck acredita que Locke estava mesmo convencido de que uma vez
compartilhados por um grande número de pessoas, os juízos morais poderiam ser

324
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à partogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: ED. UERJ, 1999. pp. 50-51.
325
LOCKE apud KOSELLECK (Idem). p. 52.
326
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à partogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: ED. UERJ, 1999. p. 54.

164
alçados à condição de padrões de comportamento fortes o suficiente para terem poder
de lei. Nas palavras do próprio Locke: ―Nenhum homem que ofenda a opinião daqueles
com quem convive escapa à punição de sua censura e desapreço‖327. É, justamente, o
poder de censura da lei moral um dos valores jusnaturalistas que foram mobilizadas por
Eduardo Prado no romance ―As Façanhas do Russinho‖, o único do autor que chegou
até nós. Segundo Sebastião Pagano, Prado escreveu ainda outro romance, intitulado
―Terra Rocha‖, que ―ficou inédito e certamente foi extraviado‖ 328.
O romance ―As Façanhas do Russinho‖ começou a ser publicado no jornal ―A
Comédia‖ sob a forma de folhetins, em 06 de abril de 1881. Como o exemplar do dia 21
de maio é o último que está disponível nos arquivos da Faculdade de Direito de São
Paulo, não consegui descobrir quando e como o enredo foi encerrado. Contudo, o
estudo do material disponível mostra como o direito natural foi uma tradição
fundamental na formação e na atuação letrada de Eduardo Prado. A narrativa trata de
uma viagem do Imperador D. Pedro II ao Paraná e da obsessão de um rico colecionador
inglês, o Mr Begget, pelo guarda chuvas do Monarca brasileiro. Para roubar o precioso
artefato, o nobre inglês contratou os serviços do Russinho, um ―dandy de meia tigela
que se infiltrou na comitiva do Imperador, disfarçado de jornalista‖. O texto mereceria
ser analisado com mais cuidado, principalmente naquilo que se refere às suas relações
com o projeto estético realista, que na época era uma das principais tendências no
cenário literário brasileiro. Porém, por causa da delimitação do objeto desta pesquisa,
não é possível fazer, aqui, esse tipo de exercício. Fica para um outro lugar, para um
outro momento.
Por ora, o que mais me interessa no romance ―As Façanhas do Russinho‖ é uso
dos valores jusnaturalistas, o que pode ser verificado logo no primeiro parágrafo do
texto.
A atmosfera política pesava, condensada e opaca, sobre as consciências, levando
os homens de casaca preta a violarem internamente os princípios naturais do
poder. Havia pelo céu, nuvens plúmbeas, núncias de borrasca, enxotadas
rapidamente pelo prestígio ministerial. A eleição direta era o grande assunto, o
único, o merecedor das colunas dos jornais, das palestras dos botequins e dos
329
rendez-vous políticos .

Como já estamos acostumados, a referência não é direta, estando o princípio


caro à teoria do direito natural diluído na narrativa. Porém, uma leitura atenta aos

327
LOCKE apud KOSELLECK (idem). p. 55.
328
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p. 16.
329
PRADO, Eduardo. “A Comédia‖. 06 de abril de 1881.

165
princípios jusnaturalistas consegue perceber a presença do princípio da consciência
ìntima como um lugar de resistência polìtica à autoridade civil. Para Prado, os ―homens
de casaca preta‖, que era como os polìticos eram chamados no século XIX, se
rebelavam secreta e silenciosamente contra o poder instituído. Ainda que esses homens
não tivessem condições políticas de exteriorizar a sua insatisfação, possuíam o controle
do seu próprio ―juìzo moral‖, o que, de alguma forma, tinha desdobramentos públicos
fortes o suficiente para tornar a ―atmosfera polìtica pesada, condensada e opaca‖.
Portanto, o fato da rebeldia da elite política ser interna não implicava necessariamente
na ausência de qualquer capacidade de interferência nas estruturas do poder. Temos
aqui a mesma complementariedade entre público e privado que foi articulada por Locke.
A tópica do valor coercivo do juízo moral é retomada em outro momento do
enredo, justamente quando o protagonista consegue adentrar nos aposentos do
Imperador e, pela primeira vez, tem contato com o tal guarda chuva que tanto
despertava o interesse do magnata inglês.
Ora perseguido pela polícia, protegido pelas influencias eleitorais, as vezes
aliado a secreta, a sua existência era atribulada. Olhando para o guarda sol, o
russinho enterquecia-se apresentando no seu passado de lutas que ia findar.
Pensava já que compraria uma cainha no Andaraí Grande, que teria um
jardinzinho, que se casaria com uma enjeitada que vira havia meses no dia da
festa da misericórdia, que teria uns filhinhos gorduchos, que fariam a glória da
sua família e amarrotariam-lhe as calças brancas, passando a levar uma vida de
330
acordo com os ditames morais do convívio social . (Grifos Meus)

Mesmo sendo um ladrão, um ―capoeira‖, o Russinho também desejava viver de


acordo com os ditames morais da ―boa sociedade‖. Portanto, o personagem até podia
violar, na prática, a lei moral, mas seria impossível fazê-lo na esfera da consciência.
Afinal, no melhor estilo jusnaturalista, o autor parece entender a lei moral como um
código de conduta que nos diz o que é bom e o que é mal, o que, obviamente, não é o
suficiente para manter os homens nos ―bons rumos da vida‖, para falar como Locke. É
exatamente nessa limitação do poder coercivo da lei moral que reside a necessidade da
lei civil, pois mesmo sendo dotado da razão natural, os homens nem sempre praticam o
bem, e, por isso, é preciso que uma força externa os obrigue a fazê-lo. No caso do
Russinho, o passaporte para a retidão moral seria o dinheiro ganho com o último, e mais
grandioso de todos, ato imoral: o roubo do guarda chuvas de D. Pedro II.

330
Idem. 11 de abril de 1881.

166
Mais adiante na narrativa, Prado descreve a viagem da comitiva real ao Paraná,
tratando com fina ironia os rituais da corte. Em meio a essa descrição, eu destaco um
parágrafo, outro trecho que penso ser fundamental para a minha argumentação.
O Jornal do Comércio, o Cruzeiro e a Gazeta de Notícias estavam a postos com
os seus repórteres – correspondentes de mala a tiracolo e carnet empalmado.
Todos atentos aos detalhes mais íntimos da comitiva imperial; o trono faz com
331
que os reis não tenham o mesmo conforto íntimo de um cidadão comum .
(Grifos Meus)

Para Prado, o trono trazia ao Imperador a impossibilidade do mais valioso dos


prazeres: o gozo privado da intimidade. Diferente seria, ainda de acordo com o nosso
autor, a situação do cidadão comum, que é definido como um privilegiado por ter uma
vida íntima que não desperta o interesse dos repórteres. Ao menos nesse parágrafo,
Prado estabelecer uma distinção entre o governante e os governados que é desfavorável
ao primeiro, na medida em que é baseada no princípio do conforto da vida privada. O
tema é retomado um pouco mais à frente, quando o nosso autor narra o momento no
qual o Russinho consegue roubar o guarda chuva do Imperador.
O grito de repórter foi motivado por enxergar subitamente no escuro um canto
um guarda-sol. Os nossos leitores já viram que o repórter não é mais que o
célebre moço ruivo que vimos o mr Begget encarregar no Hotel dos Estrangeiros
de furtar o chapéu de sol de Sua Majestade. O disfarce que o astuto rapaz tomou,
devia servi-lo admiravelmente. O repórter, recente criação do jornalismo
moderno, tem todos os direitos e só o dever se saber notícias. Nesta qualidade
não há portas que lhe resistam, nem sacrifícios que o atemorizem. Cabe ao
repórter perscrutar as sombras de intimidade e chegar onde o poder do Estado foi
332
interditado . (Grifos Meus)

Somente com citação direta a referência ao jusnaturalismo seria mais clara. Para
Prado, o objetivo do repórter moderno é penetrar na intimidade e conhecer aquilo que
está fora do alcance poder civil. Ou seja, a esfera privada é pensada como o limite do
poder civil, como a demarcação fundamental que precisa ser respeitada pelo governo
que não deseja incorrer no despotismo. Novamente, o uso do repertório jusnaturalista
me parece ser claramente perceptível. Ao analisar a argumentação desenvolvida por
Locke no “Essay concerning toleration”, Norberto Bobbio assevera que foi na defesa
da tolerância religiosa que o filósofo inglês deu os contornos mais sólidos à sua
definição de esfera privada. As palavras do próprio Locke parecem endossar essa
interpretação.
Sendo o culto religioso aquela homenagem que eu presto àquele Deus que eu
adoro de um modo que eu julgo aceitável a ele, e sendo então uma ação ou um
negócio que se passa entre mim e Deus, não tem sua própria natureza nenhuma

331
Idem. 07 de abril de 1881.
332
Idem. 11 de maio de 1881.

167
referência ao meu governo ou ao meu vizinho e, desse modo, não produz
necessariamente nenhuma ação que perturbe a comunidade, não há sentido no
333
fato da autoridade civil desejar macular a segurança da minha casa . (Grifos
Meus)

Essa seria, ainda nas considerações de Bobbio, a base da argumentação de Locke


em defesa da inviolabilidade do espaço privado, o que eu analisei brevemente no
segundo capítulo desta tese, quando me debrucei sobre a atuação de Eduardo Prado na
polémica do habeas corpus dos Monarquistas. Como vimos, nessa ocasião, o nosso
autor, destoando de seu comportamento típico, citou diretamente o filósofo inglês na
defesa dos monarquistas presos. Ainda que ele não tenha feito o mesmo nos textos que
examino neste capítulo, estou convencido de que os princípios jusnaturalistas foram
largamente mobilizados em outros momentos da sua trajetória.
Para permanecer nos textos publicados no jornal ―A Comédia‖, destaco o artigo
intitulado ―Partido Católico‖, que foi publicado em 19 de abril de 1881. Aqui, Prado
comenta o projeto de criação de um partido político formado exclusivamente por
católicos. Ao criticar essa proposta, Prado, que era católico, utilizou argumentos muito
semelhantes aos de Locke.
Há tempos a esta parte corre por aí a notícia da existência desta entidade: o
Partido Católico. Felizmente não nos preocupa tanto a questão, porque o Partido
Católico tem tanta existência como El-rei D. Sebastião, menos ainda porque se
esse algum dia vivei, tal partido ainda não deu sinal de vida. Prova de sensatez
do povo brasileiro. Ora, católico quer dizer universal e partido implica a ideia de
fracionamento e particularidade. Não sabemos explicar a junção dos dois termos.
O católico é católico especialmente na privacidade do seu juízo, dispensando a
organização partidária para sê-lo de fato. Onde pararíamos se alguém tivesse a
ideia de fundar um partido espírita? Ou um partido budista? Temos aí o tipo de
334
assunto que não é da alçada dos partidos políticos . (Grifos Meus)

Tal como Locke fez no século XVII, ao definir a religião como um assunto de
esfera privada, de foro íntimo, Prado parece estar tentando estabelecer as diferenças
entre a sociedade eclesiástica e a sociedade política. Para Bobbio, toda a reflexão que
Locke desenvolveu sobre o tema da liberdade religiosa tinha o objetivo de mostrar que
os indivíduos são dotados de direitos pré-políticos que têm dimensão exclusivamente
secular, como, por exemplo, o direito de se preservar e garantir a preservação da
humanidade. Nesse sentido, o poder supremo a ser instituído pelos homens já nasce
condicionado, portanto, a respeitar esses direitos. Desse modo, a comunidade civil tem
por fim exclusivo a garantia dos interesses temporais dos indivíduos, como, por

333
LOCKE apud BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Ed UNB, 1997, p. 97.
334
Prado, Eduardo. ―A Comédia‖. 19 de abril de 1881.

168
exemplo, a vida, a liberdade e a propriedade, sendo, então, a matéria religiosa um
assunto que não deve ser abordado pela autoridade política. Como, diferente de Locke,
Eduardo Prado não era um doutrinador, não há sentido em querer encontrar nos seus
textos o mesmo refinamento conceitual, o que não significa que as considerações do
filósofo inglês não tenham, de alguma forma, servido de inspiração para o nosso autor.
Sob aspecto algum essa inspiração ficou restrita aos textos de juventude. Em outubro de
1896, Eduardo Prado publicou no seu jornal ―Comércio de São Paulo‖ o artigo
intitulado ―Odisseia Póstuma‖, onde criticou os rituais fúnebres que o governo
republicano presidido por Prudente de Moraes estava organizando em homenagem ao
músico Carlos Gomes (1836-1896).
Tem dito muitos lados tocantes a manifestação nacional feita ao redor e com o
cadáver de Carlos Gomes. Não há negar, contudo, aos organizadores destas
festas funerárias que, si lhes tem sobrado e patriotismo, tem-lhes faltado um
335
pouco a maior das virtudes, neste caso, que é a da discrição . (Grifos Meus)

Diferente do que costumava fazer nesse período, Eduardo Prado não utilizou o
texto sobre as exéquias de Carlos Gomes para defender a restauração da Monarquia. É
certo que ao longo do texto, o autor faz críticas ao governo republicano, críticas que são
vazadas pela tópica jusnaturalista da intimidade privada. Novamente, a exemplo dos
escritos que foram examinados no capìtulo anterior, Prado usa a noção de ―virtude‖ para
desqualificar o governo republicano. Porém, desta vez, o autor não considerou o
―espìrito público‖ a principal virtude, mas sim a ―discrição‖, que é uma ideia correlata
ao segredo e à intimidade, que, como já demonstrei, são valores fundamentais para o
jusnaturalismo. Não sou em quem estabelece a correlação entre a discrição, o segredo e
a intimidade, mas sim o próprio Eduardo Prado.
A morte, afinal de contas, é uma coisa séria: tanto a morte de um grande homem,
como a de um humilde mortal precisa ser vivida na intimidade do leito, de
preferência do leito da casa; é o leito da casa a morada da intimidade e das
confissões secretas do homem, de todo modo, o lugar ideal para morrer. É
lamentável a República brasileira não ter garantido esse último direito ao grande
336
artista . (Grifos Meus)

Prado, aqui, vai mais longe e define a intimidade como um direito, um direito
que estava sendo violado pela República brasileira. É interessante pensar com mais
cuidado a noção de direito, que é fundamental para o pensamento jusnaturalista. Em um
trabalhado dedicado à obra de Hobbes, Skinner mostra que algumas elementos do

335
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 25 de outubro de 1896.
336
Idem.

169
jusnaturalismo moderno eram compartilhados por pensadores contemporâneos ao autor
do ―Leviatã‖, como, por exemplo, Hugo Grócio (1583-1645), que o historiador inglês
afirma ser uma das principais inspirações de Hobbes.
Entre os filósofos escolásticos e Hobbes, Hugo Grócio é tido como o maior
teórico do direito natural, sendo o seu Direito da Guerra e da Paz considerado o
texto de fundação da escola moderna da lei natural. Crítico do pensamento cético
característico do humanismo, pode ser considerado o percursor direto de
337
Hobbes .

Para Skinner, uma das principais marcas da filosofia política de Grócio no


pensamento de Hobbes é a definição do direito como o pilar da vida social, como a
―codificação das normas mais fundamentais para vida comum‖338. Entre essas normas, o
historiador destaca os limites que o direito precisa colocar à liberdade de ação, de modo
que os homens não invadam o espaço privado do seu semelhante. Nas palavras do
próprio Hugo Grócio:
Este cuidado pela vida social, de que falamos de modo muito superficial, e que é
de todo conforme o entendimento humano, é o fundamento do direito
propriamente dito, ao qual se referem o dever de se abster de outrem, de
obedecer os limites da casa de outrem, de resistir aquilo que, sem ser nosso, está
em nossas mãos ou o lucro que disso tiramos, a obrigação de cumprir as
promessas, a de reparar o dano causado por própria culpa e a aplicação dos
339
castigos merecidos aos homens . (Grifos Meus)

Grócio fala em ―casa‖ ao invés de ―privacidade‖, mas o sentido é o mesmo: a


delimitação de uma esfera da vida na qual os homens estão protegidos tanto das
pretensões dos seus semelhantes como do controle do poder civil. De alguma forma,
Eduardo Prado, em alguns momentos da sua produção letrada, mobilizou essa
argumentação. Voltando ao exame do artigo ―Odisseia Póstuma‖.
O leão e os animais superiores têm o pudor da morte, que é grande humilhação
do vivo. O instinto leva-os a irem morrer na solidão, ocultando-se até da luz do
sol que outrora o viu possantes e terríveis. Os homens modernos, que têm o
privilégio de ter vindo ao mundo após a morte dos despotismos, também
conhecem a paz e a tranquilidade do silêncio doméstico; é do silêncio doméstico
de que se deve cercar o homem no momento da morte. Tudo isso foi negado ao
grandiosìssimo músico, que morreu sob os olhares dos ―repórteres, que ali
estavam atentos ao seu ofício de perscrutar a intimidade, levando a luz onde não
340
chegam sequer os raios da política . (Grifos Meus)

Da mesma forma como havia feito anos antes em alguns de seus textos de
juventude, Eduardo Prado afirma que o conforto da intimidade privada é algo inerente à

337
SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na filosofia de Hobbes. São Paulo: Ed. UNESP, 2007. p. 65.
338
Idem.
339
GRÓCIO, Hugo. (APUD) SKINEER. Idem. p. 78.
340
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 25 de outubro de 1895.

170
modernidade, quando movimentos revolucionários ―mataram os despotismos‖. O autor
não chega a citar os movimentos revolucionários modernos, mas acredito que era a eles
que Prado estava se referindo quando relacionou a modernidade à morte dos
despotismos. Pela segunda vez, Eduardo Prado vinculou o ofício do repórter à
modernidade e à concepção de vida íntima. A primeira referência, que já foi examinada
neste capítulo, havia sido formulada quinze anos antes, no romance ―As façanhas do
Russinho‖. Nessa ocasião, o autor escreveu que o repórter era um profissional moderno
que tinha o objetivo de ―perscrutar as sombras de intimidade e chegar onde o poder do
Estado foi interditado‖. As semelhanças entre as duas citações são óbvias, em ambas
estando presente o princípio jusnaturalista que define o espaço privado como o limite da
autoridade do poder civil.
A análise dos escritos de Eduardo Prado que venho desenvolvendo nesta tese
está condicionada, como não poderia deixar de ser, ao exame das particularidades da
trajetória desse personagem. Em poucos momentos da sua vida, Prado se empenhou em
desenvolver uma discussão conceitual mais aprofundada, destacando-se como um dos
principais polemistas em atuação no cenário político brasileiro nos últimos anos do
século XIX. Contudo, isso não quer dizer que as intervenções do nosso autor não
possam ser lidas na chave dos repertórios filosóficos antigo e moderno disponíveis aos
letrados brasileiros desse período. Eduardo Prado frequentou os mais importantes
espaços de formação intelectual em funcionamento no Brasil no século XIX, tendo
travado contato, portanto, com essas tradições, que eram consideradas fundamentais
para a formação dos membros das elites brasileiras. Por isso, penso que a análise não
precisa ficar restrita, exclusivamente, ao procedimento de identificação dos repertórios,
sendo as incursões biográficas um importante recurso a ser utilizado na interpretação do
pensamento político conservador do mais jovem dos irmãos Prado.

5.2- Eduardo Prado na Faculdade de Direto de São Paulo

Não são homogêneas as relações entre os estudiosos do pensamento político e


filosófico e a abordagem biográfica. Há autores, como, por exemplo, Henri Bérgson,
que negam a utilidade das informações biográficas para a compreensão da obra de
determinado escritor. O filósofo francês chegou a escrever um texto para desqualificar a
leitura biográfica.

171
Será inútil mencionar minha família, pois isso não diz respeito a ninguém.
Informar que nasci em Paris, na lua Lamartine. Exlicar, se for o caso, que não
precisei me naturalizar, conforme se divulgou: nascido em Paris, só precisaria
optar, na maioridade, pela nacionalidade francesa em virtude do artigo 09 do
Código Civil. Insistir no fato de que sempre pedi para não se ocuparem de minha
vida, apenas de meu trabalho. Sustentei, invariavelmente, que a vida de um
341
filósofo não lança luz alguma sobre sua doutrina e não interessa ao público .

Mais recentemente, outro autor francês desenvolveu uma argumentação


completamente diferente. Para François Dosse,
O existir e o pensar devem ser retomados juntos em seus respectivos recortes,
uma abordagem que não dependa nem do internalismo e nem do externalismo,
mas enfatize, a fim de funcionar como ponte entre esses dois polos, aquilo que os
psicanalistas chamam de atenção flutuante ao sujeito biografado. (...) Então, obra
e autor aparecem numa irredutibilidade que é como um domínio próprio no qual
se revele, não uma intenção oculta, mas um já-lá implícito, latente, que mostra ao
biógrafo uma longa melodia ininterrupta que é ao mesmo tempo vida e obra,
342
destino e expressão .

O que está em jogo, tanto para Bérgson como para Dosse, é a relação entre a
vida e a obra de um escritor. Para o primeiro autor, a obra tem completa independência
semântica, sendo o conhecimento da vida algo dispensável no procedimento de
compreensão do texto. Já para o segundo, sequer é possível separar a vida da obra e, por
isso, a abordagem biográfica é inseparável do procedimento hermenêutico. Como nesta
tese a minha perspectiva analítica prioriza a performance discursiva de Eduardo Prado,
me encontro muito mais próximo das sugestões de Dosse do que das de Bérgson. Por
isso, a exemplo do que fiz no capítulo anterior, apresento ao leitor alguns importantes
apontamentos biográficos que, acredito, colaboram para a argumentação que estou
desenvolvendo. Até aqui, eu venho dialogando com as biografias escritas por Cândido
da Mota Filho e Sebastião Pagano. Ambos os trabalhos têm importância fundamental
para a minha pesquisa, principalmente naquilo que se refere ao mapeamento da
documentação. Como Eduardo Prado quase não fez referências aos seus próprios textos,
seria impossível conhecer os escritos de menor repercussão se não fosse o levantamento
feito pelos dois biógrafos. Agora, as citadas biografias ganham uma importância ainda
maior: ambas apontam os vínculos de amizade entre Eduardo Prado e João Teodoro
Xavier, que era professor de Direito Natural da Faculdade de Direito de São Paulo.
Foi, por esse tempo, que Eduardo tomou seus primeiros contatos com a
Academia de Direito. Sua personalidade começava a apurar-se. Fazia planos,
dava opiniões, discutia teses filosóficas, escrevia nos jornais e tomava parte em

341
BERGSON, Henri. Instruções relativas à minha biografia. Rio de Janeiro: Martins Fones, 1998. p.
214.
342
DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Ed. USP, 2009. p. 369.

172
sabatinas, nas aulas do professor João Teodoro Xavier, sobre os temas do Direito
343
Natural .

Também Sebastião Pagano destaca a importância das aulas do professor João


Teodoro Xavier para a formação de Eduardo Prado: ―de todos os professores da
academia paulista foi João Teodoro Xavier, o lente de direito natural, aquele que mais
344
influenciou o jovem Prado‖ . Portanto, a presença dos valores do direito natural no
pensamento político conservador de Eduardo Prado é sugerida não apenas pelo
exercício de identificação dos valores jusnaturalistas nos textos do autor, mas também
por aspectos de sua biografia, principalmente naquilo que se refere aos anos dos estudos
superiores. Acredito que dedicar alguma atenção a esse momento da vida de Eduardo
Prado nos ajuda a esclarecer alguns aspectos da argumentação que venho
desenvolvendo ao longo desta tese.
A São Paulo, indiscutivelmente, lhe cabem os dois títulos no mesmo brasão:
professa a liberdade e ensina a justiça. O estudo aqui nunca foi livresco,
egoístico, indiferente à vida social. Nunca o Direito se regulou em textos estéreis
e mortos. O tirocinio escolar, nesta cidade, sempre se animou ardentemente do
espírito de luta, de civilismo, de reação liberal. Ali aprendíamos a ser homens e a
cumprir com excelência a função para o qual todos estamos vocacionados:
345
promover a prosperidade dessa grande e briosa nação .

Dessa forma, Rui Barbosa se referia, em meados da década de 1880, à Faculdade


de Direito de São Paulo, onde cursou parte de sua formação superior. O político baiano
iniciou seus estudos jurídicos na Faculdade de Direito de Recife, transferindo-se para a
instituição paulista apenas em 1868, quando já estava no terceiro ano do curso. A
despeito do tom laudatório, que é comum à maioria dos homens que passou pelo
estabelecimento ao longo do século XIX346, é possível perceber no depoimento de Rui
Barbosa o objetivo da instrução oferecida nas instituições educacionais em
funcionamento no Brasil durante nos anos da Monarquia: a preocupação com o
treinamento das elites para a administração do Estado347. Outro importante líder político

343
FILHO, Cândido da Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olímpio, 1967. p. 05.
344
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p. 87.
345
BARBOSA, Rui. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 2, pp. 265-266, in: VAMPRÉ,
Spencer. Memórias -para a história da academia de São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1924.
346
Os trabalhos organizados por Almeida Nogueira em 1977 são de consulta obrigatória para qualquer
estudioso interessado na história da Faculdade de Direito de São Paulo. O autor coletou fontes até então
dispersas sobre as memórias dos estudantes que frequentaram essa instituição ao longo do século XIX,
organizando todo esse material em quatro volumes, que nos apresentam as reminiscências dos alunos que
frequentaram a instituição entre as décadas de 1840 e 1890. Ver: NOGUEIRA, Almeida. Tradições e
reminiscências da Academia de São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1977
347
O ―Dicionário do Brasil Imperial‖ organizado por Ronaldo Vainfas (2002) é certamente uma
referência fundamental para todo historiador interessado no século XIX brasileiro. De acordo com o

173
formado nos quadros da faculdade paulista nos apresenta um diagnóstico semelhante.
Joaquim Nabuco costumava definir o referido estabelecimento como a ―antessala da
Câmara‖, como um centro por excelência de formação de lìderes para a administração
imperial348.
Foi na Faculdade de Direito de São Paulo que Eduardo se formou, no curso de
Ciências Jurídicas, em 1881. As já citadas biografias de Sebastião Pagano e Cândido da
Mota Filho afirmam que Prado ingressou no estabelecimento em 1876, quando tinha
dezesseis anos de idade. Temos aqui um pequeno erro de balizamento cronológico. Há
nos arquivos da Faculdade de Direito de São Paulo um documento administrativo, um
dos poucos que não foram danificados pelo incêndio da década de 1970, que comprova
a matrícula de Prado no referido estabelecimento em fevereiro de 1877, ou seja, quando
o filho mais moço de Dona Veridiana estava prestes a completar dezessete anos. A
análise da trajetória de Eduardo Prado nos exames admissionais da faculdade, cujas
informações podem ser encontradas com certa facilidade nas páginas do jornal ―Correio
Paulistano‖, mostram que nem só de êxitos se constituiu a vida acadêmica desse
personagem. Encontrei pela primeira vez o jovem Prado tentando fazer parte do corpo
discente da referida instituição em 1876, quando era recém-egresso da Escola Regular
do Seminário Diocesano de São Paulo, onde, como vimos no capítulo anterior, foi
preparado para os exames de admissão nas faculdades imperiais. Porém, o moço não
teve sucesso na primeira investida.
Em janeiro de 1876, Eduardo Prado foi aprovado nos ―Exames Linguìsticos‖,
que envolviam provas escritas e orais de francês, português e latim. Em fevereiro, ele
realizou, também com sucesso, os exames de retórica e poética. Porém, os números
parecem ter sido o calcanhar de Aquiles do jovem, que foi reprovado nos exames de
álgebra e aritmética. Certamente, o insucesso deve ter provocado alguma frustração em
Eduardo e em sua família. Os Prado, assim como outras importantes famílias das elites

autor, a finalidade dos cursos jurídicos não era apenas a formação de juristas, mas de advogados,
deputados, senadores, diplomatas e quadros para a burocracia estatal, condição essencial para a
constituição de um Estado de fato independente. Vainfas afirma que ―A Faculdade de Direito de São
Paulo (...) continuou marcada pela militância política stricto sensu e pelo exercício do jornalismo. Foi dos
bancos escolares paulistas da década de 1870 que saíram os bacharéis que doravante se destacariam pela
militância política, como Rui Barbosa, que mais tarde diria: 'No estudo do Direito, o mundo acadêmico e
o mundo político se penetram mutuamente‖ p. 106. As estreitas relações entre a faculdade paulista e as
altas esferas do poder legislativo monárquico também foram apontadas por outros importantes trabalhos,
alguns mesmos chegando a apresentar dados estatísticos a respeito da formação universitária dos líderes
políticos oitocentistas. Entre esses estudos, destaco os de José Murilo de Carvalho, o de Gilberto Freyre,
Ilmar Mattos, Lillia Schwarcz, André Peixoto de Souza e Vitor André de Souza, todos devidamente
referenciados na bibliografia.
348
NOGUEIRA (op cit). p. 79.

174
brasileiras oitocentistas, investiam pesado na formação acadêmica dos seus filhos. Eles
sabiam muito bem o que era esperado dos herdeiros das grandes famílias. Ignoro o que
Eduardo Prado fez no restante do ano de 1876, talvez tenha tido aulas de reforço com
algum professor particular de matemática. O fato é que o encontramos tentando outra
vez a seleção em janeiro de 1877, agora com sucesso. Ele foi plenamente aprovado em
todas as partes do processo: os estudos linguísticos, matemáticos, retóricos, poéticos e
filosóficos. Em março desse ano, o jovem Prado já era aluno do primeiro ano do curso
de ciências jurídicas da instituição que na época gozava do prestígio de ser considerada
o principal centro de formação jurídica em funcionamento no Brasil.
Em um curto depoimento, o próprio Eduardo Prado comentou os tempos em que
frequentou o curso jurìdico paulista: ―(...) Um momento para se encontrar grandes
349
amizades e estudar as ideias liberais que transformaram a civilização moderna‖ .
Essas palavras podem ser encontradas no livro de memórias organizado por Almeida
Nogueira, que não apresenta a fonte da citação e nem informa se o testemunho foi
colhido ao longo dos anos em que o nosso autor estudou na Faculdade de Direito de São
Paulo ou posteriormente, quando ele já era um dos principais opositores dos governos
republicanos. No trecho, Eduardo Prado estaria elogiando a inspiração liberal do curso
jurídico ministrado em São Paulo, interpretação que é corroborada pela crítica
especializada. Para Lilia Schwarcz, as duas faculdades de direito brasileiras
oitocentistas tinham perfis filosóficos bastante nítidos, e distintos.
São Paulo foi mais influenciada pelo modelo político liberal, enquanto a
faculdade de Recife, mais atenta ao problema racial, teve nas escolas darwinista
social e evolucionista seus grandes modelos de análise. Tudo isso sem falar do
caráter doutrinador dos intelectuais da faculdade de Pernambuco, perfil que se
destaca principalmente quando contrastado com o grande número de políticos
350
que partiam majoritariamente de São Paulo .

Certamente, a inspiração liberal do ensino jurídico ministrado na Faculdade de


Direito de São Paulo foi importante para que Eduardo Prado tivesse contato com os
textos de autores vinculados a essa importante tradição do pensamento político
ocidental, o que nos ajuda a entender o uso que o ele fez de alguns valores liberais,
como, por exemplo, a concepção negativa de liberdade, assunto que foi discutido na
primeira unidade desta tese.

349
Idem. p. 159.
350
SCHWARZ, Lilia Moritz. SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Espetáculo das raças. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003. p. 143.

175
A teoria do direito natural também foi muito importante para o curso jurídico
paulista, o que podemos perceber já no preâmbulo do decreto de 09 de janeiro de 1825,
que instituiu formalmente uma faculdade de direito no Brasil, que foi provisoriamente
instalada no Rio de Janeiro. O texto diz que o objetivo da nova instituição seria ―formar
cidadãos com conhecimento no direito natural, público, das gentes e das leis do Império
351
para trabalhar como magistrados‖ . A definição do jusnaturalismo como um
conhecimento fundamental para o bacharel brasileiro foi mantida pela lei de 11 de
agosto de 1827, que estabeleceu a grade curricular que, a despeito de algumas
reformulações pontuais, se manteria praticamente a mesma até o final do século XIX352.

Etapa do curso Disciplinas

1° Ano Direito Natural, Direito Público, Análise


da Constituição do Império, Direito das
Gentes e Diplomacia
Continuação das matérias do ano
2° Ano antecedente e Direito Público Eclesiástico
Direito Pátrio Civil, Direito Pátrio
3° Ano Familiar, Teoria do Processo e Direito
Romano (inserido após 1854)
Continuação do Direito Pátrio Civil,
4° Ano Direito Mercantil e Marítimo e Direito
Administrativo (inserido após 1854)

5° Ano Economia Política

351
Citado em NAVARRO, Ana Paula. A faculdade de direito de São Paulo e as interferências
imperiais no ensino jurídico: uma edição de legislações de 1827 a 1879. Dissertação de
Mestrado: São Paulo, USP, 2010. p. 41.
352
De acordo com o estudo de Ana Paula Navarro (op cit), a estrutura curricular da Faculdade de Direito
de São Paulo sofreu apenas uma grande transformação, em 1854, quando decreto 1386 inseriu a cadeira
de direito romano e direito administrativo como permanentes.

176
Seria fundamental saber os autores que eram estudados em cada uma dessas
disciplinas, mas eu não encontrei os programas de estudos recomendados aos
estudantes. Porém, por si só, a grade curricular me permite avançar na argumentação
que venho desenvolvendo neste capítulo. Eduardo Prado estudou a tradição jurídica do
direito natural durante os dois primeiros anos do seu curso de Ciências Jurídicas, tendo
certamente, entrado em contato com os textos de autores como Hugo Grócio, Thomas
Hobbes e John Locke. O professor João Teodoro Xavier, que era o responsável por essa
cadeira, faleceu em outubro de 1878, tendo ministrado aulas para Eduardo Prado desde
fevereiro de 1877. Como já comentei, os dois biógrafos afirmam que o nosso autor era
frequentador assíduo das aulas de direito natural do professor Teodoro Xavier. Eu não
encontrei nenhuma evidência capaz de sustentar essa afirmação. Porém, levando em
consideração a forte presença das tópicas jusnaturalistas nos escritos de Eduardo Prado,
fico bastante inclinado a sugerir que, de fato, o nosso autor tinha especial interesse nos
escritos de autores vinculados à tradição do direito natural inglês.
Até aqui, eu examinei o uso que Eduardo Prado fez de três princípios
pertencentes ao repertório jusnaturalista: a definição da razão como o fundamento da lei
natural, a delimitação da intimidade privada como o refúgio do homem moderno do
controle da autoridade civil e a positivação político/jurídica da consciência moral. Há
ainda outro valor que não foi examinado, justamente aquele que conceitua a propriedade
como um direito natural. O estudo do uso que Eduardo Prado fez desse princípio nos
convida a examinar um dos aspectos mais importantes da sua trajetória: os seus vínculos
com os interesses da cafeicultura paulista.
Em primeiro lugar, não é possível compreender esse aspecto da vida do nosso
personagem sem levarmos em conta a sua família. Os Prado foram uma das mais ricas e
importantes famílias da elite paulista oitocentista, destacando-se, sobretudo, na política
e na agroexportação de café. De acordo com os estudos de Darrel Levi 353, Eduardo
Prado começou a se envolver de forma direta com os negócios da família em 1887,
quando participou da fundação da Casa Prado & Chaves, que em pouco tempo de
tornou a mais importante empresa brasileira de exportação do café. A Casa Prado &
Chaves foi uma aliança entre as famílias Prado e Chaves, que se uniram em 1867,
quando aconteceu o casamento entre Anésia, irmã de Eduardo, e Elias Pacheco, filho de
Miguel Chaves, um dos homens mais ricos de São Paulo na época.

353
LEVI, Darrel E. A Família Prado. São Paulo: Cultura 70, 1977.

177
A atuação de Eduardo Prado junto aos cafeicultores paulistas se manifestou,
também, nos seus esforços em defesa da imigração de trabalhadores europeus para o
Brasil. Foi com esse objetivo que ele participou da comitiva liderada pelo Barão de
Santa Ana Nery e composta, também, pelo Visconde de Cavalcanti que organizou a
apresentação brasileira na exposição universal de Paris de 1889. Segundo Lilia
Schwarcz,
Prevista como um grande evento, a exibição foi logo entendida como uma
exaltação da República e prontamente boicotada pelas Monarquias, sobretudo
europeias. D. Pedro, no entanto, depois de se aconselhar com Cavalcanti e
Eduardo da Silva Prado, resolve aderir a exposição e dar, dessa maneira, mostra
354
de sua ―posição progressista‖ .

Segundo Cândido da Mota Filho, a essa altura, Eduardo Prado e o Imperador D.


Pedro II já eram grandes amigos, vínculo que segundo o biógrafo começou a nascer em
1887. ―Até então, Eduardo Prado tinha em mente as crìticas que se faziam a Pedro II.
Ouvia falar na sua santa simplicidade, até em sua debilidade mental! Mas chegou afinal
355
a ocasião de verificar que esses juìzos eram, além de falsos, maldosos‖ . O próprio
Eduardo Prado deixou registrado o início de sua amizade com o Monarca em uma carta
enviada a Joaquim Nabuco: ―O Imperador não é nada disso que dizem. Ao contrário, é
um homem que sabe ser rei. Chego a me envergonhar das bravas de minha primeira
mocidade‖ 356. Provavelmente, o nosso autor estava se referindo aos textos escritos para
o jornal ―A Comédia‖, onde, como já demonstrei anteriormente, ele criticou o
Imperador e os membros da família real. O mais importante é que, no início de 1889, o
Imperador e o nosso autor já eram próximos o bastante para que Prado fosse enviado em
missão oficial à exposição universal de Paris como um dos responsáveis pelo salão
brasileiro.
Em um estudo específico sobre a exposição universal de 1889, a historiadora
Heloísa Barbuy afirma que essa edição foi a que teve maior repercussão no Brasil,
principalmente pela simbologia política envolvida no evento. Tal como Lilia Schwarcz,
a autora destaca a participação do Brasil, ― única Monarquia das Américas naquela que
foi planejada para ser a grande homenagem à República‖357. Para Barbuy, a comitiva

354
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 403.
355
FILHO, Cândido da Mota. A vida de Eduardo Prado. A Vida de Eduardo Prado. Rio de
Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 173.
356
PRADO, Eduardo (apud) FILHO, Candido da Mota. Idem. p. 173.
357
BARBUY, Heloísa. O Brasil vai a Parias em 1889: um lugar na exposição universal. Anais do Museu
Paulista. São Paulo. N. Sér. v.4 p.211-61 jan./dez. 1996. p. 213.

178
brasileira planejava utilizar a exposição para reforçar a imagem do Brasil como o reduto
da civilização nos trópicos, o que era fundamental para atrair os trabalhadores europeus.
Afinal, o trabalho escravo tinha sido abolido poucos meses antes e o problema da mão
de obra preocupava muito os fazendeiros, especialmente os cafeicultores paulistas. ―Em
plena vigência da política imigrantista, procurava-se mostrar o Brasil como país aberto
358
aos imigrantes europeus e também ao capital estrangeiro‖ . A autora destaca a
atuação de Santa-Ana Nery, que é definido como o principal propagandista brasileiro,
tendo dirigido pessoalmente o livro ―Lé Brésil‖, que foi distribuìdo entre os
participantes do evento.
O livro era uma obra coletiva com a qual colaboraram vários autores. Eduardo
Prado estava entre eles. O nosso autor escreveu dois artigos, em língua francesa, para
essa coletânea: ―L’Art” e ―Immigration”. No primeiro, ele analisa a história da arte no
Brasil, sendo esse o seu primeiro texto que pode ser caracterizado como pertencente ao
gênero historiográfico, sendo, portanto, analisado no último capítulo desta tese. Já no
segundo texto, Eduardo Prado se empenhou em falar diretamente aos governantes
europeus, desejando convencê-los de que o Brasil era um bom destino para os seus
compatriotas. Por isso, ele se concentrou em elogiar o Brasil, principalmente então
Província de São Paulo.

Todo o Brasil foi formado a partir da imigração, não representando a figura do


imigrante nenhum tipo de incômodo para os Brasileiros, que recebem com muita
hospitalidade todos aqueles que chegam as nossas terras para produzir riquezas.
A Província de São Paulo é a parte mais pujante do território brasileiro, sendo
também aquela que mais necessita do trabalhador estrangeiro. As instalações nas
fazendas são bastante confortáveis e a vida saudável, o que permite ao imigrante
359
prosperar junto a jovem nação brasileira . (Grifos Meus)

O teor propagandístico da citação é claro e perpassa todo o texto. Nessa altura,


Eduardo Prado já era um dos principais sócios da Casa Prado & Chaves e não é
impossível que ele tenha aproveitado a sua proximidade com o Imperador e a sua
participação na exposição para negociar contratos de exportação de café e de
importação de mão de obra europeia. Recentemente, os vínculos de Eduardo Prado com
a cafeicultura paulista foram tratados por dois autores, que examinaram os seus escritos
a partir da sua atuação como representante dos interesses do negócio do café. Trata-se

358
Idem. p.215.
359
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol. 1). São Paulo: Tipografia Salesiana, 1904. p. 74.

179
dos estudos de Nancy Leonzo360 e Carlos Eduardo Ornelas Berriel361. Ainda que eu
discorde de algumas das proposições apresentadas por esses autores, principalmente
naquilo que se refere a certo exagero, na minha avaliação, da importância que eles
atribuíram aos interesses de classe para o pensamento político de Eduardo Prado, os
referidos trabalhos contribuíram bastante para a reflexão que estou desenvolvendo neste
capítulo.
Ao examinar os escritos antirrepublicanos de Eduardo Prado, especialmente os
artigos reunidos nos ―Fastos da Ditadura Militar Brasileira‖, a historiadora Nancy
Leonzo afirma que o antirrepublicanismo do nosso autor deve ser interpretado na
perspectiva dos seus interesses de classe como cafeicultor.
Nesta fase, Eduardo Prado não é apenas um publicista revoltado contra o
militarismo. É, também, um político militante. Integra o Diretório Central do
Partido Monarquista, que foi fundado em São Paulo em 1895. Essa é a fase em
que ele se dedica, abertamente, à defesa dos seus interesses pessoais, como
demonstra suas abordagens sobre o café a liberdade de imprensa (...) Suas
críticas à política do governo republicano em relação ao café devem ser vistas à
luz dos seus interesses de classe. No ano de 1896 a baixa dos preços do café na
Europa coincidiu com a baixa do câmbio no Brasil. Os produtores brasileiros
protestaram contra este estado de coisas. Eduardo Prado, como um deles, buscou
362
e denunciou os culpados dessa situação .

A argumentação de Carlos Henrique Berriel é semelhante, ainda que o autor


tenha avançado por outros assuntos, como as relações entre os textos escritos por outros
membros da família Prado, como, por exemplo, Paulo, sobrinho de Eduardo. Valendo-
se de um arsenal teórico marxista, o autor afirma que ―(...) As artes, entre outras coisas
mais permanentes, são momentos de afirmação e emancipação de uma classe que, ao se
reconhecer como tal, expressa algo assim como uma visão de mundo‖363. É a partir
dessa perspectiva, que prioriza a noção de ―ideologia de classe‖, que o autor examina os
textos escritos por Eduardo Prado ao longo da década de 1890.
Há na obra de Eduardo Prado um elemento raro no Brasil: a presença de um
corpo de ideias geradas no interior de uma família, que têm continuidade e são

360
LEONZO, Nancy. A historiografia antirrepublicana: a obra de Eduardo Prado. São Paulo: Ed USP,
1993.
361
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Vida literária no período de Prudente de Moraes (1894-1898):
Eduardo Prado, pensamento oligárquico e restauração monárquica. In: SILVA, Fernando Teixeira;
NAXARA, Márcia R. Capelari; CAMILOTTI, Virgínia C. República, liberalismo, cidadania. Piracicaba:
Ed. UNESP, 2003. pp 83-105.
362
LEONZO, Nancy. A historiografia antirrepublicana: a obra de Eduardo Prado. São Paulo: Ed USP,
1993. pp. 107-108.
363
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Vida literária no período de Prudente de Moraes (1894-1898):
Eduardo Prado, pensamento oligárquico e restauração monárquica. In: SILVA, Fernando Teixeira;
NAXARA, Márcia R. Capelari; CAMILOTTI, Virgínia C. República, liberalismo, cidadania. Piracicaba:
Ed. UNESP, 2003. pp 83-105. p. 85.

180
desdobradas com base em um núcleo temático – o que ajuda, nesse caso, a
364
configurar a sua dimensão oligárquica e aristocratizante .

Tanto Nancy Leonzo como Carlos Henrique Berriel colaboram para a discussão
a respeito da trajetória de Eduardo Prado na medida em que apresentam informações
bastante relevantes a respeito do envolvimento desse personagem com os interesses da
cafeicultura paulista. Porém, acredito que ao priorizar os tais ―interesses de classe‖,
ambos os autores deixaram de perceber aquilo que penso ser o elemento mais
importante da performance discursiva de Eduardo Prado: a mobilização dos valores
pertencentes ao vocabulário político ocidental antigo e moderno, o que nos permite
compreender como o autor dialogou com as tradições filosóficas disponíveis no seu
tempo, usando-as para intervir diretamente no debate público. É por isso que a partir de
agora, eu examino parte dos escritos que já foram visitados por Nancy Leonzo e Carlos
Henrique Berriel, tendo, contudo, o interesse específico de compreender o uso que
Eduardo fez do jusnaturalismo nas críticas ao tratamento que os governos republicanos
estavam dando à produção e à comercialização do café.

5.3- As críticas à política macroeconômica desenvolvida pelos governos republicanos

Foi no artigo ―A Ruìna Financeira da República‖, publicado no jornal


―Comércio de São Paulo‖ em 14 de novembro de 1895, que Eduardo Prado abordou,
pela primeira vez, a política econômica desenvolvida pela República, na época
governada por Prudente de Moraes. O momento era de grave crise econômica, o que
envolvia, entre outras coisas, a baixa no câmbio, que é o tema específico do texto.
Não temos outro remédio senão conformar-nos com a triste realidade: o câmbio
desgraçado que a República nos trouxe é a resultante das péssimas condições
financeiras que a mesma República tem reduzido o país. Com isso, sofre o
Brasil, sofre o povo brasileiro, sofre a classe dos agricultores, que são os
365
responsáveis diretos pela prosperidade da nação .

É certo que a crítica elaborada por Eduardo Prado precisa ser pensada à luz de
sua posição de grande empresário do ramo do café, como bem fizeram Nancy Leonzo e
Carlos Eduardo Berriel. De fato, Eduardo Prado atuou como uma espécie de porta voz
dos interesses dos cafeicultores paulistas. Entretanto, ele fez algo a mais que isso,
mostrando-se um intelectual com acurado senso de circunstância e disposto a mobilizar
na sua argumentação a tradição filosófica que melhor serviria aos seus propósitos.

364
Idem. p. 83.
365
PRADO, Eduardo. “Comércio de São Paulo”. 15 de novembro de 1895.

181
O governo acredita ter diante se si diversos alvitres que podem melhorar a
calamitosa situação das contas públicas, sendo o aumento dos impostos um
deles. Aumentar os impostos é impossível. A matéria tributável está esgotada. A
exageração dos direitos de importação tocou ao seu máximo limite. Se avança
mais, a classe produtiva terá violado o seu direito mais fundamental, dado pelo
maior legislador de todos: o Direito de tirar a sua propriedade da terra, cultivada
366
com trabalho . (Grifos Meus)

Apesar de não ter sido explícito, estou seguro de que Prado estava querendo
falar de Deus ao usar os termos ―maior legislador de todos‖. Como um legislador, Deus
criou as formulações do direito, as leis e, no caso específico da citação, a lei da
propriedade. Na medida em que foi formulada por Deus, a propriedade seria um direito
natural e inviolável pela autoridade humana. É exatamente, aqui, que reside o núcleo
central da argumentação desenvolvida pelo nosso autor: o governo da República não é
legítimo para violar a propriedade da ―classe produtiva‖, já que se trata de um direito
estabelecido por Deus. O autor retoma o argumento algumas linhas à frente.
O governo terá forçosamente de ir procurar dinheiro onde há dinheiro, isto é, no
café, na maior riqueza nacional; na riqueza que a classe dos agricultores retira do
solo sagrado e que com ele alimentar a população brasileira. Tudo isso porque a
administração republicana gasta mais do que pode para manter o seu aparato
militar (...) Os negociantes estrangeiros de tão acostumados com a probidade
sempre defendida pelo Império quase não acreditam a ameaça que a República
367
representa ao sagrado direito de propriedade . (Grifos Meus)

Se Eduardo Prado se empenhou em defender os interesses dos seus pares, o fez


através do repertório conceitual da tradição do Direito Natural, colocando em prática as
leituras feitas nos tempos da academia. É o teor da argumentação, a performance, que o
torna algo mais do que um simples publicista motivado pelo corporativismo de classe.
Como já era de costume, o autor compara a República com a Monarquia, sendo que
agora o critério da comparação é o respeito à propriedade, que é duplamente definida
como um direito sagrado: primeiro, como vimos na citação anterior, porque foi
outorgado aos homens por Deus, segundo porque a sua origem é o solo, a natureza, que
é definido como a morada da sacralidade. Portanto, ao desenvolver uma política
econômica contrária aos interesses dos cafeicultores, o governo da República não estaria
apenas prejudicando aqueles que são representados como os grandes responsáveis pela
prosperidade nacional, mas também, e fundamentalmente, contrariando um direito
natural, um princípio de origem divina.

366
Idem.
367
Idem.

182
Identifico nas duas citações extraìdas do artigo ―A Ruìna Financeira da
República‖ a presença de dois valores pertencentes ao repertório do jusnaturalismo: a
definição da vontade divina como a origem do direito natural e a caracterização da
propriedade como um direito natural. Entre todos os escritos pertencentes à bibliografia
jusnaturalista, o texto ―O Segundo Tratado do Governo Civil‖, de John Locke, é o que
mobiliza com mais clareza esses valores.
Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, para
que se servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas
conveniências. A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens para o
sustento e o conforto de sua existência. Todas as frutas que ela naturalmente
produz, assim como os animais selvagens que alimenta, pertencem à humanidade
em comum, pois são produção espontânea da natureza; e ninguém possui
originalmente o domínio privado de uma parte qualquer, excluindo o resto da
humanidade quando estes bens se apresentam em seu estado natural; entretanto,
como foram dispostos para a utilização dos homens, é preciso necessariamente
que haja um meio qualquer de se apropriar deles, antes que se tornem úteis ou de
368
alguma forma proveitosos para algum homem em particular . (Grifos Meus)

Levando em consideração a importância da teoria do direito natural no currículo


ministrado no curso paulista de ciências jurídicas e o catálogo da biblioteca de Eduardo
Prado, penso ser bem verossímil a sugestão de que o nosso autor tenha tido algum tipo
de contato com o ―O Segundo Tratado do Governo Civil‖, que, segundo Bobbio, é um
dos escritos mais importantes da tradição do jusnaturalismo inglês369. A presença da
argumentação desenvolvida por Locke nos textos de Eduardo Prado parece sustentar
essa proposição. Por exemplo, o filósofo inglês afirma que Deus deu aos homens as
condições necessárias para uma vida confortável, condições que se encontram, em
última instância, na terra, que é definida como a mais sagrada de todas as heranças
divinas. Eduardo Prado formulou algo bastante parecido com isso no texto ―A Ruìna
Financeira da República‖, quando disse que o ―solo sagrado‖ era a origem da riqueza
produzida pelos proprietários paulistas.
Como já vimos neste capítulo, a concepção de direito natural é uma das mais
importantes na filosofia política de Locke. O pensador inglês afirma que os direitos
naturais são derivados da lei da natureza, sendo esta a expressão direta da vontade Deus.
Os direitos naturais são, portanto, universais na medida em que extensivos a todos os
indivíduos, independentemente de posição social ou talentos. Sendo os seres humanos
iguais, é ilegítimo que qualquer autoridade cause danos à vida, à propriedade, à saúde e
à liberdade de cada indivíduo. Sua concepção de direitos naturais abarca, portanto, o

368
LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004. p. 182.
369
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Ed UNB, 1999.

183
direito à vida, proibindo agressões à vida humana, visto ser esta parte da obra de Deus,
o direito à liberdade que garante, em princípio, que os indivíduos pautem suas ações
sem restrições ou coações e, por último, o direito de propriedade, decorrência do
trabalho de cada indivíduo.
Entre esses três direitos que Locke define como naturais, a propriedade é o que
mais me interessa. Para o autor, na medida em que deposita suas raízes na vontade de
Deus, a propriedade não poderia ser violada por quem quer que seja, nem mesmo pelo
governo civil.
Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os
homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta
ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu
corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira
um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu
trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua
propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o
colocou, através do seu trabalho adiciona—lhe algo que lhe pertence, por isso o
tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a
natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o
direito comum dos outros homens. Sento estre trabalho uma propriedade
inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao
370
que o trabalho lhe acrescentou . (Grifos Meus)

Neste trecho, Locke formula o princípio que seria fundamental para a


argumentação que Eduardo Prado desenvolveria duzentos anos mais tarde: a
inviolabilidade da propriedade individual. O tema da propriedade não é uma
exclusividade da filosofia política de Locke, podendo ser encontrado também nos textos
de outros autores ingleses seiscentistas. Para John Pocock, o assunto foi fundamental
nas discussões políticas que foram travadas na Inglaterra no calor da crise do século
XVII, sendo uma das matrizes para o pensamento liberal que viria a se consolidar no
século XVIII.
O pensamento político do século XVII era consideravelmente afetado pelo
crescimento de uma percepção da propriedade como algo negociável no
mercado, concepção que se tornou fundamental para o liberalismo, que define o
indivíduo como um ser privado, perseguindo metas e salvaguardando liberdades
que são só suas e vendo no governo, acima de tudo, um meio de preservar e
371
proteger sua atividade individual .

Nesse sentido, o historiador inglês afirma que outros autores abordaram o


assunto, ainda que não o tenham feito da mesma forma que Locke. Entre esses autores,
Pocock destaca Harrington, Hobbes e Matthew Wren. Não acho necessário especificar o
conceito de propriedade que foi desenvolvido por cada um deles, sendo o suficiente para

370
LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004. p. 185.
371
POCOCK, J. G. A. Linguagem do Ideário Político. São Paulo: 2003. p. 112.

184
a minha argumentação a sugestão apresentada por Pocock de que existe uma relação de
continuidade entre as discussões que no século XVII deram outro sentido ao conceito de
propriedade e o liberalismo, ambos estando fundados no princìpio que define ―o
indivíduo como um ser absorto na atividade aquisitiva, distanciando-se assim de uma
372
política que ele paga para que reprima os excluìdos pela atividade aquisitiva‖ . Essa
sugestão é fundamental para a reflexão que venho desenvolvendo desde o primeiro
capítulo desta tese, já que toda a minha argumentação se baseia na possibilidade de
diálogo e combinação entre as tradições filosóficas. Sendo assim, já que o
jusnaturalismo inglês do século XVII pode ser visto como uma das matrizes do
liberalismo dos séculos XVIII e XIX, ao mobilizar os valores jusnaturalistas e liberais,
Eduardo Prado, na verdade, estava se movendo dentro de uma mesma grande tradição
filosófica. Por isso, o autor tinha no seu repertório os valores liberais, como a liberdade
liberal, e jusnaturalistas, como caracterização da propriedade como um direito natural.
Essa combinação fica bastante clara em outro texto no qual Prado voltou a abordar as
questões relativas à comercialização do café.
No artigo ―A Questão do Café‖, de 08 de abril de 1896, Eduardo Prado comenta
a tentativa do governo brasileiro de exportar café para a Rússia, solicitando, para isso, a
redução nas barreiras alfandegárias levantadas por esse país. Porém, segundo o nosso
autor,
Um país que, como o Brasil, tem um pesadíssimo imposto de exportação, não
tem o direito de pedir a nenhum país a diminuição de direitos de entrada sobre
seus produtos. Se o Brasil quer que o café seja aliviado de impostos, dê ele o
exemplo. O café paga 11 por cento de direito de exportação, imposto anti
373
científico e condenado pelos economistas .

Para Eduardo Prado, nenhum esforço de expansão do café brasileiro no mercado


internacional seria válido entre de uma revisão no valor dos impostos que o governo
impunha ao produto. Novamente, podemos dizer que Prado fala como um empresário
do ramo, como alguém que estava vendo seus negócios serem prejudicados pelo
governo da República. O mais fundamental, contudo, é o argumento utilizado pelo
nosso autor, um argumento vazado pela combinação entre princípios jusnaturalistas e
liberais.
Pretende-se desenvolver o consumo do café com o fim de favorecer a nossa
agricultura. Ora, não se alarga o consumo de um gênero, senão tornando-o mais
barato, e, para torná-lo mais barato, é preciso diminuir seus cursos de produção e
transporte, dando total liberdade aos produtores, livrando-os de todo tipo de

372
Idem. p. 113.
373
PRADO, Eduardo. ―O Comércio de São Paulo‖. 08 de abril de 1896.

185
restrição. É essa a forma mais prudente de nos tirar da atual crise de consumo,
crise que não se explica pelo excesso de produção, mas sim pela falta de
374
liberdade que impede o fazendeiro de administrar aquilo que é seu por direito .
(Grifos Meus)

Há, aqui, a mesma concepção liberal de liberdade, que é definida a partir da


ausência de restrição ao livre movimento dos corpos, que vimos ser usada por Eduardo
Prado nos textos examinados na primeira unidade desta tese. Para Prado, a solução para
a crise do café passava obrigatoriamente pela libertação dos cafeicultores das restrições
impostas pelo governo, o que significaria a diminuição da carga tributária a qual os
produtores estavam submetidos. Os impostos seriam, então, na argumentação de
Eduardo Prado, um obstáculo que a República estava colocando no caminho dos
fazendeiros, limitando o livre trânsito desses homens, o que, de acordo com o repertório
liberal, comprometia a sua liberdade. Porém, parece que no caso específico dessa
citação, a liberdade da qual Prado fala não parece estar relacionada exatamente ao livre
movimento do corpo físico, mas sim ao exercício de um direito, do direito natural ao
usufruto da propriedade, o que, para Locke, foi delegado por Deus aos homens.
Acredito residir aqui o ponto da articulação através do qual Prado combinou
jusnaturalismo e o liberalismo.
Eduardo Prado foi um intelectual formado nos quadros do liberalismo
estamental brasileiro oiotencista, tendo frequentado os espaços escolares destinados a
preparar os filhos das famílias das elites para o exercício do poder. Ao longo dos dois
capítulos desta unidade, eu examinei como Prado usou os conhecimentos adquiridos no
Seminário Diocesano de São Paulo e na Faculdade de Direito de São Paulo com o
interesse específico de compreender a mobilização dos princípios do republicanismo
cívico e do direito natural nos seus textos. Entretanto, seria um equívoco limitar a
formação de Eduardo Prado apenas à sua passagem pelos bancos escolares e
universitários. O nosso autor viajou bastante, morou na Europa, sendo um sujeito
bastante conhecido no cenário intelectual finissecular, tendo frequentado rodas de
letrados com grande prestígio nas duas margens do Oceano Atlântico, o que também é
fundamental para compreensão do seu pensamento conservador. É exatamente esse
aspecto da vida de Eduardo Prado o tema do próximo capítulo.

374
Idem.

186
Capítulo 6

Eduardo Prado na República das Letras: um estudo sobre a sociabilização letrada luso-
brasileira nos últimos anos do século XIX

Muito me entristece as minhas ausências nas nossas reuniãozinhas cariocas. Mande


minhas saudações para todos da Revista; como me faz falta visitar a nossa
375
República .

Este capítulo tem importância estratégica na arquitetura desta tese. Diferente do


que fiz até aqui, agora eu analiso, também, alguns textos de foro íntimo, como, por
exemplo, a correspondência que Eduardo Prado trocou com outros importantes
representantes da inteligência luso-brasileira finissecular. Acredito que analisar com
cuidado essa interlocução seja importante para a compreensão de outros aspectos do
conservadorismo do autor, como, por exemplo, a sua participação nas discussões a
respeito da delimitação do campo intelectual no Brasil, da função social das letras e da
376
atuação política do ―intelectual‖ , assim como a sua defesa da tradição, o que se
desdobrou na crítica, obrigatoriamente moderna, à temporalidade moderna. Alguns
desses temas, eu enfrento ainda neste capítulo, outros são tratados na próxima unidade.
Como o leitor já sabe, o principal objetivo desta tese é examinar o
conservadorismo de Eduardo Prado à luz da sua performance discursiva, especialmente
o uso que o autor fez das tradições antiga e moderna do pensamento político ocidental.
Sendo assim, ainda que tenha sido um crítico da modernidade, o que lhe valeu a pecha
de conservador e até mesmo de reacionário377, Prado travou intenso contato com o

375
NABUCO, Carolina (org). Obras Completas. Instituto Progresso Editorial: São Paulo: 1935. p. 193.
376
O termo ―intelectual‖ precisa ser usado com muito cuidado, tratando-se, segundo os estudos de
Cristophe Charle, de um neologismo criado nos últimos anos do século XIX. Para o autor, o termo nasceu
por ocasião do ―Caso Dreyfus‖, quando, em 1898, um grupo de cientistas e escritores lançou o
―Manifesto dos Intelectuais‖, que questionou o julgamento feito pelo Exército francês. Esses intelectuais
inauguraram, segundo Charle, uma nova forma de intervenção no sspaço público, pois coletiva e baseada
numa posição profissional, rompendo com as práticas e a figura dos homens das letras ou do cientista
solitário. Ver CHARLE, Cristophe. Naissance des “Intelectuélles”: 1800-1900, Paris, Minuit, 1900.
377
Para José Veríssimo, que foi contemporâneo de Eduardo Prado e um dos letrados mais atuantes na
fundação da Academia Brasileira de Letras, o nosso autor foi ―o mais acabado tipo de diletante
intelectual, do amador das coisas do espírito, sendo para ele a política apenas um tema literário que tratou
com desenvoltura de um espìrito no fundo cético, paradoxal e de um reacionarismo quixotesco‖.
Veríssimo está se referindo a um especo específico da trajetória de Eduardo Prado, exatamente aquele
que, como eu já disse, é o mais comentado, ou seja, a sua militância política monarquista nos primeiros
anos da República. Em um importante estudo, Brito Broca criticou a interpretação de Veríssimo
afirmando que ―para ele [Prado], o Império tinha um sentido liberal, enquanto a República lhe surgia
como a ameaça, ou mesmo, a concretização do caudilhismo sul-americano, cujos exemplos em certos
paìses lhe inspiravam repulsa‖. Considero essa uma boa sugestão para o estudo dos escritos de Eduardo
Prado. BROCA, Brito. Machado de Assis e a Política. São Paulo: Fundação Pró-Memória, 1983. p.110.

187
turbilhão ideológico que caracterizou o final do século XIX, com o ―bando de ideias
novas‖, para utilizar as palavras de Sìlvio Romero, personagem que tem algum destaque
neste capítulo. Para além da óbvia questão geracional, podemos perceber a presença da
modernidade, também, nos textos de Eduardo Prado, como, por exemplo, na carta
enviada a Joaquim Nabuco em março de 1897, da qual eu tirei a citação que serve como
epìgrafe a este capìtulo. A presença da expressão ―nossa República‖ sugere uma pista,
algo que é fundamental para a argumentação que agora desenvolvo.
Parte da vasta correspondência trocada entre Eduardo Prado e Joaquim Nabuco
foi publicada na década de 1930, em um livro organizado por Carolina Nabuco, filha do
famoso abolicionista. O material mostra uma profunda amizade e uma intensa
interlocução intelectual e política entre os dois. A historiadora Ângela Alonso, que
recentemente escreveu uma biografia de Joaquim Nabuco, afirma que eles se
conheceram em 1886, em Paris, sendo ambos, para usar os termos da autora, ―dândis378
379
de rendas polpudas‖ . Prontamente, nasceu uma grande estima entre os dois jovens,
belos e ricos letrados, a ponto de, em fins de 1892, Joaquim Nabuco ter sido o padrinho
do casamento de Eduardo Prado. Mas o que me interessa, especialmente, neste capítulo
é o encontro dos dois amigos nas articulações que deram origem à Academia Brasileira
de Letras, que, segundo os estudos de João Paulo Rodrigues e Alessandra El Far, deve
ser pensada em função da tentativa de delimitar um campo intelectual autônomo no
Brasil, o que passava, também, pela profissionalização do escritor380.

378
O termo ―dândi‖ designa um tipo de estética masculina que surgiu na Europa, especialmente na
Inglaterra e na França, em meados do século XIX. Para Ângela Alonso, ―Oscar Wilde, na Inglaterra e
Marcel Proust, na França, são exemplos desse gênero de grandes atores públicos, encarnação de um estilo
de vida que tendia para o exotismo e suscitava a percha de efeminamento.‖ Ver: ALONSO, Ângela.
Joaquim Nabuco. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 28-29.
379
Idem. p. 216.
380
Estou trabalhando com o conceito de campo a partir da proposta de Pierre Bourdieu. Para o autor, cada
campo de produção cultural possui sua dinâmica específica, o que envolve, entre outras coisas, a
capacidade de funcionar de forma mais ou menos autônoma em relação às condições externas. Bourdieu
propõe, então, a noção de ―espaço de possìveis‖ para o estudo da produção de bens culturais. Nas
palavras do autor: ―Esse espaço de possìveis, que transcende os agentes singulares, funciona como uma
espécie de sistema comum de coordenadas que faz com que, mesmo que não se refiram uns aos outros, os
criadores contemporâneos estejam objetivamente situados uns em relação aos outros.‖ (p.54). Nesse
sentido, Pierre Bourdieu argumenta que o produtor do bem cultural, que no caso desta tese é um escritor,
negocia com uma série de constrangimentos internos ou externos ao campo, constrangimentos que irão
variar de acordo com o grau de autonomia desse campo. A noção de autonomia do campo é fundamental
para a reflexão que desenvolvo neste capítulo porque me permite pensar a atuação de Eduardo Prado não
como mero reflexo das conjunturas sociais, mas também como um sinal de diálogo com lógicas
específicas do debate intelectual finissecular. Por outro lado, o próprio Pierre Bourdieu adverte que a
autonomia jamais é completa, dizendo que ―não é possível tratar a ordem cultural, a episteme, como um
sistema totalmente autônomo” (p.57). Ver BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação.
Rio de Janeiro: Papiros ed, 2004.

188
Na carta de março de 1897, Eduardo Prado se desculpa pela sua ausência nas
reuniões realizadas no salão da ―Revista Brasileira‖. Essas reuniões eram frequentadas
pelos principais nomes da cena intelectual da época, como Machado de Assis, Lucio de
Mendonça, Graça Aranha e, ao que parece, o próprio Eduardo Prado. Não encontrei na
documentação e na bibliografia especializada indicações que sugerem um papel
protagonista do nosso autor nesses encontros. Ainda neste capítulo, eu examino a
atuação de Prado na movimentação de escritores que deu origem à ABL, assim como o
seu trânsito nos quadros dessa agremiação. Por ora, me parece ser bastante sugestivo o
termo que ele utilizou para falar das tais ―reuniãozinhas‖: ―a nossa República‖. Se
formos levar em consideração, e precisamos fazê-lo, a militância política de Eduardo
Prado contra o regime de governo inaugurado em 1889 e os seus embates com as
instituições jurídicas republicanas ao longo de 1897, assunto que eu examinei no
segundo capítulo desta tese, é difícil acreditar que o tom elogioso que ele usou na carta
se refere à República brasileira, que na ocasião era presidida por Prudente de Moraes.
Portanto, me parece fazer mais sentido pensar que Prado estava mobilizando uma das
noções mais importantes da cultura intelectual moderna: a ―República das Letras‖.
Em um estudo especìfico sobre a concepção de ―República das Letras‖ na
cultura científica inglesa do século XVIII, a historiadora Lorraine Daston afirma que o
termo se relaciona, diretamente, ao cosmopolitismo que caracteriza a interlocução
letrada no mundo ocidental moderno. Ao destacar a imaterialidade da República das
381
Letras, ―falta de localização fìsica, administração formal e tijolo e argamassa‖ ,a
autora concentra sua análise, justamente, no aspecto da interlocução, destacando que as
modernas tecnologias de comunicação foram fundamentais para que nascesse a ideia da
―República das Letras‖. De acordo com Peter Burke, que também escreveu sobre o
tema, a expressão respublica litterarum foi cunhada no século XV e se manteve em uso
corrente desde então. Para o historiador inglês, em um primeiro momento, a expressão
significava uma ―comunidade imaginada‖ dentro da qual os estudiosos se comunicavam
e colaboravam entre si, o que teria sido fundamental, ainda de acordo com as
considerações de Burke, para a construção de uma identidade para o homem das letras,
que, diferente do filósofo clássico, cada vez mais, se afirmava como um especialista
membro de um círculo constituído por pares.

381
“DASTON, Lorraine. The Ideal and Reality of the Republic of Letters in the Enlightenment.
Cambridge: Cambridge University press, 1991. p. 27.

189
A imagem de uma república não era pura ficção, pois havia costumes e
instituições que facilitavam a colaboração ou, pelo menos, a cooperação a
distância, por exemplo, escrever cartas em latim, rompendo a barreira das
línguas vernáculas europeias; fazer doações de publicações e informações; visitar
382
outros estudiosos quando se viajava .

Nesse sentiido, assim como Lorraine Daston, Peter Burke também destaca a
interlocução e o fluxo de comunicação como os principais elementos da moderna
―República das Letras‖. A diferença entre os dois estudos é que enquanto Daston
concentrou a sua análise no século XVIII, Burke desenvolveu uma espécie de história
geral da ―República das Letras‖, sugerindo que entre o final do século XVIII e o inìcio
do século XIX houve uma profunda transformação no sentido original da expressão. O
autor acredita que tanto o nacionalismo como a especialização do conhecimento
comprometeram o cosmopolitismo inicial, levando à crise da ―República das Letras‖.
A harmonia da comunidade do saber estava cada vez mais ameaçada, não só
pelas guerras, mas também, de maneira mais insidiosa, pela transmutação do
cosmopolitismo em nacionalismo. No contexto intelectual, poder-se-ia até falar
da ―nacionalização‖ do conhecimento no século XIX, quando surgiu a noção de
que o estudioso era um representante de seu país e poderia ser convocado para o
serviço do Estado-nação. (...) O segundo ponto que corrobora o tradicional fim
da história da comunidade do saber por volta de 1800 envolve a longa tendência
de especialização intelectual, ou seja, a fragmentação da antiga República das
383
Letras em províncias ou comunidades distintas de especialistas .

Apesar de apontar a crise da ―República das Letras‖, o autor acredita ser


possível continuar usando a expressão para designar a vida intelectual no mundo
ocidental durante o século XIX. A presença da expressão no cenário intelectual luso-
brasileiro nas primeiras décadas do século XIX parece confirmar a hipótese. O termo foi
bastante utilizado por José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), para quem o
desenvolvimento das letras era o principal critério para aferir o grau de civilização de
uma nação. O historiador brasileiro Valdei Lopes Araújo, ao examinar os textos que
Bonifácio escreveu ao longo da década de 1810, afirma que ―a escolha do critério não
estava isenta de interesses imediatos. Se a percepção da decadência de Portugal era
generalizada, o incentivo às letras e ciências poderia ser tanto a causa do progresso
384
quanto seu efeito mais evidente‖ . A partir dos escritos daquele que viria a ser
considerado o ―Patriarca da Independência‖ é possìvel identificar, portanto, a presença

382
BURKE, Peter. A República das Letras europeia. Rio de Janeiro: Revista de Estudos Avançados, n°
25, 2011. p. 277.
383
Idem. pp. 277-278.
384
ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1812-1845). São Paulo: Ed. HUCITEC, 2008. p. 34.

190
de dois elementos fundamentais para a cultura intelectual moderna da República das
Letras e que marcariam as discussões a respeito fundação da Academia Brasileira de
Letras, setenta anos mais tarde: a definição da agremiação intelectual como um espaço
austero e imune às paixões políticas e a atribuição ao poder público da obrigação de
fomentar a criação e o fortalecimento desse tipo associação.
Nas palavras do próprio Bonifácio, ―o verdadeiro e o útil não têm pátria;
pertencem a todas as nações, pertencem ao universo inteiro. Que seria da República das
Letras, se os ódios e guerras das Nações houvessem de invadir os domínios pacíficos da
verdade, e das ciências úteis‖385. A República das Letras é pensada, portanto, como uma
esfera de sociabilidade que não deve ser submetida nem à exclusividade dos
sentimentos nacionalistas e nem às paixões irracionais das guerras e disputas políticas
―desagregadoras e irracionais‖. Temos, aqui, os princìpios do cosmopolitismo e da
temperança, o que, de acordo como já citados Peter Burke e Lorraine Daston, são as
características constitutivas da moderna noção de República das Letras.
Eduardo Prado circulou pelo grupo português dos ―Vencidos na Vida‖, onde
estabeleceu intenso contato com importantes nomes da intelectualidade portuguesa da
época, como Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, foi um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, duas das
principais instâncias de consagração intelectual em funcionamento no Brasil no final do
século XIX. O estudo da movimentação de Prado por esses espaços e a rede de
sociabilidade que ele teceu com esses escritores nos possibilita conhecer alguns
elementos da sua trajetória que são importantes para a compreensão do seu
conservadorismo. Por isso, este capítulo está dividido em três partes, sendo cada uma
delas dedicada ao estudo de uma das esferas de socialização letrada que marcou a
formação político/intelectual de Eduardo Prado.

6.1- Eduardo Prado entre os ―Vencidos na Vida‖

Em 07 de maio de 1884, no lugar da já conhecida coluna ―Crônicas da


Assembleia‖, que Eduardo Prado escreveu durante cinco anos para o jornal ―Correio
Paulistano‖ e que eu analisei no primeiro capìtulo desta tese, a redação do referido
jornal publicou a seguinte nota:

385
Citado em Idem. p. 27.

191
Partiu ontem desta cidade devendo em breve embarcar do Rio de Janeiro para a
Europa o nosso colaborador, o Dr Eduardo Prado. Na redação do Correio
Paulistano teve o nosso colega, desde alguns anos, a oportunidade de se revelar
um escritor tanto distinto pelo seu humor como pela sua ilustração. A causa
pública e o Partido Conservador desta província devem-lhe, na qualidade de
jornalista, os mais assinalados serviços. Estão eles muito frescos na memória de
todos para que precisemos relembrá-los. Assim, pois, somente temos por fim
neste momento, dirigir ao colega os mais sinceros agradecimentos pela sua
brilhante colaboração, a qual, esperamos, não será completamente interrompida
pela sua ausência. O Dr Eduardo Prado nomeado, há tempos, adido à legação
imperial do Brasil em Londres, aí vai residir durante algum tempo. Grande
número de amigos e admiradores do nosso colega foram acompanhá-lo ontem à
386
estação do norte, por ocasião da sua partida .

A nomeação do então jovem Bacharel em Direito para uma missão diplomática


na Europa é um sinal dos estreitos vínculos que a família Prado tinha com a Monarquia
brasileira. Ainda em 1884, Eduardo Prado tinha voltado a São Paulo depois da primeira
parte das suas ―Viagens‖, que deram origem aos textos que eu examinei no terceiro
capítulo. Ele não ficou muito tempo na sua cidade natal. A documentação é lacunar em
relação ao trabalho que o nosso personagem desenvolveu na embaixada brasileira em
Londres, o que não chega a ser um grande problema para a minha análise. O mais
importante é o contato de Eduardo Prado com os escritores portugueses do grupo que
ficou conhecido como ―Vencidos na Vida‖. O nosso autor foi introduzido no grupo por
Eça de Queirós. Ao que tudo indica, eles se conheceram em meados da década de 1880,
na capital inglesa, onde o português também desempenhava a função de diplomata.
Maria Eça de Queirós, filha de Eça de Queirós, deixou registros que apontam a
constante presença de Eduardo Prado na intimidade da sua família.
Noutra época teve a escultura grande êxito como passatempo artístico. Logo
Prado, com aquele generoso entusiasmo que o tornava tão simpático, trouxe
largas blusas e linho grosso, montes de terre glaise e vários apetrechos para se
trabalhar tecnicamente. Também trouxe modelos de artistas conhecidos, cães,
gatos. Enquanto escrevo estas linhas, tenho aqui, ao pé de mim, um cão
modelado pelo bom Prado, que num momento de inspiração lhe imprimiu uma
forte dedada na cabeça. Tão entusiasmado ficou com a sua obra, que a mandou
387
fundir em bronze e a deu a meu pai .

O contato de Eduardo Prado com a família de Eça de Queirós foi tão intenso que
o escritor português chegou a tentar articular o casamento do amigo brasileiro com
Benedita, irmã mais jovem de sua esposa, a Dona Emília Rezende. Porém, parece que o
temperamento da moça foi um obstáculo para o sucesso das articulações matrimoniais
do autor de ―Os Maias‖.

386
―Correio Paulistano‖. 07 de maio de 1884.
387
Citado em MATOS, A. Campos. Eça de Queiroz: uma biografia. Campinas: Ed. Unicamp, 2014. p.
199.

192
Lamento que a Benedita não se tenha mostrado ao Prado sob o seu aspecto
simples e atraente – e que se tenha dado ares pessimistas e desiludidos. Esta
rapariga necessitava palmatoadas. Todas as suas qualidades que são excelentes e
sólidas, as inutiliza, tomando atitudes falsas, por uma deplorável e mórbida
paixão de fazer efeito. Pois no Prado, perde, penso eu, a maior chance da sua
388
vida .

Mais importante do que as anedotas amorosas é a interlocução que se


estabeleceu entre os dois escritores, algo que foi examinado por diversos estudiosos,
como, por exemplo, Heitor Lyra.
Não foi somente em relação ao Brasil que Eça sofreu a influência de Eduardo
Prado: sofreu também em muitas outras coisas de ordem geral: na apreciação,
por exemplo, da civilização humana, tanto do seu tempo como das eras passadas,
sobretudo das eras passadas; na compreensão e interpretação do problema do
homem, da sua razão de ser social, política e intelectual – de ser e de não ser; no
julgamento do fator cultural sob os seus múltiplos aspectos, sobretudo para a
389
expressão de um sentimento ou de um ideal de vida .

Se o brasileiro deixou marcas no Português, a recíproca é verdadeira. Um dos


principais argumentos críticos que Eduardo Prado utilizou nos seus primeiros escritos
antirrepublicanos foi em relação à bacharelização do Exército. Pouco antes da
proclamação da República, Eça de Queirós visitou o Brasil e escreveu uma extensa carta
para Prado com suas impressões. Trata-se de um trecho profundamente crítico no qual o
autor de ―O crime do Padre Amaro‖ diz que ―a grande lástima brasileira é a doutorice
que parece ter contaminado a todos. Por onde andei só vi doutores‖390. Ao comentar a
proclamação da República brasileira, ainda no calor das primeiras considerações, Prado,
em texto publicado na ―Revista de Portugal‖, que era dirigida por Eça de Queirós,
desenvolveu uma crítica bastante semelhante. Considero ser esse um aspecto tão
fundamental para a compreensão do pensamento político de Eduardo Prado que deixo
para o próximo capítulo a análise da referida carta. Acredito que aí reside uma dimensão
epistemológica do conservadorismo do nosso autor, algo que é, inclusive, bem coerente
com certa tradição britânica do pensamento conservador moderno.
Em novembro de 1897, a ―Revista Moderna‖, que foi uma revista de variedades
que circulou em Portugal no final do século XIX, publicou um número em homenagem
a Eça de Queirós. Sendo dirigido pelo escritor brasileiro Martinho Carlos Arruda
Botelho, o periódico se tornou terreno comum para a intelectualidade luso-brasileira. A.
Matos, um dos biógrafos de Eça de Queirós, diz que a sede da ―Revista Moderna‖, que

388
Idem. p. 200.
389
Idem. p. 199.
390
QUEIRÓS, Eça. Carta a Eduardo Prado. São Paulo: Ateliê Editorial, 1982. p. 21.

193
ficava em Lisboa, foi um dos pontos prediletos de encontro dos ―Vencidos na Vida‖ ao
longo da década de 1890. De fato, Eça de Queirós foi um dos grandes entusiastas da
Revista. No número de lançamento do periódico, que veio a público em maio de 1897, o
escritor português escreveu ―Aparecendo neste meado de maio, com as flores de maio
sem ruído na ponta ligeira das suas paginas bem ornadas, tão silenciosamente como as
próprias rosas de maio, ela [a Revista Moderna] tem por programa dar noticias e dar
imagens‖391. O entusiasmo se manteve ao longo da curta vida da revista, que circulou
até novembro de 1898, o que justifica o número especial que o periódico dedicou ao
romancista português. Eduardo Prado foi um dos escolhidos para homenagear Eça de
Queirós, sendo ele o autor do maior artigo daquela edição, um texto sugestivamente
intitulado ―Passado – Presente‖.
Como era de se esperar, o texto tem natureza encomiástica, e a partir dele é
possível analisar alguns elementos importantes para a argumentação que venho
desenvolvendo nesta tese. Por exemplo, ao comentar a atuação pública de Eça de
Queirós, Prado afirma que:
Eça de Queirós recebeu do céu o dom de se interessar pelo mundo em que
nasceu e pelos seus companheiros de planeta, na grande viagem dos seres. Esse
dom é o maior que um homem pode receber. Quem o possui nunca está só, nem
abandonado; é o segredo da ventura, porque as mais das dores da vida vêm da
ociosidade da alma. (...) Os homens como Eça de Queirós, educados na
Península, na segunda metade deste século, receberam uma educação que nada
teve de perfeita. O peninsular – e o português, mais especialmente – parecia não
mais ter a ação por destino, porque se entendia que a era da ação tinha
392
acabado . (Grifos Meus)

No quarto capítulo desta tese, eu analisei a importância que Eduardo Prado


atribuiu ao envolvimento do cidadão-proprietário com os assuntos de interesse público,
o que se desdobrou também em uma crítica ao privatismo moderno. Naquela ocasião, eu
demonstrei como o autor conclamou os proprietários brasileiros à vita activa,
principalmente naquilo que se refere ao combate à epidemia de febre amarela. Eduardo
Prado levanta uma discussão semelhante no texto que escreveu em homenagem ao seu
amigo português. Para ele, um dos grandes méritos de Eça de Queirós foi jamais ter se
rendido à ociosidade, que além de ser definida pelo nosso autor como uma das maiores
dores da vida, é caracterizada, também, como um dos principais defeitos dos
conterrâneos do autor de ―O Crime do Padre Amaro‖. Quando tentou conclamar os
fazendeiros paulistas à ação pública, Prado propôs a doação de dinheiro e organização

391
―Revista Moderna‖. Maio de 1897. p. 13.
392
Idem. novembro de 1897. pp. 87-88.

194
de hospitais. Mas em relação ao homem das letras? Qual seria o tipo de ação pública
que Eduardo Prado esperava de um escritor? Ele mesmo dá a resposta.
Eça de Queirós foi o que foram os seus contemporâneos; mas, apenas saído da
educação oficial, olhou com interessa à roda de si, olhou para o Estado que o
criara bacharel, e, mais exigente que este criador, otimista por função, declarou
que a obra não prestava e que o tal criador, ele mesmo, nada valia. Disse-lhe
algumas verdades, mas não se encheu de ódio, nem de tremendas indignações.
Riu largamente e fez rir todo o pais na sua extraordinária colaboração nas
Farpas, em que Guerra Junqueiro disse haver a epilepsia do talento. As
gargalhadas, porém, ainda as melhores, acabam tomando posição como escritor,
preparou-se para desempenhar a parte de dever social que lhe competia pela
fatalidade brilhante da sua organização e que, mais tarde, realizou: a de ser
393
escritor perfeito e capaz de denunciar o colapso da sua pátria . (Grifos Meus)

Eduardo Prado não chega a utilizar o termo ―engajamento‖, mas eu acredito que
não seria um absurdo dizer que é exatamente isso que o nosso autor está defendendo.
Para ele, o escritor tinha a obrigação de colaborar para o progresso do seu país,
acusando o ―colapso‖ da sua terra natal. Era isso que ele acreditava estar fazendo
quando saiu em ataque à República brasileira394. Ao elogiar Eça de Queirós, o nosso
autor estava falando do tipo de escritor que ele achava ser o ideal. Não o letrado
diletante, mas sim o combativo, aquele que usa as letras para defender a sua pátria. Em
carta enviada à esposa em abril de 1890, o próprio Eça de Queirós reconhece a
combatividade como uma das principais características do nosso autor.
Prado teima em voltar ao Brasil mesmo sabendo que os artigos dos Fastos
provocaram a ira dos governantes da ditadura. Já tentei dissuadi-lo de todas as
formas, mas ele insiste em se arriscar, como se isso fosse ajudar na reconstrução
do Brasil. Já desisti; ele não ouve argumentos e está convicto de que estar na
395
linha de combate é a principal obrigação do literato .

O tema da atuação política do escritor era um dos principais pontos de


controversa na cena intelectual brasileira finissecular, tendo sido motivo de polêmicas
literárias e de ampla discussão nos salões da Academia Brasileira de Letras e do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Por exemplo, Roberto Ventura afirma que

393
Idem. p. 94.
394
O tema do engajamento político e social do escritor é um dos mais recorrentes na filosofia moderna.
Por exemplo, Voltaire, que foi um dos filósofos mais atacados por Eduardo Prado, dedicou sua obra ao
projeto de reformular os costumes da sociedade de modo a promover a felicidade individual e coletiva.
Segundo René Pomeau, um dos mais célebres intérpretes da obra de Voltaire, ―O fio condutor que
permite encontrar os laços que unem a obra de Voltaire é a finalidade última atribuída por ele à noção de
filosofia, a saber: o combate pelo uso esclarecido e livre da razão e, assim, pelo aperfeiçoamento dos
costumes e pela consequente felicidade dos homens – pelo bem estar individual e coletivo – que esses
costumes, orientados pela razão, podem, na medida em que condição humana os permite, possibilitar‖ (p.
15). Ver POMEU, René. A religião de Voltaire. São Paulo: Ed Martins Fontes, 1992. Porém, como
demonstro nos próximos capítulos, Prado criticou abertamente a filosofia de Voltaire, o que é mais um
indício que aponta para relação ambígua do nosso autor com a modernidade.
395
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987. p. 140.

195
Tobias Barreto e Silvio Romero trazem à cena histórica o escritor combatente,
em conflito com o status quo, que não deve viver, como os românticos
Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães ou Porto Alegre, à sombra da coroa,
sob o manto do mecenato. (...) Essa concepção empenhada, em que o escritor
intervém no espaço público, foi continuada por Euclides da Cunha e Lima
396
Barreto na Primeira República .

Entre esses escritores citados por Ventura, Silvio Romero talvez tenha sido
aquele que mais propagandeou a combatividade intelectual, o que lhe rendeu alguns
dissabores. A polêmica travada pelo escritor sergipano com Machado de Assis é
emblemática disso. A própria entrega dos dois escritores à polêmica mostra como eles
tinham visões completamente distintas a respeito da função social do escritor e do papel
da literatura. Acho importante comentar, ainda que brevemente, essa polêmica antes de
continuar a tratar da interlocução de Eduardo Prado com os escritores portugueses da
geração de 1870397. Estamos diante de uma questão que me parece ter sido fundamental
para o nosso autor.
Para Roberto Ventura, as polêmicas faziam parte da cultura literária brasileira
oitocentista, sendo fundamentais, portanto, para o conhecimento dos valores e projetos
que marcaram a história da nossa literatura. O autor acredita, ainda, que esses embates
suscitaram também discussões relativas à escrita da história e à identidade nacional.
Eduardo Prado não ficou indiferente às polêmicas, sendo aquela travada, em 1901, com
o médico positivista Pereira Barreto a mais conhecida na qual ele tomou parte. Nas
discussões com Pereira Barreto, Prado argumentou em favor o empirismo sociológico,
criticou a metafísica racionalista e saiu em defesa das tradições católicas brasileiras. Por
isso, eu examino essa polêmica na próxima unidade, especificamente nos capítulos sete
e oito desta tese. Por ora, me limito a trazer à luz alguns aspectos da polêmica travada
entre Silvio Romero e Machado de Assis. Acredito que, aí, é possível encontrar o
desenvolvimento do tema do engajamento político intelectual, que, como vimos no

396
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 27.
397
O estudioso português Felipe Alves Moreira desenvolveu um estudo sobre a história do conceito
―Geração de 1870‖ na tradição literária portuguesa. Trata-se de uma importante contribuição para a minha
reflexão já que me permite entender um pouco melhor as formas através das quais os escritores
portugueses que foram interlocutores de Eduardo Prado desenvolveram a sua própria identidade. Para
Felipe Moreira, o primeiro a utilizar o termo ―geração‖ para designar o grupo de escritores que começou a
ganhar destaque nas letras portugueses por volta de 1865, quando eclodiu a chamada ―Questão Coimbrã‖
foi Pinheiro Chagas, contemporâneo desses mesmos escritores. Porém, Felipe Moreira argumenta que o
termo caiu em desuso, já que os escritores passaram utilizar a noção de ―escola‖ nos suas tentativas de
auto representação, o que sugere que eles se vinham irmanados mais pelas questões estéticas e políticas
do que propriamente geracionais. A exceção, ainda segundo o autor, foi Ramalho Ortigão, que sempre
preferiu usar o termo ―geração‖. Enfim, Felipe Moreira demonstra que a canonização definitiva da noção
de ―geração de 1870‖ aconteceu apenas na década de 1940. Ver MOREIRA, Felipe Alves. A Geração de
70: notas pra história de um conceito. Coimbra: Ed. Da Universidade de Coimbra; 2012.

196
texto que Prado escreveu em homenagem a Eça de Queirós, estava no horizonte de
preocupações do nosso autor.
A polêmica entre Silvio Romero e Machado de Assis teve início em 1879,
quando este publicou o artigo ―A nova geração‖ na ―Revista Brasileira‖. No texto,
Machado de Assis ―abordou os novos poetas, dentre eles Romero, cujo ―criticismo‖
398
poético é tomado como manifesto literário do grupo antirromântico‖ . O autor de
―Memórias Póstumas de Brás Cubas‖ provocou a ira de Silvio Romero ao criticar o
livro ―Contos do fim do século‖, de 1878, onde o escritor sergipano propunha um ideal
para a poesia moderna, que deveria ser ―despojada dos antigos ares de mistério pelas
399
ciências naturais e pela crìtica histórica‖ . Para Machado de Assis, faltava estilo à
poesia de Romero, que também exagerava nos elogios aos poetas de Recife.
A resposta veio em 1882, quando Silvio Romero disse que Machado de Assis
representava ―um lirismo infértil, um humorismo despretensioso e uma dubiedade de
caráter polìtico e literário, sendo um tipo morto antes do tempo na orientação nacional‖
400
. Como se não bastassem as críticas, Romero não incluiu Machado de Assis na sua
―História da Literatura Brasileira‖, que foi publicada em 1895. O interessante é que
Machado de Assis jamais respondeu aos ataques do seu antagonista, sendo defendido
por outros escritores, como Lafaiete Rodrigues Pereira e José Veríssimo. Diversos
aspectos poderiam ser pensados a partir dessa polêmica: a recepção do naturalismo de
Émille Zola e do evolucionismo de Taine na literatura brasileira, as rivalidades entre os
escritores no nordeste e os do sudeste, as relações entre a literatura e a identidade
nacional e a utilização de critérios etnográficos no exercício da crítica literária. Estou
especialmente interessado na argumentação de Silvio Romero, que acusou Machado de
Assis, entre outras coisas, de ser indiferente aos destinos do Brasil. Para Romero, então,
caberia ao escritor se envolver nos debates a respeito do progresso da nação, o que,
obviamente, demandaria alguma dose de engajamento político.
O curioso é que o tal engajamento foi rejeitado tanto pela Academia Brasileira
de Letras, fundada em 1897, como pelo IHGB, que após a proclamação da República
tentou se aproximar das novas instituições, o que resultou em todo um esforço de
reorientação da imagem do instituto, que durante décadas esteve diretamente associado
à Monarquia. Silvio Romero foi membro fundador da ABL e sócio do IHGB, tal como

398
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 96.
399
Idem. p. 96.
400
Idem. pp. 96-97.

197
Eduardo Prado. Porém, diferente do nosso autor, ele conflitou abertamente o princípio
da pacificação política, principalmente nos quadros da ABL, onde se envolveu em
outras polêmicas401. Já Eduardo Prado, que a despeito das suas grandes diferenças com
Silvio Romero, também era um defensor do engajamento político do homem das letras,
parece ter transitado com mais tranquilidade pela austeridade política das duas
agremiações. Apesar de jamais ter deixado de atacar abertamente a República, quando
nos quadros do IHGB e da ABL, Prado adotou um tom mais moderado, tal como rezava
a cartilha das duas instituições. Será que ele, cartesianamente, conseguia ser um
cordeiro nos grêmios literários e um soldado nas páginas de imprensa? Será que ele
dissimulou o engajamento político para ser aceito nessas associações? Ou será que
existem diversas formas de engajamento político, sendo que a moderação intelectual
não necessariamente significa apatia política? Eu volto a estas interrogações ainda neste
capítulo. Por ora, eu retomo a análise dos contatos de Eduardo Prado com os escritores
portugueses autoproclamados ―Vencidos na Vida‖.
A chamada ―Questão Coimbrã‖, que eclodiu em meados da década de 1860, está
na origem dos ―Vencidos na Vida‖. Em linhas gerais, essa questão foi uma polêmica
literária que surgiu nos corredores da Universidade de Coimbra, onde dois grupos
passaram a trocar hostilidades. Um desses grupos era marcado pelo apego às tradições
literárias românticas, sendo Antônio Feliciano de Castilho, um dos mais importantes
escritores da época, o seu principal representante. O outro grupo era formado por jovens
literários que reivindicavam mudanças na cultura e na sociedade portuguesas, sendo que
Teófilo Braga e Antero de Quental foram as principais lideranças 402. O tema do

401
A posse de Euclides da Cunha foi uma das mais polêmicas de toda a história da Academia Brasileira
de Letras. O escritor fluminense assumiu a cadeira de número sete, cujos patrono e antecessor eram,
respectivamente, Castro Alves e Valentim Magalhães, no dia 18 de dezembro de 1906. No seu discurso
de posse, Euclides da Cunha fez críticas tanto a Castro Alves como a Valentin Magalhães, o que destoava
do protocolo de elegância que até então caracterizava as cerimônias de posse na Academia Brasileira de
Letras. Porém, foi o discurso de Silvio Romero, que se ofereceu para receber o novo imortal, que marcou
a sessão e provocou modificações administrativas na ABL. Ao invés de comentar a obra do novo colega e
louvar o acadêmico morto, Silvio Romero criticou Valentim Magalhães e outros escritores cariocas,
como, por exemplo, Machado de Assis e José Veríssimo, por terem criticado Tobias Barreto, o nome
mais representativo da Escola de Recife. A partir desse episódio, começou a existir uma censura prévia
nos discursos dos acadêmicos. Sobre esse assunto ver RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A
dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Ed.
UNICAMP, 2001
402
Hernâni Cidade é autor de um importante estudo sobre as mudanças na cultura portuguesa ao longo do
século XIX. Ele mostra como eram complexas as relações entre os escritores portugueses que na década
de 1860 rivalizavam dentro da Universidade de Coimbra. Por exemplo, ainda que Castilho tivesse grande
influência junto a alguns jovens escritores, outros, como Antero de Quental e Teófilo Braga hostilizavam
o professor, acusando-o de ser adepto de um formalismo academicista infértil e ultrapassado. O
antagonismo entre os dois grupos ficou claro em 1865, quando Castilho escreveu um posfácio para o
―Poema da Mocidade‖, de Pinheiro Chagas. No texto, o velho professor acusa Antero de Quental e

198
engajamento político do intelectual estava na agenda desses escritores, que pretendiam
movimentar a vida cultural portuguesa. Quando uso o termo engajamento político, estou
querendo dizer que esses escritores se manifestaram em relação aos assuntos relativos à
sociedade e à política portuguesas. Para o historiador e crítico literário João Medina, os
―setentistas tinham interligado estética (ética) e polìtica, precisamente na medida em
que concebiam que as literaturas oficiais representavam uma perversa mancebia entre
403
literatos e polìticos‖ . Os escritores portugueses envolvidos na questão coimbrã
teriam, então, tentado tratar a literatura em função da ideia de progresso da nação e
superação das concepções estéticas e políticas consideradas ultrapassadas. Trata-se de
uma definição de literatura e de escritor bem parecida com aquela que era vociferada
por Sílvio Romero e, em alguma medida, pelo próprio Eduardo Prado, que fez das letras
a sua trincheira na guerra contra a República.
O que os jovens que, como Teófilo e Antero dispararam os primeiros tiros contra
a Academia oficial das Letras, denunciavam era a burocratização do intelectual,
a submissão da dignidade literária ao vil interesse da carreira pessoal: os
pretendentes a escritores começavam por receber recomendações e, mais tarde,
arrecadavam sinecuras, comendas, títulos e cargos políticos ou ministeriais desde
que fossem previamente a despacho aos patriarcas das Letras, fizessem ato de
submissão às tais ―teocracias literárias. Os dissidentes coimbrões queriam fazer a
sua literatura sem pedirem ―licença‖ aos mestres, ―sem o selo e o visto da
chancelaria dos grão-mestres oficiais, contra o espìrito ―que quer dormir
404
sossegado no seu leito de ninharias .

Toda essa rebeldia literária e os seus desdobramentos políticos foram


canalizados nas famosas ―Conferências do Casino Lisboense‖, que foram realizadas ao
longo de 1871. Desses encontros resultou a aproximação entre os letrados portugueses,
os mesmos que no final da década de 1880 constituiriam o grupo dos ―Vencidos na
Vida‖. Eduardo Prado teve participação ativa nos encontros dos ―Vencidos‖, o que pode
ser pode ser comprovado pela extensa correspondência que ele trocou com esses
escritores405. Algumas das propostas literárias e polìticas dos ―Vencidos‖ podem ser

Teófilo Braga de mal gosto literário. Os citados responderam prontamente e a partir daí a polêmica se
configurou como uma ―questão coimbrã‖. Ver CIDADE, Hernâni. Século XIX: A Revolução cultural em
Portugal e alguns dos seus mestres. Lisboa: Ed. Presença, 1988.
403
MEDINA, João. A Geração de 70: uma geração revolucionária e europeísta. Instituto de Cultura e
Estudos Sociais: Cascais, 1999. p.24.
404
Idem. p. 17.
405
Os assuntos tratados por Eduardo Prado nas cartas são os mais variados, indo desde discussões acerca
da literatura e da política, passando por comentários de viagens e chegando até às frivolidades cotidianas,
como, por exemplo, o seu cardápio do almoço. Foi exatamente esse o assunto da carta que o nosso autor
enviou à Maria Amélia Vaz de Carvalho, que foi um dos personagens mais importante do círculos dos
―vencidos‖. Dizia o nosso autor, ―entrada de um tirolez com um cesto de uvas de Moran, que são o meu
almoço. Chegada de cartas e jornais de Paris e Londres. Meia hora de passeio e, a uma, veio jantar. Uma
truta azul que foi atirada viva na água a ferver vem com seu raminho de salsa na boca e toda retorcida

199
percebidas também no pensamento político de Eduardo Prado, o que não significa que o
nosso autor tenha deixado de fazer críticas aos seus interlocutores portugueses, críticas
que foram, inclusive, corroboradas por Eça de Queirós em um dos seus últimos textos.
Em uma longa carta enviada ao seu sobrinho Paulo406, em janeiro de 1888, que também
fez parte do grupo, o nosso autor formulou essa critica com precisão.
A cada dia que passa tenho mais estima por todos dos vencidos. As leituras de
Camões e Pessoa são encantadoras; hoje os vencidos estão mais maduros, mais
portugueses e menos encantados com os francesismos tão estranhos à tradição da
nossa nação mãe. Eça de Queirós pertence a uma geração portuguesa que, na sua
mocidade, se enchia de emoção com a mudança de um ministério, sob o regime
do segundo Império, e que, às vezes, não sabia os nomes dos homens que em
Lisboa estavam governando Portugal O amor às tradições vem sendo assuntos de
constantes conferências que venho tendo com Eça. A cada dia, ele redescobre
Portugal, o que faz também com que eu redescubra o Brasil. Estão todos
aguardando a volta do belo Paulo. Todos lhe têm grande estima por essas
407
terras .

Trata-se de uma crítica retrospectiva. Para Prado, os jovens coimbrãos se


encantaram, demasiadamente, pelas ideias francesas e se esqueceram de valorizar a
tradição de sua terra natal. A luta em defesa das tradições da Pátria é um dos
fundamentos do antirrepublicanismo do nosso autor, sendo uma construção em curso
desde meados da década de 1880, quando Eduardo Prado já frequentava o círculo dos
―Vencidos na Vida‖. O próprio Eça de Queirós parece reconhecer a importância do
amigo brasileiro para o seu reaportuguesamento.
Depois de muitos anos longe de Portugal, meu espírito retorna ao berço materno
e lhe devo muito por isso, meu amigo Prado. Já não me encanta mais o barulho
de Paris ou o redemoinho de Londres; agora só quero o sossego do Minho e o
silêncio do Porto, provas do bem que o aconchego do nosso amado Portugal
408
pode fazer a um homem cansado .

O apreço de Eduardo Prado pelas tradições deveria mesmo ser tão grande, sendo
o assunto abordado de forma tão intensa no seu círculo de amizades, que Eça de Queirós
chegou a fazer um comentário jocoso, em carta enviada a Maria Amélia Vaz de

com uns ares de golfinho heráldico sobre a sua cama de manteiga fresca. Segue-se uma perdiz na geleia
vermelha e um copo de leite‖. Coleção ―Spencer Vampré‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. Gaveta 03. Doc. 78.
406
Paulo Prado, que era apenas nove anos mais novo que seu tio Eduardo, foi outro membro da família
que se notabilizou pela intensa atividade letrada, sendo autor do livro ―Retrato do Brasil‖, que é um dos
mais importantes do pensamento social brasileiro. O jovem Paulo também era presença constante no
grupo dos ―Vencidos‖, conforme ele mesmo testemunhou: ―Imagina você, eu moço com dinheiro no
bolso, em Paris, assediado pelas mulheres, em vez de me deixar arrastar por elas, preferia ir a Neully
ouvir o mestre [Eça de Queirós]. Não vá supor que ele discursava, não; isso seria bom para caipira aqui da
nossa terra. Ele palestrava e como palestrante era ainda mais encantador do que como escritor‖. Citado
em BERRIEL, Carlos. Tieté, Tejo e Sena: a obra de Paulo Prado. São Paulo: Ed. USP, 2012. p. 73.
407
Coleção ―Jorge Pacheco Chaves‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Gaveta 03..
Doc. 13.
408
Idem. Gaveta 03. Doc. 10.

200
Carvalho, em fevereiro de 1889: ―O amor de Prado pelo passado é mesmo contagiante,
tanto que agora eu não consigo beber um vinho sem desejar conhecer as vinhedas que
lhe pariram‖409. Piadas à parte, a documentação mostra como o escritor português
valorizava as conversas com o nosso autor. Em carta enviada ao escritor e diplomata
brasileiro Domício da Gama, em 26 de setembro de 1889, Eça de Queirós volta a fazer
comentários sobre as suas conversas com Eduardo Prado e fala, claramente, sobre a sua
decepção com a França.
Seu conterrâneo Prado é persona mui grata por todos os vencidos. Em nossas
conversas sempre tratamos das coisas do Brasil e de Portugal, duas nações tão
distantes e tão parecidas. Prado nos entusiasma com seu amor pelas tradições
410
brasileiras e nos faz amar mais a nossa terra .

No restante da carta, Eça de Queirós se mostra profundamente decepcionado


com a forma através da qual o governo francês estava conduzindo o ―caso Dreyfus‖.
Para o escritor português, ―a ilegalidade do processo é uma mácula na jurisdição do
411
nosso século‖ . Maria Filomena Mônica, uma das principais biógrafas de Eça de
Queirós, aponta uma ―guinada antifrancesa na literatura queirosiana‖, destacando,
especialmente, os textos ―As cartas de Fradique Mendes‖ e o romance ―Os Maias‖
como os mais emblemáticos dessa nova situação. Para a autora, a decepção de Eça de
Queirós com a França, a mesma que na sua juventude tanto o inspirara deve-se,
sobretudo,
ao sentimento aristocrático que lhe tomou o espírito naquele final de século. Por
isso, ele fazia parte daquele grupo que não via solução no sistema da vida
burguesa e se vencido pela massa bruta dos novos ricos e do parlamentarismo
412
desagregador .

A historiadora portuguesa não menciona as ―conferências com Eduardo Prado‖


como um dos elementos responsáveis pelo reaportuguesamento e pela guinada
antifrancesa da literatura de Eça de Queirós, destacando quase que exclusivamente o
descontentamento do escritor com os desdobramentos do ―caso Dreyfus‖ por tal
mudança. Não está entre os meus objetivos apontar influências capazes de resolver
rapidamente o problema do conservadorismo de Eduardo Prado. Por isso, estou
tentando desenvolver uma argumentação baseada no princípio da mobilização de
repertórios múltiplos. Na construção do seu pensamento político conservador, Eduardo

409
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987. p. 285.
410
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Porto Lello & Irmão, 1963. p. 84.
411
Idem.
412
MÔNICA, Maria Filomena. Vida e obra de José Maria Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Record Ed,
2001. p. 37.

201
Prado se apropriou de vários repertórios, incluindo o liberalismo político, o
republicanismo cívico e o ativismo intelectual dos escritores portugueses vinculados à
geração de 1870, especialmente Ramalho Ortigão e, principalmente, Eça de Queirós.
Portanto, me inclino a tratar o antifrancesismo de Eça de Queirós nessa mesma
perspectiva. A decepção do romancista português com o ―caso Dreyfus‖ pode ter se
combinado com as críticas que Eduardo Prado fez ao estrangeirismo da sua geração e
ainda com outros diversos elementos que passam ao largo das minhas preocupações
neste trabalho.
Nesse sentido, mais do que descobrir as ―origens‖ do antirrepublicanismo de
Eduardo Prado ou da guinada antifrancesa de Eça de Queirós, eu pretendo mostrar como
a interlocução entre eles explica, em parte, esses dois problemas. Essa interlocução foi
amplamente diagnosticada pela bibliografia413 e, de tão intensa, suscitou as suspeitas de
que o romancista português teria homenageado o amigo brasileiro com seu último
romance, o ―As Cidades e as Serras‖, que foi publicado, postumamente, em 1901.
Ambientado em Portugal, o enredo é baseado na vida do protagonista Jacinto Galião,
que é narrada pelo personagem José Fernandes. Para João Medina, o grande tema
levantado no livro é a polarização entre a cidade e a serra, ou seja, o litoral e o interior.
Mais do que no enredo do livro, eu estou interessado na repercussão do romance. No
Brasil, por exemplo, vários críticos leram a obra à luz dos lações de amizade entre
Eduardo Prado e Eça de Queirós e afirmaram que o personagem Jacinto foi inspirado no
nosso autor. J. Melo Jorge, por exemplo, disse que ―Jacinto e Eduardo: um paralelo
perfeito. A descrição romantizada da vida e do espírito de Eduardo Prado é a figura da
perfeição‖414. O diagnóstico é acompanhado por Luìs Viana Filho, que afirmou ser ―o

413
Entre os diversos estudos que apontaram a grande amizade e estima que caracterizou as relações
desenvolvidas entre Eduardo Prado e Eça de Queirós, eu destaco quatro biografias, duas dedicadas ao
brasileiro e duas ao português. Tanto Cândido da Mota Filho como Sebastião Pagano, autores das
biografias já muito citadas nesta tese, afirmam que Eça de Queirós foi o grande amigo que Eduardo Prado
teve no mundo das letras. Mota Filho diz ―Assim que conheceu Eduardo, Eça ficara, de pronto,
impressionado com a jovialidade daquele brasileiro, exuberante e espontâneo, que já sabia muito, mas que
mantinha sempre insatisfeita a sua curiosidade. Sentiu-lhe a força do caráter, nas linhas fortes de sua
personalidade. Nascia ali um vìnculo de amizade que não mais terminaria‖ (p. 39). A argumentação de
Sebastião Pagano não é diferente: ―De todos os inúmeros amigos que passaram pela vida de Eduardo
Prado, Eça de Queirós foi o mais estimado, aquele de quem ele mais sentiu falta‖ (p. 52). Também A.
Campos Matos dedica dois capítulos do seu enorme livro para tratar da amizade entre Eduardo Prado e
Eça de Queirós, dando destaque ao auxílio que o nosso autor deu a família do escritor português após a
sua morte: ―Eduardo Prado e sua mulher, que faziam uma viagem de turismo na Sicìlia, ao saberem da
morte do amigo regressaram imediatamente a Paris para acudir a Emìlia‖ (p. 255). Maria Filomena
Mônica, que por muitos é considerada a principal biógrafa de Eça de Queirós, também dedica uma sessão
do seu livro para a amizade entre os dois escritores.
414
JORGE, J. Melo. As figuras dos romances de Eça de Queirós. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1963. p. 36.

202
personagem Jacinto uma metáfora literária de Eduardo Prado. O último romance de Eça
de Queirós foi a maior homenagem que a cultura brasileira poderia receber‖ 415.
Porém, os críticos portugueses não têm a mesma opinião, sendo quase todos
unânimes em desconsiderar a hipótese de que Eça de Queirós teria desenhado o
personagem Jacinto para homenagear Eduardo Prado. Tanto os comentaristas coevos,
como Batalha Reis e Lopes de Oliveira, como os mais contemporâneos, destacando-se
Hernani Cidade e Antônio Sérgio, negam a hipótese e argumentam que Jacinto era um
alterego do próprio Eça de Queirós. Na documentação com a qual eu tive contato não
existe nenhum indício que comprove nem a argumentação dos críticos brasileiros e nem
a dos especialistas portugueses, talvez jamais saberemos. Porém, o simples fato de a
possibilidade ter sido aventada serve, ao menos, para sugerir o quanto Eduardo Prado e
Eça de Queirós eram próximos.
O vínculo de Eduardo Prado com o círculo literário português é muito maior do
que a sua amizade pessoal com Eça de Queirós. Como já vimos, o nosso autor travou
contato com esses letrados portugueses quando ainda era bem jovem, sendo essa
interlocução fundamental para os seus futuros passos como crítico político. Para
compreender melhor essas marcas é necessário dedicar alguma atenção ao programa das
tais ―conferências lisboeneses‖, que permitem uma maior aproximação com as ideias
ventiladas pelos setentistas lusitanos. Esse exercício é importante para evitar que
incorramos no erro de exagerar nos aspectos biográficos relativos à relação entre
Eduardo Prado e Eça de Queirós, o que nos faria perder de vista as questões geracionais
que estavam sendo discutidas na época desses dois autores.
João Medina evita utilizar a palavra ―projeto‖ para designar as propostas das
conferências, afirmando que a composição do grupo que promovia os encontros era
heterogênea demais para permitir qualquer elaboração mais sistemática. Ao examinar o
programa das conferências, que foi publicado no jornal ―A Revolução de Setembro‖, em
junho de 1871, o autor argumenta que
As conferências do Casino foram, no seu programa, no seu propósito vago, mas
firmemente sentido por quantos nele participaram ou o redigiram, e, sobretudo,
na ação ulterior de muitos do que ali acharam a sua inspiração essencial, uma
insurreição cultural no sentido mais amplo do termo, aquele que inclui à noção
de cultura todas as formas superiores do espírito, sem esquecer a visão crítica da
política, como tudo quanto diz respeito à vida na polis, os seus sistemas de
valores, normas e finalidades que articulam o ideário social dos homens, sem

415
FILHO, Luís Viana. A vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: José Olimpio ed, 1967. p. 319.

203
perder de vista a estética, acervo de valores e programas propriamente espirituais
416
e artísticos .

Segundo o autor, se é correto dizer que o sentimento de insurreição e a vontade


de mudar radicalmente o cenário cultural português estavam presentes nas aspirações do
grupo, o modus operandi, sob aspecto algum, era consensual. Existia orientação
político/ideológica de tudo quanto era tipo, indo desde o socialismo de Antero de
Quental e José Fontana, passando pelo republicanismo positivista de Teófilo Braga e
chegando até ao monarquismo constitucional de Eça de Queirós. Falando em Eça de
Queirós, acredito que a sua participação nas conferências pode sugerir algo a respeito
dos seus posicionamentos políticos e isso, por sua vez, pode nos ajudar a pensar o
monarquismo de Eduardo Prado.
O mesmo João Medina aponta a desconfiança que Antero de Quental e Eça de
Queirós tinham em relação às propostas dos republicanos positivistas portugueses. A
interpretação do autor parece ser comprovada pelo próprio Eça de Queirós, que em uma
carta enviada a Ramalho Ortigão em 1878 disse que:
A república, em verdade, feita pelos partidos constitucionais dissidentes, e refeita
depois pelos partidos jacobinos, que tendo vivido fora do poder e do seu
maquinismo, a tomam como uma carreira, seria em Portugal uma balbúrdia
417
sanguinolenta .

De forma muito semelhante àquela que caracterizaria dez anos mais tarde o
antirrepublicanismo de Eduardo Prado, Eça de Queirós associou o regime republicano à
violência e à ―balbúrdia sanguinolenta‖, para usar os termos do próprio autor. Não
quero com isso dizer que o antirrepublicanismo de Eduardo Prado se explica apenas em
virtude das influências dos amigos portugueses, notadamente de Eça de Queirós. A
noção de ―influência‖ daria à minha análise uma dimensão que não me agrada. Prefiro
falar em ―afinidades eletivas‖, para utilizar uma noção cara a Michel Löwi, para quem a
interlocução letrada não deve ser pensada a partir da ideia de ―troca de influências‖,
pois o termo simplificaria uma experiência formativa que é muito mais complexa. Por
isso, o autor fala em ―afinidades eletivas‖, que, mais do que a noção de ―influência‖,
―implica uma relação bem mais ativa e uma relação recìproca, e seletiva, que pode
chegar à fusão‖418. É exatamente essa interação recíproca que percebo na

416
MEDINA, João. A Geração de 70: uma geração revolucionária e europeísta. Instituto de Cultura e
Estudos Sociais: Cascais, 1999. p.23.
417
QUEIRÓS, Eça. Obras completas. Edição do Centenário, Porto, Lello & Irmãos Editores, 1947. p.43.
418
LÖWY, Michel. Redenção e Utopia: O Judaísmo Libertário na Europa Central (Um Estudo de
Afinidade Eletiva). São Paulo, Companhia das Letras, 1989. p. 75.

204
documentação, quando, por exemplo, Eça de Queirós atribui o seu reaportugesamento
ao ―amor do bom Prado pelas tradições‖ e o nosso personagem direciona ao exército
golpista a mesma crítica antibacharelesca que o escritor português havia formulado
quando de sua última viagem ao Brasil. Sendo assim, eu acredito que as críticas
políticas de Eça de Queirós, com as quais Prado travou contato na revista ―As Farpas‖ e
pessoalmente, quando de sua estadia na Europa, foram um dos elementos constitutivos
do repertório político que o nosso autor mobilizou na ocasião dos seus ataques à
República brasileira.
As ―conferências do cassino‖ não foram o único desdobramento da ―questão
419
coimbrã‖. No mesmo ano de 1871 surgia a revista ―As Farpas‖ , que foi fruto do
empreendimento comum de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, os dois principais
interlocutores portugueses de Eduardo Prado. Em maio de 1871, vinha a público o
primeiro número da revista, que circulou até 1882. Rapidamente, o periódico português
ganhou grande repercussão e foi em parte responsável pela fama de Eça de Queirós e
Ramalho Ortigão no Brasil420. Os textos publicados na ―As Farpas‖ suscitavam enorme
discussão desse nosso lado do oceano Atlântico, tanto que, em 1880, um jovem cronista
paulista dizia que
Chegou ontem em São Paulo uma nova edição da revista portuguesa ―As
Farpas‖, que é dirigida pelo sr Ramalho Ortigão. A revista traz nas suas páginas

419
É bastante curiosa a história da criação desse periódico. No começo de 1870, Eça de Queirós voltou
para Lisboa depois de uma temporada em Évora, tendo, nesse momento, retomado seus contados com
Ramalho Ortigão. Ao examinar os relatos dos dois escritores, A. Campos Matos, biógrafo de Eça de
Queirós, diz que em uma mesa de bar, os dois resolveram pregar uma peça no público leitor português.
Então, eles enviaram para o jornal ―Diário de Notìcias‖, que era um dos mais lidos na capital portuguesa,
relatos fictícios de casos de assassinato. Como o editor do jornal gostou da ideia, o periódico passou a
publicar semanalmente cartas anônimas com o tìtulo ―Mistério da Estrada de Cintra‖ que falavam sobre
―crimes horrorosos‖ cometidos em Portugal. Nas palavras do biógrafo: ―O empreendimento dos escritores
tinha como objetivo fazer uma impiedosa crítica aos feuilletons, novelos fantasiosas e açucaradas que
atravancavam os jornais e eram consumidas por um público pouco exigente. Para tanto, eles engendraram
um projeto com uma natureza bem original: fizeram um uso meta linguístico da mídia impressa,
transformando a forma que reporta o fato (o jornal noticioso) no suporte para o texto ficcional derrisório
(a paródia), cuja pretensão era desmascarar a ficção, que não é literatura (a novela romanesca)‖ p. 98. O
sucesso do ―Mistério da Estrada de Cintra‖ levou, ainda segundo o biógrafo, os dois amigos a decidirem
prolongar a parceria intelectual e fundar uma revista de crítica de costumes com viés humorístico. Nascia
assim ―As Farpas‖. Ver MATOS, A. Campos. Eça de Queiroz: uma biografia. Campinas: Ed.
Unicamp, 2014.
420
A revista ―As Farpas‖ teve grande circulação no Brasil, sendo bastante lida, principalmente, pelo
estudantes de direito das faculdades de São Paulo e Recife. Segundo Paulo Cavalcanti, que é autor de um
estudo sobre a recepção do periódico português no Brasil, ―a revista ―As Farpas‖ provocou grande
repercussão no meio acadêmico brasileiro, principalmente entre os estudantes de direito. O estilo satírico
que caracterizou a publicação dirigida por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão inspirava os jovens
acadêmicos, que não tardaram em criar periódicos com proposta semelhante‖(p.34). Ver CAVALCANTI,
Paulo. Eça de Queirós agitador no Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1966.

205
os mais ácidos e críticos comentários dos costumes lusitanos. A leitura da revista
421
muito inspira a mocidade paulista .

O cronista, é claro, é Eduardo Prado, que na época cursava o quarto ano da


faculdade de direito. A breve menção que o nosso autor fez à revista portuguesa aparece
um tanto descontextualizado nas suas ―Crônicas da Assembleia‖. Na época, Eça de
Queirós não estava mais na direção da revista e, por isso, não foi citado por Eduardo
Prado422. O nosso autor não chegou a comentar nenhum dos textos, mas parece que ele
era leitor do periódico, que possuía um perfil editorial bem parecido com aquele que
caracterizaria o jornal estudantil ―A Comédia‖, que analisei no último capìtulo.
Nasce hoje ―As Farpas‖ sem que saibamos ao certo se cedo perecerá ou se terá a
oportunidade de viver a maturidade. Sem ter arranjos polìticos, ―As Farpas‖
vieram apenas para fazer galhofa de nós mesmos. Fazer rir é o mais nobre
423
objetivo da revista que ora apresentamos ao público .

Sem ter cor polìtica definida, a ―Comédia‖ pretende fazer do riso a mais violenta
arma. Tem-se dito que São Paulo anda muito acabrunhado e quase não sorri. Nós
mostraremos que ao menos a mocidade da acadêmica ainda consegue rir e fazer
424
rir .

Nenhum dos dois textos está assinado, sendo a autoria remetida à ―direção‖, no
caso de ―As Farpas‖ e ao ―Corpo Editorial‖ no ―A Comédia‖. Não encontrei nas páginas
do jornal brasileiro nenhuma referência ao periódico português, mas ainda assim as
semelhanças parecem evidentes425. Nos seus respectivos textos de inauguração, ambas
as publicações se declararam afastadas dos conflitos políticos e firmaram compromisso
com o humor de costumes. A promessa não foi comprida por nenhuma das revistas, que,
ao longo das suas edições, abordaram, amplamente, assuntos ligados às questões
polìticas de seus paìses, mostrando certa inspiração republicana, no caso da ―A
Comédia‖, e liberal monarquista, no caso da ―As Farpas‖.
Foi bem diferente a atuação de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão na ―questão
coimbrã‖. Segundo João Medina, nenhum dos dois se envolveu diretamente nas
vigorosas polêmicas que contrapuseram os jovens literários ao grupo liderado por
Castilho. Porém, ainda de acordo com os estudos do crítico português, Eça de Queirós
421
PRADO, Eduardo. ―Correio Paulistano‖. 30 de novembro de 1880.
422
De acordo com A. Campos Matos, a principal motivação para o desligamento de Eça de Queiro da ―As
Farpas‖ foi a sua nomeação para o cargo de embaixador português em Havana. Segundo o autor, não há
indícios de que existissem problemas de relacionamento entre os dois escritores.
423
―As Farpas‖. 27 de julho de 1871, p. 97.
424
―A Comédia‖. 04 de março de 1881.
425
Brito Broca destaca a enorme repercussão da ―As Farpas‖ na Faculdade de Direito de São Paulo, onde
―os estudantes fundaram dezenas de jornais ao longo do século XIX, tendo destaque o pasquim satìrico
―A Comédia‖, que foi claramente inspirado na revista portuguesa‖. Ver BROCA, Brito. A vida literária
no Brasil. São Paulo: José Olímpio, 1966. p. 49.

206
se inclinou mais para os ―jovens coimbrãos‖ e Ramalho Ortigão tentou manter certa
426
posição de imparcialidade . As diferenças permaneceram naquilo que se refere à
participação dos escritores nas ―conferências do cassino‖. Enquanto Ramalho Ortigão
sequer compareceu ao Cassino Lisboense, Eça de Queirós proferiu, em 12 de junho
1871, a conferência ―Literatura Nova ou Realismo como nova expressão de arte‖, que
foi a quarta do ciclo. Para João Medina,
É também muito provável que a sua ausência [de Ramalho Ortigão] nas
Conferências do Cassino se dava ao fato de que para maio – o mesmo mês destas
conferências – estava programado o lançamento do primeiro número de ―As
Farpas‖. Tantos deveriam ser os compromissos e afazeres – a ele que era ao
mesmo tempo diretor, editor e um dos dois redatores daquela publicação – que
427
nem mesmo era capaz de por em dia as correspondências .

É provável que se o governo português não tivesse proibido a continuidade das


conferências428, em algum momento Ramalho Ortigão teria tomado parte dos encontros,
quem sabe até mesmo realizado uma conferência. Jamais saberemos. Voltando à ―As
Farpas‖, que tem uma importância especial para a argumentação que desenvolvo neste
capítulo. A história da revista pode ser dividida em duas fases: a primeira compreende o
lançamento, em junho de 1871, e a décima quinta edição, que foi publicada em outubro
de 1872. Nesse momento, o periódico foi dirigido por Eça de Queirós e Ramalho
Ortigão. Já a segunda fase, que vai de outubro de 1872 até agosto de 1882, a revista foi
comandada apenas por Ramalho Ortigão429. Estou interessado, especialmente, na
interlocução de Prado com os escritores portugueses. Já examinei os vínculos de
Eduardo Prado com Eça de Queirós. Faço agora o mesmo para Ramalho Ortigão.

426
O historiador português João Medina questiona o sucesso da pretensão de Ramalho Ortigão à
neutralidade na ―questão coimbrã‖. O autor conta que o escritor português interviu na discussão em 1867,
quando publicou o seu ―A Literatura de Hoje‖, onde tentou se manter imparcial nos conflitos travados
entre os jovens de Coimbra e o círculo de Castilho. Porém, Castilho acredita que Ramalho Ortigão
desapontou ambos os grupos, o que fez com que a sua inserção no setentismo português tenha sido
bastante peculiar. Ver João Medina. A Geração de 70: uma geração revolucionária e eurpeísta. Instituto
de Cultura e Estudos Sociais: Cascais, 1999.
427
Idem. p.78
428
Quando Salomão Saraaga se preparava para proferir a conferência ―História Crìtica de Jesus‖, o
governo português proibiu a continuidade dos encontros por julgá-los subversivos. No mesmo dia em que
a portaria da proibição foi publicada, o que aconteceu em 26 de junho de 1871, Antero de Quental redigiu
um protesto onde acusava as autoridades portuguesas de estarem cerceando a ―o instinto de mudanças
culturais que paira sobre todo o povo português‖. Ver. MATOS, A. Campos (org. e coordenação),
Dicionário de Eça de Queirós, Lisboa, Ed. Caminho, 1988, s/ed., pág. 129.
429
Para João Medina, ―Assim que se viu sozinho à frente da publicação, Ramalho foi gradualmente
substituindo a jocosidade irônica, mais apropriada a um folhetim, pela austeridade aparatosa, própria dos
artigos de fundo e, pouco a pouco, encaminhando a publicação – como já havia demonstrado interesse –
para a esfera da pedagogia, no firme propósito de ensinar alguns princípios e, ao mesmo tempo, dar aos
folhetos umas pinceladas de verniz cientìfico‖ p. 65.

207
A documentação mostra que Eduardo Prado não cultivou uma relação de
amizade pessoal tão intensa com Ramalho Ortigão quanto aquela que teve com Eça de
Queirós. Porém, os vínculos intelectuais entre o nosso autor e Ramalho Ortigão foram
bem estreitos, muito em virtude da associação do autor português com a imprensa
brasileira430. Ramalho Ortigão escreveu a coluna ―Cartas Portuguesas‖ para o jornal
―Gazeta de Notìcias‖ entre 1877 e 1915, sem contar o perìodo de três meses que passou
no Brasil no segundo semestre de 1887. Eduardo Prado foi um grande entusiasta e
divulgador desses textos, sendo também, ao longo da década de 1880, o principal
interlocutor brasileiro do escritor português, que utilizava o espaço do jornal carioca
para trazer as notícias dos acontecimentos europeus aos leitores brasileiros. Uma análise
comparada das ―Cartas Portuguesas‖ com as correspondências trocadas entre os dois
escritores mostra semelhanças naquilo que se refere à crítica social e política.
As ―Cartas Portuguesas‖ eram publicadas sob a forma de folhetins e fizeram
muito sucesso no Brasil, o que tornou Ramalho Ortigão uma espécie de celebridade
oitocentista431. De acordo com o crítico brasileiro João Carlos Zan, que é autor de um
estudo sobre os textos que Ramalho Ortigão escreveu para o jornal ―A Gazeta de
Notìcias‖,
De maneira geral, todos os campos do conhecimento interessavam a Ramalho
Ortigão, notadamente aqueles que mais diretamente estivessem relacionados com
o ser humano. Sobre todos, porém, procurava se informar para levar as
informações adquiridas ao conhecimento do leitor. Ia dos costumes sociais, das
questões religiosas, dos aspectos da instrução à adubação química ou à doença da
videira e, mesmo não sendo especialista, procurava embasar a sua argumentação
432
em fontes fidedignas, selecionadas por eles ou sugeridas por outros .

O autor destaca as pretensões pedagógicas das contribuições de Ramalho


Ortigão ao jornal brasileiro, comportamento que era muito estimado por Prado. Em
carta enviada a Eça de Queirós em janeiro de 1888, o nosso autor diz

430
Tal como Ramalho Ortigão, Eça de Queirós também frequentou as páginas na imprensa brasileira.
Entre as contribuições, eu destaco as ―Crônicas‖, que foram publicadas no jornal ―Gazeta de Notìcias‖
entre 1892 e 1897. Sobre as contribuições de Eça de Queirós na imprensa brasileira, eu recomendo a
leitura de SOUZA, José Carlos Siqueira. Eça Ensaísta: estudo sobre o trabalho jornalístico de Eça de
Queirós para a Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro, ao final do século XIX. Dissertação de Mestrado:
São Paulo: USP, 2007.
431
Em um estudo específico sobre as contribuições de Ramalho Ortigão à imprensa brasileira, João
Carlos Zan afirma que muitos polìticos da ―nova geração‖ eram leitores frequentes das ―Cartas
Portuguesas‖, como, por exemplo, Rodolfo Dantas e Rui Barbosa. Ver ZAN, João Carlos. Ramalho
Ortigão e o Brasil. São Paulo: Tese de Doutorado, USP, 2009.
432
ZAN, João Carlos. Ramalho Ortigão e o Brasil. São Paulo: Tese de Doutorado, USP, 2009. p. 16.

208
Muito importante são ―As Cartas Portuguesas‖ para o Brasil; em um paìs onde as
letras são tão pouco cultivadas e o analfabetismo impera, o nosso amigo
Ramalho contribui para a elevação geral do espírito nacional, mostrando-se uma
433
inteligência comprometida com o progresso inerente ao nosso século .

Outra vez, nós temos, aqui, a menção ao comprometimento do homem das letras
com a ação pública, nas palavras do próprio Eduardo Prado ―com o progresso inerente
ao nosso século‖. Já demonstrei o quanto esse tipo de comportamento intelectual era
valorizado pelo nosso autor. Daí, acredito, resulta a sua grande atração pelos textos de
Ramalho Ortigão. Havia entre os dois a mesma concepção de ―função social‖ da
inteligência, algo que era amplamente compartilhado na época. As relações de Eduardo
Prado com o cientificismo moderno não foram homogêneas e envolveram desde o
elogio ao progresso científico, como podemos perceber nos escritos nos quais o nosso
autor demonstrou grande entusiasmo com os textos de Ramalho Ortigão, e até as
críticas ao racionalismo moderno, como fica claro nas críticas que Prado vez a Voltaire
e ao positivismo de Comte, o que fez com que ele defendesse um tipo de conhecimento
mais empírico e menos dado às teorizações. Essas críticas são examinadas com mais
cuidado no próximo capítulo, onde me debruço sobre os desdobramentos
epistemológicos do conservadorismo de Eduardo Prado.
No já citado estudo, João Zan afirma que a maioria dos textos que Ramalho
Ortigão publicou no ―A Gazeta de Notìcias‖ pode ser considerada pertencente ao gênero
―Literatura de Viagem‖, o que não passou despercebido por Eduardo Prado, que
publicou na mesma ―Gazeta de Notìcias‖ os seus próprios relatos de viagens. Em uma
carta que deveria ter sido enviada em fevereiro de 1882, Prado faz uma referência clara
à coluna de Ramalho Ortigão. Não consegui identificar no texto o nome do destinatário,
mas tudo levar a crer que era o editor do jornal carioca. ―As primeiras cartas serão sobre
os vizinhos hispânicos; acho por bem manter o mesmo formato epistolar que já foi
consagrado por Ramalho e é tão familiar aos leitores da gazeta‖434. Parece que a carta
seria a última de uma série de correspondências destinadas a acertar os últimos detalhes
do contrato de trabalho que o nosso autor firmaria com o periódico. Infelizmente, eu não
encontrei as correspondências anteriores.
A referência é breve e sem maiores desdobramentos, mas confirma que o jovem
Eduardo Prado era leitor dos textos de Ramalho Ortigão, chegando mesmo a organizar

433
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Porto Lello & Irmão, 1963. p. 142.
434
Coleção ―Jorge Pacheco Chaves‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Gaveta 03.
Doc. 07.

209
os seus relatos de viagem de forma semelhante àquela que foi posta em prática pelo
escritor português. De fato, as semelhanças entre as duas literaturas de viagem chegou
às páginas do jornal carioca, sendo, inclusive, destacadas pela editoração do periódico
na ocasião da estreia da coluna de Eduardo Prado: ―Iniciamos hoje os relatos de viagens
do jovem bacharel Eduardo Prado, que nos brindará com as suas impressões da mesma
forma que o já consagrado Ramalho Ortigão faz há muitos anos‖435. O jovem bacharel
brasileiro e o consagrado escritor português se encontraram nas páginas do mesmo
jornal, onde visitaram o mesmo gênero textual. Eu não encontrei nenhum documento
que sugerisse as impressões de Ramalho Ortigão a respeito dos textos de Eduardo
Prado. Também não fica claro na documentação se já nessa época os dois autores
tinham algum tipo de interlocução.
A primeira das ―Cartas Portuguesas‖ foi publicada em julho de 1877, alguns
meses antes da ascensão do Ministério chefiado por Sinimbu ao poder e no mesmo
momento em que surgia uma nova geração de lideranças liberais na política brasileira,
tendo destaque nomes como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Afonso Pena e Souza
Dantas. Junto com o aparecimento dessa nova geração, é possível observar o
fortalecimento das propostas de cunho mais democrático, como a Lei da Eleição Direta,
que foi aprovada em 09 de janeiro de 1881. Ao analisar a correspondência que Ramalho
Ortigão trocou com a redação do ―Gazeta de Notìcias‖, João Carlos Zan afirma que o
autor português ―muito raramente tratou das coisas do Brasil, mas isso não quer dizer
que eles as desconhecesse e, senso assim, não é de se duvidar que tenha acompanhado
todo o trâmite do projeto desta lei no congresso brasileiro‖436. Realmente, em nenhum
momento o escritor português se referiu diretamente aos debates a respeito da
implementação da eleição direta no Brasil. Contudo, na carta publicada em 19 de
fevereiro de 1883, Ramalho Ortigão comentou a atuação de Manuel Arriaga na Câmara
portuguesa. Após ironizar os equívocos ortográficos do parlamentar eleito pelo distrito
de Funchal, o autor critica as eleições gerais portuguesas.
Na grande maioria dos círculos eleitorais do país, continentes e ilhas, todo eleitor
que não vende e simplesmente e châmamente o seu voto por dinheiro, vende-o
por serviços, por bondades e por favores pessoais ao pároco, ao escrivão da
fazenda que cobra a décima ou ao agente de recrutamento, que manda prender
437
como soldado .

435
―Gazeta de Notìcias‖. 13 de março de 1882.
436
ZAN, João Carlos. Ramalho Ortigão e o Brasil. São Paulo: Tese de Doutorado, USP, 2009. p. 73.
437
ORTIGÃO, Ramalho. ―Gazeta de Notìcias‖. 19 de fevereiro de 1883.

210
O texto demonstra a descrença de Ramalho Ortigão com a capacidade do regime
democrático em resolver os problemas sociais. Para ele, o eleitor ia às urnas motivado
por interesses pessoais e imediatos e não por uma ideologia comprometida com a
438
coletividade . Não identifiquei nenhum texto onde Eduardo Prado comentasse
especificamente a legislação eleitoral aprovada. Porém, em um artigo publicado anos
mais tarde, em 1896, no seu jornal ―Comércio de São Paulo‖, o nosso autor tratou do
assunto. Eu já examinei esse texto no quarto capítulo desta tese, quando demonstrei que
Prado conclamou os monarquistas às urnas, criticando a ideia da abstenção, que chegou
a ser veiculada por algumas lideranças no grupo. Em meio a essa discussão, ele também
formulou um breve comentário a respeito das eleições: ―a República se diz uma
democracia porque realiza sazonalmente as eleições, como se o fato do eleitor
comparecer às urnas garantisse a dignidade do voto‖ 439.
Diferente de Ramalho Ortigão, Eduardo Prado não chega a criticar, diretamente,
a democracia eletiva, mas diz que o comparecimento às urnas, por si só, não garante o
bom funcionamento do sistema democrático de governo. Talvez ele estivesse querendo
dizer que a democracia somente seria eficiente caso o eleitorado fosse capacitado ao
exercício do voto, o que demandaria, sobretudo, o investimento na educação da
população. Ainda que a colocação dos autores seja um tanto diferente, há a mesma
desconfiança em relação ao real poder decisório da opinião popular. É claro que a
simples recorrência dessa desconfiança em um e em outro não significa que os autores
tenha deliberadamente conversado sobre isso. Ainda assim, acredito que a recorrência
sinaliza a existência de um terreno comum entre eles, o que sugere a proximidade
interpretativa do nosso autor com seus interlocutores portugueses. Um terreno comum
que pode ser localizado, acredito, dentro dos limites da ―ideologia conservadora‖, para
usar as palavras de Karl Mannheim, estudioso que, como o leitor já percebeu, é
fundamental para esta tese. Digo isso porque os principais representantes do
pensamento conservador moderno também formularam críticas semelhantes à
democracia. Edmund Burke, por exemplo, que, como vimos na introdução desta tese,
era um autor bastante presente na biblioteca de Eduardo Prado, formulou um raciocínio
438
Para João Carlos Zan, as crìticas de Ramalho Ortigão à democracia não são uma novidade das ―Cartas
Portuguesas‖, mas sim uma caracterìstica do autor desde a década de 1860, quando ele trabalhava em
Lisboa como correspondente do jornal ―O Progresso do Porto‖, ―ocasião em que passou, por obrigação
profissional, as sessões da Câmara dos Deputados e, consequentemente, acompanhar de perto as questões
políticas do seu país. Desde aquela época, passou a tratar a questão, mantendo-se fiel a seu ponto de vista
que era o mesmo de Max Nordeau, para quem o resultado das urnas não poderia representar outra coisa
senão a ―opinião dos medìocres‖‖ (p. 73).
439
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 31 de outubro de 1896.

211
semelhante ao dizer que ―nenhum movimento ilustra mais claramente do que o
movimento supostamente democrático a maneira como a vontade de minorias altamente
organizadas e decididas pode prevalecer sobre a vontade das massas inertes,
440
desorganizadas e despreparadas‖ . Acredito, então, que ao longo da sua trajetória,
Eduardo Prado circulou por repertórios diversos, sendo a plasticidade da ideologia
conservadora a sua principal inspiração, exatamente aquilo que lhe permitiu combinar
elementos das tradições antiga e moderna do pensamento político ocidental.
Em novembro de 1887, Ramalho Ortigão chegou ao Brasil, onde permaneceria
por três meses. A agitação que a visita do escritor português provocou no Rio de Janeiro
e em São Paulo é um indício do prestígio que ele tinha no meio intelectual brasileiro. Na
ocasião, Eduardo Prado estava na Europa e de lá atuou como um dos principais
articuladores do roteiro seguido pelo amigo português. Portanto, examinar com algum
cuidado a visita de Ramalho Ortigão ao Brasil permite a visualização do momento no
qual o setentista português mais interagiu com Eduardo Prado. A correspondência é
vasta e indica o quanto o nosso autor estava ambientado entre os ―Vencidos na Vida‖.
Ramalho Ortigão chegou ao Rio de Janeiro em 07 de agosto de 1887. A viagem
já vinha sido planejada há algum tempo, o que justificou o gracejo que Eça de Queirós,
na carta que lhe escreveu um mês antes: ―quanto o amigo vai finalmente pegar uma
caravela e redescobrir o Brasil?‖441. Na resposta, Ramalho Ortigão diz que ―no mês que
chega; Prado já preparou tudo‖ 442. Diferente do que sugere a curta frase, Eduardo Prado
não foi apenas o principal organizador da viagem, foi, sobretudo, o grande entusiasta,
alguém que estava profundamente interessado em ouvir o que Ramalho Ortigão tinha a
dizer sobre o Brasil. Eça de Queirós testemunhou a expectativa com a qual o nosso
autor aguardava os primeiros relatos da viagem de Ramalho Ortigão. Em carta enviada
ao amigo português, o autor de ―Os Maias‖ escreve ―Alguns dias que Prado não fala em
outra coisa que não a sua bendita viagem ao Brasil. Não tarde a escrever as suas
primeiras notas sobre os costumes locais‖443.
Foram bastante calorosas as festividades que alta sociedade brasileira organizou
para receber Ramalho Ortigão. Assim que o navio francês que trazia o escritor
português entrou na Baia de Guanabara, várias embarcações foram ao seu encontro;

440
Citado em NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 67.
441
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Porto Lello & Irmão, 1963. p. 131.
442
Idem. p. 132.
443
Idem. p. 133.

212
políticos, jornalistas e empresários queriam cumprimentar o tão estimado autor das
―Cartas Portuguesas‖. Logo depois de obedecidos todos os protocolos polìticos e
diplomáticos, Ramalho Ortigão foi para o Cosme Velho, onde ficou hospedado da casa
do seu irmão, o Comendador Joaquim da Costa, que era um abastado comerciante na
praça do Rio de Janeiro. Coube ao jovem poeta Luís Murat, membro do chamado grupo
dos ―boêmios‖, que era constituìdo também por nomes como Olavo Bilac e Raul
Pompeia, a incumbência de escrever a crônica sobre a chegada de Ramalho Ortigão, que
foi publicada no jornal ―Gazeta de Notìcias‖ em 13 de agosto de 1887. No texto, Murat
se diz ―na espera para ler o livro que resultará dessa viagem. Como bom observador do
temperamento e dos costumes dos povos, o grande Ramalho logo irá escrever o livro
―Brasil‖, que será tão importante quando o já conhecido ―Holanda‖444. Ao que parece,
Eduardo Prado não era o único interessado em saber o que Ramalho Ortigão tinha a
dizer sobre o Brasil.
Por motivos que jamais ficaram claros, o tão esperado livro não veio a público e
Ramalho Ortigão pouco escreveu sobre a sua viagem ao Brasil. Porém, ele discursou na
solenidade de inauguração do Real Gabinete Português de Leitura. Na sua fala, o
escritor comentou a importância da colonização portuguesa para a construção da
civilização brasileira. Temos, aqui, mais um elemento fundamental para o
conservadorismo de Eduardo Prado.
O simples aspecto de sua capital, os seus monumentos, os seus antigos bairros,
algumas de suas formas de construção, os seus costumes domésticos, as suas
tendências de literatura e de arte, a profunda sensibilidade meiga dos seus poetas,
tudo, absolutamente tudo, faz ver obra civilizacional que Portugal fez nos
445
trópicos .

Por se tratar de um discurso, Ramalho Ortigão não se aprofundou na discussão e,


até onde sei, ele não revisitou o tema posteriormente. Quem o faria de forma bastante
cuidadosa seria Eduardo Prado, que a partir do final da década de 1880 se tornaria um
dos principais estudiosos da história da colonização portuguesa no Brasil, chegando a
ser, nas palavras de Capistrano de Abreu, ―um dos primeiros especialistas no assunto‖
446
. Não estou querendo dizer que o interesse de Eduardo Prado pela colonização
portuguesa, em especial pela Companhia de Jesus, tenha sido despertado por suas
conversas com Ramalho Ortigão. A documentação não me permite afirmar isso.
Também não é possível dizer que essas conversas não aconteceram e que não foram

444
―Gazeta de Notìcias‖. 13 de agosto de 1887.
445
―Gazeta de Notìcias‖. 13 de setembro de 1887.
446
ABREU, Capistrano. Ensaios e estudos (crítica e história). Brasília: Livraria Briguiet, 1932. p. 73.

213
relevantes para a definição do perfil historiográfico de Eduardo Prado. O fato é que
Ramalho Ortigão sugeriu uma discussão e ela foi retomada pelo nosso autor. Não seria
um absurdo acreditar que os seus contatos com a fina flor da intelectualidade portuguesa
tenham colaborado para alimentar o seu interesse pela ação lusitana nos trópicos.
Depois de alguns dias, o cronista português foi visitar São Paulo, onde ficou
hospedado na casa de Veridiana Prado. A velha matriarca deixou a melhor impressão
possível no autor português, o que fica claro na correspondência que ele trocou com o
nosso autor. Eu ainda teria muito a dizer sobre o grupo dos ―vencidos na vida‖,
destacando, por exemplo, a sua heterogeneidade e os seus conflitos internos, assim
como a sua auto proclamada frustração com os projetos dos tempos da ―questão
coimbrã‖ e das ―conferências do cassino‖. Porém, fazê-lo implicaria no risco de perder
a linha geral que conduz a minha argumentação neste capítulo, que é justamente a
interlocução de Eduardo Prado com outros letrados, o que é fundamental para que a
noção de ―República das Letras‖ tenha algum sentido.
Como estou tentando mostrar desde o início, Eduardo Prado começou a
frequentar o cìrculo dos ―vencidos‖ em meados da década de 1880, quando os principais
nomes do grupo já estavam consagrados na cena literária portuguesa. Esses escritores,
especialmente Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, estabeleceram um intenso vínculo
afetivo e intelectual com o nosso autor, o que fez com que ele, de alguma forma,
entrasse em contato com ideias caras a esses homens, como, por exemplo, o
antibacharelismo de Eça de Queirós e o elogio à colonização portuguesa na América de
Ramalho Ortigão. A documentação não permite mensurar até que ponto Prado se deixou
sensibilizar por essas ideias, mas a recorrência desses temas nos seus escritos
posteriores sugere uma área semântica comum. Por outro lado, e isso fica bem claro na
documentação, também os vencidos foram contagiados pelo ―amor de Prado ao
passado‖, como Eça de Queirós costumava falar.
Após idas e vindas ao Brasil em virtude dos seus conflitos com a ditadura
militar, Eduardo Prado retornou definitivamente ao país em 1894, onde fixou residência
e, finalmente, para a alegria de sua mãe, se casou com sua prima Carolina447. A partir de
então, ele não seria mais um membro tão assìduo do grupo dos ―vencidos‖. O autor
passaria a frequentar outra República das Letras, uma localizada na sua terra natal, onde

447
De acordo com Cândido da Mota Filho, ainda na adolescência, Eduardo Prado ―andou de namoros
com sua prima, Carolina‖. Os casamentos endogâmicos eram comuns na famìlia Prado, funcionavam
como uma espécie de estratégia para a preservação do patrimônio. Por isso, Veridiana Prado insistiu no
casamento do filho, que protelou a subida ao altar por mais de dez anos.

214
se tornou membro das duas principais instâncias de consagração intelectual da época: a
Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Examinar
a atuação de Eduardo Prado nos quadros desses dois grêmios pode ser uma importante
preparação para os temas que enfrento na próxima unidade.
Apesar de terem objetivos e trajetórias distintos, existe uma semelhança
importante entre o IHGB e a ABL: ambos adotaram o tom da moderação política nos
primeiros anos de vida do regime republicano. É certo que o fizeram por motivações
distintas. Enquanto o IHGB tentava se reaproximar do novo governo, amenizando seus
vínculos com o regime político decaído, visando evitar perseguições448, a ABL desejava
ser a agremiação intelectual oficial da República, contando, por isso, com a proteção do
Estado brasileiro449. Eduardo Prado foi membro fundador da ABL e sócio efetivo do
IHGB, sendo que o seu comportamento político, como já sabemos, não combinava com
o tom moderado adotado pelas duas agremiações. Se era assim, por que o autor foi
convidado para compor os quadros dessas associações? Como ele negociou com os
limites de manifestação política que foram impostos pelas direções do IHGB e da ABL?
Essa moderação política funcionou mesmo na prática?
6.2 - Eduardo Prado na Academia Brasileira de Letras
A bibliografia especializada é unânime em situar nas reuniões literárias
realizadas na sede da ―Revista Brasileira‖ o inìcio das articulações que mais tarde
resultariam na fundação da Academia Brasileira de Letras450. A ideia de criar uma

448
O historiador brasileiro Manoel Luiz Salgado Guimarães é autor de um estudo voltado especialmente à
fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Mostrando como o IHGB esteve vinculado com o
Estado monárquico, o autor destaca a importância da historiografia produzida nessa agremiação para as
discussões a respeito da nacionalidade brasileira durante o século XIX. Para o autor, o apoio da
Monarquia ao IHGB se caracterizava, entre outras coisas, pelos constantes incentivos financeiros aos
esforços de pesquisem empreendidos pelos associados da agremiação e pelo cessão das dependências do
Palácio do Paço para a instalação do instituto. Ver GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia
e Nação no Brasil (1838-1857). Rio de Janeiro: ED. UERJ, 2011.
449
A ideia de que o Estado deve proteger as agremiações literárias é constitutiva da a cultura política
moderna, sendo o seu princípio fundamental a noção de que o progresso de uma nação depende
necessariamente do estágio de desenvolvimento de sua capacidade intelectual. No espaço luso-brasileiro,
essa percepção foi amplamente desenvolvida, como já vimos, por José Bonifácio de Andrada e Silva e
por nomes como Januário da Cunha Barbosa e Almeida Garret. Em um estudo dedicado à história
intelectual luso-brasileira nos primeiros anos do século XIX, o historiador brasileiro Valdei Lopes Araújo
destaca que naquilo que se refere especificamente à literatura, a demanda de proteção por parte do poder
público era ainda mais destaca pelos letrados da época. Nas palavras do autor, ―A lìngua era uma
dimensão que preexistia ao Estado, mas a literatura, enquanto possibilidade dessa língua, só poderia
existir se houvesse antes uma fonte de autoridade capaz de sustentar e incentivar a sua existência. Esse
entendimento traria consequências profundas para o contexto luso-brasileiro.‖ (op. cit, p. 114).
450
A fundação e o funcionamento da Academia Brasileira de Letras já foi objeto de diversos estudos, que
exploraram ora a sua importância para a construção do campo literário brasileiro, ora o seu papel de
instância de consagração literária no Brasil e ora os seus vínculos com o mundo da política. Nesse
sentido, eu destaco três desses estudos, com os quais dialogo de forma mais intensa ao longo deste

215
academia de letras responsável pelo cuidado da língua portuguesa e pela
profissionalização dos escritores não era nova. Desde a década de 1880, um grupo de
escritores tentava fundar uma organização desse tipo. É certo que o IHGB já existia há
muito tempo, mas a sua ênfase quase que exclusiva nos estudos históricos não era o
suficiente para cultivar no Brasil uma cultura literária que desse maior estabilidade
profissional aos escritores. De acordo com a historiadora Alessandra Faar,
No final dos anos 1880 e início dos anos 1890, diversos literatos engajados na
nascente profissão das letras almejavam estabelecer um novo padrão de
sociabilidade literária. Os encontros casuais, as módicas remunerações, os
grupos dispersos e descompromissados já não lhes bastavam: queriam
reconhecimento social que os diferenciasse dos outros setores da sociedade
intelectual451.

A autora destaca a fundação do Grêmio das Letras e Artes, em 1887, e a


Sociedades dos Homens das Letras, em 1890. Porém, nenhuma dessas duas
organizações conseguiu se consolidar como representante dos interesses corporativos
dos escritores452. Por isso, Lúcio de Mendonça, José Veríssimo e Valentin Magalhães
(que anos antes tinha dividido com Eduardo Prado a editoração do jornal estudantil ―A
Comédia‖) retomaram, em meados de 1895, o projeto de criar uma instituição literária
incumbida de zelar pela língua portuguesa e pela cultura literária nacional. As conversas
começaram nos tradicionais cafés literários promovidos pela ―Revista Brasileira‖.
Definindo-se como uma revista de ciências, letras, artes, história , filosofia,
economia, política, sociologia, viagens e bibliografia, publicava
sistematicamente artigos de Nina Rodrigues, Silvio Romero, Araripe Jr, Joaquim
Nabuco, Coelho Neto, Almirante Jaceguai, Medeiros e Albuquerque, visconde
de Taunay, Inglês de Souza, Capistrano de Abreu, Domício da Gama, Graça

capítulo: BROCA, Brito. A Vida literária no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2004; FAR,
Alessandra El. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos
primeiros anos da República. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010; - RODRIGUES, João Paulo Coelho. A
dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Ed.
UNICAMP, 2011.
451
FAR, Alessandra El. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos
primeiros anos da República. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. p. 42.
452
Em 1887, foi fundada no Rio de Janeiro o Grêmio de Artes e Letras, que tinha o objetivo de
institucionalizar uma sociedade literária voltada para os interesses corporativos dos escritores brasileiros.
Nas palavras da historiadora Alessandra El Far, ―por ser uma das primeiras corporações do gênero, o
Grêmio teve de enfrentar não só a desconfiança por parte dos escritores, como também a inexperiência
dos seus membros numa associação ordenada por regras estabelecidas‖ p. 43. A autora também informa
que Machado de Assis fora convidado para presidir o Grêmio de Artes e Letras, tendo declinado do
convite com a alegação de que já pertencia à diretoria do Club Beethoven. Já a Sociedade dos Homens
das Letras foi criada em 1893 com propósitos mais definidos, como, por exemplo, conseguir que o
governo aprovasse uma lei regulatória dos direitos autorais. ―À diferença de uma classe de ―homens de
letras‖, seus sócios visariam especialmente a um amplo movimento de amparo aos escritores, fossem eles
brasileiros ou estrangeiros. Assim, propunham também um fundo social de ajuda em casos extremos e
uma solidariedades mútua com o objetivo de salvaguardar a profissão literária no paìs‖ (p. 43). Também
essa associação, em virtude da falta de apoio do poder pública e pela dispersão dos seus membros, não
teve vida longa.

216
Aranha, Filinto de Almeida, Lúcio de Mendonça, Machado de Assis, Magalhães
de Azeredo, entre outros. À diferença dos jornais, que davam preferência aos
textos curtos desses autores, a Revista abrigava em suas páginas longos ensaios e
estudos específicos453.

Eduardo Prado não chegou a ter nenhum texto publicado na ―Revista Brasileira‖.
Entretanto, de acordo com o relato coevo de Graça Aranha, ele era uma das figuras mais
presentes nos encontros, o que justifica as suas explicações na carta enviada a Joaquim
Nabuco, da qual eu tirei a citação que serve como epígrafe a este capítulo. Em 1897, por
algum motivo, talvez pelo excesso de trabalho em virtude da direção do jornal
―Comércio de São Paulo‖, Eduardo Prado deixou de frequentar os encontros. Porém,
escrevendo em 1896, Graça Aranha diz:
Todas as tardes no Rio de Janeiro, antes que o sol transmonte, um grupo de
homem se reúne em uma pequena e modesta sala. É o five o’clock tea da Revista
Brasileira, refúgio suave, tranquilo da tormentosa vida fluminense. Há desordens
no parlamento? Há estado de sítio? Que importa! Recolhemo-nos àquele retiro e
reciprocamente nos infiltramos de fluidos intelectuais. Toda querela política fica
do lado de fora. Ali, coexistem pacificamente tanto os monarquistas como
Loreto, Taunay, Prado e Nabuco, como os republicados da envergadura de Lúcio
454
de Mendonça e ate mesmo socialistas como José Veríssimo . (Grifos Meus)

Já temos, aqui, o elemento fundamental que caracterizaria a Academia Brasileira


de Letras, que seria fundada em julho de 1897: a definição da interlocução letrada como
um espaço moderado e livre das paixões políticas que dominavam a instável e
conflituosa situação da República brasileira. Para historiadora Alessandra Faar, não é
exatamente contraditório o fato de monarquistas e republicanos conviverem
pacificamente na pequena sala que abrigava as reuniões dos escritores brasileiros. A
autora afirma que
no início do governo republicano, vários intelectuais descontentes com o novo
regime abandonaram o mundo da política. Monarquistas que não conseguiram
encontrar seu lugar na recente arquibancada política ou então republicanos
desiludidos com os caminhos adotados pelos primeiros presidentes começavam a
ver no trabalho literário um depósito mais seguro para suas expectativas. Assim,
as reuniões da Revista Brasileira pareciam ser a oportunidade ideal para esses
intelectuais esquecerem seus desenganos políticos e cotidianos. Lá deixavam-se
levar pela atmosfera sublime da palestra literária, que, ao contrário dos demais,
não trazia frustrações nem descontentamento 455.

A proposição da autora pode até estar correta para figuras como Joaquim
Nabuco e Visconde de Taunay, que relutaram em se engajar de forma mais ativa no
projeto da restauração monárquica. Porém, como já sabemos, não foi esse o caso de
453
Idem. p. 44.
454
―Revista Brasileira‖. Março de 1896. pp. 184-185.
455
FAR, Alessandra El. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos
primeiros anos da República. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. p. 47.

217
Eduardo Prado. Como pôde um dos mais viscerais e contundentes dos monarquistas ter
sido escolhido para ser um dos fundadores da academia de letras que pretendia ser o
grêmio letrado oficial da República e subvencionado pelo novo regime? Retorno a essa
questão ainda nesta seção.
As discussões relativas à fundação da ABL vieram a público em 1896, sendo
Lúcio de Mendonça e Valentim Magalhães os principais defensores da proposta. Em 05
de novembro desse ano, Lúcio de Mendonça utilizou as páginas da imprensa carioca
para justificar o apoio oficial do governo republicano ao projeto de fundação da
academia.
E há, de envolta, com o interesse da classe dos literatos, o próprio interesse da
República: é belo e útil que esta se mostre amiga dos bons espíritos e da mais
nobre das artes; e não é dos menores resultados, que se hão de colher do novo
instituto, o congraçamento das mais bem dotas inteligências nacionais numa obra
comum e desinteressada, numa cooperação que promoverá naturalmente o
apagamento e a suavização das vidas antinomias que a luta política abre,
456
aprofunda e venena .

O autor tenta convencer as autoridades de que a academia não era importante


apenas para a classe dos escritores, mas também para a legitimação do regime politico
republicano. Ele alega que se a República apoiasse financeira e institucionalmente a
academia, aconteceria a ―suavização‖ das mágoas resultantes dos conflitos polìticos. O
argumento parece não ter convencido os dirigentes republicanos e o apoio oficial não
veio, sendo a academia finalmente fundada como uma instituição privada em 20 de
julho de 1897, em uma das salas do Pedagogium, que era um prestigiado colégio
localizado na capital federal. Apesar de Lúcio de Mendonça ter sido o grande
articulador da criação do grêmio, Machado de Assis foi escolhido para assumir a
presidência da academia, o que se explica pela posição de notoriedade que o escritor
ocupava no cenário intelectual da época. Nas palavras de João Paulo Rodrigues, outro
autor que recentemente se debruçou sobre o tema, a cerimônia de inauguração foi

simples e sem pompa. Serviu mais como uma formalidade interna do que como
um evento para o público. Restringiu-se a três discursos: um discurso, feito por
Machado de Assis, uma ―memória histórica‖ sobre os movimentos pela fundação
daquele grêmio, por Rodrigo Otávio, e outro discurso inaugural, de autoria de
Joaquim Nabuco457.

456
MENDONÇA, Lúcio de. Primeiras notícias da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: ABL,
1997. p. 37.
457
RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia
Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Ed. UNICAMP, 2001. p. 34.

218
Ainda que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro fosse bem mais antigo
do que a ABL, a sua situação nos primeiros anos da República foi parecida com a da
jovem agremiação. Também o IHGB adotou o discurso da moderação política e tentou
se aproximar das novas instituições. Afinal, o instituto que nasceu e viveu sob a
proteção da Monarquia não desejava perder o patrocínio do Estado brasileiro. Já na
primeira reunião realizada depois da intervenção militar republicana, ficou clara a
disposição oficial daquela associação à conciliação com o novo regime. Sendo bastante
cuidadoso com as palavras, Norberto de Souza, então Presidente do instituto, destacou
que ―apesar dos últimos acontecimentos, o instituto tem clareza de que a gratidão ao
antigo monarca não nos conduz à oposição à ordem das coisas estabelecidas‖458, e, por
isso, pedia uma República livre que prezasse pelos serviços ali realizados. Mais do que
nunca, o antigo lema do instituto ―pacifica scientiae occupatio” se tornava bastante
pertinente, e, sobretudo, estratégico. Caberia ao IHGB, portanto, desenvolver uma
atividade científica útil e pacífica, o que demonstra que o instituto aceitou a República,
mas temia as represálias e perseguições.
A historiadora Ângela de Castro Gomes escreveu um importante estudo a
respeito das relações entre o IHGB e a República no final do século XIX. Para a autora,
após a abolição da escravidão e a proclamação da República,
o campo intelectual foi rearticulado em novas bases, mais afastadas dos
engajamentos políticos. Postulava-se um maior distanciamento dos intelectuais
do campo do poder. Tratava-se de afirmar ―profissionalmente‖ o intelectual,
afastando-o da política e propiciando a valorização de um ponto de vista mais
459
neutro .

Ao desenvolver essa interpretação, a autora está levando em consideração os


discursos institucionais formulados pelos dois principais grêmios literários da época,
justamente o IHGB e a ABL. Porém, acredito que esse distanciamento da política
precisa ser testado nas práticas intelectuais desenvolvidas nos quadros dessas duas
associações. Assim, conseguimos perceber que a política estava lá, em meio à
austeridade e à elegância que caracterizavam, quase sempre, as relações entre os
membros dos referidos grêmios460. Estou convencido de que foi, exatamente, dessa

458
21ª Sessão Ordinária em 29 de novembro de 1889. RIHGB, t. 52, parte 2, p. 534-535, 1889.
459
GOMES, Ângela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
pp. 48-49.
460
De acordo com Brito Broca, ao impor um tipo de socialização marcada pela moderação e pela
elegância, a Academia Brasileira de Letras foi um dos elementos que puseram fim à boemia literária
carioca. O autor destaca também que essa mudança no estilo de vida dos escritores não aconteceu sem
tensões e conflitos, como, por exemplo, aqueles que marcaram as relações do inveterado boêmio Paula
Nei com a agremiação presidida por Machado de Assis. Nas palavras de Brito Broca: ―Por outro lado, é

219
forma moderada e elegante que Eduardo Prado fez política, o que para ele significava
proselitismo monarquista, nos quadros da ABL e na sua mais que rápida passagem pelo
IHGB. No instituto histórico, ao qual ele se filiou em 1901, dias antes de morrer, se
empenhou em defender a ampliação dos estudos da ação catequética da ordem dos
jesuítas no período colonial, tema sobre o qual ele já se debruçava desde o final da
década de 1880. Já na ABL, o nosso autor fez questão de escolher o Visconde de Rio
Branco para ser o patrono da cadeira que ele fundou, a de número quarenta, tendo o
objetivo de imortalizar ―aquele que foi um dos principais esteios da Monarquia
governada por D. Pedro II, que durante quase meio século fez do Brasil uma nação
próspera e pacìfica‖ 461.
Eduardo Prado não chegou a intervir nas discussões públicas que antecederam a
criação da academia. Como mostrei no segundo capítulo deste trabalho, na época, o
nosso autor estava bastante ocupado com a administração do jornal ―Comércio de São
Paulo‖, o que talvez justifique as tais ausências nas reuniões da ―Revista Brasileira‖, das
quais ele se desculpou com o seu amigo Joaquim Nabuco. O autor do ―Abolicionismo‖,
foi um dos membros mais atuantes da ABL, destacando-se como um dos principais
articuladores das eleições para a imortalidade. Foi, justamente, Nabuco o principal
interlocutor de Prado naquilo que se refere à academia. Ainda no final de 1896, quando
a agremiação ainda não tinha sido fundada, o nosso autor escreveu para o seu amigo
comentando o assunto.
Rogo toda estima pela ideia de criação de uma academia de letras. Os nossos
mais valiosos espíritos precisam ter onde se refugiarem dos inconvenientes das
querelas políticas. Também é urgente que se faça algo para que os nossos
escritores tenham maior conforto no recebimento dos seus honorários462.

Essa é a única referência de Eduardo Prado à academia que encontrei antes da


sua indicação para sócio fundador, quando ele começou a negociar com Joaquim
Nabuco e Machado de Assis o patronato da sua cadeira. Ainda que a citação seja
pequena e esteja inserida em uma correspondência na qual o nosso autor trata de
coloquialidades com seu amigo, acho que é possível tomá-la como indicativo do

impossível negar certa influência da Academia ao crescente aburguesamento do escritor, entre nós, na
primeira década do século. Sob o signo de Machado de Assis, a prova de compostura se tornara
imprescindível para a admissão no novo grêmio, que desde o início se revestira de uma dignidade oficial
incompatível com os desmandos da boemia. De onde a reação de um dos boêmios mais típicos: Paula
Ney. Vendo-se excluído do número dos quarenta imortais fundadores da Academia, lançou as bases de
uma Academia Livre de Letras, em que colocou alguns boêmios, como B. Lopes, Emílio de Menezes,
Dermeval da Fonseca, mas também alguns homens sérios, como Érico Coelho, que protestou logo,
dizendo não fazer parte da referida sociedade‖ (p. 18).
461
PRADO, Eduardo. ―Revista Moderna‖. Dezembro de 1896. p. 73.
462
NABUCO, Carolina (org). Obras Completas. Instituto Progresso Editorial: São Paulo: 1935. p. 195.

220
posicionamento de Prado a respeito das duas principais questões em torno das quais
orbitava a cena intelectual brasileira da época: a criação de um campo intelectual
autônomo em relação às disputas da política e a profissionalização do escritor. A ABL
nasceu com o objetivo de avançar nessas propostas. Ainda que fosse um homem rico e
não dependesse profissionalmente das letras, o nosso autor demonstrou preocupação
com a situação de penúria na qual vivia a maioria dos escritores brasileiros da época.
Ainda que fosse um escritor combativo que não relutava em utilizar a sua pena para
confrontar as instituições republicanas, ele reconheceu a necessidade de um espaço no
qual os letrados pudessem zelar pela literatura nacional sem serem incomodados pela
mundanidade da política.
Agora, resta saber até que ponto o combativo polemista do mundo político deu
mesmo lugar ao moderado imortal membro da Academia Brasileira de Letras e ao
isento historiador associado ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Começo
investigando a nomeação de Prado para ocupar uma cadeira na nascente instituição
responsável por zelar pelas letras brasileiras. Lúcio de Mendonça, que, como já
sabemos, foi o principal articulador da criação da academia, tinha convicção de que sem
o auxílio institucional do governo da República dificilmente a agremiação teria vida
longa. Até então, somente uma organização dessa natureza não tinha morrido após
pouco tempo de funcionamento: o IHGB, que sempre contou com o apoio institucional
e financeiro da Monarquia. Por isso, em uma última cartada, o autor propôs que a
Academia Brasileira de Letras fosse fundada no dia 15 de novembro de 1896, o que
demonstraria, ―os estreitos vìnculos entre a República brasileira e a República brasileira
463
das letras‖ . Novamente, podemos observar o uso da expressão que foi fundamental
para a cultura intelectual no mundo ocidental moderno.
Já prevendo o constrangimento que os vínculos com a República poderiam
causar nos escritores monarquistas, Lúcio de Mendonça propôs uma solução, que foi
publicada na edição do jornal ―Gazeta de Notìcias‖ do dia 10 de novembro de 1896.
A Academia de Letras será fundada pelo governo, e o decreto de sua criação terá
provavelmente a data de 15 de novembro; na mesma data o governo nomeará os
10 primeiros membros desse instituto, e estes elegerão outros 20 e mais 10
correspondentes, dentre os escritores nacionais residentes nos estados ou no
estrangeiro. As vagas que se derem depois serão preenchidas por eleição 464.

463
MENDONÇA, Lúcio de. Primeiras notícias da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: ABL,
1997. p. 42.
464
―Gazeta de Notìcias‖. 10 de novembro de 1896.

221
Não sei se realmente houve uma articulação entre os organizadores do projeto e
as autoridades do governo ou se a matéria foi parte da estratégia de Lúcio de Mendonça
para conseguir o tão desejado apoio. Os autores que se debruçaram sobre o tema, e
destaco aqui os já citados historiadores João Paulo Rodrigues e Alessandra El Far,
também não esclarecem esse ponto. O que sabemos é que Lúcio de Mendonça esperava
esse apoio, tanto que mandou publicar na imprensa a lista com os nomes dos quarenta
imortais465. Se formos acreditar que esses nomes foram escolhidos de acordo com o
procedimento proposto por Lúcio de Mendonça e divulgado na ―Gazeta de Notìcias‖,
nos inclinaremos a pensar que a República chegou a indicar os dez primeiros nomes,
sendo os seguintes escolhidos de acordo com o critério já informado. Também não é
possível saber. O fato é que o nome de Eduardo Prado não estava nessa lista e que o
apoio oficial não veio, o que fez com que a inauguração da academia fosse adiada,
vindo a ocorrer, somente, como já disse antes, em junho de 1897, agora sim, tendo o
nosso autor entre os seus imortais.
De acordo com o estudo de Alessandra El Far, a Academia Brasileira de Letras
tinha uma particularidade que a diferenciava do modelo francês que lhe serviu de
inspiração: enquanto a academia fundada por Richelieu ―tinha como principal função
estabelecer normas para a língua francesa, a brasileira além da preocupação com a
ortografia, propunha também o cultivo da literatura nacional, cabendo assim elaborar
466
uma história oficial das obras e dos autores mais importantes para a nação‖ . Foi
dessa preocupação com a construção de um cânone literário brasileiro que nasceu a
ideia de escolher um patrono para cada uma das quarenta cadeiras que passariam a
constituir a academia. Esse é um aspecto fundamental para a minha argumentação.
―Acabo de escrever ao Presidente apresentando o nome de velho Rio Branco
467
para padrinho da cadeira que terei a honra de me sentar‖ . Assim escreveu Eduardo
Prado a Joaquim Nabuco em abril de 1897, cerca de dois meses antes da fundação da
academia. A essa altura, ele já tinha escolhido o patrono para a sua cadeira, escolha que
traduzia o desejo de ver o primeiro Visconde de Rio Branco, que foi um dos principais
quadros políticos da Monarquia, consagrado como um prócer das letras nacionais. O
curioso é que o ―jovem‖ Barão de Rio Branco, amigo de Eduardo Prado, tendo,
465
Alessandra El Far destaca o constrangimento que a presença do nome de Capistrano de Abreu causou
para Lúcio de Mendonça, que precisou se retratar publicamente. O historiador cearense jamais aceitou
ingressar no círculo dos imortais, apesar dos insistentes convites.
466
FAR, Alessandra El. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos
primeiros anos da República. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. p. 59.
467
Arquivo Eduardo Prado. Acervo da Academia Brasileira de Letras. Doc. 12.

222
inclusive, sido seu superior nos tempos em que esteve a serviço da diplomacia brasileira
em Londres, foi preterido na escolha dos quarenta membros fundadores da Academia
Brasileira de Letras, algo que foi alvo das críticas do nosso autor. Em um artigo
intitulado ―Barão do Rio Branco‖, publicado na ―Revista Moderna‖ em 15 de dezembro
de 1897, Prado demonstra como os salões da ABL não eram tão moderados do ponto de
vista político como os seus principais líderes tentavam fazer parecer.
Os escritores que tratam das superioridades políticas da Inglaterra mencionam,
como sendo das principais, a existência de uma classe de homens que
hereditariamente transmitem uns aos outros uma continuada tradição e uma
apropriada educação na arte da política e naquilo que se pode chamar a Ciência
do Estado468.

Eduardo Prado utilizou as páginas da ―Revista Moderna‖ para justificar a


escolha do patronato da sua cadeira, criticar moderadamente a presidência da ABL e
fazer proselitismo da Monarquia. O interessante, aqui, é que o nosso autor mobiliza uma
argumentação repleta de valores pertencentes à tradição republicana, que, como eu já
demonstrei no quarto capítulo, foi um dos principais repertórios apropriados pelo nosso
autor no seu exercício político/intelectual antirrepublicano.
No Barão do Rio Branco encontra-se essa rara superioridade: a de ser, por
herança e por educação, um homem votado, exclusivamente, às coisas da pátria.
Por esse lado, o Barão do Rio Branco, vivendo numa época em que, em toda a
parte, o interesse coletivo e nacional parece diminuir, cada dia mais, diante das
paixões e das comodidades de cada um, constitui uma individualidade fora do
seu tempo, o que lhe custa o amargo preço da ingratidão de ser relegado ao
esquecimento em sua própria terra natal. Hoje, o Brasil esquece os seus maiores
469
espíritos por conta das concessões políticas . (Grifos Meus)

Tenho poucas dúvidas de que, na citação, Prado está criticando a direção da


Academia Brasileira de Letras, acusando-a de ter preterido o Barão por causa dos
interesses da agremiação em agradar as autoridades republicanas. Não sou capaz de
dizer os reais motivos que fizeram com que José Maria da Silva Paranhos Jr fosse
excluído da primeira formação da academia, mas me parece que a crítica de Eduardo
Prado não faz muito sentido. Afinal, a sua própria presença entre os quarenta membros
fundadores da ABL mostra que a nova instituição considerava perfeitamente possível
conciliar a consagração dos escritores monarquistas com a tentativa de aproximação
com os governos republicanos. Além disso, Paranhos não era um monarquista
combatente, tendo, inclusive, prestado seus serviços diplomáticos à República durante o
ano de 1893. Seja como for, o amigo de Eduardo Prado não demoraria muito para
468
PRADO, Eduardo. ―Revista Moderna‖. Dezembro de 1897, p. 335.
469
PRADO, Eduardo. ―Revista Moderna‖. Dezembro de 1897, p. 335-336.

223
adentrar ao seleto círculo dos imortais. Logo em outubro de 1898, após a morte de
Pereira da Silva, fundador da cadeira de número trinta e quatro, o Barão foi eleito
membro da Academia Brasileira de Letras. Não encontrei na documentação nenhum
indício de que Eduardo Prado tenha tido uma participação ativa nas negociações que
resultaram na eleição de Rio Branco. Prosseguindo na análise do texto, destaco a
relação que o nosso autor propôs entre as formas de governo e as possibilidades do
exercício da virtude política.
Na vida moderna, toda de individualismo, espíritos como esses [e aqui ele se
refere ao Barão de Rio Branco e ao seu pai] não se acham bem. E muito menos
podem ter uma expansão eficaz nas chamadas democracias sul-americanas. O
guerreiro não tem ali com quem guerrear, e, não tendo ocasião de vencer,
desaprende essa arte e nem sempre consegue vencer a si mesmo, antepondo o
bem da pátria à vantagem de sua classe. Onde só há vício a virtude de um Rio
Branco é sufocada. Excepcionalmente pode até um homem como esse fazer
grandes coisas. O homem superior por todos os títulos, o primeiro Rio Branco
encarnava todas as qualidades viris que no passado diferenciavam o Brasil do
restante da América do Sul470. (Grifos Meus)

O trecho é fundamental para a minha argumentação, pois mostra com clareza o


quanto o conservadorismo antirrepublicano de Eduardo Prado foi capaz de usar
diferentes tradições do pensamento político ocidental, colocando-as em prática de
acordo com a circunstância. No quarto capítulo, eu apresentei a hipótese de que a
tradição republicana foi um dos repertórios mais usados pelo nosso autor. Acredito,
portanto, que o artigo ―Barão do Rio Branco‖ pode ser considerado um texto
representativo desse uso. Como eu mostrei na introdução desta tese, o catálogo da
biblioteca de Eduardo Prado, publicado em 1916, mostra que o nosso autor tinha
bastante interesse nas leituras dos tratados pertencentes ao pensamento político
republicano, como aqueles redigidos por Cícero e Quintiliano.
Na citação, o nosso autor, novamente, utiliza o exercício, bastante comum entre
os pensadores brasileiros conservadores oitocentistas, de comparar a realidade nacional
com os vizinhos hispano-americanos. Dessa vez, contudo, Prado fez mais do que tão
somente comparar. Ele fez isso na chave da dicotomia individualismo moderno X
espírito público, argumento que, como vimos no quarto capítulo, foi posto em prática
com frequência nos seus textos antirrepublicanos. Para ele, o republicanismo latino-
americano não era terreno fértil para o desenvolvimento das virtudes políticas mais
elevadas, justamente aquelas que faziam do proprietário um cidadão comprometido com
os interesses públicos. Era justamente esse tipo de comprometimento, que, segundo

470
Idem. p. 339.

224
Prado, encontrava condições de desenvolvimento plenamente favoráveis nos tempos da
Monarquia. Por isso, para ele, a Monarquia seria melhor que a República, melhor,
principalmente, por ser mais republicana.
São sintomáticas as palavras que o nosso autor utilizou para definir os dois
Paranhos como ―grandes homens‖: ―qualidades viris‖. A ideia de virilidade sugere ação,
força e, principalmente, intervenção na vida pública, sendo um atributo exclusivamente
masculino. Essa concepção de virilidade cívica pode ser encontrada também em dois
importantes tratados considerados pertencentes à tradição republicana. Cícero, por
exemplo, no ―De inventione‖, diz ―o verdadeiro vir civillis deve, acima de tudo, ser um
bom homem, alguém dotado de todas as virtudes necessárias à vida cìvica‖471. Uma
formulação semelhante foi desenvolvida por Quintiliano no “Instituta Oratoria”: ―O
verdadeiro cidadão mais habilitado à administração dos assuntos públicos e privados é o
vir bônus, o bom homem, dotado de todas as virtudes espirituais, ao lado de uma
verdadeira compreensão de uma vida reta e honrada‖472.
O princípio da virtude do grande homem, que, como estamos vendo, foi tão caro
ao nosso autor, chegou ao republicanismo moderno, de acordo com Quentin Skinner,
através da literatura ―pré-humanista‖. Já tive a oportunidade de examinar o ensaio de
Skinner no quarto capítulo desta tese, mas considero importante retomar alguns
elementos que ainda não foram devidamente trabalhados, como, por exemplo, a noção
latina de ―Grandeza”. Para o historiador inglês, já no século XI, os porta-vozes das
comunas italianas medievais deram início, antes mesmo do século XIV, quando
podemos perceber com mais clareza o desenvolvimento do “highest humanista style”,
ao amadurecimento dos princípios políticos republicanos, como o autogoverno e o
exercício público da cidadania. Nesse momento, a principal fonte doutrinária, ainda
segundo Skinner, não era a teoria política de Aristóteles, como viria a ser
posteriormente, mas sim os moralistas romanos e os teóricos da eloquência, como
Cícero e Quintiliano. Essa hipótese é muito importante para a minha análise porque
mostra o quanto esses autores latinos foram, ao mesmo tempo, fundamentais para o
pensamento político republicano moderno e para o conservadorismo de Eduardo Prado.
Ainda que tenha sido, talvez, o mais ferrenho dos antirrepublicanos, o nosso autor, foi,

471
Citado em SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na filosofia de Hobbes. São Paulo: Ed. UNESP,
1999. p. 109.
472
Idem. pp. 109-110.

225
também, um atento republicano, alguém bastante familiarizado com as referências
doutrinárias constitutivas dessa tradição.
Como podemos perceber, Prado, tal como Cícero e Quintiliano, associa a virtude
cívica à combinação entre as atividades política e letrada, qualidades que, segundo o
nosso autor, eram presentes nos dois Paranhos. Era, exatamente, a associação entre
essas virtudes que justificava a sua escolha para o patronato da cadeira de número
quarenta e o que tornava imperdoável o esquecimento por parte dos dirigentes da
academia. Não tenho clareza se a escolha de Prado para o patronato aconteceu antes que
ele tomasse conhecimento da ausência do Paranhos Jr na lista dos quarenta imortais que
fundaram a Academia Brasileira de Letras. Contudo, ainda assim, acredito que, em
algum momento, e isso fica claro no texto publicado na ―Revista Modena‖, ele, de
alguma forma, utilizou a consagração literária do velho Rio Branco como uma espécie
de remediação da injustiça da qual o jovem Rio Branco fora vítima.
Tanto o pai como o filho, por serem grandes homens, verdadeiros vir civillis,
eram dignos de todas as homenagens e honrarias, inclusive as literárias, que eram as
incumbências da jovem Academia Brasileira de Letras. No entanto, para Prado, o velho
e o novo não teriam a mesma sorte, pois enquanto o pai viveu em um ambiente
plenamente virtuoso que lhe permitiu a pontecialização e o pleno exercício de suas
―qualidades viris‖, o filho estava sendo cerceado por uma experiência polìtica viciosa e
egoísta. O autor utilizou, então, as biografias dos dois Paranhos para fazer proselitismo
da Monarquia, o que mostra que a sua nomeação como membro fundador da Academia
Brasileira de Letras não atenuou o seu antirrepublicanismo. Também chama a minha
atenção a presença do princípio romântico da encarnação da virtude da nação na pessoa
do grande homem. Aqui, o monarquismo de Eduardo Prado mostrou-se bem coerente
com os valores éticos e estéticos vigentes nos tempos da Monarquia: a tradição
republicana foi associada ao romantismo literário473.
Em estudos dedicados à importância do gênero textual biográfico na cultura
intelectual brasileira oitocentista, Márcia de Almeida Gonçalves e Maria da Glória de
Oliveira, demonstram como o encômio biográfico foi fundamental tanto para o
repertório literário dos escritores românticos como para os estudos desenvolvidos pelos
historiadores vinculados ao IHGB. Para Márcia Almeida Gonçalves, ―A escrita

473
Em um estudo sobre a geração brasileira de 1870, Ângela Alonso analisou os questionamentos que os
letrados que fizeram parte dessa geração fizeram aos valores fundamentais da cultura brasileira da época,
que constituíam também a base ideológica da Monarquia. Ao falar em uma ―tradição imperial‖, a autora
destaca o romantismo, o catolicismo e o liberalismo estamental.

226
biográfica conheceu notória expansão na modernidade da qual nos ocupamos,
diversificou-se em seus usos e, em determinados casos, passou, tanto quanto a história e
474
a literatura, a contribuir para a fundação simbólica das individualidades nacionais‖ .
Já para Maria da Glória Oliveira ―a ideia de que a tarefa da história era fixar a memória
das vidas dos grandes homens funcionou como argumento decisivo para a incorporação
da escrita de biografias no programa do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) no século XIX‖475. Portanto, ao afirmar que o Visconde de Rio Branco
―encarnava‖ as qualidades que durante muito tempo fizeram o Brasil diferente da
América Latina, Prado faz uma dupla crítica à República: primeiro, acusa o novo
regime de ter implodido as diferenças entre o Brasil e os seus vizinhos, já que sendo
agora governados por instituições semelhantes, esses países dividiam o mesmo
desapego pela ordem e pela paz social. Segundo, ele acusa a República de ser a grande
responsável pela incompletude na biografia de homens virtuosos, como o Barão de Rio
Branco, que não encontrava as mesmas condições que o seu pai para se tornar de fato
um ―notório servidor da pátria‖. Nesse sentido, a grandeza do homem somente se
consolidaria no pleno exercício de suas qualidades, o que demanda uma organização
política também virtuosa. Sendo assim, para Prado, o grande homem, no caso o velho
Paranhos, somente foi a metonímia da grande nação porque o governo monárquico
possibilitou. Até poderiam existir grandes homens na República, mas essa não era capaz
de levá-los à plenitude da virtude cívica.
De forma alguma, a rebeldia de Prado nas páginas da edição de dezembro de
1897 da ―Revista Moderna‖ foi um caso isolado nas relações entre os imortais e a
direção da Academia Brasileira de Letras. Como os imortais também morrem e o
estatuto da agremiação previa a realização de eleições para a entrada de novos
membros, a pretensa austera e despolitizada academia era frequentemente agitada pela
articulação política, o que demonstra os vínculos de afetividade, parceria e rivalidade
que davam o tom à socialização letrada brasileira do período. Entre os principais
articuladores, de acordo com os estudos de João Paulo Coelho, destacava-se a figura de
Machado de Assis, que foi peça chave nas negociações que introduziram novos
membros no círculo dos imortais.

474
GONÇALVES, Márcia Moreira. Retratos em papel e letras: narrativa biográfica e imaginário
nacional no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2012. p. 176.
475
OLIVEIRA, Maria da Glória. Escrever vidas, narrar a história: a biografia como problema
historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Ed. FGV 2011, p. 15.

227
Machado de Assis tinha plena compreensão das injunções inerentes ao seu cargo
em face do projeto original da Academia. Ele deveria equilibrar em sua conduta
os seus desejos pessoais, as disputas entre os seus colegas e preservar a sua
imagem tanto quanto a do seu cargo476.

O autor analisa as doze eleições que foram realizadas durante a presidência de


Machado de Assis (1897-1908) e argumenta que ao redor do Presidente se formou um
núcleo duro que lhe deu sustentação política, o que permitiu que as eleições
transcorressem de acordo com os interesses da direção da agremiação. Esse núcleo duro
era constituído por José Veríssimo, Graça Aranha, Lúcio de Mendonça e, o que é mais
importante para a minha argumentação, Joaquim Nabuco. Com a exceção da já
comentada crítica à exclusão do Barão do Rio Branco do grupo dos membros
fundadores, não encontrei na documentação nenhuma indicação de que Eduardo Prado
tenha tido um papel protagonista nas eleições que foram realizadas durante o período
em que esteve entre os membros da academia. Porém, a situação é diferente quando
temos em mãos as atas das reuniões que indicaram os sócios correspondentes
estrangeiros.
O estatuto da Academia Brasileira de Letras previa a escolha de vinte sócios
estrangeiros correspondentes, que seriam indicados pelos membros da agremiação.
Diferente do que acontecia no processo de escolha para as cadeiras efetivas, não haveria
disputa eleitoral, mas sim convites a escritores estrangeiros que a academia considerasse
importante ter em seus quadros. A primeira reunião destinada a essa finalidade foi
realizada em outubro de 1898. Consta na ata dessa sessão que Eduardo Prado estava
presente e se absteve de votar em favor da aprovação do convite a Emílio Zola. É
bastante curioso o argumento que o nosso autor utilizou para justificar a sua abstenção.
De acordo com a ata, Eduardo Prado
declara que não toma parte na votação porque este aplauso tão acentuado a Zola,
no momento atual, por ser o defensor de uma vítima, pode parecer uma
condenação ou um estigma de muitos escritores, tanto estrangeiros como
nacionais, que em várias épocas têm deixado indefeso outras vítimas 477.

A citação não permite a mais segura das interpretações, mas me parece que o
nosso autor se opôs à escolha de Zola por dois motivos: primeiro, por achar que a obra
literária do escritor francês não justificava a sua consagração. Afinal, para Prado, o
―aplauso tão acentuado a Zola‖ era algo momentâneo e se justificava pela sua
manifestação pública em defesa de Alfred Dreyfuss, que foi acusado de alta traição pelo
476
RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia
Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Ed. UNICAMP, 2001. p.134.
477
Anais da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: 1965, p. 79.

228
Exército francês478. Em segundo lugar, Prado acreditava que a consagração de Zola
seria ofensiva aos escritores que em outras ocasiões não saíram em defesa de outras
vítimas. Então, para o nosso autor, não caberia ao escritor se envolver em casos como
esse. Portanto, o que deveria fazer o escritor? Se Eduardo Prado se manifestou sobre
essa questão não ficou registrado em ata, mas considerando a forma como o nosso autor
se inseriu nos debates que deram origem à academia, acredito ser possível dizer que
para ele o escritor deveria se restringir às letras, como era a proposta da própria ABL. É
bastante contraditório que justo Eduardo Prado, que foi um escritor tão combativo,
tenha censurado o envolvimento de Zola no caso Dreyfus. A oposição de Prado à
nomeação do escritor francês como primeiro correspondente estrangeiro da Academia
Brasileira de Letras pode ter outro motivo, um que não foi registado na ata. Segundo
479
Cândido da Mota Filho, ―havia em Eduardo Prado certo sentimento antissemita‖ .
Parece que esse ―sentimento antissemita‖ não era uma particularidade do nosso autor,
sendo também presente em Eça de Queirós. Segundo A. Matos, biógrafo do escritor
português, ―Eça de Queirós não demonstrava grande simpatia pelos judeus na sua
correspondência particular‖480. O antissemitismo foi um dos principais ingredientes do
caso Dreyfus, já que sendo judeu, o acusado foi alvo do radicalismo nacionalista
francês.
É importante destacar que Eduardo Prado não foi o único a se abster da votação,
tendo sido acompanhado por Graça Aranha, Joaquim Nabuco, Machado de Assis e
Rodrigo Otávio. Como não havia a possibilidade do voto contrário, a abstenção
equivalia na prática à desaprovação do nome que estava sendo indicado. Independente
de qual tenha sido o motivo que levou esses imortais a se contraporem ao nome de Zola,
o esforço não foi o suficiente e o escritor francês foi nomeado o primeiro
correspondente estrangeiro da Academia Brasileira de Letras. O curioso é que ele
sequer sabia que, naquele outubro de 1898, o seu nome estava sendo objeto de debates
em uma academia de letras localizada na outra margem do Atlântico. Até onde eu sei,

478
A partir de 1898, quando Emile Zola publica no jornal Aurore a carta intitulada ―J‘Acuse‖ pedindo a
revisão do argumento, teve início um intenso debate que dividiu, de um lado, os defensores dos valores
nacionalistas e do exército e, de outro lado, os defensores dos valores universalistas e dos direitos
individuais.
479
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 93.
480
MATOS, A. Campos. Eça de Queiroz: uma biografia. Campinas: Ed. Unicamp, 2014. p. 190.

229
ele jamais tomou parte das suas atribuições como correspondente, cargo para o qual ele
nunca solicitou ser indicado.
Eduardo Prado voltaria a se movimentar nos bastidores acadêmicos um mês
depois, quando os imortais tornaram a se reunir, agora para indicar o segundo
correspondente estrangeiro. Eça de Queirós era o nome da vez. Por algum motivo que
eu desconheço, Eduardo Prado não estava presente na sessão que aprovou a indicação
do seu amigo português para a função. Porém, é claro, isso não quer dizer que ele não
tenha tido participação nos arranjos que levaram à apresentação do nome do autor de
―Os Maias‖. A cronologia dos acontecimentos sugere que era intenção de Eduardo
Prado fazer do seu grande amigo português o primeiro corresponde estrangeiro da
academia. Em setembro de 1898, ou seja, antes da sessão que referendou a indicação de
Emìlio Zola para o cargo, o nosso autor escreveu a Joaquim Nabuco dizendo ―A
academia precisa ter entre os seus um representante da literatura mãe e ninguém é mais
481
indicado do que Queirós, o mais notável escritor português dos nossos dias‖ . Como
já sabemos, o nosso autor não teve sucesso na sua primeira investida, o que o fez insistir
no assunto, dessa vez com o próprio Machado de Assis. ―Seria de grande pertinência
que a academia brasileira responsável por zelar pelo bom uso da língua portuguesa
tivesse entre os seus o mais notável escritor da nação que nos legou esse tão magnânimo
482
idioma‖ . Talvez temendo um novo insucesso, o nosso autor resolveu falar
diretamente com aquele que era o grande articulador das decisões da academia.
O argumento que Prado utilizou com Machado de Assis é o mesmo usado com
Joaquim Nabuco: a Academia Brasileira de Letras deveria consagrar o principal escritor
português como uma forma de tributo a Portugal, a nação mãe que nos deixou a língua
portuguesa como herança. O que o nosso autor está querendo dizer é que a própria
academia, que em estatuto se dizia responsável pelo cuidado da língua portuguesa, devia
a sua existência a Portugal, que é definido como a matriz da nacionalidade brasileira,
nacionalidade que aqui é pensada a partir do critério do idioma. Nesse sentido, para
Prado, nada seria mais justo do que nomear Eça de Queirós como membro da Academia
Brasileira de Letras. O tema da herança portuguesa na cultura brasileira se tornou um
dos mais fundamentais dos últimos escritos de Eduardo Prado, especialmente nos textos
que ele dedicou à história do Brasil. Examino esse material na próxima unidade. Não sei
dizer até que ponto Eduardo Prado era influente nas decisões da Academia Brasileira de

481
Arquivo Eduardo Prado. Acervo da Academia Brasileira de Letras. Doc. 13.
482
Idem. Doc. 14.

230
Letras, mas o fato é que Eça de Queirós foi escolhido, em sessão realizada no dia 05 de
novembro de 1898, o segundo correspondente estrangeiro da agremiação presidida por
Machado de Assis. O curioso é que eram onze os acadêmicos presentes nessa sessão,
sendo que dez votaram a favor e um se absteve, justamente o Presidente da academia.
Definitivamente, Eça de Queirós nunca esteve entre os autores de cabeceira de Machado
de Assis483.
Após mais de uma década de conflitos com as instituições republicanas, Eduardo
Prado já era um escritor bem conhecido no cenário intelectual brasileiro do fim do
século XIX e do início do século XXI. Os seus textos repercutiram em vários espaços,
inclusive no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; em reunião realizada no dia 23
de julho de 1898, quando já era de conhecimento público que Eduardo Prado seria um
dos quarenta fundadores da Academia Brasileira de Letras, o orador Souza Pitanga
destacou ―o mérito literário e o valor cìvico dos trabalhos de Eduardo Prado, que
evidenciam o estilo do ensaìsta e o rigor do cientista‖ 484. Os elogios ao nosso autor não
pararam por aí; referindo-se especificamente aos tìtulos ―Fastos da Ditadura Militar no
Brasil‖ e ―A Ilusão Americana‖, o orador diz que ―se tratam de obras notáveis sobre a
485
história contemporânea do Brasil‖ . Os comentários favoráveis feitos na reunião de
julho de 1898 não são os únicos indícios que sugerem o prestígio do nosso autor no
instituto. Acompanhar a curta passagem de Eduardo Prado pelo IHGB é importante para
compreendermos a historiografia desenvolvida pelo nosso autor, que é o tema do último
capítulo desta tese.
6.3 - Eduardo Prado no IHGB

Em março de 1899, a direção do IHGB formou uma comissão composta por


Afonso Celso, Manuel Francisco Correia e Leonel Martiniano de Alencar para examinar

483
Ao longo dos anos 1870, os livros de Eça de Queirós repercutiram bastante no Brasil e encontraram
em Machado de Assis o seu principal crítico. Em abril de 1878, foi publicado um artigo no qual o
escritor brasileiro comentava o romance ―O Primo Basìlio‖, recém-lançado em Portugal e um sucesso
imediato no Brasil. Machado de Assis denuncia a superficialidade dos personagens e a pobreza do estilo,
dizendo ―Se o autor, visto que o Realismo também inculca vocação social e apostólica, intentou dar no
seu romance algum ensinamento ou demonstrar com ele alguma tese, força é confessar que o não
conseguiu‖ (p 287). Para Machado de Assis, literatura queirosiana era a principal manifestação em lìngua
portuguesa do realismo radical inaugurado por Zola. ―Crìtico do caráter documental e direto que via na
obra de Eça, Machado mostrava ver nesse cuidado detalhista das descrições a negação da própria
literatura, que guardava, para ele, o caráter imaginativo e poético que lhe fora atribuído pelos
românticos‖(p. 287). Ver PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A realidade como vocação:
literatura e experiência nas últimas décadas do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
484
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 62, parte II, p. 31.
485
Idem.

231
a qualidade dos estudos históricos desenvolvidos por Eduardo Prado. De acordo com o
estatuto vigente, era normal a formação de um grupo de trabalho destinado a examinar
os textos de um autor antes que o convite de associação fosse formalizado. Consta na
ata da reunião realizada no dia 23 de junho de 1899 uma menção ao parecer da
comissão.
O parecer da comissão de trabalhos históricos relativos aos escritos do Dr
Eduardo Paulo da Silva Prado, proposto para sócio correspondente, está redigido
de modo tão decisivo, que à comissão de admissão de sócios nada resta se não
subscrever esse parecer opinando pela pronta aceitação do Dr Eduardo Prado
como membro do nosso instituto486.

Como fica claro na documentação, Eduardo Prado, na altura de meados de 1899,


ainda não era membro do IHGB, mesmo que já fosse notadamente reconhecido pelos
próprios membros do instituto como um dos principais historiadores brasileiros. Os tão
elogiados trabalhos históricos já eram amplamente conhecidos. Por exemplo, os
―Fastos‖ foram publicados no Brasil no final de 1889, a ―Ilusão Americana‖ em 1893,
sem contar as ―Conferências Anchietanas‖, que foram organizadas por Eduardo Prado
em 1896, tendo alcançado grande sucesso e contado com a presença das autoridades
políticas da época, como, por exemplo, Campos Sales, então Presidente de São Paulo e
futuro Presidente da República no quadriênio 1898-1902. Capistrano de Abreu, que já
era reconhecido como o principal historiador brasileiro vivo, participou das
conferências com uma fala intitulada ―Da bibliografia e iconografia de Anchieta e do
seu tempo‖. Mesmo com toda essa produção, Eduardo Prado somente tomaria assento
no IHGB em 09 de agosto de 1901, quando ele veio ao Rio de Janeiro para a sua
cerimônia de posse, viagem que se mostrou trágica, pois aqui o nosso autor contraiu a
tão temida febre amarela, vindo a morrer em São Paulo poucos dias depois.
Por que, então, Eduardo Prado não foi convidado antes para integrar os quadros
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro? Acredito que uma sugestão de resposta
possa advir das relações que o instituto tentou estabelecer com a República.
Em seu recinto [do instituto] não entram dissensões políticas. Seus intuitos são
nobres, seus serviços desinteressados. [...] Trabalhamos todos por amor do
Brasil, sem remuneração de qualidade alguma, sem outro incentivo que não o
cumprimento rigoroso de um dever cívico487.

A citação foi extraída de um discurso de Olegário Herculano de Aquino Castro,


então Presidente do IHGB, proferido em dezembro de 1897 e, na minha percepção, tem
o mérito de sintetizar com precisão o posicionamento público do instituto após a
486
Idem. Tomo 62. Parte II. pp. 312-313.
487
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 60, parte II, pp. 421-422.

232
proclamação da República. As relações entre o IHGB e a República já foram objetos de
importantes estudos. Entre esses, eu destaco o já conhecido trabalho de Ângela de
Castro Gomes e a dissertação de mestrado de Hugo Hruby, que até onde eu sei ainda
não está disponível no mercado editorial. Ambos os trabalhos são fundamentais para a
reflexão que estou desenvolvendo neste capítulo. No entanto, há uma discordância entre
os autores que pode lançar alguma luz sobre o problema da tardia entrada de Eduardo
Prado nos quadros do IHGB: enquanto Ângela de Castro Gomes afirma que o instituto
488
―guardou por razoável tempo um aroma monarquista‖ , Hugo Hruby aponta os
esforços da agremiação para recompor os seus quadros de forma a não criar muitos
constrangimentos com o governo.
O fato de Eduardo Prado somente ter ingressado no IHGB quando a República
navegava em águas mais tranquilas, o que para os governantes civis significava tanto o
silenciamento dos restauradores monarquistas quanto a pacificação política dos
militares jacobinos, somado com o profundo estudo prosopográfico feito por Hugo
Hruby, faz com que eu me incline mais para a interpretação desse autor do que àquela
apresentada por Ângela de Castro Gomes. Como nós já sabemos, Eduardo Prado foi
publicamente conhecido durante uma década como um dos principais inimigos da
República. Portanto, faz algum sentido supor que, a despeito da reconhecida qualidade
dos seus trabalhos, a sua presença em uma agremiação tradicionalmente identificada
com a Monarquia causaria alguns constrangimentos para o instituto, que temia ser alvo
das perseguições daqueles que na época governavam o Brasil.
Há ainda outro elemento que precisa ser levado em contra na análise do ingresso
de Eduardo Prado no IHGB: prevendo que as subvenções governamentais ficariam mais
escassas nos tempos republicanos, a direção do IHGB alterou o estatuto naquilo que se
referia ao ingresso dos novos sócios. Já em agosto de 1890, menos de um ano após a
proclamação da República, o número de sócios efetivos passou de cinquenta para
setenta, sendo os requisitos de ingresso flexibilizados. Também foi criada a categoria
dos ―sócios beneméritos‖, que seria composta por homens ricos dispostos a colaborar
para a manutenção do instituto. Ao longo da década de 1890, de acordo com os estudos
de Hugo Hruby, essa categoria foi ampliada, chegando ao número de sessenta
integrantes em 1900. Eduardo Prado não entrou no instituto para ser um sócio
benemérito, mas certamente o fato dele ser na época o herdeiro de uma das famílias

488
GOMES, Ângela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996. p.
52.

233
mais ricas do Brasil, somado, é claro, à qualidade dos seus estudos históricos, deve ter
contado ao seu favor. Seja como for, o fato é que, em agosto de 1901, o nosso autor
fazia a sua derradeira viagem para assumir o seu assento no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, passando, então, a fazer parte das duas principais instâncias de
consagração intelectual em funcionamento no Brasil. Definitivamente, ele era
plenamente um cidadão da ―República das Letras‖ brasileira.
A cerimônia de posse de Eduardo Prado no IHGB traduz o prestígio que o nosso
autor tinha na cena intelectual brasileira da época. No protocolar discurso de recepção,
Max Fleiuss, então Segundo Secretário do instituto, disse:
Tendes mostrado particular vocação pelos estudos históricos; prossegui animoso
no alto empenho de rigorosa investigação da verdade e justa apreciação dos fatos
que constituem a nossa história e tereis bem servido às letras pátrias 489.

De fato, os textos historiográficos de Eduardo Prado representam, na minha


interpretação, uma das suas principais contribuições à história do pensamento social
brasileiro finissecular e, por isso, eu os examino em um capítulo específico, o último,
onde faço uma análise da historiografia eduardiana à luz da combinação entre os
repertórios historiográficos retórico e científico. Por ora, eu analiso o discurso de posse
do nosso autor no IHGB. Há, aqui, alguns aspectos que contribuem para a
argumentação que eu desenvolvo na próxima unidade. Logo nas primeiras palavras,
Eduardo Prado remete os seus ouvintes aos tempos da Monarquia.
Fundado por patriotas, numa época de patriotismo, tendo por fim a investigação
do passado: ilustrado pela cooperação de grandes brasileiros; prezado dos sábios,
este instituto, votado para o estudo da história, é ele próprio já um largo pedaço
da história do saber brasileiro. Poderá talvez uma fatalidade destrutora pesando
sobre nós, por fim, senhores, a vossa digna e longa carreira; poderão ser fechadas
as vossas portas, poderão o vosso arquivo e a vossa biblioteca ser dispersos;
poderão os nossos sucessores e talvez os nossos próprios olhos ver a suma
desgraça da fragmentação da pátria e rasgar sua túnica inconsútil. Todas as
catástrofes podem ser imaginadas, mas imperecível será a memória dos vossos
serviços ou prescindir das matérias inestimáveis que reunido. Poderá, quem sabe,
apagar do coração dos homens futuros o sentimento da pátria, mas se dentre eles
surgir, nesta terra, algum psicólogo que, com a reverência devida a todas as
coisas mortas, quiser escrever a história do patriotismo brasileiro, uma página, e
a das mais belas, será, senhores, em honra vossa 490. (Grifos Meus)

Temos, na citação, o já bem conhecido proselitismo monarquista. Ao elogiar o


IHGB, Prado estava elogiando a própria Monarquia, deixando claro que pensava o
instituto como um dos principais legados que o regime político chefiado por D. Pedro II
deixou ao Brasil. Ao mesmo tempo, em um exercício de prognóstico, o autor sugere que

489
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 64, parte II, p. 227.
490
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 64, parte II, p. 239.

234
a República era uma ameaça à obra erguida pela Monarquia e, ainda que o Brasil se
fragmentasse, os serviços que o IHGB, e a própria Monarquia, prestaram jamais seriam
apagados da memória, que é representada pelo nosso autor como a garantia da justiça e
do reconhecimento vindouro. É bastante sintomático que em um texto dedicado ao
elogio do instituto que durante décadas foi responsável pela guarda oficial da história do
Brasil, Prado tenha se adentrado em um exercício de futurologia, articulando, dessa
forma, passado, presente e futuro, no melhor estilo da ―cronotopia moderna‖, para falar
como Hans Ulrich Gumbrecht. O tema da temporalidade moderna é tão fundamental
para a compreensão do conservadorismo de Eduardo Prado que é assunto de um
capítulo específico nesta tese, o oitavo.

No final da citação, Prado deixa claro o seu ―amor pelo passado‖, para utilizar as
palavras de Eça de Queirós. Esse ―amor pelo passado‖ tem importância fundamental no
seu conservadorismo, onde se apresentou sob a forma de uma defesa, quase quixotesca,
das tradições que ele acreditava estarem ameaçadas pela República. Conta Paulo José
Pires Brandão ter ido certa vez, junto com Eduardo Prado, visitar José do Patrocínio na
redação do jornal ―A Cidade do Rio‖. Lá chegando, o anfitrião os levou para uma sala
de fundos para lhes mostrar a sua nova invenção, que nada mais era do que um balão
desenhado a giz no chão. ―Ao despedir-se de Eduardo Prado, observou-lhe o
abolicionista: - ―Filho, larga essa ideia de Monarquia. O Brasil precisa dos teus
serviços. Prado teria respondido, fixando o olhar no risco de giz: ―A Monarquia é o meu
491
balão‖ . O relato serve para mostrar para mostrar como o monarquismo de Eduardo
Prado era vinculado à idealização de um passado que na avaliação do autor seria mais
compatível com a índole brasileira. Essa idealização do passado foi acompanhada da
crítica à temporalidade moderna. Essa é mais uma questão que eu examino na próxima
unidade. Voltando ao discurso de posse.
Somos um povo cada dia mais desnacionalizado e essa casa é uma grade escola
de nacionalismo. Tive, e muito intensa, esta impressão na primeira vez que nela
penetrei, e sempre que transponho a sua velha portada e subo os degraus da sua
escada, feitas de rija madeira brasileira e obra de tosca e sólida carpintaria
colonial. Foi esta casa um convento, e neste fato está um duplo símbolo: o de ter
sido a sociedade brasileira uma obra do catolicismo e do destino ter reservado, a
estas paredes, desde que se ergueram, a sorte de servir de asilo e paz ao estudo,

491
Ver BROCA, Brito. Machado de Assis e a política. São Paulo: Instituto Nacional do Livro, 1983. p.
109.

235
espaço por excelência de intensa comunicação entre os homens devotados às
letras e à história pátria492.

Aqui, Eduardo Prado evoca uma metáfora que muito nos diz daquela que foi a
principal característica dos seus escritos sobre a história do Brasil. O nosso autor tinha
interesse especial pelo período colonial, particularmente pela obra catequética da
Companhia de Jesus. Para Prado, o Brasil era o produto do sucesso do empreendimento
civilizatório português nos trópicos, o que fez dele uma das matrizes da intepretação
historiográfica que seria mais tarde consagrada nos textos de Gilberto Freyre. No final
da citação, o nosso autor, ainda que não de forma explícita, retoma o princípio da
República das Letras, do qual ele já havia falado com Joaquim Nabuco em uma carta
datada de meados da década de 1890 e onde eu encontrei o trecho que serviu como
epígrafe para este capítulo. Todos os elementos da República das Letras estão presentes
na citação: o isolamento em relação aos conflitos do mundo externo, ―asilo‖, nos termos
usados pelo próprio Eduardo Prado, e a interlocução entre os letrados.
Desde a introdução desta tese, eu estou tentando entender o conservadorismo de
Eduardo Prado à luz da sua performance discursiva, especialmente a forma como o
autor combinou elementos do repertório moderno e pré-moderno do pensamento
político ocidental. Esta segunda unidade se insere, portanto, nesse esforço maior, que é
a linha mestra da reflexão que estou desenvolvendo. Por isso, no quarto capítulo, eu
abordei o uso que Eduardo Prado fez dos valores pertencentes ao repertório da tradição
republicana. Já no quinto capítulo, eu estive interessado em compreender o uso de outro
repertório, dessa vez o jusnaturalismo moderno. Não pressuponho a existência de uma
dicotomia radical entre esses repertórios, como se existisse uma cisão explícita entre
antigo e o moderno. O que estou tentando demonstrar é, justamente, o contrário: os
repertórios conceituais antigo e moderno se combinam de modo a dialogarem dentro de
uma mesma tradição, o que não exclui a existência de especificidades capazes de os
diferenciarem.
Neste sexto capítulo, eu me debrucei sobre o cenário letrado luso-brasileiro
finissecular, do qual Eduardo Prado foi um personagem bastante importante. Tendo se
inserido das redes de socialização que entrelaçavam os escritores brasileiros e
portugueses da época, o nosso autor se tornou uma figura conhecida a tal ponto que foi
visto como um interlocutor pela maioria dos seus pares, o que fez com que ele tomasse
contato com novos repertórios. Nesse sentido, para além da combinação entre o antigo e

492
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 64, parte II, p. 239.

236
o moderno, que é, como eu já disse, a linha mestra da argumentação que desenvolvo
nesta tese, esta segunda unidade apresentou, ou ao menos tentou fazê-lo, outro elemento
que considero ser fundamental para a compreensão do conservadorismo do nosso autor:
a sua formação. Por isso, no quarto capítulo, eu dediquei alguma atenção aos primeiros
estudos de Eduardo Prado, o que me levou a examinar o ensino ministrado no
Seminário Diocesano de São Paulo, e no quinto capítulo, eu tive a preocupação de
pensar com algum cuidado os estudos superiores do personagem, o que me fez visitar o
tema do ensino jurídico brasileiro oitocentista.
Por fim, neste sexto capítulo, ao trabalhar com a noção de República das Letras,
eu, ao mesmo tempo, tentei mostrar um dos aspectos da modernidade do
conservadorismo de Eduardo Prado, justamente a sua interlocução com outros
escritores, e a importância dessa interlocução para o seu pensamento político. Como
vimos, temas como o antibacharelismo e o antirrepublicanismo já circulavam pelo
grupo dos ―Vencidos na Vida‖, assim como o nosso autor utilizou os quadros da
Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileira para dar
ainda mais publicidade ao seu proselitismo monarquista, o que se configurou como um
tipo de ação política diferente da agressiva combatividade que até então caracterizava o
seu comportamento político/intelectual. Todas essas questões são retomadas na
próxima, e última unidade, onde eu examino as dimensões epistemológico/políticas do
conservadorismo de Eduardo Prado, a sua crítica à temporalidade moderna e a sua
historiografia.

237
238
Unidade III

Empirismo político/intelectual, tradição,


temporalidade e historiografia no
conservadorismo de Eduardo Prado

239
240
Capítulo 7

O empirismo político/intelectual no conservadorismo de Eduardo Prado

Nada mais restaria à espécie humana se não curvar-se sobre os salgueiros da


desesperação, se a abstrata retórica metafísica dos senhores deputados se
perdesse para sempre no verniz das balaustradas da assembleia, escoando-se
pelas frestas das vidraças, volatizando-se no espaço como a poeira soprada pelo
vento493. (Grifos Meus)

Em todos os cantos o que se vê, em Montevideo, são muitos generais e alguns


soldados, sendo os generais, homens apalavrados de enfeitada conversa, mais
parecidos com bacharéis do que com militares. Ainda na manhã em que
visitamos a universidade, vimo-los em exercício numa praça. As cores dos
uniformes são brilhantes – vermelha, azul, e a regularidade das manobras,
perfeita. Mais tarde, indagamos de um oriental se a tropa era disciplinada.
Depois de alguma hesitação, disse-nos: - Eles manobram bem494. (Grifos Meus)

Os dois textos datam de meados da década de 1880, quando, como já sabemos,


Eduardo Prado era um jovem cronista vinculado ao Partido Conservador paulista. Já
tive a oportunidade de examinar com algum cuidado esses ―escritos de juventude‖, que
sugerem que o nosso autor tinha uma ativa vida político/intelectual antes mesmo da
proclamação da República, algo que foi pouco explorado pela bibliografia
especializada. Ao iniciar este sétimo capítulo com tais citações, desejo demonstrar que,
já nos seus primeiros escritos, Prado foi fiel aquele que é um dos valores mais caros ao
conservadorismo moderno: a reivindicação de uma percepção empírica da realidade,
tanto para as formulações intelectuais como para as ações políticas, sendo que a
fronteira entre umas e outras nem sempre esteve clara nos textos dos autores
pertencentes a essa corrente do pensamento político ocidental moderno. Examinar esse
empirismo político/intelectual nos escritos de Eduardo Prado é o principal objetivo
deste capítulo.

Esse empirismo pode ser observador nas duas citações. A primeira foi publicada
na coluna ―Crônicas da Assembleia‖, em 27 janeiro de 1882, quando Prado comentou a
―questão dos contratos de imprensa‖, que tanto atraia a atenção dos Deputados paulistas.
Até o inìcio desse ano, estava vigente o contrato entre o jornal liberal ―A Tribuna
Liberal‖ e a Assembleia Provincial, sendo, exatamente, as discussões a respeito da
renovação do contrato o tema abordado pelo nosso autor na sua coluna. Como fica claro
no trecho, Eduardo Prado ironizou a preocupação dos parlamentares em garantir o
registro dos debates legislativos. O autor caracterizou os discursos dos Deputados como

493
PRADO, Eduardo. ―Correio Paulistano‖. 27 de Janeiro de 1882.
494
PRADO, Eduardo. Viagens. São Paulo. Tipografia Salesiana: 1902, pp. 34-35.

241
―abstrata retórica metafìsica‖, o que, para ele, desqualificava a atuação polìtica dos
parlamentares paulistas. Para Prado, ―[..] Enquanto os nobres Deputados falam, falam e
nada dizem, a vida cotidiana do povo paulista não é considerada uma prioridade pela
representação bacharelesca dessa provìncia‖495496. Argumentação semelhante foi
desenvolvida na segunda citação, que faz parte dos relatos das viagens do autor pela
América Latina. De acordo com ele, a ―enfeitada conversa‖ e o ―estilo bacharelesco‖
dos militares uruguaios comprometiam a eficiência do Exército daquele país.

Percebo, portanto, em ambas as citações, o mesmo chamado à empiria, à


realidade prática da existência, sendo que isso foi feito através da mobilização de
repertórios diferentes, mas combináveis entre si. Quando criticou a atuação parlamentar
dos Deputados paulistas, caracterizando os seus discursos como ―abstrata retórica
metafìsica‖, Prado pôs em prática um dos elementos mais fundamentais do
comportamento polìtico/conservador moderno: ―o imperativo de que cada ideia deva ser
julgada por sua congruência com a realidade‖, nas palavras de Karl Mannheim 497. Esse
mesmo tipo de apelo realista pode ser encontrado nos principais representantes do
pensamento conservador, como Edmund Burke e Alexis Tocqueville. Os textos desses
autores são examinados ao longo deste capítulo. Por outro lado, esse empirismo
sociológico/realista não é tão moderno assim, podendo ser identificado, também, em
importantes tratados do pensamento polìtico ocidental antigo, na ―Ética a Nicômaco‖,
de Aristóteles, nos manuais da retórica latina e na ―Suma Teológica”, de Tomás de
Aquino. Meu objetivo é, portanto, lançar luz sobre essa combinação de repertórios,
através de um exercício de história intelectual um tanto especulativo, já que, raramente,
como já disse em outros momentos deste trabalho, Prado explicitou as suas referências.
Porém, o catálogo da sua ―fantástica biblioteca do Brejão‖, como costumava falar
Afonso Arinos, mais uma vez, pode servir como uma espécie de ―condutor‖ nessa
empreitada especulativa.

Ao comentar o exercício dos militares uruguaios, Prado se comportou como um


civil legalista moderno, pois sugeriu que a disciplina deve ser o principal valor a ser
cultivado por um Exército profissional. Para o autor, a ―enfeitada conversa‖ dos
generais uruguaios compromete a eficiência e a obediência da tropa, que são valores

495
PRADO, Eduardo. ―Correio Paulistano‖. 27 de Janeiro de 1882.
496
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p. 124

242
específicos de uma cultura militar moderna que começou a se estabelecer na Europa
ocidental ao longo do século XIV e ganhou seus contornos mais sólidos na França
revolucionária do final do século XVIII. Portanto, se ao criticar o bacharelismo dos
Deputados paulistas, Prado utilizou certa concepção de conhecimento que nos remete,
em última instância, à antiguidade clássica, ao criticar a indisciplina do Exército
uruguaio, ele mobilizou uma percepção de disciplina militar que é moderna. Nos dois
casos, o fundamento da argumentação é o mesmo: tanto os deputados paulistas como os
militares uruguaios não cumpriam as suas respectivas funções porque se preocupavam
mais com as ―palavras enfeitadas‖ do que com a dimensão prática dos seus ofìcios.

Com essa argumentação, Eduardo Prado criticou o comportamento político do


Exército brasileiro ao longo ao longo dos anos 1870 e 1880, definiu o ―palavrório
bacharelesco‖ como um dos principais problemas da formação social brasileira, acusou
os legisladores da República de negligência sociológica e, na famosa polêmica com o
médico Luiz Pereira Barreto, confrontou a abordagem cientificista positivista. Em todas
essas discussões, Prado sugeriu que o circunstancialismo empírico é a melhor forma de
conhecer as sociedades humanas e de agir politicamente nelas, o que o aproxima,
também, de outros importantes representantes do pensamento político conservador
brasileiro, tais como Alberto Torres, Oliveira Viana e Gilberto Freyre.

Visando uma melhor organização da reflexão, divido este capítulo em três


partes, estando cada uma delas destinada ao debate no qual o empirismo de Eduardo
Prado é mais perceptível. Na primeira parte, eu examino a percepção de Prado a respeito
do bacharelismo brasileiro, o que permite destacar o seu esforço em compreender o
Brasil, um país que, para ele, estava se transformando em ritmo perigosamente rápido.
Na segunda parte, eu me debruço sobre o diagnóstico do autor em relação aos efeitos da
politização do Exército, que, segundo ele, teria ficado cada vez mais intensa ao longo da
década de 1870, na crise política que pôs fim à Monarquia. Na terceira parte, eu analiso
a crítica de Prado aos legisladores da república, que ele, pejorativamente, chamou de
―idealistas jurìdicos‖.

7.1- O bacharelismo como a fonte dos infortúnios da nação: a negação do moderno e o


elogio ao antigo

A bibliografia especializada na trajetória político/intelectual de Eduardo Prado


destacou o quanto a proclamação da República brasileira impactou o autor. Por isso, os

243
dois principais biógrafos do personagem, os já tão citados Sebastião Pagano e Cândido
da Mota Filho, afirmam que, após o golpe de novembro de 1889, Prado teria
abandonado a ―vida de dandy‖ e se lançado à militância política monarquista. Como eu
disse antes, considero ser um tanto exagerada a sugestão de que a trajetória de Prado
possa ser tão rigorosamente dividida em um período pré-republicano apolítico e um
período pós-republicano de intenso engajamento. Já é possível perceber algum
engajamento no final dos anos 1870, quando o jovem Prado era um personagem com
relativo destaque no cenário político paulista.

No entanto, fica muito claro que, de fato, a República reorientou as


preocupações político/intelectuais do autor. Para Prado, a mudança no regime político
significou a violação das tradições mais fundamentais da nacionalidade brasileira, um
evento que teria acelerado, perigosamente, o ritmo das transformações sociais no país.
A relação estabelecida por ele entre a proclamação da república, a aceleração da
experiência temporal e o ataque às tradições é tão importante que eu a examino,
especificamente, no próximo capítulo. Por ora, quero destacar o esforço de Prado em
compreender essa transformação, em entender como ele tentou explicar o evento que,
naquele novembro de 1889, teria dado fim a um perìodo de ―estabilidade, prosperidade
e liberdade‖ na história do Brasil, que, na interpretação do autor, seriam os sessenta e
sete anos nos quais o país foi governado pela Monarquia. Eduardo Prado afirma que a
desagregação da Monarquia pode ser explicada, também, pelos efeitos deletérios de um
elemento constitutivo do caráter nacional brasileiro. Nas suas próprias palavras: ―os
militares, no dia 15 de novembro, necessitaram de alguns bacharéis com boa prosódia
para reduzirem por escrito a revolução do quartel‖ 498.

Segundo Prado, o golpe militar republicano foi o resultado da ação corruptora do


bacharelismo civil sobre os militares do Exército. Analiso as críticas ao comportamento
político dos militares na próxima seção. Agora, eu desejo examinar, com mais cuidado,
o lugar que o bacharelismo, pensado como um fenômeno sociológico fundamental na
formação nacional brasileira, ocupa no pensamento político de Eduardo Prado.

Esse mal era visto [por Eduardo Prado] no quadro típico da formação brasileira,
onde o bacharelismo conseguira ter uma justificativa ou uma razão de ser. A
Eduardo não podia passar despercebido o diálogo que, de há muito, se
processava no país, entre os coronéis do interior brasileiro e os bacharéis das
cidades. Esse diálogo, que era uma espécie de conversa entre pai e filho,

498
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 16-17.

244
provocara o aparecimento de hábitos negativos, que acabaram por dificultar a
marcha normal da civilização brasileira (...) O bacharel, comprometido pela sua
origem, com a especulação rural existente, procurava, para Eduardo Prado, pelos
partidos políticos e pelas atividades parlamentares, conter a transformação de
tudo, impedir o progresso social do país, a eficácia de sua produção agrícola pela
sofisticaria e pela retórica. Atrás dessa retórica e dessa sofisticaria estavam os
fazendeiros atrasados, incapazes de compreender o valor da mão de obra livre 499.
(Grifos Meus)

O biógrafo identificou muito bem a rejeição de Prado ao bacharelismo, mas foi


pouco cuidadoso ao estabelecer uma relação de complementariedade obrigatória entre a
crìtica ao bacharelismo e a crìtica à retórica. Para Prado, o bacharelismo é ―sempre um
mal que se alastra como mosquito em corpo de animal doente, um adestramento da
500
inteligência fora da realidade para justificar todos os absurdos‖ , sendo que as suas
críticas à retórica, por outro lado, não são tão radicais. Para o nosso autor, a retórica
poderia ser ―boa e útil‖, desde que estivesse fundamentada em alguns procedimentos
que ele considerava indispensáveis, como o esforço de compreensão empírica da
realidade e o estilo discreto e elegante. É, exatamente, nessa discussão a respeito da
―boa e útil retórica‖ que percebo o uso que Eduardo Prado fez de certa concepção antiga
de retórica, justamente aquela que podemos identificar nos principais manuais latinos,
alguns deles podendo ser encontrados no catálogo da biblioteca pessoal do nosso
personagem.

O bacharelismo brasileiro já era um tema que Prado tratava com alguma


frequência, antes mesmo do seu envolvimento com a causa da restauração monárquica,

499
MOTA, FILHO Cândido. A vida de Eduardo Prado. José Olympia Ed, 1967. p. 153. É importante
destacar que também Gilberto Freyre, quase cinquenta anos depois de Eduardo Prado, associou o
bacharelismo brasileiro ao patrimonialismo rural. Para o ensaìsta pernambucano, ―desde os últimos
tempos coloniais que o bacharel e o mulato vinham se constituindo em elementos de diferenciação, dentro
de uma sociedade rural e patriarcal que procurava integrar-se pelo equilíbrio, e mais do que isso, pelo que
os sociólogos modernos chamam acomodação, entre dois grandes antagonismos: o senhor e o escravo. A
casa-grande, completada pela senzala, representou, entre nós, verdadeira maravilha de acomodação que o
antagonismo entre o sobrado e o mocambo veio quebrar ou perturbar‖. Ver FREYRE, Gilberto. Sobrados
e Mocambos. São Paulo: Global, 2004. p. 711.
500
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: Ed. Brasa, 1980. p. 172. O autor acreditava que o
bacharelismo era um dos alicerces do caráter nacional brasileiro, sendo ―a sua origem relativa aos tempos
coloniais‖. No geral, Prado sempre foi muito elogioso à colonização portuguesa, sendo essa referência à
origem colonial do bacharelismo uma das poucas vezes em que ele sugeriu a existência de uma herança
negativa proveniente da ação colonial lusitana. A referência é rápida e sem maior aprofundamento, o que
a torna periférica na economia do texto. Prado estava mais preocupado em apontar os efeitos deletérios do
bacharelismo do que identificar as suas origens. Ainda que ele tenha, inúmeras vezes, destacado esses
efeitos, chegou, no livro ―A Ilusão Americana‖, a atenuar o poder corruptor do bacharelismo, ao dizer que
―O espírito americano é um espírito de violência; o espírito latino, transmitido aos brasileiros, mais ou
menos deturpado através dos séculos e dos amálgamas diversos do iberismo, é um espírito jurídico que
vai, é verdade, à pulhice do bacharelismo, mas conserva sempre um certo respeito pela vida humana‖(p.
172). Ou seja, para Eduardo Prado, somente o ―espìrito de violência‖ dos EUA era pior do que o
bacharelismo jurídico latino do qual o Brasil era herdeiro.

245
como podemos perceber em algumas das suas ―Crônicas da Assembleia‖. Em abril de
1880, a Assembleia legislativa paulista discutia o projeto de reforma educacional
proposto pelo Deputado Inglês de Souza, vinculado ao Partido Liberal e, portanto,
adversário político de Eduardo Prado. Como já podemos esperar, Prado criticou o
projeto. Porém, estou interessando, especialmente, na forma como ele, mais uma vez,
ironizou os debates travados entre os parlamentares.

Na primeira seção noturna, os nobres deputados paulistas, à luz dos lampiões de


gás, discutiram por horas o projeto de reforma da instrução pública proposto pelo
nobre Deputado Inglês de Souza. Admitindo a sua filiação ao credo positivista, o
Deputado fez jus à metafísica e especulou até não poder mais, fazendo com que
os seus colegas e os poucos cidadãos que ocupavam as galerias aproveitassem a
noite para .... dormir501. (Grifos Meus)

Além de criticar os custos que as sessões noturnas estavam trazendo ao tesouro


público, Eduardo Prado utilizou o discurso do Deputado liberal como pretexto para
acusar o ―despreparo retórico‖ de alguns dos parlamentares paulistas. Para o nosso
autor, ―os nobres Deputados liberais, que defendem com unhas e dentes o projeto do sr
Inglês de Souza, não se cansam de citar Hipeau e outros escritores estrangeiros como
floreio de argumentação. Os ilustres parlamentares esqueceram, ou jamais aprenderam,
as lições retóricas ministradas por aqueles que deveriam ser referência para todos os
moradores da Assembleia provincial‖502. Prado não citou as tais ―referências‖ que,
segundo ele, deveriam ser obrigatórias para os Deputados. Ainda assim, acredito ser
possível sugerir algumas possibilidades, levando em consideração o catálogo da sua
biblioteca e a sua performance discursiva.

Em um importante estudo sobre a história intelectual brasileira no século XIX,


José Murilo de Carvalho destaca a observação feita por Oliveira Viana de que ―sem
503
citação de autoridades estrangeiras, nenhum pensador nacional seria levado a sério‖ .
Segundo Carvalho, o gosto dos oradores brasileiros pelas referências estrangeiras pode
ser identificado, também, nos discursos proferidos no Conselho de Estado, que durante
o período monárquico representou o mais alto degrau de uma trajetória política.
Tratava-se de um grupo homogêneo de pessoas que não tinha diante de si um
auditório diversificado e mal informado que fosse necessário impressionar e
convencer pela exibição de erudição. No entanto, lá também, as falas eram
marcadas por abundantes citações de autores estrangeiros, além de muitas
expressões latinas. O mais curioso é que frequentemente a mesma autoridade era

501
PRADO, Eduardo. ―Correio Paulistano‖. 08 de abril de 1880.
502
Idem.
503
CARVALHO, José Murilo de. A história intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura.
Topoi. Rio de Janeiro, n. 01. pp. 123-152. p. 127.

246
usada para justificar posições divergentes. Podia acontecer também que a citação
fosse feita para sancionar um determinado discurso que, no entanto, seria
abandonado na hora do voto sobre questões práticas504.

Nesse sentido, José Murilo de Carvalho nos apresenta uma argumentação muito
parecida com a de Eduardo Prado. Para ambos os autores, as referências internacionais
eram mobilizadas artificialmente pelos oradores brasileiros, que as usavam como
argumento de autoridade. Em vários aspectos, as interpretações sistematizadas por José
Murilo de Carvalho nos seus estudos a respeito da história brasileira oitocentista são
semelhantes àquelas que foram desenvolvidas por Eduardo Prado no final do século
XIX. Tal semelhança, somada ao fato de que, na efeméride ao centenário da morte de
Eduardo Prado, realizada na sede da Academia Brasileira de Letras em agosto de 2001,
José Murilo de Carvalho ter discursado em homenagem à obra do escritor paulista,
sugere o seu contato com os textos do nosso autor. Os vínculos entre a historiografia de
José Murilo de Carvalho e a interpretação do Brasil desenvolvida por Eduardo Prado
ainda não foram explorados nos estudos dedicados à história da historiografia brasileira.
Não é meu objetivo fazê-lo, pelo menos não aqui, nesta tese.
Estou interessado, especialmente, em entender melhor o que Prado queria dizer
quando caracterizou a citação de referências internacionais pelos oradores brasileiros
oitocentistas como um exercício de autolegitimação baseado no uso de uma autoridade
consagrada, um ―floreio de argumentação sem a menor utilidade‖. Em um texto escrito
nove anos depois da crônica publicada no ―Correio Paulistano‖, Prado voltou a abordar
as diferenças entre a boa e a má retórica.
O bom gosto retórico, a própria e simples clareza da língua, são coisas adversas à
pompa dos ditirambos bacharelescos, o apego aos autores estrangeiros ou à fúria
das invectivas, muito eloquentes em nossa terra, mas impossíveis no meio
europeu, sempre existente na proporção justa entre os fatos e a linguagem que os
aprecia505.

Ao criticar à retórica bacharelesca brasileira, Prado não está desqualificando a


tradição retórica em si, mas sim a falta de interesse por parte dos nossos oradores
oitocentistas pelas reais condições do Brasil. O nosso autor parece estar rejeitando a
apropriação moderna e romântica instituição retórica, segundo a qual a retórica é um
―conjunto de tropos e figuras de linguagem voltado aos artifìcios do estilo‖506. Há, tanto

504
Idem. p. 128.
505
PRADO, Eduardo. ―Jornal do Comércio‖. 27 de novembro de 1889. (Coletâneas, Vol 1, p. 237).
506
GENETTE, Gérard. A retórica restrita. In: COHEN, Jean (org). Pesquisas de retórica. Petrópolis:
Vozes, 1975. pp. 16-17. Segundo o autor, o classicismo francês do século XVII, criou um cânone retórico

247
na crônica de 1880 como no texto publicado pelo ―Jornal do Comércio‖ em 1889, a
mesma crítica ao artificialismo retórico moderno e o mesmo elogio ao exercício retórico
fundamentado na clareza e na ―proporção justa entre os fatos e a linguagem‖. Em outras
palavras: para Prado, a ―retórica bacharelesca‖ brasileira era vazia porque estava mais
preocupada com a forma do discurso do que com a sua capacidade em compreender e
modificar a realidade. Por isso, acredito que, para o nosso autor, a ―boa retórica‖ seria
aquela na qual as técnicas são aplicadas ―segundo as medidas do cálculo racional de
uma técnica específica que é mobilizada no ato contingente da invenção 507‖, para
utilizar as palavras de Robert Klein. Essa perspectiva contingencial508 de retórica não é
nada moderna509.
A quem fitam as pessoas, atônitas, quando ele fala? A quem aplaudem? A quem
tomam, diria eu, por um deus entre os homens? – Os que falam com nitidez, de
maneira explícita e profusa, cujas palavras e argumentos são apresentados com
completa clareza e que, ao proferirem um discurso, são capazes de atingir uma
espécie de rimo, falando da maneira que chamo de enfeitada 510.

Todos os genera de discurso público que empregamos são não apenas variáveis
em si, mas tem de ser accommodata – adaptados ou acomodados – à
compreensão popular e ao vulgo em geral, sendo preciso evitar qualquer tipo de
enfeite exagerado511.

baseado em poetas, como Homero e Virgílio, o que fez com que o pensamento moderno diminuísse a
importância dessa tradição, passando a considera-la na perspectiva puramente estética.
507
KLEIN, Robert. La théorie de l’expression figurée dans les traités italiens sur les imprese, 1555-1612.
In: ___. La forme et l’intelligible. Paris: Gallimard, 1970. p. 136.
508
A perspectiva contingencial da retórica já foi destacada por importantes estudiosos do tema. Por
exemplo, segundo Galen Strawson, a unidade básica da retórica não é a palavra, mas sim o enunciado,
entendo enunciado por ―a relação linguìstica estabelecida num ato de fala entre uma caracterização (ou
um predicado) e uma identificação (ou a situação e a posição de um sujeito lógico)‖. Portanto, o
enunciado somente existe na contigencialidade da experiência, o que faz com que a instituição retórica
deva ser vista mais como um conjunto de procedimentos orientação à acomodação às circunstâncias
práticas do que um sistema fechado e universalmente aplicável sob quaisquer circunstâncias. Ver
STRAWSON, Galen. Mental Reality. Nova York: Library of Congress, 1994. A reflexão desenvolvida
por Paul Ricoeur é semelhante. O filósofo francês lembra a fórmula do ato de fala, que, segundo ele, é o
fundamento da instituição retórica latina: ―Alguém fala alguma coisa sobre alguma coisa para alguém‖. A
partir dessa fórmula básica, Ricoeur aponta três características da instituição retórica, em todas elas sendo
a contingencialidade um elemento fundamental: ―1. ―Alguém fala‖: um ato contingente de enunciação
constitui um processo de identificação gramatical e lógica que inventa a ‗primeira pessoa‘ e o tempo da
sua fala; 2. ―alguma coisa sobre alguma coisa‖: o ato contingente que inventa a enunciação do sujeito
lógico e gramatical produz um enunciado, que relaciona um sentido a uma referência e a uma
significação; 3. ―para alguém‖: o ato de enunciação que constitui a 1ª pessoa e o enunciado constitui
simultaneamente o destinatário, ‗2ª pessoa‘‖. Ver RICOEUR, Paul. Metáfora Viva. Rio de Janeiro: Ed.
Loyola, 1996. p. 93.
509
A dimensão circunstancial da instituição retórica já pode ser percebida com alguma clareza nos textos
de Aristóteles, que define a retórica como ―a faculdade de descobrir especulativamente aquilo que, em
cada caso, pode ser adequado para persuadir‖. Ver ARISTÓTELES. Organon IV. Les réfutations
sophistiques. Trad. et notes par J. Tricot. Paris: Librarie Philosophique Vrin, 1939. P. 78.
510
QUINTILIANO. Instituta Oratoria. Michigan: Michigan Univesty Press, 1990. pp. 210.
511
CÍCERON. De oratore. Madri: Editorial Gregos, 2002. p. 42.

248
As citações foram extraídas de dois dos principais manuais da tradição retórica
latina, ambos pertencentes à biblioteca de Eduardo Prado, cujo catálogo, como já
comentei em outros momentos, foi publicado em 1916512. Os textos foram classificados
com a rubrica ―Linguìstica e Literatura‖. Trata-se do ―Instituta Oratoria‖, de
Quintiliano, e o ―De Oratore”, de Cícero. Em ambos os textos, existe o esforço de
conciliar a precisão retórica, que é definida como ―clareza‖ por Quintiliano e
―acomodada‖ por Cìcero, com o adequado enfeitamento da palavra. Para os teóricos, o
orador precisa ser capaz de falar com clareza e com pertinência, sem que ―haja nada que
pareça impróprio ou supérfluo513‖. Quando Prado define a ―retórica bacharelesca‖
brasileira como ―imprópria‖, ―superficial‖ e ―inútil‖, ele parece estar querendo dizer que
aos nossos oradores do século XIX faltava a capacidade de falar com clareza e de forma
adequada às circunstâncias, para que, de fato, o discurso fosse eficaz na compreensão e
na resolução dos problemas apresentados pela experiência.
Essa reivindicação de clareza e objetividade, entretanto, não fez com que Prado
tenha deixado de reconhecer a importância do embelezamento da palavra. Em um texto
publicado, em 1897, na coluna ―Livros Novos‖, da Revista Moderna, onde Prado
resenhava os livros recém-publicados no Brasil e em Portugal, o autor disse que
O dom de bem falar, quando é resultante do dom de bem compreender, e quando
o falar sempre com elegância, é a expressão elevada e instintiva de um sentir
sempre nobre – teve, em todos os tempos, e terá sempre, uma influência
avassaladora, enquanto os homens viverem em sociedade514.

A nobreza da fala está, para Prado, na associação entre o ―dom de bem


compreender‖ e a ―elegância‖, sendo o estilo valorizado como um elemento
fundamental para o exercìcio retórico, pois, somente assim, ―o escritor é capaz de
515
presentear o seu leitor com um texto útil e belo‖ . Para o nosso autor, um dos
principais defeitos da ―retórica bacharelesca brasileira‖ era ―o estilo por demais
empolado, de frase longa, torturada, difìcil e obscura‖. Da mesma maneira como
fizeram os teóricos latinos da retórica, Prado não dissociou a forma do conteúdo, e
considerou a beleza do estilo um importante atributo para o discurso, desde que isso não
comprometesse a abordagem clara e útil da realidade, entendendo por ―utilidade‖ a

512
Catalogue de la bibliotèche de Eduardo Prado. São Paulo. Typ. Brasil de Rotschilld e Cia, 1916.
513
QUINTILIANO. Instituta Oratoria. Michigan: Michigan Univesty Press, 1990. pp. 213.
514
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 05 de outubro de 1897. (Coletâneas, Vol 1, p. 267).
515
Idem.

249
capacidade do discurso em ―abordar rigorosamente a realidade, sem maiores voos
fantasiosos‖ 516.
Como eu já disse, em nenhum momento das suas crìticas ao ―palavrório
bacharelesco‖ brasileiro, Prado citou as referências que estavam no seu horizonte de
―boa retórica‖. Porém, penso não ser um absurdo sugerir que ele tinha em mente,
justamente, as recomendações apresentadas pelos retóricos latinos, como Cícero e
Quintiliano. Por exemplo, ao comentar o romance ―Passionário‖, do escritor
pernambucano Theotonio Freire, o nosso autor disse que ―o possìvel mérito do romance
se dissipa no hercúleo esforço do escritor em enfeitar demasiadamente a sua linguagem,
o que traz grande prejuìzo à clareza da estória‖517. Novamente, o problema, para Prado,
não parece estar, em si, no embelezamento da palavra, mas no excesso, no exagero, o
que o aproxima da noção ornato, que é bastante valorizada pela tradição latina, sendo
parte constitutiva da elocutio, que junto com a inventio e com a dispositio, forma o
conjunto dos procedimentos constitutivo da instituição retórica518.
Para Quentin Skinner, a elocutio foi o procedimento mais abordado tanto nos
manuais de retórica latinos como nos renascentistas, sendo considerada ―o poder do
519
orador de despertar as emoções da plateia‖ . Ao examinar importantes tratados dessa
tradição retórica, entre eles os já citados ―Instituta Oratoria” e ―De oratore”, Skinner
afirma que esses autores definiam o ornato como um ―equipamento para a batalha‖, que
deveria ser usado com ―adequação‖ pelo orador. Portanto, o vir civillis, de acordo com
os teóricos latinos da retórica, deveria ser capaz de adequar a escolha das palavras à
circunstância do discurso, o que envolve, entre outras coisas, a natureza do assunto
abordado e as características do público para o qual se fala.
Em nenhum momento, Prado utilizou o termo ―ornato” para criticar o estilo
―pomposo‖ e ―superficial‖ dos oradores e escritores brasileiros, mas me arrisco a propor
que era algo parecido com essa concepção de embelezamento discursivo, discreto e
regrado, que ele tinha em mente quando definiu como requisitos para a ―boa e útil

516
Idem.
517
Idem. p. 272.
518
HANSEN, João Adolfo. Instituição retórica, técnica retórica e discurso. matraga, rio de janeiro, v.20,
n.33, jul/dez. 2013. Para o autor, a inventio era o exercício de encontrar os lugares comuns adequados à
circunstancialidade do discurso, o que significa uma importante diferença em relação à noção moderna de
originalidade. Já dispositio consiste no ordenamento do discurso, ou seja, na escolha do gênero (se prosa
ou verso) no qual o orador dá forma à sua fala, sendo necessário adequar o gênero à circunstância da
argumentação.
519
SKINNER, Quentin. Razão e República na filosofia de Hobbes. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 92.

250
retórica‖ a clareza, o tratamento empìrico da realidade e a elegância. Em algum
momento, ele deve ter folheado os seus exemplares de Cícero e Quintiliano.
O apelo empírico que caracterizou as críticas de Eduardo Prado ao procedimento
retórico que ele afirmou ser típico do bacharelismo brasileiro, pode ser encontrado,
também, nos textos de outros importantes autores que, entre o final do século XIX e
meados do século XX, se empenharam em inventariar os infortúnios da nação. Além da
já citada crìtica de Oliveira Viana ao ―gosto nacional pelas autoridades estrangeiras‖,
destaco aquele que é um dos principais representantes da vertente autoritária do nosso
conservadorismo: Alberto Torres. Escrevendo na primeira década do século XX, Torres
criticou o bacharelismo brasileiro de forma bem semelhante àquela que Eduardo Prado
fizera poucos anos antes e como Oliveira Viana e Gilberto Freyre fariam alguns anos
depois.
Os problemas da terra, da sociedade, da produção, da povoação, da viação e da
unidade econômica e social ficaram entregues ao acaso; o Estado só os olhava
com os olhos do fisco; e os homens públicos, eram simples bacharéis – doutos
parlamentares e criteriosos administradores – não eram políticos nem estadistas;
bordavam, sobre a realidade da nossa vida, uma teia de discussões abstratas ou
vazias520.

Para Gilberto Freyre,


A ascensão do bacharel ou doutor – mulato ou não – afrancesado trouxe para a
vida brasileira muita fuga da realidade através de leis quase freudianas nas suas
raízes ou nos seus verdadeiros motivos. Leis copiadas das francesas e das
inglesas e em oposição às portuguesas: revolta de filhos contra país 521

Temos, portanto, nos textos desses autores, a recorrência da mesma associação


entre bacharelismo e ―discussão abstrata e vazia‖ e a mesma definição da perspectiva
empírico/realista como a mais adequada para a formulação intelectual e para a ação
política. Essa recorrência, de acordo com os estudos de Christian Linch, não é uma
simples coincidência, mas sim a demonstração da força dos valores conservadores no
pensamento político brasileiro. Para esse autor, esses valores começaram a se tornar
hegemônicos no Brasil já na primeira metade do século XIX.
O discurso político conservador que, entre as décadas de 1830 e 1850, firmou
essa ideologia na forma de um modelo institucional, conformou um tipo
particular de conservadorismo liberal, que parte de um determinado diagnóstico
dito realista ou sociológico da sociedade brasileira, considerada ainda na
menoridade devido aos males de sua formação social. A partir desta constatação,
prega-se a organização de um Estado tutelar, relativamente autônomo da
sociedade, incumbido de fundar a ordem nacional de cima para baixo e, a partir

520
TORRES, Alberto. A organização nacional. Revista Trimestral do Instituto Histórico do Brasil. N° 11,
3° trimestre de 1908.
521
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Global, 2004. p. 720.

251
dela, promover reformas efetivas, mas seguras, no sentido de veicular o
progresso nacional522.

Como pode o pensamento político brasileiro ser, ao mesmo tempo, marcado pela
hegemonia da perspectiva empírico/realista conservadora, como afirma Christian Linch,
e dado à abstração bacharelesca, como sustentam Eduardo Prado, Alberto Torres,
Oliveira Viana e Gilberto Freyre? Será que os dois repertórios podem ser igualmente
fundacionais do pensamento político brasileiro, sendo o primeiro característico dos
esforços de compreensão e de crítica da nossa cultura política e o segundo o fundamento
dessa própria cultura política? Não desejo apresentar respostas para essas perguntas,
mas sim demonstrar que o apelo empírico/realista que há pouco identifiquei nos textos
de importantes escritores brasileiros, incluindo os de Eduardo Prado, pode ser apontado
como uma das características definidoras do pensamento conservador moderno.
Eu já comentei que o conservadorismo se estabeleceu como ideologia política a
partir dos impactos da Revolução Francesa na cultura política ocidental. Esse é o tema
mais abordado pelos autores que, desde o final do século XVIII, estabeleceram os
elementos fundamentais da agenda político/intelectual conservadora.
[Para um conservador], nada é mais distante dos acontecimentos reais que o
sistema racional fechado. Em determinadas circunstâncias, nada contém um
impulso mais irracional do que uma visão de mundo intelectualista e totalmente
autossuficiente523.

Em seu exercício de delimitação das principais características do pensamento


conservador, Karl Mannheim chamou atenção para a rejeição conservadora aos
―sistemas racionais fechados‖, tìpicos de algumas correntes da filosofia moderna. Ainda
neste capítulo, eu abordo com mais cuidado essa rejeição. Interessa aqui, especialmente,
apontar como essa rejeição se desdobrou na adesão a um tipo de conhecimento mais
atento às condições práticas da realidade, mais empírico, podemos dizer. Para Robert
Nisbet, outro importante estudioso do tema, o tipo de conhecimento privilegiado pela
―mentalidade conservadora‖ é o ―conhecimento de‖,
que adquirimos simplesmente através da experiência, através da revelação da
vida ou, pelo menos, de áreas importantes dela. A sua essência é o aspecto
prático. Torna-se parte integrante do nosso carácter porque a sua origem está no
processo de habituação, na transformação em predisposição generalizada ou

522
LYNCH, Christian Edward Cyril. Quando o regresso é progresso: a formação do pensamento
conservador saquarema e de seu modelo político (1834-1851). In: NUNES, Gabriela; BOTELHO, André.
Revisão do pensamento conservador: ideias e política no Brasil. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010. pp. 23-54.
p. 26.
523
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p.242.

252
instinto do conhecimento adquirido através da experiência consciente ou
inconsciente e das experiências e erros vulgares524.

O apreço do conservadorismo moderno ao conhecimento empírico não foi


destacado apenas pelos intérpretes que, a posteriori, estudaram o tema. Esse apreço
pode ser identificado, com alguma facilidade, nos textos dos próprios ―pais fundadores‖
do pensamento político conservador. Alexis Tocqueville, por exemplo, ao comentar o
comportamento polìtico dos jacobinos na Revolução Francesa, disse que ―estava cheio
de palavras abstratas, discursos floreados, sonoras frases feitas e jogos literários‖ 525 ,
impressão que também foi exposta por Edmund Burke, para quem ―as reformas somente
são úteis quando maturadas à luz da experiência, devendo ser rejeitadas as propostas
calcadas apenas em princípios metafísicos, como a dos jacobinos, que com palavras
floreadas botaram na cabeça do povo fantasias irresistíveis de liberdade, igualdade e
justiça absoluta‖526. Como fica claro, Tocqueville e Burke criticaram os revolucionários
franceses com o mesmo argumento que Eduardo Prado usaria no final do século XIX
para apontar os defeitos do bacharelismo brasileiro. Os principais textos de Tocqueville
e Burke, como eu já comentei antes, também compunham o acervo bibliográfico do
nosso autor527.
No último capítulo, eu cheguei a apontar para a presença do tema do
bacharelismo nas conversas entre Eduardo Prado e Eça de Queirós. Chegou o momento
de desenvolver essa reflexão com mais cuidado, pois acredito que, aqui, reside outra
importante referência para o antibacharelismo do nosso autor e para a sua interpretação
a respeito do nascimento da República brasileira. Como já sabemos, Eduardo Prado e
Eça de Queirós eram amigos desde meados da década de 1880, estando o vínculo entre
os dois, como demonstra a correspondência trocada entre eles, especialmente forte em
1887, quando o escritor português visitou o Brasil. A estadia de Eça de Queirós no país
resultou em um pequeno ensaio, onde ele fez algumas considerações a respeito dos
hábitos brasileiros e analisou a conjuntura da época. O texto é intitulado,
sugestivamente, ―Carta a Eduardo Prado‖.
A nação inteira se doutorou. Do norte ao sul, no Brasil, não há, não encontrei
senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de
funções! Doutores, com uma espada, comandando soldados, doutores com uma

524
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. pp. 60-61
525
TOCQUEVILLE, Alexis. O antigo regime e a revolução. Ed. UNB: Brasília: 1997. p. 82.
526
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 32.
527
De acordo com o catálogo, Prado, de Tocqueville, tinha uma edição, de 1874, do ―O Antigo Regime e
a Revolução‖, uma de 1878 do ―A Democracia na América‖, ambas em lìngua francesa. Já de Burke,
consta o ―Considerações sobre a Revolução Inglesa‖, de 1881, em lìngua inglesa.

253
carteira, fundando brancos; doutores, com uma sonda, capitaneando navios;
doutores, com um apito, dirigindo a polícia; doutores, com uma lira, soltando
carnes; doutores, com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças,
ministrando drogas, doutores, sem coisa alguma, governando o Estado.... Uma
tão desproporcionada legião de doutores envolve todo do Brasil numa atmosfera
de doutorice528.

Se para Eduardo Prado, um dos principais problemas do Brasil era o


bacharelismo, para Eça de Queirós, o verdadeiro dilema nacional da ex-colônia
portuguesa era a ―doutorice‖. Se formos comparar o significado que os autores deram
aos dois termos, perceberemos que eles são sinônimos, sendo que ambos remetem ao
conhecimento de gabinete e incapaz de se ater às questões práticas da vida. Essa
equivalência fica evidente quando Eça de Queirós afirma que o ―feitio especial da
doutorice é desatender as realidades, tudo conceber a priori e querer organizar e reger o
mundo pelas regras dos compêndios‖. Recentemente, a interlocução entre Eduardo
Prado e Eça de Queirós foi objeto dos estudos da historiadora brasileira Maria
Aparecida Rezende Motta, para quem ―a apresentação/representação do caráter nacional
– o ―verdadeiro português‖ ou o ―verdadeiro brasileiro‖ – constitui-se no subtexto do
529
romance e da historiografia dos escritores brasileiros e portugueses oitocentistas‖ .
Nesse sentido, a autora sugere que, tanto Prado como Queirós, estavam preocupados em
interpretar os seus respectivos países à luz do conceito ocidental de civilização. O mais
interessante, na minha perspectiva, é que, nesse esforço, Prado escreveu sobre Portugal
e Queirós sobre o Brasil, o que demonstra o quanto os dois estavam interessados em
pensar as particularidades desses dois países no Ocidente moderno. Para os dois autores,
naquilo que se refere ao Brasil, o bacharelismo, ou ―doutorice‖, se quisermos falar como
Eça de Queirós, era uma característica fundacional da nossa nacionalidade.
Pouco tempo antes da proclamação da República brasileira, Eça de Queirós já
advertia Eduardo Prado de que ―a monarquia está por um fio, sendo suficiente a espada
530
desembainhada de um general para derrubá-la‖ . O romancista português prestou
muito atenção na questão militar, que foi um dos principais elementos de crise na
política brasileira ao longo da década de 1880. Os seus prognósticos foram ainda mais
longe, previsões que o desenrolar dos acontecimentos mostrou serem precisas: ―a
indisciplina e a doutorice grassam dentro do Exército, onde os militares, perigosamente,

528
QUEIRÓS, Eça. Carta a Eduardo Prado. São Paulo: Ateliê Editorial, 1982. p. 21.
529
MOTA, Maria Aparecida Rezende. Diálogos possíveis na periferia da civilização: Eduardo Prado e
Eça de Queirós. In: HOMEM, Amadeu Carvalho; SILVA, Armando Malheiro. ISAIA, Arthur Cesar. A
República no Brasil e em Portugal (1889-1910). Uberlândia: Ed UFU, 2007. pp. 35-53. p. 41.
530
QUEIRÓS, Eça. Carta a Eduardo Prado. São Paulo: Ateliê Editorial, 1982. p. 22.

254
falam de assuntos polìticos a todo momento‖531. O argumento é rigorosamente o mesmo
que Prado mobilizaria pouco tempo depois, no seu esforço de compreender a extinção
da Monarquia.
A carta de Eça de Queirós sugere, portanto, que o nosso autor não foi tão
surpreendido assim com a notícia da proclamação da República, como disseram os seus
dois biógrafos. Não à toa, foi, exatamente, na ―Revista de Portugal‖, editada por Eça de
Queirós, onde Eduardo Prado publicou as suas primeiras impressões a respeito dos
acontecimentos brasileiros: os artigos que mais que mais tarde seriam reunidos no livro
―Fastos da Ditadura Militar Brasileira‖. Nesses textos, o autor, ainda no calor dos
acontecimentos, afirmou que comportamento do Exército era o principal elemento
responsável pelo fim da Monarquia. Ao fazê-lo, Prado mobilizou valores relativos à
cultura militar moderna, como, por exemplo, a definição da disciplina e da obediência
como requisitos fundamentais para um Exército profissional.
7.2 - As críticas ao militarismo político: a negação do antigo e o elogio ao moderno

Eduardo Prado estava em Portugal na ocasião do golpe militar que, em


novembro de 1889, proclamou a República no Brasil. Como demonstrei no último
capítulo, por esses tempos, ele circulava pelas rodas intelectuais europeias,
especialmente pelo grupo dos escritores portugueses conhecidos como ―Vencidos na
Vida‖. Para os seus biógrafos, Prado estava vivendo um momento de ―puro diletantismo
e descompromisso com os assuntos da pátria532‖ e, por isso, o fim da Monarquia, ao
533
mesmo tempo, ―o surpreendeu e despertou nele todo o seu furor patriótico‖ . Ao
estudar a trajetória de Eduardo Prado na segunda metade da década de 1880, não
identifico nem o ―descompromisso‖ do qual fala Cândido da Mota Filho e nem a
―surpresa‖ que, segundo Sebastião Pagano, teria caracterizado a forma como o nosso
autor recebeu a notícia da proclamação da República.

As correspondências que Eduardo Prado trocou com seus interlocutores


portugueses, especialmente com Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, entre 1886 e 1889,
demonstram que ele estava bastante atento aos acontecimentos brasileiros. Não à toa,
Prado esperou com tanto entusiasmo os relatos da viagem de Ramalho Ortigão e leu
com atenção os relatos da viagem de Eça de Queirós. Já sabemos que Ramalho Ortigão

531
Idem. p. 23.
532
MOTA, FILHO Cândido . A vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: José Olympio Ed, 1967. p. 203.
533
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p. 89-90.

255
frustrou o amigo brasileiro e jamais escreveu o tão aguardado livro ―Brasil‖, exemplo
que não foi seguido por Eça de Queirós, que escreveu, em 1887, um ensaio a respeito do
país, que, como já sabemos, teve a forma de uma carta destinada a Eduardo Prado.
Ainda em abril de 1888, o jornal português ―Correio Mercantil‖ publicou um pequeno
artigo escrito pelo nosso autor, um texto intitulado ―Destinos polìticos do Brasil‖.

No Brasil, os bacharéis a serviço da República se agitam e já contaminam os


quartéis, onde a tropa se insufla, contando com o apoio de generais bacharéis que
agem com o politicismo típico dos pronunciamentos retóricos. Continuará a
existir a monarquia? Continuará a existir o Brasil unido 534?

Esse texto quase não atraiu a atenção dos estudiosos que, desde a primeira
década do século XX, se debruçaram sobre a trajetória político/intelectual de Eduardo
Prado. Talvez, por isso, tenha se fortalecido a percepção de que o autor recebeu com
surpresa a notícia da Proclamação da República, evento que teria sido o responsável
pelo fim da sua apatia política e do seu desinteresse pelas questões nacionais. José
Honório Rodrigues foi um dos poucos intérpretes a chamarem atenção para esse texto,
dizendo que Prado desejava

fazer a minoria dirigente brasileira, monarquista ou republicana, uma séria


advertência sobre os perigos que ameaçavam o Brasil na sua unidade e
integridade. (...) Mas ele chegou tarde, quando a conspiração ia longe demais
para fazê-la parar e os conservadores e liberais monarquistas estavam paralisadas
pela abolição da escravatura535.

No artigo publicado no jornal português, Prado examinou o cenário político


brasileiro com argumentos bastante semelhantes aos que Eça de Queirós havia utilizado
um ano antes. Como entre a viagem de Eça de Queirós ao Brasil e a publicação do
―Destinos Polìticos do Brasil‖, o nosso autor não retornou ao seu paìs natal, acredito ser
bem razoável supor que o texto do escritor português foi uma das referências utilizadas
por Prado nos seus prognósticos. O Brasil estaria, portanto, para os dois amigos,
vivendo uma crise provocada pelo descompromisso do bacharelismo com a realidade e
pela insubordinação e indisciplina que agitavam os quartéis. Esses mesmos argumentos
foram utilizados por Prado quando, apenas um mês após a proclamação da República,
536
foi publicado, na ―Revista de Portugal‖ , o seu primeiro texto sobre o assunto, o

534
PRADO, Eduardo. Jornal ―Correio Português‖. Abril de 1888.
535
RODRIGUES, José Honório. A História da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional: 1973, p. 74.
536
A ―Revista de Portugal‖ foi um dos principais empreendimentos literários de Eça de Queirós, já tendo
sido objeto de estudos que se debruçaram sobre a trajetória desse romancista português. Para Miranda
Andrade, a publicação ―chegou a ser a expressão mais elevada da intelectualidade portuguesa. O seu alto
nível cultural – e não se faz uma afirmação meramente retórica – deu-lhe foros de categorizada revista

256
primeiro de uma série de seis artigos que tiveram grande repercussão537, no Brasil e na
Europa, e que se tornariam as mais importantes páginas do pensamento político
brasileiro restaurador, fazendo de Eduardo Prado o principal inimigo da imprensa
republicana brasileira538.

Ora, em todo o país em que houver um partido adverso à forma de governo,


partido ardente e exacerbado pela impossibilidade de legalmente realizar a sua
ambição, e ao lado desse partido houver um exército tão justamente descontente
de si mesmo e de todo o mundo, como o exército brasileiro, o acordo entre essas
duas forças será fatal porque lógico539.

Com essas palavras, Eduardo Prado, assinando o pseudônimo ―Frederico de S.‖,


iniciou o artigo ―Os Acontecimentos do Brasil‖, que foi publicado na edição de
dezembro de 1889, na ―Revista de Portugal‖, tendo sido o primeiro dos seis textos que,
até maio de 1890, se dedicariam à análise dos primeiros passos da República brasileira.
Já nessas primeiras linhas, o nosso autor apresenta aquele que seria o seu principal
argumento na explicação dos fatores que levaram à extinção Monarquia: a proclamação
da República teria sido o resultado da união dos bacharéis insatisfeitos com os militares
indisciplinados. Na seção anterior, eu demonstrei como o nosso autor criticou o
bacharelismo brasileiro, através da negação da retórica moderna e do elogio à retórica
antiga. Agora, nesta seção, pretendo mostrar como ele fez o exercício inverso, ao negar

europeia‖. O autor afirma que o objetivo de Eça de Queirós era ―projetar na Europa as produções
literárias portuguesas, as obras artísticas, o desenvolvimento científico, o pensamento nacional, enfim sua
contribuição cultural ao debate europeu‖. A Revista de Portugal circulou entre julho de 1889 e maio de
1892. Ver ANDRADE, Miranda. Eça de Queiroz e a Revista de Portugal. 1 ed. Revista Ocidente: Lisboa,
1984. p. 26.
537
Os artigos dos ―Fastos‖ tiveram grande repercussão, sendo traduzidos e publicados em jornais
alemães, ingleses e franceses. No Brasil, os textos circularam amplamente pelas províncias, o que fez com
que o governo da República tenha enviado o jornalista Eduardo Salomonde à Europa para tentar rebater
as críticas de Eduardo Prado. Era um momento no qual a jovem República ainda buscava o
reconhecimento internacional e, por isso, era necessário defender a imagem do novo Regime. O jornal ―A
República Portuguesa‖ foi o principal espaço utilizado por Salomonde na sua defesa, contando para isso
com o ajuda do publicista português José Pereira de Sampaio, o Bruno, que foi um dos principais
adversários que Eduardo Prado enfrentou na sua campanha internacional contra a República. Ainda neste
capítulo, eu examino os embates entre os dois.
538
Para a historiadora Maria de Lourdes Mônaco Janotti, as discussões provocadas pelos textos de
Eduardo Prado que foram publicados na ―Revista de Portugal‖ representaram o primeiro grande
constrangimento para as novas instituições. Segundo a autora, ―as ideias de Eduardo Prado serviram
como uma plataforma da base ideológica do grupo em formação. Conseguindo denunciar escândalos,
sobre membros do governo, militares banqueiros e comerciantes, e também comprovar com fatos as
violações das liberdades públicas e privadas, seus artigos constituíram-se em uma sistematização do
discurso monarquista em um primeiro momento‖ (p. 34). A autora afirma, também, que os veìculos da
imprensa republicana se esforçaram em desqualificar as crìticas de Prado, atacando a ―Revista de
Portugal‖ por ―por veicular, no exterior, uma visão mìope e detratora da realidade nacional‖(p.35). Ver
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da república. São Paulo: Editora Brasiliense,
1986.
539
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 2.

257
certa concepção antiga de soldado, justamente aquela que foi delineada por Aristóteles
no tratado ―Ética a Nicômaco‖. Nessa negação, Prado defendeu a cultura militar
moderna, baseada na disciplina, na obediência e na despolitização das forças armadas,
valores que são representados pela noção de ―soldado profissional‖. O nosso autor,
portanto, transitou muito bem entre as tradições antiga e moderna do pensamento
político ocidental, sabendo adequar cada uma delas às demandas da sua argumentação.

Nos artigos dos ―Fastos‖, Prado criticou, especialmente, a formação dos


militares do Exército brasileiro, que, segundo ele, desde o final da Guerra do Paraguai
(1864-1870), estavam mais preocupados com as discussões doutrinárias do que com as
especificidades práticas do seu ofìcio. ―Muitos dos oficiais brasileiros são apenas
bacharéis de espada; eles prezam mais do que tudo as graduações do seu curso
matemático, e o título de bacharel ou de doutor é por eles mesmos anteposto à
540
designação das suas patentes‖ . Contemporaneamente aos fatos, Prado examinou a
conjuntura política brasileira, buscando compreender os motivos que levaram os
militares do Exército a proclamarem a República e, segundo ele, instaurarem um
governo tirânico que, ao contrário da Monarquia, não respeitava as liberdades mais
fundamentais. Em um primeiro momento da sua análise, ainda no calor dos
acontecimentos, o nosso autor afirmou que a contaminação do Exército pelo
bacharelismo havia sido a principal causa do fim do regime político governado pelo
Imperador D. Pedro II.

O soldado brasileiro que, na Guerra do Paraguai, mostrou uma bravura tão


constante, uma abnegação tão comovente nos maiores sofrimentos, tem ainda
hoje as mesmas qualidades. Infelizmente, não é boa a direção dada a essas
qualidades. O oficial novo é de um tipo bem diferente do antigo. Já não existe
mais o velho militar, descendente direto da milícia portuguesa das campanhas
peninsulares, raça de oficiais aguerridos nas lutas do Sul do Brasil, que salvou a
unidade do país sufocando as revoltas, sustentou a honra brasileira e defendeu a
civilização, destruindo as tiranias militares de Rosas e de Lopez. Não eram
talvez muito instruídos esses bravos; mas eram claros exemplos de fidelidade à
honra dos seus juramentos. As suas ideias simples, feitas mais de sentimento e
hábitos de dedicação do que de complicados raciocínios, não lhes permitiam
sutilezas e distinções, quando se tratava do dever militar. O oficial novo, no
Brasil, ouviu nas escolas maior número de professores. Esses professores (pelo
menos muitos deles) ou são bacharéis discursadores, ou são militares de livro
francês, filosofantes do positivismo, desses que para a exposição dessa escola
tiverem a habilidade de criar no Brasil uma retórica especial 541. (Grifos Meus)

540
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 26.
541
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 25.

258
O autor divide, portanto, os oficiais do Exército brasileiro em dois tipos: o velho,
que tinha como modelo o soldado especializado na técnica da guerra, que lutou pela
pátria nos campos paraguaios, e o novo, que teria perdido o interesse pelos assuntos
práticos da profissão das armas e se tornado um bacharel dado às especulações teóricas.
Para Prado, Benjamin Constant foi o modelo tìpico desse ―bacharel de fardas‖, o grande
responsável pela corrupção do Exército brasileiro com os pronunciamentos políticos:
―Benjamin Constant corrompeu a inteligência da mocidade ensinando-lhe a doutrina
endeusadora da tirania, que se chama positivismo‖542. As críticas de Eduardo Prado a
Benjamin Constant ficaram bem explícitas na análise que o autor fez a respeito do
projeto de reforma do ensino militar, que foi apresentado por Constant em abril de
1890. Definindo o projeto como um ―preâmbulo humanitário‖, Prado o caracterizou
como ―uma coletânea de ciências inúteis, que mostra como o seu redator não tolera os
militares que se contentam com as glórias puras de sua nobilìssima profissão‖543.

À sombra dos seus numerosos empregos, o sr Benjamin Constant conspirou


contra as instituições que jurara defender e incutiu o espírito de indisciplina no
exército brasileiro, que dos seus antigos mestres tinha recebido lições mais úteis
e, sobretudo, exemplos mais nobres544.

Acredito que os textos dos ―Fastos‖ não devem ser lidos na perspectiva de uma
manifestação antimilitar, mas sim como um exercício de interpretação que apontou a
politização do exército, após o final da Guerra do Paraguai, como o principal elemento
de crise da Monarquia. Porém, ainda que estivesse falando no calor dos acontecimentos
e comprometido com o projeto da restauração monárquica, Prado teve o cuidado de não
fundamentar a sua análise da crise política da década de 1880 em apenas um elemento.
Para ele, o militarismo político pode ser explicado, também, pela influência perniciosa
de Benjamin Constant e do positivismo, mas não só. No diagnóstico do autor,

Será, porém, injusto quem só condenar os militares; menos dignos e mais


audazes, nas valentias sem perigo, são os bacharéis ministros, antigos advogados
e jornalistas encanecidos na prática inveterada do artigo em favor de todas as
liberdades e do arrazoado em defesa dos direitos do homem em geral (e dos raros
clientes em particular)545.

Os bacharéis civis teriam, de acordo com o autor, contaminado o Exército com


suas pregações filosóficas e com a defesa ―de todas as liberdades‖ e dos ―direitos do

542
PRADO, Eduardo. Jornal ―A Bomba‖. 09 de novembro de 1894.
543
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 108.
544
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 123.
545
PRADO, Eduardo. Fastos da ditadura militar brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 23.

259
homem‖. Na citação, ainda que não tenha se aprofundado nessa discussão, Prado, ao
novamente criticar o bacharelismo brasileiro, parece ter apontado para outro problema
do comportamento político/intelectual bacharelesco, algo que não se restringe, apenas,
ao desapego às condições práticas da existência: a importância, considerada inadequada
pelo autor, atribuída à filosofia moderna, especialmente ao princípio do Direito Natural.
No quinto capítulo desta tese, ao examinar parte dos escritos de juventude de Eduardo
Prado, eu demonstrei como ele, no início dos anos 1880, mobilizou valores pertencentes
ao repertório do Direito Natural, o que seria, de acordo com a minha interpretação, um
elemento de dissonância da performance político/intelectual do jovem Eduardo Prado
em relação ao valores do conservadorismo moderno. Contudo, dez anos depois, o autor
se tornou, tal como os principais escritores conservadores, um opositor ferrenho à
doutrina do Direito Natural e da filosofia das luzes, o que, nas especificidades de sua
atuação antirrepublicana, se traduziu na crìtica que ele fez ao ―idealismo jurìdico‖ dos
primeiros legisladores da República brasileira. Examino essa crítica com mais cuidado
na próxima seção. Aqui, quero continuar explorando a reflexão de Prado a respeito do
militarismo político.

Os militares, como grande parte da população do Rio de Janeiro e das cidades do


Brasil, sofrem de um nervosismo especial, talvez próprio nos países quentes,
onde a ociosidade é comum; onde a razão é de impressões fáceis; onde a palavra,
sob a forma de discurso, é um prazer, que na função ativa do orador, quer na
função passiva de ouvinte, e é, em todo caso, a mais barata das distrações546.

O governo monárquico cometeu um erro imenso deixando ao ensino militar o


seu caráter exclusivamente teórico. O sr Dom. Pedro II, tão ocupado das
ciências, não fez senão abacharelar o oficial do exército, que agora naturalmente
revela um tão pronunciado furor politicante, discursante e manifestante 547.

Para o nosso autor, o tão nefasto militarismo político pode ser explicado,
também, pela influência do clima e pelo próprio temperamento ―bacharelesco‖ do
Imperador D. Pedro II. Naquilo que se refere à associação do bacharelismo militar ao
clima, Prado destaca os efeitos deletérios da natureza sobre a formação do caráter do
brasileiro e aponta para aquela que, pouco tempo depois, se tornaria a grande
característica da sua interpretação do Brasil: a definição da natureza como um obstáculo
à implantação da civilização nos trópicos, o que valoriza, ainda mais, ação colonial
portuguesa, e católica, na América. Essa interpretação teve eco na produção ensaística
que na primeira metade do século XX se debruçou sobre o problema da nacionalidade

546
PRADO, Eduardo. Fastos da ditadura militar brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 26.
547
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 26.

260
brasileira. Remeto-me, aqui, especialmente, aos textos de Gilberto Freyre. No último
capítulo desta tese, onde estudo a historiografia produzida por Eduardo Prado, eu
examino melhor esse aspecto do seu pensamento conservador.
Até mesmo o Imperador D. Pedro II, a quem Eduardo Prado tanto estimava, foi
responsabilizado pela grande mal que teria sido a politização do exército. O autor
definiu o Monarca como o ―primeiro dos bacharéis‖, como o ―Rei Civil que se
preocupou mais em ler os últimos compêndios franceses do que enxergar os reais riscos
que ameaçavam o seu trono‖. Portanto, a extinção da Monarquia se explicaria, também,
segundo Prado, pelo ―espìrito bacharelesco‖ do próprio Imperador, que ―com seu
pacifismo civilista‖ teria transformado o Exército em uma instituição de ―formação de
bacharéis‖, quando deveria ser ―uma corporação disciplinada, técnica e obediente‖. Esse
argumento teve eco na historiografia brasileira, o que torna Eduardo Prado uma das
principais matrizes para os estudos que, até os nossos dias, se debruçaram sobre o
problema da crise da Monarquia. Por exemplo, Gilberto Freyre, novamente, me parece
ser um dos principais herdeiros de Eduardo Prado, autor que ele mesmo definiu como
548
―um dos mais influentes publicistas brasileiros do final do século XIX‖ . Em
―Sobrados e Mocambos‖, o ensaìsta pernambucano dedicou um capìtulo ao estudo do
bacharelismo brasileiro, afirmando que ―A ascensão dos bacharéis brancos se fez
rapidamente no meio político, em particular, como no social em geral. (...) Mas foi com
Pedro II que a nova mística – a do bacharel moço- como que se sistematizou. (...)
549
porque ninguém foi mais bacharel nem mais doutor neste paìs que D. Pedro II‖ .
Também ainda não foi devidamente estudada a importância dos textos de Eduardo
Prado para a interpretação do Brasil desenvolvida por Gilberto Freyre.
A sugestão de Eduardo Prado de que a politização e a bacharelização do
Exército foram as principais causas da proclamação da República vem sendo
desdobrada por diversos estudiosos que, posteriormente, se interessaram sobre o tema.
Entre esses autores, José Murilo de Carvalho, como eu comentei antes, parece ter sido
aquele que mais se apropriou das hipóteses que Eduardo Prado desenvolveu na década
de 1890.

A escola militar, sobretudo após a entrada do positivismo, transformou-se num


centro de estudos de matemática, filosofia e letras, mais do que de disciplinas
militares. A influência positivista intensificou-se depois do ingresso de Benjamin
Constant no quadro docente em 1872. Depoimentos de ex-alunos e o conteúdo

548
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. São Paulo: Ed. Global, 2004. p. 314.
549
Idem. p. 713.

261
das revistas publicadas pelos alunos denunciam a predominância de um ambiente
muito distante do que seria de esperar numa instituição destinada a preparar
técnicos em fazer guerra550.

Tal como Prado, Carvalho também associou a influência positivista à politização


do Exército e, consequentemente, à intervenção militar que proclamou a República. O
autor de ―Os Bestializados‖ ainda vai mais a longe e, de forma bastante semelhante
como Prado havia feito cem anos antes, sugere o mesmo efeito deletério que o
bacharelismo teria provocado nos quartéis brasileiros nas últimas décadas do século
XIX.

O que na verdade produzia a escola eram bacharéis fardados, a competir com os


bacharéis sem farda das escolas de Direito. Esses oficiais gostavam de ser
chamados de doutores dentro do próprio exército. Era ―dr General‖, ―dr
Tenente‖, ou simplesmente, ―seu doutor‖. Estava criado o ambiente para a
aceitação da ideia do soldado-cidadão que desde a proclamação da República
passou a integrar a ideologia das intervenções militares no Brasil551.

O tema foi desenvolvido, ainda, por outros autores que discutiram o problema da
proclamação da República. Para Celso Castro, por exemplo, à exceção de Deodoro da
Fonseca, ―os oficiais que participaram ativamente do golpe republicano eram, em
grande parte, jovens oficiais de patentes inferiores (...)‖, militares que, em sua maioria,
―vinham dos chamados ―corpos cientìficos‖ do Exército‖ 552. Ao situar os conflitos entre
os oficiais do Exército e os políticos civis da década de 1880 no conjunto mais amplo da
discussão a respeito da relação entre as forças armadas e a política, o que, para o autor, é
a principal discussão da cultura militar moderna, Celso Castro aponta para uma questão
que é fundamental para o argumento que desenvolvo neste capítulo. Antes de
desenvolver melhor essa reflexão, eu gostaria, ainda, de chamar atenção para os estudos
de Vitor Izecksohn, Renato Lemos e Frank MacCam, pois todos esses autores também
podem ser considerados, em alguma medida, herdeiros da análise de Eduardo Prado.

Para Vitor Izecksohn e Renato Lemos, a experiência na Guerra do Paraguai foi


fundamental para o desenvolvimento do “esprit de corps” do Exército brasileiro, pois
―a partir das modificações que sua dinâmica imprimiu nos militares que dela tomaram
parte como oficiais e que dela saíram como portadores de um discurso específico sobre

550
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005. pp. 24-25.
551
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005. pp. 26-27.
552
Celso Castro. Os militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar ed, 1995. pp. 08-09.

262
553
a nação‖ . Nesse sentido, o sentimento de grupo típico das forças armadas teria se
tornado ainda mais forte em virtude dos vínculos de camaradagem forjados nos campos
paraguaios, o que, segundos autores, fez com que a participação dos oficiais do Exército
na crise política tenha sido motivada, sobretudo, por um sentimento corporativista.
Eduardo Prado não atribuiu maior importância a esse corporativismo, pois, para ele,
como já sabemos, o principal elemento causador da crise política que pôs fim à
Monarquia foi a politização do Exército, que é resultado da influência do positivismo.
Essa crescente politização é destacada, também, por Renato Lemos, que aponta para
algo que passou despercebido por Eduardo Prado: em 1881, na ocasião das primeiras
eleições diretas da história do Brasil, dois militares se apresentaram como candidatos a
um assento na Câmara dos Deputados.

A presença de militares em eleições não era nenhuma novidade, pois desde a


primeira metade do século XIX, generais como Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de
Caxias, e Manoel Luís Osório, o Marquês de Herval, ocuparam cargos legislativos por
diversas vezes, tendo Caxias, inclusive, sido chefe de governo em duas ocasiões. No
entanto, ainda na esteira das considerações de Renato Lemos, o ativismo militar da
década de 1880 teve uma particularidade: o que estava em jogo não era mais o
comportamento político de um oficial comprometido com os valores aristocráticos da
Monarquia, mas sim o interesse dos militares em terem representados os seus interesses
corporativos na arena da política formal. Ao examinar a campanha eleitoral de 1881, o
autor afirma que

Foi uma campanha de fundo corporativa que responsabilizada os grupos


políticos dominantes por problemas como o pagamento incerto de soldos e
pensões, o baixo valor dos soldos, a lentidão nas promoções, a inexistência de
uma lei de aposentadoria compulsória que permitisse a abertura de vagas para
oficiais jovens, o descumprimento da promessa imperial de prioridade para os
veteranos da Guerra do Paraguai no preenchimento de vagas no serviço civil e
más condições de vida no serviço554.

Ainda que as candidaturas dos dois militares tenham sido derrotadas, de acordo
com a interpretação de Renato Lemos, elas traduziram um novo perfil de
comportamento político do Exército, um comportamento baseado na pretensão à
intervenção política institucional, o que teria se materializado na ocasião do golpe

553
Ver Vitor Izecksohn. O cerne da discórdia: a Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército
Brasileiro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1997. p.80.
554
LEMOS, Renato. A alternativa republicana e o fim da monarquia. In: SALLES, Ricardo;
GRINBERG, Keila. O Brasil Imperial. (Vol.III). Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2009. p. 420.

263
republicano de novembro de 1889. Também o historiador norte-americano Frank
MacCam, que é um importante estudioso da história militar brasileira, diagnosticou a
crescente politização do exército na década de 1880.

A missão do exército não estava claramente definida, e por isso a educação


militar tomava direções contrárias ao desenvolvimento de uma força profissional
os formandos recentes das escolas militares haviam sido imersos, em um
currículo mais voltado para as humanidades e a ciência teórica do que para as
artes práticas e militares555.

Essa breve discussão bibliográfica tem importância central para a argumentação


que venho desenvolvendo nesta tese. Acredito que Eduardo Prado foi um dos principais
intelectuais brasileiros da transição do século XIX para o século XX, o que fica muito
claro pela repercussão dos seus textos, fazendo do autor a grande referência do
antimilitarismo monarquista na primeira metade da década de 1890556. Ao discutir,
portanto, o tema da politização do Exército, Prado fundou uma tradição interpretativa
que utilizou a proclamação da República como uma experiência emblemática do perigo
que o ativismo político dos militares poderia representar para um país 557. Estou
convencido de que ao investir tanta energia no estudo dos currículos das Escolas
Militares e nos ataques a Benjamin Constant, o nosso autor não estava desqualificando
as forças armadas como um todo, mas sim delineando aquilo que, segundo ele, seria o
modelo ideal de militar: o soldado profissional, técnico e perito na prática das armas, e
não o teórico que a Escola Militar da Praia Vermelha estaria formando desde a década
de 1870, quando Benjamin Constant passou a fazer parte do corpo docente da
instituição. Temos aqui, novamente, a reivindicação de uma percepção empírica da
555
MCCAM, Frank D. Soldados da Pátria: História do Exército brasileiro (1889-1937). São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 29.
556
Em um estudo sobre os primeiros anos da República, o historiador Lincoln Pena sustenta a hipótese de
que o ―florianismo‖ foi o primeiro movimento a surgir na República, sendo o princìpio da intervenção
política um dos pilares desse movimento. Naquilo que se refere à interpretação do florianismo no
pensamento social brasileiro, o autor destaca duas correntes: ―de um lado, os que entoam loas em torno
dos predicados legalistas e civilistas‖ e ―do outro, os que atribuem o êxito da República ao gesto imperial
(ditatorial ?) imposto por Floriano aos seus adversários‖. Eduardo Prado, de acordo com Licoln Pena, foi
o fundador da primeira corrente, que teve como característica, justamente, o civilismo político. Ver
PENA, Lincoln de Abreu. Rio de Janeiro: e-papers, 2002. p. 08.
557
A relação entre os militares e a política foi um dos principais temas em discussão na Primeira
República. Em um trabalho anterior, eu examinei o esforço dos primeiros governos civis em despolitizar
o exército, o que resultou na lei 403, de 26 de outubro de 1896. O objetivo era, justamente, disciplinar a
corporação, tornando-a mais técnica, mais ―moderna‖, nos termos do texto da lei. Ver OLVIEIRA,
Rodrigo Perez. As Armas e as letras: a Guerra do Paraguai na Memória Oficial do Exército brasileiro
(1881-1901). Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2013. A discussão a respeito da relação entre os militares e a
política foi especialmente importante na corrida presidencial de 1910, quando Rui Barbosa disputou com
o Marechal Hermes da Fonseca: um jurista contra um militar e, Eduardo Prado, foi mobilizado como
principal referência na crítica ao militarismo político. Ver HOLLANDA, Cristina Buarque de. Modos de
Representação política: o experimento da Primeira República brasileira. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2009.

264
realidade, a valorização do conhecimento prático em detrimento do teórico, o que, como
estou tentando demonstrar neste capítulo, é um argumento típico do repertório do
conservadorismo moderno.

Para além do empirismo, a discussão de Eduardo Prado a respeito da politização


do Exército traz ainda outro aspecto que é central para esta tese. Ao negar o ativismo
político dos militares, Prado, ao mesmo tempo, mobilizou valores fundamentais para o
pensamento politico moderno e rejeitou valores do pensamento político clássico,
especialmente de Aristóteles, um dos autores mais presentes no seu acervo
bibliográfico558. Nas palavras de Eduardo Prado:

No mundo civilizado não há duas opiniões sobre a imoralidade clamorosa do


militarismo político. Poderíamos fazer cem citações de trechos em que os
escritores militares dos países cultos ensinam o que já está em todas as
consciências, isto é, que o dever da obediência incondicional e a missão natural
do exército vedam ao cidadão armado pela nação toda a intervenção na
política559.

Nessa guerra havia: de um lado, o pequeno exército chileno triplicado pelo


número de voluntários; do outro, havia dois exércitos desmoralizados por longos
anos de intervenções na política, desorganizados pelos pronunciamentos,
desprestigiados pelas confraternizações, aviltados pelas traições e pelas
falsidades que são a sorte comum da vida de todo o exército que se mete em
política560.

Nas duas citações, Prado fundamenta a sua argumentação em valores que são
característicos de uma concepção moderna de forças armadas, de acordo com a qual o
Exército deveria estar compromissado com a defesa da soberania nacional e formado
por homens recrutados na sociedade civil, profissionalizados e subordinados ao Estado.
Esse conceito moderno de Exército fica muito claro na primeira citação, quando o nosso
autor utiliza a palavra ―civilização‖ para sustentar a sua crìtica ao militarismo polìtico.
Para Eduardo Prado, o Exército de um paìs ―civilizado‖ precisa ser completamente
despolitizado, sendo sua obediência ao governo civil incondicional. Quando, por
ventura, o Exército não atende aos requisitos da obediência e da disciplina, os resultados
podem ser catastróficos, como, por exemplo, na guerra entre Chile e Peru561. Como já
sabemos, no livro ―A Ilusão Americana‖, Prado examinou com algum cuidado a história

558
Entre textos escritos por Aristóteles e por comentadores da obra do filósofo, Prado adquiriu cerca
setenta tìtulos, entre esses o ―Ética a Nicômaco‖, que é analisado neste capìtulo. Os textos foram
organizados sob a rubrica ―Filosofia‖.
559
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 112.
560
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: Ed. Brasa, 1980. p. 86.
561
Entre 1879 e 1883, Chile e Peru se confrontaram na ―Guerra do Pacìfico‖, conflito que Prado
examinou com cuidado no livro ―A Ilusão Americana‖. O motivo do conflito, entre outras coisas, pode
ser situada na disputa por recursos naturais e territórios.

265
das relações diplomáticas entre os países americanos, sendo o conflito entre os chilenos
e peruanos um dos principais exemplos que ele utilizou para questionar o princípio da
―fraternidade americana‖, que era um dos argumentos utilizados pelos propagandistas
da República para justificar a mudança no regime político brasileiro.

Segundo Eduardo Prado, o resultado da guerra mostrou como um Exército


politizado é nocivo à nação. A grande diferença entre os dois países seria, justamente, o
grau de envolvimento dos seus respectivos Exércitos com os assuntos da política.
Enquanto no Chile, o Exército seria profissional e obediente, no Peru, a corporação seria
dada às intervenções políticas. Por isso, na experiência da guerra, que demanda preparo
técnico e qualificação profissional, as forças peruanas teriam sido facilmente derrotadas
pelas chilenas. Ao atribuir a derrota no campo de batalha à politização, Prado desejava
chamar atenção para o despreparo do próprio Exército brasileiro, que na época era a
instituição responsável pelo governo da República. É como se ele estivesse advertindo
que, em caso de guerra, a soberania brasileira estaria seriamente ameaçada, pois o nosso
Exército não estaria preparado para defendê-la.

Temos, aqui, pelo menos, duas questões que podem ser lidas à luz das diferenças
entre os repertórios antigo e moderno: o envolvimento com as questões políticas, típico
de uma perspectiva antiga de Exército, e a ―obediência incondicional‖ ao governo
estabelecido, considerada uma característica indispensável de um exército moderno.
Vejamos o que disse sobre o tema das relações entre os militares e a política um dos
autores mais presentes no acervo bibliográfico de Eduardo Prado.

Em primeiro lugar vem a coragem do cidadão-soldado, que é a que mais se


assemelha à verdadeira coragem. Os cidadãos-soldados parecem enfrentar os
perigos em virtude das penas cominadas pelas leis e das censuras em que
incorreriam se assim não procedessem, e também por causa das honras que lhes
valerá a sua ação. Por isso afiguram-se mais bravos aqueles povos entre os quais
os covardes são expostos à desonra, e os bravos são honrados562.

Ao discutir o comportamento ético considerado ideal para a ―boa vida‖ na polis,


Aristóteles dedicou longas páginas ao problema da coragem. Para o Estagirita, a cidade
somente seria capaz de realizar o seu ideal (o bem comum) se os seus cidadãos fossem
homens virtuosos e dedicados às duas atividades consideradas fundamentais para o
pleno exercício da cidadania: a política e a guerra. Ao delinear o seu modelo de soldado
ideal, Aristóteles nos apresenta uma concepção muito distinta da de Eduardo Prado.

562
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultura, 1991. p. 62.

266
Naquilo que se refere ao tema das relações entre os militares e a política, o nosso autor,
definitivamente, não seguiu os conselhos do filósofo grego, do pensador que, em outras
ocasiões, ele tomou como modelo para as suas críticas à República brasileira, como eu
demonstrei no quarto capítulo desta tese.
A experiência com relação a fatos particulares é também considerada como
coragem; aí temos, em verdade, a razão pela qual Sócrates identificava a
coragem com o conhecimento. Outras pessoas revelam essa qualidade diante de
outros perigos, e os soldados profissionais nos perigo da guerra; pois na guerra
parece haver muitos alarmas infundados, dos quais esses homens têm a mais
ampla experiência; e por isso parecem bravos, uma vez que os outros ignoram a
natureza dos fatos. Por outro lado, sua experiência os torna capacíssimos no
ataque e na defesa, porquanto sabem fazer bom uso das armas e dispõem das
melhores tanto para atacar como para defender-se. Batem-se, por conseguinte,
como homens armados contra homens desarmados, ou como atletas bem
treinados contra amadores, pois também nesses encontros não é o mais bravo que
melhor luta, mas o mais forte e o que tem o corpo em melhores condições 563.

Aqui, Aristóteles parece ser aproximar da concepção de soldado que muitos


séculos depois se tornaria fundamental para a cultura política moderna. De acordo com
o filósofo grego, o preparo técnico é fundamental para o bom desempenho na guerra,
sendo o soldado mal treinado equivalente a um ―homem desarmado‖, pois para o êxito
bélico a coragem, por si só, não é o bastante. Ao colocar a questão nesses termos,
Aristóteles está sendo coerente com aquela que me parece ser a grande questão
levantada no tratado ―Ética a Nicômaco‖: a valorização da ação calculada, do senso de
circunstância, de uma perspectiva empírica da realidade, para me manter usando a
terminologia que vem sendo fundamental para o argumento deste capítulo. No entanto,
algumas linhas depois, o filósofo parece reorientar a sua argumentação.
Os soldados profissionais mostram-se covardes, no entanto, quando a tensão do
perigo é muito grande e quando são inferiores em número e em equipamento. E
são os primeiros a fugir, ao passo que as milícias de cidadãos perecem nos seus
postos, como realmente sucedeu no templo de Hermes. Com efeito, para estes
últimos a fuga é desonrosa, e morrer é preferível a salvar-se em tais condições;
enquanto os primeiros desde o princípio enfrentaram o perigo na convicção de
que eram os mais fortes, e ao terem conhecimento da realidade fogem temendo
mais a morte do que a desonra. O bravo, porém, não procede assim 564.

O que explica uma guinada tão abrupta na argumentação do filósofo é,


justamente, a forma como ele encara a atividade da guerra. Para Aristóteles, a guerra é,
fundamentalmente, um ato polìtico, pensando aqui a noção de polìtica como ―a busca
pelo bem comum, pois o homem que não busca o bem comum não é honrado‖565.
Portanto, ainda que o soldado profissional seja tecnicamente superior ao soldado
563
Idem. p. 63.
564
Idem. p. 64.
565
Idem. p. 194.

267
cidadão, é, também, menos virtuoso, pois para ele, a guerra nada mais é do que um
ofício, enquanto para o soldado-cidadão é um ato político, uma forma de zelar pelo bem
comum da cidade. Sendo assim, para Aristóteles não há uma dicotomia mais rígida
entre a política e a guerra, sendo, por isso, perfeitamente aceitável que o soldado tenha
uma vida política ativa, já que ele é, também, um cidadão. Com o passar do tempo, essa
percepção dos vínculos entre a vida militar e a vida política foi se modificando. Na
Idade Média, a atividade militar foi pensada como um vínculo de vassalagem:
―(...) A instituição do trabalho servil, como mecanismos de extração de
excedente, fundia a exploração econômica e a coerção político legal, no nível
molecular da aldeia. O servo, por sua vez, tinha normalmente o dever da
vassalagem e do serviço militar para com o seu suserano senhorial, que
reclamava a terra como seu domìnio supremo‖ 566.

Após o século XVI, pari passu à construção do Estado moderno, foi surgindo
uma nova concepção de Exército, que combinou o princípio da técnica profissional com
o exercício da cidadania, sendo o vínculo necessário entre o militar e a política foi,
progressivamente, desfeito. Estamos, aqui, bem próximos da noção de ―soldado
profissional‖ que, para Eduardo Prado, era ideal para o mundo moderno civilizado.
A ausência da obediência passiva nos exércitos significará sempre, cedo ou
tarde, a escravização do povo à força armada. Perdida a noção de obediência,
perdida ficará também a concepção justa do destino dos exércitos que são
criados para a defesa externa e interna das sociedades, e não para dominá-las567.

As palavras são de Eduardo Prado, e nelas podemos encontrar, novamente, o


tratamento moderno que o autor deu ao tema das relações entre os militares e a política.
Acredito ser importante reconstruir, ainda que brevemente, a história desse pensamento
militar, apontando para a modernidade do conservadorismo de Eduardo Prado. O
curioso é que, nesse assunto específico, talvez sem saber, ele valorizou o legado da
Revolução Francesa.
O historiador inglês Perry Anderson sugere que o primeiro movimento da
cultura militar ocidental rumo à modernidade aconteceu ao longo na transição do século
XVI para o século XVII, quando a Europa ocidental mostrou ao mundo um novo
modelo de Exército. Os Exércitos dos Estados Absolutistas, geralmente, não eram
compostos por uma força nacional formada por recrutas, mas sim por uma massa
heterogênea na qual os mercenários estrangeiros desempenhavam um papel constante e
central. Esses mercenários eram recrutados nas áreas exteriores ao perímetro das novas
Monarquias centralizadas. A razão mais óbvia para o fenômeno mercenário, ainda

566
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004. p. 72.
567
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 114.

268
segundo Perry Anderson, foi a resistência da nobreza em armar os seus camponeses. Já
temos aqui, pela primeira vez, a percepção de que o armamento da população civil
poderia ser uma ameaça ao regime político instituído. Esse impasse somente seria
solucionado, ao menos no plano das ideias, com a noção de ―fidelidade à pátria‖, que
somente se tornaria mais clara no final do século XVIII.
Para o historiador norte-americano Alan Forest, o mês de abril do ano de 1792
foi um divisor de águas na história da Revolução Francesa e das relações internacionais
entre os Estados europeus. Foi nesse momento que o governo revolucionário francês
declarou guerra à Áustria e pôs fim ao período de coexistência pacífica entre a França
revolucionária e as Monarquias europeias568. Entre os diversos desdobramentos da
guerra, o autor destaca a criação do primeiro programa de recrutamento militar de
massa. A guerra foi utilizada como bandeira política pelos agentes envolvidos no
processo revolucionário e promoveu um intenso aumento da visibilidade do Exército na
opinião pública francesa. Alan Forest acredita que a partir da formação da segunda
coalizão antirrevolucionária, a guerra tornou-se o centro da atuação do Estado
revolucionário francês, o que demandou o envolvimento da população civil no conflito.
O autor acredita que a guerra revolucionária introduziu uma novidade na sociedade
francesa.
Nacionalismo e um senso de dedicação à causa da pátria fez deste conflito uma
guerra de princípios em que a avaliação racional dos ganhos e perdas deu lugar a
uma reação muito mais emotiva, que foi a missão de proteger o território e a
cultura do povo francês contra os ataques estrangeiros 569.

Era esse elemento emotivo que faltava para combinar o preparo técnico com a
obediência. O bom soldado, a partir de então, passaria a ser aquele que, antes de tudo,
ama a sua pátria, sendo, portanto, capaz de dar a vida por ela no campo de batalha.
Porém, não podemos confundir a devoção do soldado moderno com a coragem do
cidadão clássico, da qual fala Aristóteles. Como a guerra moderna assumiu uma
―dimensão total‖, para usar um termo caro a Alan Forest, surgiu a necessidade de
especialização e treinamento constante das corporações militares. Por isso, também o
Exército nacional precisava se profissionalizar e ser preparado para a movimentação
militar, que já eram características presentes nos Exércitos de mercenários. Porém,

568
FOREST, Alan. Soldiers of the French Revolution. Durham and London: Duke University Press, 1990.
Um aspecto que merece atenção do estudo do autor é a sua percepção de que o conflito entre a França e as
Monarquias europeias não deve ser analisado apenas em seu aspecto ideológico, mas também na
conjuntura das relações internacionais do velho mundo nos últimos anos do século XVIII.
569
FOREST, Alan. Idem. p.5.

269
como agora a guerra passa a ser travada, fundamentalmente, entre nações, é necessário
que o soldado tenha um vìnculo afetivo com o seu ―contratante‖. Mas ainda aqui, existe
o perigo do Exército se voltar contra o governo. Por isso, o principio da disciplina,
ainda segundo as considerações de Forest, é tão importante para a cultura militar
moderna. Para que a sua função seja cumprida, o Exército precisa devotar ―obediência
incondicional‖ ao governo, o que significa que a corporação não deve ter opinião
política. É exatamente esse o teor do argumento utilizado por Eduardo Prado para
criticar a intervenção militar que fundou a República brasileira.
A ditadura militar brasileira, já no seu nascedouro, começa condenando a
obediência passiva do soldado. Começa pela destruição da base de toda a
organização militar, porque ou é passiva ou já não é mais obediência (...) Não há
uma só autoridade, um só general de patriotismo provado no campo de batalha,
que tenha pretendido justificar o equívoco personagem que nas sociedades há de
ser sempre o militar que quiser conquistar posições políticas570. (Grifos Meus)

Nada poderia ser mais moderno e antiaristotélico do que essas palavras. No


entanto, tanto a filosofia aristotélica como o pensamento moderno precisam ser
pensados como repertórios complexos e constituídos por conjuntos heterogêneos de
valores. Naquilo que se refere especificamente ao tema das relações entre os militares e
a política, a filosofia aristotélica, ao pensar a guerra como um tipo de ação política,
positivou o envolvimento do soldado-cidadão com as questões inerentes ao governo da
cidade. Já o pensamento moderno, interditou o ativismo político ao soldado, que foi
definido como um técnico disciplinado e, sobretudo, obediente. Como ambos os
repertórios podem ser apropriados de diversas formas, Prado os utilizou de acordo com
a especificidade dos seus interesses. Dependendo do assunto discutido, o nosso autor
modificou o seu uso a respeito dos repertórios antigo e moderno. Isso fica ainda mais
claro na próxima seção.

7.3- As críticas ao idealismo jurídico republicano: a combinação entre o antigo e o


moderno na reivindicação da perspectiva empírico/sociológica da realidade

Após um primeiro movimento interpretativo, no qual definiu o militarismo


político como o principal elemento responsável pelo fim da Monarquia, Prado
examinou, com grande rigor crítico, o esforço da República em se institucionalizar
juridicamente. Para o autor, os primeiros governos republicanos, movidos pelo
―idealismo jurìdico‖ e ―inspirados nas abstrações racionalistas modernas‖, estariam

570
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 109-
110.

270
desenvolvendo uma legislação incompatível com a realidade brasileira. Mais uma vez,
Eduardo Prado reivindicou uma perspectiva empírica da realidade, o que fez com que
ele utilizasse um argumento muito parecido com aquele que Edmund Burke e Alexis
Tocqueville mobilizaram nas suas críticas ao racionalismo revolucionário. Todos eles,
por sua vez, são, em alguma medida, herdeiros da tradição da phronesis aristotélica e da
prudentia republicana. Examinar a apropriação desses repertórios nos escritos de Prado
é o meu principal objetivo nesta seção.

Sendo assim, acredito que Eduardo Prado pode ser considerado representante de
uma proposta político/epistemológica moderna que valorizou mais o conhecimento das
experiências do que o das totalidades, que priorizou o estudo das práticas em detrimento
das abstrações teóricas. Por outro lado, essa perspectiva epistemológica tem raízes
muito antigas, que nos remetem, em última instância, à discussão
polìtico/epistemológica que Aristóteles desenvolveu no tratado ―Ética a Nicômaco‖.
Portanto, se na primeira seção deste capítulo, eu abordei como Prado, ao se debruçar
sobre o tema do bacharelismo brasileiro, rejeitou a modernidade e mobilizou os valores
da tradição retórica antiga, e na segunda seção, demonstrei como ele negou os valores
militares antigos e elogiou a cultura militar moderna, agora, desejo entender como o
autor combinou as tradições antiga e moderna nas suas críticas à jurisdição republicana,
que ele considerava ser ineficiente, na medida em que era mais dada às idealizações
filosóficas do que atenta às especificidades da realidade brasileira.

O governo pode apresentar, em verdade, um índice de decretos alterando


tudo(...). Na sua ambição de achar soluções para todos os problemas sociais e
políticos, o governo Provisório apenas parece ter indagado se a solução adotada
era a mais radical, ou a preconizada em última instância pelo livro francês mais
recentemente desencaixotado na alfândega 571. (Grifos Meus)

A citação foi extraìda de um dos artigos dos ―Fastos‖ e apresenta um dos


principais argumentos desenvolvidos por Eduardo Prado ao longo da década de 1890. A
menção é rápida, mas, ainda assim, aponta para uma reflexão um tanto quanto diferente
daquela que vimos o autor desenvolver quando o tema em questão era a retórica ou o
militarismo político. Para Prado, um dos principais defeitos dos governantes da
República era a pretensão em resolver ―todos os problemas sociais e polìticos‖,
desconsiderando, dessa forma, a limitação epistemológica inerente aos seres humanos, o
que, segundo Robert Nisbet, ―é considerado um equìvoco de princípio para o
571
PRADO, Eduardo. Fastos da ditadura militar brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 103-
104.

271
conservadorismo‖ 572
. Temos, nesse aspecto, a dimensão mais claramente
epistemológica do empirismo conservador, o que não significa a ausência da dimensão
política. Quando Eduardo Prado, por exemplo, criticou a pretensão da filosofia
moderna, que ele, mais de uma vez, qualificou como ―prepotente‖, em solucionar ―todos
os problemas da humanidade‖, estava criticando, também, os modelos de administração
política que se inspiravam nessas propostas filosóficas. Para Prado, a República
brasileira era um deles.

Poderíamos encher páginas e páginas de extratos de livros, de jornais e de


discursos de americanos interpretando a chamada doutrina num sentido bem
diverso da interpretação jacobina que hoje é acreditada no Brasil. Preferimos,
porém, relatar simplesmente os fatos573. (Grifos Meus)

Com essas palavras, Eduardo Prado iniciou o livro ―A Ilusão Americana‖, que,
como eu já comentei antes, é o seu texto mais conhecido. Segundo Prado, a República
representava a implementação das ideias do revolucionarismo francês no Brasil, sendo o
objetivo do seu livro examinar, empiricamente e sem recorrer às discussões
doutrinárias, a forma como o novo regime estava governando o país. Já no método
adotado pelo autor, fica clara a sua perspectiva político/epistemológica: os debates
abstratos e doutrinários são considerados inúteis, na medida em que não contribuem
para a compreensão da realidade prática. Nesse sentido, Eduardo Prado considera o
empirismo, ao mesmo tempo, como o horizonte da atuação política eficaz e como a
melhor forma de compreender a realidade. Por isso, ele recorreu à máxima rankeana do
apego aos fatos, ainda que o historiador alemão não tenha sido citado pelo nosso autor,
o que não quer dizer que não tenha sido lido. A julgar pela forma como Prado escreveu
os seus textos voltados à história da atuação dos padres jesuítas na colonização da
América Portuguesa, acredito ser bem razoável sugerir que ele leu os textos de Ranke e
de outros importantes nomes do historicismo germânico. Examino essa interlocução no
último capítulo desta tese.

Essa associação entre a demanda epistemológica por uma análise empírica da


realidade e o clamor por uma administração política comprometida com os reais
problemas da nação pode ser percebida, também, na polêmica que Eduardo Prado
travou com o médico Luís Pereira Barreto, um dos principais nomes do positivismo

572
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 52.
573
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 28.

272
brasileiro574. O ponto de partida da polêmica foi a publicação, em abril de 1901, no
jornal ―O Estado de São Paulo‖, do artigo ―O século XX sob o ponto de vista
brasileiro‖, de autoria de Pereira Barreto. No texto, o médico se propôs a analisar ―os
motivos que justificam o atraso da nação575‖, tema sobre o qual os intelectuais
brasileiros estavam se debruçando na época576.

Nenhum país oferece tamanha variedade de condições climatéricas com o Brasil,


que tem todo o território navegável, de norte a sul do território. O mundo da
ciência contempla com admiração os extraordinários recursos que nos dão as
nossas disposições topográficas577.

Ao elogiar, dessa forma, as condições naturais do Brasil, Pereira Barreto estava


se apropriado da intepretação desenvolvida pelo historiador britânico Henry Thomas
Buckle (1821-1862), que era bastante conhecida na época578. De acordo com a
interpretação de Luciana Murari, autora de um importante estudo sobre a circulação das
teses de Buckle pela historiografia brasileira finissecular,

Em suas teorias, o naturalista afirmava que, nos países quentes e de solo fértil, a
sobrevivência seria facilitada pelos elementos naturais extremamente generosos,
de forma que o homem não se sentiria estimulado a desenvolver suas energias
individuais e sua capacidade de trabalho. (...)Em síntese, o principal argumento
de Buckle sobre o Brasil era que, diante do esplendor da natureza, o país não
deixava espaço para os homens, reduzidos à insignificância frente à majestade
natural que os cercavam579.

574
Segundo Ivan Lins, Pereira Barreto é o principal nome do positivismo brasileiro independente, não
tendo tido, jamais, vínculos mais estreitos com o Apostolado Positivista, fundado e comandado por
Miguel de Lemos e Teixeira Mendes. O autor argumenta, também, que Pereira Barreto, com o seu livro
―As Três Filosofias‖, foi o pioneiro na divulgação das ideias de Augusto Comte no Brasil. Na época, o
livro gerou muita polêmica entre os próprios positivistas, chegando a ser definido por Miguel Lemos
como uma ―manta de retalhos escandalosamente plagiados‖. Na interpretação de Ivan Lins, os conflitos
que foram travados entre Pereira Barreto e o Apostolado Positivista podem ser interpretados na
perspectiva da dicotomia heterodoxia X ortodoxia. Enquanto Pereira Barreto era um ―vulgarizador‖ da
doutrina de Comte, tendo o objetivo de difundir as ideias do filósofo no Brasil, os membros do
Apostolado afirmavam ser necessário não ―macular a doutrina do mestre francês‖. Ver LINS, Ivan.
História do Positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1962. p. 57.
575
BARRETO, Luìs Pereira. ―O Estado de São Paulo‖. 25 de abril de 1901.
576
Sobre os debates que, no final do século XIX, se debruçaram sobre o problema das relações entre a
natureza e a nacionalidade brasileira, remeto o leitor ao estudo de Márcia Naxara. Ver NAXARA, Márcia
Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o
Brasil no século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
577
Idem.
578
Henry Thomas Bukcle considerava o Brasil o exemplo mais claro dos efeitos deletérios que a natureza
opulenta e fértil podem ter na formação do caráter nacional de um povo. De acordo com o historiador
inglês, ―Todo o Brasil, apesar de suas várias vantagens aparentes, sempre permaneceu totalmente
incivilizado; seus habitantes vagam selvagens, incompetentes para resistir aos obstáculos que a
generosidade da natureza colocou em seu caminho. Os nativos, como todos os povos na infância da
sociedade, são avessos ao empreendimento e, ignorantes com as artes devido a impedimentos físicos,
nunca tentaram lidar com as dificuldades que impediram seu progresso social.‖. Ver BUCKLE, Henry
Thomas. History of civilization in England (vol. I). London: Longmans, Green and C.O., 1908. p. 79.
579
MURARI, Luciana. Natureza e cultura no Brasil. São Paulo: Alameda, 2009. p. 75.

273
Portanto, para os autores que seguiram as trilhas de Buckle, entre os quais
Luciana Murari insere os nomes de Capistrano de Abreu e de Oliveira Viana, a
fertilidade e opulência da natureza eram, ao mesmo tempo, virtudes e catalisadores de
um vìcio, pois acomodado com as ―facilidades da terra‖, o brasileiro havia se tornado
um tipo social preguiçoso e indolente. O que mais irritou Eduardo Prado foi o fato de
Pereira Barreto ter atribuído à formação católica a responsabilidade pelo atraso do
Brasil.

Habitamos o mais belo, o mais rico, o mais favorecido, o mais fácil, para a vida,
de todos os países da terra. Somos, porém, um povo que nada tem feito, por viver
atrasado, peiado, atado, paralisado, desinteressado das coisas deste mundo,
porque vivemos enfeitiçados pela preocupação da outra vida e do sobrenatural,
fruto da perniciosa influência do catolicismo português 580.

Pereira Barreto tocou em um tema bastante sensível para o nosso autor, que,
desde meados da década de 1890, estava estudando a história da colonização portuguesa
nos trópicos americanos. Prado considerou o texto de Pereira Barreto uma ofensa àquilo
que, para ele, era o elemento mais valioso da nacionalidade brasileira: o catolicismo
legado pela colonização portuguesa. No próximo capítulo, eu examino a resposta de
Eduardo Prado ao artigo do médico positivista, pois acredito que aí reside um dos
principais aspectos do pensamento político do nosso autor, o fundamento da sua
interpretação do Brasil. Por enquanto, eu quero explorar a crítica que Eduardo Prado fez
ao método analítico desenvolvido pelo seu interlocutor.

O otimismo anticientífico do escritor quer fazer caber no mesmo saco muitos


proveitos contraditórios, como se fosse possível sustentar uma tese científica
apenas com abstrações, sem nenhum apreço pela realidade concreta da nossa
natureza. Esta noção de nossas imensas riquezas, noção originada da vaidade
ignorante, passou agora a ser o que o Dr Barreto tem do Brasil. É a mais falsa,
perigosa e enganadora das ilusões. As coisas são o que são e não o que queremos
que elas sejam. O Dr Barreto, porém, vive feliz, porque a sua visão das coisas é o
reflexo exato dos seus desejos. E logo traz essas coisas a público, como ele as vê,
e é inegável que o ilustre clínico vê errado581. (Grifos Meus)

Na citação, Prado nos apresenta um argumento tipicamente conservador,


baseado na rejeição ao otimismo, considerado demasiado e ingênuo, dos sistemas
filosóficos modernos, entre os quais o autor situa o positivismo. Para ele, uma analise
mais comprometida com a ―realidade dos fatos‖ demonstraria o quanto a instalação de
uma civilização nos trópicos foi tarefa difícil, que vinha sendo desenvolvida, com
relativo sucesso, até a proclamação da República, que o autor considera o momento de

580
BARRETO, Luìs Pereira. ―O Estado de São Paulo‖. 25 de abril de 1901.
581
PRADO, Eduardo. Coletâneas Vol 4. São Paulo: Tipografia Salesiana, p. 169-170.

274
interrupção da marcha civilizacional brasileira. Acredito que uma das grandes questões
levantadas por Eduardo Prado na sua rejeição à interpretação do Brasil desenvolvida por
Pereira Barreto tenha sido relativa à dicotomia conhecimento teórico X conhecimento
prático, uma discussão que não é nada nova na história do pensamento ocidental.

Ao abordar o problema da ação polìtica a no tratado ―Ética a Nicômaco‖,


Aristóteles, de acordo com a interpretação de Hans George Gadamer, criticou a ideia
platônica de bem comum, considerada pelo Estagirita como uma ―generalidade vazia‖.
Essa crìtica, ainda segundo as considerações de Gadamer, faz de Aristóteles ―o fundador
582
da ética como disciplina independente da metafìsica‖ . As palavras do filósofo grego
parecem confirmar a interpretação do intérprete alemão.

Uma vez que a presente investigação não visa ao conhecimento teórico como as
outras — porque não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos
tornarmos bons, do contrário o nosso estudo seria inútil —, devemos examinar
agora a natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los; pois que, como
dissemos, eles determinam a natureza dos estados de caráter que daí surgem 583.

Aqui, Aristóteles está investindo de valor uma sabedoria prática e atenta às


especificidades da experiência, diferente do conhecimento abstrato e teórico tão caro a
Platão. Contudo, é necessário ter alguma cautela para não estabelecermos uma ruptura
demasiadamente radical entre a discussão ética desenvolvida por Aristóteles e a
metafísica platônica, pois ambos os filósofos não separam o conhecimento do domínio
da ética, pensada aqui como a ―busca pelo bem‖. A grande novidade trazida por
Aristóteles é, exatamente, o enfoque na dimensão circunstancial desse comportamento
ético/epistemológico, pois ―as explicações que buscamos devem estar de acordo com os
respectivos assuntos‖. O que Aristóteles parece estar reivindicando é a adequação entre
o exercício epistemológico e o fenômeno analisado, entre a atuação política e as
especificidades da situação. É importante dizer que, para o grego, esse saber prático não
é, necessariamente, superior ao saber proveniente da metafísica, sendo, tão somente,
mais adequado ao estudo dos assuntos humanos. Diz o filósofo que ―(...) as questões de
conduta e do que é bom para nós não têm nenhuma fixidez, pois não há arte ou preceito
que os abranja a todos, mas as próprias pessoas atuantes devem considerar, em cada
caso, o que é mais apropriado à ocasião‖ 584.

582
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: ED FGV, 2006. p.
47.
583
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultura, 1991. p. 30.
584
Idem. p. 31.

275
Não se trata, aqui, portanto, da simples desqualificação da abstração platônica,
mas sim na afirmação de que as ―coisas humanas‖ não são compatìveis com a rigidez
teórica, que se demonstra ―útil nos estudos dos assuntos da matemática‖. Portanto, é
como se Aristóteles estivesse interessado em desenvolver uma abordagem adequada ao
esforço de compreensão dos assuntos humanos, abordagem que não tem teor
exclusivamente epistemológico, mas que visa, também, orientar a ação política. É,
justamente, esse saber ético/político, de natureza prática e voltado para a singularidade
da experiência, que Aristóteles chama de phronesis585. Porém, é preciso tomar cuidado,
adverte Gadamer, para não imputarmos ao Estagirita a posição de pioneiro nos debates
filosóficos a respeito dos saberes práticos. Platão, antes de Aristóteles, já o tinha feito,
mas de maneira ligeiramente distinta.

Uma técnica se aprende e pode ser esquecida; pode-se perder uma habilidade.
Mas o saber ético nem se aprende nem se esqueceu. Ele não é como o saber de
uma profissão que se pode escolher; não se pode recusá-lo e escolher um outro
saber. Pois, ao contrário, o sujeito da Phronesis, o homem, se encontra desde já
em ―ação numa situação‖ e, assim, sempre obrigado a possuir um saber ético e a
aplica-lo segundo as exigências de sua situação concreta 586.

Portanto, enquanto Platão definiu a techné como algo similar ao ―ofìcio do


artesão‖, Aristóteles pensou a phronesis na perspectiva da vida política, como uma
espécie de comportamento obrigatório para o cidadão que deseja ser virtuoso. Por isso,
apesar de ambas serem conhecimentos de tipo prático, a techné e a phronesis não devem
ser tomadas como equivalentes. Seja como for, o mais importante para a minha

585
A phronesis aristotélica já foi tema de diversos estudos, sendo, portanto, impossível, nos limites desta
tese, inventariar toda essa fortuna crítica. Por isso, destaco os estudos que foram mais importantes para a
reflexão que desenvolvo neste capítulo: os de Gadamer, já devidamente referenciados no corpo do texto,
os de Alasdair MacIntyre e os de Paul Ricoeur. O filósofo inglês Alasdair MacIntyre é um dos principais
analistas contemporâneos da phronesis aristotélica, sendo um defensor da retomada da ética aristotélica
das virtudes como tradição de pesquisa racional em ―resposta à crise moral moderna‖. Nas palavras do
próprio autor, ―a insistência de Aristóteles de que as virtudes encontram seu lugar, não na vida do
indivíduo, mas na vida da cidade e que o indivíduo só é realmente inteligível como polítikon zóon‖ (p.82).
Já Paul Ricoeur questiona a percepção de que a ética aristotélica possa, de fato, ser um horizonte eficiente
para as relações políticas contemporâneas, sendo necessário, portanto, a revisão das formulações do
grego, com o objetivo de adaptá-las às conjunturas do nosso tempo, o que, nas palavras de Ricoeur, ―é um
esforço de adaptação que é a parte fundamental do corpus aristotélico‖. A despeito das diferenças nas
abordagens dos dois autores, ambos, tal como Gadamer, situam a prhonesis no plano da ação prática,
diferenciando-a da metafísica platônica. Ver MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual
racionalidade? São Paulo, Loyola, 1991, RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris, Seuil, 1990
e ainda CARVALHO, Helde Buenes Aires de. Tradição e racionalidade na filosofia de Alasdair
MacIntyre. São Paulo, Unimarco, 1999; ver também CARVALHO, H. B. A. de. Alasdair MacIntyre e o
retorno às tradições morais de pesquisa racional. In: OLIVEIRA, M. A. de (org.). Correntes fundamentais
da ética contemporânea. 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 2001, p.31-64.
586
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: ED FGV, 2006. p.
52.

276
discussão é o fato de Eduardo Prado, aparentemente, ter seguido a fórmula aristotélica
nas suas considerações político/epistemológicas. O autor jamais chegou usar o termo
phronesis, mas estou convencido de que ele, ao valorizar muito mais o conhecimento
prático do que o teórico, se colocou na tradição inaugurada pelo Estagirita.

Por exemplo, ao comentar os seus estudos sobre a Companhia de Jesus no


período colonial, Prado disse ser o seu trabalho ―histórico e descritivo, de natureza
prática, e não especulativa e teórica‖. Ao priorizar esse tipo de conhecimento, mais
atento aos fatos do que às estruturas, Prado estava mobilizando algo muito próximo à
proposta epistemológica que Aristóteles desenvolveu no ―Ética a Nicômaco‖, o mesmo
tratado no qual o filósofo elogiou as virtudes do ―soldado-cidadão‖. O nosso autor,
portanto, usou esse repertório em função das especificidades da sua argumentação. Se
na crítica ao militarismo político, ele queria defender o princípio da disciplina e da
obediência incondicional do Exército ao governo instituído, o elogio de Aristóteles ao
engajamento político do soldado, definitivamente, não lhe servia. Já quando a sua
intenção era criticar o idealismo abstrato dos legisladores da República, a formulação
aristotélica a respeito da superioridade do saber prático sobre o saber teórico lhe foi bem
conveniente. No entanto, seria um tanto exagerado afirmar que Prado utilizou
deliberada e conscientemente as ideias de Aristóteles, pois, como eu já disse antes, o
nosso autor raramente explicitava as suas referências. Porém, acredito ser bem razoável
sugerir que ele estava mobilizando uma tradição político/epistemológica que foi
delineada por Aristóteles e que, através de um complexo processo de apropriações,
chegou até os tempos modernos. É importante acompanhar a trajetória da phronesis na
história do pensamento ocidental, à luz, é claro, dos escritos de Eduardo Prado.

Nas suas críticas à legislação republicana, o nosso autor confrontou dois


personagens, que, segundo ele, eram os principais propagandistas do ―bacharelismo
abstrato e inconsequente‖ que, no Brasil, legitimou, ideologicamente, o fim da
Monarquia: o jurista brasileiro Rui Barbosa e o publicista português José Pereira de
Sampaio, mais conhecido como Bruno, que foi o mais destacado defensor da República
brasileira na imprensa portuguesa finissecular. Ao se debruçar sobre o tratamento que
Rui Barbosa e Bruno deram às instituições Republicanas, Prado utilizou um termo que,
até então, pouco havia aparecido nos seus escritos: a ―prudência‖. Acredito que o autor
utilizou esse conceito na perspectiva de uma tradição filosófica que, herdeira da
phronesis aristotélica, inseriu a prudentia no universo das discussões a respeito do ―bom

277
governo‖. De acordo com o catálogo da biblioteca de Eduardo Prado, constava no seu
acervo bibliográfico, pelo menos, escritos de três dos autores que se destacaram nas
discussões a respeito da prudentia: Tomás de Aquino, Nicolau Maquiavel e Francesco
Guicciardini. É certo que Prado, em nenhum momento, citou esses nomes, mas, me
parece que, de alguma forma, ele estava inspirado pelos escritos desses autores.

Já vimos como Eduardo Prado culpou Benjamin Constant pela politização do


Exército, o que, para o autor, foi o principal elemento responsável pelo fim da
Monarquia. Já demonstrei, também, como Prado responsabilizou o bacharelismo pela
corrupção dos militares, sendo, na sua perspectiva, Rui Barbosa o bacharel republicano
por excelência. Nos artigos dos ―Fastos‖, Prado não poupou crìticas ao jurista baiano,
que era o Ministro da Fazenda do governo provisório chefiado por Deodoro da
Fonseca587. O nosso autor viu no Ministro o principal porta voz das novas instituições,
aquele que ―em telegramas de escrita fácil, fluida, longa e monótona diz ao público da
588
Europa apenas o que o governo quer que seja dito‖ . Novamente, Prado criticou o
estilo bacharelesco, que teria encontrado em Rui Barbosa o seu mais fiel representante.
No entanto, nesse momento, estou interessado em compreender melhor outra crítica que
o nosso autor fez ao ministro Republicano.

―Para ele, [Rui Barbosa], tudo parece simples, tudo imagina possìvel. O direito
de fazer leis é considerado pelo ilustre Ministro como uma espécie de solução
milagrosa para todos os problemas sociais e políticos. O Dr Rui Barbosa já é
considerado na Europa um estadista da estirpe hispânica: pouco prudente e
exagerado nas suas ambições salvadoras‖589.

Para Eduardo Prado, Rui Barbosa era a manifestação, in persona, da prepotência


dos republicanos, que, com ―o riscar da pena se acham capazes de resolver todas as
mazelas da nação‖. O autor qualifica essa pretensão à ―resolução última de todas as
mazelas‖ como ingênua e, principalmente, imprudente. Estou convencido de que o
fundamento da argumentação do nosso autor está na sua rejeição, que é típica dos
587
A história das relações entre Eduardo Prado e Rui Barbosa é bem descontínua, segundo Cândido da
Mota Filho. Para o autor, Rui Barbosa ―era uma das admirações de Eduardo, desde os tempos
acadêmicos‖. Contudo, ―quando Eduardo recebeu a notícia da proclamação da República e que Rui
aparecia como parte integrante do governo provisório , revelou o seu desgosto nas páginas dos ―Fastos da
Ditadura Militar‖, incluindo-o entre os bacharéis que estavam a serviço da ditadura‖ (p. 87). A partir de
1893, porém, Rui Barbosa migrou para a oposição ao governo de Floriano Peixoto, o que fez com que o
jurista de reaproximasse de Eduardo Prado. ―Em 1893, a Revolta da Armada deu rumos novos ao
comportamento da República. Rui fora obrigado a deixar o país. (...) Com certa surpresa, e incontida
emoção, teve, entre as raras pessoas que o acolheram, Rio Branco e Eduardo Prado‖ (p. 88). Ver FILHO,
Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967.
588
PRADO, Eduardo. Fastos da ditadura militar brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 09.
589
Idem. p. 16.

278
escritores conservadores, à idealização filosófica, ao exercício de abstração que não leva
em conta as condições práticas da existência. É como se Prado estivesse dizendo que de
nada valem as boas intenções dos republicanos se os seus atos não forem calculados,
prudentemente, a partir do estudo minucioso e atento das especificidades da realidade.
Existe na crítica de Prado ao idealismo jurídico dos republicanos brasileiros, dois
elementos que considero serem fundamentais para a argumentação que estou
desenvolvendo neste capítulo: a afirmação da existência de uma falibilidade
epistemológica inerente aos homens e desconsiderada pela arrogância bacharelesca
daqueles que governavam o novo regime, de Rui Barbosa, especialmente, e a defesa de
um modelo de administração política baseado mais no cálculo e na análise cuidadosa
das circunstâncias do que nas lições extraídas dos compêndios de filosofia.

Esse argumento ficou ainda mais claro nos debates que Prado travou, na arena
da imprensa portuguesa, com o jornalista José Pereira de Sampaio, que assinava o
pseudônimo ―Bruno‖. A proclamação da República brasileira teve grande repercussão
em Portugal, assunto que foi bastante explorado pela historiografia desse país, tendo
destaque os estudos de Eduardo Cordeiro Gonçalves590 e Sérgio Campos Matos591. Os
dois autores destacam como o evento brasileiro animou os republicanos portugueses,
que chegaram a organizar o ―Centro Democrático Federal 15 de novembro‖, que foi
uma das forças que compuseram a frente republicana que tentou derrubar a Monarquia
portuguesa em 31 de janeiro de 1890.

A imprensa republicana, alimentando luta cerrada contra a sua congênere


monárquica, aproveita para urdir, em sucessivas editoriais a propósito da
revolução brasileiro, fortes ataques aos governos monárquicos e à sua política.
Rejubilando com a revolução brasileira, aquela imprensa acusa o critério
―judicioso‖ com que as folhas monárquicas ―capitulam a revolução‖ e a incluem
―no grupo das revoltas militares de caráter cazerneiro‖, tornando-a, por isso
mesmo, ―incapaz de servir as altas aspirações democráticas que mais
intensamente eram invocadas no conflito592.

Entre os principais propagandistas da República em Portugal, destacou-se a


figura de Bruno, que publicou, entre 1890 e 1891, uma série de artigos, mais tarde

590
Ver GONÇALVES, Eduardo Cordeiro. Ressonâncias em Portugal da implantação da República no
Brasil (1889-1895). Dissertação de Mestrado: FLUP, 1995.
591
Ver MATOS, Sérgio Campos. Representações da crise finissecular em Portugal. In: HOMEM,
Amadeu Carvalho; SILVA, Armando Malheiro. ISAIA, Arthur Cesar (ORG). A República no Brasil e em
Portugal (1889-1910). Uberlândia: Ed UFU, 2007.
592
GONÇALVES, Eduardo Cordeiro. Ressonâncias em Portugal da implantação da República no Brasil
(1889-1895). Dissertação de Mestrado: FLUP, 1995. p. 93.

279
reunidos em livro, nos jornais ―A República‖ e a ―República Portuguesa‖593. Durante
praticamente um ano, Eduardo Prado e Bruno foram os protagonistas, na imprensa
portuguesa, das discussões entre republicanos e monarquistas. Prado tentava advertir os
portugueses do perigo que significava a proclamação da República, enquanto Bruno se
esforçava para mostrar aos seus leitores como que, no Brasil, a mudança do regime
polìtico não havia sido, ―como afirma Frederico de S., sinal de decrepitude da nação‖,
mas sim ―o sopro dos novos ventos, de justiça social, liberdade e paz. (...) Para Portugal,
594
o único remédio é a República.‖ . Na sua resposta, Eduardo Prado rebateu o
―otimismo falacioso‖ de Bruno, afirmando que ―inexistem remédios únicos e
milagrosos para os difìceis problemas que assolam a humanidade‖. Percebo, aqui,
novamente, a desconfiança de Prado em relação à crença no poder messiânico das
ideias, que para ele, era tìpico dos republicanos brasileiros, ―filhos da religião fundada
por Augusto Comte‖.

O sr Bruno tem muita fé nesse remédio simples, que julga próprio para curar
todos os males. (...) [Por isso], o sr Bruno escreve um livro só para aconselhar a
Portugal que adote a República, como já fez o Brasil. (...) Diante das
necessidades sociais do século novo, vir declarar que o remédio para os males
humanos é a República, é uma manifesta confissão de atraso. É participar de uma
superstição tão pouco científica, como qualquer outra superstição 595.

Da mesma forma como fez com Rui Barbosa, Prado censurou Bruno por
acreditar na superstição filosófico/jurídica segundo a qual a República era a solução
para o atraso da humanidade. Para o nosso autor, a questão era muito mais complexa e
demandava um esforço polìtico ―capaz de compreender as reais causas dos problemas e
fazer de tudo para solucioná-las da melhor forma possìvel‖. De acordo com os estudos
de Karl Mannheim, esse realismo pragmático e ciente da impossibilidade da ―solução
total‖ para os problemas da humanidade é uma das mais importantes caracterìsticas do
conservadorismo.

A mentalidade conservadora, como tal, não detém nenhuma utopia. Em termos


ideais, acha-se por sua própria estrutura completamente em harmonia com a
realidade sobre a qual, por hora, mantém domínio. Faltam-lhe todos os reflexões
e aclaramentos do processo histórico que advenham de um impulso progressista.
O tipo conservador de conhecimento consiste originalmente no gênero de
conhecimento que fornece um controle prático596

593
SAMPAIO, José Pereira de. Brasil Mental. Porto Ed. & Companhia: Porto, 1898.
594
Idem. p. 73.
595
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 15 de abril de 1898. (Coletâneas, Vol 1, pp. 394-395)
596
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p. 253.

280
A ―mentalidade conservadora‖, portanto, reagiu, para Mannheim, às pretensões
―utópicas e absolutizantes‖ das modernas filosofias da história, o que faz do
conservadorismo uma reação moderna a um tipo específico de conhecimento que
ganhou os seus contornos mais sólidos no século XVIII. Para além de destacar essa
heterogeneidade da modernidade, que faz com que tanto o conhecimento circunstancial
e prático do conservadorismo como as abstrações progressistas do iluminismo e do
positivismo possam ser definidas como ―modernos‖, quero examinar com mais atenção
a importância que Prado atribuiu à capacidade de ―cálculo prudencial‖, que ele definiu
como um importante requisito para o bom governo597. Segundo o nosso autor, caberia
ao governo examinar a realidade e nela intervir, fazendo o melhor possível, não
598
prometendo, jamais, o ―engodo da solução única e total‖ . Mas o que será que
Eduardo Prado queria dizer quando utilizou o termo ―cálculo prudencial?‖. Uma rápida
visada na tradição do pensamento político ocidental pode ajudar na proposição de uma
hipótese.

De acordo com os estudos de Michel Senellart, os escritos de Tomás de Aquino,


em especial a ―Suma Teológica‖, que constava no acervo bibliográfico de Eduardo
Prado, apresentam os fundamentos de ―uma nova base da ética governamental‖599. Para
o autor, a reflexão ética desenvolvida por Tomás de Aquino é a matriz da concepção
moderna de ―arte de governo‖, entendida como o esforço do ―bom governante‖ em
compreender as condições práticas da realidade na qual ele exerce seu poder e agir de
acordo com as condições apresentadas pelas circunstâncias.

O discurso da disciplina cede então o lugar ao discurso da arte: nascimento


propriamente dito da arte de governar, os príncipes sendo investidos, nessa nova
economia natural, da plenitude do regimen. Longe portanto de o pensamento
medieval completar-se e resumir-se na obra de Tomás, ele sofre nesta uma
mudança que o desliga da sombria obseção da carne rebelde e o orienta para o
inventário industrioso das positividades terrestres 600.

597
De acordo com os estudos de Paulo Mercadante, essa preocupação com a análise empírica da realidade
é uma importante característica do pensamento político brasileiro oitocentista, tendo sido verbalizada em
vários momentos, como por exemplo, na ocasião das discussões legislativas a respeito do tema da
abolição do trabalho escravo. O autor argumenta, ainda, que essa preocupação com a elaboração de uma
legislação adaptada à realidade nacional já pode ser identificada nos textos dos ―pais fundadores‖ da
nação, como, por exemplo, José Bonifácio de Andrada e Silva, para quem a constituição ―para não ser um
papel borrado, como em muitas da Europa, era preciso fazê-la apropriada ao país, sem ideias metafísicas e
discurseiras inúteis‖. Ver MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980. p. 83.
598
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 15 de abril de 1898. (Coletâneas, Vol 1, p.395)
599
SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 167.
600
Idem. p. 172.

281
Para Senellart, a novidade da argumentação tomista já pode ser identificada no
tratado ―De Regno”, que é um texto ―tipicamente medieval por inúmeros aspectos,
revelando, porém, um novo estilo de reflexão polìtica‖. Tomás de Aquino teria, então,
ainda segundo as considerações de Senellart, tratado a função real de uma forma distinta
da tradição consagrada na época, que era baseada nos escritos de Isidoro de Sevilha601.

Servindo-se da forma convencional dos Specula, Tomás de Aquino modifica


suas articulações internas a fim de deslocá-la de uma economia punitiva da
disciplina a uma economia diretiva do governo. Passagem de um mundo
oprimido pela catástrofe da queda a um mundo ordenado em uma hierarquia de
fins. É essa order finium que Maquiavel irá rejeitar, mas esse gesto, em seu
corte, prolongará a passagem efetuada por Tomás de Aquino à condução dos
negócios humanos602.

Ao formular a sua interpretação nesses termos, Senellart questiona a rigidez com


a qual Maquiavel costuma ser definido como o fundador da ciência política moderna,
tornando, assim, menos precisas as fronteiras que separam o medievo da modernidade.
O que mais me interessa nos estudos de Michel Senellart é a sua análise a respeito da
prudentia regnativa, que é um dos principais temas abordados por Tomás de Aquino na
“Suma Teológica”, ―que deslocou para o terreno empìrico um certo número de temas
edificantes, o que levou ao reconhecimento de uma relativa autonomia da prática
governamental‖603. O autor está sugerindo, portanto, que Tomás de Aquino, de forma
relativamente inédita, sistematizou uma reflexão política baseada nos princípios práticos
do ato de governar e não na idealização teológica transcendental, como era feito até
então.

Tomás estabelece uma distinção entre o regimen, como princípio constituinte da


sociedade, e a gubernatio, como aplicação concreta das técnicas diretivas e a
análise que ele oferece da prudência dos reis na Suma Teológica, demonstram
uma atenção nova às realidades práticas e contingentes 604.

As próprias palavras de Tomás de Aquino confirmam a interpretação de


Senellart, na medida em que sugerem o compromisso com a razão prática, com uma

601
Ao escrever sobre as relações entre os poderes temporais e religioso, Isidoro de Sevilha, nas suas
―Etimologias‖, que costuma ser considerada a primeira enciclopédia da tradição cristã, argumentou que
é ―na incapacidade da fala que residia a necessidade do governo temporal, este sendo reparando pela força
o fracasso da prédica‖ (p.177). Isidoro de Sevilha, portanto, examinou o Estado a partir da sua natureza
divina, tendo sido um dos principais responsáveis pela sistematização do conceito de ―Monarquia
Teocrática‖. Ver RIBEIRO, D. V. A sacralização do Poder Temporal: Gregório Magno, e Isidoro de
Sevilha In: Souza, José Antônio de C. R. (org.). O Reino e o Sacerdócio – O pensamento político na Alta
Idade Média, s/d. pp. 91-112.
602
Idem. p. 174.
603
SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 189.
604
Idem.

282
perspectiva empírica da realidade, para manter a formulação que está sendo tão
importante para a reflexão que venho desenvolvendo neste capítulo.

A arte e a prudência [concernem] às realidades contingentes, mas a arte tem por


objeto as coisas que se fazem (factibilia), isto é, constituídas em uma matéria
exterior, como uma casa, uma faca e coisas semelhantes, e a prudência, as ações
(agibilia), as quais têm sua existência no próprio agente605.

Ao definir a prudentia desta forma, Tomás de Aquino estava seguindo


Aristóteles, naquilo que refere ao elogio da ―virtude especìfica que permite ao homem,
606
nas coisas contingentes, atingir racionalmente seus objetivos‖ . Essa apropriação
somente foi possível, ainda de acordo com os estudos de Senellart, em virtude de um
intenso movimento de redescoberta do corpus aristotélico, que resultou, a partir do
século XII, na publicação de diversas traduções dos textos do filósofo grego, empenho
que encontrou em Tomás de Aquino um dos seus principais entusiastas. Entre os textos
que foram redescobertos nesse momento, Senellart destaca o ―Ética a Nicômaco‖, que,
como sabemos, foi onde Aristóteles deu os contornos mais claros à sua concepção de
phronesis. Essa discussão a respeito da capacidade de cálculo prudencial do ―bom
governo‖ continuaria sendo desenvolvida pelos autores que, posteriormente, seriam
fundamentais para a consolidação da tradição republicana.

Em um estudo dedicado à concepção de ―bom governo‖ desenvolvida nos


escritos de Francesco Guicciardini, o historiador brasileiro Felipe Charbel Teixeira
afirmou que o autor florentino buscou

equilibrar e conciliar os valores fundamentais do bom governo com a defesa dos


preceitos empíricos da arte do estado, de modo a ressaltar a possível
complementaridade entre ações estratégicas que busquem resultados eficientes e
os valores fundamentais, coletivamente compartilhados e estabelecidos, de uma
República bem-ordenada: em suma, um melhor governo possível 607.

Existe no pensamento político republicano de Guicciardini, segundo o intérprete


brasileiro, a mesma percepção que quatrocentos anos mais tarde se faria presente,
também, nos textos de Eduardo Prado: o bom governo não é aquele que resolve todos os
impasses da sociedade, mas sim aquele que, dentro das limitações impostas pelas

605
AQUINO, Tomás de. (APUD) SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Ed. 34, 2006.
P. 192.
606
Idem.
607
TEIXEIRA, Felipe Charbel. O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método
prudencial de análise da política. Dados- Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Vol. 50, no 2,
2007, pp. 325- 349. p. 328.

283
circunstâncias, faz o melhor possível. Da mesma maneira como Senellart atribuiu à
prudentia tomista a herança da phronesis aristotélica, Felipe Charbel situa o ―olhar
agudo e penetrante‖, que Guicciardini acreditava ser fundamental para a prudência
governativa, na esteira da ―filosofia prática aristotélica‖, argumentando que, ―na busca
do equilíbrio entre uma moral ideal e as possibilidades efetivas do agir, Aristóteles parte
da observação dos próprios desígnios que os agentes se impõem, de suas condutas e
motivações, no sentido de delimitar os bens por eles almejados‖608.
Os estudos de Gadamer sobre a phronesis aristotélica, de Senellart sobre a
prudentia tomista e de Felipe Charbel sobre a teoria republicana do bom governo
apontam para a existência de uma importante tradição político/epistemológica no
pensamento ocidental. Essa tradição teve vida longa, tendo chegado ao século XVIII,
quando começou a ser mobilizada pelos escritores conservadores que, marcados pelo
trauma da Revolução Francesa, rejeitaram o idealismo filosófico moderno. Por isso, e é
esse argumento que estou tentando sustentar nesta seção, a semelhança entre os escritos
de Eduardo Prado com os textos de autores como Aristóteles, Tomás de Aquino,
Maquiavel e Guicciardini é tão perceptível. Essa semelhança não é nada fortuita, sendo,
ao contrário, o resultado do diálogo do nosso autor com uma proposta filosófica que
delineou a arena da política como o lugar do conhecimento prático, do cálculo
circunstancial, e não das idealizações abstratas, como propuseram os sistemas
filosóficos modernos, como o iluminismo, o positivismo e o marxismo. O nosso autor
entrou em contato com essa tradição pelo intermédio do conservadorismo moderno, o
que não quer dizer que ele não tenha lido os tratados que são tão fundamentais para a
reflexão que estou desenvolvendo neste capítulo. Os textos estavam lá, na estante de
Prado, no seu reduto do ―Brejão‖.
Na segunda metade da década de 1890, como eu cheguei a comentar,
brevemente, no último capítulo, Prado esteve diretamente envolvido com um dos
principais empreendimentos editoriais da intelectualidade luso-brasileira da época: a
Revista Moderna, que era dirigida por Martinho Carlos Arruda Botelho. Durante todo
ao ano de 1897, o nosso autor teve uma seção própria nesse periódico, que tinha como
tìtulo ―Livros Novos‖, onde ele resenhava as obras recém-publicadas por escritores
portugueses e brasileiros. Na edição de 05 de outubro de 1897, Prado comentou o livro
―L’Oeuvre Internationale”, do escritor carioca Sebastião de Magalhães Lima. Logo no

608
Idem. p. 329.

284
prefácio do livro, esse autor apresenta uma extensa lista sessenta e duas referências, que
609
―foram cuidadosamente consultadas na redação dessa obra‖ . A primeira crítica de
Eduardo Prado ao texto é dirigida, exatamente, a esse esforço de autolegitimação
através da menção às autoridades. Diz o nosso autor: ―Poucos livros temos visto
610
relacionado com tanta gente‖ . O fundamento das críticas de Eduardo Prado está,
acredito, justamente no princípio, caro ao pensamento conservador, da falibilidade
intelectual humana, o que torna o homem conservador cético em relação às promessas
edificantes e totalizantes das filosofias modernas. A critica do nosso autor ficará mais
clara se antes dedicarmos alguma atenção ao texto de Magalhães Lima.
O que pretendemos com esse livro é mostrar aos leitores as ideias modernas e,
dessa forma, contribuir para emancipar o indivíduo, a família e a humanidade.
Somente vivendo sob o governo de uma República federalista podem ser os
homens verdadeiramente felizes. Para isso, porém, é necessário que todos os
intelectuais estejam de acordo611.

O argumento desenvolvido por Magalhães Lima é o mesmo que Bruno, o


publicista português do qual falei há pouco, utilizou para elogiar a República brasileira
e, consequentemente, apoiar o movimento republicano do seu país: a definição do
regime republicano federalista como a forma mais evoluída de governo, como a única
verdadeiramente capaz de resolver as mazelas da humanidade. Ao comentar os
objetivos de Magalhães Lima, Prado diz que ―as suas intenções são as mais louváveis,
ainda que sejamos céticos em relação à real possibilidade de efetivá-las, o que não nos
impede de reconhecer a nobreza as aspirações do sr Magalhães Lima, que parece ter se
esquecido de que a teoria tem asas, mas a prática é coxa‖ 612. Novamente, a exemplo de
como já o vimos fazer nas suas críticas ao idealismo jurídico dos legisladores
republicanos, Prado estabelece uma distinção entre teoria e prática, fazendo-o no
sentido de desqualificar a abordagem puramente abstrata, considerada por ele
imprudente.

O problema moderno é singularmente simplificado pelo Sr Magalhães Lima.


Para resolvê-lo, é preciso fazer triunfar o federalismo, o socialismo e o
feminismo, e, para isso, é preciso que todos os intelectuais estejam de acordo. E
nada mais, ora esta! Nisto é que está justamente a dificuldade. Os intelectuais são
uma minoria em todo o mundo e, se eles só governarem, para quando ficará a
emancipação dos indivíduos, da família, dos povos e da humanidade? E, demais,
os intelectuais hão de sempre divergir. E isto é o que faz a beleza do pensamento

609
LIMA, Luís Magalhães. L’Oeuvre Internationale. Paris : Giard Bri re, 1897. p. 13.
610
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 05 de outubro de 1897. (Coletâneas, Vol 1, p. 279).
611
LIMA, Luís Magalhães. L’Oeuvre Internationale. Paris : Giard Bri re, 1897. p. 15.
612
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 05 de outubro de 1897. (Coletâneas, Vol 1, p. 279).

285
humano, livre e diverso nas suas manifestações, no seu modo de ver as coisas 613.
(Grifos meus)

Aqui, Prado confronta o princípio de que os intelectuais devem ser os


responsáveis pelos governos dos povos. Para o autor, o governo deve ser conduzido por
uma visão prática e atenta às especificidades da realidade, por uma perspectiva empírica
dos acontecimentos, e não por idealizações filosóficas, ―que de nada servem, a não ser
614
para encher as páginas dos compêndios dados às discussões doutrinárias‖ . Essa
crítica epistemológica, que tem, como eu já comentei, claros desdobramentos políticos,
pode ser encontrada, também, nas considerações de Alexis Tocqueville a respeito das
transformações que o desenvolvimento da democracia moderna acarretou no
pensamento filosófico. Segundo Marcelo Jasmin, ―[Para Tocqueville], destruìdas as
bases empíricas da desigualdade aristocrática, desaparecem as condições de
615
possibilidade de um discurso do particular‖ . Por isso, o autor acredita que
Tocqueville desenvolve uma dupla crítica ao intelectualismo filosófico moderno, uma
crítica que tem, ao mesmo tempo, teor político e epistemológico. Para Tocqueville, um
dos aspectos que explicam a ocorrência da Revolução Francesa é, exatamente, a
peculiaridade os intelectuais daquele país.

A França era, há muito, entre todas as nações da Europa a mais literária.


Contudo, seus homes de letras nunca tinham demonstrado o espírito que
revelaram em meados do século XVIII, nem ocupado o lugar que então
galgavam. (...) Não permaneciam como a maioria dos seus iguais na Alemanha,
completamente alheios à política e entrincheirados no domínio da filosofia pura e
das belas artes. Cuidavam sem cessar dos assuntos relativos ao governo e este
era, na verdade, a sua ocupação própria. Eram ouvidos discorrendo todos os dias
sobre as origens das sociedades e suas formas primitivas, sobre os direitos
primordiais dos homens e das autoridades, sobre as relações naturais e artificiais
dos homens. Nem todos faziam desses grandes problemas o objeto de um estudo
particular e aprofundado e a maioria só os tocava de leve, como brincando, mas
todos encontravam-nos. Esta espécie de política abstrata e literária espalhava-se
em doses desiguais em todas as obras da época desde o tratado sisudo até a
canção. Quanto ao sistema político desses escritores tanto variavam que não
seria possível tentar conciliá-los e transformá-los numa teoria única de
governo616. (Grifos Meus)

Uma interpretação semelhante da Revolução Francesa foi desenvolvida por


Edmund Burke, que, contemporaneamente aos eventos, escreveu aquele que é um dos

613
Idem.
614
Idem.
615
JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: A historiografia como ciência política. Belo Horizonte: ED
UFMG/IUPERJ, 2005. p. 89.
616
TOCQUEVILLE, Alexis. O antigo regime e a revolução. Ed. UNB: Brasília: 1997. p. 143.

286
textos mais fundamentais da bibliografia conservadora: o livro ―Considerações sobre a
Revolução Francesa‖, publicado pela primeira vez em 1790. Para o escritor irlandês,

Humildade‖ e ―Prudência‖ serão assim o contrário da ―arrogância‖ e da


―imprudência‖ com que a França abismara o mundo (...) Por isso, Não posso
elogiar aquele bem especulativo que será produzido com uma boa dose de mal.
Eu penso que é possível que planos que oneram a geração presente em nome do
enriquecimento do futuro podem produzir o que almejam, mas também podem
falhar, e o mal é certo617.

Dois anos mais tarde, em carta endereçada a Pierre-Marie, Chevalier de Grave,


ministro da Guerra Francês, Burke diz, referindo-se à pretensão dos filósofos franceses
de solucionar, ―do dia para a noite‖, todos os problemas daquele paìs: ―Sabe pouco da
humanidade aquele que não concede um desconto à nossa comum e inevitável
fraqueza‖. O tratamento que Edmund Burke e Alexis Tocqueville deram à ideologia
revolucionária é fundamental para a argumentação que estou desenvolvendo neste
capítulo. Acredito ser bastante razoável sugerir que a crítica político/epistemológica que
esses dois autores fizeram á Revolução Francesa é um dos fundamentos da crítica
político/epistemológica que Prado fez à República brasileira e ao proselitismo
republicano de autores como Magalhães Lima e Bruno. Burke, Tocqueville e Prado
podem ser situados, portanto, na tradição filosófica que valorizou o empirismo
político/intelectual e rejeitou as especulações abstratas. Na filosofia aristotélica, essa
perspectiva ganhou o nome de phronesis. Já na tradição republicana, ela foi chamada de
prudentia.

A filiação do nosso autor à crítica político/epistemológica desenvolvida por


Burke e Tocqueville fica ainda mais clara se examináramos, rapidamente, o artigo ―O
natal de Voltaire‖, que Prado publicou na edição de 01 de janeiro de 1898 da Revista
Moderna. Para o nosso autor, Voltaire era o exemplo mais acabado do ―homem das
letras‖ que foi responsável pela Revolução Francesa, que ele, na esteira de outros
conservadores, como Burke e Tocqueville, considerava ―a maior carnificina de todos os
tempos‖.

Há cento e vinte anos, Paris inteiro, os poetas e os filósofos, os sábios e os


financeiros, os duques e as princesas, faziam a Voltaire a mais estrondosa das
ovações. As memórias do tempo contam com minúcia, que, por uma clara
quinta-feira de abril, M. de Voltaire, pela primeira vez, desde a sua chegada a
Paris, deixando os vagos e amplos roupões favoráveis às exigências da doença e
da estatuária, vestiu-se e fez o que se chamava a toillete inteira – grande casaca
vermelha, forrada de arminho, imensa cabeleira à Luiz XIV, negra, não

617
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 127.

287
empoada, e tão basta que o rosto magro, amarelo, enrugado, ficava nela tão
enterrado, que só lhe viam os dois olhos brilhantes como cabunculos 618.

O Voltaire pintado por Prado é um homem prepotente, vaidoso e cultuado,


―pelas cabeças que a guilhotina aguardava e que, julgando-se bem seguras sobre os
ombros, aguardavam a chegada do Rei do Espìrito‖619. Não à toa, o nosso autor utilizou
a imagem do Rei Luiz XIV para comentar a forma como Voltaire teria desfilado pelas
ruas de Paris na década de 1770. Tal como Tocqueville e Burke, nosso autor também
atribuiu ao comportamento dos filósofos, com o seu apego pelas teorias abstratas e o seu
desprezo pelo conhecimento prático, um dos principais elementos causadores da
Revolução Francesa. Segundo Prado, ―Voltaire, cortesão de Reis e amigo de prìncipes,
nunca amou os carpinteiros, pois todos eles seriam seres desprezíveis na hierarquia
universal dos saberes estipulada pelo grande filósofo‖620. Essa breve passagem introduz
a parte do artigo na qual Prado aborda a rejeição de Voltaire ao ―carpinteiro de
Nazareth‖ e, por isso, eu a analiso com mais cuidado no próximo capìtulo, onde
examino o esforço do nosso autor em defender a tradição católica da ―potência
avassaladora dos novos tempos‖. No entanto, ao atribuir a Voltaire o desprezo pelos
carpinteiros, o nosso autor está acusando o filósofo francês de desqualificar o ofício
manual, o que, para Eduardo Prado, era um dos principais indícios da prepotência dos
filósofos modernos.

Portanto, tanto para Eduardo Prado como para Burke e Tocqueville, a Revolução
Francesa havia incorrido em um problema fundacional: confundir a política com um
cálculo matemático, e os seres humanos de uma comunidade real com enunciados de
uma mera equação. Tudo isso em nome de um Estado perfeito que, obviamente,
existiria, apenas, na cabeça dos filósofos. Trata-se, no fundo, para os três autores, de
uma grotesca caricatura fantasiosa sobre a complexidade da realidade política, própria
de quem se deixa embriagar pela ―filosofia da vaidade‖, a vaidade do otimismo
racionalista que o conservador combate através da afirmação de uma imperfeição
intelectual que seria inerente aos homens621. O contraste entre o otimismo pretencioso

618
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol 1, p.1898).
619
Idem. p. 353.
620
Idem. p. 355.
621
Para o historiador português João Pereira Coutinho, o ceticismo epistemológico é uma das principais
caracterìsticas do repertório conservador. Nas palavras do autor: ―A crìtica conservadora lidará não com a
razão, mas com o racionalismo, entendido como subversão da razão. Ou, talvez, de forma mais precisa,
com a ambição desmedida de atribuir à razão a tarefa hercúlea de construir e reconstruir a sociedade
humana de forma radical e perfeita. Não é a razão per se que inspira a crítica conservadora; é tão só, a
arrogância do racionalismo moderno e a sua ideia nefasta de ―possibilidade infinita‖ na condução racional

288
dos filósofos modernos e o ceticismo epistemológico dos conservadores fica bem claro
quando colocamos lado a lado o texto de Magalhães Lima e a resenha de Eduardo
Prado.

Tem-se dito que as contínuas agitações das Repúblicas americanas são um


argumento poderoso contra o federalismo. Os que sustentam esta opinião não
deixam-se engar por aparências ilusórias. Os piores servidores não podem
obscurecer a excelência de um princípio622.

Aqui, Magalhães Lima está respondendo aos críticos, entre eles o próprio
Eduardo Prado, que, ao longo de toda a década de 1890, associaram a forma republicana
de governo ao despotismo militar que então caracterizava as experiências republicanas
na América Latina. O autor do “L’Oeuvre Internationale” não negou que as
―Repúblicas americanas estejam corrompidas‖, mas alegou que o regime republicano
não deveria ser julgado a partir dessas experiências, pois o modelo seria, em si,
excelente. Magalhães Lima está, então, operando no plano doutrinário, preocupado em
resguardar a teoria do governo republicano do desprestígio que as experiências latino-
americanas estavam suscitando. Eduardo Prado compreendeu muito bem a estratégia do
seu interlocutor.

Fica, então, reduzida a nada o valor da experiência na ciência social? Assim


parece, porque, apesar dos fatos em contrário, o sr Magalhães Lima diz que
Federação e Paz são expressões semelhantes. O sr Magalhães Lima segue até ao
fim do seu folheto exprimindo os seus pia desideria: paz, fraternidade, amor, etc,
etc. Cita muito e esclarece pouco, e o leitor chega à última página sem ter
descoberto o remédio prometido no capítulo primeiro. Ainda desta vez não ficou
resolvido o velho problema da felicidade dos homens 623. (Grifos Meus)

Podemos encontrar, nesta citação, os principais elementos que constituem o


empirismo político/intelectual de Eduardo Prado, assunto que venho analisando desde o
início deste capítulo: a preocupação em priorizar, no exercício de interpretação da
realidade, o estudo da experiência, em detrimento da abstração teórica, a crítica à
erudição inútil e a afirmação de que a inteligência humana é incapaz de solucionar todas
as mazelas do mundo. Como eu demonstrei ao longo destas páginas, o empirismo
político intelectual é um elemento fundamental do repertório ideológico do
conservadorismo, sendo muito importante, também, para a argumentação que Eduardo
Prado desenvolveu ao longo da década de 1890. No entanto, existem outros aspectos do
repertório conservador que também foram mobilizados pelo autor, como, por exemplo,

dos assuntos humanos‖. Ver COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a
revolucionários e reacionários. São Paulo: Três estrelas, 2014. p. 34.
622
LIMA, Luís Magalhães. L’Oeuvre Internationale. Paris : Giard Bri re, 1897. p. 27.
623
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 05 de outubro de 1897. (Coletâneas, Vol 1, p. 288-289).

289
a defesa das tradições, que os escritores conservadores acreditavam estarem ameaçadas
pelo ritmo acelerado da temporalidade moderna. É, justamente, a relação que Prado
estabeleceu entre a aceleração da temporalidade e a vulnerabilidade das tradições o
objeto analisado no próximo capítulo.

290
Capítulo 8

Tradição e temporalidade no conservadorismo de Eduardo Prado

O amor do passado é um sentimento atribuído pela opinião vulgar somente à


senilidade queixosa e enfadonha. Eis aí uma opinião que envolve um erro, e,
como todo erro, também uma injustiça, e isto quer se trate dos indivíduos, quer
se trate das nações. Desprezar o passado (e a mais forte expressão do desprezo
por alguma coisa é não querer conhecê-la) – denota no indivíduo degradação
intelectual. E, num povo, esse sentir demonstra que esse povo está ainda em
estado infantil de selvageria, porque, diz Cícero, ignorar o sucedido antes de nós
é a nossa condenação a sermos crianças eternamente. E de que vale, pergunta a si
mesmo Cícero, a vida do homem, se a lembrança dos fatos anteriores não ligar o
presente ao passado624?

A citação foi extraída do discurso proferido em 10 de novembro de 1898,


quando Prado se tornou sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Como
demonstrei no sexto capítulo, a essa altura, o nosso autor já circulava com mais conforto
pelos espaços intelectuais que tentavam se aproximar das instituições republicanas,
como a Academia Brasileira de Letras e os institutos históricos brasileiro e paulista625.
No trecho, em um exercício que não é comum nos seus escritos, Eduardo Prado
explicita a sua referência e cita Cícero, o que é bastante sugestivo para a análise que
desenvolvo neste capítulo. Não é nada fortuito que a citação tenha sido feita em um
discurso proferido nas dependências de um instituto histórico, pois o orador romano já
era, há algum tempo, uma importante referência para os estudos históricos brasileiros626.
Portanto, ao citar Cícero, Eduardo Prado não está, tão somente, utilizando um artifício
de erudição, mas, também, mobilizando uma tradição que é constitutiva de uma

624
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 10/11/1898. (Coletâneas, Vol 02, p. 167).
625
Para Lillia Schwarz, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, tinha dois objetivos distintos:
seguir o modelo comum idealizado pelo IHGB e destacar uma suposta especificidade paulista. Sobre as
relações do instituto com a República, a autora argumenta que: ―Criado no perìodo republicano, o
instituto paulista guardou as marcas desse novo momento se auto representando enquanto ―filho legìtimo‖
do regime então vigente. A principal oposição não se concentra nos antagonismos políticos, mas em um
discurso que desde a sua formação destacava particularidades‖. Ver SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O
Espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 136.
626
Nas últimas décadas, com o fortalecimento do campo dos estudos historiográficos no Brasil, vários
autores se debruçaram sobre a historiografia oitocentista, em especial sobre o IHGB. Alguns desses
autores apontam a importância da tradição ciceroniana para a nossa historiografia. Destaco, aqui, os
estudos desenvolvidos por Manoel Salgado e Temístocles César. Ambos os autores utilizam a noção de
―regime de historicidade‖ para destacar o lugar fundacional que a cultura histórica da magistral vitae
ocupou entre os letrados do IHGB. Ver: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no
Brasil (1838-1857). Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2011 e CESAR, Temístocles. Lições para a escrita da
história: as primeiras escolhas do IHGB. In: CONTIJO, Rebeca; GONÇALVES, Márcia Almeida;
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Estudos de
Historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp.93-124.

291
concepção de tempo baseada no princípio da continuidade entre passado, presente e
futuro.

Em seu estudo já bastante conhecido no Brasil, o historiador alemão Reinhart


Koselleck vinculou o uso da tradição retórica ciceroniana à ―possibilidade ininterrupta
de compreensão prévia das possibilidades humanas em um continuum de validade
geral‖ 627. Segundo o autor, essa continuidade cronológica somente seria colocada em
questão na modernidade, mais especificamente a partir do século XVIII, quando uma
série de eventos, em especial a Revolução Francesa, implodiu a relação de continuidade
entre passado, presente e futuro, que até então havia regulado as representações do
tempo. Diz o autor: ―em um mundo social no qual as alterações se dão com veemência,
as dimensões temporais, nas quais até então à experiência se desenvolvera e se
628
acumulara, se deslocam uma da outra‖ . Essa reflexão que associa a modernidade à
aceleração do ritmo nas mudanças sociais e ao consequente esvaziamento da
exemplaridade das tradições é fundamental para a argumentação que desenvolvo neste
capítulo. Por isso, dialogo com a produção bibliográfica que, oriunda do espaço
intelectual germânico, tratou a modernidade a partir da categoria ―tempo‖. Autores
como Hans George Gadamer e Hans Ulrich Gumbrecht, além do próprio Koselleck,
apresentam perspectivas analíticas que contribuem para a compreensão do problema da
temporalidade no conservadorismo de Eduardo Prado.

Para Eduardo Prado, portanto, o cenário cronológico ideal seria aquele no qual
passado, presente e futuro se articulam em uma relação de semelhança, o que tornaria
inabalável a autoridade da tradição. Definitivamente, o nosso autor estava convencido
de que, no Brasil, a República havia implodido essa relação de continuidade, e
solidariedade, entre passado e presente, sendo o futuro algo tão imprevisível quanto
assustador. Essa maneira de atribuir sentido à experiência do tempo é típica do
pensamento conservador moderno. Examinar como Eduardo Prado mobilizou esses
valores é o principal objetivo deste capítulo.

A família brasileira não se pode orgulhar de ter um zelo verdadeiro pela tradição
que é a força, a luz, o ensino e a manifestação mais sagrada das raças, a cadeia
que assegura a solidariedade das gerações. (...) Sem dúvida toda esta dispersão e
o fato de ninguém hoje morrer na casa onde nasceu são coisas devidas ao

627
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Prassado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Ed. contraponto, 2006. p. 43.
628
Idem. p. 59.

292
presente regime legal e econômica da família, apenas forçadas consequências
sem remédio da moderna organização da vida629. (Grifos Meus)

Aqui, Prado atribui a crise da tradição à ―moderna organização da vida‖,


associação que pode ser encontrada, também, em outros representantes da literatura
conservadora. No seu estudo a respeito do pensamento conservador, Robert Nisbet,
analisando, principalmente os escritos de Edmund Burke e Alexis Tocqueville, afirma
que ―(...) este recurso ao passado, em busca de inspiração e de modelos em que basear a
orientação política do presente, está profundamente implantado na tradição
630
conservadora‖ . O diagnóstico desenvolvido por Karl Mannheim é muito parecido:
―Ver as coisas autenticamente como um conservador é viver os acontecimentos em
631
termos de uma atitude nascida de circunstâncias e situações presas ao passado‖ . No
entanto, é preciso tomar algum cuidado para não definir essa valorização do passado
como um comportamento tão somente nostálgico. O próprio Eduardo Prado, no início
da epìgrafe que abre este capìtulo, faz questão de deixar bem claro que ―o amor ao
passado‖ não deve ser visto como uma ―senilidade queixosa e enfadonha‖, mas sim
como uma forma de pensar a experiência do tempo, o que, no caso específico do nosso
autor, passa pela sua tentativa de compreender a proclamação da República. O ―tempo‖,
portanto, tem estatuto de categoria analítica no pensamento de Eduardo Prado, para
quem, no Brasil, a República foi o resultado, também, de uma experiência cronológica
caracterizada pela aceleração do ritmo das transformações sociais. Temos, aqui, mais
um argumento mobilizado por Eduardo Prado na sua tentativa de compreender, e
criticar, o advento da República no Brasil. O fundamental para a minha argumentação é
que, ao interpretar a realidade brasileira finissecular nessa chave, Prado, mais uma vez,
combinou elementos dos repertórios conceituais antigo e moderno.

Como podemos perceber na epígrafe, ele citou Cícero para criticar o desrespeito
da modernidade às tradições, o que, no caso específico do Brasil, seria um dos
principais defeitos da República. Me parece, então, que nos textos escritos ao longo da
década de 1890, Prado leu a proclamação da República na perspectiva da modernização
do Brasil, o que, para ele, seria um risco, pois a modernidade é tomada como sinônimo
de violação das tradições mais fundamentais da nacionalidade brasileira, justamente
aquelas que eram o fundamento do edifício monárquico, que durante tanto tempo havia

629
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 10/11/1898. (Coletâneas, Vol 02, pp. 124-126).
630
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 40.
631
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p. 56.

293
garantido a ordem e a civilização inauguradas pela colonização portuguesa nos trópicos.
No entanto, por outro lado, ele utilizou uma argumentação genuinamente moderna no
delineamento dessa crítica, uma argumentação baseada, por exemplo, em certa
concepção processual e acelerada de tempo, segundo a qual a República seria tragada
pela mesma torrente avassaladora que a permitiu nascer.

Não sou o primeiro a analisar o tratamento que Eduardo Prado deu ao problema
do tempo. Em um estudo que eu já citei nesta tese, o historiador Carlos Henrique
Armani aponta a aproximação do nosso autor com as discussões que, no final do século
XIX, inquietavam os intelectuais brasileiros: ―problemas da memória, velocidade ,
tempos simultaneamente sombrios e esperançosos, enigmas entre o ser e o nada, o que
estava acontecendo com a humanidade‖, seriam as questões que, segundo Armani,
estavam sendo colocadas pela geração de Eduardo Prado. Ao longo deste capítulo, eu
situo o nosso autor nesse interesse geracional pela tematização do tempo, mostrando
como, no caso específico dos seus escritos, esse interesse foi mobilizado em função da
crítica à República brasileira.

Também aqui, neste capítulo, o texto está organizado em três partes: na primeira, eu
examino como Prado se dedicou a defender as tradições, especialmente a sua defesa do
catolicismo e a sua crítica à importação de sistemas jurídicos estrangeiros pela
República brasileira. Na segunda parte, eu analiso a forma como o autor tentou
interpretar a proclamação da República à luz da temporalidade moderna. Já na terceira
parte, meu objetivo é compreender como ele utilizou o prognóstico como estratégia de
domesticação do tempo.

8.1- A valorização da tradição: a defesa do catolicismo e o primado dos costumes


Não é difícil encontrar nos textos dos autores mais identificados com o
pensamento conservador o empenho em defender as tradições do potencial corrosivo da
temporalidade moderna. Alexis Tocqueville, por exemplo, no seu ―A democracia
americana‖, disse que

Embora a revolução que se opera no estado social, nas leis, nas ideias, nos
sentimentos dos homens esteja bem longe de terminar, já não se poderia
comparar suas obras com nada do que foi visto anteriormente no mundo.
Remonto de século em século até a Antiguidade mais remota: não percebo nada

294
que se pareça com o que está diante dos meus olhos. Como o passado não
ilumina mais o futuro, o espírito caminha em meio às trevas 632.

No trecho, o aristocrata francês associa a modernidade ao colapso das tradições,


em um diagnóstico que aponta para um futuro sombrio, na medida em que a tradição já
não mais tem a capacidade de guiar os passos do ―espìrito humano‖ na história.
Referindo-se à situação brasileira no início da década de 1890, Eduardo Prado escreveu
algo bem parecido:

Certamente o homem deve viver no seu tempo, mas a tendência para a


contemplação do passado é um dom nobilíssimo da sua alma. Quem se aplica ao
presente é movido, quase sempre, pelo interesse. Quem trata do passado é
desinteressado, e só o desinteresse enobrece, eleva e dignifica as aspirações dos
homens. (...) O desrespeito universal que nos desorganiza, nos avassala e nos
barbariza é, até certo ponto, o resultado da nossa ruptura com o passado, dessa
lamentável emancipação da sua autoridade633. (Grifos Nossos)

Argumentação semelhante pode ser encontrada, também, nos textos de Edmund


Burke, para quem ―quem nunca olhou para trás, para os seus antepassados, nunca olhará
para a frente, para a posteridade‖634, e nos de François-René Chateaubriand, que disse
ser ―grande demais a distância que separa, a partir de então, os Antigos e os Modernos.
Não se pode mais, com a tocha das revoluções passadas na mão, entrar na noite das
revoluções futuras‖635. Provavelmente, Eduardo Prado leu Tocqueville, Burke e
Chateaubriand, pois os textos desses autores estavam lá, nas prateleiras da biblioteca do
Brejão, cujo catálogo está sendo tão importante para a reflexão que estou
desenvolvendo nesta tese.

Estamos diante, portanto, de uma das características mais importantes do


pensamento conservador moderno, aquilo que faz dos conservadores, conservadores:
―eles valorizam as tradições, pois estas, justamente, sobrevivem aos testes do tempo‖636.
Não é à toa que os pensadores conservadores, incluindo aí Eduardo Prado, têm uma
forte tendência a rejeitar a Revolução Francesa, que é interpretada como o evento
sintomático da aceleração do tempo e do consequente esvaziamento da tradição. No
caso específico de Prado, essa crítica é direcionada, também, à Proclamação da
República brasileira, que, para o nosso autor, significou a ―jacobinização do Brasil‖.
632
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 399.
633
Idem. p. 71.
634
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 13.
635
CHATEAUBRIAND, René. Études historiques. Œuvres complètes de Chateaubriand. Paris: Garnier,
T.IX, 1861. p. 321.
636
COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São
Paulo: Três estrelas, 2014. p. 57.

295
Prado associa, então, a República brasileira à Revolução Francesa, em um esforço de
comparação ao qual ele não dedicou maior empenho em sustentar com mais
propriedade. A principal questão, para ele, era outra:

A ditadura republicana que, nos primeiros dias do seu triunfo, exerceu


verdadeiros atos de garotagem e de vandalismo, destruindo monumentos
públicos, arrancando escudos, removendo retratos e quebrando coroas, mudou o
nome do colégio D. Pedro II para Instituto Nacional de Instrução Secundária. O
sr Quintino Bocaiúva, dias depois de sua instalação no poder, mandou por um
aviso arrancar de um velho chafariz do tempo da colônia a coroa real de
Portugal. Da mesma forma como fizera a barbárie jacobina, os republicanos
brasileiros pretendem recomeçar a história a partir do zero637. (Grifos meus)

A República representaria para o Brasil aquilo que a Revolução Francesa


representou para a civilização ocidental como um todo: a total aniquilação da tradição
por um projeto político/filosófico que, nas suas utopias futurísticas, pretendia apagar o
passado e violar as tradições legadas pelos antigos. Como eu disse há pouco, em
nenhum momento, Prado teve a preocupação de refinar melhor a sua comparação entre
a Revolução Francesa e a proclamação da República brasileira, o que não compromete a
análise que estou desenvolvendo neste capítulo. O mais importante, na minha
perspectiva, é que o nosso autor se empenhou em defender a tradição e o estudo do
passado, o que, para ele, significava, em alguma medida, defender a Monarquia e a
herança da civilização católica nos trópicos. Por isso, talvez, o seu catolicismo tenha
aflorado, especialmente, nos anos 1890, quando ele se envolveu diretamente com a
defesa das tradições católicas da nacionalidade brasileira, o que o fez criticar
diretamente o Estado laico republicano, que foi instituído pela constituição de 1891.

Mas o governo provisório não diz qual igreja fica separada do Estado. Será
talvez a igreja católica, mas não é com certeza a igreja positivista que é a religião
do governo, apesar de dizer talvez o Marechal Deodoro que, mistério por
mistério, entende tanto o da Santíssima Trindade como o da filosofia de Augusto
Comte638.

É claro que com isso, eu não quero sugerir que Eduardo Prado se tornara
católico, tão somente, após a proclamação da República, até porque a família Prado era
uma das mais importantes integrantes da elite católica paulista. O jornal ―Diário de São
Paulo‖, na edição de 24 de setembro de 1876, publicou na coluna ―Cotidiano de São
Paulo‖ uma matéria sobre a religiosidade de Dona Veridiana Prado, mãe de Eduardo.

Quem tiver a oportunidade de ir visitar aos domingos a Igreja da Consolação


verá o que há de melhor na estirpe briosa e devota que hoje representa as

637
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 122.
638
Idem. p. 17.

296
famílias mais tradicionais dessa cidade (...) É bonito de se ver. Dona Veridiana
Valéria da Silva Prado e o seu filho mais moço indo à Igreja da Consolação 639.

O filho mais moço de Dona Veridiana estava lá, na Igreja, recebendo a formação
religiosa católica, como rezava a tradição. No entanto, na primeira década de sua
trajetória intelectual, o catolicismo não foi um dos elementos mais presentes nos
escritos de Eduardo Prado. Eu não encontrei nos textos publicados antes de 1889 muitas
referencias diretas à Igreja Católica ou à questão religiosa, que na década de 1870
colocou em rota de colisão os poderes temporal e religioso 640. Parece mesmo que o
catolicismo somente se tornou um tema fundamental para Eduardo Prado após a
proclamação da República.

Na edição da ―Revista Moderna‖ de 01 de janeiro de 1898, Eduardo Prado


publicou um artigo intitulado ―O Natal de Voltaire‖, onde criticou, diretamente, o
filósofo francês e o discurso revolucionário do século XVIII, que teria dato ―dimensão
de reis aos homens das letras. (...) Os filhos daquele século chamado cético eram na
realidade profundamente crentes e devotos: tinham a crença firme de que estava
acabando o cristianismo e só reverenciavam aquele que lhes tinha ensinado a nada mais
venerar‖ 641.

Nesse texto, Prado defendeu o catolicismo, que seria ―a principal vìtima da


irresponsabilidade dos revolucionários modernos‖. O termo ―irresponsabilidade‖ sugere
uma pista, algo que, apesar de não ter sido aprofundado com mais rigor, aponta para
uma defesa que se fundamenta, também, no princípio da utilidade.

Todas aquelas cabeças que se curvavam à divindade das letras não podiam
adivinhar que em pouco tempo as suas cabeças já não mais estariam sobre os
seus ombros. O edifício desmorona quando é removido o seu alicerce e o
alicerce da civilização ocidental é a Santa Igreja Católica642.

639
Jornal ―Diário de São Paulo‖. 24 de setembro de 1876.
640
As discussões a respeito do Estado laico são bem anteriores à proclamação da República, como
demonstra Antônio Vilaça, no seu estudo a respeito do pensamento católico no Brasil. Para o autor, o que
esta em jogo nos conflitos entre os Bispos e o governo da Monarquia era, exatamente, a crise do
padroado, uma das instituições mais importantes da Monarquia brasileira. ―Dom Vital simboliza o
syllabus no rigor do seu antiliberalismo. A questão religiosas é a questão do Padroado em seu ponto
crítico. Tudo gira derredor do placet, a placitação das bulas. Mas, de fato, o que há são duas mentalidades
em conflito: o catolicismo tradicional e o rigorismo antimaçônico do syllabus” (p. 53). O tema da
―questão religiosa‖ não foi tratado por Eduardo Prado, que criticou o Estado Laico republicano, sem
mencionar em nenhum momento que foi, justamente, a Monarquia católica quem se indispôs com a
igreja.
641
PRADO, Eduardo. O Natal de Voltaire. ―Revista Moderna‖, 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol
01, pp. 353-354).
642
PRADO, Eduardo. O Natal de Voltaire. ―Revista Moderna‖, 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol
01, p.354).

297
A defesa empreendida por Eduardo Prado não tem conteúdo unicamente
religioso, mas também social e político. Para o autor, a religião funciona como uma
espécie de esteio social, o alicerce onde repousa a coesão e a estabilidade da sociedade.
Acredito, então, que, para Prado, o principal problema da proposta revolucionária
francesa não é, exatamente, o ceticismo, mas sim a irresponsabilidade por ter
desestabilizado a tradição católica, que seria uma das estruturas responsáveis pela
ordem das coisas no mundo ocidental. Também Edmund Burke, que, como já sabemos,
é a principal referência da crítica conservadora à Revolução Francesa, desenvolveu um
argumento semelhante, segundo o qual ―a consagração do Estado por uma estrutura
religiosa estatal é necessária para suscitar nos cidadãos livres um saudável temor;
porque, para assegurarem a sua liberdade devem gozar de uma ·determinada dose de
poder‖ 643.

Eduardo Prado não estava sozinho quando empreendeu, nos primeiros anos da
República, uma jornada em defesa das tradições católicas brasileiras. Um grupo de
intelectuais católicos orbitava em seu redor, dentro do qual estavam nomes como
Afonso Arinos, Theodoro Sampaio, Brasílio Machado, Joaquim Nabuco, João Mendes
Jr, Couto de Magalhães Sobrinho e Carlos de Laet. A liderança de Eduardo Prado sobre
esses homens foi tão forte que Maria de Lourdes Mônaco Janoti chama o grupo de
―pradistas‖, destacando que a atuação político/intelectual desses personagens não se
limitava à mera panfletagem contra a República, mas sim no desenvolvimento de uma
interpretação do Brasil, baseada na valorização do mestiço, na idealização do sertão e
do sertanejo, no elogio ao papel dos bandeirantes e dos jesuítas no passado brasileiro.
Naquilo que se refere, especificamente, aos textos de Eduardo Prado, essa interpretação
consistiu na tese de que o Brasil representa o triunfo da civilização contra a hostilidade
natural dos trópicos, o que somente teria sido possível graças à colonização católica
portuguesa. Podemos ver o autor formulando essa tese no calor da polêmica travada, em
1901, com o médico positivista Pereira Barreto.

Como eu já comentei, brevemente, no capítulo anterior, Pereira Barreto, um dos


principais representantes do positivismo independente brasileiro, publicou, em 25 de
abril de 1901, no jornal ―O Estado de São Paulo”, um artigo intitulado ―O século XX
sob o ponto de vista brasileiro: saudação à classe de engenheiros‖. No texto, o autor, se

643
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 72.

298
apropriando das ideias de Henry Thomas Buckle, elabora uma interpretação do Brasil
baseada no elogio das condições naturais do país e na crítica aos efeitos, considerados
deletérios, da religião católica sob a formação do brasileiro. Para Ivan Lins, autor de um
dos principais estudos sobre a apropriação do positivismo no Brasil, o positivismo de
Pereira Barreto foi diferente daquele do Apostolado Positivista, comandado por Miguel
Lemos e Teixeira Mendes, pois esteve preocupado, sempre, com as especificidades da
realidade brasileira, o que levou o médico a flexibilizar alguns valores da ortodoxia
positivista. Também Roque Spencer Barros, em um trabalho dedicado, especificamente,
ao positivismo de Pereira Barreto, afirma que ―o positivismo de Pereira Barreto não era
um sistema estanque, mas um método dinâmico e destinado a compreender e modificar
a realidade brasileira‖644. É, exatamente, esse esforço de compreensão do Brasil a
questão chave do artigo de Pereira Barreto e o elemento que incomodou Eduardo Prado
profundamente.

Diz Pereira Barreto que ―um povo, cuja nutrição cerebral foi inibida pelo tóxico
das concepções sobrenaturais, acha-se como a floresta abatida pelo vendaval: o seu
estado é o de morte aparente‖645. Para o médico, portanto, o problema do atraso
brasileiro estava na influência do catolicismo no caráter nacional, visto que as condições
dadas pela natureza seriam propícias para a construção de uma grande nação. A reação
de Eduardo Prado foi quase imediata, tendo vindo a público em 16 de maio de 1901, nas
páginas do ―Comércio de São Paulo‖, sob a forma do artigo intitulado ―O Dr. Barreto e
a Ciência: Caso curioso de intolerância religiosa no século XX‖. Como demonstrei no
capítulo anterior, Prado começa criticando o método de Pereira Barreto, acusando-o de
negligenciar as reais condições da realidade brasileira, ―fazendo uma apologia e
pintando as vantagens naturais do Brasil num quadro sem sombra, e, portanto, falso‖ 646.
No entanto, ao longo da polêmica, Prado avançou na argumentação e desenvolveu uma
reflexão a respeito da formação da nacionalidade brasileira, algo que ele já vinha
delineando nos seus ensaios dedicados ao estudo da história desde a década de 1890.
Esse material é analisado com mais cuidado no próximo capítulo.

pensamos que o nosso clima, o nosso solo, a nossa situação geográfica, o


conjunto, enfim, das nossas condições naturais, oferecem, como as de todos os
países do mundo, e mais ainda que as de alguns, dificuldades e resistências,

644
BARROS, Roque Spencer Maciel de. A evolução do pensamento de Pereira Barreto. São Paulo:
Grijalbo, 1967. pp. 162-163.
645
Jornal ―O Estado de São Paulo‖. 25 de abril de 1901.
646
Jornal ―O Estado de São Paulo‖. 25 de abril de 1901.

299
contra as quais temos reagido durante três séculos com sucesso notável,
conservando nessa resistência de nossa raça contra as forças externas, o
equilíbrio instável das íntimas energias de nosso ser, que, nos povos, como nos
indivíduos, é o que se chama a vida647. (Grifos Meus)

As interpretações desenvolvidas por Eduardo Prado e Pereira Barreto são,


portanto, inconciliáveis, o que explica a intensidade com a qual a polêmica foi
travada648. Enquanto o primeiro afirmava que a formação do Brasil somente foi possível
graças ao vigor da colonização católica portuguesa, a única capaz de domar a
hostilidade da natureza tropical649, o segundo atribuía, justamente, a essa colonização
católica os efeitos deletérios que incapacitavam o brasileiro de potencializar as
qualidades naturais do país. Para Roque Spencer Barros, os dois contendores eram
―mentalidades antagônicas a recriar diversamente o passado, em função de valores
completamente opostos. (...) Os dois não falavam a mesma linguagem. A história a que
650
se referem não é a mesma‖ . Após a primeira resposta de Eduardo Prado, o duelo se
arrastou até junho, em uma polêmica que repercutiu amplamente na imprensa e
mobilizou a inteligência da época651.

Em um dos momentos mais contundentes da polêmica, Pereira Barreto reforça a


sua tese inicial e responsabiliza a colonização católica pela ―inibição‖ do
desenvolvimento do Brasil. Diz o médico que ―o ilustre Dr Eduardo Prado parece não

647
Jornal ―O Comércio de São Paulo‖. 16 de maio de 1901.
648
Em um estudo sobre o cenário literário brasileiro oitocentista, Roberto Ventura se debruçou
especificamente sobre o problema das polêmicas travadas entre os escritores da época. Para o autor, a
principal característica dessas polêmicas está no fato de que ―incorporaram a forma dialógica dos desafios
da poesia popular e um código de honra tradicional que entrava em conflito com as propostas de
modernização‖ (p.10). É a partir dessa perspectiva, que enfatiza a dimensão pré-moderna do
comportamento dos letrados, que o autor examina uma série de polêmicas que marcaram a história da
literatura brasileira oitocentista. Portanto, quando, em 1901, Pereira Barreto e Eduardo Prado
polemizaram, eles acionaram uma tradição de discussão intelectual já bastante consolidada no Brasil.
649
Como já foi analisado por diversos trabalhos que se debruçaram sobre o pensamento social brasileiro,
a tese de Eduardo Prado foi consagrada por Gilberto Freyre, em ―Casa Grande e Senzala‖. São vários os
momentos do texto nos quais o autor elogia a colonização portuguesa, que, ―mais do que qualquer outra
demonstrou aptidão para a vida tropical. (...) É certo que os portugueses triunfaram onde outros europeus
falharam: da formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com
características nacionais e qualidades permanentes. O português conseguiu vencer as condições de clima
e de solo desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de
gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com mulher de cor‖ (pp. 11-12). Ver FREYRE,
Gilberto. Casa Grande e senzala. Rio de Janeiro: Record, 1999.
650
BARROS, Roque Spencer Maciel de. A evolução do pensamento de Pereira Barreto. São Paulo:
Grijalbo, 1967. pp. 162-163.
651
O historiador Ivan Lins analisou as repercussões da polêmica travada entre Eduardo Prado e Pereira
Barreto na imprensa, tendo o cuidado de mapear as intervenções de outros intelectuais, que se alinharam a
um dos contendores. Por exemplo, Santos Werneck, Arnaldo Vieira de Carvalho e Alberto Seare
manifestaram apoio a Pereira Barreto. Já ao lado de Eduardo Prado, se colocaram Ascânio Vilas Boas,
Estelita Tapajós e o Padre Severiano Rezende. Ver LINS, Ivan. Historia do Positivismo no Brasil. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

300
entender que desde que o primeiro padre pisou nessas terras começou essa obra sem
nome, iniciada a pretexto de salvação das almas e que devia, dentro de três séculos, por
tal forma inibir o cérebro da nossa raça, que parece, hoje, consumado o processo
652
condenatório‖ . É possível desmembrar a argumentação de Pereira Barreto em, pelo
menos, dois aspectos: primeiro, o diagnóstico que aponta para uma situação de
degeneração da raça e, segundo, a afirmação de que essa degeneração não era originária
e nem motivada pelas condições climáticas e naturais, mas sim o produto da influência
da religiosidade católica no Brasil, que teria tornado o Brasileiro indolente e pouco dado
ao trabalho, pois a crença no sobrenatural, ainda nas palavras de Pereira Barreto, é ―um
elemento que leva o indivìduo a desvalorizar o trabalho e a vida material‖. Alguns dias
depois da publicação dessa réplica, Eduardo Prado voltou à arena da imprensa com o
artigo ―Ainda o dr Pereira Barreto‖, onde, novamente, apresentou a sua tese, aquela que
é o traço mais fundamental da interpretação que ele desenvolveu sobre o Brasil,
interpretação que teve vida longa na história do pensamento social brasileiro.

É esta a pátria nossa amada, que há mais de trezentos anos a nossa raça, lutando
contra os homens e os elementos, conseguiu fundar. Encontramos dificuldades e
obstáculos de que a nossa energia triunfou. Nesta zona tropical, que se dizia
inabitável, levantamos a nossa tenda, e sob o céu desta terra nova cresceu e
multiplicou-se a nossa raça, com a força e a fecundidade das plantas vivas que
deitam raízes fundas e estendem longe a verdura das suas frondes. Temos vivido
do trabalho, regando com o suor de todos os dias uma terra que só pela violência
do labor frutifica e nos alimenta. A tez branca que nossa raça trouxe da Europa
aqui se tem dourado ao fogo de um sol sempre ardente. Temos tomado às feras
os largos pedaços de terra, rasgando o véu sombrio da floresta hostil; e onde
dominavam as febres da terra inculta há hoje a verde salubridade da lavoura 653.
(Grifos Meus)

Como fica claro, as premissas do argumento de Eduardo Prado são opostas às de


Pereira Barreto. Para o nosso autor, a natureza não é próspera e fértil, mas hostil e quase
inabitável, uma força incapacitante que somente foi domada pela capacidade de trabalho
do povo brasileiro. No entanto, para Prado, essa capacidade de trabalho também não é
originária da raça, mas sim ―a mais valiosa das heranças que o catolicismo português
nos legou, uma herança que a república, com seu rompante de modernidade, está
destruindo‖. A ação catequética da Companhia de Jesus no perìodo colonial foi o
principal tema dos estudos históricos desenvolvidos por Eduardo Prado ao longo da
década de 1890, estudos que lhe dão o estatuto, na avaliação de Capistrano de Abreu, de
um dos mais importantes historiadores brasileiros em atuação na época. Por isso,

652
Jornal ―O Estado de São Paulo‖. 30 de maio de 1901.
653
Jornal ―O Comércio de São Paulo‖. 07 de junho de 1901.

301
analiso a historiografia de Eduardo Prado no próximo capítulo, onde tento mostrar como
ele combinou o repertório historiográfico retórico e fundamentado no regime de
historicidade da historia magistral vitae com o moderno tratamento do conhecimento
histórico, baseado nos procedimentos cientìficos e em certa noção de ―processo
histórico‖. Por ora, desejo continuar examinando a defesa que o nosso autor fez da
tradição católica.
Para Eduardo Prado, a República era uma espécie de metonímia da modernidade
na história do Brasil, sendo, portanto, a força destruidora das tradições mais
fundamentais da nacionalidade brasileira, do catolicismo legado pela colonização,
principalmente. Portanto, a defesa do catolicismo é, sim, uma das facetas do
antirrepublicanismo de Eduardo Prado, mas seria equivocado dizer que se resume a isso.
O que temos, aqui, é uma discussão algo sofisticada que pode ser situada, pelo menos,
em duas argumentações que parecem ter sido fundamentais para o nosso autor, ainda
que em nenhum momento, ele tenha deixado isso mais explícito: a crítica à
modernidade que, após o Concílio Vaticano I (1870), havia se tornado o elemento
constitutivo da doutrina oficial da Igreja Católica, e a apropriação utilitária da tradição,
que é um dos aspectos mais importantes do pensamento conservador moderno. Portanto,
Prado, ao mesmo tempo rejeitou a modernidade, como um bom católico obediente às
diretrizes estabelecidas pelo pontificado de Pio IX, fazendo-o através de um
tradicionalismo pertencente à outra faceta dessa modernidade, a modernidade
conservadora. No limite, o que estou tentando fazer ao longo de toda esta tese é mostrar
como não eram tão claras as fronteiras que delimitam o antigo e o moderno no
pensamento de Eduardo Prado.
A percepção de que a religiosidade católica estava sendo enfraquecida pela
modernidade marcou o discurso oficial da Igreja após a década de 1870, justamente no
momento em que Eduardo Prado começou a sua trajetória político/intelectual.
Sistematizar a reação da Igreja à modernidade foi o principal objetivo do pontificado de
Pio IX (1846-1878), dentro do qual foi publicado o “Syllabus”, um documento papal
que inventariou os ―erros da sociedade moderna‖, e foi organizado pelo Concílio
Vaticano I, que teve como resultado duas constituições dogmáticas: o Dei Fillis, que
tinha como tema as relações entre fé e razão, e o ―Pastor Aeternus”, que legislou sobre
a infalibilidade papal. Em nenhum momento, Prado fez referência a esses documentos,
apesar de os três fazerem parte do seu acervo bibliográfico, de acordo com o catálogo
publicado em 1916. No primeiro artigo produzido no calor das discussões com Pereira

302
Barreto, o já citado ―O dr Pereira Barreto e a Ciência‖, o nosso autor escreve que
―apesar de se fundar na apoteose da razão, a sociedade moderna jamais irá rejeitar
completamente a religião, porque a santa Igreja está vigilante e pronta para defender a
fé dos ataques da metafìsica positivista‖654.
Apesar de a referência não ser clara, acredito ser possível sugerir que Prado, ao
falar em ―vigilância e defesa‖, estava se referindo às ações articuladas pelo Vaticano
que, desde a década de 1860, com o ―Syllabus”, estava confrontando o racionalismo e o
liberalismo modernos. Sobre, por exemplo, a sobreposição da razão à fé, a constituição
dogmática Dei Fillis determinou, no seu primeiro capìtulo, que ―se alguém disser que na
revelação divina não nenhum mistério verdadeiro e propriamente dito, mas que todos os
dogmas da fé podem ser compreendidos e demonstrados pela razão, devidamente
cultivada, por meio dos princípios naturais – seja excomungado‖. Portanto, ao defender
com tanto empenho a tradição católica, Eduardo Prado não estava atuando apenas como
um conservador herdeiro de Burke, Tocqueville e Chateaubriand, mas, também, como
um católico ultramontano e fiel às diretrizes do pontificado de Pio IX.
Não é só na defesa da religião católica que é possível perceber o esforço de
Eduardo Prado em defender as tradições. Também nos seus ataques à jurisdição
republicana, onde criticou a tentativa do novo regime em ―imitar‖ as instituições
jurídicas dos EUA, o nosso autor chamou atenção para a necessidade de respeitar as
tradições, os ―costumes‖, como ele falou inúmeras vezes. Essa precedência dos
costumes sobre as leis é um debate fundamental na tradição jurídica ocidental, sendo,
também, um tema constitutivo do repertório conservador. Essa discussão foi abordada
por Tocqueville no seu ―A Democracia na América‖, texto tão citado pelos autores
brasileiros durante o século XIX. No capìtulo destinado ―às causas principais que
tendem a manter a República democrática nos Estados Unidos‖, Tocqueville trata, com
cuidado, essa questão: ―Se eu não fazer sentir ao leitor, ao longo desta obra, a
importância que atribuía à experiência prática dos americanos , aos seus hábitos, suas
opiniões, em uma palavra aos seus costumes, na manutenção das suas leis, faltou-se o
objetivo principal que me propus ao escrevê-la‖ 655.
O que está em jogo para Tocqueville parece ser o lugar atribuído à intervenção
humana no processo de elaboração das leis. Seriam, então, as leis o produto da
consolidação dos costumes, o desenlace da maturação, a longo prazo, obviamente, dos

654
Jornal ―O Comércio de São Paulo‖. 16 de maio de 1901.
655
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 375.

303
hábitos mais fundamentais de uma sociedade? Ou as leis seriam o resultado da atuação
ilustrada do legislador, que, atuando como um cientista social, mobiliza a sua
competência técnica para formular o código mais adequado àquela sociedade? Em
Tocqueville, é possível encontrar ambas as propostas, o que mostra que a valorização
dos costumes não implica, necessariamente, na desconsideração da capacidade de
intervenção humana. O autor francês se coloca, justamente, em posição intermediária,
tendo o interesse de escapar dessa dicotomia. Por isso, ele foi a referência fundamental
para a discussão travada, no Brasil, ao longo da década de 1860, entre Tavares Bastos e
o Visconde de Uruguai656. A discussão voltou à tona no início dos anos 1890, quando,
em virtude da mudança nas instituições políticas, se fez necessário um amplo
movimento de renovação jurídica, que culminou na constituição de 1891, claramente
inspirada no exemplo da constituição dos EUA. É, exatamente, aqui que Eduardo Prado
se envolve diretamente no debate, se apropriando do repertório conservador e acusando
os legisladores da República de violarem a tradição nacional ao importar uma jurisdição
completamente estranha aos costumes brasileiros.
O furor imitativo dos Estados Unidos tem sido a ruína da América. Péricles, no
seu célebre discurso do Cerâmico, disse: ―dei-vos, ó Atenienses, uma
constituição que não foi copiada da constituição de nenhum outro povo. Não vos
fiz a injúria de fazer, para vosso uso, leis copiadas de outras nações.‖ Há muita
grandeza na exclamação do gênio grego. Há uma presciência de tudo quanto
descobriu a ciência social moderna que, afinal, se pode resumir nisto: as
sociedades devem ser regidas por leis saídas da sua raça, da sua história, do seu
caráter, do seu desenvolvimento natural. Os legisladores latino-americanos tem
uma vaidade inteiramente inversa da do nobre orgulho do ateniense. Gloriam-se
de copiar as leis de outros países657. (Grifos Meus)

Para Prado, portanto, o ―furor imitativo dos Estados Unidos‖ não é exclusividade
dos legisladores da República brasileira, mas sim dos legisladores latino-americanos,
que, partindo do princípio de que a República seria o regime político natural do
continente, teriam adotado as instituições estadunidenses sem maiores critérios. O nosso
autor argumenta que as leis não podem resultar da ―vaidade‖ pessoal dos legisladores,

656
A historiadora brasileira Gabriela Nunes Ferreira examinou as discussões travadas entre Tavares
Bastos e Visconde de Uruguai ao longo da década de 1860. Nas palavras da autora, ―ocorrida na década
de 1860, o debate travado entre eles diz respeito sobretudo à organização do poder do Estado. Tavares
Bastos defende um modelo de monarquia federativa e um amplo programa de reformas liberais; o
visconde de Uruguai, por sua vez, defende um modelo de Estado unitário e centralizado, modelo que ele
mesmo, como ator político, ajudou a construir. Um ponto interessante é que ambos, nas suas respectivas
argumentações, apoiam-se fortemente justamente em Tocqueville, cada qual para defender seu modelo de
Estado‖ (p.56). Ver FERREIRA, Gabriela Nunes. A relação entre leis e costumes no pensamento político
e social brasileiro. In NUNES, Gabriela; BOTELHO, André (ORG). Revisão do pensamento
conservador: ideias e política no Brasil. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010. pp. 55-75.
657
Jornal ―O Comércio de São Paulo‖. 16 de maio de 1901.

304
mas sim do estudo dos hábitos, dos costumes e da tradição de um povo, de modo que o
legislador, agindo tal como Péricles, faça com que a sua intervenção resulte em uma
jurisdição adequada à sociedade em questão. Tal como Tocqueville, Prado não está
negando ao legislador a capacidade de intervenção, como se as leis precisassem ser a
simples materialização escrita dos costumes, mas sim sustentando que cabe ao
legislador aperfeiçoar as leis, ―adaptando-as ao atual estado dos espíritos, que jamais é
658
radicalmente diferente das situações passadas‖ . O autor reconhece, como podemos
perceber, que as leis precisam ser modificadas e adaptadas aos novos tempos, o que
positiva, e valoriza, a atuação do legislador. Entretanto, esse esforço de renovação tem
limites, pois o ―atual estado dos espìritos‖ jamais é completamente diferente do ―antigo
estado dos espìritos‖. Como um bom conservador, Eduardo Prado adota a solidariedade
entre os tempos como uma premissa, o que justifica o seu esforço em sustentar a ideia
de que a tradição deve servir como guia para a ação dos homens do presente. Daí a
importância de estudar o passado. De fato, a menção a Cícero, no texto que serve como
epígrafe deste capítulo, é coerente com a performance discursiva do nosso autor.
Utilizar o argumento da ―fraternidade republicana americana‖ para legitimar as
novas instituições, era, segundo o nosso autor, um dos maiores erros dos governantes da
época, pois ―voltado para o sol que nasce, tendo, pela facilidade da viagem, os seus
centros populosos mais perto da Europa que da maioria dos outros países americanos;
separado deles pela diversidade da origem e da língua; nem o Brasil físico, nem o Brasil
moral formam um sistema com aquelas nações‖ 659. O que Eduardo Prado parece estar
questionando é a identidade latino-americana do Brasil, delimitando uma diferença
entre o país que nasceu da colonização portuguesa nos trópicos dos países que nasceram
da colonização espanhola. Para o autor, o passado colonial, a morada das tradições mais
fundamentais dos países do novo mundo, deveria ser levado em consideração na
elaboração das constituições jurídicas das nações americanas. O Brasil, por ter um
passado colonial diferente, por ter nascido como nação independente em um processo
emancipatório diferente, deveria ser governado por instituições diferentes, como
aconteceu durante grande parte do século XIX, quando o Brasil foi uma Monarquia
cercada por Repúblicas660.

658
Idem.
659
Idem. p. 19.
660
No seu estudo a respeito da ―mentalidade conservadora brasileira‖, Paulo Mercadante demonstra como
a crítica à imitação jurídica já estava presenta nos escritos de importantes representantes do
conservadorismo nacional desde meados do século XIX, como, por exemplo, o Visconde de Uruguai,

305
Entretanto, naquele ―infeliz‖ 15 de novembro de 1889, os oficiais do Exército se
associaram aos políticos civis e derrubaram o edifício monárquico, que para Prado era a
materialização institucional das tradições nacionais, aquilo que tornava o Brasil um país
diferente, e superior, no cenário americano, uma nação mais próxima da civilização
europeia do que da instabilidade e barbárie das republicas hispânicas. O que tornava o
Brasil diferente, e melhor, seria o fato de ―ter instintivamente obedecido à grande lei de
que as nações devem reformar-se dentro de si mesmas, como todos os organismos
vivos, com a sua própria substância, depois de já estarem lentamente assimilados e
incorporados à sua vida os elementos exteriores que ela naturalmente tiver absorvido‖,
enquanto as outras nações latino-americanas ―declarando a sua independência, adotaram
as fórmulas norte-americanas, isto é, renegaram as tradições da sua raça e da sua
história, sacrificadas ao princípio insensato do artificialismo político e do exotismo
legislativo‖ 661.
Essa diferença fundamental, que separava as duas Américas nascidas da
colonização ibérica, foi implodida, ―do dia para noite, em 1889, quando o Brasil
cometeu o mesmo grande erro em que os hispano-americanos tinham caído no primeiro
quarto do século, isto é, quando artificialmente se quis impor ao Brasil a fórmula norte-
662
americana‖ . Prado considera, portanto, a proclamação da República como um
momento de violação da tradição, de ruptura do vínculo de solidariedade entre o
passado e o presente. Na argumentação do nosso autor, a inauguração do novo regime
teve, no Brasil, efeitos semelhantes aos da Revolução Francesa no mundo ocidental
como um todo: a aceleração do ritmo das mudanças sociais, o que resultou na percepção
de que o tempo estava passando mais rápido. Examinar como o nosso autor associou a
proclamação da República à aceleração do tempo histórico é o objetivo da próxima
seção.

8.2- A República e o tempo histórico no conservadorismo de Eduardo Prado

A noite de 31 de dezembro de 1900 foi de festa no famoso apartamento da Rua


Rivoli, onde Eduardo Prado recebeu um seleto grupo de escritores para a ceia de

para quem ―Aplicar o federalismo ao Brasil seria ―um arremedo imperfeitìssimo e manco das instituições
dos Estados Unidos, destituído porém dos princípios e essenciais meios e circunstâncias que as
acomodam a esse paìs‖ (p. 127). Ver MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
661
Idem. pp. 52-53.
662
Idem. pp. 52-53.

306
revéillon. Entre os convivas estavam nomes como Ramalho Ortigão e o Barão de Rio
Branco, todos ainda abalados pela recente morte de Eça de Queirós. Naquela mesma
noite, após o término dos festejos, o anfitrião escreveu no seu diário:

Foi, portanto, entre raios e trovões que apontou em Paris o século XX. Funesto
agouro? Corri à janela para ver o céu. Dentro do salão fechado e com as cortinas
cerradas não demos pela tempestade (...) Sobre o horizonte dos jardins das
Tulherias havia já uma grande mancha de céu limpo e estrelado. As luzes do
jardim do Louvre, acesas noutro século, tentavam brilhar neste, tentavam sem
êxito, este século, tal como aquele que passou, teima em vagar em suspenso, no
completo vazio663. (Grifos Meus)

Novamente, o autor abordou as relações entre passado e presente, lamentando o


fato de o século XX já nascer sob o signo do colapso das tradições. Como eu demonstrei
na seção anterior, ao formular a questão nesses termos, Prado estava ecoando as
palavras de importantes representantes do pensamento conservador moderno, como
Alexis Tocqueville, por exemplo. Nesta seção, eu pretendo examinar aquilo que há de
específico nas reflexões de Eduardo Prado sobre o tempo, justamente o seu esforço de
interpretar a curta história da República brasileira à luz de uma abordagem baseada na
noção de ―aceleração do tempo‖. Ao fazê-lo, o autor se inseriu em uma discussão que
era muito importante para a sua geração.

De acordo com filósofo italiano Remo Bondei, a ―destruidora voracidade do


tempo‖ não surgiu como objeto de reflexão apenas na modernidade, já estando presente,
de alguma forma, nos ―textos fundadores da cultura ocidental‖, na chamada filosofia
pré-socrática, com Heráclito e Parmênides664. Estou interessado, especialmente, em
compreender como a geração de autores em atividade na segunda metade do século XIX
abordou o problema da temporalidade moderna. Acredito que esses autores, tanto no
Brasil como na Europa, delinearam um conjunto de questões que foram apropriadas por
Eduardo Prado, que pensou a proclamação da República brasileira na chave da
aceleração da temporalidade.

O diagnóstico de que o mundo estava atravessando um momento de grandes


transformações era frequente entre os pensadores da época. Edmund Burke, por

663
O trecho foi extraído de um documento que faz parte da coleção Spencer Vampré, que é parte do
acervo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Pasta n° 32, doc n° 07.
664
Para Remo Bondei, já nos escritos de Parmênides e Heráclito o problema do tema está posto, sob a
forma de uma reflexão que situa a existência ―para além de uma esfera subjetiva e/ou cosmológica, sua
qualidade como número do movimento, ou mesmo realidade móvel da eternidade imóvel, a sua direção
para a corrosão de todos os seres ou para a sua preservação‖. Ver BONDEI, Remo. A filosofia no século
XX. Bauru: EDUSC, 2000. p. 23.

307
exemplo, que, como sabemos, foi um dos primeiros a tentar compreender a Revolução
Francesa, afirmou que ―tudo o que eu fiz no passado e tudo quanto farei para o futuro
será apenas para me ilibar de ter tido qualquer interferência, ativa ou passivamente,
nesta grande mudança‖665. A mudança, portanto, é tratada como algo negativo, como
um processo do qual o autor não quer fazer parte. Já vimos como essa reflexão foi
desenvolvida, também, por Tocqueville. Porém, seria um equívoco achar que a sensação
da temporalidade acelerada é específica dos conservadores, pois outros autores, talvez
de forma menos agônica, também escreveram sobre essa ―era de transformações‖. Para
Koselleck, a noção de ―aceleração do tempo‖ já pode ser encontrada no século XVI, nos
textos vinculados à teologia luterana. Nas palavras do autor, ―ela [a aceleração do
tempo] pode ser atualizada através de uma consciência viva das mudanças temporais e
666
da unicidade de um momento histórico‖ . No entanto, ainda de acordo com as
considerações de Koselleck, ―Kant foi o primeiro a prever esse sistema moderno de
experiência histórica, ao dotar as repetições das tentativas revolucionárias de um
objetivo final temporalmente indefinido, mas com certeza finito‖667.
Ainda que a noção de aceleração do tempo não seja uma novidade no século XIX,
Koselleck sustenta que foi somente nesse período que ela se tornou quase um consenso
entre aqueles que tentavam interpretar a modernidade. Autores como Hegel, Heidegger
e Herder já falavam explicitamente que os tempos modernos se caracterizavam pela
constatação da existência de ―forças imanentes à história, as quais dão origem a um
tempo histórico próprio e pelas quais a Era Moderna se distinguiria do passado‖668.
Reinhart Koselleck diz ainda que ―citem-se aqui os primeiros mestres da aplicação
revolucionária: Manzinni, Marx ou Proudhon. As categorias de aceleração e
retardamento, evidentes desde a Revolução Francesa, modificam, em ritmo variável, as
669
relações entre passado e futuro, conforme o partido ou o ponto de vista polìtico‖ .O
autor, portanto, parte da premissa de que o acelerado ritmo de transformações sociais,
característico dos séculos XVIII e XIX, levou ao esgotamento do vocabulário utilizado
até então, o que demandou todo um movimento de renovação lexical. Compreender essa

665
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 59.
666
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013.p. 94.
667
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Ed. Contraponto, 2006. p. 59.
668
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p. 163.
669
Idem.

308
renovação é o principal objetivo da proposta de pesquisa que conhecemos como
―História dos Conceitos‖, da qual Koselleck é um dos principais representantes.

O que proponho nesta seção é, portanto, a interpretação do conservadorismo de


Eduardo Prado à luz da premissa da aceleração do tempo, cara à abordagem da história
dos conceitos670. Não sou o primeiro a mobilizar esse instrumental teórico para o estudo
da história intelectual brasileira. Na sua tese de doutorado, o historiador Valdei Lopes
Araújo examina o tratamento que os intelectuais do mundo luso-brasileiro deram ao
problema do tempo, na primeira metade do século XIX. Ao analisar os escritos de José
Bonifácio, o autor afirma que

Com a experiência da Revolução Francesa, seu desenvolvimento napoleônico e a


transferência da corte para Rio de Janeiro essa aceleração do tempo começa a
fugir de controle. O futuro acelera, mas se distanciando e deslocando-se das
experiências do presente. A imagem desse futuro é cada vez menos o reflexo do
mundo antigo e começa a guardar algo de imponderável 671.

O autor deixa claro que a percepção de um ―tempo acelerado‖ não é exclusiva de


José Bonifácio, pois ―a chegada da família real serviu como um poderoso catalisador
para as narrativas ilustradas que já frequentavam o discurso letrado luso-brasileiro há
672
algumas décadas‖ . Da mesma forma como, na Europa, a Revolução Francesa serviu
como o catalizador de múltiplas transformações que ―esgarçaram as relações entre
espaço de experiência e horizonte de expectativa‖, para utilizar uma terminologia cara a
Koselleck, na história do Brasil, esses esgarçamento teria sido provocado pela
transferência da corte, o que levou escritores como Hipólito José da Costa, José da Silva
Lisboa, Luís Gonçalves dos Santos, José Pizarro Araújo, Baltazar da Silva Lisboa, além

670
Recentemente, foi publicado em lìngua portuguesa o verbete ―História‖ que, publicado originalmente
em língua alemã em 1973, integrou o ―Dicionários dos Conceitos Fundamentais‖, que é o grande
empreendimento do programa de pesquisa que nós chamamos de ―História dos Conceitos‖. O argumento
central da história dos conceitos, segundo Sérgio da Mata e Arthur Alfaix Assis, é que no século XVIII,
no espaço cultural alemão, as transformações sociais que fundaram a modernidade ―estimularam uma
alteração sem precedentes no significado dos diversos conceitos políticos fundamentais a partir dos quais
se organizava a experiência do mundo ocidental‖ (pp. 11-12). Os autores afirmam que a tese do
―esvaziamento semântico da linguagem usual na história moderna em movimento‖ não era exatamente
inédita, já tendo sido desenvolvida por Hegel, na década de 1820, que na introdução da sua ―Filosofia da
História‖, já apontava para a ressignificação semântica de alguns conceitos, como o conceito ―história‖,
por exemplo, e relacionava essas mudanças às transformações da modernidade. Ver KOSELLECK,
Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013.
671
ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1812-1845). São Paulo: Ed. HUCITEC, 2008. p. 99.
672
ARAUJO, Valdei Lopes. Formas de ler e aprender com a história do Brasil. Acervo, Rio de Janeiro,
n. 22, p. 85-98.

309
do próprio Bonifácio, a vazarem suas narrativas a partir do diagnóstico de que o tempo
estava passando rápido demais. Portanto, os trabalhos de Valdei Araújo sugerem que a
interpretação dos eventos brasileiros a partir do princìpio da ―aceleração do tempo
histórico‖ já estava sendo desenvolvida, no Brasil, desde o início do século XIX. De
alguma forma, portanto, o espaço intelectual brasileiro estaria reagindo, a exemplo do
que acontecia na Europa, a um conjunto de experiências que, em um curto espaço de
tempo, provocaram mudanças tão intensas a ponto de produzir um estranhamento em
relação ao passado, de modo a problematizar a função pragmática da história. No
próximo capìtulo, eu examino melhor os efeitos dessa ―aceleração‖ para a
historiografia, especialmente para a fundação da ciência histórica, buscando
compreender como Eduardo Prado combinou as perspectivas historiográficas
retórico/moralista e científica. Por ora, quero me debruçar sobre o problema do tempo
moderno, pois me parece que, aqui, podemos encontrar uma importante chave para a
compreensão do conservadorismo antirrepublicano do nosso autor.
A revolta militar do Rio de Janeiro, ampliada pelo seu resultado, numa
revolução; as proclamações. A deposição, a partida do soberano destronado. As
mudanças de bandeira, de selos do correio; as prisões, as deportações, os
manifestos, até a benção do arcebispo são episódios obrigatórios destes dramas
nos países meridionais, dramas tantas vezes representados e de que a revolução
brasileira não é mais do que uma inesperada e (até agora) bem-sucedida
reprise673.

A citação foi extraìda de um dos artigos dos ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖
e demonstra como o ritmo temporal se faz presente na narrativa desenvolvida por
Eduardo Prado. O autor enumera, em uma escrita acelerada, as transformações que a
República teria operado no Brasil, o que, para ele, colocava em risco a integridade do
território nacional, que teria sido a grande obra da Monarquia constitucional.

Ainda não voltemos a dizer – Os Brasis –, como cá no Reino se dizia nos velhos
tempos, mas talvez a força das coisas traga em breve o antiquado termo ao uso
da linguagem corrente. Isto sucederá, se, dentro de alguns anos, a palavra –
Brasil -, por obra da República, deixar de ser a expressão da integridade de uma
nação, para ter o valor de uma designação geográfica674.

No quadro pintado por Eduardo Prado, portanto, a proclamação da República


representa um movimento geral de destruição dos valores políticos e institucionais sem
os quais o Brasil não existiria. A República, na pena do nosso autor, é o presente
destruidor do passado, é a ingratidão sob a forma de regime polìtico, pois ―esta

673
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 01.
674
Idem. p. 10.

310
transformação contínua, esta instabilidade ao mesmo tempo destruidora e criadora afeta,
sem dúvida, a vida material e o aspecto do cenário onde todos temos de representar
675
nosso papel‖ . Na equação cronológica proposta por Eduardo Prado, a República
representa o presente instável e ameaçador, enquanto a Monarquia representa a tradição,
a estabilidade, ―o patrimônio moral, do povo, aquilo que não pode estar sujeito a essas
mudanças destruidoras‖. A República, então, teria nascido sob o signo da corrupção,
sendo, ela mesma, a força corruptora. Ainda nesta seção, eu examino como Prado
atribuiu à República brasileira a pecha da corrupção originária, o que nos conduz a um
dos elementos mais importantes da argumentação do autor. Eduardo Prado voltou a
tratar a proclamação da República a partir da noção de ―aceleração do tempo‖ no livro
―A Bandeira Nacional‖, onde ele criticou o pavilhão republicano.

A força desfilou pelas ruas sem que sobre as baionetas rutilantes ao sol flutuasse
o velho símbolo da pátria. Têm o seu destino as bandeiras; pela manhã, o
exército lhe fazia continências; à tarde, eram largadas, talvez, a um canto escuro
do quarte. Ontem, paladino sacrossanto do patriotismo, a que foram feitos os
juramentos mais solenes; hoje, pedaço de pano, que o soldado teve de abandonar
e de esquecer676.

Para o nosso autor, o tempo republicano é tão perigosamente rápido que, em menos
de vinte quatro horas, transformou o ―paladino sacrossanto do patriotismo‖ em sìmbolo
de um regime decaído. A bandeira da Monarquia, que durante tanto tempo havia sido
jurada, fora violada pelos mesmos militares que deveriam protegê-la. Ao tratar o evento
nessa perspectiva, Eduardo Prado está mobilizando um diagnóstico moderno, de uma
modernidade conservadora, é certo, mas nem por isso menos moderna. O evento
―proclamação da República‖ é tomado como o gatilho de aceleração de um processo
histórico que, no limite, ameaçava as virtudes mais fundamentais da nacionalidade
brasileira. O argumento de que Prado, nas suas críticas à modernidade, se comportou
como um intelectual moderno somente faz sentido se tratarmos a modernidade em sua
complexidade e heterogeneidade. Por isso, a reflexão desenvolvida pelo historiador
alemão Hans Ulrich Gumbrecht é importante para a argumentação que desenvolvo neste
capítulo. Visando, exatamente, destacar as várias possibilidades do moderno,
Gumbrecht formula o conceito ―Cascatas de Modernidade‖. Ao enfatizar as diferenças
entre quatro modernidades distintas, o autor acredita ser possìvel ―focalizar o status
677
histórico peculiar ao nosso próprio momento‖ . Estou interessado, especialmente,

675
Idem. p. 32.
676
PRADO, Eduardo. A bandeira nacional. São Paulo: Tipografia Salesiana, 1903. p. 04.
677
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentindos. São Paulo: Ed 34, 2010. p. 10.

311
naquilo que o autor chama de ―segunda cascata de modernidade‖, que seria o período
compreendido entre 1760 e 1830, quando, a antiga função pedagógica da história, que
se baseava na possibilidade de uma relação de semelhança entre passado e presente,
passou a ser amplamente questionada.

Parece seguro dizer, contudo, que somente desde o início do século XIX
atribuiu-se ao tempo a função de ser um agente absoluto da mudança. No interior
do tempo histórico, não se pode imaginar que quaisquer fenômenos estão livres
de mudança – e isso leva à aceitação geral da premissa de que períodos
históricos diferentes não podem ser comparados por quaisquer padrões de
qualidade meta-histórica. Simultaneamente, o tempo como um agente absoluto
de mudança dá à inovação o rigor de uma lei compulsória 678.

Para designar essa temporalidade moderna, Gumbrecht utiliza o conceito


―cronotopo do tempo histórico‖, que, nas palavras do próprio autor, representa uma das
particularidades da experiência histórica moderna, ―as formas mutáveis e premissas
sobre as quais a experiência se dá‖. O que está em questão para Gumbrecht é situar a
fundação do ―cronotopo do tempo histórico‖ na experiência histórica que ele chama de
―segunda cascata de modernidade‖, justamente aquela dentro da qual podemos inserir a
Revolução Francesa. A modernidade, diz Gumbrecht, ―pode ser entendida como a
consciência da crescente dificuldade de se aprender com a história‖, pois a função
pedagógica do conhecimento histórico somente se sustentaria em uma concepção
cronológica baseada na continuidade, e não na ruptura, como passou a ser após a
segunda metade do século XVIII.

Também Hans George Gadamer tratou o problema da temporalidade moderna,


sendo que o seu conceito chave é o de ―consciência histórica‖, que, em muitos aspectos,
desempenha funções analìticas semelhantes ao ―cronotopo do tempo histórico‖, de
Gumbrecht. Nas palavras do autor, ―o aparecimento de uma tomada de consciência
histórica constitui, provavelmente a mais importante revolução pela qual passamos
679
desde o inìcio da época moderna‖ . O autor está preocupado, portanto, em investigar
aquela que é uma das principais construções da mentalidade moderna, ―o privilégio do
homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da
relatividade de toda opinião‖680. É, justamente, esse ―senso de historicidade‖, a
percepção de que o tempo é um agente da transformação, que o autor considera um dos

678
Idem. p. 15.
679
GADAMER, Hans George (ORG). O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Ed. FGV,
2006. p. 17.
680
Idem.

312
elementos mais fundamentais da modernidade. Apesar de reconhecer que a gênese de
uma ―consciência histórica‖ é um processo que envolva toda a Europa, o autor afirma
que ―é somente na Alemanha que esse tema desempenhou papel central na filosofia‖.
Portanto, tal como propõe Koselleck em relação ao problema da fundação do conceito
moderno de história, reflexão que abordo com mais cuidado no próximo capítulo,
Gadamer, também, identifica certo vanguardismo alemão naquilo que se refere à
consolidação dos valores modernos.

O tema da relação entre as tradições e a modernidade não passou despercebido


para Gadamer, pois ―a consciência moderna assume – precisamente como ―consciência
histórica‖ – uma posição reflexiva a tudo que lhe é transmitido pela tradição. A
681
consciência histórica já não escuta beatificamente a voz que lhe chega do passado‖ .
Daì que, segundo o autor, ganhou força o exercìcio da ―interpretação‖, que, tal como a
consciência histórica, é algo genuinamente moderno. Na medida em que a tradição já
não mais é percebida como um guia para ação humana na história, os valores legados do
passado passaram a ser examinados e relativizados, interpretados, como diz Gadamer,
em perspectiva histórica, a partir de premissas que são constitutivas do presente, do
tempo no qual a interpretação é elaborada. Temos aqui, portanto, a mesma indicação de
esvaziamento da tradição, tal como já visualizamos nos textos dos fundadores do
conservadorismo moderno.

As considerações de Koselleck, Gadamer e Gumbrecht são fundamentais para a


reflexão que desenvolvo nesta seção porque delineiam um cenário semelhante: o
homem moderno é aquele que trata a realidade a partir do princípio da transitoriedade, o
que confere ao tempo o estatuto de uma potência transformadora, que pode ser
considerada uma força construtiva, como no caso das filosofias progressistas da história,
ou uma força destrutiva, como no caso do conservadorismo. No Brasil, o tempo foi
objeto de reflexão de vários autores. Joaquim Nabuco, por exemplo, afirma que a
―humanidade está tornando-se suscetível e irritável com em extremo, sinal de que está
682
envelhecendo, ou se que está velha‖ . O velho é tratado por Nabuco como sinônimo
de decrépito, de corroído, sendo o tempo o agente da corrosão. Tal como Nabuco,
Araripe Júnior tratou do tema da temporalidade moderna, dizendo que o século XIX
fora ―tumultuoso, tudo nele apareceu. Todas as ideias se agitaram; todas as

681
Idem. p. 18.
682
NABUCO, Joaquim, Diários: 1873-1909. Rio de Janeiro: Bem te vi, 2006. p. 411.

313
683
insobriedades se impuseram‖ . A agitação contemporânea não passou despercebida
por Graça Aranha, que na ocasião da inauguração do Congresso Latino do Capitólio de
Roma disse que ―hora sempre inquieta do presente, pois nos tornamos incapazes de
parar, estamos condenados ao contínuo movimento das marés humanas, sofremos um
triste suplìcio‖684. Portanto, instabilidade, transitoriedade, movimento: é nessa chave
que os autores europeus e brasileiros que viveram a virada do século XIX para o século
XX abordaram a modernidade.

É, exatamente, essa percepção do tempo histórico um dos aspectos mais


importantes das críticas conservadoras que Eduardo Prado fez à República brasileira.
Como demonstrei no último capítulo, o interesse de Eduardo Prado em compreender, e
combater, a República o levou a desenvolver uma interpretação um tanto sofisticada a
respeito da realidade brasileira, o que fez com que temas como o bacharelismo e a
tradição católica fossem mobilizados em função da defesa do regime político derrubado
pela intervenção de 15 de novembro. Para o nosso autor, um dos principais defeitos da
República era, justamente, a sua juventude, pois ―o governo provisório do Brasil não foi
eleito pela nação: ninguém lhe conferiu a missão de legislar; e, todavia, este ―simples
agente temporário da soberania nacional‖ tem legislado com frenesi, tem alterado todas
685
as relações sociais, polìticas e jurìdicas a seu único e bel prazer‖ . Faltaria à
República aquilo que a Monarquia tinha de sobra: a capacidade de resistir ao teste do
tempo, pois, na ―vida moderna‖, como Prado costumava falar, ―tudo morre tão rápido
que a velhice, cada vez mais, se torna um privilégio‖686.

Como eu já disse em outros momentos dessa tese, as críticas que Eduardo Prado
fez à República estiveram muito associadas à certa concepção clássica, ligada,
especialmente, a Aristóteles, de ―formas de governo‖. Por isso, mais de uma vez, o
nosso autor afirmou que a República brasileira violava aquilo que havia de mais
fundamental em um regime político republicano: a liberdade, que, como eu demonstrei
na primeira parte deste trabalho, é outra categoria fundamental para a compreensão do
conservadorismo de Eduardo Prado. Segundo ele, no Brasil, a República nasceu
corrompida, pois, já no berço, exerceu o poder de forma tirânica. Também aqui, nessa

683
ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. Obra crítica de Araripe Junior. Rio de Janeiro: Casa Rui
Barbosa/Ministério da Educação e Cultura, 5 v., 1963. p. 81.
684
ARANHA, Graça. Obras completas. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do livro, 1969. p.828.
685
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 71.
686
Idem.

314
discussão a respeito da liberdade e da fidelidade da República brasileira ao ―verdadeiro
republicanismo‖, a questão do tempo foi fundamental na argumentação de Prado.

Os pais da pátria americana, os fundadores da constituição, viveram num período


histórico de pureza moral, em tempos de patriotismo e de abnegação. (...)Esse foi
o fundamento da República norte-americana. Será inviável e uma fonte perene
de males, qualquer outra república que não tiver o seu berço banhado na
atmosfera da virtude cívica. As sociedades políticas e as formas de governo
precisam de nascer puras para ter a vida longa e próspera. Os organismos
políticos são como os organismos animais e vegetais; quanto mais perfeitos
nascem e quanto mais robusta é a infância, mais garantias apresentam de
duração. Nunca se viu uma república nascer disforme para a vida de violência,
do crime, da discórdia, da corrupção e do erro para daí se adiantar até à virtude, à
paz e à verdade... A podridão é própria dos túmulos e não dos berços. O que há a
esperar de uma existência humana cuja infância não tiver sido inocente 687?
(Grifos Meus)

Na citação, Prado reconfigura a sua argumentação, sem que, com isso, deixe de
associar a proclamação da República brasileira à corrupção original da modernidade.
Porém, ao mobilizar a comparação com os EUA, o autor introduz um elemento novo na
sua reflexão: a corrupção não é algo, tão somente, inerente à modernidade, pois a
República estadunidense é moderna e nasceu virtuosa. O problema, aqui, parece ser
específico da República brasileira, que não teria nenhuma chance de se tornar virtuosa
no futuro, pois o tempo apenas corrói, jamais edifica. No trecho, tal como Tocqueville
fez no seu ―A Democracia na América‖, Eduardo Prado não nega a virtuosidade
originária dos EUA, virtuosidade que foi violada pela pretensão desse país em
―escravizar as outras nações latino-americanas‖. Não podemos esquecer que o tema
principal do ―A Ilusão Americana‖ é a política externa dos EUA ao longo do século
XIX, o que, para o nosso autor, desmentia o argumento da ―fraternidade americana‖,
usado pelos governantes da República brasileira para justificar o ―pan-americanismo‖
sobre o qual a política externa nacional passou a estar baseada. Nesse sentido, Prado,
sendo fiel à tradição conservadora, elogiou os EUA, mas deixou claro que esse elogio já
não mais fazia sentido.

A República norte-americana não teve a sua infância corroída pela corrupção,


nem a sua puerícia se passou nos jogos sangrentos das guerras civis. Era ela já
quase secular quando o seu solo foi fratricidamente regado pelo sangue de seus
filhos; e os vícios contra os quais lutam hoje os patriotas, as faltas que lhe
apontam os pensadores, são vícios de hoje, faltas atuais, que se não podem
justificar no exemplo dos antepassados. A lição da história da independência e os
exemplos das gerações extintas são espelhos de virtude.688

687
PRADO, EDUARDO. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 89.
688
Idem. p. 89.

315
Por outro lado, a República brasileira não poderia, sequer, reivindicar uma
virtuosidade originária, pois ela já nascera corrompida ―pela violência com a qual o
trono do S. M. foi derrubado‖. No entanto, se a história da República brasileira fosse
pensada na perspectiva da temporalidade moderna, segundo a qual o tempo marcha
rumo ao progresso, a crítica de Prado poderia ser facilmente esvaziada. Bastaria que o
interlocutor alegasse que os possíveis erros da República seriam solucionados com o
tempo, na medida em que o regime amadurecesse. Já antevendo a contra argumentação,
Eduardo Prado, que conhecia as discussões modernas a respeito do tempo, utilizou a
concepção tradicional de tempo.

Querer justificar a corrupção e o crime quando aparecem, por assim, dizer,


identificados e consubstanciados com uma república que começa, dizendo que
tudo isto é próprio das instituições novas, é falsear a verdade histórica. Não; o
nascer das Repúblicas, se não for rodeado do perfume da abnegação, se não
fumegarem em roda do seu berço o incenso puro e a mirra incorruptível do
sacrifício e do patriotismo, não promete e não dará nunca no futuro se não crimes
e desgraças689.

O tempo parece ter, para Eduardo Prado, apenas a potencialidade de corrosão, pois
uma vez corrompido o corpo jamais se tornará saudável. Já o corpo que nasce saudável
pode ser corrompido. O tempo é definido, então, tanto em um caso como no outro, tanto
para a República dos EUA como para a República do Brasil, como uma força de
destruição, sendo que no primeiro caso essa força destruiu a virtude e no segundo caso
aumentaria ainda mais a amplitude da degradação. Temos aqui, portanto, a rejeição à
passagem do tempo, que é definido como algo, inelutavelmente, destruidor. Entretanto,
essa formulação viola uma premissa que é fundamental para o tradicionalismo
conservador: a definição da sabedoria como um atributo dos velhos, como aquilo que
sobrevive ao tempo, que ―passa no teste do tempo‖, para utilizar a formulação de João
Pereira Coutinho. Quando Prado afirma que a ―podridão é própria do túmulo e não dos
berços‖, ele parece está elogiando o novo e denegrindo o velho, o que seria tìpico de um
pensador moderno da estirpe de um Voltaire, por exemplo. É, justamente, essa posição
―entre dois‖ que acredito ser o principal aspecto do conservadorismo de Eduardo Prado,
de um pensamento formulado em um momento de transição, no Brasil e no mundo.

Ainda que o diagnóstico seja o pior possível, Prado ainda conseguia ver esperança
em um futuro que, em ultima instância, era imprevisível. Afinal, se a República foi o
resultado do potencial corrosivo da temporalidade moderna, quem poderia assegurar

689
PRADO, EDUARDO. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 88.

316
que a mesma onda avassaladora não tragaria o próprio regime fundado em 15 de
novembro? Nos deparamos, aqui, com o esforço de prognóstico através do qual o nosso
autor tentou ordenar o caos contemporâneo. Nesse esforço, ele, mais uma vez, transitou
entre o antigo e o moderno, entre o futuro pensado na chave do cálculo, segundo a qual
seria possível, a partir dos exemplos passados, delimitar com alguma clareza o que
ainda estava por acontecer, e o futuro pensado na perspectiva da completa incerteza, o
que, em alguma medida, poderia ser bom, já que a destruição da República surgia como
uma possibilidade, entre tantas outras. Analisar o lugar do prognóstico no
conservadorismo de Eduardo Prado é o objetivo da próxima seção.

8.3- O prognóstico como um exercício de domesticação do tempo

―Corrosão‖, ―velocidade‖, ―corrupção‖, ―destruição‖, são esses os termos que


Eduardo Prado mais utilizou quando, na década de 1890, se debruçou sobre a sua
contemporaneidade. Como vimos nas duas últimas seções, na esteira dos ―pais
fundadores‖ do conservadorismo moderno, ele estabeleceu uma relação agônica com a
passagem do tempo, o que se desdobrou em uma crítica política que associou a
República brasileira à ―anomia moderna‖, entendendo-se o termo como sinônimo de
destruição das tradições. Portanto, o nosso autor definiu o passado como o lugar das
virtudes mais fundamentais e o presente como o momento da ingratidão, como a
morada da potência destruidora das heranças legadas pelos antigos.

E em relação ao futuro? Teria o nosso autor se interessado pelo devir? Sim,


também o futuro, o ―se tornar‖, esteve entre as preocupações de Eduardo Prado. Como
já é de se esperar, os prognósticos feitos por ele estiveram vinculados ao esforço de
temporalizar a República. ―Quem garante ao Brasil que a Revolução de 15 de novembro
será a última690?‖, disse o autor, sugerindo que o regime polìtico proclamado em
novembro de 1889 poderia ser corroído pela mesma temporalidade destruidora que lhe
deu a vida. Nos escritos de Prado, o exercício do prognóstico é uma tentativa de
domesticar o caos das experiências finisseculares. Se a República levou à derrocada o
edifício monárquico, qual seria o futuro desse regime? Qual seria o futuro do Brasil?
Compreender a forma como Prado respondeu essas inquietações é o meu objetivo nesta
seção. Nessa resposta, ou melhor, nessas respostas, o autor combinou o prognóstico
antigo, a partir do qual o futuro poderia ser calculado através do exame das lições

690
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 15.

317
ministradas pela tradição, com o prognóstico moderno, segundo o qual o futuro seguiria
a razão maior da história: o progresso, que no caso do conservadorismo de Eduardo
Prado seria a regeneração da Monarquia.

Para Prado, a despeito do que diziam os filósofos progressistas, o século XIX não
era a ―primeira etapa de germinação das liberdades plantadas pela ação revolucionária
do século passado [século XVIII], mas sim o momento da tiranização dos homens pelas
691
utopias metafìsicas‖ . Em um ensaio destinado especialmente à futurologia moderna,
Koselleck afirma que a partir do século XVIII, ―a utopia foi inserida na filosofia da
história‖692. Com essas palavras, o autor alemão está querendo dizer que a aceleração da
temporalidade moderna não alterou, apenas, a relação entre passado e presente, mas
modificou, também, a forma através da qual os homens ocidentais representavam as
suas expectativas por um ―mundo perfeito‖. Até o século XVIII, essa expectativa pela
perfeição, ainda de acordo com as considerações de Koselleck, era depositada na crença
da existência de uma terra desconhecida, lugar que ao longo da história do pensamento
ocidental foi ocupado, por exemplo, pela Cítia e pela América693. Com o passar do
tempo e com a extensão da presença europeia em todas as regiões do mundo, foram se
esgotando ―as possibilidades espaciais de situar as utopias na finitude da superfìcie da
nossa terra. (...) Os espaços utópicos haviam sido ultrapassados pela experiência‖694. A
solução para o esgotamento dessa utopia tradicional, que Koselleck chama da ―co-
territorial‖, foi a temporalização das expectativas, pois ―se a utopia não podia mais ser

691
PRADO, Eduardo. O Natal de Voltaire. ―Revista Moderna‖, 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol
01, p.352).
692
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: ContraPonto,
2014. p. 122.
693
Analisando os escritos de Heródoto e Chateaubriand, o historiador francês François Hartogo destaca
como a Cìtia e a América permearam o imaginário europeu como os ―lugares exóticos que guardariam
toda a perfeita inalcançável pela civilização‖. Nos textos do historiador grego, a Cìtia foi representada
como o lugar selvagem que permeou, durante muito tempo, as representações ocidentais do exótico. Na
modernidade, com o descobrimento da América, esse lugar, de alguma forma, foi ocupado pelo novo
mundo. Nesse sentido, Hartog acredita que as representações sobre a América se deram em um ambiente
semântico caracterizado pelo ―paradigma cita‖. Nas palavras do autor, ―a Cìtia é amplamente concebida
como uma primeira América desaperecida, isto é, um refúgio. O jovem Chateaubriand decididamente
não é um jovem Anarchasis: ele só pensa em fugir da Grécia e reencontrar a Cìtia‖. HARTOG, François.
Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2014. p.
102.
694
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: ContraPonto,
2014. p. 124.

318
estabelecida nem na nossa terra presente nem no além, era preciso recuar para o
futuro‖695.

Esse ―recuo para o futuro‖ é uma caracterìstica fundacional dos principais sistemas
filosóficos modernos, do liberalismo ao marxismo, passando pelo positivismo. Nas
palavras de Karl Mannheim, para esses sistemas filosóficos modernos, ―o domìnio da
liberdade e da igualdade somente virá a existir no futuro remoto‖ 696. Nesse sentido, por
conta desse exercício de projeção, o futuro ganha estatuto de potência organizadora da
experiência temporal, na medida em que se torna o télos rumo ao qual a realidade se
move. Essa percepção moderna de futuro alterou profundamente o exercício do
prognóstico, pois ―do prognóstico pragmático de um futuro possìvel, surgiu a
expectativa de longo prazo sobre um novo futuro, que deveria determinar o
697
comportamento‖ . A mudança fundamental, segundo Koselleck, aconteceu porque a
aceleração da temporalidade e a consequente diluição dos laços de semelhança entre
passado e presente fizeram com que se esgotasse a possibilidade de futuro ser lido à luz
do cálculo, o que somente seria possível a partir das premissas da tradição. O futuro se
tornou, então, o ponto de chegada de uma história, já temporalizada e lida na chave do
―processo/progresso‖.

O pensamento conservador moderno, que como sabemos foi delineado ao longo


dos séculos XVIII e XIX, por autores como Edmund Burke, Alexis Tocqueville e
François-René Chateaubriand, reagiu a essa futurologia filosófica, para quem ―o futuro
constituìa tudo e o passado nada‖, pois ―o modo conservador de experimentar o tempo
encontrou a melhor corroboração de seu sentido de determinação ao descobrir a
698
importância do passado, na descoberta do tempo como um criador de valor‖ .
Também Robert Nisbet destaca as diferenças entre as cronotopias progressistas e
conservadora: ―os racionalistas-progressistas veem o presente como começo do futuro,
quando a maneira autêntica de o ver – para a mentalidade conservadora - é como o
estágio mais recente alcançado pelo presente num crescimento contìnuo e ininterrupto‖
699
. Portanto, enquanto os progressistas pensam o passado como uma etapa a ser

695
Idem.
696
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p. 263.
697
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p.161.
698
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. pp. 258-259.
699
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 56.

319
superada e o presente como um momento de transição rumo a um futuro, considerado o
desenlace do processo histórico, os conservadores propõem que o tempo seja pensado a
partir da solidariedade entre passado, presente e futuro, que, irmanados pela tradição,
guardariam mais semelhanças do que diferenças entre si.

O que é mais importante para minha reflexão é o fato de importantes estudos


especializados no pensamento ocidental moderno identificarem mudanças nas
representações do tempo após o século XVIII, no delineamento das relações entre
passado, presente e futuro. No entanto, essas mudanças não devem ser resumidas à
cronotopia progressista, porque pari passu às formulações de autores como Voltaire,
Marx e Comte, outros autores, como Burke, Tocqueville e Chateaubriand, saíram em
defesa do continuum histórico, se esforçando para proteger a tradição da temporalidade
acelerada. Por isso, como já disse inúmeras vezes ao longo desta tese, a dicotomia
modernidade progressista X antimodernidade conservadora não é a melhor chave para a
leitura dos escritos de um conservador, como foi Eduardo Prado. O conservadorismo é
tão moderno quanto as filosofias progressistas, mas de uma modernidade distinta, de
uma modernidade reativa que mobilizou valores tradicionais nas suas críticas aos
sistemas filosóficos progressistas. Essa combinação entre o moderno e o tradicional
pode ser percebida, com alguma clareza, nos escritos de Eduardo Prado. É esse o
argumento central que estou tentando sustentar neste trabalho.
A humanidade não para. Se há uma escola, hoje já pouco respeitada na ciência
política, que fez da República o ideal dos governos, quem nos diz que o futuro
achará outra fórmula mais adiantada? Quem nos diz que a nossa sociedade
burguesa de hoje não desaparecerá, para dar lugar a outra baseada no
socialismo700?

Eduardo Prado situou a República na esteira da aceleração moderna, sugerindo


que o novo regime era tão frágil quanto todos os outros valores modernos, pois na
modernidade nada mais era definitivo, a ―humanidade não para‖, nas palavras do nosso
autor. Por isso, se a República nasceu ―do dia para noite, alterando todo o regime de
vida que durante mais de sessenta anos fez do Brasil o refúgio da civilização na
América‖, quem garantiria que outra revolução não alteraria, novamente, os rumos da
história do Brasil? Na citação, o futuro é tratado na perspectiva da incerteza, como um
enigma, o que se explica pela percepção do autor de que a temporalidade moderna, o
―cronotopo do tempo histórico‖, para utilizar um termo caro a Hans Ulrich Gumbrecht,
havia implodido os laços entre passado, presente e futuro. Se a tradição consolidada

700
PRADO, Eduardo. ―O Comércio de São Paulo‖. 17/01/1897. (Coletâneas, Vol 02, p. 56)

320
pelas experiências pretéritas não eram mais capazes de conduzir os passos dos homens
no presente, não era possível saber como seria o futuro. Estaríamos enganados, contudo,
se achássemos que essa indefinição, obrigatoriamente, se desdobrou em uma
cosmovisão pessimista e melancólica. Pelo contrário, Prado viu na indeterminação
futura a possibilidade da redenção.
Ao longo da década de 1890, as expectativas de Eduardo Prado variaram de
acordo com a situação política da República. Em um primeiro momento, durante a
ditadura militar, ele chegou a dizer, nos ―Fastos‖, como eu mostrei na última seção, que
a ―civilização brasileira morreria‖, se tornando o termo ―Brasil‖ a designação de uma
simples localização geográfica e não de uma nação. Após o fim da ditadura militar, o
autor se tornou menos pessimista, o que reorientou as suas percepções a respeito do
futuro do Brasil.

A geração que aí vem com a rapidez do tempo e que nos impele para o túmulo
com todas as nossas dissensões, os nossos ódios e as nossas faltas, essa achará a
pátria em ruína e, amaldiçoando a nossa obra, terá como ideal o restabelecimento
da civilização brasileira, com a volta à liberdade e à tolerância, bem supremos de
que nos despojamos e que os nossos filhos saberão reconquistar 701.

A citação é de 1895, quando, como eu comentei antes, os políticos civis, ligados


à oligarquia cafeeira paulista, já tinham assumido o controle da República e colocavam
em prática um projeto de despolitização do Exército. Para Eduardo Prado, o ano de
1894, quando Floriano Peixoto deixou a Presidência e Prudente de Morais, o primeiro
civil a assumir o cargo, chegou ao poder, representou uma importante mudança nos
rumos do novo regime. Embora o autor jamais tenha aderido completamente à
República, ele era um civilista e, por isso, não deixou de ver com bons olhos o fim da
ditadura militar. Como vimos no segundo capítulo, em 1897, ainda no mandato
presidencial de Prudente de Moraes, Prado foi um dos protagonistas da ―polêmica do
habeas corpus dos monarquistas‖, o que mostra que a sua relação conflituosa com as
instituições republicanas não terminou com a volta dos militares para a caserna.
Entretanto, em nenhum momento, ele duvidou de que a desmilitarização da República
fora algo positivo. Talvez, por isso, o tom da citação seja algo otimista, pois, diante do
quadro de uma ditadura militar, o fato da instauração de um governo civil já era um
alento para o nosso autor.

701
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 21/11/1895. (Coletâneas, Vol 02, p. 129).

321
No trecho, Prado aponta a aceleração da temporalidade e ensaia uma previsão
para o futuro do Brasil. Tendo como base a curta história da República, uma história de
―dissensão‖, de ―ódio‖ e de ―ruìna‖, o autor sugere que as gerações futuras seriam
capazes de recolocar o paìs no caminho da ―civilização‖. Portanto, o prognóstico, aqui,
guarda algo do continuum cronológico típico da temporalidade tradicional: tendo como
ponto de partida o exame dos eventos passados é possível delinear o futuro, pois as
camadas temporais, os ―estratos de tempo‖, para utilizar a metáfora setecentista
mobilizada por Koselleck702, guardam vínculos entre si. Se em pouco tempo, a
República foi capaz de violar tudo aquilo que o Brasil tinha de mais valioso, o seu
futuro não poderia ser outro que não a ruína. Então, a despeito da aceleração da
temporalidade, Eduardo Prado diz ser possível antever os acontecimentos futuros à luz
dos acontecimentos passados. Por outro lado, há algo de progressismo no prognóstico
de Eduardo, de um progressismo suis generis e diferente do progressismo
revolucionário, mas que, ainda assim, localiza no futuro o momento da redenção. Em
alguns momentos, nos escritos do nosso autor, as fronteiras entre a temporalidade
progressista e a cronotopia conservadora se tornam algo porosas, sem, contudo, jamais
desaparecerem por completo.

A monarquia, adversária da República, subirá ao poder na onda espiritualista. Na


luta de princípios, é inegável que a Monarquia está ao lado do princípio que vai
dominar, e a República declinará e desaparecerá com o positivismo, com que se
identificou703.

Parece que Prado está traçando uma ―história geral da República‖, que seria
constituída por um passado recente de violência e tirania, por um presente de transição,
representado pelos governos civis, e por um futuro de redenção, quando o Brasil
perceberia que a aventura republicana fora um fracasso. O desfecho disso seria, é claro,
a restauração da Monarquia. Eduardo Prado não chegou a elaborar explicitamente o
argumento, mas me parece que, nesse esquema interpretativo, a posse de Prudente de
Morais e a desmilitarização do Estado republicano são eventos constitutivos de um

702
Em um livro recentemente publicado em língua portuguesa, Reinhart Koseleck se apropria de
metáforas espaciais para examinar a temporalidade moderna. Entre essas metáforas tem destaque a noção
de ―estratos de tempo‖, que é uma formulação já disponível no vocabulário ocidental desde o século
XVIII. Nas palavras do autor, Assim como ocorre no plano geológico, os ―estratos de tempo‖ também
remetem a diversos planos, com durações diferentes e origens distintas, mas que apesar disso, estão
presentes e atuam simultaneamente. Graças aos ―estratos de tempo‖ podemos reunir em um mesmo
conceito a contemporaneidade do não contemporâneo, um dos fenômenos históricos mais reveladores.
Ver 702 KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: ContraPonto,
2014. p. 122. p. 09.
703
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 21/11/1895. (Coletâneas, Vol 02, p. 62).

322
movimento geral de degeneração do regime político fundado em novembro de 1889 e
de regeneração da Monarquia. Nos seus estudos a respeito do pensamento histórico
brasileiro no início do século XIX, o historiador Valdei Lopes Araújo destaca a
importância da dicotomia degeneração X regeneração para o pensamento historiográfico
brasileiro. Para o autor, nas duas primeiras décadas do século XIX, no mundo luso-
brasileiro, o tempo foi representado na chave da ―regeneração‖, visto que existia a
percepção geral de que o Império português vivia um momento de degeneração.

Entre os textos examinados, Araújo prioriza os escritos de José Bonifácio, para


quem ―a tarefa do ―historiador é reconhecer e restaurar, fazer funcionar novamente um
princípio emperrado ou contaminado, usá-lo e adaptá-lo às necessidades do século. Esse
esforço aproxima o passado do presente de tal forma que ele se torna imediatamente
disponível, é mais uma ação contra o tempo do que no tempo, ignorando-se os seus
efeitos‖704. Me parece que o argumento desenvolvido por Valdei Lopes para a
interpretação dos textos de Bonifácio é útil para a compreensão do conservadorismo de
Eduardo Prado. Ambos os autores, cada um na sua época e cada um a seu modo,
pensaram o tempo na chave da decadência, o que implicou, também, no
desenvolvimento de expectativas que projetaram para o futuro a redenção, não vista,
necessariamente, como o progresso inédito das utopias revolucionárias, mas sim como a
recuperação da tradição.

Acredito, portanto, que seja possível sugerir que Prado está operando com algo
similar à noção de ―progresso‖, cara à metafìsica revolucionária que ele tanto rejeitava.
Porém, dizê-lo não significa implodir as fronteiras entre essa metafísica e o
conservadorismo do nosso autor, mas sim, no máximo, problematizá-las. Quando Prado
fez o seu diagnóstico otimista e apontou para um progresso futuro, ele não estava
querendo dizer que a marcha rumo a esse progresso é contínua e evolutiva, mas sim
descontínua e marcada pelo necessário retrocesso. A fundação da Monarquia, em 1822,
que é pensada pelo autor como a herdeira da colonização portuguesa nos trópicos, faz
parte do processo de consolidação da ―civilização brasileira‖, processo que foi
interrompido pela proclamação da República.

Acima, porém, dos homens, acima dos interesses da nova geração, pairam as
ideias de justiça e de liberdade. A história pode ser desfigurado pelos

704
ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1812-1845). São Paulo: Ed. HUCITEC, 2008. p.27.

323
historiográficos oficiais e interesseiros. Não é, porém, possível iludir a
inteligência das gerações futuras, como se rouba a liberdade da geração
presente705.

Há na citação um elemento fundamental para a reflexão que estou


desenvolvendo nestes dois últimos capìtulos. Eduardo Prado afirma que a ―história‖ não
é aquilo que os historiadores a serviço da República estavam escrevendo, mas sim algo
que está ―acima dos homens‖. Ao elaborar o argumento dessa forma, o autor está
mobilizando o conceito moderno de história, a história como singular coletivo, aquele
que em língua alemã é designado pelo termo “Geschichte‖. No próximo capìtulo, onde
examino a historiografia eduardiana, eu me detenho com mais cuidado sobre a
construção desse conceito moderno de história. Por ora, me interessa entender como
Prado fez da história um tipo de tribunal da justiça, que na posteridade redimiria os
erros dos homens da sua geração. Ao examinar os textos de importantes filósofos
oitocentistas, Koselleck, tratando especificamente da filosofia da história desenvolvida
por Hegel, destaca a utilização da metáfora do ―tribunal da história‖. Diz o autor que o
uso dessa metáfora deve ser interpretado como um desdobramento da ―transição da
formulação de um juízo moral, por parte dos historiadores, para o processo como
história mundial‖, pois nessa transição ―se firmara a visão filosófica da história do
iluminismo em direção à filosofia da história da era moderna‖ 706.

As vozes da consciência nacional, hoje emudecidas no Brasil, hão de um dia


clamar bel alto. E os mamelucos da ditadura que, não ousando desmentir os fatos
que apontamos e não pondo dizer que afirmamos falsidades, dizem que somos
um anônimo, esses ajudarão a gritar contra a ditadura decaída com mais
convicção do que a que hoje simulam ter. O que escrevemos há de ser lido no
futuro. Os homens do futuro hão de fazer da história o grande tribunal onde serão
julgados os crimes da nossa geração. Talvez, nesse momento, o Brasil já não
mais existirá707. (Grifos Meus)

Estas palavras não são de Hegel, mas sim de Eduardo Prado, para quem somente
os brasileiros do futuro estariam aptos a julgar os ―crimes‖ da geração que viveu a
queda da Monarquia e a proclamação da República. A história, nesse tempo futuro,
seria, então, um tipo de tribunal que, distanciado do calor dos conflitos originais, teria a
temperança suficiente para separar os justos dos criminosos. A moral da história não
está mais nos eventos singulares, que mobilizados pragmaticamente seriam capazes de
orientar a ação dos contemporâneos, mas sim na própria História, grafada com letra
maiúscula e dotada de substância e sentido próprios. Nas palavras de Koselleck, ―a

705
PRADO, Eduardo. Trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1959. p. 57.
706
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p. 150.
707
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 21/11/1895. (Coletâneas, Vol 02, p. 70).

324
história temporalizada e processualizada como unicidade permanente não podia ser mais
aprendida de forma exemplar, mas sim encarada e explicada de forma nova por cada
708
geração da humanidade que está em progressão‖ . Essa forma moderna de tratar a
história, particularmente naquilo que se refere ao uso da metáfora do tribunal, está
muito próxima daquilo que podemos encontrar nos escritos de Eduardo Prado. Ao
comentar sobre a guerra hispano-americana no livro ―A Ilusão Americana‖, o uso da
metáfora fica ainda mais claro.

A luta dos Estados Unidos e da Espanha é, talvez, o prologo de um drama


universal, representado em formas novas, com desprezo pela arte antiga e pelas
convenções fora da moda, tais como o direito em geral, e o cômico direito
internacional , muito especialmente. (...) Mais tarde, a metade, senão a maioria
da população de cuba, composta de negros e mulatos, gozará de outros favores,
seja pelo domínio direto e confessado, seja pelo protetorado, seja pela invasão
dos americanos ricos, enérgicos, ou sem escrúpulos, esta população cubana vai
ficar sobre o jogo americano709. (Grifos Meus)

Ainda no calor dos acontecimentos, o autor projetou um futuro para a recém-


fundada República cubana, uma projeção que o desenrolar dos acontecimentos mostrou
ser certeira. Porém, não é na capacidade de Eduardo Prado prognosticar que estou
interessado, mas sim no próprio exercício desse prognóstico, especialmente na
combinação dos prognósticos moderno e tradicional. O autor insere a guerra travada
entre EUA e Espanha em um ―drama universal‖ marcado pelo ―desprezo pelas
convenções‖, ou mesmo pela tradição, para ficarmos na terminologia que está sendo tão
importante para a argumentação que desenvolvo neste capítulo. Utilizando uma
formulação desenvolvida pelos filósofos modernos da história, como Hegel, por
exemplo, o nosso autor fala na existência de um enredo universal dentro do qual os
eventos históricos se desenrolam. Porém, diferente da ―história universal filosófica‖
hegeliana, Eduardo Prado não vê o télos do progresso como o desfecho necessário do
processo, mas sim a corrosão, a decadência dos valores mais fundamentais para a
organização social, justamente aqueles legados pela tradição.

Nesse sentido, Prado opera com a noção de ―processo‖, cara, como sabemos, às
filosofias modernas da história. Porém, isso não quer dizer que ele o faça na perspectiva
do progresso, pois, como disse há pouco, o mais correto seria falar em ―retrocesso‖,
compreendido como a regeneração das tradições, como um movimento de volta à

708
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. pp. 162-163.
709
PRADO, Eduardo. O Natal de Voltaire. ―Revista Moderna‖, 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol
01, pp. 376).

325
autoridade do passado. O conservadorismo do nosso autor é, portanto, constituído por
valores distintos, mas combináveis entre si, como podemos perceber no cálculo que
fundamenta a previsão que ele fez para o futuro de Cuba. Segundo Prado, a
peculiaridade da independência cubana, forjada no conflito entre o velho império
colonial e o novo império capitalista, não garantiria a liberdade do povo cubano porque
a nova nação nascera como o resultado do imperialismo estadunidense. O prognóstico,
portanto, parte do exame dos eventos da guerra hispano-americana e da consequente
independência de Cuba, que são interpretados à luz do continuum histórico, pois se a
ilha cubana se libertou do julgo espanhol através da tutela do governo dos EUA, essa
liberdade era falsa, sendo o devir da sociedade cubana algo parecido com o seu
presente, estando, então, passado, presente e futuro irmanados pelo julgo colonial. No
mesmo parágrafo, Eduardo Prado utilizou a moderna noção de ―drama universal‖,
sugerindo um prognóstico que não apontou para o télos do progresso, mas sim para o
aprofundamento da corrupção, e calculou o futuro em função das experiências passadas.
Mais uma vez, a combinação entre o antigo e o moderno. A performance do nosso autor
é semelhante quando o objeto do prognóstico são os próprios EUA.

Quando toda aquela massa de milhões de homens, erguida e umidade, reclamar e


se fizer justiça, ela será por sua vez, mais forte do que todo e do que todos, e a
grande República sem entranhas, encarnação do monopólio, da fraude e da
hipocrisia, será afogada no sangue, será consumida no fogo do incêndio, que será
o maior e o mais justo dos castigos que a história há de registrar 710.

Aqui, o autor prevê uma rebelião geral dos povos latino-americanos contra a
dominação imperialista exercida pelos EUA. Outra vez, o prognóstico atende à
temporalidade tradicional, pois a premissa é o continuum entre as experiências. Entre o
presente no qual Prado escreve, quando os EUA, de acordo com o autor, escravizavam
os outros países americanos, e o futuro projetado, a situação do continente americano é
a mesma: a dominação imperialista de um país sobre os outros. É exatamente a
convicção de que essa situação não irá se transformar que torna o prognóstico possível.
Em outras palavras: a coerência da previsão está no fato de que o dado principal – o
imperialismo norte-americano – não irá se transformar com a passagem do tempo. Ao
menos nesse momento, o autor não parece estar trabalhando com a noção de tempo
acelerado. No entanto, logo depois, ele reorienta a argumentação e se apropria de um
valor constitutivo das filosofias progressistas modernas. Situando em um futuro

710
Idem. p. 384.

326
indefinido o momento da justiça, quando a ―grande República sem entranhas‖ teria seu
―justo castigo‖, uma punição imputada pela história.

O livro ―A Ilusão Americana‖, que, como eu comentei antes, é uma das


principais referências brasileiras para o estudo das relações internacionais entre os
países americanos durante o século XIX, está repleto de prognósticos para o futuro da
continente e para o futuro do Brasil. Já apontando aquele que seria um dos principais
elementos da sua interpretação do Brasil, Eduardo Prado diz que ―clama alto em nosso
espírito a voz da experiência fria e implacável! E, pessimista, ela nos diz: A colonização
ibérica da América foi um insucesso, foi uma desgraça para a civilização do nosso
planeta‖ 711
. O autor está se referindo à tentativa da República, na época governada pelo
Marechal Floriano Peixoto, de desenvolver outra narrativa para a nação, uma narrativa
que desprezava a herança portuguesa712. Porém, segundo o autor, esta forma de perceber
o Brasil seria tão transitória como o próprio regime político que a ensejou, pois, a
despeito dos ―hecatombes recentes‖,

o bloco imenso de uma rocha ferruginosa, ora decomposta, e que forma uma
montanha de terra arroxeada, como que embebida do sangue, ainda fresco, já
existia há milhares de anos, antes de existir tudo quanto hoje existe e faz ruído.
Ela existia antes do tempo em que o exército de César era contra a armada de
Pompeu. Existirá ainda, quando, de outros ambiciosos, não restarem nem os
nomes pouco ilustres713.

Na economia do texto, essa metáfora geológica tem a função de endossar o


tradicionalismo do autor. A nacionalidade brasileira, representada pela imagem do
―bloco imenso de uma rocha ferruginosa‖, foi o produto da colonização portuguesa nos
trópicos, que é o principal objeto dos textos historiográficos escritos por Eduardo Prado
ao longo da década de 1890. Apesar de sólida, a ―rocha‖ estava ―ora decomposta‖, mas
não o suficiente para que a sua existência fosse ameaçada, na medida em que o tempo
era o verdadeiro responsável pela sua solidez. A tradução da metáfora não é nada difícil:

711
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. pp. 181-182.
712
Em outro lugar, eu examinei a narrativa sobre a nação que foi produzida pelo Estado republicano
brasileira durante o governo de Floriano Peixoto (1891-1894). Na época, os jornais jacobinos, como o ―A
Bomba‖, por exemplo, fizeram campanha para a destruição dos monumentos públicos que lembravam a
colonização portuguesa, na qual era inserida a Monarquia bragantina. Entre esses monumentos, a estátua
equestre de D. Pedro I, que até hoje está situada na região central do Rio de Janeiro, era o que mais
incomodava os grupos que apoiavam o governo de Floriano Peixoto. No jornal ―O Nacional‖, que era
outro periódico controlado pelos jacobinos, a estátua do primeiro Imperador era definida como ―esse
padrão nojento do nosso passado opróbrio, desarraigaram arvores utilíssimas, lançaram por terra arbustos
pitorescos, destruíram a relva branda e verde, apertaram o jardim que o circundava‖. Ver: OLIVEIRA,
Rodrigo Perez. As armas e as letras: a Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército brasileiro
(1881-1901). Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2013. p. 120.
713
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. pp. 181-182.

327
a decomposição momentânea representa a República, que não seria capaz de
comprometer a existência do Brasil. O país formado na tradição da colonização católica
portuguesa sobreviveria à República, pois, apesar de tudo, o catolicismo de matriz
lusitana já havia passado no teste do tempo. Fica claro que o prognóstico é otimista, mas
não de um otimismo progressista, segundo o qual a história marcha rumo ao novo, que
é, necessariamente, visto como superior ao velho. O otimismo de Prado não se
fundamenta na expectativa pelo novo, pelo télos, mas sim na esperança de que o velho
continuará a existir, de que a autoridade da tradição será preservada.

Neste capìtulo, eu tentei compreender como o ―tempo‖ pode ser utilizado não só
como uma categoria analítica para o exame do pensamento conservador de Eduardo
Prado, mas também como uma das premissas para sua interpretação da realidade. Ao se
debruçar sobre a curta história da República brasileira, o autor desenvolveu uma
reflexão sobre as especificidades da temporalidade moderna, o que o levou a se
apropriar dos argumentos consagrados por outros autores vinculados ao
conservadorismo. Portanto, foi no trânsito entre as noções antiga e moderna de tempo
que Prado defendeu as tradições católicas e monarquistas, o que não o impediu de falar
em ―drama universal da história‖ e em ―tribunal da história‖, termos que são
fundamentais na engenharia discursiva das filosofias progressistas, as mesmas que o
nosso autor criticou tão duramente. Essa combinação entre o antigo e o moderno pode
ser percebida, também, na historiografia desenvolvida por Eduardo Prado. É,
exatamente, essa historiografia que eu analiso no próximo, e último, capítulo.

328
Capítulo 9

A historiografia conservadora de Eduardo Prado: a combinação dos repertórios


historiográficos antigo e moderno

E nesta outra peregrinação, não se contentou também com observar a fachada


monumental dos tempos, feita de reinados, de leis, de tratados, de núpcias, de
rebeliões, de guerras, toda salpicada de nomes e datas, com semblantes de heróis
em gesso ou mármore; mas penetrou para além da fachada sintética, no esforço
de conhecer, sobretudo, o pensar, o sentir, o viver costumeiro, o ser moral, a
alma palpitante dos tempos. (...) Ora, Eduardo Prado é, sobretudo, um amigo dos
homens. Por isso, na história procurou sempre aquele coração íntimo das
multidões, que nunca se mostra nos annaes 714. (Grifos Meus)

[Eduardo Prado], de História, possuiu conhecimentos extensos e profundos e


tinha orgulho muito justo e legítimo de ser um dos especialistas no assunto 715.
(Grifos Meus)

Li o livro de Eduardo um pouco antes da publicação e lhe digo que fiquei


impressionado com o talento de historiador que ali ele demonstrou. Se nos
fastos, Frederico de S. se mostrou um grande cronista, na ilusão ele foi mais
longe e soube costurar os fatos da história americana, escrevendo uma verdadeira
História716. (Grifos Meus)

Não à toa, eu inicio este último capítulo com trechos de autoria de três dos
principais interlocutores, e amigos, de Eduardo Prado: respectivamente, Eça de Queirós,
Capistrano de Abreu e José Maria da Silva Paranhos Jr, o Barão de Rio Branco. Ao
contrário do que as epígrafes sugerem, aqui, o meu tema central não é a rede de
socialibilidades de Prado, assunto que analisei no sexto capítulo desta tese. Ao invés
disso, estou interessado em entender o lugar que a historiografia ocupa no pensamento
político conservador do nosso autor e, por isso, os testemunhos dos três intelectuais
servem como pontos de partida para a minha análise. Cada um a seu modo, eles
comentaram os estudos históricos de Eduardo Prado, apontando a modernidade da
historiografia que ele desenvolveu. O que os três autores parecem estar destacando é
uma concepção moderna de história, que envolve tanto os acontecimentos estudados
como a narrativa desenvolvida por um autor comprometido com uma série de
procedimentos destinada ao conhecimento ―verdadeiro‖ dos eventos passados. Como eu
já cometei antes, importantes estudiosos da modernidade afirmam que a construção
dessa noção moderna de história é uma das principais novidades trazidas pela
inteligência do século XVIII, chegando mesmo a se configurar, na língua germânica, em
um neologismo, de acordo com a análise de Reinhart Koselleck.

714
QUEIRÓS, Eça de. Eduardo Prado. In PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola
Tipográfica Salesiana, 1904. pp. XIII-XIV.
715
ABREU, Capistrano. “Ensaios e Estudos” (crítica e história). Ed. Briguiet, 1931. p.339.
716
FILHO, Luís Viana (ORG). O arquivo do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1947. p. 71.

329
Capistrano de Abreu, um dos principais nomes da história da historiografia
brasileira e reconhecidamente o maior historiador brasileiro vivo nos anos finais do
século XIX717, define Prado como um ―legìtimo especialista em História‖. Não é
fortuito o fato de a palavra estar grafada com letra inicial maiúscula, pois ao usar o
termo, o historiador cearense não estava se referindo aos anais ou às crônicas
características da historiografia pré-moderna, mas sim ao conhecimento já configurado
como um campo científico autônomo. Também Eça de Queirós e o Barão de Rio
Branco destacam o distanciamento da historiografia de Eduardo Prado em relação a
outras narrativas sobre o passado. O escritor português afirma que, diferente do que
acontece nos ―annaes‖, Prado era capaz de penetrar na ―alma palpitante dos tempos‖,
não se contentando em ―observar a fachada monumental dos tempos‖. Eça de Queirós
parece estar sugerindo que o nosso autor fazia algo próximo ao que hoje chamaríamos
de ―história social‖, ou seja, uma representação historiográfica que não se restringe à
narrativa factual dos acontecimentos políticos protagonizados pelos grandes homens,
mas sim que persegue a compreensão das estruturas sociais dos eventos, do ―motor dos
acontecimentos‖, para utilizar um termo caro a Fernand Braudel. Já o Barão de Rio
Branco comenta, em carta enviada a Joaquim Nabuco em 1894, os dois livros mais
conhecidos de Eduardo Prado: os ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖, que Paranhos
classifica como um bom livro de ―crônicas‖, e o ―A Ilusão Americana‖, que ele
considera uma ―verdadeira História‖. Quais seriam as diferenças entre os annaes, a
crônica e a ―verdadeira história‖ para esses autores? Ao longo deste capìtulo, eu me
debruço sobre este problema, pois me parece que aqui reside uma questão fundamental
para a reflexão a respeito da identidade epistemológica da história, e do historiador, na
cena intelectual brasileira dos últimos anos do século XIX.

Portanto, se formos levar em consideração a opinião dos amigos de Eduardo


Prado, ficaremos inclinados a dizer que o nosso autor, além de polemista político, foi
um importante historiador, entendendo o termo como a designação de um letrado

717
Desde os estudos de José Honório Rodrigues, que foi um dos primeiros autores a se debruçar de forma
mais sistemática sobre a fortuna historiográfica de Capistrano de Abreu, que o historiador cearense vem
sendo apontado como um dos principais representantes da historiografia brasileira. A partir de então, os
escritos de Capistrano de Abreu foram objeto de inúmeros estudos, tendo destaque os de Rebeca Contijo,
Maria da Glória Oliveira, Francisco Falcon e Fernando Amed, todos devidamente citados e referenciados
ao longo deste capítulo. Apesar das particularidades desses estudos, há um consenso que os aproxima: a
definição de Capistrano de Abreu como o maior historiador brasileiro vivo no final do século XIX, sendo
a sua produção historiográfica um marco tanto para a demarcação metodológica da historiografia
científica brasileira como para o delineamento do período colonial como um momento fundamental para a
interpretação da história do Brasil.

330
especializado no estudo da história e versado nos procedimentos metodológicos da
ciência histórica. Será que a análise dos textos historiográficos de Eduardo Prado
confirma essa interpretação? O que significava ser historiador no Brasil no final do
século XIX? Eduardo Prado foi mesmo reconhecido como um historiador por seus pares
ou os seus mais chegados amigos foram generosos demais? Havia algo parecido com
uma comunidade científica de historiadores no Brasil do final do século XIX capaz de
dizer quem poderia ser considerado um ―historiador‖? É possìvel perceber nos textos de
Eduardo Prado a adoção dos métodos de investigação que, na Europa, estavam, desde o
início do século XIX, sendo delineados como obrigatórios para o trabalho do
historiador? Qual teria sido a relação de Eduardo Prado com o IHGB? Como demonstrei
no sexto capítulo, a entrada do nosso autor no corpo de sócios da agremiação que na
época regulava a pesquisa histórica no Brasil foi tardia. Será, então, que nas suas
pesquisas, ele seguiu o caminho traçado pelos membros do instituto que, desde a década
de 1830, estavam interessados em fomentar estudos sobre a história do Brasil?
Apresentar possibilidades de respostas para essas inquietações é o objetivo deste último
capítulo.

De fato, desde o final da década de 1880, Prado se destacou como um dos


historiadores mais produtivos do Brasil, se tornando um especialista na história da
colonização portuguesa na América, principalmente naquilo que se refere à atuação
catequética dos padres Jesuítas. No entanto, seria equivocado afirmar a existência de
uma dicotomia mais rìgida capaz de separar o ―Eduardo Prado ativista polìtico‖ do
―Eduardo Prado historiador‖, já que ele mobilizou o conhecimento histórico como
ferramenta de crítica política nos seus textos mais notoriamente engajados e prefigurou
a sua operação historiográfica718, para utilizar aqui um termo formulado por Michel de
Certeau, com os seus valores político/ideológicos. Por isso, e exatamente esse é o
argumento que desenvolvo neste capìtulo, acredito que a imagem do ―historiador
moderno e cientista‖, propagada por Capistrano de Abreu, Eça de Queirós e Barão de
Rio Branco, precisa ser pensada com mais cuidado, pois se é verdade que nos seus
textos, Prado atuou como um historiador atento aos procedimentos de crítica
718
O conceito foi formulado por Michel de Certeau, no seu tão conhecido livro ―A Operação
Historiográfica‖. Para o autor, na modernidade, a escrita da história pode ser pensada como uma
―operação‖ caracterizada por três fundamentos: um lugar social e institucional a que está vinculada a
produção do conhecimento histórico, uma prática, ou seja, o conjunto de procedimentos metodológicos
utilizados pelos historiadores e uma escrita através da qual a pesquisa adquire forma de um texto
historiográfico. Ver CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forence Universitária,
2007.

331
documental e interessado em desvelar o ―sentido‖ da história do Brasil, também é
igualmente verdadeiro que os protocolos retórico/moralistas, característicos da
historiografia antiga, jamais estiveram completamente excluídos do seu horizonte de
preocupações. Nesse sentido, novamente, eu me esforço para sustentar aquela que é
hipótese central desta tese: o conservadorismo de Eduardo Prado, em todas as suas
manifestações, incluindo a historiografia sobre a colonização portuguesa na América, é
constituído pela combinação de elementos modernos e antigos da tradição intelectual
ocidental.

Estou sugerindo, portanto, que nos escritos de Eduardo Prado não são tão rígidas
as fronteiras entre o gênero histórico/poético e a disciplina científica que nasceu no
espaço acadêmico europeu na primeira metade do século XIX. Ao apresentar essa
hipótese, eu estabeleço um diálogo com uma bibliografia que se esforçou em tornar
mais porosos os limites entre os repertórios historiográficos antigo e moderno. No
próprio verbete ―história‖ do dicionário de conceitos que foi tão importante para o
projeto historiográfico de Koselleck, a tese de que a história, como um termo singular
coletivo utilizado para designar tanto o ―processo histórico‖ como o seu estudo
científico, é uma construção genuinamente moderna, é um tanto flexibilizada. Na parte
do verbete destinada ao conceito antigo de história, que foi redigida por Cristian Meier,
a dimensão total do conceito de história é identificada já nos textos de Políbio, onde os
acontecimentos posteriores ao ano de 220 tomaram ―a forma de um corpo, que significa
que ela se transformou num todo inter-relacionado, fazendo com que as ações e os
acontecimentos nas diferentes partes do mundo se relacionassem entre si, e todos eles se
voltassem para um mesmo objetivo. O todo apresentava um conjunto de ações, uma
peça de teatro, com começo, meio e fim‖719. No entanto, ainda segundo Meier, o uso
que Políbio fez do conceito singular de história não remetia exatamente ao que hoje nós
entendemos como ―processo histórico‖, sendo utilizado, sobretudo, ―para a forma, para
o invólucro, e apenas secundariamente para todo o conjunto de ações, de
acontecimentos e de transcursos que ele continha. Do ponto de vista do conteúdo, ele
visava muito mais à soma dos acontecimentos do que a relação entre eles‖720. Para
Meier, portanto, ainda que o uso do conceito singular de história já possa ser observado

719
MEIER, Cristian. Antiguidade. In: KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte:
Ed. Autêntica, 2013. p. 46.
720
Idem. pp. 48-49.

332
nos tratados polibianos, a concepção de processo histórico é uma criação moderna, o
que valida a tese koselleckeana.

Também Odilo Engels, que é o autor da parte do verbete relativa ao conceito


medieval de história, mostra que não foi tão abrupta assim a transição da cultura
histórica tradicional para a cultura histórica moderna. O autor fala em certa filosofia da
história e na universalização da experiência temporal já na Idade Média, sob o signo da
teodiceia cristã. Nas palavras do autor, ―dentro dessa perspectiva de conhecimento, todo
acontecimento terreno poderia convergir para uma unidade; foi em conexão com o
pensamento agostiniano que estavam dadas as pré-condições para uma história
universal, mesmo que ela, com isso, ainda não fosse realizável‖721. Para Engels, não é,
exatamente, a unidade dos eventos históricos que a experiência revolucionária moderna
fundou, pois por volta do século XII a cultura medieval já estaria munida de uma
dimensão universal do tempo. Porém, essa universalidade ainda estava subordinada à
intervenção de Deus nos assuntos humanos, o que mudaria na temporalização da
história, essa sim, a grande novidade trazida pelos ventos da modernidade.

Nesse sentido, até mesmo os autores diretamente envolvidos com o projeto da


história dos conceitos têm a preocupação de não estabelecer uma dicotomia mais rígida
entre os conceitos antigo e moderno de história e todos os procedimentos cognitivos que
os constituem. A partir do século XVIII, é possível perceber, ainda segundo esses
autores, o progressivo fortalecimento de um conceito moderno de história,
caracterizado, entre outras coisas, pela noção de progresso e pela temporalização do
processo histórico. O amadurecimento desse conceito moderno não exclui,
necessariamente, a sobrevivência de valores pertencentes ao repertório da cultura
histórica tradicional. Também na historiografia brasileira há exemplos da combinação
entre essas concepções antiga e moderna de história. Diversos estudiosos especializados
no tema, tais como os de Valdei Lopes Araújo, Manoel Salgado Guimarães e
Temístocles Cézar, demonstraram como, desde o início do século XIX, os letrados
brasileiros envolvidos com os estudos históricos combinavam diferentes valores
historiográficos. Ao longo desse capítulo, eu discuto com mais cuidado com esses
trabalhos.

721
ENGELS, Odilo. Antiguidade. In: KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte:
Ed. Autêntica, 2013. pp. 63-82. p.82.

333
Neste último capítulo, portanto, eu me debruço sobre um corpus relativamente
extenso de textos, de modo a examinar a articulação entre a forma e o conteúdo da
historiografia eduardiana, pois acredito que, assim, é possível compreender como
Eduardo Prado combinou os protocolos pedagógico/moralistas da concepção retórica de
história com os procedimentos metodológicos da ciência histórica moderna. De acordo
com a conjuntura de elaboração do discurso, o nosso autor mobilizou, e combinou,
estratégias distintas que resultaram em narrativas que articularam conteúdos e estilos em
função dos interesses da argumentação. Em outras palavras: se o interesse principal de
Eduardo Prado era desqualificar a forma republicana de governo, ele, por exemplo,
historiou a implantação desse regime político na América, desenvolvendo uma
cronologia na qual os eventos narrados guardam potencial semelhança entre si, o que
lhe permitiu extrair uma lição da história americana, segundo a qual, no continente, o
republicanismo era equivalente ao despotismo militar e à violência. Por outro lado,
quando o objetivo era examinar a ―história da civilização brasileira‖, ele foi
extremamente rigoroso na análise dos documentos e na articulação de uma interpretação
do Brasil que apontou para o êxito da experiência colonial lusitana nos trópicos. O que
estava em jogo, aqui, não era exatamente a extração de uma lição moralizante oriunda
da exemplaridade dos eventos passados, mas sim a compreensão do ―sentido maior‖ da
história brasileira, que, para Eduardo Prado, era o rumo impresso pela ação civilizadora
da catequese católica. A construção dessa interpretação do Brasil, como eu demonstro
ao longo do capítulo, não está descolada da militância política antirrepublicana do autor.

Também este último capítulo está dividido em três partes, sendo que o critério
que eu utilizo para a divisão é relativo à tipologia dos materiais examinados. Na
primeira seção, eu me debruço sobre os textos mais engajados de Eduardo Prado,
justamente aqueles que foram escritos no calor dos embates que ele travou com as
instituições republicanas. Nesse momento, o meu interesse específico é compreender
como Prado utilizou a ―história‖ como parte de sua estratégia polìtico/ideológica. Na
segunda seção, eu analiso a correspondência que o nosso autor trocou com os seus
principais interlocutores, pois acredito que neste tipo de documentação é possível
entender algo a respeito do delineamento de um procedimento historiográfico científico
moderno no Brasil do final do século XIX. Na terceira seção, eu examino os escritos
propriamente historiográficos de Eduardo Prado, ou seja, aqueles nos quais o autor
assumiu a identidade do historiador e se dedicou ao estudo da história da colonização

334
portuguesa na América. Acredito que nesse material seja possível perceber a principal
contribuição do nosso autor ao pensamento social brasileiro.

9.1- A historiografia como argumentação política: a combinação dos protocolos


retóricos com os procedimentos científicos
Como eu já disse inúmeras vezes ao longo desta tese, a característica mais
marcante da produção intelectual de Eduardo Prado é o seu engajamento no combate ao
regime político fundado em novembro de 1889. A extensa produção do autor não é dada
às demarcações cronológicas mais rígidas, mas mesmo assim, entendo que é possível
dizer que os textos produzidos entre o final 1889 e o final de 1895 estiveram
diretamente vinculados ao esforço de Prado em desestabilizar as instituições
republicanas. O que pretendo fazer, nesta seção, é investigar como ele utilizou a história
nessa ofensiva política, como combinou os protocolos retórico/moralistas do repertório
historiográfico antigo, os valores da moderna filosofia da história e os procedimentos da
crítica metódica historicista. Ainda que, nesses textos, o autor não tenha assumido,
explicitamente, a identidade do historiador, por vezes, ele atuou como tal, mobilizando
os recursos que a modernidade científica definiu como constitutivos do ofício do
historiador. Vejamos como Prado iniciou os seus dois livros mais conhecidos,
justamente aqueles nos quais ele confrontou diretamente o regime político republicano.

Há dez dias que o cabo submarino tem transmitido da América do Sul para a
Europa, na concisão do estilo telegráfico, notícias surpreendentes, que chamaram
para aquela parte do mundo a atenção de todos, mesmo dos que, em tempo
ordinário, jamais pensam no que vai pelo ocidente, ao sul do Equador. (...)
Narrar a verdade dos acontecimentos materiais não é coisa possível; o telégrafo
está lacônico, faltam os antecedentes; e carecemos dos detalhes intermediários
que só podem dar uma aparência de lógica ao que, à primeira vista, se afigura
inexplicável. (...) Investigar as causas não é, porém, a missão do cronista, a quem
somente cumpre contar os acontecimentos722. (Grifos Meus)

Onde é que se foi descobrir na história que todas as nações de um mesmo


continente devem ter o mesmo governo? E onde é que a história nos mostrou que
essas nações têm por força de ser irmãs 723? (Grifos Meus)

Três anos separam as duas citações. A primeira pode ser encontrada nas páginas
iniciais do artigo ―Os acontecimentos do Brasil‖, publicado na ―Revista de Portugal‖ em
dezembro de 1889, e a segunda foi publicada em 1893, na introdução do livro ―A Ilusão
Americana‖. Nas palavras do próprio Eduardo Prado, os textos dos ―fastos‖ são

722
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
723
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1990. p. 17.

335
classificados como ―crônica‖, enquanto no livro ―A Ilusão Americana‖, a história é
evocada como uma espécie de instância decisória a qual o autor recorre para questionar
o argumento da fraternidade republicana, que era o fundamento discursivo da
diplomacia republicana, que pretendia estreitar os laços entre Brasil e EUA. A
classificação genérica segundo a qual Prado tratou os seus próprios textos é a mesma
que o Barão de Rio Branco utilizou na carta que enviou a Joaquim Nabuco, como vimos
em uma das epígrafes que dão início a este capítulo. Mas o que esses autores entendiam
por ―crônica‖ e por ―história‖?

Os textos que constituem o verbete ―História‖, do Dicionário dos Conceitos


Históricos, nos ajudam a compreender melhor a historicidade dessas palavras. Para
Odilo Engels, autor do texto sobre o conceito de história na Idade Média, as narrativas
medievais sobre o passado podem ser classificadas nos seguintes gêneros: ―Crônica‖,
―annales‖, ―vita‖, ―gesta‖, ―história popular‖ e ―poesia histórica‖. A crônica seria uma
narrativa ―escrita por um único autor, em geral conhecido pelo nome, e destinada a um
público amplo, que tentava abarcar uma matéria histórica, abrangente, desde o início até
o momento em que escrevia, a partir de uma ideia mestra‖724. Já a ―história‖ evocada na
primeira página do livro ―A Ilusão Americana‖ parece ser tratada no seu sentido
moderno, pois surge como uma força que, em si, é capaz de dizer a verdade. Segundo
Koselleck, ―ao final do século XVIII, o ônus da prova para a moralidade foi transferido
para a própria história‖, não sendo mais o historiador o responsável pelo delineamento
dos juìzos morais, na medida em que ―[os historiadores] debatiam, de forma animada,
se deveriam permitir que seu juízo fluísse para dentro da narrativa, ou se deveriam
deixar que a própria história falasse‖725. Para Eduardo Prado, a ―verdade‖ era que a
história não autorizava os diplomatas republicanos a utilizarem o argumento da
fraternidade continental, já que era perfeitamente possível que países do mesmo
continente fossem governados por regimes polìticos distintos, pois ―em plena Europa
monárquica não existem a França e a Suìça republicanas?‖726.

Será, então, que, à luz das páginas iniciais dos ―Fastos da Ditadura Militar no
Brasil‖ e da ―Ilusão Americana‖, é possìvel sustentar o argumento de que nos artigos
escritos no calor dos acontecimentos, Prado atuou como um cronista pré-moderno e no

724
ENGELS, Odilo. Antiguidade. In: KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte:
Ed. Autêntica, 2013. pp. 63-82. p. 66.
725
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p.146.
726
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1990. p. 17.

336
livro produzido no quarto ano de vida da República brasileira, ele agiu como um
historiador filosófico, no sentido moderno da expressão? Não me parece que essa
polarização rígida se sustente em uma análise mais criteriosa do material, na medida em
que o próprio autor, em ambos os textos, se permitiu transitar entre a crônica e a
história, entre a apropriação retórica dos fatos, a racionalização processual da História e
a metodologia científica do trabalho com as fontes. Ainda no primeiro artigo dos
―Fastos‖, Prado, em uma breve citação, parece contradizer a classificação genérica que
ele mesmo apresentou no início do texto. Ao examinar um documento telegrafado pelo
governo brasileiro à imprensa europeia, Prado demonstra, novamente, como o
estabelecimento de rótulos mais rigorosos são inadequados para a interpretação da sua
performance discursiva. Ali, nas páginas da revista dirigida pelo seu grande amigo
português, o objetivo do nosso autor era bem claro: comprometer a credibilidade da
jovem República brasileira na opinião pública internacional e, por isso, ele combinou os
repertórios de forma frouxa, o que não deve ser visto como uma falha, mas sim como
um elemento constitutivo do tipo de narrativa que ele estava interessado em articular. O
telegrama dizia o seguinte: ―A tropa em estado de revolta. Reina tranquilidade. – O
imperador em Petrópolis. Completa paz. – Foi preso o ministério. População calma. –
Foi proclamada a República. Tudo inalterado. – O imperador preso no seu palácio.
Ordem perfeita‖727.

Ao comentar o telegrama, Prado escreveu: ―eis a concisa maneira de se fazer e


728
de se telegrafar a história neste fim de século‖ . A menção é rápida e de importância
secundária na economia do texto, já que o autor estava interessado em demonstrar como
a ditadura militar republicana estava violando os preceitos democráticos mais
fundamentais. No entanto, não podemos esquecer que essa acusação passou, também,
pela crítica que o autor fez aos porta-vozes oficiais das novas instituições, em especial a
Rui Barbosa, que como eu demonstrei no sétimo capítulo, foi, segundo Eduardo Prado,
o bacharel responsável pelo esforço de legitimação retórica das novas instituições. Para
Prado, esses porta-vozes estavam falseando as informações, com o objetivo de aparentar
estabilidade institucional e não comprometer o crédito do Brasil nas principais praças
econômicas europeias. O autor sabia muito bem que para ter os efeitos esperados, a
acusação precisava ter solidez documental, daí o recurso à citação. Ao citar

727
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 2-3.
728
Idem. p. 3.

337
textualmente o telegrama, portanto, o nosso autor mostrou certa inclinação ao exercício
epistemológico que é fundamental para a crítica historiográfica moderna, segundo a
qual a narrativa deveria ser duplicada, apresentando, nas palavras de Anthony Grafton,
―tanto os resultados de uma investigação, quanto o caminho percorrido na operação de
pesquisa, mediante a indicação de suas fontes bibliográficas e documentais‖ 729.

Por outro lado, Prado não informou ao seu leitor a fonte da citação, de onde ele
havia extraìdo o telegrama que julgava ser demasiadamente ―conciso‖, ou seja,
insuficiente para representar a realidade da política brasileira naquele final de 1889. O
mesmo Anthony Grafton sugere que a ciência histórica moderna é fundamentada, entre
outras coisas, no recurso à referenciação de fontes sob a forma das notas de rodapé, que
identificam ―tanto a prova primária que garante a solidez da novidade histórica quanto
as obras secundárias que não minam a forma e a tese de sua novidade‖730. Portanto, ao
citar o documento, o telegrama emitido pelas autoridades republicanas, Prado agiu
como um intérprete moderno que entende ser a citação uma premissa para a construção
da sua argumentação. Porém, ao não se preocupar em mostrar a fonte do material
citado, ele não cumpriu parte do procedimento que é fundacional para o conhecimento
histórico moderno. Temos, aqui, um importante elemento relativo à forma do texto - a
citação não referenciada - que nos permite, acredito, compreender melhor como Prado
transitou pelos repertórios historiográficos disponíveis no pensamento ocidental em fins
do século XIX. Essa pouca preocupação com a exata citação das fontes não se faz tão
presente nos escritos nos quais o nosso autor assumiu explicitamente a identidade de
historiador. Até mesmo nos ―Fastos‖, que foi o texto mais engajado de Eduardo Prado,
houve momentos em que ele foi mais rigoroso no uso das citações. Por exemplo, ao
abordar as práticas da ditadura militar, ele se mostrou bastante cuidadoso na exata
citação das fontes de suas informações. Para o autor, a República significava ―para o
povo a escola do servilismo e do rebaixamento. Para o governo, é a irresistível tentação
do capricho e da vaidade – quando não seja a tentação do crime. Daí vem os
fuzilamentos do Maranhão, os tormentos infligidos aos prisioneiros‖731.

Escrevendo para os leitores europeus, Prado disse que o governo brasileiro


estava fuzilando e torturando os seus opositores. Uma acusação dessa gravidade

729
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Campinas: Papirus, 1998. p. 11.
730
Idem. p. 16.
731
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.43.

338
precisava ser sustentada com maior rigor e o nosso autor parecia saber disso, tanto que
ao final da citação, ele apresenta ao seu leitor uma nota de rodapé, que ocupou
praticamente a metade da página, onde são arrolados trechos de diversos jornais
brasileiros que comprovam as acusações, sendo que as citações foram devidamente
referenciadas, com o nome do jornal e a data da matéria, pois ―as páginas da imprensa
brasileira não deixam dúvidas de que a República é na verdade a tirania‖ 732. De maneira
muita próxima ao trabalho do historiador moderno, Eduardo Prado apresentou a sua
tese, sustentou-a, em nota de rodapé, com fontes devidamente referenciadas, e retornou
ao argumento central, deixando claro que a ―verdade‖ poderia ser comprovada por
qualquer um que estivesse disposto a cotejar o texto com os materiais citados. Acredito,
então, que é possível identificar nas crônicas de Eduardo Prado alguns lampejos de
modernidade historiográfica, que são especialmente perceptíveis nos momentos em que
o autor se preocupa em fundamentar as suas afirmações em documentos, que são
cuidadosamente referenciados.

Entretanto, é necessário ter cautela para não valorizarmos, demasiadamente, a


importância do recurso da citação em nota de rodapé como, por si só, um indício da
modernidade historiográfica científica. A nota de rodapé não deve ser vista como um
divisor de águas que, na forma da narrativa historiográfica, é capaz de delimitar
rigidamente as fronteiras entre as práticas historiográficas antiga e moderna. Pensar
assim significaria contradizer o argumento que venho desenvolvendo desde o início
deste trabalho, que sugere a existência de fronteiras mais tênues, mais porosas, entre o
antigo e o moderno, o que permite a um autor, tal como Prado, mobilizar repertórios
distintos, adaptando a sua intervenção de acordo com as necessidades da conjuntura
discursiva. O próprio historiador norte-americano Anthony Grafton, que é autor de um
estudo dedicado às notas de rodapé, afirma que, apesar de o procedimento ter sido
consagrado como fundacional para o método histórico no século XIX, por autores como
Leopoldo Ranke, por exemplo, as suas origens são antigas. Nas palavras do autor, ―a
trilha desde Ranke leva ainda mais longe no passado: até os imponentes palácios
urbanos de grandes magistrados e colecionadores da renascença, e talvez igualmente até
a própria antiguidade. Embora caracteristicamente moderna na sua forma final, a nota
733
de rodapé tem alguns protótipos supreendentemente antigos‖ . Grafton está, portanto,

732
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.3.
733
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Campinas: Papirus, 1998. p. 108.

339
suavizando a noção consagrada na história da historiografia de que a escola metódica,
com Ranke, principalmente, teria operado uma verdadeira revolução metodológica ao
definir a citação e a crítica das fontes como o alicerce do conhecimento histórico.
Segundo Grafton, o próprio Ranke reconheceu a sua dìvida com os ―historiadores
tradicionais e com a erudição antiquária‖.

A tradição histórica evoluiu em linhas consideravelmente mais tortuosas e


complexas que sugerem essas formulas simplistas. A própria Escola Histórica
não constituiu um bloco único em relação à tradição histórica. Ao contrário e
seus seguidores, Ranke não afirmou, nem mesmo no espírito radicalmente crítico
que acompanhou sua estreia, que todos os historiadores pré-modernos haviam
sido não-críticos734.

A ideia das ―linhas tortuosas‖ me parece ser bastante adequada para o exame dos
escritos de Eduardo Prado. Como eu disse há pouco, o nosso autor iniciou o primeiro
artigo dos ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖ definindo-se como um cronista de
quem o leitor deveria esperar, tão somente, a narrativa dos acontecimentos, sem uma
investigação das causas. No entanto, na sequência do texto, ele parece não se contentar
com as limitações que ele mesmo havia imposto às suas crônicas. Ao longo dos cinco
artigos dos ―Fastos‘, Eduardo Prado mobilizou citações de documentos, que nem
sempre foram devidamente referenciados, e desenvolveu uma interpretação a respeito
da proclamação da República no Brasil, uma análise que, como já vimos no sétimo
capítulo, apresentou o nascimento do novo regime como o resultado do contato
pernicioso entre o bacharelismo e o militarismo. Ainda sobre os telegramas enviados do
Brasil, o autor escreve

chega depois a notícia da nova bandeira, seguida dos novos selos do correio; e,
por último, o ministro da fazenda, Rui Barbosa, um antigo inimigo pessoal de
Pio IX e Leão XIII, adversário feros do Syllabus, anuncia piedosamente à Europa
que o arcebispo primaz da Bahia deu a sua benção ao novo governo. Eis aí uma
história telegráfica da revolução brasileira735.

Novamente, Prado aponta a insuficiência da ―história telegráfica‖, sugerindo


que a narrativa desenvolvida pelo establishment republicano apenas informava os
acontecimentos recentes, sem mostrar claramente a interpretação a respeito desses
acontecimentos e o seu real sentido para a política brasileira da época. Quem o faria, ao
menos era essa a expectativa, seria o próprio Eduardo Prado, ainda que ele, ao se definir
como um ―cronista‖, tenha negado ter essa pretensão. Os artigos dos ―Fastos‖ nos
revelam, portanto, um autor que se assumiu como cronista, mas atuou, também, como

734
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Campinas: Papirus, 1998. p. 110.
735
Idem. p. 04.

340
polemista política e historiador, pois as fronteiras que delimitam os limites entre esses
exercícios discursivos não estavam claramente dadas. A situação é um pouco diferente
no livro ―A Ilusão Americana‖, que, a julgar pela correspondência trocada entre
Eduardo Prado e Eça de Queirós, que eu examinei no sexto capítulo, ocupava as
atenções Prado estava desde 1890, quando ele já coletava documentos para um livro
sobre a história das relações internacionais entre os países americanos ao longo do
século XIX. Realmente, quando comparado com os artigos dos ―Fastos‖, o livro ―A
Ilusão Americana‖ demonstra um trabalho de pesquisa, e citação, mais apurado, o que
não significa que o texto seja menos engajado, como o próprio Eduardo Prado deixou
claro no prefácio à segunda edição do livro, escrito já no exílio, em Paris.

Este trabalho, já editado no Brasil e agora reimpresso no estrangeiro, mereceria


vir de novo à luz, ainda na falta do próprio interesse. Este despretensioso escrito
foi confiscado e proibido pelo governo republicano do Brasil. Possuir este livro
foi delito, lê-lo, conspiração, crime, havê-lo escrito736.

Sendo assim, o livro mais conhecido de Eduardo Prado, justamente aquele que
colocou a ditatura militar republicano no seu encalço, é atravessado pela combinação
entre uma operação historiográfica sofisticada com uma clara militância politica
monarquista, mostrando que a dicotomia Eduardo Prado ativista político X Eduardo
Prado historiador não faz muito sentido. No ―A Ilusão Americana‖, Prado lançou mão
de um exercìcio discursivo que pouco foi desenvolvido nos ―Fastos‖: a revisão
bibliográfica, outro procedimento considerado fundamental na moderna operação
historiográfica. Ao comentar a proclamação da Doutrina Monore, o autor citou o texto
original que o Presidente James Monroe leu no Congresso Estadunidense em 1823 e
examinou a interpretação que George Samper, escritor colombiano, fez do assunto: ―[O
sr Samper] interpretou erroneamente as intenções dos diplomatas dos EUA com a
promulgação da Doutrina Monroe; deixando-se levar pelo espírito emancipacionista
daqueles tempos, o autor colombiano não teve o distanciamento necessário para fazer
uma correta análise crìtica das fontes‖737.

Logo após a crítica ao escritor colombiano, Prado examina as atas do Congresso


Estadunidense, citando, e referenciando, alguns discursos do diplomata William Tudor,
que, segundo o nosso autor, foi um ―general sem escrúpulos‖ e o ―patriarca da
corrupção na sua pátria [que] em suas mensagens ao Congresso exprime-se com

736
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1990. p. 15.
737
Idem. p. 25.

341
738
grosseira arrogância em relação ao Brasil e aos outros paìses da América do Sul‖ .
Para fundamentar a sua interpretação, Prado cita um discurso que Tudor haveria
proferido no Congresso dos EUA em outubro de 1830. Cito, ips litteris, a forma dessa
citação: ―É preciso, diz o secretário Tudor, não diminuir as nossas forças, que são
indispensáveis para a defesa dos nossos interesses perante aqueles governos instáveis e
incapazes‖. A citação vem acompanhada de uma nota de rodapé, onde Prado informa o
seu leitor a fonte na qual coletou o trecho: ―U.S. Senate Documents: Congress 21 st.
Ses. 2, 1830 e 31, vol. I, pág. 38. Doc I‖739. Esse padrão de citação acompanha todo o
livro, sendo reiterado em cada uma das notas de rodapé destinadas à localização das
fontes. Como podemos perceber, o texto de Prado, tal como os nossos atuais trabalhos
historiográficos, regulados por um campo disciplinar que vigia o cumprimento de
alguns procedimentos considerados indispensáveis para que o estatuto de ―escrita
historiográfica‖ seja autorizado, é polifônico, pois as vozes do autor, das fontes
primárias e da ―bibliografia secundária‖ ocupam o mesmo espaço narrativo, sendo todas
claramente delimitadas pelos adequados signos de pontuação.

Esses aspectos formais sugerem algumas pistas que podem ser encontradas,
também, no conteúdo da argumentação, apontando, dessa forma, para o caráter moderno
da historiografia do nosso autor. Primeiro, a definição da ―análise crìtica das fontes‖
como o procedimento fundacional do conhecimento histórico, algo que somente poderia
ser feito por um estudioso munido dos procedimentos metodológicos adequados e
devidamente afastado da cena original dos acontecimentos examinados. Segundo, Prado
destaca a transitoriedade do conhecimento histórico, pois ao sobrepor a sua própria
interpretação ao estudo de George Samper, ele sinaliza a natureza hermenêutica do
conhecimento histórico, já que, dependendo da proximidade do intérprete com os
acontecimentos estudados, a análise pode ser mais ou menos confiável. Os estudos
desenvolvidos por Hans Ulrich Gumbrecht a respeito da sensibilidade moderna nos
ajudam a melhor compreender o teor dessa ―modernidade historiográfica‖ que estou
atribuindo aos escritos de Eduardo Prado. Como já comentei no sétimo capítulo, ao
formular a noção de ―Cascatas de Modernidade‖, Gumbrecht torna mais complexa a
experiência histórica moderna, principalmente naquilo que se refere às questões
epistemológicas, que é o que mais me interessa aqui, nesse momento da minha reflexão.

738
Idem. p. 34.
739
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1990. p.34.

342
Para o autor, a primeira grande transformação epistemológica trazida pela modernidade
teve início no momento da descoberta da América, quando o homem, cada vez mais,
passou a ocupar ―o papel do de sujeito de produção do saber‖, o que foi reforçado pela
teologia protestante, que mudou o status dos sacramentos para os de ―meros atos de
comemoração‖. Essas transformações epistemológicas alteraram a autoimagem do
homem produzida durante a Idade Média, baseada na percepção de que a humanidade
era ―parte da criação divina, cuja verdade ou estava além da compreensão humano ou,
no melhor dos casos, pela revelação de Deus‖740.

Fica claro, portanto, que, escrevendo já no século XIX, Eduardo Prado se


considerava um sujeito do conhecimento, um ―observador de primeira ordem‖, para
utilizar a terminologia de Gumbrecht. Porém, a modernidade da escrita historiográfica
do nosso autor não se esgota nessa observação de primeira ordem, o que nos permite
situar a sua produção em uma segunda transformação na episteme moderna. Para
Gumbrecht, o perìodo compreendido entre 1780 e 1830, a ―segunda cascata de
modernidade‖, estabeleceu uma ―modernidade epistemológica‖, que ―gerou um papel
de observador que é incapaz de deixar de se observar ao mesmo tempo em que observa
o mundo‖741. A própria interpretação histórica, nesse sentido, é pensada à luz da
transitoriedade do ―cronotopo do tempo histórico‖, o que faz com que seja inaugurada a
possibilidade de o conhecimento histórico ser constituído a partir da tomada de
consciência da sua própria historicidade. Ao se debruçar, ao mesmo tempo, sobre as
fontes primárias – o texto original da Doutrina Monroe e o discurso de William Tudor –
e sobre uma fonte secundária – os estudos de George Samper -, Prado estava
estabelecendo uma distância entre o objeto examinado e o trabalho hermenêutico do
intérprete, que é temporalizado, na medida em que é inserido no calor dos
acontecimentos, o que explica, em parte, a possibilidade do equívoco interpretativo.
Esse equívoco seria superado pelo próprio Eduardo Prado, que, em perspectiva
histórica, ou seja, em uma posição que lhe permitia a visão completa das transformações
no cenário americano ao longo do século XIX, se considerava habilitado a oferecer uma
leitura mais criteriosa, e verdadeira, dos acontecimentos.

De alguma forma, o nosso autor atenuou a culpa do escritor colombiano, pois


naquela altura, imerso no ―espìrito emancipacionista daqueles tempos‖, Samper se

740
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentindos. São Paulo: Ed 34, 2010.p.11.
741
Idem. p. 12.

343
deixou convencer pelas promessas libertárias da diplomacia estadunidense, promessas
que somente puderam ser percebidas como falaciosas na transitoriedade das
experiências, que, segundo Prado, revelaram que, para os países americanos, os EUA
agiram mais como algozes do que como protetores. Nesse sentido, o próprio exercício
da interpretação é temporalizado, o que permite ao nosso autor, em alguns momentos do
seu livro, combinar a sua ―história da América‖ com uma ―história da historiografia da
América‖. Esse exercìcio de historicização da própria interpretação historiográfica foi
ainda mais mobilizado nos textos nos quais Prado assumiu claramente a identidade de
historiador, material que eu examino na terceira seção deste capítulo.

Portanto, diferente do que fez nos ―Fastos‖, em ―Ilusão Americana‖, Eduardo


Prado se coloca mais como um historiador do que como um cronista, ainda que o
objetivo último do texto seja estabelecer uma análise cronológica que, partindo da
proclamação da Doutrina Monroe, chegue até o presente do autor, sendo a crítica ao
argumento da fraternidade americana e à diplomacia republicana, as ideias mestras que
conduzem a narrativa. Historiar as relações internacionais entre as nações americanas
não foi, na pena de Eduardo Prado, um exercício tão somente científico e desenvolvido
por um historiador interessado unicamente no conhecimento do passado, mas sim um
esforço político motivado pela sua oposição à República brasileira. Essa combinação
entre o método científico e o ativismo político pode ser percebida tanto na forma como
no conteúdo do texto. Por exemplo, na edição original do livro, Prado redigiu, ao todo,
setenta e sete notas de rodapé, que foram usadas tanto para a citação, de fontes e de
bibliografia secundária, como para esclarecimentos complementares, o que não o
impediu de atacar abertamente os primeiros governos da República brasileira, fazendo-o
através de uma apropriação do conhecimento histórico que é constitutiva da
historiografia antiga. Ao comentar, por exemplo, a situação política do México, o nosso
autor disse:

Para quem conhece os fatos da história do republicanismo latino-americano não


é coisa de espantar esta manifestação feita, pela quinta vez, pelo povo mexicano
ao seu consolidador, dom aquela bem conhecida liberdade eleitoral característica
da República. Não foi Mário sete vezes consul? A forma republicana na América
Ibérica, com demonstra a experiência a quase um século é inevitavelmente
militarista e pessoal742.

Nessas poucas palavras, Prado utilizou o caso da experiência republicana


mexicana como pretexto para sugerir a existência de uma marca constante, desde a
742
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1990. p.35.

344
antiguidade, na história da República no mundo ocidental: o militarismo e o
personalismo político. A comparação entre experiências afastadas no tempo não para
por aí. Na sequência do texto, Prado estabelece uma regra de validade atemporal para a
compreensão do funcionamento das repúblicas.

Desde Sila, começando por falar em nome da liberdade, ela [a ditadura


republicana] derruba o governo existente e substitui-se por ele. Feito isso, a
ditadura muda de linguagem, de rumo e de modo de ação. É preciso, diz ela,
consolidar a nova ordem de coisas, é indispensável esmagar toda a ideia de
reação, toda a possível tentativa de uma contra-revolução. Eis aí achada uma
pronta de fácil razão de Estado para justificar e sem razão de todos os fatos de
força, de todas as manifestações da violência 743.

Qual é o repertório que autoriza Eduardo Prado a estabelecer uma relação de


equivalência entre experiências políticas republicanas tão afastadas no tempo?
Certamente, não é o repertório metodológico do historicismo, que é um dos elementos
constitutivos do pensamento conservador moderno e, segundo o qual, nas palavras de
Friedrich Meinecke, ―toda a consideração generalizadora das forças humanas históricas
744
deve ser substituìda por uma consideração individualizadora da experiência‖ .
Tampouco, o nosso autor parece estar operando com as modernas filosofias da história,
nas quais ―a história foi temporalizada e processualizada como unicidade
permanente‖745. Nem as modernas filosofias da história e nem a moderna crítica
historicista a essas mesmas filosofias da história. O repertório que permite a Eduardo
Prado recorrer à história para dizer ao seu leitor que a República, desde sempre,
representa uma ameaça para as liberdades políticas mais fundamentais, pode ser
encontrado em certa concepção antiga de história, na qual o conhecimento histórico tem
lugar nas artes retóricas. Essa concepção antiga de história ―orientou, ao longo dos
séculos, a maneira como os historiadores compreenderam o seu objetivo, ou até mesmo
a sua produção‖746.

Ainda que essa percepção antiga do conhecimento histórico, que, segundo


Koselleck era sintetizada pelo topos ciceroniano da historia magistra vitae, tenha sido
esvaziada pelas experiências revolucionárias modernas e pela fundação da ciência
histórica, os seus valores não foram completamente extintos da prática historiográfica

743
Idem. p. 36.
744
MEINECKE, Friedrich. El Historicismo y su Génesis. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. p.
141.
745
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p.162.
746
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2006. p. 42.

345
do século XIX. Percebo essa sobrevivência nos textos de Prado, quando o vejo, por
exemplo, dizer que ―os fatos da história do republicanismo latino-americano nada mais
são do que a repetição de uma natureza imutável do regime político republicano na
cultura ocidental‖. O autor está, portanto, recorrendo à história para sustentar o seu
posicionamento político, segundo o qual, no Brasil, a proclamação da República
representava um risco civilizacional. Eduardo Prado parecia entender muito bem que
esse posicionamento seria tão mais crível o quanto mais se sustentasse na
exemplaridade dos fatos passados, que guardariam certo potencial pedagógico, pois,
aqui, o nosso autor está pensando a história como uma ―coleção de exemplos‖ que o
habilitariam a convencer os seus leitores da necessidade de pôr fim à aventura política
dos militares brasileiros, restaurando a Monarquia. A noção de ―convencimento‖ é bem
adequada para o exame dos textos mais engajados de Eduardo Prado, na medida em que
o autor utilizou a história, também, ―no contexto da oratória‖, segundo o qual o ―orador
[historiador] é capaz de emprestar um sentido de imortalidade à história, como instrução
para a vida, de modo a tornar perene o seu valioso conteúdo de experiência‖747.

Portanto, ao investigar, no último capítulo e nesta seção, a dimensão


historiográfica dos dois textos politicamente mais engajados de Eduardo Prado, eu
percebo a combinação de diferentes repertórios: a concepção moderna e filosófica,
segundo a qual a história é uma instância dotada de racionalidade própria, os
procedimentos metodológicos de citação e crítica das fontes históricas, que foram
delimitados pela escola histórica do século XIX, e o topos retórico, dentro do qual a
história funciona como um inventário de experiências potencialmente semelhantes entre
si que, dispostas cronologicamente, servem como orientação pedagógica para os
homens do presente. Deslocando o foco da análise para a correspondência que Prado
trocou com aqueles que foram os seus principais interlocutores no estudo da história,
acredito ser possível identificar outro equilíbrio entre esses repertórios.

9.2- A interlocução historiográfica nas correspondências de Eduardo Prado: o


delineamento de uma metodologia científica e de um interesse temático
A produção historiográfica de Eduardo Prado não passou despercebida pelos
seus biógrafos, que afirmam ter o autor se dedicado ao estudo da história depois de ver
frustrada a sua jornada pela restauração da Monarquia. Segundo Sebastião Pagano, após

747
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2006. p. 43.

346
seis anos de intensa movimentação política e de direto envolvimento com as tentativas
de enfraquecimento dos governos republicanos, Eduardo Prado, percebendo, finalmente,
que a República era fato consumado ―mergulhou nas meditações sobre as altas questões
748
de espírito, embebendo sua alma na contemplação sublime das verdades terrenas‖ .
Nesse momento de reclusão, de afastamento da vida política, o autor teria se entregue à
vivência religiosa, pois ―assistia à santa missa de joelhos, do começo ao fim‖ e se
dedicado ao estudo da história da ordem dos Jesuìtas, ―sendo a sua devoção ao Padre
José de Anchieta especialmente sincera‖. Cândido da Mota Filho diz algo semelhante:
―depois de intensa movimentação polìtica, Eduardo entrou em um momento de maior
tranquilidade, se dedicando ao estudo do papel dos jesuìtas na formação brasileira‖749.

Eu discordo dessa associação que os dois biógrafos fazem entre afastamento da


vida política e produção historiográfica porque, por um lado, a cronologia da
bibliografia eduadiana não confirma o argumento, e, por outro lado, os textos do autor
sugerem que o ativismo político não é incompatível com a narrativa historiográfica,
como eu mostrei na última seção. O primeiro texto mais marcadamente historiográfico
de Eduardo Prado foi publicado em 1889, alguns meses antes da proclamação da
República, como parte do volume ―Le Brésil‖, desenvolvido em parceria com o Barão
de Rio Branco, para a Exposição universal de Paris. Daí para frente, a perspectiva
historiográfica esteve presente nos escritos de Prado, ainda que combinada com a
crônica política. No entanto, os dois biógrafos apresentam uma pista que é fundamental
para a reflexão que desenvolvo nesta seção: Sebastião Pagano diz que ―as cartas que
Prado escreveu para os seus principais amigos mostram o quanto ele estava envolvido
com a história do catolicismo português na América750‖, enquanto para Cândido da
Mota Filho ―as cartas trocadas entre Eduardo Prado e os seus mais ilustres amigos
751
atestam como o estudo da história lhe fascinava‖ . Foram, exatamente, os dois
biógrafos que me informaram da existência, no acervo do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, que atualmente está sob a guarda do Arquivo Público de São
Paulo, de duas coleções, ambas contendo parte da correspondência de Eduardo Prado:
as coleções Jorge Pacheco Chaves e Spencer Vampré, que junto com as publicações das
correspondências de outros autores, como Capistrano de Abreu, Joaquim Nabuco e o

748
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed Cetro, 1960. p. 170.
749
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 101.
750
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed Cetro, 1960. p. 171.
751
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 83.

347
Barão de Rio Branco, constituem o corpus analisado nesta seção, que tem o objetivo de
examinar como Eduardo Prado tratou, nos bastidores, a preparação dos seus trabalhos
historiográficos. Acredito que nessas cartas, o autor nos oferece alguns indícios a
respeito da sua percepção sobre o ofício do historiador e a metodologia do trabalho
histórico, o que sugere a mobilização do repertório do historicismo germânico.

Em carta enviada ao Barão de Rio Branco, em março de 1897, Capistrano de


Abreu escreveu que ―para conhecer o Brasil ninguém melhor do que Eduardo que, além
de seu gosto pelo estudo da história, tem a inteligência para bem empregar seus lazeres
de homem rico‖752. Poucos meses depois, o historiador cearense participaria das
―Conferências Anchietanas‖, que, organizadas por Eduardo Prado em agosto de 1897,
reuniram importantes nomes da intelectualidade da época, tais como Basílio Machado,
Joaquim Nabuco, Capistrano de Abreu e o próprio Eduardo Prado. Na próxima seção,
eu examino com mais cuidado o lugar que o evento ocupou na cena intelectual brasileira
do final do século XIX. Por ora, eu tenho o interesse de compreender melhor o teor das
palavras elogiosas que Capistrano de Abreu dirigiu a Eduardo Prado. Como vimos em
uma das epìgrafes deste capìtulo, o autor de ―Capìtulos de História Colonial‖ definiu,
em 1898, Eduardo Prado como um ―especialista em História‖. Pouco tempo antes, ele
disse ser o nosso autor um homem dado aos ―estudos históricos‖. O que significava ser
―especialista em história‖ para Capistrano de Abreu? O que ele entendia por ―estudos
históricos‖?
Ao longo da história da historiografia brasileira, os escritos de Capistrano de
Abreu já foram objetos de diversos estudos, que, desde meados do século XX, o
consideram o precursor da moderna historiografia nacional. De acordo com as
considerações de Rebeca Contijo, foi José Honório Rodrigues quem ―estabeleceu as
linhas mestras para a leitura da produção de Capistrano, ao definir suas contribuições
para a historiografia brasileira e, ao mesmo tempo, ao situá-lo em relação a uma
753
tradição de estudos históricos‖ . O lugar que José Honório Rodrigues atribuiu a
Capistrano de Abreu na história da historiografia brasileira nos diz algo sobre a
concepção de ―metodologia do trabalho histórico‖ que o historiador cearense

752
FILHO, Luís Viana. A vida do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1952, p. 55.
753
CONTIJO, Rebeca. José Honório Rodrigues e a invenção de uma moderna tradição. In: NEVES,
Lúcia Maria Bastos Pereira das; GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoa, GONÇALVES, Márcia de
Almeida, CONTIJO, Rebeca. Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp.
277-290.

348
desenvolveu no final do século XIX e que o seu intérprete carioca considerou ser o
toque de fundação da moderna ciência histórica no Brasil. Ao analisar o esforço de José
Honório Rodrigues em delinear uma história da historiografia nacional, Francisco
Iglesias afirmou que o autor tinha o objetivo de desenvolver ―uma obra tríptica
composta por Teoria, pesquisa e historiografia. Em outras palavras, o plano envolvia a
publicação de livros sobre esses três temas, com uma finalidade pedagógica: formar
historiadores nacionais, ensinando-os a pesquisa e a escrever a história‖754. Portanto, de
acordo com a interpretação de Iglesias, José Honório Rodrigues via certo potencial
pedagógico na obra de Capistrano de Abreu, que deveria ser uma espécie de modelo a
ser seguido pelos futuros historiadores brasileiros. Há, aqui, uma pista que eu pretendo
seguir. Quais seriam os aspectos modelares da obra de Capistrano de Abreu que foram
tão valorizados por José Honório Rodrigues?

Os estudos de Maria da Glória Oliveira e Rebeca Contijo mostram como em sua


correspondência, Capistrano de Abreu ―deixou muitos indìcios que ajudam a
compreender um pouco das práticas historiográficas de fins do século XIX e início do
XX‖755. Para Maria da Glória Oliveira, o fato de Capistrano de Abreu não ter deixado a
seus sucessores algo que se aproximasse de uma lição de teoria e método, faz da sua
correspondência ―uma fonte de consulta obrigatória, não apenas pelo valor biográfico
do material, mas, sobretudo, pelas reflexões que nela se encontram sobre sua pesquisa‖
756
. Acredito que examinar com mais cuidado as contribuições dessas autoras é
importante para compreender o conteúdo dos elogios do historiador cearense aos
estudos historiográficos de Eduardo Prado, o que nos ajuda a entender como o nosso
autor se apropriou dos procedimentos metodológicos que ao longo do século XIX foram
definidos como constitutivos do ofício do historiador.

Em carta enviada ao Barão de Rio Branco, Eduardo Prado diz que ―as consultas
a Capistrano vêm sendo de grande valia para os meus estudos sobre Vieira. Ele sabe
aquilo que mais ninguém sabe, conhece documentos sem os quais seria impossível

754
IGLESIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a Historiografia brasileira. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, v. 1, n.1, pp. 57-78, 1988. p. 63.
755
CONTIJO, Rebeca. Revista de História, São Paulo, v.24, N.2, P.159-185, 2005. p. 159.
756
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 28.

349
757
estudar a história dos jesuìtas‖ . Não há no documento menção à data de envio da
carta, mas acredito que tenha sido em algum momento próximo a agosto de 1897,
quando foram realizadas as ―Conferências Anchietanas‖. O mais importante é que as
cartas trocadas entre Capistrano de Abreu e Eduardo Prado sugerem a existência de uma
estima recíproca e de uma intensa interlocução entre os dois. Por mais de uma vez,
Prado reconheceu a sua dívida com o amigo cearense, que parece ter sido mais do que
um interlocutor, mas, também, uma espécie de conselheiro, pois, nas suas próprias
palavras, ―sua última carta [de Capistrano de Abreu] me animou ainda mais a procurar o
758
verdadeiro ponto de vista da história do Brasil: o sertão‖ . A correspondência de
Eduardo Prado sugere, portanto, que as conversas com Capistrano foram importantes
para os aspectos metodológico e temático dos seus trabalhos historiográficos. Começo
pelo aspecto metodológico.
O que mais impressionava Eduardo Prado era o vasto conhecimento que
Capistrano de Abreu tinha dos documentos relativos ao período colonial. Nas palavras
do nosso autor, o historiador cearense ―sabia aquilo que ninguém mais sabia‖, palavras
que remetem, creio eu, não apenas ao conhecimento da matéria histórica, mas também
ao amplo domínio da localização e da crítica das fontes. Maria da Glória Oliveira
destaca a centralidade da crítica documental nos trabalhos de Capistrano de Abreu.
No caso de Capistrano, a opção pela explicitação do tratamento crítico das fontes
também está relacionada a outras características de seu texto que podem ser
identificadas como uma semântica prova. Nesse sentido, é significativa a forma
pela qual o historiador opera termos como ―interpretação‖ e ―testemunho‖,
―opinião‖ e ―fato‖ e ―documento‖, demarcando, entre uns e outros, uma
contraposição de domínios aparentemente inconciliáveis. Por outro lado,
expressões como ―parece que‖, ―provavelmente‖, ―pode-se até dizer‖ são mais
frequentemente usadas se comparadas com a única ocorrência da afirmação ―está
provado que‖, sugerindo que, na intenção de provar, através da crítica metódica
de testemunhos e documentos, o historiador cruza inevitável e continuamente as
fronteiras do possível, do provável, do verossímil, para chegar à enunciação de
―verdades‖ que se mantém sempre plausìveis759.

Francisco Falcon, outro importante intérprete da obra de Capistrano de Abreu,


diz algo semelhante: ―[Para Capistrano de Abreu], eram essenciais os documentos
enquanto fontes documentais. Buscar novos documentos, criticar e publicar com o rigor
da crítica histórica antigos e novos textos documentais constituíram suas maiores

757
Coleção ―Spencer Vampré‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Gaveta 03.
Doc. 36
758
ABREU, Capistrano. Correspondência (Vol.1). Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: MEC, 1977. p.205.
759
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 95.

350
760
tarefas‖ . Para Falcon, a importância que Capistrano de Abreu atribuiu às fontes
primárias é tão grande que sugere o trânsito do historiador pelas ―fronteiras do
antiquarismo‖. Como eu comentei na última seção, de acordo com os estudos de
Anthony Grafton, são algo tênues as fronteiras entre a tradição antiquária e a moderna
crítica historiográfica, o que demonstra que Capistrano de Abreu estava sendo coerente
com os procedimentos metodológicos que estavam sendo delineados na Europa, desde o
início do século XIX, como fundacionais da ciência histórica. É o próprio autor quem
nos diz, em carta enviada a Guilherme Studart, em 20 de abril de 1904.

Por que não das a procedência dos documentos que publicas? Félix Ferreira,
sujeito aliás pouco fidedigno, contou-me que indo um dia visitar Melo morais,
encontrou-o queimando papeis. Estou queimando estes documentos, explicou-lhe
o alagoano historiador (?), porque mais tarde quando quiserem estudar História
do Brasil hão de recorrer às minhas obras. Tu não és Melo Morais. Varnhagen,
pelo menos na Torre do Tombo, levou para casa alguns documentos e se
esqueceu de restitui-los: não podia depois indicar a procedência. Tu não és
Varnhagen. Por que motivo, portanto, te insurges contra uma obrigação a que se
sujeitam todos os historiadores, principalmente desde que, com os estudos
arquivais, com a criação da crítica histórica, com a crítica das fontes, criada por
Leopoldo von Ranke, na Alemanha, foi renovada a fisionomia da história 761.
(Grifos Meus)

Na escala de valores que parece ser fundamental para o método de trabalho de


Capistrano de Abreu, o adjetivo ―pouco fidedigno‖ é um termo que desqualifica. Para o
historiador cearense, a exata referência à localização das fontes é um procedimento
indispensável para a pesquisa e não fazê-lo significa não atingir a finalidade do
conhecimento histórico: a verdade dos acontecimentos estudados. Essa forma de tratar o
ofício do historiador sugere a comunhão de Capistrano de Abreu com os procedimentos
de crìtica documental consagrados pela chamada ―Escola Metódica Alemã‖ ao longo do
século XIX. Essa comunhão fica explicita no texto, na medida em que Capistrano de
Abreu cita o nome de Leopold Ranke, atribuindo a ele a posição de ―renovador da
fisionomia da história‖. Que renovação seria essa? Será que os princìpios
metodológicos da escola histórica podem ser identificados, também, na correspondência
de Eduardo Prado?

760
FALCON, Francisco José Calazans. Capistrano de Abreu e a historiografia cientificista: entre o
positivismo e o historicismo. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; GUIMARÃES, Lúcia Maria
Paschoa, GONÇALVES, Márcia de Almeida, CONTIJO, Rebeca. Estudos de historiografia brasileira.
Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp. 153-161. p. 157.
761
ABREU, Capistrano. Correspondência (Vol.1). Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: MEC, 1977. pp. 165-166.

351
Primeiro, é necessário esclarecer o que eu estou entendendo por ―escola
histórica‖. Estou usando o termo inspirado nos estudos do alemão Walter Schulz, para
quem a ―escola histórica‖ é ―uma das facetas do historicismo, que, a partir de Droysen,
estabeleceu uma metodologia científica independente das ciências naturais, então
762
hegemônicas‖ . As outras duas facetas do historicismo seriam, ainda, o afastamento
da metafísica filosófica, o que teria se tornado especialmente perceptível a partir de
Herder, e à ―remissão à interioridade‖, após Dilthey. O aspecto metodológico, nesse
momento, é o que mais me interessa, pois aqui reside, creio eu, um repertório que foi
fundamental para os estudos de alguns historiadores brasileiros finisseculares, como
Capistrano de Abreu e Eduardo Prado. Em carta endereçada a Joaquim Nabuco e
escrita, talvez, em algum momento de 1896, o Barão de Rio Branco dizia:

Eduardo é um companheiro indispensável. Cada vez mais, ele é escravo do


trabalho do historiador, sendo um poço de erudição a respeito das coisas da
nossa terra. Agora, por exemplo, além dos antigos trabalhos, pensa num ensaio
sobre os limites do Brasil com a Argentina, questão em que fora o Visconde, em
1856, o primeiro negociador brasileiro. Em pouto tempo, o bom Prado já
recolheu uma torre de documentos sobre o assunto, e não cansa de examiná-los
com critica e rigor763.

De acordo com o testemunho de um dos amigos mais próximos de Eduardo


Prado (amizade que foi confirmada por Luìs Viana, para quem ―o Prado e o Barão eram
inseparáveis. Dia e noite juntos. Nunca vi duas pessoas se entenderem melhor‖764), o
nosso autor trabalhava entre os documentos, operando com ―erudição, rigor e método‖.
Para o Barão, portanto, o que dava o estatuto de historiador a Eduardo Prado era o seu
empenho em coletar e examinar os documentos, pois, ―somente é possìvel escrever a
história através dos relatos das testemunhas oculares e das fontes mais genuínas e
diretas‖, nas palavras de Leopold Ranke765. O próprio Eduardo Prado, em carta enviada
ao Barão de Rio Branco, em março de 1893, diz algo bem parecido:

Sem os documentos que o Barão me enviou sobre a bandeira que os republicanos


querem dar à pátria, eu não conseguiria apontar todas as imprecisões científicas e
históricas do projeto. Ainda espero documentos sobre o comportamento de
Benjamin Constant na Guerra do Paraguai. 766. (Grifos Meus)

762
SCHULZ, Wlater. Le Nuove Vie Della Filosofia Contemporanea. Florença: Ed. Marietti, 1986. p. 472.
763
FILHO, Luís Viana (ORG). O arquivo do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1947, p.73.
764
FILHO, Luís Viana. A vida do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1952, p.36.
765
RANKE, Leopold von. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. L. von Ranke: História. São Paulo: Ática.
p. 81.
766
FILHO, Luís Viana (ORG). O arquivo do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1947. p.205.

352
Trata-se de uma carta de agradecimento, pois o Barão, dono de um ―monumental
acervo sobre a história do Brasil‖, como Eduardo Prado costumava dizer, era um dos
principais colaboradores dos estudos históricos do nosso autor. Por mais de uma vez,
Prado, em nota de rodapé, atribuiu à biblioteca de Paranhos Jr. a fonte dos documentos
examinados. O que mais chama a minha atenção na citação é a relação de
obrigatoriedade que Prado estabelece entre a documentação e a possibilidade da análise
histórica. O autor deixa claro que sem a contribuição do Barão, ele não seria capaz de
apontar os equívocos históricos que marcavam o projeto da bandeira republicana.
Eduardo Prado desejava, também, escrever um texto sobre a participação de Benjamin
Constant na Guerra do Paraguai, algo que ainda não era possível por conta da falta dos
documentos, que já haviam sido solicitados ao seu amigo. Também Capistrano de
Abreu destacou a importância que Eduardo Prado atribuía aos documentos históricos.
Em carta enviada ao mesmo Barão de Rio Branco, em 1897, o historiador cearense
reconheceu a contribuição de Eduardo Prado aos seus estudos etnográficos ao dizer que
―graças a Eduardo já possuo o gênesis e o evangelho de São Mateus, na língua escanoia,
falada na Guiana e, segundo me parece, quase idêntica ao crixaná‖767.

Em outra carta, dessa vez endereçada a Guilherme Studardt e escrita em 1904,


ou seja, três anos depois da morte de Eduardo Prado, Capistrano de Abreu rememora o
vínculo de colaboração intelectual que ele estabeleceu com o nosso autor.

Por intermédio de Eduardo Prado, fiquei sabendo que há em Évora, uma


tradução portuguesa sobre Vieira. Há dois exemplares da 1° edição de Antonil. A
segunda, feira aqui em 1837, não é comum, mas encontra-se uma vez por outra;
ainda há dois anos, comprei um exemplar para dar de presente a Eduardo Prado.
Creio que será fácil obter cópia do processo do Padre Manuel Morais. Está, com
outros processos da Inquisição, ou na Biblioteca Nacional ou na Torre do
Tombo. Nela foi extraída, não há muito tempo, cópia para Eduardo, que
acumulou muitos documentos sobre o padre, no seu projeto de escrever-lhe a
biografia. Vou procurar o processo na sua biblioteca 768.

Além das afinidades metodológicas, os trabalhos historiográficos de Eduardo


Prado e Capistrano de Abreu se aproximam também nos aspecto temático, na medida
em que ambos os autores se interessaram por uma ―história do sertão‖, principalmente
naquilo que se refere à contribuição dos índios, bandeirantes e jesuítas para a formação
da nacionalidade brasileira. Esse aspecto temático, eu examino mais adiante, ainda nesta
seção. Por ora, quero continuar explorando o uso que Eduardo Prado fez dos

767
Idem. p. 206.
768
Idem. p. 63.

353
procedimentos metodológicos que, de acordo com a escola histórica germânica, eram
fundacionais da ciência histórica. Como eu já comentei no sétimo capítulo, alguns
textos de Ranke são mencionados no catálogo da biblioteca de Eduardo Prado, o que
sugere que o autor conhecia os trabalhos do historiador alemão, ainda que ele jamais
tenha feito uma citação direta, nem mesmo na correspondência, ao menos com a qual eu
tive contato, diferente de Capistrano de Abreu. No entanto, em uma carta enviada a Rio
Branco, em 1897, Prado, ao fazer uma rápida menção ao seu amigo cearense, nos
oferece uma pista que indica a sua adesão ao procedimento metodológico característico
da ―escola histórica‖: ―[Capistrano de Abreu] é um armazém de sabedoria, com suas
portas abertas dia e noite para todo aquele que deseja ser iniciado nos procedimentos da
ciência histórica‖769.
Com essas palavras, Eduardo Prado sugere que Capistrano de Abreu fora o seu
próprio iniciador no estudo da história, o que faz algum sentido. Afinal, o historiador
cearense, sete anos mais velho que Eduardo Prado, já era um intelectual com relativo
destaque no Rio de Janeiro no final da década de 1880770, quando o nosso autor deu
início à sua produção historiográfica. A correspondência dos dois autores reforça a
possibilidade de Eduardo Prado ter sido sensibilizado pelo repertório historiográfico que
foi mobilizado por Capistrano. Nesse sentido, naquilo que se refere à metodologia do
trabalho histórico, creio ser possível apontar para a presença de valores constitutivos do
historicismo germânico na historiografia conservadora de Eduardo Prado. Essa presença
fica ainda mais clara se deslocarmos o foco do aspecto metodológico e o direcionarmos
para a abordagem. Esse é um dos exercícios analíticos que eu desenvolvo na próxima
seção.
Desde o seu primeiro texto historiográfico, no qual é possível identificar os
procedimentos do trabalho histórico, como a citação de documentos, a referenciação da
localização das fontes e a menção a estudos anteriores, Prado se mostrou interessado
pelo interior, pelo ―entranhamento da civilização nos rincões do Novo Mundo‖771, como

769
Coleção ―Spencer Vampré‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Gaveta 03.
Doc. 36.
770
Capistrano de Abreu se instalou na Corte do Rio de Janeiro em 1875. Três anos depois, ele ganhou
certa projeção ao escrever o necrológio de Varnhagen. A partir de então, a sua ascensão no incipiente
meio intelectual da época foi relativamente rápida. Em 1879, após concurso público, o historiador
cearense foi nomeado bibliotecário oficial da Biblioteca Nacional, cargo que foi fundamental para o seu
trabalho de coleta e organização dos documentos históricos. Em 1883, ele foi aprovado, também em
concurso público, para a cadeira de ―corografia e história‖ no Colégio D. Pedro II, com a tese que se
tornaria uma referência importante na historiografia brasileira, intitulada ―Descobrimento do Brasil e seu
desenvolvimento no século XVI‖.
771
FILHO, Luís Viana (ORG). O arquivo do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1947. p. 205.

354
ele disse em carta ao Barão de Rio Branco. Por isso, o nosso autor tratou de assuntos
como a arte indígena, o povoamento de colônia portuguesa, especialmente das regiões
próximas ao que viria a ser a cidade de São Paulo, e, principalmente, a atuação dos
padres jesuítas da catequese dos índios. Ao se debruçar sobre esses temas, Prado não
estava desbravando mares nunca antes navegados, mas dialogando com certa tradição
de estudos históricos que já vinha sendo delineada dentro do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro desde a primeira metade do século XIX. Também não podemos
esquecer os estudos etnológicos de Capistrano de Abreu, que, segundo Prado, fora a sua
principal referência para os estudos sobre o ―sertão‖. Acredito que antes de analisar os
textos propriamente historiográficos de Eduardo Prado é importante fazer algumas
considerações sobre a topografia de interesses do nosso autor. Em carta a Joaquim
Nabuco, escrita em 1895, Prado disse que ―o caboclo guarda o que há de melhor nas
raças branca e indìgena‖ sendo, portanto, ―um homem forte e o guardador dos traços
mais genuìnos da nossa nacionalidade. Para estudar o Brasil é mister estudar o sertão‖
772
.
O caboclo é um personagem fundamental na historiografia de Eduardo Prado,
que tratou, especialmente, dos contatos da cultura europeia com as culturas indígenas, o
que explica, em parte, o seu interesse pela Companhia de Jesus, ―que prestou um
indispensável serviço à civilização ao inocular nos indìgenas a luz da palavra de Cristo‖
773
. Ao abordar a relação entre europeus e nativos nessa perspectiva, Prado estabeleceu
um intenso diálogo com a tradição dos estudos etnográficos que há décadas vinham
sendo desenvolvidos pelos sócios do IHGB e por Capistrano de Abreu, que apesar de ter
sido nomeado sócio do instituto em 1887, jamais teve uma relação de completa adesão
com a agenda historiográfica da agremiação. Em um estudo dedicado à formação do
discurso etnográfico no Brasil ao longo do século XIX, Rodrigo Turin apresenta alguns
elementos que são fundamentais para a compreensão do pensamento historiográfico de
Eduardo Prado. Para Turin, a preocupação etnográfica já se fazia presente entre os
letrados do IHGB desde os primeiros anos de vida do instituto, quando, por exemplo,
Januário da Cunha Barbosa, Secretário Geral da agremiação, ―leu para os sócios
presentes seis questões que deveriam orientar as discussões da casa. Dessas seis
questões, todas devidamente aprovadas, quatro diziam respeito às populações indígenas

772
NABUCO, Carolina (org). Obras Completas. Instituto Progresso Editorial: São Paulo: 1935. p. 373.
773
Idem.

355
e as duas outras versavam sobre o processo de colonização portuguesa‖774. Também o
botânico alemão Alexander Von Martius, vencedor do concurso, realizado em 1842, de
projetos que deveriam conduzir a escrita da ―história geral da civilização brasileira‖,
tratou os índios como um grupo humano que deveria ser inserido no tempo histórico, o
que os tornaria inteligìvel pela ―razão iluminista‖. ―Para Martius, em suma, o
historiador brasileiro não poderia deixar de ser também um etnógrafo‖ 775.
A partir de então, segundo Turin, o interesse pelos índios esteve sempre presente
na agenda historiográfica do IHGB, o que não significa que inexistiram as discordâncias
entre os sócios da agremiação sobre o tema. Para o autor, esses debates a respeito do
lugar do ìndio na formação da nacionalidade brasileira estabeleceram ―um conjunto de
temas e de regras como componentes discursivos que permitem identificar a construção
776
de uma determinada retórica da nacionalidade‖ . Para tal era indispensável o esforço
de coleta e armazenamento de fontes, que até então estavam dispersas em arquivos
localizados nas outras províncias do Império e nos arquivos europeus. Como
demonstram os estudos de Manoel Salgado e Temístocles Cezar, o primeiro objetivo
proposto pelos fundadores do IHGB era, justamente, a coleta e o arquivamento de
fontes que posteriormente seriam mobilizadas na produção da ―monumental história
geral do Brasil‖, nas palavras de Januário da Cunha Barbosa. Nesse esforço de
constituição de um arquivo para a história pátria, os textos produzidos pelos padres
jesuítas tiveram posição privilegiada. Segundo Rodrigo Turin,

Fazendo uso desses elementos retóricos, os letrados do Segundo Reinado


estabeleciam uma relação com o passado pré-Independência, cujos traços
esforçavam-se em resgatar, arquivar e publicar em sua revista. Com essa
operação, que visava, em um primeiro momento, tornar possível a escrita de uma
futura e necessária história do Brasil, esses letrados também estavam
estabelecendo uma tradição. Materializada através de textos como os de
Anchieta, Nóbrega, Vieira, Soares de Souza, Gandavo, entre tantos outros, esta
tradição permitia tornar inteligível um passado que deveria ser entendido agora
enquanto ―nacional‖777.

No entanto, não foi apenas na condição de arquivo que os escritos dos padres
Jesuìtas foram valorizados pelos membros do IHGB. Para Turin, ―a restauração e o uso

774
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2014. p.32.
775
Idem. p.19.
776
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2014. p.21.
777
Idem. p. 21.

356
de textos dos missionários jesuítas é uma das características mais marcantes da reflexão
etnográfica desenvolvida em meados do século XIX‖ 778. Nesses textos, ainda de acordo
com as considerações de Turin, ―os letrados do Segundo Reinado encontraram os
referentes mais apropriados tanto para a construção de um quadro interpretativo que
permitia tornar inteligível a figura do selvagem, como um modelo de ação a ser
779
restaurado no que dizia respeito ao modo de inclusão desses habitantes primitivos‖ .
Temos, aqui, então, os principais elementos do conteúdo temático da historiografia de
Eduardo Prado: o interesse pela compreensão da cultura indígena e da sua incorporação
à civilização cristã, o que traz a ação catequética dos padres jesuítas para o primeiro
plano de análise. Será que Prado herdou a temática etnográfica do IHGB? Nem a sua
correspondência e nem os seus textos públicos permitem responder essa pergunta. Por
outro lado, a julgar pelo material que eu examinei nessa seção, acredito que a principal
referência temática de Eduardo Prado tenha sido Capistrano de Abreu, esse sim, um
atento leitor dos estudos produzidos pelos letrados do IHGB.
Em seu estudo já citado sobre a produção historiográfica de Capistrano de
Abreu, Maria da Glória de Oliveira destaca a importância da etnografia indígena para o
historiador cearense, que escreveu dois trabalhos sobre essa temática: ―Os bacaeris‖, de
1895, e ―Rã-txa hu-ni-ku-i: a lìngua dos caxinauás do Rio Ibuaçu‖, de 1914. Para a
intérprete, os trabalhos etnográficos de Capistrano de Abreu não devem ser
considerados um desvio de sua produção historiográfica principal, pois ―contrariamente
até mesmo às sua próprias declarações, seu interesse pela etnografia indígena esteve
longe de ser fortuito, seja por manter um vínculo direto com seu projeto historiográfico,
seja por desempenhar papel decisivo na concepção e escrita da história pátria‖780. A
autora sugere, portanto, um vínculo entre a etnografia e a historiografia na obra de
Capistrano de Abreu, na medida em que, ―no caso especìfico da escrita da história do
Brasil, a condição de ―ancestrais‖ da nação, concedida pela geração romântica aos
indígenas, desafiava os limites epistemológicos de uma história triunfalista, portadora
da ideia de civilização‖ 781.
O interesse de Capistrano de Abreu pelas comunidades indígenas não pode ser
separado do seu interesse pela ação catequética dos padres jesuítas. Nas palavras do

778
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2013. p.55.
779
Idem.
780
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2013. pp. 101-102.
781
Idem.

357
próprio autor, ―uma história dos jesuìtas é obra urgente; enquanto não a possuirmos será
782
presunçoso quem quiser escrever a história do Brasil‖ . O historiador cearense não
chegou a escrever essa história dos jesuítas, assim como não escreveu a sua tão
aguardada história geral do Brasil. Porém, o autor prestou um serviço fundamental para
os futuros historiadores interessados na ação dos padres da Companhia de Jesus na
colonização da América Portuguesa ao coletar e organizar importantes documentos
sobre o assunto. Quem nos diz é a própria Maria da Glória Oliveira:

Entre 1880 e 1890, Capistrano atribuiu autoria do manuscrito ―Clima do Brasil e


de algumas coisas notáveis que se acham assim na terra como no mar‖ (1881) ao
missionário português Fernão Cardim, identificou escritos do padre José de
Anchieta, como a ―Informação do Brasil e suas capitanias em 1583‖ (1886),
publicou textos de Manoel de Nóbrega e outros jesuítas (1886), editou a primeira
versão na integral da História do Brasil de frei Vicente do Salvador (1886),
identificou como de Antonil (1886) a autoria de Cultura e opulência do Brasil,
além de ter traduzido do alemão as obras de J. E. Wappaeus, a Geografia física
do Brasil (1884), de A, W. Sellin, Geografia geral do Brasil (1889) e do inglês
H. H. Smith, Viagem pelo Brasil (1886)783.

De acordo com os dados apresentados pela autora, todo esse material,


organizado e publicado ao longo da década de 1880, já estava disponível nos anos 1890,
quando Prado produziu a maior parte dos seus estudos historiográficos. Nesses estudos,
por mais de uma vez, o nosso autor citou explicitamente as fontes coletadas pelo seu
amigo cearense, o que demonstra a importância de Capistrano de Abreu para o trabalho
propriamente historiográfico de Eduardo Prado, que é o tema da próxima, e última,
seção.

9.3 - Os escritos historiográficos de Eduardo Prado: a metodologia da ciência histórica


no desenvolvimento de uma interpretação do Brasil
Como eu já comentei algumas vezes ao longo desta tese, Eduardo Prado está
longe de ser um desconhecido pela bibliografia especializada na história política do
Brasil. Porém, a situação é um tanto diferente quando temos em vista os estudos que se
debruçam sobre a história do pensamento social brasileiro. Com algumas exceções,
como, por exemplo, os trabalhos de Carlos Henrique Armani e Carmem Lúcia
Felgueiras, ambos já citados nesta tese, Eduardo Prado não costuma ser tratado como
um dos autores que contribuíram para o desenvolvimento de uma interpretação do

782
ABREU, Capistrano. Capítulos de história colonial (1500-1800) e os caminhos antigos e o
povoamento do Brasil. Brasília: UNB, 1963. p. 188.
783
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 66.

358
Brasil. A situação é semelhante nos trabalhos dedicados à história da historiografia
brasileira. Com a exceção do clássico trabalho de José Honório Rodrigues sobre a
historiografia conservadora e dos recentes estudos de Ângela Alonso e Flávio Giarola,
as pesquisas de Eduardo Prado não são lembradas como parte relevante da produção
historiográfica brasileira finissecular. O que pretendo fazer nesta última seção é
contribuir para os campos de estudos da história do pensamento social brasileiro e da
história da historiografia brasileira e, em diálogo com a bibliografia existente, mostrar
como nos textos propriamente historiográficos de Eduardo Prado é possível perceber a
operacionalização de um método histórico e o desenvolvimento de uma interpretação do
Brasil que legou importantes elementos ao ensaísmo do século XX, notadamente para
os escritos de Gilberto Freyre.

Entre os muitos textos escritos por Eduardo Prado, nesta seção, eu examino um
corpus especìfico, constituìdo pelos artigos ―L’Art” e ―Immigration”, publicados em
1889, como parte do material preparado para a exposição universal de Paris, e as
conferências ―O catolicismo, a companhia de Jesus e a Colonização do Novo Mundo‖,
de 1897, e ―Os espanhóis no salto de Avanhandava‖, de 1899. De forma alguma, esses
textos esgotam a produção historiográfica de Eduardo Prado, que, como eu já disse
neste capìtulo, envolve também os ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖ e a ―Ilusão
Americana‖. Se é assim, o que o material examinado nesta seção tem de diferente em
relação aquele que eu analisei ao longo desta tese? Por que é possível caracterizá-lo
como ―textos propriamente historiográficos‖?

Eu venho comentando desde o início deste trabalho que uma das principais
características da bibliografia produzida por Eduardo Prado é o seu aspecto
performático, uma vez que, não sendo dado às sistematizações conceituais mais rígidas,
o nosso autor adaptou as suas intervenções ao sabor das conjunturas, sendo ele um
vigoroso polemista político que atuou em um momento de profundas transformações
institucionais no Brasil. Os escritos que eu examino nesta seção têm uma
particularidade em relação aos que foram examinados até aqui: neles, a intervenção
político não está no centro das preocupações do autor, o que não significa que seja
inexistente e que não possa ser percebida em algum lugar, nas franjas do discurso.
Talvez, por isso, os dois principais biógrafos de Eduardo Prado trataram os seus estudos
historiográficos na perspectiva da indiferença política, interpretação da qual, como disse
há pouco, eu discordo. O que torna, portanto, esses textos diferentes é, justamente, o

359
modos operandi do autor: atuando como um historiador de ofício, de uma forma bem
próxima ao que a escola histórica alemã definiu como método histórico, Prado trouxe
para o primeiro plano da sua escrita um conjunto de práticas controladas de leitura,
crítica e citação dos documentos e dos estudos existentes sobre os temas abordados,
fazendo do método um sistema de validação das informações encontradas nas fontes e
na bibliografia especializada, em uma operação que prefigura e visa legitimar a
narrativa. Vejamos, então, como ele pôs esses procedimentos em prática.

Já no primeiro parágrafo do texto ―L’Art”, escrito originalmente em francês,


Prado diz que ―descobertas recentes apontam para a produção de uma peculiar arte de
ornamentação e de certo desenvolvimento de uma bela arte em tribos mais avançadas‖
784
. Após essa afirmação, o autor dedicou três páginas à citação de estudos etnográficos
realizados por europeus que sustentam a sua argumentação e, posteriormente, examinou
os relatos dos viajantes dos séculos XVI e XVII, afirmando que ―todos os viajantes que
visitaram o Brasil comentam a grande disposição musical dos seus habitantes. Os
primeiros missionários se encantaram com a facilidade com a qual os índios aprendiam
785
os cantos da Igreja‖ . Entre esses relatos, Prado destaca os de Jean de Léry, para
quem ―o trato dos ìndios com as penas dos pássaros evidencia a existência de uma
tradição estética própria do Brasil, fruto do trabalho dos selvagens que habitavam a terra
786
antes da chegada dos portugueses‖ . Eduardo Prado está, portanto, procedendo de
forma muito semelhante ao que hoje nós consideramos o méthier do historiador:
primeiro, ele apresentou a sua hipótese e depois se esforçou para sustentá-la,
estabelecendo um intenso diálogo com a produção bibliográfica disponível e analisando
as fontes coevas. Em um trabalho dedicado ao historicismo alemão, o historiador
italiano Arnaldo Momigliano destaca a importância do filósofo francês Pierre Bayle
para o delineamento dessa metodologia, pois, em fins do século XVII, ele contribuiu
para a autonomização do conhecimento histórico. Nas palavras do autor, ―com Bayle,
que rompeu com o cartesianismo e tomou os fatos como sustentação de sua ciência, a
história passava a ser interessante a partir do momento em que era concebida como um
conjunto de fatos averiguáveis e cujo entendimento é possìvel‖ 787.

784
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 02.
785
Idem. p. 79.
786
Idem. p. 4.
787
MOMIGLIANO, Arnaldo. Studies in Historiography. Londes: Weidenfeld and Nicolson, 1966, p. 33.
p. 33.

360
Levando em consideração os estudos de autores como Anthony Grafton e Pedro
Caldas, o uso dos procedimentos da crítica dos documentos históricos foi, cada vez
mais, se tornando obrigatório para os historiadores, até que Gustav Droysen, já no
século XIX, criticou a hegemonia metodológica das ciências naturais e ―delimitou o
terreno do método histórico‖, partindo do princìpio de que ―o mundo dos objetos
históricos, se construído pela interpretação do historiador, tampouco será uma mera
reprodução de sua mente, mera folha em branco na qual o historiador haverá de
788
inscrever o que melhor lhe aprouver‖ . Já que o trabalho do historiador ganhou
conotação inevitavelmente hermenêutica, a exposição das fontes se tornou um
procedimento de legitimação da pesquisa. Eduardo Prado sabia bem disso e usou e
abusou do recurso à citação das fontes nos seus textos historiográficos. Mas ele foi além
e se empenhou, também, em avaliar criticamente o trabalho de outros historiadores.

Esse esforço de revisão bibliográfica é perceptível em todos os escritos


propriamente historiográficos de Eduardo Prado. Destaco, aqui, dois exemplos, os que
me parecem mais reveladores da modernidade da prosa historiográfica do nosso autor:
as conferências ―O catolicismo, a companhia de Jesus e a Colonização do Novo
Mundo‖, de 1897, e ―Os espanhóis no salto de Avanhandava‖, de 1899, onde ele
criticou, respectivamente, os trabalhos de Francisco Adolfo Varnhagen e do historiador
espanhol Felix de Azara. Analisar com cuidado essas críticas é importante para
entendermos como Prado mobilizou o repertório disponível, no final do século XIX, aos
autores interessados em se aventurar pelas veredas dos estudos históricos.

Ao destacar a importância dos padres Jesuìtas para a ―construção da civilização‖


brasileira, Prado comentou o tão importante ―História Geral da Civilização Brasileira‖
de Varnhagen.

O nosso historiador, o eminente e excêntrico Varnhagen, que tem toda a dureza


de um saxão que era e uma inexplicável índole deprimidora de toda a grandeza e
de toda a beleza, que é enfim o homem que em nossa história menoscaba de
todas as heroicidades, da de Anchieta e da de Tiradentes, diz que os jesuítas
foram outros orfeus, que souberam humanizar as novas feras humanas 789. (Grifos
Meus)

788
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. As dimensões do historicismo: um estudo dos casos alemães.
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007. p. 54.
789
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de anchieta, 1979. p.25.

361
Há dois aspectos da citação que chamam, especialmente, a minha atenção:
primeiro, Prado, tal como os outros historiadores da sua geração, reconhece que
Varnhagen era o ―nosso historiador‖, ou seja, o historiador responsável pela produção
da principal obra sobre a história pátria. Em 1877, ao escrever o necrológio de
Varnhagen, Capistrano de Abreu formulou algo parecido, ao dizer ―a nação chora a
morte do seu historiador‖. Portanto, ainda que, nas palavras de Fernando Amed, ―a
ausência de fontes, de testemunhos, de cultura arquivística, de sociedades intelectuais
independentes, do cuidado com a produção anterior, enfim, falta de uma orientação
letrada, da recepção quanto àquilo que ia sendo publicado, de editoras, de jornais‖790
tenham feito do cenário historiográfico brasileiro finissecular um ambiente intelectual
frágil, acredito que a interlocução entre os nossos historiadores oitocentistas, que fica
especialmente perceptível quando analisamos as correspondências trocadas entre eles,
contribuiu para a construção de uma comunidade de especialistas mais ou menos
organizada.

É claro que ao dizer isso, eu não estou afirmando a existência de um campo


historiográfico autônomo no Brasil no final do século XIX, mas sim propondo um
diagnóstico menos rigoroso que o apresentado por Fernando Amed, e sugerindo que os
letrados dedicados ao tema da história do Brasil já eram capazes de definir a sua
ancestralidade e atribuíram a Adolfo Varnhagen a posição de pai fundador, o que não
significa que ele estivesse imune às críticas. Eduardo Prado, por exemplo, e esse é o
segundo aspecto da citação que chama a minha atenção, afirmou que a obra do
Visconde de Porto Seguro era marcada pela ―dureza de um saxão‖, o que explicaria o
pouco apreço do historiador pela heroicidade dos grandes vultos da história nacional.
Capistrano de Abreu disse algo semelhante ao propor a quebra dos ―quadros de ferro‖
da escrita varnhargeriana para abrir caminhos, ―a grandes traços e largas malhas‖, com a
sua história em capítulos do Brasil colonial. A crítica do historiador cearense tem teor
diferente da crítica de Eduardo Prado, o que não impediu os dois autores de utilizarem a
imagem do ―ferro‖, da ―dureza‖, para se referirem ao texto de Varnhagen. Os

790
AMED, Fernando. Ser historiador no Brasil: João Capistrano de Abreu e a anotação da História
Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das;
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoa, GONÇALVES, Márcia de Almeida, CONTIJO, Rebeca. Estudos
de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp. 125-150. p. 140.

362
argumentos pareciam circular entre os membros dessa incipiente comunidade de
historiadores.

As críticas de Eduardo Prado ao Visconde de Porto Seguro não pararam por aí,
sendo direcionadas ao coração do projeto civilizatório que o nosso autor acreditava ser o
fundamento do livro ―História Geral da Civilização Brasileira‖.

Varnhagen, porém, era partidário da exterminação do índio, e, no seu singular


patriotismo, odiava o caboclo brasileiro. E o caboclo é, no entanto, um homem
que todos devemos admirar pela sua força e porque, afinal de contas, ele é que é
o Brasil, o Brasil real, bem diferente do cosmopolitismo artificial em que
vivemos, nós, os habitantes desta grande cidade. Foi ele quem fez o Brasil 791.

Prado atribui a Varnhagen um sentimento de desprezo pelos índios, o que fazia


com que, no seu projeto de nação, o elemento indígena não tivesse lugar, sendo o
extermínio a única forma de resolver aquilo que, na perspectiva do Visconde de Porto
Seguro, era um problema: o entrave civilizacional representado pelo atraso cultural dos
nativos. Essa acusação, que talvez seja um tanto exagerada, nos leva ao cerne da
discordância que marcou os debates etnográficos que estavam sendo travados dentro do
IHGB desde meados do século XIX. Apesar de destacar a importância da etnografia
para esses letrados, Rodrigo Turin afirma que não havia consenso entre os membros do
instituto em relação à temática indígena.

De um lado, existiam autores que buscavam defender a catequese provando que


as sociedades indígenas não eram primitivas, mas sim formas decaídas de
civilizações anteriores. De outro lado, especialmente com Varnhagen, procurava-
se provar a incapacidade dos ―selvagens‖ de sair de seu estado de natureza.
Assim, por mais que a equação primitivos/catequese tenha sido defendida por
alguns autores, pode-se dizer que houve, naquele momento, um campo de debate
com tipos de argumentação bem demarcados 792.

A sugestão do autor é fundamental para a argumentação que estou


desenvolvendo nesta seção porque mostra a existência de uma tradição, um tanto
conflituosa, a respeito do lugar que o índio deveria ocupar nas representações
historiográficas da nação. De alguma forma, Eduardo Prado, na sua produção
propriamente historiográfica, tomou parte nessa discussão, ao se vincular à proposta
esposada por ―Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, Joaquim Norberto, von
Martius e mesmo Januário da Cunha Barbosa‖, que buscou ―garantir uma outra

791
Idem. p. 26.
792
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2013. p. 46.

363
historicidade para os selvagens, tornando-os ―restos‖ de civilizações mais antigas‖793. A
qualidade de ―decaìdos‖ que esses autores atribuìram aos indìgenas era ―mais adequada
à teoria cristã da criação e da revelação, era a conclusão, daí retirada, de que eles seriam
igualmente capazes de constituir uma civilização, com todos os seus atributos:
comércio, religião, governo‖, o que ―tornava mais viável o projeto de catequização, uma
vez que essas sociedades, em algum momento do passado, já teriam experimentado uma
existência social mais complexa e, por conseguinte, reconheceriam e aprenderiam com
mais rapidez as práticas e valores da civilização‖ 794. Ainda nesta seção, eu analiso, com
mais cuidado, como Prado tratou os temas da cultura indígena e da catequese. Por ora,
examino um pouco mais a forma do texto, particularmente naquilo que se refere à
operacionalização do método histórico.

Em 1899, em sessão realizada no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo,


Prado falou sobre os estudos históricos desenvolvidos pelo historiador espanhol D.
Felix de Azara (1742-1821), o ―mais célebre, o mais simpático estudioso da história do
795
Rio da Prata‖ . Antes de começar a analisar o texto de Azara e questionar a sua
hipótese de que foram os espanhóis responsáveis pela conquista do território onde,
posteriormente, seria fundada a cidade de São Paulo, Prado apresenta ao seu leitor
importantes informações a respeito da biografia do historiador espanhol. Esse exercício
não é nada fortuito e faz parte da estratégia utilizada por Prado para desacreditar a
hipótese de Azara e valorizar a atuação dos padres jesuítas no povoamento do interior
da América Portuguesa.

Dos trinta e cinco anos de idade aos cinquenta e cinco, durante vinte longos
anos, aquele fidalgo espanhol, que, em 1781, viera ter à América do Sul, na
qualidade de um dos comissários encarregados da delimitação territorial entre os
domínios espanhóis e portugueses e estudou com zelo toda a sua atividade e
todas as forças de usa inteligência 796.

Prado está desnudando o pertencimento institucional de Azara com o objetivo de


mostrar as condições que prefiguram a escrita da história desenvolvida por ele. Já
comentei neste capìtulo como, segundo Gumbrecht, a ―segunda cascata de
modernidade‖ é caracterizada por uma importante mudança na episteme moderna ao

793
Idem.
794
Idem.
795
Trabalho lido no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em sessão realizada no dia 20 de abril
de 1899. Transcrito em PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 03). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana,
1906. p.147.
796
Idem.

364
problematizar a posição do observador e destacar a historicidade da compreensão.
Segundo Hans George Gadamer, o pertencimento do intérprete somente foi alçado ao
centro das preocupações epistemológicas modernas com a filosofia de Martin
Heidegger, pois a escola histórica não teria sido capaz de desenvolver um aparato
conceitual destinado a lançar luz sobre as condições de produção do conhecimento797.
Nas palavras de Gadamer: ―Com efeito, para Heidegger, o fato de só podermos falar da
história por sermos seres históricos significa que é a historicidade do ser-aí humano, em
seu movimento incessante de expectativa e esquecimento, que permite o retorno do
798
passado à vida‖ . A expressão heideggeriana ―ser-aì humano‖ é central para a
reflexão hermenêutica desenvolvida por Gadamer, pois revela que ―nem o
conhecimento nem o conhecido são onticamente, e simplesmente subsistentes, mas
799
históricos, quer dizer, eles são o modo de ser da historicidade‖ . Eduardo Prado não
chegou a ler Heidegger, o que sugere que o esforço de historicização da compreensão
histórica já fazia parte do modus operandi dos historiadores ocidentais antes mesmo das
formulações do autor de ―Ser e Tempo‖. Sendo assim, nas primeiras páginas do seu
texto sobre os estudos de Felix de Azara, Eduardo Prado está, justamente, explicitando a
historicidade do conhecimento, mostrando que a narrativa que o historiador espanhol
desenvolveu deve ser lida à luz da sua posição de diplomata a serviço da coroa
espanhola. Nesse sentido, acredito que Prado, naquela década de 1890, estava
respirando os ares da modernidade historiográfica ventilados pela Europa.

Eduardo Prado parecia saber que a simples elucidação do ―lugar de fala‖ de


Azara não seria o suficiente para desmontar a tese do autor de que ―os espanhóis
penetraram no território hoje paulista, até o salto de Avanhandava, e que o seu chefe
Irala ai exerceu atos de verdadeira conquista‖. Por isso, ele traz para o primeiro plano de
análise uma quantidade enorme de documentos, buscando compreender ―onde foi
Azara, que escreveu duzentos e tantos anos depois do governo de Irala no Paraguai,

797
Para Gadamer, a hermenêutica histórica, com Dilthey, especialmente, é sintomática do insucesso do
historicismo em delinear uma metodologia de compreensão adequada aos objetos históricos. Nas palavras
do próprio autor, ―o conhecimento histórico não pode ser descrito segundo o modelo de um conhecimento
objetivista, já que ele mesmo é um processo que possui todas as características de um acontecimento
histórico. A compreensão deve ser entendida como um ato da existência e é portanto um ―pro-jeto
lançado‖. O objetivismo é uma ilusão.‖ (p. 57). Nesse sentido, ainda segundo Gadamer, os fundamentos
de uma hermenêutica adequada aos estudos históricos, somente foram delineados com maior precisão nos
escritos de Husserl e Heidegger. Ver GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica.
Rio de Janeiro: ED FGV, 2006.
798
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: ED FGV, 2006. p.
43.
799
Idem. pp. 42-43.

365
buscar essa notícia, que em vão se procurará nas fontes, senão contemporâneas, ao
menos mais chegadas aos acontecimentos?800‖. A partir desse momento, Prado começa
a cotejar o estudo de Azara com as fontes coevas, pois ―à medida que remontamos às
fontes de informações de Azara, vai empalidecendo a notícia da batalha do
801
Avanhandava e afastando-se de nós‖ . Entre as fontes mobilizadas por Prado, têm
especial destaque os escritos, produzidos in loco, pelo padre Lozano, ―uma das fontes
citadas por Azara, [que] não fala nem em segundo assalto, nem em Avanhandava‖. Há,
aqui, um aspecto da argumentação de Eduardo Prado que nos diz algo a respeito da
presença do repertório metodológico da escola histórica germânica na sua operação
historiográfica. Uma citação de autoria do próprio Leopold von Ranke nos ajuda a
melhor compreender do procedimento do nosso autor: ―Vejo aproximar-se a época em
que já não teremos de basear a história moderna em relatos, nem mesmo nos dos
historiadores contemporâneos – exceto na medida em que tenham um conhecimento de
primeira mão‖802. Tanto para Eduardo Prado como para Leopold Ranke, portanto, a
passagem do tempo é vista como um elemento de desgaste da compreensão histórica,
pois quanto mais próxima da cena original dos eventos mais verdadeira seria a narrativa
historiográfica. Essa hierarquização cronológica das narrativas não é uma invenção da
modernidade, pois se trata de uma exigência que, nas palavras de Anthony Grafton,
―está presente nos escritos dos historiadores desde a tradição clássica: que eles próprios
tenham tido experiências políticas e militares, que façam relatos como testemunhas
803
oculares e que tenham um amor manifesto pela verdade‖ . Mais uma vez temos um
indício de que não são tão rígidas as fronteiras que separam os repertórios
historiográficos antigo e moderno.

Ainda se referindo aos relatos coevos do Padre Lozano, Prado diz que ―era um
verdadeiro tipo de historiador, compreendido à moda do nosso século, ainda que tenha
vivido no século XVI. Nessa época, tudo era pretexto para o que França se chamava na
técnica dos escritores – des morceaux –isto é, amplificações literárias, em cuja redação
804
a verdade histórica passava a ser coisa secundária‖ . Essa citação é fundamental para
a sustentar a minha hipótese de que Eduardo Prado, nos seus textos propriamente

800
Idem. p. 150.
801
Idem. pp. 160-161.
802
RANKE, Leopold von. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. L. von Ranke: História. São Paulo: Ática.
p. 83.
803
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Campinas: Papirus, 1998. p. 46.
804
Idem. p. 155.

366
historiográficos, de alguma forma, mobilizou o repertório da moderna crítica histórica,
que ganhou, nos quadros da escola histórica alemã, os seus contornos mais nítidos.
Primeiro, o nosso autor sugere a existência de uma diferença entre o ―tipo de
historiador‖ do século XIX e aquele que no século XVI se preocupava mais com as
―amplificações literárias‖ do que com o conhecimento da verdade histórica. Sendo
assim, para Prado, o historiador não deveria se preocupar com a estética da narrativa,
mas sim com a correta inquirição dos documentos e com o desvelamento da verdade das
experiências estudadas. Segundo Géssica Gaio, esse afastamento do estilo em prioridade
do método já pode ser identificado nos primeiros textos de Ranke, cujo interesse pela
história

está baseado em duas negações: a recusa do romance histórico de Walter Scott e


a crítica ao hegelianismo. Aquele lhe era muito envolvente, mas Ranke passou a
se incomodar com a falta de veracidade nos romances historicamente
ambientados de Scott. Motivado a conhecer melhor o passado, Ranke começou a
achar a realidade dos fatos mais colorida e atraente do que a criatividade do
romancista inglês, e esta mesma inclinação para a pesquisa documental o alertou
para as singularidades da história e para a impossibilidade de estabelecer regras
que controlem o seu desenvolvimento 805.

Ao relacionar o interesse de Ranke pela história, também, à rejeição à ―pretensão


[de Hegel] de compreender todo o enredo da história universal‖, a autora apresenta uma
importante pista que eu retomo mais adiante, quando me debruço sobre a abordagem
historiográfica de Eduardo Prado. Por ora, continuo examinando as críticas do nosso
autor ao texto de Felix de Azara. Após investir mais de dez páginas na análise das
fontes contemporâneas à ocupação do interior da América Portuguesa, o nosso autor nos
apresenta o seu diagnóstico a respeito do trabalho desenvolvido pelo historiador
espanhol. Para Eduardo Prado, ―a afirmativa de Azara não deve ser considerada como
um erro de interpretação; seria um erro demasiadamente grosseiro para um espírito tão
atilado como o seu‖ 806
. Se, para Prado, o problema da análise de Azara não é de
natureza hermenêutica, o que explicaria o equívoco do historiador espanhol? O próprio
Eduardo Prado dá a resposta e, nela, podemos, mais uma vez, vê-lo combinando os
repertórios historiográficos antigo e moderno.

A explicação é talvez outra: D. Felix de Azara não era simplesmente um sábio


zoologista, um astrônomo, um geógrafo também curioso e sabedor das coisas da
História; era um diplomata, era um funcionário, e todos os seus escritos se
ressentem de uma nobre preocupação: a defesa dos direitos da Espanha, sua

805
GAIO, Géssica Guimarães Góes. A tarefa do historiador no alvorecer do historicismo. Dissertação de
Mestrado: PUC/Rio de Janeiro, 2009. p. 89.
806
Idem. p. 168.

367
pátria807. Foi levado por esse impulso, que chamaremos diplomático, que o
geografo real D. Felix de Azara, falseando um texto de dois escritores, não
duvidou afirmar que Irala e os seus tinham vindo até o nosso Avanhandava. Era
um argumento, mas não era uma verdade. Da afirmativa de Azara, porém,
podemos tirar uma lição, que servirá para não ficar sem a obrigada moralidade
esta pequena anedota histórico-geográfica que tendes tido a bondade de ouvir. A
moralidade é que, na história e na ciência, como na vida, as violências feitas à
verdade são sempre seguidas de uma mais ou menos tardia reparação 808. (Grifos
Meus)

Tal como Capistrano de Abreu fez no trecho que serve como uma das epígrafes
a este capìtulo, Prado redigiu a palavra ―História‖ com ―H‖ maiúsculo, o que sugere
certo tratamento moderno do conceito. É claro que a grafia da palavra, por si só, não
confirma o argumento e, por isso, a leitura cuidadosa do restante da citação é
fundamental. No último parágrafo do seu texto, depois de ter examinado
cuidadosamente os escritos de Felix de Azara, confrontando-os com as fontes da época,
Prado afirma que o seu próprio esforço de revisão da matéria histórica em questão – a
ocupação do território paulista – deve ser lido na perspectiva de uma ―moralidade
obrigatória‖ que seria inerente ao estudo da história. Ao fazer essa formulação, ele está
operando, ainda, dentro dos valores do repertório historiográfico antigo, segundo o qual
o conhecimento histórico teria utilidade pragmática, na medida em que carregaria
consigo uma lição capaz edificar os homens do tempo presente. Mas será que a
capacidade de moralização que Prado definiu como inerente à história é do mesmo teor
daquela veiculada pelos autores que, na esteira do topos ciceroniano, produziam os seus
textos a partir dos preceitos da retórica latina? Novamente, os estudos de Koselleck são
importantes para a compreensão da performance historiográfica de Eduardo Prado.

O autor alemão, como eu já mostrei no último capítulo, sugere que as


transformações na cultura historiográfica ocidental, que no século XVIII delinearam
aquilo que ele chama de ―moderno conceito de história‖, não esvaziaram
completamente o conteúdo moralizante do conhecimento histórico, pois ―a velha tarefa
moral da Historie de, através de juízos, não só ensinar, mas também melhorar, sofreu
809
uma mudança‖ . Nesse sentido, para Koselleck, a sobrevivência das pretensões
moralizantes do conhecimento histórico é uma herança do repertório historiográfico
antigo que, de alguma forma, chegou à modernidade, sendo apropriado no século XVIII
de modo que ―foi se fortalecendo decisivamente aquele campo que exigia do historiador
807
Idem. p. 168.
808
Idem. p. 169.
809
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. pp. 146-147.

368
um posicionamento enfático a favor da verdade, em especial pelo ensinamento moral da
história‖810, o que teria levado a ―sentença histórica [a] se transformar com expectativa
histórica de sua execução. Não mais apenas a história individual contava como
exemplo, mas toda a história foi processualizada‖811. É essa moralização moderna,
porém de matriz pré-moderna, situada no nível do processo, que vejo Eduardo Prado
mobilizando no seu texto crítico à historiografia de Felix Azara. Para o autor, a
―História‖, pensada como processo temporalizado e como conhecimento, é uma
instância de existência humana capaz de reparar, por si só, as mentiras contadas, por
exemplo, por um historiador diplomata a serviço da sua nação. Em algum momento,
para Prado, por um imperativo da ―própria História‖, a verdade se sobrepõe e essa é a
―lição‖ que o seu estudo pretendia apresentar aos ouvintes da conferência.

Identifico a presença do repertório historicista nos escritos historiográficos de


Eduardo Prado, também, na abordagem do autor, que priorizou a particularidade dos
eventos ao invés das grandes sistematizações generalizantes. No sétimo capítulo desta
tese, quando examinei a importância do empirismo para o conservadorismo de Eduardo
Prado, eu destaquei como o nosso autor, no livro ―A Ilusão Americana‖, se propôs a, tão
somente, ―narrar os fatos‖, em uma referência, não explicitada, à máxima rankeana. Na
conferência ―O catolicismo, a companhia de Jesus e a Colonização do Novo Mundo‖,
ele voltou a apresentar indìcios a respeito da sua abordagem, ao dizer que ―um professor
que for ensinar história do Brasil para os adolescentes deve priorizar aquilo que é
peculiar a cada acontecimento, evitando se perder em voos lógicos que costumam se
812
equivocar pelo excesso de abstração‖ . Esse tipo e tratamento da matéria histórica é
constitutivo do nosso repertório conceitual moderno, podendo ser encontrado em
propostas teórico-metodológicas que hoje influenciam o trabalho dos historiadores
profissionais813. Estou especialmente interessado em compreender como, ao considerar

810
Idem. p. 147.
811
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p. 148.
812
Trabalho lido no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em sessão realizada no dia 20 de
agosto de 1897. Transcrito em PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 03). São Paulo: Escola Tipográfica
Salesiana, 1906. p.146.
813
Como exemplo, cito a proposta teórica desenvolvida por Clifford Geertz, que, a partir de um conceito
de cultura de matriz weberiana e historicista, consequentemente, definiu como proposta mais adequada
aquela que consegue ―conservar-se mais próxima do terreno do que parece ser o caso em ciências mais
capazes de se abandonarem a uma abstração imaginativa. Somente pequenos voos de raciocínio tendem a
ser efetivos em antropologia: voos mais longos tendem a se perdem em sonhos lógicos, e
embrutecimentos acadêmicos com simetria formal. O pontal global da abordagem semiótica da cultura, é,
como já disse, auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceitual no qual vivem os nossos sujeitos, de

369
o evento o objeto prioritário da atenção do historiador, Eduardo Prado foi coerente com
a agenda historiográfica conservadora que, por sua vez, pode ser pensada à luz das
críticas que o historicismo fez às filosofias modernas naturalistas.

O historiador e filósofo alemão Friedrich Meinecke chama atenção para o risco


de que a dicotomia abordagem generalista X abordagem particularista nos leve a pensar
o historicismo na chave da simples negação do repertório iluminista. Para o autor, a
origem do historicismo e dos procedimentos da escola histórica alemã devem ser
pensados como desdobramentos possíveis da filosofia da história iluminista,
especialmente naquilo que se refere à ―conquista do mundo histórico‖. Nas palavras do
próprio autor,

Os conceitos de individualidade e de evolução estão unidos no pensamento


historicista. Falando de forma ainda mais clara: de todos os sentidos possíveis do
conceito de evolução, o conceito historicista de individualidade requer, como
complemente, um conceito determinado da evolução, quer dizer, um conceito
que vá além da acepção das ciências naturais, que o tratam como um mero
desenvolvimento a partir das tendências congênitas, um conceito que reúna as
notas de espontaneidade espiritual daquilo que se evolui e sua aplicação para as
mudanças provocadas por fatores singulares, fundindo assim a liberdade com a
necessidade814.

Ao fundamentar a sua análise no conceito de ―evolução‖, Meinecke destaca a


polissemia do termo, o que o permite funcionar como uma espécie de elo entre os
repertórios iluminista e historicista, pois o particularismo que caracteriza a abordagem
historicista não significa, necessariamente, a desconsideração dos constrangimentos, da
―necessidade‖, que as ―grandes experiências‖ impõem aos agentes históricos. Nesse
sentido, ainda de acordo com as considerações de Meinecke, ―a medula do historicismo
consiste na substituição de uma consideração generalizadora das forças humanas
históricas por uma consideração individualizadora‖, o que faz com que os historiadores
historicistas não endossem a concepção naturalista e sua crença na imutabilidade da
natureza do homem. O fundamento da particularidade historicista estaria, então,
segundo a interpretação que Georg Iggers faz dos estudos que já se debruçaram sobre o
tema, na afirmação da existência de ―uma humanidade em evolução, isto é, em um
ininterrupto vir-a-ser, um movimento constante de tornar-se si mesmo através do
amadurecimento de suas características próprias e do contato com o universo histórico

forma, a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com eles‖. Ver. GEERTZ, Clifford. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. p. 17.
814
MEINECKE, Friedrich. El Historicismo y su Génesis. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. p.
141.

370
que o cerca. Ao mesmo tempo individualização e universalismo: o devir do ser
individual imerso no mar da contingência histórica‖815. O método histórico, portanto,
nas palavras de Pedro Caldas, empreendeu um esforço de ―estabelecer a identidade
entre os dois métodos, cujo maior problema consiste não exatamente em sua
parcialidade, mas na ilusão de, em sua parcialidade, acreditarem estar dando conta da
816
totalidade‖ . Acredito que seja essa a proposta de Prado nos seus estudos históricos,
onde, nas suas próprias palavras, ele priorizou as ―particularidades dos
acontecimentos‖817.
Não é nada fortuito o fato de Eduardo Prado ter operado a sua abordagem dessa
maneira, pois as suas referências conservadoras, de alguma forma, se inspiraram no
método histórico. Para Pedro Caldas, um dos desdobramentos possíveis do historicismo
foi
uma reação marcadamente conservadora, como se encontra, por exemplo, em
Edmund Burke. Crítico da Revolução Francesa, Burke alertava contra toda
tentativa de fundação da história a partir do zero, que fatalmente aniquilaria o
intercâmbio do presente com o passado para a modulação do futuro; no próprio
Herder encontra-se uma crítica a todo tipo de redução do processo histórico a
fórmulas, crítica acompanhada pelo elogio da espontaneidade818.

O diagnóstico é acompanhado por Robert Nisbet, para quem ―em profìcuo


diálogo com a escola histórica alemã, o conservadorismo reduziu a história ao seu
essencial, não é mais do que uma experiência; e é na confiança na experiência mais do
que no abstrato e no poder dedutivo em questões de relações humanas que o
819
conservadorismo baseia a sua fé na história‖ . Portanto, também nos seus textos
historiográficos, Eduardo Prado foi coerente com o repertório do conservadorismo

815
IGGERS, Georg. The German Conception of History. Estados Unidos: Wesleyan University
Press,1988, p. 4.
816
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. As dimensões do historicismo: um estudo dos casos alemães.
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007. p.55.
817
Eduardo Prado não foi o único escritor de matriz conservadora a operar a abordagem historiográfica
dessa maneira, de modo a considerar mais válido o estudo das especificidades do acontecimento do que
das grandes generalidades. Segundo a interpretação de Gildo Marçal Brandão, o objetivo de Oliveira
Viana não era ―estudar o homem brasileiro em geral, mas este ou aquele grupo regional. Oliveira Vianna
tem o cuidado de sugerir que ao decompor seu objeto e especializar a sua análise não está convertendo a
geografia numa rua de mão única. Há, diz ele, ambientes sociais fixos, mas não tipo sociais fixos. Este,
apesar de sua precoce configuração e extraordinária estabilidade, não estão imunes à ação do meio no
qual se encontram. O que interessa, então, é menos isolar cada fator do que observar como o meio, a raça
e a cultura interagem e produzem tipos sociais caracterìsticos em cada área‖. Ver BRANDÃO, Gildo
Marça. Populações Meridionais do Brasil. In: NUNES, Gabriela; BOTELHO, André. Revisão do
pensamento conservador: ideias e política no Brasil. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010. pp. 119-145. p. 119.
818
Idem. pp. 59-60.
819
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987.p. 48.

371
moderno. Em um estudo dedicado à historiografia conservadora, Jose Honório
Rodrigues afirmou ser o pensamento conservador um dos principais fundamentos da
identidade nacional brasileira, afirmando que ―somos por tradição portuguesa um povo
820
extremamente conservador‖ . No seu esforço em examinar as especificidades da
historiografia conservadora, o autor foi um dos primeiros a propor uma análise dos
textos historiográficos de Eduardo Prado. Os estudos de Honório Rodrigues são
fundamentais para a reflexão que desenvolvo neste capítulo na medida em que
apresentem um inventário das principais questões levantadas por Prado nas suas
pesquisas historiográficas: ―a valorização da cultura indìgena, a ênfase na ocupação do
interior, o que o levou ao estudo das expedições bandeirantes e das missões jesuìtas‖ 821.
Vejamos, agora, como Prado articulou esses três temas e desenvolveu a sua
interpretação do Brasil.
Começando pela questão indígena, que é o tema do primeiro texto propriamente
historiográfico de Eduardo Prado, o ―L‘Art‖. No texto, o autor diz que ―o primeiro
contato do Brasil com a arte europeia não se deu pelo intermédio do colonizador
português‖ 822. Eu já comentei nesse capítulo como Prado dialogou com uma tradição
etnográfica que partia do princípio de que as populações indìgenas brasileiras ―são o
resultado da decadência de grandes civilizações que habitavam o território da América
do sul‖ 823. Ao tratar dessa forma o patrimônio cultural indígena, Prado estava operando
dentro do monogenismo, que era fundamental para o discurso etnográfico cristão que há
algum tempo já estava sendo desenvolvido dentro do IHGB, em uma perspectiva
baseada na ―relação de continuidade entre os diversos povos da terra, e não
propriamente de contiguidade. Daí sua preocupação em afirmar, paradoxalmente, uma
―nova natureza‖ adquirida pelos indìgenas‖824. É, justamente, por conta da crença nessa
possibilidade de ―recuperação do padrão civilizacional‖ dos ìndios que os letrados do
IHGB tanto valorizaram a catequese jesuíta. Esse argumento foi retomado por Eduardo
Prado.

820
RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil: a historiografia conservadora. Volume
II. Tomo I. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1988. p. 01.
821
RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil: a historiografia conservadora. Volume
II. Tomo I. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1988. p. 37.
822
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. pp. 02-03.
823
Idem.
824
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2013. p. 40.

372
É, exatamente, a ação catequética dos padres jesuítas o principal tema dos
estudos historiográficos desenvolvidos pelo nosso autor, para quem ―a obra da Igreja foi
uma obra de civilização e de humanidade e que os seus principais operários foram os
jesuìtas‖ . Na pena de Prado, ―colonizar‖ não significava, tão somente, ―ocupar o
825

território e erguer feitorias mercantis‖, pois, se assim fosse, ―os holandeses teriam feito
algo de permanente no Brasil‖, como, por exemplo, ―uniformizar a lìngua, adentrar o
sertão, dominar a hostilidade dos trópicos e inserir o ìndio no seio da civilização‖826.
Para o nosso autor, somente o colonizador português, naturalmente predisposto à
alteridade e comprometido com a catequese dos indígenas, seria capaz de estabelecer
uma civilização nos trópicos.

Ao chegarem os primeiros jesuítas vindos para o Brasil, havia meio século da


descoberta, Os resultados da colonização até então haviam sido quase nulos.
Cultivava-se algum açúcar em S. Vicente, parece mesmo que em Pernambuco,
com o índio escravizado; mas o índio, na escravidão, protestava morrendo, e os
seus irmãos da floresta atacavam e muitas vezes destroçavam os portugueses.
Não se pensaram, por assim dizer, em catequese. (...) Os jesuítas foram os
primeiros clérigos que aprenderam a língua indígena e nela pregaram. Vieram
eles para o brasil, quando veio o primeiro governador-geral Tomé de Souza, e
assim, na mesma ocasião em que a ordem civil se regularizou pela sua
centralização, o Brasil religioso começava, por assim dizer, a ter uma existência
real827. (Grifos Meus)

Um dos principais instrumentos colonizadores, segundo Prado, era a linguagem,


pois foi, justamente, em um exercício de tradução linguística, que os padres jesuítas
―domaram a selvageria dos ìndios‖. Mais de cem anos depois de Eduardo Prado, a
historiadora Andrea Daher, em um estudo dedicado à ação catequética dos jesuítas,
afirma algo parecido, ao dizer que ―nas operações linguìsticas desenvolvidas pelos
religiosos está subtendido que a escrita subordina o oral pela reatualização da memória
828
do ìndio e a condução da lìngua tupi às ―boas formas do verbo católico‖ . A
linguagem é, portanto, tanto para Prado como para Daher, um instrumento de catequese
e de transmissão dos valores da civilização cristã. O elogio ao papel civilizatório dos
jesuítas, portanto, como já vimos, é um elemento recorrente na história da historiografia

825
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. pp. 20-21.
826
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 4.
827
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. p. 25.
828
DAHER, Andréa. ―Cultura escrita, Oralidade e memória: a lìngua geral na América Portuguesa‖, in:
PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Escrita, linguagem, objetos. Leituras de história cultural. Bauru:
Edusc, 2004, p. 21.

373
brasileira desde a primeira metade do século XIX, quando os letrados do IHGB já
apontavam para a importância da Companhia de Jesus para a ―História da Civilização
Brasileira‖. Nesse sentido, Prado, ao se debruçar sobre essa temática, estava dialogando
com uma tradição de análise já consolidada na historiografia nacional. Esse diálogo fica
ainda mais claro se nos debruçarmos sobre as críticas que ele fez ao governo de
Sebastião José de Carvalho Melo (1699-1782), o Marquês de Pombal.

No século passado Pombal, que tinha a singular mania de regular a sua política
pelo que deles dissessem os estrangeiros, inundou a Europa de livros, folhetos,
em todas as línguas contra os jesuítas. Das estantes dessa majestosa livraria, em
grande parte formada em fins do século XVIII, contemplam-nos muitas dessas
obras hoje voltadas ao repouso do esquecimento, e deve ser uma contrariedade
para os espíritos daqueles escritores oficiais, defuntos colaboradores da defunta
tirania, o terem se assistir, presentes nas páginas dos seus livros, a esta
solenidade em que são honradas as suas vítimas de outrora. Preparava Pombal o
golpe insensato da expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses, ato que foi
para o Império ultramarino português ouro Alcácer-Quibir, com o do século XVI
para o reino lusitano. Com a expulsão dos jesuítas, no século passado, a
civilização recuou centenas de léguas dos centros do continente africano e do
Brasil829. (Grifos Meus)

A crítica ao governo de Pombal, como podemos perceber, é um desdobramento


do elogio à missão civilizatória da Companhia de Jesus. O argumento é parecido com
aquele que já vinha, desde a primeira metade do século XIX, sendo desenvolvido dentro
do IHGB. Joaquim Noberto, por exemplo, escreveu, em 1854, algo bem parecido, ao
dizer que entre os séculos XVI e XVII, as missões jesuìticas ―colheram em seus ensaios
tantos frutos, e legaram-lhes dias bem longos de prosperidade e paz‖. A prosperidade e
a paz das quais fala Joaquim Norberto nada mais são do que o ―esforço pacìfico de
civilização dos ìndios‖ que, para Eduardo Prado, foi a principal contribuição da ordem
dos jesuítas para a construção da civilização brasileira. As semelhanças entre os dois
autores não param por aí. Ao se referir ao período no qual o Marquês de Pombal foi o
ministro chefe do Império Português, Joaquim Norberto elabora uma análise tão
negativa quanto à de Eduardo Prado, pois ―além de ser a rapsódia de todas as leis
publicadas anteriormente sobre os índios, é todo repleto de utopias e cheio de novas
disposições coarcitivas das garantias que já gozavam os filhos das florestas‖. Essa
crítica ao teor abstrato dos governos ilustrados é recorrente nos pensadores
conservadores, como eu demonstrei no sétimo capítulo. Portanto, tanto para Eduardo
Prado como para Joaquim Norberto, a jornada que a administração pombalina travou
829
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. p. 33.

374
contra os jesuítas representou um retrocesso civilizacional nos domínios portugueses, o
que não teve consequências piores porque, após a queda do ministro chefe, Dona Maria
I recolocou o Império nos trilhos civilizacionais ―que tão sabiamente foram ordenados
pelo Concilio de Trento‖, nas palavras do próprio Joaquim Norberto‖830.

O interesse de Eduardo Prado pela história da Companhia de Jesus era tão


grande que o autor organizou um evento para homenagear aquele que, na sua
perspectiva, fora o grande responsável pela ―interiorização da civilização no perìodo
colonial‖: o padre José de Anchieta (1534-1597). Em agosto de 1897, sob a liderança do
nosso autor, foram realizadas as ―Conferências Anchietanas‖, que tinham o objetivo de
valorizar a importância do catolicismo para a formação do Brasil e, na análise de
Ângela Alonso, ―reafirmar os valores cristãos da sociedade brasileira, sendo a expressão
831
de uma luta cultural mais alusiva por parte dos restauradores.‖ . Flávio Giarola
também relaciona as conferências com o movimento monarquista: ―além de somar outro
ícone ao panteão monarquista (os jesuítas), [as Conferências Anchietanas] foram um
meio de apresentar o catolicismo como valor fundacional da nacionalidade, em revide à
religião civil do positivismo‖832. Ainda que os dois autores não estejam interessados
diretamente nos pensamento político de Eduardo Prado, os seus respectivos estudos nos
ajudam a compreender o perfil do engajamento político dos escritos propriamente
historiográficos do nosso autor, algo que, como já vimos, foi negado pelos seus dois
principais biógrafos. Ao todo foram realizadas nove conferências, nas quais os mais
notáveis nomes da intelectualidade da época, como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa,
Capistrano de Abreu e o próprio Eduardo Prado, que abriu os trabalhos em 26 de agosto
com o discurso ―O Catolicismo, a Companhia de Jesus e a colonização no século XVI”,
que eu examinei ao longo desta seção833.

830
SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Memoria histórica e documentada de índios da província do Rio
de Janeiro. RIHGB, Tomo XVII, 1854, p. 109-110.
831
ALONSO, Ângela. Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na primeira década
republicana. IN: Novos Estudos, São Paulo, Nº 85, pp. 131-148, novembro de 2009. p. 146.
832
GIAROLA, Flávio Raimundo. Os “pastores guerreiros”: Jesuítas, Catolicismo e história no
pensamento monarquista-católico. Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço
Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 7, n.º 1, Janeiro/Julho de 2014. p. 71.
833
As conferências realizadas e publicadas amplamente na imprensa da época foram: ―O apostolado
católico‖, de Francisco de Paula Rodrigues, ―O Catolicismo, a Companhia de Jesus e a colonização no
século XVI‖, de Eduardo Prado, ―Anchieta: narração da sua vida‖, de Brasìlio Machado, ―Anchieta em
São Paulo‖, de Teodoro Sampaio, ―A pregação, o método de ensino e de catequese dos Índios usado
pelos Jesuìtas e por Anchieta. Missões e peregrinações‖, do Padre Novais, ―Anchieta na poesia e nas

375
O evento organizado por Eduardo Prado teve muita repercussão, tendo sido
amplamente divulgado na imprensa da época e contado com a presença das principais
autoridades políticas da República. Isso poderia endossar a interpretação dos biógrafos
de que, nesse momento, o autor estaria afastado das querelas políticas, argumento que
não se sustenta nem pela performance discursiva de Prado e nem pela sua biografia, já
que, pouco tempo depois das conferências, como vimos no segundo capítulo desta tese,
ele se envolveu em um dos principais episódios da história do conflito entre os
monarquistas e as instituições republicanas. No entanto, no momento das conferências,
Prado não foi tão hostil, o que não quer dizer que o seu evento tenha sido dócil com o
regime republicano. Escrevendo sobre a atuação intelectual dos monarquistas nos
primeiros anos da República, Ângela Alonso destaca as ―Conferências Anchietanas‖
como um dos principais movimentos de oposição simbólica à intelectualidade
republicana.

Enquanto os republicanos conservaram a equação Império = decadência e se


lançaram à edificação de uma tradição republicana que suplantasse a imperial, os
monarquistas se puseram a resgatar a tradição imperial, invertendo os vetores: o
regime deposto virou um ápice de civilização e a República, sua ruína. Deste
modo, criaram-se duas versões da história nacional, uma legitimando o novo
status quo, outra defendendo a ordem caída834.

Ainda que não tenha examinado de forma específica os escritos historiográficos


de Eduardo Prado, Ângela Alonso insere o nosso autor nesse esforço de sutil
desqualificação dos argumentos mobilizados pela elite intelectual republicana. O texto
de Prado parece confirmar a hipótese da autora, mostrando, ainda, algo que ela não
destacou: o desenvolvimento de uma interpretação do Brasil que reuniu elementos dos
debates naturalistas desenvolvidos na Europa desde o século XVIII, e apropriados no
Brasil por autores como Visconde de Cairu, Januário da Cunha Barbosa e Capistrano de
Abreu, e serviu como inspiração para o ensaísmo do século XX, especialmente para os
escritos do Gilberto Freyre. Vejamos, agora, no último exercício analítico desta tese,
como Eduardo Prado desenvolveu esta interpretação.

lendas brasileiras‖, de João Monteiro, ―Anchieta e a raça e a lìngua indìgenas‖, de General Couto de
Magalhães, ―Anchieta, poeta e escritor‖, de Rui Barbosa, ―A sublimidade moral de Anchieta, histórico e
análise do processo de beatificação‖, do Cônego Manuel Vicente, ―Papel político de Anchieta na obra da
conquista portuguesa e na constituição da sociedade colonial‖, de Ferreira Viana), ―A bibliografia e a
iconografia de Anchieta e do seu tempo‖, de Capistrano de Abreu, ―Da significação nacional do
centenário Anchietano‖,de Joaquim Nabuco.
834
ALONSO, Ângela. Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na primeira
década republicana. In: Novos Estudos, CEBRAP, no. 85, São Paulo. p. 134.

376
Tendo na plateia ninguém menos do que Manuel Ferraz de Campos Sales, que
seria Presidente da República no quadriénio 1898-1902 e na época era o Presidente do
Estado de São Paulo, Prado iniciou a sua conferência dizendo que ―os cem anos que
medeiam entre a descoberta da América e a data da morte de Anchieta constituem uma
835
época decisiva na história da humanidade‖ . Ao começar o seu discurso dessa forma,
o autor deixou claro que o seu interesse não era tão somente ―fazer uma crônica da vida
do padre Anchieta‖, mas sim ―compreender como o sacerdote contribuiu para a História
da construção da civilização brasileira‖ 836. Aqui, neste trecho, o próprio Eduardo Prado
se afasta da crônica, considerada um estilo menor de narrativa, e se aproxima da
―História‖, mais uma vez grafada com letra inicial maiúscula, da ―civilização
brasileira‖. Essa pretensão à produção de uma ―história geral‖ que transcendesse às
particularidades da individualidade de um ―grande homem‖ é mais um elemento que
destaca a modernidade da narrativa do autor, mostrando que a sua relação com as
modernas filosofias da história não foi, tão somente, de rejeição. Mas o que Eduardo
Prado entendia por ―construção da civilização‖? Creio que refletir sobre esse problema é
fundamental para a compreensão da principal contribuição que o nosso autor legou à
história do pensamento social brasileiro.

Foram os bandeirantes paulistas os bravos caboclos que tiveram a coragem de


adentrar o sertão e domar bravura da natureza, que era o grande empecilho para
implantação da civilização no Brasil837.

Seguindo a trilha aberta pelas bandeiras, foram os jesuítas que enfrentando


toda a sorte de desafios e domando a braveza da natureza e do selvagem,
sobrevivendo com a coragem de quem é impulsionado pela palavra de Cristo 838.

Sete anos separam as duas citações, sendo que em ambas é possível perceber a
recorrência do mesmo argumento: a natureza foi o principal obstáculo superado pela
colonização portuguesa. Já vimos Prado mobilizar esse argumento no sétimo capítulo
desta tese, quando analisei a polêmica que ele travou com o médico positivista Pereira
Barreto. É importante deixar claro que o nosso autor não estava sendo propriamente
original ao tratar o tema da natureza americana em uma perspectiva distinta da do
idealismo romântico, mas sim se apropriando de uma longeva discussão que, desde o
século XVIII, se debruçava sobre o tema da natureza e da cultura no continente

835
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. p. 16.
836
Idem. p. 17.
837
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 32.
838
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. p. 23.

377
americano. Essa discussão foi apropriada no Brasil, o que faz com que o nosso autor
tenha se inserido em uma tradição mais ou menos delineada, à qual ele recorreu para
fundamentar a sua defesa da colonização portuguesa nos trópicos. O que estava em jogo
nessa defesa era o elogio à própria Monarquia brasileira, que era considerada por
Eduardo Prado o principal símbolo do sucesso colonial português, herança que ele
acreditava estar sendo desagregada pela República.

Desde o século XVI, a América era um dos principais temas da intelectualidade


europeia, tendo destaque, por exemplo, os textos que Thomas Morus e Montaigne
escreveram sobre o novo mundo. Para os meus interesses de análise, o texto
―Investigações filosóficas sobre os americanos‖ (1768), de autoria do filósofo francês de
Cornelius de Pauw, tem especial importância. Pauw aplicou a noção de ―degeneração‖
aos animais, às plantas e ao homem na América, inclusive aos descendentes dos
europeus. Nas palavras do autor, ―antes de serem vìtimas da crueldade dos
conquistadores, os americanos o foram do clima, da imensidão do continente que
839
desafiava a indústria humana‖ . A partir de então, a natureza tropical foi tratada de
forma distinta pelos pensadores europeus. Rousseau, por exemplo, ―fundou sua filosofia
da história a partir da premissa inversa [a de Cornelius de Pauw] ao proclamar a
superioridade do mundo natural ao seu equivalente histórico‖840. Já Buffon e
Montesquieu são exemplos da ―manutenção da imagem negativa da natureza americana
841
inaugurada por Cornelius de Pauw‖ . Pouco tempo depois, o viajante e naturalista
Alexander von Humboldt inverteu a imagem negativa da natureza tropical e do clima
americano na ciência europeia, ao mostrar seu entusiasmo pela América Tropical e pelo
Caribe, tidos até então como insalubres. Nas palavras de Roberto Ventura, ―as críticas
de Humboldt às hipóteses geológicas de Buffon, Raynal e De Pauw indicam a ruptura
842
com a imagem negativa da América veiculada pela ilustração‖ . Na biblioteca do
nosso autor estavam presentes os textos dos principais participantes dessas discussões

839
PAUW, Cornelius de. Recherches philosophiques sur les Amériains. Paris: Ed. Cherches Humanitas,
1994. p. 34.
840
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 21.
841
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 23.
842
Idem. p. 27.

378
naturalistas, o que sugere que, de alguma forma, Eduardo Prado travou contato com
esses debates843.

Estou interessado, especialmente, no eco dessas discussões no Brasil, pois


acredito que é, justamente, na apropriação desses debates naturalistas que podemos
encontrar a matriz da interpretação do Brasil que Prado legou ao ensaísmo do século
XX. Ao analisar os volumes da ―História dos principais sucessos polìticos do Império
do Brasil‖, de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, o historiador Valdei de Lopes
Araújo sugere que a obra deve ser lida na chave ―de uma história da civilização, mais do
que das guerras e conflitos‖, pois Cairu ―pretende inserir sua história, não na grande
tradição clássica da história política, mas no novo regime de uma história da
civilização‖844. As palavras do próprio Visconde de Cairu nos ajudam a melhor
compreender o seu projeto historiográfico.

A história do Brasil é menos bela que a da mãe pátria, e menos esplêndida que a
dos portugueses na Ásia; mas não é menos importante que a de qualquer delas.
Descoberto o Brasil por acaso, e por longo tempo deixado ao acaso, foi pela
indústria dos indivíduos, e pela operação das comuns leis da natureza e da
sociedade que se levantou e floresceu esse império, tão extenso como é, e tão
poderoso como algum dia virá a ser845. (Grifos Meus)

De maneira semelhante ao argumento que Prado desenvolveria mais de


cinquenta anos mais tarde, Cairu interpretou o alvorecer da civilização no Brasil na
perspectiva do engenho humano que, entre outras coisas, manipulou as ―comuns leis da
natureza‖ em favor do projeto civilizatório. A implantação da civilização cristã nos
trópicos, portanto, não seria o desdobramento espontâneo da ocupação humana desse
território e nem, tampouco, favorecida pela natureza, mas sim o produto do artificio do
colonizador. Esse argumento teve vida longa na história da historiografia brasileira,
tendo sido desenvolvido, também, entre outros, por Januário da Cunha Barbosa e por
Capistrano de Abreu. Nas palavras do secretário do IHGB, em um das primeiras sessões
do instituto:

A história da civilização brasileira começou pela conquista dos intrépidos


missionários, que tanto povos atrairão à adoração da cruz, erguida por Cabral

843
Os textos de Buffon, Raynal e De Pauw estão classificados como ―História Natural‖ no catálogo da
biblioteca de Eduardo Prado.
844
ARAUJO, Valdei Lopes de. Cairu e a emergência da consciência historiográfica no Brasil (1808-
1830). In: In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoa,
GONÇALVES, Márcia de Almeida, CONTIJO, Rebeca. Estudos de historiografia brasileira. Rio de
Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp. 75-92. p. 79.
845
Idem.

379
neste continente, ou pelo lado de ações guerreiras, na penetração de seus
emaranhados bosques, e na defesa de tão feliz quanto religiosa descoberta, contra
inimigos externos invejosos da nossa fortuna 846.

Capistrano de Abreu, em carta enviada a João Lúcio de Azevedo em 13 de


janeiro de 1922 diz que:

A mais fértil terra do mundo... aonde? Não na Amazônia, aonde raspada uma
camada de mateiro, bate-se na esterilidade. Nos outros Estados é quase
invariavelmente o mesmo. Produzimos coisas de luxo, de gozo; se nos
bloqueassem deveras, a penúria no slevaria à antropofagia. E a gente? Os
processos de Inquisição mostraram a borra-mãe, e as outras borras têm vindo
superpondo-se, e de alto a baixo é borra e mais borra847.

Já em 1889, antes mesmo da proclamação da República, Prado estava


mobilizando a tese da hostilidade natural dos trópicos. No entanto, nesse momento, o
argumento ainda não estava sendo utilizado em função do seu elogio à colonização
portuguesa, o que somente viria acontecer após as ―Conferências Anchietanas‖,
demonstrando o conteúdo político da historiografia eduardiana. Acompanhar mais de
perto a historicidade do argumento nos escritos do autor é importante para demonstrar
como foram estreitas as relações entre historiografia e crítica política no
conservadorismo de Eduardo Prado. No artigo ―Immigration‖, Prado diz que ―a
existência da nação brasileira é a melhor prova das condições favoráveis que as raças
encontraram para o seu desenvolvimento no passado e para a sua expansão no
futuro‖848. A citação parece ser, exatamente, a antítese do argumento da hostilidade
natural dos trópicos. Novamente, se formos direcionar a análise de acordo com o
princípio da performance discursiva, o que demanda o esforço de reconstrução dos
interesses envolvidos no momento da escrita, veremos que a contradição é apenas
aparente. É o próprio Eduardo Prado quem o diz:

O meu modesto trabalho tinha de ser histórico e descritivo. A sua natureza não
era especulativa e teórica. Por isso, apesar de ser eu partidário, não sem alguma
crítica tímida, não sem alguma seleção, de algumas das muitas e variadas ideias
de v. exce., não pude naquele trabalho dar desenvolvimento a certos pontos. (...)
Tratava-se de apresentar o Brasil sob o seu aspecto mais simpático. Sendo assim,
eu não podia referir, ou repetir os juízos tão severos de v. exc., ou da sociedade
central, sobre as coisas brasileiras849.

846
BARBOSA, Januário da Cunha. Discurso. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro: 1839, pp. 09-18. p. 10.
847
ABREU, Capistrano. Correspondência (Vol.1). Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: MEC, 1977. p. 234.
848
Idem. p. 130.
849
PRADO, Eduardo. Carta ao Visconde de Taunay. ―Jornal do Comércio‖. 27/10/1889.

380
O trecho foi extraído de um artigo que Eduardo Prado escreveu em resposta às
crìticas que o Visconde de Taunay fizera à sua participação no ―Le Brésil‖. Para o
Visconde, que era Presidente da Sociedade Central de Imigração, Prado fora descuidado
em ―não informar aos seus leitores europeus o esforço da sociedade central em
promover a devida instalação dos imigrantes europeus nessas nossas terras tão
tórridas‖850. A queixa do Visconde se dirige ao fato de não ter sido a sociedade por ele
dirigida a responsável pelo discurso oficial do Estado brasileiro a respeito do tema da
imigração em um evento tão importante, como foi a exposição universal de 1889. O que
me interessa nessa pequena polêmica é a resposta de Eduardo Prado, que, escrevendo
poucos dias antes do golpe militar que proclamou a República, afirmou não discordar
das considerações do Visconde de Taunay, mas ―como eu desejava atrair imigrantes
para a nossa lavoura, não poderia confirmar os maus informes (infelizmente
851
verdadeiros) feitos por autores como Buffon desde o século passado‖ . Aqui, Prado
remete, diretamente, ao naturalismo de Georges Louis Leclerc, o Conde de Bufon
(1707-1778), que, como já vimos, foi uma das principais matrizes europeias do
argumento da hostilidade natural dos trópicos. Para o nosso autor, portanto, o
argumento não era equivocado, mas sim inadequado para um texto que tinha o objetivo
de atrair novos imigrantes, o que era fundamental para a agricultura brasileira após a
abolição da escravidão.

Alguns anos depois, o argumento seria desenvolvido plenamente pelo nosso


autor, que afirmou ser ―a domesticação da violência da natureza a grande obra que
Portugal prestou à Idade Moderna‖, pois ―somente os portugueses, já devidamente
ambientados com a presença dos africanos seriam capazes de tal empreendimento‖, já
que a ―a aclimatação definitiva da planta humana europeia não era possível num país
tórrido, sem o enxerto na planta indígena, e este enxerto se robustece e frutifica na
perfeição, quando a raça imigrante encontra um meio climatérico não muito diverso
daquele da sua origem‖852. Estamos, aqui, bem próximos do argumento central da
interpretação do Brasil desenvolvida por Gilberto Freyre, que, na interpretação de
Ricardo Benzaquen de Araújo, não atribuiu ao português a ―identidade do branco
―puro‖, mas o encara ―como um personagem hìbrido, resultado de uma amálgama

850
Idem.
851
PRADO, Eduardo. Carta ao Visconde de Taunay. ―Jornal do Comércio‖. 27/10/1889.
852
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. p. 53.

381
iniciado muito antes do seu desembarque no continente americano‖853. As palavras de
Gilberte Freyre parecem confirmar essa interpretação.

[A sociedade portuguesa], indefinida entre Europa e a África. Nem


intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A influência africana
fervendo sob a europeia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação,
à religião, o sangue mouro ou negro correndo por ruma grande população
brancana quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o ar
da África, um ar quente, oleoso, amolencendo nas instituições e formas de
cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez doutrinária da Igreja
medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à
disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo 854.
(Grifos Meus)

Há na citação dois argumentos que vimos Prado desenvolvendo ao longo desta


seção: a definição da cultura germânica como ―dura‖ e a atribuição à cultura portuguesa
de uma miscigenação essencial. Esses argumentos estão intimamente relacionados nas
interpretações do Brasil desenvolvidas por Gilberto Freyre e Eduardo Prado, pois, para
ambos, entre todos os povos europeus, somente o português seria capaz de implantar a
civilização nos trópicos, o que faria da cultura lusitana o principal elemento constitutivo
da identidade nacional brasileira. Na interpretação desenvolvida pelos dois autores, a
tese da hostilidade natural dos trópicos ocupa lugar central, pois é ela quem permite o
elogio ao esforço colonial português. Já mostrei como Prado mobilizou o argumento.
Vejamos, agora, como Freyre o fez no livro ―Casa Grande Senzala‖, onde o autor
pernambucano disse que ―é certo que os portugueses triunfaram onde outros europeus
falharam: da formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos
trópicos com caracterìsticas nacionais e qualidades permanentes‖855. Mas qual seria a
exata dimensão desse sucesso português tão destacado por Gilberto Freyre?

O português conseguiu vencer as condições de clima e de solo desfavoráveis ao


estabelecimento de europeus nos trópicos como suprir a extrema penúria de
gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com mulher de cor. (..)O
português vinha encontrar na América Tropical uma terra de vida aparentemente
fácil; na verdade dificílima para quem quisesse aqui organizar qualquer forma
permanente ou adiantada de economia e de sociedade856.

O teor do argumento é exatamente o mesmo daquele que Eduardo Prado


desenvolveu nos seus escritos propriamente historiográficos: a construção de uma
―sociedade moderna‖ nos trópicos foi o produto do empreendimento colonial português,

853
ARAUJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre
nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed 34, 1994, p.43.
854
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e senzala. Rio de Janeiro: Record, 1999. pp. 02-03.
855
Idem. p. 12.
856
Idem. pp. 13-16.

382
que, domando as dificuldades impostas pelas condições naturais, foi capaz de civilizar a
natureza e o nativo e, dessa forma, construir a civilização brasileira. É claro que ao dizer
isso, eu não estou afirmando que a obra de Gilberto Freyre se resume à atualização da
interpretação da realidade nacional desenvolvida por Eduardo Prado no final do século
XIX. Ao invés disso, estou sugerindo que um dos aspectos fundamentais do argumento
que Gilberto Freyre desenvolveu no livro ―Casa Grande Senzala‖ pode ser
encontrado nos escritos de Eduardo Prado, que, em intenso diálogo com as teses
naturalistas e com a historiografia produzida dentro do IHGB, usou a valorização do
engenho colonial português para, de alguma forma, endossar as suas críticas à
República.

Nesse sentido, ao examinar o lugar que a historiografia ocupa no


conservadorismo de Eduardo Prado, a minha tentativa foi de compreender como o autor
se apropriou de um conjunto de repertórios que estavam disponíveis aos nossos letrados
no final do século XIX: a metodologia da crítica histórica sistematizada pelo
historicismo germânico, os valores filosóficos que caracterizaram as modernas filosofias
da história, em especial o iluminismo, os debates naturalistas europeus travados ao
longo do século XVIII e a historiografia desenvolvida nos quadros do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Além disso, cabe destacar que as hipóteses
apresentadas por Prado nos seus estudos históricos tiveram vida longa, pois o próprio
Gilberto Freyre diz que o nosso autor ―foi um dos principais publicistas em atuação no
857
final do século XIX‖ . Estamos diante, portanto, de um importante personagem da
história intelectual brasileira, cuja importância ultrapassa os limites dos conflitos
travados entre monarquistas e governos republicanos nos últimos anos do século XIX.

857
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. São Paulo: Global Editora, 2004. p. 178.

383
384
Conclusão

Afinal, pra que serve?

Não aprecio suficientemente as pesquisas históricas para perder meu tempo com
um morto cuja mão, se estivesse vivo, eu não me dignaria a apertar. (Jean Paul
Sartre. Náusea)

Ao iniciar esta conclusão com uma pergunta a respeito da utilidade do


conhecimento histórico para a vida, eu revisito uma discussão que se apresenta à
historiografia desde a antiguidade. Ao longo desta tese, em especial nos dois últimos
capítulos, eu me debrucei sobre o repertório historiográfico antigo, mostrando como, em
uma experiência cultural na qual as experiências humanas no tempo guardam potencial
semelhança entre si, a historiografia pode ser utilizada como uma fonte de
conhecimentos edificantes e, dessa forma, contribuir para aperfeiçoamento moral dos
homens. E na modernidade? Qual o lugar que a cultura moderna, caracterizada, entre
outras coisas, pela aceleração das transformações sociais e pela implosão da
solidariedade entre passado e presente, reservou para a ―utilidade‖ da história? Em
outras palavras: hoje, por que estudamos história? O conhecimento tem valor em si ou
precisa, de alguma maneira, se prestar ao critério da ―utilidade social‖?
Como já vimos em outros momentos deste trabalho, o historiador alemão Hans
Ulrich Gumbrecht se debruçou sobre esse problema, sugerindo que, ao esvaziar o
conteúdo pedagógico da historia magistra vitae, a cultura historiográfica moderna
atribuiu à história a possibilidade de desvelar o significado maior do processo histórico,
mostrando, assim, o sentido da marcha da trajetória humana ao longo do tempo.
Portanto, já que a modernidade unificou as experiências humanas sob o signo do
―processo histórico‖, à história, agora tratada como singular coletivo, foi atribuìda uma
racionalidade própria e compreendê-la passou a ser a função de um conhecimento
comprometido com uma série de procedimentos científicos. No entanto, nesta
conclusão, ao falar em uma ―utilidade‖ para o conhecimento histórico, eu não estou
querendo me remeter nem ao pragmatismo moralizante na historia magistra vitae e nem
ao uso filosófico delineado pela modernidade, mas sim a uma aplicação, se é que
podemos dizer assim, menos ambiciosa, algo que foi formulado pelo historiador inglês
Quentin Skinner.
Compartilho do entusiasmo de historiadores por tentar restabelecer os sistemas
de coordenadas perdidos, através dos quais pensadores antigos podem ter

385
navegado, e acredito que identificar tais sistemas de referência exóticos pode nos
ajudar a ver de modo mais claro os parâmetros pelos quais nos situamos 858.

As palavras do autor traduzem, com precisão, o tipo de utilidade que, espero,


possa ser atribuída ao meu trabalho. Se referindo, especificamente, à proposta de
estudos que aprendemos a chama de história do pensamento político, Skinner destaca
como o estudo do pensamento político de autores antigos é fundamental para a
compreensão dos valores que regulam as nossas práticas políticas presentes. Ao
escrever uma tese de doutorado sobre um dos principais representantes do pensamento
político conservador brasileiro, meu objetivo fundamental era entender o funcionamento
de uma corrente ideológica que é constitutiva da nossa cultura política nacional.
Tendo nascido como nação a partir de uma apropriação reformista do
iluminismo, através da qual, nas palavras de Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, ―o
ideal reformador fez-se presente por longo tempo, limitando-se a propor uma mudança
conduzida pelo poder oficial, em nome da utilidade comum e da felicidade púbica‖ 859, o
Brasil fez do conservadorismo moderno um dos principais elementos da sua identidade
política e jurídica. Se formos analisar os textos que delinearam o aparato jurídico da
Monarquia brasileira, como a constituição de 1822, por exemplo, já perceberemos,
segundo Paulo Mercadante, ―a presença de um pensamento intelectual eclético, que
seria a premissa para a aceitação do conservadorismo de Burke e Tocqueville que, após
os anos 1860, se tornou a base da ideologia jurìdica oficial brasileira‖ 860. Para
Mercadante, portanto, ―o prestìgio desses escritores conservadores crescera nos meios
estudantis e intelectuais. Seus livros chegavam até o interior do país, como nos revelam
vários autores, estando o debate em plena efervescência na década de 1870‖, justamente
quando Eduardo Prado iniciou a sua trajetória político/intelectual.
―Eclético‖: esse é um bom adjetivo para qualificar o pensamento conservador
moderno, pois, ainda de acordo com as considerações de Paulo Mercadante, ―o
ecletismo conservador busca equilibrar todas as escolas, delas procurando retirar o que
for de melhor e mais oportuno‖. É, exatamente, esse senso de oportunismo a chave de

858
SKINNER, Quentin. The paradoxes of political liberty. In: The tanner lectures on human values, Salt Lake
City/Cambridge: University of Utah Press/ Cambridge University Press, pp. 225-250. p. 234.
859
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. O governo de d. João: tensões entre ideias liberais e as
práticas do Antigo Regime. In: CARVALHO, José Murilo de; CAMPOS, Adriana Pereira de. Perspectiva
da cidadania no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. pp. 203-225. p. 207.
860
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
p. 211.

386
leitura que conduz a minha análise desde o início desta tese. Sem jamais ter aderido de
forma ortodoxa a nenhuma linha de pensamento, Eduardo Prado mobilizou os
repertórios antigo e moderno do pensamento político ocidental, apresentando uma
atuação eclética, que utilizou, inclusive, doutrinas rejeitadas pelo próprio
conservadorismo moderno, como o direito natural, por exemplo. Ao analisar a trajetória
político/intelectual de Eduardo Prado, eu estudei a própria história política do Brasil, me
esforçando em mostrar como, em um momento de profundas transformações
institucionais, o nosso autor nos legou o esboço de uma interpretação da nação que,
como eu demonstrei nos três últimos capítulos, teve vida longa na história do
pensamento social brasileiro. Acredito, portanto, que examinar a produção de um dos
intelectuais mais atuantes do fin de siècle brasileiro contribui para o entendimento das
representações que, desde então, foram produzidas sobre o Brasil e que, de alguma
forma, inspiram, ainda hoje, os nossos esforços de compreensão da realidade nacional.
Nesse sentido, o que o leitor leu nestas quase quatrocentas páginas foi o esforço
de um historiador do século XXI em interpretar os escritos de um pensador conservador
do século XIX. Se na prática da interpretação eu tentei reconstruir o ambiente social das
intervenções de Eduardo Prado, em busca, como diria Hans-George Gadamer, ―[da]
compreensão do texto, a partir do hábito da linguagem da época e de seu autor‖861,
acredito ser importante, também, dizer algo a respeito do pertencimento da minha
própria interpretação. Seria desnecessário dizer que há conteúdo político neste trabalho,
pois isso sempre ocorre, independente da disposição do autor em admiti-lo. Porém,
analisar o pensamento conservador brasileiro no momento da história do Brasil em que
vivo, confere a este trabalho um conteúdo político específico e incontornável.
Durante os quatro anos em que desenvolvi este trabalho, entre 2011 e 2015, a
política institucional brasileira foi abalada por uma profunda crise de representatividade,
que envolveu, entre outras coisas, a polarização dos debates políticos ao redor de
algumas pautas, como, por exemplo, os direitos civis dos homossexuais, a maioridade
penal e a influência dos valores religiosos no planejamento das políticas públicas. Após
a eleição, em 2014, dos parlamentares para a legislatura 2015-2018 do Congresso
Nacional, esses temas foram tratados em uma perspectiva que, na linguagem política
corrente, foi definida como conservadora. Podemos citar, como exemplo, a aprovação,

861
GADAMER, Hans-George. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2008. p. 357.

387
em 02 de julho de 2015, pela Câmara dos Deputados Federais, da Proposta de Ementa
Constitucional 171, que reduz a maioridade penal de dezoito para dezesseis anos. Outro
exemplo foi a apresentação, também na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei n°
6583, de 2013, chamado de ―Estatuto da Famìlia‖, que propõe a definição de famìlia
como, unicamente, ―núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma
mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes‖, o que compromete, diretamente, a segurança
jurídica dos núcleos familiares homoafetivos. Apesar de ter sido rejeitado nas instâncias
legislativas, o projeto contou com a aprovação de 62,83% das pessoas que participaram
de uma pesquisa de opinião organizada pelo próprio Congresso Nacional. Estaria, então,
a sociedade brasileira, nos últimos anos, se tornando mais conservadora ou tão somente
deixando aflorar o conservadorismo que é constitutivo da nossa cultura política desde a
fundação do paìs? É possìvel caracterizar como ―conservadores‖ os grupos sociais e
políticos que se empenham na defesa dessas pautas? Obviamente, responder a essas
inquietações não é o objetivo desta tese, mas acho que a análise que desenvolvi a
respeito do pensamento político conservador de Eduardo Prado pode nos ajudar a, pelo
menos, ensaiar algumas hipóteses e, quem sabe, contribuir para a atuação política
daqueles que, hoje, nessa segunda década do século XXI, confrontam essas bandeiras
conservadoras. Conservadoras?
Como sabemos, ao longo de sua curta vida, Eduardo Prado produziu uma
extensa obra, que vai desde crônicas políticas até a historiografia sobre a colonização
portuguesa na América. Nesse material, eu percebo a presença de valores constitutivos
dos mais diversos repertórios do pensamento político ocidental, que foram combinados
ao sabor das circunstâncias e da dinâmica da intervenção do nosso autor nas disputas
políticas do seu tempo. Por exemplo, nas suas críticas à jovem República brasileira,
Prado lançou mão dos princípios mais caros à tradição do republicanismo clássico, se
destacando como um defensor da democracia e das liberdades polìticas do ―povo
brasileiro‖. É possìvel, então, que um conservador seja, também, um libertário? Se
fôssemos responder essa pergunta tendo como parâmetro a atuação daqueles que, hoje,
no Brasil, são coloquialmente chamados de conservadores, certamente tenderíamos a
dizer que não. Porém, me parece que, infelizmente, eles não são, de fato, conservadores,
ao menos não como Eduardo Prado e as suas principais referências, como Burke e
Tocqueville. Se fossem, talvez, algumas das suas agendas não existiriam.

388
O historiador português João Pereira Coutinho é autor de um importante estudo
sobre o pensamento político conservador, que vem sendo fundamental para a análise
que apresentei nesta tese. O autor nos apresenta uma importante discussão a respeito das
diferenças entre os tipos políticos conservador e reacionário. Acredito que é essa
distinção o aspecto mais fundamental da reflexão que estou desenvolvendo aqui, nesta
conclusão. Nas palavras de Coutinho, ―o reacionário é aquele que coíbe a ação, que
visa, sempre, o retrocesso, que não admiti a violação dos seus privilégios e que
demanda por uma autoridade capaz de calar, pela violência, qualquer ameaça à ordem
vigente‖, enquanto o conservador ―é o tipo social que, mesmo fiel às tradições, entende
a necessidade do reformismo‖, além de ―zelar pela harmonia social, o que somente é
862
possìvel quando a liberdade e a dignidade humanas são preservadas‖ . Para tentar
sustentar a sua argumentação, o autor examina os escritos do filósofo francês Joseph de
Maistre (1753-1821) e do escritor irlandês Edmund Burke, que, como eu já comentei
antes, é uma das principais referências para o pensamento político de Eduardo Prado.
Tanto Maistre como Burke, ainda de acordo com as considerações de João Coutinho,
rejeitaram a Revolução Francesa, sendo que Maistre o fez negando a possibilidade da
liberdade e defendendo a opressão do movimento revolucionário, pois, nas suas
palavras, ―só o rei, o rei legìtimo, levantando do alto do seu trono o cetro de Carlos
Magno pode extinguir e desarmar os abusos revolucionários‖. Já Burke acusou os
jacobinos de ―violarem as liberdades mais fundamentais e instaurarem os despotismo
863
dos ideais filosóficos‖ . Portanto, enquanto a reivindicação central de Maistre é a
punição dos revolucionários pela restauração da autoridade real e dos privilégios da
nobreza, a de Burke é o combate ao despotismo jacobino e a instauração de um regime
de plena liberdade, sendo o conceito tratado na perspectiva do republicanismo cívico,
que opera mais no plano do ―corpo polìtico‖ do que no do ―indivìduo‖, como eu
demonstrei na primeira unidade.
Portanto, segundo esta distinção entre conservadores e reacionários, Prado,
apesar de ter militado pela restauração da Monarquia, foi um conservador, e não um
reacionário, pois a sua atuação teve sempre conteúdo libertário, seja na oposição que fez
aos governos liberais no final da década de 1870, nos relatos das suas viagens pela
América Latina, nas críticas à diplomacia dos EUA ou nos ataques aos governos

862
COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São
Paulo: Três Estrelas, 2014. p. 31.
863
Idem. p. 13.

389
republicanos. Escrevendo, em janeiro de 1890, ainda nos primeiros momentos de vida
da República brasileira, o nosso autor disse que
No Brasil, a questão hoje não está já posta entre a República e a Monarquia. A
luta é entre a liberdade e a tirania. A luta vai ser entre o exército político, servido
por seus escribas e que não quererá largar a rendosa tirania, e a sociedade civil,
que terá de reagir ou se aniquilar. A nação terá de mudar ou de devorar o
exército político, ou o exército político acabará de humilhar e de devorar a
nação864. (Grifos Meus)

Apesar de ter saído em defesa da restauração da Monarquia, Prado não


representou o regime político chefiado pelo Imperador D. Pedro II na chave da
autoridade despótica, como Joseph de Maistre fez com a Monarquia chefiada por Luís
XVI. Pelo contrário, para o nosso autor, o que qualificava a situação política derrubada
pela intervenção militar de novembro de 1889 era, justamente, o seu comprometimento
com a garantia das liberdades mais fundamentais, como aconteceu no momento da
865
extinção do regime escravocrata, quanto ―a herdeira do trono pôs fim ao cativeiro‖ .
Para Prado, portanto, a República não estava, tão somente, comprometendo a harmonia
da nação, mas sim violando as liberdades que foram garantidas ao longo dos sessenta e
sete anos em que o Brasil foi governado pela Monarquia. Como fica claro na citação, tal
como Burke fez nas suas ―Reflexões sobre a Revolução Francesa‖, o nosso autor acusa
o regime republicano de ―tiranizar a sociedade civil‖ e ―humilhar a nação‖, operando,
dessa forma, no nível do corpo político, e não no do indivíduo. Ao longo desta tese, eu
mostrei como esse procedimento pertence ao repertório do republicanismo cívico.
Ao longo da sua trajetória, portanto, Prado usou diversos repertórios, indo do
republicanismo cívico ao liberalismo, passando, também, pelo direito natural. Esses
valores foram mobilizados, sempre, em função de uma intervenção política com
conteúdo libertário e crítica à dimensão opressora do poder. O ecletismo do
conservadorismo de Eduardo Prado fica ainda mais claro quando analisamos uma breve
passagem do livro ―A Ilusão Americana‖, onde ele critica o caráter especulativo da
economia dos EUA.
O operário hoje não tem trabalho, ou quando o tem, o patrão não pode remunerar
esse trabalho com noutro tempo, embora o operário precise sempre do mesmo
dinheiro, porque o preço da vida não baixou. Sem dúvida, a questão operária é de
todos os países e o problema da riqueza e da pobreza é tão antigo como o mundo.
Todas as soluções desse problema são soluções muito relativas e provisórias866.

864
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.18.
865
Idem. p. 32.
866
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 129.

390
Para destaca, então, a ―questão operária‖ como um dos principais problemas do
mundo moderno, algo que demanda soluções que não sejam nem ―relativas‖ e nem
―provisórias‖. Ele não chega a falar em uma revolução proletária e na fundação de uma
nova ordem social, mas diz que ―as monarquias europeias preocupam-se seriamente em
melhorar a sorte dos operários. As monarquias têm todo o interesse em adiar e evitar a
grande crise do proletariado, porque as dinastias sabem que, numa grande catástrofe
social, os tronos desapareceriam‖. Para o autor, portanto, a harmonia social envolveria,
também, a justiça social e o esforço, por parte do poder público, em remediar o
sofrimento da classe trabalhadora. Não é possível dizer que o marxismo estava entre os
repertórios mobilizados por Prado, visto que a menção à ―questão operária‖ é rápida e
de importância periférica na economia do texto, apesar de os textos de Karl Marx
estarem lá, no catálogo do acervo bibliográfico do nosso autor.
O mais importante para a reflexão que estou desenvolvendo nesta conclusão é
que, se formos nos debruçar sobre o corpus do pensamento político conservador
moderno, sobre os escritos de autores como Edmund Burke, Alexis de Tocqueville e do
próprio Eduardo Prado, não veremos o elogio ao despotismo e à tirania, mas sim a
apologia das liberdades, individuais e coletivas, o que não exclui o empenho desses
autores em defender as instituições que eles consideravam ameaçadas pela
modernidade, como, por exemplo, a família e a religião. Não me parece, então, que os
grupos sociais e polìticos que hoje, no Brasil, são conceituados como ―conservadores‖
façam jus ao termo. Estudar o conservadorismo de Eduardo Prado, portanto, serviu, ao
menos para mim, como um exercício de escuta, e de compreensão, de um tipo de
pensamento político que, se por um lado, não é o que inspira as minhas intervenções no
mundo em que vivo, é, ao menos, digno de respeito, já que, de alguma forma, se assenta
em valores que acredito serem fundamentais para a vida civil, como, por exemplo, a
liberdade e o bem comum. Talvez, por isso, eu consegui chegar até aqui, ao final desta
tese. Se Prado tivesse agido como os outros, como aqueles que hoje tentam esvaziar a
agenda dos direitos sociais das minorias, provavelmente, o projeto teria sido abortado
nos primeiros esforços de pesquisa. Afinal, eu não conseguiria escrever sobre um morto
cuja mão, se estivesse vivo, não me dignaria a apertar.

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