O Conservadorismo de Eduardo Prado: A Combinação Dos Repertórios Antigo e Moderno Do Pensamento Político Ocidental (1879-1901)
O Conservadorismo de Eduardo Prado: A Combinação Dos Repertórios Antigo e Moderno Do Pensamento Político Ocidental (1879-1901)
O Conservadorismo de Eduardo Prado: A Combinação Dos Repertórios Antigo e Moderno Do Pensamento Político Ocidental (1879-1901)
Rio de Janeiro
Novembro de 2015
3
Ficha catalográfica:
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Banca Examinadora
5
Agradecimentos
Desde 2005, quando iniciei o curso de graduação, a vida se tornou bem animada,
principalmente naquilo que se refere à construção de intensos vínculos de amizade. Eu
estaria mentindo se dissesse que foram muitas as amizades edificadas. Desconfio que se
tivessem sido muitas, talvez, elas não seriam tão intensas. É impossível citar o nome de
todos, mas começo homenageando aqueles que, no espaço da sala de aula, me
emprestaram os ouvidos, na condição de alunos. Como considero o magistério um
constante exercício de formação, as aulas que ministrei nos últimos anos foram
fundamentais na construção deste trabalho. Eu confesso que, em diversas ocasiões,
utilizei minhas aulas como pretexto, e os meus alunos como cobaias, para o ensaio de
muitos dos argumentos que foram desenvolvidos nesta tese. O leitor desconhecido não
saberá reconhecer quando for o caso. Já o leitor aluno, se atento, se sentirá familiarizado
com o texto e, talvez, se considerará uma espécie de coautor. Acho justo que seja assim.
6
À Erilane, mãe do pequeno Manoel, agradeço pela parceria e paciência
incondicionais. A minha vida seria muito mais difícil, e a aventura da tese, talvez,
inviabilizada, se ela não fosse tão paciente, tão parceira. Ao pequeno Manoel, que ainda
não é capaz de entender as particularidades da vida acadêmica, eu, apenas, peço
desculpas.
7
As pessoas fariam roda para o ouvir. Um homem com uma boa
história é quase um rei. (José Eduardo Agualusa. Teoria geral do
esquecimento.)
8
9
O conservadorismo de Eduardo Prado: a combinação dos repertórios antigo e
moderno do pensamento político ocidental (1879-1901)
Resumo
O objeto de estudos desta tese de doutorado é o pensamento político de Eduardo Paulo da Silva Prado
(1860-1901), que foi um dos escritores mais atuantes no cenário intelectual brasileiro dos últimos anos do
século XIX. Tendo ganhado notoriedade pelo seu combate às instituições republicanas fundadas em
novembro de 1889, Eduardo Prado é considerado um dos principais representantes do pensamento
político conservador brasileiro. Neste estudo, eu examino a extensa produção intelectual de Eduardo
Prado, que teve inìcio em 1879, quando, nas páginas do jornal ―O Correio Paulistano‖, foi publicada a sua
primeira crônica política, e teve fim em 1901, quando o autor morreu, vítima da epidemia de febre
amarela que então assolava as principais cidades brasileiras. Ao longo desses vinte dois anos, portanto,
Prado visitou os mais diversos gêneros textuais, indo das crônicas políticas à historiografia, passando
pelas crônicas de costume, pelos relatos de viagem e pela prosa literária. Por isso, em virtude de uma
produção tão extensa, acredito que a dicotomia ―monarquia X república‖, que já foi bastante explorada
pela bibliografia especializada, não esgota a contribuição de Eduardo Prado para a história do pensamento
social brasileiro. Sendo assim, eu estou interessado, especialmente, na performance discursiva do autor,
visando mostrar como ele, nas suas práticas político/intelectuais, combinou os elementos constitutivos
dos repertórios antigo e moderno do pensamento político ocidental.
Abstract
The study object of this doctoral thesis is the political thought of Eduardo Paulo da Silva Prado (1860-
1901), who was one of the most active writers in the Brazilian intellectual scene of the last years of the
nineteenth century. Having gained notoriety for his fight against republican institutions founded in
November 1889, Eduardo Prado is considered one of the main representatives of the Brazilian
conservative political thought. In this study, I examine the extensive intellectual production of Eduardo
Prado, which began in 1879, when, in the pages of the newspaper "O Correio Paulistano", was published
his first chronic political, and ended in 1901 when the author died, victim of yellow fever epidemic which
then destroyed the main Brazilian cities. Throughout these twenty two years hence Prado circulated by
various genres, ranging from chronic policies to historiography, through the usual chronicles, the travel
accounts and literary prose. Therefore, by virtue of such an extensive production, I believe that the
dichotomy "monarchy X Republic", which was already well explored by professional literature, does not
exhaust the Eduardo Prado's contribution to the history of Brazilian social thought. So I'm interested
especially in the discursive performance of the author, aiming to show how he, in his political /
intellectual practices, combined the elements of ancient and modern repertoires of western political
thought.
10
11
Sumário
Introdução ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 13
2 – Os textos antirrepublicanos--------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 54
3.2- O lugar nos EUA no pensamento político conservador de Eduardo Prado ------------------------------------------------------- p. 99
3.3- O problema das formas de governo no livro ―A Ilusão Americana‖ -------------------------------------------------------------- p. 106
5.3- As críticas à política macroeconômica desenvolvida pelos primeiros governos republicanos --------------------------------- p. 180
12
13
Introdução
Definindo caminhos
Sempre toma a pena num momento de pressa social, ou moral, como se agarra
uma espada que rechaça ou conduz. Todos os seus livros políticos são, pois,
panfletos, ainda que não se componham de uma folha ou folha e meia de papel
repleta de veneno. Prado concebeu todos os seus livros em um momento de
urgência1. (Eça de Queirós) (Grifos Meus)
14
monarquismo de Eduardo Prado ―entravam elementos muito diversos‖, chamou atenção
para o ecletismo da atuação político/intelectual do nosso autor, destacando a
plasticidade da performance discursiva de Prado, que nos seus textos antirrepublicanos
teria utilizado elementos pertencentes a diversas tradições do pensamento político
ocidental.
4
Esses debates se tornaram especialmente vigorosos no final dos anos 1960, quando Quentin Skinner
publicou, na revista ―History and Theory”, o seu ensaio metodológico intitulado “Meaning and
understanding in the history of ideas”. Nesse texto, o autor dialogava com os estudos de Peter Laslett,
John Pocock e John Dun, estabelecendo as propostas norteadoras do contextualismo discursivo que,
posteriormente, se tornariam emblemáticos da ―Escola de Cambridge do pensamento polìtico‖.
15
se levarmos em consideração a natureza da documentação examinada. Como o leitor
verá nas próximas páginas, Prado estreou no cenário político/intelectual brasileiro em
1879, quando foi publicada, nas páginas do jornal ―Correio Paulistano‖, que na época
era o periódico oficial do Partido Conservador paulista, a sua primeira crônica política.
A partir desse momento, até o ano de 1901, quando ele morreu vitimado pela febre
amarela, o nosso autor se aventurou pela prosa literária, escreveu crônicas de costumes,
relatos de viagem e textos sobre a história da colonização portuguesa na América,
material que constitui uma extensa produção que lhe permitiu ser reconhecido como um
dos principais representantes da inteligência brasileira da época. Não à toa, ele foi um
dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras e sócio do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tendo sido consagrado pelos dois mais importantes
grêmios literários em funcionamento no Brasil na transição do século XIX para o século
XX. Nesta tese, eu examino essa grande produção, abarcando os textos de juventude até
os escritos historiográficos, nos quais Prado desenvolveu uma intepretação do Brasil
que teve vinda longa na história da historiografia brasileira. O meu objetivo principal é
mostrar como o autor combinou os valores constitutivos dos repertórios antigo e
moderno do pensamento político ocidental.
16
os textos possibilitam é a análise controlada e, acima de tudo, limitada, das
performances discursivas do autor examinado.
Não podemos supor, então, que Eduardo Prado se comportou da mesma maneira
nas páginas do grande e poderoso ―Correio Paulistano‖, do pequeno e efêmero jornal
estudantil ―A Comédia‖, do importante jornal carioca ―Gazeta de Notìcias‖, da ―Revista
de Portugal‖ e da ―Revista Moderna‖. Em cada um desses lugares, ele agiu de forma
distinta, tentando adaptar seu texto às demandas editoriais específicas, ao gosto de um
público específico e, obviamente, a uma situação histórica específica. Por isso, tive a
preocupação de analisar os textos segundo a lógica de seus respectivos meios. Sendo
assim, de acordo com as particularidades dos documentos que analiso, o contextualismo
discursivo proposto pela Escola de Cambridge, em especial pelas reflexões teóricas de
Quentin Skinner, constitui a arquitetura teórica deste trabalho.
Ao longo dos anos 1970, no espaço acadêmico inglês, autores como Quentin
Skinner, John Pocock e John Dunn delinearam aquilo que passou a ser conhecido como
a ―Escola de Cambridge‖ de história do pensamento polìtico. Podendo ser pensada
como uma metodologia da história intelectual, a proposta analítica dos autores de
Cambridge sugere que a compreensão do significado dos textos políticos produzidos no
passado só é possível mediante a reconstituição dos contextos linguísticos e normativos
em que tais textos foram concebidos. Para Pocock, o historiador do pensamento político
deve buscar “modos de discurso estáveis o suficiente para estar disponíveis ao uso de
mais de um locutor e para apresentar o caráter de um jogo definido por uma estrutura
de regras para mais de um jogador”5. Esta abordagem preza pelo embate discursivo,
pela relação dialógica desenvolvida entre escritores contemporâneos. O autor chama
esses ―modos de discurso estáveis‖ de langue, que, em outra parte do texto, ele define
como ―modos de enfrentar essas questões, comum a vários autores mais ou menos
contemporâneos‖. Nesse sentido, o que o analista deve fazer é, nas palavras de Skinner,
―compreender uma ideia ou teoria no interior do contexto em que foram produzidas‖ 6.
5
POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Ed USP, 2003. p. 41.
6
SKINNER, Quenty. Meanin and undhestanding in the history of ideas. In TULLY, James. Meanin and
Context: Quentin Skinner and his cristics. New Jersey: Princenton University Press, 2003. pp. 29-78. p.
30.
17
Ainda que existam variações que distinguem as propostas desses autores, que
costumam ser definidos como os ―fundadores da Escola de Cambridge da história do
pensamento polìtico‖, há elementos metodológicos comuns que nos permitem tratá-los
no mesmo horizonte teórico, como, por exemplo, a filiação deles à filosofia analítica de
Wittgenstein, para quem a realidade material não precede a linguagem, sendo, portanto,
materialidade social e produção linguística fenômenos coetâneos e indistinguíveis, e à
história das ideias proposta por Collingwood. Por isso, a máxima wittgensteiniana de
que ―as palavras são atos‖ e a metodologia collingwoodiana, segundo a qual ―toda
história é uma história do pensamento, de pensamentos que se materializam nos
documentos que herdamos do passado‖7, podem ser consideradas constitutivas da base
sobre a qual se assenta o edifício teórico dos historiadores de Cambridge e, de alguma
maneira, a inspiração mais elementar da abordagem que desenvolvo nesta tese. Sendo
assim, na esteira das considerações de Wittgenstein e Collingwood, John Pocock e John
Dunn foram os primeiros a propor um diálogo mais intenso entre os historiadores do
pensamento político e os filósofos políticos. Nas palavras de Dunn, ―tanto a
especificidade histórica quanto a sofisticação filosófica serão mais bem alcançadas se
ambas forem perseguidas em conjunto‖8. Esta combinação entre os métodos da história
do pensamento político e da filosofia política permite, segundo os autores, fazer da
história do pensamento político uma atividade mais reflexiva e, da teoria política, uma
atividade mais histórica. Essa sugestão me parece ser bastante adequada para a minha
proposta de análise nesta tese, na medida em que estou interessado em compreender
como Eduardo Prado atualizou, nas suas práticas discursivas, os repertórios do
pensamento político ocidental com os quais ele teve contato ao longo da sua trajetória.
Não estou querendo dizer, com isso, que o nosso autor estava interessado em discutir
filosofia política, mas sim que ele tinha, no seu arsenal conceitual, elementos filosóficos
que inspiraram a sua participação nos conflitos políticos que agitaram a história do
Brasil nas últimas décadas do século XIX.
7
COLLINGWOOD, Robin George. The Idea of History. Londres: Cambridge University press: 1946, p.
63.
8
DUNN, John. ―The identity of the history of ideas‖. In: Political obligation in historical context: essays
in political theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1980. p. 14.
18
respectivos cenários de produção. Por isso, a minha investigação é formada dois
procedimentos distintos e complementares entre si: a reconstrução da biografia de
Eduardo Prado, o que demanda o estudo das condições sociais e políticas pelas quais o
nosso autor circulou naquele final de século XIX, e o exame dos seus textos a partir das
tradições de pensamento com as quais ele travou contato ao longo da sua vida. O tema
do antirrepublicanismo, por exemplo, é um dos mais conhecidos da trajetória de Prado,
sendo, por isso, um assunto incontornável para todo estudioso interessado na vida e na
obra desse personagem. Porém, acredito que o esforço do nosso autor em desestabilizar
a jovem república brasileira não nos autoriza a defini-lo, de forma mais apressada, como
um antirrepublicano. Antes é necessário problematizar como Prado tratou as concepções
de ―República‖, ―Liberdade‖ e ―Monarquia‖.
Ao examinar os textos que Eduardo Prado produziu entre 1889 e 1895, no calor
dos conflitos que ele travou com as autoridades republicanas, percebo que ele estava
municiado do repertório da filosofia política antiga, principalmente naquilo que se
refere ao tratamento que Aristóteles deu à ideia de ―República‖, tema que, na
modernidade, seria retomado por pensadores como Rousseau, Montesquieu e Hannah
Arendt. Para esses autores, o que definia um regime político como republicano não era a
forma institucional do governo, mas sim a garantia de que os homens seriam livres, as
leis respeitadas e o bem comum garantido pelo equilíbrio das instituições. Dessa
maneira, o conceito ―República‖, se tratado na perspectiva do pensamento político
antigo, não é incompatível com o regime político monárquico. Por isso, Eduardo Prado,
que mais de uma vez definiu a República implantada pelo golpe militar de novembro de
1889 como ―tirânica‖ e a Monarquia chefiada por D. Pedro II entre 1840 e 1889 como
―uma verdadeira república‖, pode ser definido, acredito, como um monarquista
republicano. No entanto, também é possível defini-lo como ―antirrepublicano‖, desde
que tenhamos em tivermos em vista certa concepção moderna de República, que
somente após a independência dos EUA passou a ser tratada como a antítese da
Monarquia.
19
compreensão a respeito da circulação e do uso dos valores constitutivos do repertório
político ocidental na cena político/intelectual Brasileira dos últimos anos do século
XIX.
Naquilo que se refere ao exame do uso que Prado fez dos diferentes repertórios
do pensamento político ocidental, um documento específico é imprescindível para esta
pesquisa: é o ―Catálogo da Biblioteca de Eduardo Prado‖, que foi organizado pelo
livreiro Alfred Gazeau e publicado em 1916. De acordo com o catálogo, no momento da
sua morte, Prado tinha, aproximadamente, 14.000 volumes no seu acervo, que são
classificados pelo livreiro em diversas categorias, tais como agricultura, almanaques,
jurisprudência, religião, história e polìtica. Segundo Gazeau, ―por motivos
desconhecidos‖, a maior parte desse acervo foi parar no jockey club de Buenos Aires,
onde foi destruída por um incêndio que aconteceu em 1953. O mais importante nesse
material, para mim, é o cuidado que o livreiro teve de especificar as edições dos títulos
que faziam parte do acervo, o que me permite ter alguma noção a respeito dos interesses
bibliográficos de Eduardo Prado. Eu tenho a clareza de que a presença, por si só, de um
determinado livro no acervo do nosso autor não significa, necessariamente, que ele
tenha lido o texto e, tampouco, o utilizado. Porém, quando somadas à análise dos textos
escritos por Prado, as informações contidas no catálogo servem como um importante
complemento, já que podem validar, ou não, algumas suspeitas. Em outras palavras:
escrevendo no calor dos conflitos do seu tempo, Eduardo Prado estava mais preocupado
em intervir nessas disputas do que em elaborar debates conceituais mais sofisticados.
Por isso, ele não agiu como um teórico da política e quase não se preocupou em
explicitar as suas referências. No entanto, nas franjas dessas intervenções, é possível
identificar a mobilização de alguns elementos pertencentes aos repertórios antigo e
moderno do pensamento político ocidental. Ao confrontar os escritos de Eduardo Prado
com o catálogo da sua biblioteca, eu acredito ter sido capaz de mapear as principais
referências do pensamento político do nosso autor. O leitor dirá se a empreitada foi bem
sucedida. Espero que eu tenha conseguido ser, pelo menos, convincente.
20
responsáveis por delinear o lugar de Eduardo Prado na história do pensamento social e
político brasileiro. A primeira biografia da qual tenho notícia já apresenta o nosso autor
como um monarquista convicto, católico, conservador, ultramontano e inimigo
inveterado da República militar. Trata-se do artigo ―Monarquismo de Eduardo Prado‖,
escrito por Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, e publicado
em 13 de setembro de 1901 no ―Comércio de São Paulo‖, folha que havia sido
propriedade de Eduardo Prado e um dos principais canais dos seus ataques à República.
Nesse trabalho, Afonso Celso define o nosso personagem como um ―monarquista que
não titubeou no ataque à tirania que entre nós atendia pelo nome de República‖ 9. A
intepretação do Visconde de Outro Prado foi retomada pelos autores que,
posteriormente, se dedicaram ao tema. O Padre Severiano Rezende, por exemplo, que,
em 1908, escreveu uma série de artigos para o jornal ―Diário de São Paulo‖ sobre a vida
religiosa de Eduardo Prado, disse que
biografia desse moço rico, que morreu rico e que sempre parecia mais
preocupado com o bom-gosto do que com o bom senso (...) Na vida de Eduardo
encontra-se o Brasil. Nela se revelou uma consciência sensível ao destino
nacional e um modo corajoso e profundo de ver o que aconteceu, o que acontecia
e o que ia acontecer(...) Esse era Eduardo Prado, o anjo do Brasil 13.
9
―Comércio de São Paulo‖. 01 de setembro de 1901.
10
―Diário de Notìcias‖. 23 de outubro de 1908.
11
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed Cetro, 1960.
12
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967.
13
Idem. p.4.
21
Não é diferente a caracterização que saiu da pena de Sebastião Pagano, que
definiu Eduardo Prado como ―uma das mais superiores inteligências que já
alvoreceram no Brasil; Eduardo Prado foi o baluarte do bom senso que diante da
insensatez republicana lutou em defesa das perenes tradições da monarquia católica‖14.
Esses dois autores produziram um sólido trabalho de mapeamento da documentação e,
por isso, a leitura das referidas biografias é obrigatória para qualquer pesquisador
interessado em estudar a vida e a obra de Eduardo Prado. Esses estudos, portanto,
definiram a perspectiva interpretativa através da qual a trajetória política de Eduardo
Prado vem sendo tratada por estudos mais recentes.
Examinar com alguma atenção o pensamento político conservador moderno é
fundamental para a compreensão das intervenções discursivas de Eduardo Prado na
cena intelectual brasileira finissecular. Por isso, neste trabalho, eu problematizo a ideia,
já bastante veiculada pela bibliografia especializada, de que Prado fora um escritor
monarquista e conservador, o que não quer dizer que eu negue essa afirmação. Para
mim, portanto, o monarquismo conservador de Eduardo Prado é o ponto de chegada, e
não o de partida, pois o que estou propondo é, exatamente, a problematização do
conservadorismo de Eduardo Prado, buscando compreender como o autor se apropriou,
ao longo da sua trajetória, dos valores conservadores. Do final dos anos 1870 a meados
da década 1880, Prado ainda não era um defensor aguerrido da Monarquia e mostrou-se
um conservador bem pouco ortodoxo, ao mobilizar, por exemplo, os valores
pertencentes à doutrina do direito natural, que é rejeitada pelo conservadorismo
moderno. Eduardo Prado, então, ao longo dos vinte e dois anos de sua vida pública, se
tornou conservador e monarquista, na esteira das transformações institucionais que
marcaram a história política do Brasil nesse período e à luz do seu contato com os mais
diversos repertórios do pensamento político ocidental. Examinar essa formação é um
dos principais objetivos centrais desta tese.
Segundo Karl Mannheim, as linhas mestras do conservadorismo moderno foram
delineadas entre o século XVIII e o século XIX, quando autores como Edmund Burke e
Alexis de Tocqueville, ambos citados no catálogo da biblioteca de Eduardo Prado,
rejeitaram o conteúdo da filosofia do direito natural, pois
os conservadores voltam suas críticas aos conceitos de estado de natureza do
contrato social, de direitos universais do homem. Nos seus aspectos
metodológicos, o pensamento liberal-burguês é atacado em várias frentes: ao
racionalismo daquele pensamento, os conservadores opõem os de história, vida e
14
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967.
22
nação como os conceitos fundamentais para organizar a experiência social; à
tendência dedutiva da escola baseada no direito natural, eles contrapõem a
irracionalidade da realidade15.
15
MANNHEIM, Karl. Conservative thought. Londes: ED P&C, 1987. p. 32.
16
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 45.
23
de 1830 e 1850, quando essa ideologia ganhou a forma de um modelo institucional,
conformou um tipo particular de conservadorismo liberal, que parte de um determinado
diagnóstico dito realista ou sociológico da sociedade brasileira, considerada ainda na
menoridade devido aos males de sua formação social‖17. Essa conjunção entre o
conservadorismo e o monarquismo, no Brasil, deu origem, ainda de acordo com as
considerações de Cristian Edward Linch, à noção de que a sociedade brasileira ―vivia
um tipo de menoridade social, o que justifica a ação tutelar de um Estado relativamente
autônomo da sociedade, incumbido de fundar a ordem nacional de cima para baixo e, a
partir dela, promover reformas efetivas, mas seguras, no sentido de veicular o progresso
nacional‖. Por isso, diz o autor, ―o tema das instituições polìticas ocupa o primeiro
plano das preocupações dos conservadores brasileiros‖. Cristian Edward Linch
concentra a sua análise nos escritos dos fundadores da Monarquia brasileira, como, por
exemplo, o Marquês de Caravelas (1768-1836) e o Visconde de Cachoeiras (1770-
1840) e, por isso, não chega a abordar o conservadorismo brasileiro na segunda metade
do século XIX, o que faz com que o pensamento político de Eduardo Prado não tenha
sido contemplado pela sua pesquisa. Porém, ainda assim, eu identifico, nos escritos do
nosso autor, a mesma preocupação com as instituições políticas, o mesmo realismo
sociológico e a mesma importância atribuída ao papel tutelar do Estado que podem ser
encontrados nos textos dos primeiros conservadores brasileiros.
Entre os principais valores conservadores, segundo os estudos de autores como
Karl Mannheim, Robert Nisbet e João Pereira Coutinho, podemos destacar a definição
da perspectiva sociológica empírica como a melhor forma de interpretar a realidade e
atuar politicamente nela e o esforço em defender as tradições do potencial destruidor da
velocidade da temporalidade moderna. Ao longo da sua trajetória, Prado fez uso desses
valores, quando, por exemplo, interpretou a proclamação da República brasileira à luz
das influências da ―retórica bacharelesca‖ junto aos oficiais do Exército e dos efeitos da
temporalidade moderna nas tradições nacionais. Para o nosso autor, desde os anos 1870,
em virtude as ascendência de Benjamin Constant (1836-1891) sobre os cadetes da
Escola Militar da Praia Vermelha, os oficiais do Exército estavam, cada vez mais, se
dedicando à abstração das discussões filosóficas, em detrimento da dimensão prática da
profissão das armas. Ao formular a sua crítica dessa forma, Prado mobilizou valores
17
EDWARD, Cristian. Conservadorismo e monarquismo no pensamento político brasileiro. In: NUNES,
Gabriela; BOTELHO, André. Revisão do pensamento conservador: ideias e política no Brasil. São
Paulo: Ed. Hucitec, 2010. pp. 25-51. p. 26.
24
constitutivos de uma tradição filosófica que, em última instância, nos remete a
Aristóteles, especialmente à noção de phronesis, que é definida pelo filósofo grego
como uma espécie de saber ético/político de natureza prática.
Por outro lado, a filiação de Eduardo Prado ao pensamento filosófico clássico
não o impediu de, no seu esforço de interpretação da conjuntura política que deu origem
à proclamação da República brasileira, mobilizar, também, valores modernos. Entre
esses valores, destaco a noção de ―tempo acelerado‖, que foi utilizada pelo autor para
sugerir que o nascimento da República foi, em alguma medida, o resultado do desapego
das novas gerações pelas tradições mais valiosas da nacionalidade brasileira. Para
Prado, portanto, a intervenção militar de novembro de 1889 era o resultado da
aceleração dos ritmos das transformações da sociedade brasileira, o que implodiu o
vínculo de solidariedade entre passado e presente, fazendo com que o futuro da nação
fosse uma incógnita. Segundo o nosso autor, o novo regime, em algum momento futuro,
poderia ser derrubado pelo mesmo ritmo temporal desagregador que lhe permitiu
nascer. Dessa forma, Prado, na sua análise da proclamação da República, combinou
elementos analíticos do repertório conceitual antigo e moderno, em uma atuação
político/intelectual eclética o suficiente para permitir a convivência de diferentes
tradições do pensamento político ocidental.
Os nove capítulos que constituem este trabalho estão organizados em três
unidades, sendo cada uma delas composta por três capítulos. Na primeira unidade, eu
examino o uso que Eduardo Prado fez do da noção ―liberdade‖, mostrando como ele
combinou o repertório do republicanismo cívico latino com o do liberalismo, o que
evidencia como na prática discursiva do nosso autor não são claros os limites que
separam a liberdade civil antiga da liberdade individual moderna. Na segunda unidade,
eu analiso como Prado tratou o problema da dicotomia ―público X privado‖ através da
combinação de valores antigos, como a vita activa republicana, e modernos, como o
privatismo doméstico. Já os capítulos da terceira unidade, diferente do que acontece
antes, não estão vinculados por um eixo temático único, estando voltados ao exame dos
elementos que me parecem ser os mais importantes do conservadorismo de Eduardo
Prado, como, por exemplo, o empirismo político/intelectual, a defesa das tradições e o
elogio à ação colonial portuguesa nos trópicos.
25
26
Unidade I
27
Prólogo
28
combinou essas duas concepções de liberdade, mostrando que as fronteiras que separam
os repertórios conceituais antigo e moderno não são tão rígidas, como sugeriram alguns
autores22. Pretendo demonstrar que, a despeito das diferenças, a liberdade civil e a
liberdade liberal não são excludentes entre si, podendo mesmo ser combinadas nos
escritos de um mesmo autor, como podemos perceber nos textos de Eduardo Prado.
Essa combinação mostra que o vocabulário político mobilizado pelo personagem
estudado nesta tese foi marcada pela plasticidade de um letrado que tinha em seu
repertório elementos dos vocabulários políticos antigo e moderno, sendo as respectivas
conjunturas de atuação fundamentais para a definição dos seus lances discursivos.
O primeiro trecho que serve como epígrafe deste prólogo foi escrito por Henri-
Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), em 1815. Já o segundo é muito mais
antigo, tendo saído da pena de Salústio (86 a.c-34 a.c), em 54 a.c. O importante é que,
cada um a seu modo, tanto Benjamin Constant como Salústio, tentaram definir o
conceito de liberdade, sendo, portanto, representantes, respectivamente, do liberalismo e
da tradição cívica romana. Examinar com mais cuidado as especificidades de cada uma
dessas definições é fundamental para a compreensão do conservadorismo de Eduardo
Prado.
29
Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por
oposição os impedimentos externos ao movimento) e não se aplica menos às
criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque de tudo o que
estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de
certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo
externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além24. (Grifos Meus)
Formulação semelhante pode ser encontrada no livro ―On Liberty‖, escrito por
Stuart Mill e publicado em 1859. Nesse texto, o filósofo inglês não abordou diretamente
o problema da liberdade individual, mas sim o da liberdade civil, principalmente
naquilo que se refere aos instrumentos legítimos através dos quais a sociedade pode
cercear a liberdade dos indivíduos.
24
SKINNER (APUD), (op cit). p. 126.
25
MILL, John Stuart. On Liberty. (Ed.) Alan Ryan. Mill: The Spirit of the Age, On Liberty, the Subjection
of Women. London & New York: Norton. 41-131. p. 58.
26
Sobre a discussão a respeito da concepção negativa de liberdade típica do liberalismo moderno, destaco
o livro BERLIN, Isaiah. Freedom and its Betrayal: Six Enemies of Human Liberty. (Ed.) Henry Hardy.
London: Pimlico, 1975.
27
SKINNER, Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 45.
30
Quando Lívio fala, por contraste, dos mecanismos pelos quais Estados livres
perdem sua liberdade, ele invariavelmente iguala o perigo envolvido com o da
queda na escravidão. Seus livros iniciais utilizam terminologia legal padrão para
explicar a ideia de servidão pública, descrevendo comunidades sem liberdade
como vivendo in poteste, dentro do poder ou sob o domínio de uma outra nação
ou Estado28.
28
SKINNER (op cit). p. 46.
29
Outros autores, como, por exemplo, John Pocock e Newton Bignoto destacam a importância do
humanismo cívico no debate político inglês ao longo do século XVII. Para esses autores, os escritos de
James Harrington foram fundamentais para esse debate na medida em que introduziram a ciência política
maquiavélica no cenário intelectual britânico. Para Pocock, o ―Oceana”, que é o principal texto de
Harrington, ―é uma revisão importante da teoria polìtica inglesa à luz dos conceitos tirados do humanismo
cívico e do republicanismo de Maquiavel‖, p. 388. Já para Bignoto, ―Um outro ponto importante da
leitura que Harrington fazia de Maquiavel é a adoção do modelo da República armada. Assim como para
o humanismo cívico italiano, e muito particularmente para o secretário florentino, para Harrington,
somente um povo armado e que se ocupa das coisas da guerra como de seus próprios interesses pode
pretender ser livre.‖ p. 184.
30
Idem. p. 55.
31
moderno31. É, exatamente, a combinação entre as concepções antiga e moderna de
liberdade o fio condutor da análise que eu desenvolvo nesta unidade. A combinação
entre esses dois tipos de liberdade é fundamental para os escritores que, entre os séculos
XVIII e XIX, delinearam o pensamento conservador moderno. Ao criticarem, por
exemplo, a Revolução Francesa, autores como Edmund Burke e Alexis de Tocqueville
examinaram o conceito de liberdade defendido pelos pensadores adeptos da filosofia do
direito natural e desenvolveram uma forma alternativa de tratar o assunto. Analisar com
cuidado esse tratamento conservador do problema da liberdade é fundamental para
compreensão do pensamento político de Eduardo Prado.
Ainda que jamais tenha discutido conceitualmente essas questões, o nosso autor
mobilizou as concepções civil e liberal de liberdade ao longo de sua trajetória,
combinando esses repertórios ao sabor das circunstâncias. Consigo identificar três
momentos nos quais ele utilizou de forma mais intensa o conceito ―liberdade‖ nas suas
intervenções político/intelectuais. Por isso, esta unidade está dividida em três capítulos,
sendo cada um deles dedicado a um desses momentos: no primeiro capítulo, eu examino
alguns textos de juventude de Eduardo Prado, principalmente aqueles que foram
escritos no final da década de 1870, quando ele redigia crônicas políticas para o jornal
―Correio Paulistano‖, que na época era um dos principais órgãos da imprensa paulista.
No segundo capítulo, eu analiso os textos antirrepublicanos que foram escritos e
publicados no ano de 1897, quando Prado se envolveu pessoalmente na discussão a
respeito da ―questão do habeas corpus dos monarquistas‖, que foi um dos principais
episódios do conflito entre os monarquistas inconformados e as autoridades
republicanas. No terceiro capítulo, estou interessado nos textos nos quais o nosso autor
tentou representar o Brasil através do contraponto do republicanismo americano, o que
aconteceu, especialmente, no primeiro volume das ―Viagens‖ e no livro ―A Ilusão
Americana‖.
31
Idem. p. 47.
32
Capítulo 1
Que não pense o sr João Batista Pereira que estamos aqui para fazer arruaça
contra a ordem pública. O que desejamos é a liberdade para definir por nós
mesmos os rumos de nossa atuação, liberdade que não pode ser cerceada por
quem quer que seja. E que também não pense o sr Batista Pereira e o seu séquito
liberal que nos contentamos com as simples garantias jurídicas de ir e vir, isso é
pouco para essa mocidade. Queremos mesmo as liberdades e garantias plenas de
ter opinião e não mais viver sob a situação de opressão que infelizmente amarga
a nossa amada província32. (Eduardo Prado) (Grifos Meus)
32
―O Constitucional‖. 20 de outubro de 1878.
33
―Correio Paulistano‖. 13 de outubro 1878.
34
A história do jornal ―Correio Paulistano‖ é emblemática do cenário polìtico/partidário da Monarquia
brasileira, que durante a maior parte da existência desse regime político foi marcado pelos conflitos entre
os Partidos Liberal e Conservador. O referido periódico foi fundado em 1854 por Roberto Azevedo
Marques, com o compromisso inicial de manter independência em relação aos grandes partidos políticos.
Apesar da promessa de neutralidade partidária, sob aspecto algum o ―Correio Paulistano‖ ficou
indiferente às disputas protagonizadas por conservadores, liberais e republicanos, características das
últimas décadas de vida da Monarquia brasileira. Durante seus primeiros vinte anos de existência, o
33
O editorial de ontem da folha acadêmica ―O Constitucional‖ deu mais uma prova
do enorme talento e patriotismo dos jovens reunidos do Clube Acadêmico
Constitucional. O artigo editorial, perfeitamente escrito, defende a monarquia
como a única forma de governo capaz de felicitar o país; profliga a mudança da
situação e considera-a justamente como comprometedora da estabilidade da
monarquia e de nossas instituições35.
Eduardo, realmente, não estava ainda vinculado a uma posição política. Havia
em sua família, monarquistas, republicanos e alheios aos interesses políticos. Seu
pai não fora político e sua mãe era simpatizante do regime monárquico, ficando
apenas nas opiniões ocasionais ou na evocação de certos acontecimentos. E, nas
discussões políticas em casa, Eduardo não tomava parte. Não dava razão ao seu
irmão, conselheiro do Império, nem ao outro, deputado republicano. Suas
Correio Paulistano foi claramente republicano, fato que mudou após janeiro de 1875, quando o referido
jornal passou a ser controlado pelo Partido Liberal, o que gerou a insatisfação de alguns republicanos que,
tais como Prudente de Morais e Campos Salles, fundaram a ―Provìncia de São Paulo‖, que se tornou a
principal rival do ―Correio Paulistano‖. No dia 04 de dezembro de 1877 aconteceu mais uma mudança no
perfil polìtico/editorial do ―Correio Paulistano‖; o jornal que em seus primórdios fora republicano,
passara, repentina e bruscamente, para as fileiras conservadoras. Sobre a história político/editorial do
―Correio Paulistano‖, recomendo a leitura do livro de Lillia Schwarz. Retrato em Branco e Negro:
jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
35
Idem. 20 de outubro de 1878.
36
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 5.
34
inclinações deixavam sempre a política, muito embora atentamente observasse o
desenvolver dos acontecimentos37.
37
Idem. p. 32.
38
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed Cetro, 1960, pp. 14-15.
35
Ao formular a advertência nestes termos, Eduardo Prado parece afirmar que as
garantias jurídicas poderiam muito bem ser burladas pelo poder opressor, já que a
constituição vigente no momento definia a liberdade como o direito fundamental do
39
cidadão brasileiro ―de ir e vir sem constrangimentos de qualquer natureza‖ . Nesse
sentido, no diagnóstico de Eduardo Prado, a inspiração liberal da constituição de 1824
possibilitava ao governo garantir o direito à livre movimentação sem, contudo, instaurar
um verdadeiro regime de liberdades plenas. Acredito, então, que a partir das palavras de
Eduardo Prado seja possível inferir a existência da reivindicação de uma liberdade de
alcance mais amplo, uma reivindicação na qual a liberdade não é pensada apenas como
o livre trânsito. Para ilustrar a matriz conceitual do discurso de Eduardo Prado, cito um
trecho escrito por John Milton (1608-1674), que foi um importante representante do
republicanismo cìvico inglês, um ―teórico neorromano‖, nas palavras de Quentin
Skinner.
É certo que somente podem se dizer homens livres aqueles que vivem em
nações livres e que têm o poder em sim mesmos de remover ou abolir qualquer
governo supremo que lhes reduza à condição de servidão, ainda que esse
governante supremo os agrade com uma liberdade ridícula e de fachada, própria
para burlar bebês40. (Grifos Meus)
36
contrariamente à natureza, sujeito ao domìnio de outro‖. Na interpretação do historiador
inglês, essa forma de tratar o direito civil conduziu a uma noção de liberdade que,
mesmo não estando explícita no texto do código romano, define como livre o ser
humano ―que não está sob o domìnio de mais ninguém, mas é sui iuris, capaz de agir
em seu próprio direito. Do mesmo modo segue-se que carecer de liberdade pessoal
significa não ser sui iuris, mas ao contrário, estar sob o poder ou sujeito à vontade de
outra pessoa‖41.
Por outro lado, na segunda epígrafe deste capítulo, que está separada da primeira
por apenas sete dias, Eduardo Prado acusa o governo de Batista Pereira de perseguir o
estudante Magalhães Castro, que também era um dos redatores do ―O Constitucional‖,
ao demiti-lo do cargo de amanuense da Assembleia Provincial, em represália à sua
participação no manifesto organizado pelo Clube Acadêmico Constitucional. Para
Eduardo Prado, a demissão foi motivada por questões políticas e demonstrava que
Magalhães Castro não podia circular livremente e participar de uma manifestação
acadêmica sem sofrer punições administrativas. Ao evocar os governos dos
conservadores Joaquim Manoel Gonçalves de Andrade e Antônio Aguiar Barros, que
governaram a Província de São Paulo entre janeiro e fevereiro de 1878, Prado afirmou
41
SKINNER, Quentin. Visions of Politics. 3 vol. Cambridge: Cambridge University Press: 2002, pp. 22-
23.
37
que esses Presidentes de fato instauraram em São Paulo um regime de plenas liberdades
na medida em que não impuseram obstáculos à livre movimentação de seus adversários.
Diferente do que fez no discurso de 20 de outubro, o nosso autor definiu o estatuto da
liberdade com base apenas no direito à livre circulação, no melhor estilo liberal.
Também é possível comparar a argumentação desenvolvida por Prado na segunda
epígrafe com a teoria política de outro pensador envolvido nos debates políticos
ingleses do século XVII, Thomas Hobbes:
Mas sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer coisa que
não seja um corpo, há um abuso de linguagem; porque o que não se encontra
sujeito ao movimento não se encontra sujeito a impedimentos. Portanto, quando
se diz, por exemplo, que o caminho está livre, não se está indicando qualquer
liberdade do caminho, e sim daqueles que por ele caminham sem parar 42.
Por mais que a teoria política moderna, desde o século XIX, proponha a
existência de diferenças algo nítidas entre as liberdades civil e liberal, os textos de
Eduardo Prado, um escritor engajado nos conflitos políticos do seu tempo, demonstram
que na prática discursiva essas diferenças não são facilmente perceptíveis, o que
permitiu a combinação entre os dois repertórios. Com isso, não desejo afirmar que
Prado se valeu conscientemente dos vocabulários cívico e liberal, mas tão somente que
colocou em prática valores com os quais travou contato ao longo da sua formação.
Examino com mais cuidado a formação intelectual de Eduardo Prado ao longo desta
tese, onde discuto, também, a relação do autor com os sistemas filosóficos modernos,
como, por exemplo, o liberalismo e o positivismo.
42
HOBBES, Thomas. O leviatã. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1996, p. 146.
43
SKINNER (op cit). Hobbes e a Liberdade Republicana, p. 145.
38
Parece que quando o assunto em pauta é o governo dos seus aliados, a liberdade
liberal é o bastante para Eduardo Prado. Porém, quando se trata do governo dos seus
adversários, o nosso personagem é mais exigente e se apropria de uma noção antiga de
liberdade bastante próxima do repertório do direito civil romano. A combinação entre as
perspectivas liberal e cívica de liberdade pode ser identificada ainda em outras partes
dos escritos de juventude de Eduardo Prado, que precisam ser lidos, acredito, a partir da
inserção da sua atuação no cenário político/partidário brasileiro, que estava passando
por profundas transformações desde o final da década de 1860.
44
É possível citar como exemplos dos estudos afinados com essa interpretação tanto os já considerados
clássicos de Sérgio Buarque de Hollanda, José Murilo de Carvalho e Ilmar Rohloff de Mattos como
aqueles mais recentes de Marcelo Basile.
45
Ilmar Mattos propõe que a relação colonial seja pensada como uma moeda, na qual ―de um lado, a
―cara‖, ou a face metropolitana, que se apresenta por meio de reino ou do Estado Moderno, e do outro, a
―coroa‖, ou a face colonial, na forma da região, face geralmente oculta, impossìvel de ser pensada
isoladamente da primeira, mas guardando também existência própria, um processo particular que não se
restringe à mera reprodução da história metropolitana ou dos sucessos de outra região qualquer.‖ p. 32.
46
MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004, p. 84.
39
Para Ilmar Matos, o funcionamento pleno desse aparelho político destinado a
consolidar essa monarquia ilustrada pode ser situado entre 1840 e 1870, no período que
ele chama de ―Tempo Saquarema‖, quando o consenso entre a elite polìtica brasileira
esteve pautado no objetivo de garantir a continuidade dos monopólios acumulados
durante o período colonial.
47
Idem, p. 103.
48
CARVALHO, José Murilo de. José Murilo de. A construção da ordem/O teatro das sombras. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 42.
49
BASILE, Marcelo. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In. GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. pp. 53-119. p. 55.
40
Francisco de Salles Torres Homem (1812-1876) e Theophilo Otoni (1813-1872), a
memória das regências ganhou contornos mais positivos, sendo o período considerado
como ―a singular fase de triunfo das liberdades necessárias ao progresso da nação;
momento que teria sido abortado a partir da ascensão do ―regresso‖‖ 50. Naquilo que se
refere à década de 1840, Basile também destaca a existência de um consenso por parte
das elites políticas em torno da necessidade de reduzir os conflitos internos a esses
grupos, que estavam atemorizados pela experiência regencial, considerada anárquica.
Nas palavras do autor, ―essa vivência e esse teor, transportados para a memória
nacional, tiveram papel fundamental na relativa homogeneização ideológica da elite
política do Segundo Reinado, no estabelecimento do tempo saquarema e, enfim, nos
rumos doravante seguidos pela polìtica imperial‖ 51.
50
Idem.
51
Idem, p. 99.
52
De acordo com a análise desenvolvida por Sérgio Buarque de Hollanda, a expansão do crédito e as
transformações no sistema financeiro na década de 1850 transformaram os costumes políticos. Foi nesse
momento que o Imperador D. Pedro II, em setembro de 1856, convocou o então Conde de Caxias para
presidir o primeiro dos seus três gabinetes ministeriais, que durou até maio de 1857. Para o autor, Caxias
não conseguiu dar continuidade ao programa da conciliação que havia sido tão bem desenvolvido pelo
recém-finado Marquês de Paraná (1801-1856). Nesse sentido, o gabinete Caxias desestabilizou a coesão
do Partido Conservador, o que ficou claro quando José Antônio Saraiva (1823-1895) e Antônio Coelho de
Sá Albuquerque (1821-1868) abandonaram o Ministério. ―Era manifesto agora o malogro da tentativa
empreendida pelo Marquês de Caxias no sentido de uma unificação dos vários matizes do Partido Liberal
oriundo do regresso visando, talvez, numa segunda etapa, absorver os liberais mais transigentes‖. p. 81.
Sérgio Buarque de Hollanda afirma que o resultado da estratégia de Caxias foi o inverso: os
41
presidido pelo Visconde de Itaboraí (1802-1872), marcou o início da série de crises
institucionais que ajudariam a corroer o Estado monárquico. Para Sérgio Buarque de
Hollanda,
A substituição do ministério, tal como foi feita, além de deixar claros o artifício e
a burla em que todo o sistema assentava, dissipou as esperanças daqueles que
achassem viável uma amálgama de elementos tão díspares. Apanhados de
supetão pela extraordinária desenvoltura de que o rei se mostrou capaz, ao fazer
o uso dos desmedidos poderes de que efetivamente dispunha, os [liberais]
históricos e os progressistas renunciaram, ao menos no âmbito parlamentar, às
suas divergências, para cerrarem fileira em volta do estadista que os caprichos de
São Cristóvão acabavam de sacrificar tão duramente 53.
conservadores insatisfeitos gravitaram para o outro lado, dando origem à coligação partidária que ficou
conhecida como ―Liga Progressista‖, que foi chefiada por Zacarias de Góis e Vasconcelos. Ver
HOLLANDA, Sérgio Buarque. HOLLANDA, Sérgio Buarque. Capítulos de História do Império. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.
53
Idem. p. 146.
54
CARVALHO, José Murilo de. O teatro das sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2006.
55
ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil – Império. São Paulo:
Paz e Terra, 2002.
42
Branco (1810-1880), outra importante liderança conservadora, que em junho de 1875
recomendou o nome do velho soldado para substituí-lo na chefia do governo.
56
SALLES, Ricardo. As águas do Niagra. 1871: a crise da escravidão e o ocaso saquarema. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 46.
57
―Correio Paulistano‖. 14 de fevereiro de 1879.
43
Uma das principais características da doutrina jurídica na qual esteve baseada a
Monarquia brasileira foi a despolitização do Poder Moderador, que foi sempre definido
como uma competência administrativa e imparcial do ponto de vista político. Isso pode
ser percebido nos estudos jurídicos desenvolvidos por Paulino José Soares de Souza, o
Visconde de Uruguai (1807-1866), que fez do poder pessoal do imperador um dos
principais temas dos seus escritos. O autor defendia uma dimensão bem ampla desse
papel e insistiu na distinção entre o poder executivo, a faceta política da autoridade
imperial, e o poder moderador, a faceta administrativa e mais útil aos interesses
públicos na medida em que, de forma imparcial, ou seja, sem comprometimento político
de natureza alguma, tinha o dever de garantir o equilíbrio e impedir que um grupo
político específico monopolizasse o poder.
Eduardo Prado não esteve sozinho nas críticas ao Imperador D. Pedro II, pois
Antônio Prado, o seu irmão mais velho, principal liderança do Partido Conservador
Paulista e o dono do ―Correio Paulistano‖, também se manifestou publicamente contra a
intervenção de janeiro de 1878 e contra os governos liberais, que utilizaram de todas as
58
SOUZA, Paulino José Soares de. Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1865. p. 143.
44
armas ao seu dispor para enfraquecer o líder conservador em seu próprio nicho político.
Por isso, foi reaberto, em agosto de 1878, um processo, arquivado pela justiça imperial
desde 1859, no qual Antônio Prado e seu pai eram acusados de assassinato.
Esta denúncia, que seria desprezada se a honra fosse bastante para livrar os
homens de bem dos botes da calúnia e o Imperador capaz de ser menos afeito às
influências do Partido Liberal, deu lugar a rigoroso inquérito policial, verdadeira
devassa, no qual tomaram parte o chefe de polícia da província, e o delegado do
termo de Mogy Mirim onde se dera o crime 59. (Grifos Meus)
Depois de um estirado nariz de cera que diz que temos a carta constitucional (!)
e não vivemos em esse regime livre, o orador declara que o governo atual não
inspira confiança à democracia; se alguns republicanos saudaram o golpe de 5 de
janeiro já perceberam o quão nefasto foi o ato de Sua Alteza Real. (...) O ilustre
Deputado Republicano foi aplaudido de pé, o que foi muito justo visto o apuro
da análise e a peça oratória que apresentou a todos os presentes 60. (Grifos Meu)
59
Jornal ―Correio Paulistano‖. 04 de outubro de 1878.
60
―Correio Paulistano‖; 15 de fevereiro de 1879.
45
pela Monarquia para com o seu partido. Isso, por si só, já serve ao menos para nuançar a
pecha de monarquista ―convicto‖, que a literatura especializada atribuiu a Eduardo
Prado.
Ainda que não tenha sistematizado com o rigor digno de um teórico da política,
o nosso autor tratou, no trecho citado, o problema da liberdade nos moldes do repertório
do direito civil romano. O calor das circunstâncias e o objetivo de se opor ao governo
liberal fez com que as tópicas cívicas não fossem claramente delimitadas, estando
diluídas na argumentação de Prado. Por isso, é fundamental que a análise tente, ao
mesmo tempo, buscar os fragmentos dessas tópicas e reconstruir o palco da intervenção
do autor. Não é fortuito o fato de esses elementos cívicos terem sido novamente
mobilizados em função do ataque aos liberais. Tendo sido formado no seio de uma
importante família brasileira, Eduardo Prado foi treinado desde menino para o uso
político da palavra. A lógica desse treinamento será analisada com mais cuidado no
decorrer desta tese. Por ora, parece-me suficiente dizer que o autor tinha um senso de
circunstância providencial ao polemista político e sabia que a condição de oposição
demandava um arsenal discursivo mais forte e a concepção cívica de liberdade foi a
munição utilizada.
61
Idem. 20 de fevereiro de 1879.
62
Idem. 21 de fevereiro de 1879.
46
narrativa é possìvel perceber que Prado utiliza o termo ―maioria‖ para designar o grupo
dos Deputados conservadores e o termo ―facção democrática moderna‖ para designar,
ironicamente, os Deputados liberais. Penso que, nesse caso específico, o recurso da
ironia pode ser analisado tanto como uma estratégia utilizada por Eduardo Prado no
ataque ao seu grupo político rival como um indício de uma crítica à noção de liberdade
apregoada pelos seus adversários.
63
―Correio Paulistano‖. 21 de fevereiro de 1879.
47
acordo com a interpretação desenvolvida por Quentin Skinner. O historiador inglês
afirma que ―a pista para a compreensão do que esses autores querem dizer ao pregar a
liberdade de comunidades inteiras reside no reconhecimento de que eles tratam o mais
64
seriamente possìvel a antiga metáfora do corpo polìtico‖ . Skinner identifica a
metáfora do corpo político nos escritos de diversos autores ingleses neorromanos, como
Nedhan, Harrington e, principalmente, Neville, que no ―Plato Redivius”, levou mais
longe do que os outros a comparação da sociedade política com o corpo humano,
estando ambos igualmente sujeitos à possibilidade de privação da liberdade.
Tendo vindo à tribuna para pedir informações acerca dos negócios de Mogi das
Cruzes, o ilustre sr Correa, deputado pela maioria, aproveita o ensejo para
explicar os motivos que impeliram à abstenção do Partido Conservador daquele
município. Ali, como em quase todas as localidades da província, a situação
liberal inaugurou o regime de violência e de arbítrio. O orador enumera vários
atos escândalos postos em prática pelo governo, para convencer aos
conservadores que seus esforços seriam totalmente ineficazes na contenda
liberal. De forma acertada argumenta o digno orador que a participação eleitoral
fica sem efeito quando o povo tem sua liberdade tolhida pela tirania dos
governantes66. (Grifos Meus).
64
SKINNER, Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 31.
65
Idem. pp. 33-34.
66
―Correio Paulistano‖. 05 de março de 1879.
48
fato de o governo liberal impedir, por meios violentos e fraudulentos, a atuação da
oposição conservadora e a devida contagem dos votos anularia completamente a
liberdade do corpo político paulista.
Sendo assim, as crônicas políticas escritas por Eduardo Prado no final dos anos
1870 demonstram como o repertório do direito civil romano foi apropriado pelo nosso
autor, particularmente naquilo que se refere à definição da liberdade como a antítese da
escravidão. Os meios através dos quais o repertório do direito civil romano chegou a
Eduardo Prado não são claros para mim. Já comentei que, no acervo bibliográfico de
Eduardo Prado, é possível encontrar textos de importantes representantes da tradição
cìvica, além do próprio ―Digesto Romano‖. Porém, acredito ser necessário explorar
outra possibilidade: o tratamento que o pensamento conservador moderno deu ao tema
da liberdade pode ser importante para compreendermos melhor por que a concepção
antiga de liberdade foi tão importante para Eduardo Prado. Para Alexis de Tocqueville,
que é um dos mais importantes representantes do pensamento conservador moderno,
―os homens que têm a paixão pelos prazeres materiais descobrem, via de regra, como as
agitações da liberdade perturbam o bem estar, antes de perceber como a liberdade seve
67
para proporcioná-lo‖ . Aqui, a discussão de Tocqueville a respeito da liberdade está
subordinada à crítica que o autor faz ao individualismo moderno, que faz com que o
cidadão considere a liberdade política, pensada, também, como o direito à ampla
participação no governo da cidade, um impedimento à consolidação dos seus interesses
individuais. Na interpretação de Marcelo Jasmin, ―[para Tocqueville], a liberdade
moderna, calcada na paixão pelo bem estar, deseja e representa o fim do homem
polìtico‖68.
67
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia: Ed. USP, 1983. pp. 147-
148.
68
JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: A historiografia como ciência política. Belo Horizonte: ED
UFMG/IUPERJ, 2005. p. 63.
69
MANNHEIM, Karl. Conservative thought. Londes: ED P&C, 1987. p. 39.
49
os textos de Tocqueville, ainda que o livro ―A Democracia na América‖ estivesse lá, no
acervo bibliográfico do nosso autor, classificado sob a rubrica ―diplomacia‖. O que
estou querendo dizer, portanto, é que a noção de liberdade cara ao direito civil romano
foi mobilizada por Eduardo Prado, quando, nas suas crônicas políticas, ele se tornou
uma das principais vozes de oposição aos governos liberais em atuação na imprensa
paulista.
70
SALLES, Ricardo. As águas do Niagra. 1871: a crise da escravidão e o ocaso saquarema. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
50
província. (Toda galeria aplaudiu efusivamente o parlamentar republicano).
(Grifos Meus)71.
71
―Correio Paulistano‖. 07 de março de 1879.
72
Martinho Prado (1843-1906), chamado ao longo de sua vida de Martinico, foi voluntário na Guerra do
Paraguai, deputado pelo Partido Republicano entre 1878 e 1880 e um dos mais bem sucedidos produtores
de café do século XIX, sendo um dos fazendeiros pioneiros naquilo que se refere ao estímulo da
imigração italiana. Ver Darrel Levi (op cit).
73
Idem.
51
eleitoral. Não há aqui as exigências de ampla liberdade do corpo político que
encontramos nas crônicas nas quais Prado se refere diretamente aos governos do Partido
Liberal.
Sem oferecer ao leitor maios informações a respeito dos tão elogiados tempos
das administrações conservadores, Eduardo Prado limita-se a dizer que esses governos
não tolhiam o livre trânsito do eleitor durante o processo eleitoral, como se essa
ausência de impedimento fosse o suficiente para definir o cidadão como um homem
livre. Acredito que a teoria política de Hobbes nos oferece uma importante chave de
leitura para conservadorismo do jovem cronista do jornal ―Correio Paulistano‖. De
acordo com os já citados estudos de Skinner, para Hobbes, a ideia de que é possível
viver como um homem livre sob o poder de um governo instituído é uma contradição
aporética, já que o pensador inglês afirma que não é possível ser livre no Estado social,
que deve a sua existência ao objetivo de restringir a liberdade natural dos homens.
Porém, Skinner afirma que Hobbes admite que a vida social permitiu aos seres humanos
a experimentação de um outro tipo liberdade: a liberdade típica dos súditos, que aceitam
abrir mão da liberdade natural para viverem em paz74.
74
SKINNER, Quentin. Hobbes e a Liberdade Republicana. São Paulo: Ed. UNESP, 2010. p. 87.
75
Idem. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 21.
52
vez foram definidos como momentos de respeito às liberdades políticas dos cidadãos
paulistas. Como costumava fazer nas suas crônicas, o autor narrou os debates
parlamentares, atribuindo falas aos Deputados, que quase sempre eram colocados em
posição de conflito.
76
―Correio Paulistano‖. 09 de março de 1879.
53
e os eleitores podiam se encaminhar sem obstáculos para os sítios eleitorais 77.
(Grifos Meus)
77
Idem.
54
Capítulo 2
Não tivemos o exemplo da República francesa para citar aos que entendem que
no Brasil todos os direitos individuais encontram uma restrição no §4° do art. 90
da Constituição, e poderíamos dizer que a razão desta divergência é que,
segundo afirma e demonstra Leveleye, a República é menos favorável à
liberdade do que a Monarquia Constitucional, que no caso do Brasil jamais
apresentou os constrangimentos que hoje angustiam o cidadão brasileiro 79.
(Grifos Meus)
As duas citações foram extraídas de textos escritos por Eduardo Prado ao longo
de 1897, quando o autor estava diretamente envolvido com a ―questão do habeas corpus
dos Monarquistas‖, assunto que teve grande repercussão na imprensa da época. Ainda
que o tema tratado nos trechos seja o mesmo, acredito ser possível apontar uma suave
diferença entre eles naquilo que se refere ao uso da categoria ―liberdade‖, o que reforça,
acredito, a hipótese de que ao longo de sua trajetória, o nosso autor combinou os
repertórios políticos antigo e moderno.
78
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 22 de janeiro de 1897/ Coletâneas. (vol. III), p. 67.
79
PRADO, Eduardo. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo: Livraria Civilização, 1897. p. 31.
80
BRASIL. Constituição de 1891.
55
República81. A autora afirma que após a proclamação da República consagraram-se
duas versões sobre o acontecimento: o do consenso nacional e o da indiferença da
população. Porém, segundo Janoti, a análise dos fatos demonstra que
Nos ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil”, título do livro que reuniu os artigos
da ―Revista de Portugal‖, Eduardo Prado conseguiu realizar a primeira
sistematização das críticas à República brasileira, contendo já os seus escritos a
maioria dos elementos que caracterizaria todo o discurso monarquista 83.
81
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da república. São Paulo: Editora Brasiliense,
1986.
82
Idem. pp. 05-06.
83
Idem. p. 30.
84
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Editora Global: São Paulo, 2004. p. 190.
56
Não é uma das tarefas mais difíceis encontrar nos textos escritos pelo próprio
Eduardo Prado referências explícitas à sua militância política monarquista, como, por
exemplo, no artigo ―O Banquete Monarquista‖, que foi publicado no ―O comércio de
São Paulo‖ 85 em 24 de outubro de 1895:
O que precisa ficar claro, aqui, é o fato de que a invasão da casa de Augusto de
Souza de Queirós e a negação do habeas corpus aos monarquistas presos fazem parte
do histórico dos conflitos travados entre os monarquistas e os governos republicanos,
que desde os primeiros anos da República se faziam presentes no cenário político
brasileiro. Um dos primeiros capítulos desses conflitos teve lugar fora do Brasil, já em
dezembro de 1889, quando, Eduardo Prado, assinando o pseudônimo ―Frederico da S.‖,
publicou na ―Revista de Portugal‖, dirigida por Eça de Queirós, o artigo ―Os
acontecimentos do Brasil‖. Em um primeiro momento, nem mesmo os quadros
monarquistas depostos pelo golpe militar republicano, como, por exemplo, Afonso
Celso de Assis Figueiredo (1836-1912), o Visconde de Rio Preto, sabiam quem era o
cronista que tentava comprometer a credibilidade da jovem República brasileira junto à
opinião pública internacional87. Ao longo desta tese, eu analiso os textos que Prado
escreveu para a ―Revista de Portugal‖ entre dezembro de 1889 e maio de 1890, que,
posteriormente, foram reunidos sob o tìtulo ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖, pois
acredito que nesse material seja possível compreender alguns dos elementos mais
importantes do pensamento político conservador do nosso autor, além da sua para a
bibliografia especializada no tema da transição da Monarquia para a República.
85
Entre março de 1895 e novembro de 1897, Eduardo Prado foi redator e proprietário do jornal ―O
Comércio de São Paulo‖, que se tornou o órgão oficial do clube monarquista, que era um grupo formado
por personalidades comprometidas com a restauração da monarquia. Tanto Sebastião Pagano como
Cândido da Mota Filho afirmam que foi nas páginas do ―Comércio de São Paulo‖ que Eduardo Prado
desenvolveu seus textos monarquistas mais incisivos. Também Maria de Lourdes Mônaco Janotti afirma
que o ―Comércio de São Paulo‖ foi o mais monarquista dos jornais da época, sendo reaberto em 1895 por
Eduardo Prado, Afonso Arinos (1868-1916) e Couto Magalhães (1837-1898). O jornal foi empastelado
em 1897, após a morte de Moreira César na Guerra de Canudos.
86
―O Comércio de São Paulo‖. 24 de outubro de 1895.
87
Para Cândido da Mota Filho, ―Afonso Celso, ao saber que o autor dos artigos de Frederico da S. eram
de Eduardo, de pronto, escreveu a ele em linguagem entusiástica‖. FILHO, Cândido Mota. A Vida de
Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 32.
57
Em 1897, já haviam ficado para trás os momentos mais tensos desse conflito,
como, por exemplo, o ano de 1893, marcado pelas Revoltas Federalista e da Armada.
Examino com mais cuidado a atuação de Eduardo Prado nesse período nos próximos
capìtulos. Por ora, meu objetivo é analisar a ―questão do habeas corpus dos
monarquistas‖, tendo especial atenção para a forma através da qual o nosso autor
utilizou o conceito de liberdade. Ele escreveu três artigos e um pequeno livro sobre o
assunto, fazendo das páginas do seu jornal ―Comércio de São Paulo‖ um importante
veículo de defesa dos monarquistas presos: trata-se dos artigos ―A justiça da
República‖, ―O Tribunal da Justiça‖ e ―Um protesto‖, também publicados em 1904, no
terceiro volume das ―Coletâneas‖, e o livro ―Anulação das Liberdades Polìticas‖,
publicado em dezembro de 1897.
58
88
revolucionários‖ . O texto ―Reflexões sobre a Revolução Francesa‖, que Burke
escreveu em 1791, ainda no calor da experiência revolucionária, parece confirmar como
o autor tentou combater ―o sentido individual de liberdade que os revolucionários
89
franceses transformaram na sua causa mestra‖ . No capítulo anterior, eu comentei
como Alexis Tocqueville, outro importante pensador conservador, também criticou essa
noção moderna de liberdade, que ao se fundamentar no princìpio da ―liberdade
individual‖, ―renegou toda e qualquer dimensão coletiva e pública da liberdade
republicana, transformando-se em um valor privado e destinado, tão somene, ao
conforto do sujeito‖ 90, ainda nas palavras de João Pereira Coutinho.
88
COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São
Paulo: Três estrelas, 2014. p. 10.
89
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 32.
90
COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São
Paulo: Três estrelas, 2014. p. 12.
59
indivíduo como um ser autossuficiente, pré-político, portador direitos e
liberdades que lhes são inerentes; 2) em concordância com o princípio acima
exposto, a submissão da política e do Estado às leis gerais que servem ao
desenvolvimento dos indivíduos; 3) isso implica a primazia das leis sobre os
homens; 4) a assunção da divisão e equilíbrio entre os poderes a fim de se evitar
o abuso de poder; 5) a preferência da democracia representativa como meio mais
adequado para garantir os princípios anteriores91. (Grifos Meus)
Por outro lado, ao final da citação, Prado diz que ―tudo, absolutamente tudo, faz
parte da liberdade e não tão somente o engodo do ―livre ir e vir‖ que a República chama
de liberdade‖, o que demonstra que a percepção de liberdade que ele defende no texto
exige algo mais do que a simples liberdade de locomoção física. O que parece estar em
jogo na ―questão do habeas corpus dos monarquistas‖ é a reivindicação do direito a
intervir na discussão pública a respeito da organização política do Estado, o que para
Prado e seus correligionários significava restaurar a Monarquia. Por isso, o direito à
livre circulação parece pouco para o nosso autor. Para Skinner, é justamente essa
reivindicação ao direito de intervenção pública uma das principais características da
liberdade civil. Como já vimos, o historiador inglês argumenta que a liberdade civil é
definida pelos republicanos romanos, pelo humanismo cívico, por Maquiavel, no
Renascimento italiano, pelos defensores da autonomia do Parlamento na Inglaterra
revolucionária por oposição à condição de escravo.
Esse ponto da teoria republicana revela sua radical diferença com o liberalismo:
enquanto este entende que a supressão da liberdade se dá enquanto permanece a
interferência, qualquer que seja ela, de modo que, findada a interferência, volto a
ser livre, para a primeira tradição a ausência de liberdade já ocorre e continua
subsistindo simplesmente na ausência de direitos, ainda que não haja
interferência alguma92.
91
GUERRA, Roberto. O liberalismo conservador contemporâneo. Santa Cruz de Tenertie: Universidade
de La Laguna, 1998, p. 55.
92
SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 33.
93
PRADO, Eduardo. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo: Livraria Civilização, 1897. p. 43.
94
Idem. p. 44.
60
Na tentativa de desqualificar a República, o autor utiliza diversas estratégias,
entre estas a comparação com a Monarquia, que é sempre representada como um regime
político superior, principalmente naquilo que se refere à garantia da liberdade. É
exatamente essa comparação que ele faz no trecho ao afirmar que ―a República é menos
favorável à liberdade do que a Monarquia Constitucional, que no caso do Brasil jamais
apresentou os constrangimentos que hoje angustiam o cidadão brasileiro‖. Para o autor,
a República anulava as liberdades políticas porque angustia o cidadão, o indivíduo, com
constrangimentos, o que demonstra que nesse momento a perspectiva de liberdade
mobilizada é a liberal. Portanto, quando Prado discute o tema da liberdade na
Monarquia e na República, o faz a partir de todo um esforço de argumentação que
pretendia desqualificar a República e fazer proselitismo da Monarquia. É nessa
argumentação que percebo a combinação entre as tradições liberal e civil.
fez com que os estudiosos voltaram seu interesse para a existência de uma
tradição intelectual chamada por Baron de "humanismo cívico", forjada
61
principalmente em algumas repúblicas italianas durante o Renascimento que,
retomando traços da cultura greco-romana, sublinhava a importância dos ideais
de patriotismo, de governo popular e de devoção ao serviço público 95.
Um dos aspectos mais importantes do livro de Baron foi a crítica feita a outro
texto célebre sobre o perìodo: ―A civilização do Renascimento na Itália‖, de Jacob
Burckhardt, para quem a configuração do indivíduo foi o principal legado da
Renascença para a Modernidade. Para Newton Bignotto, ―esse homem-artista,
individualista ao extremo, certo de suas potencialidades e de sua capacidade para forjar
a sua própria vida, representava, para o escritor suíço [Burkhardt], o protótipo do que
viria a ser o homem moderno‖96. Contra essa interpretação, Baron definiu a Renascença
não como ―o momento de consolidação dos regimes monárquicos ou tirânicos, nos
quais o homem encontrou sua própria individualidade, mas sim a época do surgimento
de uma vida política rica, centrada em valores próximos aos que haviam estado no
centro da existência das cidades livres do passado‖ 97.
95
Hankins, James. Exclusivist republicanism and the non-monarchical republic. In: Political Theory,
2010,38, p.452-482.
96
BIGNOTTO, Newton. Origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 18.
97
Idem.
62
tese. Interessa aqui, especialmente, as críticas de Eduardo Prado à renascença,
considerada ―o luxo do paganismo que quase extirpou a cristandade da face da terra‖98.
Já Quentin Skinner não é tão tributário a Baron como Pocock, mas mesmo assim
endossa a ideia de que a relação entre as tradições cívica e liberal precisa ser lida
também na perspectiva da continuidade. No livro ―Fundamentos do Pensamento
Polìtico Moderno‖, Skinner defende a tese de que os valores do republicanismo clássico
98
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 04). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1907. p. 18.
99
Uma importante liderança política romana nos tempos da renascença que abandonou a vida religiosa
para se dedicar à política.
100
Idem. p. 20.
63
não foram recuperados pela Renascença, já podendo ser identificados no pensamento
escolástico medieval e na tradição retórica anterior ao renascimento. Apesar da ressalva
em relação às ―origens‖ da apropriação do republicanismo cìvico, Skinner não questiona
o argumento de Baron e Pocock, que destacam a importância dessa tradição para a
modernidade. Philippe Petti foi ainda mais longe do que Skinner e Pocock e implodiu,
integralmente, a dicotomia liberdade antiga republicana X liberdade moderna liberal.
Para o autor irlandês, ―a liberdade republicana não contém uma essência em particular,
uma vez que ela se define antes pela ausência do que pela presença de algo‖101. Nesse
sentido, a ênfase no critério da ausência faz com que Petti defina a liberdade
republicana como uma ―liberdade negativa‖, o que sugere a quase ausência de
diferenças entre os conceitos antigo e moderno de liberdade. Certamente, eu não
concordo com o estabelecimento de fronteiras mais rígidas entre as liberdades civil e
liberal, como propõe Isaiah Berlin. Porém, acredito que o caminho oposto, como o
trilhado por Petti, também não é o mais adequado para a compreensão das tensões
delineiam as relações entre os vocabulários políticos antigo e moderno. Por isso, a
minha abordagem prioriza o uso dos conceitos, o que me permite identificar a existência
de duas tradições distintas que são combinadas pelo nosso autor ao sabor das
conjunturas discursivas.
101
PETTI, Phillip. 1996. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford
University Press. p. 61.
64
Peixoto a República hoje navega em águas mais calmas. A tempestade passou. É
chegado o momento da liberdade e da democracia102! (Grifos Meus)
102
Jornal ―O Paiz‖. 16 de novembro de 1894.
103
Luiz Antônio Simas. O evangelho segundo os jacobinos: Floriano Peixoto e o Mito Salvador da
República Brasileira. Dissertação de Mestrado. PPGHIS: Rio de Janeiro, 1994.
104
Idem.
105
ESTEVES, Diniz (ORG). Documentos históricos do Estado-Maior do Exército. Edição do Estado
Maior do Exército: Brasília, 1996. Lei número 403.
65
A bibliografia especializada na Primeira República (1889-1930) é quase
unânime em apontar os dois primeiros governos civis, ocupados, respectivamente, por
Prudente de Moraes (1894-1898) e Campos Sales (1898-1902), como o momento de
consolidação de uma estratégia de dominação política que permitiu às novas instituições
navegarem em águas mais calmas. Renato Lessa, por exemplo, afirma que por meio de
uma alteração artificiosa do regimento interno da Câmara dos Deputados, assegurou-se
que a representação parlamentar de cada Estado corresponderia ao grupo regional
dominante. Ao mesmo tempo, garantiu-se maior subordinação da Câmara ao Poder
Executivo. O propósito da Política dos Governadores, só em parte alcançado, foi o de
eliminar as disputas entre as facções nos Estados, reforçar o Poder Executivo e
inaugurar a ―rotinização do poder‖ na Primeira República106. O diagnóstico de Cristina
Buarque de Hollanda é parecido:
Foi o arranjo institucional de Campos Sales que instituiu rotina política na cena
republicana e retirou-a da órbita da absoluta imprevisibilidade. O caos originário
da República estaria fadado à reprodução indefinida se legado aos instrumentos
da política liberal, incapazes de organizar o cotidiano real da vida pública. A
principal novidade política de Campos Sales foi, portanto, a de opor um
princípio de vertebração social ao ambiente desordenado e arredio às instituições
do liberalismo político 107.
O sr Prudente de Moraes não tem mandado fuzilar, nem, mesmo, prende gente,
como fazia o sr Floriano. É verdade. O sr Prudente de Moraes tem reintegrado
alguns professores ilegalmente demitidos. É também verdade. Hoje, temos mais
liberdades que antes, pelo menos isso, algo de bom aconteceu nesses últimos
sombrios anos108.
106
Renato Lessa. A invenção da República. Rio de Janeiro: Vértice, 2003.
107
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Modos da Representação Política: o experimento da Primeira
República Brasileira. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2009.
108
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 10 de dezembro de 1895/ Coletâneas. (vol. II), p. 86.
66
da república não está nos seus governos; o mal da república está na própria república‖
109
.
109
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 22 de janeiro de 1897/ Coletâneas. (vol. III), p. 67.
110
Idem. 17 de janeiro de 1897/ Coletâneas. (vol. III), p. 37.
111
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 17 de janeiro de 1897/ Coletâneas. (vol. III), p. 38.
112
Idem. pp. 37-38.
67
eminente perigo de sofrer violência, ou cação, por ilegalidade ou por abuso de poder‖,
garante esse direito113. Analisando o texto constitucional, Eduardo Prado chega a
conclusão de que
É incrível que nos últimos dias do século XIX, num país que é classificado entre
as nações civilizadas, numa grande cidade como é São Paulo, num tribunal, haja
magistrados que ousem negar que há direitos individuais intangíveis e que a
liberdade de pensamento, liberdade de voto, a liberdade de reunião, a
inviolabilidade do domicílio sejam imprescriptíveis, direitos naturais como
postulou Locke. A noção desses direitos nós a haurimos no século em que
nascemos, nas escolas em que estudamos, em tudo quanto nos cercava neste país,
na nossa mocidade; mas essa noção os juízes a perderam115. (Grifos Meus)
113
Idem. p. 37.
114
Idem. p. 42.
115
PRADO, Eduardo. Comércio de São Paulo. 17 de janeiro de 1897 / Coletâneas. (Vol III) p. 76.
116
BOBBIO; Norberto. Diálogo em torno da República. São Paulo: Ed. Campus, p. 78.
68
natural é diferente de qualquer outra espécie de direito, já que não fundamenta a sua
existência no princípio da autoridade do Estado, sendo, por isso, inalienável por
qualquer tipo de poder. A concepção lockeana de jusnaturalismo aborda diretamente o
indivíduo e sua liberdade perante o Estado, sendo marcada pela preocupação em definir
uma esfera da vida na qual o sujeito possa estar livre do poder soberano. Para o próprio
Locke:
117
Idem.
118
PRADO, Eduardo. Comércio de São Paulo. 18 de março de 1897 / Coletâneas. (Vol III) pp. 08-09.
69
Temos, aqui, um dos argumentos mais característicos do monarquismo
eduardiano: a associação do republicanismo latino-americano ao despotismo. O assunto
é desdobrado com maior atenção no próximo capítulo. Mais importante, nesse
momento, é entender as estratégias discursivas mobilizadas pelo nosso autor na
comparação das experiências republicana e monarquista no Brasil. Para isso, Prado
recorreu, frequentemente, à permissividade com a qual o governo da Monarquia teria
tratado os republicanos durante a década de 1880, argumentação que ofereceu o
contraponto ideal para os seus objetivos. Já que Eduardo Prado estava envolvido
diretamente na reação à repressão dos governos republicanos à atuação dos
monarquistas, a relação do governo da Monarquia com os republicanos na década
anterior mostrou-se o recurso argumentativo perfeito para o proselitismo que ele
desejava fazer. É exatamente nesse recurso argumentativo que consigo identificar a
mobilização do conceito ―liberdade‖ nos quadros da tradição liberal.
Eduardo Prado toca em um ponto que foi revisitado pela historiografia que anos
mais tarde iria se debruçar sobre o problema da transição da Monarquia para a
República: a ausência de reação ao golpe militar republicano, como se ninguém
estivesse disposto a lutar pelo trono de D. Pedro II. Celso Castro, por exemplo, afirma
que ―pela quantidade de pontos estratégicos visados e providências a serem tomadas,
vê-se que os golpistas imaginavam fossem encontrar uma forte resistência. Daí a
necessidade que sentiam de contar com um militar importante e respeitado pela tropa,
como Deodoro‖120. Apenas o Barão de Ladário tentou defender a Monarquia ao disparar
duas vezes contra Deodoro, sendo imediatamente contido pelas forças golpistas.
Maria Tereza Chaves Mello afirma que desde o final dos anos 1870, a
Monarquia já não era vista como um sistema político capaz de solucionar os problemas
do Brasil, o que vez com que o caminho para a República fosse facilitado por certa
concordância da opinião pública da época, concordância que se manifestou sob a forma
da não intervenção.
119
Idem.
120
CASTRO, Celso. Os militares e a república: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar ed, 1995. p. 186.
70
À monarquia, no final do Império, estava associado o atraso, o impedimento da
modernização do país, diante do que a República aparecia como solução.
Supomos, então, que a aceitação da República [e a ausência de defesa da
Monarquia] deve ser explicada por uma disposição mental ao novo regime como
decorrência da incorporação de uma nova cultura democrática e científica na
década de 1880, tomando como recorte espacial, a cidade do Rio de Janeiro em
função de sua centralidade na vida do país121.
Era nítida e distância entre a representação e a opinião pública que, pela primeira
vez, se organizava e se faria visível no movimento abolicionista. A pressão
imperial em favor da abolição final coincidia com a opinião pública, embora
fosse interpretada como interferência no processo parlamentar, a mesma
acusação feita em 1871. Ironicamente, o rei, no caso a princesa, estava ao lado
da opinião do povo, perdendo com isto a legitimidade junto aos partidos e à elite
política123.
José Murilo de Carvalho afirma, então, que a intervenção militar que instituiu a
República foi o produto da ação de setores das elites políticas, incluindo aqui o alto
escalão do oficialato do Exército, que estavam insatisfeitos com a Monarquia. Portanto,
o autor acredita que a derrubada desse regime político não traduziu as verdadeiras
aspirações da população brasileira. A visão de Eduardo Prado dos acontecimentos está
121
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 11.
122
ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil – Império. São Paulo:
Paz e Terra, 2002. p. 45.
123
CARVALHO, José Murilo de. O teatro das sombras. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2006. p.
411.
71
mais próxima da explicação de José Murilo de Carvalho do que das de Maria Tereza
Mello e Ângela Alonso. Para Prado, o golpe militar republicano ―não foi condizente
com o espírito do povo brasileiro, que exultante agradecia a coroa pela confraternização
124
da liberdade de 13 de maio‖ . Referindo-se ao tratamento que a Monarquia deu aos
republicanos durante a década de 1880, Eduardo Prado disse que:
[D. Pedro II] foi acusado de excesso de tolerância com a imprensa e com a
oposição, inclusive a republicana. Nada aconteceu a Silva Jardim quando pregou
em público o fuzilamento do conde D‘Eu. Pregar o assassinato de um polìtico
em pleno gozo de seus direitos era, e continua sendo, crime em qualquer país
democrático. O imperador fora também sempre contrário a excluir os
republicanos de cargos públicos. Ele próprio empregou um republicano,
Benjamin Constant, como professor de matemática de seus netos, e não o
incomodava que este ocupasse vários cargos públicos 126.
124
PRADO, Eduardo. Comércio de São Paulo. 18 de março de 1897 / Coletâneas. (Vol III) p. 13.
125
Idem. p. 15.
126
CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 208.
127
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 230.
72
livre locomoção do corpo físico. Para o autor, portanto, a Monarquia tolerou a oposição
na medida em que não impôs limitação alguma, nem policial nem jurídica, à ação dos
republicanos. Tal como fiz há pouco em relação à concepção cívica de liberdade,
acredito que também é importante dedicar alguma atenção à história da categoria
―liberdade negativa‖ na historiografia especializada no pensamento político moderno.
Esse esforço de sistematização conceitual é importante para fortalecer a hipótese que
venho desenvolvendo nesta primeira unidade, que consiste na sugestão de que ao longo
da sua trajetória político/intelectual, Eduardo Prado mobilizou a categoria ―liberdade‖
tanto no seu sentido cívico como no sentido liberal, o que demonstra a plasticidade do
conservadorismo do nosso autor.
128
BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Ed. UNB, p. 144.
129
SILVA, Elisabete do Rosário Mendes. Liberalismo e os preceitos da ética cosmopolita de Isaiah
Berlin. Tese de Doutorado. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2011. pp. 18-19.
73
declarava que as leis não servem para a manutenção da liberdade, produzindo
sua redução130.
130
BIGNOTO, Newton. República dos antigos, república dos modernos. In: Revista USP, São Paulo,
n.59, p. 36-45. pp. 53-54.
131
PRADO, Eduardo. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo: Livraria Civilização: 1897, p. 01.
132
Idem. p. 07.
74
argumentação, Prado analisa outras constituições, como, por exemplo, a dos EUA, onde
―os fundadores daquela República jamais sonharam com a possibilidade dessa restrição
absurda‖ e, citando Thomas M. Cooley (1780-1864), um importante jurista
estadunidense, escreve ―o povo fez a constituição, o povo pode desfazê-la, ela é sua
criação e não existe senão pela sua vontade‖133. Essa é uma das poucas referências
positivas que Prado fez aos EUA após a proclamação da República brasileira. Antes
disso, no livro ―Viagens‖ os elogios desse tipo são mais abundantes, como mostro na
próximo capítulo.
Pode até ser que nessas Repúblicas, que são tão conhecidas entre nós pelos
pronunciamentos e pelo militarismo, sejam capazes de calar pelo assassínio
todos aqueles que tenham a ousadia de alterar a forma do governo, mas a
possibilidade não é cerceada constitucionalmente, como acontece no Brasil. Por
aqui, a República conseguiu ser ainda mais despótica do que nos vizinhos
hispano-americanos135.
133
Idem. pp. 13-14.
134
Idem. p. 15.
135
Idem. p. 17.
75
136
indivìduos quando o povo está oprimido e triste‖ . Percebo na argumentação de
Eduardo Prado a forte presença dos valores do republicanismo cívico, que como já
vimos ao longo desses dois capítulos, define a liberdade mais em função da categoria de
―corpo polìtico‖ do que da de ―indivìduo‖, o que faz com que a liberdade civil seja
muito mais exigente do que a liberdade liberal. Essa concepção de liberdade também se
fez presente nos escritos de outros pensadores modernos, como, por exemplo, em Jean
Jacques Rousseau (1712-1778).
Essa pessoa pública que se forma assim pela união de todas as outras recebia
outrora o nome de cidade, e recebe hoje o de república ou de corpo político, que
e chamado por seus membros de Estado quando e passivo, soberano quando e
ativo, potência se comparado a seus semelhantes. Com respeito aos associados,
eles recebem coletivamente o nome de povo, e se chamam em particular de
cidadãos como participantes da autoridade soberana, e de súditos como
submissos as leis do Estado137.
A solução proposta por Rousseau é que a associação civil deve colocar a forca da
coletividade em defesa da pessoa e dos bens de cada um de seus membros, mas
de tal maneira que eles continuem a obedecer apenas a si mesmos a respeito da
preservação de suas próprias vidas, permanecendo assim tão livres quanto antes
do pacto social. O caminho para gerar essa forma especial de convenção passa
pela alienação completa e irrestrita de todos os direitos dos associados a
comunidade. Somente uma alienação dessa natureza, ainda mais absoluta do que
aquela proposta por Hobbes, poderia estabelecer a igualdade civil sem a qual os
termos liberdade e sociedade tornam-se mutuamente exclusivos. Ao entregar sua
pessoa e seus bens a todos, o contratante não se entrega a ninguém em particular,
isto e, a nenhum outro individuo, o que e um requisito básico da liberdade para
Rousseau138.
136
Idem. p. 75.
137
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. Martins Fontes: São Paulo, 1998. p. 34.
138
MOSCATELI, Renato. Rousseau frente ao legado de Montesquieu: imaginação histórica e teorização
política. Tese de Doutorado: UNICAMP, 2009, p. 78.
76
liberdades polìticas‖ era com a liberdade do povo brasileiro, mais especificamente com
o direito da comunidade política em se autogovernar e até mesmo mudar o regime
político de acordo com a sua vontade.
Todas as vezes que uma forma de governo contrarie os fins para que foi criada, o
povo tem o direito de mudá-la ou de aboli-la, de instituir um novo governo,
baseado sobre os princípios e de organizar os seus poderes na forma que lhe
parecer mais própria, para a garantia de sua felicidade139.
Esse foi o trecho da Declaração de Independência dos EUA que Prado citou na
sua defesa do direito do povo brasileiro de mudar pacificamente a forma de governo. É
exatamente nesse ponto que identifico as diferenças entre as argumentações que Prado
desenvolveu nos artigos publicados no ―Comércio de São Paulo‖ e no livro ―Anulação
das liberdades polìticas‖. Como tentei demonstrar anteriormente, nos artigos, o autor
concentrou a sua reflexão no tema do habeas corpus, que consiste em um dos mais
fundamentais aparelhos jurídicos modernos comprometidos com a garantia das
liberdades individuais. Já no livro, Prado deslocou a argumentação da escala individual
para a dimensão coletiva, demonstrando claramente que a sua preocupação em defender
a autoridade legal da comunidade política brasileira em intervir na política, inclusive
modificando a forma de organização do governo. Em cada um desses dois momentos,
Eduardo Prado utilizou o conceito de liberdade mais adequado aos interesses da sua
argumentação, combinando, assim, os vocabulários políticos antigo e moderno, o que
acredito ter sido a grande característica do conservadorismo do autor.
Até aqui, examinei a forma como Eduardo Prado combinou as liberdades civil e
liberal em textos produzidos em momentos de grande tensão política. No primeiro
capítulo, analisei a inserção de Prado nas disputas entre os Partidos conservador e
liberal paulistas no final dos anos 1870. Neste capítulo, o tema tratado foi a participação
do personagem no ―caso do habeas corpus dos monarquistas presos‖, de 1897, que foi
um dos episódios mais importantes da história dos conflitos entre monarquistas e
republicanos nos primeiros anos da República. Proponho, agora, o estudo dos textos
onde o objetivo fundamental de Prado era discutir o problema das formas de governo,
especialmente no que tange à dicotomia Monarquia X República. Acredito que também
nesses textos a ideia de liberdade foi pensada a partir da combinação das perspectivas
liberal e civil.
139
PRADO, Eduardo. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo: Livraria Civilização: 1897. pp. 14-
15.
77
78
Capítulo 3
Não teríamos conservado por tanto tempo aquela instituição iníqua, se a maior
nação da América não tivesse tentado legitimá-la, e se, da parte escravocrata dos
Estados Unidos, não nos viesse o incentivo, se não chegasse até nós a notícia de
que se dizia e do que se fazia nos Estados Unidos para defender a escravidão141.
Prado viajou vastamente, viajou intensamente: não como vagabundo, mas como
filósofo, para quem o mundo constitui aquele livro que louva Descartes, o mais
proveitoso de folhear, ainda que o mais dificultoso de compreender, porque esse
vive, e os outros livros são almas embalsamadas (...) Prado no seu correr pelo
mundo não se limitou a contemplar a face dos homens e as pedras das cidades.
140
Idem. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 95.
141
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. pp. 166-167.
79
Prado, ao contrário, desejou penetrar no viver dos homens e no organismo das
sociedades, sendo um tipo de Heródoto brasileiro142.
142
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesyana, 1904. pp. 09-11.
143
HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. p. 38.
144
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 304.
145
Idem.
146
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p.54.
80
que foi seguida pelos estudos posteriores que se debruçaram sobre a vida e a obra de
Eduardo Prado.
São Paulo amanheceu com as forças policiais nas ruas e à cata dos exemplares
do livro do dr Eduardo Prado. Desde cedo as carroças com centenas de livros vão
e voltam na região central da cidade, sendo todos depois queimados. Há aqueles
que dizem que existe uma ordem de prisão contra o dr Eduardo Prado 148.
No mesmo dia 08 de dezembro de 1893, dona Maria Catarina, que era esposa do
irmão mais velho de Eduardo Prado, escreveu a seu filho, Paulo Prado, uma carta na
qual relatava a ação das forças policiais.
As coisas vão de mal a pior; aqui em São Paulo estes últimos dias só se fala no
livro de Eduardo Prado e na proibição de publicação do mesmo. Assim mesmo
venderam-se 200 e tantos, o livro posto à venta de manhã e a tarde já não se
achava sequer um exemplar. Dei sorte de encontrar este que te envio na casa da
sua vó (...). Hoje cedo por volta das 04 horas da madrugada foram não sei
quantos praças da cavalaria à tipografia e fizeram um alvoroço imenso e
tomaram todos os que ainda não estavam encadernados e carregaram em
carroças como se fosse lixo. Diversas pessoas que passavam com o livro na mão,
arrancavam e ameaçavam, que se dissessem qualquer coisa seriam presas.
Quanta infâmia! Meu Deus149.
147
Foi assim que ficou conhecida a Política Externa estadunidense para a América Latina ao longo do
século XIX. Lançada em 1823 pelo presidente James Monre, o lema ―A América para os Americanos‖
traduzia a pretensão dos EUA de se tornar o grande protetor das jovens nações americanas contra o
projeto colonial europeu.
148
―Estado de São Paulo‖. 08 de dezembro de 1893.
149
Coleção ―Paulo Prado‖. Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Cax. 08. Doc. 36.
81
aproximação com os EUA visando o apoio para a defesa do regime. O livro era
contundentemente contrário à república norte-americana150.
Prado está muito entusiasmado com a queda de Deodoro e não sai do gabinete há
três dias, onde incansavelmente escreve outro libelo contra a jovem República
brasileira. Dessa vez, o amigo escreve contra a aproximação da Ditadura
brasileira com os EUA. Prado ainda não me deixou ver os manuscritos, mas
tenho a certeza de que lá vem mais um ataque 151.
Foi por esses dias, final de 1891, que Prado voltou ao Brasil e começou a dirigir
o ―Comércio de São Paulo‖, que, como já vimos no último capítulo, foi o principal
jornal monarquista da época. Não foi à toa que no mesmo dia em que as forças policiais
paulistas apreenderam os volumes do ―A ilusão americana‖, a sede do ―Comércio de
São Paulo‖ foi destruìda. Para Cândido da Mota Filho, Prado estava na sua fazenda do
―Brejão‖, situada no municìpio de Araras, interior de São Paulo, quando recebeu a carta
de Bernardino de Campos, então Presidente de São Paulo, lhe avisando que o governo
150
JANOTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da república. São Paulo: Ed. Brasiliente, 1992, p.
78.
151
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987, p. 93.
152
D‘AVILLA, Luiz Felipe. Dona Veridiana: a trajetória de uma dinastia paulista. São Paulo: Editora
Girafa, 2004, p. 342.
82
federal já havia ordenado a sua prisão. O biógrafo afirma que foi por sugestão de
Teodoro Sampaio que Eduardo Prado resolveu fugir do Brasil através de uma rota
incomum, já que as autoridades políticas estavam de prontidão nos portos de Santos e
do Rio de Janeiro. A saída mais segura era o porto de Salvador e, por isso, o nosso
personagem seguiu pelo sertão da Bahia, em um dos episódios mais conhecidos da sua
biografia. Existem várias versões para a fuga de Prado, destacando-se aquelas
produzidas por biógrafos e contemporâneos.
Já na pena de José Lins do Rego, a fuga de Eduardo Prado pelo sertão baiano
ganhou contornos épicos. No artigo ―Eduardo Prado e o Baiano‖, o autor conta a versão
que teria ouvido de Paulo Prado.
83
quando Prado viajava pela América Latina, consigo perceber nos seus textos o esforço
de comparar as Repúblicas hispânicas com a Monarquia brasileira, comparação que nem
sempre foi favorável ao regime político chefiado por D. Pedro II. Identifico nesses
relatos o interesse de Eduardo Prado em observar os costumes dos governos e
sociedades hispano-americanas, dando ênfase especial à compreensão de como as
jovens nações vizinhas estavam se desenvolvendo politicamente no sentido de garantir
as ―liberdades polìticas fundamentais dos seus cidadãos‖ 155. É o próprio Eduardo Prado
quem diz que não pretende estabelecer um ―tratado cientìfico sobre as nações hispano
americanas‖, mas tão somente
julgar por impressão tudo aquilo que vimos. As nossas opiniões não têm a
pretensão de ser baseadas na análise e no estudo profundo dos indivíduos e dos
fatos; por isso, só temos opinião sobe indivíduos, sobre como eles vivem, se em
liberdade ou em cativeiro. Julgar por impressão não é um método, e, justamente
por o não ser, tem produzidos poucos erros; um bocejo interrompe sempre as
demonstrações em certos assuntos. Precedida disto, a nossa opinião se apresenta
sem pretensão. 156 (Grifos Meus)
155
Idem. p. 98.
156
Idem. pp. 63-64.
157
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 18.
84
regimes políticos que governavam os países do continente. O que pretendo fazer neste
capítulo é, portanto, analisar as especificidades desses dois textos, situando-os no
universo da obra de Eduardo Prado, mostrando como o autor combinou as concepções
antiga e moderna de liberdade no seu esforço de representar o Brasil através da análise
das características do republicanismo americano. Por isso, o este capítulo está dividido
em três partes: na primeira, eu examino como o nosso autor tratou, nos relatos das
―Viagens‖, o tema do republicanismo hispano-americano. Na segunda seção, eu
examino o lugar que os EUA da América ocupam no pensamento político de Eduardo
Prado. Na terceira seção, eu estou interessado, especialmente, em compreender como
Prado, no livro ―A Ilusão Americana‖, abordou o problema das formas de governo.
158
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 98.
159
Idem. p. 104.
85
disputas políticas formais de atores que até então excluídos160. Ilmar Mattos apresenta
um diagnóstico semelhante ao postular que a experiência dos conflitos regenciais foi
fundamental para a construção da identidade política das principais lideranças do
Segundo Reinado, que relacionavam a vacância do trono à República, à instabilidade e à
anarquia. Como as jovens nações latino-americanas eram governadas por Repúblicas, o
discurso político oficial da Monarquia brasileira associou esses países à barbárie e à
desordem. Portanto, ao elogiar as Repúblicas vizinhas, Eduardo Prado, membro do
Partido Conservador e monarquista convicto, mostrou que, naquele momento, em
meados da década de 1880, a sua adesão ao pensamento político hegemônico no Brasil
era relativa. O país ainda era governador por uma Monarquia e a rejeição à República
ainda não estava na agenda do nosso personagem.
160
MOREL, Marco. Cipriano Barata. Editora Brasiliense: São Paulo, 1986.
86
riquíssima dos brancos pensaram ser o republicanismo americano sinônimo de
liberdade, por trás da ilusão existe a violência e a perseguição 161. (Grifos Meus)
161
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 59.
162
VIROLI, Maurizio. Republicanismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 65.
163
Já Montesquieu, no ―Espìrito das Leis‖, fala em três formas básicas de governo: a Monarquia, a
República e o Despotismo.
164
FLORENZANO, Modesto. República e Republicanismo.. Ed. 34: São Paulo, 1999. p. 78.
87
Chamo pois de república todo o Estado regido por leis, sob qualquer forma de
administração que possa conhecer, pois só nesse caso governa o interesse
público e a coisa pública passa a ser alguma coisa. Todo o governo legítimo é
republicano. (...) Isto equivale a dizer que, se, numa comunidade política, mesmo
se sob forma monárquica, ninguém está acima da lei, então o poder é republicano
e, ao contrário, não se deveria falar mais em republica quando uma comunidade
política que adota essa forma de governo cai sob a ditadura de uma ou mais
pessoas que se colocam acima das leis e, consequentemente, acima do bem
comum165. (Grifos Meus)
165
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. Martins Fontes: São Paulo, 1998. p. 95.
166
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 97.
167
Idem. p. 91.
168
Articulação semelhante pode ser encontrada também na atuação dos republicanos brasileiros ao longo
da década de 1880, que se esforçaram em desconstruir a imagem que o pensamento monarquista oficial
construiu do regime político republicano. Maria Tereza Chaves Melo afirma que ―É esse arrazoado que
ganha as mentes no final do Império: as leis da História empurravam a evolução no sentido da
democracia. E esse termo não mais era entendido como um governo de representação, um governo
constitucional. A grande vitória da propaganda republicana foi estabelecer uma sinonímia entre
88
autor acredita que o texto ―O Senso Comum‖, de Thomas Paine, foi fundamental para a
delimitação da perspectiva moderna de representação política.
Paine foi não só o primeiro a propor, com o seu panfleto incendiário O Senso
Comum, de janeiro de 1776, explicitamente a independência das colônias
inglesas da América do Norte, e a adoção do regime republicano (―Está em
nosso poder começar o mundo de novo‖); foi, igualmente, o primeiro a
identificar republica com democracia e esta com o sistema representativo, como
se lê na seguinte passagem de ―Os Direitos do Homem‖ (segunda parte, 1792):
―Mantendo, então, a democracia como a base, e rejeitando os sistemas corruptos
de monarquia e aristocracia, o sistema representativo [ou seja, a republica] se
apresenta naturalmente, remediando de uma vez os defeitos da democracia
simples no tocante à forma. Enxertando representação na democracia, chegamos
a um sistema de governo capaz de abranger e confederar todos os vários
interesses e qualquer extensão de território e população 169. (Grifos Meus)
89
Contudo, ainda que o tom com o qual Prado aborda a República chilena seja
profundamente elogioso, ele não deixa de apontar certa superioridade da Monarquia
brasileira, como podemos perceber no trecho onde o autor compara a fala do trono com
o discurso presidencial.
Não costuma ser das melhores a literatura dessas peças, e, estabelecida uma
comparação entre a fala do Trono do Brasil e a mensagem presidencial, não se
pode negar àquela uma imensa superioridade sobre esta; a fala imperial tem,
sobre a republicana, sem falar no sal de sabedoria que lhe dá o direito divino, o
grande merecimento de ser curta, de ter brevidade, a primeira virtude das falas,
de que se devem sempre capacitar – dos males, o menor é o preferido171. (Grifos
Meus)
90
corrosão do tempo e manter viva a tradição que inspirou a ação dos fundadores da
República. O tema da resistência à corrosão do tempo é um dos mais importantes para a
compreensão do pensamento conservador de Eduardo Prado e, por isso, é tratado nesta
tese em um capítulo específico, o oitavo. O que interessa nesse momento é o uso da
ideia de liberdade. Acredito que no trecho em destaque, o nosso autor, mais uma vez,
priorizou a liberdade da comunidade à liberdade do indivíduo, o que, como já vimos nas
duas últimas sessões, é uma das principais características do repertório do direito civil
romano. Além disso, ao dizer que o abafamento da liberdade dos indivíduos não afeta o
bem estar social, ele demonstra está mais preocupado com a ordem do que propriamente
com liberdade dos cidadãos, o que era típico do pensamento monarquista brasileiro. Ao
analisar a tradição imperial brasileira, Ângela Alonso destacou as particularidades do
nosso liberalismo oitocentista que, segundo a autora, estava mais comprometido com a
ordem do que com a liberdade.
As reivindicações invariáveis mostram como os liberais viviam tão preocupados
em manter a ordem sociopolítica quanto os próprios conservadores, buscando
reformas internas ao status quo imperial. Seu slogan principal dá esta medida: a
liberdade na ordem. Seu liberalismo nada tinha de democrático. Concordavam
com os conservadores em manter o direito de voto generalizado, desde que
resguardada uma limitação pecuniária. Sua formulação do problema político
brasileiro estritamente liberal, não redundava na questão democrática ao modo
europeu ou norte-americano; não visava expandir os direitos políticos para a
maioria, mas garantir a opinião da minoria já participe do ―sistema
representativo‖175. (Grifos Meus)
Diferente do que vimos antes, quando Prado elogiou o governo chileno pela sua
capacidade de manter a ordem social, agora o autor critica essa mesma capacidade,
fazendo-o através de uma leitura da ideia de liberdade baseada no indivíduo e, portanto,
moderna. A critica é estendida ao Brasil, o que demonstra mais uma vez o esforço de
175
ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: A geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo:
Paz e Terra, 2002. p. 69.
176
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 107.
91
Prado em aproximar os dois países. O que mais chama a minha atenção é o modo
através do qual o nosso personagem modifica os fundamentos da sua argumentação. Em
um parágrafo, ele mobiliza o repertório cívico para elogiar o governo chileno pela sua
capacidade de garantir ―o bem estar social‖ e a liberdade coletiva, ainda que a custo do
abafamento das liberdades individuais, o que é considerado pelo autor o elemento
fundamental que demonstra a sobrevivência dos tais ―instintos de conservação‖, que
seriam os principais responsáveis pelo alto grau de civilização da sociedade chilena.
Entretanto, no parágrafo seguinte, Eduardo Prado critica essa mesma autoridade, agora
considerada excessiva, acusando-a de sufocar a empresa individual. É por esses e outros
exemplos que estou convencido de que a chave interpretativa ideal para a compreensão
do pensamento conservador de Eduardo Prado é aquela que prioriza a combinação de
repertórios diferentes. Prado transita, livremente, entre os valores políticos moderno
antigo, usando-os sem outro critério que não o estabelecido pelas circunstâncias.
O jogo de relação e combinação dos vocabulários políticos antigo e moderno
pode ser encontrado, também, em outras crônicas das ―Viagens‖, como, por exemplo,
naquelas nas quais Prado narrou a sua visita ao Uruguai. O autor não foi tão generoso na
avaliação dos hábitos políticos uruguaios como foi na avaliação dos hábitos políticos
chilenos. Ainda assim, acredito que as críticas do autor não são dirigidas propriamente à
forma de governo republicana, mas sim às especificidades do governo uruguaio, o que
reforça o argumento de que os textos das ―Viagens‖ ainda não apresentam o
antirrepublicanismo visceral que pode ser encontrado nas páginas do livro ―A ilusão
americana‖.
O autor relata os problemas que teve na chegada ao Uruguai, quando foi
―condenado à prisão momentânea pelo Supremo tribunal de Justiça da Higiene desta
banda oriental e pouco hospitaleira a estar de quarentena em frente de Montevidéu‖177.
Eduardo Prado está criticando as medidas adotadas pelo governo uruguaio para impedir
a entrada de pessoas infectadas pela febre amarela no país. Apesar da irritação, ele
comentou, com certa jocosidade, um aviso que estava afixado nas paredes das
dependências onde os viajantes ficavam acomodados durante a quarentena: ―É proibido
aos quarentenários destruir o estabelecimento, deteriorar as janelas e as portas‖.
Se é preciso, peroraram todos, declarar ser proibido o destruir-se o
estabelecimento, isto é, incendiá-lo, arrancar as janelas, quebrar-lhe as portas,
isto num cartaz proibitivo, é porque em outras leis não eram proibidas estas
inocentes diversões. E, como não havia nenhum artigo proibindo assassinar os
177
Idem. p. 08.
92
quarentenários, muita gente se julgou arriscada a esta ato lícito, por isso, que não
era proibido pela lei. Foi, talvez, temor em excesso, justificado pelo temor dos
uruguaios com o contágio da febre amarela 178. (Grifos Meus)
Fulano foi feito coronel e ministro, sob o governo de tal presidente. Edificou
logo uma bela casa, encheu-se de mobília parisiense e caríssima. Uma revolução
derrubou o presidente e o novo presidente nomeou mais um coronel, que fez o
mesmo que o outro; tudo isso mostrando como a República uruguaia está
corrompida em suas virtudes180.
178
Idem. p. 11.
179
Idem. p. 19.
180
Idem. p. 24.
93
República. Já o caso do Uruguai foi diferente, pois lá a República vivia um momento de
corrupção das virtudes. Nas palavras do próprio Eduardo Prado, ―a República Uruguaia
está corrompida‖, o que não quer dizer que seja essencialmente corrompida. A grande
diferença entre Chile e Uruguai seria, então, a capacidade no caso chileno e a
incapacidade no caso uruguaio, de resistir à corrosão do tempo. Ainda que não seja esse
o momento de abordar de forma mais direta o problema da temporalidade, creio ser
importante mostrar como essa dicotomia virtude X corrosão temporal também pode ser
encontrada nos escritos de outro importante pensador moderno, Montesquieu, o que
evidencia a modernidade do conservadorismo de Eduardo Prado.
Um Estado pode mudar de duas maneiras: ou porque a constituição se corrige,
ou porque ela se corrompe. Se ele conservou seus princípios e a constituição
muda, e que ela se corrige; se ele perdeu seus princípios, quando a constituição
vem a mudar e que ela se corrompe. Em um caso, o tempo conserva no outro
corrompe181.
Tal como podemos observar nos escritos sobre o Chile, Eduardo Prado também
se mostrou preocupado em avaliar até que ponto a República uruguaia garantia as
liberdades políticas dos seus cidadãos. Mais uma vez, ele fez ele combinou a liberdade
liberal com a liberdade civil.
As belas praças de Montevidéu, suas ruas, as lindas construções, vimo-las ainda,
sem esquecer a estátua da liberdade, na praça Cagancha. É uma alta coluna de
pedra, de grossura pouco respeitável, mas que é suficiente para indicar que, em
Montevidéu, a liberdade está tão alta que é inacessível a todos os homens que
desejem governar junto com o Presidente, como deve acontecer na verdadeira
democracia. E é bom, enfim, que a liberdade esteja em alguma parte. Não
convinha que se depreciasse, aparecendo em todos os cantos, já que no Uruguai
em todos os cantos há soldados e generais, prontos a erguer barreiras no caminho
do cidadão uruguaio183.
181
MONTESQUIEU. O espírito das leis. Rio de Janeiro: Ed. Saraiva, 1994. p. 325.
182
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 30.
183
Idem. p. 34.
94
chave dos vocabulários políticos antigo e moderno. Primeiro, ele apontou a
incapacidade da República uruguaia em garantir a liberdade dos cidadãos utilizando
como critério da crítica o direito à participação no governo, o que, como já sabemos,
caracteriza a liberdade civil, que se constrói a partir da contraposição ao estatuto da
escravidão e com base no princípio do autogoverno. Logo depois, o autor afirma que a
presença ostensiva dos militares nas ruas de Montevidéu funcionava como uma espécie
de barreira que cerceava a livre movimentação do cidadão uruguaio, o que retoma o
tema da livre movimentação dos corpos como o critério fundamental para a concepção
moderna e liberal de liberdade.
Essa combinação de repertórios também aparece nos relatos sobre a Argentina,
que foi alvo de críticas ainda mais severas do que as que foram direcionadas ao
Uruguai. De todas as crônicas que compõem as ―Viagens‖, aquelas que foram
destinadas à Argentina são as que mais se aproximam do teor crítico através da qual o
pensamento monarquista oficial brasileiro tratou o republicanismo hispano americano e,
ainda assim, em pouco se assemelham à virulência que podemos encontrar no livro ―A
Ilusão Americana‖. ―De todo o novo mundo, a República Argentina é aquela que mais
mostrou exemplos nefastos do mais vil nepotismo184‖. Em um primeiro momento, a
verborragia crítica de Eduardo Prado mira na formação do país vizinho. Ao falar sobre a
arquitetura da catedral de Buenos Aires, o autor ironiza a imagem esculpida na fachada
no edifìcio, usando o ensejo para questionar as ―virtudes‖ dos fundadores da República
Argentina :
Começada em 1589, sua construção terminou complemente e 1862, e na fachada,
que foi principiada em 1822, está representado, em alto relevo, José abraçando
seus irmãos, fato que a simbólica ironia dos portenhos ali fez consignar, porque
naquela data Buenos-Aires se reúne às outras províncias para formar a República
Argentina. Sabe-se que os irmãos de José não eram lá gente de contas virtuosas
muito limpas e, se viessem hoje, não escapariam ao júri e à penitenciária. Como
foi amável Buenos Aires representando as outras províncias nas pessoas
daqueles tratantes patriarcais185. (Grifos meus)
Por outro lado, quando menciona as formas através das quais as autoridades
argentinas estravam tratando o túmulo de San Martin (1778-1850), Prado parece
demonstrar certa admiração por esse líder independentista, o que parece sinalizar que,
também no texto sobre a Argentina, o autor não está empenhado em desqualificar a
forma republicana de governo.
184
Idem. p. 33.
185
Idem. p. 42.
95
Sob a abóbada de uma capela lateral, eleva-se o túmulo [de San Martin], que é de
bronze, sobre um alto pedestal, construído com grande variedade de mármores
belíssimos. Inscrições comemoram, em estilo arqui-pomposo e nada republicano,
os feitos do grande homem. O valente soldado paraguaio teria muito maior
elogio na simplicidade do seu nome. Isto compreendeu o artista que, na estátua
equestre de Belgrano, colocada numa das praças da cidade, nenhuma inscrição
gravou no mármore, ou no bronze, mostrando assim que não se admite a
possibilidade de um argentino não ter gravada no coração a imagem do herói que
a estátua representa. É pena que o abandono em que está a praça tenha deixado o
capim invadir as imediações da estátua. Será para alimentar cavalo do herói?
(Grifos Meus)
O que está em jogo para Prado não é a importância de San Martin, que é
definido como um ―herói‖, como um ―grande homem‖, mas sim o tratamento ―pouco
republicano‖ que o governo argentino deu à memória desse personagem. Apesar de o
autor não ter sido claro, acredito que a sua crítica se refere ao excesso de pompa
personalista, o que comprometeria o princípio da isonomia republicana. Temos aqui,
acredito, um elogio à República, que mais uma vez é pensada na perspectiva clássica,
ou seja, como um tipo de organização política comprometida com o respeito às leis e
com a garantia das liberdades plenas. Por outro lado, nos mesmos relatos, Eduardo
Prado ataca diretamente o republicanismo hispano americano ao apontar a falta de
estabilidade polìtica dos paìses vizinhos, ao dizer que ―nas Repúblicas espanholas é
coisa muito fácil ver um, ou mesmo, muitos presidentes da República, numa curta
permanência que um indivíduo tenha nesses países, sendo isso a prova cabal do
anarquismo que na América atende sob o nome da República‖ 186.
186
Idem. p. 123.
96
exemplo, para o elogio a San Martin e para uma leve ironia à Monarquia brasileira:
―Também no Brasil o viajante desavisado pode se surpreender com a nomeação e
demissão de vários ministros em pouco tempo; ao caminhar pelas ruas da Corte, esse
viajante pode olhar um ex-ministro e pensar: lá se vai um ex-ministro, o mesmo que há
pouco era ministro‖ 187.
Não podemos esquecer que Eduardo Prado redigiu essas crônicas de viagem em
algum momento entre 1882 e 1886 e que anos antes, ele, a exemplo dos seus
correligionários conservadores paulistas, se envolveu em conflitos com os governos
liberais, chegando mesmo a definir como golpista a intervenção do poder moderador de
05 de fevereiro de 1878, como demonstrei no primeiro capítulo desta tese. Ao ler o
trecho citado, tenho a sensação de que essa lembrança ainda estava bem viva para
Eduardo Prado, que iguala a Monarquia brasileira às Repúblicas vizinhas naquilo que se
refere à instabilidade das instituições. Portanto, se nas crônicas sobre a Argentina, o
nosso autor criticou o republicanismo hispano americano com argumentos semelhantes
aos utilizados pelo pensamento político oficial da Monarquia brasileira, criticou também
a própria Monarquia, o que o mostra que os seus vínculos com discurso oficial
monarquista podem ser problematizados.
Quando Eduardo Prado estava na Argentina teve a oportunidade de presenciar os
debates parlamentares a respeito do projeto de vacinação obrigatória contra a febre
amarela. O tema chamou muito a atenção do nosso autor e é, exatamente, nessa
discussão que o vejo mobilizar, outra vez, a ideia de liberdade, sendo sempre pensada a
partir da combinação dos repertórios antigo e moderno.
Assistimos a duas curiosas discussões. A primeira sobre obrigatoriedade da
vacina. Dissertaram longamente todos os médicos da câmara sobre a vacina entre
os gregos e os romanos; a linfa oratória não corria como cristalina, sonorosa linfa
fugitiva, de camões; falta aos médicos argentinos os arrombos da boa retórica 188.
187
Idem. p. 123.
188
Idem. p. 117.
97
ingerência, cujos limites se não poderiam prever, em todos os atos privados,
proclamaram, enfim, a celebre ideia da ditadura para o bem, que tantos males
tem produzido e à qual seria até preferível à ideia da liberdade para o mal, se
socialmente não fosse um absurdo acreditar que a liberdade deva levar ao mal 189.
(Grifos Meus)
189
Idem. pp. 117-118.
190
MONTESQUIEU. O espírito das leis. Rio de Janeiro: Ed. Saraiva, 1994. p. 278.
191
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. Martins Fontes: São Paulo, 1998. p. 130.
192
MOSCATELI, Renato. Rousseau frente ao legado de Montesquieu: imaginação histórica e teorização
política. Tese de Doutorado: UNICAMP, 2009. p. 176.
98
Ao comparar a argumentação de Eduardo Prado na crítica ao projeto dos
médicos argentinos em instituir a vacinação obrigatória contra a febre amarela com as
argumentações de Rousseau e Montesquieu a respeito da magistratura da ditadura,
percebo uma diferença notória; ao contrário dos dois filósofos, o nosso autor não
reconhece a utilidade da ditadura, chegando mesmo a afirmar que é um absurdo supor
que a liberdade possa conduzir ao mal. Acredito que ainda que de forma frouxa e pouco
sistematizada, Prado está nos apresentando certa forma de pensar o homem, que é
definido como um indivíduo naturalmente livre, liberdade essa que não pode ser
alienada, nem mesmo em momentos de crise. Essa argumentação é profundamente
liberal no seu conteúdo. Porém, como já estamos habituados, o tom da análise é
modificado poucas linhas depois e, novamente, Eduardo Prado transita do liberalismo
para o republicanismo cívico.
Sorte o povo argentino ter contato com a defesa de alguns advogados, que
prontamente apontaram a ilegalidade da representação médica; os advogados
mostraram que a republicana argentina não poderia abrir mão da legalidade
jurídica a preço de deixar de ser uma republica; os advogados, em peça retórica
bem superior à médica, defenderam a verdadeira liberdade do povo argentino
dizendo que impor autoritariamente a vacinação seria o mesmo que reduzir
aquele povo à posição de servidão193.
99
3.2- O lugar dos EUA no pensamento político conservador de Eduardo Prado
Nas suas viagens de meados dos anos 1880, Eduardo Prado visitou, também, os
EUA, nos apresentando uma instigante leitura a respeito dos costumes políticos desse
país. Essa leitura fica ainda mais instigante quando a comparamos com a leitura
posterior, ou seja, aquela que ele fez anos depois, nas páginas do livro ―A Ilusão
Americana‖. Esse exercìcio comparativo sugere que a proclamação da República
brasileira inseriu na produção político/intelectual de Eduardo Prado um elemento que
até então ainda não tinha se mostrado de forma explícita: o antirrepublicanismo. Outro
aspecto que merece destaque é a desigualdade com a qual os dois textos em questão
foram tratados pela historiografia posterior. Enquanto os relatos das ―Viagens‖ somente
foram mencionados pelos biógrafos Candido da Motta Filho e Sebastião Pagano, o livro
―A Ilusão Americana‖ foi contemplado por uma fortuna crìtica mais generosa, a
começar pelos próprios biógrafos. Para Cândido da Motta Filho, o livro ―A Ilusão
Americana‖ deu seguimento à tendência de manifestação política que Eduardo Prado
inaugurou dos ―Fastos da Ditadura Militar Brasileira‖, devendo, por isso, ―ser
194
considerado o seu escrito mais emblemático‖ . Realmente, uma rápida mirada no
prefácio de ambos os livros mostra que a relação proposta por Cândido da Motta Filho
faz sentido.
Disse um romano que os livros têm o seu destino, O deste não foi dos piores,
honrado como foi, com as iras dos inimigos da liberdade. A própria verdade não
proclamou felizes os que sofrem perseguidos pela justiça 195. (Grifos Meus)
(Ilusão Americana)
194
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 173.
195
Idem. p. 175.
100
signo do conservadorismo, o que implica na ausência de grandes sistematizações, um
acentuado senso de circunstância e a combinação entre os valores dos vocabulários
políticos antigo e moderno.
196
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Editora Global: São Paulo, 2004. pp. 73-74.
197
Idem. p. 186.
198
ARMANI, Carlos Henrique. Discursos da Nação: historicidade e identidade nacional no Brasil em
fins do século XIX. Porto Alegre: Ed. PUCRS, 2010. p. 12.
101
loiro do norte, que pretendia fazer da América um ―espaço vital‖ de sua
geopolítica, sob o eufemismo de fraternidade americana, sustentada pela
Doutrina Monroe. Significava para esses escritores, como pensava Nabuco em
1893, a perda de um continente199.
Há aqui uma boa pista para seguir, um rastro que conduz ao diálogo de Eduardo
Prado com um dos principais argumentos do repertório conservador moderno. Edmund
Burke (1729-1797), François René de Chateaubriand (1768-1848) e Alexis de
Tocqueville (1805-1859) são, segundo os estudos de Karl Mannheim e Robert Nisbet,
os principais responsáveis pelo delineamento do repertório do conservadorismo
199
Idem. p. 92.
200
Idem. p. 94.
201
Idem. p. 95.
102
moderno. No catálogo da biblioteca de Eduardo Prado, que está sendo tão importante
para a reflexão que estou desenvolvendo nesta tese, constam os textos escritos por esses
três autores, incluindo as ―Reflexões sobre a Revolução Francesa‖, de Burke, a
―Democracia na América‖, de Tocqueville, e a ―Viagem à América‖, de Chateaubriand,
todos classificados com a rubrica ―Polìtica‖ por A. Gazeau, o livreiro responsável pela
organização do catálogo. Apesar das especificidades que particularizam o pensamento
político desses três autores, é possível perceber a recorrência de alguns argumentos que
se tornaram fundamentais para a ―ideologia conservadora‖, para utilizar um termo caro
a Karl Mannheim. Entre esses argumentos, o elogio aos EUA é o mais importante para a
reflexão que estou desenvolvendo neste capítulo. Edmund Burke, por exemplo, nas suas
―Reflexões sobre a Revolução Francesa‖, diz que ―na América, os EUA [diferente dos
jacobinos franceses] não nivelaram a sociedade com pretexto de fundar a liberdade, mas
sim garantiram que o povo fosse livre para participar de todas as decisões do
governo‖202.
103
Por isso, a liberdade antiga é definida a partir do contraste com a escravidão. No livro
―A Ilusão Americana‖, Eduardo Prado utilizou um argumento semelhante para elogiar
os ideais dos fundadores da república norte-americana e para criticar a política externa
desenvolvida pelos EUA ao longo do século XIX.
Em mais de uma ocasião, Eduardo Prado teceu elogios aos EUA, a começar
pelas crônicas reunidas no livro ―Viagens‖. O tom elogioso pode ser percebido já no
início do relato:
Chegamos em Nova York às sete da manhã e pude ver o raiar do dia na principal
cidade do berço das liberdades políticas do novo mundo; o sol queimava a nossa
pele levemente, fazendo-nos lembrar que estávamos próximo ao calor do Brasil;
(...) estávamos chegando à vanguarda das liberdades modernas 205.
Algo parecido pode ser encontrado, até mesmo, nas páginas do ―A Ilusão
Americana‖, que como já sabemos tratou-se de um livro destinado a criticar a guinada
americanista da política externa brasileira nos primeiros anos da República. Para
Eduardo Prado, e esse é o argumento central do livro, os governos republicanos estavam
buscando a aproximação entre Brasil e EUA baseados na crença do principio da
fraternidade americana, que era o fundamento da Doutrina Monroe. O nosso autor
afirma que esse princípio era mentiroso, tratando-se tão somente de um pretexto
utilizado pelos EUA para a dominação dos países americanos. Mesmo assim, mesmo
em um livro de natureza crítica, o nosso autor identificou as virtudes dos fundadores da
República estadunidense, virtudes que teriam sido perdidas com o passar do tempo.
205
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 182.
206
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 22.
104
liberdade que Eduardo Prado mobiliza nos seus textos sobre os EUA? Acredito que a
essa questão pode ser melhor pensada se dedicarmos alguma atenção ao lugar que os
EUA ocupam na teoria política moderna. Para isso, é fundamental retomar a discussão,
que já apresentei antes, quando destaquei importância dos estudos de Hans Baron sobre
o pensamento político florentino para a nossa atual percepção a respeito das tradições
politicas ocidentais. Como já sabemos, os estudos desse autor foram seminais para a
história do pensamento político porque foram inovadores naquilo que se refere às
relações entre os valores políticos antigos e modernos. Ao propor que a Renascença
reatualizou os valores políticos das cidades-estados antigas, Baron apresentou uma tese
que foi posteriormente desdobrada por diversos estudiosos, entre estes Bernard Bailyn,
que em 1967 publicou um estudo fundamental a respeito da história dos EUA. Ao
examinar os panfletos políticos escritos na época da revolução independentista, Bailyn
afirmou que:
207
BAILYN, Bernard. As origens ideológicas da Revolução Americana. São Paulo: EDUSC Ed, 2003. p.
18.
208
Idem. p. 42.
105
crenças políticas e sociais. Eles intensificaram a sensibilidade dos colonos para
ideias e atitudes provenientes de outras fontes209.
O tom elogioso é evidente, o que demonstra que na época, quando o Brasil ainda
era governado pela Monarquia, o nosso autor era um admirador dos EUA, situação que
mudaria drasticamente após o golpe republicano de 1889. Acredito que seja possível,
ainda, identificar nessa breve citação a combinação entre a liberdade liberal e a
liberdade cívica. É certo que Eduardo Prado não sistematiza nenhuma das duas
perspectivas, mas o seu elogio sinaliza o uso dessas tradições, o que demonstra que a
sugestão de Baron, Pocock e Bailyn de que os valores cívicos das cidades estados
antigas chegaram à modernidade pode servir como um bom modelo de análise para o
209
Idem. p. 45.
211
POCOCK. J. G. A. The Machiavellian moment. Princeton: Princeton Press, 1975. p. 326.
212
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 183.
106
estudo dos textos de um pensador conservador moderno, como foi Eduardo Prado. Ao
dizer que o Congresso estadunidense era a morada dos ―representantes‖ do paìs, o nosso
autor mobilizou os valores políticos pertencentes ao repertório liberal, que, como já
vimos, é constituído entre outros, pelo princípio democracia representativa, segundo o
qual o povo é livre porque vota e delega poder aos seus representantes. Por outro lado,
Eduardo Prado definiu a República ianque como um ―verdadeiro governo do povo‖, o
que sugere o princípio da auto governabilidade do corpo político, valor que é
fundamental para o repertório cívico. A argumentação é semelhante quanto Prado
aborda o empenho dos governos dos EUA em garantir as liberdades políticas dos
cidadãos.
Em nenhum país, o governo é tão responsável pelo bem estar do povo como nos
EUA, justamente porque nesse país o governo deixa o cidadão ao livre conduzir
de sua empresa individual. (...) Por seu turno, o cidadão típico dessa grande
República tem a tranquilidade necessária para cultivar a sua riqueza privada e
participar ativamente do governo da República 213. (Grifos Meus)
Cerca de sete anos depois de redigir os relatos de sua viagem aos EUA, Eduardo
Prado voltou a escrever sobre esse país. Os tempos eram outros, assim como são outros
o estilo da narrativa e o tom da argumentação. Diferente dos textos das ―Viagens‖, o
livro ―Ilusão Americana‖ é marcado por um notório esforço de sistematização analìtica.
213
PRADO, Eduardo. Viagens. (Vol. 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 185.
107
Nesse livro, o nosso autor levanta um problema e apresenta uma tese, sendo a sua
escrita marcada por um sensível rigor metodológico e pelo constante apelo à
documentação, o que demonstra o interesse de Prado em investir o seu texto de
credibilidade científica. Outra diferença notória entre os dois textos está na dimensão
polìtica. Enquanto nas ―Viagens‖, Prado pretendia narrar suas experiências de viagem
para os leitores da ―Gazeta de Notìcias‖, atuando como um ―Heródoto brasileiro‖, como
bem o definiu Eça de Queirós, o livro ―A Ilusão Americana‖ é, claramente, um
manifesto de oposição à República brasileira. Por isso, ainda que o teor analítico desse
texto seja perceptível, não podemos esquecer que ele faz parte do projeto político
restaurador do qual Eduardo Prado foi um dos principais líderes. O vínculo do livro de
Eduardo Prado com sua política antirrepublicana fica claro já no prefácio à segunda
edição, que foi escrita em 1894, quando o nosso autor estava no exílio na Europa.
Eram jovens os nossos bisavós quando foi extinto o santo ofício. Deste então, em
nosso país, nunca mais o poder ousou interpor-se entre os nossos raros escritores
e o seu escasso público. Julgavam todos definitiva esta conquista liberal, mas o
governo republicano do Brasil, tristemente predestinado sempre contra a
civilização, a todos desenganou. Na República o livro não teve mais liberdade do
que o jornal, do que a tribuna, nem mais garantias do que o cidadão. Disse um
romano que os livros têm seu destino. O deste não foi dos piores, honrado, como
foi, com as iras dos inimigos da liberdade, que demonstraram como no Brasil o
governo da nação não é da alçada do povo214. (Grifos Meus)
214
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 16.
108
Não sou o primeiro a identificar a presença dos valores do republicanismo cívico
no livro ―A Ilusão Americana‖. Em um importante trabalho a respeito das
representações desenvolvidas por Eduardo Prado e Monteiro Lobado a respeito dos
EUA, Carmem Lucia Felgueiras apresentou uma interpretação semelhante.
Ocorre, portanto, que estarão unidos em sua concepção de República um
conceito agostiniano de tempo e a vertente polibiana do humanismo cívico,
quando afirma que a virtude da parte (ou partido, ou classe) governante,
precisamente por ser uma virtude particular, torna-se corrupta tanto pelo fato de
operar a junção de interesses públicos e privados quanto porque impede o
desenvolvimento da virtude nos grupos excluídos do poder215.
215
FELGUEIRAS, Carmen Lúcia Tavares. O Futuro e suas Ilusões. Os Estados Unidos de Monteiro
Lobato e Eduardo Prado. Tese de Doutorado: Rio de Janeiro, IUPERJ, 1999. p. 157.
109
Pensamos que é tempo de reagir contra a insanidade da absoluta confraternização
que se pretende impor entre o Brasil e a grande República anglo-saxônia, de que
nos achamos separados, não só pela grande distância, como pela raça, pela
religião, pela índole, pela língua, pela história e pelas tradições do nosso povo216.
216
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 17.
217
FELGUEIRAS, Carmen Lúcia Tavares. O Futuro e suas Ilusões. Os Estados Unidos de Monteiro
Lobato e Eduardo Prado. Tese de Doutorado: Rio de Janeiro, IUPERJ, 1999. p. 155.
110
A simpatia do nosso autor Eduardo Prado pelo sistema político britânico já pode
ser observada nos seus textos de juventude. Em 1880, ele passou a utilizar o
pseudônimo Tory, em uma clara referência ao Partido Conservador inglês. Na crônica
polìtica publicada no ―Correio Paulistano‖ em março de 1881, o autor escreveu que ―A
218
Inglaterra é o governo mais democrático do mundo‖ . Talvez, Eduardo Prado tenha
aprendido a admirar a Monarquia inglesa em casa, durante a infância, nas conversas
com seu irmão mais velho, Antônio. Da mesma forma como o próprio Eduardo faria
vinte anos depois, Antônio Prado viajou pela Europa, assim que se bacharelou,
chegando a morar em Londres durante dois anos. Em carta enviada ao pai em 1863,
Antônio Prado demonstra o seu deslumbramento com o regime político inglês, dizendo
que ―a Inglaterra conseguiu encontrar a fórmula ideal para fazer frear a Revolução. O
pacto entre o direito dinástico e os notáveis, todos andando juntos e harmonia e guiando
a coletividade para a civilização. Parece ser essa a fórmula ideal‖ 219.
Elogio semelhante pode ser encontrado nos escritos de Edmund Burke (1729-
1797), que era um apologista da Monarquia inglesa e definia esse sistema político como
o ideal para a modernidade porque era capaz de se colocar no meio termo entre a
autoridade despótica do chefe e a irresponsabilidade da plebe. Essa defesa do ―governo
dos melhores‖ fica particularmente evidente na análise que esse filósofo inglês fez da
experiência da Revolução Francesa. Para Burke, a cultura política da Revolução
Francesa, particularmente o jacobinismo, errou ao tentar definir a cidadania e a
liberdade moderna a partir dos critérios clássicos de cidadania e liberdade. O autor de
―A Vindication of natural society” considerou esse um ―erro primário e básico de
interpretação, um equívoco de análise que pecou por não reconhecer as especificidades
das experiências em questão‖220.
Nesse sentido, a argumentação de Burke contra a Revolução Francesa pode ser
dividida em dois momentos: no primeiro, ele aponta a especificidade histórica da
Atenas antiga e da França moderna e na segunda ele afirma a inaplicabilidade dos
valores clássicos à sociedades modernas. Burke definiu a Revolução Francesa como um
ataque à ordem Wigh implantada na Inglaterra em 1688. Esse ataque, ainda segundo ele,
esteve baseado no princípio antigo de cidadania, fundamentado, por sua vez, na
valorização da autonomia resultante da posse da propriedade real. Bastava, então, que o
218
―Correio Paulistano‖. 23 de outubro de 1881.
219
D‘AVILLA, Luiz Felipe. Dona Veridiana: a trajetória de uma dinastia paulista. São Paulo: Editora
Girafa, 2004. p. 265.
220
BURKE, Edmund. The works of the Edmund Burke. Rivington: Londres, 1826. p. 46.
111
sujeito atendesse alguns critérios, como idade, nascimento e filiação, e possuísse
condições de garantir a sua própria subsistência para que tivesse direito efetivo à voz
política. Para Burke, esse cidadão antigo era economicamente subdesenvolvido já que
lançava mão da escravidão, não tendo, por isso, a verdadeira virtude.
No livro ―A Ilusão Americana‖, Eduardo Prado apresenta uma crìtica
semelhante à Revolução Francesa. Essa crítica é um desdobramento do elogio que o
autor fez aos fundadores da República norte-americana, que, como vimos há pouco, o
ele chamou de ―homens extraordinários‖.
É altamente cômica a ignorante pretensão com que escritores francês superficiais
procuram ligar a revolução americana à revolução francesa, querendo por força
que as ideias revolucionárias francesas tenham influído na América, quando, a
ter havido alguma influência, foi antes da América sobre a França (...) Quando
rebentou a revolução, quando ela começou a exigir a liberdade de matar e
incendiar, houve em toda a América uma grande simpatia por Luís XVI e Maria
Antoniete, os antigos aliados, os generosos protetores da independência
americana. Pouco tempo depois, o governo de Washington rompeu relações
diplomáticas com a República francesa221. (Grifos Meus)
Ao afirmar que a República francesa é anômala, Prado, ainda que de forma nada
sistematizada, retomou o argumento de que o processo revolucionário francês excedeu
os limites da liberdade segura, comprometendo, portanto, a normalidade social.
Situação diferente teria acontecido nos EUA, onde o processo revolucionário foi
221
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. pp. 22-23.
222
Idem. p. 50.
112
virtuoso e não necessariamente republicano. O autor acredita que um Príncipe inglês
teria sido o suficiente para fazer do novo país uma Monarquia respeitadora da liberdade
das outras nações latino-americanas. Para Prado, se os EUA tivessem se tornado uma
Monarquia nos moldes ingleses, as nações latino-americanas seriam livres, ou seja, se
auto-governariam livremente e não sofreriam a opressão do imperialismo estadunidense.
Percebo aqui presença dos valores constitutivos do repertório cívico, já que Prado não
está interessado na dimensão individual dessa liberdade, mas sim na sua manifestação
no corpo político, nos povos latino-americanos; a liberdade aqui é definida a partir do
contraste com o imperialismo norte-americano. Essa presença fica ainda mais clara
quando Prado compara as atuações da Monarquia inglesa e da República estadunidense
na conjuntura da emancipação dos países latino-americanos.
Vejamos na história: que auxílio prestou o governo americano à independência
das colônias ibéricas da América? Qual tem sido a atitude dos Estados Unidos
quando estes países têm sido atacados pelos governos europeus? Com os tem
tratado o governo de Washington? Qual tem sido o papel dos Estados Unidos nas
lutas internacionais e civis da América Latina? Qual a sua influencia política,
moral e econômica sobre estes países? (...) À Inglaterra principalmente, e não
aos Estados Unidos, deve a América latina a força moral que lhe permitiu fazer a
sua independência. A independência das nações latinas da América em nada foi
protegida pelos Estados Unidos, que somente se manifestou a favor das
chamadas ―nações irmãs‖ depois da Inglaterra223.
223
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. pp. 24-25.
224
MONTESQUIEU. O espírito das leis. Rio de Janeiro: Ed. Saraiva, 1994. p. 117.
225
Idem.
113
essas palavras, podemos ficar inclinados a supor que a análise de Montesquieu não está
comprometida diretamente com a defesa das liberdades políticas. Essa impressão se
dilui no capìtulo ―Da Excelência do Governo Monárquico‖, onde o autor explica que a
existência de ordem sociais intermediárias sob o governo do príncipe faz com que o
Estado tenha mais estabilidade e não incorra no poder pessoal, uma vez que o príncipe
deve satisfações aos grupos que comanda, tendo seus poderes limitados pela lei, que é
definida como a ―materialização da vontade da nação‖. Porém, os elogios de
Montesquieu não se dirigem a todo e qualquer governo no qual a soberania esteja
depositada na pessoa do Príncipe, mas sim aqueles nos quais a nobreza seja uma classe
política ativa e capaz de manter conter os poderes do Monarca nos limites previstos pela
lei.
Naquilo que se refere especificamente à Monarquia inglesa, Montesquieu, a
exemplo de Burke, considerou o regime político inglês o mais próximo do ideal
moderno de organização polìtica, dada a ―coparticipação do povo de dos nobres no
comando da nação, o que faz com que a Inglaterra seja uma verdadeira República
226
disfarçada sob a forma de Monarquia‖ . Tal como Eduardo Prado fizera nas suas
crônicas de viagem, Montesquieu também não utilizou a categoria ―República‖ na sua
perspectiva moderna, mas sim no seu sentido clássico, de acordo com o qual um
governo pode ser chamado de republicano se for regulado pela soberania da lei e
conduzido segundo a vontade do povo.
Ao operar com a polarização Monarquia X República, Eduardo Prado estava
tentando discutir outro par antitético: liberdade X despotismo. Exatamente por isso, o
livro ―A Ilusão Americana‖ é tão importante para a reflexão que venho desenvolvendo
nesta primeira unidade. Como mostrei neste capítulo, essa polaridade perpassa o texto,
chegando mesmo a ser desdobrada em uma discussão a respeito da escravidão, que é
onde fica mais perceptível a presenta dos valores do republicanismo cívico na
argumentação de Eduardo Prado.
O nosso autor criticou veementemente o governo peruano por ter utilizado, na
década de 1880, o trabalho escravo chinês na produção de guano. A forma como
Eduardo Prado trata o posicionamento dos EUA e da Inglaterra a respeito nos leva ao
cerne da discussão a respeito da liberdade.
Esse tráfico de escravos amarelos era feito por umas casas americanas, e quase
sempre sob a bandeira estrelada que protegia a escravidão asiática (...) O
226
Idem. p. 224.
114
ministro americano Hurbulrth era o legítimo representante dos interesses
fundidos das casas americanas e dos políticos peruanos nos escândalos da
exploração do guano e dos mil negócios que, à sombra da diplomacia norte-
americana, tinham já arruinado o peru, tornando-o escravo do grande protetor do
norte227. (Grifos Meus)
227
PRADO, Eduardo. A ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1980. p. 86.
228
Idem. p. 131.
229
Idem. p. 85.
115
interpretativo priorize outro recorte conceitual. É exatamente isso que faço na próxima
unidade, onde examino os textos de Eduardo Prado à luz do problema das relações entre
vida pública e vida privada.
116
Unidade II
117
118
Prólogo
E, assim como as leis antepõem a saúde de todos a de cada um, assim o varão
bom, sábio e obediente às leis, e não ignorante do dever civil, atenta mais à
utilidade de todos que a de um só ou à sua própria (...) É digno de nota aquele
que se lança à morte pela República, dando-nos testemunho de que devemos
230
amar mais a pátria do que a nós mesmos . (Cícero)
230
CÍCERO. Do sumo bem e do sumo mal. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 114.
231
LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004. p. 139.
232
No livro ―Estado, governo e sociedade‖, Norberto Bobbio afirma que a dicotomia ―Público X Privado‖
é ―o binômio fundador do pensamento polìtico ocidental uma vez que subsume muitos outros e cujas
fronteiras são difusas e intercambiáveis‖. p. 13.
119
que inicio este prólogo com epígrafes extraídas dos escritos de dois importantes
representantes do pensamento político ocidental, ambos pertencentes ao acervo
bibliográfico do nosso autor: respectivamente, Cícero, que costuma ser associado à
tradição republicana233, e Locke, que é definido como um dos principais representantes
do jusnaturalismo moderno234. A dicotomia público X privado é tratada em ambas as
citações, sendo que isso é feito de formas distintas, o que não quer dizer que sejam
excludentes entre si.
A primeira citação foi extraìda do tratado ―Do sumo do bem e do mal‖ e precisa
ser situada no horizonte da filosofia política de Cícero, que, de acordo com os estudos
de Newton Bignotto, ―tem o objetivo de nortear o comportamento ideal do homem
235
público na República‖ . Portanto, o autor acredita que o pensamento político do
orador romano se relaciona de forma ambígua com a herança grega.
233
BIGNOTTO, Newton. As origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
234
BOBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: E. UNB, 1997.
235
BIGNOTTO, Newton. (op cit). p. 32.
236
Idem. p. 42.
120
encontrada nos escritos de pensadores como Maquiavel, Montesquieu e, principalmente,
Hannah Arendt.
Por outro lado, não podemos esquecer que Eduardo Prado foi um escritor
bastante versátil e que mobilizou nas suas práticas político/intelectuais diferentes
repertórios. Por isso, a segunda citação, de autoria de John Locke, apresenta, também,
uma boa chave para a análise do pensamento político do nosso autor. O trecho foi
extraìdo do livro ―O segundo tratado sobre o governo civil‖, que é um dos mais
conhecidos da filosofia política lockeana. De acordo com os estudos do historiador
alemão Reinhart Koselleck, a filosofia polìtica de Locke pode ser considerada a ―matriz
espiritual do iluminismo burguês‖, principalmente naquilo que se refere à definição da
esfera privada como o lugar do segredo íntimo e do cuidado com o patrimônio pessoal,
237
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 20.
238
Para Hannah Arendt, a antiguidade grega legou ao cristianismo a ideia de que a vida contemplativa é
superior à vita activa. A autora acredita que a matriz desse princìpio é a metafìsica platônica, ―onde a
reorganização utópica da vida na pólis é dirigida pelo discernimento do filósofo e tem a função de tornar
possìvel o modo de vida do filósofo‖. (Idem, p. 24).
121
o que pode ser pensado, ainda de acordo com Koselleck, como o desdobramento do
esforço de Locke em limitar o alcance do poder civil.
A hipótese que defendo nesta unidade é que tanto a tradição republicana como o
jusnaturalismo podem ser utilizados como chaves de leitura no estudo do
conservadorismo de Eduardo Prado. Ainda que na maior parte dos seus textos, o autor
não tenha se preocupado em explicitar suas referências, creio seja possível sustentar que
ele tenha utilizado os repertórios republicano e jusnaturalista, que foram mobilizados
nos escritos em que a dicotomia público X privado foi de alguma forma abordada. Essa
hipótese ganha força se dedicarmos atenção para alguns aspectos da biografia de
Eduardo Prado que sugerem o contato do nosso personagem com os repertórios da
tradição republicana e do jusnaturalismo. Esses elementos são oportunamente
explorados ao longo dos capítulos reunidos nesta segunda unidade.
Esta unidade encontra-se dividida em três capítulos, sendo que cada um deles se
debruça sobre um corpus específico dos escritos de Eduardo Prado, justamente aqueles
239
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à protogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: Ed. Contraponto, 1999. p. 49.
122
nos quais a dicotomia público X privado ganha destaque: no quarto capítulo, eu
examino as críticas de Eduardo Prado às estratégias efetivadas pelo governo de Prudente
de Moraes no combate à epidemia de febre amarela de 1896. Nessas críticas, o nosso
autor conclamou os fazendeiros paulistas organizar, à revelia do poder público, ações
240
voltadas ―à defesa dos interesses gerais e da saúde coletiva‖ , o que deu um claro
contorno republicano à sua argumentação.
Já no quinto capítulo, eu estou interessado nos textos nos quais Prado criticou a
política econômica de valorização do café desenvolvida pelos primeiros governos
republicanos, que na opinião do autor ―dilaceram a riqueza e a propriedade daqueles que
241
justamente ergueram com trabalho a sua prosperidade‖ e na atuação de Eduardo
Prado nas páginas do pequeno e efêmero jornal ―A Comédia‖ no inìcio da década de
1880, quando ainda era aluno da Faculdade de Direito de São Paulo. Nesses textos, o
nosso personagem se mostrou, respectivamente, um aguerrido defensor dos interesses
dos cafeicultores paulistas e um atento observador dos costumes das famílias paulistas,
o que o levou a mobilizar elementos fundamentais do repertório do jusnaturalismo
moderno.
240
PRADO, Eduardo. ―O Comércio de São Paulo‖. 24 de março de 1897.
241
Idem. 13 de agosto de 1895.
123
124
Capítulo 4
A citação foi extraìda do artigo ―Qual Recurso?‖, que foi assinado por Eduardo
Prado e publicado no jornal ―Comércio de São Paulo‖ em março de 1896. Por esses
tempos, o interior do Estado de São Paulo estava sendo assolado por uma grande
epidemia de febre amarela, que, de acordo com os estudos de Luís Tadeu Moraes
Figueiredo, matou 1/5 da população local243. O autor afirma que ―desde 1850, a febre
amarela ocorreu anualmente no Rio de Janeiro, com exceção de 1865, 1866 e 1867,
tendo causado o impressionante número de 58063 óbitos nesse período, numa cidade
que, em 1850, contava com 166000 habitantes‖244. As epidemias de febre amarela do
século XIX já foram abordadas por importantes historiadores brasileiros, merecendo
destaque os trabalhos de Sidney Chalhoub245 e de Margarida de Souza Neves246.
Concentrando as suas atenções no Rio de Janeiro, ambos os autores destacam a
importância das epidemias para a socialização da população da época: ―com efeito, a
febre amarela grassava na capital do império, e, para terror dos fluminenses da ―boa
sociedade‖ e dos estrangeiros, não distinguia entre ricos e pobres‖247.
Os impactos da epidemia de febre amarela no interior paulista, especialmente na
cidade de Ribeirão Preto, foram largamente abordados por Eduardo Prado ao longo de
1896. Acredito que a análise desses textos nos permita compreender a forma como o
autor mobilizou a tradição republicana, especialmente naquilo que se refere ao elogio da
242
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 25/03/1896.
243
FIGUEIREDO, Luís Tadeu Moraes. A Febre Amarela na Região de Ribeirão Preto na virada do
século XIX: Importância científica e repercussões. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
São Paulo: Janeiro de 1996. pp. 63-76
244
Idem. p. 64.
245
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e epidemia na corte imperial. Companhia das Letras:
São Paulo, 2013.
246
NEVES, Margarida de Souza. Uma cidade entre dois mundos: o Rio de Janeiro no final do século
XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial (Vol. III). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009. pp. 121-153.
247
Idem. p. 134.
125
vida pública ativa, em função de sua oposição ao governo presidido por Prudente de
Moraes. Como eu mostrei no prólogo desta unidade, a expressão vita activa foi cunhada
por Hannah Arendt para designar um tipo de comportamento público tido como
virtuoso pela tradição republicana.
Dada a tendência intrínseca de revelar o agente juntamente com o ato, a vita
activa requer, para sua plena manifestação, a luz intensa que outrora tinha o
nome de glória e que só é possível na esfera pública. Sem a revelação do agente
no ato, a ação perde seu caráter específico e tornar-se um feito como outro
qualquer248.
Por questões óbvias, não é possível encontrar a expressão vita activa nos escritos
de Eduardo Prado, assim como não encontramos, de forma explícita, a formulação das
tópicas pertencentes ao repertório republicano, o que, acredito, não compromete a
validade do argumento que estou desenvolvendo neste capítulo. Não podemos esquecer
que Prado não estava interessado em discutir teoria política, mas sim em intervir no
debate público, fazendo oposição às instituições republicanas. Os seus textos devem ser
lidos, portanto, no calor dos conflitos que agitaram a cena política brasileira na última
década do século XIX. O que proponho neste capítulo é a análise do teor dos escritos
oposicionistas de Eduardo Prado. Acredito que o discurso de oposição que o nosso autor
direcionou à República brasileira é constituído, também, por valores republicanos.
Como é possível, então, que um escritor antirrepublicano tenha mobilizado, nas suas
críticas à República, valores republicanos? O próprio Eduardo Prado nos ajuda a
compreender essa aparente contradição, ao dizer, nos ―Fastos da Ditadura Militar no
Brasil‖, que
O governo absoluto exercito por outro indivíduos não é a República, cujo
significado é o governo de todos, Alcunhem esta organização de república
quanto quiserem; a palavra não corresponderá de modo algum à realidade. Este
governo absoluto, que não foi eleito pela nação, tem nome na ciência desde o
249
tempo de Aristóteles, e esse nome é: tirania . (Grifos Meus)
Em um dos raros momentos de citação direta, Prado nos informa algo sobre o
que ele estava querendo dizer quando usava a palavra ―República‖. Como fica claro no
trecho, o nosso autor está circulando pelo repertório conceitual antigo, onde, como eu já
demonstrei no último capítulo, a República não é definida como a antítese da
Monarquia, mas sim a partir de um conjunto de critérios delineados pela tradição
republicana clássica. Em um estudo sobre o assunto, o filósofo brasileiro Sérgio
248
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 189.
249
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 104.
126
Cardoso afirma que, na história da cultura Ocidental, o termo ―República‖ não designa,
apenas, ―os regimes populares eletivos que se opõem aos regimes de governo
autocráticos ou hereditários (e ainda as monarquias eletivas, que podem ser
constitucionais) dificilmente se distanciam do compromisso com a ideia de ordens ou
condições sociais (com seus privilégios e prerrogativas de extração natural, religiosa ou
moral)‖, mas, também, ―a constituição mesma de um povo, suas instituições, regras de
convivência e agências de administração e governo, cujas orientações derivam de um
momento de instituição e fundação polìtica‖ 250. Alguns desses princípios estão diluídos
nos escritos de Eduardo Prado.
O governo provisório do Brasil não foi eleito pela nação: ninguém lhe conferiu a
missão de legislar; e, todavia, este ―simples agente temporário da soberania
nacional‖ tem legislado com frenesi, tem alterado todas as relações sociais,
políticas e jurídicas a seu único e bel prazer. O czar tem o seu Conselho da
Coroa, o padixá dos turcos tem uma espécie de representação dos interesses
nacionais juntos da sua pessoa. O generalíssimo Deodoro e os seus
escrevinhadores de decretos dispensam tudo isso e julgam-se, apesar de se
intitularem ainda governo provisório, com o direito divino de tudo inovar e
251
inverter na organização do país . (Grifos Meus)
Aqui, Prado aborda o tema das formas de governo e sugere que o tipo de
organização institucional, por si só, não é o suficiente para que um regime político seja
considerado republicano. O autor compara a República brasileira com as monarquias
russa e turca, dizendo que, apesar da nomenclatura, o governo brasileiro não deveria ser
chamando de ―republicano‖, pois inexistiam no paìs as instituições responsáveis por
fazer o povo participar ativamente do governo. Para Prado, então, o governo brasileiro
não era republicano, pois ―não foi eleito pela a nação‖, o povo não ―lhe conferiu a
missão de legislar‖. Mas o que Eduardo Prado entendia por ―legislar‖? Sem tratar
diretamente do assunto, o autor nos apresenta uma sugestão e nos direciona para um dos
princípios mais caros à tradição republicana ocidental.
Nos tempos do sistema parlamentar no Brasil, quando se tratava de uma reforma
qualquer, era ela a princípio aventada nas câmaras, nas circulares dos candidatos,
na imprensa; nos programas dos partidos, nos discursos do poder executivo; um
parlamento eleito a discutia largamente, depois de o Conselho de Estado a ter
examinado com madureza; e o poder legislativo, nomeado pela nação que
representava, transformava a ideia em lei. O país tomava, pois, alguma parte no
seu próprio governo, ou pelo menos influía no destino da nação um avultado
252
número de cidadãos . (Grifos Meus)
250
CARDOSO, Sérgio . Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p. 46.
251
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.71.
252
Idem. p. 70.
127
deve ―tomar parte no seu próprio governo‖. Na última unidade, eu analisei o uso que
Prado fez da noção de ―liberdade‖, mostrando como a liberdade cìvica, baseada, entre
outras coisas, no princípio do autogoverno do povo, foi apropriada pelo nosso autor em
diversos momentos da sua trajetória político/intelectual. Mas ele não para por aí e diz
que as instituições legislativas que faziam da Monarquia chefiada pelo Imperador D.
Pedro II uma ―verdadeira república‖, no sentido antigo do termo, representavam a
vontade da nação e transformavam a ―ideia em lei‖, a ―vontade popular‖ em ―bem
comum‖. Estamos, aqui, diante de um dos princípios mais importantes da tradição
republicana ocidental, algo que foi abordador por importantes pensadores, tais como
Aristóteles e Rousseau.
Segundo os estudos de Sérgio Cardoso, o moderno conceito de República, de
alguma forma, é herdeiro da politea aristotélica, que é uma ―expressão grega genérica
para as formas de associação de homens livres, as comunidades de cidadãos, definidas
por oposição àqueles por natureza despóticas, em que os governantes, um ou alguns,
governam como senhores a servos, em vista de si mesmos e segundo sua própria
vontade‖253. Ao comentar a ditadura militar que governou a República brasileira entre
1889 e 1894, Eduardo Prado disse que ―a nação dominada pela ditadura não encontra
jamais nessa ditadura a sua própria encarnação. A ditadura é o senhor; a nação é a
escrava, tratada com mais ou menos brandura, mas sempre escrava. O que constitui a
254
tirania não é a efusão do sangue; é a usurpação do direito‖ . Além da definição da
liberdade como a negação da escravidão, que, como já sabemos, é uma das principais
características da liberdade republicana, Prado acusa o governo brasileiro de ter
―usurpado‖ o direito, ―que é o mais sagrado princìpio de um governo republicano‖. É,
exatamente aqui, que o autor parece se aproximar do constitucionalismo republicano,
que, segundo a filosofia política de Aristóteles, é o requisito fundamental para a
―distribuição dos poderes públicos estruturada segundo uma finalidade especificamente
integradora das diversas partes ou classes da cidade, ordenada, enfim, em vista de sua
própria existência de sua produção e conservação como comunidade polìtica‖255.
É, justamente, o direito, para Aristóteles, a instância de racionalidade
responsável por transformar a ―simples vontade do povo‖ na ―vontade geral
republicana‖, evitando, assim, que a cidade sucumba à tirania da maioria. Portanto, para
253
CARDOSO, Sérgio . Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p. 47.
254
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 40.
255
CARDOSO, Sérgio . Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p. 52.
128
o filósofo, ―a vontade geral republicana‖ não é o simples somatório da vontade de cada
um dos cidadãos que fazem parte da comunidade polìtica, pois ―a vontade do povo é
sempre transitiva, quer isto ou aquilo, visa objetos (e, portanto, busca naturalmente o
terreno da economia); a vontade geral republicana, através disto ou daquilo, leis, as
condições da coexistência civilizada (e, assim, inscreve-se de imediato no registro
polìtico)‖ 256. Nesse sentido, a lei é pensada como o resultado do trabalho do legislador
filósofo, que, agindo como um tipo de ―herói cìvico‖, transforma a vontade do povo na
vontade geral republicana, em um processo que não é mimético, podendo, até mesmo,
ser contraditório. Na modernidade, a atuação do legislador foi destacada, entre outros,
por Jean Jacques Rousseau (1712-1778), para quem o legislador é
Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se em
condição de mudar, por assim dizer, a natureza humana; transformar cada
indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito solitário, em parte de um todo
maior do qual este indivíduo recebe, de algum modo, sua vida e seu ser, alterar a
constituição do homem para reforça-la; substituir por uma existência parcial e
moral a existência física e independente que todos recebemos da natureza. É
preciso, em uma palavra, que ele subtraia ao homem suas forças próprias para
lhe dar outras que lhe são estranhas e de que não possa fazer uso sem o auxílio
257
de outrem .
256
CARDOSO, Sérgio . Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p.59.
257
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 59.
258
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 25/03/1896.
129
capìtulo. Para o nosso autor, a ―classe dos agricultores‖ tinha a obrigação cìvica de agir
virtuosamente e conduzir o movimento de combate à epidemia.
Segundo Hannah Arendt, a relação entre virtuosidade e ação pública foi
inaugurada por Sócrates, ―que apontou um conjunto de atividades peculiares que
caracterizam o homem enquanto agente relacional com o mundo que habita, que
transforma e ao qual se condiciona‖259. A autora acredita que esse tipo de atividade
constitui uma modalidade particular de existência sobre a terra, que ela examina nos
seus trabalhos dedicados ao estudo da vita activa. Ainda que situe na ação política de
Sócrates o momento fundador do princípio republicano da vita activa, Hannah Arendt
afirma que foi Aristóteles o responsável pela sistematização conceitual desse princípio;
para a filósofa alemã, ao dizer que ―só pela prática pública dos atos justos, será o
homem justo, e pela prática pública de atos temperantes, o homem temperante; sem essa
prática, ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom‖260, Aristóteles definiu
textualmente a relação entre a justiça e a ação pública virtuosa. Essa relação também foi
formulada por Eduardo Prado, nos textos nos quais se empenhou em criticar a atuação
do poder público no combate à epidemia de febre amarela, o que o levou conclamar os
proprietários paulistas a tomarem a dianteira na organização das medidas adequadas. No
artigo ―Epidemia‖, de abril de 1896, o nosso autor diz:
Para esse imenso mal que se avizinha não se descobre remédio. A administração
pública não sabe, não quer, ou não pode vencê-lo; têm-se escoado rios de
dinheiro na faina do saneamento, e o estado sanitário piora consideravelmente.
Dir-se-ia que o dinheiro é mal gasto e em pura perda, o que Deus amaldiçoa os
esforços dos nossos administradores. Daí a urgência da intervenção pública dos
proprietários paulistas, daqueles que têm o dever agir com prudência e civismo
261
tão urgentes na atual situação . (Grifos Meus).
259
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 43.
260
Idem. p. 47.
261
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 19 de abril de 1896.
130
estava interessado em escrever um tratado filosófico, mas sim incitar os seus pares à
ação conjunta de combate à febre amarela e, consequentemente, apontar a
incompetência do governo da República em fazê-lo. Como Prado era um dos principais
opositores das autoridades republicanas, a sua performance deve ser lida também como
um exercício de crítica política, como um exercício que mobilizou valores pertencentes
ao repertório da tradição republicana. Por isso, proponho a aproximação da reflexão do
nosso autor do pensamento de um importante representante da tradição republicana
ocidental: Nicolau Maquiavel.
Em um estudo dedicado aos escritos políticos de Maquiavel e Guicciardini,
Felipe Charbel Teixeira destacou a centralidade do conceito prudência nos textos desses
dois importantes pensadores. Charbel acredita que o termo em questão foi ―empregado
para qualificar o bom juízo, a celeridade decisória e a aguçada capacidade de avaliar as
262
transformações e as sutilezas da realidade‖ . O autor argumenta que a prudência
adquire um novo estatuto nos textos de Maquiavel e Guicciardini ―precisamente por
estar no cerne de um olhar para os fenômenos políticos orientado pela valorização do
exame das minúcias da realidade, das condições dos tempos e das mudanças da fortuna‖
263
. Charbel argumenta, então, que o uso que Maquiavel e Guicciardini fizeram do
conceito de prudência não deve ser desvinculado no princípio da ação política, que pode
se dar também no exercício público da retórica.
A ênfase atribuída por Maquiavel e Guicciardini à efetividade analítica não opera
uma separação entre retórica e política; ao contrário, a ideia de verità effetualle,
compartilhada por ambos, realça a importância tanto do cálculo cuidadoso da
dinâmica da realidade como da produção, pelo orador e pelo homem das letras,
de efeitos persuasivos, sem os quais o ajuizamento, ele próprio condicionado por
preceitos ético-retóricos convencionais, não será reconhecido como prudente 264.
(Grifos do autor)
262
TEIXEIRA, Felipe Charbel. Retórica e Prudência e História em Maquiavel e Guicciardini.
Campinas: Ed. UNICAMP, 2010. p. 13.
263
Idem. p. 19.
264
Idem.
265
Idem. p. 13.
131
proprietário, que é apontado como corresponsável pelo bom andamento da coisa
pública. Se o governo falha, cabe, diz Eduardo Prado, ―aos proprietários patriotas e
virtuosos amparar as dores desse tão sofrido povo‖266.
Felipe Charbel não é o único autor a destacar a presença de valores republicanos
nos escritos de Maquiavel. Na sua análise do texto ―Discursos sobre a primeira década
de Tito Lìvio‖, Newton Bignotto afirma que
o papel do Estado, na obra de Maquiavel, é o de se opor, pela força de suas leis,
à ação destruidora dos desejos particularistas, é a sociedade justa, por sua vez, é
aquela que é capaz de encontrar uma solução pública para os problemas da
República267.
266
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 19 de abril de 1896.
267
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano. São Paulo: Ed. Loyola, 1991. p. 95.
268
MCCORMICK, John P. Adressing the political exception: Machiavelic’s acidentes and the mixed
regime. The American of political Science Review, vol. 87, n. 4. Pp 888-900. Dec. 1993.
132
um regime oposto à Monarquia, sendo, portanto, a oposição Monarquia X República
uma construção do pensamento político moderno e não uma obrigatoriedade lógica. Por
isso, como o próprio Eduardo Prado demonstra, é perfeitamente possível identificar a
presença de valores republicanos no discurso monarquista. Tenho, aí, uma boa trilha a
seguir no meu exercício de análise do conservadorismo de Eduardo Prado. Ainda no
artigo ―Epidemia‖ diz o nosso autor:
Entendemos que é dever de todo monarquista dar lição de patriotismo aos
correligionários da República, revelando sua virilidade e pujança, a sua
tendência para o amor aos interesses públicos em detrimento das paixões
privadas, mostrando o quão são diferentes daqueles se apoderam da nação.
(Grifos Meus)
No trecho fica, mais uma vez, evidente o esforço de Prado em politizar o caso da
epidemia de febre amarela, usando-o como base para mais um de seus ataques aos
governos republicanos. Para o autor, enquanto o monarquista carrega em si o ―amor aos
interesses públicos‖, o correligionário da República é movido apenas pelas ―paixões
privadas‖, o que demonstra que ele utilizou uma argumentação republicana para atacar
os republicanos brasileiros, como se os monarquistas fossem mais republicanos que os
próprios republicanos. O teor republicano dessa argumentação pode ser melhor
compreendido se confrontado com os escritos de Hanrrigton, que, como já vimos na
primeira unidade desta tese, é um dos principais representantes do neorrepublicanismo
inglês do século XVII. Para Pocock, o ―Oceana‖, principal livro de Harrington, que
também fazia parte do acervo bibliográfico de Eduardo Prado, ―é uma revisão
importante da história da teoria política inglesa, à luz dos conceitos retirados do
269
humanismo cìvico e do republicanismo de Maquiavel‖ . De acordo com as palavras
do próprio Harrington:
Embora pareça se inclinar para a Antiguidade, o Leviatã se apoderou da espada
pública para justificar as atrocidades do arbítrio pessoal. Todo Monarca recebe
seu poder por convênio para proceder não a partir de suas simples verdades,
pretendo obrigar, conter ou restringir qualquer homem, mas sim garantir que
esses homens continuem empunhar a espada pública 270. (Tradução livre) (Grifos
Meus)
No trecho, Harrington faz aquilo que Newton Bignotto271 afirma ter sido a
principal característica do seu pensamento político: as críticas a Hobbes, que foi
apontado pelo autor da “Oceana” como o doutrinador de um arranjo político cujo único
269
POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment. Princeton: Princeton Press, 1975. p. 388.
270
HARRINGTON, James. The Commonwealth of Oceana. p. 326.
271
BIGNOTO, Newton. A má fama na filosofia política: James Harrington e Maquiavel. Belo Horizonte:
Discurso 24: 1994, pp. 173-191.
133
objetivo seria dar segurança política e jurídica para o cultivo dos interesses privados dos
cidadãos. É em defesa do envolvimento dos cidadãos nos assuntos públicos que
Harrington sai em ataque a Hobbes e aos outros defensores do absolutismo dos Stuart.
Para Harrington, ―os cidadãos são os responsáveis pelo bom uso da espada pública
272
porque eles também têm receio de terem ameaçadas a sua propriedade‖ . Como
podemos perceber, Harrington não desqualifica propriedade, destacando, pelo contrário,
a sua importância como o motor para a ação pública do proprietário. Para o autor, o
proprietário deve usar bem a ―espada pública‖ porque tem algo a perder, sendo, por
isso, diretamente interessado no bom andamento dos negócios públicos. Pelo menos nos
seus aspectos gerais, percebo alguma semelhança entre as argumentações de Harrington
e Prado. No seu esforço de conclamar os fazendeiros paulistas à ação voluntariosa de
combate à febre amarela, Eduardo Prado também utilizou o argumento do interesse,
como é possìvel perceber no já citado artigo ―Qual o Recurso‖?
No curto intervalo de duas semanas morrem os doentes aos milhares, implanta-se
a peste maldita e São Paulo não tardará a adquirir no mundo a reputação de um
das regiões mais insalubres do globo. Sabemos que não precisamos do
estrangeiro e que devemos ser nativistas, para sermos bons brasileiros; mas, não
havendo estrangeiros que para cá queiram vir, não haverá quem colha café. Não
havendo café, não haverá dinheiro no tesouro do Estado e a nossa prosperidade
estará em risco. É por isso que o fazendeiro paulista, que é a mola propulsora da
riqueza do Brasil, necessita agir, movido tanto pelo amor ao povo como pelo
instinto de zelo pela sua preservação273. (Grifos Meus)
272
“HARRINGTON. Op cit. p. 328.
273
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 24/03/1896.
134
A estratégia interpretativa que estou desenvolvendo nesta tese está baseada no
esforço de compreender a apropriação dos elementos constitutivos dos repertórios
políticos antigo e moderno nos escritos de Eduardo Prado. Como Prado não era um
homo academicus, a maioria dos seus textos não foi produzida em função dos
procedimentos discursivos típicos da escrita científica. Com algumas exceções, o nosso
autor quase não fez uso do recurso da citação bibliográfica direta, o que – é importante
destacar -, não é uma ausência, uma falha, mas sim aquilo que caracteriza as suas
intervenções. Porém, o fato de o texto de Prado não apontar, diretamente, as suas
referências conceituais não quer dizer que elas não existam. Por isso, o catálogo da
biblioteca de Eduardo Prado está sendo tão importante para a minha análise, pois,
através desse material, consigo mapear as possíveis leituras de Prado, buscando, no
material examinado, indícios da presença das ideias dos autores listados pelo livreiro
Alfred Gazeau.
Como já sabemos, Eduardo Prado era filho de uma tradicional família da elite
brasileira, tendo sido formado nos mais importantes espaços educacionais em
funcionamento no Brasil durante o século XIX. Acredito que dedicar alguma atenção à
formação desse personagem pode ser muito importante para o fortalecimento da
argumentação que estou desenvolvendo neste capítulo. Em outras palavras: percebo a
mobilização dos valores republicanos nos escritos de Eduardo Prado, como, por
exemplo, a liberdade civil, que analisei na primeira unidade, e a vita activa, que estou
examinando neste capítulo, não apenas porque os textos do autor e o seu acervo
bibliográfico sugerem essa presença, mas também porque a sua formação
político/intelectual aponta para o contato com essa tradição. O princípio do
proprietário/responsável é o ensejo adequado para o estudo da formação de Eduardo
Prado porque nos coloca diante de um dos principais valores do pensamento político
monarquista, que era de alguma forma reproduzido nas instituições educacionais
frequentadas pelos filhos das elites políticas brasileiras oitocentistas.
Muito se diz a respeito da grande República do Norte; há quem diga que se trata
da vanguarda política dos nossos atuais dias. Que seja lá! Aqui não, aqui não tem
terreno para esse fruto. Por aqui o ideal mesmo é a conservação da ordem, da
religião e da família; à imparcialidade do Poder Moderador e à responsabilidade
dos virtuosos proprietários cabe a prosperidade dessa terra 274. (Grifos Meus)
274
SOUSA, José Soares Paulino. Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1862. p. 243.
135
O pauperismo que diversas vezes têm levado às massas ao desatino
revolucionário, não explica completamente os desatinos revolucionários que
recentemente abalaram a tranquilidade da família pernambucana. O grande
responsável por esse abalo não foi a massa de ingênuos, mas sim os
proprietários, que tomados pelo individualismo nefasto colocaram os interesses
de suas casas acima da harmonia da coletividade. É preciso agir, mas não apenas
na bainha da espada; o sangue derramado costuma ter memória curta. É preciso
agir no coração e no espírito desses homens; eles precisam entender que a
posição que ocupam os coloca diante de deveres incontornáveis 275. (Grifos
Meus)
Os autores das duas citações acima estão entre os principais homens públicos da
história da Monarquia brasileira e estiveram entre aqueles que conduziram o país no
momento de maior instabilidade e incerteza desse regime político. Tanto José Soares
Paulino de Souza, Visconde de Uruguai após 1854, como Honório Hermeto Carneiro
Leão, Marquês do Paraná após 1851, são representativos da elite brasileira oitocentista
que, mirando-se no exemplo das tradicionais aristocracias europeias, se auto definiu
como corresponsável, junto com o governo Monárquico, por estabelecer e consolidar o
regime político que, segundo o grupo, seria o único capaz de garantir a sobrevivência do
Estado Nacional brasileiro. As duas citações são vazadas pela ideia do
proprietário/responsável e traduzem valores fundamentais do pensamento político
oficial da Monarquia brasileira, como, por exemplo, a dimensão estamental e
aristocrática da concepção de liberdade, a definição do poder moderador como uma
instância puramente administrativa e acima dos conflitos políticos e o princípio de que
as famílias proprietárias tinham a obrigação de auxiliar o Estado na manutenção da
ordem 276.
A primeira citação foi extraìda do ―Ensaio sobre o direito administrativo‖,
escrito por Paulino José Soares de Souza e publicado em 1862. Segundo José Murilo de
Carvalho, a Monarquia brasileira não teve o hábito de sistematizar seus valores em
textos dogmáticos, fato que coloca o analista diante do desafio de buscar os indícios
dessa cultura política em relatórios administrativos e discursos parlamentares277. O
Visconde de Uruguai foi um dos poucos líderes da época que se dedicou a escrever
275
LEÃO, Honório Hermeto Carneiro. Qual a causa da Revolução Praieira? A União: Recife, 24 de
dezembro de 1849. p. 147.
276
A importância da união entre as famílias proprietárias e o Estado Imperial para a manutenção de certa
concepção de ordem considerada fundamental tanto para a prosperidade dos negócios públicos como para
a saúde das finanças privadas foi diagnosticada com precisão pelo já citado trabalho de Ilmar Mattos. O
autor afirma que ―enobrecidas e condecoradas pelo Estado Imperial, essas famìlias ligaram suas vidas a
ele, ao qual não raro concebiam como instrumento de seus interesses corporativos.‖ (p. 79)
277
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem/ O teatro das sombras. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
136
sobre o sistema, a teorizar sobre a Monarquia278. De acordo com o Visconde de
Uruguai, os ―virtuosos proprietários‖ também eram responsáveis pela administração dos
negócios públicos. Esse princípio pode ser encontrado, também, na segunda citação, que
é de autoria de Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, e refere-se à
Revolução Praieira, que aconteceu em Pernambuco em 1848. A principal causa da
Revolução Praieira, para Honório Hermeto, não foi a rebeldia das massas, o que já era
algo que ele e seus pares consideravam normal, dado o despreparo dessas pessoas. O
que tornava a revolta de 1848 ainda mais grave era o fato de ela ter sido tramada no seio
das elites locais, justamente aqueles que deveriam zelar pela tranquilidade pública.
Nessa chave de leitura, o egoísmo não é visto como um traço de caráter individual, mas
sim como o resultado do despreparo de um grupo ao exercício de determinadas
obrigações. Se a elite proprietária revolucionária era egoísta, como achava Honório
Hermeto, era porque faltava algo à sua formação. A melhor forma de evitar esse tipo de
manifestação egoísta era cultivar essa elite, educá-la, formá-la e torná-la capaz de levar
esses valores aos seus séquitos de dependentes279.
Era exatamente esse o objetivo das instituições de ensino em funcionamento no
Brasil durante o período monárquico. Esses espaços eram, sobretudo, centros de
socialização das elites, de treinamento para a ação pública que era considerada a sua
missão essencial. Esse objetivo pedagógico se materializou nos currículos, nos saberes
considerados obrigatórios para que esses grupos desempenhassem com eficácia as suas
atribuições. Eduardo Prado transitou por esses espaços, sendo versado nesses saberes,
treinado nessas competências. Ao longo da sua formação, ele frequentou duas dessas
278
Além do trabalho já citado, Paulino Soares escreveu os seus ―Estudos Práticos Sobre a Administração
278
das Provìncias‖, que foi publicado em 1865 . Junto com outros juristas, como, por exemplo, o mineiro
Bernardo Pereira de Vasconcelos, Paulino Soares participou de importantes ações naquilo que se refere à
história do direito no Brasil. Podemos destacar a ―Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834‖ de
1840, que, entre outras coisas, restringiu a liberdade dos governos provinciais. Essa lei deu início a um
processo de revisão da jurisdição imperial que culminaria no ―Código de Processo Criminal‖ de 1841,
que reformulou o código de 1832 e, entre outras coisas, restabeleceu o Conselho de Estado, que estava
inativo desde o Ato Adicional de 1834. Na prática, essas jurisdições substituíram o princípio eletivo,
adotado em larga escala durante o Período Regencial, pelo princípio hierárquico, conferindo amplos
poderes às autoridades nomeadas pelo poder central. Essas reformulações jurídicas relacionam-se,
sobretudo, com o movimento do ―Regresso Conservador‖, que tinha o objetivo de estabilizar a autoridade
monárquica após o conturbado período de vacância do trono.
279
De alguma forma, todas as instituições culturais ou educacionais criadas no Brasil durante a primeira
metade do século XIX tinham essa proposta. Nesse momento, ainda não havia entre nós a concepção de
que seria necessário um sistema educacional público destinado à totalidade da educação. Essa proposta
somente se faz presente no discurso dos governantes na segunda metade desse século. Sobre isso, ver os
trabalhos de Lillia Schwarcz: A longa viagem da biblioteca dos reis. São Paulo: Companhia das Letras,
2002 e O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
137
instituições: o Seminário Diocesano e a Faculdade de Direito de São Paulo. Acredito
que foi nos bancos do Seminário Diocesano de São Paulo que Eduardo Prado teve seus
primeiros contatos com textos pertencentes à tradição. Já nos bancos da Faculdade de
Direito, o nosso personagem se destacou como assíduo frequentador das sabatinas sobre
Direito Natural organizadas pelo professor João Teodoro Xavier (1828-1878), que foi
um grande conhecedor brasileiro da filosofia do direito natural. Por enquanto, analiso a
presença dos valores republicanos no ensino ministrado no Seminário Diocesano.
As mudanças que anuncio hoje são fundamentais para que o Seminário
Episcopal não preste um grande serviço apenas à fé, mas também aos interesses
públicos. A partir de agora não formaremos aqui apenas um clero ilustrado e
capaz de cultivar almas para o rebanho de Cristo, mas também estaremos
comprometidos com o interesse público, com a preparação daqueles que nas
academias do Império serão formados para o cuidado com os assuntos da
nação280.
138
Eduardo Prado teria começado a ser alfabetizado por volta dos cinco anos de idade em
casa, onde professores particulares de confiança da família promoviam os primeiros
contatos dos filhos do casal Prado com as letras. Esses trabalhos silenciam a respeito da
documentação capaz de endossar um exame mais criterioso dos primeiros contatos do
nosso autor com os estudos formais. Eu também não encontrei nos arquivos da família
Prado e nos textos do próprio Eduardo Prado pistas capazes de sustentar a análise a
respeito desse período de sua vida. Porém, a julgar pela prática corrente na época entre
as famílias proprietárias, o programa de estudos, considerando o trabalho de Gilberto
Freyre, deveria ser relativamente simples, sendo composto pelas primeiras lições de
leitura e escrita em português, francês e latim e pela incursão nos cálculos mais básicos
de aritmética282.
O regulamento oficializado em 1858 permitiu que Eduardo Prado tivesse uma
trajetória ligeiramente diferente da dos seus irmãos mais velhos. Enquanto Antônio,
Martinho e Caio foram, de acordo com os estudos de Darrel Levi283, estudar na corte, no
tradicional Imperial Colégio D. Pedro II, Eduardo permaneceu em São Paulo. Àquela
altura já havia na capital paulista um estabelecimento de ensino capaz de atender os
filhos das elites locais. Como disse anteriormente, o Seminário foi inaugurado em 1856
e desde o início é possível observar suas estreitas relações com o governo provincial.
Houve, inclusive, certa polêmica em relação à liberação de dinheiro público para a
construção do prédio. No dia 26 de junho de 1854, o Correio Paulistano publicou uma
carta na qual D. Antônio Joaquim solicitava ao governo provincial auxílio financeiro
para a construção do Seminário. De acordo com o Bispo,
282
Em ―Sobrados e Mocambos‖, Gilberto Freyre destaca a importância dos colégios de padres para a
formação escolar dos grandes personagens das letras e da política no período da Monarquia. Para Freyre,
foi nos bancos dessas escolas que essas elites desenvolveram o gosto pelas vidas nas cidades e pelo
cosmopolitismo cultural. O grande símbolo desse moço de hábitos urbanos e gosto intelectual apurado
foi, de acordo com as considerações de Freyre, o próprio Imperador Pedro II: ―Desertor da meninice –
que parece ter deixado sem nenhuma saudade – Pedro II foi, entretanto, o protetor do moço contra o
velho, no conflito, que caracterizou o seu reinado, entre o patriarcado rural e as novas gerações de
bacharéis e doutores.‖ (p. 193)
283
LEVI, Darrel E. A Família Prado. São Paulo: Cultura 70, 1977
284
―Correio Paulistano‖. 26 de junho de 1854.
139
atendimento à solicitação do Bispo. Entre os deputados que se opuseram à liberação de
dinheiro para a construção do Seminário, destacou-se Antônio Luiz de Melo Fonseca,
representante da cidade de Jacareí. O parlamentar, que fez questão de ser polido e
cuidadoso nas palavras, afirmou que:
Podemos perceber pela citação que, para o Bispo, a boa formação era
fundamental tanto para o bom padre como para o homem público comprometido com a
administração do Estado. Ambos precisavam estar preparados para os desafios da
modernidade, para um mundo onde a tradição já não tem mais a soberania de antes. Em
um mundo no qual, de acordo com as palavras do próprio Bispo,
285
Idem. 16 de agosto de 1854.
286
―O Mercantil‖. 06 de fevereiro de 1858.
287
Idem.
140
Nesse momento, no Brasil, o sistema de ensino não era visto como um serviço
público destinado à instrução das massas em determinados saberes e habilidades
considerados fundamentais, mas sim como um conjunto de alguns centros de
treinamento e socialização dos filhos das elites. Esses espaços estavam destinados a
preparar quadros para o serviço público, que, se por um lado, ainda não era
completamente meritocrático, já que os ocupantes dos postos seriam recrutados entre as
famílias proprietárias, também não era, pelo outro lado, completamente estamental, já
que a qualificação era considerada fundamental para o bom exercício das funções. Não
estou interessando em examinar com mais cuidado a real efetividade desse tipo de
treinamento ou julgar se de fato os ocupantes desses cargos estavam preparados para
desempenhar com eficiência as suas atividades. O fundamental para a argumentação que
venho desenvolvendo neste capítulo é a compreensão dos valores político/pedagógicos
que caracterizavam as práticas educacionais desenvolvidas nesse tipo de instituição
escolar, especialmente no Seminário Diocesano de São Paulo.
Portanto, e isso é o mais fundamental para os meus interesses, Eduardo Prado
cursou as primeiras letras em um estabelecimento que tinha sua estrutura organizacional
baseada no princípio republicano do proprietário/responsável. A presença dos valores
republicanos no ensino ministrado no Seminário Diocesano de São Paulo não ficou
restrita à organização institucional, estando também presente no currículo ministrado.
No mesmo texto em que deu publicidade ao novo regulamento do Seminário, o Bispo
D. Antônio Joaquim apresentou o currículo que seria ensinado na escola voltada aos
leigos.
1° ano -Retórica
- Poética
- Introdução à Aritmética
- Língua Portuguesa
- Estudos Teológicos
-Retórica
- Poética
2° ano
- Estudos regulares de Aritmética e Álgebra
- Língua Portuguesa e Literatura Nacional
- Gramática Filosófica
- Estudos Teológicos
- Noções de Latim
-Retórica
- Poética
3° ano
- Estudos regulares de Aritmética e Álgebra
- Língua Portuguesa e Literatura Nacional
141
- Gramática Filosófica
- Estudos Teológicos
- Estudos Latinos
- História Natural
-História da Civilização
-Retórica
- Poética
4° ano
- Estudos regulares de Aritmética e Álgebra
- Língua Portuguesa e Literatura Nacional
- Poesia e Literatura Portuguesa
- Estudos Latinos
- Introdução à Física e à Química
- História da Civilização
- História da Igreja
- Introdução aos Estudos da Língua Francesa
- Estudos regulares de Aritmética e Álgebra
- Língua Portuguesa e Literatura Nacional
5° ano
- Poesia e Literatura Portuguesa
- Estudos Latinos
- Introdução à Física e à Química
- História da Civilização
- História da Igreja
- Estudos regulares da Língua Francesa
- Introdução aos Estudos da Língua Inglesa
288
CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a Retórica como chave de leitura. Rio de
Janeiro: Topoi Vol. 01, p 130.
142
Após essa necessária digressão sobre a formação educacional de Eduardo Prado,
já podemos retornar aos seus textos, dando seguimento à análise da apropriação dos
valores republicanos. O uso que Eduardo Prado fez do repertório republicano no caso da
epidemia de febre amarela pode ser melhor entendido se dedicarmos alguma atenção às
críticas que ele dirigiu aos proprietários que não se envolveram diretamente no combate
à doença.
Já por mais de uma vez utilizamos as páginas desse veículo para conclamar os
fazendeiros paulistas à movimentação de combate ao flagelo que assola as
populações mais pobres. Diante da inércia do governo presidido pelo sr Prudente
de Moraes, restou apenas nós, os homens virtuosos, como o último esteio das
esperanças públicas. Porém, com grande pesar percebemos que os nossos apelos
não têm sido o suficiente para mover os fazendeiros paulistas do conforto das
suas casas289. (Grifos Meus)
289
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 19/04/1896.
290
Idem.
143
audácia e a todas as fantasias. Queixam-se agora os fazendeiros da sorte e da
dureza dos tempos; queixam-se do governo, mas a verdade é que também
deixam queixar-se de si mesmos. O egoísmo dos fazendeiros é a causa de todos
291
os nossos males .
Nessa citação, que foi escrita cerca de cinco meses depois do conjunto de textos
que Prado escreveu sobre a epidemia de febre amarela, o autor continua criticando os
fazendeiros paulistas, acusando-os novamente de egoísmo, de se preocuparem mais com
os seus interesses privados do que com os interesses públicos. Porém, aqui Eduardo
Prado inverte a relação de causalidade que estabeleceu nos escritos anteriores. Se antes,
o autor afirmava que a República destruiu o espaço público e as virtudes cívicas dos
proprietários paulistas, agora, ele alega que o surgimento da República é que foi o
resultado da apatia política dos proprietários, dos cidadãos mais ricos, daqueles que
teriam a obrigação do engajamento e do zelo pela boa marcha da coisa pública.
Interpreto a crítica de Prado ao egoísmo dos proprietários como um desdobramento do
princípio da vita activa, podendo ser identificado também nos escritos de outros autores
vinculados à tradição republicana, como o próprio Maquiavel. A análise do texto
―Discursos sobre a primeira década de Tito Lìvio‖ evidencia o esforço de Maquiavel em
definir a República como o regime político baseado na virtude cívica, no patriotismo e
na defesa dos interesses públicos. Já no primeiro livro dos ―Discursos‖, Maquiavel
afirma a necessidade de os políticos contemporâneos se espelharem nos políticos
antigos para dirimir ―os vìcios que levaram tantos Estados e cidades da cristandade a
uma forma orgulhosa de preguiça‖292. A crítica à preguiça e ao ócio é uma das
principais caracterìsticas desse texto. A ―forma orgulhosa de preguiça‖ é definida por
Maquiavel como um elemento de corrupção que pode, no limite, levar à decadência da
República. Para o autor florentino, a República se corrompe quando os cidadãos ―se
esquecem de que devem estar mais preocupados com os interesses públicos do que com
os seus interesses particulares‖ 293.
As semelhanças entre as argumentações de Maquiavel e Prado são claras. Ainda
no artigo ―A Aflição da Lavoura‖, Eduardo Prado diz:
Vejam os fazendeiros que se desinteressam da política que uma penada
inconsciente de um funcionário inábil pode fazer-lhes perder milhares e milhares
de contos; vejam como o egoísmo é capaz de corromper a todos. Se há algo de
bom no nosso atual estado de coisas é a afirmação da imperiosidade do interesse
da classe dos agricultores na política, pois às vezes é preciso chegarmos à total
291
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 30/09/1896.
292
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Ed. UNB, 1994.
p. 12.
293
Idem. p. 13.
144
corrupção para que entendamos a importância do amor pelos assuntos
públicos294. (Grifos Meus)
294
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 30/09/1896.
295
MAQUIAVEL, Nicolau. (op cit). p.20.
296
JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência política. Belo Horizonte: Ed.
UFMG , 2005.
145
modernidade democrática; a aristocracia é caracterizada pelo caráter hierárquico da
desigualdade, que é considerada por Tocqueville como a garantia da harmonia e do
equilíbrio do corpo social. Nesse sentido, os privilégios da nobreza não são pensados
como produto de uma ordem injusta que desconsidera o princípio do mérito, mas sim
como o reconhecimento legítimo pelos deveres que lhes são inerentes.
O cerne da crítica de Tocquecville à democracia moderna está na extrema
individualização resultante na constituição da massa de iguais, na qual não existem
―pontos salientes‖ nos quais os homens ―pouco preparados‖ podem se apegar nos
momentos de crise. Esse individualismo provocaria o surgimento de um duplo
despotismo: a opinião pública e o Estado, ambos considerados por Tocqueville como
obstáculos à verdadeira liberdade. Para o autor, a liberdade moderna é fundamentada no
princípio do bem estar pessoal, algo que decreta o fim do homem público. Teria surgido
assim um mecanismo inédito de dominação para o qual o vocabulário político ocidental
ainda não estava preparado. Tocqueville afirmava que esse despotismo moderno se
desvinculou da concepção tradicional de despotismo, muito relacionada no ocidente à
cultura asiática, na medida em que era consentido. Ou seja, os homens modernos teriam
perdido a tal ponto o gosto pela liberdade em função do gozo individual de seus
prazeres frívolos que abriram mão de sua ação pública para melhor aproveitarem a
felicidade privada. Ao fazê-lo, teriam deixado de lado todos os ideais de virtude cívica
para melhor administrarem seus patrimônios e interesses privados.
A mesma acusação que Eduardo Prado fez aos fazendeiros paulistas que não se
engajaram no combate à epidemia de febre amarela, Tocqueville fez ao homem
moderno. Para ambos os autores, a renúncia à vida pública era responsável pela
corrupção dos valores fundamentais da experiência política verdadeiramente virtuosa.
Prado chama os fazendeiros de egoístas e inertes, Tocqueville afirma que no mundo
moderno a única paixão pública é a segurança para o cultivo da propriedade privada.
Preocupados apenas com o cuidado de fazer fortuna, [os homens modernos] não
mais percebem o laço estreito que une a fortuna particular de cada um deles à
prosperidade de todos. Não é necessário arrancar a tais cidadãos os direitos que
possuem; eles mesmos os deixam escapar de bom grado. O exercício de seus
297
Idem. p. 69.
146
deveres políticos lhes parece um contratempo enfadonho que os desvia da sua
indústria298. (Grifos Meus)
298
Idem. p. 70.
299
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo”. 30/09/1896.
147
Apesar de ter sido particularmente evidente nos textos que Eduardo Prado
escreveu em meio à epidemia de febre amarela, a mobilização dos valores republicanas
pode ser identificada também em outros escritos, onde ele se municiou da argumentação
republicana para fazer críticas à República brasileira. Percebo esse tipo de apropriação
em mais dois textos especìficos: os artigos ―Uma lição de Aristóteles‖ e ―Eleições‖, que
foram publicados no jornal ―Comércio de São Paulo‖, respectivamente, em dezembro
de 1895 e em outubro de 1896. Por uma questão de organização da narrativa, inverto a
ordem cronológica e examino primeiro o texto ―Eleições‖.
De acordo com o calendário legislativo da República dos Estados Unidos do
Brasil, no mês de dezembro de 1896 seriam realizadas as eleições gerais para os cargos
do poder legislativo. Como já sabemos, Eduardo Prado era um ator político bastante
engajado e é de se esperar que o tema do pleito eleitoral tenha atraído a sua atenção. Já
no início do texto, o nosso autor usa o debate eleitoral para criticar os republicanos. O
que mais me interessa é o teor argumentativo da crítica:
Aproximam-se as eleições gerais, e, ao passo que os republicanos permanecem
quietos, apenas contemplando silenciosamente a movimentação à espera do
manifesto despótico e indiscutível dos chefes, nos arraiais monarquistas
principiou já a agitação nos espíritos. Os monarquistas revelam desta arte a sua
virilidade e pujança, a sua tendência para a discussão e para o confronto de
opiniões, afim de apurar onde está a maioria, a verdadeira opiniões pública do
partido, único sistema que constitui a base legítima para a democracia
moderna300. (Grifos Meus)
300
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 31/10/1896.
301
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p.29.
148
De acordo com as considerações de Hannah Arendt, a morte de Sócrates marcou
o início da sobreposição da vida contemplativa sobre a vita activa, sendo essa hierarquia
alimentada pelo idealismo platônico, levada às últimas consequências pelo cristianismo
e mantida na modernidade.
O abismo entre filosofia e política abriu-se historicamente com o julgamento e a
condenação de Sócrates (..). Nossa tradição do pensamento político teve início
quando a morte de Sócrates, fez Platão desencantar-se com a vida da Polis e, ao
mesmo tempo, duvidar de certos princípios fundamentais do ensinamento
socrático302.
O cristianismo, com a sua crença num outro mundo cujas alegrias se prenunciam
nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vita
activa à sua posição subalterna e secundária; mas a determinação dessa mesma
hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação (theoria) como
faculdade humana, acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que
ocorreu na escola socrática e que, desde então, vem orientando o pensamento
metafísico e político de toda a nossa tradição303.
Portanto, e essa é uma das teses mais polêmicas de Hannah Arendt, a autora
acredita que a tradição filosófica ocidental não é inocente diante da emergência do
totalitarismo, que, de alguma forma seria, o desdobramento mais trágico da apatia
política do homem ocidental, o que teria permitido que a política deixasse de ser a
atividade humana mais nobre para se tornar o monopólio do Estado totalitário. Por isso,
para Arendt, a reconstrução do espaço público e a recuperação da dimensão
302
ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1993. p. 76.
303
Idem. A condição humana. pp. 24-25.
149
verdadeiramente republicana da tradição filosófica ocidental precisa ser uma das
principais prioridades do homem moderno, sendo a única forma de esvaziar
completamente a possibilidade da experiência totalitária.
Ainda que, obviamente, cada um dos dois autores – Eduardo Prado e Hannah
Arendt – tenha atuado em suas respectivas circunstâncias históricas, acredito que ambos
têm o mesmo propósito: a reconstrução do espaço público, pensado aqui como a arena
na qual coabitam os interesses plurais, e a afirmação da necessidade do envolvimento do
cidadão na politica, o que faz com que eles, cada um à sua maneira e em função de seus
objetivos específicos, tenham mobilizado o repertório republicano. Se formos utilizar a
terminologia de Hannah Arendt para examinar a performance republicana de Eduardo
Prado, acredito não ser um absurdo sugerir que, para esse autor, os correligionários da
República brasileira contrariaram o princípio fundamental da República ao se eximirem
da participação política ativa. Essa sugestão se torna ainda mais verossímil se
analisarmos o comentário de Prado a respeito da possibilidade da abstenção eleitoral,
que chegou a ser ventilada nos círculos monarquistas.
Espíritos respeitáveis pelas suas luzes e experiências opinam pela abstenção,
como remédio eficaz para derruir as instituições que estão aniquilando a nossa
pátria. Outros correligionários, ilustres por muitos títulos também, alvitram que a
abstenção seria um erro e retardaria a vitória da causa monárquica. Estamos
francamente ao lado destes e entendemos que é dever dos monarquistas levar o
seu voto às urnas. Um ideal político não pode esperar o triunfo, se não se
corporificar em um grande partido; ora, não se compreende um partido cujo
programa fosse a abstenção, a indiferença, o quietismo. Em tempos de grandes
conflitos é imprescindível que se estabeleça claramente as diferenças entre os
contendores; no Brasil, o quietismo é comportamento dos correligionários da
República304. (Grifos Meus)
Para o nosso autor, a abstenção política não seria a melhor forma de combater as
instituições republicanas, consideradas por ele inadequadas e danosas ao Brasil. Os
monarquistas deveriam, segundo as considerações de Prado, ir às urnas e manifestar
claramente, e pelas vias institucionais, o seu projeto político. A inação da abstenção não
teria valor político efetivo, além de ser estranha ao comportamento típico dos
monarquistas, sendo mais compatível com os republicanos, que seriam avessos ao
debate político amplo e democrático. Portanto, a argumentação que Eduardo Prado
desenvolve no artigo ―Eleições‖ está baseada no contraste entre dois tipos distintos de
comportamento polìtico: a inação, que ora ele chama de ―quietismo‖ e ―contemplação
silenciosa‖ e a ação, que ora ele chama de ―virilidade‖ e ―pujança‖. O autor define a
inação como o comportamento político típico dos republicanos e a ação como o
304
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 31 de outubro de 1896.
150
comportamento político típico dos monarquistas. O mais curioso dessa argumentação é
que, se levarmos em consideração as tradições políticas ocidentais, é o repertório
conceitual republicano quem valoriza a ação política, o que demonstra que na
perspectiva de Eduardo Prado a República brasileira não era uma República legítima,
sendo a Monarquia mais republicana do que a própria República. Como já sabemos
desde o capítulo anterior, essa não foi a primeira vez que Eduardo Prado formulou essa
argumentação.
Já no texto ―Uma lição de Aristóteles‖, Prado tem o objetivo de analisar a
proclamação da República brasileira à luz da filosofia política de Aristóteles. Esse é um
dos poucos escritos onde o nosso autor se esforça em apresentar uma discussão
conceitual um tanto mais rigorosa, mas que ainda assim está subordinada ao seu
objetivo principal, que era desqualificar as instituições republicanas. Nesse texto,
Eduardo Prado afirma a constância da natureza humana e, por isso, eu retomo a análise
desse material na última unidade desta tese, onde discuto o problema da temporalidade e
analiso a historiografia eduardiana. Por ora, o que me interessa no artigo ―Uma lição de
Aristóteles‖ é a crìtica que Prado fez ―à pretensão da República em governar sem
305
oposições‖ . Acredito que o esforço de Eduardo Prado em legitimar a existência da
oposição política possa ser inserido nos quadros da sua argumentação republicana,
principalmente naquilo que se refere à ideia que o espaço público precisa ser a arena de
discussão entre projetos políticos plurais. Novamente, vejo profundas semelhanças entre
as argumentações de Eduardo Prado e Hannah Arendt. Porem, desta vez, os autores
parecem se aproximar na tentativa de relacionar a pluralidade do debate democrático
com a virtuosidade política. Nas palavras de Hannah Arendt,
Na experiência da polis que, com alguma razão, tem sido considerada o mais
loquaz dos corpos políticos, e mais ainda na filosofia política que dela surgiu, a
ação e o discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais
independentes. A ênfase passou da ação para o discurso, e para o discurso como
meio de persuasão não como forma especificamente humana de responder,
replicar e enfrentar o que acontece ou o que é feito. O ser político, o viver numa
polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não
através de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém mediante violência,
ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas,
típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família, na qual o
chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos
impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à
306
organização doméstica . (Grifos Meus)
305
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 12 de dezembro de 1895.
306
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 36.
151
Ao elevar a persuasão à categoria de principal elemento do debate público, a
polis, segundo Hannah Arendt, definiu a pluralidade dos interesses como um elemento
inerente à vida política. Na verdade, a vida política somente existiria, segundo a autora,
porque é a única forma legítima de equacionar, através do debate dialógico, a
multiplicidade dos interesses e permitir que a cidade seja conduzida em função da ideia
de ―bem comum‖. Vejamos se, a despeito das particularidades de estilo e circunstâncias
históricas, Eduardo Prado não nos diz algo bem parecido com isso.
Pretendem os republicanos brasileiros que a sua República funcione sem
oposição. Ora, em política, ao menos em política democrática, isto é impossível.
Há de sempre haver oposição. Se não for oposição de princípios será pessoal e
oriunda desta simples fato: que no governo não há lugar para todos os tipos de
interesses e os que ficam de fora hão de ser oposição. Pretender governar sem
oposição é uma afronta à civilização307. (Grifos Meus)
307
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 12 de dezembro de 1895.
152
a doutrina jurídica desenvolvida pelo Visconde de Uruguai, que tive a oportunidade de
examinar brevemente neste capítulo, que definiu o poder moderador como competência
administrativa e despolitizada.
Também é importante o fato de Eduardo Prado utilizar o critério da presença da
oposição para estabelecer a superioridade da Monarquia sobre República. Como eu já
demonstrei há pouco, o critério dessa hierarquização é a existência de um espaço
público de debate político plural, que, como vimos a partir das reflexões desenvolvidas
por Hannah Arendt, é um valor vinculado à tradição republicana. Bom, parece que
temos aqui certa contradição lógica: Eduardo Prado desqualifica a República brasileira
utilizando argumentos que elogiam a forma republicana de governo. Essa contradição
manifesta-se tão somente no plano da superfície, não resistindo ao aprofundamento da
análise. Por isso, eu destaquei na citação os termos que, acredito, são capazes de diluir
essa sensação de contradição e, ao mesmo tempo, retomar a hipótese que estou
desenvolvendo neste capítulo.
Ao citar a Monarquia e a República brasileiras, Eduardo Prado, deliberadamente,
utilizou os termos ―como a tìnhamos‖ e ―tal como a temos‖. Ao fazê-lo, o objetivo do
autor era dizer ao seu leitor, que sabia muito bem que o jornal ―Comércio de São Paulo‖
era um órgão do Partido Monarquista, que no Brasil essas experiências tinham suas
especificidades, não podendo ser pensadas a partir da perspectiva corrente no senso
comum político moderno, que ao definir a República como o contraponto da
Monarquia, identificou a primeira com a democracia e a segunda com o despotismo. Ao
utilizar os tais termos, Prado quis mostrar que esse lugar comum não se aplicava ao caso
brasileiro, já que, entre nós, a Monarquia incentivou a ação política dos
cidadãos/proprietários, que atuavam como corresponsáveis junto com o governo pelo
bom andamento dos assuntos públicos, e possibilitou a existência da oposição, o que é
fundamental para a pluralidade do debate político democrático. Por outro lado, a nossa
República teria esvaziado o espírito público dos proprietários, a ponto deles não terem
se engajado no combate à epidemia de febre amarela, e tinha o projeto de extinção das
oposições, estando, por isso, mais próxima de um tipo de governo despótico do que do
propriamente republicano.
A forma como Eduardo Prado manejou esses princípios republicanos mostra que
ele, de fato, conhecia esse repertório, o que não era uma particularidade sua, mas algo
comum aos membros das elites brasileiras oitocentistas. Como sabemos, esses homens
eram treinados em centros especializados que tinham o objetivo de prepará-los para a
153
vida pública. O tipo de educação que esses espaços ofereciam aos seus alunos - como
vimos neste capítulo para o caso do Seminário Diocesano de São Paulo - era marcado
pela presença de importantes tradições do pensamento político ocidental, como, por
exemplo, o republicanismo. Porém, outras tradições também eram importantes na
formação desses homens. Meu objetivo no próximo capítulo é examinar o uso que
Eduardo Prado fez de outra tradição fundamental para a história do pensamento político
ocidental: o direito natural, com a qual ele travou contato nos bancos da Faculdade de
Direito de São Paulo.
154
Capítulo 5
Mais de quatorze anos separam as duas citações, tempo suficiente para grandes
transformações no comportamento político de Eduardo Prado. O primeiro trecho foi
publicado no pequeno e efêmero jornal estudantil ―A Comédia‖ em março de 1881,
quando o nosso autor cursava o último ano da faculdade de direito, escrevia crônicas
políticas em alguns jornais paulistas e ainda não era um aguerrido defensor das
instituições monárquicas. A segunda citação foi extraìda do artigo ―A ruìna financeira
da República‖, que foi publicado no jornal ―Comércio de São Paulo‖ em novembro de
1895, quando Prado já era notoriamente um grande adversário dos governos
republicanos. A despeito das particularidades das conjunturas históricas nas quais as
citações foram escritas, é possível perceber algo em comum entre elas: em ambas são
mobilizados valores pertencentes ao repertório do direito natural. No primeiro caso, o
valor mobilizado é aquele que define o espaço privado como a esfera de intimidade,
como o locus da existência no qual o homem está protegido do poder da autoridade
civil. No segundo caso, Prado caracteriza a propriedade como um direito primordial, o
que o aproxima bastante da concepção de direito natural desenvolvida por John Locke.
O meu objetivo neste capítulo é analisar o uso dessa tradição filosófica nos escritos de
Eduardo Prado, mostrando que o jusnaturalismo é uma chave de leitura possível para a
análise do seu pensamento conserdador, o que demonstra como, em alguns aspectos, ele
308
PRADO, Eduardo. ―A Comédia‖. 05 de março de 1881.
309
Idem. ―Comércio de São Paulo. 14/11/1895.
155
destoou do conservadorismo moderno, tal como foi delineado por autores como
Edmund Burke e Alexis de Tocqueville.
Edmund Burke, nas suas críticas à Revolução Francesa, negou a ideia de que
existe um direito natural comum a todos homens e a todos as épocas, argumento que
serviu como combustível para a luta dos revolucionários contra o despotismo do Antigo
Regime. Também Tocqueville questionou a ―liberdade natural‖ que impulsionou os
jacobinos, dizendo que os direitos devem ser pensados à luz das circunstâncias
específicas de cada época, visando sempre a harmonia da sociedade. Nesse sentido, o
pensamento conservador momento tem como uma de suas principais características a
rejeição à doutrina do direito natural e a reivindicação de um pensamento jurídico
conjuntural que respeite as particularidades de cada ordenamento social. Segundo o
filósofo alemão Friedrich Meinecke, essa rejeição conservadora à teoria do direito
natural foi a fonte na qual o historicismo, no século XIX, bebeu para criticar as
abordagens metafísicas da história filosófica e desenvolver uma abordagem histórica
voltada ao exame dos eventos. No último capítulo desta tese, eu examino como Prado
mobilizou o aparato metodológico desenvolvido pela escola histórica alemã. Por ora,
desejo mostrar como, em alguns momentos da sua trajetória político/intelectual, o nosso
autor destoou do repertório conservador e se apropriou dos fundamentos do
jusnaturalismo, o que demonstra que a sua relação com o conservadorismo moderno
precisa ser analisada com cuidado, à luz das intervenções do autor na cena
político/intelectual brasileira finissecular. Nem sempre, Prado atuou como um
conservador típico, como um herdeiro de Burke e Tocqueville.
Como o leitor já sabe, o objeto de estudos desta tese é a performance letrada de
Eduardo Prado. Desde o início do meu texto, eu estou tentando mostrar que o autor
mobilizou, nas suas performances discursivas, elementos dos vocabulários políticos
antigo e moderno, que foram usados ao sabor das circunstâncias e sem um maior rigor
metodológico. Essa perspectiva de análise se fundamenta na ideia de que as tradições do
pensamento político ocidental não devem ser separadas por um rigoroso corte
cronológico, sendo, portanto, muito comum o diálogo entre elas. O caso da filosofia do
direito natural é sintomático desse tipo de combinação. Em um trabalho dedicado
especificamente ao tema, o filósofo francês Michel Villey destaca as raízes clássicas
dessa tradição filosófica.
Pode-se afirma que a teoria do direito natural é tão antiga quanto a filosofia
ocidental. É principalmente em Heráclito que os estudiosos reconhecem o início
das formulações da lei de natureza enquanto ditame da razão: o logos heracliano,
156
em particular, constitui o precedente da teoria estóica das razões seminais e, mais
remotamente, da teoria cristã da lex aeterna. Além disso, no conceito de logos
devemos reconhecer o contributo essencial de Heráclito para a filosofia jurídica.
É por ser comum a todos os homens que a razão (ou logos) seria o fundamento
310
da lei natural .
310
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2009,
p. 46.
311
BARROS, Alberto Ribeiro de. Direito Natural em Cícero e Thomas de Aquino. São Paulo: Ed. USP,
2010, p. 85.
312
Cícero. Da República. São Paulo: Ed. Escala, 2006. p. 65.
313
HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2004. P. 97.
157
que os homens não precisam de nenhum legislador para saberem o que é o bem e o que
é o mal, sendo o papel da autoridade, tão somente, coagi-los a praticar o bem e evitar o
mal. O próprio Thomas Hobbes, que segundo Norberto Bobbio314 é, junto com John
Locke, um dos principais representante do jusnaturalismo inglês, reconhece a dívida
para com o pensamento político de Cícero. Nesse sentido, não me parece ser nenhum
absurdo propor que Eduardo Prado, dono de um acervo bibliográfico no qual estavam
os escritos desses próceres do pensamento político ocidental, tenha mobilizado tanto os
valores do republicanismo cívico antigo como os valores do jusnaturalismo moderno. aa
relação entre as duas tradições é baseada mais na complementariedade do que na
ruptura.
A presença da correlação entre a natureza e a razão, tão cara a Cícero e a
Hobbes, pode também ser identificada em textos do próprio Eduardo Prado, como, por
exemplo, no artigo ―Escavação do Passado‖, publicado no jornal ―A Comédia‖ em 09
de março de 1881. Nesse texto, o nosso autor analisa a lei Eusébio de Queirós.
Muitos anos há que o tráfico, a importação de africanos para o nosso país, foi
pelas nossas leis abolido. Para conseguir isso muito lutaram os nossos
legisladores; a necessidade de braços para o trabalho, o uso arraigado de muito
tempo da importação dos negros, a abolição das leis que facultavam a
escravização dos índios, eram razões poderosíssimas que atuavam para impedir a
abolição do tráfico. A permanência de tamanho crime ia contra a razão, que é o
atributo mais natural dos homens, transformando-se no Brasil em um típico caso
315
de desvirtuamento jurídico . (Grifos Meus)
314
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Ed UNB, 1997.
315
PRADO, Eduardo. ―A Comédia‖. 09 de março de 1881.
158
No primeiro capítulo desta tese, examinei parte dos escritos de juventude de
Eduardo Prado, exatamente aqueles que foram publicados na coluna ―Crônicas da
Assembleia‖ do jornal ―Correio Paulistano‖ em 1879. Agora, eu examino outra parte
desses textos, especificamente os que foram publicados no jornal ―A Comédia‖ ao
longo do ano de 1881. Há diferenças muito importantes entre os dois jornais, fato que
considero ser fundamental para a compreensão da performance discursiva do jovem
Eduardo Prado. Se por um lado, como já vimos no primeiro capìtulo, o ―Correio
Paulistano‖ era um dos maiores jornais em circulação na capital paulista, o ―A
Comédia‖ era um periódico formado por jovens escritores, como, por exemplo, Raul
Pompeia, Afonso Celso e Assis Brasil, sendo, nas palavras de Brito Broca, ―uma
espécie de laboratório para escritores que teriam destaque na vida literária brasileira do
final do século XIX‖316. Com uma tiragem pequena, o jornal circulou por apenas um
ano, sendo Eduardo Prado, que em uma referência direta ao Partido Conservador inglês
assinava seus textos com o pseudônimo Tory, um dos seus redatores e escritores mais
participativos.
Quando comparados aos textos publicados no ―Correio Paulistano‖, os textos do
―A Comédia‖ mostram um escritor muito mais seguro e ousado, capaz de criticar as
instituições vigentes com ironias um tanto refinadas. O fato de textos escritos na mesma
época e pelo mesmo autor serem tão diferentes chama a atenção para a importância da
lógica intrínseca aos materiais examinados pelo historiador interessado nos estudos de
história intelectual. Eduardo Prado adaptava as suas intervenções às exigências
especìficas dos meios que abrigavam os seus textos. Se o ―Correio Paulistano‖ era um
jornal de clara identidade partidária, bastante lido e influente nas disputas políticas, o
nosso autor apresentou-se como um cronista pronto a defender os interesses do Partido
Conservador, o que na conjuntura da época, como já sabemos, significava fazer forte
oposição aos governos comandados pelo Partido Liberal. Por outro lado, o ―A
Comédia‖, na medida em que era um periódico de pequena circulação e dirigido por
jovens e intempestivos estudantes, possibilitou lances discursivos menos
comprometidos com os interesses partidários do seu grupo político.
Este capítulo, portanto, está dividido em três partes, sendo o uso do
jusnaturalismo o fio condutor que direciona a minha análise em todos eles. Na primeira
parte, eu examino o uso que Prado fez da teoria do direito natural em alguns dos seus
316
BROCA, Brito. A Vida literária no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2004, p. 79.
159
escritos de juventude, especificamente aqueles que foram publicanos no jornal
estudantil ―A Comédia‖. Na segunda parte, me debruço sobre alguns aspectos da
biografia do personagem que acredito serem importantes para a compreensão da forma
como ele se apropriou dos princípios do direito natural. Na terceira parte, examino as
críticas de Prado à política macroeconômica desenvolvida pelos primeiros governos
republicanos, pois acredito que, nesse material, o autor mobilizou um dos valores mais
caros ao repertório jusnaturalista: a definição da propriedade como um direito natural.
160
espírito público do cidadão brasileiro em pró dos interesses privados. Para Eduardo
Prado, ao ―deitar gentilezas com os encargos do paìs‖, o Imperador estaria gerindo o
Estado brasileiro em função dos interesses privados da sua família, quando deveria fazê-
lo em função dos interesses públicos do povo brasileiro. Mais uma vez, acredito, temos
uma forte evidência de que o monarquismo que a bibliografia especializada atribui ao
nosso autor precisa ser pensado com mais cuidado. O monarquismo não estava lá desde
sempre, sendo antes o resultado da proclamação da República e dos rumos do novo
regime político do que uma característica essencial do pensamento político de Eduardo
Prado.
Nenhum dos dois autores se dedicou à análise dos textos publicados no jornal ―A
Comédia‖, material que permite uma melhor compreensão do uso que Eduardo Prado
fez da filosofia do direito natural. Essa apropriação fica clara na primeira citação que
abre este capítulo, onde o autor mobiliza um dos valores mais fundamentais para essa
318
FILHO, Cândido da Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967, p. 170.
319
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p. 15.
161
tradição filosófica: o elogio à intimidade e a definição da esfera privada como o lugar de
refúgio do indivìduo contra o alcance da autoridade civil. Durante a curta vida do ―A
Comédia‖, que circulou por apenas um ano, Eduardo Prado escreveu quase que
semanalmente a coluna ―Crônica dos Passeios‖, onde ele comentava o cotidiano
paulista. Esses textos são atravessados pelos valores jusnaturalistas. No mesmo dia 05
de março de 1881, logo abaixo do trecho que eu citei no início do capítulo, Eduardo
Prado escreve:
Um pitoresco espaço abaulado de relva que deleitava os olhos do Ezequiel
Freire, o floricultor, assim como os de todos os amadores de jardins, está sendo
destruído pelas ruas que a fantasia do diretor está traçando no belo tapete de
grama. Tudo bucólico, tudo pacífico, a doce e confortável intimidade do homem
320
moderno . (Grifos Meus)
(...) a chuva tem clara função social. . Se apenas forma poçinhas de água, é causa
de levantar-se um bocadinho do vestido e de aparecer um bas de a be que pode
ser a centelha acendedora daquilo que os antigos sabiamente chamaram de facho
de himneo.
320
PRADO, Eduardo. ―A Comédia‖. 05 de março de 1881.
321
Idem. 08 de março de 1881.
162
Eduardo Prado argumenta, em tom jocoso, que a chuva serve como uma espécie
de elemento afrodisíaco na medida em que fez com que as moças levantem levemente a
barra do vestido, desnudando os tornozelos e despertando a ―centelha do vigor
masculino‖. O que mais me interessa nessa incursão de Eduardo Prado pelos prazeres da
intimidade, é justamente a definição da intimidade como a esfera do prazer. Não
podemos esquecer que o nosso ator estava escrevendo em um jornal estudantil que
circulava entre os próprios estudantes. Somente levando isso em consideração, somos
capazes de compreender as especificidades da sua atuação. Prado estava conversando
com os seus colegas de estudos e de farras. O desfecho da crônica mostra isso
claramente.
Agora, se desiludidas com o clima anticivilizador de Lima, quiseram morenas
descendentes dos castelhanos e dos incas, emigrar para terras mais propícias à
felicidade; se quiseram estabelecer com o concurso da associação de agricultura,
comércio e imigração, uma corrente de imigração de tranças pretas e olhos
grandes, de braços roliços, e cinturas finas, venha para São Paulo. A terra é boa.
Há a rapaziada da academia e o cabido da Sé, o que é mais, há frequentes vezes,
322
a chuva deleitosa, que lhes dará ocasião de levantar um pouco a saia e... .
322
Idem.
323
Idem.
163
presentes também nos escritos políticos de John Locke, autor que, levando em
consideração o catálogo bibliográfico organizado por A. Gazeau, era bastante estimado
por Eduardo Prado.
Uma análise mais cuidadosa dos escritos de Locke, principalmente os textos
“Essay concerning toleration” e ―Letters concerning toleration”, ambos pertencentes
ao acervo do nosso autor, é importante para o fortalecimento da hipótese que estou
desenvolvendo neste capítulo. De acordo com Norberto Bobbio, foi nesses textos que
Locke sistematizou a sua defesa das liberdades privadas, argumento que viria a
influenciar toda cultura política moderna. Como já comentei brevemente no prólogo a
esta unidade, em um estudo específico sobre a modernidade, o historiador alemão
Reinhart Koselleck definiu a filosofia política de Locke como o fundamento do
iluminismo burguês, principalmente naquilo que se refere à delimitação da consciência
como um espaço legítimo de crítica política. De acordo com as considerações desse
autor, Locke argumentava que
Embora os súditos tenham abdicado de todo seu poder para colocá-lo à
disposição do Estado, e por isso não possam agir contra um cidadão além do que
é autorizado pelas leis do país, ainda assim eles conservam a capacidade de
formar uma opinião boa ou má, de aprovar ou reprovar os atos daqueles com
quem convivem e dialogam. Os cidadãos não têm nenhum poder executivo, mas
324
possuem e conservam o poder espiritual do juízo moral .
Koselleck acredita que Locke estava mesmo convencido de que uma vez
compartilhados por um grande número de pessoas, os juízos morais poderiam ser
324
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à partogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: ED. UERJ, 1999. pp. 50-51.
325
LOCKE apud KOSELLECK (Idem). p. 52.
326
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à partogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: ED. UERJ, 1999. p. 54.
164
alçados à condição de padrões de comportamento fortes o suficiente para terem poder
de lei. Nas palavras do próprio Locke: ―Nenhum homem que ofenda a opinião daqueles
com quem convive escapa à punição de sua censura e desapreço‖327. É, justamente, o
poder de censura da lei moral um dos valores jusnaturalistas que foram mobilizadas por
Eduardo Prado no romance ―As Façanhas do Russinho‖, o único do autor que chegou
até nós. Segundo Sebastião Pagano, Prado escreveu ainda outro romance, intitulado
―Terra Rocha‖, que ―ficou inédito e certamente foi extraviado‖ 328.
O romance ―As Façanhas do Russinho‖ começou a ser publicado no jornal ―A
Comédia‖ sob a forma de folhetins, em 06 de abril de 1881. Como o exemplar do dia 21
de maio é o último que está disponível nos arquivos da Faculdade de Direito de São
Paulo, não consegui descobrir quando e como o enredo foi encerrado. Contudo, o
estudo do material disponível mostra como o direito natural foi uma tradição
fundamental na formação e na atuação letrada de Eduardo Prado. A narrativa trata de
uma viagem do Imperador D. Pedro II ao Paraná e da obsessão de um rico colecionador
inglês, o Mr Begget, pelo guarda chuvas do Monarca brasileiro. Para roubar o precioso
artefato, o nobre inglês contratou os serviços do Russinho, um ―dandy de meia tigela
que se infiltrou na comitiva do Imperador, disfarçado de jornalista‖. O texto mereceria
ser analisado com mais cuidado, principalmente naquilo que se refere às suas relações
com o projeto estético realista, que na época era uma das principais tendências no
cenário literário brasileiro. Porém, por causa da delimitação do objeto desta pesquisa,
não é possível fazer, aqui, esse tipo de exercício. Fica para um outro lugar, para um
outro momento.
Por ora, o que mais me interessa no romance ―As Façanhas do Russinho‖ é uso
dos valores jusnaturalistas, o que pode ser verificado logo no primeiro parágrafo do
texto.
A atmosfera política pesava, condensada e opaca, sobre as consciências, levando
os homens de casaca preta a violarem internamente os princípios naturais do
poder. Havia pelo céu, nuvens plúmbeas, núncias de borrasca, enxotadas
rapidamente pelo prestígio ministerial. A eleição direta era o grande assunto, o
único, o merecedor das colunas dos jornais, das palestras dos botequins e dos
329
rendez-vous políticos .
327
LOCKE apud KOSELLECK (idem). p. 55.
328
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p. 16.
329
PRADO, Eduardo. “A Comédia‖. 06 de abril de 1881.
165
princípios jusnaturalistas consegue perceber a presença do princípio da consciência
ìntima como um lugar de resistência polìtica à autoridade civil. Para Prado, os ―homens
de casaca preta‖, que era como os polìticos eram chamados no século XIX, se
rebelavam secreta e silenciosamente contra o poder instituído. Ainda que esses homens
não tivessem condições políticas de exteriorizar a sua insatisfação, possuíam o controle
do seu próprio ―juìzo moral‖, o que, de alguma forma, tinha desdobramentos públicos
fortes o suficiente para tornar a ―atmosfera polìtica pesada, condensada e opaca‖.
Portanto, o fato da rebeldia da elite política ser interna não implicava necessariamente
na ausência de qualquer capacidade de interferência nas estruturas do poder. Temos
aqui a mesma complementariedade entre público e privado que foi articulada por Locke.
A tópica do valor coercivo do juízo moral é retomada em outro momento do
enredo, justamente quando o protagonista consegue adentrar nos aposentos do
Imperador e, pela primeira vez, tem contato com o tal guarda chuva que tanto
despertava o interesse do magnata inglês.
Ora perseguido pela polícia, protegido pelas influencias eleitorais, as vezes
aliado a secreta, a sua existência era atribulada. Olhando para o guarda sol, o
russinho enterquecia-se apresentando no seu passado de lutas que ia findar.
Pensava já que compraria uma cainha no Andaraí Grande, que teria um
jardinzinho, que se casaria com uma enjeitada que vira havia meses no dia da
festa da misericórdia, que teria uns filhinhos gorduchos, que fariam a glória da
sua família e amarrotariam-lhe as calças brancas, passando a levar uma vida de
330
acordo com os ditames morais do convívio social . (Grifos Meus)
330
Idem. 11 de abril de 1881.
166
Mais adiante na narrativa, Prado descreve a viagem da comitiva real ao Paraná,
tratando com fina ironia os rituais da corte. Em meio a essa descrição, eu destaco um
parágrafo, outro trecho que penso ser fundamental para a minha argumentação.
O Jornal do Comércio, o Cruzeiro e a Gazeta de Notícias estavam a postos com
os seus repórteres – correspondentes de mala a tiracolo e carnet empalmado.
Todos atentos aos detalhes mais íntimos da comitiva imperial; o trono faz com
331
que os reis não tenham o mesmo conforto íntimo de um cidadão comum .
(Grifos Meus)
Somente com citação direta a referência ao jusnaturalismo seria mais clara. Para
Prado, o objetivo do repórter moderno é penetrar na intimidade e conhecer aquilo que
está fora do alcance poder civil. Ou seja, a esfera privada é pensada como o limite do
poder civil, como a demarcação fundamental que precisa ser respeitada pelo governo
que não deseja incorrer no despotismo. Novamente, o uso do repertório jusnaturalista
me parece ser claramente perceptível. Ao analisar a argumentação desenvolvida por
Locke no “Essay concerning toleration”, Norberto Bobbio assevera que foi na defesa
da tolerância religiosa que o filósofo inglês deu os contornos mais sólidos à sua
definição de esfera privada. As palavras do próprio Locke parecem endossar essa
interpretação.
Sendo o culto religioso aquela homenagem que eu presto àquele Deus que eu
adoro de um modo que eu julgo aceitável a ele, e sendo então uma ação ou um
negócio que se passa entre mim e Deus, não tem sua própria natureza nenhuma
331
Idem. 07 de abril de 1881.
332
Idem. 11 de maio de 1881.
167
referência ao meu governo ou ao meu vizinho e, desse modo, não produz
necessariamente nenhuma ação que perturbe a comunidade, não há sentido no
333
fato da autoridade civil desejar macular a segurança da minha casa . (Grifos
Meus)
Tal como Locke fez no século XVII, ao definir a religião como um assunto de
esfera privada, de foro íntimo, Prado parece estar tentando estabelecer as diferenças
entre a sociedade eclesiástica e a sociedade política. Para Bobbio, toda a reflexão que
Locke desenvolveu sobre o tema da liberdade religiosa tinha o objetivo de mostrar que
os indivíduos são dotados de direitos pré-políticos que têm dimensão exclusivamente
secular, como, por exemplo, o direito de se preservar e garantir a preservação da
humanidade. Nesse sentido, o poder supremo a ser instituído pelos homens já nasce
condicionado, portanto, a respeitar esses direitos. Desse modo, a comunidade civil tem
por fim exclusivo a garantia dos interesses temporais dos indivíduos, como, por
333
LOCKE apud BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Ed UNB, 1997, p. 97.
334
Prado, Eduardo. ―A Comédia‖. 19 de abril de 1881.
168
exemplo, a vida, a liberdade e a propriedade, sendo, então, a matéria religiosa um
assunto que não deve ser abordado pela autoridade política. Como, diferente de Locke,
Eduardo Prado não era um doutrinador, não há sentido em querer encontrar nos seus
textos o mesmo refinamento conceitual, o que não significa que as considerações do
filósofo inglês não tenham, de alguma forma, servido de inspiração para o nosso autor.
Sob aspecto algum essa inspiração ficou restrita aos textos de juventude. Em outubro de
1896, Eduardo Prado publicou no seu jornal ―Comércio de São Paulo‖ o artigo
intitulado ―Odisseia Póstuma‖, onde criticou os rituais fúnebres que o governo
republicano presidido por Prudente de Moraes estava organizando em homenagem ao
músico Carlos Gomes (1836-1896).
Tem dito muitos lados tocantes a manifestação nacional feita ao redor e com o
cadáver de Carlos Gomes. Não há negar, contudo, aos organizadores destas
festas funerárias que, si lhes tem sobrado e patriotismo, tem-lhes faltado um
335
pouco a maior das virtudes, neste caso, que é a da discrição . (Grifos Meus)
Diferente do que costumava fazer nesse período, Eduardo Prado não utilizou o
texto sobre as exéquias de Carlos Gomes para defender a restauração da Monarquia. É
certo que ao longo do texto, o autor faz críticas ao governo republicano, críticas que são
vazadas pela tópica jusnaturalista da intimidade privada. Novamente, a exemplo dos
escritos que foram examinados no capìtulo anterior, Prado usa a noção de ―virtude‖ para
desqualificar o governo republicano. Porém, desta vez, o autor não considerou o
―espìrito público‖ a principal virtude, mas sim a ―discrição‖, que é uma ideia correlata
ao segredo e à intimidade, que, como já demonstrei, são valores fundamentais para o
jusnaturalismo. Não sou em quem estabelece a correlação entre a discrição, o segredo e
a intimidade, mas sim o próprio Eduardo Prado.
A morte, afinal de contas, é uma coisa séria: tanto a morte de um grande homem,
como a de um humilde mortal precisa ser vivida na intimidade do leito, de
preferência do leito da casa; é o leito da casa a morada da intimidade e das
confissões secretas do homem, de todo modo, o lugar ideal para morrer. É
lamentável a República brasileira não ter garantido esse último direito ao grande
336
artista . (Grifos Meus)
Prado, aqui, vai mais longe e define a intimidade como um direito, um direito
que estava sendo violado pela República brasileira. É interessante pensar com mais
cuidado a noção de direito, que é fundamental para o pensamento jusnaturalista. Em um
trabalhado dedicado à obra de Hobbes, Skinner mostra que algumas elementos do
335
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 25 de outubro de 1896.
336
Idem.
169
jusnaturalismo moderno eram compartilhados por pensadores contemporâneos ao autor
do ―Leviatã‖, como, por exemplo, Hugo Grócio (1583-1645), que o historiador inglês
afirma ser uma das principais inspirações de Hobbes.
Entre os filósofos escolásticos e Hobbes, Hugo Grócio é tido como o maior
teórico do direito natural, sendo o seu Direito da Guerra e da Paz considerado o
texto de fundação da escola moderna da lei natural. Crítico do pensamento cético
característico do humanismo, pode ser considerado o percursor direto de
337
Hobbes .
Da mesma forma como havia feito anos antes em alguns de seus textos de
juventude, Eduardo Prado afirma que o conforto da intimidade privada é algo inerente à
337
SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na filosofia de Hobbes. São Paulo: Ed. UNESP, 2007. p. 65.
338
Idem.
339
GRÓCIO, Hugo. (APUD) SKINEER. Idem. p. 78.
340
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 25 de outubro de 1895.
170
modernidade, quando movimentos revolucionários ―mataram os despotismos‖. O autor
não chega a citar os movimentos revolucionários modernos, mas acredito que era a eles
que Prado estava se referindo quando relacionou a modernidade à morte dos
despotismos. Pela segunda vez, Eduardo Prado vinculou o ofício do repórter à
modernidade e à concepção de vida íntima. A primeira referência, que já foi examinada
neste capítulo, havia sido formulada quinze anos antes, no romance ―As façanhas do
Russinho‖. Nessa ocasião, o autor escreveu que o repórter era um profissional moderno
que tinha o objetivo de ―perscrutar as sombras de intimidade e chegar onde o poder do
Estado foi interditado‖. As semelhanças entre as duas citações são óbvias, em ambas
estando presente o princípio jusnaturalista que define o espaço privado como o limite da
autoridade do poder civil.
A análise dos escritos de Eduardo Prado que venho desenvolvendo nesta tese
está condicionada, como não poderia deixar de ser, ao exame das particularidades da
trajetória desse personagem. Em poucos momentos da sua vida, Prado se empenhou em
desenvolver uma discussão conceitual mais aprofundada, destacando-se como um dos
principais polemistas em atuação no cenário político brasileiro nos últimos anos do
século XIX. Contudo, isso não quer dizer que as intervenções do nosso autor não
possam ser lidas na chave dos repertórios filosóficos antigo e moderno disponíveis aos
letrados brasileiros desse período. Eduardo Prado frequentou os mais importantes
espaços de formação intelectual em funcionamento no Brasil no século XIX, tendo
travado contato, portanto, com essas tradições, que eram consideradas fundamentais
para a formação dos membros das elites brasileiras. Por isso, penso que a análise não
precisa ficar restrita, exclusivamente, ao procedimento de identificação dos repertórios,
sendo as incursões biográficas um importante recurso a ser utilizado na interpretação do
pensamento político conservador do mais jovem dos irmãos Prado.
171
Será inútil mencionar minha família, pois isso não diz respeito a ninguém.
Informar que nasci em Paris, na lua Lamartine. Exlicar, se for o caso, que não
precisei me naturalizar, conforme se divulgou: nascido em Paris, só precisaria
optar, na maioridade, pela nacionalidade francesa em virtude do artigo 09 do
Código Civil. Insistir no fato de que sempre pedi para não se ocuparem de minha
vida, apenas de meu trabalho. Sustentei, invariavelmente, que a vida de um
341
filósofo não lança luz alguma sobre sua doutrina e não interessa ao público .
O que está em jogo, tanto para Bérgson como para Dosse, é a relação entre a
vida e a obra de um escritor. Para o primeiro autor, a obra tem completa independência
semântica, sendo o conhecimento da vida algo dispensável no procedimento de
compreensão do texto. Já para o segundo, sequer é possível separar a vida da obra e, por
isso, a abordagem biográfica é inseparável do procedimento hermenêutico. Como nesta
tese a minha perspectiva analítica prioriza a performance discursiva de Eduardo Prado,
me encontro muito mais próximo das sugestões de Dosse do que das de Bérgson. Por
isso, a exemplo do que fiz no capítulo anterior, apresento ao leitor alguns importantes
apontamentos biográficos que, acredito, colaboram para a argumentação que estou
desenvolvendo. Até aqui, eu venho dialogando com as biografias escritas por Cândido
da Mota Filho e Sebastião Pagano. Ambos os trabalhos têm importância fundamental
para a minha pesquisa, principalmente naquilo que se refere ao mapeamento da
documentação. Como Eduardo Prado quase não fez referências aos seus próprios textos,
seria impossível conhecer os escritos de menor repercussão se não fosse o levantamento
feito pelos dois biógrafos. Agora, as citadas biografias ganham uma importância ainda
maior: ambas apontam os vínculos de amizade entre Eduardo Prado e João Teodoro
Xavier, que era professor de Direito Natural da Faculdade de Direito de São Paulo.
Foi, por esse tempo, que Eduardo tomou seus primeiros contatos com a
Academia de Direito. Sua personalidade começava a apurar-se. Fazia planos,
dava opiniões, discutia teses filosóficas, escrevia nos jornais e tomava parte em
341
BERGSON, Henri. Instruções relativas à minha biografia. Rio de Janeiro: Martins Fones, 1998. p.
214.
342
DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Ed. USP, 2009. p. 369.
172
sabatinas, nas aulas do professor João Teodoro Xavier, sobre os temas do Direito
343
Natural .
343
FILHO, Cândido da Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olímpio, 1967. p. 05.
344
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p. 87.
345
BARBOSA, Rui. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 2, pp. 265-266, in: VAMPRÉ,
Spencer. Memórias -para a história da academia de São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1924.
346
Os trabalhos organizados por Almeida Nogueira em 1977 são de consulta obrigatória para qualquer
estudioso interessado na história da Faculdade de Direito de São Paulo. O autor coletou fontes até então
dispersas sobre as memórias dos estudantes que frequentaram essa instituição ao longo do século XIX,
organizando todo esse material em quatro volumes, que nos apresentam as reminiscências dos alunos que
frequentaram a instituição entre as décadas de 1840 e 1890. Ver: NOGUEIRA, Almeida. Tradições e
reminiscências da Academia de São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1977
347
O ―Dicionário do Brasil Imperial‖ organizado por Ronaldo Vainfas (2002) é certamente uma
referência fundamental para todo historiador interessado no século XIX brasileiro. De acordo com o
173
formado nos quadros da faculdade paulista nos apresenta um diagnóstico semelhante.
Joaquim Nabuco costumava definir o referido estabelecimento como a ―antessala da
Câmara‖, como um centro por excelência de formação de lìderes para a administração
imperial348.
Foi na Faculdade de Direito de São Paulo que Eduardo se formou, no curso de
Ciências Jurídicas, em 1881. As já citadas biografias de Sebastião Pagano e Cândido da
Mota Filho afirmam que Prado ingressou no estabelecimento em 1876, quando tinha
dezesseis anos de idade. Temos aqui um pequeno erro de balizamento cronológico. Há
nos arquivos da Faculdade de Direito de São Paulo um documento administrativo, um
dos poucos que não foram danificados pelo incêndio da década de 1970, que comprova
a matrícula de Prado no referido estabelecimento em fevereiro de 1877, ou seja, quando
o filho mais moço de Dona Veridiana estava prestes a completar dezessete anos. A
análise da trajetória de Eduardo Prado nos exames admissionais da faculdade, cujas
informações podem ser encontradas com certa facilidade nas páginas do jornal ―Correio
Paulistano‖, mostram que nem só de êxitos se constituiu a vida acadêmica desse
personagem. Encontrei pela primeira vez o jovem Prado tentando fazer parte do corpo
discente da referida instituição em 1876, quando era recém-egresso da Escola Regular
do Seminário Diocesano de São Paulo, onde, como vimos no capítulo anterior, foi
preparado para os exames de admissão nas faculdades imperiais. Porém, o moço não
teve sucesso na primeira investida.
Em janeiro de 1876, Eduardo Prado foi aprovado nos ―Exames Linguìsticos‖,
que envolviam provas escritas e orais de francês, português e latim. Em fevereiro, ele
realizou, também com sucesso, os exames de retórica e poética. Porém, os números
parecem ter sido o calcanhar de Aquiles do jovem, que foi reprovado nos exames de
álgebra e aritmética. Certamente, o insucesso deve ter provocado alguma frustração em
Eduardo e em sua família. Os Prado, assim como outras importantes famílias das elites
autor, a finalidade dos cursos jurídicos não era apenas a formação de juristas, mas de advogados,
deputados, senadores, diplomatas e quadros para a burocracia estatal, condição essencial para a
constituição de um Estado de fato independente. Vainfas afirma que ―A Faculdade de Direito de São
Paulo (...) continuou marcada pela militância política stricto sensu e pelo exercício do jornalismo. Foi dos
bancos escolares paulistas da década de 1870 que saíram os bacharéis que doravante se destacariam pela
militância política, como Rui Barbosa, que mais tarde diria: 'No estudo do Direito, o mundo acadêmico e
o mundo político se penetram mutuamente‖ p. 106. As estreitas relações entre a faculdade paulista e as
altas esferas do poder legislativo monárquico também foram apontadas por outros importantes trabalhos,
alguns mesmos chegando a apresentar dados estatísticos a respeito da formação universitária dos líderes
políticos oitocentistas. Entre esses estudos, destaco os de José Murilo de Carvalho, o de Gilberto Freyre,
Ilmar Mattos, Lillia Schwarcz, André Peixoto de Souza e Vitor André de Souza, todos devidamente
referenciados na bibliografia.
348
NOGUEIRA (op cit). p. 79.
174
brasileiras oitocentistas, investiam pesado na formação acadêmica dos seus filhos. Eles
sabiam muito bem o que era esperado dos herdeiros das grandes famílias. Ignoro o que
Eduardo Prado fez no restante do ano de 1876, talvez tenha tido aulas de reforço com
algum professor particular de matemática. O fato é que o encontramos tentando outra
vez a seleção em janeiro de 1877, agora com sucesso. Ele foi plenamente aprovado em
todas as partes do processo: os estudos linguísticos, matemáticos, retóricos, poéticos e
filosóficos. Em março desse ano, o jovem Prado já era aluno do primeiro ano do curso
de ciências jurídicas da instituição que na época gozava do prestígio de ser considerada
o principal centro de formação jurídica em funcionamento no Brasil.
Em um curto depoimento, o próprio Eduardo Prado comentou os tempos em que
frequentou o curso jurìdico paulista: ―(...) Um momento para se encontrar grandes
349
amizades e estudar as ideias liberais que transformaram a civilização moderna‖ .
Essas palavras podem ser encontradas no livro de memórias organizado por Almeida
Nogueira, que não apresenta a fonte da citação e nem informa se o testemunho foi
colhido ao longo dos anos em que o nosso autor estudou na Faculdade de Direito de São
Paulo ou posteriormente, quando ele já era um dos principais opositores dos governos
republicanos. No trecho, Eduardo Prado estaria elogiando a inspiração liberal do curso
jurídico ministrado em São Paulo, interpretação que é corroborada pela crítica
especializada. Para Lilia Schwarcz, as duas faculdades de direito brasileiras
oitocentistas tinham perfis filosóficos bastante nítidos, e distintos.
São Paulo foi mais influenciada pelo modelo político liberal, enquanto a
faculdade de Recife, mais atenta ao problema racial, teve nas escolas darwinista
social e evolucionista seus grandes modelos de análise. Tudo isso sem falar do
caráter doutrinador dos intelectuais da faculdade de Pernambuco, perfil que se
destaca principalmente quando contrastado com o grande número de políticos
350
que partiam majoritariamente de São Paulo .
349
Idem. p. 159.
350
SCHWARZ, Lilia Moritz. SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Espetáculo das raças. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003. p. 143.
175
A teoria do direito natural também foi muito importante para o curso jurídico
paulista, o que podemos perceber já no preâmbulo do decreto de 09 de janeiro de 1825,
que instituiu formalmente uma faculdade de direito no Brasil, que foi provisoriamente
instalada no Rio de Janeiro. O texto diz que o objetivo da nova instituição seria ―formar
cidadãos com conhecimento no direito natural, público, das gentes e das leis do Império
351
para trabalhar como magistrados‖ . A definição do jusnaturalismo como um
conhecimento fundamental para o bacharel brasileiro foi mantida pela lei de 11 de
agosto de 1827, que estabeleceu a grade curricular que, a despeito de algumas
reformulações pontuais, se manteria praticamente a mesma até o final do século XIX352.
351
Citado em NAVARRO, Ana Paula. A faculdade de direito de São Paulo e as interferências
imperiais no ensino jurídico: uma edição de legislações de 1827 a 1879. Dissertação de
Mestrado: São Paulo, USP, 2010. p. 41.
352
De acordo com o estudo de Ana Paula Navarro (op cit), a estrutura curricular da Faculdade de Direito
de São Paulo sofreu apenas uma grande transformação, em 1854, quando decreto 1386 inseriu a cadeira
de direito romano e direito administrativo como permanentes.
176
Seria fundamental saber os autores que eram estudados em cada uma dessas
disciplinas, mas eu não encontrei os programas de estudos recomendados aos
estudantes. Porém, por si só, a grade curricular me permite avançar na argumentação
que venho desenvolvendo neste capítulo. Eduardo Prado estudou a tradição jurídica do
direito natural durante os dois primeiros anos do seu curso de Ciências Jurídicas, tendo
certamente, entrado em contato com os textos de autores como Hugo Grócio, Thomas
Hobbes e John Locke. O professor João Teodoro Xavier, que era o responsável por essa
cadeira, faleceu em outubro de 1878, tendo ministrado aulas para Eduardo Prado desde
fevereiro de 1877. Como já comentei, os dois biógrafos afirmam que o nosso autor era
frequentador assíduo das aulas de direito natural do professor Teodoro Xavier. Eu não
encontrei nenhuma evidência capaz de sustentar essa afirmação. Porém, levando em
consideração a forte presença das tópicas jusnaturalistas nos escritos de Eduardo Prado,
fico bastante inclinado a sugerir que, de fato, o nosso autor tinha especial interesse nos
escritos de autores vinculados à tradição do direito natural inglês.
Até aqui, eu examinei o uso que Eduardo Prado fez de três princípios
pertencentes ao repertório jusnaturalista: a definição da razão como o fundamento da lei
natural, a delimitação da intimidade privada como o refúgio do homem moderno do
controle da autoridade civil e a positivação político/jurídica da consciência moral. Há
ainda outro valor que não foi examinado, justamente aquele que conceitua a propriedade
como um direito natural. O estudo do uso que Eduardo Prado fez desse princípio nos
convida a examinar um dos aspectos mais importantes da sua trajetória: os seus vínculos
com os interesses da cafeicultura paulista.
Em primeiro lugar, não é possível compreender esse aspecto da vida do nosso
personagem sem levarmos em conta a sua família. Os Prado foram uma das mais ricas e
importantes famílias da elite paulista oitocentista, destacando-se, sobretudo, na política
e na agroexportação de café. De acordo com os estudos de Darrel Levi 353, Eduardo
Prado começou a se envolver de forma direta com os negócios da família em 1887,
quando participou da fundação da Casa Prado & Chaves, que em pouco tempo de
tornou a mais importante empresa brasileira de exportação do café. A Casa Prado &
Chaves foi uma aliança entre as famílias Prado e Chaves, que se uniram em 1867,
quando aconteceu o casamento entre Anésia, irmã de Eduardo, e Elias Pacheco, filho de
Miguel Chaves, um dos homens mais ricos de São Paulo na época.
353
LEVI, Darrel E. A Família Prado. São Paulo: Cultura 70, 1977.
177
A atuação de Eduardo Prado junto aos cafeicultores paulistas se manifestou,
também, nos seus esforços em defesa da imigração de trabalhadores europeus para o
Brasil. Foi com esse objetivo que ele participou da comitiva liderada pelo Barão de
Santa Ana Nery e composta, também, pelo Visconde de Cavalcanti que organizou a
apresentação brasileira na exposição universal de Paris de 1889. Segundo Lilia
Schwarcz,
Prevista como um grande evento, a exibição foi logo entendida como uma
exaltação da República e prontamente boicotada pelas Monarquias, sobretudo
europeias. D. Pedro, no entanto, depois de se aconselhar com Cavalcanti e
Eduardo da Silva Prado, resolve aderir a exposição e dar, dessa maneira, mostra
354
de sua ―posição progressista‖ .
354
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 403.
355
FILHO, Cândido da Mota. A vida de Eduardo Prado. A Vida de Eduardo Prado. Rio de
Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 173.
356
PRADO, Eduardo (apud) FILHO, Candido da Mota. Idem. p. 173.
357
BARBUY, Heloísa. O Brasil vai a Parias em 1889: um lugar na exposição universal. Anais do Museu
Paulista. São Paulo. N. Sér. v.4 p.211-61 jan./dez. 1996. p. 213.
178
brasileira planejava utilizar a exposição para reforçar a imagem do Brasil como o reduto
da civilização nos trópicos, o que era fundamental para atrair os trabalhadores europeus.
Afinal, o trabalho escravo tinha sido abolido poucos meses antes e o problema da mão
de obra preocupava muito os fazendeiros, especialmente os cafeicultores paulistas. ―Em
plena vigência da política imigrantista, procurava-se mostrar o Brasil como país aberto
358
aos imigrantes europeus e também ao capital estrangeiro‖ . A autora destaca a
atuação de Santa-Ana Nery, que é definido como o principal propagandista brasileiro,
tendo dirigido pessoalmente o livro ―Lé Brésil‖, que foi distribuìdo entre os
participantes do evento.
O livro era uma obra coletiva com a qual colaboraram vários autores. Eduardo
Prado estava entre eles. O nosso autor escreveu dois artigos, em língua francesa, para
essa coletânea: ―L’Art” e ―Immigration”. No primeiro, ele analisa a história da arte no
Brasil, sendo esse o seu primeiro texto que pode ser caracterizado como pertencente ao
gênero historiográfico, sendo, portanto, analisado no último capítulo desta tese. Já no
segundo texto, Eduardo Prado se empenhou em falar diretamente aos governantes
europeus, desejando convencê-los de que o Brasil era um bom destino para os seus
compatriotas. Por isso, ele se concentrou em elogiar o Brasil, principalmente então
Província de São Paulo.
358
Idem. p.215.
359
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol. 1). São Paulo: Tipografia Salesiana, 1904. p. 74.
179
dos estudos de Nancy Leonzo360 e Carlos Eduardo Ornelas Berriel361. Ainda que eu
discorde de algumas das proposições apresentadas por esses autores, principalmente
naquilo que se refere a certo exagero, na minha avaliação, da importância que eles
atribuíram aos interesses de classe para o pensamento político de Eduardo Prado, os
referidos trabalhos contribuíram bastante para a reflexão que estou desenvolvendo neste
capítulo.
Ao examinar os escritos antirrepublicanos de Eduardo Prado, especialmente os
artigos reunidos nos ―Fastos da Ditadura Militar Brasileira‖, a historiadora Nancy
Leonzo afirma que o antirrepublicanismo do nosso autor deve ser interpretado na
perspectiva dos seus interesses de classe como cafeicultor.
Nesta fase, Eduardo Prado não é apenas um publicista revoltado contra o
militarismo. É, também, um político militante. Integra o Diretório Central do
Partido Monarquista, que foi fundado em São Paulo em 1895. Essa é a fase em
que ele se dedica, abertamente, à defesa dos seus interesses pessoais, como
demonstra suas abordagens sobre o café a liberdade de imprensa (...) Suas
críticas à política do governo republicano em relação ao café devem ser vistas à
luz dos seus interesses de classe. No ano de 1896 a baixa dos preços do café na
Europa coincidiu com a baixa do câmbio no Brasil. Os produtores brasileiros
protestaram contra este estado de coisas. Eduardo Prado, como um deles, buscou
362
e denunciou os culpados dessa situação .
360
LEONZO, Nancy. A historiografia antirrepublicana: a obra de Eduardo Prado. São Paulo: Ed USP,
1993.
361
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Vida literária no período de Prudente de Moraes (1894-1898):
Eduardo Prado, pensamento oligárquico e restauração monárquica. In: SILVA, Fernando Teixeira;
NAXARA, Márcia R. Capelari; CAMILOTTI, Virgínia C. República, liberalismo, cidadania. Piracicaba:
Ed. UNESP, 2003. pp 83-105.
362
LEONZO, Nancy. A historiografia antirrepublicana: a obra de Eduardo Prado. São Paulo: Ed USP,
1993. pp. 107-108.
363
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Vida literária no período de Prudente de Moraes (1894-1898):
Eduardo Prado, pensamento oligárquico e restauração monárquica. In: SILVA, Fernando Teixeira;
NAXARA, Márcia R. Capelari; CAMILOTTI, Virgínia C. República, liberalismo, cidadania. Piracicaba:
Ed. UNESP, 2003. pp 83-105. p. 85.
180
desdobradas com base em um núcleo temático – o que ajuda, nesse caso, a
364
configurar a sua dimensão oligárquica e aristocratizante .
Tanto Nancy Leonzo como Carlos Henrique Berriel colaboram para a discussão
a respeito da trajetória de Eduardo Prado na medida em que apresentam informações
bastante relevantes a respeito do envolvimento desse personagem com os interesses da
cafeicultura paulista. Porém, acredito que ao priorizar os tais ―interesses de classe‖,
ambos os autores deixaram de perceber aquilo que penso ser o elemento mais
importante da performance discursiva de Eduardo Prado: a mobilização dos valores
pertencentes ao vocabulário político ocidental antigo e moderno, o que nos permite
compreender como o autor dialogou com as tradições filosóficas disponíveis no seu
tempo, usando-as para intervir diretamente no debate público. É por isso que a partir de
agora, eu examino parte dos escritos que já foram visitados por Nancy Leonzo e Carlos
Henrique Berriel, tendo, contudo, o interesse específico de compreender o uso que
Eduardo fez do jusnaturalismo nas críticas ao tratamento que os governos republicanos
estavam dando à produção e à comercialização do café.
É certo que a crítica elaborada por Eduardo Prado precisa ser pensada à luz de
sua posição de grande empresário do ramo do café, como bem fizeram Nancy Leonzo e
Carlos Eduardo Berriel. De fato, Eduardo Prado atuou como uma espécie de porta voz
dos interesses dos cafeicultores paulistas. Entretanto, ele fez algo a mais que isso,
mostrando-se um intelectual com acurado senso de circunstância e disposto a mobilizar
na sua argumentação a tradição filosófica que melhor serviria aos seus propósitos.
364
Idem. p. 83.
365
PRADO, Eduardo. “Comércio de São Paulo”. 15 de novembro de 1895.
181
O governo acredita ter diante se si diversos alvitres que podem melhorar a
calamitosa situação das contas públicas, sendo o aumento dos impostos um
deles. Aumentar os impostos é impossível. A matéria tributável está esgotada. A
exageração dos direitos de importação tocou ao seu máximo limite. Se avança
mais, a classe produtiva terá violado o seu direito mais fundamental, dado pelo
maior legislador de todos: o Direito de tirar a sua propriedade da terra, cultivada
366
com trabalho . (Grifos Meus)
Apesar de não ter sido explícito, estou seguro de que Prado estava querendo
falar de Deus ao usar os termos ―maior legislador de todos‖. Como um legislador, Deus
criou as formulações do direito, as leis e, no caso específico da citação, a lei da
propriedade. Na medida em que foi formulada por Deus, a propriedade seria um direito
natural e inviolável pela autoridade humana. É exatamente, aqui, que reside o núcleo
central da argumentação desenvolvida pelo nosso autor: o governo da República não é
legítimo para violar a propriedade da ―classe produtiva‖, já que se trata de um direito
estabelecido por Deus. O autor retoma o argumento algumas linhas à frente.
O governo terá forçosamente de ir procurar dinheiro onde há dinheiro, isto é, no
café, na maior riqueza nacional; na riqueza que a classe dos agricultores retira do
solo sagrado e que com ele alimentar a população brasileira. Tudo isso porque a
administração republicana gasta mais do que pode para manter o seu aparato
militar (...) Os negociantes estrangeiros de tão acostumados com a probidade
sempre defendida pelo Império quase não acreditam a ameaça que a República
367
representa ao sagrado direito de propriedade . (Grifos Meus)
366
Idem.
367
Idem.
182
Identifico nas duas citações extraìdas do artigo ―A Ruìna Financeira da
República‖ a presença de dois valores pertencentes ao repertório do jusnaturalismo: a
definição da vontade divina como a origem do direito natural e a caracterização da
propriedade como um direito natural. Entre todos os escritos pertencentes à bibliografia
jusnaturalista, o texto ―O Segundo Tratado do Governo Civil‖, de John Locke, é o que
mobiliza com mais clareza esses valores.
Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, para
que se servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas
conveniências. A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens para o
sustento e o conforto de sua existência. Todas as frutas que ela naturalmente
produz, assim como os animais selvagens que alimenta, pertencem à humanidade
em comum, pois são produção espontânea da natureza; e ninguém possui
originalmente o domínio privado de uma parte qualquer, excluindo o resto da
humanidade quando estes bens se apresentam em seu estado natural; entretanto,
como foram dispostos para a utilização dos homens, é preciso necessariamente
que haja um meio qualquer de se apropriar deles, antes que se tornem úteis ou de
368
alguma forma proveitosos para algum homem em particular . (Grifos Meus)
368
LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004. p. 182.
369
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Ed UNB, 1999.
183
direito à vida, proibindo agressões à vida humana, visto ser esta parte da obra de Deus,
o direito à liberdade que garante, em princípio, que os indivíduos pautem suas ações
sem restrições ou coações e, por último, o direito de propriedade, decorrência do
trabalho de cada indivíduo.
Entre esses três direitos que Locke define como naturais, a propriedade é o que
mais me interessa. Para o autor, na medida em que deposita suas raízes na vontade de
Deus, a propriedade não poderia ser violada por quem quer que seja, nem mesmo pelo
governo civil.
Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os
homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta
ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu
corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira
um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu
trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua
propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o
colocou, através do seu trabalho adiciona—lhe algo que lhe pertence, por isso o
tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a
natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o
direito comum dos outros homens. Sento estre trabalho uma propriedade
inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao
370
que o trabalho lhe acrescentou . (Grifos Meus)
370
LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004. p. 185.
371
POCOCK, J. G. A. Linguagem do Ideário Político. São Paulo: 2003. p. 112.
184
a minha argumentação a sugestão apresentada por Pocock de que existe uma relação de
continuidade entre as discussões que no século XVII deram outro sentido ao conceito de
propriedade e o liberalismo, ambos estando fundados no princìpio que define ―o
indivíduo como um ser absorto na atividade aquisitiva, distanciando-se assim de uma
372
política que ele paga para que reprima os excluìdos pela atividade aquisitiva‖ . Essa
sugestão é fundamental para a reflexão que venho desenvolvendo desde o primeiro
capítulo desta tese, já que toda a minha argumentação se baseia na possibilidade de
diálogo e combinação entre as tradições filosóficas. Sendo assim, já que o
jusnaturalismo inglês do século XVII pode ser visto como uma das matrizes do
liberalismo dos séculos XVIII e XIX, ao mobilizar os valores jusnaturalistas e liberais,
Eduardo Prado, na verdade, estava se movendo dentro de uma mesma grande tradição
filosófica. Por isso, o autor tinha no seu repertório os valores liberais, como a liberdade
liberal, e jusnaturalistas, como caracterização da propriedade como um direito natural.
Essa combinação fica bastante clara em outro texto no qual Prado voltou a abordar as
questões relativas à comercialização do café.
No artigo ―A Questão do Café‖, de 08 de abril de 1896, Eduardo Prado comenta
a tentativa do governo brasileiro de exportar café para a Rússia, solicitando, para isso, a
redução nas barreiras alfandegárias levantadas por esse país. Porém, segundo o nosso
autor,
Um país que, como o Brasil, tem um pesadíssimo imposto de exportação, não
tem o direito de pedir a nenhum país a diminuição de direitos de entrada sobre
seus produtos. Se o Brasil quer que o café seja aliviado de impostos, dê ele o
exemplo. O café paga 11 por cento de direito de exportação, imposto anti
373
científico e condenado pelos economistas .
372
Idem. p. 113.
373
PRADO, Eduardo. ―O Comércio de São Paulo‖. 08 de abril de 1896.
185
restrição. É essa a forma mais prudente de nos tirar da atual crise de consumo,
crise que não se explica pelo excesso de produção, mas sim pela falta de
374
liberdade que impede o fazendeiro de administrar aquilo que é seu por direito .
(Grifos Meus)
374
Idem.
186
Capítulo 6
Eduardo Prado na República das Letras: um estudo sobre a sociabilização letrada luso-
brasileira nos últimos anos do século XIX
375
NABUCO, Carolina (org). Obras Completas. Instituto Progresso Editorial: São Paulo: 1935. p. 193.
376
O termo ―intelectual‖ precisa ser usado com muito cuidado, tratando-se, segundo os estudos de
Cristophe Charle, de um neologismo criado nos últimos anos do século XIX. Para o autor, o termo nasceu
por ocasião do ―Caso Dreyfus‖, quando, em 1898, um grupo de cientistas e escritores lançou o
―Manifesto dos Intelectuais‖, que questionou o julgamento feito pelo Exército francês. Esses intelectuais
inauguraram, segundo Charle, uma nova forma de intervenção no sspaço público, pois coletiva e baseada
numa posição profissional, rompendo com as práticas e a figura dos homens das letras ou do cientista
solitário. Ver CHARLE, Cristophe. Naissance des “Intelectuélles”: 1800-1900, Paris, Minuit, 1900.
377
Para José Veríssimo, que foi contemporâneo de Eduardo Prado e um dos letrados mais atuantes na
fundação da Academia Brasileira de Letras, o nosso autor foi ―o mais acabado tipo de diletante
intelectual, do amador das coisas do espírito, sendo para ele a política apenas um tema literário que tratou
com desenvoltura de um espìrito no fundo cético, paradoxal e de um reacionarismo quixotesco‖.
Veríssimo está se referindo a um especo específico da trajetória de Eduardo Prado, exatamente aquele
que, como eu já disse, é o mais comentado, ou seja, a sua militância política monarquista nos primeiros
anos da República. Em um importante estudo, Brito Broca criticou a interpretação de Veríssimo
afirmando que ―para ele [Prado], o Império tinha um sentido liberal, enquanto a República lhe surgia
como a ameaça, ou mesmo, a concretização do caudilhismo sul-americano, cujos exemplos em certos
paìses lhe inspiravam repulsa‖. Considero essa uma boa sugestão para o estudo dos escritos de Eduardo
Prado. BROCA, Brito. Machado de Assis e a Política. São Paulo: Fundação Pró-Memória, 1983. p.110.
187
turbilhão ideológico que caracterizou o final do século XIX, com o ―bando de ideias
novas‖, para utilizar as palavras de Sìlvio Romero, personagem que tem algum destaque
neste capítulo. Para além da óbvia questão geracional, podemos perceber a presença da
modernidade, também, nos textos de Eduardo Prado, como, por exemplo, na carta
enviada a Joaquim Nabuco em março de 1897, da qual eu tirei a citação que serve como
epìgrafe a este capìtulo. A presença da expressão ―nossa República‖ sugere uma pista,
algo que é fundamental para a argumentação que agora desenvolvo.
Parte da vasta correspondência trocada entre Eduardo Prado e Joaquim Nabuco
foi publicada na década de 1930, em um livro organizado por Carolina Nabuco, filha do
famoso abolicionista. O material mostra uma profunda amizade e uma intensa
interlocução intelectual e política entre os dois. A historiadora Ângela Alonso, que
recentemente escreveu uma biografia de Joaquim Nabuco, afirma que eles se
conheceram em 1886, em Paris, sendo ambos, para usar os termos da autora, ―dândis378
379
de rendas polpudas‖ . Prontamente, nasceu uma grande estima entre os dois jovens,
belos e ricos letrados, a ponto de, em fins de 1892, Joaquim Nabuco ter sido o padrinho
do casamento de Eduardo Prado. Mas o que me interessa, especialmente, neste capítulo
é o encontro dos dois amigos nas articulações que deram origem à Academia Brasileira
de Letras, que, segundo os estudos de João Paulo Rodrigues e Alessandra El Far, deve
ser pensada em função da tentativa de delimitar um campo intelectual autônomo no
Brasil, o que passava, também, pela profissionalização do escritor380.
378
O termo ―dândi‖ designa um tipo de estética masculina que surgiu na Europa, especialmente na
Inglaterra e na França, em meados do século XIX. Para Ângela Alonso, ―Oscar Wilde, na Inglaterra e
Marcel Proust, na França, são exemplos desse gênero de grandes atores públicos, encarnação de um estilo
de vida que tendia para o exotismo e suscitava a percha de efeminamento.‖ Ver: ALONSO, Ângela.
Joaquim Nabuco. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 28-29.
379
Idem. p. 216.
380
Estou trabalhando com o conceito de campo a partir da proposta de Pierre Bourdieu. Para o autor, cada
campo de produção cultural possui sua dinâmica específica, o que envolve, entre outras coisas, a
capacidade de funcionar de forma mais ou menos autônoma em relação às condições externas. Bourdieu
propõe, então, a noção de ―espaço de possìveis‖ para o estudo da produção de bens culturais. Nas
palavras do autor: ―Esse espaço de possìveis, que transcende os agentes singulares, funciona como uma
espécie de sistema comum de coordenadas que faz com que, mesmo que não se refiram uns aos outros, os
criadores contemporâneos estejam objetivamente situados uns em relação aos outros.‖ (p.54). Nesse
sentido, Pierre Bourdieu argumenta que o produtor do bem cultural, que no caso desta tese é um escritor,
negocia com uma série de constrangimentos internos ou externos ao campo, constrangimentos que irão
variar de acordo com o grau de autonomia desse campo. A noção de autonomia do campo é fundamental
para a reflexão que desenvolvo neste capítulo porque me permite pensar a atuação de Eduardo Prado não
como mero reflexo das conjunturas sociais, mas também como um sinal de diálogo com lógicas
específicas do debate intelectual finissecular. Por outro lado, o próprio Pierre Bourdieu adverte que a
autonomia jamais é completa, dizendo que ―não é possível tratar a ordem cultural, a episteme, como um
sistema totalmente autônomo” (p.57). Ver BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação.
Rio de Janeiro: Papiros ed, 2004.
188
Na carta de março de 1897, Eduardo Prado se desculpa pela sua ausência nas
reuniões realizadas no salão da ―Revista Brasileira‖. Essas reuniões eram frequentadas
pelos principais nomes da cena intelectual da época, como Machado de Assis, Lucio de
Mendonça, Graça Aranha e, ao que parece, o próprio Eduardo Prado. Não encontrei na
documentação e na bibliografia especializada indicações que sugerem um papel
protagonista do nosso autor nesses encontros. Ainda neste capítulo, eu examino a
atuação de Prado na movimentação de escritores que deu origem à ABL, assim como o
seu trânsito nos quadros dessa agremiação. Por ora, me parece ser bastante sugestivo o
termo que ele utilizou para falar das tais ―reuniãozinhas‖: ―a nossa República‖. Se
formos levar em consideração, e precisamos fazê-lo, a militância política de Eduardo
Prado contra o regime de governo inaugurado em 1889 e os seus embates com as
instituições jurídicas republicanas ao longo de 1897, assunto que eu examinei no
segundo capítulo desta tese, é difícil acreditar que o tom elogioso que ele usou na carta
se refere à República brasileira, que na ocasião era presidida por Prudente de Moraes.
Portanto, me parece fazer mais sentido pensar que Prado estava mobilizando uma das
noções mais importantes da cultura intelectual moderna: a ―República das Letras‖.
Em um estudo especìfico sobre a concepção de ―República das Letras‖ na
cultura científica inglesa do século XVIII, a historiadora Lorraine Daston afirma que o
termo se relaciona, diretamente, ao cosmopolitismo que caracteriza a interlocução
letrada no mundo ocidental moderno. Ao destacar a imaterialidade da República das
381
Letras, ―falta de localização fìsica, administração formal e tijolo e argamassa‖ ,a
autora concentra sua análise, justamente, no aspecto da interlocução, destacando que as
modernas tecnologias de comunicação foram fundamentais para que nascesse a ideia da
―República das Letras‖. De acordo com Peter Burke, que também escreveu sobre o
tema, a expressão respublica litterarum foi cunhada no século XV e se manteve em uso
corrente desde então. Para o historiador inglês, em um primeiro momento, a expressão
significava uma ―comunidade imaginada‖ dentro da qual os estudiosos se comunicavam
e colaboravam entre si, o que teria sido fundamental, ainda de acordo com as
considerações de Burke, para a construção de uma identidade para o homem das letras,
que, diferente do filósofo clássico, cada vez mais, se afirmava como um especialista
membro de um círculo constituído por pares.
381
“DASTON, Lorraine. The Ideal and Reality of the Republic of Letters in the Enlightenment.
Cambridge: Cambridge University press, 1991. p. 27.
189
A imagem de uma república não era pura ficção, pois havia costumes e
instituições que facilitavam a colaboração ou, pelo menos, a cooperação a
distância, por exemplo, escrever cartas em latim, rompendo a barreira das
línguas vernáculas europeias; fazer doações de publicações e informações; visitar
382
outros estudiosos quando se viajava .
Nesse sentiido, assim como Lorraine Daston, Peter Burke também destaca a
interlocução e o fluxo de comunicação como os principais elementos da moderna
―República das Letras‖. A diferença entre os dois estudos é que enquanto Daston
concentrou a sua análise no século XVIII, Burke desenvolveu uma espécie de história
geral da ―República das Letras‖, sugerindo que entre o final do século XVIII e o inìcio
do século XIX houve uma profunda transformação no sentido original da expressão. O
autor acredita que tanto o nacionalismo como a especialização do conhecimento
comprometeram o cosmopolitismo inicial, levando à crise da ―República das Letras‖.
A harmonia da comunidade do saber estava cada vez mais ameaçada, não só
pelas guerras, mas também, de maneira mais insidiosa, pela transmutação do
cosmopolitismo em nacionalismo. No contexto intelectual, poder-se-ia até falar
da ―nacionalização‖ do conhecimento no século XIX, quando surgiu a noção de
que o estudioso era um representante de seu país e poderia ser convocado para o
serviço do Estado-nação. (...) O segundo ponto que corrobora o tradicional fim
da história da comunidade do saber por volta de 1800 envolve a longa tendência
de especialização intelectual, ou seja, a fragmentação da antiga República das
383
Letras em províncias ou comunidades distintas de especialistas .
382
BURKE, Peter. A República das Letras europeia. Rio de Janeiro: Revista de Estudos Avançados, n°
25, 2011. p. 277.
383
Idem. pp. 277-278.
384
ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1812-1845). São Paulo: Ed. HUCITEC, 2008. p. 34.
190
de dois elementos fundamentais para a cultura intelectual moderna da República das
Letras e que marcariam as discussões a respeito fundação da Academia Brasileira de
Letras, setenta anos mais tarde: a definição da agremiação intelectual como um espaço
austero e imune às paixões políticas e a atribuição ao poder público da obrigação de
fomentar a criação e o fortalecimento desse tipo associação.
Nas palavras do próprio Bonifácio, ―o verdadeiro e o útil não têm pátria;
pertencem a todas as nações, pertencem ao universo inteiro. Que seria da República das
Letras, se os ódios e guerras das Nações houvessem de invadir os domínios pacíficos da
verdade, e das ciências úteis‖385. A República das Letras é pensada, portanto, como uma
esfera de sociabilidade que não deve ser submetida nem à exclusividade dos
sentimentos nacionalistas e nem às paixões irracionais das guerras e disputas políticas
―desagregadoras e irracionais‖. Temos, aqui, os princìpios do cosmopolitismo e da
temperança, o que, de acordo como já citados Peter Burke e Lorraine Daston, são as
características constitutivas da moderna noção de República das Letras.
Eduardo Prado circulou pelo grupo português dos ―Vencidos na Vida‖, onde
estabeleceu intenso contato com importantes nomes da intelectualidade portuguesa da
época, como Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, foi um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, duas das
principais instâncias de consagração intelectual em funcionamento no Brasil no final do
século XIX. O estudo da movimentação de Prado por esses espaços e a rede de
sociabilidade que ele teceu com esses escritores nos possibilita conhecer alguns
elementos da sua trajetória que são importantes para a compreensão do seu
conservadorismo. Por isso, este capítulo está dividido em três partes, sendo cada uma
delas dedicada ao estudo de uma das esferas de socialização letrada que marcou a
formação político/intelectual de Eduardo Prado.
385
Citado em Idem. p. 27.
191
Partiu ontem desta cidade devendo em breve embarcar do Rio de Janeiro para a
Europa o nosso colaborador, o Dr Eduardo Prado. Na redação do Correio
Paulistano teve o nosso colega, desde alguns anos, a oportunidade de se revelar
um escritor tanto distinto pelo seu humor como pela sua ilustração. A causa
pública e o Partido Conservador desta província devem-lhe, na qualidade de
jornalista, os mais assinalados serviços. Estão eles muito frescos na memória de
todos para que precisemos relembrá-los. Assim, pois, somente temos por fim
neste momento, dirigir ao colega os mais sinceros agradecimentos pela sua
brilhante colaboração, a qual, esperamos, não será completamente interrompida
pela sua ausência. O Dr Eduardo Prado nomeado, há tempos, adido à legação
imperial do Brasil em Londres, aí vai residir durante algum tempo. Grande
número de amigos e admiradores do nosso colega foram acompanhá-lo ontem à
386
estação do norte, por ocasião da sua partida .
O contato de Eduardo Prado com a família de Eça de Queirós foi tão intenso que
o escritor português chegou a tentar articular o casamento do amigo brasileiro com
Benedita, irmã mais jovem de sua esposa, a Dona Emília Rezende. Porém, parece que o
temperamento da moça foi um obstáculo para o sucesso das articulações matrimoniais
do autor de ―Os Maias‖.
386
―Correio Paulistano‖. 07 de maio de 1884.
387
Citado em MATOS, A. Campos. Eça de Queiroz: uma biografia. Campinas: Ed. Unicamp, 2014. p.
199.
192
Lamento que a Benedita não se tenha mostrado ao Prado sob o seu aspecto
simples e atraente – e que se tenha dado ares pessimistas e desiludidos. Esta
rapariga necessitava palmatoadas. Todas as suas qualidades que são excelentes e
sólidas, as inutiliza, tomando atitudes falsas, por uma deplorável e mórbida
paixão de fazer efeito. Pois no Prado, perde, penso eu, a maior chance da sua
388
vida .
388
Idem. p. 200.
389
Idem. p. 199.
390
QUEIRÓS, Eça. Carta a Eduardo Prado. São Paulo: Ateliê Editorial, 1982. p. 21.
193
ficava em Lisboa, foi um dos pontos prediletos de encontro dos ―Vencidos na Vida‖ ao
longo da década de 1890. De fato, Eça de Queirós foi um dos grandes entusiastas da
Revista. No número de lançamento do periódico, que veio a público em maio de 1897, o
escritor português escreveu ―Aparecendo neste meado de maio, com as flores de maio
sem ruído na ponta ligeira das suas paginas bem ornadas, tão silenciosamente como as
próprias rosas de maio, ela [a Revista Moderna] tem por programa dar noticias e dar
imagens‖391. O entusiasmo se manteve ao longo da curta vida da revista, que circulou
até novembro de 1898, o que justifica o número especial que o periódico dedicou ao
romancista português. Eduardo Prado foi um dos escolhidos para homenagear Eça de
Queirós, sendo ele o autor do maior artigo daquela edição, um texto sugestivamente
intitulado ―Passado – Presente‖.
Como era de se esperar, o texto tem natureza encomiástica, e a partir dele é
possível analisar alguns elementos importantes para a argumentação que venho
desenvolvendo nesta tese. Por exemplo, ao comentar a atuação pública de Eça de
Queirós, Prado afirma que:
Eça de Queirós recebeu do céu o dom de se interessar pelo mundo em que
nasceu e pelos seus companheiros de planeta, na grande viagem dos seres. Esse
dom é o maior que um homem pode receber. Quem o possui nunca está só, nem
abandonado; é o segredo da ventura, porque as mais das dores da vida vêm da
ociosidade da alma. (...) Os homens como Eça de Queirós, educados na
Península, na segunda metade deste século, receberam uma educação que nada
teve de perfeita. O peninsular – e o português, mais especialmente – parecia não
mais ter a ação por destino, porque se entendia que a era da ação tinha
392
acabado . (Grifos Meus)
391
―Revista Moderna‖. Maio de 1897. p. 13.
392
Idem. novembro de 1897. pp. 87-88.
194
de hospitais. Mas em relação ao homem das letras? Qual seria o tipo de ação pública
que Eduardo Prado esperava de um escritor? Ele mesmo dá a resposta.
Eça de Queirós foi o que foram os seus contemporâneos; mas, apenas saído da
educação oficial, olhou com interessa à roda de si, olhou para o Estado que o
criara bacharel, e, mais exigente que este criador, otimista por função, declarou
que a obra não prestava e que o tal criador, ele mesmo, nada valia. Disse-lhe
algumas verdades, mas não se encheu de ódio, nem de tremendas indignações.
Riu largamente e fez rir todo o pais na sua extraordinária colaboração nas
Farpas, em que Guerra Junqueiro disse haver a epilepsia do talento. As
gargalhadas, porém, ainda as melhores, acabam tomando posição como escritor,
preparou-se para desempenhar a parte de dever social que lhe competia pela
fatalidade brilhante da sua organização e que, mais tarde, realizou: a de ser
393
escritor perfeito e capaz de denunciar o colapso da sua pátria . (Grifos Meus)
Eduardo Prado não chega a utilizar o termo ―engajamento‖, mas eu acredito que
não seria um absurdo dizer que é exatamente isso que o nosso autor está defendendo.
Para ele, o escritor tinha a obrigação de colaborar para o progresso do seu país,
acusando o ―colapso‖ da sua terra natal. Era isso que ele acreditava estar fazendo
quando saiu em ataque à República brasileira394. Ao elogiar Eça de Queirós, o nosso
autor estava falando do tipo de escritor que ele achava ser o ideal. Não o letrado
diletante, mas sim o combativo, aquele que usa as letras para defender a sua pátria. Em
carta enviada à esposa em abril de 1890, o próprio Eça de Queirós reconhece a
combatividade como uma das principais características do nosso autor.
Prado teima em voltar ao Brasil mesmo sabendo que os artigos dos Fastos
provocaram a ira dos governantes da ditadura. Já tentei dissuadi-lo de todas as
formas, mas ele insiste em se arriscar, como se isso fosse ajudar na reconstrução
do Brasil. Já desisti; ele não ouve argumentos e está convicto de que estar na
395
linha de combate é a principal obrigação do literato .
393
Idem. p. 94.
394
O tema do engajamento político e social do escritor é um dos mais recorrentes na filosofia moderna.
Por exemplo, Voltaire, que foi um dos filósofos mais atacados por Eduardo Prado, dedicou sua obra ao
projeto de reformular os costumes da sociedade de modo a promover a felicidade individual e coletiva.
Segundo René Pomeau, um dos mais célebres intérpretes da obra de Voltaire, ―O fio condutor que
permite encontrar os laços que unem a obra de Voltaire é a finalidade última atribuída por ele à noção de
filosofia, a saber: o combate pelo uso esclarecido e livre da razão e, assim, pelo aperfeiçoamento dos
costumes e pela consequente felicidade dos homens – pelo bem estar individual e coletivo – que esses
costumes, orientados pela razão, podem, na medida em que condição humana os permite, possibilitar‖ (p.
15). Ver POMEU, René. A religião de Voltaire. São Paulo: Ed Martins Fontes, 1992. Porém, como
demonstro nos próximos capítulos, Prado criticou abertamente a filosofia de Voltaire, o que é mais um
indício que aponta para relação ambígua do nosso autor com a modernidade.
395
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987. p. 140.
195
Tobias Barreto e Silvio Romero trazem à cena histórica o escritor combatente,
em conflito com o status quo, que não deve viver, como os românticos
Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães ou Porto Alegre, à sombra da coroa,
sob o manto do mecenato. (...) Essa concepção empenhada, em que o escritor
intervém no espaço público, foi continuada por Euclides da Cunha e Lima
396
Barreto na Primeira República .
Entre esses escritores citados por Ventura, Silvio Romero talvez tenha sido
aquele que mais propagandeou a combatividade intelectual, o que lhe rendeu alguns
dissabores. A polêmica travada pelo escritor sergipano com Machado de Assis é
emblemática disso. A própria entrega dos dois escritores à polêmica mostra como eles
tinham visões completamente distintas a respeito da função social do escritor e do papel
da literatura. Acho importante comentar, ainda que brevemente, essa polêmica antes de
continuar a tratar da interlocução de Eduardo Prado com os escritores portugueses da
geração de 1870397. Estamos diante de uma questão que me parece ter sido fundamental
para o nosso autor.
Para Roberto Ventura, as polêmicas faziam parte da cultura literária brasileira
oitocentista, sendo fundamentais, portanto, para o conhecimento dos valores e projetos
que marcaram a história da nossa literatura. O autor acredita, ainda, que esses embates
suscitaram também discussões relativas à escrita da história e à identidade nacional.
Eduardo Prado não ficou indiferente às polêmicas, sendo aquela travada, em 1901, com
o médico positivista Pereira Barreto a mais conhecida na qual ele tomou parte. Nas
discussões com Pereira Barreto, Prado argumentou em favor o empirismo sociológico,
criticou a metafísica racionalista e saiu em defesa das tradições católicas brasileiras. Por
isso, eu examino essa polêmica na próxima unidade, especificamente nos capítulos sete
e oito desta tese. Por ora, me limito a trazer à luz alguns aspectos da polêmica travada
entre Silvio Romero e Machado de Assis. Acredito que, aí, é possível encontrar o
desenvolvimento do tema do engajamento político intelectual, que, como vimos no
396
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 27.
397
O estudioso português Felipe Alves Moreira desenvolveu um estudo sobre a história do conceito
―Geração de 1870‖ na tradição literária portuguesa. Trata-se de uma importante contribuição para a minha
reflexão já que me permite entender um pouco melhor as formas através das quais os escritores
portugueses que foram interlocutores de Eduardo Prado desenvolveram a sua própria identidade. Para
Felipe Moreira, o primeiro a utilizar o termo ―geração‖ para designar o grupo de escritores que começou a
ganhar destaque nas letras portugueses por volta de 1865, quando eclodiu a chamada ―Questão Coimbrã‖
foi Pinheiro Chagas, contemporâneo desses mesmos escritores. Porém, Felipe Moreira argumenta que o
termo caiu em desuso, já que os escritores passaram utilizar a noção de ―escola‖ nos suas tentativas de
auto representação, o que sugere que eles se vinham irmanados mais pelas questões estéticas e políticas
do que propriamente geracionais. A exceção, ainda segundo o autor, foi Ramalho Ortigão, que sempre
preferiu usar o termo ―geração‖. Enfim, Felipe Moreira demonstra que a canonização definitiva da noção
de ―geração de 1870‖ aconteceu apenas na década de 1940. Ver MOREIRA, Felipe Alves. A Geração de
70: notas pra história de um conceito. Coimbra: Ed. Da Universidade de Coimbra; 2012.
196
texto que Prado escreveu em homenagem a Eça de Queirós, estava no horizonte de
preocupações do nosso autor.
A polêmica entre Silvio Romero e Machado de Assis teve início em 1879,
quando este publicou o artigo ―A nova geração‖ na ―Revista Brasileira‖. No texto,
Machado de Assis ―abordou os novos poetas, dentre eles Romero, cujo ―criticismo‖
398
poético é tomado como manifesto literário do grupo antirromântico‖ . O autor de
―Memórias Póstumas de Brás Cubas‖ provocou a ira de Silvio Romero ao criticar o
livro ―Contos do fim do século‖, de 1878, onde o escritor sergipano propunha um ideal
para a poesia moderna, que deveria ser ―despojada dos antigos ares de mistério pelas
399
ciências naturais e pela crìtica histórica‖ . Para Machado de Assis, faltava estilo à
poesia de Romero, que também exagerava nos elogios aos poetas de Recife.
A resposta veio em 1882, quando Silvio Romero disse que Machado de Assis
representava ―um lirismo infértil, um humorismo despretensioso e uma dubiedade de
caráter polìtico e literário, sendo um tipo morto antes do tempo na orientação nacional‖
400
. Como se não bastassem as críticas, Romero não incluiu Machado de Assis na sua
―História da Literatura Brasileira‖, que foi publicada em 1895. O interessante é que
Machado de Assis jamais respondeu aos ataques do seu antagonista, sendo defendido
por outros escritores, como Lafaiete Rodrigues Pereira e José Veríssimo. Diversos
aspectos poderiam ser pensados a partir dessa polêmica: a recepção do naturalismo de
Émille Zola e do evolucionismo de Taine na literatura brasileira, as rivalidades entre os
escritores no nordeste e os do sudeste, as relações entre a literatura e a identidade
nacional e a utilização de critérios etnográficos no exercício da crítica literária. Estou
especialmente interessado na argumentação de Silvio Romero, que acusou Machado de
Assis, entre outras coisas, de ser indiferente aos destinos do Brasil. Para Romero, então,
caberia ao escritor se envolver nos debates a respeito do progresso da nação, o que,
obviamente, demandaria alguma dose de engajamento político.
O curioso é que o tal engajamento foi rejeitado tanto pela Academia Brasileira
de Letras, fundada em 1897, como pelo IHGB, que após a proclamação da República
tentou se aproximar das novas instituições, o que resultou em todo um esforço de
reorientação da imagem do instituto, que durante décadas esteve diretamente associado
à Monarquia. Silvio Romero foi membro fundador da ABL e sócio do IHGB, tal como
398
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 96.
399
Idem. p. 96.
400
Idem. pp. 96-97.
197
Eduardo Prado. Porém, diferente do nosso autor, ele conflitou abertamente o princípio
da pacificação política, principalmente nos quadros da ABL, onde se envolveu em
outras polêmicas401. Já Eduardo Prado, que a despeito das suas grandes diferenças com
Silvio Romero, também era um defensor do engajamento político do homem das letras,
parece ter transitado com mais tranquilidade pela austeridade política das duas
agremiações. Apesar de jamais ter deixado de atacar abertamente a República, quando
nos quadros do IHGB e da ABL, Prado adotou um tom mais moderado, tal como rezava
a cartilha das duas instituições. Será que ele, cartesianamente, conseguia ser um
cordeiro nos grêmios literários e um soldado nas páginas de imprensa? Será que ele
dissimulou o engajamento político para ser aceito nessas associações? Ou será que
existem diversas formas de engajamento político, sendo que a moderação intelectual
não necessariamente significa apatia política? Eu volto a estas interrogações ainda neste
capítulo. Por ora, eu retomo a análise dos contatos de Eduardo Prado com os escritores
portugueses autoproclamados ―Vencidos na Vida‖.
A chamada ―Questão Coimbrã‖, que eclodiu em meados da década de 1860, está
na origem dos ―Vencidos na Vida‖. Em linhas gerais, essa questão foi uma polêmica
literária que surgiu nos corredores da Universidade de Coimbra, onde dois grupos
passaram a trocar hostilidades. Um desses grupos era marcado pelo apego às tradições
literárias românticas, sendo Antônio Feliciano de Castilho, um dos mais importantes
escritores da época, o seu principal representante. O outro grupo era formado por jovens
literários que reivindicavam mudanças na cultura e na sociedade portuguesas, sendo que
Teófilo Braga e Antero de Quental foram as principais lideranças 402. O tema do
401
A posse de Euclides da Cunha foi uma das mais polêmicas de toda a história da Academia Brasileira
de Letras. O escritor fluminense assumiu a cadeira de número sete, cujos patrono e antecessor eram,
respectivamente, Castro Alves e Valentim Magalhães, no dia 18 de dezembro de 1906. No seu discurso
de posse, Euclides da Cunha fez críticas tanto a Castro Alves como a Valentin Magalhães, o que destoava
do protocolo de elegância que até então caracterizava as cerimônias de posse na Academia Brasileira de
Letras. Porém, foi o discurso de Silvio Romero, que se ofereceu para receber o novo imortal, que marcou
a sessão e provocou modificações administrativas na ABL. Ao invés de comentar a obra do novo colega e
louvar o acadêmico morto, Silvio Romero criticou Valentim Magalhães e outros escritores cariocas,
como, por exemplo, Machado de Assis e José Veríssimo, por terem criticado Tobias Barreto, o nome
mais representativo da Escola de Recife. A partir desse episódio, começou a existir uma censura prévia
nos discursos dos acadêmicos. Sobre esse assunto ver RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A
dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Ed.
UNICAMP, 2001
402
Hernâni Cidade é autor de um importante estudo sobre as mudanças na cultura portuguesa ao longo do
século XIX. Ele mostra como eram complexas as relações entre os escritores portugueses que na década
de 1860 rivalizavam dentro da Universidade de Coimbra. Por exemplo, ainda que Castilho tivesse grande
influência junto a alguns jovens escritores, outros, como Antero de Quental e Teófilo Braga hostilizavam
o professor, acusando-o de ser adepto de um formalismo academicista infértil e ultrapassado. O
antagonismo entre os dois grupos ficou claro em 1865, quando Castilho escreveu um posfácio para o
―Poema da Mocidade‖, de Pinheiro Chagas. No texto, o velho professor acusa Antero de Quental e
198
engajamento político do intelectual estava na agenda desses escritores, que pretendiam
movimentar a vida cultural portuguesa. Quando uso o termo engajamento político, estou
querendo dizer que esses escritores se manifestaram em relação aos assuntos relativos à
sociedade e à política portuguesas. Para o historiador e crítico literário João Medina, os
―setentistas tinham interligado estética (ética) e polìtica, precisamente na medida em
que concebiam que as literaturas oficiais representavam uma perversa mancebia entre
403
literatos e polìticos‖ . Os escritores portugueses envolvidos na questão coimbrã
teriam, então, tentado tratar a literatura em função da ideia de progresso da nação e
superação das concepções estéticas e políticas consideradas ultrapassadas. Trata-se de
uma definição de literatura e de escritor bem parecida com aquela que era vociferada
por Sílvio Romero e, em alguma medida, pelo próprio Eduardo Prado, que fez das letras
a sua trincheira na guerra contra a República.
O que os jovens que, como Teófilo e Antero dispararam os primeiros tiros contra
a Academia oficial das Letras, denunciavam era a burocratização do intelectual,
a submissão da dignidade literária ao vil interesse da carreira pessoal: os
pretendentes a escritores começavam por receber recomendações e, mais tarde,
arrecadavam sinecuras, comendas, títulos e cargos políticos ou ministeriais desde
que fossem previamente a despacho aos patriarcas das Letras, fizessem ato de
submissão às tais ―teocracias literárias. Os dissidentes coimbrões queriam fazer a
sua literatura sem pedirem ―licença‖ aos mestres, ―sem o selo e o visto da
chancelaria dos grão-mestres oficiais, contra o espìrito ―que quer dormir
404
sossegado no seu leito de ninharias .
Teófilo Braga de mal gosto literário. Os citados responderam prontamente e a partir daí a polêmica se
configurou como uma ―questão coimbrã‖. Ver CIDADE, Hernâni. Século XIX: A Revolução cultural em
Portugal e alguns dos seus mestres. Lisboa: Ed. Presença, 1988.
403
MEDINA, João. A Geração de 70: uma geração revolucionária e europeísta. Instituto de Cultura e
Estudos Sociais: Cascais, 1999. p.24.
404
Idem. p. 17.
405
Os assuntos tratados por Eduardo Prado nas cartas são os mais variados, indo desde discussões acerca
da literatura e da política, passando por comentários de viagens e chegando até às frivolidades cotidianas,
como, por exemplo, o seu cardápio do almoço. Foi exatamente esse o assunto da carta que o nosso autor
enviou à Maria Amélia Vaz de Carvalho, que foi um dos personagens mais importante do círculos dos
―vencidos‖. Dizia o nosso autor, ―entrada de um tirolez com um cesto de uvas de Moran, que são o meu
almoço. Chegada de cartas e jornais de Paris e Londres. Meia hora de passeio e, a uma, veio jantar. Uma
truta azul que foi atirada viva na água a ferver vem com seu raminho de salsa na boca e toda retorcida
199
percebidas também no pensamento político de Eduardo Prado, o que não significa que o
nosso autor tenha deixado de fazer críticas aos seus interlocutores portugueses, críticas
que foram, inclusive, corroboradas por Eça de Queirós em um dos seus últimos textos.
Em uma longa carta enviada ao seu sobrinho Paulo406, em janeiro de 1888, que também
fez parte do grupo, o nosso autor formulou essa critica com precisão.
A cada dia que passa tenho mais estima por todos dos vencidos. As leituras de
Camões e Pessoa são encantadoras; hoje os vencidos estão mais maduros, mais
portugueses e menos encantados com os francesismos tão estranhos à tradição da
nossa nação mãe. Eça de Queirós pertence a uma geração portuguesa que, na sua
mocidade, se enchia de emoção com a mudança de um ministério, sob o regime
do segundo Império, e que, às vezes, não sabia os nomes dos homens que em
Lisboa estavam governando Portugal O amor às tradições vem sendo assuntos de
constantes conferências que venho tendo com Eça. A cada dia, ele redescobre
Portugal, o que faz também com que eu redescubra o Brasil. Estão todos
aguardando a volta do belo Paulo. Todos lhe têm grande estima por essas
407
terras .
O apreço de Eduardo Prado pelas tradições deveria mesmo ser tão grande, sendo
o assunto abordado de forma tão intensa no seu círculo de amizades, que Eça de Queirós
chegou a fazer um comentário jocoso, em carta enviada a Maria Amélia Vaz de
com uns ares de golfinho heráldico sobre a sua cama de manteiga fresca. Segue-se uma perdiz na geleia
vermelha e um copo de leite‖. Coleção ―Spencer Vampré‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. Gaveta 03. Doc. 78.
406
Paulo Prado, que era apenas nove anos mais novo que seu tio Eduardo, foi outro membro da família
que se notabilizou pela intensa atividade letrada, sendo autor do livro ―Retrato do Brasil‖, que é um dos
mais importantes do pensamento social brasileiro. O jovem Paulo também era presença constante no
grupo dos ―Vencidos‖, conforme ele mesmo testemunhou: ―Imagina você, eu moço com dinheiro no
bolso, em Paris, assediado pelas mulheres, em vez de me deixar arrastar por elas, preferia ir a Neully
ouvir o mestre [Eça de Queirós]. Não vá supor que ele discursava, não; isso seria bom para caipira aqui da
nossa terra. Ele palestrava e como palestrante era ainda mais encantador do que como escritor‖. Citado
em BERRIEL, Carlos. Tieté, Tejo e Sena: a obra de Paulo Prado. São Paulo: Ed. USP, 2012. p. 73.
407
Coleção ―Jorge Pacheco Chaves‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Gaveta 03..
Doc. 13.
408
Idem. Gaveta 03. Doc. 10.
200
Carvalho, em fevereiro de 1889: ―O amor de Prado pelo passado é mesmo contagiante,
tanto que agora eu não consigo beber um vinho sem desejar conhecer as vinhedas que
lhe pariram‖409. Piadas à parte, a documentação mostra como o escritor português
valorizava as conversas com o nosso autor. Em carta enviada ao escritor e diplomata
brasileiro Domício da Gama, em 26 de setembro de 1889, Eça de Queirós volta a fazer
comentários sobre as suas conversas com Eduardo Prado e fala, claramente, sobre a sua
decepção com a França.
Seu conterrâneo Prado é persona mui grata por todos os vencidos. Em nossas
conversas sempre tratamos das coisas do Brasil e de Portugal, duas nações tão
distantes e tão parecidas. Prado nos entusiasma com seu amor pelas tradições
410
brasileiras e nos faz amar mais a nossa terra .
409
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987. p. 285.
410
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Porto Lello & Irmão, 1963. p. 84.
411
Idem.
412
MÔNICA, Maria Filomena. Vida e obra de José Maria Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Record Ed,
2001. p. 37.
201
Prado se apropriou de vários repertórios, incluindo o liberalismo político, o
republicanismo cívico e o ativismo intelectual dos escritores portugueses vinculados à
geração de 1870, especialmente Ramalho Ortigão e, principalmente, Eça de Queirós.
Portanto, me inclino a tratar o antifrancesismo de Eça de Queirós nessa mesma
perspectiva. A decepção do romancista português com o ―caso Dreyfus‖ pode ter se
combinado com as críticas que Eduardo Prado fez ao estrangeirismo da sua geração e
ainda com outros diversos elementos que passam ao largo das minhas preocupações
neste trabalho.
Nesse sentido, mais do que descobrir as ―origens‖ do antirrepublicanismo de
Eduardo Prado ou da guinada antifrancesa de Eça de Queirós, eu pretendo mostrar como
a interlocução entre eles explica, em parte, esses dois problemas. Essa interlocução foi
amplamente diagnosticada pela bibliografia413 e, de tão intensa, suscitou as suspeitas de
que o romancista português teria homenageado o amigo brasileiro com seu último
romance, o ―As Cidades e as Serras‖, que foi publicado, postumamente, em 1901.
Ambientado em Portugal, o enredo é baseado na vida do protagonista Jacinto Galião,
que é narrada pelo personagem José Fernandes. Para João Medina, o grande tema
levantado no livro é a polarização entre a cidade e a serra, ou seja, o litoral e o interior.
Mais do que no enredo do livro, eu estou interessado na repercussão do romance. No
Brasil, por exemplo, vários críticos leram a obra à luz dos lações de amizade entre
Eduardo Prado e Eça de Queirós e afirmaram que o personagem Jacinto foi inspirado no
nosso autor. J. Melo Jorge, por exemplo, disse que ―Jacinto e Eduardo: um paralelo
perfeito. A descrição romantizada da vida e do espírito de Eduardo Prado é a figura da
perfeição‖414. O diagnóstico é acompanhado por Luìs Viana Filho, que afirmou ser ―o
413
Entre os diversos estudos que apontaram a grande amizade e estima que caracterizou as relações
desenvolvidas entre Eduardo Prado e Eça de Queirós, eu destaco quatro biografias, duas dedicadas ao
brasileiro e duas ao português. Tanto Cândido da Mota Filho como Sebastião Pagano, autores das
biografias já muito citadas nesta tese, afirmam que Eça de Queirós foi o grande amigo que Eduardo Prado
teve no mundo das letras. Mota Filho diz ―Assim que conheceu Eduardo, Eça ficara, de pronto,
impressionado com a jovialidade daquele brasileiro, exuberante e espontâneo, que já sabia muito, mas que
mantinha sempre insatisfeita a sua curiosidade. Sentiu-lhe a força do caráter, nas linhas fortes de sua
personalidade. Nascia ali um vìnculo de amizade que não mais terminaria‖ (p. 39). A argumentação de
Sebastião Pagano não é diferente: ―De todos os inúmeros amigos que passaram pela vida de Eduardo
Prado, Eça de Queirós foi o mais estimado, aquele de quem ele mais sentiu falta‖ (p. 52). Também A.
Campos Matos dedica dois capítulos do seu enorme livro para tratar da amizade entre Eduardo Prado e
Eça de Queirós, dando destaque ao auxílio que o nosso autor deu a família do escritor português após a
sua morte: ―Eduardo Prado e sua mulher, que faziam uma viagem de turismo na Sicìlia, ao saberem da
morte do amigo regressaram imediatamente a Paris para acudir a Emìlia‖ (p. 255). Maria Filomena
Mônica, que por muitos é considerada a principal biógrafa de Eça de Queirós, também dedica uma sessão
do seu livro para a amizade entre os dois escritores.
414
JORGE, J. Melo. As figuras dos romances de Eça de Queirós. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1963. p. 36.
202
personagem Jacinto uma metáfora literária de Eduardo Prado. O último romance de Eça
de Queirós foi a maior homenagem que a cultura brasileira poderia receber‖ 415.
Porém, os críticos portugueses não têm a mesma opinião, sendo quase todos
unânimes em desconsiderar a hipótese de que Eça de Queirós teria desenhado o
personagem Jacinto para homenagear Eduardo Prado. Tanto os comentaristas coevos,
como Batalha Reis e Lopes de Oliveira, como os mais contemporâneos, destacando-se
Hernani Cidade e Antônio Sérgio, negam a hipótese e argumentam que Jacinto era um
alterego do próprio Eça de Queirós. Na documentação com a qual eu tive contato não
existe nenhum indício que comprove nem a argumentação dos críticos brasileiros e nem
a dos especialistas portugueses, talvez jamais saberemos. Porém, o simples fato de a
possibilidade ter sido aventada serve, ao menos, para sugerir o quanto Eduardo Prado e
Eça de Queirós eram próximos.
O vínculo de Eduardo Prado com o círculo literário português é muito maior do
que a sua amizade pessoal com Eça de Queirós. Como já vimos, o nosso autor travou
contato com esses letrados portugueses quando ainda era bem jovem, sendo essa
interlocução fundamental para os seus futuros passos como crítico político. Para
compreender melhor essas marcas é necessário dedicar alguma atenção ao programa das
tais ―conferências lisboeneses‖, que permitem uma maior aproximação com as ideias
ventiladas pelos setentistas lusitanos. Esse exercício é importante para evitar que
incorramos no erro de exagerar nos aspectos biográficos relativos à relação entre
Eduardo Prado e Eça de Queirós, o que nos faria perder de vista as questões geracionais
que estavam sendo discutidas na época desses dois autores.
João Medina evita utilizar a palavra ―projeto‖ para designar as propostas das
conferências, afirmando que a composição do grupo que promovia os encontros era
heterogênea demais para permitir qualquer elaboração mais sistemática. Ao examinar o
programa das conferências, que foi publicado no jornal ―A Revolução de Setembro‖, em
junho de 1871, o autor argumenta que
As conferências do Casino foram, no seu programa, no seu propósito vago, mas
firmemente sentido por quantos nele participaram ou o redigiram, e, sobretudo,
na ação ulterior de muitos do que ali acharam a sua inspiração essencial, uma
insurreição cultural no sentido mais amplo do termo, aquele que inclui à noção
de cultura todas as formas superiores do espírito, sem esquecer a visão crítica da
política, como tudo quanto diz respeito à vida na polis, os seus sistemas de
valores, normas e finalidades que articulam o ideário social dos homens, sem
415
FILHO, Luís Viana. A vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: José Olimpio ed, 1967. p. 319.
203
perder de vista a estética, acervo de valores e programas propriamente espirituais
416
e artísticos .
De forma muito semelhante àquela que caracterizaria dez anos mais tarde o
antirrepublicanismo de Eduardo Prado, Eça de Queirós associou o regime republicano à
violência e à ―balbúrdia sanguinolenta‖, para usar os termos do próprio autor. Não
quero com isso dizer que o antirrepublicanismo de Eduardo Prado se explica apenas em
virtude das influências dos amigos portugueses, notadamente de Eça de Queirós. A
noção de ―influência‖ daria à minha análise uma dimensão que não me agrada. Prefiro
falar em ―afinidades eletivas‖, para utilizar uma noção cara a Michel Löwi, para quem a
interlocução letrada não deve ser pensada a partir da ideia de ―troca de influências‖,
pois o termo simplificaria uma experiência formativa que é muito mais complexa. Por
isso, o autor fala em ―afinidades eletivas‖, que, mais do que a noção de ―influência‖,
―implica uma relação bem mais ativa e uma relação recìproca, e seletiva, que pode
chegar à fusão‖418. É exatamente essa interação recíproca que percebo na
416
MEDINA, João. A Geração de 70: uma geração revolucionária e europeísta. Instituto de Cultura e
Estudos Sociais: Cascais, 1999. p.23.
417
QUEIRÓS, Eça. Obras completas. Edição do Centenário, Porto, Lello & Irmãos Editores, 1947. p.43.
418
LÖWY, Michel. Redenção e Utopia: O Judaísmo Libertário na Europa Central (Um Estudo de
Afinidade Eletiva). São Paulo, Companhia das Letras, 1989. p. 75.
204
documentação, quando, por exemplo, Eça de Queirós atribui o seu reaportugesamento
ao ―amor do bom Prado pelas tradições‖ e o nosso personagem direciona ao exército
golpista a mesma crítica antibacharelesca que o escritor português havia formulado
quando de sua última viagem ao Brasil. Sendo assim, eu acredito que as críticas
políticas de Eça de Queirós, com as quais Prado travou contato na revista ―As Farpas‖ e
pessoalmente, quando de sua estadia na Europa, foram um dos elementos constitutivos
do repertório político que o nosso autor mobilizou na ocasião dos seus ataques à
República brasileira.
As ―conferências do cassino‖ não foram o único desdobramento da ―questão
419
coimbrã‖. No mesmo ano de 1871 surgia a revista ―As Farpas‖ , que foi fruto do
empreendimento comum de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, os dois principais
interlocutores portugueses de Eduardo Prado. Em maio de 1871, vinha a público o
primeiro número da revista, que circulou até 1882. Rapidamente, o periódico português
ganhou grande repercussão e foi em parte responsável pela fama de Eça de Queirós e
Ramalho Ortigão no Brasil420. Os textos publicados na ―As Farpas‖ suscitavam enorme
discussão desse nosso lado do oceano Atlântico, tanto que, em 1880, um jovem cronista
paulista dizia que
Chegou ontem em São Paulo uma nova edição da revista portuguesa ―As
Farpas‖, que é dirigida pelo sr Ramalho Ortigão. A revista traz nas suas páginas
419
É bastante curiosa a história da criação desse periódico. No começo de 1870, Eça de Queirós voltou
para Lisboa depois de uma temporada em Évora, tendo, nesse momento, retomado seus contados com
Ramalho Ortigão. Ao examinar os relatos dos dois escritores, A. Campos Matos, biógrafo de Eça de
Queirós, diz que em uma mesa de bar, os dois resolveram pregar uma peça no público leitor português.
Então, eles enviaram para o jornal ―Diário de Notìcias‖, que era um dos mais lidos na capital portuguesa,
relatos fictícios de casos de assassinato. Como o editor do jornal gostou da ideia, o periódico passou a
publicar semanalmente cartas anônimas com o tìtulo ―Mistério da Estrada de Cintra‖ que falavam sobre
―crimes horrorosos‖ cometidos em Portugal. Nas palavras do biógrafo: ―O empreendimento dos escritores
tinha como objetivo fazer uma impiedosa crítica aos feuilletons, novelos fantasiosas e açucaradas que
atravancavam os jornais e eram consumidas por um público pouco exigente. Para tanto, eles engendraram
um projeto com uma natureza bem original: fizeram um uso meta linguístico da mídia impressa,
transformando a forma que reporta o fato (o jornal noticioso) no suporte para o texto ficcional derrisório
(a paródia), cuja pretensão era desmascarar a ficção, que não é literatura (a novela romanesca)‖ p. 98. O
sucesso do ―Mistério da Estrada de Cintra‖ levou, ainda segundo o biógrafo, os dois amigos a decidirem
prolongar a parceria intelectual e fundar uma revista de crítica de costumes com viés humorístico. Nascia
assim ―As Farpas‖. Ver MATOS, A. Campos. Eça de Queiroz: uma biografia. Campinas: Ed.
Unicamp, 2014.
420
A revista ―As Farpas‖ teve grande circulação no Brasil, sendo bastante lida, principalmente, pelo
estudantes de direito das faculdades de São Paulo e Recife. Segundo Paulo Cavalcanti, que é autor de um
estudo sobre a recepção do periódico português no Brasil, ―a revista ―As Farpas‖ provocou grande
repercussão no meio acadêmico brasileiro, principalmente entre os estudantes de direito. O estilo satírico
que caracterizou a publicação dirigida por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão inspirava os jovens
acadêmicos, que não tardaram em criar periódicos com proposta semelhante‖(p.34). Ver CAVALCANTI,
Paulo. Eça de Queirós agitador no Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1966.
205
os mais ácidos e críticos comentários dos costumes lusitanos. A leitura da revista
421
muito inspira a mocidade paulista .
Sem ter cor polìtica definida, a ―Comédia‖ pretende fazer do riso a mais violenta
arma. Tem-se dito que São Paulo anda muito acabrunhado e quase não sorri. Nós
mostraremos que ao menos a mocidade da acadêmica ainda consegue rir e fazer
424
rir .
Nenhum dos dois textos está assinado, sendo a autoria remetida à ―direção‖, no
caso de ―As Farpas‖ e ao ―Corpo Editorial‖ no ―A Comédia‖. Não encontrei nas páginas
do jornal brasileiro nenhuma referência ao periódico português, mas ainda assim as
semelhanças parecem evidentes425. Nos seus respectivos textos de inauguração, ambas
as publicações se declararam afastadas dos conflitos políticos e firmaram compromisso
com o humor de costumes. A promessa não foi comprida por nenhuma das revistas, que,
ao longo das suas edições, abordaram, amplamente, assuntos ligados às questões
polìticas de seus paìses, mostrando certa inspiração republicana, no caso da ―A
Comédia‖, e liberal monarquista, no caso da ―As Farpas‖.
Foi bem diferente a atuação de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão na ―questão
coimbrã‖. Segundo João Medina, nenhum dos dois se envolveu diretamente nas
vigorosas polêmicas que contrapuseram os jovens literários ao grupo liderado por
Castilho. Porém, ainda de acordo com os estudos do crítico português, Eça de Queirós
421
PRADO, Eduardo. ―Correio Paulistano‖. 30 de novembro de 1880.
422
De acordo com A. Campos Matos, a principal motivação para o desligamento de Eça de Queiro da ―As
Farpas‖ foi a sua nomeação para o cargo de embaixador português em Havana. Segundo o autor, não há
indícios de que existissem problemas de relacionamento entre os dois escritores.
423
―As Farpas‖. 27 de julho de 1871, p. 97.
424
―A Comédia‖. 04 de março de 1881.
425
Brito Broca destaca a enorme repercussão da ―As Farpas‖ na Faculdade de Direito de São Paulo, onde
―os estudantes fundaram dezenas de jornais ao longo do século XIX, tendo destaque o pasquim satìrico
―A Comédia‖, que foi claramente inspirado na revista portuguesa‖. Ver BROCA, Brito. A vida literária
no Brasil. São Paulo: José Olímpio, 1966. p. 49.
206
se inclinou mais para os ―jovens coimbrãos‖ e Ramalho Ortigão tentou manter certa
426
posição de imparcialidade . As diferenças permaneceram naquilo que se refere à
participação dos escritores nas ―conferências do cassino‖. Enquanto Ramalho Ortigão
sequer compareceu ao Cassino Lisboense, Eça de Queirós proferiu, em 12 de junho
1871, a conferência ―Literatura Nova ou Realismo como nova expressão de arte‖, que
foi a quarta do ciclo. Para João Medina,
É também muito provável que a sua ausência [de Ramalho Ortigão] nas
Conferências do Cassino se dava ao fato de que para maio – o mesmo mês destas
conferências – estava programado o lançamento do primeiro número de ―As
Farpas‖. Tantos deveriam ser os compromissos e afazeres – a ele que era ao
mesmo tempo diretor, editor e um dos dois redatores daquela publicação – que
427
nem mesmo era capaz de por em dia as correspondências .
426
O historiador português João Medina questiona o sucesso da pretensão de Ramalho Ortigão à
neutralidade na ―questão coimbrã‖. O autor conta que o escritor português interviu na discussão em 1867,
quando publicou o seu ―A Literatura de Hoje‖, onde tentou se manter imparcial nos conflitos travados
entre os jovens de Coimbra e o círculo de Castilho. Porém, Castilho acredita que Ramalho Ortigão
desapontou ambos os grupos, o que fez com que a sua inserção no setentismo português tenha sido
bastante peculiar. Ver João Medina. A Geração de 70: uma geração revolucionária e eurpeísta. Instituto
de Cultura e Estudos Sociais: Cascais, 1999.
427
Idem. p.78
428
Quando Salomão Saraaga se preparava para proferir a conferência ―História Crìtica de Jesus‖, o
governo português proibiu a continuidade dos encontros por julgá-los subversivos. No mesmo dia em que
a portaria da proibição foi publicada, o que aconteceu em 26 de junho de 1871, Antero de Quental redigiu
um protesto onde acusava as autoridades portuguesas de estarem cerceando a ―o instinto de mudanças
culturais que paira sobre todo o povo português‖. Ver. MATOS, A. Campos (org. e coordenação),
Dicionário de Eça de Queirós, Lisboa, Ed. Caminho, 1988, s/ed., pág. 129.
429
Para João Medina, ―Assim que se viu sozinho à frente da publicação, Ramalho foi gradualmente
substituindo a jocosidade irônica, mais apropriada a um folhetim, pela austeridade aparatosa, própria dos
artigos de fundo e, pouco a pouco, encaminhando a publicação – como já havia demonstrado interesse –
para a esfera da pedagogia, no firme propósito de ensinar alguns princípios e, ao mesmo tempo, dar aos
folhetos umas pinceladas de verniz cientìfico‖ p. 65.
207
A documentação mostra que Eduardo Prado não cultivou uma relação de
amizade pessoal tão intensa com Ramalho Ortigão quanto aquela que teve com Eça de
Queirós. Porém, os vínculos intelectuais entre o nosso autor e Ramalho Ortigão foram
bem estreitos, muito em virtude da associação do autor português com a imprensa
brasileira430. Ramalho Ortigão escreveu a coluna ―Cartas Portuguesas‖ para o jornal
―Gazeta de Notìcias‖ entre 1877 e 1915, sem contar o perìodo de três meses que passou
no Brasil no segundo semestre de 1887. Eduardo Prado foi um grande entusiasta e
divulgador desses textos, sendo também, ao longo da década de 1880, o principal
interlocutor brasileiro do escritor português, que utilizava o espaço do jornal carioca
para trazer as notícias dos acontecimentos europeus aos leitores brasileiros. Uma análise
comparada das ―Cartas Portuguesas‖ com as correspondências trocadas entre os dois
escritores mostra semelhanças naquilo que se refere à crítica social e política.
As ―Cartas Portuguesas‖ eram publicadas sob a forma de folhetins e fizeram
muito sucesso no Brasil, o que tornou Ramalho Ortigão uma espécie de celebridade
oitocentista431. De acordo com o crítico brasileiro João Carlos Zan, que é autor de um
estudo sobre os textos que Ramalho Ortigão escreveu para o jornal ―A Gazeta de
Notìcias‖,
De maneira geral, todos os campos do conhecimento interessavam a Ramalho
Ortigão, notadamente aqueles que mais diretamente estivessem relacionados com
o ser humano. Sobre todos, porém, procurava se informar para levar as
informações adquiridas ao conhecimento do leitor. Ia dos costumes sociais, das
questões religiosas, dos aspectos da instrução à adubação química ou à doença da
videira e, mesmo não sendo especialista, procurava embasar a sua argumentação
432
em fontes fidedignas, selecionadas por eles ou sugeridas por outros .
430
Tal como Ramalho Ortigão, Eça de Queirós também frequentou as páginas na imprensa brasileira.
Entre as contribuições, eu destaco as ―Crônicas‖, que foram publicadas no jornal ―Gazeta de Notìcias‖
entre 1892 e 1897. Sobre as contribuições de Eça de Queirós na imprensa brasileira, eu recomendo a
leitura de SOUZA, José Carlos Siqueira. Eça Ensaísta: estudo sobre o trabalho jornalístico de Eça de
Queirós para a Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro, ao final do século XIX. Dissertação de Mestrado:
São Paulo: USP, 2007.
431
Em um estudo específico sobre as contribuições de Ramalho Ortigão à imprensa brasileira, João
Carlos Zan afirma que muitos polìticos da ―nova geração‖ eram leitores frequentes das ―Cartas
Portuguesas‖, como, por exemplo, Rodolfo Dantas e Rui Barbosa. Ver ZAN, João Carlos. Ramalho
Ortigão e o Brasil. São Paulo: Tese de Doutorado, USP, 2009.
432
ZAN, João Carlos. Ramalho Ortigão e o Brasil. São Paulo: Tese de Doutorado, USP, 2009. p. 16.
208
Muito importante são ―As Cartas Portuguesas‖ para o Brasil; em um paìs onde as
letras são tão pouco cultivadas e o analfabetismo impera, o nosso amigo
Ramalho contribui para a elevação geral do espírito nacional, mostrando-se uma
433
inteligência comprometida com o progresso inerente ao nosso século .
Outra vez, nós temos, aqui, a menção ao comprometimento do homem das letras
com a ação pública, nas palavras do próprio Eduardo Prado ―com o progresso inerente
ao nosso século‖. Já demonstrei o quanto esse tipo de comportamento intelectual era
valorizado pelo nosso autor. Daí, acredito, resulta a sua grande atração pelos textos de
Ramalho Ortigão. Havia entre os dois a mesma concepção de ―função social‖ da
inteligência, algo que era amplamente compartilhado na época. As relações de Eduardo
Prado com o cientificismo moderno não foram homogêneas e envolveram desde o
elogio ao progresso científico, como podemos perceber nos escritos nos quais o nosso
autor demonstrou grande entusiasmo com os textos de Ramalho Ortigão, e até as
críticas ao racionalismo moderno, como fica claro nas críticas que Prado vez a Voltaire
e ao positivismo de Comte, o que fez com que ele defendesse um tipo de conhecimento
mais empírico e menos dado às teorizações. Essas críticas são examinadas com mais
cuidado no próximo capítulo, onde me debruço sobre os desdobramentos
epistemológicos do conservadorismo de Eduardo Prado.
No já citado estudo, João Zan afirma que a maioria dos textos que Ramalho
Ortigão publicou no ―A Gazeta de Notìcias‖ pode ser considerada pertencente ao gênero
―Literatura de Viagem‖, o que não passou despercebido por Eduardo Prado, que
publicou na mesma ―Gazeta de Notìcias‖ os seus próprios relatos de viagens. Em uma
carta que deveria ter sido enviada em fevereiro de 1882, Prado faz uma referência clara
à coluna de Ramalho Ortigão. Não consegui identificar no texto o nome do destinatário,
mas tudo levar a crer que era o editor do jornal carioca. ―As primeiras cartas serão sobre
os vizinhos hispânicos; acho por bem manter o mesmo formato epistolar que já foi
consagrado por Ramalho e é tão familiar aos leitores da gazeta‖434. Parece que a carta
seria a última de uma série de correspondências destinadas a acertar os últimos detalhes
do contrato de trabalho que o nosso autor firmaria com o periódico. Infelizmente, eu não
encontrei as correspondências anteriores.
A referência é breve e sem maiores desdobramentos, mas confirma que o jovem
Eduardo Prado era leitor dos textos de Ramalho Ortigão, chegando mesmo a organizar
433
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Porto Lello & Irmão, 1963. p. 142.
434
Coleção ―Jorge Pacheco Chaves‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Gaveta 03.
Doc. 07.
209
os seus relatos de viagem de forma semelhante àquela que foi posta em prática pelo
escritor português. De fato, as semelhanças entre as duas literaturas de viagem chegou
às páginas do jornal carioca, sendo, inclusive, destacadas pela editoração do periódico
na ocasião da estreia da coluna de Eduardo Prado: ―Iniciamos hoje os relatos de viagens
do jovem bacharel Eduardo Prado, que nos brindará com as suas impressões da mesma
forma que o já consagrado Ramalho Ortigão faz há muitos anos‖435. O jovem bacharel
brasileiro e o consagrado escritor português se encontraram nas páginas do mesmo
jornal, onde visitaram o mesmo gênero textual. Eu não encontrei nenhum documento
que sugerisse as impressões de Ramalho Ortigão a respeito dos textos de Eduardo
Prado. Também não fica claro na documentação se já nessa época os dois autores
tinham algum tipo de interlocução.
A primeira das ―Cartas Portuguesas‖ foi publicada em julho de 1877, alguns
meses antes da ascensão do Ministério chefiado por Sinimbu ao poder e no mesmo
momento em que surgia uma nova geração de lideranças liberais na política brasileira,
tendo destaque nomes como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Afonso Pena e Souza
Dantas. Junto com o aparecimento dessa nova geração, é possível observar o
fortalecimento das propostas de cunho mais democrático, como a Lei da Eleição Direta,
que foi aprovada em 09 de janeiro de 1881. Ao analisar a correspondência que Ramalho
Ortigão trocou com a redação do ―Gazeta de Notìcias‖, João Carlos Zan afirma que o
autor português ―muito raramente tratou das coisas do Brasil, mas isso não quer dizer
que eles as desconhecesse e, senso assim, não é de se duvidar que tenha acompanhado
todo o trâmite do projeto desta lei no congresso brasileiro‖436. Realmente, em nenhum
momento o escritor português se referiu diretamente aos debates a respeito da
implementação da eleição direta no Brasil. Contudo, na carta publicada em 19 de
fevereiro de 1883, Ramalho Ortigão comentou a atuação de Manuel Arriaga na Câmara
portuguesa. Após ironizar os equívocos ortográficos do parlamentar eleito pelo distrito
de Funchal, o autor critica as eleições gerais portuguesas.
Na grande maioria dos círculos eleitorais do país, continentes e ilhas, todo eleitor
que não vende e simplesmente e châmamente o seu voto por dinheiro, vende-o
por serviços, por bondades e por favores pessoais ao pároco, ao escrivão da
fazenda que cobra a décima ou ao agente de recrutamento, que manda prender
437
como soldado .
435
―Gazeta de Notìcias‖. 13 de março de 1882.
436
ZAN, João Carlos. Ramalho Ortigão e o Brasil. São Paulo: Tese de Doutorado, USP, 2009. p. 73.
437
ORTIGÃO, Ramalho. ―Gazeta de Notìcias‖. 19 de fevereiro de 1883.
210
O texto demonstra a descrença de Ramalho Ortigão com a capacidade do regime
democrático em resolver os problemas sociais. Para ele, o eleitor ia às urnas motivado
por interesses pessoais e imediatos e não por uma ideologia comprometida com a
438
coletividade . Não identifiquei nenhum texto onde Eduardo Prado comentasse
especificamente a legislação eleitoral aprovada. Porém, em um artigo publicado anos
mais tarde, em 1896, no seu jornal ―Comércio de São Paulo‖, o nosso autor tratou do
assunto. Eu já examinei esse texto no quarto capítulo desta tese, quando demonstrei que
Prado conclamou os monarquistas às urnas, criticando a ideia da abstenção, que chegou
a ser veiculada por algumas lideranças no grupo. Em meio a essa discussão, ele também
formulou um breve comentário a respeito das eleições: ―a República se diz uma
democracia porque realiza sazonalmente as eleições, como se o fato do eleitor
comparecer às urnas garantisse a dignidade do voto‖ 439.
Diferente de Ramalho Ortigão, Eduardo Prado não chega a criticar, diretamente,
a democracia eletiva, mas diz que o comparecimento às urnas, por si só, não garante o
bom funcionamento do sistema democrático de governo. Talvez ele estivesse querendo
dizer que a democracia somente seria eficiente caso o eleitorado fosse capacitado ao
exercício do voto, o que demandaria, sobretudo, o investimento na educação da
população. Ainda que a colocação dos autores seja um tanto diferente, há a mesma
desconfiança em relação ao real poder decisório da opinião popular. É claro que a
simples recorrência dessa desconfiança em um e em outro não significa que os autores
tenha deliberadamente conversado sobre isso. Ainda assim, acredito que a recorrência
sinaliza a existência de um terreno comum entre eles, o que sugere a proximidade
interpretativa do nosso autor com seus interlocutores portugueses. Um terreno comum
que pode ser localizado, acredito, dentro dos limites da ―ideologia conservadora‖, para
usar as palavras de Karl Mannheim, estudioso que, como o leitor já percebeu, é
fundamental para esta tese. Digo isso porque os principais representantes do
pensamento conservador moderno também formularam críticas semelhantes à
democracia. Edmund Burke, por exemplo, que, como vimos na introdução desta tese,
era um autor bastante presente na biblioteca de Eduardo Prado, formulou um raciocínio
438
Para João Carlos Zan, as crìticas de Ramalho Ortigão à democracia não são uma novidade das ―Cartas
Portuguesas‖, mas sim uma caracterìstica do autor desde a década de 1860, quando ele trabalhava em
Lisboa como correspondente do jornal ―O Progresso do Porto‖, ―ocasião em que passou, por obrigação
profissional, as sessões da Câmara dos Deputados e, consequentemente, acompanhar de perto as questões
políticas do seu país. Desde aquela época, passou a tratar a questão, mantendo-se fiel a seu ponto de vista
que era o mesmo de Max Nordeau, para quem o resultado das urnas não poderia representar outra coisa
senão a ―opinião dos medìocres‖‖ (p. 73).
439
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 31 de outubro de 1896.
211
semelhante ao dizer que ―nenhum movimento ilustra mais claramente do que o
movimento supostamente democrático a maneira como a vontade de minorias altamente
organizadas e decididas pode prevalecer sobre a vontade das massas inertes,
440
desorganizadas e despreparadas‖ . Acredito, então, que ao longo da sua trajetória,
Eduardo Prado circulou por repertórios diversos, sendo a plasticidade da ideologia
conservadora a sua principal inspiração, exatamente aquilo que lhe permitiu combinar
elementos das tradições antiga e moderna do pensamento político ocidental.
Em novembro de 1887, Ramalho Ortigão chegou ao Brasil, onde permaneceria
por três meses. A agitação que a visita do escritor português provocou no Rio de Janeiro
e em São Paulo é um indício do prestígio que ele tinha no meio intelectual brasileiro. Na
ocasião, Eduardo Prado estava na Europa e de lá atuou como um dos principais
articuladores do roteiro seguido pelo amigo português. Portanto, examinar com algum
cuidado a visita de Ramalho Ortigão ao Brasil permite a visualização do momento no
qual o setentista português mais interagiu com Eduardo Prado. A correspondência é
vasta e indica o quanto o nosso autor estava ambientado entre os ―Vencidos na Vida‖.
Ramalho Ortigão chegou ao Rio de Janeiro em 07 de agosto de 1887. A viagem
já vinha sido planejada há algum tempo, o que justificou o gracejo que Eça de Queirós,
na carta que lhe escreveu um mês antes: ―quanto o amigo vai finalmente pegar uma
caravela e redescobrir o Brasil?‖441. Na resposta, Ramalho Ortigão diz que ―no mês que
chega; Prado já preparou tudo‖ 442. Diferente do que sugere a curta frase, Eduardo Prado
não foi apenas o principal organizador da viagem, foi, sobretudo, o grande entusiasta,
alguém que estava profundamente interessado em ouvir o que Ramalho Ortigão tinha a
dizer sobre o Brasil. Eça de Queirós testemunhou a expectativa com a qual o nosso
autor aguardava os primeiros relatos da viagem de Ramalho Ortigão. Em carta enviada
ao amigo português, o autor de ―Os Maias‖ escreve ―Alguns dias que Prado não fala em
outra coisa que não a sua bendita viagem ao Brasil. Não tarde a escrever as suas
primeiras notas sobre os costumes locais‖443.
Foram bastante calorosas as festividades que alta sociedade brasileira organizou
para receber Ramalho Ortigão. Assim que o navio francês que trazia o escritor
português entrou na Baia de Guanabara, várias embarcações foram ao seu encontro;
440
Citado em NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 67.
441
QUEIRÓS, Eça. Correspondência. Porto Lello & Irmão, 1963. p. 131.
442
Idem. p. 132.
443
Idem. p. 133.
212
políticos, jornalistas e empresários queriam cumprimentar o tão estimado autor das
―Cartas Portuguesas‖. Logo depois de obedecidos todos os protocolos polìticos e
diplomáticos, Ramalho Ortigão foi para o Cosme Velho, onde ficou hospedado da casa
do seu irmão, o Comendador Joaquim da Costa, que era um abastado comerciante na
praça do Rio de Janeiro. Coube ao jovem poeta Luís Murat, membro do chamado grupo
dos ―boêmios‖, que era constituìdo também por nomes como Olavo Bilac e Raul
Pompeia, a incumbência de escrever a crônica sobre a chegada de Ramalho Ortigão, que
foi publicada no jornal ―Gazeta de Notìcias‖ em 13 de agosto de 1887. No texto, Murat
se diz ―na espera para ler o livro que resultará dessa viagem. Como bom observador do
temperamento e dos costumes dos povos, o grande Ramalho logo irá escrever o livro
―Brasil‖, que será tão importante quando o já conhecido ―Holanda‖444. Ao que parece,
Eduardo Prado não era o único interessado em saber o que Ramalho Ortigão tinha a
dizer sobre o Brasil.
Por motivos que jamais ficaram claros, o tão esperado livro não veio a público e
Ramalho Ortigão pouco escreveu sobre a sua viagem ao Brasil. Porém, ele discursou na
solenidade de inauguração do Real Gabinete Português de Leitura. Na sua fala, o
escritor comentou a importância da colonização portuguesa para a construção da
civilização brasileira. Temos, aqui, mais um elemento fundamental para o
conservadorismo de Eduardo Prado.
O simples aspecto de sua capital, os seus monumentos, os seus antigos bairros,
algumas de suas formas de construção, os seus costumes domésticos, as suas
tendências de literatura e de arte, a profunda sensibilidade meiga dos seus poetas,
tudo, absolutamente tudo, faz ver obra civilizacional que Portugal fez nos
445
trópicos .
444
―Gazeta de Notìcias‖. 13 de agosto de 1887.
445
―Gazeta de Notìcias‖. 13 de setembro de 1887.
446
ABREU, Capistrano. Ensaios e estudos (crítica e história). Brasília: Livraria Briguiet, 1932. p. 73.
213
relevantes para a definição do perfil historiográfico de Eduardo Prado. O fato é que
Ramalho Ortigão sugeriu uma discussão e ela foi retomada pelo nosso autor. Não seria
um absurdo acreditar que os seus contatos com a fina flor da intelectualidade portuguesa
tenham colaborado para alimentar o seu interesse pela ação lusitana nos trópicos.
Depois de alguns dias, o cronista português foi visitar São Paulo, onde ficou
hospedado na casa de Veridiana Prado. A velha matriarca deixou a melhor impressão
possível no autor português, o que fica claro na correspondência que ele trocou com o
nosso autor. Eu ainda teria muito a dizer sobre o grupo dos ―vencidos na vida‖,
destacando, por exemplo, a sua heterogeneidade e os seus conflitos internos, assim
como a sua auto proclamada frustração com os projetos dos tempos da ―questão
coimbrã‖ e das ―conferências do cassino‖. Porém, fazê-lo implicaria no risco de perder
a linha geral que conduz a minha argumentação neste capítulo, que é justamente a
interlocução de Eduardo Prado com outros letrados, o que é fundamental para que a
noção de ―República das Letras‖ tenha algum sentido.
Como estou tentando mostrar desde o início, Eduardo Prado começou a
frequentar o cìrculo dos ―vencidos‖ em meados da década de 1880, quando os principais
nomes do grupo já estavam consagrados na cena literária portuguesa. Esses escritores,
especialmente Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, estabeleceram um intenso vínculo
afetivo e intelectual com o nosso autor, o que fez com que ele, de alguma forma,
entrasse em contato com ideias caras a esses homens, como, por exemplo, o
antibacharelismo de Eça de Queirós e o elogio à colonização portuguesa na América de
Ramalho Ortigão. A documentação não permite mensurar até que ponto Prado se deixou
sensibilizar por essas ideias, mas a recorrência desses temas nos seus escritos
posteriores sugere uma área semântica comum. Por outro lado, e isso fica bem claro na
documentação, também os vencidos foram contagiados pelo ―amor de Prado ao
passado‖, como Eça de Queirós costumava falar.
Após idas e vindas ao Brasil em virtude dos seus conflitos com a ditadura
militar, Eduardo Prado retornou definitivamente ao país em 1894, onde fixou residência
e, finalmente, para a alegria de sua mãe, se casou com sua prima Carolina447. A partir de
então, ele não seria mais um membro tão assìduo do grupo dos ―vencidos‖. O autor
passaria a frequentar outra República das Letras, uma localizada na sua terra natal, onde
447
De acordo com Cândido da Mota Filho, ainda na adolescência, Eduardo Prado ―andou de namoros
com sua prima, Carolina‖. Os casamentos endogâmicos eram comuns na famìlia Prado, funcionavam
como uma espécie de estratégia para a preservação do patrimônio. Por isso, Veridiana Prado insistiu no
casamento do filho, que protelou a subida ao altar por mais de dez anos.
214
se tornou membro das duas principais instâncias de consagração intelectual da época: a
Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Examinar
a atuação de Eduardo Prado nos quadros desses dois grêmios pode ser uma importante
preparação para os temas que enfrento na próxima unidade.
Apesar de terem objetivos e trajetórias distintos, existe uma semelhança
importante entre o IHGB e a ABL: ambos adotaram o tom da moderação política nos
primeiros anos de vida do regime republicano. É certo que o fizeram por motivações
distintas. Enquanto o IHGB tentava se reaproximar do novo governo, amenizando seus
vínculos com o regime político decaído, visando evitar perseguições448, a ABL desejava
ser a agremiação intelectual oficial da República, contando, por isso, com a proteção do
Estado brasileiro449. Eduardo Prado foi membro fundador da ABL e sócio efetivo do
IHGB, sendo que o seu comportamento político, como já sabemos, não combinava com
o tom moderado adotado pelas duas agremiações. Se era assim, por que o autor foi
convidado para compor os quadros dessas associações? Como ele negociou com os
limites de manifestação política que foram impostos pelas direções do IHGB e da ABL?
Essa moderação política funcionou mesmo na prática?
6.2 - Eduardo Prado na Academia Brasileira de Letras
A bibliografia especializada é unânime em situar nas reuniões literárias
realizadas na sede da ―Revista Brasileira‖ o inìcio das articulações que mais tarde
resultariam na fundação da Academia Brasileira de Letras450. A ideia de criar uma
448
O historiador brasileiro Manoel Luiz Salgado Guimarães é autor de um estudo voltado especialmente à
fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Mostrando como o IHGB esteve vinculado com o
Estado monárquico, o autor destaca a importância da historiografia produzida nessa agremiação para as
discussões a respeito da nacionalidade brasileira durante o século XIX. Para o autor, o apoio da
Monarquia ao IHGB se caracterizava, entre outras coisas, pelos constantes incentivos financeiros aos
esforços de pesquisem empreendidos pelos associados da agremiação e pelo cessão das dependências do
Palácio do Paço para a instalação do instituto. Ver GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia
e Nação no Brasil (1838-1857). Rio de Janeiro: ED. UERJ, 2011.
449
A ideia de que o Estado deve proteger as agremiações literárias é constitutiva da a cultura política
moderna, sendo o seu princípio fundamental a noção de que o progresso de uma nação depende
necessariamente do estágio de desenvolvimento de sua capacidade intelectual. No espaço luso-brasileiro,
essa percepção foi amplamente desenvolvida, como já vimos, por José Bonifácio de Andrada e Silva e
por nomes como Januário da Cunha Barbosa e Almeida Garret. Em um estudo dedicado à história
intelectual luso-brasileira nos primeiros anos do século XIX, o historiador brasileiro Valdei Lopes Araújo
destaca que naquilo que se refere especificamente à literatura, a demanda de proteção por parte do poder
público era ainda mais destaca pelos letrados da época. Nas palavras do autor, ―A lìngua era uma
dimensão que preexistia ao Estado, mas a literatura, enquanto possibilidade dessa língua, só poderia
existir se houvesse antes uma fonte de autoridade capaz de sustentar e incentivar a sua existência. Esse
entendimento traria consequências profundas para o contexto luso-brasileiro.‖ (op. cit, p. 114).
450
A fundação e o funcionamento da Academia Brasileira de Letras já foi objeto de diversos estudos, que
exploraram ora a sua importância para a construção do campo literário brasileiro, ora o seu papel de
instância de consagração literária no Brasil e ora os seus vínculos com o mundo da política. Nesse
sentido, eu destaco três desses estudos, com os quais dialogo de forma mais intensa ao longo deste
215
academia de letras responsável pelo cuidado da língua portuguesa e pela
profissionalização dos escritores não era nova. Desde a década de 1880, um grupo de
escritores tentava fundar uma organização desse tipo. É certo que o IHGB já existia há
muito tempo, mas a sua ênfase quase que exclusiva nos estudos históricos não era o
suficiente para cultivar no Brasil uma cultura literária que desse maior estabilidade
profissional aos escritores. De acordo com a historiadora Alessandra Faar,
No final dos anos 1880 e início dos anos 1890, diversos literatos engajados na
nascente profissão das letras almejavam estabelecer um novo padrão de
sociabilidade literária. Os encontros casuais, as módicas remunerações, os
grupos dispersos e descompromissados já não lhes bastavam: queriam
reconhecimento social que os diferenciasse dos outros setores da sociedade
intelectual451.
capítulo: BROCA, Brito. A Vida literária no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2004; FAR,
Alessandra El. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos
primeiros anos da República. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010; - RODRIGUES, João Paulo Coelho. A
dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Ed.
UNICAMP, 2011.
451
FAR, Alessandra El. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos
primeiros anos da República. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. p. 42.
452
Em 1887, foi fundada no Rio de Janeiro o Grêmio de Artes e Letras, que tinha o objetivo de
institucionalizar uma sociedade literária voltada para os interesses corporativos dos escritores brasileiros.
Nas palavras da historiadora Alessandra El Far, ―por ser uma das primeiras corporações do gênero, o
Grêmio teve de enfrentar não só a desconfiança por parte dos escritores, como também a inexperiência
dos seus membros numa associação ordenada por regras estabelecidas‖ p. 43. A autora também informa
que Machado de Assis fora convidado para presidir o Grêmio de Artes e Letras, tendo declinado do
convite com a alegação de que já pertencia à diretoria do Club Beethoven. Já a Sociedade dos Homens
das Letras foi criada em 1893 com propósitos mais definidos, como, por exemplo, conseguir que o
governo aprovasse uma lei regulatória dos direitos autorais. ―À diferença de uma classe de ―homens de
letras‖, seus sócios visariam especialmente a um amplo movimento de amparo aos escritores, fossem eles
brasileiros ou estrangeiros. Assim, propunham também um fundo social de ajuda em casos extremos e
uma solidariedades mútua com o objetivo de salvaguardar a profissão literária no paìs‖ (p. 43). Também
essa associação, em virtude da falta de apoio do poder pública e pela dispersão dos seus membros, não
teve vida longa.
216
Aranha, Filinto de Almeida, Lúcio de Mendonça, Machado de Assis, Magalhães
de Azeredo, entre outros. À diferença dos jornais, que davam preferência aos
textos curtos desses autores, a Revista abrigava em suas páginas longos ensaios e
estudos específicos453.
Eduardo Prado não chegou a ter nenhum texto publicado na ―Revista Brasileira‖.
Entretanto, de acordo com o relato coevo de Graça Aranha, ele era uma das figuras mais
presentes nos encontros, o que justifica as suas explicações na carta enviada a Joaquim
Nabuco, da qual eu tirei a citação que serve como epígrafe a este capítulo. Em 1897, por
algum motivo, talvez pelo excesso de trabalho em virtude da direção do jornal
―Comércio de São Paulo‖, Eduardo Prado deixou de frequentar os encontros. Porém,
escrevendo em 1896, Graça Aranha diz:
Todas as tardes no Rio de Janeiro, antes que o sol transmonte, um grupo de
homem se reúne em uma pequena e modesta sala. É o five o’clock tea da Revista
Brasileira, refúgio suave, tranquilo da tormentosa vida fluminense. Há desordens
no parlamento? Há estado de sítio? Que importa! Recolhemo-nos àquele retiro e
reciprocamente nos infiltramos de fluidos intelectuais. Toda querela política fica
do lado de fora. Ali, coexistem pacificamente tanto os monarquistas como
Loreto, Taunay, Prado e Nabuco, como os republicados da envergadura de Lúcio
454
de Mendonça e ate mesmo socialistas como José Veríssimo . (Grifos Meus)
A proposição da autora pode até estar correta para figuras como Joaquim
Nabuco e Visconde de Taunay, que relutaram em se engajar de forma mais ativa no
projeto da restauração monárquica. Porém, como já sabemos, não foi esse o caso de
453
Idem. p. 44.
454
―Revista Brasileira‖. Março de 1896. pp. 184-185.
455
FAR, Alessandra El. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos
primeiros anos da República. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. p. 47.
217
Eduardo Prado. Como pôde um dos mais viscerais e contundentes dos monarquistas ter
sido escolhido para ser um dos fundadores da academia de letras que pretendia ser o
grêmio letrado oficial da República e subvencionado pelo novo regime? Retorno a essa
questão ainda nesta seção.
As discussões relativas à fundação da ABL vieram a público em 1896, sendo
Lúcio de Mendonça e Valentim Magalhães os principais defensores da proposta. Em 05
de novembro desse ano, Lúcio de Mendonça utilizou as páginas da imprensa carioca
para justificar o apoio oficial do governo republicano ao projeto de fundação da
academia.
E há, de envolta, com o interesse da classe dos literatos, o próprio interesse da
República: é belo e útil que esta se mostre amiga dos bons espíritos e da mais
nobre das artes; e não é dos menores resultados, que se hão de colher do novo
instituto, o congraçamento das mais bem dotas inteligências nacionais numa obra
comum e desinteressada, numa cooperação que promoverá naturalmente o
apagamento e a suavização das vidas antinomias que a luta política abre,
456
aprofunda e venena .
simples e sem pompa. Serviu mais como uma formalidade interna do que como
um evento para o público. Restringiu-se a três discursos: um discurso, feito por
Machado de Assis, uma ―memória histórica‖ sobre os movimentos pela fundação
daquele grêmio, por Rodrigo Otávio, e outro discurso inaugural, de autoria de
Joaquim Nabuco457.
456
MENDONÇA, Lúcio de. Primeiras notícias da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: ABL,
1997. p. 37.
457
RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia
Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Ed. UNICAMP, 2001. p. 34.
218
Ainda que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro fosse bem mais antigo
do que a ABL, a sua situação nos primeiros anos da República foi parecida com a da
jovem agremiação. Também o IHGB adotou o discurso da moderação política e tentou
se aproximar das novas instituições. Afinal, o instituto que nasceu e viveu sob a
proteção da Monarquia não desejava perder o patrocínio do Estado brasileiro. Já na
primeira reunião realizada depois da intervenção militar republicana, ficou clara a
disposição oficial daquela associação à conciliação com o novo regime. Sendo bastante
cuidadoso com as palavras, Norberto de Souza, então Presidente do instituto, destacou
que ―apesar dos últimos acontecimentos, o instituto tem clareza de que a gratidão ao
antigo monarca não nos conduz à oposição à ordem das coisas estabelecidas‖458, e, por
isso, pedia uma República livre que prezasse pelos serviços ali realizados. Mais do que
nunca, o antigo lema do instituto ―pacifica scientiae occupatio” se tornava bastante
pertinente, e, sobretudo, estratégico. Caberia ao IHGB, portanto, desenvolver uma
atividade científica útil e pacífica, o que demonstra que o instituto aceitou a República,
mas temia as represálias e perseguições.
A historiadora Ângela de Castro Gomes escreveu um importante estudo a
respeito das relações entre o IHGB e a República no final do século XIX. Para a autora,
após a abolição da escravidão e a proclamação da República,
o campo intelectual foi rearticulado em novas bases, mais afastadas dos
engajamentos políticos. Postulava-se um maior distanciamento dos intelectuais
do campo do poder. Tratava-se de afirmar ―profissionalmente‖ o intelectual,
afastando-o da política e propiciando a valorização de um ponto de vista mais
459
neutro .
458
21ª Sessão Ordinária em 29 de novembro de 1889. RIHGB, t. 52, parte 2, p. 534-535, 1889.
459
GOMES, Ângela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
pp. 48-49.
460
De acordo com Brito Broca, ao impor um tipo de socialização marcada pela moderação e pela
elegância, a Academia Brasileira de Letras foi um dos elementos que puseram fim à boemia literária
carioca. O autor destaca também que essa mudança no estilo de vida dos escritores não aconteceu sem
tensões e conflitos, como, por exemplo, aqueles que marcaram as relações do inveterado boêmio Paula
Nei com a agremiação presidida por Machado de Assis. Nas palavras de Brito Broca: ―Por outro lado, é
219
forma moderada e elegante que Eduardo Prado fez política, o que para ele significava
proselitismo monarquista, nos quadros da ABL e na sua mais que rápida passagem pelo
IHGB. No instituto histórico, ao qual ele se filiou em 1901, dias antes de morrer, se
empenhou em defender a ampliação dos estudos da ação catequética da ordem dos
jesuítas no período colonial, tema sobre o qual ele já se debruçava desde o final da
década de 1880. Já na ABL, o nosso autor fez questão de escolher o Visconde de Rio
Branco para ser o patrono da cadeira que ele fundou, a de número quarenta, tendo o
objetivo de imortalizar ―aquele que foi um dos principais esteios da Monarquia
governada por D. Pedro II, que durante quase meio século fez do Brasil uma nação
próspera e pacìfica‖ 461.
Eduardo Prado não chegou a intervir nas discussões públicas que antecederam a
criação da academia. Como mostrei no segundo capítulo deste trabalho, na época, o
nosso autor estava bastante ocupado com a administração do jornal ―Comércio de São
Paulo‖, o que talvez justifique as tais ausências nas reuniões da ―Revista Brasileira‖, das
quais ele se desculpou com o seu amigo Joaquim Nabuco. O autor do ―Abolicionismo‖,
foi um dos membros mais atuantes da ABL, destacando-se como um dos principais
articuladores das eleições para a imortalidade. Foi, justamente, Nabuco o principal
interlocutor de Prado naquilo que se refere à academia. Ainda no final de 1896, quando
a agremiação ainda não tinha sido fundada, o nosso autor escreveu para o seu amigo
comentando o assunto.
Rogo toda estima pela ideia de criação de uma academia de letras. Os nossos
mais valiosos espíritos precisam ter onde se refugiarem dos inconvenientes das
querelas políticas. Também é urgente que se faça algo para que os nossos
escritores tenham maior conforto no recebimento dos seus honorários462.
impossível negar certa influência da Academia ao crescente aburguesamento do escritor, entre nós, na
primeira década do século. Sob o signo de Machado de Assis, a prova de compostura se tornara
imprescindível para a admissão no novo grêmio, que desde o início se revestira de uma dignidade oficial
incompatível com os desmandos da boemia. De onde a reação de um dos boêmios mais típicos: Paula
Ney. Vendo-se excluído do número dos quarenta imortais fundadores da Academia, lançou as bases de
uma Academia Livre de Letras, em que colocou alguns boêmios, como B. Lopes, Emílio de Menezes,
Dermeval da Fonseca, mas também alguns homens sérios, como Érico Coelho, que protestou logo,
dizendo não fazer parte da referida sociedade‖ (p. 18).
461
PRADO, Eduardo. ―Revista Moderna‖. Dezembro de 1896. p. 73.
462
NABUCO, Carolina (org). Obras Completas. Instituto Progresso Editorial: São Paulo: 1935. p. 195.
220
posicionamento de Prado a respeito das duas principais questões em torno das quais
orbitava a cena intelectual brasileira da época: a criação de um campo intelectual
autônomo em relação às disputas da política e a profissionalização do escritor. A ABL
nasceu com o objetivo de avançar nessas propostas. Ainda que fosse um homem rico e
não dependesse profissionalmente das letras, o nosso autor demonstrou preocupação
com a situação de penúria na qual vivia a maioria dos escritores brasileiros da época.
Ainda que fosse um escritor combativo que não relutava em utilizar a sua pena para
confrontar as instituições republicanas, ele reconheceu a necessidade de um espaço no
qual os letrados pudessem zelar pela literatura nacional sem serem incomodados pela
mundanidade da política.
Agora, resta saber até que ponto o combativo polemista do mundo político deu
mesmo lugar ao moderado imortal membro da Academia Brasileira de Letras e ao
isento historiador associado ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Começo
investigando a nomeação de Prado para ocupar uma cadeira na nascente instituição
responsável por zelar pelas letras brasileiras. Lúcio de Mendonça, que, como já
sabemos, foi o principal articulador da criação da academia, tinha convicção de que sem
o auxílio institucional do governo da República dificilmente a agremiação teria vida
longa. Até então, somente uma organização dessa natureza não tinha morrido após
pouco tempo de funcionamento: o IHGB, que sempre contou com o apoio institucional
e financeiro da Monarquia. Por isso, em uma última cartada, o autor propôs que a
Academia Brasileira de Letras fosse fundada no dia 15 de novembro de 1896, o que
demonstraria, ―os estreitos vìnculos entre a República brasileira e a República brasileira
463
das letras‖ . Novamente, podemos observar o uso da expressão que foi fundamental
para a cultura intelectual no mundo ocidental moderno.
Já prevendo o constrangimento que os vínculos com a República poderiam
causar nos escritores monarquistas, Lúcio de Mendonça propôs uma solução, que foi
publicada na edição do jornal ―Gazeta de Notìcias‖ do dia 10 de novembro de 1896.
A Academia de Letras será fundada pelo governo, e o decreto de sua criação terá
provavelmente a data de 15 de novembro; na mesma data o governo nomeará os
10 primeiros membros desse instituto, e estes elegerão outros 20 e mais 10
correspondentes, dentre os escritores nacionais residentes nos estados ou no
estrangeiro. As vagas que se derem depois serão preenchidas por eleição 464.
463
MENDONÇA, Lúcio de. Primeiras notícias da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: ABL,
1997. p. 42.
464
―Gazeta de Notìcias‖. 10 de novembro de 1896.
221
Não sei se realmente houve uma articulação entre os organizadores do projeto e
as autoridades do governo ou se a matéria foi parte da estratégia de Lúcio de Mendonça
para conseguir o tão desejado apoio. Os autores que se debruçaram sobre o tema, e
destaco aqui os já citados historiadores João Paulo Rodrigues e Alessandra El Far,
também não esclarecem esse ponto. O que sabemos é que Lúcio de Mendonça esperava
esse apoio, tanto que mandou publicar na imprensa a lista com os nomes dos quarenta
imortais465. Se formos acreditar que esses nomes foram escolhidos de acordo com o
procedimento proposto por Lúcio de Mendonça e divulgado na ―Gazeta de Notìcias‖,
nos inclinaremos a pensar que a República chegou a indicar os dez primeiros nomes,
sendo os seguintes escolhidos de acordo com o critério já informado. Também não é
possível saber. O fato é que o nome de Eduardo Prado não estava nessa lista e que o
apoio oficial não veio, o que fez com que a inauguração da academia fosse adiada,
vindo a ocorrer, somente, como já disse antes, em junho de 1897, agora sim, tendo o
nosso autor entre os seus imortais.
De acordo com o estudo de Alessandra El Far, a Academia Brasileira de Letras
tinha uma particularidade que a diferenciava do modelo francês que lhe serviu de
inspiração: enquanto a academia fundada por Richelieu ―tinha como principal função
estabelecer normas para a língua francesa, a brasileira além da preocupação com a
ortografia, propunha também o cultivo da literatura nacional, cabendo assim elaborar
466
uma história oficial das obras e dos autores mais importantes para a nação‖ . Foi
dessa preocupação com a construção de um cânone literário brasileiro que nasceu a
ideia de escolher um patrono para cada uma das quarenta cadeiras que passariam a
constituir a academia. Esse é um aspecto fundamental para a minha argumentação.
―Acabo de escrever ao Presidente apresentando o nome de velho Rio Branco
467
para padrinho da cadeira que terei a honra de me sentar‖ . Assim escreveu Eduardo
Prado a Joaquim Nabuco em abril de 1897, cerca de dois meses antes da fundação da
academia. A essa altura, ele já tinha escolhido o patrono para a sua cadeira, escolha que
traduzia o desejo de ver o primeiro Visconde de Rio Branco, que foi um dos principais
quadros políticos da Monarquia, consagrado como um prócer das letras nacionais. O
curioso é que o ―jovem‖ Barão de Rio Branco, amigo de Eduardo Prado, tendo,
465
Alessandra El Far destaca o constrangimento que a presença do nome de Capistrano de Abreu causou
para Lúcio de Mendonça, que precisou se retratar publicamente. O historiador cearense jamais aceitou
ingressar no círculo dos imortais, apesar dos insistentes convites.
466
FAR, Alessandra El. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos
primeiros anos da República. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. p. 59.
467
Arquivo Eduardo Prado. Acervo da Academia Brasileira de Letras. Doc. 12.
222
inclusive, sido seu superior nos tempos em que esteve a serviço da diplomacia brasileira
em Londres, foi preterido na escolha dos quarenta membros fundadores da Academia
Brasileira de Letras, algo que foi alvo das críticas do nosso autor. Em um artigo
intitulado ―Barão do Rio Branco‖, publicado na ―Revista Moderna‖ em 15 de dezembro
de 1897, Prado demonstra como os salões da ABL não eram tão moderados do ponto de
vista político como os seus principais líderes tentavam fazer parecer.
Os escritores que tratam das superioridades políticas da Inglaterra mencionam,
como sendo das principais, a existência de uma classe de homens que
hereditariamente transmitem uns aos outros uma continuada tradição e uma
apropriada educação na arte da política e naquilo que se pode chamar a Ciência
do Estado468.
223
adentrar ao seleto círculo dos imortais. Logo em outubro de 1898, após a morte de
Pereira da Silva, fundador da cadeira de número trinta e quatro, o Barão foi eleito
membro da Academia Brasileira de Letras. Não encontrei na documentação nenhum
indício de que Eduardo Prado tenha tido uma participação ativa nas negociações que
resultaram na eleição de Rio Branco. Prosseguindo na análise do texto, destaco a
relação que o nosso autor propôs entre as formas de governo e as possibilidades do
exercício da virtude política.
Na vida moderna, toda de individualismo, espíritos como esses [e aqui ele se
refere ao Barão de Rio Branco e ao seu pai] não se acham bem. E muito menos
podem ter uma expansão eficaz nas chamadas democracias sul-americanas. O
guerreiro não tem ali com quem guerrear, e, não tendo ocasião de vencer,
desaprende essa arte e nem sempre consegue vencer a si mesmo, antepondo o
bem da pátria à vantagem de sua classe. Onde só há vício a virtude de um Rio
Branco é sufocada. Excepcionalmente pode até um homem como esse fazer
grandes coisas. O homem superior por todos os títulos, o primeiro Rio Branco
encarnava todas as qualidades viris que no passado diferenciavam o Brasil do
restante da América do Sul470. (Grifos Meus)
470
Idem. p. 339.
224
Prado, encontrava condições de desenvolvimento plenamente favoráveis nos tempos da
Monarquia. Por isso, para ele, a Monarquia seria melhor que a República, melhor,
principalmente, por ser mais republicana.
São sintomáticas as palavras que o nosso autor utilizou para definir os dois
Paranhos como ―grandes homens‖: ―qualidades viris‖. A ideia de virilidade sugere ação,
força e, principalmente, intervenção na vida pública, sendo um atributo exclusivamente
masculino. Essa concepção de virilidade cívica pode ser encontrada também em dois
importantes tratados considerados pertencentes à tradição republicana. Cícero, por
exemplo, no ―De inventione‖, diz ―o verdadeiro vir civillis deve, acima de tudo, ser um
bom homem, alguém dotado de todas as virtudes necessárias à vida cìvica‖471. Uma
formulação semelhante foi desenvolvida por Quintiliano no “Instituta Oratoria”: ―O
verdadeiro cidadão mais habilitado à administração dos assuntos públicos e privados é o
vir bônus, o bom homem, dotado de todas as virtudes espirituais, ao lado de uma
verdadeira compreensão de uma vida reta e honrada‖472.
O princípio da virtude do grande homem, que, como estamos vendo, foi tão caro
ao nosso autor, chegou ao republicanismo moderno, de acordo com Quentin Skinner,
através da literatura ―pré-humanista‖. Já tive a oportunidade de examinar o ensaio de
Skinner no quarto capítulo desta tese, mas considero importante retomar alguns
elementos que ainda não foram devidamente trabalhados, como, por exemplo, a noção
latina de ―Grandeza”. Para o historiador inglês, já no século XI, os porta-vozes das
comunas italianas medievais deram início, antes mesmo do século XIV, quando
podemos perceber com mais clareza o desenvolvimento do “highest humanista style”,
ao amadurecimento dos princípios políticos republicanos, como o autogoverno e o
exercício público da cidadania. Nesse momento, a principal fonte doutrinária, ainda
segundo Skinner, não era a teoria política de Aristóteles, como viria a ser
posteriormente, mas sim os moralistas romanos e os teóricos da eloquência, como
Cícero e Quintiliano. Essa hipótese é muito importante para a minha análise porque
mostra o quanto esses autores latinos foram, ao mesmo tempo, fundamentais para o
pensamento político republicano moderno e para o conservadorismo de Eduardo Prado.
Ainda que tenha sido, talvez, o mais ferrenho dos antirrepublicanos, o nosso autor, foi,
471
Citado em SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na filosofia de Hobbes. São Paulo: Ed. UNESP,
1999. p. 109.
472
Idem. pp. 109-110.
225
também, um atento republicano, alguém bastante familiarizado com as referências
doutrinárias constitutivas dessa tradição.
Como podemos perceber, Prado, tal como Cícero e Quintiliano, associa a virtude
cívica à combinação entre as atividades política e letrada, qualidades que, segundo o
nosso autor, eram presentes nos dois Paranhos. Era, exatamente, a associação entre
essas virtudes que justificava a sua escolha para o patronato da cadeira de número
quarenta e o que tornava imperdoável o esquecimento por parte dos dirigentes da
academia. Não tenho clareza se a escolha de Prado para o patronato aconteceu antes que
ele tomasse conhecimento da ausência do Paranhos Jr na lista dos quarenta imortais que
fundaram a Academia Brasileira de Letras. Contudo, ainda assim, acredito que, em
algum momento, e isso fica claro no texto publicado na ―Revista Modena‖, ele, de
alguma forma, utilizou a consagração literária do velho Rio Branco como uma espécie
de remediação da injustiça da qual o jovem Rio Branco fora vítima.
Tanto o pai como o filho, por serem grandes homens, verdadeiros vir civillis,
eram dignos de todas as homenagens e honrarias, inclusive as literárias, que eram as
incumbências da jovem Academia Brasileira de Letras. No entanto, para Prado, o velho
e o novo não teriam a mesma sorte, pois enquanto o pai viveu em um ambiente
plenamente virtuoso que lhe permitiu a pontecialização e o pleno exercício de suas
―qualidades viris‖, o filho estava sendo cerceado por uma experiência polìtica viciosa e
egoísta. O autor utilizou, então, as biografias dos dois Paranhos para fazer proselitismo
da Monarquia, o que mostra que a sua nomeação como membro fundador da Academia
Brasileira de Letras não atenuou o seu antirrepublicanismo. Também chama a minha
atenção a presença do princípio romântico da encarnação da virtude da nação na pessoa
do grande homem. Aqui, o monarquismo de Eduardo Prado mostrou-se bem coerente
com os valores éticos e estéticos vigentes nos tempos da Monarquia: a tradição
republicana foi associada ao romantismo literário473.
Em estudos dedicados à importância do gênero textual biográfico na cultura
intelectual brasileira oitocentista, Márcia de Almeida Gonçalves e Maria da Glória de
Oliveira, demonstram como o encômio biográfico foi fundamental tanto para o
repertório literário dos escritores românticos como para os estudos desenvolvidos pelos
historiadores vinculados ao IHGB. Para Márcia Almeida Gonçalves, ―A escrita
473
Em um estudo sobre a geração brasileira de 1870, Ângela Alonso analisou os questionamentos que os
letrados que fizeram parte dessa geração fizeram aos valores fundamentais da cultura brasileira da época,
que constituíam também a base ideológica da Monarquia. Ao falar em uma ―tradição imperial‖, a autora
destaca o romantismo, o catolicismo e o liberalismo estamental.
226
biográfica conheceu notória expansão na modernidade da qual nos ocupamos,
diversificou-se em seus usos e, em determinados casos, passou, tanto quanto a história e
474
a literatura, a contribuir para a fundação simbólica das individualidades nacionais‖ .
Já para Maria da Glória Oliveira ―a ideia de que a tarefa da história era fixar a memória
das vidas dos grandes homens funcionou como argumento decisivo para a incorporação
da escrita de biografias no programa do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) no século XIX‖475. Portanto, ao afirmar que o Visconde de Rio Branco
―encarnava‖ as qualidades que durante muito tempo fizeram o Brasil diferente da
América Latina, Prado faz uma dupla crítica à República: primeiro, acusa o novo
regime de ter implodido as diferenças entre o Brasil e os seus vizinhos, já que sendo
agora governados por instituições semelhantes, esses países dividiam o mesmo
desapego pela ordem e pela paz social. Segundo, ele acusa a República de ser a grande
responsável pela incompletude na biografia de homens virtuosos, como o Barão de Rio
Branco, que não encontrava as mesmas condições que o seu pai para se tornar de fato
um ―notório servidor da pátria‖. Nesse sentido, a grandeza do homem somente se
consolidaria no pleno exercício de suas qualidades, o que demanda uma organização
política também virtuosa. Sendo assim, para Prado, o grande homem, no caso o velho
Paranhos, somente foi a metonímia da grande nação porque o governo monárquico
possibilitou. Até poderiam existir grandes homens na República, mas essa não era capaz
de levá-los à plenitude da virtude cívica.
De forma alguma, a rebeldia de Prado nas páginas da edição de dezembro de
1897 da ―Revista Moderna‖ foi um caso isolado nas relações entre os imortais e a
direção da Academia Brasileira de Letras. Como os imortais também morrem e o
estatuto da agremiação previa a realização de eleições para a entrada de novos
membros, a pretensa austera e despolitizada academia era frequentemente agitada pela
articulação política, o que demonstra os vínculos de afetividade, parceria e rivalidade
que davam o tom à socialização letrada brasileira do período. Entre os principais
articuladores, de acordo com os estudos de João Paulo Coelho, destacava-se a figura de
Machado de Assis, que foi peça chave nas negociações que introduziram novos
membros no círculo dos imortais.
474
GONÇALVES, Márcia Moreira. Retratos em papel e letras: narrativa biográfica e imaginário
nacional no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2012. p. 176.
475
OLIVEIRA, Maria da Glória. Escrever vidas, narrar a história: a biografia como problema
historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Ed. FGV 2011, p. 15.
227
Machado de Assis tinha plena compreensão das injunções inerentes ao seu cargo
em face do projeto original da Academia. Ele deveria equilibrar em sua conduta
os seus desejos pessoais, as disputas entre os seus colegas e preservar a sua
imagem tanto quanto a do seu cargo476.
A citação não permite a mais segura das interpretações, mas me parece que o
nosso autor se opôs à escolha de Zola por dois motivos: primeiro, por achar que a obra
literária do escritor francês não justificava a sua consagração. Afinal, para Prado, o
―aplauso tão acentuado a Zola‖ era algo momentâneo e se justificava pela sua
manifestação pública em defesa de Alfred Dreyfuss, que foi acusado de alta traição pelo
476
RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia
Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Ed. UNICAMP, 2001. p.134.
477
Anais da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: 1965, p. 79.
228
Exército francês478. Em segundo lugar, Prado acreditava que a consagração de Zola
seria ofensiva aos escritores que em outras ocasiões não saíram em defesa de outras
vítimas. Então, para o nosso autor, não caberia ao escritor se envolver em casos como
esse. Portanto, o que deveria fazer o escritor? Se Eduardo Prado se manifestou sobre
essa questão não ficou registrado em ata, mas considerando a forma como o nosso autor
se inseriu nos debates que deram origem à academia, acredito ser possível dizer que
para ele o escritor deveria se restringir às letras, como era a proposta da própria ABL. É
bastante contraditório que justo Eduardo Prado, que foi um escritor tão combativo,
tenha censurado o envolvimento de Zola no caso Dreyfus. A oposição de Prado à
nomeação do escritor francês como primeiro correspondente estrangeiro da Academia
Brasileira de Letras pode ter outro motivo, um que não foi registado na ata. Segundo
479
Cândido da Mota Filho, ―havia em Eduardo Prado certo sentimento antissemita‖ .
Parece que esse ―sentimento antissemita‖ não era uma particularidade do nosso autor,
sendo também presente em Eça de Queirós. Segundo A. Matos, biógrafo do escritor
português, ―Eça de Queirós não demonstrava grande simpatia pelos judeus na sua
correspondência particular‖480. O antissemitismo foi um dos principais ingredientes do
caso Dreyfus, já que sendo judeu, o acusado foi alvo do radicalismo nacionalista
francês.
É importante destacar que Eduardo Prado não foi o único a se abster da votação,
tendo sido acompanhado por Graça Aranha, Joaquim Nabuco, Machado de Assis e
Rodrigo Otávio. Como não havia a possibilidade do voto contrário, a abstenção
equivalia na prática à desaprovação do nome que estava sendo indicado. Independente
de qual tenha sido o motivo que levou esses imortais a se contraporem ao nome de Zola,
o esforço não foi o suficiente e o escritor francês foi nomeado o primeiro
correspondente estrangeiro da Academia Brasileira de Letras. O curioso é que ele
sequer sabia que, naquele outubro de 1898, o seu nome estava sendo objeto de debates
em uma academia de letras localizada na outra margem do Atlântico. Até onde eu sei,
478
A partir de 1898, quando Emile Zola publica no jornal Aurore a carta intitulada ―J‘Acuse‖ pedindo a
revisão do argumento, teve início um intenso debate que dividiu, de um lado, os defensores dos valores
nacionalistas e do exército e, de outro lado, os defensores dos valores universalistas e dos direitos
individuais.
479
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 93.
480
MATOS, A. Campos. Eça de Queiroz: uma biografia. Campinas: Ed. Unicamp, 2014. p. 190.
229
ele jamais tomou parte das suas atribuições como correspondente, cargo para o qual ele
nunca solicitou ser indicado.
Eduardo Prado voltaria a se movimentar nos bastidores acadêmicos um mês
depois, quando os imortais tornaram a se reunir, agora para indicar o segundo
correspondente estrangeiro. Eça de Queirós era o nome da vez. Por algum motivo que
eu desconheço, Eduardo Prado não estava presente na sessão que aprovou a indicação
do seu amigo português para a função. Porém, é claro, isso não quer dizer que ele não
tenha tido participação nos arranjos que levaram à apresentação do nome do autor de
―Os Maias‖. A cronologia dos acontecimentos sugere que era intenção de Eduardo
Prado fazer do seu grande amigo português o primeiro corresponde estrangeiro da
academia. Em setembro de 1898, ou seja, antes da sessão que referendou a indicação de
Emìlio Zola para o cargo, o nosso autor escreveu a Joaquim Nabuco dizendo ―A
academia precisa ter entre os seus um representante da literatura mãe e ninguém é mais
481
indicado do que Queirós, o mais notável escritor português dos nossos dias‖ . Como
já sabemos, o nosso autor não teve sucesso na sua primeira investida, o que o fez insistir
no assunto, dessa vez com o próprio Machado de Assis. ―Seria de grande pertinência
que a academia brasileira responsável por zelar pelo bom uso da língua portuguesa
tivesse entre os seus o mais notável escritor da nação que nos legou esse tão magnânimo
482
idioma‖ . Talvez temendo um novo insucesso, o nosso autor resolveu falar
diretamente com aquele que era o grande articulador das decisões da academia.
O argumento que Prado utilizou com Machado de Assis é o mesmo usado com
Joaquim Nabuco: a Academia Brasileira de Letras deveria consagrar o principal escritor
português como uma forma de tributo a Portugal, a nação mãe que nos deixou a língua
portuguesa como herança. O que o nosso autor está querendo dizer é que a própria
academia, que em estatuto se dizia responsável pelo cuidado da língua portuguesa, devia
a sua existência a Portugal, que é definido como a matriz da nacionalidade brasileira,
nacionalidade que aqui é pensada a partir do critério do idioma. Nesse sentido, para
Prado, nada seria mais justo do que nomear Eça de Queirós como membro da Academia
Brasileira de Letras. O tema da herança portuguesa na cultura brasileira se tornou um
dos mais fundamentais dos últimos escritos de Eduardo Prado, especialmente nos textos
que ele dedicou à história do Brasil. Examino esse material na próxima unidade. Não sei
dizer até que ponto Eduardo Prado era influente nas decisões da Academia Brasileira de
481
Arquivo Eduardo Prado. Acervo da Academia Brasileira de Letras. Doc. 13.
482
Idem. Doc. 14.
230
Letras, mas o fato é que Eça de Queirós foi escolhido, em sessão realizada no dia 05 de
novembro de 1898, o segundo correspondente estrangeiro da agremiação presidida por
Machado de Assis. O curioso é que eram onze os acadêmicos presentes nessa sessão,
sendo que dez votaram a favor e um se absteve, justamente o Presidente da academia.
Definitivamente, Eça de Queirós nunca esteve entre os autores de cabeceira de Machado
de Assis483.
Após mais de uma década de conflitos com as instituições republicanas, Eduardo
Prado já era um escritor bem conhecido no cenário intelectual brasileiro do fim do
século XIX e do início do século XXI. Os seus textos repercutiram em vários espaços,
inclusive no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; em reunião realizada no dia 23
de julho de 1898, quando já era de conhecimento público que Eduardo Prado seria um
dos quarenta fundadores da Academia Brasileira de Letras, o orador Souza Pitanga
destacou ―o mérito literário e o valor cìvico dos trabalhos de Eduardo Prado, que
evidenciam o estilo do ensaìsta e o rigor do cientista‖ 484. Os elogios ao nosso autor não
pararam por aí; referindo-se especificamente aos tìtulos ―Fastos da Ditadura Militar no
Brasil‖ e ―A Ilusão Americana‖, o orador diz que ―se tratam de obras notáveis sobre a
485
história contemporânea do Brasil‖ . Os comentários favoráveis feitos na reunião de
julho de 1898 não são os únicos indícios que sugerem o prestígio do nosso autor no
instituto. Acompanhar a curta passagem de Eduardo Prado pelo IHGB é importante para
compreendermos a historiografia desenvolvida pelo nosso autor, que é o tema do último
capítulo desta tese.
6.3 - Eduardo Prado no IHGB
483
Ao longo dos anos 1870, os livros de Eça de Queirós repercutiram bastante no Brasil e encontraram
em Machado de Assis o seu principal crítico. Em abril de 1878, foi publicado um artigo no qual o
escritor brasileiro comentava o romance ―O Primo Basìlio‖, recém-lançado em Portugal e um sucesso
imediato no Brasil. Machado de Assis denuncia a superficialidade dos personagens e a pobreza do estilo,
dizendo ―Se o autor, visto que o Realismo também inculca vocação social e apostólica, intentou dar no
seu romance algum ensinamento ou demonstrar com ele alguma tese, força é confessar que o não
conseguiu‖ (p 287). Para Machado de Assis, literatura queirosiana era a principal manifestação em lìngua
portuguesa do realismo radical inaugurado por Zola. ―Crìtico do caráter documental e direto que via na
obra de Eça, Machado mostrava ver nesse cuidado detalhista das descrições a negação da própria
literatura, que guardava, para ele, o caráter imaginativo e poético que lhe fora atribuído pelos
românticos‖(p. 287). Ver PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A realidade como vocação:
literatura e experiência nas últimas décadas do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
484
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 62, parte II, p. 31.
485
Idem.
231
a qualidade dos estudos históricos desenvolvidos por Eduardo Prado. De acordo com o
estatuto vigente, era normal a formação de um grupo de trabalho destinado a examinar
os textos de um autor antes que o convite de associação fosse formalizado. Consta na
ata da reunião realizada no dia 23 de junho de 1899 uma menção ao parecer da
comissão.
O parecer da comissão de trabalhos históricos relativos aos escritos do Dr
Eduardo Paulo da Silva Prado, proposto para sócio correspondente, está redigido
de modo tão decisivo, que à comissão de admissão de sócios nada resta se não
subscrever esse parecer opinando pela pronta aceitação do Dr Eduardo Prado
como membro do nosso instituto486.
232
proclamação da República. As relações entre o IHGB e a República já foram objetos de
importantes estudos. Entre esses, eu destaco o já conhecido trabalho de Ângela de
Castro Gomes e a dissertação de mestrado de Hugo Hruby, que até onde eu sei ainda
não está disponível no mercado editorial. Ambos os trabalhos são fundamentais para a
reflexão que estou desenvolvendo neste capítulo. No entanto, há uma discordância entre
os autores que pode lançar alguma luz sobre o problema da tardia entrada de Eduardo
Prado nos quadros do IHGB: enquanto Ângela de Castro Gomes afirma que o instituto
488
―guardou por razoável tempo um aroma monarquista‖ , Hugo Hruby aponta os
esforços da agremiação para recompor os seus quadros de forma a não criar muitos
constrangimentos com o governo.
O fato de Eduardo Prado somente ter ingressado no IHGB quando a República
navegava em águas mais tranquilas, o que para os governantes civis significava tanto o
silenciamento dos restauradores monarquistas quanto a pacificação política dos
militares jacobinos, somado com o profundo estudo prosopográfico feito por Hugo
Hruby, faz com que eu me incline mais para a interpretação desse autor do que àquela
apresentada por Ângela de Castro Gomes. Como nós já sabemos, Eduardo Prado foi
publicamente conhecido durante uma década como um dos principais inimigos da
República. Portanto, faz algum sentido supor que, a despeito da reconhecida qualidade
dos seus trabalhos, a sua presença em uma agremiação tradicionalmente identificada
com a Monarquia causaria alguns constrangimentos para o instituto, que temia ser alvo
das perseguições daqueles que na época governavam o Brasil.
Há ainda outro elemento que precisa ser levado em contra na análise do ingresso
de Eduardo Prado no IHGB: prevendo que as subvenções governamentais ficariam mais
escassas nos tempos republicanos, a direção do IHGB alterou o estatuto naquilo que se
referia ao ingresso dos novos sócios. Já em agosto de 1890, menos de um ano após a
proclamação da República, o número de sócios efetivos passou de cinquenta para
setenta, sendo os requisitos de ingresso flexibilizados. Também foi criada a categoria
dos ―sócios beneméritos‖, que seria composta por homens ricos dispostos a colaborar
para a manutenção do instituto. Ao longo da década de 1890, de acordo com os estudos
de Hugo Hruby, essa categoria foi ampliada, chegando ao número de sessenta
integrantes em 1900. Eduardo Prado não entrou no instituto para ser um sócio
benemérito, mas certamente o fato dele ser na época o herdeiro de uma das famílias
488
GOMES, Ângela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996. p.
52.
233
mais ricas do Brasil, somado, é claro, à qualidade dos seus estudos históricos, deve ter
contado ao seu favor. Seja como for, o fato é que, em agosto de 1901, o nosso autor
fazia a sua derradeira viagem para assumir o seu assento no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, passando, então, a fazer parte das duas principais instâncias de
consagração intelectual em funcionamento no Brasil. Definitivamente, ele era
plenamente um cidadão da ―República das Letras‖ brasileira.
A cerimônia de posse de Eduardo Prado no IHGB traduz o prestígio que o nosso
autor tinha na cena intelectual brasileira da época. No protocolar discurso de recepção,
Max Fleiuss, então Segundo Secretário do instituto, disse:
Tendes mostrado particular vocação pelos estudos históricos; prossegui animoso
no alto empenho de rigorosa investigação da verdade e justa apreciação dos fatos
que constituem a nossa história e tereis bem servido às letras pátrias 489.
489
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 64, parte II, p. 227.
490
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 64, parte II, p. 239.
234
a República era uma ameaça à obra erguida pela Monarquia e, ainda que o Brasil se
fragmentasse, os serviços que o IHGB, e a própria Monarquia, prestaram jamais seriam
apagados da memória, que é representada pelo nosso autor como a garantia da justiça e
do reconhecimento vindouro. É bastante sintomático que em um texto dedicado ao
elogio do instituto que durante décadas foi responsável pela guarda oficial da história do
Brasil, Prado tenha se adentrado em um exercício de futurologia, articulando, dessa
forma, passado, presente e futuro, no melhor estilo da ―cronotopia moderna‖, para falar
como Hans Ulrich Gumbrecht. O tema da temporalidade moderna é tão fundamental
para a compreensão do conservadorismo de Eduardo Prado que é assunto de um
capítulo específico nesta tese, o oitavo.
No final da citação, Prado deixa claro o seu ―amor pelo passado‖, para utilizar as
palavras de Eça de Queirós. Esse ―amor pelo passado‖ tem importância fundamental no
seu conservadorismo, onde se apresentou sob a forma de uma defesa, quase quixotesca,
das tradições que ele acreditava estarem ameaçadas pela República. Conta Paulo José
Pires Brandão ter ido certa vez, junto com Eduardo Prado, visitar José do Patrocínio na
redação do jornal ―A Cidade do Rio‖. Lá chegando, o anfitrião os levou para uma sala
de fundos para lhes mostrar a sua nova invenção, que nada mais era do que um balão
desenhado a giz no chão. ―Ao despedir-se de Eduardo Prado, observou-lhe o
abolicionista: - ―Filho, larga essa ideia de Monarquia. O Brasil precisa dos teus
serviços. Prado teria respondido, fixando o olhar no risco de giz: ―A Monarquia é o meu
491
balão‖ . O relato serve para mostrar para mostrar como o monarquismo de Eduardo
Prado era vinculado à idealização de um passado que na avaliação do autor seria mais
compatível com a índole brasileira. Essa idealização do passado foi acompanhada da
crítica à temporalidade moderna. Essa é mais uma questão que eu examino na próxima
unidade. Voltando ao discurso de posse.
Somos um povo cada dia mais desnacionalizado e essa casa é uma grade escola
de nacionalismo. Tive, e muito intensa, esta impressão na primeira vez que nela
penetrei, e sempre que transponho a sua velha portada e subo os degraus da sua
escada, feitas de rija madeira brasileira e obra de tosca e sólida carpintaria
colonial. Foi esta casa um convento, e neste fato está um duplo símbolo: o de ter
sido a sociedade brasileira uma obra do catolicismo e do destino ter reservado, a
estas paredes, desde que se ergueram, a sorte de servir de asilo e paz ao estudo,
491
Ver BROCA, Brito. Machado de Assis e a política. São Paulo: Instituto Nacional do Livro, 1983. p.
109.
235
espaço por excelência de intensa comunicação entre os homens devotados às
letras e à história pátria492.
Aqui, Eduardo Prado evoca uma metáfora que muito nos diz daquela que foi a
principal característica dos seus escritos sobre a história do Brasil. O nosso autor tinha
interesse especial pelo período colonial, particularmente pela obra catequética da
Companhia de Jesus. Para Prado, o Brasil era o produto do sucesso do empreendimento
civilizatório português nos trópicos, o que fez dele uma das matrizes da intepretação
historiográfica que seria mais tarde consagrada nos textos de Gilberto Freyre. No final
da citação, o nosso autor, ainda que não de forma explícita, retoma o princípio da
República das Letras, do qual ele já havia falado com Joaquim Nabuco em uma carta
datada de meados da década de 1890 e onde eu encontrei o trecho que serviu como
epígrafe para este capítulo. Todos os elementos da República das Letras estão presentes
na citação: o isolamento em relação aos conflitos do mundo externo, ―asilo‖, nos termos
usados pelo próprio Eduardo Prado, e a interlocução entre os letrados.
Desde a introdução desta tese, eu estou tentando entender o conservadorismo de
Eduardo Prado à luz da sua performance discursiva, especialmente a forma como o
autor combinou elementos do repertório moderno e pré-moderno do pensamento
político ocidental. Esta segunda unidade se insere, portanto, nesse esforço maior, que é
a linha mestra da reflexão que estou desenvolvendo. Por isso, no quarto capítulo, eu
abordei o uso que Eduardo Prado fez dos valores pertencentes ao repertório da tradição
republicana. Já no quinto capítulo, eu estive interessado em compreender o uso de outro
repertório, dessa vez o jusnaturalismo moderno. Não pressuponho a existência de uma
dicotomia radical entre esses repertórios, como se existisse uma cisão explícita entre
antigo e o moderno. O que estou tentando demonstrar é, justamente, o contrário: os
repertórios conceituais antigo e moderno se combinam de modo a dialogarem dentro de
uma mesma tradição, o que não exclui a existência de especificidades capazes de os
diferenciarem.
Neste sexto capítulo, eu me debrucei sobre o cenário letrado luso-brasileiro
finissecular, do qual Eduardo Prado foi um personagem bastante importante. Tendo se
inserido das redes de socialização que entrelaçavam os escritores brasileiros e
portugueses da época, o nosso autor se tornou uma figura conhecida a tal ponto que foi
visto como um interlocutor pela maioria dos seus pares, o que fez com que ele tomasse
contato com novos repertórios. Nesse sentido, para além da combinação entre o antigo e
492
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 64, parte II, p. 239.
236
o moderno, que é, como eu já disse, a linha mestra da argumentação que desenvolvo
nesta tese, esta segunda unidade apresentou, ou ao menos tentou fazê-lo, outro elemento
que considero ser fundamental para a compreensão do conservadorismo do nosso autor:
a sua formação. Por isso, no quarto capítulo, eu dediquei alguma atenção aos primeiros
estudos de Eduardo Prado, o que me levou a examinar o ensino ministrado no
Seminário Diocesano de São Paulo, e no quinto capítulo, eu tive a preocupação de
pensar com algum cuidado os estudos superiores do personagem, o que me fez visitar o
tema do ensino jurídico brasileiro oitocentista.
Por fim, neste sexto capítulo, ao trabalhar com a noção de República das Letras,
eu, ao mesmo tempo, tentei mostrar um dos aspectos da modernidade do
conservadorismo de Eduardo Prado, justamente a sua interlocução com outros
escritores, e a importância dessa interlocução para o seu pensamento político. Como
vimos, temas como o antibacharelismo e o antirrepublicanismo já circulavam pelo
grupo dos ―Vencidos na Vida‖, assim como o nosso autor utilizou os quadros da
Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileira para dar
ainda mais publicidade ao seu proselitismo monarquista, o que se configurou como um
tipo de ação política diferente da agressiva combatividade que até então caracterizava o
seu comportamento político/intelectual. Todas essas questões são retomadas na
próxima, e última unidade, onde eu examino as dimensões epistemológico/políticas do
conservadorismo de Eduardo Prado, a sua crítica à temporalidade moderna e a sua
historiografia.
237
238
Unidade III
239
240
Capítulo 7
Esse empirismo pode ser observador nas duas citações. A primeira foi publicada
na coluna ―Crônicas da Assembleia‖, em 27 janeiro de 1882, quando Prado comentou a
―questão dos contratos de imprensa‖, que tanto atraia a atenção dos Deputados paulistas.
Até o inìcio desse ano, estava vigente o contrato entre o jornal liberal ―A Tribuna
Liberal‖ e a Assembleia Provincial, sendo, exatamente, as discussões a respeito da
renovação do contrato o tema abordado pelo nosso autor na sua coluna. Como fica claro
no trecho, Eduardo Prado ironizou a preocupação dos parlamentares em garantir o
registro dos debates legislativos. O autor caracterizou os discursos dos Deputados como
493
PRADO, Eduardo. ―Correio Paulistano‖. 27 de Janeiro de 1882.
494
PRADO, Eduardo. Viagens. São Paulo. Tipografia Salesiana: 1902, pp. 34-35.
241
―abstrata retórica metafìsica‖, o que, para ele, desqualificava a atuação polìtica dos
parlamentares paulistas. Para Prado, ―[..] Enquanto os nobres Deputados falam, falam e
nada dizem, a vida cotidiana do povo paulista não é considerada uma prioridade pela
representação bacharelesca dessa provìncia‖495496. Argumentação semelhante foi
desenvolvida na segunda citação, que faz parte dos relatos das viagens do autor pela
América Latina. De acordo com ele, a ―enfeitada conversa‖ e o ―estilo bacharelesco‖
dos militares uruguaios comprometiam a eficiência do Exército daquele país.
495
PRADO, Eduardo. ―Correio Paulistano‖. 27 de Janeiro de 1882.
496
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p. 124
242
específicos de uma cultura militar moderna que começou a se estabelecer na Europa
ocidental ao longo do século XIV e ganhou seus contornos mais sólidos na França
revolucionária do final do século XVIII. Portanto, se ao criticar o bacharelismo dos
Deputados paulistas, Prado utilizou certa concepção de conhecimento que nos remete,
em última instância, à antiguidade clássica, ao criticar a indisciplina do Exército
uruguaio, ele mobilizou uma percepção de disciplina militar que é moderna. Nos dois
casos, o fundamento da argumentação é o mesmo: tanto os deputados paulistas como os
militares uruguaios não cumpriam as suas respectivas funções porque se preocupavam
mais com as ―palavras enfeitadas‖ do que com a dimensão prática dos seus ofìcios.
243
dois principais biógrafos do personagem, os já tão citados Sebastião Pagano e Cândido
da Mota Filho, afirmam que, após o golpe de novembro de 1889, Prado teria
abandonado a ―vida de dandy‖ e se lançado à militância política monarquista. Como eu
disse antes, considero ser um tanto exagerada a sugestão de que a trajetória de Prado
possa ser tão rigorosamente dividida em um período pré-republicano apolítico e um
período pós-republicano de intenso engajamento. Já é possível perceber algum
engajamento no final dos anos 1870, quando o jovem Prado era um personagem com
relativo destaque no cenário político paulista.
Esse mal era visto [por Eduardo Prado] no quadro típico da formação brasileira,
onde o bacharelismo conseguira ter uma justificativa ou uma razão de ser. A
Eduardo não podia passar despercebido o diálogo que, de há muito, se
processava no país, entre os coronéis do interior brasileiro e os bacharéis das
cidades. Esse diálogo, que era uma espécie de conversa entre pai e filho,
498
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 16-17.
244
provocara o aparecimento de hábitos negativos, que acabaram por dificultar a
marcha normal da civilização brasileira (...) O bacharel, comprometido pela sua
origem, com a especulação rural existente, procurava, para Eduardo Prado, pelos
partidos políticos e pelas atividades parlamentares, conter a transformação de
tudo, impedir o progresso social do país, a eficácia de sua produção agrícola pela
sofisticaria e pela retórica. Atrás dessa retórica e dessa sofisticaria estavam os
fazendeiros atrasados, incapazes de compreender o valor da mão de obra livre 499.
(Grifos Meus)
499
MOTA, FILHO Cândido. A vida de Eduardo Prado. José Olympia Ed, 1967. p. 153. É importante
destacar que também Gilberto Freyre, quase cinquenta anos depois de Eduardo Prado, associou o
bacharelismo brasileiro ao patrimonialismo rural. Para o ensaìsta pernambucano, ―desde os últimos
tempos coloniais que o bacharel e o mulato vinham se constituindo em elementos de diferenciação, dentro
de uma sociedade rural e patriarcal que procurava integrar-se pelo equilíbrio, e mais do que isso, pelo que
os sociólogos modernos chamam acomodação, entre dois grandes antagonismos: o senhor e o escravo. A
casa-grande, completada pela senzala, representou, entre nós, verdadeira maravilha de acomodação que o
antagonismo entre o sobrado e o mocambo veio quebrar ou perturbar‖. Ver FREYRE, Gilberto. Sobrados
e Mocambos. São Paulo: Global, 2004. p. 711.
500
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: Ed. Brasa, 1980. p. 172. O autor acreditava que o
bacharelismo era um dos alicerces do caráter nacional brasileiro, sendo ―a sua origem relativa aos tempos
coloniais‖. No geral, Prado sempre foi muito elogioso à colonização portuguesa, sendo essa referência à
origem colonial do bacharelismo uma das poucas vezes em que ele sugeriu a existência de uma herança
negativa proveniente da ação colonial lusitana. A referência é rápida e sem maior aprofundamento, o que
a torna periférica na economia do texto. Prado estava mais preocupado em apontar os efeitos deletérios do
bacharelismo do que identificar as suas origens. Ainda que ele tenha, inúmeras vezes, destacado esses
efeitos, chegou, no livro ―A Ilusão Americana‖, a atenuar o poder corruptor do bacharelismo, ao dizer que
―O espírito americano é um espírito de violência; o espírito latino, transmitido aos brasileiros, mais ou
menos deturpado através dos séculos e dos amálgamas diversos do iberismo, é um espírito jurídico que
vai, é verdade, à pulhice do bacharelismo, mas conserva sempre um certo respeito pela vida humana‖(p.
172). Ou seja, para Eduardo Prado, somente o ―espìrito de violência‖ dos EUA era pior do que o
bacharelismo jurídico latino do qual o Brasil era herdeiro.
245
como podemos perceber em algumas das suas ―Crônicas da Assembleia‖. Em abril de
1880, a Assembleia legislativa paulista discutia o projeto de reforma educacional
proposto pelo Deputado Inglês de Souza, vinculado ao Partido Liberal e, portanto,
adversário político de Eduardo Prado. Como já podemos esperar, Prado criticou o
projeto. Porém, estou interessando, especialmente, na forma como ele, mais uma vez,
ironizou os debates travados entre os parlamentares.
501
PRADO, Eduardo. ―Correio Paulistano‖. 08 de abril de 1880.
502
Idem.
503
CARVALHO, José Murilo de. A história intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura.
Topoi. Rio de Janeiro, n. 01. pp. 123-152. p. 127.
246
usada para justificar posições divergentes. Podia acontecer também que a citação
fosse feita para sancionar um determinado discurso que, no entanto, seria
abandonado na hora do voto sobre questões práticas504.
Nesse sentido, José Murilo de Carvalho nos apresenta uma argumentação muito
parecida com a de Eduardo Prado. Para ambos os autores, as referências internacionais
eram mobilizadas artificialmente pelos oradores brasileiros, que as usavam como
argumento de autoridade. Em vários aspectos, as interpretações sistematizadas por José
Murilo de Carvalho nos seus estudos a respeito da história brasileira oitocentista são
semelhantes àquelas que foram desenvolvidas por Eduardo Prado no final do século
XIX. Tal semelhança, somada ao fato de que, na efeméride ao centenário da morte de
Eduardo Prado, realizada na sede da Academia Brasileira de Letras em agosto de 2001,
José Murilo de Carvalho ter discursado em homenagem à obra do escritor paulista,
sugere o seu contato com os textos do nosso autor. Os vínculos entre a historiografia de
José Murilo de Carvalho e a interpretação do Brasil desenvolvida por Eduardo Prado
ainda não foram explorados nos estudos dedicados à história da historiografia brasileira.
Não é meu objetivo fazê-lo, pelo menos não aqui, nesta tese.
Estou interessado, especialmente, em entender melhor o que Prado queria dizer
quando caracterizou a citação de referências internacionais pelos oradores brasileiros
oitocentistas como um exercício de autolegitimação baseado no uso de uma autoridade
consagrada, um ―floreio de argumentação sem a menor utilidade‖. Em um texto escrito
nove anos depois da crônica publicada no ―Correio Paulistano‖, Prado voltou a abordar
as diferenças entre a boa e a má retórica.
O bom gosto retórico, a própria e simples clareza da língua, são coisas adversas à
pompa dos ditirambos bacharelescos, o apego aos autores estrangeiros ou à fúria
das invectivas, muito eloquentes em nossa terra, mas impossíveis no meio
europeu, sempre existente na proporção justa entre os fatos e a linguagem que os
aprecia505.
504
Idem. p. 128.
505
PRADO, Eduardo. ―Jornal do Comércio‖. 27 de novembro de 1889. (Coletâneas, Vol 1, p. 237).
506
GENETTE, Gérard. A retórica restrita. In: COHEN, Jean (org). Pesquisas de retórica. Petrópolis:
Vozes, 1975. pp. 16-17. Segundo o autor, o classicismo francês do século XVII, criou um cânone retórico
247
na crônica de 1880 como no texto publicado pelo ―Jornal do Comércio‖ em 1889, a
mesma crítica ao artificialismo retórico moderno e o mesmo elogio ao exercício retórico
fundamentado na clareza e na ―proporção justa entre os fatos e a linguagem‖. Em outras
palavras: para Prado, a ―retórica bacharelesca‖ brasileira era vazia porque estava mais
preocupada com a forma do discurso do que com a sua capacidade em compreender e
modificar a realidade. Por isso, acredito que, para o nosso autor, a ―boa retórica‖ seria
aquela na qual as técnicas são aplicadas ―segundo as medidas do cálculo racional de
uma técnica específica que é mobilizada no ato contingente da invenção 507‖, para
utilizar as palavras de Robert Klein. Essa perspectiva contingencial508 de retórica não é
nada moderna509.
A quem fitam as pessoas, atônitas, quando ele fala? A quem aplaudem? A quem
tomam, diria eu, por um deus entre os homens? – Os que falam com nitidez, de
maneira explícita e profusa, cujas palavras e argumentos são apresentados com
completa clareza e que, ao proferirem um discurso, são capazes de atingir uma
espécie de rimo, falando da maneira que chamo de enfeitada 510.
Todos os genera de discurso público que empregamos são não apenas variáveis
em si, mas tem de ser accommodata – adaptados ou acomodados – à
compreensão popular e ao vulgo em geral, sendo preciso evitar qualquer tipo de
enfeite exagerado511.
baseado em poetas, como Homero e Virgílio, o que fez com que o pensamento moderno diminuísse a
importância dessa tradição, passando a considera-la na perspectiva puramente estética.
507
KLEIN, Robert. La théorie de l’expression figurée dans les traités italiens sur les imprese, 1555-1612.
In: ___. La forme et l’intelligible. Paris: Gallimard, 1970. p. 136.
508
A perspectiva contingencial da retórica já foi destacada por importantes estudiosos do tema. Por
exemplo, segundo Galen Strawson, a unidade básica da retórica não é a palavra, mas sim o enunciado,
entendo enunciado por ―a relação linguìstica estabelecida num ato de fala entre uma caracterização (ou
um predicado) e uma identificação (ou a situação e a posição de um sujeito lógico)‖. Portanto, o
enunciado somente existe na contigencialidade da experiência, o que faz com que a instituição retórica
deva ser vista mais como um conjunto de procedimentos orientação à acomodação às circunstâncias
práticas do que um sistema fechado e universalmente aplicável sob quaisquer circunstâncias. Ver
STRAWSON, Galen. Mental Reality. Nova York: Library of Congress, 1994. A reflexão desenvolvida
por Paul Ricoeur é semelhante. O filósofo francês lembra a fórmula do ato de fala, que, segundo ele, é o
fundamento da instituição retórica latina: ―Alguém fala alguma coisa sobre alguma coisa para alguém‖. A
partir dessa fórmula básica, Ricoeur aponta três características da instituição retórica, em todas elas sendo
a contingencialidade um elemento fundamental: ―1. ―Alguém fala‖: um ato contingente de enunciação
constitui um processo de identificação gramatical e lógica que inventa a ‗primeira pessoa‘ e o tempo da
sua fala; 2. ―alguma coisa sobre alguma coisa‖: o ato contingente que inventa a enunciação do sujeito
lógico e gramatical produz um enunciado, que relaciona um sentido a uma referência e a uma
significação; 3. ―para alguém‖: o ato de enunciação que constitui a 1ª pessoa e o enunciado constitui
simultaneamente o destinatário, ‗2ª pessoa‘‖. Ver RICOEUR, Paul. Metáfora Viva. Rio de Janeiro: Ed.
Loyola, 1996. p. 93.
509
A dimensão circunstancial da instituição retórica já pode ser percebida com alguma clareza nos textos
de Aristóteles, que define a retórica como ―a faculdade de descobrir especulativamente aquilo que, em
cada caso, pode ser adequado para persuadir‖. Ver ARISTÓTELES. Organon IV. Les réfutations
sophistiques. Trad. et notes par J. Tricot. Paris: Librarie Philosophique Vrin, 1939. P. 78.
510
QUINTILIANO. Instituta Oratoria. Michigan: Michigan Univesty Press, 1990. pp. 210.
511
CÍCERON. De oratore. Madri: Editorial Gregos, 2002. p. 42.
248
As citações foram extraídas de dois dos principais manuais da tradição retórica
latina, ambos pertencentes à biblioteca de Eduardo Prado, cujo catálogo, como já
comentei em outros momentos, foi publicado em 1916512. Os textos foram classificados
com a rubrica ―Linguìstica e Literatura‖. Trata-se do ―Instituta Oratoria‖, de
Quintiliano, e o ―De Oratore”, de Cícero. Em ambos os textos, existe o esforço de
conciliar a precisão retórica, que é definida como ―clareza‖ por Quintiliano e
―acomodada‖ por Cìcero, com o adequado enfeitamento da palavra. Para os teóricos, o
orador precisa ser capaz de falar com clareza e com pertinência, sem que ―haja nada que
pareça impróprio ou supérfluo513‖. Quando Prado define a ―retórica bacharelesca‖
brasileira como ―imprópria‖, ―superficial‖ e ―inútil‖, ele parece estar querendo dizer que
aos nossos oradores do século XIX faltava a capacidade de falar com clareza e de forma
adequada às circunstâncias, para que, de fato, o discurso fosse eficaz na compreensão e
na resolução dos problemas apresentados pela experiência.
Essa reivindicação de clareza e objetividade, entretanto, não fez com que Prado
tenha deixado de reconhecer a importância do embelezamento da palavra. Em um texto
publicado, em 1897, na coluna ―Livros Novos‖, da Revista Moderna, onde Prado
resenhava os livros recém-publicados no Brasil e em Portugal, o autor disse que
O dom de bem falar, quando é resultante do dom de bem compreender, e quando
o falar sempre com elegância, é a expressão elevada e instintiva de um sentir
sempre nobre – teve, em todos os tempos, e terá sempre, uma influência
avassaladora, enquanto os homens viverem em sociedade514.
512
Catalogue de la bibliotèche de Eduardo Prado. São Paulo. Typ. Brasil de Rotschilld e Cia, 1916.
513
QUINTILIANO. Instituta Oratoria. Michigan: Michigan Univesty Press, 1990. pp. 213.
514
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 05 de outubro de 1897. (Coletâneas, Vol 1, p. 267).
515
Idem.
249
capacidade do discurso em ―abordar rigorosamente a realidade, sem maiores voos
fantasiosos‖ 516.
Como eu já disse, em nenhum momento das suas crìticas ao ―palavrório
bacharelesco‖ brasileiro, Prado citou as referências que estavam no seu horizonte de
―boa retórica‖. Porém, penso não ser um absurdo sugerir que ele tinha em mente,
justamente, as recomendações apresentadas pelos retóricos latinos, como Cícero e
Quintiliano. Por exemplo, ao comentar o romance ―Passionário‖, do escritor
pernambucano Theotonio Freire, o nosso autor disse que ―o possìvel mérito do romance
se dissipa no hercúleo esforço do escritor em enfeitar demasiadamente a sua linguagem,
o que traz grande prejuìzo à clareza da estória‖517. Novamente, o problema, para Prado,
não parece estar, em si, no embelezamento da palavra, mas no excesso, no exagero, o
que o aproxima da noção ornato, que é bastante valorizada pela tradição latina, sendo
parte constitutiva da elocutio, que junto com a inventio e com a dispositio, forma o
conjunto dos procedimentos constitutivo da instituição retórica518.
Para Quentin Skinner, a elocutio foi o procedimento mais abordado tanto nos
manuais de retórica latinos como nos renascentistas, sendo considerada ―o poder do
519
orador de despertar as emoções da plateia‖ . Ao examinar importantes tratados dessa
tradição retórica, entre eles os já citados ―Instituta Oratoria” e ―De oratore”, Skinner
afirma que esses autores definiam o ornato como um ―equipamento para a batalha‖, que
deveria ser usado com ―adequação‖ pelo orador. Portanto, o vir civillis, de acordo com
os teóricos latinos da retórica, deveria ser capaz de adequar a escolha das palavras à
circunstância do discurso, o que envolve, entre outras coisas, a natureza do assunto
abordado e as características do público para o qual se fala.
Em nenhum momento, Prado utilizou o termo ―ornato” para criticar o estilo
―pomposo‖ e ―superficial‖ dos oradores e escritores brasileiros, mas me arrisco a propor
que era algo parecido com essa concepção de embelezamento discursivo, discreto e
regrado, que ele tinha em mente quando definiu como requisitos para a ―boa e útil
516
Idem.
517
Idem. p. 272.
518
HANSEN, João Adolfo. Instituição retórica, técnica retórica e discurso. matraga, rio de janeiro, v.20,
n.33, jul/dez. 2013. Para o autor, a inventio era o exercício de encontrar os lugares comuns adequados à
circunstancialidade do discurso, o que significa uma importante diferença em relação à noção moderna de
originalidade. Já dispositio consiste no ordenamento do discurso, ou seja, na escolha do gênero (se prosa
ou verso) no qual o orador dá forma à sua fala, sendo necessário adequar o gênero à circunstância da
argumentação.
519
SKINNER, Quentin. Razão e República na filosofia de Hobbes. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 92.
250
retórica‖ a clareza, o tratamento empìrico da realidade e a elegância. Em algum
momento, ele deve ter folheado os seus exemplares de Cícero e Quintiliano.
O apelo empírico que caracterizou as críticas de Eduardo Prado ao procedimento
retórico que ele afirmou ser típico do bacharelismo brasileiro, pode ser encontrado,
também, nos textos de outros importantes autores que, entre o final do século XIX e
meados do século XX, se empenharam em inventariar os infortúnios da nação. Além da
já citada crìtica de Oliveira Viana ao ―gosto nacional pelas autoridades estrangeiras‖,
destaco aquele que é um dos principais representantes da vertente autoritária do nosso
conservadorismo: Alberto Torres. Escrevendo na primeira década do século XX, Torres
criticou o bacharelismo brasileiro de forma bem semelhante àquela que Eduardo Prado
fizera poucos anos antes e como Oliveira Viana e Gilberto Freyre fariam alguns anos
depois.
Os problemas da terra, da sociedade, da produção, da povoação, da viação e da
unidade econômica e social ficaram entregues ao acaso; o Estado só os olhava
com os olhos do fisco; e os homens públicos, eram simples bacharéis – doutos
parlamentares e criteriosos administradores – não eram políticos nem estadistas;
bordavam, sobre a realidade da nossa vida, uma teia de discussões abstratas ou
vazias520.
520
TORRES, Alberto. A organização nacional. Revista Trimestral do Instituto Histórico do Brasil. N° 11,
3° trimestre de 1908.
521
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Global, 2004. p. 720.
251
dela, promover reformas efetivas, mas seguras, no sentido de veicular o
progresso nacional522.
Como pode o pensamento político brasileiro ser, ao mesmo tempo, marcado pela
hegemonia da perspectiva empírico/realista conservadora, como afirma Christian Linch,
e dado à abstração bacharelesca, como sustentam Eduardo Prado, Alberto Torres,
Oliveira Viana e Gilberto Freyre? Será que os dois repertórios podem ser igualmente
fundacionais do pensamento político brasileiro, sendo o primeiro característico dos
esforços de compreensão e de crítica da nossa cultura política e o segundo o fundamento
dessa própria cultura política? Não desejo apresentar respostas para essas perguntas,
mas sim demonstrar que o apelo empírico/realista que há pouco identifiquei nos textos
de importantes escritores brasileiros, incluindo os de Eduardo Prado, pode ser apontado
como uma das características definidoras do pensamento conservador moderno.
Eu já comentei que o conservadorismo se estabeleceu como ideologia política a
partir dos impactos da Revolução Francesa na cultura política ocidental. Esse é o tema
mais abordado pelos autores que, desde o final do século XVIII, estabeleceram os
elementos fundamentais da agenda político/intelectual conservadora.
[Para um conservador], nada é mais distante dos acontecimentos reais que o
sistema racional fechado. Em determinadas circunstâncias, nada contém um
impulso mais irracional do que uma visão de mundo intelectualista e totalmente
autossuficiente523.
522
LYNCH, Christian Edward Cyril. Quando o regresso é progresso: a formação do pensamento
conservador saquarema e de seu modelo político (1834-1851). In: NUNES, Gabriela; BOTELHO, André.
Revisão do pensamento conservador: ideias e política no Brasil. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010. pp. 23-54.
p. 26.
523
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p.242.
252
instinto do conhecimento adquirido através da experiência consciente ou
inconsciente e das experiências e erros vulgares524.
524
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. pp. 60-61
525
TOCQUEVILLE, Alexis. O antigo regime e a revolução. Ed. UNB: Brasília: 1997. p. 82.
526
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 32.
527
De acordo com o catálogo, Prado, de Tocqueville, tinha uma edição, de 1874, do ―O Antigo Regime e
a Revolução‖, uma de 1878 do ―A Democracia na América‖, ambas em lìngua francesa. Já de Burke,
consta o ―Considerações sobre a Revolução Inglesa‖, de 1881, em lìngua inglesa.
253
carteira, fundando brancos; doutores, com uma sonda, capitaneando navios;
doutores, com um apito, dirigindo a polícia; doutores, com uma lira, soltando
carnes; doutores, com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças,
ministrando drogas, doutores, sem coisa alguma, governando o Estado.... Uma
tão desproporcionada legião de doutores envolve todo do Brasil numa atmosfera
de doutorice528.
528
QUEIRÓS, Eça. Carta a Eduardo Prado. São Paulo: Ateliê Editorial, 1982. p. 21.
529
MOTA, Maria Aparecida Rezende. Diálogos possíveis na periferia da civilização: Eduardo Prado e
Eça de Queirós. In: HOMEM, Amadeu Carvalho; SILVA, Armando Malheiro. ISAIA, Arthur Cesar. A
República no Brasil e em Portugal (1889-1910). Uberlândia: Ed UFU, 2007. pp. 35-53. p. 41.
530
QUEIRÓS, Eça. Carta a Eduardo Prado. São Paulo: Ateliê Editorial, 1982. p. 22.
254
falam de assuntos polìticos a todo momento‖531. O argumento é rigorosamente o mesmo
que Prado mobilizaria pouco tempo depois, no seu esforço de compreender a extinção
da Monarquia.
A carta de Eça de Queirós sugere, portanto, que o nosso autor não foi tão
surpreendido assim com a notícia da proclamação da República, como disseram os seus
dois biógrafos. Não à toa, foi, exatamente, na ―Revista de Portugal‖, editada por Eça de
Queirós, onde Eduardo Prado publicou as suas primeiras impressões a respeito dos
acontecimentos brasileiros: os artigos que mais que mais tarde seriam reunidos no livro
―Fastos da Ditadura Militar Brasileira‖. Nesses textos, o autor, ainda no calor dos
acontecimentos, afirmou que comportamento do Exército era o principal elemento
responsável pelo fim da Monarquia. Ao fazê-lo, Prado mobilizou valores relativos à
cultura militar moderna, como, por exemplo, a definição da disciplina e da obediência
como requisitos fundamentais para um Exército profissional.
7.2 - As críticas ao militarismo político: a negação do antigo e o elogio ao moderno
531
Idem. p. 23.
532
MOTA, FILHO Cândido . A vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: José Olympio Ed, 1967. p. 203.
533
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed. O Cetro, 1967. p. 89-90.
255
frustrou o amigo brasileiro e jamais escreveu o tão aguardado livro ―Brasil‖, exemplo
que não foi seguido por Eça de Queirós, que escreveu, em 1887, um ensaio a respeito do
país, que, como já sabemos, teve a forma de uma carta destinada a Eduardo Prado.
Ainda em abril de 1888, o jornal português ―Correio Mercantil‖ publicou um pequeno
artigo escrito pelo nosso autor, um texto intitulado ―Destinos polìticos do Brasil‖.
Esse texto quase não atraiu a atenção dos estudiosos que, desde a primeira
década do século XX, se debruçaram sobre a trajetória político/intelectual de Eduardo
Prado. Talvez, por isso, tenha se fortalecido a percepção de que o autor recebeu com
surpresa a notícia da Proclamação da República, evento que teria sido o responsável
pelo fim da sua apatia política e do seu desinteresse pelas questões nacionais. José
Honório Rodrigues foi um dos poucos intérpretes a chamarem atenção para esse texto,
dizendo que Prado desejava
534
PRADO, Eduardo. Jornal ―Correio Português‖. Abril de 1888.
535
RODRIGUES, José Honório. A História da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional: 1973, p. 74.
536
A ―Revista de Portugal‖ foi um dos principais empreendimentos literários de Eça de Queirós, já tendo
sido objeto de estudos que se debruçaram sobre a trajetória desse romancista português. Para Miranda
Andrade, a publicação ―chegou a ser a expressão mais elevada da intelectualidade portuguesa. O seu alto
nível cultural – e não se faz uma afirmação meramente retórica – deu-lhe foros de categorizada revista
256
primeiro de uma série de seis artigos que tiveram grande repercussão537, no Brasil e na
Europa, e que se tornariam as mais importantes páginas do pensamento político
brasileiro restaurador, fazendo de Eduardo Prado o principal inimigo da imprensa
republicana brasileira538.
europeia‖. O autor afirma que o objetivo de Eça de Queirós era ―projetar na Europa as produções
literárias portuguesas, as obras artísticas, o desenvolvimento científico, o pensamento nacional, enfim sua
contribuição cultural ao debate europeu‖. A Revista de Portugal circulou entre julho de 1889 e maio de
1892. Ver ANDRADE, Miranda. Eça de Queiroz e a Revista de Portugal. 1 ed. Revista Ocidente: Lisboa,
1984. p. 26.
537
Os artigos dos ―Fastos‖ tiveram grande repercussão, sendo traduzidos e publicados em jornais
alemães, ingleses e franceses. No Brasil, os textos circularam amplamente pelas províncias, o que fez com
que o governo da República tenha enviado o jornalista Eduardo Salomonde à Europa para tentar rebater
as críticas de Eduardo Prado. Era um momento no qual a jovem República ainda buscava o
reconhecimento internacional e, por isso, era necessário defender a imagem do novo Regime. O jornal ―A
República Portuguesa‖ foi o principal espaço utilizado por Salomonde na sua defesa, contando para isso
com o ajuda do publicista português José Pereira de Sampaio, o Bruno, que foi um dos principais
adversários que Eduardo Prado enfrentou na sua campanha internacional contra a República. Ainda neste
capítulo, eu examino os embates entre os dois.
538
Para a historiadora Maria de Lourdes Mônaco Janotti, as discussões provocadas pelos textos de
Eduardo Prado que foram publicados na ―Revista de Portugal‖ representaram o primeiro grande
constrangimento para as novas instituições. Segundo a autora, ―as ideias de Eduardo Prado serviram
como uma plataforma da base ideológica do grupo em formação. Conseguindo denunciar escândalos,
sobre membros do governo, militares banqueiros e comerciantes, e também comprovar com fatos as
violações das liberdades públicas e privadas, seus artigos constituíram-se em uma sistematização do
discurso monarquista em um primeiro momento‖ (p. 34). A autora afirma, também, que os veìculos da
imprensa republicana se esforçaram em desqualificar as crìticas de Prado, atacando a ―Revista de
Portugal‖ por ―por veicular, no exterior, uma visão mìope e detratora da realidade nacional‖(p.35). Ver
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da república. São Paulo: Editora Brasiliense,
1986.
539
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 2.
257
certa concepção antiga de soldado, justamente aquela que foi delineada por Aristóteles
no tratado ―Ética a Nicômaco‖. Nessa negação, Prado defendeu a cultura militar
moderna, baseada na disciplina, na obediência e na despolitização das forças armadas,
valores que são representados pela noção de ―soldado profissional‖. O nosso autor,
portanto, transitou muito bem entre as tradições antiga e moderna do pensamento
político ocidental, sabendo adequar cada uma delas às demandas da sua argumentação.
540
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 26.
541
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 25.
258
O autor divide, portanto, os oficiais do Exército brasileiro em dois tipos: o velho,
que tinha como modelo o soldado especializado na técnica da guerra, que lutou pela
pátria nos campos paraguaios, e o novo, que teria perdido o interesse pelos assuntos
práticos da profissão das armas e se tornado um bacharel dado às especulações teóricas.
Para Prado, Benjamin Constant foi o modelo tìpico desse ―bacharel de fardas‖, o grande
responsável pela corrupção do Exército brasileiro com os pronunciamentos políticos:
―Benjamin Constant corrompeu a inteligência da mocidade ensinando-lhe a doutrina
endeusadora da tirania, que se chama positivismo‖542. As críticas de Eduardo Prado a
Benjamin Constant ficaram bem explícitas na análise que o autor fez a respeito do
projeto de reforma do ensino militar, que foi apresentado por Constant em abril de
1890. Definindo o projeto como um ―preâmbulo humanitário‖, Prado o caracterizou
como ―uma coletânea de ciências inúteis, que mostra como o seu redator não tolera os
militares que se contentam com as glórias puras de sua nobilìssima profissão‖543.
Acredito que os textos dos ―Fastos‖ não devem ser lidos na perspectiva de uma
manifestação antimilitar, mas sim como um exercício de interpretação que apontou a
politização do exército, após o final da Guerra do Paraguai, como o principal elemento
de crise da Monarquia. Porém, ainda que estivesse falando no calor dos acontecimentos
e comprometido com o projeto da restauração monárquica, Prado teve o cuidado de não
fundamentar a sua análise da crise política da década de 1880 em apenas um elemento.
Para ele, o militarismo político pode ser explicado, também, pela influência perniciosa
de Benjamin Constant e do positivismo, mas não só. No diagnóstico do autor,
542
PRADO, Eduardo. Jornal ―A Bomba‖. 09 de novembro de 1894.
543
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 108.
544
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 123.
545
PRADO, Eduardo. Fastos da ditadura militar brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 23.
259
homem‖. Na citação, ainda que não tenha se aprofundado nessa discussão, Prado, ao
novamente criticar o bacharelismo brasileiro, parece ter apontado para outro problema
do comportamento político/intelectual bacharelesco, algo que não se restringe, apenas,
ao desapego às condições práticas da existência: a importância, considerada inadequada
pelo autor, atribuída à filosofia moderna, especialmente ao princípio do Direito Natural.
No quinto capítulo desta tese, ao examinar parte dos escritos de juventude de Eduardo
Prado, eu demonstrei como ele, no início dos anos 1880, mobilizou valores pertencentes
ao repertório do Direito Natural, o que seria, de acordo com a minha interpretação, um
elemento de dissonância da performance político/intelectual do jovem Eduardo Prado
em relação ao valores do conservadorismo moderno. Contudo, dez anos depois, o autor
se tornou, tal como os principais escritores conservadores, um opositor ferrenho à
doutrina do Direito Natural e da filosofia das luzes, o que, nas especificidades de sua
atuação antirrepublicana, se traduziu na crìtica que ele fez ao ―idealismo jurìdico‖ dos
primeiros legisladores da República brasileira. Examino essa crítica com mais cuidado
na próxima seção. Aqui, quero continuar explorando a reflexão de Prado a respeito do
militarismo político.
Para o nosso autor, o tão nefasto militarismo político pode ser explicado,
também, pela influência do clima e pelo próprio temperamento ―bacharelesco‖ do
Imperador D. Pedro II. Naquilo que se refere à associação do bacharelismo militar ao
clima, Prado destaca os efeitos deletérios da natureza sobre a formação do caráter do
brasileiro e aponta para aquela que, pouco tempo depois, se tornaria a grande
característica da sua interpretação do Brasil: a definição da natureza como um obstáculo
à implantação da civilização nos trópicos, o que valoriza, ainda mais, ação colonial
portuguesa, e católica, na América. Essa interpretação teve eco na produção ensaística
que na primeira metade do século XX se debruçou sobre o problema da nacionalidade
546
PRADO, Eduardo. Fastos da ditadura militar brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 26.
547
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 26.
260
brasileira. Remeto-me, aqui, especialmente, aos textos de Gilberto Freyre. No último
capítulo desta tese, onde estudo a historiografia produzida por Eduardo Prado, eu
examino melhor esse aspecto do seu pensamento conservador.
Até mesmo o Imperador D. Pedro II, a quem Eduardo Prado tanto estimava, foi
responsabilizado pela grande mal que teria sido a politização do exército. O autor
definiu o Monarca como o ―primeiro dos bacharéis‖, como o ―Rei Civil que se
preocupou mais em ler os últimos compêndios franceses do que enxergar os reais riscos
que ameaçavam o seu trono‖. Portanto, a extinção da Monarquia se explicaria, também,
segundo Prado, pelo ―espìrito bacharelesco‖ do próprio Imperador, que ―com seu
pacifismo civilista‖ teria transformado o Exército em uma instituição de ―formação de
bacharéis‖, quando deveria ser ―uma corporação disciplinada, técnica e obediente‖. Esse
argumento teve eco na historiografia brasileira, o que torna Eduardo Prado uma das
principais matrizes para os estudos que, até os nossos dias, se debruçaram sobre o
problema da crise da Monarquia. Por exemplo, Gilberto Freyre, novamente, me parece
ser um dos principais herdeiros de Eduardo Prado, autor que ele mesmo definiu como
548
―um dos mais influentes publicistas brasileiros do final do século XIX‖ . Em
―Sobrados e Mocambos‖, o ensaìsta pernambucano dedicou um capìtulo ao estudo do
bacharelismo brasileiro, afirmando que ―A ascensão dos bacharéis brancos se fez
rapidamente no meio político, em particular, como no social em geral. (...) Mas foi com
Pedro II que a nova mística – a do bacharel moço- como que se sistematizou. (...)
549
porque ninguém foi mais bacharel nem mais doutor neste paìs que D. Pedro II‖ .
Também ainda não foi devidamente estudada a importância dos textos de Eduardo
Prado para a interpretação do Brasil desenvolvida por Gilberto Freyre.
A sugestão de Eduardo Prado de que a politização e a bacharelização do
Exército foram as principais causas da proclamação da República vem sendo
desdobrada por diversos estudiosos que, posteriormente, se interessaram sobre o tema.
Entre esses autores, José Murilo de Carvalho, como eu comentei antes, parece ter sido
aquele que mais se apropriou das hipóteses que Eduardo Prado desenvolveu na década
de 1890.
548
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. São Paulo: Ed. Global, 2004. p. 314.
549
Idem. p. 713.
261
das revistas publicadas pelos alunos denunciam a predominância de um ambiente
muito distante do que seria de esperar numa instituição destinada a preparar
técnicos em fazer guerra550.
O tema foi desenvolvido, ainda, por outros autores que discutiram o problema da
proclamação da República. Para Celso Castro, por exemplo, à exceção de Deodoro da
Fonseca, ―os oficiais que participaram ativamente do golpe republicano eram, em
grande parte, jovens oficiais de patentes inferiores (...)‖, militares que, em sua maioria,
―vinham dos chamados ―corpos cientìficos‖ do Exército‖ 552. Ao situar os conflitos entre
os oficiais do Exército e os políticos civis da década de 1880 no conjunto mais amplo da
discussão a respeito da relação entre as forças armadas e a política, o que, para o autor, é
a principal discussão da cultura militar moderna, Celso Castro aponta para uma questão
que é fundamental para o argumento que desenvolvo neste capítulo. Antes de
desenvolver melhor essa reflexão, eu gostaria, ainda, de chamar atenção para os estudos
de Vitor Izecksohn, Renato Lemos e Frank MacCam, pois todos esses autores também
podem ser considerados, em alguma medida, herdeiros da análise de Eduardo Prado.
550
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005. pp. 24-25.
551
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005. pp. 26-27.
552
Celso Castro. Os militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar ed, 1995. pp. 08-09.
262
553
a nação‖ . Nesse sentido, o sentimento de grupo típico das forças armadas teria se
tornado ainda mais forte em virtude dos vínculos de camaradagem forjados nos campos
paraguaios, o que, segundos autores, fez com que a participação dos oficiais do Exército
na crise política tenha sido motivada, sobretudo, por um sentimento corporativista.
Eduardo Prado não atribuiu maior importância a esse corporativismo, pois, para ele,
como já sabemos, o principal elemento causador da crise política que pôs fim à
Monarquia foi a politização do Exército, que é resultado da influência do positivismo.
Essa crescente politização é destacada, também, por Renato Lemos, que aponta para
algo que passou despercebido por Eduardo Prado: em 1881, na ocasião das primeiras
eleições diretas da história do Brasil, dois militares se apresentaram como candidatos a
um assento na Câmara dos Deputados.
Ainda que as candidaturas dos dois militares tenham sido derrotadas, de acordo
com a interpretação de Renato Lemos, elas traduziram um novo perfil de
comportamento político do Exército, um comportamento baseado na pretensão à
intervenção política institucional, o que teria se materializado na ocasião do golpe
553
Ver Vitor Izecksohn. O cerne da discórdia: a Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército
Brasileiro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1997. p.80.
554
LEMOS, Renato. A alternativa republicana e o fim da monarquia. In: SALLES, Ricardo;
GRINBERG, Keila. O Brasil Imperial. (Vol.III). Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2009. p. 420.
263
republicano de novembro de 1889. Também o historiador norte-americano Frank
MacCam, que é um importante estudioso da história militar brasileira, diagnosticou a
crescente politização do exército na década de 1880.
264
realidade, a valorização do conhecimento prático em detrimento do teórico, o que, como
estou tentando demonstrar neste capítulo, é um argumento típico do repertório do
conservadorismo moderno.
Nas duas citações, Prado fundamenta a sua argumentação em valores que são
característicos de uma concepção moderna de forças armadas, de acordo com a qual o
Exército deveria estar compromissado com a defesa da soberania nacional e formado
por homens recrutados na sociedade civil, profissionalizados e subordinados ao Estado.
Esse conceito moderno de Exército fica muito claro na primeira citação, quando o nosso
autor utiliza a palavra ―civilização‖ para sustentar a sua crìtica ao militarismo polìtico.
Para Eduardo Prado, o Exército de um paìs ―civilizado‖ precisa ser completamente
despolitizado, sendo sua obediência ao governo civil incondicional. Quando, por
ventura, o Exército não atende aos requisitos da obediência e da disciplina, os resultados
podem ser catastróficos, como, por exemplo, na guerra entre Chile e Peru561. Como já
sabemos, no livro ―A Ilusão Americana‖, Prado examinou com algum cuidado a história
558
Entre textos escritos por Aristóteles e por comentadores da obra do filósofo, Prado adquiriu cerca
setenta tìtulos, entre esses o ―Ética a Nicômaco‖, que é analisado neste capìtulo. Os textos foram
organizados sob a rubrica ―Filosofia‖.
559
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 112.
560
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: Ed. Brasa, 1980. p. 86.
561
Entre 1879 e 1883, Chile e Peru se confrontaram na ―Guerra do Pacìfico‖, conflito que Prado
examinou com cuidado no livro ―A Ilusão Americana‖. O motivo do conflito, entre outras coisas, pode
ser situada na disputa por recursos naturais e territórios.
265
das relações diplomáticas entre os países americanos, sendo o conflito entre os chilenos
e peruanos um dos principais exemplos que ele utilizou para questionar o princípio da
―fraternidade americana‖, que era um dos argumentos utilizados pelos propagandistas
da República para justificar a mudança no regime político brasileiro.
Temos, aqui, pelo menos, duas questões que podem ser lidas à luz das diferenças
entre os repertórios antigo e moderno: o envolvimento com as questões políticas, típico
de uma perspectiva antiga de Exército, e a ―obediência incondicional‖ ao governo
estabelecido, considerada uma característica indispensável de um exército moderno.
Vejamos o que disse sobre o tema das relações entre os militares e a política um dos
autores mais presentes no acervo bibliográfico de Eduardo Prado.
562
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultura, 1991. p. 62.
266
Naquilo que se refere ao tema das relações entre os militares e a política, o nosso autor,
definitivamente, não seguiu os conselhos do filósofo grego, do pensador que, em outras
ocasiões, ele tomou como modelo para as suas críticas à República brasileira, como eu
demonstrei no quarto capítulo desta tese.
A experiência com relação a fatos particulares é também considerada como
coragem; aí temos, em verdade, a razão pela qual Sócrates identificava a
coragem com o conhecimento. Outras pessoas revelam essa qualidade diante de
outros perigos, e os soldados profissionais nos perigo da guerra; pois na guerra
parece haver muitos alarmas infundados, dos quais esses homens têm a mais
ampla experiência; e por isso parecem bravos, uma vez que os outros ignoram a
natureza dos fatos. Por outro lado, sua experiência os torna capacíssimos no
ataque e na defesa, porquanto sabem fazer bom uso das armas e dispõem das
melhores tanto para atacar como para defender-se. Batem-se, por conseguinte,
como homens armados contra homens desarmados, ou como atletas bem
treinados contra amadores, pois também nesses encontros não é o mais bravo que
melhor luta, mas o mais forte e o que tem o corpo em melhores condições 563.
267
cidadão, é, também, menos virtuoso, pois para ele, a guerra nada mais é do que um
ofício, enquanto para o soldado-cidadão é um ato político, uma forma de zelar pelo bem
comum da cidade. Sendo assim, para Aristóteles não há uma dicotomia mais rígida
entre a política e a guerra, sendo, por isso, perfeitamente aceitável que o soldado tenha
uma vida política ativa, já que ele é, também, um cidadão. Com o passar do tempo, essa
percepção dos vínculos entre a vida militar e a vida política foi se modificando. Na
Idade Média, a atividade militar foi pensada como um vínculo de vassalagem:
―(...) A instituição do trabalho servil, como mecanismos de extração de
excedente, fundia a exploração econômica e a coerção político legal, no nível
molecular da aldeia. O servo, por sua vez, tinha normalmente o dever da
vassalagem e do serviço militar para com o seu suserano senhorial, que
reclamava a terra como seu domìnio supremo‖ 566.
Após o século XVI, pari passu à construção do Estado moderno, foi surgindo
uma nova concepção de Exército, que combinou o princípio da técnica profissional com
o exercício da cidadania, sendo o vínculo necessário entre o militar e a política foi,
progressivamente, desfeito. Estamos, aqui, bem próximos da noção de ―soldado
profissional‖ que, para Eduardo Prado, era ideal para o mundo moderno civilizado.
A ausência da obediência passiva nos exércitos significará sempre, cedo ou
tarde, a escravização do povo à força armada. Perdida a noção de obediência,
perdida ficará também a concepção justa do destino dos exércitos que são
criados para a defesa externa e interna das sociedades, e não para dominá-las567.
566
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004. p. 72.
567
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 114.
268
segundo Perry Anderson, foi a resistência da nobreza em armar os seus camponeses. Já
temos aqui, pela primeira vez, a percepção de que o armamento da população civil
poderia ser uma ameaça ao regime político instituído. Esse impasse somente seria
solucionado, ao menos no plano das ideias, com a noção de ―fidelidade à pátria‖, que
somente se tornaria mais clara no final do século XVIII.
Para o historiador norte-americano Alan Forest, o mês de abril do ano de 1792
foi um divisor de águas na história da Revolução Francesa e das relações internacionais
entre os Estados europeus. Foi nesse momento que o governo revolucionário francês
declarou guerra à Áustria e pôs fim ao período de coexistência pacífica entre a França
revolucionária e as Monarquias europeias568. Entre os diversos desdobramentos da
guerra, o autor destaca a criação do primeiro programa de recrutamento militar de
massa. A guerra foi utilizada como bandeira política pelos agentes envolvidos no
processo revolucionário e promoveu um intenso aumento da visibilidade do Exército na
opinião pública francesa. Alan Forest acredita que a partir da formação da segunda
coalizão antirrevolucionária, a guerra tornou-se o centro da atuação do Estado
revolucionário francês, o que demandou o envolvimento da população civil no conflito.
O autor acredita que a guerra revolucionária introduziu uma novidade na sociedade
francesa.
Nacionalismo e um senso de dedicação à causa da pátria fez deste conflito uma
guerra de princípios em que a avaliação racional dos ganhos e perdas deu lugar a
uma reação muito mais emotiva, que foi a missão de proteger o território e a
cultura do povo francês contra os ataques estrangeiros 569.
Era esse elemento emotivo que faltava para combinar o preparo técnico com a
obediência. O bom soldado, a partir de então, passaria a ser aquele que, antes de tudo,
ama a sua pátria, sendo, portanto, capaz de dar a vida por ela no campo de batalha.
Porém, não podemos confundir a devoção do soldado moderno com a coragem do
cidadão clássico, da qual fala Aristóteles. Como a guerra moderna assumiu uma
―dimensão total‖, para usar um termo caro a Alan Forest, surgiu a necessidade de
especialização e treinamento constante das corporações militares. Por isso, também o
Exército nacional precisava se profissionalizar e ser preparado para a movimentação
militar, que já eram características presentes nos Exércitos de mercenários. Porém,
568
FOREST, Alan. Soldiers of the French Revolution. Durham and London: Duke University Press, 1990.
Um aspecto que merece atenção do estudo do autor é a sua percepção de que o conflito entre a França e as
Monarquias europeias não deve ser analisado apenas em seu aspecto ideológico, mas também na
conjuntura das relações internacionais do velho mundo nos últimos anos do século XVIII.
569
FOREST, Alan. Idem. p.5.
269
como agora a guerra passa a ser travada, fundamentalmente, entre nações, é necessário
que o soldado tenha um vìnculo afetivo com o seu ―contratante‖. Mas ainda aqui, existe
o perigo do Exército se voltar contra o governo. Por isso, o principio da disciplina,
ainda segundo as considerações de Forest, é tão importante para a cultura militar
moderna. Para que a sua função seja cumprida, o Exército precisa devotar ―obediência
incondicional‖ ao governo, o que significa que a corporação não deve ter opinião
política. É exatamente esse o teor do argumento utilizado por Eduardo Prado para
criticar a intervenção militar que fundou a República brasileira.
A ditadura militar brasileira, já no seu nascedouro, começa condenando a
obediência passiva do soldado. Começa pela destruição da base de toda a
organização militar, porque ou é passiva ou já não é mais obediência (...) Não há
uma só autoridade, um só general de patriotismo provado no campo de batalha,
que tenha pretendido justificar o equívoco personagem que nas sociedades há de
ser sempre o militar que quiser conquistar posições políticas570. (Grifos Meus)
570
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 109-
110.
270
desenvolvendo uma legislação incompatível com a realidade brasileira. Mais uma vez,
Eduardo Prado reivindicou uma perspectiva empírica da realidade, o que fez com que
ele utilizasse um argumento muito parecido com aquele que Edmund Burke e Alexis
Tocqueville mobilizaram nas suas críticas ao racionalismo revolucionário. Todos eles,
por sua vez, são, em alguma medida, herdeiros da tradição da phronesis aristotélica e da
prudentia republicana. Examinar a apropriação desses repertórios nos escritos de Prado
é o meu principal objetivo nesta seção.
Sendo assim, acredito que Eduardo Prado pode ser considerado representante de
uma proposta político/epistemológica moderna que valorizou mais o conhecimento das
experiências do que o das totalidades, que priorizou o estudo das práticas em detrimento
das abstrações teóricas. Por outro lado, essa perspectiva epistemológica tem raízes
muito antigas, que nos remetem, em última instância, à discussão
polìtico/epistemológica que Aristóteles desenvolveu no tratado ―Ética a Nicômaco‖.
Portanto, se na primeira seção deste capítulo, eu abordei como Prado, ao se debruçar
sobre o tema do bacharelismo brasileiro, rejeitou a modernidade e mobilizou os valores
da tradição retórica antiga, e na segunda seção, demonstrei como ele negou os valores
militares antigos e elogiou a cultura militar moderna, agora, desejo entender como o
autor combinou as tradições antiga e moderna nas suas críticas à jurisdição republicana,
que ele considerava ser ineficiente, na medida em que era mais dada às idealizações
filosóficas do que atenta às especificidades da realidade brasileira.
271
conservadorismo‖ 572
. Temos, nesse aspecto, a dimensão mais claramente
epistemológica do empirismo conservador, o que não significa a ausência da dimensão
política. Quando Eduardo Prado, por exemplo, criticou a pretensão da filosofia
moderna, que ele, mais de uma vez, qualificou como ―prepotente‖, em solucionar ―todos
os problemas da humanidade‖, estava criticando, também, os modelos de administração
política que se inspiravam nessas propostas filosóficas. Para Prado, a República
brasileira era um deles.
Com essas palavras, Eduardo Prado iniciou o livro ―A Ilusão Americana‖, que,
como eu já comentei antes, é o seu texto mais conhecido. Segundo Prado, a República
representava a implementação das ideias do revolucionarismo francês no Brasil, sendo o
objetivo do seu livro examinar, empiricamente e sem recorrer às discussões
doutrinárias, a forma como o novo regime estava governando o país. Já no método
adotado pelo autor, fica clara a sua perspectiva político/epistemológica: os debates
abstratos e doutrinários são considerados inúteis, na medida em que não contribuem
para a compreensão da realidade prática. Nesse sentido, Eduardo Prado considera o
empirismo, ao mesmo tempo, como o horizonte da atuação política eficaz e como a
melhor forma de compreender a realidade. Por isso, ele recorreu à máxima rankeana do
apego aos fatos, ainda que o historiador alemão não tenha sido citado pelo nosso autor,
o que não quer dizer que não tenha sido lido. A julgar pela forma como Prado escreveu
os seus textos voltados à história da atuação dos padres jesuítas na colonização da
América Portuguesa, acredito ser bem razoável sugerir que ele leu os textos de Ranke e
de outros importantes nomes do historicismo germânico. Examino essa interlocução no
último capítulo desta tese.
572
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 52.
573
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 28.
272
brasileiro574. O ponto de partida da polêmica foi a publicação, em abril de 1901, no
jornal ―O Estado de São Paulo‖, do artigo ―O século XX sob o ponto de vista
brasileiro‖, de autoria de Pereira Barreto. No texto, o médico se propôs a analisar ―os
motivos que justificam o atraso da nação575‖, tema sobre o qual os intelectuais
brasileiros estavam se debruçando na época576.
Em suas teorias, o naturalista afirmava que, nos países quentes e de solo fértil, a
sobrevivência seria facilitada pelos elementos naturais extremamente generosos,
de forma que o homem não se sentiria estimulado a desenvolver suas energias
individuais e sua capacidade de trabalho. (...)Em síntese, o principal argumento
de Buckle sobre o Brasil era que, diante do esplendor da natureza, o país não
deixava espaço para os homens, reduzidos à insignificância frente à majestade
natural que os cercavam579.
574
Segundo Ivan Lins, Pereira Barreto é o principal nome do positivismo brasileiro independente, não
tendo tido, jamais, vínculos mais estreitos com o Apostolado Positivista, fundado e comandado por
Miguel de Lemos e Teixeira Mendes. O autor argumenta, também, que Pereira Barreto, com o seu livro
―As Três Filosofias‖, foi o pioneiro na divulgação das ideias de Augusto Comte no Brasil. Na época, o
livro gerou muita polêmica entre os próprios positivistas, chegando a ser definido por Miguel Lemos
como uma ―manta de retalhos escandalosamente plagiados‖. Na interpretação de Ivan Lins, os conflitos
que foram travados entre Pereira Barreto e o Apostolado Positivista podem ser interpretados na
perspectiva da dicotomia heterodoxia X ortodoxia. Enquanto Pereira Barreto era um ―vulgarizador‖ da
doutrina de Comte, tendo o objetivo de difundir as ideias do filósofo no Brasil, os membros do
Apostolado afirmavam ser necessário não ―macular a doutrina do mestre francês‖. Ver LINS, Ivan.
História do Positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1962. p. 57.
575
BARRETO, Luìs Pereira. ―O Estado de São Paulo‖. 25 de abril de 1901.
576
Sobre os debates que, no final do século XIX, se debruçaram sobre o problema das relações entre a
natureza e a nacionalidade brasileira, remeto o leitor ao estudo de Márcia Naxara. Ver NAXARA, Márcia
Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o
Brasil no século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
577
Idem.
578
Henry Thomas Bukcle considerava o Brasil o exemplo mais claro dos efeitos deletérios que a natureza
opulenta e fértil podem ter na formação do caráter nacional de um povo. De acordo com o historiador
inglês, ―Todo o Brasil, apesar de suas várias vantagens aparentes, sempre permaneceu totalmente
incivilizado; seus habitantes vagam selvagens, incompetentes para resistir aos obstáculos que a
generosidade da natureza colocou em seu caminho. Os nativos, como todos os povos na infância da
sociedade, são avessos ao empreendimento e, ignorantes com as artes devido a impedimentos físicos,
nunca tentaram lidar com as dificuldades que impediram seu progresso social.‖. Ver BUCKLE, Henry
Thomas. History of civilization in England (vol. I). London: Longmans, Green and C.O., 1908. p. 79.
579
MURARI, Luciana. Natureza e cultura no Brasil. São Paulo: Alameda, 2009. p. 75.
273
Portanto, para os autores que seguiram as trilhas de Buckle, entre os quais
Luciana Murari insere os nomes de Capistrano de Abreu e de Oliveira Viana, a
fertilidade e opulência da natureza eram, ao mesmo tempo, virtudes e catalisadores de
um vìcio, pois acomodado com as ―facilidades da terra‖, o brasileiro havia se tornado
um tipo social preguiçoso e indolente. O que mais irritou Eduardo Prado foi o fato de
Pereira Barreto ter atribuído à formação católica a responsabilidade pelo atraso do
Brasil.
Habitamos o mais belo, o mais rico, o mais favorecido, o mais fácil, para a vida,
de todos os países da terra. Somos, porém, um povo que nada tem feito, por viver
atrasado, peiado, atado, paralisado, desinteressado das coisas deste mundo,
porque vivemos enfeitiçados pela preocupação da outra vida e do sobrenatural,
fruto da perniciosa influência do catolicismo português 580.
Pereira Barreto tocou em um tema bastante sensível para o nosso autor, que,
desde meados da década de 1890, estava estudando a história da colonização portuguesa
nos trópicos americanos. Prado considerou o texto de Pereira Barreto uma ofensa àquilo
que, para ele, era o elemento mais valioso da nacionalidade brasileira: o catolicismo
legado pela colonização portuguesa. No próximo capítulo, eu examino a resposta de
Eduardo Prado ao artigo do médico positivista, pois acredito que aí reside um dos
principais aspectos do pensamento político do nosso autor, o fundamento da sua
interpretação do Brasil. Por enquanto, eu quero explorar a crítica que Eduardo Prado fez
ao método analítico desenvolvido pelo seu interlocutor.
580
BARRETO, Luìs Pereira. ―O Estado de São Paulo‖. 25 de abril de 1901.
581
PRADO, Eduardo. Coletâneas Vol 4. São Paulo: Tipografia Salesiana, p. 169-170.
274
interrupção da marcha civilizacional brasileira. Acredito que uma das grandes questões
levantadas por Eduardo Prado na sua rejeição à interpretação do Brasil desenvolvida por
Pereira Barreto tenha sido relativa à dicotomia conhecimento teórico X conhecimento
prático, uma discussão que não é nada nova na história do pensamento ocidental.
Uma vez que a presente investigação não visa ao conhecimento teórico como as
outras — porque não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos
tornarmos bons, do contrário o nosso estudo seria inútil —, devemos examinar
agora a natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los; pois que, como
dissemos, eles determinam a natureza dos estados de caráter que daí surgem 583.
582
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: ED FGV, 2006. p.
47.
583
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultura, 1991. p. 30.
584
Idem. p. 31.
275
Não se trata, aqui, portanto, da simples desqualificação da abstração platônica,
mas sim na afirmação de que as ―coisas humanas‖ não são compatìveis com a rigidez
teórica, que se demonstra ―útil nos estudos dos assuntos da matemática‖. Portanto, é
como se Aristóteles estivesse interessado em desenvolver uma abordagem adequada ao
esforço de compreensão dos assuntos humanos, abordagem que não tem teor
exclusivamente epistemológico, mas que visa, também, orientar a ação política. É,
justamente, esse saber ético/político, de natureza prática e voltado para a singularidade
da experiência, que Aristóteles chama de phronesis585. Porém, é preciso tomar cuidado,
adverte Gadamer, para não imputarmos ao Estagirita a posição de pioneiro nos debates
filosóficos a respeito dos saberes práticos. Platão, antes de Aristóteles, já o tinha feito,
mas de maneira ligeiramente distinta.
Uma técnica se aprende e pode ser esquecida; pode-se perder uma habilidade.
Mas o saber ético nem se aprende nem se esqueceu. Ele não é como o saber de
uma profissão que se pode escolher; não se pode recusá-lo e escolher um outro
saber. Pois, ao contrário, o sujeito da Phronesis, o homem, se encontra desde já
em ―ação numa situação‖ e, assim, sempre obrigado a possuir um saber ético e a
aplica-lo segundo as exigências de sua situação concreta 586.
585
A phronesis aristotélica já foi tema de diversos estudos, sendo, portanto, impossível, nos limites desta
tese, inventariar toda essa fortuna crítica. Por isso, destaco os estudos que foram mais importantes para a
reflexão que desenvolvo neste capítulo: os de Gadamer, já devidamente referenciados no corpo do texto,
os de Alasdair MacIntyre e os de Paul Ricoeur. O filósofo inglês Alasdair MacIntyre é um dos principais
analistas contemporâneos da phronesis aristotélica, sendo um defensor da retomada da ética aristotélica
das virtudes como tradição de pesquisa racional em ―resposta à crise moral moderna‖. Nas palavras do
próprio autor, ―a insistência de Aristóteles de que as virtudes encontram seu lugar, não na vida do
indivíduo, mas na vida da cidade e que o indivíduo só é realmente inteligível como polítikon zóon‖ (p.82).
Já Paul Ricoeur questiona a percepção de que a ética aristotélica possa, de fato, ser um horizonte eficiente
para as relações políticas contemporâneas, sendo necessário, portanto, a revisão das formulações do
grego, com o objetivo de adaptá-las às conjunturas do nosso tempo, o que, nas palavras de Ricoeur, ―é um
esforço de adaptação que é a parte fundamental do corpus aristotélico‖. A despeito das diferenças nas
abordagens dos dois autores, ambos, tal como Gadamer, situam a prhonesis no plano da ação prática,
diferenciando-a da metafísica platônica. Ver MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual
racionalidade? São Paulo, Loyola, 1991, RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris, Seuil, 1990
e ainda CARVALHO, Helde Buenes Aires de. Tradição e racionalidade na filosofia de Alasdair
MacIntyre. São Paulo, Unimarco, 1999; ver também CARVALHO, H. B. A. de. Alasdair MacIntyre e o
retorno às tradições morais de pesquisa racional. In: OLIVEIRA, M. A. de (org.). Correntes fundamentais
da ética contemporânea. 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 2001, p.31-64.
586
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: ED FGV, 2006. p.
52.
276
discussão é o fato de Eduardo Prado, aparentemente, ter seguido a fórmula aristotélica
nas suas considerações político/epistemológicas. O autor jamais chegou usar o termo
phronesis, mas estou convencido de que ele, ao valorizar muito mais o conhecimento
prático do que o teórico, se colocou na tradição inaugurada pelo Estagirita.
277
governo‖. De acordo com o catálogo da biblioteca de Eduardo Prado, constava no seu
acervo bibliográfico, pelo menos, escritos de três dos autores que se destacaram nas
discussões a respeito da prudentia: Tomás de Aquino, Nicolau Maquiavel e Francesco
Guicciardini. É certo que Prado, em nenhum momento, citou esses nomes, mas, me
parece que, de alguma forma, ele estava inspirado pelos escritos desses autores.
―Para ele, [Rui Barbosa], tudo parece simples, tudo imagina possìvel. O direito
de fazer leis é considerado pelo ilustre Ministro como uma espécie de solução
milagrosa para todos os problemas sociais e políticos. O Dr Rui Barbosa já é
considerado na Europa um estadista da estirpe hispânica: pouco prudente e
exagerado nas suas ambições salvadoras‖589.
278
escritores conservadores, à idealização filosófica, ao exercício de abstração que não leva
em conta as condições práticas da existência. É como se Prado estivesse dizendo que de
nada valem as boas intenções dos republicanos se os seus atos não forem calculados,
prudentemente, a partir do estudo minucioso e atento das especificidades da realidade.
Existe na crítica de Prado ao idealismo jurídico dos republicanos brasileiros, dois
elementos que considero serem fundamentais para a argumentação que estou
desenvolvendo neste capítulo: a afirmação da existência de uma falibilidade
epistemológica inerente aos homens e desconsiderada pela arrogância bacharelesca
daqueles que governavam o novo regime, de Rui Barbosa, especialmente, e a defesa de
um modelo de administração política baseado mais no cálculo e na análise cuidadosa
das circunstâncias do que nas lições extraídas dos compêndios de filosofia.
Esse argumento ficou ainda mais claro nos debates que Prado travou, na arena
da imprensa portuguesa, com o jornalista José Pereira de Sampaio, que assinava o
pseudônimo ―Bruno‖. A proclamação da República brasileira teve grande repercussão
em Portugal, assunto que foi bastante explorado pela historiografia desse país, tendo
destaque os estudos de Eduardo Cordeiro Gonçalves590 e Sérgio Campos Matos591. Os
dois autores destacam como o evento brasileiro animou os republicanos portugueses,
que chegaram a organizar o ―Centro Democrático Federal 15 de novembro‖, que foi
uma das forças que compuseram a frente republicana que tentou derrubar a Monarquia
portuguesa em 31 de janeiro de 1890.
590
Ver GONÇALVES, Eduardo Cordeiro. Ressonâncias em Portugal da implantação da República no
Brasil (1889-1895). Dissertação de Mestrado: FLUP, 1995.
591
Ver MATOS, Sérgio Campos. Representações da crise finissecular em Portugal. In: HOMEM,
Amadeu Carvalho; SILVA, Armando Malheiro. ISAIA, Arthur Cesar (ORG). A República no Brasil e em
Portugal (1889-1910). Uberlândia: Ed UFU, 2007.
592
GONÇALVES, Eduardo Cordeiro. Ressonâncias em Portugal da implantação da República no Brasil
(1889-1895). Dissertação de Mestrado: FLUP, 1995. p. 93.
279
reunidos em livro, nos jornais ―A República‖ e a ―República Portuguesa‖593. Durante
praticamente um ano, Eduardo Prado e Bruno foram os protagonistas, na imprensa
portuguesa, das discussões entre republicanos e monarquistas. Prado tentava advertir os
portugueses do perigo que significava a proclamação da República, enquanto Bruno se
esforçava para mostrar aos seus leitores como que, no Brasil, a mudança do regime
polìtico não havia sido, ―como afirma Frederico de S., sinal de decrepitude da nação‖,
mas sim ―o sopro dos novos ventos, de justiça social, liberdade e paz. (...) Para Portugal,
594
o único remédio é a República.‖ . Na sua resposta, Eduardo Prado rebateu o
―otimismo falacioso‖ de Bruno, afirmando que ―inexistem remédios únicos e
milagrosos para os difìceis problemas que assolam a humanidade‖. Percebo, aqui,
novamente, a desconfiança de Prado em relação à crença no poder messiânico das
ideias, que para ele, era tìpico dos republicanos brasileiros, ―filhos da religião fundada
por Augusto Comte‖.
O sr Bruno tem muita fé nesse remédio simples, que julga próprio para curar
todos os males. (...) [Por isso], o sr Bruno escreve um livro só para aconselhar a
Portugal que adote a República, como já fez o Brasil. (...) Diante das
necessidades sociais do século novo, vir declarar que o remédio para os males
humanos é a República, é uma manifesta confissão de atraso. É participar de uma
superstição tão pouco científica, como qualquer outra superstição 595.
Da mesma forma como fez com Rui Barbosa, Prado censurou Bruno por
acreditar na superstição filosófico/jurídica segundo a qual a República era a solução
para o atraso da humanidade. Para o nosso autor, a questão era muito mais complexa e
demandava um esforço polìtico ―capaz de compreender as reais causas dos problemas e
fazer de tudo para solucioná-las da melhor forma possìvel‖. De acordo com os estudos
de Karl Mannheim, esse realismo pragmático e ciente da impossibilidade da ―solução
total‖ para os problemas da humanidade é uma das mais importantes caracterìsticas do
conservadorismo.
593
SAMPAIO, José Pereira de. Brasil Mental. Porto Ed. & Companhia: Porto, 1898.
594
Idem. p. 73.
595
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 15 de abril de 1898. (Coletâneas, Vol 1, pp. 394-395)
596
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p. 253.
280
A ―mentalidade conservadora‖, portanto, reagiu, para Mannheim, às pretensões
―utópicas e absolutizantes‖ das modernas filosofias da história, o que faz do
conservadorismo uma reação moderna a um tipo específico de conhecimento que
ganhou os seus contornos mais sólidos no século XVIII. Para além de destacar essa
heterogeneidade da modernidade, que faz com que tanto o conhecimento circunstancial
e prático do conservadorismo como as abstrações progressistas do iluminismo e do
positivismo possam ser definidas como ―modernos‖, quero examinar com mais atenção
a importância que Prado atribuiu à capacidade de ―cálculo prudencial‖, que ele definiu
como um importante requisito para o bom governo597. Segundo o nosso autor, caberia
ao governo examinar a realidade e nela intervir, fazendo o melhor possível, não
598
prometendo, jamais, o ―engodo da solução única e total‖ . Mas o que será que
Eduardo Prado queria dizer quando utilizou o termo ―cálculo prudencial?‖. Uma rápida
visada na tradição do pensamento político ocidental pode ajudar na proposição de uma
hipótese.
597
De acordo com os estudos de Paulo Mercadante, essa preocupação com a análise empírica da realidade
é uma importante característica do pensamento político brasileiro oitocentista, tendo sido verbalizada em
vários momentos, como por exemplo, na ocasião das discussões legislativas a respeito do tema da
abolição do trabalho escravo. O autor argumenta, ainda, que essa preocupação com a elaboração de uma
legislação adaptada à realidade nacional já pode ser identificada nos textos dos ―pais fundadores‖ da
nação, como, por exemplo, José Bonifácio de Andrada e Silva, para quem a constituição ―para não ser um
papel borrado, como em muitas da Europa, era preciso fazê-la apropriada ao país, sem ideias metafísicas e
discurseiras inúteis‖. Ver MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980. p. 83.
598
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 15 de abril de 1898. (Coletâneas, Vol 1, p.395)
599
SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 167.
600
Idem. p. 172.
281
Para Senellart, a novidade da argumentação tomista já pode ser identificada no
tratado ―De Regno”, que é um texto ―tipicamente medieval por inúmeros aspectos,
revelando, porém, um novo estilo de reflexão polìtica‖. Tomás de Aquino teria, então,
ainda segundo as considerações de Senellart, tratado a função real de uma forma distinta
da tradição consagrada na época, que era baseada nos escritos de Isidoro de Sevilha601.
601
Ao escrever sobre as relações entre os poderes temporais e religioso, Isidoro de Sevilha, nas suas
―Etimologias‖, que costuma ser considerada a primeira enciclopédia da tradição cristã, argumentou que
é ―na incapacidade da fala que residia a necessidade do governo temporal, este sendo reparando pela força
o fracasso da prédica‖ (p.177). Isidoro de Sevilha, portanto, examinou o Estado a partir da sua natureza
divina, tendo sido um dos principais responsáveis pela sistematização do conceito de ―Monarquia
Teocrática‖. Ver RIBEIRO, D. V. A sacralização do Poder Temporal: Gregório Magno, e Isidoro de
Sevilha In: Souza, José Antônio de C. R. (org.). O Reino e o Sacerdócio – O pensamento político na Alta
Idade Média, s/d. pp. 91-112.
602
Idem. p. 174.
603
SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 189.
604
Idem.
282
perspectiva empírica da realidade, para manter a formulação que está sendo tão
importante para a reflexão que venho desenvolvendo neste capítulo.
605
AQUINO, Tomás de. (APUD) SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Ed. 34, 2006.
P. 192.
606
Idem.
607
TEIXEIRA, Felipe Charbel. O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método
prudencial de análise da política. Dados- Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Vol. 50, no 2,
2007, pp. 325- 349. p. 328.
283
circunstâncias, faz o melhor possível. Da mesma maneira como Senellart atribuiu à
prudentia tomista a herança da phronesis aristotélica, Felipe Charbel situa o ―olhar
agudo e penetrante‖, que Guicciardini acreditava ser fundamental para a prudência
governativa, na esteira da ―filosofia prática aristotélica‖, argumentando que, ―na busca
do equilíbrio entre uma moral ideal e as possibilidades efetivas do agir, Aristóteles parte
da observação dos próprios desígnios que os agentes se impõem, de suas condutas e
motivações, no sentido de delimitar os bens por eles almejados‖608.
Os estudos de Gadamer sobre a phronesis aristotélica, de Senellart sobre a
prudentia tomista e de Felipe Charbel sobre a teoria republicana do bom governo
apontam para a existência de uma importante tradição político/epistemológica no
pensamento ocidental. Essa tradição teve vida longa, tendo chegado ao século XVIII,
quando começou a ser mobilizada pelos escritores conservadores que, marcados pelo
trauma da Revolução Francesa, rejeitaram o idealismo filosófico moderno. Por isso, e é
esse argumento que estou tentando sustentar nesta seção, a semelhança entre os escritos
de Eduardo Prado com os textos de autores como Aristóteles, Tomás de Aquino,
Maquiavel e Guicciardini é tão perceptível. Essa semelhança não é nada fortuita, sendo,
ao contrário, o resultado do diálogo do nosso autor com uma proposta filosófica que
delineou a arena da política como o lugar do conhecimento prático, do cálculo
circunstancial, e não das idealizações abstratas, como propuseram os sistemas
filosóficos modernos, como o iluminismo, o positivismo e o marxismo. O nosso autor
entrou em contato com essa tradição pelo intermédio do conservadorismo moderno, o
que não quer dizer que ele não tenha lido os tratados que são tão fundamentais para a
reflexão que estou desenvolvendo neste capítulo. Os textos estavam lá, na estante de
Prado, no seu reduto do ―Brejão‖.
Na segunda metade da década de 1890, como eu cheguei a comentar,
brevemente, no último capítulo, Prado esteve diretamente envolvido com um dos
principais empreendimentos editoriais da intelectualidade luso-brasileira da época: a
Revista Moderna, que era dirigida por Martinho Carlos Arruda Botelho. Durante todo
ao ano de 1897, o nosso autor teve uma seção própria nesse periódico, que tinha como
tìtulo ―Livros Novos‖, onde ele resenhava as obras recém-publicadas por escritores
portugueses e brasileiros. Na edição de 05 de outubro de 1897, Prado comentou o livro
―L’Oeuvre Internationale”, do escritor carioca Sebastião de Magalhães Lima. Logo no
608
Idem. p. 329.
284
prefácio do livro, esse autor apresenta uma extensa lista sessenta e duas referências, que
609
―foram cuidadosamente consultadas na redação dessa obra‖ . A primeira crítica de
Eduardo Prado ao texto é dirigida, exatamente, a esse esforço de autolegitimação
através da menção às autoridades. Diz o nosso autor: ―Poucos livros temos visto
610
relacionado com tanta gente‖ . O fundamento das críticas de Eduardo Prado está,
acredito, justamente no princípio, caro ao pensamento conservador, da falibilidade
intelectual humana, o que torna o homem conservador cético em relação às promessas
edificantes e totalizantes das filosofias modernas. A critica do nosso autor ficará mais
clara se antes dedicarmos alguma atenção ao texto de Magalhães Lima.
O que pretendemos com esse livro é mostrar aos leitores as ideias modernas e,
dessa forma, contribuir para emancipar o indivíduo, a família e a humanidade.
Somente vivendo sob o governo de uma República federalista podem ser os
homens verdadeiramente felizes. Para isso, porém, é necessário que todos os
intelectuais estejam de acordo611.
609
LIMA, Luís Magalhães. L’Oeuvre Internationale. Paris : Giard Bri re, 1897. p. 13.
610
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 05 de outubro de 1897. (Coletâneas, Vol 1, p. 279).
611
LIMA, Luís Magalhães. L’Oeuvre Internationale. Paris : Giard Bri re, 1897. p. 15.
612
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 05 de outubro de 1897. (Coletâneas, Vol 1, p. 279).
285
humano, livre e diverso nas suas manifestações, no seu modo de ver as coisas 613.
(Grifos meus)
613
Idem.
614
Idem.
615
JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: A historiografia como ciência política. Belo Horizonte: ED
UFMG/IUPERJ, 2005. p. 89.
616
TOCQUEVILLE, Alexis. O antigo regime e a revolução. Ed. UNB: Brasília: 1997. p. 143.
286
textos mais fundamentais da bibliografia conservadora: o livro ―Considerações sobre a
Revolução Francesa‖, publicado pela primeira vez em 1790. Para o escritor irlandês,
617
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 127.
287
empoada, e tão basta que o rosto magro, amarelo, enrugado, ficava nela tão
enterrado, que só lhe viam os dois olhos brilhantes como cabunculos 618.
Portanto, tanto para Eduardo Prado como para Burke e Tocqueville, a Revolução
Francesa havia incorrido em um problema fundacional: confundir a política com um
cálculo matemático, e os seres humanos de uma comunidade real com enunciados de
uma mera equação. Tudo isso em nome de um Estado perfeito que, obviamente,
existiria, apenas, na cabeça dos filósofos. Trata-se, no fundo, para os três autores, de
uma grotesca caricatura fantasiosa sobre a complexidade da realidade política, própria
de quem se deixa embriagar pela ―filosofia da vaidade‖, a vaidade do otimismo
racionalista que o conservador combate através da afirmação de uma imperfeição
intelectual que seria inerente aos homens621. O contraste entre o otimismo pretencioso
618
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol 1, p.1898).
619
Idem. p. 353.
620
Idem. p. 355.
621
Para o historiador português João Pereira Coutinho, o ceticismo epistemológico é uma das principais
caracterìsticas do repertório conservador. Nas palavras do autor: ―A crìtica conservadora lidará não com a
razão, mas com o racionalismo, entendido como subversão da razão. Ou, talvez, de forma mais precisa,
com a ambição desmedida de atribuir à razão a tarefa hercúlea de construir e reconstruir a sociedade
humana de forma radical e perfeita. Não é a razão per se que inspira a crítica conservadora; é tão só, a
arrogância do racionalismo moderno e a sua ideia nefasta de ―possibilidade infinita‖ na condução racional
288
dos filósofos modernos e o ceticismo epistemológico dos conservadores fica bem claro
quando colocamos lado a lado o texto de Magalhães Lima e a resenha de Eduardo
Prado.
Aqui, Magalhães Lima está respondendo aos críticos, entre eles o próprio
Eduardo Prado, que, ao longo de toda a década de 1890, associaram a forma republicana
de governo ao despotismo militar que então caracterizava as experiências republicanas
na América Latina. O autor do “L’Oeuvre Internationale” não negou que as
―Repúblicas americanas estejam corrompidas‖, mas alegou que o regime republicano
não deveria ser julgado a partir dessas experiências, pois o modelo seria, em si,
excelente. Magalhães Lima está, então, operando no plano doutrinário, preocupado em
resguardar a teoria do governo republicano do desprestígio que as experiências latino-
americanas estavam suscitando. Eduardo Prado compreendeu muito bem a estratégia do
seu interlocutor.
dos assuntos humanos‖. Ver COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a
revolucionários e reacionários. São Paulo: Três estrelas, 2014. p. 34.
622
LIMA, Luís Magalhães. L’Oeuvre Internationale. Paris : Giard Bri re, 1897. p. 27.
623
PRADO, Eduardo. Revista Moderna. 05 de outubro de 1897. (Coletâneas, Vol 1, p. 288-289).
289
a defesa das tradições, que os escritores conservadores acreditavam estarem ameaçadas
pelo ritmo acelerado da temporalidade moderna. É, justamente, a relação que Prado
estabeleceu entre a aceleração da temporalidade e a vulnerabilidade das tradições o
objeto analisado no próximo capítulo.
290
Capítulo 8
624
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 10/11/1898. (Coletâneas, Vol 02, p. 167).
625
Para Lillia Schwarz, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, tinha dois objetivos distintos:
seguir o modelo comum idealizado pelo IHGB e destacar uma suposta especificidade paulista. Sobre as
relações do instituto com a República, a autora argumenta que: ―Criado no perìodo republicano, o
instituto paulista guardou as marcas desse novo momento se auto representando enquanto ―filho legìtimo‖
do regime então vigente. A principal oposição não se concentra nos antagonismos políticos, mas em um
discurso que desde a sua formação destacava particularidades‖. Ver SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O
Espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 136.
626
Nas últimas décadas, com o fortalecimento do campo dos estudos historiográficos no Brasil, vários
autores se debruçaram sobre a historiografia oitocentista, em especial sobre o IHGB. Alguns desses
autores apontam a importância da tradição ciceroniana para a nossa historiografia. Destaco, aqui, os
estudos desenvolvidos por Manoel Salgado e Temístocles César. Ambos os autores utilizam a noção de
―regime de historicidade‖ para destacar o lugar fundacional que a cultura histórica da magistral vitae
ocupou entre os letrados do IHGB. Ver: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no
Brasil (1838-1857). Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2011 e CESAR, Temístocles. Lições para a escrita da
história: as primeiras escolhas do IHGB. In: CONTIJO, Rebeca; GONÇALVES, Márcia Almeida;
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Estudos de
Historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp.93-124.
291
concepção de tempo baseada no princípio da continuidade entre passado, presente e
futuro.
Para Eduardo Prado, portanto, o cenário cronológico ideal seria aquele no qual
passado, presente e futuro se articulam em uma relação de semelhança, o que tornaria
inabalável a autoridade da tradição. Definitivamente, o nosso autor estava convencido
de que, no Brasil, a República havia implodido essa relação de continuidade, e
solidariedade, entre passado e presente, sendo o futuro algo tão imprevisível quanto
assustador. Essa maneira de atribuir sentido à experiência do tempo é típica do
pensamento conservador moderno. Examinar como Eduardo Prado mobilizou esses
valores é o principal objetivo deste capítulo.
A família brasileira não se pode orgulhar de ter um zelo verdadeiro pela tradição
que é a força, a luz, o ensino e a manifestação mais sagrada das raças, a cadeia
que assegura a solidariedade das gerações. (...) Sem dúvida toda esta dispersão e
o fato de ninguém hoje morrer na casa onde nasceu são coisas devidas ao
627
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Prassado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Ed. contraponto, 2006. p. 43.
628
Idem. p. 59.
292
presente regime legal e econômica da família, apenas forçadas consequências
sem remédio da moderna organização da vida629. (Grifos Meus)
Como podemos perceber na epígrafe, ele citou Cícero para criticar o desrespeito
da modernidade às tradições, o que, no caso específico do Brasil, seria um dos
principais defeitos da República. Me parece, então, que nos textos escritos ao longo da
década de 1890, Prado leu a proclamação da República na perspectiva da modernização
do Brasil, o que, para ele, seria um risco, pois a modernidade é tomada como sinônimo
de violação das tradições mais fundamentais da nacionalidade brasileira, justamente
aquelas que eram o fundamento do edifício monárquico, que durante tanto tempo havia
629
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 10/11/1898. (Coletâneas, Vol 02, pp. 124-126).
630
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 40.
631
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p. 56.
293
garantido a ordem e a civilização inauguradas pela colonização portuguesa nos trópicos.
No entanto, por outro lado, ele utilizou uma argumentação genuinamente moderna no
delineamento dessa crítica, uma argumentação baseada, por exemplo, em certa
concepção processual e acelerada de tempo, segundo a qual a República seria tragada
pela mesma torrente avassaladora que a permitiu nascer.
Não sou o primeiro a analisar o tratamento que Eduardo Prado deu ao problema
do tempo. Em um estudo que eu já citei nesta tese, o historiador Carlos Henrique
Armani aponta a aproximação do nosso autor com as discussões que, no final do século
XIX, inquietavam os intelectuais brasileiros: ―problemas da memória, velocidade ,
tempos simultaneamente sombrios e esperançosos, enigmas entre o ser e o nada, o que
estava acontecendo com a humanidade‖, seriam as questões que, segundo Armani,
estavam sendo colocadas pela geração de Eduardo Prado. Ao longo deste capítulo, eu
situo o nosso autor nesse interesse geracional pela tematização do tempo, mostrando
como, no caso específico dos seus escritos, esse interesse foi mobilizado em função da
crítica à República brasileira.
Também aqui, neste capítulo, o texto está organizado em três partes: na primeira, eu
examino como Prado se dedicou a defender as tradições, especialmente a sua defesa do
catolicismo e a sua crítica à importação de sistemas jurídicos estrangeiros pela
República brasileira. Na segunda parte, eu analiso a forma como o autor tentou
interpretar a proclamação da República à luz da temporalidade moderna. Já na terceira
parte, meu objetivo é compreender como ele utilizou o prognóstico como estratégia de
domesticação do tempo.
Embora a revolução que se opera no estado social, nas leis, nas ideias, nos
sentimentos dos homens esteja bem longe de terminar, já não se poderia
comparar suas obras com nada do que foi visto anteriormente no mundo.
Remonto de século em século até a Antiguidade mais remota: não percebo nada
294
que se pareça com o que está diante dos meus olhos. Como o passado não
ilumina mais o futuro, o espírito caminha em meio às trevas 632.
295
Prado associa, então, a República brasileira à Revolução Francesa, em um esforço de
comparação ao qual ele não dedicou maior empenho em sustentar com mais
propriedade. A principal questão, para ele, era outra:
Mas o governo provisório não diz qual igreja fica separada do Estado. Será
talvez a igreja católica, mas não é com certeza a igreja positivista que é a religião
do governo, apesar de dizer talvez o Marechal Deodoro que, mistério por
mistério, entende tanto o da Santíssima Trindade como o da filosofia de Augusto
Comte638.
É claro que com isso, eu não quero sugerir que Eduardo Prado se tornara
católico, tão somente, após a proclamação da República, até porque a família Prado era
uma das mais importantes integrantes da elite católica paulista. O jornal ―Diário de São
Paulo‖, na edição de 24 de setembro de 1876, publicou na coluna ―Cotidiano de São
Paulo‖ uma matéria sobre a religiosidade de Dona Veridiana Prado, mãe de Eduardo.
637
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 122.
638
Idem. p. 17.
296
famílias mais tradicionais dessa cidade (...) É bonito de se ver. Dona Veridiana
Valéria da Silva Prado e o seu filho mais moço indo à Igreja da Consolação 639.
O filho mais moço de Dona Veridiana estava lá, na Igreja, recebendo a formação
religiosa católica, como rezava a tradição. No entanto, na primeira década de sua
trajetória intelectual, o catolicismo não foi um dos elementos mais presentes nos
escritos de Eduardo Prado. Eu não encontrei nos textos publicados antes de 1889 muitas
referencias diretas à Igreja Católica ou à questão religiosa, que na década de 1870
colocou em rota de colisão os poderes temporal e religioso 640. Parece mesmo que o
catolicismo somente se tornou um tema fundamental para Eduardo Prado após a
proclamação da República.
Todas aquelas cabeças que se curvavam à divindade das letras não podiam
adivinhar que em pouco tempo as suas cabeças já não mais estariam sobre os
seus ombros. O edifício desmorona quando é removido o seu alicerce e o
alicerce da civilização ocidental é a Santa Igreja Católica642.
639
Jornal ―Diário de São Paulo‖. 24 de setembro de 1876.
640
As discussões a respeito do Estado laico são bem anteriores à proclamação da República, como
demonstra Antônio Vilaça, no seu estudo a respeito do pensamento católico no Brasil. Para o autor, o que
esta em jogo nos conflitos entre os Bispos e o governo da Monarquia era, exatamente, a crise do
padroado, uma das instituições mais importantes da Monarquia brasileira. ―Dom Vital simboliza o
syllabus no rigor do seu antiliberalismo. A questão religiosas é a questão do Padroado em seu ponto
crítico. Tudo gira derredor do placet, a placitação das bulas. Mas, de fato, o que há são duas mentalidades
em conflito: o catolicismo tradicional e o rigorismo antimaçônico do syllabus” (p. 53). O tema da
―questão religiosa‖ não foi tratado por Eduardo Prado, que criticou o Estado Laico republicano, sem
mencionar em nenhum momento que foi, justamente, a Monarquia católica quem se indispôs com a
igreja.
641
PRADO, Eduardo. O Natal de Voltaire. ―Revista Moderna‖, 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol
01, pp. 353-354).
642
PRADO, Eduardo. O Natal de Voltaire. ―Revista Moderna‖, 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol
01, p.354).
297
A defesa empreendida por Eduardo Prado não tem conteúdo unicamente
religioso, mas também social e político. Para o autor, a religião funciona como uma
espécie de esteio social, o alicerce onde repousa a coesão e a estabilidade da sociedade.
Acredito, então, que, para Prado, o principal problema da proposta revolucionária
francesa não é, exatamente, o ceticismo, mas sim a irresponsabilidade por ter
desestabilizado a tradição católica, que seria uma das estruturas responsáveis pela
ordem das coisas no mundo ocidental. Também Edmund Burke, que, como já sabemos,
é a principal referência da crítica conservadora à Revolução Francesa, desenvolveu um
argumento semelhante, segundo o qual ―a consagração do Estado por uma estrutura
religiosa estatal é necessária para suscitar nos cidadãos livres um saudável temor;
porque, para assegurarem a sua liberdade devem gozar de uma ·determinada dose de
poder‖ 643.
Eduardo Prado não estava sozinho quando empreendeu, nos primeiros anos da
República, uma jornada em defesa das tradições católicas brasileiras. Um grupo de
intelectuais católicos orbitava em seu redor, dentro do qual estavam nomes como
Afonso Arinos, Theodoro Sampaio, Brasílio Machado, Joaquim Nabuco, João Mendes
Jr, Couto de Magalhães Sobrinho e Carlos de Laet. A liderança de Eduardo Prado sobre
esses homens foi tão forte que Maria de Lourdes Mônaco Janoti chama o grupo de
―pradistas‖, destacando que a atuação político/intelectual desses personagens não se
limitava à mera panfletagem contra a República, mas sim no desenvolvimento de uma
interpretação do Brasil, baseada na valorização do mestiço, na idealização do sertão e
do sertanejo, no elogio ao papel dos bandeirantes e dos jesuítas no passado brasileiro.
Naquilo que se refere, especificamente, aos textos de Eduardo Prado, essa interpretação
consistiu na tese de que o Brasil representa o triunfo da civilização contra a hostilidade
natural dos trópicos, o que somente teria sido possível graças à colonização católica
portuguesa. Podemos ver o autor formulando essa tese no calor da polêmica travada, em
1901, com o médico positivista Pereira Barreto.
643
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 72.
298
apropriando das ideias de Henry Thomas Buckle, elabora uma interpretação do Brasil
baseada no elogio das condições naturais do país e na crítica aos efeitos, considerados
deletérios, da religião católica sob a formação do brasileiro. Para Ivan Lins, autor de um
dos principais estudos sobre a apropriação do positivismo no Brasil, o positivismo de
Pereira Barreto foi diferente daquele do Apostolado Positivista, comandado por Miguel
Lemos e Teixeira Mendes, pois esteve preocupado, sempre, com as especificidades da
realidade brasileira, o que levou o médico a flexibilizar alguns valores da ortodoxia
positivista. Também Roque Spencer Barros, em um trabalho dedicado, especificamente,
ao positivismo de Pereira Barreto, afirma que ―o positivismo de Pereira Barreto não era
um sistema estanque, mas um método dinâmico e destinado a compreender e modificar
a realidade brasileira‖644. É, exatamente, esse esforço de compreensão do Brasil a
questão chave do artigo de Pereira Barreto e o elemento que incomodou Eduardo Prado
profundamente.
Diz Pereira Barreto que ―um povo, cuja nutrição cerebral foi inibida pelo tóxico
das concepções sobrenaturais, acha-se como a floresta abatida pelo vendaval: o seu
estado é o de morte aparente‖645. Para o médico, portanto, o problema do atraso
brasileiro estava na influência do catolicismo no caráter nacional, visto que as condições
dadas pela natureza seriam propícias para a construção de uma grande nação. A reação
de Eduardo Prado foi quase imediata, tendo vindo a público em 16 de maio de 1901, nas
páginas do ―Comércio de São Paulo‖, sob a forma do artigo intitulado ―O Dr. Barreto e
a Ciência: Caso curioso de intolerância religiosa no século XX‖. Como demonstrei no
capítulo anterior, Prado começa criticando o método de Pereira Barreto, acusando-o de
negligenciar as reais condições da realidade brasileira, ―fazendo uma apologia e
pintando as vantagens naturais do Brasil num quadro sem sombra, e, portanto, falso‖ 646.
No entanto, ao longo da polêmica, Prado avançou na argumentação e desenvolveu uma
reflexão a respeito da formação da nacionalidade brasileira, algo que ele já vinha
delineando nos seus ensaios dedicados ao estudo da história desde a década de 1890.
Esse material é analisado com mais cuidado no próximo capítulo.
644
BARROS, Roque Spencer Maciel de. A evolução do pensamento de Pereira Barreto. São Paulo:
Grijalbo, 1967. pp. 162-163.
645
Jornal ―O Estado de São Paulo‖. 25 de abril de 1901.
646
Jornal ―O Estado de São Paulo‖. 25 de abril de 1901.
299
contra as quais temos reagido durante três séculos com sucesso notável,
conservando nessa resistência de nossa raça contra as forças externas, o
equilíbrio instável das íntimas energias de nosso ser, que, nos povos, como nos
indivíduos, é o que se chama a vida647. (Grifos Meus)
647
Jornal ―O Comércio de São Paulo‖. 16 de maio de 1901.
648
Em um estudo sobre o cenário literário brasileiro oitocentista, Roberto Ventura se debruçou
especificamente sobre o problema das polêmicas travadas entre os escritores da época. Para o autor, a
principal característica dessas polêmicas está no fato de que ―incorporaram a forma dialógica dos desafios
da poesia popular e um código de honra tradicional que entrava em conflito com as propostas de
modernização‖ (p.10). É a partir dessa perspectiva, que enfatiza a dimensão pré-moderna do
comportamento dos letrados, que o autor examina uma série de polêmicas que marcaram a história da
literatura brasileira oitocentista. Portanto, quando, em 1901, Pereira Barreto e Eduardo Prado
polemizaram, eles acionaram uma tradição de discussão intelectual já bastante consolidada no Brasil.
649
Como já foi analisado por diversos trabalhos que se debruçaram sobre o pensamento social brasileiro,
a tese de Eduardo Prado foi consagrada por Gilberto Freyre, em ―Casa Grande e Senzala‖. São vários os
momentos do texto nos quais o autor elogia a colonização portuguesa, que, ―mais do que qualquer outra
demonstrou aptidão para a vida tropical. (...) É certo que os portugueses triunfaram onde outros europeus
falharam: da formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com
características nacionais e qualidades permanentes. O português conseguiu vencer as condições de clima
e de solo desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de
gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com mulher de cor‖ (pp. 11-12). Ver FREYRE,
Gilberto. Casa Grande e senzala. Rio de Janeiro: Record, 1999.
650
BARROS, Roque Spencer Maciel de. A evolução do pensamento de Pereira Barreto. São Paulo:
Grijalbo, 1967. pp. 162-163.
651
O historiador Ivan Lins analisou as repercussões da polêmica travada entre Eduardo Prado e Pereira
Barreto na imprensa, tendo o cuidado de mapear as intervenções de outros intelectuais, que se alinharam a
um dos contendores. Por exemplo, Santos Werneck, Arnaldo Vieira de Carvalho e Alberto Seare
manifestaram apoio a Pereira Barreto. Já ao lado de Eduardo Prado, se colocaram Ascânio Vilas Boas,
Estelita Tapajós e o Padre Severiano Rezende. Ver LINS, Ivan. Historia do Positivismo no Brasil. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
300
entender que desde que o primeiro padre pisou nessas terras começou essa obra sem
nome, iniciada a pretexto de salvação das almas e que devia, dentro de três séculos, por
tal forma inibir o cérebro da nossa raça, que parece, hoje, consumado o processo
652
condenatório‖ . É possível desmembrar a argumentação de Pereira Barreto em, pelo
menos, dois aspectos: primeiro, o diagnóstico que aponta para uma situação de
degeneração da raça e, segundo, a afirmação de que essa degeneração não era originária
e nem motivada pelas condições climáticas e naturais, mas sim o produto da influência
da religiosidade católica no Brasil, que teria tornado o Brasileiro indolente e pouco dado
ao trabalho, pois a crença no sobrenatural, ainda nas palavras de Pereira Barreto, é ―um
elemento que leva o indivìduo a desvalorizar o trabalho e a vida material‖. Alguns dias
depois da publicação dessa réplica, Eduardo Prado voltou à arena da imprensa com o
artigo ―Ainda o dr Pereira Barreto‖, onde, novamente, apresentou a sua tese, aquela que
é o traço mais fundamental da interpretação que ele desenvolveu sobre o Brasil,
interpretação que teve vida longa na história do pensamento social brasileiro.
É esta a pátria nossa amada, que há mais de trezentos anos a nossa raça, lutando
contra os homens e os elementos, conseguiu fundar. Encontramos dificuldades e
obstáculos de que a nossa energia triunfou. Nesta zona tropical, que se dizia
inabitável, levantamos a nossa tenda, e sob o céu desta terra nova cresceu e
multiplicou-se a nossa raça, com a força e a fecundidade das plantas vivas que
deitam raízes fundas e estendem longe a verdura das suas frondes. Temos vivido
do trabalho, regando com o suor de todos os dias uma terra que só pela violência
do labor frutifica e nos alimenta. A tez branca que nossa raça trouxe da Europa
aqui se tem dourado ao fogo de um sol sempre ardente. Temos tomado às feras
os largos pedaços de terra, rasgando o véu sombrio da floresta hostil; e onde
dominavam as febres da terra inculta há hoje a verde salubridade da lavoura 653.
(Grifos Meus)
652
Jornal ―O Estado de São Paulo‖. 30 de maio de 1901.
653
Jornal ―O Comércio de São Paulo‖. 07 de junho de 1901.
301
analiso a historiografia de Eduardo Prado no próximo capítulo, onde tento mostrar como
ele combinou o repertório historiográfico retórico e fundamentado no regime de
historicidade da historia magistral vitae com o moderno tratamento do conhecimento
histórico, baseado nos procedimentos cientìficos e em certa noção de ―processo
histórico‖. Por ora, desejo continuar examinando a defesa que o nosso autor fez da
tradição católica.
Para Eduardo Prado, a República era uma espécie de metonímia da modernidade
na história do Brasil, sendo, portanto, a força destruidora das tradições mais
fundamentais da nacionalidade brasileira, do catolicismo legado pela colonização,
principalmente. Portanto, a defesa do catolicismo é, sim, uma das facetas do
antirrepublicanismo de Eduardo Prado, mas seria equivocado dizer que se resume a isso.
O que temos, aqui, é uma discussão algo sofisticada que pode ser situada, pelo menos,
em duas argumentações que parecem ter sido fundamentais para o nosso autor, ainda
que em nenhum momento, ele tenha deixado isso mais explícito: a crítica à
modernidade que, após o Concílio Vaticano I (1870), havia se tornado o elemento
constitutivo da doutrina oficial da Igreja Católica, e a apropriação utilitária da tradição,
que é um dos aspectos mais importantes do pensamento conservador moderno. Portanto,
Prado, ao mesmo tempo rejeitou a modernidade, como um bom católico obediente às
diretrizes estabelecidas pelo pontificado de Pio IX, fazendo-o através de um
tradicionalismo pertencente à outra faceta dessa modernidade, a modernidade
conservadora. No limite, o que estou tentando fazer ao longo de toda esta tese é mostrar
como não eram tão claras as fronteiras que delimitam o antigo e o moderno no
pensamento de Eduardo Prado.
A percepção de que a religiosidade católica estava sendo enfraquecida pela
modernidade marcou o discurso oficial da Igreja após a década de 1870, justamente no
momento em que Eduardo Prado começou a sua trajetória político/intelectual.
Sistematizar a reação da Igreja à modernidade foi o principal objetivo do pontificado de
Pio IX (1846-1878), dentro do qual foi publicado o “Syllabus”, um documento papal
que inventariou os ―erros da sociedade moderna‖, e foi organizado pelo Concílio
Vaticano I, que teve como resultado duas constituições dogmáticas: o Dei Fillis, que
tinha como tema as relações entre fé e razão, e o ―Pastor Aeternus”, que legislou sobre
a infalibilidade papal. Em nenhum momento, Prado fez referência a esses documentos,
apesar de os três fazerem parte do seu acervo bibliográfico, de acordo com o catálogo
publicado em 1916. No primeiro artigo produzido no calor das discussões com Pereira
302
Barreto, o já citado ―O dr Pereira Barreto e a Ciência‖, o nosso autor escreve que
―apesar de se fundar na apoteose da razão, a sociedade moderna jamais irá rejeitar
completamente a religião, porque a santa Igreja está vigilante e pronta para defender a
fé dos ataques da metafìsica positivista‖654.
Apesar de a referência não ser clara, acredito ser possível sugerir que Prado, ao
falar em ―vigilância e defesa‖, estava se referindo às ações articuladas pelo Vaticano
que, desde a década de 1860, com o ―Syllabus”, estava confrontando o racionalismo e o
liberalismo modernos. Sobre, por exemplo, a sobreposição da razão à fé, a constituição
dogmática Dei Fillis determinou, no seu primeiro capìtulo, que ―se alguém disser que na
revelação divina não nenhum mistério verdadeiro e propriamente dito, mas que todos os
dogmas da fé podem ser compreendidos e demonstrados pela razão, devidamente
cultivada, por meio dos princípios naturais – seja excomungado‖. Portanto, ao defender
com tanto empenho a tradição católica, Eduardo Prado não estava atuando apenas como
um conservador herdeiro de Burke, Tocqueville e Chateaubriand, mas, também, como
um católico ultramontano e fiel às diretrizes do pontificado de Pio IX.
Não é só na defesa da religião católica que é possível perceber o esforço de
Eduardo Prado em defender as tradições. Também nos seus ataques à jurisdição
republicana, onde criticou a tentativa do novo regime em ―imitar‖ as instituições
jurídicas dos EUA, o nosso autor chamou atenção para a necessidade de respeitar as
tradições, os ―costumes‖, como ele falou inúmeras vezes. Essa precedência dos
costumes sobre as leis é um debate fundamental na tradição jurídica ocidental, sendo,
também, um tema constitutivo do repertório conservador. Essa discussão foi abordada
por Tocqueville no seu ―A Democracia na América‖, texto tão citado pelos autores
brasileiros durante o século XIX. No capìtulo destinado ―às causas principais que
tendem a manter a República democrática nos Estados Unidos‖, Tocqueville trata, com
cuidado, essa questão: ―Se eu não fazer sentir ao leitor, ao longo desta obra, a
importância que atribuía à experiência prática dos americanos , aos seus hábitos, suas
opiniões, em uma palavra aos seus costumes, na manutenção das suas leis, faltou-se o
objetivo principal que me propus ao escrevê-la‖ 655.
O que está em jogo para Tocqueville parece ser o lugar atribuído à intervenção
humana no processo de elaboração das leis. Seriam, então, as leis o produto da
consolidação dos costumes, o desenlace da maturação, a longo prazo, obviamente, dos
654
Jornal ―O Comércio de São Paulo‖. 16 de maio de 1901.
655
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 375.
303
hábitos mais fundamentais de uma sociedade? Ou as leis seriam o resultado da atuação
ilustrada do legislador, que, atuando como um cientista social, mobiliza a sua
competência técnica para formular o código mais adequado àquela sociedade? Em
Tocqueville, é possível encontrar ambas as propostas, o que mostra que a valorização
dos costumes não implica, necessariamente, na desconsideração da capacidade de
intervenção humana. O autor francês se coloca, justamente, em posição intermediária,
tendo o interesse de escapar dessa dicotomia. Por isso, ele foi a referência fundamental
para a discussão travada, no Brasil, ao longo da década de 1860, entre Tavares Bastos e
o Visconde de Uruguai656. A discussão voltou à tona no início dos anos 1890, quando,
em virtude da mudança nas instituições políticas, se fez necessário um amplo
movimento de renovação jurídica, que culminou na constituição de 1891, claramente
inspirada no exemplo da constituição dos EUA. É, exatamente, aqui que Eduardo Prado
se envolve diretamente no debate, se apropriando do repertório conservador e acusando
os legisladores da República de violarem a tradição nacional ao importar uma jurisdição
completamente estranha aos costumes brasileiros.
O furor imitativo dos Estados Unidos tem sido a ruína da América. Péricles, no
seu célebre discurso do Cerâmico, disse: ―dei-vos, ó Atenienses, uma
constituição que não foi copiada da constituição de nenhum outro povo. Não vos
fiz a injúria de fazer, para vosso uso, leis copiadas de outras nações.‖ Há muita
grandeza na exclamação do gênio grego. Há uma presciência de tudo quanto
descobriu a ciência social moderna que, afinal, se pode resumir nisto: as
sociedades devem ser regidas por leis saídas da sua raça, da sua história, do seu
caráter, do seu desenvolvimento natural. Os legisladores latino-americanos tem
uma vaidade inteiramente inversa da do nobre orgulho do ateniense. Gloriam-se
de copiar as leis de outros países657. (Grifos Meus)
Para Prado, portanto, o ―furor imitativo dos Estados Unidos‖ não é exclusividade
dos legisladores da República brasileira, mas sim dos legisladores latino-americanos,
que, partindo do princípio de que a República seria o regime político natural do
continente, teriam adotado as instituições estadunidenses sem maiores critérios. O nosso
autor argumenta que as leis não podem resultar da ―vaidade‖ pessoal dos legisladores,
656
A historiadora brasileira Gabriela Nunes Ferreira examinou as discussões travadas entre Tavares
Bastos e Visconde de Uruguai ao longo da década de 1860. Nas palavras da autora, ―ocorrida na década
de 1860, o debate travado entre eles diz respeito sobretudo à organização do poder do Estado. Tavares
Bastos defende um modelo de monarquia federativa e um amplo programa de reformas liberais; o
visconde de Uruguai, por sua vez, defende um modelo de Estado unitário e centralizado, modelo que ele
mesmo, como ator político, ajudou a construir. Um ponto interessante é que ambos, nas suas respectivas
argumentações, apoiam-se fortemente justamente em Tocqueville, cada qual para defender seu modelo de
Estado‖ (p.56). Ver FERREIRA, Gabriela Nunes. A relação entre leis e costumes no pensamento político
e social brasileiro. In NUNES, Gabriela; BOTELHO, André (ORG). Revisão do pensamento
conservador: ideias e política no Brasil. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010. pp. 55-75.
657
Jornal ―O Comércio de São Paulo‖. 16 de maio de 1901.
304
mas sim do estudo dos hábitos, dos costumes e da tradição de um povo, de modo que o
legislador, agindo tal como Péricles, faça com que a sua intervenção resulte em uma
jurisdição adequada à sociedade em questão. Tal como Tocqueville, Prado não está
negando ao legislador a capacidade de intervenção, como se as leis precisassem ser a
simples materialização escrita dos costumes, mas sim sustentando que cabe ao
legislador aperfeiçoar as leis, ―adaptando-as ao atual estado dos espíritos, que jamais é
658
radicalmente diferente das situações passadas‖ . O autor reconhece, como podemos
perceber, que as leis precisam ser modificadas e adaptadas aos novos tempos, o que
positiva, e valoriza, a atuação do legislador. Entretanto, esse esforço de renovação tem
limites, pois o ―atual estado dos espìritos‖ jamais é completamente diferente do ―antigo
estado dos espìritos‖. Como um bom conservador, Eduardo Prado adota a solidariedade
entre os tempos como uma premissa, o que justifica o seu esforço em sustentar a ideia
de que a tradição deve servir como guia para a ação dos homens do presente. Daí a
importância de estudar o passado. De fato, a menção a Cícero, no texto que serve como
epígrafe deste capítulo, é coerente com a performance discursiva do nosso autor.
Utilizar o argumento da ―fraternidade republicana americana‖ para legitimar as
novas instituições, era, segundo o nosso autor, um dos maiores erros dos governantes da
época, pois ―voltado para o sol que nasce, tendo, pela facilidade da viagem, os seus
centros populosos mais perto da Europa que da maioria dos outros países americanos;
separado deles pela diversidade da origem e da língua; nem o Brasil físico, nem o Brasil
moral formam um sistema com aquelas nações‖ 659. O que Eduardo Prado parece estar
questionando é a identidade latino-americana do Brasil, delimitando uma diferença
entre o país que nasceu da colonização portuguesa nos trópicos dos países que nasceram
da colonização espanhola. Para o autor, o passado colonial, a morada das tradições mais
fundamentais dos países do novo mundo, deveria ser levado em consideração na
elaboração das constituições jurídicas das nações americanas. O Brasil, por ter um
passado colonial diferente, por ter nascido como nação independente em um processo
emancipatório diferente, deveria ser governado por instituições diferentes, como
aconteceu durante grande parte do século XIX, quando o Brasil foi uma Monarquia
cercada por Repúblicas660.
658
Idem.
659
Idem. p. 19.
660
No seu estudo a respeito da ―mentalidade conservadora brasileira‖, Paulo Mercadante demonstra como
a crítica à imitação jurídica já estava presenta nos escritos de importantes representantes do
conservadorismo nacional desde meados do século XIX, como, por exemplo, o Visconde de Uruguai,
305
Entretanto, naquele ―infeliz‖ 15 de novembro de 1889, os oficiais do Exército se
associaram aos políticos civis e derrubaram o edifício monárquico, que para Prado era a
materialização institucional das tradições nacionais, aquilo que tornava o Brasil um país
diferente, e superior, no cenário americano, uma nação mais próxima da civilização
europeia do que da instabilidade e barbárie das republicas hispânicas. O que tornava o
Brasil diferente, e melhor, seria o fato de ―ter instintivamente obedecido à grande lei de
que as nações devem reformar-se dentro de si mesmas, como todos os organismos
vivos, com a sua própria substância, depois de já estarem lentamente assimilados e
incorporados à sua vida os elementos exteriores que ela naturalmente tiver absorvido‖,
enquanto as outras nações latino-americanas ―declarando a sua independência, adotaram
as fórmulas norte-americanas, isto é, renegaram as tradições da sua raça e da sua
história, sacrificadas ao princípio insensato do artificialismo político e do exotismo
legislativo‖ 661.
Essa diferença fundamental, que separava as duas Américas nascidas da
colonização ibérica, foi implodida, ―do dia para noite, em 1889, quando o Brasil
cometeu o mesmo grande erro em que os hispano-americanos tinham caído no primeiro
quarto do século, isto é, quando artificialmente se quis impor ao Brasil a fórmula norte-
662
americana‖ . Prado considera, portanto, a proclamação da República como um
momento de violação da tradição, de ruptura do vínculo de solidariedade entre o
passado e o presente. Na argumentação do nosso autor, a inauguração do novo regime
teve, no Brasil, efeitos semelhantes aos da Revolução Francesa no mundo ocidental
como um todo: a aceleração do ritmo das mudanças sociais, o que resultou na percepção
de que o tempo estava passando mais rápido. Examinar como o nosso autor associou a
proclamação da República à aceleração do tempo histórico é o objetivo da próxima
seção.
para quem ―Aplicar o federalismo ao Brasil seria ―um arremedo imperfeitìssimo e manco das instituições
dos Estados Unidos, destituído porém dos princípios e essenciais meios e circunstâncias que as
acomodam a esse paìs‖ (p. 127). Ver MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
661
Idem. pp. 52-53.
662
Idem. pp. 52-53.
306
revéillon. Entre os convivas estavam nomes como Ramalho Ortigão e o Barão de Rio
Branco, todos ainda abalados pela recente morte de Eça de Queirós. Naquela mesma
noite, após o término dos festejos, o anfitrião escreveu no seu diário:
Foi, portanto, entre raios e trovões que apontou em Paris o século XX. Funesto
agouro? Corri à janela para ver o céu. Dentro do salão fechado e com as cortinas
cerradas não demos pela tempestade (...) Sobre o horizonte dos jardins das
Tulherias havia já uma grande mancha de céu limpo e estrelado. As luzes do
jardim do Louvre, acesas noutro século, tentavam brilhar neste, tentavam sem
êxito, este século, tal como aquele que passou, teima em vagar em suspenso, no
completo vazio663. (Grifos Meus)
663
O trecho foi extraído de um documento que faz parte da coleção Spencer Vampré, que é parte do
acervo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Pasta n° 32, doc n° 07.
664
Para Remo Bondei, já nos escritos de Parmênides e Heráclito o problema do tema está posto, sob a
forma de uma reflexão que situa a existência ―para além de uma esfera subjetiva e/ou cosmológica, sua
qualidade como número do movimento, ou mesmo realidade móvel da eternidade imóvel, a sua direção
para a corrosão de todos os seres ou para a sua preservação‖. Ver BONDEI, Remo. A filosofia no século
XX. Bauru: EDUSC, 2000. p. 23.
307
exemplo, que, como sabemos, foi um dos primeiros a tentar compreender a Revolução
Francesa, afirmou que ―tudo o que eu fiz no passado e tudo quanto farei para o futuro
será apenas para me ilibar de ter tido qualquer interferência, ativa ou passivamente,
nesta grande mudança‖665. A mudança, portanto, é tratada como algo negativo, como
um processo do qual o autor não quer fazer parte. Já vimos como essa reflexão foi
desenvolvida, também, por Tocqueville. Porém, seria um equívoco achar que a sensação
da temporalidade acelerada é específica dos conservadores, pois outros autores, talvez
de forma menos agônica, também escreveram sobre essa ―era de transformações‖. Para
Koselleck, a noção de ―aceleração do tempo‖ já pode ser encontrada no século XVI, nos
textos vinculados à teologia luterana. Nas palavras do autor, ―ela [a aceleração do
tempo] pode ser atualizada através de uma consciência viva das mudanças temporais e
666
da unicidade de um momento histórico‖ . No entanto, ainda de acordo com as
considerações de Koselleck, ―Kant foi o primeiro a prever esse sistema moderno de
experiência histórica, ao dotar as repetições das tentativas revolucionárias de um
objetivo final temporalmente indefinido, mas com certeza finito‖667.
Ainda que a noção de aceleração do tempo não seja uma novidade no século XIX,
Koselleck sustenta que foi somente nesse período que ela se tornou quase um consenso
entre aqueles que tentavam interpretar a modernidade. Autores como Hegel, Heidegger
e Herder já falavam explicitamente que os tempos modernos se caracterizavam pela
constatação da existência de ―forças imanentes à história, as quais dão origem a um
tempo histórico próprio e pelas quais a Era Moderna se distinguiria do passado‖668.
Reinhart Koselleck diz ainda que ―citem-se aqui os primeiros mestres da aplicação
revolucionária: Manzinni, Marx ou Proudhon. As categorias de aceleração e
retardamento, evidentes desde a Revolução Francesa, modificam, em ritmo variável, as
669
relações entre passado e futuro, conforme o partido ou o ponto de vista polìtico‖ .O
autor, portanto, parte da premissa de que o acelerado ritmo de transformações sociais,
característico dos séculos XVIII e XIX, levou ao esgotamento do vocabulário utilizado
até então, o que demandou todo um movimento de renovação lexical. Compreender essa
665
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: EDIPRO: 2014. p. 59.
666
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013.p. 94.
667
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Ed. Contraponto, 2006. p. 59.
668
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p. 163.
669
Idem.
308
renovação é o principal objetivo da proposta de pesquisa que conhecemos como
―História dos Conceitos‖, da qual Koselleck é um dos principais representantes.
670
Recentemente, foi publicado em lìngua portuguesa o verbete ―História‖ que, publicado originalmente
em língua alemã em 1973, integrou o ―Dicionários dos Conceitos Fundamentais‖, que é o grande
empreendimento do programa de pesquisa que nós chamamos de ―História dos Conceitos‖. O argumento
central da história dos conceitos, segundo Sérgio da Mata e Arthur Alfaix Assis, é que no século XVIII,
no espaço cultural alemão, as transformações sociais que fundaram a modernidade ―estimularam uma
alteração sem precedentes no significado dos diversos conceitos políticos fundamentais a partir dos quais
se organizava a experiência do mundo ocidental‖ (pp. 11-12). Os autores afirmam que a tese do
―esvaziamento semântico da linguagem usual na história moderna em movimento‖ não era exatamente
inédita, já tendo sido desenvolvida por Hegel, na década de 1820, que na introdução da sua ―Filosofia da
História‖, já apontava para a ressignificação semântica de alguns conceitos, como o conceito ―história‖,
por exemplo, e relacionava essas mudanças às transformações da modernidade. Ver KOSELLECK,
Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013.
671
ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1812-1845). São Paulo: Ed. HUCITEC, 2008. p. 99.
672
ARAUJO, Valdei Lopes. Formas de ler e aprender com a história do Brasil. Acervo, Rio de Janeiro,
n. 22, p. 85-98.
309
do próprio Bonifácio, a vazarem suas narrativas a partir do diagnóstico de que o tempo
estava passando rápido demais. Portanto, os trabalhos de Valdei Araújo sugerem que a
interpretação dos eventos brasileiros a partir do princìpio da ―aceleração do tempo
histórico‖ já estava sendo desenvolvida, no Brasil, desde o início do século XIX. De
alguma forma, portanto, o espaço intelectual brasileiro estaria reagindo, a exemplo do
que acontecia na Europa, a um conjunto de experiências que, em um curto espaço de
tempo, provocaram mudanças tão intensas a ponto de produzir um estranhamento em
relação ao passado, de modo a problematizar a função pragmática da história. No
próximo capìtulo, eu examino melhor os efeitos dessa ―aceleração‖ para a
historiografia, especialmente para a fundação da ciência histórica, buscando
compreender como Eduardo Prado combinou as perspectivas historiográficas
retórico/moralista e científica. Por ora, quero me debruçar sobre o problema do tempo
moderno, pois me parece que, aqui, podemos encontrar uma importante chave para a
compreensão do conservadorismo antirrepublicano do nosso autor.
A revolta militar do Rio de Janeiro, ampliada pelo seu resultado, numa
revolução; as proclamações. A deposição, a partida do soberano destronado. As
mudanças de bandeira, de selos do correio; as prisões, as deportações, os
manifestos, até a benção do arcebispo são episódios obrigatórios destes dramas
nos países meridionais, dramas tantas vezes representados e de que a revolução
brasileira não é mais do que uma inesperada e (até agora) bem-sucedida
reprise673.
A citação foi extraìda de um dos artigos dos ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖
e demonstra como o ritmo temporal se faz presente na narrativa desenvolvida por
Eduardo Prado. O autor enumera, em uma escrita acelerada, as transformações que a
República teria operado no Brasil, o que, para ele, colocava em risco a integridade do
território nacional, que teria sido a grande obra da Monarquia constitucional.
Ainda não voltemos a dizer – Os Brasis –, como cá no Reino se dizia nos velhos
tempos, mas talvez a força das coisas traga em breve o antiquado termo ao uso
da linguagem corrente. Isto sucederá, se, dentro de alguns anos, a palavra –
Brasil -, por obra da República, deixar de ser a expressão da integridade de uma
nação, para ter o valor de uma designação geográfica674.
673
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 01.
674
Idem. p. 10.
310
transformação contínua, esta instabilidade ao mesmo tempo destruidora e criadora afeta,
sem dúvida, a vida material e o aspecto do cenário onde todos temos de representar
675
nosso papel‖ . Na equação cronológica proposta por Eduardo Prado, a República
representa o presente instável e ameaçador, enquanto a Monarquia representa a tradição,
a estabilidade, ―o patrimônio moral, do povo, aquilo que não pode estar sujeito a essas
mudanças destruidoras‖. A República, então, teria nascido sob o signo da corrupção,
sendo, ela mesma, a força corruptora. Ainda nesta seção, eu examino como Prado
atribuiu à República brasileira a pecha da corrupção originária, o que nos conduz a um
dos elementos mais importantes da argumentação do autor. Eduardo Prado voltou a
tratar a proclamação da República a partir da noção de ―aceleração do tempo‖ no livro
―A Bandeira Nacional‖, onde ele criticou o pavilhão republicano.
A força desfilou pelas ruas sem que sobre as baionetas rutilantes ao sol flutuasse
o velho símbolo da pátria. Têm o seu destino as bandeiras; pela manhã, o
exército lhe fazia continências; à tarde, eram largadas, talvez, a um canto escuro
do quarte. Ontem, paladino sacrossanto do patriotismo, a que foram feitos os
juramentos mais solenes; hoje, pedaço de pano, que o soldado teve de abandonar
e de esquecer676.
Para o nosso autor, o tempo republicano é tão perigosamente rápido que, em menos
de vinte quatro horas, transformou o ―paladino sacrossanto do patriotismo‖ em sìmbolo
de um regime decaído. A bandeira da Monarquia, que durante tanto tempo havia sido
jurada, fora violada pelos mesmos militares que deveriam protegê-la. Ao tratar o evento
nessa perspectiva, Eduardo Prado está mobilizando um diagnóstico moderno, de uma
modernidade conservadora, é certo, mas nem por isso menos moderna. O evento
―proclamação da República‖ é tomado como o gatilho de aceleração de um processo
histórico que, no limite, ameaçava as virtudes mais fundamentais da nacionalidade
brasileira. O argumento de que Prado, nas suas críticas à modernidade, se comportou
como um intelectual moderno somente faz sentido se tratarmos a modernidade em sua
complexidade e heterogeneidade. Por isso, a reflexão desenvolvida pelo historiador
alemão Hans Ulrich Gumbrecht é importante para a argumentação que desenvolvo neste
capítulo. Visando, exatamente, destacar as várias possibilidades do moderno,
Gumbrecht formula o conceito ―Cascatas de Modernidade‖. Ao enfatizar as diferenças
entre quatro modernidades distintas, o autor acredita ser possìvel ―focalizar o status
677
histórico peculiar ao nosso próprio momento‖ . Estou interessado, especialmente,
675
Idem. p. 32.
676
PRADO, Eduardo. A bandeira nacional. São Paulo: Tipografia Salesiana, 1903. p. 04.
677
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentindos. São Paulo: Ed 34, 2010. p. 10.
311
naquilo que o autor chama de ―segunda cascata de modernidade‖, que seria o período
compreendido entre 1760 e 1830, quando, a antiga função pedagógica da história, que
se baseava na possibilidade de uma relação de semelhança entre passado e presente,
passou a ser amplamente questionada.
Parece seguro dizer, contudo, que somente desde o início do século XIX
atribuiu-se ao tempo a função de ser um agente absoluto da mudança. No interior
do tempo histórico, não se pode imaginar que quaisquer fenômenos estão livres
de mudança – e isso leva à aceitação geral da premissa de que períodos
históricos diferentes não podem ser comparados por quaisquer padrões de
qualidade meta-histórica. Simultaneamente, o tempo como um agente absoluto
de mudança dá à inovação o rigor de uma lei compulsória 678.
678
Idem. p. 15.
679
GADAMER, Hans George (ORG). O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Ed. FGV,
2006. p. 17.
680
Idem.
312
elementos mais fundamentais da modernidade. Apesar de reconhecer que a gênese de
uma ―consciência histórica‖ é um processo que envolva toda a Europa, o autor afirma
que ―é somente na Alemanha que esse tema desempenhou papel central na filosofia‖.
Portanto, tal como propõe Koselleck em relação ao problema da fundação do conceito
moderno de história, reflexão que abordo com mais cuidado no próximo capítulo,
Gadamer, também, identifica certo vanguardismo alemão naquilo que se refere à
consolidação dos valores modernos.
681
Idem. p. 18.
682
NABUCO, Joaquim, Diários: 1873-1909. Rio de Janeiro: Bem te vi, 2006. p. 411.
313
683
insobriedades se impuseram‖ . A agitação contemporânea não passou despercebida
por Graça Aranha, que na ocasião da inauguração do Congresso Latino do Capitólio de
Roma disse que ―hora sempre inquieta do presente, pois nos tornamos incapazes de
parar, estamos condenados ao contínuo movimento das marés humanas, sofremos um
triste suplìcio‖684. Portanto, instabilidade, transitoriedade, movimento: é nessa chave
que os autores europeus e brasileiros que viveram a virada do século XIX para o século
XX abordaram a modernidade.
Como eu já disse em outros momentos dessa tese, as críticas que Eduardo Prado
fez à República estiveram muito associadas à certa concepção clássica, ligada,
especialmente, a Aristóteles, de ―formas de governo‖. Por isso, mais de uma vez, o
nosso autor afirmou que a República brasileira violava aquilo que havia de mais
fundamental em um regime político republicano: a liberdade, que, como eu demonstrei
na primeira parte deste trabalho, é outra categoria fundamental para a compreensão do
conservadorismo de Eduardo Prado. Segundo ele, no Brasil, a República nasceu
corrompida, pois, já no berço, exerceu o poder de forma tirânica. Também aqui, nessa
683
ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. Obra crítica de Araripe Junior. Rio de Janeiro: Casa Rui
Barbosa/Ministério da Educação e Cultura, 5 v., 1963. p. 81.
684
ARANHA, Graça. Obras completas. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do livro, 1969. p.828.
685
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 71.
686
Idem.
314
discussão a respeito da liberdade e da fidelidade da República brasileira ao ―verdadeiro
republicanismo‖, a questão do tempo foi fundamental na argumentação de Prado.
Na citação, Prado reconfigura a sua argumentação, sem que, com isso, deixe de
associar a proclamação da República brasileira à corrupção original da modernidade.
Porém, ao mobilizar a comparação com os EUA, o autor introduz um elemento novo na
sua reflexão: a corrupção não é algo, tão somente, inerente à modernidade, pois a
República estadunidense é moderna e nasceu virtuosa. O problema, aqui, parece ser
específico da República brasileira, que não teria nenhuma chance de se tornar virtuosa
no futuro, pois o tempo apenas corrói, jamais edifica. No trecho, tal como Tocqueville
fez no seu ―A Democracia na América‖, Eduardo Prado não nega a virtuosidade
originária dos EUA, virtuosidade que foi violada pela pretensão desse país em
―escravizar as outras nações latino-americanas‖. Não podemos esquecer que o tema
principal do ―A Ilusão Americana‖ é a política externa dos EUA ao longo do século
XIX, o que, para o nosso autor, desmentia o argumento da ―fraternidade americana‖,
usado pelos governantes da República brasileira para justificar o ―pan-americanismo‖
sobre o qual a política externa nacional passou a estar baseada. Nesse sentido, Prado,
sendo fiel à tradição conservadora, elogiou os EUA, mas deixou claro que esse elogio já
não mais fazia sentido.
687
PRADO, EDUARDO. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 89.
688
Idem. p. 89.
315
Por outro lado, a República brasileira não poderia, sequer, reivindicar uma
virtuosidade originária, pois ela já nascera corrompida ―pela violência com a qual o
trono do S. M. foi derrubado‖. No entanto, se a história da República brasileira fosse
pensada na perspectiva da temporalidade moderna, segundo a qual o tempo marcha
rumo ao progresso, a crítica de Prado poderia ser facilmente esvaziada. Bastaria que o
interlocutor alegasse que os possíveis erros da República seriam solucionados com o
tempo, na medida em que o regime amadurecesse. Já antevendo a contra argumentação,
Eduardo Prado, que conhecia as discussões modernas a respeito do tempo, utilizou a
concepção tradicional de tempo.
O tempo parece ter, para Eduardo Prado, apenas a potencialidade de corrosão, pois
uma vez corrompido o corpo jamais se tornará saudável. Já o corpo que nasce saudável
pode ser corrompido. O tempo é definido, então, tanto em um caso como no outro, tanto
para a República dos EUA como para a República do Brasil, como uma força de
destruição, sendo que no primeiro caso essa força destruiu a virtude e no segundo caso
aumentaria ainda mais a amplitude da degradação. Temos aqui, portanto, a rejeição à
passagem do tempo, que é definido como algo, inelutavelmente, destruidor. Entretanto,
essa formulação viola uma premissa que é fundamental para o tradicionalismo
conservador: a definição da sabedoria como um atributo dos velhos, como aquilo que
sobrevive ao tempo, que ―passa no teste do tempo‖, para utilizar a formulação de João
Pereira Coutinho. Quando Prado afirma que a ―podridão é própria do túmulo e não dos
berços‖, ele parece está elogiando o novo e denegrindo o velho, o que seria tìpico de um
pensador moderno da estirpe de um Voltaire, por exemplo. É, justamente, essa posição
―entre dois‖ que acredito ser o principal aspecto do conservadorismo de Eduardo Prado,
de um pensamento formulado em um momento de transição, no Brasil e no mundo.
Ainda que o diagnóstico seja o pior possível, Prado ainda conseguia ver esperança
em um futuro que, em ultima instância, era imprevisível. Afinal, se a República foi o
resultado do potencial corrosivo da temporalidade moderna, quem poderia assegurar
689
PRADO, EDUARDO. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 88.
316
que a mesma onda avassaladora não tragaria o próprio regime fundado em 15 de
novembro? Nos deparamos, aqui, com o esforço de prognóstico através do qual o nosso
autor tentou ordenar o caos contemporâneo. Nesse esforço, ele, mais uma vez, transitou
entre o antigo e o moderno, entre o futuro pensado na chave do cálculo, segundo a qual
seria possível, a partir dos exemplos passados, delimitar com alguma clareza o que
ainda estava por acontecer, e o futuro pensado na perspectiva da completa incerteza, o
que, em alguma medida, poderia ser bom, já que a destruição da República surgia como
uma possibilidade, entre tantas outras. Analisar o lugar do prognóstico no
conservadorismo de Eduardo Prado é o objetivo da próxima seção.
690
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 15.
317
ministradas pela tradição, com o prognóstico moderno, segundo o qual o futuro seguiria
a razão maior da história: o progresso, que no caso do conservadorismo de Eduardo
Prado seria a regeneração da Monarquia.
Para Prado, a despeito do que diziam os filósofos progressistas, o século XIX não
era a ―primeira etapa de germinação das liberdades plantadas pela ação revolucionária
do século passado [século XVIII], mas sim o momento da tiranização dos homens pelas
691
utopias metafìsicas‖ . Em um ensaio destinado especialmente à futurologia moderna,
Koselleck afirma que a partir do século XVIII, ―a utopia foi inserida na filosofia da
história‖692. Com essas palavras, o autor alemão está querendo dizer que a aceleração da
temporalidade moderna não alterou, apenas, a relação entre passado e presente, mas
modificou, também, a forma através da qual os homens ocidentais representavam as
suas expectativas por um ―mundo perfeito‖. Até o século XVIII, essa expectativa pela
perfeição, ainda de acordo com as considerações de Koselleck, era depositada na crença
da existência de uma terra desconhecida, lugar que ao longo da história do pensamento
ocidental foi ocupado, por exemplo, pela Cítia e pela América693. Com o passar do
tempo e com a extensão da presença europeia em todas as regiões do mundo, foram se
esgotando ―as possibilidades espaciais de situar as utopias na finitude da superfìcie da
nossa terra. (...) Os espaços utópicos haviam sido ultrapassados pela experiência‖694. A
solução para o esgotamento dessa utopia tradicional, que Koselleck chama da ―co-
territorial‖, foi a temporalização das expectativas, pois ―se a utopia não podia mais ser
691
PRADO, Eduardo. O Natal de Voltaire. ―Revista Moderna‖, 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol
01, p.352).
692
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: ContraPonto,
2014. p. 122.
693
Analisando os escritos de Heródoto e Chateaubriand, o historiador francês François Hartogo destaca
como a Cìtia e a América permearam o imaginário europeu como os ―lugares exóticos que guardariam
toda a perfeita inalcançável pela civilização‖. Nos textos do historiador grego, a Cìtia foi representada
como o lugar selvagem que permeou, durante muito tempo, as representações ocidentais do exótico. Na
modernidade, com o descobrimento da América, esse lugar, de alguma forma, foi ocupado pelo novo
mundo. Nesse sentido, Hartog acredita que as representações sobre a América se deram em um ambiente
semântico caracterizado pelo ―paradigma cita‖. Nas palavras do autor, ―a Cìtia é amplamente concebida
como uma primeira América desaperecida, isto é, um refúgio. O jovem Chateaubriand decididamente
não é um jovem Anarchasis: ele só pensa em fugir da Grécia e reencontrar a Cìtia‖. HARTOG, François.
Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2014. p.
102.
694
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: ContraPonto,
2014. p. 124.
318
estabelecida nem na nossa terra presente nem no além, era preciso recuar para o
futuro‖695.
Esse ―recuo para o futuro‖ é uma caracterìstica fundacional dos principais sistemas
filosóficos modernos, do liberalismo ao marxismo, passando pelo positivismo. Nas
palavras de Karl Mannheim, para esses sistemas filosóficos modernos, ―o domìnio da
liberdade e da igualdade somente virá a existir no futuro remoto‖ 696. Nesse sentido, por
conta desse exercício de projeção, o futuro ganha estatuto de potência organizadora da
experiência temporal, na medida em que se torna o télos rumo ao qual a realidade se
move. Essa percepção moderna de futuro alterou profundamente o exercício do
prognóstico, pois ―do prognóstico pragmático de um futuro possìvel, surgiu a
expectativa de longo prazo sobre um novo futuro, que deveria determinar o
697
comportamento‖ . A mudança fundamental, segundo Koselleck, aconteceu porque a
aceleração da temporalidade e a consequente diluição dos laços de semelhança entre
passado e presente fizeram com que se esgotasse a possibilidade de futuro ser lido à luz
do cálculo, o que somente seria possível a partir das premissas da tradição. O futuro se
tornou, então, o ponto de chegada de uma história, já temporalizada e lida na chave do
―processo/progresso‖.
695
Idem.
696
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. p. 263.
697
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p.161.
698
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. pp. 258-259.
699
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987. p. 56.
319
superada e o presente como um momento de transição rumo a um futuro, considerado o
desenlace do processo histórico, os conservadores propõem que o tempo seja pensado a
partir da solidariedade entre passado, presente e futuro, que, irmanados pela tradição,
guardariam mais semelhanças do que diferenças entre si.
700
PRADO, Eduardo. ―O Comércio de São Paulo‖. 17/01/1897. (Coletâneas, Vol 02, p. 56)
320
pelas experiências pretéritas não eram mais capazes de conduzir os passos dos homens
no presente, não era possível saber como seria o futuro. Estaríamos enganados, contudo,
se achássemos que essa indefinição, obrigatoriamente, se desdobrou em uma
cosmovisão pessimista e melancólica. Pelo contrário, Prado viu na indeterminação
futura a possibilidade da redenção.
Ao longo da década de 1890, as expectativas de Eduardo Prado variaram de
acordo com a situação política da República. Em um primeiro momento, durante a
ditadura militar, ele chegou a dizer, nos ―Fastos‖, como eu mostrei na última seção, que
a ―civilização brasileira morreria‖, se tornando o termo ―Brasil‖ a designação de uma
simples localização geográfica e não de uma nação. Após o fim da ditadura militar, o
autor se tornou menos pessimista, o que reorientou as suas percepções a respeito do
futuro do Brasil.
A geração que aí vem com a rapidez do tempo e que nos impele para o túmulo
com todas as nossas dissensões, os nossos ódios e as nossas faltas, essa achará a
pátria em ruína e, amaldiçoando a nossa obra, terá como ideal o restabelecimento
da civilização brasileira, com a volta à liberdade e à tolerância, bem supremos de
que nos despojamos e que os nossos filhos saberão reconquistar 701.
701
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 21/11/1895. (Coletâneas, Vol 02, p. 129).
321
No trecho, Prado aponta a aceleração da temporalidade e ensaia uma previsão
para o futuro do Brasil. Tendo como base a curta história da República, uma história de
―dissensão‖, de ―ódio‖ e de ―ruìna‖, o autor sugere que as gerações futuras seriam
capazes de recolocar o paìs no caminho da ―civilização‖. Portanto, o prognóstico, aqui,
guarda algo do continuum cronológico típico da temporalidade tradicional: tendo como
ponto de partida o exame dos eventos passados é possível delinear o futuro, pois as
camadas temporais, os ―estratos de tempo‖, para utilizar a metáfora setecentista
mobilizada por Koselleck702, guardam vínculos entre si. Se em pouco tempo, a
República foi capaz de violar tudo aquilo que o Brasil tinha de mais valioso, o seu
futuro não poderia ser outro que não a ruína. Então, a despeito da aceleração da
temporalidade, Eduardo Prado diz ser possível antever os acontecimentos futuros à luz
dos acontecimentos passados. Por outro lado, há algo de progressismo no prognóstico
de Eduardo, de um progressismo suis generis e diferente do progressismo
revolucionário, mas que, ainda assim, localiza no futuro o momento da redenção. Em
alguns momentos, nos escritos do nosso autor, as fronteiras entre a temporalidade
progressista e a cronotopia conservadora se tornam algo porosas, sem, contudo, jamais
desaparecerem por completo.
Parece que Prado está traçando uma ―história geral da República‖, que seria
constituída por um passado recente de violência e tirania, por um presente de transição,
representado pelos governos civis, e por um futuro de redenção, quando o Brasil
perceberia que a aventura republicana fora um fracasso. O desfecho disso seria, é claro,
a restauração da Monarquia. Eduardo Prado não chegou a elaborar explicitamente o
argumento, mas me parece que, nesse esquema interpretativo, a posse de Prudente de
Morais e a desmilitarização do Estado republicano são eventos constitutivos de um
702
Em um livro recentemente publicado em língua portuguesa, Reinhart Koseleck se apropria de
metáforas espaciais para examinar a temporalidade moderna. Entre essas metáforas tem destaque a noção
de ―estratos de tempo‖, que é uma formulação já disponível no vocabulário ocidental desde o século
XVIII. Nas palavras do autor, Assim como ocorre no plano geológico, os ―estratos de tempo‖ também
remetem a diversos planos, com durações diferentes e origens distintas, mas que apesar disso, estão
presentes e atuam simultaneamente. Graças aos ―estratos de tempo‖ podemos reunir em um mesmo
conceito a contemporaneidade do não contemporâneo, um dos fenômenos históricos mais reveladores.
Ver 702 KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: ContraPonto,
2014. p. 122. p. 09.
703
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 21/11/1895. (Coletâneas, Vol 02, p. 62).
322
movimento geral de degeneração do regime político fundado em novembro de 1889 e
de regeneração da Monarquia. Nos seus estudos a respeito do pensamento histórico
brasileiro no início do século XIX, o historiador Valdei Lopes Araújo destaca a
importância da dicotomia degeneração X regeneração para o pensamento historiográfico
brasileiro. Para o autor, nas duas primeiras décadas do século XIX, no mundo luso-
brasileiro, o tempo foi representado na chave da ―regeneração‖, visto que existia a
percepção geral de que o Império português vivia um momento de degeneração.
Acredito, portanto, que seja possível sugerir que Prado está operando com algo
similar à noção de ―progresso‖, cara à metafìsica revolucionária que ele tanto rejeitava.
Porém, dizê-lo não significa implodir as fronteiras entre essa metafísica e o
conservadorismo do nosso autor, mas sim, no máximo, problematizá-las. Quando Prado
fez o seu diagnóstico otimista e apontou para um progresso futuro, ele não estava
querendo dizer que a marcha rumo a esse progresso é contínua e evolutiva, mas sim
descontínua e marcada pelo necessário retrocesso. A fundação da Monarquia, em 1822,
que é pensada pelo autor como a herdeira da colonização portuguesa nos trópicos, faz
parte do processo de consolidação da ―civilização brasileira‖, processo que foi
interrompido pela proclamação da República.
Acima, porém, dos homens, acima dos interesses da nova geração, pairam as
ideias de justiça e de liberdade. A história pode ser desfigurado pelos
704
ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1812-1845). São Paulo: Ed. HUCITEC, 2008. p.27.
323
historiográficos oficiais e interesseiros. Não é, porém, possível iludir a
inteligência das gerações futuras, como se rouba a liberdade da geração
presente705.
Estas palavras não são de Hegel, mas sim de Eduardo Prado, para quem somente
os brasileiros do futuro estariam aptos a julgar os ―crimes‖ da geração que viveu a
queda da Monarquia e a proclamação da República. A história, nesse tempo futuro,
seria, então, um tipo de tribunal que, distanciado do calor dos conflitos originais, teria a
temperança suficiente para separar os justos dos criminosos. A moral da história não
está mais nos eventos singulares, que mobilizados pragmaticamente seriam capazes de
orientar a ação dos contemporâneos, mas sim na própria História, grafada com letra
maiúscula e dotada de substância e sentido próprios. Nas palavras de Koselleck, ―a
705
PRADO, Eduardo. Trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1959. p. 57.
706
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p. 150.
707
PRADO, Eduardo. ―Comércio de São Paulo‖. 21/11/1895. (Coletâneas, Vol 02, p. 70).
324
história temporalizada e processualizada como unicidade permanente não podia ser mais
aprendida de forma exemplar, mas sim encarada e explicada de forma nova por cada
708
geração da humanidade que está em progressão‖ . Essa forma moderna de tratar a
história, particularmente naquilo que se refere ao uso da metáfora do tribunal, está
muito próxima daquilo que podemos encontrar nos escritos de Eduardo Prado. Ao
comentar sobre a guerra hispano-americana no livro ―A Ilusão Americana‖, o uso da
metáfora fica ainda mais claro.
Nesse sentido, Prado opera com a noção de ―processo‖, cara, como sabemos, às
filosofias modernas da história. Porém, isso não quer dizer que ele o faça na perspectiva
do progresso, pois, como disse há pouco, o mais correto seria falar em ―retrocesso‖,
compreendido como a regeneração das tradições, como um movimento de volta à
708
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. pp. 162-163.
709
PRADO, Eduardo. O Natal de Voltaire. ―Revista Moderna‖, 01 de janeiro de 1898. (Coletâneas, Vol
01, pp. 376).
325
autoridade do passado. O conservadorismo do nosso autor é, portanto, constituído por
valores distintos, mas combináveis entre si, como podemos perceber no cálculo que
fundamenta a previsão que ele fez para o futuro de Cuba. Segundo Prado, a
peculiaridade da independência cubana, forjada no conflito entre o velho império
colonial e o novo império capitalista, não garantiria a liberdade do povo cubano porque
a nova nação nascera como o resultado do imperialismo estadunidense. O prognóstico,
portanto, parte do exame dos eventos da guerra hispano-americana e da consequente
independência de Cuba, que são interpretados à luz do continuum histórico, pois se a
ilha cubana se libertou do julgo espanhol através da tutela do governo dos EUA, essa
liberdade era falsa, sendo o devir da sociedade cubana algo parecido com o seu
presente, estando, então, passado, presente e futuro irmanados pelo julgo colonial. No
mesmo parágrafo, Eduardo Prado utilizou a moderna noção de ―drama universal‖,
sugerindo um prognóstico que não apontou para o télos do progresso, mas sim para o
aprofundamento da corrupção, e calculou o futuro em função das experiências passadas.
Mais uma vez, a combinação entre o antigo e o moderno. A performance do nosso autor
é semelhante quando o objeto do prognóstico são os próprios EUA.
Aqui, o autor prevê uma rebelião geral dos povos latino-americanos contra a
dominação imperialista exercida pelos EUA. Outra vez, o prognóstico atende à
temporalidade tradicional, pois a premissa é o continuum entre as experiências. Entre o
presente no qual Prado escreve, quando os EUA, de acordo com o autor, escravizavam
os outros países americanos, e o futuro projetado, a situação do continente americano é
a mesma: a dominação imperialista de um país sobre os outros. É exatamente a
convicção de que essa situação não irá se transformar que torna o prognóstico possível.
Em outras palavras: a coerência da previsão está no fato de que o dado principal – o
imperialismo norte-americano – não irá se transformar com a passagem do tempo. Ao
menos nesse momento, o autor não parece estar trabalhando com a noção de tempo
acelerado. No entanto, logo depois, ele reorienta a argumentação e se apropria de um
valor constitutivo das filosofias progressistas modernas. Situando em um futuro
710
Idem. p. 384.
326
indefinido o momento da justiça, quando a ―grande República sem entranhas‖ teria seu
―justo castigo‖, uma punição imputada pela história.
o bloco imenso de uma rocha ferruginosa, ora decomposta, e que forma uma
montanha de terra arroxeada, como que embebida do sangue, ainda fresco, já
existia há milhares de anos, antes de existir tudo quanto hoje existe e faz ruído.
Ela existia antes do tempo em que o exército de César era contra a armada de
Pompeu. Existirá ainda, quando, de outros ambiciosos, não restarem nem os
nomes pouco ilustres713.
711
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. pp. 181-182.
712
Em outro lugar, eu examinei a narrativa sobre a nação que foi produzida pelo Estado republicano
brasileira durante o governo de Floriano Peixoto (1891-1894). Na época, os jornais jacobinos, como o ―A
Bomba‖, por exemplo, fizeram campanha para a destruição dos monumentos públicos que lembravam a
colonização portuguesa, na qual era inserida a Monarquia bragantina. Entre esses monumentos, a estátua
equestre de D. Pedro I, que até hoje está situada na região central do Rio de Janeiro, era o que mais
incomodava os grupos que apoiavam o governo de Floriano Peixoto. No jornal ―O Nacional‖, que era
outro periódico controlado pelos jacobinos, a estátua do primeiro Imperador era definida como ―esse
padrão nojento do nosso passado opróbrio, desarraigaram arvores utilíssimas, lançaram por terra arbustos
pitorescos, destruíram a relva branda e verde, apertaram o jardim que o circundava‖. Ver: OLIVEIRA,
Rodrigo Perez. As armas e as letras: a Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército brasileiro
(1881-1901). Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2013. p. 120.
713
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. pp. 181-182.
327
a decomposição momentânea representa a República, que não seria capaz de
comprometer a existência do Brasil. O país formado na tradição da colonização católica
portuguesa sobreviveria à República, pois, apesar de tudo, o catolicismo de matriz
lusitana já havia passado no teste do tempo. Fica claro que o prognóstico é otimista, mas
não de um otimismo progressista, segundo o qual a história marcha rumo ao novo, que
é, necessariamente, visto como superior ao velho. O otimismo de Prado não se
fundamenta na expectativa pelo novo, pelo télos, mas sim na esperança de que o velho
continuará a existir, de que a autoridade da tradição será preservada.
Neste capìtulo, eu tentei compreender como o ―tempo‖ pode ser utilizado não só
como uma categoria analítica para o exame do pensamento conservador de Eduardo
Prado, mas também como uma das premissas para sua interpretação da realidade. Ao se
debruçar sobre a curta história da República brasileira, o autor desenvolveu uma
reflexão sobre as especificidades da temporalidade moderna, o que o levou a se
apropriar dos argumentos consagrados por outros autores vinculados ao
conservadorismo. Portanto, foi no trânsito entre as noções antiga e moderna de tempo
que Prado defendeu as tradições católicas e monarquistas, o que não o impediu de falar
em ―drama universal da história‖ e em ―tribunal da história‖, termos que são
fundamentais na engenharia discursiva das filosofias progressistas, as mesmas que o
nosso autor criticou tão duramente. Essa combinação entre o antigo e o moderno pode
ser percebida, também, na historiografia desenvolvida por Eduardo Prado. É,
exatamente, essa historiografia que eu analiso no próximo, e último, capítulo.
328
Capítulo 9
Não à toa, eu inicio este último capítulo com trechos de autoria de três dos
principais interlocutores, e amigos, de Eduardo Prado: respectivamente, Eça de Queirós,
Capistrano de Abreu e José Maria da Silva Paranhos Jr, o Barão de Rio Branco. Ao
contrário do que as epígrafes sugerem, aqui, o meu tema central não é a rede de
socialibilidades de Prado, assunto que analisei no sexto capítulo desta tese. Ao invés
disso, estou interessado em entender o lugar que a historiografia ocupa no pensamento
político conservador do nosso autor e, por isso, os testemunhos dos três intelectuais
servem como pontos de partida para a minha análise. Cada um a seu modo, eles
comentaram os estudos históricos de Eduardo Prado, apontando a modernidade da
historiografia que ele desenvolveu. O que os três autores parecem estar destacando é
uma concepção moderna de história, que envolve tanto os acontecimentos estudados
como a narrativa desenvolvida por um autor comprometido com uma série de
procedimentos destinada ao conhecimento ―verdadeiro‖ dos eventos passados. Como eu
já cometei antes, importantes estudiosos da modernidade afirmam que a construção
dessa noção moderna de história é uma das principais novidades trazidas pela
inteligência do século XVIII, chegando mesmo a se configurar, na língua germânica, em
um neologismo, de acordo com a análise de Reinhart Koselleck.
714
QUEIRÓS, Eça de. Eduardo Prado. In PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola
Tipográfica Salesiana, 1904. pp. XIII-XIV.
715
ABREU, Capistrano. “Ensaios e Estudos” (crítica e história). Ed. Briguiet, 1931. p.339.
716
FILHO, Luís Viana (ORG). O arquivo do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1947. p. 71.
329
Capistrano de Abreu, um dos principais nomes da história da historiografia
brasileira e reconhecidamente o maior historiador brasileiro vivo nos anos finais do
século XIX717, define Prado como um ―legìtimo especialista em História‖. Não é
fortuito o fato de a palavra estar grafada com letra inicial maiúscula, pois ao usar o
termo, o historiador cearense não estava se referindo aos anais ou às crônicas
características da historiografia pré-moderna, mas sim ao conhecimento já configurado
como um campo científico autônomo. Também Eça de Queirós e o Barão de Rio
Branco destacam o distanciamento da historiografia de Eduardo Prado em relação a
outras narrativas sobre o passado. O escritor português afirma que, diferente do que
acontece nos ―annaes‖, Prado era capaz de penetrar na ―alma palpitante dos tempos‖,
não se contentando em ―observar a fachada monumental dos tempos‖. Eça de Queirós
parece estar sugerindo que o nosso autor fazia algo próximo ao que hoje chamaríamos
de ―história social‖, ou seja, uma representação historiográfica que não se restringe à
narrativa factual dos acontecimentos políticos protagonizados pelos grandes homens,
mas sim que persegue a compreensão das estruturas sociais dos eventos, do ―motor dos
acontecimentos‖, para utilizar um termo caro a Fernand Braudel. Já o Barão de Rio
Branco comenta, em carta enviada a Joaquim Nabuco em 1894, os dois livros mais
conhecidos de Eduardo Prado: os ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖, que Paranhos
classifica como um bom livro de ―crônicas‖, e o ―A Ilusão Americana‖, que ele
considera uma ―verdadeira História‖. Quais seriam as diferenças entre os annaes, a
crônica e a ―verdadeira história‖ para esses autores? Ao longo deste capìtulo, eu me
debruço sobre este problema, pois me parece que aqui reside uma questão fundamental
para a reflexão a respeito da identidade epistemológica da história, e do historiador, na
cena intelectual brasileira dos últimos anos do século XIX.
717
Desde os estudos de José Honório Rodrigues, que foi um dos primeiros autores a se debruçar de forma
mais sistemática sobre a fortuna historiográfica de Capistrano de Abreu, que o historiador cearense vem
sendo apontado como um dos principais representantes da historiografia brasileira. A partir de então, os
escritos de Capistrano de Abreu foram objeto de inúmeros estudos, tendo destaque os de Rebeca Contijo,
Maria da Glória Oliveira, Francisco Falcon e Fernando Amed, todos devidamente citados e referenciados
ao longo deste capítulo. Apesar das particularidades desses estudos, há um consenso que os aproxima: a
definição de Capistrano de Abreu como o maior historiador brasileiro vivo no final do século XIX, sendo
a sua produção historiográfica um marco tanto para a demarcação metodológica da historiografia
científica brasileira como para o delineamento do período colonial como um momento fundamental para a
interpretação da história do Brasil.
330
especializado no estudo da história e versado nos procedimentos metodológicos da
ciência histórica. Será que a análise dos textos historiográficos de Eduardo Prado
confirma essa interpretação? O que significava ser historiador no Brasil no final do
século XIX? Eduardo Prado foi mesmo reconhecido como um historiador por seus pares
ou os seus mais chegados amigos foram generosos demais? Havia algo parecido com
uma comunidade científica de historiadores no Brasil do final do século XIX capaz de
dizer quem poderia ser considerado um ―historiador‖? É possìvel perceber nos textos de
Eduardo Prado a adoção dos métodos de investigação que, na Europa, estavam, desde o
início do século XIX, sendo delineados como obrigatórios para o trabalho do
historiador? Qual teria sido a relação de Eduardo Prado com o IHGB? Como demonstrei
no sexto capítulo, a entrada do nosso autor no corpo de sócios da agremiação que na
época regulava a pesquisa histórica no Brasil foi tardia. Será, então, que nas suas
pesquisas, ele seguiu o caminho traçado pelos membros do instituto que, desde a década
de 1830, estavam interessados em fomentar estudos sobre a história do Brasil?
Apresentar possibilidades de respostas para essas inquietações é o objetivo deste último
capítulo.
331
documental e interessado em desvelar o ―sentido‖ da história do Brasil, também é
igualmente verdadeiro que os protocolos retórico/moralistas, característicos da
historiografia antiga, jamais estiveram completamente excluídos do seu horizonte de
preocupações. Nesse sentido, novamente, eu me esforço para sustentar aquela que é
hipótese central desta tese: o conservadorismo de Eduardo Prado, em todas as suas
manifestações, incluindo a historiografia sobre a colonização portuguesa na América, é
constituído pela combinação de elementos modernos e antigos da tradição intelectual
ocidental.
Estou sugerindo, portanto, que nos escritos de Eduardo Prado não são tão rígidas
as fronteiras entre o gênero histórico/poético e a disciplina científica que nasceu no
espaço acadêmico europeu na primeira metade do século XIX. Ao apresentar essa
hipótese, eu estabeleço um diálogo com uma bibliografia que se esforçou em tornar
mais porosos os limites entre os repertórios historiográficos antigo e moderno. No
próprio verbete ―história‖ do dicionário de conceitos que foi tão importante para o
projeto historiográfico de Koselleck, a tese de que a história, como um termo singular
coletivo utilizado para designar tanto o ―processo histórico‖ como o seu estudo
científico, é uma construção genuinamente moderna, é um tanto flexibilizada. Na parte
do verbete destinada ao conceito antigo de história, que foi redigida por Cristian Meier,
a dimensão total do conceito de história é identificada já nos textos de Políbio, onde os
acontecimentos posteriores ao ano de 220 tomaram ―a forma de um corpo, que significa
que ela se transformou num todo inter-relacionado, fazendo com que as ações e os
acontecimentos nas diferentes partes do mundo se relacionassem entre si, e todos eles se
voltassem para um mesmo objetivo. O todo apresentava um conjunto de ações, uma
peça de teatro, com começo, meio e fim‖719. No entanto, ainda segundo Meier, o uso
que Políbio fez do conceito singular de história não remetia exatamente ao que hoje nós
entendemos como ―processo histórico‖, sendo utilizado, sobretudo, ―para a forma, para
o invólucro, e apenas secundariamente para todo o conjunto de ações, de
acontecimentos e de transcursos que ele continha. Do ponto de vista do conteúdo, ele
visava muito mais à soma dos acontecimentos do que a relação entre eles‖720. Para
Meier, portanto, ainda que o uso do conceito singular de história já possa ser observado
719
MEIER, Cristian. Antiguidade. In: KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte:
Ed. Autêntica, 2013. p. 46.
720
Idem. pp. 48-49.
332
nos tratados polibianos, a concepção de processo histórico é uma criação moderna, o
que valida a tese koselleckeana.
721
ENGELS, Odilo. Antiguidade. In: KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte:
Ed. Autêntica, 2013. pp. 63-82. p.82.
333
Neste último capítulo, portanto, eu me debruço sobre um corpus relativamente
extenso de textos, de modo a examinar a articulação entre a forma e o conteúdo da
historiografia eduardiana, pois acredito que, assim, é possível compreender como
Eduardo Prado combinou os protocolos pedagógico/moralistas da concepção retórica de
história com os procedimentos metodológicos da ciência histórica moderna. De acordo
com a conjuntura de elaboração do discurso, o nosso autor mobilizou, e combinou,
estratégias distintas que resultaram em narrativas que articularam conteúdos e estilos em
função dos interesses da argumentação. Em outras palavras: se o interesse principal de
Eduardo Prado era desqualificar a forma republicana de governo, ele, por exemplo,
historiou a implantação desse regime político na América, desenvolvendo uma
cronologia na qual os eventos narrados guardam potencial semelhança entre si, o que
lhe permitiu extrair uma lição da história americana, segundo a qual, no continente, o
republicanismo era equivalente ao despotismo militar e à violência. Por outro lado,
quando o objetivo era examinar a ―história da civilização brasileira‖, ele foi
extremamente rigoroso na análise dos documentos e na articulação de uma interpretação
do Brasil que apontou para o êxito da experiência colonial lusitana nos trópicos. O que
estava em jogo, aqui, não era exatamente a extração de uma lição moralizante oriunda
da exemplaridade dos eventos passados, mas sim a compreensão do ―sentido maior‖ da
história brasileira, que, para Eduardo Prado, era o rumo impresso pela ação civilizadora
da catequese católica. A construção dessa interpretação do Brasil, como eu demonstro
ao longo do capítulo, não está descolada da militância política antirrepublicana do autor.
Também este último capítulo está dividido em três partes, sendo que o critério
que eu utilizo para a divisão é relativo à tipologia dos materiais examinados. Na
primeira seção, eu me debruço sobre os textos mais engajados de Eduardo Prado,
justamente aqueles que foram escritos no calor dos embates que ele travou com as
instituições republicanas. Nesse momento, o meu interesse específico é compreender
como Prado utilizou a ―história‖ como parte de sua estratégia polìtico/ideológica. Na
segunda seção, eu analiso a correspondência que o nosso autor trocou com os seus
principais interlocutores, pois acredito que neste tipo de documentação é possível
entender algo a respeito do delineamento de um procedimento historiográfico científico
moderno no Brasil do final do século XIX. Na terceira seção, eu examino os escritos
propriamente historiográficos de Eduardo Prado, ou seja, aqueles nos quais o autor
assumiu a identidade do historiador e se dedicou ao estudo da história da colonização
334
portuguesa na América. Acredito que nesse material seja possível perceber a principal
contribuição do nosso autor ao pensamento social brasileiro.
Há dez dias que o cabo submarino tem transmitido da América do Sul para a
Europa, na concisão do estilo telegráfico, notícias surpreendentes, que chamaram
para aquela parte do mundo a atenção de todos, mesmo dos que, em tempo
ordinário, jamais pensam no que vai pelo ocidente, ao sul do Equador. (...)
Narrar a verdade dos acontecimentos materiais não é coisa possível; o telégrafo
está lacônico, faltam os antecedentes; e carecemos dos detalhes intermediários
que só podem dar uma aparência de lógica ao que, à primeira vista, se afigura
inexplicável. (...) Investigar as causas não é, porém, a missão do cronista, a quem
somente cumpre contar os acontecimentos722. (Grifos Meus)
Três anos separam as duas citações. A primeira pode ser encontrada nas páginas
iniciais do artigo ―Os acontecimentos do Brasil‖, publicado na ―Revista de Portugal‖ em
dezembro de 1889, e a segunda foi publicada em 1893, na introdução do livro ―A Ilusão
Americana‖. Nas palavras do próprio Eduardo Prado, os textos dos ―fastos‖ são
722
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
723
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1990. p. 17.
335
classificados como ―crônica‖, enquanto no livro ―A Ilusão Americana‖, a história é
evocada como uma espécie de instância decisória a qual o autor recorre para questionar
o argumento da fraternidade republicana, que era o fundamento discursivo da
diplomacia republicana, que pretendia estreitar os laços entre Brasil e EUA. A
classificação genérica segundo a qual Prado tratou os seus próprios textos é a mesma
que o Barão de Rio Branco utilizou na carta que enviou a Joaquim Nabuco, como vimos
em uma das epígrafes que dão início a este capítulo. Mas o que esses autores entendiam
por ―crônica‖ e por ―história‖?
Será, então, que, à luz das páginas iniciais dos ―Fastos da Ditadura Militar no
Brasil‖ e da ―Ilusão Americana‖, é possìvel sustentar o argumento de que nos artigos
escritos no calor dos acontecimentos, Prado atuou como um cronista pré-moderno e no
724
ENGELS, Odilo. Antiguidade. In: KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte:
Ed. Autêntica, 2013. pp. 63-82. p. 66.
725
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p.146.
726
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1990. p. 17.
336
livro produzido no quarto ano de vida da República brasileira, ele agiu como um
historiador filosófico, no sentido moderno da expressão? Não me parece que essa
polarização rígida se sustente em uma análise mais criteriosa do material, na medida em
que o próprio autor, em ambos os textos, se permitiu transitar entre a crônica e a
história, entre a apropriação retórica dos fatos, a racionalização processual da História e
a metodologia científica do trabalho com as fontes. Ainda no primeiro artigo dos
―Fastos‖, Prado, em uma breve citação, parece contradizer a classificação genérica que
ele mesmo apresentou no início do texto. Ao examinar um documento telegrafado pelo
governo brasileiro à imprensa europeia, Prado demonstra, novamente, como o
estabelecimento de rótulos mais rigorosos são inadequados para a interpretação da sua
performance discursiva. Ali, nas páginas da revista dirigida pelo seu grande amigo
português, o objetivo do nosso autor era bem claro: comprometer a credibilidade da
jovem República brasileira na opinião pública internacional e, por isso, ele combinou os
repertórios de forma frouxa, o que não deve ser visto como uma falha, mas sim como
um elemento constitutivo do tipo de narrativa que ele estava interessado em articular. O
telegrama dizia o seguinte: ―A tropa em estado de revolta. Reina tranquilidade. – O
imperador em Petrópolis. Completa paz. – Foi preso o ministério. População calma. –
Foi proclamada a República. Tudo inalterado. – O imperador preso no seu palácio.
Ordem perfeita‖727.
727
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 2-3.
728
Idem. p. 3.
337
textualmente o telegrama, portanto, o nosso autor mostrou certa inclinação ao exercício
epistemológico que é fundamental para a crítica historiográfica moderna, segundo a
qual a narrativa deveria ser duplicada, apresentando, nas palavras de Anthony Grafton,
―tanto os resultados de uma investigação, quanto o caminho percorrido na operação de
pesquisa, mediante a indicação de suas fontes bibliográficas e documentais‖ 729.
Por outro lado, Prado não informou ao seu leitor a fonte da citação, de onde ele
havia extraìdo o telegrama que julgava ser demasiadamente ―conciso‖, ou seja,
insuficiente para representar a realidade da política brasileira naquele final de 1889. O
mesmo Anthony Grafton sugere que a ciência histórica moderna é fundamentada, entre
outras coisas, no recurso à referenciação de fontes sob a forma das notas de rodapé, que
identificam ―tanto a prova primária que garante a solidez da novidade histórica quanto
as obras secundárias que não minam a forma e a tese de sua novidade‖730. Portanto, ao
citar o documento, o telegrama emitido pelas autoridades republicanas, Prado agiu
como um intérprete moderno que entende ser a citação uma premissa para a construção
da sua argumentação. Porém, ao não se preocupar em mostrar a fonte do material
citado, ele não cumpriu parte do procedimento que é fundacional para o conhecimento
histórico moderno. Temos, aqui, um importante elemento relativo à forma do texto - a
citação não referenciada - que nos permite, acredito, compreender melhor como Prado
transitou pelos repertórios historiográficos disponíveis no pensamento ocidental em fins
do século XIX. Essa pouca preocupação com a exata citação das fontes não se faz tão
presente nos escritos nos quais o nosso autor assumiu explicitamente a identidade de
historiador. Até mesmo nos ―Fastos‖, que foi o texto mais engajado de Eduardo Prado,
houve momentos em que ele foi mais rigoroso no uso das citações. Por exemplo, ao
abordar as práticas da ditadura militar, ele se mostrou bastante cuidadoso na exata
citação das fontes de suas informações. Para o autor, a República significava ―para o
povo a escola do servilismo e do rebaixamento. Para o governo, é a irresistível tentação
do capricho e da vaidade – quando não seja a tentação do crime. Daí vem os
fuzilamentos do Maranhão, os tormentos infligidos aos prisioneiros‖731.
729
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Campinas: Papirus, 1998. p. 11.
730
Idem. p. 16.
731
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.43.
338
precisava ser sustentada com maior rigor e o nosso autor parecia saber disso, tanto que
ao final da citação, ele apresenta ao seu leitor uma nota de rodapé, que ocupou
praticamente a metade da página, onde são arrolados trechos de diversos jornais
brasileiros que comprovam as acusações, sendo que as citações foram devidamente
referenciadas, com o nome do jornal e a data da matéria, pois ―as páginas da imprensa
brasileira não deixam dúvidas de que a República é na verdade a tirania‖ 732. De maneira
muita próxima ao trabalho do historiador moderno, Eduardo Prado apresentou a sua
tese, sustentou-a, em nota de rodapé, com fontes devidamente referenciadas, e retornou
ao argumento central, deixando claro que a ―verdade‖ poderia ser comprovada por
qualquer um que estivesse disposto a cotejar o texto com os materiais citados. Acredito,
então, que é possível identificar nas crônicas de Eduardo Prado alguns lampejos de
modernidade historiográfica, que são especialmente perceptíveis nos momentos em que
o autor se preocupa em fundamentar as suas afirmações em documentos, que são
cuidadosamente referenciados.
732
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.3.
733
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Campinas: Papirus, 1998. p. 108.
339
suavizando a noção consagrada na história da historiografia de que a escola metódica,
com Ranke, principalmente, teria operado uma verdadeira revolução metodológica ao
definir a citação e a crítica das fontes como o alicerce do conhecimento histórico.
Segundo Grafton, o próprio Ranke reconheceu a sua dìvida com os ―historiadores
tradicionais e com a erudição antiquária‖.
A ideia das ―linhas tortuosas‖ me parece ser bastante adequada para o exame dos
escritos de Eduardo Prado. Como eu disse há pouco, o nosso autor iniciou o primeiro
artigo dos ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖ definindo-se como um cronista de
quem o leitor deveria esperar, tão somente, a narrativa dos acontecimentos, sem uma
investigação das causas. No entanto, na sequência do texto, ele parece não se contentar
com as limitações que ele mesmo havia imposto às suas crônicas. Ao longo dos cinco
artigos dos ―Fastos‘, Eduardo Prado mobilizou citações de documentos, que nem
sempre foram devidamente referenciados, e desenvolveu uma interpretação a respeito
da proclamação da República no Brasil, uma análise que, como já vimos no sétimo
capítulo, apresentou o nascimento do novo regime como o resultado do contato
pernicioso entre o bacharelismo e o militarismo. Ainda sobre os telegramas enviados do
Brasil, o autor escreve
chega depois a notícia da nova bandeira, seguida dos novos selos do correio; e,
por último, o ministro da fazenda, Rui Barbosa, um antigo inimigo pessoal de
Pio IX e Leão XIII, adversário feros do Syllabus, anuncia piedosamente à Europa
que o arcebispo primaz da Bahia deu a sua benção ao novo governo. Eis aí uma
história telegráfica da revolução brasileira735.
734
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Campinas: Papirus, 1998. p. 110.
735
Idem. p. 04.
340
polemista política e historiador, pois as fronteiras que delimitam os limites entre esses
exercícios discursivos não estavam claramente dadas. A situação é um pouco diferente
no livro ―A Ilusão Americana‖, que, a julgar pela correspondência trocada entre
Eduardo Prado e Eça de Queirós, que eu examinei no sexto capítulo, ocupava as
atenções Prado estava desde 1890, quando ele já coletava documentos para um livro
sobre a história das relações internacionais entre os países americanos ao longo do
século XIX. Realmente, quando comparado com os artigos dos ―Fastos‖, o livro ―A
Ilusão Americana‖ demonstra um trabalho de pesquisa, e citação, mais apurado, o que
não significa que o texto seja menos engajado, como o próprio Eduardo Prado deixou
claro no prefácio à segunda edição do livro, escrito já no exílio, em Paris.
Sendo assim, o livro mais conhecido de Eduardo Prado, justamente aquele que
colocou a ditatura militar republicano no seu encalço, é atravessado pela combinação
entre uma operação historiográfica sofisticada com uma clara militância politica
monarquista, mostrando que a dicotomia Eduardo Prado ativista político X Eduardo
Prado historiador não faz muito sentido. No ―A Ilusão Americana‖, Prado lançou mão
de um exercìcio discursivo que pouco foi desenvolvido nos ―Fastos‖: a revisão
bibliográfica, outro procedimento considerado fundamental na moderna operação
historiográfica. Ao comentar a proclamação da Doutrina Monore, o autor citou o texto
original que o Presidente James Monroe leu no Congresso Estadunidense em 1823 e
examinou a interpretação que George Samper, escritor colombiano, fez do assunto: ―[O
sr Samper] interpretou erroneamente as intenções dos diplomatas dos EUA com a
promulgação da Doutrina Monroe; deixando-se levar pelo espírito emancipacionista
daqueles tempos, o autor colombiano não teve o distanciamento necessário para fazer
uma correta análise crìtica das fontes‖737.
736
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1990. p. 15.
737
Idem. p. 25.
341
738
grosseira arrogância em relação ao Brasil e aos outros paìses da América do Sul‖ .
Para fundamentar a sua interpretação, Prado cita um discurso que Tudor haveria
proferido no Congresso dos EUA em outubro de 1830. Cito, ips litteris, a forma dessa
citação: ―É preciso, diz o secretário Tudor, não diminuir as nossas forças, que são
indispensáveis para a defesa dos nossos interesses perante aqueles governos instáveis e
incapazes‖. A citação vem acompanhada de uma nota de rodapé, onde Prado informa o
seu leitor a fonte na qual coletou o trecho: ―U.S. Senate Documents: Congress 21 st.
Ses. 2, 1830 e 31, vol. I, pág. 38. Doc I‖739. Esse padrão de citação acompanha todo o
livro, sendo reiterado em cada uma das notas de rodapé destinadas à localização das
fontes. Como podemos perceber, o texto de Prado, tal como os nossos atuais trabalhos
historiográficos, regulados por um campo disciplinar que vigia o cumprimento de
alguns procedimentos considerados indispensáveis para que o estatuto de ―escrita
historiográfica‖ seja autorizado, é polifônico, pois as vozes do autor, das fontes
primárias e da ―bibliografia secundária‖ ocupam o mesmo espaço narrativo, sendo todas
claramente delimitadas pelos adequados signos de pontuação.
Esses aspectos formais sugerem algumas pistas que podem ser encontradas,
também, no conteúdo da argumentação, apontando, dessa forma, para o caráter moderno
da historiografia do nosso autor. Primeiro, a definição da ―análise crìtica das fontes‖
como o procedimento fundacional do conhecimento histórico, algo que somente poderia
ser feito por um estudioso munido dos procedimentos metodológicos adequados e
devidamente afastado da cena original dos acontecimentos examinados. Segundo, Prado
destaca a transitoriedade do conhecimento histórico, pois ao sobrepor a sua própria
interpretação ao estudo de George Samper, ele sinaliza a natureza hermenêutica do
conhecimento histórico, já que, dependendo da proximidade do intérprete com os
acontecimentos estudados, a análise pode ser mais ou menos confiável. Os estudos
desenvolvidos por Hans Ulrich Gumbrecht a respeito da sensibilidade moderna nos
ajudam a melhor compreender o teor dessa ―modernidade historiográfica‖ que estou
atribuindo aos escritos de Eduardo Prado. Como já comentei no sétimo capítulo, ao
formular a noção de ―Cascatas de Modernidade‖, Gumbrecht torna mais complexa a
experiência histórica moderna, principalmente naquilo que se refere às questões
epistemológicas, que é o que mais me interessa aqui, nesse momento da minha reflexão.
738
Idem. p. 34.
739
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: IBRASA, 1990. p.34.
342
Para o autor, a primeira grande transformação epistemológica trazida pela modernidade
teve início no momento da descoberta da América, quando o homem, cada vez mais,
passou a ocupar ―o papel do de sujeito de produção do saber‖, o que foi reforçado pela
teologia protestante, que mudou o status dos sacramentos para os de ―meros atos de
comemoração‖. Essas transformações epistemológicas alteraram a autoimagem do
homem produzida durante a Idade Média, baseada na percepção de que a humanidade
era ―parte da criação divina, cuja verdade ou estava além da compreensão humano ou,
no melhor dos casos, pela revelação de Deus‖740.
740
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentindos. São Paulo: Ed 34, 2010.p.11.
741
Idem. p. 12.
343
deixou convencer pelas promessas libertárias da diplomacia estadunidense, promessas
que somente puderam ser percebidas como falaciosas na transitoriedade das
experiências, que, segundo Prado, revelaram que, para os países americanos, os EUA
agiram mais como algozes do que como protetores. Nesse sentido, o próprio exercício
da interpretação é temporalizado, o que permite ao nosso autor, em alguns momentos do
seu livro, combinar a sua ―história da América‖ com uma ―história da historiografia da
América‖. Esse exercìcio de historicização da própria interpretação historiográfica foi
ainda mais mobilizado nos textos nos quais Prado assumiu claramente a identidade de
historiador, material que eu examino na terceira seção deste capítulo.
344
antiguidade, na história da República no mundo ocidental: o militarismo e o
personalismo político. A comparação entre experiências afastadas no tempo não para
por aí. Na sequência do texto, Prado estabelece uma regra de validade atemporal para a
compreensão do funcionamento das repúblicas.
743
Idem. p. 36.
744
MEINECKE, Friedrich. El Historicismo y su Génesis. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. p.
141.
745
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p.162.
746
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2006. p. 42.
345
do século XIX. Percebo essa sobrevivência nos textos de Prado, quando o vejo, por
exemplo, dizer que ―os fatos da história do republicanismo latino-americano nada mais
são do que a repetição de uma natureza imutável do regime político republicano na
cultura ocidental‖. O autor está, portanto, recorrendo à história para sustentar o seu
posicionamento político, segundo o qual, no Brasil, a proclamação da República
representava um risco civilizacional. Eduardo Prado parecia entender muito bem que
esse posicionamento seria tão mais crível o quanto mais se sustentasse na
exemplaridade dos fatos passados, que guardariam certo potencial pedagógico, pois,
aqui, o nosso autor está pensando a história como uma ―coleção de exemplos‖ que o
habilitariam a convencer os seus leitores da necessidade de pôr fim à aventura política
dos militares brasileiros, restaurando a Monarquia. A noção de ―convencimento‖ é bem
adequada para o exame dos textos mais engajados de Eduardo Prado, na medida em que
o autor utilizou a história, também, ―no contexto da oratória‖, segundo o qual o ―orador
[historiador] é capaz de emprestar um sentido de imortalidade à história, como instrução
para a vida, de modo a tornar perene o seu valioso conteúdo de experiência‖747.
747
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2006. p. 43.
346
seis anos de intensa movimentação política e de direto envolvimento com as tentativas
de enfraquecimento dos governos republicanos, Eduardo Prado, percebendo, finalmente,
que a República era fato consumado ―mergulhou nas meditações sobre as altas questões
748
de espírito, embebendo sua alma na contemplação sublime das verdades terrenas‖ .
Nesse momento de reclusão, de afastamento da vida política, o autor teria se entregue à
vivência religiosa, pois ―assistia à santa missa de joelhos, do começo ao fim‖ e se
dedicado ao estudo da história da ordem dos Jesuìtas, ―sendo a sua devoção ao Padre
José de Anchieta especialmente sincera‖. Cândido da Mota Filho diz algo semelhante:
―depois de intensa movimentação polìtica, Eduardo entrou em um momento de maior
tranquilidade, se dedicando ao estudo do papel dos jesuìtas na formação brasileira‖749.
748
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed Cetro, 1960. p. 170.
749
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 101.
750
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Ed Cetro, 1960. p. 171.
751
FILHO, Cândido Mota. A Vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1967. p. 83.
347
Barão de Rio Branco, constituem o corpus analisado nesta seção, que tem o objetivo de
examinar como Eduardo Prado tratou, nos bastidores, a preparação dos seus trabalhos
historiográficos. Acredito que nessas cartas, o autor nos oferece alguns indícios a
respeito da sua percepção sobre o ofício do historiador e a metodologia do trabalho
histórico, o que sugere a mobilização do repertório do historicismo germânico.
752
FILHO, Luís Viana. A vida do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1952, p. 55.
753
CONTIJO, Rebeca. José Honório Rodrigues e a invenção de uma moderna tradição. In: NEVES,
Lúcia Maria Bastos Pereira das; GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoa, GONÇALVES, Márcia de
Almeida, CONTIJO, Rebeca. Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp.
277-290.
348
desenvolveu no final do século XIX e que o seu intérprete carioca considerou ser o
toque de fundação da moderna ciência histórica no Brasil. Ao analisar o esforço de José
Honório Rodrigues em delinear uma história da historiografia nacional, Francisco
Iglesias afirmou que o autor tinha o objetivo de desenvolver ―uma obra tríptica
composta por Teoria, pesquisa e historiografia. Em outras palavras, o plano envolvia a
publicação de livros sobre esses três temas, com uma finalidade pedagógica: formar
historiadores nacionais, ensinando-os a pesquisa e a escrever a história‖754. Portanto, de
acordo com a interpretação de Iglesias, José Honório Rodrigues via certo potencial
pedagógico na obra de Capistrano de Abreu, que deveria ser uma espécie de modelo a
ser seguido pelos futuros historiadores brasileiros. Há, aqui, uma pista que eu pretendo
seguir. Quais seriam os aspectos modelares da obra de Capistrano de Abreu que foram
tão valorizados por José Honório Rodrigues?
Em carta enviada ao Barão de Rio Branco, Eduardo Prado diz que ―as consultas
a Capistrano vêm sendo de grande valia para os meus estudos sobre Vieira. Ele sabe
aquilo que mais ninguém sabe, conhece documentos sem os quais seria impossível
754
IGLESIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a Historiografia brasileira. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, v. 1, n.1, pp. 57-78, 1988. p. 63.
755
CONTIJO, Rebeca. Revista de História, São Paulo, v.24, N.2, P.159-185, 2005. p. 159.
756
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 28.
349
757
estudar a história dos jesuìtas‖ . Não há no documento menção à data de envio da
carta, mas acredito que tenha sido em algum momento próximo a agosto de 1897,
quando foram realizadas as ―Conferências Anchietanas‖. O mais importante é que as
cartas trocadas entre Capistrano de Abreu e Eduardo Prado sugerem a existência de uma
estima recíproca e de uma intensa interlocução entre os dois. Por mais de uma vez,
Prado reconheceu a sua dívida com o amigo cearense, que parece ter sido mais do que
um interlocutor, mas, também, uma espécie de conselheiro, pois, nas suas próprias
palavras, ―sua última carta [de Capistrano de Abreu] me animou ainda mais a procurar o
758
verdadeiro ponto de vista da história do Brasil: o sertão‖ . A correspondência de
Eduardo Prado sugere, portanto, que as conversas com Capistrano foram importantes
para os aspectos metodológico e temático dos seus trabalhos historiográficos. Começo
pelo aspecto metodológico.
O que mais impressionava Eduardo Prado era o vasto conhecimento que
Capistrano de Abreu tinha dos documentos relativos ao período colonial. Nas palavras
do nosso autor, o historiador cearense ―sabia aquilo que ninguém mais sabia‖, palavras
que remetem, creio eu, não apenas ao conhecimento da matéria histórica, mas também
ao amplo domínio da localização e da crítica das fontes. Maria da Glória Oliveira
destaca a centralidade da crítica documental nos trabalhos de Capistrano de Abreu.
No caso de Capistrano, a opção pela explicitação do tratamento crítico das fontes
também está relacionada a outras características de seu texto que podem ser
identificadas como uma semântica prova. Nesse sentido, é significativa a forma
pela qual o historiador opera termos como ―interpretação‖ e ―testemunho‖,
―opinião‖ e ―fato‖ e ―documento‖, demarcando, entre uns e outros, uma
contraposição de domínios aparentemente inconciliáveis. Por outro lado,
expressões como ―parece que‖, ―provavelmente‖, ―pode-se até dizer‖ são mais
frequentemente usadas se comparadas com a única ocorrência da afirmação ―está
provado que‖, sugerindo que, na intenção de provar, através da crítica metódica
de testemunhos e documentos, o historiador cruza inevitável e continuamente as
fronteiras do possível, do provável, do verossímil, para chegar à enunciação de
―verdades‖ que se mantém sempre plausìveis759.
757
Coleção ―Spencer Vampré‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Gaveta 03.
Doc. 36
758
ABREU, Capistrano. Correspondência (Vol.1). Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: MEC, 1977. p.205.
759
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 95.
350
760
tarefas‖ . Para Falcon, a importância que Capistrano de Abreu atribuiu às fontes
primárias é tão grande que sugere o trânsito do historiador pelas ―fronteiras do
antiquarismo‖. Como eu comentei na última seção, de acordo com os estudos de
Anthony Grafton, são algo tênues as fronteiras entre a tradição antiquária e a moderna
crítica historiográfica, o que demonstra que Capistrano de Abreu estava sendo coerente
com os procedimentos metodológicos que estavam sendo delineados na Europa, desde o
início do século XIX, como fundacionais da ciência histórica. É o próprio autor quem
nos diz, em carta enviada a Guilherme Studart, em 20 de abril de 1904.
Por que não das a procedência dos documentos que publicas? Félix Ferreira,
sujeito aliás pouco fidedigno, contou-me que indo um dia visitar Melo morais,
encontrou-o queimando papeis. Estou queimando estes documentos, explicou-lhe
o alagoano historiador (?), porque mais tarde quando quiserem estudar História
do Brasil hão de recorrer às minhas obras. Tu não és Melo Morais. Varnhagen,
pelo menos na Torre do Tombo, levou para casa alguns documentos e se
esqueceu de restitui-los: não podia depois indicar a procedência. Tu não és
Varnhagen. Por que motivo, portanto, te insurges contra uma obrigação a que se
sujeitam todos os historiadores, principalmente desde que, com os estudos
arquivais, com a criação da crítica histórica, com a crítica das fontes, criada por
Leopoldo von Ranke, na Alemanha, foi renovada a fisionomia da história 761.
(Grifos Meus)
760
FALCON, Francisco José Calazans. Capistrano de Abreu e a historiografia cientificista: entre o
positivismo e o historicismo. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; GUIMARÃES, Lúcia Maria
Paschoa, GONÇALVES, Márcia de Almeida, CONTIJO, Rebeca. Estudos de historiografia brasileira.
Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp. 153-161. p. 157.
761
ABREU, Capistrano. Correspondência (Vol.1). Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: MEC, 1977. pp. 165-166.
351
Primeiro, é necessário esclarecer o que eu estou entendendo por ―escola
histórica‖. Estou usando o termo inspirado nos estudos do alemão Walter Schulz, para
quem a ―escola histórica‖ é ―uma das facetas do historicismo, que, a partir de Droysen,
estabeleceu uma metodologia científica independente das ciências naturais, então
762
hegemônicas‖ . As outras duas facetas do historicismo seriam, ainda, o afastamento
da metafísica filosófica, o que teria se tornado especialmente perceptível a partir de
Herder, e à ―remissão à interioridade‖, após Dilthey. O aspecto metodológico, nesse
momento, é o que mais me interessa, pois aqui reside, creio eu, um repertório que foi
fundamental para os estudos de alguns historiadores brasileiros finisseculares, como
Capistrano de Abreu e Eduardo Prado. Em carta endereçada a Joaquim Nabuco e
escrita, talvez, em algum momento de 1896, o Barão de Rio Branco dizia:
762
SCHULZ, Wlater. Le Nuove Vie Della Filosofia Contemporanea. Florença: Ed. Marietti, 1986. p. 472.
763
FILHO, Luís Viana (ORG). O arquivo do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1947, p.73.
764
FILHO, Luís Viana. A vida do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1952, p.36.
765
RANKE, Leopold von. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. L. von Ranke: História. São Paulo: Ática.
p. 81.
766
FILHO, Luís Viana (ORG). O arquivo do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1947. p.205.
352
Trata-se de uma carta de agradecimento, pois o Barão, dono de um ―monumental
acervo sobre a história do Brasil‖, como Eduardo Prado costumava dizer, era um dos
principais colaboradores dos estudos históricos do nosso autor. Por mais de uma vez,
Prado, em nota de rodapé, atribuiu à biblioteca de Paranhos Jr. a fonte dos documentos
examinados. O que mais chama a minha atenção na citação é a relação de
obrigatoriedade que Prado estabelece entre a documentação e a possibilidade da análise
histórica. O autor deixa claro que sem a contribuição do Barão, ele não seria capaz de
apontar os equívocos históricos que marcavam o projeto da bandeira republicana.
Eduardo Prado desejava, também, escrever um texto sobre a participação de Benjamin
Constant na Guerra do Paraguai, algo que ainda não era possível por conta da falta dos
documentos, que já haviam sido solicitados ao seu amigo. Também Capistrano de
Abreu destacou a importância que Eduardo Prado atribuía aos documentos históricos.
Em carta enviada ao mesmo Barão de Rio Branco, em 1897, o historiador cearense
reconheceu a contribuição de Eduardo Prado aos seus estudos etnográficos ao dizer que
―graças a Eduardo já possuo o gênesis e o evangelho de São Mateus, na língua escanoia,
falada na Guiana e, segundo me parece, quase idêntica ao crixaná‖767.
767
Idem. p. 206.
768
Idem. p. 63.
353
procedimentos metodológicos que, de acordo com a escola histórica germânica, eram
fundacionais da ciência histórica. Como eu já comentei no sétimo capítulo, alguns
textos de Ranke são mencionados no catálogo da biblioteca de Eduardo Prado, o que
sugere que o autor conhecia os trabalhos do historiador alemão, ainda que ele jamais
tenha feito uma citação direta, nem mesmo na correspondência, ao menos com a qual eu
tive contato, diferente de Capistrano de Abreu. No entanto, em uma carta enviada a Rio
Branco, em 1897, Prado, ao fazer uma rápida menção ao seu amigo cearense, nos
oferece uma pista que indica a sua adesão ao procedimento metodológico característico
da ―escola histórica‖: ―[Capistrano de Abreu] é um armazém de sabedoria, com suas
portas abertas dia e noite para todo aquele que deseja ser iniciado nos procedimentos da
ciência histórica‖769.
Com essas palavras, Eduardo Prado sugere que Capistrano de Abreu fora o seu
próprio iniciador no estudo da história, o que faz algum sentido. Afinal, o historiador
cearense, sete anos mais velho que Eduardo Prado, já era um intelectual com relativo
destaque no Rio de Janeiro no final da década de 1880770, quando o nosso autor deu
início à sua produção historiográfica. A correspondência dos dois autores reforça a
possibilidade de Eduardo Prado ter sido sensibilizado pelo repertório historiográfico que
foi mobilizado por Capistrano. Nesse sentido, naquilo que se refere à metodologia do
trabalho histórico, creio ser possível apontar para a presença de valores constitutivos do
historicismo germânico na historiografia conservadora de Eduardo Prado. Essa presença
fica ainda mais clara se deslocarmos o foco do aspecto metodológico e o direcionarmos
para a abordagem. Esse é um dos exercícios analíticos que eu desenvolvo na próxima
seção.
Desde o seu primeiro texto historiográfico, no qual é possível identificar os
procedimentos do trabalho histórico, como a citação de documentos, a referenciação da
localização das fontes e a menção a estudos anteriores, Prado se mostrou interessado
pelo interior, pelo ―entranhamento da civilização nos rincões do Novo Mundo‖771, como
769
Coleção ―Spencer Vampré‖. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Gaveta 03.
Doc. 36.
770
Capistrano de Abreu se instalou na Corte do Rio de Janeiro em 1875. Três anos depois, ele ganhou
certa projeção ao escrever o necrológio de Varnhagen. A partir de então, a sua ascensão no incipiente
meio intelectual da época foi relativamente rápida. Em 1879, após concurso público, o historiador
cearense foi nomeado bibliotecário oficial da Biblioteca Nacional, cargo que foi fundamental para o seu
trabalho de coleta e organização dos documentos históricos. Em 1883, ele foi aprovado, também em
concurso público, para a cadeira de ―corografia e história‖ no Colégio D. Pedro II, com a tese que se
tornaria uma referência importante na historiografia brasileira, intitulada ―Descobrimento do Brasil e seu
desenvolvimento no século XVI‖.
771
FILHO, Luís Viana (ORG). O arquivo do Barão de Rio Branco. C&Z Ed. 1947. p. 205.
354
ele disse em carta ao Barão de Rio Branco. Por isso, o nosso autor tratou de assuntos
como a arte indígena, o povoamento de colônia portuguesa, especialmente das regiões
próximas ao que viria a ser a cidade de São Paulo, e, principalmente, a atuação dos
padres jesuítas da catequese dos índios. Ao se debruçar sobre esses temas, Prado não
estava desbravando mares nunca antes navegados, mas dialogando com certa tradição
de estudos históricos que já vinha sendo delineada dentro do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro desde a primeira metade do século XIX. Também não podemos
esquecer os estudos etnológicos de Capistrano de Abreu, que, segundo Prado, fora a sua
principal referência para os estudos sobre o ―sertão‖. Acredito que antes de analisar os
textos propriamente historiográficos de Eduardo Prado é importante fazer algumas
considerações sobre a topografia de interesses do nosso autor. Em carta a Joaquim
Nabuco, escrita em 1895, Prado disse que ―o caboclo guarda o que há de melhor nas
raças branca e indìgena‖ sendo, portanto, ―um homem forte e o guardador dos traços
mais genuìnos da nossa nacionalidade. Para estudar o Brasil é mister estudar o sertão‖
772
.
O caboclo é um personagem fundamental na historiografia de Eduardo Prado,
que tratou, especialmente, dos contatos da cultura europeia com as culturas indígenas, o
que explica, em parte, o seu interesse pela Companhia de Jesus, ―que prestou um
indispensável serviço à civilização ao inocular nos indìgenas a luz da palavra de Cristo‖
773
. Ao abordar a relação entre europeus e nativos nessa perspectiva, Prado estabeleceu
um intenso diálogo com a tradição dos estudos etnográficos que há décadas vinham
sendo desenvolvidos pelos sócios do IHGB e por Capistrano de Abreu, que apesar de ter
sido nomeado sócio do instituto em 1887, jamais teve uma relação de completa adesão
com a agenda historiográfica da agremiação. Em um estudo dedicado à formação do
discurso etnográfico no Brasil ao longo do século XIX, Rodrigo Turin apresenta alguns
elementos que são fundamentais para a compreensão do pensamento historiográfico de
Eduardo Prado. Para Turin, a preocupação etnográfica já se fazia presente entre os
letrados do IHGB desde os primeiros anos de vida do instituto, quando, por exemplo,
Januário da Cunha Barbosa, Secretário Geral da agremiação, ―leu para os sócios
presentes seis questões que deveriam orientar as discussões da casa. Dessas seis
questões, todas devidamente aprovadas, quatro diziam respeito às populações indígenas
772
NABUCO, Carolina (org). Obras Completas. Instituto Progresso Editorial: São Paulo: 1935. p. 373.
773
Idem.
355
e as duas outras versavam sobre o processo de colonização portuguesa‖774. Também o
botânico alemão Alexander Von Martius, vencedor do concurso, realizado em 1842, de
projetos que deveriam conduzir a escrita da ―história geral da civilização brasileira‖,
tratou os índios como um grupo humano que deveria ser inserido no tempo histórico, o
que os tornaria inteligìvel pela ―razão iluminista‖. ―Para Martius, em suma, o
historiador brasileiro não poderia deixar de ser também um etnógrafo‖ 775.
A partir de então, segundo Turin, o interesse pelos índios esteve sempre presente
na agenda historiográfica do IHGB, o que não significa que inexistiram as discordâncias
entre os sócios da agremiação sobre o tema. Para o autor, esses debates a respeito do
lugar do ìndio na formação da nacionalidade brasileira estabeleceram ―um conjunto de
temas e de regras como componentes discursivos que permitem identificar a construção
776
de uma determinada retórica da nacionalidade‖ . Para tal era indispensável o esforço
de coleta e armazenamento de fontes, que até então estavam dispersas em arquivos
localizados nas outras províncias do Império e nos arquivos europeus. Como
demonstram os estudos de Manoel Salgado e Temístocles Cezar, o primeiro objetivo
proposto pelos fundadores do IHGB era, justamente, a coleta e o arquivamento de
fontes que posteriormente seriam mobilizadas na produção da ―monumental história
geral do Brasil‖, nas palavras de Januário da Cunha Barbosa. Nesse esforço de
constituição de um arquivo para a história pátria, os textos produzidos pelos padres
jesuítas tiveram posição privilegiada. Segundo Rodrigo Turin,
No entanto, não foi apenas na condição de arquivo que os escritos dos padres
Jesuìtas foram valorizados pelos membros do IHGB. Para Turin, ―a restauração e o uso
774
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2014. p.32.
775
Idem. p.19.
776
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2014. p.21.
777
Idem. p. 21.
356
de textos dos missionários jesuítas é uma das características mais marcantes da reflexão
etnográfica desenvolvida em meados do século XIX‖ 778. Nesses textos, ainda de acordo
com as considerações de Turin, ―os letrados do Segundo Reinado encontraram os
referentes mais apropriados tanto para a construção de um quadro interpretativo que
permitia tornar inteligível a figura do selvagem, como um modelo de ação a ser
779
restaurado no que dizia respeito ao modo de inclusão desses habitantes primitivos‖ .
Temos, aqui, então, os principais elementos do conteúdo temático da historiografia de
Eduardo Prado: o interesse pela compreensão da cultura indígena e da sua incorporação
à civilização cristã, o que traz a ação catequética dos padres jesuítas para o primeiro
plano de análise. Será que Prado herdou a temática etnográfica do IHGB? Nem a sua
correspondência e nem os seus textos públicos permitem responder essa pergunta. Por
outro lado, a julgar pelo material que eu examinei nessa seção, acredito que a principal
referência temática de Eduardo Prado tenha sido Capistrano de Abreu, esse sim, um
atento leitor dos estudos produzidos pelos letrados do IHGB.
Em seu estudo já citado sobre a produção historiográfica de Capistrano de
Abreu, Maria da Glória de Oliveira destaca a importância da etnografia indígena para o
historiador cearense, que escreveu dois trabalhos sobre essa temática: ―Os bacaeris‖, de
1895, e ―Rã-txa hu-ni-ku-i: a lìngua dos caxinauás do Rio Ibuaçu‖, de 1914. Para a
intérprete, os trabalhos etnográficos de Capistrano de Abreu não devem ser
considerados um desvio de sua produção historiográfica principal, pois ―contrariamente
até mesmo às sua próprias declarações, seu interesse pela etnografia indígena esteve
longe de ser fortuito, seja por manter um vínculo direto com seu projeto historiográfico,
seja por desempenhar papel decisivo na concepção e escrita da história pátria‖780. A
autora sugere, portanto, um vínculo entre a etnografia e a historiografia na obra de
Capistrano de Abreu, na medida em que, ―no caso especìfico da escrita da história do
Brasil, a condição de ―ancestrais‖ da nação, concedida pela geração romântica aos
indígenas, desafiava os limites epistemológicos de uma história triunfalista, portadora
da ideia de civilização‖ 781.
O interesse de Capistrano de Abreu pelas comunidades indígenas não pode ser
separado do seu interesse pela ação catequética dos padres jesuítas. Nas palavras do
778
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2013. p.55.
779
Idem.
780
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2013. pp. 101-102.
781
Idem.
357
próprio autor, ―uma história dos jesuìtas é obra urgente; enquanto não a possuirmos será
782
presunçoso quem quiser escrever a história do Brasil‖ . O historiador cearense não
chegou a escrever essa história dos jesuítas, assim como não escreveu a sua tão
aguardada história geral do Brasil. Porém, o autor prestou um serviço fundamental para
os futuros historiadores interessados na ação dos padres da Companhia de Jesus na
colonização da América Portuguesa ao coletar e organizar importantes documentos
sobre o assunto. Quem nos diz é a própria Maria da Glória Oliveira:
782
ABREU, Capistrano. Capítulos de história colonial (1500-1800) e os caminhos antigos e o
povoamento do Brasil. Brasília: UNB, 1963. p. 188.
783
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 66.
358
Brasil. A situação é semelhante nos trabalhos dedicados à história da historiografia
brasileira. Com a exceção do clássico trabalho de José Honório Rodrigues sobre a
historiografia conservadora e dos recentes estudos de Ângela Alonso e Flávio Giarola,
as pesquisas de Eduardo Prado não são lembradas como parte relevante da produção
historiográfica brasileira finissecular. O que pretendo fazer nesta última seção é
contribuir para os campos de estudos da história do pensamento social brasileiro e da
história da historiografia brasileira e, em diálogo com a bibliografia existente, mostrar
como nos textos propriamente historiográficos de Eduardo Prado é possível perceber a
operacionalização de um método histórico e o desenvolvimento de uma interpretação do
Brasil que legou importantes elementos ao ensaísmo do século XX, notadamente para
os escritos de Gilberto Freyre.
Entre os muitos textos escritos por Eduardo Prado, nesta seção, eu examino um
corpus especìfico, constituìdo pelos artigos ―L’Art” e ―Immigration”, publicados em
1889, como parte do material preparado para a exposição universal de Paris, e as
conferências ―O catolicismo, a companhia de Jesus e a Colonização do Novo Mundo‖,
de 1897, e ―Os espanhóis no salto de Avanhandava‖, de 1899. De forma alguma, esses
textos esgotam a produção historiográfica de Eduardo Prado, que, como eu já disse
neste capìtulo, envolve também os ―Fastos da Ditadura Militar no Brasil‖ e a ―Ilusão
Americana‖. Se é assim, o que o material examinado nesta seção tem de diferente em
relação aquele que eu analisei ao longo desta tese? Por que é possível caracterizá-lo
como ―textos propriamente historiográficos‖?
Eu venho comentando desde o início deste trabalho que uma das principais
características da bibliografia produzida por Eduardo Prado é o seu aspecto
performático, uma vez que, não sendo dado às sistematizações conceituais mais rígidas,
o nosso autor adaptou as suas intervenções ao sabor das conjunturas, sendo ele um
vigoroso polemista político que atuou em um momento de profundas transformações
institucionais no Brasil. Os escritos que eu examino nesta seção têm uma
particularidade em relação aos que foram examinados até aqui: neles, a intervenção
político não está no centro das preocupações do autor, o que não significa que seja
inexistente e que não possa ser percebida em algum lugar, nas franjas do discurso.
Talvez, por isso, os dois principais biógrafos de Eduardo Prado trataram os seus estudos
historiográficos na perspectiva da indiferença política, interpretação da qual, como disse
há pouco, eu discordo. O que torna, portanto, esses textos diferentes é, justamente, o
359
modos operandi do autor: atuando como um historiador de ofício, de uma forma bem
próxima ao que a escola histórica alemã definiu como método histórico, Prado trouxe
para o primeiro plano da sua escrita um conjunto de práticas controladas de leitura,
crítica e citação dos documentos e dos estudos existentes sobre os temas abordados,
fazendo do método um sistema de validação das informações encontradas nas fontes e
na bibliografia especializada, em uma operação que prefigura e visa legitimar a
narrativa. Vejamos, então, como ele pôs esses procedimentos em prática.
784
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 02.
785
Idem. p. 79.
786
Idem. p. 4.
787
MOMIGLIANO, Arnaldo. Studies in Historiography. Londes: Weidenfeld and Nicolson, 1966, p. 33.
p. 33.
360
Levando em consideração os estudos de autores como Anthony Grafton e Pedro
Caldas, o uso dos procedimentos da crítica dos documentos históricos foi, cada vez
mais, se tornando obrigatório para os historiadores, até que Gustav Droysen, já no
século XIX, criticou a hegemonia metodológica das ciências naturais e ―delimitou o
terreno do método histórico‖, partindo do princìpio de que ―o mundo dos objetos
históricos, se construído pela interpretação do historiador, tampouco será uma mera
reprodução de sua mente, mera folha em branco na qual o historiador haverá de
788
inscrever o que melhor lhe aprouver‖ . Já que o trabalho do historiador ganhou
conotação inevitavelmente hermenêutica, a exposição das fontes se tornou um
procedimento de legitimação da pesquisa. Eduardo Prado sabia bem disso e usou e
abusou do recurso à citação das fontes nos seus textos historiográficos. Mas ele foi além
e se empenhou, também, em avaliar criticamente o trabalho de outros historiadores.
788
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. As dimensões do historicismo: um estudo dos casos alemães.
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007. p. 54.
789
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de anchieta, 1979. p.25.
361
Há dois aspectos da citação que chamam, especialmente, a minha atenção:
primeiro, Prado, tal como os outros historiadores da sua geração, reconhece que
Varnhagen era o ―nosso historiador‖, ou seja, o historiador responsável pela produção
da principal obra sobre a história pátria. Em 1877, ao escrever o necrológio de
Varnhagen, Capistrano de Abreu formulou algo parecido, ao dizer ―a nação chora a
morte do seu historiador‖. Portanto, ainda que, nas palavras de Fernando Amed, ―a
ausência de fontes, de testemunhos, de cultura arquivística, de sociedades intelectuais
independentes, do cuidado com a produção anterior, enfim, falta de uma orientação
letrada, da recepção quanto àquilo que ia sendo publicado, de editoras, de jornais‖790
tenham feito do cenário historiográfico brasileiro finissecular um ambiente intelectual
frágil, acredito que a interlocução entre os nossos historiadores oitocentistas, que fica
especialmente perceptível quando analisamos as correspondências trocadas entre eles,
contribuiu para a construção de uma comunidade de especialistas mais ou menos
organizada.
790
AMED, Fernando. Ser historiador no Brasil: João Capistrano de Abreu e a anotação da História
Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das;
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoa, GONÇALVES, Márcia de Almeida, CONTIJO, Rebeca. Estudos
de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp. 125-150. p. 140.
362
argumentos pareciam circular entre os membros dessa incipiente comunidade de
historiadores.
As críticas de Eduardo Prado ao Visconde de Porto Seguro não pararam por aí,
sendo direcionadas ao coração do projeto civilizatório que o nosso autor acreditava ser o
fundamento do livro ―História Geral da Civilização Brasileira‖.
791
Idem. p. 26.
792
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2013. p. 46.
363
historicidade para os selvagens, tornando-os ―restos‖ de civilizações mais antigas‖793. A
qualidade de ―decaìdos‖ que esses autores atribuìram aos indìgenas era ―mais adequada
à teoria cristã da criação e da revelação, era a conclusão, daí retirada, de que eles seriam
igualmente capazes de constituir uma civilização, com todos os seus atributos:
comércio, religião, governo‖, o que ―tornava mais viável o projeto de catequização, uma
vez que essas sociedades, em algum momento do passado, já teriam experimentado uma
existência social mais complexa e, por conseguinte, reconheceriam e aprenderiam com
mais rapidez as práticas e valores da civilização‖ 794. Ainda nesta seção, eu analiso, com
mais cuidado, como Prado tratou os temas da cultura indígena e da catequese. Por ora,
examino um pouco mais a forma do texto, particularmente naquilo que se refere à
operacionalização do método histórico.
Dos trinta e cinco anos de idade aos cinquenta e cinco, durante vinte longos
anos, aquele fidalgo espanhol, que, em 1781, viera ter à América do Sul, na
qualidade de um dos comissários encarregados da delimitação territorial entre os
domínios espanhóis e portugueses e estudou com zelo toda a sua atividade e
todas as forças de usa inteligência 796.
793
Idem.
794
Idem.
795
Trabalho lido no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em sessão realizada no dia 20 de abril
de 1899. Transcrito em PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 03). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana,
1906. p.147.
796
Idem.
364
problematizar a posição do observador e destacar a historicidade da compreensão.
Segundo Hans George Gadamer, o pertencimento do intérprete somente foi alçado ao
centro das preocupações epistemológicas modernas com a filosofia de Martin
Heidegger, pois a escola histórica não teria sido capaz de desenvolver um aparato
conceitual destinado a lançar luz sobre as condições de produção do conhecimento797.
Nas palavras de Gadamer: ―Com efeito, para Heidegger, o fato de só podermos falar da
história por sermos seres históricos significa que é a historicidade do ser-aí humano, em
seu movimento incessante de expectativa e esquecimento, que permite o retorno do
798
passado à vida‖ . A expressão heideggeriana ―ser-aì humano‖ é central para a
reflexão hermenêutica desenvolvida por Gadamer, pois revela que ―nem o
conhecimento nem o conhecido são onticamente, e simplesmente subsistentes, mas
799
históricos, quer dizer, eles são o modo de ser da historicidade‖ . Eduardo Prado não
chegou a ler Heidegger, o que sugere que o esforço de historicização da compreensão
histórica já fazia parte do modus operandi dos historiadores ocidentais antes mesmo das
formulações do autor de ―Ser e Tempo‖. Sendo assim, nas primeiras páginas do seu
texto sobre os estudos de Felix de Azara, Eduardo Prado está, justamente, explicitando a
historicidade do conhecimento, mostrando que a narrativa que o historiador espanhol
desenvolveu deve ser lida à luz da sua posição de diplomata a serviço da coroa
espanhola. Nesse sentido, acredito que Prado, naquela década de 1890, estava
respirando os ares da modernidade historiográfica ventilados pela Europa.
797
Para Gadamer, a hermenêutica histórica, com Dilthey, especialmente, é sintomática do insucesso do
historicismo em delinear uma metodologia de compreensão adequada aos objetos históricos. Nas palavras
do próprio autor, ―o conhecimento histórico não pode ser descrito segundo o modelo de um conhecimento
objetivista, já que ele mesmo é um processo que possui todas as características de um acontecimento
histórico. A compreensão deve ser entendida como um ato da existência e é portanto um ―pro-jeto
lançado‖. O objetivismo é uma ilusão.‖ (p. 57). Nesse sentido, ainda segundo Gadamer, os fundamentos
de uma hermenêutica adequada aos estudos históricos, somente foram delineados com maior precisão nos
escritos de Husserl e Heidegger. Ver GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica.
Rio de Janeiro: ED FGV, 2006.
798
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: ED FGV, 2006. p.
43.
799
Idem. pp. 42-43.
365
buscar essa notícia, que em vão se procurará nas fontes, senão contemporâneas, ao
menos mais chegadas aos acontecimentos?800‖. A partir desse momento, Prado começa
a cotejar o estudo de Azara com as fontes coevas, pois ―à medida que remontamos às
fontes de informações de Azara, vai empalidecendo a notícia da batalha do
801
Avanhandava e afastando-se de nós‖ . Entre as fontes mobilizadas por Prado, têm
especial destaque os escritos, produzidos in loco, pelo padre Lozano, ―uma das fontes
citadas por Azara, [que] não fala nem em segundo assalto, nem em Avanhandava‖. Há,
aqui, um aspecto da argumentação de Eduardo Prado que nos diz algo a respeito da
presença do repertório metodológico da escola histórica germânica na sua operação
historiográfica. Uma citação de autoria do próprio Leopold von Ranke nos ajuda a
melhor compreender do procedimento do nosso autor: ―Vejo aproximar-se a época em
que já não teremos de basear a história moderna em relatos, nem mesmo nos dos
historiadores contemporâneos – exceto na medida em que tenham um conhecimento de
primeira mão‖802. Tanto para Eduardo Prado como para Leopold Ranke, portanto, a
passagem do tempo é vista como um elemento de desgaste da compreensão histórica,
pois quanto mais próxima da cena original dos eventos mais verdadeira seria a narrativa
historiográfica. Essa hierarquização cronológica das narrativas não é uma invenção da
modernidade, pois se trata de uma exigência que, nas palavras de Anthony Grafton,
―está presente nos escritos dos historiadores desde a tradição clássica: que eles próprios
tenham tido experiências políticas e militares, que façam relatos como testemunhas
803
oculares e que tenham um amor manifesto pela verdade‖ . Mais uma vez temos um
indício de que não são tão rígidas as fronteiras que separam os repertórios
historiográficos antigo e moderno.
Ainda se referindo aos relatos coevos do Padre Lozano, Prado diz que ―era um
verdadeiro tipo de historiador, compreendido à moda do nosso século, ainda que tenha
vivido no século XVI. Nessa época, tudo era pretexto para o que França se chamava na
técnica dos escritores – des morceaux –isto é, amplificações literárias, em cuja redação
804
a verdade histórica passava a ser coisa secundária‖ . Essa citação é fundamental para
a sustentar a minha hipótese de que Eduardo Prado, nos seus textos propriamente
800
Idem. p. 150.
801
Idem. pp. 160-161.
802
RANKE, Leopold von. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. L. von Ranke: História. São Paulo: Ática.
p. 83.
803
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Campinas: Papirus, 1998. p. 46.
804
Idem. p. 155.
366
historiográficos, de alguma forma, mobilizou o repertório da moderna crítica histórica,
que ganhou, nos quadros da escola histórica alemã, os seus contornos mais nítidos.
Primeiro, o nosso autor sugere a existência de uma diferença entre o ―tipo de
historiador‖ do século XIX e aquele que no século XVI se preocupava mais com as
―amplificações literárias‖ do que com o conhecimento da verdade histórica. Sendo
assim, para Prado, o historiador não deveria se preocupar com a estética da narrativa,
mas sim com a correta inquirição dos documentos e com o desvelamento da verdade das
experiências estudadas. Segundo Géssica Gaio, esse afastamento do estilo em prioridade
do método já pode ser identificado nos primeiros textos de Ranke, cujo interesse pela
história
805
GAIO, Géssica Guimarães Góes. A tarefa do historiador no alvorecer do historicismo. Dissertação de
Mestrado: PUC/Rio de Janeiro, 2009. p. 89.
806
Idem. p. 168.
367
pátria807. Foi levado por esse impulso, que chamaremos diplomático, que o
geografo real D. Felix de Azara, falseando um texto de dois escritores, não
duvidou afirmar que Irala e os seus tinham vindo até o nosso Avanhandava. Era
um argumento, mas não era uma verdade. Da afirmativa de Azara, porém,
podemos tirar uma lição, que servirá para não ficar sem a obrigada moralidade
esta pequena anedota histórico-geográfica que tendes tido a bondade de ouvir. A
moralidade é que, na história e na ciência, como na vida, as violências feitas à
verdade são sempre seguidas de uma mais ou menos tardia reparação 808. (Grifos
Meus)
Tal como Capistrano de Abreu fez no trecho que serve como uma das epígrafes
a este capìtulo, Prado redigiu a palavra ―História‖ com ―H‖ maiúsculo, o que sugere
certo tratamento moderno do conceito. É claro que a grafia da palavra, por si só, não
confirma o argumento e, por isso, a leitura cuidadosa do restante da citação é
fundamental. No último parágrafo do seu texto, depois de ter examinado
cuidadosamente os escritos de Felix de Azara, confrontando-os com as fontes da época,
Prado afirma que o seu próprio esforço de revisão da matéria histórica em questão – a
ocupação do território paulista – deve ser lido na perspectiva de uma ―moralidade
obrigatória‖ que seria inerente ao estudo da história. Ao fazer essa formulação, ele está
operando, ainda, dentro dos valores do repertório historiográfico antigo, segundo o qual
o conhecimento histórico teria utilidade pragmática, na medida em que carregaria
consigo uma lição capaz edificar os homens do tempo presente. Mas será que a
capacidade de moralização que Prado definiu como inerente à história é do mesmo teor
daquela veiculada pelos autores que, na esteira do topos ciceroniano, produziam os seus
textos a partir dos preceitos da retórica latina? Novamente, os estudos de Koselleck são
importantes para a compreensão da performance historiográfica de Eduardo Prado.
368
um posicionamento enfático a favor da verdade, em especial pelo ensinamento moral da
história‖810, o que teria levado a ―sentença histórica [a] se transformar com expectativa
histórica de sua execução. Não mais apenas a história individual contava como
exemplo, mas toda a história foi processualizada‖811. É essa moralização moderna,
porém de matriz pré-moderna, situada no nível do processo, que vejo Eduardo Prado
mobilizando no seu texto crítico à historiografia de Felix Azara. Para o autor, a
―História‖, pensada como processo temporalizado e como conhecimento, é uma
instância de existência humana capaz de reparar, por si só, as mentiras contadas, por
exemplo, por um historiador diplomata a serviço da sua nação. Em algum momento,
para Prado, por um imperativo da ―própria História‖, a verdade se sobrepõe e essa é a
―lição‖ que o seu estudo pretendia apresentar aos ouvintes da conferência.
810
Idem. p. 147.
811
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de história. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. p. 148.
812
Trabalho lido no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em sessão realizada no dia 20 de
agosto de 1897. Transcrito em PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 03). São Paulo: Escola Tipográfica
Salesiana, 1906. p.146.
813
Como exemplo, cito a proposta teórica desenvolvida por Clifford Geertz, que, a partir de um conceito
de cultura de matriz weberiana e historicista, consequentemente, definiu como proposta mais adequada
aquela que consegue ―conservar-se mais próxima do terreno do que parece ser o caso em ciências mais
capazes de se abandonarem a uma abstração imaginativa. Somente pequenos voos de raciocínio tendem a
ser efetivos em antropologia: voos mais longos tendem a se perdem em sonhos lógicos, e
embrutecimentos acadêmicos com simetria formal. O pontal global da abordagem semiótica da cultura, é,
como já disse, auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceitual no qual vivem os nossos sujeitos, de
369
o evento o objeto prioritário da atenção do historiador, Eduardo Prado foi coerente com
a agenda historiográfica conservadora que, por sua vez, pode ser pensada à luz das
críticas que o historicismo fez às filosofias modernas naturalistas.
forma, a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com eles‖. Ver. GEERTZ, Clifford. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. p. 17.
814
MEINECKE, Friedrich. El Historicismo y su Génesis. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. p.
141.
370
que o cerca. Ao mesmo tempo individualização e universalismo: o devir do ser
individual imerso no mar da contingência histórica‖815. O método histórico, portanto,
nas palavras de Pedro Caldas, empreendeu um esforço de ―estabelecer a identidade
entre os dois métodos, cujo maior problema consiste não exatamente em sua
parcialidade, mas na ilusão de, em sua parcialidade, acreditarem estar dando conta da
816
totalidade‖ . Acredito que seja essa a proposta de Prado nos seus estudos históricos,
onde, nas suas próprias palavras, ele priorizou as ―particularidades dos
acontecimentos‖817.
Não é nada fortuito o fato de Eduardo Prado ter operado a sua abordagem dessa
maneira, pois as suas referências conservadoras, de alguma forma, se inspiraram no
método histórico. Para Pedro Caldas, um dos desdobramentos possíveis do historicismo
foi
uma reação marcadamente conservadora, como se encontra, por exemplo, em
Edmund Burke. Crítico da Revolução Francesa, Burke alertava contra toda
tentativa de fundação da história a partir do zero, que fatalmente aniquilaria o
intercâmbio do presente com o passado para a modulação do futuro; no próprio
Herder encontra-se uma crítica a todo tipo de redução do processo histórico a
fórmulas, crítica acompanhada pelo elogio da espontaneidade818.
815
IGGERS, Georg. The German Conception of History. Estados Unidos: Wesleyan University
Press,1988, p. 4.
816
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. As dimensões do historicismo: um estudo dos casos alemães.
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007. p.55.
817
Eduardo Prado não foi o único escritor de matriz conservadora a operar a abordagem historiográfica
dessa maneira, de modo a considerar mais válido o estudo das especificidades do acontecimento do que
das grandes generalidades. Segundo a interpretação de Gildo Marçal Brandão, o objetivo de Oliveira
Viana não era ―estudar o homem brasileiro em geral, mas este ou aquele grupo regional. Oliveira Vianna
tem o cuidado de sugerir que ao decompor seu objeto e especializar a sua análise não está convertendo a
geografia numa rua de mão única. Há, diz ele, ambientes sociais fixos, mas não tipo sociais fixos. Este,
apesar de sua precoce configuração e extraordinária estabilidade, não estão imunes à ação do meio no
qual se encontram. O que interessa, então, é menos isolar cada fator do que observar como o meio, a raça
e a cultura interagem e produzem tipos sociais caracterìsticos em cada área‖. Ver BRANDÃO, Gildo
Marça. Populações Meridionais do Brasil. In: NUNES, Gabriela; BOTELHO, André. Revisão do
pensamento conservador: ideias e política no Brasil. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010. pp. 119-145. p. 119.
818
Idem. pp. 59-60.
819
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editora Estampa, 1987.p. 48.
371
moderno. Em um estudo dedicado à historiografia conservadora, Jose Honório
Rodrigues afirmou ser o pensamento conservador um dos principais fundamentos da
identidade nacional brasileira, afirmando que ―somos por tradição portuguesa um povo
820
extremamente conservador‖ . No seu esforço em examinar as especificidades da
historiografia conservadora, o autor foi um dos primeiros a propor uma análise dos
textos historiográficos de Eduardo Prado. Os estudos de Honório Rodrigues são
fundamentais para a reflexão que desenvolvo neste capítulo na medida em que
apresentem um inventário das principais questões levantadas por Prado nas suas
pesquisas historiográficas: ―a valorização da cultura indìgena, a ênfase na ocupação do
interior, o que o levou ao estudo das expedições bandeirantes e das missões jesuìtas‖ 821.
Vejamos, agora, como Prado articulou esses três temas e desenvolveu a sua
interpretação do Brasil.
Começando pela questão indígena, que é o tema do primeiro texto propriamente
historiográfico de Eduardo Prado, o ―L‘Art‖. No texto, o autor diz que ―o primeiro
contato do Brasil com a arte europeia não se deu pelo intermédio do colonizador
português‖ 822. Eu já comentei nesse capítulo como Prado dialogou com uma tradição
etnográfica que partia do princípio de que as populações indìgenas brasileiras ―são o
resultado da decadência de grandes civilizações que habitavam o território da América
do sul‖ 823. Ao tratar dessa forma o patrimônio cultural indígena, Prado estava operando
dentro do monogenismo, que era fundamental para o discurso etnográfico cristão que há
algum tempo já estava sendo desenvolvido dentro do IHGB, em uma perspectiva
baseada na ―relação de continuidade entre os diversos povos da terra, e não
propriamente de contiguidade. Daí sua preocupação em afirmar, paradoxalmente, uma
―nova natureza‖ adquirida pelos indìgenas‖824. É, justamente, por conta da crença nessa
possibilidade de ―recuperação do padrão civilizacional‖ dos ìndios que os letrados do
IHGB tanto valorizaram a catequese jesuíta. Esse argumento foi retomado por Eduardo
Prado.
820
RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil: a historiografia conservadora. Volume
II. Tomo I. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1988. p. 01.
821
RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil: a historiografia conservadora. Volume
II. Tomo I. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1988. p. 37.
822
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. pp. 02-03.
823
Idem.
824
TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Ed.
UERJ: Rio de Janeiro: 2013. p. 40.
372
É, exatamente, a ação catequética dos padres jesuítas o principal tema dos
estudos historiográficos desenvolvidos pelo nosso autor, para quem ―a obra da Igreja foi
uma obra de civilização e de humanidade e que os seus principais operários foram os
jesuìtas‖ . Na pena de Prado, ―colonizar‖ não significava, tão somente, ―ocupar o
825
território e erguer feitorias mercantis‖, pois, se assim fosse, ―os holandeses teriam feito
algo de permanente no Brasil‖, como, por exemplo, ―uniformizar a lìngua, adentrar o
sertão, dominar a hostilidade dos trópicos e inserir o ìndio no seio da civilização‖826.
Para o nosso autor, somente o colonizador português, naturalmente predisposto à
alteridade e comprometido com a catequese dos indígenas, seria capaz de estabelecer
uma civilização nos trópicos.
825
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. pp. 20-21.
826
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 4.
827
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. p. 25.
828
DAHER, Andréa. ―Cultura escrita, Oralidade e memória: a lìngua geral na América Portuguesa‖, in:
PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Escrita, linguagem, objetos. Leituras de história cultural. Bauru:
Edusc, 2004, p. 21.
373
brasileira desde a primeira metade do século XIX, quando os letrados do IHGB já
apontavam para a importância da Companhia de Jesus para a ―História da Civilização
Brasileira‖. Nesse sentido, Prado, ao se debruçar sobre essa temática, estava dialogando
com uma tradição de análise já consolidada na historiografia nacional. Esse diálogo fica
ainda mais claro se nos debruçarmos sobre as críticas que ele fez ao governo de
Sebastião José de Carvalho Melo (1699-1782), o Marquês de Pombal.
No século passado Pombal, que tinha a singular mania de regular a sua política
pelo que deles dissessem os estrangeiros, inundou a Europa de livros, folhetos,
em todas as línguas contra os jesuítas. Das estantes dessa majestosa livraria, em
grande parte formada em fins do século XVIII, contemplam-nos muitas dessas
obras hoje voltadas ao repouso do esquecimento, e deve ser uma contrariedade
para os espíritos daqueles escritores oficiais, defuntos colaboradores da defunta
tirania, o terem se assistir, presentes nas páginas dos seus livros, a esta
solenidade em que são honradas as suas vítimas de outrora. Preparava Pombal o
golpe insensato da expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses, ato que foi
para o Império ultramarino português ouro Alcácer-Quibir, com o do século XVI
para o reino lusitano. Com a expulsão dos jesuítas, no século passado, a
civilização recuou centenas de léguas dos centros do continente africano e do
Brasil829. (Grifos Meus)
374
contra os jesuítas representou um retrocesso civilizacional nos domínios portugueses, o
que não teve consequências piores porque, após a queda do ministro chefe, Dona Maria
I recolocou o Império nos trilhos civilizacionais ―que tão sabiamente foram ordenados
pelo Concilio de Trento‖, nas palavras do próprio Joaquim Norberto‖830.
830
SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Memoria histórica e documentada de índios da província do Rio
de Janeiro. RIHGB, Tomo XVII, 1854, p. 109-110.
831
ALONSO, Ângela. Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na primeira década
republicana. IN: Novos Estudos, São Paulo, Nº 85, pp. 131-148, novembro de 2009. p. 146.
832
GIAROLA, Flávio Raimundo. Os “pastores guerreiros”: Jesuítas, Catolicismo e história no
pensamento monarquista-católico. Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço
Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 7, n.º 1, Janeiro/Julho de 2014. p. 71.
833
As conferências realizadas e publicadas amplamente na imprensa da época foram: ―O apostolado
católico‖, de Francisco de Paula Rodrigues, ―O Catolicismo, a Companhia de Jesus e a colonização no
século XVI‖, de Eduardo Prado, ―Anchieta: narração da sua vida‖, de Brasìlio Machado, ―Anchieta em
São Paulo‖, de Teodoro Sampaio, ―A pregação, o método de ensino e de catequese dos Índios usado
pelos Jesuìtas e por Anchieta. Missões e peregrinações‖, do Padre Novais, ―Anchieta na poesia e nas
375
O evento organizado por Eduardo Prado teve muita repercussão, tendo sido
amplamente divulgado na imprensa da época e contado com a presença das principais
autoridades políticas da República. Isso poderia endossar a interpretação dos biógrafos
de que, nesse momento, o autor estaria afastado das querelas políticas, argumento que
não se sustenta nem pela performance discursiva de Prado e nem pela sua biografia, já
que, pouco tempo depois das conferências, como vimos no segundo capítulo desta tese,
ele se envolveu em um dos principais episódios da história do conflito entre os
monarquistas e as instituições republicanas. No entanto, no momento das conferências,
Prado não foi tão hostil, o que não quer dizer que o seu evento tenha sido dócil com o
regime republicano. Escrevendo sobre a atuação intelectual dos monarquistas nos
primeiros anos da República, Ângela Alonso destaca as ―Conferências Anchietanas‖
como um dos principais movimentos de oposição simbólica à intelectualidade
republicana.
lendas brasileiras‖, de João Monteiro, ―Anchieta e a raça e a lìngua indìgenas‖, de General Couto de
Magalhães, ―Anchieta, poeta e escritor‖, de Rui Barbosa, ―A sublimidade moral de Anchieta, histórico e
análise do processo de beatificação‖, do Cônego Manuel Vicente, ―Papel político de Anchieta na obra da
conquista portuguesa e na constituição da sociedade colonial‖, de Ferreira Viana), ―A bibliografia e a
iconografia de Anchieta e do seu tempo‖, de Capistrano de Abreu, ―Da significação nacional do
centenário Anchietano‖,de Joaquim Nabuco.
834
ALONSO, Ângela. Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na primeira
década republicana. In: Novos Estudos, CEBRAP, no. 85, São Paulo. p. 134.
376
Tendo na plateia ninguém menos do que Manuel Ferraz de Campos Sales, que
seria Presidente da República no quadriénio 1898-1902 e na época era o Presidente do
Estado de São Paulo, Prado iniciou a sua conferência dizendo que ―os cem anos que
medeiam entre a descoberta da América e a data da morte de Anchieta constituem uma
835
época decisiva na história da humanidade‖ . Ao começar o seu discurso dessa forma,
o autor deixou claro que o seu interesse não era tão somente ―fazer uma crônica da vida
do padre Anchieta‖, mas sim ―compreender como o sacerdote contribuiu para a História
da construção da civilização brasileira‖ 836. Aqui, neste trecho, o próprio Eduardo Prado
se afasta da crônica, considerada um estilo menor de narrativa, e se aproxima da
―História‖, mais uma vez grafada com letra inicial maiúscula, da ―civilização
brasileira‖. Essa pretensão à produção de uma ―história geral‖ que transcendesse às
particularidades da individualidade de um ―grande homem‖ é mais um elemento que
destaca a modernidade da narrativa do autor, mostrando que a sua relação com as
modernas filosofias da história não foi, tão somente, de rejeição. Mas o que Eduardo
Prado entendia por ―construção da civilização‖? Creio que refletir sobre esse problema é
fundamental para a compreensão da principal contribuição que o nosso autor legou à
história do pensamento social brasileiro.
Sete anos separam as duas citações, sendo que em ambas é possível perceber a
recorrência do mesmo argumento: a natureza foi o principal obstáculo superado pela
colonização portuguesa. Já vimos Prado mobilizar esse argumento no sétimo capítulo
desta tese, quando analisei a polêmica que ele travou com o médico positivista Pereira
Barreto. É importante deixar claro que o nosso autor não estava sendo propriamente
original ao tratar o tema da natureza americana em uma perspectiva distinta da do
idealismo romântico, mas sim se apropriando de uma longeva discussão que, desde o
século XVIII, se debruçava sobre o tema da natureza e da cultura no continente
835
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. p. 16.
836
Idem. p. 17.
837
PRADO, Eduardo. Coletâneas (Vol 01). São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904. p. 32.
838
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. p. 23.
377
americano. Essa discussão foi apropriada no Brasil, o que faz com que o nosso autor
tenha se inserido em uma tradição mais ou menos delineada, à qual ele recorreu para
fundamentar a sua defesa da colonização portuguesa nos trópicos. O que estava em jogo
nessa defesa era o elogio à própria Monarquia brasileira, que era considerada por
Eduardo Prado o principal símbolo do sucesso colonial português, herança que ele
acreditava estar sendo desagregada pela República.
839
PAUW, Cornelius de. Recherches philosophiques sur les Amériains. Paris: Ed. Cherches Humanitas,
1994. p. 34.
840
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 21.
841
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 23.
842
Idem. p. 27.
378
naturalistas, o que sugere que, de alguma forma, Eduardo Prado travou contato com
esses debates843.
A história do Brasil é menos bela que a da mãe pátria, e menos esplêndida que a
dos portugueses na Ásia; mas não é menos importante que a de qualquer delas.
Descoberto o Brasil por acaso, e por longo tempo deixado ao acaso, foi pela
indústria dos indivíduos, e pela operação das comuns leis da natureza e da
sociedade que se levantou e floresceu esse império, tão extenso como é, e tão
poderoso como algum dia virá a ser845. (Grifos Meus)
843
Os textos de Buffon, Raynal e De Pauw estão classificados como ―História Natural‖ no catálogo da
biblioteca de Eduardo Prado.
844
ARAUJO, Valdei Lopes de. Cairu e a emergência da consciência historiográfica no Brasil (1808-
1830). In: In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoa,
GONÇALVES, Márcia de Almeida, CONTIJO, Rebeca. Estudos de historiografia brasileira. Rio de
Janeiro: Ed. FGV, 2011. pp. 75-92. p. 79.
845
Idem.
379
neste continente, ou pelo lado de ações guerreiras, na penetração de seus
emaranhados bosques, e na defesa de tão feliz quanto religiosa descoberta, contra
inimigos externos invejosos da nossa fortuna 846.
A mais fértil terra do mundo... aonde? Não na Amazônia, aonde raspada uma
camada de mateiro, bate-se na esterilidade. Nos outros Estados é quase
invariavelmente o mesmo. Produzimos coisas de luxo, de gozo; se nos
bloqueassem deveras, a penúria no slevaria à antropofagia. E a gente? Os
processos de Inquisição mostraram a borra-mãe, e as outras borras têm vindo
superpondo-se, e de alto a baixo é borra e mais borra847.
O meu modesto trabalho tinha de ser histórico e descritivo. A sua natureza não
era especulativa e teórica. Por isso, apesar de ser eu partidário, não sem alguma
crítica tímida, não sem alguma seleção, de algumas das muitas e variadas ideias
de v. exce., não pude naquele trabalho dar desenvolvimento a certos pontos. (...)
Tratava-se de apresentar o Brasil sob o seu aspecto mais simpático. Sendo assim,
eu não podia referir, ou repetir os juízos tão severos de v. exc., ou da sociedade
central, sobre as coisas brasileiras849.
846
BARBOSA, Januário da Cunha. Discurso. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro: 1839, pp. 09-18. p. 10.
847
ABREU, Capistrano. Correspondência (Vol.1). Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: MEC, 1977. p. 234.
848
Idem. p. 130.
849
PRADO, Eduardo. Carta ao Visconde de Taunay. ―Jornal do Comércio‖. 27/10/1889.
380
O trecho foi extraído de um artigo que Eduardo Prado escreveu em resposta às
crìticas que o Visconde de Taunay fizera à sua participação no ―Le Brésil‖. Para o
Visconde, que era Presidente da Sociedade Central de Imigração, Prado fora descuidado
em ―não informar aos seus leitores europeus o esforço da sociedade central em
promover a devida instalação dos imigrantes europeus nessas nossas terras tão
tórridas‖850. A queixa do Visconde se dirige ao fato de não ter sido a sociedade por ele
dirigida a responsável pelo discurso oficial do Estado brasileiro a respeito do tema da
imigração em um evento tão importante, como foi a exposição universal de 1889. O que
me interessa nessa pequena polêmica é a resposta de Eduardo Prado, que, escrevendo
poucos dias antes do golpe militar que proclamou a República, afirmou não discordar
das considerações do Visconde de Taunay, mas ―como eu desejava atrair imigrantes
para a nossa lavoura, não poderia confirmar os maus informes (infelizmente
851
verdadeiros) feitos por autores como Buffon desde o século passado‖ . Aqui, Prado
remete, diretamente, ao naturalismo de Georges Louis Leclerc, o Conde de Bufon
(1707-1778), que, como já vimos, foi uma das principais matrizes europeias do
argumento da hostilidade natural dos trópicos. Para o nosso autor, portanto, o
argumento não era equivocado, mas sim inadequado para um texto que tinha o objetivo
de atrair novos imigrantes, o que era fundamental para a agricultura brasileira após a
abolição da escravidão.
850
Idem.
851
PRADO, Eduardo. Carta ao Visconde de Taunay. ―Jornal do Comércio‖. 27/10/1889.
852
PRADO, Eduardo. Conferências Anchietanas. São Paulo: Comissão Nacional para as comemorações
do dia de Anchieta, 1979. p. 53.
381
iniciado muito antes do seu desembarque no continente americano‖853. As palavras de
Gilberte Freyre parecem confirmar essa interpretação.
853
ARAUJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre
nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed 34, 1994, p.43.
854
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e senzala. Rio de Janeiro: Record, 1999. pp. 02-03.
855
Idem. p. 12.
856
Idem. pp. 13-16.
382
que, domando as dificuldades impostas pelas condições naturais, foi capaz de civilizar a
natureza e o nativo e, dessa forma, construir a civilização brasileira. É claro que ao dizer
isso, eu não estou afirmando que a obra de Gilberto Freyre se resume à atualização da
interpretação da realidade nacional desenvolvida por Eduardo Prado no final do século
XIX. Ao invés disso, estou sugerindo que um dos aspectos fundamentais do argumento
que Gilberto Freyre desenvolveu no livro ―Casa Grande Senzala‖ pode ser
encontrado nos escritos de Eduardo Prado, que, em intenso diálogo com as teses
naturalistas e com a historiografia produzida dentro do IHGB, usou a valorização do
engenho colonial português para, de alguma forma, endossar as suas críticas à
República.
857
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. São Paulo: Global Editora, 2004. p. 178.
383
384
Conclusão
Não aprecio suficientemente as pesquisas históricas para perder meu tempo com
um morto cuja mão, se estivesse vivo, eu não me dignaria a apertar. (Jean Paul
Sartre. Náusea)
385
navegado, e acredito que identificar tais sistemas de referência exóticos pode nos
ajudar a ver de modo mais claro os parâmetros pelos quais nos situamos 858.
858
SKINNER, Quentin. The paradoxes of political liberty. In: The tanner lectures on human values, Salt Lake
City/Cambridge: University of Utah Press/ Cambridge University Press, pp. 225-250. p. 234.
859
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. O governo de d. João: tensões entre ideias liberais e as
práticas do Antigo Regime. In: CARVALHO, José Murilo de; CAMPOS, Adriana Pereira de. Perspectiva
da cidadania no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. pp. 203-225. p. 207.
860
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
p. 211.
386
leitura que conduz a minha análise desde o início desta tese. Sem jamais ter aderido de
forma ortodoxa a nenhuma linha de pensamento, Eduardo Prado mobilizou os
repertórios antigo e moderno do pensamento político ocidental, apresentando uma
atuação eclética, que utilizou, inclusive, doutrinas rejeitadas pelo próprio
conservadorismo moderno, como o direito natural, por exemplo. Ao analisar a trajetória
político/intelectual de Eduardo Prado, eu estudei a própria história política do Brasil, me
esforçando em mostrar como, em um momento de profundas transformações
institucionais, o nosso autor nos legou o esboço de uma interpretação da nação que,
como eu demonstrei nos três últimos capítulos, teve vida longa na história do
pensamento social brasileiro. Acredito, portanto, que examinar a produção de um dos
intelectuais mais atuantes do fin de siècle brasileiro contribui para o entendimento das
representações que, desde então, foram produzidas sobre o Brasil e que, de alguma
forma, inspiram, ainda hoje, os nossos esforços de compreensão da realidade nacional.
Nesse sentido, o que o leitor leu nestas quase quatrocentas páginas foi o esforço
de um historiador do século XXI em interpretar os escritos de um pensador conservador
do século XIX. Se na prática da interpretação eu tentei reconstruir o ambiente social das
intervenções de Eduardo Prado, em busca, como diria Hans-George Gadamer, ―[da]
compreensão do texto, a partir do hábito da linguagem da época e de seu autor‖861,
acredito ser importante, também, dizer algo a respeito do pertencimento da minha
própria interpretação. Seria desnecessário dizer que há conteúdo político neste trabalho,
pois isso sempre ocorre, independente da disposição do autor em admiti-lo. Porém,
analisar o pensamento conservador brasileiro no momento da história do Brasil em que
vivo, confere a este trabalho um conteúdo político específico e incontornável.
Durante os quatro anos em que desenvolvi este trabalho, entre 2011 e 2015, a
política institucional brasileira foi abalada por uma profunda crise de representatividade,
que envolveu, entre outras coisas, a polarização dos debates políticos ao redor de
algumas pautas, como, por exemplo, os direitos civis dos homossexuais, a maioridade
penal e a influência dos valores religiosos no planejamento das políticas públicas. Após
a eleição, em 2014, dos parlamentares para a legislatura 2015-2018 do Congresso
Nacional, esses temas foram tratados em uma perspectiva que, na linguagem política
corrente, foi definida como conservadora. Podemos citar, como exemplo, a aprovação,
861
GADAMER, Hans-George. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2008. p. 357.
387
em 02 de julho de 2015, pela Câmara dos Deputados Federais, da Proposta de Ementa
Constitucional 171, que reduz a maioridade penal de dezoito para dezesseis anos. Outro
exemplo foi a apresentação, também na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei n°
6583, de 2013, chamado de ―Estatuto da Famìlia‖, que propõe a definição de famìlia
como, unicamente, ―núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma
mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes‖, o que compromete, diretamente, a segurança
jurídica dos núcleos familiares homoafetivos. Apesar de ter sido rejeitado nas instâncias
legislativas, o projeto contou com a aprovação de 62,83% das pessoas que participaram
de uma pesquisa de opinião organizada pelo próprio Congresso Nacional. Estaria, então,
a sociedade brasileira, nos últimos anos, se tornando mais conservadora ou tão somente
deixando aflorar o conservadorismo que é constitutivo da nossa cultura política desde a
fundação do paìs? É possìvel caracterizar como ―conservadores‖ os grupos sociais e
políticos que se empenham na defesa dessas pautas? Obviamente, responder a essas
inquietações não é o objetivo desta tese, mas acho que a análise que desenvolvi a
respeito do pensamento político conservador de Eduardo Prado pode nos ajudar a, pelo
menos, ensaiar algumas hipóteses e, quem sabe, contribuir para a atuação política
daqueles que, hoje, nessa segunda década do século XXI, confrontam essas bandeiras
conservadoras. Conservadoras?
Como sabemos, ao longo de sua curta vida, Eduardo Prado produziu uma
extensa obra, que vai desde crônicas políticas até a historiografia sobre a colonização
portuguesa na América. Nesse material, eu percebo a presença de valores constitutivos
dos mais diversos repertórios do pensamento político ocidental, que foram combinados
ao sabor das circunstâncias e da dinâmica da intervenção do nosso autor nas disputas
políticas do seu tempo. Por exemplo, nas suas críticas à jovem República brasileira,
Prado lançou mão dos princípios mais caros à tradição do republicanismo clássico, se
destacando como um defensor da democracia e das liberdades polìticas do ―povo
brasileiro‖. É possìvel, então, que um conservador seja, também, um libertário? Se
fôssemos responder essa pergunta tendo como parâmetro a atuação daqueles que, hoje,
no Brasil, são coloquialmente chamados de conservadores, certamente tenderíamos a
dizer que não. Porém, me parece que, infelizmente, eles não são, de fato, conservadores,
ao menos não como Eduardo Prado e as suas principais referências, como Burke e
Tocqueville. Se fossem, talvez, algumas das suas agendas não existiriam.
388
O historiador português João Pereira Coutinho é autor de um importante estudo
sobre o pensamento político conservador, que vem sendo fundamental para a análise
que apresentei nesta tese. O autor nos apresenta uma importante discussão a respeito das
diferenças entre os tipos políticos conservador e reacionário. Acredito que é essa
distinção o aspecto mais fundamental da reflexão que estou desenvolvendo aqui, nesta
conclusão. Nas palavras de Coutinho, ―o reacionário é aquele que coíbe a ação, que
visa, sempre, o retrocesso, que não admiti a violação dos seus privilégios e que
demanda por uma autoridade capaz de calar, pela violência, qualquer ameaça à ordem
vigente‖, enquanto o conservador ―é o tipo social que, mesmo fiel às tradições, entende
a necessidade do reformismo‖, além de ―zelar pela harmonia social, o que somente é
862
possìvel quando a liberdade e a dignidade humanas são preservadas‖ . Para tentar
sustentar a sua argumentação, o autor examina os escritos do filósofo francês Joseph de
Maistre (1753-1821) e do escritor irlandês Edmund Burke, que, como eu já comentei
antes, é uma das principais referências para o pensamento político de Eduardo Prado.
Tanto Maistre como Burke, ainda de acordo com as considerações de João Coutinho,
rejeitaram a Revolução Francesa, sendo que Maistre o fez negando a possibilidade da
liberdade e defendendo a opressão do movimento revolucionário, pois, nas suas
palavras, ―só o rei, o rei legìtimo, levantando do alto do seu trono o cetro de Carlos
Magno pode extinguir e desarmar os abusos revolucionários‖. Já Burke acusou os
jacobinos de ―violarem as liberdades mais fundamentais e instaurarem os despotismo
863
dos ideais filosóficos‖ . Portanto, enquanto a reivindicação central de Maistre é a
punição dos revolucionários pela restauração da autoridade real e dos privilégios da
nobreza, a de Burke é o combate ao despotismo jacobino e a instauração de um regime
de plena liberdade, sendo o conceito tratado na perspectiva do republicanismo cívico,
que opera mais no plano do ―corpo polìtico‖ do que no do ―indivìduo‖, como eu
demonstrei na primeira unidade.
Portanto, segundo esta distinção entre conservadores e reacionários, Prado,
apesar de ter militado pela restauração da Monarquia, foi um conservador, e não um
reacionário, pois a sua atuação teve sempre conteúdo libertário, seja na oposição que fez
aos governos liberais no final da década de 1870, nos relatos das suas viagens pela
América Latina, nas críticas à diplomacia dos EUA ou nos ataques aos governos
862
COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São
Paulo: Três Estrelas, 2014. p. 31.
863
Idem. p. 13.
389
republicanos. Escrevendo, em janeiro de 1890, ainda nos primeiros momentos de vida
da República brasileira, o nosso autor disse que
No Brasil, a questão hoje não está já posta entre a República e a Monarquia. A
luta é entre a liberdade e a tirania. A luta vai ser entre o exército político, servido
por seus escribas e que não quererá largar a rendosa tirania, e a sociedade civil,
que terá de reagir ou se aniquilar. A nação terá de mudar ou de devorar o
exército político, ou o exército político acabará de humilhar e de devorar a
nação864. (Grifos Meus)
864
PRADO, Eduardo. Fastos da Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.18.
865
Idem. p. 32.
866
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1980. p. 129.
390
Para destaca, então, a ―questão operária‖ como um dos principais problemas do
mundo moderno, algo que demanda soluções que não sejam nem ―relativas‖ e nem
―provisórias‖. Ele não chega a falar em uma revolução proletária e na fundação de uma
nova ordem social, mas diz que ―as monarquias europeias preocupam-se seriamente em
melhorar a sorte dos operários. As monarquias têm todo o interesse em adiar e evitar a
grande crise do proletariado, porque as dinastias sabem que, numa grande catástrofe
social, os tronos desapareceriam‖. Para o autor, portanto, a harmonia social envolveria,
também, a justiça social e o esforço, por parte do poder público, em remediar o
sofrimento da classe trabalhadora. Não é possível dizer que o marxismo estava entre os
repertórios mobilizados por Prado, visto que a menção à ―questão operária‖ é rápida e
de importância periférica na economia do texto, apesar de os textos de Karl Marx
estarem lá, no catálogo do acervo bibliográfico do nosso autor.
O mais importante para a reflexão que estou desenvolvendo nesta conclusão é
que, se formos nos debruçar sobre o corpus do pensamento político conservador
moderno, sobre os escritos de autores como Edmund Burke, Alexis de Tocqueville e do
próprio Eduardo Prado, não veremos o elogio ao despotismo e à tirania, mas sim a
apologia das liberdades, individuais e coletivas, o que não exclui o empenho desses
autores em defender as instituições que eles consideravam ameaçadas pela
modernidade, como, por exemplo, a família e a religião. Não me parece, então, que os
grupos sociais e polìticos que hoje, no Brasil, são conceituados como ―conservadores‖
façam jus ao termo. Estudar o conservadorismo de Eduardo Prado, portanto, serviu, ao
menos para mim, como um exercício de escuta, e de compreensão, de um tipo de
pensamento político que, se por um lado, não é o que inspira as minhas intervenções no
mundo em que vivo, é, ao menos, digno de respeito, já que, de alguma forma, se assenta
em valores que acredito serem fundamentais para a vida civil, como, por exemplo, a
liberdade e o bem comum. Talvez, por isso, eu consegui chegar até aqui, ao final desta
tese. Se Prado tivesse agido como os outros, como aqueles que hoje tentam esvaziar a
agenda dos direitos sociais das minorias, provavelmente, o projeto teria sido abortado
nos primeiros esforços de pesquisa. Afinal, eu não conseguiria escrever sobre um morto
cuja mão, se estivesse vivo, não me dignaria a apertar.
391
392
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