Tiago Rosa Da Silva

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS


Instituto de Ciências Humanas
Programa de Pós-graduação em História

Dissertação

Vivências e experiências associativas negras em Bagé-RS no Pós-


abolição: imprensa, carnaval e Clubes Sociais Negros na fronteira sul
do Brasil - 1913-1980

Tiago Rosa da Silva

Pelotas, 2018.
2

Tiago Rosa da Silva

Vivências e experiências associativas negras em Bagé-RS no Pós-


abolição: imprensa, carnaval e Clubes Sociais Negros na fronteira sul do Brasil
- 1913-1980.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em História do Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Federal de Pelotas,
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em História.

Orientadora: Prof.ª Dra. Lorena Almeida Gill

Pelotas, 2018.
3

Tiago Rosa da Silva

Vivências e experiências associativas negras em Bagé-RS no Pós-


abolição: imprensa, carnaval e clubes sociais negros na fronteira sul do brasil -
1913-1980.

Dissertação aprovada, como requisito parcial, para obtenção do grau de Mestre


em História, do Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Ciências
Humanas, Universidade Federal de Pelotas.

Data da Defesa:

Banca examinadora:

............................................................................................................................
Prof.ª Dra.
.......................................................................................................(Orientadora)
Doutora em ....................................pela Universidade .......................................

............................................................................................................................
Prof.ª Dra.
.............................................................................................................................
Doutora em .....................................pela Universidade .......................................

.............................................................................................................................
Prof.ª Dra.
.............................................................................................................................
4

Doutora em .....................................pela Universidade .......................................

...........................................................................................................................
Prof. Dr.
...........................................................................................................................
Doutor em .....................................pela Universidade .......................................

...........................................................................................................................
Prof. Dr. .............................................................................................................
Doutor em .....................................pela Universidade .......................................
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Dedico essa dissertação a minha mãe


Eloá e ao meu pai Edison, pelo carinho
e apoio incondicional durante toda a
etapa de construção deste trabalho.
Sem vocês, eu nada seria.

Esta dissertação é dedicada, também,


aos homens e mulheres que lutam
diariamente por uma sociedade sem
racismo, machismo, homofobia e todas
as outras formas de opressão.
6

AGRADECIMENTOS

Aos professores que tive durante a minha graduação e que não só me


iniciaram na pesquisa histórica, mas principalmente, me mostraram a
importância de construir um curso de história democrático e que não seja
pautado apenas por “futilidades” acadêmicas. Agradeço em especial à
professora Fernanda Severo, ao professor Guinter Tlaija Leipnitz, e ao professor
Caiuá Cardoso Al-Alam. A este último, que acompanhou de perto toda minha
trajetória acadêmica e foi um dos responsáveis por me introduzir nas discussões
a respeito das relações étnico-raciais e além disso aceitou o convite para compor
a banca de defesa desse trabalho, meus mais sinceros agradecimentos.
À minha orientadora professora Lorena Gill, por acreditar no meu trabalho
e me mostrar diversos caminhos teóricos-metodológicos possíveis, e, além
disso, por ser uma pessoa compreensível com as adversidades que se fizeram
presentes durante a etapa de realização desta pesquisa. Muito obrigado, Lorena.
À professora Beatriz Ana Loner - in memorian – que se dedicou a leitura
do projeto inicial desta pesquisa e me incentivou a seguir o meu caminho dentro
das pesquisas sobre o Pós-abolição. Por ser uma referência para todos aqueles
e aquelas que lutam diariamente dentro da academia para visibilizar sujeitos
marginalizados nas pesquisas históricas, sobretudo negros e negras. Pode ter
certeza que o seu legado permanecerá, sempre.
Aos meus amigos da graduação e que ainda se fazem presentes em
minha vida. A Taiane, pessoa que é só lindeza e que mesmo de longe, preocupa-
se comigo. Por ser uma pesquisadora atenta aos grupos marginalizados e me
incentivar sempre, meu muito obrigado por tudo! Ao Allan, o “bossinha”, colega
e amigo que lá de Sampa me enche de energias. Ao Marcel, amigo “impar” que
a vida me deu. À Milena, cuja lindeza fica difícil descrever. Aos meus colegas
Matheus Bom, Carlos Pacheco e Franklin Fernandes, por estarmos sempre nos
encontrando nos eventos acadêmicos da vida e seguir sempre uma amizade que
o fim da graduação não pôs fim. Agradeço também aos meus grandes amigos
Nelson e Alzemiro, pessoas incríveis e que sempre quando retorno a Jaguarão
são responsáveis por me injetarem esperanças.
Aos companheiros de Jaguarão, que lutam dia a dia para construir uma
universidade democrática e popular na fronteira sul do Brasil. À Andriele, moça
7

linda e que luta incansavelmente ao lado dos de baixo. Ao Vinicius Sabino,


pessoa que transborda lindeza e luta. À Karina e Daniel, casal que admiro muito
e que sempre estiveram comigo nas minhas idas à Jaguarão. À Shirley, por dar
exemplo de lutas e resistências negras dentro e fora da academia. Gratidão a
todos vocês por me acolherem na Casa Lar, espaço que me renova nas minhas
andanças pela fronteira.
Não posso agradecer aos amigos de Jaguarão e deixar de mencionar o
Clube 24 de Agosto, espaço que me acolheu lá nos idos de 2011 e que ainda
me acolhe quando retorno à cidade. Gratidão ao Sr. Madruga, à Sr. Sônia, Sr.
Natálio e toda equipe diretiva desse clube negro histórico que resiste na fronteira
e que em agosto desse ano completará 100 anos. Viva o Clube 24 de Agosto!
Ainda em Jaguarão, agradeço a professora e intelectual negra Giane
Escobar, por sempre me inspirar com seus conhecimentos e por ser uma
referência para todos nós, homens e mulheres que lutam por uma sociedade
mais justa. Agradeço também, por aceitar compor a banca de defesa e mais uma
vez poder contribuir com seus conhecimentos para o presente estudo.
Aos meus companheiros de lutas de Bagé, principalmente os que estão
ombro a ombro comigo através do Movimento EnegreceUne. À linda Jovana
Peres, moça que a cada encontro que temos me fortalece e me faz acreditar no
afeto dentro dos movimentos sociais. Ao Igor Neto, inspiração diária na luta
antiLGBTTQ+fóbica, pessoa que transborda leveza e vontade de mudança. À
Rosi Goulart, Andresa Xavier, Antoniel, Lucas Cassuriaga, Andressa Costa e
Ana Paula Ribeiro pelos incansáveis debates sobre o ser e estar negro nesse
mundão. Gratidão a todos vocês e a luta continua.
À Kiim Paz, companheira de lutas e do dia a dia, por me dar forças nos
momentos em que as atividades acadêmicas estavam me sobrecarregando; por
compartilhar seus conhecimentos sobre musicalidade negra, literaturas e
também por me ajudar em minhas pesquisas nas manhãs geladas de Bagé e
assim tornar meus dias de trabalho mais leves. A tu, moça que é só lindeza,
minha mais sincera e profunda gratidão por tudo.
Ao amigo, militante e intelectual negro Cesar Jacinto, por compartilhar
comigo seus conhecimentos sobre o movimento negro e as cousas da vida e
também por me fazer crer que é possível escrever a história de Bagé por uma
8

outra perspectiva, aquela que valoriza a multiplicidade de sujeitos históricos e


suas identidades plurais.
À Taísa Guedes e Lucas Rosa, que puderam acompanhar praticamente
toda a minha trajetória na Pós-graduação e por estarem em muitos momentos
comigo, muitos desses na busca pela desopilação. À Priscila Pirasol, moça que
esbanja alegria e que me ajudou em muitas formatações de trabalhos
acadêmicos. À Thaís Sauco, sempre companheira e sensível comigo. Vocês são
demais e eu sou muito grato de tê-los por perto.
Na rua Dr. Veríssimo, número 252, esquerda, no centro da cidade de
Bagé, está um espaço que diariamente me faz crer que uma outra sociedade é
possível. Refiro-me ao Clube Os Zíngaros e todos e todas aquelas que lá dentro
lutam diariamente pelo reconhecimento da população negra de Bagé. Meu muito
obrigado a Paulinha, que com seu sorriso encantador e sua dinâmica
“implacável” na secretária do clube, sempre me atendeu de maneira exemplar e
nunca me deixou faltar nada. À presidenta, Dona Elisabete, cuja liderança e
vontade de lutar encanta a todos diariamente. Gratidão por sempre me receber
de braços abertos nesse espaço de resistência negra por excelência. Ao sr.
Flávio, homem negro de Santa Cruz do Sul e que fez de Bagé e do Zíngaros a
sua segunda família. Muito obrigado por sempre estar atento aos meus anseios,
as minhas angustias e principalmente, por abraçar a ideia do meu trabalho
incansavelmente. A toda equipe diretiva do “Zíngrão”, meu muito obrigado.
Aos meus entrevistados (as), Sra. Zoila da Silva, Sra. Ieda Lisboa, Sr.
Ivoncléo Monteiro, Sr. Vilmar dos Santos e Sr. Luís Barbosa, muito obrigado por
cederem suas casas e seu tempo para acolherem um jovem ansioso e cheio de
perguntas. A presença de vocês foi fundamental na escrita desse trabalho, pois
além de abrirem suas casas e conversarem comigo, também abriram seus
arquivos particulares.
Aos meus colegas de mestrado da UFPel, principalmente a Helena,
Suelen, Elisiane, Elvis, Silvia Bandeira, Silvia Christovão, Vinicius e Gabi, pelas
conversas e pelas trocas durante as aulas e depois delas.
Aos professores do PPGH da UFPel, em especial a Clarice Speranza,
Alisson Droppa e Jonas Vargas, sempre atenciosos e compreensíveis comigo.
Este último em especial por ter aceitado fazer parte da banca de defesa deste
trabalho.
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Aos meus amigos de Pelotas. Aos irmãos Caio e Alex, por dividirem por
um ano moradia comigo, aguentando minhas sucessivas crises de ansiedade. À
Natália Dias, pessoa maravilhosa e que sempre abre as portas de sua casa
quando vou a Pelotas. Ao Érico, Marcelo Felipeti e Allan Pereira, por dividirem
comigo conversas e também mesas de bar na úmida Pelotas. Vocês são demais.
Às minhas colegas historiadoras Fernanda Oliveira da Silva, Tairane
Ribeiro, Franciele Oliveira e Ângela Oliveira, por sempre me incentivarem nas
minhas aventuras dentro do campo de estudos do Pós-abolição e por trocarem
referências, fontes e compartilharem seus conhecimentos comigo.
Aos funcionários do Museu Dom Diogo de Souza por terem me recebido
de forma atenciosa e me auxiliado nas minhas pesquisas para o presente estudo.
Aos funcionários do Arquivo Público Municipal Tarcísio Taborda, por terem me
acompanhado durante muitas manhãs na minha busca incansável pelos sujeitos
negros nos acervos dos jornais.
A CAPES por ter financiado esta pesquisa integralmente.
Por último, gostaria aqui de registrar a mais profunda gratidão a minha
família “de casa”. Ao meu pai Edison Pinto da Silva, que através da sua labuta
incansável enquanto trabalhador da construção civil, pôde me dar as bases para
que eu conseguisse concluir meus estudos e hoje estar aqui, nessa nova etapa
da minha vida acadêmica. À minha mãe Eloá Rosa da Silva, pessoa que me
inspira diariamente com seus conselhos e que sempre fez de tudo que estivesse
ao seu alcance para que eu pudesse priorizar meus estudos. A vocês dois, não
há palavras que possam expressar o profundo amor, carinho e respeito que
tenho por vocês. Ao meu irmão Rafael, que hoje luta pela valorização do carnaval
negro lá nas bandas do Rio de Janeiro, pessoa que sempre esteve comigo e sei
que sempre estará. Ao meu irmão Diego, professor de educação física e de
música, que hoje divide o mesmo teto comigo e me ensina a cada dia a ser uma
pessoa melhor. À minha irmã Simone, professora exemplar e que compartilha
idas e vindas comigo para Pelotas nos dias de aulas na FAE. Gratidão por tudo,
eu amo muito vocês.
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ENCONTREI MINHAS ORIGENS

Encontrei minhas origens


em velhos arquivos
... livros
encontrei
em malditos objetos
troncos e grilhetas
encontrei minhas origens
no Leste
no mar em imundos tumbeiros
encontrei
em doces palavras
... cantos
em furiosos tambores
... ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei.

Oliveira Ferreira da Silveira (Roteiro dos Tantãs,


1981).
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Resumo

SILVA, Tiago Rosa da. Vivências e experiências associativas negras em


Bagé-RS no Pós-abolição: imprensa, carnaval e Clubes Sociais Negros na
fronteira sul do Brasil (1913-1980). 2018. 180f. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Ciências
Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.

Esta dissertação aborda as experiências associativas de sujeitos negros na


cidade de Bagé-RS no Pós-abolição (1913-1980). Através da análise da
imprensa negra, de entidades carnavalescas e de clubes sociais, pretende-se
observar quais foram as estratégias acionadas por esses sujeitos para se afirmar
numa localidade cujas relações sociais eram racializadas. O período que serve
como palco de analise para o presente estudo é o Pós-abolição, pensando este
não apenas como um marco cronológico a partir do 13 de maio de 1888. Nesse
contexto, negros e negras construíram múltiplas estratégias para se afirmar na
sociedade bageense. Primeiramente buscamos observar a invisibilidade da
atuação de homens e mulheres negras na cidade de Bagé através das obras de
historiadores e escritores locais. Em seguida iremos partir para a análise da
atuação da imprensa negra bageeense, atentando para suas demandas e os
seus projetos políticos; logo, será debatido a atuação de entidades
carnavalescas negras, que a partir da década de 1940 se intensificaram e foram
os responsáveis por dar a tônica do carnaval de rua de Bagé. Por último
observaremos as vivências de dois Clubes Sociais Negros –Palmeiras e
Zíngaros - e como estes foram importantes espaços de resistência de homens e
mulheres negras, configurando-se enquanto verdadeiros redutos de afirmação
da raça. As fontes utilizadas na pesquisa consistem em jornais da imprensa
negra de Bagé, bem como o jornal de ampla circulação intitulado Correio do Sul;
estatutos do Clube Os Zíngaros; fotos de entidades carnavalescas e de
entidades negras locais e registros obtidos através da realização de entrevistas
com membros de associações negras da cidade.

Palavras-chave: Associativismo negro; Bagé; Pós-abolição; Imprensa negra;


Carnaval; Clubes Sociais Negros.
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ABSTRACT

SILVA, Tiago Rosa da. Vivências e experiências associativas negras em


Bagé-RS no Pós-abolição: imprensa, carnaval e Clubes Sociais Negros na
fronteira sul do Brasil (1913-1980). 2018. 180f. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Ciências
Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.

This dissertation approaches the associative experiences of black subjects in the


city of Bagé-RS in the Post-abolition period (1913-1980). Through the analysis of
the city black press, carnival organizations and social clubs, it was intended to
observe the strategies used by these subjects to declare themselves in a locality
whose social relations were racialized. The period that serves as the stage of
analysis for the present study is Post-abolition, not only thinking it as a
chronological landmark from May 13, 1888. In this context, black people have
built multiple strategies to assert themselves in the society of Bagé. First, it was
intended to observe the invisibility of the performance of black men and women
in the city of Bagé through the works of local historians and writers. After this, we
will go to the analysis of the performance of the black press in Bagé, paying
attention to its demands and it’s political projects; soon, it will be debated the
performance of black carnival entities, who from the 1940s intensified and were
responsible for giving the tone of the street carnival of Bagé. Finally, we will
observe the experiences of two Black Social Clubs - Palmeiras and Zíngaros -
and how these clubs were important spaces of resistance of black men and
women, forming themselves as true strongholds of affirmation of the race. The
material used in the research consist of newspapers from Bagé black press, as
well as the widely circulated newspaper entitled Correio do Sul; statutes of the
Zingaros Club; photos of carnival entities and local black entities and records
obtained through interviews with members of the black associations in the city.

Key-words: Black associativism; Bagé; Post-abolition; Black press; Carnival;


Black Social Clubs.
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Lista de ilustrações

Imagem 1: Delfino Menezes.............................................................................79


Imagem 2: Primeiro quadro do Sport Club Palmeira, 1922...............................81
Imagem 3: Bloco Carnavalesco Morenas do Brasil, 1941..................................95
Imagem 4: Julieta Ribeiro Silva – Rainha do Vamos de Qualquer Geito, década
de 1930..............................................................................................................98
Imagem 5: Churrasco e baile organizado pelo Bloco Piratas do Amor............108
Imagem 6: Romeu Machado, o “Risoleta”........................................................110
Imagem 7: Garotos da Batucada, 1951...........................................................112
Imagem 8: Bloco Garotos da Batucada, 1949..................................................114
Imagem 9: Celso José Muniz. Garotos da Batucada, 1949..............................115
Imagem 10: Suely Cardoso, Rainha do Palmeira, 1949..................................136
Imagem 11: Maria Joana, Miss Palmeiras, década de 1950............................137
Imagem 12: Convite Baile da Neve no Clube Os Zíngaros.............................149
Imagem 13: Zaida Moura Campos. Rainha d’Os Zíngaros, 1949....................151
Imagem 14: Ieda Maria dos Santos Lisboa. Rainha d’Os Zíngaros, 1959........152
Imagem 15: Cherubim Bittencourt, 1938.........................................................155
Imagem 16: Academia de Samba Os Zíngaros,1973.....................................160
14

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Estatística populacional das cidades escravistas – 1859.................33


Tabela 2: Registros de Alforrias em Bagé – 1881-1884...................................43
Tabela 3: Trânsito de membros do Clube Os Zíngaros em associações de Bagé
no Pós-abolição...............................................................................................143
15

SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES................................................................................13
LISTA DE TABELAS.........................................................................................14

INTRODUÇÃO..................................................................................................17

1 “TUDO O QUE SE VÊ PLASMA-SE EM UMA INEXORÁVEL SUPREMACIA


BRANCA”: A INVISIBILIDADE DO NEGRO NA HISTÓRIA DE BAGÉ...........29
1.1. O silêncio sobre a escravidão em Bagé.......................................................31
1.2. A história local e a estigmatização de corpos negros....................................46

2 “(...) PARA O BEM DA COLLECTIVIDADE AONDE VIVEMOS, DENTRO DE


NOSSOS ACANHADOS CONHECIMENTOS INTELLECTUAES”: IMPRENSA
NEGRA EM BAGÉ NO PÓS-ABOLIÇÃO..........................................................57
2.1. Pós-abolição: um campo de estudos...........................................................58
2.2. Raça e racialização nos estudos sobre o Pós-abolição..............................62
2.3. Jornais, sujeitos, projetos e lutas políticas: a imprensa negra bageense no
Pós abolição.......................................................................................................66
2.3.1. “Corre o Boato”: sobre vigilância e controle de corpos negros.................69
2.3.2. “A instrucção é tudo”: sobre a instrução primária e educação...................73
2.3.3. Lazer e recreação: sobre esportes, festas e atividades culturais..............78

3 “ESSA GENTE BAMBA”: CORDÕES, RANCHOS E BLOCOS


CARNAVALESCOS NEGROS EM BAGÉ NO PÓS-ABOLIÇÃO.....................85
3.1. Estudos sobre carnaval negro.....................................................................86
3.2. Rancho Carnavalesco Vamos de Qualquer Jeito........................................92
3.3. Rancho Carnavalesco Respinga...............................................................101
3.4. Cordão Carnavalesco Adeantados............................................................103
3.5. Piratas do Amor.........................................................................................107
3.6. Garotos da Batucada.................................................................................111

4 “(...) BEM SABEMOS QUE SOMOS NEGROS, MAS, EU CONSIDERO ISTO


AQUI IGUAL OU MELHOR DO QUE O CLUB COMMERCIAL OU CAIXEIRAL”:
ORGANIZAÇÃO NEGRA ATRAVÉS DOS CLUBES SOCIAIS EM BAGÉ.....119
4.1. Associativismo negro em terras gaúchas..................................................121
16

4.2. Clube Recreativo Palmeiras: experiências de recreação e luta.................131


4.3. De Bloco à Sociedade Recreativa Os Zíngaros: protagonismos negros em
Bagé.................................................................................................................138

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................163

ANEXOS..........................................................................................................168
LISTA DE FONTES..........................................................................................169
REFERÊNCIAS BOBLIOGRÁFICAS...............................................................171
17

INTRODUÇÃO

Desde criança, ouço dentro de casa referências sobre as festas que meus
pais frequentavam quando adolescentes, mas principalmente das famosas
festas no Clube Os Zíngaros. Era comum nas conversas em família ouvir
expressões como: “Bá! Muito arrastei pé no zingrão”, ou mesmo, “adorava
dançar ao som de Tony Tornado”. Tanto meu pai como minha mãe foram
associados do Zíngaros na década de 1960 e 1970, participando ativamente da
vida social da agremiação. Mesmo não ocupando cargos diretivos, ambos não
deixavam de ir às festas embaladas ao som de “discoteca” e diversas outras
baladas melódicas que propiciavam uma dança mais juntinha entre os casais,
ou como se refere o meu pai, “as danças em apenas uma lajota”.
Dentre tantas conversas e novos descobrimentos sobre as famosas
festas do “zingrão”, uma das coisas que mais me chamavam a atenção era o
fato de que ambos se referiam ao Zíngaros como um clube de negros. Como
assim um clube de negros? Ficava me questionando. Ao passo em que fui
crescendo, fui observando nas falas dos meus pais e alguns de seus amigos,
que na Bagé da década de 1970, negros não entravam em clubes como o
Comercial e o Caixeiral, sociedades estas que eram dirigidas por membros da
elite local da cidade. Sendo assim, pessoas negras se divertiam em espaços
criados por eles, como é o caso não somente do Zíngaros, mas de outras
agremiações que existiam na época, como o Palmeiras, o Saca-Rolhas e o
Aurora Social Clube.
A descoberta da existência de outros clubes “de negros” que existiam em
Bagé deixou-me com a curiosidade ainda mais aguçada, pois para além dos
clubes, haveriam outros espaços associativos de negros e negras na cidade?
No ano de 2011 ingressei no curso de História-Licenciatura da
Universidade Federal do Pampa, na cidade fronteiriça de Jaguarão. A partir de
então, nesse mesmo ano ingressei no Laboratório de História Social e Política
(LAHISP), momento no qual diversos debates foram realizados, dentre eles os
relativos à escravidão e a liberdade no Brasil e no Rio Grande do Sul. Dentro
desse laboratório, também foram realizadas oficinas de preservação e manuseio
de fontes históricas, no qual buscou-se instrumentalizar os gestores dos espaços
18

de salvaguarda de acervos da cidade de Jaguarão. Com relação à essa


proposta, posteriormente o grupo do laboratório passou a trabalhar na
higienização do acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão (IHGJ),
instituição que guarda uma grande variedade de documentos históricos sobre a
cidade e o Estado do Rio Grande do Sul.
Dentro desse mesmo cenário, ao passo em que as discussões teóricas
sobre a escravidão e liberdade cresciam, sobretudo dentro do espaço do
LAHISP, os vínculos com outros espaços na cidade de Jaguarão também se
desenvolviam. Um desses espaços foi o Clube Social Negro 24 de Agosto.
Nessa oportunidade, pude estreitar relações com esse clube quase centenário e
também contribuir para a preservação de seu acervo documental. Dentro desta
perspectiva, não só atividades acadêmicas eram realizadas dentro do clube, mas
diversas outras que extrapolavam os muros da academia e que buscavam
valorizar o protagonismo negro na cidade de Jaguarão, com ampla participação
de diversos movimentos sociais.
Esses laços que foram forjados entre o LAHISP, o clube 24 e demais
espaços localizados em Jaguarão, foram essenciais para o meu
amadurecimento nas questões que envolvem a militância negra e uma outra
perspectiva de se fazer/escrever história. Nesse sentido, o trabalho que ora
apresento é fruto dessa trajetória apontada anteriormente, cujos contornos se
dão através da formação acadêmica do autor e de sua militância em movimentos
sociais.
Sobre a formação acadêmica, principalmente através dos debates
travados dentro do LAHISP, pude perceber o quanto as narrativas em torno da
história do negro no Brasil ganharam diversos contornos. Indo desde a lógica
freyreana de que a escravidão no Brasil possuía um caráter paternalista e que
as relações entre escravos e senhores eram “benevolentes”; passando pelas
narrativas da chamada escola sociológica paulista, que, na tentativa de
descontruir os postulados apontados por Gilberto Freyre, acabaram por dar
ênfase apenas a brutalidade que foi a escravidão brasileira, no qual acabaram
por reificar o negro, os tornando seres desprovidos de racionalidade; e
culminando com o revisionismo da historiografia sobre a escravidão, que a partir
da década de 1980 buscou – com influencias na emergência da História Cultural
e Social – dar ênfase ao protagonismo de negros e negras no período escravista,
19

atentando para as diversas e complexas relações estabelecidas entre estes e


outros setores sociais. Nessa perspectiva, ganharam destaque as diversas
ações e negociações que negros e negras realizavam no cativeiro, buscando
uma melhor situação para suas vidas, bem como o termo “visões da liberdade”
passou a ter um significado importante para essa perspectiva de História, como
bem foi pontuado por Mattos e Rios (2005).

Depois de formado, regressei para Bagé e aquela curiosidade a qual


explicitava anteriormente e que me acompanhou por boa parte da adolescência,
voltou a despertar, fazendo com que o contato com o Clube Os Zíngaros fosse
inevitável. Entre conversas com o Sr. Flávio, com a Paulinha, com o Sr. Vilmar
dentre outros “zíngarianos”, acabei me deparando com outros espaços
associativos forjados por negros em Bagé, como foi o caso da imprensa, de
diversas entidades carnavalescas e dos próprios clubes sociais. A partir daí, tive
a certeza de que estava mais do que na hora de mergulhar na história desses
espaços negros da cidade.
Nesse sentido, a presente dissertação tem como objetivo registrar as
vivências e experiências associativas de negros e negras na cidade de Bagé no
Pós-abolição, e para isso, lançaremos um olhar na imprensa negra, nas
entidades carnavalescas negras e nos clubes sociais negros da cidade. O
argumento central dessa dissertação é de que através da criação de diversas
associações, sujeitos negros de Bagé puderam acionar múltiplas estratégias
para melhor viver numa sociedade cujas relações sociais eram racializadas, o
que impedia pessoas negras de acessarem determinados espaços públicos e
privados da cidade. Para reverter esse quadro, fundaram associações pautadas
em projetos políticos e articulações com outras associações, no qual buscavam
construir uma identidade racial coletiva e, nos termos postulados por Silva (2011;
2017), positivada.
Com relação ao recorte temporal da presente dissertação, ele foi pensado
a partir dos primeiros registros encontrados da imprensa negra e de outras
associações negras na pesquisa, fazendo crer que a partir da década de 1910,
ao passo que a cidade de Bagé demonstrava sinais de crescimento populacional,
pessoas negras buscaram intensificar a criação de espaços para os seus. Já a
20

década de 1970, sobretudo nos seus anos finais, diz respeito ao fim de algumas
atividades do Clube Os Zíngaros e o início de um tempo de incertezas, pois a
década seguinte foi atravessada por sucessivas crises no âmbito do clube em
questão.
Mesmo sabendo que a academia já desconstruiu os postulados
“rankeanos” da escrita da história, cujo procedimento era o que relatar o que a
fonte mostra, tal qual está escrito no documento oficial (REIS, 1996), alguns
escritores e historiadores de Bagé ainda trilham um caminho próximo a essa
perspectiva de se escrever história. A preocupação destes gira em torno de uma
narrativa de história cujo objetivo é exaltar a figura de políticos importantes e
seus feitos, bem como sobre as efemérides da cidade, cujos protagonistas são
sujeitos da elite local. Ao observar essas narrativas, buscamos trilhar o caminho
oposto, ou seja, a de escrever uma história de Bagé cujos protagonistas sejam
sujeitos que estão à margem dessa narrativa “oficial”.
Para isso, buscamos influências na chamada História Social,
principalmente aquela que emergiu a partir dos anos de 1970 e que, como afirma
Mattos (1997, p. 84): [busca] “formular problemas históricos específicos quanto
ao comportamento e às relações entre os diversos grupos sociais”.
Procuramos evidenciar que a história de Bagé também foi forjada por
negros e negras, por pessoas tidas como comuns, por trabalhadores e
trabalhadoras cujas experiências foram negadas pela História “oficial” da cidade.
Nesse sentido, a contribuição do historiador E. P. Thompson é de grande valia
para o estudo que pretendemos desenvolver. Esse historiador, que pertenceu a
chamada Escola Marxista Britânica, juntamente com Eric Hobsbawm dentre
outros, trouxe para dentro da narrativa histórica a experiência de sujeitos
comuns. Crítico feroz do estruturalismo, sobretudo dos estudos de Althusser,
Thompson mostrou que para além das estruturas, os cientistas sociais deviam
atentar para a agência dos sujeitos e os diálogos entre ambos, propondo a noção
de experiência histórica. (THOMPSON, 1981). Nesse sentido, também é
importante destacar que o próprio conceito de classe vai ser (re)significado pelo
autor, pois se para os marxistas estruturalistas a classe “nascia”
automaticamente de um determinado modo de produção, agora ela passa a ser
observada do ponto de vista de sua formação histórica, ou seja, o fazer-se da
21

classe está relacionado à diversas questões culturais e históricas imbricadas nas


experiências dos sujeitos.
A importância de Thompson e da escola marxista britânica é apontada por
Petersen e Lovato (2013). Para as autoras:

[...] os historiadores britânicos vão recuperar não somente a


pesquisa empírica, o compromisso com o acontecido, como a
participação do sujeito na história. Assim, se para uma
concepção estruturalista do marxismo há uma determinação
mecânica das estruturas sobre os sujeitos, os marxistas
britânicos vão repensar essa relação, propondo a noção de
experiência como mediadora entre a determinação das
estruturas e as ações humanas (PETERSEN; LOVATO, 2013, p.
177).

Ao trazer à tona a agência de sujeitos até então marginalizados pelas


documentações oficiais e pelas narrativas estruturalistas, Thompson contribuiu
para uma outra perspectiva de escrita da História, a qual pode ser chamada de
história vista de baixo (MATTOS, 1997, p. 88).

Ao buscarmos nas referências de Thompson e da História Social para a


narrativa do presente trabalho, buscamos valorizar o agenciamento de negros e
negras, que no período Pós-abolição forjaram diversas estratégias para melhor
viver numa Bagé racializada, no qual a imprensa, o carnaval e os clubes sociais
entram nesse bojo. Nesse aspecto, outro ponto merece destaque. Referimo-nos
ao campo de estudos ao qual este trabalho busca se inserir: o campo de estudos
do Pós-abolição. Para além de observar o período do apenas como marco
cronológico, busca-se interpretar os diversos códigos e ações que foram
acionados pelos negros a partir de 1888.
Nesse período, negros e negras reelaboraram identidades e ações
políticas para se afirmar numa sociedade em que as relações sociais eram
racializadas e no qual as experiências gestadas no período escravistas foram de
extrema importância na vida desses sujeitos. A partir disso, Domingues (2009)
afirma que:
As experiências acumuladas durante a escravidão (a saber: as
identidades plurais; a valorização da família; os laços de
amizade, solidariedade e compadrio; os padrões de moralidade,
ética e honra; o papel da mulher nas relações de gênero; as
estratégias de negociação, acomodação, conflito e politização
do cotidiano; a vida associativa em irmandades, confrarias e
agremiações mutualistas) não foram apagadas da memória,
22

mas reelaboradas e projetadas dinamicamente no período do


pós-abolição (DOMINGUES, 2009, p. 239).

Há de ser levado em consideração que o Pós-abolição foi palco


privilegiado para a disseminação das teorias raciais no território brasileiro. A
partir da construção da ideia de raça, a elite política atuaria a fim de legitimar e
naturalizar desigualdades e hierarquias (SCHWARCZ, 1993). Porém, para além
da construção da ideia de raça vindo de cima para baixo, na presente dissertação
buscamos também observar os sentidos conferidos pelos sujeitos negros à
noção de raça, o que foi muito bem pontuado nos estudos de Albuquerque
(2010).
Um dos conceitos utilizados nesse estudo diz respeito a ideia de raça,
pensando a mesma não enquanto uma categoria biológica, e sim partindo do
pressuposto de que raça é uma categoria sócio/histórica e cultural e que também
foi utilizada pelos sujeitos negros imersos nos processos de racialização.

No que diz respeito às fontes utilizadas no presente estudo, essa consiste


em jornais da imprensa negra de Bagé, a saber: A Liberdade, A Revolta, O
Teimoso, O Palmeira, O 28 de Setembro, A Defeza, A Tesoura, O Boato,
Lampeão, O Rouxinol, O Rio Branco, Socega Leão e O Arauto. Esses periódicos
estão cronologicamente distribuídos entre os anos de 1913 a 1952. Também foi
utilizado o jornal Correio do Sul, impresso que começou a circular em Bagé no
ano de 1914 e encerrou as atividades na década de 1980. Considerado o
impresso de maior longevidade em Bagé, o Correio do Sul era mantido por
pessoas ligadas a elite política da cidade.

Sobre o uso de jornais na pesquisa histórica, Luca (2005) afirma que


durante muito tempo estes foram pouco ou quase nada utilizados por
pesquisadores, sejam eles historiadores, sociólogos e demais profissionais. A
autora vai afirmar que no decurso do século XIX e início do século XX, ainda
existia uma tradição de objetividade na escrita da história, a partir do qual o
conhecimento histórico deveria ser pautado por uma verdade absoluta e os
historiadores deveriam apenas apontar tal veracidade nas fontes oficiais,
sobretudo as fontes produzidas pelo Estado.
Nessa perspectiva, os jornais eram pouco adequados para o estudo da
reconstrução do passado, pois estes forneciam imagens distorcidas, parciais e,
23

acima de tudo, eram subjetivos demais para os historiadores, lembrando que o


que deveria balizar a escrita da história era a objetividade (REIS, 1996).
A partir da chamada terceira geração dos Annales, haverá uma certa
mudança na produção historiográfica, com o aparecimento de novos objetos,
problemas de pesquisa e abordagens teóricas. Para Le Goff (1990), a História
Nova, que reivindicava seu nascimento a partir da tradição dos Annales, ampliou
o campo do documento histórico atentando para a multiplicidade dos
documentos escritos de todos os tipos, sejam eles orais, escavações
arqueológicas e demais registros, que vão desde uma curva de preços até uma
fotografia (LE GOFF, 1990).
Luca (2005) também aponta para a importância da renovação do
marxismo dentro da academia, havendo um certo abandono da ortodoxia
economicista e o reconhecimento da importância dos elementos culturais na
estrutura da sociedade. Nesse sentido, torna-se fundamental os estudos de E.
P. Thompson, que priorizou a agência de pessoas comuns na pesquisa histórica,
fazendo, principalmente, uma crítica aos estudos marxistas estruturalistas.
Para tais propósitos o alargamento da concepção de fontes históricas é
de extrema importância. Assim, passou-se a utilizar em larga escala documentos
que priorizassem perceber o agenciamento de pessoas comuns, como
processos criminais, no qual é possível - mesmo com toda a problematização
acerca dos “filtros” dessa fonte – perceber a fala dos sujeitos e também a história
oral e documentos de arquivos privados (cartas; correspondências; diários;
registros fotográficos; registros audiovisuais; obras de arte em geral; agendas
pessoais etc.).
Nesse quadro a imprensa, mesmo que timidamente, começou a aparecer
como objeto de pesquisa histórica na agenda dos cientistas sociais a partir da
década de 1970, em que vão surgir teses e dissertações que utilizarão os
periódicos como fonte principal.
Porém, é importante destacar que lá nos idos da década de 1930, alguns
pesquisadores já percebiam o potencial da imprensa como fonte de pesquisa,
como é o caso de Gilberto Freyre, que mapeou diversos jornais do século XIX
para seus estudos sobre as fugas de trabalhadores escravizados, bem como
24

buscou perceber os anúncios de compra e venda destes sujeitos no mundo da


escravidão.1
Hoje em dia são diversos os pesquisadores que utilizam a imprensa como
fonte de estudos, extraindo desta fonte diversas abordagens e problemas
importantes para se pensar sobre a história do Brasil, bem como sobre outros
estados nacionais. Também a história do trabalho, na perspectiva do movimento
operário encontrou na imprensa uma de suas fontes privilegiadas (LUCA, 2005).
Os cinco primeiros jornais elencados anteriormente estão salvaguardados
no acervo do Museu Dom Diogo de Souza, localizado na cidade de Bagé. O
restante dos jornais foi encontrado em um projeto de digitalização realizado pelo
museu da imprensa José Hipólito da Costa, em Porto Alegre.2 Já o jornal Correio
do Sul encontra-se no acervo do Arquivo Público Municipal de Bagé Tarcísio
Taborda. Também, foi usado um exemplar dos jornais A Alvorada, A Razão, A
Federação e Diário de Notícias, encontrados no site da Hemeroteca da Biblioteca
Nacional.3
Além dos jornais elencados acima, essa dissertação também utilizou o
caderno de estatutos do Clube Os Zíngaros, buscando analisar aspectos de
organização do referido clube. Datado do ano de 1948, esse é o documento mais
antigo pertencente a Sociedade, pois os demais documentos internos (livros de
atas de reuniões, assembleias, correspondências), não existem mais. O caderno
de estatutos do clube encontra-se salvaguardado na sede do Zíngaros, na
cidade de Bagé. Também, usaremos fotografias das associações carnavalescas
e dos clubes sociais, para assim mostrar os rostos e os nomes dos protagonistas
dessa história.
A metodologia da História Oral foi acionada para a presente pesquisa,
levando em consideração a sua importância por ser uma ferramenta “ (histórica,
antropológica, sociológica etc.) que privilegia a realização de entrevistas com
pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas,
visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo” (ALBERTI,

1 Sobre os estudos de Freyre analisando os jornais do século XIX, ver: FREYRE, Gilberto. O
Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do século XIX. Recife: Imprensa Universitária,
1963.
2 Esses jornais podem ser encontrados no site: http://afro.culturadigital.br/colecao/imprensa-

negra-no-rio-grande-do-sul/. Acessado em 03/04/2018.


3 Para pesquisa do acervo da hemeroteca, pesquisar em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-

digital/. Acesso em 13/02/2018.


25

2004, p.18). Essa metodologia de pesquisa, que se move num terreno


multidisciplinar, já mostrou ser muito rica para o estudo de grupos étnicos-raciais
dentro do campo de estudos do Pós-abolição4.
Destaco aqui a importância, nas décadas de 1970 e 1980, da contribuição
da História Social e Cultural dentro da produção historiográfica. A partir daí novos
objetos foram incorporados à pesquisa histórica, havendo assim o alargamento
da concepção de fontes para o estudo da história. A partir de tal fato, para além
de análises quantitativas e da história serial, houve uma valorização da análise
qualitativa e a incorporação de temas contemporâneos. Nesse sentido, Alberti
(2005) afirma que novas temáticas ganharam espaço nas pesquisas históricas,
como por exemplo:
Vida cotidiana, família, gestos do trabalho, [interesse] pelos
rituais, pelas festas e pelas formas de sociabilidade – que,
quando investigados no tempo presente, podem ser abordados
por meio de entrevistas de história oral (ALBERTI, 2008, p. 163).

Na presente pesquisa os entrevistados foram direcionados a um tema


específico, sendo acionada, assim, a História Oral Temática. Essa, caracteriza-
se por ter um tema central de análise, no qual as entrevistas e o roteiro irão
conduzir os depoentes a essa abordagem. Para Meihy e Holanda, a história oral
temática “é usada como metodologia ou técnica e, dado o foco temático
precisado no projeto, torna-se um meio de busca de esclarecimentos de
situações conflitantes, polêmicas, contraditórias” (MEIHY e HOLANDA, 2007, p.
38-39). Sendo assim, busca-se também confrontar os depoimentos, observando
os diversos olhares dos sujeitos acerca do tema em comum.
Com relação às narrativas utilizadas no presente estudo, realizou-se
entrevistas com cinco sujeitos que tiveram vivências em entidades

4 Sobre estudos que utilizam a metodologia da História Oral para analisar grupos étnicos-raciais
e protagonismos negros no Pós-abolição, ver: RIOS, Ana L. MATTOS, Hebe Maria. Memórias
do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Felisberta e sua gente: consciência histórica e
racialização em uma família negra no pós-emancipação rio-grandense. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2015. OLIVEIRA, Franciele Rocha de. Moreno rei dos astros a bilhar, querida União
Familiar: trajetória e memórias do clube negro fundado em Santa Maria, no pós-abolição. Santa
Maria: Câmara Municipal de Vereadores de Santa Maria, 2016. ESCOBAR, Giane. Clubes
sociais negros: lugares de memória, resistência negra, patrimônio e potencial. Dissertação de
mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em patrimônio cultural da Universidade
de Santa Maria, Santa Maria, 2010. MAGALHÃES, Magna Lima. Entre a preteza e a brancura
brilha o Cruzeiro do Sul: associativismo e identidade negra em uma localidade teuto-brasileira
(Novo Hamburgo-RS). Tese de doutorado em História. UNISINOS, 2010.
26

carnavalescas e clubes sociais negros de Bagé. O percurso até chegar nos


entrevistados ocorreu a partir do primeiro ingresso do autor deste trabalho na
sede social do clube Os Zíngaros, no final do ano de 2015. Chegando ao clube
e explicando as ideias de realizar um estudo sobre a história do Zíngaros e o
carnaval negro em Bagé, membros da direção não hesitaram em indicar nomes
de pessoas que para eles são referências na história do clube e do carnaval na
cidade. Assim, chegamos até os nossos cinco depoentes, que são, a saber: Sra.
Zoila da Silva Pinto, que atualmente é uma das mulheres que está há mais tempo
no quadro de sócios do clube Os Zíngaros e é responsável pela realização de
festas de carnaval na sede do mesmo. Sra. Ieda Maria dos Santos Lisboa, que
foi rainha de carnaval do Clube Os Zíngaros no ano de 1959 e cujo pai pertenceu
a direção da entidade na década de 1950 e 1960. Dos homens entrevistados,
temos o Sr. Luis Barbosa da Silva, figura de destaque dentro do Bloco
Carnavalesco Garotos da Batucada, no qual ingressou ainda na década de 1950.
Posteriormente, fez parte da direção do Zíngaros. Outro entrevistado foi o Sr.
Ivoncléo Monteiro. Nascido em 1943, Ivoncléo manteve envolvimento com
blocos carnavalescos e também exerceu a presidência do clube Os Zíngaros de
1965 a 1992. É filho do Sr. Manoel Arideu Monteiro, que foi presidente do mesmo
na década de 1950 e 1960 e que fez parte da comissão que elaborou o primeiro
estatuto da sociedade no ano de 1948. Por último, o Sr. Vilmar Paiva dos Santos,
que pertenceu a diversos blocos carnavalescos negros de Bagé, dentre eles o
Piratas do Amor, e também fez parte da direção do Zíngaros nos anos 2000.
Evidentemente que existem outros sujeitos que são referências tanto no
Zíngaros como também no carnaval negro de Bagé, porém optou-se, por
enquanto, nessas cinco pessoas.
A presente dissertação está organizada em quatro capítulos. No primeiro,
será feito um debate acerca da invisibilidade da história da população negra da
cidade de Bagé, tanto no contexto da escravidão no século XIX bem como nos
primeiros anos da república. Inicialmente, iremos analisar alguns aspectos da
escravidão negra em Bagé, reforçando a necessidade de observarmos agências
negras no mundo da escravidão local, e evidenciando o quanto que a localidade
estudada desempenhou papel significativo no contexto escravista do Rio Grande
do Sul, fator que foi negligenciado pelas narrativas históricas “oficiais”. Em
seguida, iremos observar como que corpos negros foram estigmatizados nos
27

escritos de alguns escritores locais, que se preocuparam mais em reforçar


estereótipos racistas de homens e mulheres negras residentes em Bagé.
No segundo capítulo nosso intuito é debater a experiência de jornais
forjados por e para os negros na cidade de Bagé através da análise dos
impressos já elencados anteriormente. O objetivo do capítulo é perceber quais
foram as estratégias de afirmação e os projetos políticos encabeçados pelos
redatores, chefes e articulistas dessa imprensa negra em Bagé. Inicialmente,
será feito um debate em torno do campo de estudos do Pós-abolição, elencando
algumas questões que dizem respeito a esse campo como é o caso do uso das
categorias raça e racialização, conceitos que são utilizados na presente
dissertação. Em seguida, busca-se problematizar algumas questões presentes
nas páginas dos jornais analisados, como é o caso da intensa vigilância para
com corpos negros, principalmente com relação as mulheres. Dando sequência,
iremos debater qual o significado da instrução primária, da alfabetização e
educação para os redatores de jornais negros da cidade. Finalizando o capítulo,
faremos uma discussão acerca da mobilização cultural/recreativa noticiadas nas
páginas dessa imprensa negra.
O terceiro capítulo é dedicado ao carnaval negro em Bagé no Pós-
abolição. Principalmente a partir das décadas de 1930 e 1940, diversas
entidades carnavalescas negras surgiram na cidade e assim começaram a se
projetar nos desfiles momescos, fazendo, em muitos casos, com que os
redatores do Correio do Sul creditassem a essas entidades o protagonismo do
carnaval de rua de Bagé. O propósito do capítulo é o de analisar as principais
características e as estratégias de afirmação das seguintes entidades: Rancho
Carnavalesco Vamos de Qualquer Jeito; Rancho Carnavalesco Respinga;
Cordão Carnavalesco Adeantados; Bloco Carnavalesco Piratas do Amor e o
Bloco Carnavalesco Garotos da Batucada, sempre levando em conta as
particularidades do período histórico em que essas entidades operavam.
O quarto e último capítulo dedica-se a analisar as experiências dos clubes
Palmeiras e Zíngaros na cidade de Bagé. Inicialmente, será feito um debate em
torno dos estudos sobre os Clubes Sociais Negros na historiografia gaúcha. Em
seguida, passaremos a analisar de perto as vivências e experiências do Clube
Palmeiras, entidade essa que para além da recreação, criou estratégias de lutas
na cidade de Bagé, mantendo, também, articulações com entidades negras de
28

outras cidades. Em seguida, observaremos de perto as experiências do clube


Os Zíngaros, entidade que surgiu como bloco no ano de 1936 e ainda está em
pleno funcionamento na cidade de Bagé. Forjado por trabalhadores negros e
negras, o Zíngaros acionou diversas estratégias de atuação e afirmação no
município, mantendo, também, relações com entidades de classe e diversos
outros clubes negros do Rio Grande do Sul.
Nessa dissertação, mostraremos os nomes e rostos de homens e
mulheres negras que mesmo negligenciados pela história “oficial” de Bagé,
construíram histórias de lutas e resistências na cidade, e por isso são os
protagonistas dessa história.
29

CAPÍTULO 1

“TUDO O QUE SE VÊ PLASMA-SE EM UMA INEXORÁVEL SUPREMACIA


BRANCA”: A INVISIBILIDADE DO NEGRO NA HISTÓRIA DE BAGÉ

“A verdade é que se anda pela cidade, olha-se para os prédios


e lê-se nos nomes de ruas e lugares, e tudo o que se vê plasma-
se em uma inexorável supremacia branca. Portuguesa,
colonialista, estancieira”.5

Os escritos de Gilberto Alves Soares sobre a cidade de Bagé mostram os


anseios de se morar numa localidade que produziu uma história no singular.
Sujeito negro, Gilberto Soares6 teve envolvimento com diversas entidades
negras da cidade de Bagé, como o Clube Os Zíngaros, Sociedade Beneficente
Recreativa Saca-Rolha e Clube Independente. Sua juventude foi forjada em
festas, bailes de carnaval e reuniões nos espaços negros que frequentou. Mas
também foi construída na luta por melhor viver numa região marcada pelas
relações racializadas, observada nitidamente com a criação de clubes sociais
exclusivos para negros e outros para brancos.
Mesmo existindo vários espaços criados pelos e para os negros em Bagé,
a historiografia local fez questão de produzir uma história no qual há o
predomínio da figura do branco, seus espaços associativos e suas lideranças

5 SOARES, 2015. p. 34.


6 Gilberto Gesoni Alves Soares nasceu em 3 de janeiro de 1955, na rua Tiradentes, Praça das
Carretas, cidade de Bagé. Estudou o primário no Colégio Municipal Mestre Porto e cursou o
ginásio e o científico no Colégio Estadual Dr. Carlos Kluwe. Iniciou sua trajetória profissional na
Probal, ainda em Bagé. Em 1976, mudou-se para Porto Alegre. Após uma curta experiência na
Gilmart Publicidade, começou a trabalhar na RBS, onde ficou por 9 anos. Em 1986, criou um
estúdio chamado Graphite e passou a atender várias empresas, entre as quais, Caldas Júnior,
Hexsel Propaganda e jornal O Informativo – as duas últimas de Lajeado. Em 1988, mudou-se
para Lajeado, a fim de implantar um projeto de reestruturação de O Informativo. Foi supervisor
do jornal até 2001, quando criou outra agência – breve sociedade denominada Verbo
Comunicação. Em 1993, fundou a AGEA Publicidade e Propaganda, que se mantém até os dias
atuais na cidade de Lajeado. Tem cinco livros escritos e imprimiu apenas cinco unidades de
cada, para revisão e provocar a memória dos amigos. Seus livros intitulam-se: Pequeno Diário
de Viagem (recordações de uma viagem à Europa); Se Não me Falha a Memória (memórias);
O Sujeito da Frase (aforisma); Haicais DeGil (poemas japoneses); Poemas DeGil (poemas).
Informações cedidas por Gilberto Alves Soares ao autor.
30

políticas. Claro, isso não é uma peculiaridade da cidade de Bagé, muito pelo
contrário, as demais cidades interioranas do estado do Rio Grande do Sul
também guardam características semelhantes.
Ao perceber tal fato, Gilberto Soares afirma que “há grandes lacunas na
história de minha cidade, entre as quais as festas do Saca-Rolha. Recuperá-las
seria uma sacada notável” (SOARES, 2015, p. 28). Pois o pontapé já foi dado,
caro Gilberto, e seus escritos estão incluídos nessa perspectiva de mostrar aos
moradores de Bagé e demais cidades interioranas que uma outra história pode
ser forjada. Uma história no plural, observando não só a elite presente nestes
espaços, mas sobretudo os demais sujeitos comuns que ajudaram a constituir o
tecido social destes lugares.
Ainda que as lacunas apontadas por Gilberto insistam em se fazer
presentes na historiografia sobre Bagé, principalmente no que diz respeito ao
protagonismo de negros e negras, o próprio autor acabou mostrando que uma
outra narrativa sobre a cidade pode ser construída. É nessa perspectiva que
buscamos discutir na presente dissertação, apontando os diversos mecanismos
acionados por sujeitos negros em Bagé no Pós-abolição através de seus
espaços associativos, a saber: imprensa, entidades carnavalescas e clubes
sociais.
Porém antes disso, no presente capítulo pretendemos observar como a
historiografia local acabou por invisibilizar a presença de negros e negras na
construção da história da cidade de Bagé.7 Houve, por parte de escritores e
historiadores locais, um empenho na construção de uma narrativa que buscou
dar conta de uma história dos grandes feitos de Bagé e suas figuras de destaque,
estes sendo, sobretudo, imigrantes europeus. Essa perspectiva de escrita da
história nos quais se enquadra SALIS (1955), LEMIESZEK (2000), LOPES
(2007), LEMIESZEK e GARCIA (2013), TABORDA (2015)8 se assemelha à uma

7 Em alguns momentos da escrita do presente capítulo, utilizaremos o termo “História Oficial”


para designar as produções de cunho histórico desenvolvidas por escritores e historiadores
bageenses. O uso desse termo refere-se ao fato de que essas produções históricas acabaram
ganhando o status de “verdadeira” história da cidade, sendo ensinadas em estabelecimentos de
ensino, em formações de professores da rede básica e reconhecida e legitimada por grande
parcela da população de Bagé.
8 O livro de Tarcísio Taborda lançado em 2015 e utilizado neste trabalho, diz respeito às suas

publicações na imprensa de Bagé e outras cidades do interior gaúcho entre 1939 e 1994, ano de
seu falecimento. Ver: TABORDA, Tarcísio Antônio da Costa. Bagé de ontem e de hoje:
coletânea de artigos publicados na imprensa (1939 – 1994). Bagé: Ediurcamp, 2015.
31

ideia de história meramente narrativa. Essa perspectiva de história narrativa


acompanha os grandes acontecimentos, narra às grandes batalhas, as histórias
de grandes heróis no tempo e suas contribuições para o presente, mas acaba
se tornando uma história no singular, principalmente por passar por cima de
todas as problemáticas presentes nesses contextos e acabando por contar uma
história elitizada (FURET, 1986, p. 81-98). Também, tais escritos produzidos por
esses escritores buscam “reconstruir” uma história do passado tal qual ele foi,
se aproximando das características defendidas por Reis (1996) como sendo da
escola metódica “dita” positivista, no qual “propunham uma história do passado
pelo passado, dos eventos políticos passados, pela curiosidade de saber exata
e detalhadamente como se passaram” (REIS, 1996. p.14).
Com isso, os sujeitos negros presentes desde o século XIX, foram postos
à margem de suas produções sobre a história da cidade, ou quando aparecem
são retratados de maneira estigmatizada por alguns escritores.

1.1. O silêncio sobre a escravidão em Bagé


Espaços de disputas entre portugueses e espanhóis no decorrer do
século XVIII, a localidade de São Sebastião de Bagé, atual município de Bagé,
passou por diversas vezes do domínio espanhol ao português e vice-versa. A
preocupação da coroa portuguesa com as constantes invasões dos espanhóis e
a visível instabilidade da região, fez com que a mesma começasse a distribuir
sesmarias para a ocupação e demarcação dos espaços regionais, dando origem
às primeiras estâncias na região (LEMIESZEK, 2000, p. 64).
Já no século XIX é que a localidade de São Sebastião de Bagé começará
a dar sinais de crescimento populacional. Incumbido de chefiar tropas do exército
pacificador indo para Montevidéu9, o Marechal Dom Diogo de Souza decide que
manterá um número significativo de pessoas pelos cerros de Bagé

9 A ida de Dom Diogo de Souza para Montevidéu deu-se pelo fato desta cidade estar sitiada
pelas tropas de José Artigas, momento no qual as províncias do Rio da Prata passavam por
conflitos e guerras de independência. Nesse sentido, Dom Diogo de Souza, que havia assumido
a administração do Rio Grande de São Pedro do Sul, foi incumbido por Dom João VI a ir para
Montevidéu e ajudar o vice-rei do Rio da Prata Francisco Javier Elío, que havia se refugiado
naquela região. Para mais informações, ver: (TABORDA, 2015. p. 234).
32

(combatentes, médicos, soldados, feridos, mulheres), pois o inverno rigoroso


daquele ano era um empecilho para uma melhor locomoção até o seu destino.
Segundo alguns historiadores locais, principalmente Taborda (2015) e
Lemieszek (2000), foi a partir deste acampamento improvisado que se originou
o município de Bagé, mais precisamente em 17 de julho de 1811, data na qual o
Marechal Dom Diogo de Souza partiu para Montevidéu e aqui deixou um grupo
significativo de pessoas acampadas10.
Em seguida, a pequena vila começou a dar sinais de crescimento
populacional. Esse fator é assinalado por Matheus (2016), que observou que
ainda no ano de 1812 os moradores da cidade enviaram um requerimento à
Mesa de Consciência e Ordens pedindo para que na região fosse construído
uma nova paróquia, principalmente pelo fato da localidade de São Sebastião de
Bagé ser freguês da capela de Caçapava, e devido a distância entre os
municípios, muitos sujeitos acabavam ficando sem os “Sacramentos da primeira
necessidade” (MATHEUS, 2016, p. 60).
O crescimento do município também é assinalado por Lemieszek.
Segundo o autor:
A evolução da organização administrativa de Bagé igualmente é
muito rápida, demonstrando seu precoce crescimento e
importância. Até 1832 pertenceu ao município de Rio Pardo, ano
em que passou a integrar o município de Piratini. Em 1846, no
mês de junho, foi criado o município de Bagé, e em dezembro
desse mesmo ano procedeu-se à eleição para a primeira
legislatura da Câmara de Vereadores. O foro foi instalado em
1848, e finalmente, em 1859, Bagé é elevada à categoria de
cidade (LEMIESZEK, 2000, p. 66).

Observando o impacto da escravidão negra na cidade de Bagé em sua


tese intitulada A Produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao sul
do império brasileiro (Bagé, c. 1820 – 1870), Marcelo Matheus (2016) acaba nos
fornecendo informações importantes sobre a Bagé oitocentista. Percorrendo
diversas tipologias de fontes - registros de batismos; inventários; registros de
casamentos; registro de óbitos; cartas de alforrias; testamentos; processos

10Segundo o historiador bageense Tarcísio Antônio Costa Taborda, ao sair de Bagé em direção
a Montevidéu no dia 17 de julho de 1811, o Marechal Dom Diogo de Souza deixou uma carta e
promulgou a lei nº 1, no qual deixava incumbido de chefiar o acampamento recém-criado o
tenente Pedro Fagundes de Oliveira. Sendo assim, para Taborda e demais historiadores locais,
essa carta configura-se como a certidão de nascimento de Bagé. TABORDA, Ibdem, p. 98-99.
33

criminais e jornais – o autor buscou mapear a localidade de Bagé e perceber a


importância da mão de obra negra escravizada para a economia, bem como
observar possibilidades de mobilidade social destes e libertos. Assim, o autor
acabou por trazer dados que corroboram o quanto a região da campanha teve
influência significativa no sistema escravista sul-rio-grandense e, por que não,
brasileiro.
Com relação a alguns números referentes à grande presença destes
trabalhadores escravizados em Bagé no século XIX, podemos observar o
primeiro levantamento estatístico feito no município no ano de 1846, no qual a
localidade aparece com uma população total de 4.104 pessoas. Destas, os livres
somavam 2.884, ao passo que os escravizados somavam 1.212 (MATHEUS,
2016, p. 76). Assim, temos um percentual de 29,5% de trabalhadores
escravizados presentes no município. No que diz respeito ao número de
africanos e crioulos, destes 1.212 escravizados, 908 (75%) eram nascidos em
solo brasileiro e 304 (25%) eram africanos.
Na tabela abaixo podemos observar que já no ano de 1859 a população
de Bagé aumenta significativamente, contexto em que a vila é elevada à
categoria de cidade.

Tabela 1: Estatística populacional das cidades escravistas – 185911.


Município Livres Escravos Libertos Total % de
escravos
Porto 20.341 8.417 965 29.723 28,31
Alegre
Jaguarão 7.668 5.056 275 12.999 38,89
Pelotas 7.793 4.788 312 12.893 37,13
Rio Grande 15.432 4.369 71 19.872 21,98
Cruz Alta 22.073 4.019 392 26.484 15,17
Bagé 7.982 4.016 344 12.342 32,53

11Fonte: Relatório do Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul - Joaquim
Antão Fernandes leão, 1859. Encontrada em: (http://www-
apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_grande_do_sul) Acesso em 14/03/2017.
34

Observa-se que do número de 4.104 habitantes residentes em Bagé no


ano de 1846, treze anos depois a população total do município é de 12.342
pessoas. Destes, 4.016 são escravizados, totalizando um percentual de 32.53%
da população total da cidade. Observando a tabela, percebemos que a cidade
de Bagé é a terceira maior cidade em proporção de escravizados por habitante,
perdendo apenas para a cidade fronteiriça de Jaguarão12 e para o polo
charqueador de Pelotas. Esses números são significativos, mostrando que o
pequeno município de Bagé se organizava, imprescindivelmente, a partir da mão
de obra negra escravizada. Essa importância é enfatizada por Matheus (2016),
quando o mesmo afirma que:
Em relação ao total da região da campanha (Bagé, Alegrete, São
Gabriel, Santana do Livramento e Uruguaiana), em 1858, Bagé
concentrava cerca de 30,5% da população geral e 36,5% do total
dos escravos (MATHEUS, 2016, p. 77).

Pesquisando os batismos realizados em Bagé nos anos de 1829 a 1870,


Matheus (2016) encontrou uma grande quantidade de negros escravizados
batizados. No total, foram encontrados 3.167 sujeitos, número expressivo que só
reforça a importância de Bagé no sistema escravocrata sul-rio-grandense.
(MATHEUS, 2016, p. 82-96).

Ainda dialogando com o autor, este buscou, a partir dos registros de


batismos, mapear a estrutura da posse escrava em Bagé. De 1830 a 1850 o
autor encontrou 1.489 escravizados e 499 senhores presentes nestes registros.
Com relação aos números, 86% dos senhores possuíam em seu grupo de
escravizados de 1 a 4 trabalhadores, mostrando o quanto a posse desses
sujeitos estava disseminada pelo tecido social (MATHEUS, 2016, p, 169).
Observando também os inventários, o autor percebeu a mesma característica da
análise através dos batismos, ou seja, muitos proprietários possuindo poucos
trabalhadores escravizados (MATHEUS, 2016, p. 173).

Em artigo sobre aspectos da escravidão negra em Bagé, Oliveira (2010)


chegou a números semelhantes aos encontrados por Matheus. Analisando
inventários do período de 1867 a 1888, o autor pôde perceber a concentração

12 Diversos trabalhos sobre escravidão e liberdade vem sendo realizados tendo como lócus a
cidade fronteiriça de Jaguarão. Destaque para: CARATTI, 2010; ALADRÉN, 2012; MOREIRA,
2009.
35

de trabalhadores escravizados em pequenos grupos de proprietários. Dos 25


inventários pesquisados, 68% continham de 1 a 5 escravizados (OLIVEIRA,
2010, p. 181).
Números semelhantes foram encontrados por Moreira (2009) e Aladrén
(2011) para a cidade fronteiriça de Jaguarão. Mesmo Jaguarão guardando suas
especificidades no que diz respeito a escravidão, podemos traçar algumas
semelhanças entre ela e Bagé. No período que vai de 1835 a 1845, Moreira
(2009) observou que 71% dos proprietários possuíam um grupo de 1 a 9
escravizados. Já para o período que vai de 1802 a 1836, Aladrén (2011) verificou
que 78% dos proprietários possuíam um grupo de 1 a 9 trabalhadores, números
semelhantes aos encontrados por Moreira (2009).
Esses dados nos mostram que em ambas as regiões de fronteira a posse
de negros escravizados era pulverizada, disseminada pelo tecido social,
havendo muitos proprietários com poucos trabalhadores. Estes
desempenhavam tanto as lides do campo como também estavam presentes em
serviços domésticos.
Buscando traçar um perfil destes trabalhadores negros em Bagé através
dos inventários, Matheus (2016) chegou aos seguintes números: entre 1820 e
1870, o autor encontrou 2.288 escravizados inventariados. Destes, 1.228
(53,5%) eram do sexo masculino e 1.052 (46%) do feminino. Uma maior
porcentagem de africanos foi encontrada no período que compreende os anos
de 1820 a 1835, no qual dos 272 escravizados, 33,5% eram africanos
(MATHEUS, 2016, p. 164). Já no que diz respeito a idade destes trabalhadores,
entre 1820 e 1835 Matheus encontrou 60% de sujeitos em idade produtiva, ou
seja, de 15 a 45 anos.
No que diz respeito à mão de obra negra escravizada na cidade, essa
concentrava-se principalmente na zona rural através do trabalho na pecuária.
Como bem pontua Matheus (2016),
[...] a principal atividade econômica da região da Campanha era
a pecuária, que a riqueza (naquele contexto traduzida em gado,
terras e cativos) estava desigualmente distribuída e que a mão
de obra escrava estava bastante disseminada pelo tecido social,
apesar de boa parte dos cativos estarem em poucas mãos.
(MATHEUS, 2016, p. 183).
36

Porém, o mesmo autor também afirma que na cidade de Bagé existia uma
parte significativa de grupos de trabalhadores negros escravizados que
realizavam trabalhos domésticos, não necessariamente ligados à produção
pecuária, como é o caso de cozinheiras e ofícios urbanos, como carpinteiros,
alfaiates, pedreiros e etc. (MATHEUS, 2016, p. 186).
Peço desculpas ao leitor por esse apanhado de números, porém, creio
que estes sejam importantes justamente para evidenciar que na Bagé
oitocentista a mão de obra negra escravizada foi utilizada de forma intensa pela
elite local, trazendo à tona dados que a historiografia sobre a história de Bagé
fez questão de silenciar.
Outro fator que deve ser levado em consideração quando abordamos a
escravidão em Bagé é a sua situação de região de fronteira. Bagé faz fronteira
com o Uruguai, o que, evidentemente, faz com que a dinâmica da escravidão
local seja diferente de outras regiões13. Nesse sentido, diversos estudos já vêm
demonstrando as particularidades das relações escravistas em regiões
fronteiriças na Província de São Pedro, tanto no que diz respeito a fugas de
trabalhadores escravizados como também em processos de escravização ilegal
entre o Brasil e o Uruguai14.
No que diz respeito às fugas em Bagé, infelizmente ainda são necessários
trabalhos mais específicos sobre a temática, mesmo hoje em dia sabendo que
abundam fontes primárias que o historiador pode se valer para apurar tais
empreitadas de trabalhadores negros no mundo da escravidão.
Em estudo realizado em 2015, pude observar a ocorrência de fugas no
município de Jaguarão através da análise de jornais. Por ser, assim como Bagé,
uma cidade de fronteira com o Uruguai, acabei encontrando diversos anúncios
de fugas para o país vizinho. Das 40 fugas encontradas nos periódicos, 20
tiveram como destino o solo Uruguaio (SILVA, 2015), corroborando a tese de
Petiz (2006), que afirmou que grande parte dos anúncios de fugas encontrados
nos jornais da Província de São Pedro eram de escravizados que foram para a
Banda Oriental. Assim, também pude mostrar que os jornais podem servir como

13 No Uruguai, o processo da abolição da escravidão ocorreu com dois decretos, sendo o primeiro
no ano de 1842 para a cidade de Montevidéu, e o segundo de 1846 para Cerrito e demais
localidades. Ver: CARATTI, 2010. p. 84.
14 Sobre as fugas de escravizados pelas fronteiras da Província de São Pedro, ver: PETIZ, 2006.

Para mais informações sobre o tráfico ilegal de escravizados pela fronteira, ver: LIMA, 2010.
37

uma fonte em potencial para observarmos as ocorrências de fugas escravas em


todo o território brasileiro.
Observando alguns aspectos das fugas em Bagé através de inventários,
Oliveira (2010) nos traz algumas informações que denotam a fragilidade da
característica fronteiriça de Bagé, em que ao efetuar o inventário de seu esposo,
em 1849, Felícia Flora Ribeiro acaba informando que “seis anos antes fugiram
para o Estado Oriental os seus escravos Antônio da Costa, Matheus da Costa e
Florinda crioula, dos quais nunca mais soube notícias” (OLIVEIRA, 2010, p. 184).
Essa fragilidade apontada por Oliveira (2010) também é evidenciada
através de uma correspondência enviada pelo subdelegado de Bagé ao
presidente da Província em 1845. Nesta carta, observa-se o temor das
autoridades locais, clamando por constituir ali (na fronteira), um corpo efetivo da
Guarda Nacional:
Ilmo. Exmo. Snr.
A invasão dos bárbaros assassinos do governo de Montevideo,
os intentos de sublevarem (sic) a escravatura nesta
província; os orientais imigrados dos dois partidos que vagam
pelos distritos sem mostrarem em que se ocupam, e finalmente
os desertores do Exército que também aparecem tem posto os
cidadãos pacíficos em sobressalto, e desassossego, e
desejando tomar as providencias conveniente para estabelecer
a tranquilidade pública consultei Comandante Superior da G. N.
deste município para estabelecer uma polícia dos G. N. da
reserva [...] (OLIVEIRA, 2010, Op. Cit. p. 191). (Grifos nossos)

Evidentemente que uma análise mais apurada em outras tipologias de


fontes como os próprios jornais bageenses do século XIX, por exemplo, podem
mostrar um quadro mais completo das fugas de trabalhadores escravizados
(sexo, cor, idade, ofícios, locais da evasão etc.), bem como de outras
características da escravidão no município. Porém, mesmo buscando construir
um quadro mais geral das resistências dos escravizados em Bagé, o artigo de
Oliveira só reforça a importância que a escravidão teve na localidade, e ao
mesmo tempo as diversas formas de resistência negra ao sistema, seja através
das fugas para outro país bem como através de aquilombamentos e tentativas
de insurreição.
É interessante observar que durante muito tempo a historiografia sul-rio-
grandense creditou pouca importância à mão de obra negra escravizada em
território gaúcho, principalmente nas regiões em que predominava a economia
pecuária. Os trabalhos buscavam dar ênfase aos polos charqueadores (Pelotas
38

e Rio Grande), que acabavam por concentrar uma grande quantidade de


escravizados. Um dos autores que acabaram por virar referência no que diz
respeito ao não emprego do negro nas lides campeiras foi Décio Freitas. Para o
autor, os trabalhadores campeiros do Rio Grande do Sul eram compostos por
homens livres “que, não possuindo, a nenhum título, os meios de produção,
tinham de vender sua força de trabalho para prover a subsistência” (FREITAS,
1993, p. 439). Para esse autor, os negros não possuíam habilidades técnicas
para as lides das estâncias, sendo essas técnicas atribuídas aos indígenas.
Nesse sentido, trabalhadores rurais negros aparecem de forma esporádica e
isolada na produção pecuária.
Ao estudar a obra do escritor gaúcho Moysés Vellinho, a historiadora Ieda
Gutfreind (1990) assevera que os escritos de Vellinho ecoaram na historiografia
sobre o Rio Grande do Sul. Para a autora, muitos escritores, dentre eles o
destacado anteriormente, buscaram forjar uma história do Rio Grande do Sul em
que pesasse uma influência lusitana. Assim, uma história gaúcha com estreitas
relações com Portugal e com o restante do Brasil era o principal objetivo dessa
matriz de produção histórica. Através dessa matriz, além da tentativa de integrar
o gaúcho à agenda nacional, os intelectuais desta perspectiva buscavam maior
influência política e, também, se inserir no mundo editorial brasileiro.
Com relação aos estudos sobre o negro, Gutfreind (1990) afirma que
estes foram deixados de lado, ou quando não, buscava-se explicar que em solo
gaúcho a escravidão foi mais “branda” do que em outras partes do Brasil. Essa
visão simplista, muito difundida entre escritores gaúchos pertencentes a essa
corrente mais tradicional, foi muito influenciada pelos escritos do viajante francês
Saint-Hilaire quando da passagem deste por território gaúcho no início do século
XIX.
Fazendo uma crítica a essa corrente tradicional da História sul-rio-
grandense e sobre a influência dos escritos de Saint-Hilaire, Gutfreind (1990)
afirma que:
[Escritores gaúchos] tomaram como suas as afirmações do
viajante francês Auguste de Saint-Hilaire em relação ao negro.
Transformaram em matrizes seus dizeres e deles tiraram cópias,
desde a diversidade de tratamento do negro desta capitania em
relação as demais, seu menor número, a diferença de
tratamento que havia nas estâncias e nas charqueadas. Pouca
importância deram as sublevações, as fugas, aos motivos que
39

os levaram a cometerem crimes [...] (GUTFREIND, 1990, p.


181).

Alguns autores se destacaram ao pintar uma imagem do Rio Grande do


Sul como um estado no qual as relações entre patrões e peões e senhores e
escravos era harmoniosa, havendo nestas paragens uma suposta “democracia
racial dos pampas”15. Estes escritores ignoraram uma diversidade de dados
empíricos que vai mostrar que não somente não havia uma democracia racial
em terras gaúchas, como também a instituição escravidão deixou marca
significativa nas estâncias sul-rio-grandense, mostrando assim outra perspectiva
para além dos polos charqueadores. Nesse sentido, há cada vez mais trabalhos
acadêmicos que se dedicam a estudar o impacto da escravidão em regiões de
economia pecuária com um uso de diversas tipologias de fontes, dentre elas os
inventários post mortem, processos criminais, registros de batismos e demais
documentos.
Dentro dessa perspectiva há o estudo de Zarth (2002), que buscou
analisar a presença de trabalhadores negros escravizados nas lides campeiras.
Para o autor, além de se fazerem presentes em número significativo na Província
de São Pedro do Rio Grande do Sul, tais trabalhadores desenvolveram, além
das lides campeiras, diversas outras atividades pastoris, o que acabou por
“desconstruir” os argumentos da corrente historiográfica gaúcha que ausentou a
participação negra nas estâncias.
Nesse mesmo sentido, também podemos citar a tese de Farinatti (2007),
que buscou analisar a composição e estratégias da elite agrária no município de
Alegrete. Neste estudo, o autor também buscou caracterizar, através de
inventários, a composição escrava no município e atribuiu aos escravizados
grande importância na lide campeira, afirmando que “a escravidão conseguiu
desempenhar um papel estrutural na reprodução da grande pecuária desde o
século XVIII até, pelo menos, o final da década de 1860” (FARINATTI, 2007, p.
400).
Também podemos citar a dissertação de Araújo (2008), que tem como
foco a localidade de Cruz Alta e que buscou compor um quadro das relações
entre senhores e escravizados num contexto de economia agropecuária.

15 Ver: VIANA, 1974; GOULART, 1985.


40

Utilizando de vasta série documental – inventários post mortem; registro de


compra e venda de escravos; relatórios do presidente da Província; cartas de
alforria; processos criminais etc. – Araújo buscou perceber os mecanismos de
dominação senhorial e as diversas estratégias de resistência que os cativos
acionaram em um contexto fronteiriço, no qual segundo o autor:
Os escravos souberam se aproveitar em benefício próprio das
políticas de domínio para conquistar, manter e se possível
ampliar pequenas margens de autonomia. Incentivos que nada
tinham de benevolência ou de um suposto de inexistente “caráter
patriarcal” da escravidão na pecuária, pois foram gerados no
embate entre ambos os protagonistas. (ARAÚJO, 2008, p. 21).

O interessante destes trabalhos é justamente evidenciar a importância


que a escravidão negra desempenhou em regiões de economia agropecuária,
fugindo das teses que observavam apenas as localidades produtoras de charque
como as únicas capazes de sustentar a escravidão em solo sul-rio-grandense.
Com relação aos últimos anos em que vigorou a escravidão, Bagé ainda
assim apresentava números interessantes sobre a população negra residente na
cidade. Através do censo nacional realizado em 1872, a localidade aparecia com
a quantia de 15.732 pessoas. Destas, 3.405 eram escravizados (21,64%)16. É
interessante observar que essa era uma conjuntura na qual a instituição
escravista já vinha sofrendo abalos. Referimo-nos, principalmente, à lei Eusébio
de Queiroz (1850), que tornava proibido definitivamente o tráfico transatlântico
de escravos, e também a lei de 28 de setembro de 1871, ou Lei do Ventre Livre 17,
ou seja, essa era uma conjuntura de cerceamento da instituição da escravidão
no país, momento decisivo e que, posteriormente, culminou com o solapamento
do regime. Portanto, devemos considerar que para um município pequeno da
região da campanha gaúcha, ter 21,64% de sua população total composta por
trabalhadores escravizados é um dado significante, tendo em vista todas as
questões elencadas anteriormente.
Outra questão que é muito difundida no imaginário da cidade e afirmada
pelos escritores locais diz respeito a abolição antecipada da escravidão em
Bagé. Percorrendo os escritos sobre a cidade, acabamos por notar uma

16 Fonte: Recenseamento Geral do Brasil. (disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-


catalogo?view=detalhes&id=225477). Acesso em 15/03/2017.
17 Sobre o impacto da Lei de 28 de Setembro de 1871 nas relações entre senhores e escravos,

ver: 1871: as prostitutas e o significado da lei. In: CHALHOUB, 2011, p. 189 – 201.
41

significativa produção acerca da abolição antecipada, tendo ocorrido em 28 de


Setembro de 1884.
Fagundes (1995; 2005), Taborda (2015) e Salis (1955) defendem a
mesma tese de que em setembro de 1884, por iniciativa do Club Abolicionista 28
de Setembro, o poder municipal em Bagé decretou extinta a escravidão no
município.
Porém, antes da existência do referido clube abolicionista, seus membros
fundaram a Sociedade 28 de Setembro, isso em meados da década de 1870.
Sobre essa sociedade, Fagundes (1995) afirma que essa preocupava-se com a
vida cultural de Bagé, fazendo, assim, com que edificassem um teatro localizado
no centro da cidade. A mesma autora afirma que no ano de 1883 surge o Club
Abolicionista 28 de Setembro, momento no qual houve uma pressão dos
membros do clube para que o legislativo local decretasse extinta a escravidão
em Bagé, isso vindo a ocorrer no dia 28 de setembro de 1884 Fagundes (1995,
p. 58).
Nessa mesma perspectiva estão os escritos de Salis (1955). Segundo o
autor:
Em 14 de agosto de 1872, elementos idealistas haviam fundado
a “Sociedade 28 de Setembro”, o que nos mostra que
paralelamente marcharam as duas grandes aspirações do povo:
“abolição da escravatura e República”, ruindo os alicerces do
Império até à derrocada final (SALIS, 1955, p. 193)

O autor também defende o argumento de que em setembro de 1884


houve a abolição da escravidão na cidade, havendo “imponentes festejos
públicos em regozijo à emancipação total do elemento servil, neste município”
(SAIS, 1955, p. 198).
Taborda (2015) afirma que com a criação do Club Abolicionista 28 de
Setembro houve um aumento do número de manumissões na cidade, havendo
a diminuição de escravizados. Também argumenta que diversos fazendeiros
locais se associavam no clube e alforriavam seus trabalhadores, no passo que
muitos senhores abriam mão de escravizados que recebiam por cláusula
testamentária (TABORDA, 2015, p. 149). O autor também reitera que ao mesmo
tempo em que uma grande massa de pessoas aderia ao movimento
protagonizado pelo clube abolicionista, muitos fazendeiros e proprietários
elevavam o preço de seus escravos para impedir que estes fossem libertados.
42

Com uma escrita que busca exaltar os fazendeiros, proprietários e


membros do clube abolicionista que tiveram “gratidão” para com seus
escravizados e com o propósito de liberdade que reinava no ar, Taborda também
vai defender a tese da abolição total em 28 de setembro de 1884. Sobre esse
evento afirma que:
Reunidos na igreja, foi entoado, em seguida, um Te Deum, em
ação de graças. Dali, uma grande passeata percorreu as ruas da
cidade, dando expansão a alegria, popular, rumando, após para
o Teatro 28 de Setembro, onde, outra vez, irmanados povo e
autoridades, desfilaram oradores que enalteciam a libertação
dos escravos (...) A festa da libertação continuou até horas
adiantadas, tendo havido um grande leilão, reunindo meios para
colaborar com outros municípios, na campanha da redenção dos
escravos, pois Bagé já libertara todos os pretos que viviam em
seu território. (TABORDA, 2015, p. 150).

Com o passar dos anos essa narrativa da abolição antecipada acabou


ganhando espaço na história da cidade e foi sendo reproduzida por muitos outros
escritores locais. Porém, ao nos depararmos com as fontes primárias,
principalmente os registros de compra e venda de escravizados em Bagé, iremos
notar que estes escritores acabaram cometendo um equívoco. Graças ao
esforço de pesquisadores do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
(APERS), foi compilado o livro Documentos da Escravidão. A partir deste
material, a equipe de pesquisadores pode fornecer uma série de documentos
sobre a escravidão no Rio Grande do Sul, e um desses documentos são os
registros de compra e venda de escravizados. Analisando este material relativo
a cidade de Bagé, observamos que nos anos de 1886 e 1887, ainda se encontra
transações envolvendo pessoas negras na cidade18.
Outro fator que deve ser levado em consideração é que a partir da
primeira metade da década de oitenta do oitocentos, houve não só no Rio
Grande do Sul, mas em outros estados brasileiros uma série de alforrias
condicionadas.
Observando o processo emancipacionista ocorrido em Porto Alegre a
partir de 1884, Krob (2016) nos mostra que muito antes de ter ocorrido uma
“abolição antecipada” de escravizados na capital da Província de São Pedro,

18Documentos da escravidão: compra e venda de escravos: acervo dos tabelionatos do Rio


Grande do Sul / Coordenação Jovani de Souza Scherer e Márcia Medeiros da Rocha. – Porto
Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (CORAG), 2010. p. 251.
43

ocorrera, de fato, uma série de alforrias condicionadas a prestações de serviços.


Através da pesquisa em alforrias registradas em cartório, a autora evidencia que
entre os anos de 1879 a 1888, houve 1.997 alforrias registradas. Destas, 971
eram condicionais, sendo 43% delas relativos a prestação de serviços ao senhor
(KROB, 2016, p. 68).
Loner (2001) também constatou o aumento do número de cartas de
alforrias para a cidade de Pelotas nesse mesmo período:
O processo de libertação dos escravos em Pelotas também
passou pela sua chamada emancipação em 1884, momento em
que grande parte dos escravos receberam cartas de libertação,
porém condicionadas a prestação de serviços por um prazo
variável, de 3 a 7 anos, para seus ex-patrões (LONER, 2001, p.
241).

A partir do início da década de oitenta do século XIX, a cidade de Bagé


também registrou um acréscimo do número de alforrias, como se pode observar
no quadro abaixo:

Tabela 2: Registros de Alforrias em Bagé – 1881-1884


Ano Nº de Registros de
alforrias
1881 16
1882 12
1883 13
1884 192
Fonte: OLIVEIRA, 2010, p. 193.

Ao observar o número de alforrias condicionais, Oliveira (2010) aponta


que no ano de 1884, das 192 alforrias registradas em Bagé, 162 delas (84,38%)
foram condicionadas ou a prestação de serviços ou a morte do senhor. Assim,
observamos que o município de Bagé também acompanhou a lógica que vinha
ocorrendo em Porto Alegre e que posteriormente se estendeu a outras regiões
da Província. Nesse sentido, antes de ser uma emancipação total de
escravizados, como bradado por escritores bageenses, tal prática foi uma
estratégia, e como bem pontua Krob (2016):
44

[...] naquele momento em que a escravidão se encaminhava


para o fim e que as pressões escravas forçavam alguma medida,
permitia simultaneamente declarar os cativos livres e seguir
utilizando sua força de trabalho (KROB, 2016, p. 70).

Também cabe destacar o protagonismo de negros e negras nesse


processo emancipacionista, no qual alguns trabalhos vêm mostrando que
trabalhadores escravizados desempenharam um papel decisivo no que diz
respeito aos embates em torno das cartas de alforria. Isso é demonstrado no
grande número de cartas de alforria acionadas pelos próprios escravizados em
solo gaúcho a partir das últimas décadas da escravidão (MOREIRA, 2003;
PERUSSATTO, 2009).
Como observado, a partir de uma análise mais acurada em outras
tipologias de fontes, podemos constatar que a narrativa criada em Bagé acerca
da abolição antecipada é errônea. Uma narrativa criada justamente para
preservar nomes de sujeitos que outrora foram escravocratas, escrevendo uma
história de heroísmo e bravura. Chama muito a atenção o fato de que a história
“oficial” de Bagé tenha ignorado o passado escravista na região, pois
percorrendo a bibliografia local, notamos que não há nenhum trabalho sobre o
tema. Não obstante, sobre a famosa abolição de 1884 abundam textos e
memórias19.
Todas essas características apontadas nos mostram o quanto que a
instituição escravidão teve impacto na cidade de Bagé, evidenciando que para
além de números, houve também diversas formas de resistências negras ao
cativeiro. Essas questões foram negligenciadas pelos escritores que se
dedicaram à escrita da história de Bagé, fazendo com que ainda nos dias atuais,
muitos moradores da cidade nem saibam que a mesma também experienciou a
escravidão negra.
A partir das questões elencadas anteriormente, a afirmação de Grigio
(2016) - que estudou o impacto da escravidão na cidade de Santa Maria no

19TABORDA (2015) FAGUNDES (1995) SAIS (1955). Fim da escravidão em Bagé completa 130
anos sem comemorações. Matéria publicada em:
http://www.alternet.com.br/portal/2014/09/29/fim-da-escravidao-em-bage-completa-130-anos-
sem-comemoracoes/ (Acesso em 03/04/2017). GIORGIS, José T. A escravidão em Bagé.
Matéria publicada em: http://jornalminuano.com.br/VisualizarNoticia/14769/a-escravidao-em-
bage.aspx (Acesso em 03/04/2017). BOUCINHA, Cláudio Antunes. A abolição da escravatura
em Bagé. Texto publicado em: http://claudioantunesboucinha.blogspot.com.br/2010/07/abolicao-
da-escravatura-em-bage.html (Acesso em 03/04/2017).
45

século XIX - também se aplica para a localidade de Bagé, no qual o autor afirma
que “embora o surgimento da cidade [de Santa Maria] não esteja diretamente
relacionado ao regime escravista, sua história está intrinsicamente ligada à
utilização de indivíduos escravizados” (GRIGIO, 2016, p. 84).
Joseli Mendonça (2016), ao estudar a presença de africanos e seus
descendentes na cidade de Curitiba, também observou a invisibilidade em que
esses grupos foram colocados pelas narrativas históricas e espaços de
preservação de memória da cidade. Na cidade de Bagé ocorreu e ocorre o
mesmo, pois nesses espaços é visível a exclusão da presença de africanos e
seus descendentes. Em um pequeno local do museu Dom Diogo de Souza,
localizado na cidade de Bagé, existem algumas correntes que prendiam
trabalhadores negros escravizados, porém, nada sobre a escravidão negra
bageense é mencionado. Com isso, se criou na cidade uma memória e uma
identidade que atribuem à imigrantes o progresso local, seja no período imperial
como também no período republicano.
No mesmo sentido proposto por Mendonça (2016) numa perspectiva de
contribuir para uma história pública20, é de fundamental importância atentarmos
para as ações e contribuições de homens e mulheres negras na constituição da
cidade de Bagé, pois assim podemos tencionar as memórias oficiais da cidade
e trazer à tona outras perspectivas históricas do município, em que pese a
diversidade de sujeitos e a construção de múltiplas identidades locais, que não
só a de imigrantes europeus.
Esperamos que esse trabalho possa contribuir para pensar na
importância de territórios negros na cidade de Bagé, numa perspectiva que já
vem sendo construída em outras regiões do Rio Grande do Sul21, bem como em

20 O termo história pública proposto por Mendonça (2016) e utilizado aqui diz respeito aos
diálogos e relações “entre a produção acadêmica e não acadêmica do conhecimento histórico.
De um lado, os lugares de produção de saber histórico se multiplicaram, indo além dos
departamentos e centros universitários. De outro, as numerosas contendas sobre a memória
coletiva e o dever de memória têm frequentemente colocado a disciplina histórica no centro de
debates públicos com amplas repercussões políticas e sociais. Tais fenômenos refletem-se na
vasta produção editorial, áudio visual, museológica, entre outras, que mobiliza saberes
históricos, articulando demandas por esse tipo de conhecimento vindas de diversos setores da
sociedade civil e do Estado” (FONTES, HEYMANN e MATTOS, 2014, p. 229).
21Sobre territórios negros na cidade de Jaguarão, ver: AL-ALAM, Caiuá Cardoso. LIMA, Andreia
da Gama. Territórios negros em Jaguarão: Revisitando o Centro Histórico. In: Ensino de
História no Cone Sul: patrimônio cultural, territórios e fronteiras. Porto Alegre: Evangraf, 2012.
46

outros estados do sul do Brasil como é o caso de Santa Catarina22. Em projetos


que envolvem universidades, movimentos sociais e pessoas das comunidades,
são pensados espaços de presença e protagonismos negros tanto no mundo da
escravidão como também no período Pós-abolição, com a intenção de dar
visibilidade a sujeitos que historicamente foram marginalizados na construção de
histórias, memórias e identidades desses locais.
Ficou nítido que a presença negra em Bagé na época da escravidão foi
posta a margem das produções históricas sobre a cidade no século XIX, e nas
pesquisas que abordam o período republicano a questão se repete. Nota-se um
silenciamento no que diz respeito a presença de homens e mulheres negras e
suas ações na cidade e como veremos a seguir, quando aparecem, são
retratadas por alguns escritores de forma estigmatizada.23

1.2. A história local e a estigmatização de corpos negros

A produção histórica local durante muito tempo ficou preocupada em


destrinchar alguns aspectos envolvendo a origem do nome da cidade, como fica
evidente na vasta obra de Tarcísio Taborda, na qual o historiador local, por
diversas vezes, atenta para a importância de se fazer uma arqueologia da
etimologia do nome da cidade. Não obstante, a atenção de Taborda e demais
historiadores locais se voltou também para a construção de uma narrativa que
contemplasse nomes de figuras históricas que são naturais ou que viveram em
Bagé, como é o caso de Silveira Martins, importante político do partido liberal
nos fins do século XIX, bem como empresários, charqueadores e demais sujeitos
pertencentes à elite local, pois como assevera LEMIESZEK (2013, p. 12) “[...]
[Bagé] é berço e morada de bravos e heroicos guerreiros, estadistas, políticos,

22 Sobre a construção de projetos que buscam dar visibilidade a presença de africanos e seus
descendentes em Santa Catarina, visitar: http://santaafrocatarina.blogspot.com.br/p/blog-
page.html.
23 O termo estigmatizado é usado aqui no sentido conferido por Erving Goffman, no qual estigma

se caracteriza pela depreciação de alguém por este possuir características que outros grupos
julgam como não normais. As categorias criadas para estigmatizar pessoas fazem parte de uma
construção social, não sendo algo dado como de forma natural. GOFFMAN, Erving. Estigma:
notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução: Mathias Lambert. Data da
publicação original: 1891. Link do livro:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/92113/mod_resource/content/1/Goffman%3B%20Estig
ma.pdf Acesso em: 24/03/2017.
47

artistas, comerciantes, fazendeiros, ao lado de cultas e invulgares


personalidades”.
Ao mesmo tempo em que busca mostrar ao leitor sobre importantes
ministros estrangeiros que vieram a Bagé, bem como comentar sobre os
primórdios da vida associativa e urbana na cidade num recorte que vai de 1885
a 1915, Lemieszek (2000) aponta para a criação de clubes sociais, beneficentes
e, inclusive, entidades de classe. O autor acaba citando a criação de entidades
como a Sociedade União Operária, fundada na cidade no ano de 1898.
Posteriormente, foi organizada a Sociedade Beneficente União Progresso, que
se configurava, segundo o autor, como entidade da classe operária
(LEMIESZEK, 2000, p. 86). Também aponta para a criação da Sociedade
Beneficente Feliz Esperança (1907); a Liga dos Padeiros (1908); a Sociedade
Beneficente dos Alfaiates (1908) e também uma entidade organizada e dirigida
por mulheres, a Sociedade Beneficente de Senhoras (1900)24.
Elencando a criação destes espaços em Bagé, mesmo que não seja sua
intenção, o autor nos faz ver que os trabalhadores locais não assistiram
submissos aos desmontes e desigualdades praticados pela nova ordem
republicana.
De toda a forma, Lemieszek entra em contradição ao afirmar que:
Apesar de todos os avanços [da nova ordem republicana], ainda
predomina um grande desânimo geral no país. Bagé, entretanto,
parecia ser uma exceção, um oásis, uma cidade que
desabrochava para o mundo, sempre receptiva às novidades da
ciência e cada vez mais consciente da importância da integração
comunitária para alcançar o sucesso (LEMIESZEK, 2000, p. 90).

A citação acima deixa claro que o autor retrata uma Bagé como um lugar
onde não havia conflitos, contradições, embates entre diversos grupos sociais,
pois para Lemieszek, a cidade trilhava um caminho diferente do restante do país,
era um “oásis”, desabrochando para o mundo, no qual a integração comunitária
a tornava um lugar diferenciado. Porém, como veremos mais adiante, Bagé não
era um lugar sem conflitos, muito pelo contrário, pois o período pós-abolição

24 A semelhança dessas associações com as de outros municípios é evidente, como é o caso


dos estudos de LONER (2001) que encontrou para as cidades de Pelotas e Rio Grande no
período que compreende os anos de 1888 a 1930, entidades semelhantes às achadas em Bagé,
como por exemplo: União dos Trabalhadores em Padarias (Pelotas); S. B. União dos Oficiais
Alfaiates (Pelotas); Sindicato Padeiros (Rio Grande); União dos Alfaiates (Rio Grande). Para um
quadro completo das entidades, ver: LONER, 2001. p. 443-456.
48

atenuou as tensões raciais e sociais em Bagé, no qual diversos grupos negros


fundaram seus espaços associativos e também estavam conectados com
entidades classistas.
Lemieszek e Garcia (2013) também atribuem à contribuição de três
colônias de imigrantes o fato da prosperidade na Bagé oitocentista, sendo os
espanhóis, italianos e portugueses. Na figura de Emilio Guilayn, “expressão
máxima de competência e sinônimo de progresso” (LEMIESZEK; GARCIA,
2013, p. 15) os espanhóis ajudaram a trazer para Bagé a energia elétrica, casas
bancárias e diversos estabelecimentos comerciais. Já os italianos, na figura dos
irmãos Chichi se consolidaram como industriais em Bagé e segundo os autores
fundaram um moinho movido a força hidráulica. No caso dos portugueses, os
autores atribuem ao nome do Visconde de Ribeiro Magalhães um grande
expoente do crescimento econômico na Bagé oitocentista. Visconde de Ribeiro
Magalhães foi proprietário de estâncias, criador de bovinos, comerciante e
posteriormente possuiu uma charqueada e um frigorífico na cidade de Bagé.
Sobre a contribuição destas três colônias para o desenvolvimento de Bagé, os
autores afirmam que:
Juntas, as três colônias de imigrantes deixaram um belo legado
de obras e lição de vida a seus descendentes bajeenses.
Fundaram hospitais, sociedades beneficentes, casas comerciais
e industrias. Além disso, tiveram presença marcante na música,
nas artes e na literatura bajeense, não podendo deixar de citar,
desse modo, a qualidade dos artesãos e profissionais de
diversos ofícios de relevante utilidade para a novel cidade
(LEMIESZEK; GARCIA, 2013, p. 15).

Ambos os autores não dão espaços a nenhuma contribuição da


comunidade negra de Bagé em seus escritos, bem como de demais setores
populares da cidade. Também, ao discorrer sobre a Bagé do século XIX não
apontam em nenhum momento para a escravidão no município, como se ela não
tivesse existido, ou se existiu, não tivesse importância alguma diante dos legados
deixados por cidadãos europeus e seus descendentes. Assim, tais escritos
reforçam a invisibilidade à qual foi submetida as contribuições de negros e
negras em Bagé tanto ao longo do século XIX como também no alvorecer da
República.
49

Sobre produções locais que materializam a estigmatização da figura do


negro, temos como exemplo o livro de autoria de João Coronel Sais chamado
Tipos populares de Bagé, cujo lançamento ocorreu no ano de 1984.
O objetivo do livro é mostrar alguns “tipos populares” da cidade como uma
“contribuição ao folclore da gente da nossa terra”, no qual a grande maioria de
sujeitos são negros. Um exemplo é dado quando o autor fala de Hortêncio,
descrito como um [...] “crioulo alto, robusto, rosto cheio, olhos vivos, com um
enorme beiço, carnudo e saliente [...] (SAIS, 1984, p. 25). Sobre esse sujeito, o
autor o estigmatiza, mostrando elementos que denotam sua descendência
africana, como no caso dos “beiços” grandes. Mais adiante, outro exemplo pode
ser dado quando o autor descreve as características de uma mulher chamada
de Tia Pórcia, [...] “morena carregada e descendia de Negros Mina, cujo
caldeamento de raças resultaram na mudança acentuada de cor de sua
epiderme” [...] (SAIS, 1984, p. 53). Percebemos que João Sais “bebia” de
concepções racistas ao descrever pessoas negras, atentando para suas
características físicas, que denotavam um “tipo africano”, “primitivo”.
Analisando alguns escritos sobre a história de Pelotas, sobretudo os
registros produzidos por escritores locais, Al-Alam (2007) atentou para a
reprodução de uma história que buscava dar conta dos feitos de uma elite local.
Aos demais grupos sociais, dentre eles as camadas populares, o autor observou
que a contribuição destes foi negligenciada por essa narrativa hegemônica.
Assim como em Bagé, escritores pelotenses também produziam escritas que
estigmatizavam sujeitos negros, como é o caso de uma passagem do livro de
Fernando Osório citado por Al-Alam (2007, p. 35):
Ao falar de Roberto Macacão, disse o escritor [Osório] “era feio
como uma indigestão de charque”; ainda, ao referir-se à esposa
deste individuo, a dita Macacoa, ele disse, “[...] era uma
verdadeira cariátide, uma espécie de megera de Macbeth, feia
como um caco de granada, elegante como uma cama de vento,
perfumosa como um murrão apagado, clara como o fundo de
uma chaleira de chimarrão”.

Ao citar Fernando Osório, Al-Alam (2007) está problematizando as


escritas sobre a história da cidade de Pelotas e como estas foram responsáveis
por forjar memórias e identidades locais, mantendo-se ainda vivas no seio da
cidade e fazendo parte de trabalhos de professores e escolas locais.
50

Cabe lembrar que a ciência sobre as raças da virada do século XIX para
o XX buscou, através de características fenotípicas, arranjar lugares sociais para
os negros e brancos. No Brasil ganharam força as obras de Nina Rodrigues, cujo
objetivo era o de mostrar que o atraso civilizatório do Brasil estava atrelado a
miscigenação, pois o negro possuía características fenotípicas de uma raça
inferior. Assim, Nina Rodrigues recorreu à Medicina e foi influenciado pelas teses
de Lombroso25, no qual buscava, através de análise de crânios e demais
características físicas e biológicas do negro, comprovar o quanto estes sujeitos
pertenciam a uma raça inferior e estavam predispostos ao crime, à selvageria e
a barbárie (RODRIGUES, 1982)
Também nesse sentido, Schwarcz (1993) aponta para a disseminação
das teorias raciais no Brasil na virada do século XIX para o XX. Para a autora,
tais teorias gestadas na Europa do século XVIII foram muito bem recebidas aqui
no Brasil e tiveram como veículos de disseminação diversos institutos e
associações, como o Instituto Histórico Brasileiro e faculdades de Medicina e de
Direito, por exemplo. Estas instituições colocavam a questão racial no centro do
debate e seus objetivos eram reforçar a cientificidade dessas teorias, para assim,
“explicar as diferenças e [justificar] as hierarquias” (SCHWARCZ, 1993, p. 65).
Ao descrever sujeitos negros atentando para estereótipos e suas
características físicas, Sais (1984) mostra-se dialogar com tais postulados
teóricos sobre a raça criado na Europa e importado e (re) estruturado em solo
brasileiro ainda no século XIX. Tais teorias também atentavam para caracteres
físicos dos negros – atrelado à questão moral e cultural- para buscar explicação
cientifica sobre o não progresso desses sujeitos, bem como sua pré-disposição
ao crime e a “vadiagem”.
Voltando a obra de João Coronel Sais, outra questão que nos chamou
bastante atenção foi a abordagem que o mesmo escritor fez do famoso Príncipe
Negro, cujo nome era Custódio Joaquim de Almeida. Vindo da África, o Príncipe
chegou por volta do ano de 1862 no Brasil, e como observa Pereira (2010):
Em terras sulinas o “Príncipe Custódio” ou Osuanlele Okizi
Erupe – nome africano que trazia e o vinculava a uma auto-
reivindicada origem nobre, morou em Rio Grande, Bagé e
Pelotas, onde teria chegado por volta de 1900. Dando
prosseguimento a sucessão de mudanças, em 1901 torna-se

25Sobre as teses de Lombroso, ver: LOMBROSO, Cesare. 1885-1909. O homem delinquente.


Tradução Sebastiao José Roque – São Paulo: Ícone, 2010.
51

morador de Porto Alegre, lugar de sua última parada (PEREIRA,


2010, p. 6).

No seu livro citado anteriormente – Tipos Populares de Bagé – Sais


descreve Custódio como um negro escravizado e que na África havia sido um
príncipe. Na sua descrição completamente equivocada de Custódio, o autor
ainda afirma que:
Sem amigos e sem afeição a ninguém, o Príncipe Negro, na sua
condição de nobre e de predestinado a comandar seus súditos,
lutava contra a desgraça que o afligia e o sentimento de
desespero que o amargurava. Escravo alforriado pela sua má
conduta! Não era um cidadão. Não era, enfim, nem gente nem
coisa! (SAIS, 1984, p. 59-60).

O autor ainda conclui que após ter sido alforriado por sua má conduta, o
“príncipe negro resolveu afogar as suas mágoas no caminho tortuoso do vício”
(SAIS, 1984, p.60). Bem diferente dos argumentos de Sais (1984), Silva (2011b)
demonstra que Custódio não viera para o Brasil enquanto escravo, mas sim
como um sujeito livre. Sua vinda para o Brasil é uma questão que ainda guarda
alguns mistérios. Mesmo assim, sabe-se que Custódio era um homem que
pertencia a aristocracia de onde viera, falando fluentemente o inglês e o francês.
Possuía diversos cavalos de raças, dos quais ele mesmo se encarregava de
cuidar.
Sobre a importância de Custódio no que diz respeito às práticas religiosas,
Silva (2011) afirma que nas cidades em que passou “fundou centros para a
prática da religião africana, pois era um devoto do vodu Gum (ou do orixá Ogum).
Tornou-se também famoso como especialista no uso de ervas medicinais”
(SILVA, 2011b, p. 118). Assim, o príncipe negro acabou por se tornar uma
grande liderança étnico-racial, principalmente na cidade de Porto Alegre,
localidade onde morou por 34 anos, e como bem pontua Silva (2011b, p. 119):
[...]“aplicou seu prestígio e riqueza para melhorar as condições dos africanos e
de sua comunidade, num estado onde existia forte discriminação contra os
negros”. O príncipe Custódio acabou falecendo no ano de 1935 em Porto Alegre,
provavelmente com mais de cem anos de idade, fato que foi noticiado por
diversos órgãos da imprensa porto-alegrense da época.
Como escrito anteriormente, muitas publicações sobre Bagé e seus
personagens acabam ganhando uma forma quase que “viva” dentro da
52

sociedade, sendo suas narrativas se tornando, muitas vezes, a “verdadeira”


história local. João Coronel Sais acabou cometendo um erro histórico gravíssimo
ao descrever o Príncipe Negro como um escravizado, como um não cidadão,
desumanizando um sujeito que contribuiu de forma muito significativa para
elementos da religião de matriz africana em solo gaúcho e brasileiro. O seu livro
sobre os “tipos populares” da cidade reforça estereótipos sobre pessoas negras
da cidade e acaba por transformá-las em algo caricato.
Ainda com relação as abordagens que estigmatizam sujeitos negros em
Bagé, as encontramos também na obra da escritora local Elizabeth Macedo de
Fagundes (1995). Em seu livro intitulado Bagé no caminho da história do Rio
Grande do Sul, a autora, ao se referir a Maximiano Domingos do Espirito Santo26,
popularmente chamado de Preto Caxias, reproduz um trecho do livro de Eurico
Salis, publicado no ano de 1955. Nesta passagem, o autor descreve Preto
Caxias do seguinte modo:

Preto Caxias – Maximiano Domingos do Espirito Santo – Chegou


em Bagé, aos 36 anos de idade, fazendo parte do 8º Batalhão
de Fuzileiros. Era filho de escravos, oriundos de Angola, natural
do Rio de Janeiro. Sua figura de negro feio era bem simiesca:
beiços largos, nariz achatado, olhos pequenos e vivos, orelhas
mais dilatadas em sua implantação basilar, estatura mediana.
(Grifos nossos) (SALIS apud, FAGUNDES, 1995, p. 54).

A escritora, ao reproduzir os escritos de Eurico Salis que foram


construídos nos anos de 1950, acaba por dar continuidade às formas de
estigmatização de sujeitos negros, como no caso da citação acima, em que
Maximiano é tido como uma figura “simiesca”, ou seja, é comparado à figura de
um macaco. Infelizmente, tais escritos são reproduzidos havendo com isso a
naturalização desses estereótipos.
Toda essa invisibilidade de negros e negras na história de Bagé que
estamos mostrando ao leitor até aqui, não é um caso isolado. Como bem pontua
o antropólogo Ruben Oliven, na história do Rio Grande do Sul houve por muito

26Nascido no Rio de Janeiro, Maximiano Domingos do Espirito Santo, conhecido popularmente


como “Preto Caxias”, veio parar em Bagé servindo no 8º Batalhão de Infantaria. Findado o serviço
militar, Maximiano permaneceu em Bagé e começou a desenvolver serviços sociais, ajudando
pessoas necessitadas. Quando da inauguração da Santa Casa de Caridade de Bagé, na década
de 1870, Maximiano foi o primeiro carregador de corpos e posteriormente foi o zelador do
hospital. Faleceu no ano de 1888. No salão de entrada da Santa Casa há um quadro de
Maximiano pintado a óleo, o que demonstra a importância desse sujeito para a sociedade
bageense. (LOPES, 2007. p. 34). Há também indícios da participação de Maximiano na
Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Bagé (MATHEUS, 2016, p. 322-323).
53

tempo o silenciamento da história de determinados grupos, como os indígenas


e os negros. Oliven (1996) ressalta que mesmo que no Rio Grande do Sul
convivam diversos grupos sociais e étnicos, a tradição da historiografia regional
ainda insiste em mostrar que o sujeito que habita o solo rio-grandense é o
gaúcho na sua figura mais tradicional, sendo o cavaleiro e o peão de estâncias.
Segundo o autor:
Esse gaúcho evoca elementos de um passado glorioso, cuja
existência seria marcada pela vida em vastos campos, a
presença do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e a bravura
do homem ao enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a
lealdade, a honra, etc. (OLIVEN, 1996, p. 18).

Muitos escritos sobre Bagé e seus habitantes são ilustrativos dessa


perspectiva observada por Oliven (1996), como, por exemplo, a descrição de um
blog presente na internet e que tem como objetivo mostrar a história de Bagé e
que aparece a seguinte descrição:
[Bagé] é Porta de entrada para o pampa gaúcho, seus campos
preservam o bioma natural da região e seu povo não cansa de
mencionar a sua rica arquitetura urbana e rural. Como o gaúcho
de fronteira jamais viveu sem um cavalo, só poderia ser aqui que
se encontra o que há de melhor na produção equina nacional,
principalmente dos puros – sangues ingleses e dos crioulos27.

A historiadora Ieda Gutfreind (1992) sublinhou que a historiografia sobre


o Rio Grande do Sul poderia ser dividida em duas matrizes de pensamento: a
matriz platina e a lusitana. A primeira defende que a história do Rio Grande do
Sul deve ser atrelada à influência espanhola, da cultura dos povos que
compunham as regiões do Prata. Já a segunda matriz buscava atrelar a
formação do Rio Grande do Sul à sua origem portuguesa. Os escritos produzidos
por historiadores da matriz lusitana, que teve como alguns de seus expoentes
nomes como o de Moysés Velhinho e Othelo Rosa, principalmente a partir da
década de 1920, buscavam integrar a história do Rio Grande do Sul a agenda
nacional, ou seja, negavam que a origem do estado estava ligada a influência
das regiões do Prata e buscavam integrar a história do estado à uma escrita
nacional, originada pela cultura portuguesa. Essa perspectiva historiográfica
buscou reforçar a figura do gaúcho como um sujeito viril, ordeiro, disciplinado:
A matriz lusa da historiografia também negou o aspecto que
inferiorizava a população da capitania em geral e permaneceu

27Extraído de: http://cidadebage.blogspot.com.br/2010/07/historia-de-bage-rs.html. Acesso em


20/02/2017.
54

apenas com aquele rol de valores com os quais José Feliciano


caracterizou os conquistadores das missões. Tais
conquistadores foram vistos como um punhado de homens
valentes, audaciosos e bravos que, sem armas e munições,
anexaram a Província das Missões ao domínio português. Tais
qualidades, reconstruídas pela matriz lusa, passaram a
caracterizar o gaúcho em geral [...] (GUTFREIND, 1992, p. 14).

Essa figura do gaúcho como um sujeito guerreiro e disciplinado também


foi esboçado por Oliveira Viana, no seu livro Populações Meridionais do Brasil,
lançado originalmente em 1920 e que observava a formação histórico-social dos
habitantes das terras gaúchas. Viana acreditava na figura do gaúcho como um
combatente, pois este estaria habituado aos conflitos principalmente por estar
em regiões de fronteira, fazendo com que o gaúcho tivesse uma aptidão nata
para guerrear e andar a cavalo. O autor pintou a figura do gaúcho como o
“centauro dos pampas”, como aquele sujeito que seria o guardião das fronteiras
do Rio Grande do Sul. Esses sujeitos seriam brancos e descendentes de
europeus, não havendo espaços para a contribuição de outros grupos sociais
em seus escritos. Tal fato acabou sendo levado adiante e ainda nos dias atuais
acabamos por ver tais representações de gaúchos, pois como bem pontua
Oliven (1996, p. 25): “trata-se de uma construção de identidade que exclui mais
que inclui, deixando fora a metade dos territórios sul-rio-grandense e grande
parte de seus grupos sociais”. A partir das obras desses escritores, sobretudo
os vinculados ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS)
tanto da matriz lusitana como da platina, nota-se que ambas legaram a
população negra para o segundo plano.
Na cidade de Bagé, a invisibilidade da história de africanos e seus
descendentes é nitidamente observada quando nos propusemos a percorrer a
bibliografia sobre a cidade. Quando aparecem, são pintados de forma caricata e
muitas vezes com estereótipos de “africanizados”. Tais autores deixaram de lado
a contribuição da população negra para a formação histórica de Bagé tanto no
século XIX como também no XX.
No alvorecer da república, o município de Bagé assistiu a um crescimento
substancial de sua população. Para se ter uma ideia, o censo demográfico do
55

ano de 1900, o município possuía 28.95628 pessoas, sendo o sétimo município


com o maior número de pessoas dentre os 66 recenseados. Esse crescimento
populacional de Bagé veio acompanhado de um acréscimo do número de
estabelecimentos comerciais, sobretudo de estabelecimentos fabris como é o
caso de charqueadas. Segundo Lemieszek e Garcia (2013, p. 17), de 1895 até
1905, foram criadas cinco charqueadas na cidade de Bagé, o que acabava
também atraindo a mão de obra de cidades vizinhas. Os anos iniciais do século
XX também foram marcados por obras de revitalização do espaço urbano, como
é o caso do calçamento das principais vias da zona central de Bagé.
Juntamente com esse crescimento da cidade, intensificou-se a criação de
espaços criados por pessoas negras, pois ao passo que a cidade crescia, ia se
tornando mais segregada. Cabe lembrar que os primeiros anos da república
foram marcados pelo impacto das teorias raciais, aquelas que buscavam
comprovar cientificamente a inferioridade cultural de sujeitos negros. No Brasil,
tais postulados científicos foram muito bem recebidos e disseminados pelo
Estado, intelectuais e pessoas nas suas vidas cotidianas. Com isso, as relações
sociais no Pós-abolição foram marcadas por processos de racialização,
presentes no âmbito da vida privada de pessoas negras e não negras, mas
também nos espaços públicos das ruas das cidades.
É justamente no Pós-abolição que a imprensa forjada por e para negros
ganha força no Brasil, abarcando diversos estados do país. No Rio Grande do
Sul, ainda no século XIX começam a surgir periódicos dedicados aos “homens
de cor”, com o intuito, principalmente, de debater questões fundamentais nas
vidas desses sujeitos, como por exemplo educação, trabalho e política.
Na cidade de Bagé, foi no ano de 1913 que nossa pesquisa encontrou
indícios da organização negra através da imprensa com a publicação do jornal
O Rio Branco. Também data de 1913 a criação de um time de futebol somente
para jogadores da raça negra, time esse que posteriormente possuiu um jornal.

28 Synopse do recenseamento de 31 de dezembro de 1900. (Rio de Janeiro: Typ. da Estatística,


1905). Pesquisado em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/4/browse?value=Censo+demográfico%2C+Brasil%2C
+1900&type=subject. Acesso em 21/02/2018.
56

Nesse sentido, no capítulo seguinte, iremos observar as experiências de


jornais da imprensa negra em Bagé, evidenciando que para além de
trabalhadores braçais e figuras “folclorizadas” (como são comumente
associados), sujeitos negros atuaram também pensando as questões políticas
de seu tempo e dirigiram diversos jornais na pequena cidade interiorana de
Bagé.
57

CAPÍTULO 2

“(...) PARA O BEM DA COLLECTIVIDADE AONDE VIVEMOS, DENTRO DE


NOSSOS ACANHADOS CONHECIMENTOS INTELLECTUAES”29:
IMPRENSA NEGRA EM BAGÉ NO PÓS-ABOLIÇÃO

No Pós-abolição, a cidade de Bagé viu o surgimento de uma dezena de


jornais forjados pelos e para os negros. De caráter variados, esses impressos
eram os responsáveis por manter a comunidade negra bageense atenta aos
movimentos das sociedades negras locais, bem como sobre o comportamento
de sujeitos negros tanto no espaço público da rua como em eventos sociais de
caráter privado. Mas para além disso, tais impressos mostravam os anseios e os
projetos políticos de seus redatores, no qual o debate sobre a política e as
problemáticas do período Pós-abolição eram evidentes. Nesse sentido, o
objetivo deste capítulo é o de observar a atuação negra em Bagé no Pós-
abolição através da análise de jornais produzidos por e para os negros. A partir
disso, iremos analisar os seguintes periódicos: O Rio Branco (1913), A Liberdade
(1920), A Defeza (1920), O Palmeira (1922; 1927, 1949, 1952), O Rouxinol
(1924), A Revolta (1925), O Teimoso (1928), O Boato (1929), Lampeão (1934),
A Tesoura (1935), O Arauto (1936), Socega Leão (1937; 1939) e O 28 de
Setembro (1937, 1938, 1939). Mesmo se tratando de poucos exemplares, esses
jornais que circularam em Bagé, sobretudo a partir da década de 1910, mostram
toda uma organização negra na cidade através de projetos e demandas
elencadas pelos intelectuais que escreviam nesses periódicos.
Inicialmente, iremos discorrer sobre a importância do Pós-abolição
enquanto campo de estudos, pois vem crescendo o número de pesquisas que
buscam apontar para as particularidades de estudar o protagonismo de sujeitos
negros no período posterior a abolição da escravidão no Brasil, e na esteira
desses estudos, a imprensa negra vem ganhando destaque. Dentro do campo

29 O Arauto, 26/04/1936, p. 1.
58

de estudos do Pós-abolição, também merece ser ressaltado os estudos sobre


os processos de racialização e os estudos sobre raça, os quais iremos apontar
nesse trabalho. Depois de discorrer sobre essas questões, passaremos à análise
dos periódicos, observando, inicialmente, as características de controle que tais
impressos mantinham sobre os corpos negros. Em seguida, observaremos como
a instrução primária, bem como a alfabetização e a educação foram lutas
fundamentais para os redatores de alguns periódicos da cidade. Finalizando,
analisaremos algumas características sobre eventos sociais, bem como sobre
esportes e o lazer da comunidade negra, presentes nas páginas desses
impressos.

2.1. Pós-abolição: um campo de estudos

Esta pesquisa busca se inserir dentro do campo de estudos do Pós-


abolição, na tentativa de juntar-se ao crescente movimento de pesquisadores
que se dedicam a compreender as particularidades desse processo histórico,
marcado, sobretudo, com o fim do regime escravista no Brasil, a partir de maio
de 1888. Nesse sentido, cabe destacar que o marco cronológico que caracteriza
o fim da escravidão varia de acordo com características de cada sociedade. Por
exemplo, no Uruguai tem-se o período de pós-abolição a partir do ano de 1846,
momento no qual acabou a escravidão enquanto instituição. Nos Estados Unidos
é estudado a partir de 1863, marco fim do sistema escravocrata, enquanto que
no Brasil tem-se a referência de 1888, momento em que a instituição escravidão
deixa de existir legalmente através de uma normativa.
Com a desagregação do sistema escravista no Brasil, inaugura-se um
novo período, com características próprias. Nesse sentido, pesquisar o período
pós-abolição compreende atentar para as mudanças nas regras do jogo social,
principalmente entre o estado e os sujeitos envolvidos nesse processo, mas
também sobre os significados atribuídos pelos diversos setores da população
nesse novo contexto.
Rios e Mattos (2005) afirmam que até meados da década de 1970, de
forma majoritária, cientistas sociais concordavam que a situação dos negros no
Brasil no pós-abolição era, de forma mais ou menos direta, uma herança do
59

escravismo. Nesse sentido, se os negros se encontravam em um quadro de


desvantagem política, econômica e social dentro da sociedade brasileira, isso
era um reflexo direto da deformação que outrora foi a sociedade escravista ao
qual estes sujeitos estavam imersos.
A partir da década de 1960, principalmente com os estudos de sociólogos
da chamada Escola Sociológica Paulista, o mito da democracia racial irá sofrer
duros ataques dentro da academia. Um dos principais intelectuais vinculados a
este movimento foi Florestan Fernandes, que estudou a situação do negro
depois da abolição da escravidão em São Paulo. Rios e Mattos (2005) afirmam
que o autor também apontou para a herança da escravidão para explicar a
desorganização social dos negros depois da abolição, principalmente:
A ausência de ligações familiares sólidas; iniciativa e disciplina
de trabalho; de solidariedade de raça ou de classe, que levava a
um tipo de comportamento por vezes patológico (desregramento
sexual, alcoolismo, inclinação para o crime, prostituição etc.)
(RIOS; MATTOS, 2005, p. 20).

Nessa abordagem o negro foi caracterizado enquanto um ser anômico,


incapaz de se organizar enquanto grupo ou individualmente e assim causar
transformações substanciais na sociedade ao qual faz parte. Esse quadro
“patológico” tinha a contribuição de elementos conjunturais e também
psicológicos. Numa passagem de seu livro intitulado A integração do negro na
sociedade de classes 30, Fernandes (2008) deixa evidente seus argumentos
quanto a suposta anomia do negro na sociedade brasileira no pós-abolição:
Os negros e os mulatos ficaram à margem ou se viram excluídos
da prosperidade geral, bem como de seus proventos políticos,
porque não tinham condições para entrar nesse jogo e sustentar
as suas regras. Em consequência, viveram dentro da cidade,
mas não progrediram com ela e através dela. Constituíram uma
congérie social, dispersa pelos bairros, e só partilhavam em
comum uma existência árdua, obscura e muitas vezes deletéria.
Nessa situação, agravou-se, em lugar de corrigir-se, o estado de
anomia social transplantado do cativeiro (FERNANDES, 2008,
p. 120).

A preocupação dos autores vinculados à chamada Escola Sociológica


paulista era o de evidenciar a brutalidade da escravidão para assim desmistificar
a ideia de uma Democracia Racial existente no Brasil, e não o de perceber as
ações dos sujeitos negros dentro desse contexto. Nesse sentido, as obras destes

30A primeira edição do livro A integração do negro na sociedade de classes, escrito por Florestan
Fernandes, foi publicado no ano de 1964.
60

autores acabaram por “reificar” o negro, o tornando um ser passivo e que perdera
a sua capacidade de resistência ao regime escravista ao se aceitar como uma
simples mercadoria, perdendo assim a sua subjetividade e apenas reproduzindo
a lógica do sistema (CARDOSO, 1997).
A partir da década de 1980, a historiografia sobre a escravidão e a
liberdade ganha novos contornos dentro da academia. Assim, os estudos se
voltaram para entender os processos e as relações dos sujeitos na sociedade
escravista brasileira, buscando atentar para a complexidade dessas relações. O
trabalhador escravizado, que outrora foi apenas um coadjuvante em meio às
engrenagens do modo de produção escravista, passa então a ser o protagonista
da história.
Esta nova abordagem dos estudos sobre escravidão e liberdade no Brasil
foi muito influenciada pelos estudos da escola marxista britânica, principalmente
a partir dos estudos do historiador E. P. Thompson. Ao se preocupar com a
agência de pessoas comuns, suas narrativas acabaram por trazer à tona a
experiência de diversos sujeitos que outrora foram silenciados pelas
documentações oficiais e pelas análises marxistas estruturalistas, que voltavam
suas preocupações apenas para as estruturas (THOMPSON, 1981).
A partir disso, as pesquisas buscaram perceber a agência dos sujeitos
negros tanto no mundo da escravidão como também depois do fim do cativeiro,
mostrando os diversos e complexos caminhos percorridos por esses sujeitos na
tentativa de melhor viver, mesmo sob o jugo da escravidão. Práticas de
resistências foram atribuídas não somente às fugas, mas a outras características
como preservação da cultura linguística e religiosa; pela barganha; buscando
otimizar o tempo de trabalho e demais manobras que envolviam uma negociação
constante com o senhor (REIS e SILVA, 1989).
Rios e Mattos (2005) afirmam que essa revisão na produção
historiográfica sobre a escravidão e liberdade também fez com que houvesse a
necessidade de se formular novas questões nos estudos sobre o Pós-abolição,
no qual:
Esta mudança de perspectiva implicou uma abordagem das
sociedades pós-emancipação mais centrada na experiência dos
libertos, no estudo de suas aspirações e de suas atitudes em
face do processo emancipacionista e dos novos contextos
sociais por ele produzidos. Afinal, o escravo que emergia da
nova história social da escravidão era cada vez mais capaz de
61

ação histórica. Tinha adquirido família, vida cultural e


comunitária, negociava e muitas vezes atuava no mercado
produzindo e vendendo bens e serviços por conta própria. Desta
perspectiva, também as atitudes dos libertos passaram a ser
analisadas como iniciativas que respondiam a projetos próprios,
que necessariamente teriam interferido nos processos de
reconfiguração das relações sociais e de poder que se seguiram
à abolição do cativeiro (RIOS e MATTOS, 2005, p. 26).

Principalmente a partir dos anos de 2000, houve um crescimento


substancial de trabalhos que buscam observar as agências de negros e negras
e suas experiências em torno de sociedades Pós-abolição ou em sociedades
cujo processo emancipacionista estava em jogo, tanto no Brasil como em outras
regiões do continente americano.31
Tal fato também fomentou a criação do grupo de trabalho Emancipações
e Pós-abolição da Associação Nacional de História – ANPUH, no ano de 2013.
Como o próprio manifesto de criação diz, o objetivo do GT é “consolidar o pós-
abolição como campo de pesquisa relativamente dissociado dos estudos sobre
escravidão, abolicionismo e relações raciais, como afirmam Flávio Gomes e
Petrônio Domingues”32
Uma questão que merece destaque são as fontes para os estudos sobre
o Pós-abolição. Se outrora muitos intelectuais afirmavam que as fontes eram
quase inexistentes, hoje em dia sabemos que abundam fontes para os
pesquisadores que tem interesse nesse campo de estudos. Como exemplo, a
metodologia da História Oral se configura enquanto importante suporte
metodológico que possibilita a produção de fontes, como já observado por
Mattos e Rios (2004). Também, como veremos mais adiante, a imprensa negra 33
vem sendo cada vez mais utilizada por pesquisadores do Pós-abolição, pois a
mesma mostra-se enquanto uma importante fonte de pesquisa, principalmente

31 Estudos sobre a Jamaica, Cuba, EUA e a África, podem ser lidos em: COOPER, Frederick,
HOLT, Thomas, SCOTT, Rebecca. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e
cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
32 O manifesto de criação do GT Nacional Emancipações e Pós-abolição da ANPUH pode ser

consultado em: https://emancipacoeseposabolicao.wordpress.com/manifesto-de-fundacao/.


Acesso em: 22/05/2017.
33 Sobre a imprensa negra, ver: PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura e tinta preta: a

imprensa negra do século XIX (1833 – 1899). Dissertação. (Mestrado em História), Brasília:
Universidade de Brasília, 2006. SANTOS, José Antônio dos. Prisioneiros da história:
trajetórias intelectuais na imprensa negra meridional. Tese (Doutorado em História), Porto
Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2011.PEREIRA, Amílcar Araújo.
O mundo negro: relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no
Brasil. Rio de Janeiro: Pallas; FAPERJ, 2013.
62

pelo fato de ser produzida pelos sujeitos negros. Tal imprensa, que surgiu em
diversos cantos do Brasil ainda no período da escravidão, mas que ganhou força
no Pós-abolição, é fundamental para entendermos os projetos políticos e as
aspirações de homens e mulheres negras, suas demandas e suas lutas por
reconhecimento e contra o racismo da sociedade brasileira.
Não podemos esquecer das fontes produzidas no âmbito dos clubes
negros espalhados pelo Brasil no Pós-abolição34, como atas de assembleias e
reuniões da diretoria, que são fontes importantíssimas para perceber quais as
discussões que os sujeitos negros realizavam, bem como quais eram as suas
percepções acerca da sociedade ao qual estavam inseridos e seus diálogos com
outras instituições, pois como bem observa Silva (2013, p. 1), as fontes
produzidas no âmbito dos clubes negros “são tidas enquanto constructos
narrativos culturais os quais necessitam ser analisados na sua historicidade”.
Dentre as diversas pesquisas que vem sendo realizadas dentro desse
campo de estudos ainda em construção, uma delas diz respeito às apropriações
das noções de raça pelos negros e negras, tanto em processos
emancipacionistas no século XIX bem como após o fim da escravidão enquanto
instituição. Para isso, é importante frisar qual é a noção de raça empreendida no
presente trabalho.

2.2. Raça e racialização nos estudos sobre o Pós-abolição

O Pós-abolição foi palco privilegiado para a disseminação das teorias


raciais no território brasileiro. Gestadas na Europa do século XVIII, tais teorias
buscavam comprovar que os seres humanos possuíam divisões e hierarquias
pautados em características biológicas e que eram transmitidas
hereditariamente.

34ESCOBAR, Giane. Clubes sociais negros: lugares de memória, resistência negra,


patrimônio e potencial. Dissertação (Mestrado em Patrimônio Cultural), Santa Maria.
Universidade de Santa Maria, 2010. SILVA, Fernanda Oliveira da. Os negros, a constituição
de espaços para os seus e o entrelaçamento destes espaços: associações e identidades
negras em Pelotas (1820 – 1943). Dissertação (Mestrado em História), Porto Alegre. Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2011. SILVA, Fernanda Oliveira da. As lutas
políticas nos clubes negros: culturas negras, racialização e cidadania na fronteira Brasil
– Uruguai no pós-abolição (1870 – 1960). Tese (Doutorado em História), Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017.
63

Observando a transformação da raça enquanto categoria cientifica,


Hofbauer (2006) assevera que nos primórdios a mesma era baseada na
ascendência de um indivíduo em um grupo determinado. O termo também servia
para caracterizar a linhagem da nobreza, ou seja, os indivíduos de “sangue
puro”. Com o passar dos anos, o autor afirma que haverá uma mudança do termo
raça, que passa não mais a caracterizar somente os nobres, mas também a
grupos humanos maiores (HOFBAUER, 2006, p. 102).
No final do século XIX é que a ideia de raça enquanto ciência ganhou
força, sendo estudada por diversos intelectuais e instituições, a partir dos quais
“as classificações raciais (...) baseavam-se agora num ‘ideário biológico’ ou
tinham, por vezes, como referência também estágios de evolução” (HOFBAUER,
2006, p. 124).
No Brasil, essas teorias foram reelaboradas e alocadas tendo em vista as
especificidades das relações entre os grupos sociais aqui existentes. Assim,
através de critérios de raça, buscava-se explicitar que o negro brasileiro era um
ser que não estava preparado para conviver numa sociedade civilizada,
perversidade que limitava o acesso desses sujeitos à cidadania. Mesmo que
nos anos finais da escravidão a população negra fosse composta, em sua grande
maioria, por negros livres (CHALHOUB, 1991), com a iminência do fim dessa
instituição a elite política nacional buscou diversas formas de enquadrar os
negros nos “seus devidos lugares”. Para isso, foram utilizadas diversas teorias
científicas que buscavam mostrar o quanto que esse grupo era incapaz de se
adaptar ao trabalho livre e conviver numa sociedade civilizada, motivando, dessa
forma, a vinda de imigrantes europeus, também numa tentativa de branquear a
sociedade brasileira.
[...] [as teorias raciais] serviram de base para justificar diferenças
de tratamento e de estatuto social para os diversos grupos
étnicos presentes nas sociedades ocidentais e americanas, e
conduziram, quase sempre, a um racismo perverso e desumano,
e às vezes genocida (GUIMARÃES, 2005, p. 62).

Nessa perspectiva de um racismo cientifizado, foram diversas as


instituições brasileiras que buscavam dialogar sobre noções de raça e classificar
os grupos, como é o caso dos institutos históricos e geográficos, das faculdades
de medicina, advogados, políticos e burocratas (SCHWARCZ, 1993). Ao mesmo
tempo em que as elites dominantes utilizavam as noções científicas de raça para
64

justificar hierarquias e exclusões, negros e negras também acionavam a ideia de


raça para se colocar na sociedade, fazendo, com isso, usos próprios dessas
concepções que tendiam a inferioriza-los. Nesse sentido, é muito importante
observarmos atentamente o fazer-se da raça no dia a dia, no cotidiano dos
sujeitos negros (HOLT, 1995).
Esse aspecto também foi bem pontuado no estudo de Albuquerque
(2009), que observou a presença de noções de raça em decisões políticas de
autoridades nacionais perto do fim da escravidão no Brasil. A preocupação da
autora era em compreender o estreito vínculo entre o fim da escravidão e as
noções de raça, no qual acabou percebendo que, de diversas formas e na
maioria dos casos de maneira dissimulada, a raça estava presente nas ações e
decisões políticas de autoridades brasileiras, seja de burocratas até o conselho
do estado. Tal fato fez com que em diversos momentos, existissem conflitos
entre autoridades e sujeitos negros. Porém, a autora vai além da percepção das
autoridades e busca compreender os diversos usos que negros e negras fizeram
das noções de raça presentes naquele contexto.
O mesmo também foi feito por Marcus Rosa (2014), que através do estudo
da cidade de Porto Alegre entre os anos finais da escravidão e passando pelo
período pós-abolição, buscou perceber as relações entre os diversos sujeitos
que ocupavam lugares precários da cidade, sendo principalmente a Colônia
Africana e a Cidade Baixa, regiões com grande concentração de negros, mas
também de imigrantes e trabalhadores pobres. A partir desses espaços, o autor
observou como que estes sujeitos mantinham relações de solidariedade e
conflitos, no qual a raça era acionada, principalmente nos momentos
conflituosos. Na perspectiva do autor, além de buscar processos de racialização
de autoridades para com grupos subalternos, buscou-se perceber os diversos
significados da raça demandados pelos negros e setores populares nas relações
entre estes.
No presente trabalho, o sentido empreendido ao termo racialização diz
respeito às práticas de disputas em torno dos significados da raça, pois assim
como a sociedade branca racializava negros e negras, estes também
racializavam os brancos, construindo uma relação de alteridade para com outros
grupos, no qual acabavam por (re) significar a ideia de raça, pois como afirma
Silva (2013, p. 3), o negro “não apenas reage a uma racialização imposta, mas
65

articula formas de lidar com a racialização criando e conferindo novos


significados a códigos impostos”.
Como ficou evidente nas linhas expostas até aqui, a construção científica
da ideia de raça foi perversa e trouxe uma gama de problemáticas para o
cotidiano de negros e negras, seja nos anos em que vigorou a escravidão como
também no Pós-abolição, momento no qual tais postulados científicos ganharam
força. Hoje em dia a academia já pôs fim a ideia errônea de pensar a raça
enquanto conceito derivado de fatores biológicos, pois o que vale mesmo é
atentar para essa categoria enquanto um produto histórico e que varia
dependendo do contexto em que é abordado (FIELDS, 1982). É nesse sentido
que a raça é abordada no presente estudo.
Guimarães (2005) assevera que a ideia de raça deve ser estudada
enquanto categoria sociológica. Para isso, o autor propõe que a mesma seja
observada como:
[...] constructos sociais, formas de identidade baseadas numa
ideia biológica errônea, mas socialmente eficaz para construir,
manter e reproduzir diferenças e privilégios. Se as raças não
existem num sentido estrito e realista de ciência, ou seja, se não
são um fato do mundo físico, elas existem, contudo, de modo
pleno, no mundo social, produtos de formas de classificar e de
identificar que orientam as ações humanas (GUIMARÃES, 2005,
p. 67).

A noção de raça é tida como uma construção cultural que deve ser
analisada dentro do processo histórico. Isso quer dizer que o termo raça utilizado
pelos autores citados anteriormente não tem nada de fatores biológicos naturais
e determinantes em grupos humanos.
Na verdade, a raça nunca foi um fato biológico natural, nunca foi
comprovada cientificamente. Trata-se, na verdade, de uma
poderosa construção cultural, inventada nas metrópoles
europeias e reinventada em suas colônias para justificar e
naturalizar a dominação dos europeus sobre os não-europeus,
dos brancos sobre os não-brancos. O que torna bastante difícil
compreender a raça é o de que ela só existe enquanto um
componente das relações sociais, sendo identificável nas
diversas desigualdades – educacionais, profissionais, salariais e
muitas outras – existentes entre negros e brancos. A raça
existirá enquanto existirem diferenças sociais baseadas no fato
de que as pessoas possuam diferentes tons de pele (SILVA et
al., 2017, p. 94).

Como mencionado anteriormente, a presente pesquisa busca se encaixar


dentro do campo de estudos do Pós-abolição - ainda em construção - e dialogar
66

com as produções recentes sobre a temática, pensando este campo não apenas
como marco cronológico a partir do 13 de maio de 1888, mas sim como um
período no qual as relações sociais vão sofrer mudanças e demandar novas
ações e construções identitárias dos sujeitos negros imersos nesse processo.
Uma das estratégias utilizadas pelos sujeitos negros no Pós-abolição foi a
atuação por meio da imprensa. Através da constituição de periódicos dos mais
variados, a imprensa negra apareceu de norte a sul do Brasil, mostrando projetos
políticos, anseios, desejos e aspirações de negros na busca pela sua valorização
numa sociedade pautada pela racialização das relações sociais.
Essa imprensa também buscou desconstruir o estigma do negro enquanto
“raça inferior”, ao passo que procurou (re) significar a ideia de raça que era
comumente utilizada para inferiorizá-los. No Pós-abolição a cidade interiorana
de Bagé assistiu ao surgimento de uma gama de jornais produzidos por e para
os negros. Nesse sentido, o tópico a seguir tem como objetivo compreender as
principais características desses periódicos, buscando constituir um quadro da
imprensa negra na cidade de Bagé no Pós-abolição.

2.3. Jornais, sujeitos, projetos e lutas políticas: a imprensa negra bageense


no Pós-abolição.

No capítulo primeiro dessa dissertação, problematizamos a escrita da


história da cidade de Bagé e o quanto que essa escrita fez questão de
negligenciar a atuação de negras e negros, tanto no contexto da escravidão no
século XIX como também a partir do século XX.
No que diz respeito à atuação da imprensa negra na cidade, por mais que
tenham circulado, em contextos variados, mais de dez jornais, quando nos
propomos a vasculhar a escrita local sobre a imprensa, mais uma vez vamos
notar que os jornais negros foram deixados de lado. Ao dedicar um capítulo
especial sobre a imprensa e redatores na cidade, Lopes (2007) se refere a
diversos jornais do século XIX e impressos que circularam em Bagé no período
republicano, porém, o autor ignorou os periódicos produzidos por e para os
negros da cidade. Evidentemente que esse percurso trilhado pelo autor aqui
67

citado, foi, durante muito tempo, recorrente na historiografia sobre a imprensa


brasileira.35
Nos estudos sobre o Pós-abolição, vem ganhando destaque, sobretudo
dentro da pesquisa histórica, os jornais forjados pelos e para os negros de norte
a sul do Brasil. Tais periódicos, que já circulavam nas primeiras décadas do
Brasil Império (PINTO, 2006), buscavam dialogar sobre questões pertinentes à
situação de vida de negros e negras, mostrando uma outra concepção de escrita
cujo sujeito negro era o protagonista. Os primeiros jornais da imprensa negra
surgiram na década de 1830 do século XIX, na cidade do Rio de Janeiro.
Segundo Pinto (2006), o período regencial viu o surgimento dos periódicos O
Homem de Cor ou o Brasileiro Pardo, O Cabrito, O Crioulinho e O Lafuerte, todos
nascidos na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1833. A mesma autora assevera
a importância do surgimento desses periódicos dentro de uma sociedade
escravocrata:
Esses periódicos anunciaram, agora por intermédio das letras
tipográficas, o protesto negro a serviço de seus direitos – nesse
caso, aqueles prometidos a todo cidadão. A marcha dos
negócios públicos, apesar do avanço liberal, não garantia
melhores condições à população negra livre, muito menos à
liberta, quiçá, então, à escravizada (PINTO, 2006, p. 26).

Porém, é nos anos posteriores à abolição da escravidão no Brasil que a


imprensa negra vai ganhar força, como bem pontua Gomes (2005, p. 28):
Surgem O Treze de Maio (1888), A Pátria (1889), O Exemplo
(1892), A Redenção (1899), O Baluarte (1903), O Propugnador
(1907), O Combate (1912), O Patrocínio (1913) e outros nos
anos seguintes, com o objetivo de refletir sobre os
desdobramentos do pós-emancipação e a situação dos “homens
de cor”.

O estado do Rio Grande do Sul assistiu ao surgimento de uma dezena de


jornais criados por e para os negros, ganhando destaque dois periódicos que se
destacaram pela sua longevidade, como é o caso de O Exemplo, criado na
cidade de Porto Alegre em 1892 e que com algumas interrupções circulou até
1930; e o A Alvorada, nascido em Pelotas no ano de 1907 e que findou suas

35Sobre um estudo “clássico” sobre o jornalismo brasileiro e que desconhece a atuação de


impressos de cunho racial negro, ver: SODRÉ, Nelson Werneck. A História da Imprensa no
Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
68

atividades em 1965 (PINTO, 2006; MULLER, 2013; SANTOS 2011; OLIVEIRA,


2017).
Mas para além dessas duas cidades, que se configuram enquanto
importantes centros urbanos do estado gaúcho, é de extrema importância
atentarmos para a circulação e atuação da imprensa negra em localidades
interioranas, como é o caso da cidade de Bagé, que no Pós-abolição viu o
surgimento de uma dezena de jornais forjados por e para a comunidade negra,
como é o caso dos seguintes periódicos: O Rio Branco (1913), A Liberdade
(1920), A Defeza (1920), O Palmeira (1922; 1927, 1949, 1952), O Rouxinol
(1924), A Revolta (1925), O Teimoso (1928), O Boato (1929), Lampeão (1934),
A Tesoura (1935), O Arauto (1936), Socega Leão (1937; 1939) e O 28 de
Setembro (1937, 1938, 1939). Observa-se que, mesmo sendo uma localidade
pequena, a cidade de Bagé presenciou uma gama de jornais dirigidos por
pessoas negras em variados contextos e que traziam, como veremos mais
adiante, diversas questões pertinentes ao grupo em questão.
A concepção de imprensa negra que nos filiamos diz respeito, sobretudo,
às características das notícias que eram publicadas em suas páginas, que
buscavam abranger os sujeitos negros e a valorização de seus espaços de lazer
e recreação; sobre aspectos da vida pública e privada ao atentar para o
comportamento de homens e mulheres e a valorização de seus projetos
políticos.
[...] uma vez que mesmo hoje muitos jornais negros não iniciam
seus editoriais de lançamento com as palavras: “Aqui está um
novo representante da imprensa negra”, qual o problema de
identificar como imprensa negra jornais escritos majoritária ou
exclusivamente por negros, dirigidos a um público negro e
abordado assuntos de interesse da comunidade negra,
sobretudo, denunciando práticas discriminatórias? Seja nos
Estados Unidos, em Cuba, na Jamaica, na Colômbia, na
Argentina, no Uruguai ou em qualquer outro país da diáspora, os
estudiosos tem pensado experiências dessa natureza como
imprensa negra não a partir do registro daquela expressão nas
páginas dos periódicos, mas com base em suas características
(PINTO, 2016, p. 20).

Passamos então a observar mais de perto esses periódicos e atentar para


as suas principais características, que mesmo sendo poucos exemplares, são
significativos para observarmos o agenciamento negro na cidade no Pós-
abolição.
69

2.3.1. “Corre o Boato”: sobre vigilância e controle de corpos negros


Uma das características presentes nos periódicos pesquisados diz
respeito ao controle, por parte dos redatores, com o comportamento dos sujeitos
negros, mas principalmente o das mulheres. Essa é uma característica que
outros pesquisadores da imprensa negra encontraram em jornais negros em
diversas regiões do Brasil (DOMINGUES, 2008; OLIVEIRA, 2017). Geralmente,
os jornais publicavam indiretas às mulheres sem evidenciar seus nomes, porém,
em alguns casos os redatores ameaçavam publicar seus nomes caso o
comportamento “inadequado” persistisse. As colunas de fofocas eram as
responsáveis por essa postura de vigilância que ocorria tanto no espaço público
das ruas da cidade como também em eventos sociais, culturais e esportivos de
sociedades negras locais.
Nos periódicos analisados, encontramos diversas colunas de fofocas, cujo
os nomes variavam, a saber: Corre o Boato; Dizem os filhos da Lauteria que!!!,
Dizem...; Vejam Só; Avanço da Quadrilha Sinistra. Um exemplo de controle para
com o comportamento das mulheres pode ser lido na nota publicada pelo jornal
Socega Leão no ano de 1937:
Na noite de 25 foi encontrado as 9:30 horas um bloco de
morenas de grande algazarra na esquina da praça esporte e rua
M. Deodoro mais cautela meninas, não abusem com quem
passa na rua senão eu vou dizer o nome de vocês [...] querem
andar de joelhos vão para a Igreja que é o lugar de se ajoelhar. 36
(Socega Leão, 1937, p. 2).

No ano de 1937 o referido jornal era dirigido por E. C. Lima e seus


redatores eram José Alves da Rosa e Jacy Gonçalves. O periódico se intitulava
como um órgão Quinzenal, Humorístico, Sportivo e Crítico. Porém, sua
característica mais marcante era o de vistoriar os namoros da mocidade
bageense, pois como bem aparece no editorial de seu primeiro número, o
“Socega Leão será crítico e humorístico e tratará muito principalmente de amores
notadamente dos mal correspondidos” (Socega Leão, 1937, p. 1). Nesse sentido,
a intenção do jornal era acompanhar de perto as relações afetivas de sujeitos

36As transcrições dos jornais pesquisados foram atualizadas para a gramática atual da língua
portuguesa.
70

negros de Bagé, denunciando toda e qualquer relação que fugisse dos padrões
pretendidos pelos redatores do mesmo.
Esse tipo de vigilância do comportamento de sujeitos negros, sobretudo
das mulheres, foi uma constante nos jornais da imprensa negra, pois vale
lembrar que no contexto em que tais periódicos ganharam força no Brasil, as
teorias raciais também estavam com força total. Dessa forma, o negro era visto
como uma raça inferior e atrasada culturalmente, motivo pelo qual o Estado
brasileiro fortaleceu, também, a vinda de imigrantes europeus. Ou seja, mostrar-
se disciplinado, organizado, era uma constante para os redatores da imprensa
negra, pois havia a necessidade de subverter todo o estigma que recaía sobre o
negro.
Observando alguns jornais da imprensa negra de São Paulo no Pós-
abolição, Domingues (2008) afirma que era papel dessa imprensa combater a
vadiagem e os vícios da comunidade negra, como é o caso do alcoolismo. Nesse
sentido, o autor assevera que para os redatores desses jornais “o negro deveria
ser trabalhador, honesto e cumpridor dos seus deveres, além de zelar pela moral
e pelos bons costumes” (DOMINGUES, 2008, p. 41).
Ao observar os jornais O Exemplo, de Porto Alegre e A Alvorada de
Pelotas, Oliveira (2017) também atentou para as colunas de fofocas presentes,
sobretudo, no segundo jornal, e também frisou o controle sistemático dos
redatores para com o comportamento das mulheres negras. No jornal A
Alvorada, ganhou destaque uma coluna chama Pesquei, cujo objetivo era o de
“vistoriar” e alertar a comunidade negra pelotense, sendo as mulheres as mais
atingidas, sobre o comportamento correto que se deveria ter. Essa coluna era
escrita pelo diretor do jornal, o Sr. Juvenal Penny, mas era assinada com o
pseudônimo de Dr. Pescadinha. Presente nas festas dos clubes sociais, eventos
culturais e nas ruas de Pelotas, Dr. Pescadinha foi responsável por publicar
diversas notas alertando sobre padrões de comportamento adequado, sempre
na busca por uma moral e disciplina de sujeitos negros de Pelotas.
Pesquisando o jornal O Succo da cidade de Santa Maria, Oliveira (2016)
também observou o rígido controle dos redatores para com o comportamento da
comunidade negra Santa-Mariense, sobretudo das mulheres, casos muito
semelhantes aos encontrados nos jornais da imprensa negra de Bagé.
71

O tom moralizante foi especialmente percebido nos editoriais


“Respostas inocentes” e “Vendo vi”, em que a ironia é muito
utilizada como recurso para denunciar práticas consideradas
incorretas, desviantes ou imorais, tais como a traição, a bigamia
e o consumo de bebidas alcoólicas. (...) podendo abarcar na
escrita até certo tom ameaçador aos envolvidos, uma vez que
se publicavam as iniciais de seus nomes, endereços, profissões,
sugerindo possíveis castigos. (OLIVEIRA, 2016, p. 131).

Mesmo que de forma acanhada, o comportamento de homens negros


também estava na mira de alguns redatores de jornais da imprensa negra de
Bagé, como é o caso de uma nota publicada no periódico Socega Leão:
Um caso triste – No Nosso Baile Bagé, o Sr. Constantino
Monteiro, mais conhecido por Curto, apresentou-se ao dono do
baile dizendo ser representante do órgão “Carrasco” para ter
força para dançar de graça. Só eu mesmo (Socega Leão, 1937,
p. 3).

É importante destacar que esse tipo de comportamento era uma


autodefesa da comunidade negra, pois, como já foi mencionado anteriormente,
aos negros e negras era atribuído os mais perversos estigmas que lhes atribuíam
a incapacidade de viver numa sociedade “civilizada”. Nesse sentido, a
observação de Oliveira (2017) sobre essa busca de uma moral, por ora
exacerbada, dos jornais negros, torna-se importante:
Quando o jornal controlava ao extremo o modo de agir da
população negra talvez seus redatores acreditassem estar
assim contribuindo para a proteção contra os estigmas que lhes
eram cunhados (OLIVEIRA, 2017, p. 74).

A busca de descontruir estereótipos negativos forjados por uma


sociedade branca e racista foi uma constante em jornais da imprensa negra
brasileira. Dentro das estratégias cunhadas por sujeitos negros pertencentes a
esses jornais, a busca de uma moral, disciplina e organização foram
fundamentais. Um outro exemplo pode ser observado na notícia abaixo, que foi
publicada no jornal bageense Lampeão no ano de 1934.
É preciso mais um pouco de respeito perante a sociedade,
porque, meus senhores, isto aqui não pensem que é um
carrapicho fantasiado de Rink Club (sic), aqui se trata de uma
coroação de rainha recém-eleita, para melhor brilhantismo desta
festa (...) bem sabemos que somos negros, mas, eu
considero isto aqui igual ou melhor do que o Club
Commercial ou Caixeiral. (Lampeão, 1934, p. 1). (Grifos
meus).
72

A notícia acima refere-se ao momento da coroação da rainha de um


rancho carnavalesco negro de Bagé. No momento da coroação, uma pessoa
subiu ao palco “lançou” um beijo na rainha, gerando todo um discurso por parte
do orador do dito rancho, o sr. Misael Romero. Chama a atenção o orador afirmar
que mesmo sendo negros, a referida solenidade era igual ou melhor do que os
clubes Commercial e Caixeiral, ambas sendo sociedades compostas por
pessoas de alto poder aquisitivo de Bagé e que historicamente proibiam a
entrada de negros e negras em suas festas e demais atividades sociais. Com
isso, observa-se que o Sr. Misael está chamando a atenção para o
comportamento dos seus, que deveria ser pautada por respeito e acima de tudo
disciplina.
Outro detalhe que chama a atenção é o fato do orador afirmar-se
enquanto sujeito negro, mesmo que nesse contexto esse termo viesse carregado
de definições pejorativas/negativas (MATTOS, 2013). Oliveira (2017, p. 58)
também encontrou essas características na imprensa negra de Pelotas, citando
um exemplo da coluna do Dr. Pescadinha, quando o mesmo fez uma crítica a
pessoas que não gostavam de serem chamadas de negras. Percebe-se, com
isso, uma positivação do termo negro, mostrando que a imprensa negra foi
fundamental para a autoafirmação de identidades raciais no Brasil.
Uma das características de alguns periódicos da imprensa negra também
foi a valorização de relacionamentos entre pessoas negras, como deixa evidente
a notícia publicada no Socega Leão, no qual afirmava que: “Na rua Marcílio Dias
tem uma morena que tem por costume de namorar brancos, tu sendo filha de
negro tens que procurar um da tua raça Itípica (sic) para namorar” (Socega Leão,
1937, p. 2). É importante destacar que a década de 1930 foi marcada pela
tentativa do Estado brasileiro de construir uma homogeneidade nacional através
do governo Vargas. Nesse contexto surgem muitos intelectuais pautando a
importância do sentimento de “brasilidade” e se esforçando em construir
narrativas que valorizassem o nacional. Esse também é o período em que o
Estado busca integrar o negro e o índio nação. Um marco intelectual desse
contexto é a obra de Gilberto Freyre - Casa Grande e Senzala -, lançada no ano
de 1933 e que pregou uma ideia de Democracia Racial brasileira e a valorização
da ideia de mestiçagem. Porém, assim como encontrado nos estudos de Oliveira
(2017) sobre a imprensa negra, em muitos casos os redatores desses periódicos
73

parecem não ter levado em consideração essas questões, principalmente ao


repudiarem relações inter-raciais, valorizando a relação entre as gentes negras.

2.3.2. “A instrucção é tudo”: sobre a instrução primária e educação

Uma outra questão quem vem sendo debatida dentro dos estudos sobre
a imprensa negra no Pós-abolição diz respeito à instrução primária. Ao pesquisar
a imprensa negra meridional, Santos (2011) atentou para a importância conferida
por muitos redatores desses periódicos à alfabetização.
Aos negros, a instrução significava a possibilidade de superar as
condições de trabalhador braçal que remetia à escravidão,
também se abria a perspectiva de ocupar uma posição social
como “homem letrado”, que era um lugar social representado na
imprensa negra como intangível ao preconceito. A instrução
mostrava-se como um passaporte para a mobilidade social e
para o conhecimento dos direitos civis, descrita muitas vezes
como uma das estratégias políticas disponíveis aos negros
(SANTOS, 2011, p. 124).

A instrução primária foi uma das principais bandeiras de luta de muitos


jornais da imprensa negra brasileira. O saber ler e escrever poderia possibilitar
ascensão social a homens e mulheres negras, tirando-os, em muitos casos, da
situação de pobreza que acometia grande parcela desse grupo. Na cidade de
Bagé, a valorização da instrução primária também se fez presente nas páginas
de periódicos negros. No ano de 1920, o editorial do jornal A Defeza – orgam da
Raça Ethyopica: Litterario, Noticioso e Recreativo – que era dirigido por Pedro
Paulo de Oliveira e cujo redator era Loreto do Patrocínio, publicou um editorial
falando sobre a importância da instrução primária para os sujeitos negros, como
mostra o excerto abaixo:
[...] [a instrução primária] é um assunto não só de agrado como
de interesse, principalmente da nossa raça. Uma das coisas a
que nos devemos interessar é a instrução, o aprendermos a ler
e a escrever; procurarmos conhecer o direito, e que e o
porquê das coisas da vida. A instrução é tudo. (A Defeza,
1920, p.1) (Grifos meus).

Escrito por João dos Anjos, a pedido do jornal A Defeza, o editorial faz um
paralelo entre o saber ler e escrever com o saber sobre o direito. Ou seja, a partir
do momento em que os sujeitos negros tivessem acesso à alfabetização,
poderiam saber “o que e o por que” das coisas da vida e assim galgar uma
74

posição de vida mais digna. Ao afirmar sobre conhecer o direito, ou seja, sobre
questões jurídicas, podemos interpretar que ao ter acesso a instrução, negros e
negras teriam mais subsídios para lutar por uma vida mais justa pelos seus.
Ao observar a situação de vida dos negros no pós-guerra civil dos Estados
Unidos no século XIX, a intelectual e militante negra Angela Davis (2016) reforça
a importância conferida por sujeitos negros à alfabetização e como que esta era
responsável por uma consciência de luta. Para a autora, “as pessoas negras que
recebiam instrução acadêmica inevitavelmente associavam o conhecimento à
batalha coletiva de seu povo por liberdade” (DAVIS, 2016, p. 112). Mesmo se
tratando de um estudo voltado para a história dos Estados Unidos, a análise de
Davis (2016) é fundamental para observarmos que para os povos da diáspora
negra, privados do acesso à educação por longos anos, a instrução primária era
fator fundamental para uma emancipação coletiva e uma possível garantia de
ascensão social e de busca pela por cidadania.
Também chama a atenção o fato de os redatores d’A Defeza
identificarem-se enquanto pertencentes a raça etiópica, numa evidente menção
ao país que naquele contexto ainda mantinha um império sob a liderança de
Haile Selassie. Com isso, percebe-se toda uma valorização e positivação em
torno da construção de uma identidade do coletivo. Segundo Silva et. al., (2017):
[Raça etiópica é uma] expressão utilizada por negros e negras
em diferentes partes do continente americano. É uma referência
de positivação cujo significado estava em evocar o legado
histórico de independência da Etiópica, (um dos territórios
independentes mais antigos do continente africano) [...] (SILVA
et.al., 2017, p. 76).

Com relação a importância da alfabetização para o grupo negro, um


grande exemplo de sujeitos negros que após alfabetizarem-se acabaram
alcançando uma posição de prestígio e lutaram pela melhoria da condição de
vida de negros e negras foram os irmãos Xavier. Tanto Rodolfo Xavier como
também Antônio Baobad, ambos nascidos na cidade de Pelotas, foram
alfabetizados nas aulas noturnas da Biblioteca Pública Pelotense ainda no
século XIX.
Baobad, nascido escravizado, acabou por comprar sua alforria, e já seu
irmão nasceu como livre. Ambos acabaram por se destacar nas lutas operárias
da cidade de Pelotas e diversas outras regiões do estado do Rio Grande do Sul
75

no Pós-abolição, fazendo parte de associações classistas e recreativas de


Pelotas.37 Além de ser um dos principais responsáveis pela circulação do jornal
da imprensa negra de Pelotas, o A Alvorada, no ano de 1920 Rodolpho Xavier
também foi colaborador do jornal da imprensa negra de Bagé chamado A
Liberdade. De propriedade de Juvencio Joaquim de Lima, esse órgão foi
responsável por defender as ideias federalistas e exaltar a figura de Gaspar
Silveira Martins, uma das principais lideranças dessa corrente política. O jornal,
que nos anos seguintes passou a ser impresso em Porto Alegre (SANTOS,
2011), também possuía correspondentes em diversas cidades do interior
gaúcho, como é o caso de Santa Maria, Rio Grande, Júlio de Castilhos e Cruz
Alta, além, também, da capital Porto Alegre. O intelectual Rodolpho Xavier foi o
responsável por escrever colunas políticas no referido jornal bageense, no qual
pontuou a situação da Revolução Russa e questões sobre o Bolchevismo (A
Liberdade, 1920, p. 1).
Ainda no que diz respeito à importância da instrução primária e da luta
contra o analfabetismo da população negra no Pós-abolição no Brasil, uma das
organizações negras que mais se destacou na década de 1930 foi a Frente
Negra Brasileira.38 Criada em em 1933 e fechada pelo Estado Novo ano de 1937,
a FNB tinha como um de seus principais objetivos a alfabetização de pessoas
negras. Segundo Gomes (2005), a FNB “chegou a propor a criação de uma
instituição escolar chamada Liceu Palmares. A ideia era ministrar o ensino dos
cursos primário, secundário, comercial e ginasial a alunos sócios da FNB”
(GOMES, 2005. p. 50).
Outro periódico negro de Bagé que ressaltou a importância da batalha
contra o analfabetismo da população negra foi o A Revolta. Erguendo-se na cena
da imprensa bageense no ano de 1925, o jornal se intitulava uma Folha Litteraria,
Noticiosa, Recreativa e Crítica, e tinha como diretor o Sr. Osorio Pereira; redator-
secretário João Dutra; gerente José Pimentel e diversos colaboradores. Redator
d’A Revolta, João Dutra também circulou em outros periódicos negros de Bagé.

37 Sobre a trajetória de Antônio Baobad, ver: LONER, Beatriz. Antônio: de Oliveira a Baobad.
In: DOMINGUES, Petrônio, GOMES, Flávio dos Santos. Experiências da emancipação:
biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1880-1930). São Paulo: Selo
Negro, 2011. p. 109-136.
38 Sobre a Frente Negra Brasileira, ver: GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888 –

1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.


76

Em 1924, era o diretor e proprietário do periódico O Rouxinol - Orgam da


Juventude, e no ano de 1929 era o redator e secretário do jornal O Boato. João
Dutra também pertenceu ao time de futebol Sport Club União, ocupando o cargo
de secretário. Tendo o oficio de pintor, João Dutra também utilizava as páginas
de seus jornais para anunciar os seus serviços.
No editorial de 25 de maio de 1925, ao publicar uma nota sobre o 13 de
maio, o jornal A Revolta afirma que a batalha da comunidade negra local deveria
ser em torno do:
Amor ao trabalho, guerra tenaz e desenfreada ao
analfabetismo e ao vicio, união laboriosa e fecunda dos nossos
ideais para a elevação de nossa raça, instituindo escolas
primárias, fundando sociedades, verdadeiros centros de
civismo, de labor, amparo e desenvolvimento físicos e
intelectuais [...] (A Revolta, 1925, p. 1) (Grifos meus).

Ao destacar a importância da instituição de escolas primárias, da luta


contra o analfabetismo, do amor ao trabalho e da criação de sociedades para
assim alcançarem a “elevação da raça”, os redatores estão debatendo sobre
diversas problemáticas enfrentadas pelos sujeitos negros no Pós-abolição,
mostrando um engajamento necessário para a superação de problemas
enfrentados pelo grupo. Com isso, percebe-se que os redatores do jornal
estavam atentos à situação de vida de pessoas negras, pois mesmo com a
abolição da escravidão, eles ainda enfrentavam os desafios de uma sociedade
racializada. A busca pela cidadania perpassava pela criação de espaços no qual
o grupo negro pudesse forjar estratégias de superação dos problemas de seu
tempo. Com isso, a escola, o letramento, o trabalho, clube sociais e jornais se
tornaram ferramentas de luta de sujeitos negros no enfrentamento ao racismo e
as desigualdades.
A importância conferida pelos jornais negros a instrução primária também
pode ser observada em uma nota publicada pelo periódico A Defeza no ano de
1920, no qual o referido jornal aclama a iniciativa da Sociedade União Operária
de Bagé, que havia criado uma aula de primeiras letras para os filhos dos sócios
e particulares (A Defeza, 26/09/1920, p. 3).
Ao debater sobre questões políticas de seu tempo, concordamos com a
assertiva de Santos (2011), que afirma que os jornais da imprensa negra foram
responsáveis por forjar novos signos de liberdade e de luta.
77

Individualmente ou como grupo social organizado, os negros


gaúchos definiram novos contornos sociais e políticos para a
liberdade; se tornaram articuladores de alternativas para as
questões da cidadania e da nacionalidade, e foram construtores
e “intérpretes” do Brasil (SANTOS, 2011, p. 16).

Na esteira dos debates políticos publicados na imprensa negra brasileira,


o “treze de maio” também estava incluso. Data formal da abolição da escravidão
enquanto instituição, ela não passou desapercebida pelos redatores de jornais
negros de norte a sul do Brasil. Em Bagé, jornalistas negros também pautaram
a importância da referida data, como é o caso do editorial do jornal mencionado
acima – A Revolta – e também no jornal O Rio Branco. No primeiro, há a
referência a Princesa Regente Isabel como “redentora”, ao passo que jornal
afirma que:
[...] aos da sua raça os estimula que prossigam, esquecendo o
passado e visando o futuro, na sua rota de progresso e igualitário
direito civil, fazendo cada um de por si um baluarte para dominar
todos os preconceitos de raça que ainda existirem (A Revolta,
1920, p. 1).

Na nota publicada pelo jornal O Rio Branco (1913), cujo redator e


proprietário chamava-se Pinto Amando, o 13 de maio é tido como uma data
áurea, porém não há referência à Princesa Isabel e sim à luta de José do
Patrocínio. Evidentemente que a concepção política e as interpretações dos
redatores dos periódicos negros sobre o 13 de maio variavam. Com isso, havia
os que idolatravam o ato “redentor” da Princesa Isabel e os que repudiavam tal
fato, pois acreditavam que de nada havia mudado na situação de vida de negros
e negras depois da abolição. Porém, mesmo os que atribuíam à Princesa Isabel
a liberdade dos negros, ao mesmo tempo não deixavam com isso de debater os
problemas advindos de uma nova conjuntura política, econômica e social que
surgiu com o Pós-abolição. Sobre essas diversas interpretações acerca dessa
data, Gomes (2005, p. 29) afirma que:
Paradoxalmente, a referência à ignominia da escravidão surgia
mesclada às homenagens prestadas aos abolicionistas e à
Princesa Isabel, a “Redentora”. Esses periódicos não eram
apenas denúncias. Numa perspectiva quase pedagógica,
traziam matérias exaltando abolicionistas.

Os dilemas do Pós-abolição foram amplamente debatidos pelos jornais da


imprensa negra brasileira, mostrando que os redatores e intelectuais negros
estavam sim atentos à conjuntura política nacional e em muitos casos a
78

internacional.39 Avanços e retrocessos da população negra estavam presentes


nas páginas dos periódicos de norte a sul, e acima de tudo, muitos projetos e
alternativas de lutas. Além disso, uma das principais características desses
periódicos era a ampla cobertura e divulgação dos eventos sociais/recreativos
da comunidade negra, no qual passamos a observar a partir de agora.

2.3.3. Lazer e recreação: sobre esportes, festas e atividades culturais

A ampla divulgação de eventos culturais e sociais protagonizadas por


negros e negras em suas sociedades foi uma constante nas páginas da imprensa
negra. Em Bagé, ao pesquisarmos nos jornais negros da cidade, observamos
diversos anúncios de bailes e festas em clubes locais, seja no período momesco
ou no restante do ano. Também observamos que as atividades culturais
extrapolavam as festas, pois havia o teatro, a música e o futebol como elementos
socializadores da comunidade negra.
Domingues (2008) observou que muitos periódicos negros de São Paulo
no Pós-abolição pertenciam a clubes e/ou centros cívicos, como é o caso do
jornal O Propugnador, que pertencia a Sociedade Propugnadora 13 de maio e o
jornal Elite, que era do Grêmio Dramático, Recreativo e Literário “Elite da
Liberdade” (DOMINGUES, 2008, p. 42). Na cidade de Bagé, algumas
sociedades carnavalescas, dramáticas e esportivas também tiveram seus
impressos.
No dia 1º de janeiro de 1920 surgiu na cena da imprensa bageense o
jornal O Palmeira, criado nas dependências modestas da casa de Delfino
Menezes, à rua Almirante Gonçalves, região central de Bagé e que se localiza
perto da Igreja Matriz de São Sebastião. No rastro de saber quem foi Delfino
Menezes, acabamos encontrando o inventário de seu falecimento, que está
salvaguardado no Arquivo Público Municipal Tarcísio Taborda, na cidade de
Bagé.

39Alguns diálogos entre jornais da imprensa negra brasileira com a imprensa negra norte
americana podem ser lidos em: PEREIRA, Amílcar Araújo. O mundo negro: a constituição do
movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Tese de Doutorado. Programa de
Pós-graduação em História. Universidade Federal Fluminense (UFF). 2010.
79

Filho de Guilhermina Menezes, Delfino nasceu em 1887 em Bagé e


faleceu no ano de 1962. Morava na Rua Almirante Gonçalves próximo à Catedral
Matriz de São Sebastião, região central de Bagé e que, segundo alguns
historiadores, foi o local onde teria iniciado o povoado da cidade no início do
século XIX. Delfino não possuía filhos e deixou o pouco que tinha para dois
herdeiros que “lhe tem prestado serviços inestimáveis”, sendo Manoel Cesário
Bittencourt e Domingos Barbosa, que herdaram “uma morada de casa e o
respectivo terreno, situado nesta cidade, à rua Almirante Gonçalves”. 40

Imagem 1: Delfino Menezes. s/d.

Delfino Menezes era um sujeito ativo no seio de práticas associativas


negras em Bagé, pois além de ter fundado o time do Sport Club Palmeira no ano
de 1913, também fez parte de outras associações. Em 1920, seu nome aparece
como diretor do Club Carnavalesco Ideal (Correio do Sul, 1920, p. 4). Fez parte,
também, do Grêmio Dramático José do Patrocínio, no ano de 1937 (O 28 de
Setembro, 1937, p. 2), e também foi um dos fundadores do jornal O 28 de
Setembro, como veremos mais adiante.

40Inventário de falecimento de Delfino Menezes. 1962. Inventários e Testamentos – Arquivo


Público Municipal Tarcísio Taborda. Bagé-RS.
80

No ano de 1922, o jornal O Palmeira intitulava-se como um órgão do Sport


Clube Palmeira e do Grêmio Dramático Palmeira, sendo o responsável por
divulgar as atividades desses dois grupos, bem como outras atividades sociais
da comunidade negra de Bagé. O Palmeira também mantinha relações com
outros jornais da imprensa negra do Estado gaúcho, como, por exemplo, no ano
de 1922 o mesmo noticiou ter recebido os periódicos A Penna, A Tesoura, O
Guarany e O Espião, de Bagé, bem como A Liberdade, de Porto Alegre, O
Succo, de Santa Maria, A Alvorada, de Pelotas e O Incentivo, da cidade de
Uruguaiana (O Palmeira, 1922, p. 2). Havia, também, correspondentes do jornal
em outros municípios, como é o caso das cidades de São Gabriel, Livramento,
Rio Grande e Pelotas.
Com relação ao time do Sport Club Palmeira, este foi fundado no dia 14
de abril de 1913 e disputava jogos amistosos com times da cidade e também a
Liga 13 de Maio de futebol, competição que reunia times compostos por
jogadores negros da cidade de Bagé. No pós-abolição, cidades como Pelotas,
Porto Alegre e Rio Grande também assistiram à criação de ligas de futebol
voltadas exclusivamente para o grupo negro. Em Pelotas existiu a Liga José do
Patrocínio; Em Porto Alegre houve a Liga Nacional de Football Porto-alegrense,
pejorativamente conhecida como “Liga da canela preta”; e em Rio Grande existiu
a Liga de Futebol Rio Branco (LONER, 2001).
Além do Sport Club Palmeira, em Bagé também existiram o Riachuello
Football Club e o Sport Club União, ambas equipes que também disputavam a
Liga 13 de Maio de futebol. Proibidos de jogarem em times profissionais e
amadores da cidade, sujeitos negros acabaram forjando seus próprios times e
criando uma liga específica na qual poderiam praticar o esporte que, nos
primeiros anos do século XX, acabara por se popularizar tanto nas camadas
mais abastadas das sociedades como também nas camadas populares (LOPES,
2004).
Na temporada de 1926/27, o time do Sport Club Palmeiras acabou por
se consagrar o campeão da Liga 13 de Maio, fazendo com que tal equipe
ganhasse as graças da comunidade negra local e se projetasse como um dos
principais times de futebol de negros de Bagé. Havia também jogos amistosos
de times negros de Bagé contra times de outras cidades, como é o caso de uma
notícia vinculada no jornal A Revolta no ano de 1925:
81

NOTAS SPORTIVAS – RIACHUELO vs UNIÃO DEMOCRATA


(Pelotas) – O Sport Club União Democrata vem em visita ao seu
coirmão, o valoroso campeão da raça etiópica Riachuelo Foot-
Ball Club (...) O Democrata vem ocupando o primeiro lugar na
Liga José do Patrocínio. Esse jogo foi realizado no campo do
Gremio Sportivo Bagé, no Menino Deus. À noite, na sede do
União Operária será realizado um baile aos visitantes. O orador
do baile: Jovieto Fernandes, colaborador do jornal A Revolta (A
Revolta, 1925, p. 3).

Percebe-se que a prática do futebol também foi fator potencializador da


articulação de sujeitos negros de diferentes cidades, pois como observa-se na
nota acima, times de futebol de Pelotas que disputavam a liga José do Patrocínio
também estavam conectados com equipes de Bagé que disputavam a Liga 13
de Maio, e quiçá essa conexão possa ter ocorrido com times de futebol que
disputavam as ligas negras de Rio Grande e Porto Alegre.

Imagem 2: Primeiro quadro do Sport Club Palmeira, 1922. (O Palmeira, 1922,


p. 1). Obs: Delfino Menezes é o primeiro em pé da direita para a esquerda.

Para além de notas esportivas, o jornal O Palmeira também anunciava


aniversários de membros da comunidade negra local, bem como notícias sobre
82

festas em clubes da cidade, como é o caso do Clube Os Zíngaros41 e ainda sobre


eventos culturais, sobretudo das atividades do Grêmio Dramático Palmeira.
Como exemplo, no ano de 1927, sob a direção de Alcides Almeida, o jornal
publicou a seguinte nota:
GREMIO DRAMATICO PALMEIRA – Conforme havíamos
noticiado realizou-se sábado e domingo passado, no salão da
Sociedade União Operária, o espetáculo promovido por esse
grêmio. O programa que estava bem organizado, de maneira
distinta, levando-se também em conta o valor dos amadores que
se fizeram ouvir, as chalaças com harmoniosos cantos. O
Palmeira, com o máximo entusiasmo e fulgor felicita os
amadores do grêmio, porque nisso se resume a
responsabilidade de cada um [...] (O Palmeira, 1927, p. 2).

Assim como a prática do futebol, a atuação, através do teatro, foi uma


constante na experiência de negros e negras desde o século XIX e atravessando
o Pós-abolição. Na cidade de Pelotas, Loner (2001) também encontrou a
participação negra em diversos eventos de amadores ainda no início do século
XX. Em Bagé, além do Grêmio Dramático Palmeira, também existiram o Grêmio
Dramático José do Patrocínio e a Companhia Negra. Com relação ao Grêmio
Dramático José do Patrocínio, no ano de 1937 este era constituído pelos
seguintes sujeitos: Delfino Menezes, Oscar Camargo; Luiz Couto; Paulino
Ximendes; Amazonas Bittencourt; Heitor Alves; Anselmo Couto; Helio Paraíso;
José Machado; José M. de Lima e algumas “senhoritas” cujos nomes não
aparecem no jornal. Esses grupos compostos por amadores eram responsáveis
por realizar festivais, principalmente na tentativa de angariar fundos para as suas
respectivas sociedades. Mas, para além disso, tais grupos eram responsáveis
por mostrar a capacidade de organização da comunidade negra de Bagé, pois
havia todo um processo por detrás do festival que incluía ensaios, preparação
das cenas e organização do salão.
Outro jornal da imprensa negra de Bagé que também pertencia a duas
sociedades foi o O 28 de Setembro. O referido jornal foi fundado pelos seguintes
sujeitos: Delfino Menezes; José M. Pereira; Oracildo Cunha; Manoel C.
Bittencourt; Juvenal da Cunha Moura; Ivo Garcia; João A. Correa; Onofre M. de
Lima e José M. de Lima. No seu editorial de número um, o jornal afirma que: “Os

41 Uma análise aprofundada sobre esse clube pode ser vista no capítulo 4 dessa dissertação.
83

fundadores deste órgão desconhecem ódios de raça e ambições desmedidas o


seu lema é Igualdade! (...) (O 28 de Setembro, 1937, p. 1).
Nos primeiros anos, o jornal era dirigido pelo Bloco dos Cariocas e Vamos
de Qualquer Geito42, ambas sociedades carnavalescas da cidade, sendo que a
última obteve grande destaque no cenário do carnaval de rua de Bagé. Para
além do período momesco, essas entidades estavam atentas às movimentações
da comunidade negra de Bagé, pois noticiavam casamentos, festivais, sarais,
quermesses e publicavam crônicas esportivas, entre outras.
As atividades sociais dos clubes negros da cidade também eram
divulgadas nos periódicos da imprensa negra de Bagé. Através das páginas dos
jornais pesquisados, observamos uma intensa mobilização cultural da
comunidade negra bageense. O jornal O Palmeira, por exemplo, a partir da
década de 1940 passou a noticiar a organização negra em torno do Clube Os
Zíngaros, divulgando suas festas e demais ações. Além do Zíngaros, outra
sociedade negra que aparecia nas páginas do referido jornal era a Sociedade
Recreativa Carnavalesca Piratas do Amor43, entidade que se destacou no
carnaval de rua de Bagé nas décadas de 1940 e 1950.
Além disso, diversas entidades carnavalescas são mencionadas em
diversos impressos negros de Bagé, sobretudo a partir dos anos 1930, como
veremos no capítulo seguinte dessa dissertação.
A partir do que foi exposto nesse capítulo, podemos observar que a
pequena cidade de Bagé foi palco de diversos impressos forjados pela
comunidade negra no Pós-abolição. Tendo perspectivas muitas vezes diferentes
uns dos outros, tais periódicos foram os responsáveis por noticiar as
movimentações de sujeitos negros, em suas mais variadas ações. Desde a
questão da educação, do letramento e da instrução primária; passando pelo
controle e disciplina de corpos negros, bem como sobre questões que envolvem
a mobilização cultural e recreativa de grupos e sociedades, a imprensa negra
bageense - cuja historiografia sobre a história de Bagé fez questão de omitir –
também foi responsável por dar novos significados à liberdade e forjar
intelectuais que debatiam sobre as problemáticas do Pós-abolição.

42 Mais sobre essa entidade pode ser vista no capítulo 3 dessa dissertação.
43 Uma análise mais apurada dessa entidade pode ser lida no capítulo 3 dessa dissertação.
84

Ao pesquisar a imprensa negra na região fronteiriça Brasil – Uruguai no


Pós-abolição, Silva (2017) afirma que esses periódicos negros também foram
responsáveis por forjar uma outra perspectiva de escrita da História.

Todo esse conteúdo presente nas páginas da imprensa negra


expressa parte das evidências de como os jornais também
forjaram suas escritas da história, exercendo uma voz que
ecoava por meio de uma tribuna pública da qual recusava-se o
lugar do negro como ser meramente “bonzinho” ou inexistente,
denunciava-se os problemas impostos aos negros e não os
negros enquanto problema, configurando uma realidade distinta
daquela que ecoava nas vozes oficiais do Estado Nação e
tecendo uma narrativa por meio de seus próprios termos (SILVA,
2017, p. 123).

Mesmo sendo poucos exemplares, a exposição das características dos


jornais da imprensa negra de Bagé é fundamental para observarmos os projetos
de sujeitos negros na cidade no Pós-abolição, evidenciando todo um
protagonismo negro que foi omitido pela historiografia local.
No capítulo seguinte, iremos observar que, para além da imprensa,
negros e negras também utilizaram o período do carnaval para se projetar na
cidade de Bagé e assim alcançar posições de prestígio. Se os jornais negros
poderiam garantir certa mobilidade social para pessoas negras, a organização
em torno do carnaval também poderia, principalmente a partir das décadas de
1930 e 1940. Nesse contexto de busca de um sentimento de unidade nacional,
muitas entidades carnavalescas negras acabaram conquistando as páginas de
jornais da imprensa “hegemônica” como os verdadeiros representantes do
carnaval, e como veremos a seguir, na cidade de Bagé não foi diferente.
85

CAPÍTULO 3

“ESSA GENTE BAMBA”: CORDÕES, RANCHOS E BLOCOS


CARNAVALESCOS NEGROS EM BAGÉ NO PÓS-ABOLIÇÃO

“Quero ver-te no carnaval com tua sublime evolução!


Entrando, pois, afinal, cantando tuas canções:
No delírio das poesias,
Entre perfumes da folia recitando marchas ardente
Como num planeta ausente!
Ficando todos os clubes admirados
De ostentares teu cordão:
E eu todo sufocado
Com a música de teu bandoleão
Fica aqui minha poesia
De saudação ao Qualquer Geito...
Nesta literatura bem macia
A demonstra que não tens defeito. ”44

O objetivo deste capítulo é perceber a organização negra em Bagé


através de entidades carnavalescas. A partir das principais agremiações
encontradas nas fontes da imprensa negra local, bem como no jornal Correio do
Sul e através das memórias dos sujeitos entrevistados, buscaremos entender as
principais estratégias utilizadas pelos cordões, ranchos e blocos carnavalescos
negros na cidade entre os anos de 1930 e 1950. Como veremos mais adiante,
nesse período a imprensa local, sobretudo a imprensa “hegemônica” 45, buscou
acompanhar os festejos destinados a Momo na cidade, momento no qual
entidades negras acabaram por conquistar as páginas dos periódicos.
As décadas de 1930 e 1940 são importantes no que diz respeito às
apropriações do Estado Novo sobre os festejos populares, onde o carnaval foi
construído como uma festa que sintetizava uma ideia de identidade nacional
brasileira.46
Nesse sentido, entender as organizações e as estratégias de entidades
carnavalescas negras se torna muito importante, pois, para além dos usos que

44 Trecho do Poema escrito por Dorval Lamothe e dedicado ao Rancho Carnavalesco Vamos de
Qualquer Geito. (O Teimoso, 22/01/1928, p. 2).
45 Refiro-me, aqui, ao jornal de maior circulação e tiragem da cidade de Bagé na época, o Correio

do Sul.
46 (VELLOSO, 2003; ROSA, 2008).
86

o Estado buscou fazer do carnaval, tais grupos compostos por sujeitos negros
também o fizeram.
A partir disso, iremos observar os seguintes grupos carnavalescos negros
que acabaram se destacando no carnaval de rua de Bagé: Rancho Carnavalesco
Vamos de Qualquer Jeito; Rancho Carnavalesco Respinga; Cordão
Carnavalesco Adeantados; Bloco Carnavalesco Piratas do Amor e o Bloco
Carnavalesco Garotos da Batucada. Evidentemente que muitos outros blocos
compostos por sujeitos negros existiram na cidade, porém, nossa análise focará
nessas entidades pelo fato de aparecerem com destaque na imprensa local,
sobretudo nas páginas do jornal Correio do Sul entre as décadas de 1930 e 1940.
Também utilizaremos periódicos da imprensa negra de Bagé através dos
seguintes impressos: O Teimoso (1928); O Boato (1929); O Lampeão (1934); A
Tesoura (1935) e Socega Leão (1937). Como foi mencionado no capítulo anterior
desse trabalho, os periódicos da imprensa negra estavam atentos aos
movimentos burlescos das entidades carnavalescas locais e acabavam por
divulgar notícias desses grupos, mas também pelo fato de que existiram
entidades carnavalescas negras que chegaram a ter seus próprios impressos.
Para essa parte do trabalho, também utilizaremos a metodologia da
História Oral, através da qual foram realizadas entrevistas com sujeitos que
experienciaram o carnaval negro da cidade, sendo eles: Sr. Luís Barbosa da
Silva; Sra. Zoila da Silva Pinto e Sr. Vilmar Paiva dos Santos. Esses sujeitos
tiveram participação ativa em algumas das principais entidades carnavalescas
negras que serão analisadas no decorrer deste capítulo.
Porém, antes de adentrarmos nas características das entidades
mencionadas anteriormente, é importante apontar para alguns estudos que
focam no carnaval negro tanto em âmbito nacional como regional, pois estes se
destacam no sentido de apontar a importância de tais entidades negras e suas
influências nos períodos do reinado de Momo.

3.1. Estudos sobre carnaval negro


Sendo visto como um dos principais elementos formadores da cultura
brasileira, o Carnaval já vem sendo estudado por muitos cientistas sociais há um
longo tempo. Obras já consideradas clássicas, como é o caso de Carnavais,
87

Malandros e Heróis, do antropólogo Roberto Da Matta (1989), bem como os


estudos de Maria Izaura Pereira de Queiroz intitulado Carnaval Brasileiro: o
vivido e o mito (1992), configuram-se entre os estudos que, segundo aponta
Rosa (2008), não dão conta de perceber as diversidades e os conflitos em torno
da festa carnavalesca no Brasil.
Para Rosa, que estuda o carnaval de Porto Alegre nos anos de 1930 e
1940 - como veremos mais adiante - tais obras acabaram por suprimir a ideia de
diversidades e conflitos em torno da festa do carnaval brasileiro, mostrando uma
perspectiva de que no período momesco todas as pessoas se “igualam”. Nesse
sentido, a crítica do autor remete a mais ou menos a seguinte indagação: como
ficam as diferentes identidades que eram forjadas no período carnavalesco?
Rosa (2008) ainda afirma que as produções sobre o carnaval no Brasil
ainda são muito voltadas para compreender o carnaval do Rio de Janeiro, sendo
uma bibliografia muito “riocêntrica” e também nacionalista. Com isso, acabou se
criando uma ideia de que o carnaval não tem muita importância em outras
regiões do Brasil, como é o caso do Rio Grande do Sul, que como veremos mais
adiante, possui uma forte tradição carnavalesca e também com intensa
participação negra.
Um estudo sobre o carnaval que merece destaque é o livro Carnaval e
Branco e Negro: carnaval popular paulistano (1914 – 1988) de Von Simson
(2007), que aborda a organização de negros e brancos no carnaval paulistano
entre os anos de 1914 a 1988. Para a autora, o surgimento dos primeiros cordões
carnavalescos de São Paulo se dão nas décadas de 1910 e 1920, tendo como
reduto alguns territórios negros da cidade, como é o caso da Barra Funda, Bela
Vista e a Baixada do Glicério. Essas regiões concentravam muitas famílias
negras e estas criaram várias estratégias de sociabilidade entre os seus, no qual
o período momesco se configurava entre as principais. Porém, a autora ressalta
que as práticas de sociabilidade não se restringiam somente ao período
carnavalesco, pois havia a realização de atividades durante todo ano, seja
através da realização de bailes, da prática do futebol e serenatas. Como veremos
mais adiante, as entidades carnavalescas negras de Bagé também realizavam
diversas atividades durante o ano, para no momento em que chegasse os
festejos carnavalescos estarem estruturadas para os desfiles.
88

O Pós-abolição é um cenário propício para observarmos as experiências


negras em torno dos festejos de Momo, pois em muitos lugares do Brasil, no
período carnavalesco, negros e negras colocavam seus blocos, ranchos e
cordões nas ruas e assim ocupavam e disputavam os espaços públicos.
Trabalhos como o de Eric Brasil (2016) e Isabel Guillen (2014) buscam dialogar
sobre experiências negras carnavalescas no Pós-abolição.
O primeiro, cujo título da tese chama-se Carnavais Atlânticos: cidadania
e cultura negra no pós-abolição. Rio de janeiro e Port-of-Spain, Trinidad (1838-
1920), tem como objetivo, através de uma perspectiva transnacional, entender
quais foram as estratégias de sujeitos negros tanto no Rio de Janeiro como em
Port-of-Spain, tendo o carnaval como fio condutor para perceber as ações
públicas desses sujeitos na luta por cidadania. Utilizando um variado leque de
fontes (jornais da imprensa carioca, documentação policial, produção de
memorialistas e folcloristas em ambas as cidades), Brasil (2016) pode perceber
que sujeitos negros, em ambas as cidades do Atlântico, forjaram diversos signos
de liberdade e cidadania nos dias consagrados a Momo. Como um exemplo, o
autor cita o rancho Macaco é Outro, cujo nome já denota a ideia de afastamento
de seus membros sobre estigmas que recaiam sobre sujeitos negros, como é o
caso de chamarem pessoas negras de “macacos”. A partir disso, o nome do
Rancho era uma “estratégia de um grupo visando se afastar da visão
estereotipada e racista através da ironia, do humor, da sátira” (BRASIL, 2016, p.
150).
Assim como no Rio de Janeiro, em outras cidades brasileiras o período
do carnaval vem sendo observado pela ótica da agência negra no Pós-abolição.
Guillen (2014) observa algumas estratégias de negros e negras no carnaval de
Recife no período republicano, cidade onde a autora encontrou diversas
entidades carnavalescas negras e dentre elas duas com nomes bem sugestivos:
Negros Civilizados e Pretos Cidadãos. Para a autora, o que estava no horizonte
dessas duas agremiações eram as expectativas de liberdade e cidadania de
seus membros, que “buscaram criar espaços públicos nos quais a cidadania
ganhava múltiplos sentidos” (GUILLEN, 2014, p. 73).
A partir disso, o que chama a atenção em ambos os trabalhos é que estes
se propõem a discutir o carnaval não somente pelo viés da folia e do prazer, mas
procuram entender como que entidades carnavalescas negras se colocaram nos
89

espaços públicos nos dias destinados a Momo para obterem reconhecimento


social e valorização do grupo.
Já para o Estado do Rio Grande do Sul já existem alguns trabalhos que
buscam apontar a existência de blocos carnavalescos negros no pós-abolição,
ganhando destaque o trabalho pioneiro de Loner (2001) sobre as cidades de
Pelotas e Rio Grande, bem como o de Loner e Gill (2009) sobre Pelotas, Nunes
(2010) sobre o cordão União da Classe em Jaguarão e Germano (1999) e Rosa
(2008), que focaram suas análises sobre o carnaval na cidade de Porto Alegre,
entre outros trabalhos.
Com relação as entidades carnavalescas negras nas cidades de Pelotas
e Rio Grande, Loner (2001) apontou algumas cuja atuação se deu ainda no
século XIX, marcando presença nos festejos da abolição da escravidão. A
exemplo disso, a autora cita o clube Nagô e os Netos d’África, e para a cidade
de Rio Grande o Congresso Mina e o clube Congo, este não se limitando apenas
a atuação no período do carnaval. Mas é a partir da década de 1920 e 1930 que
principalmente a cidade de Pelotas viu o surgimento de diversas entidades
carnavalescas negras.
Loner e Gill (2009) afirmam que nesse período, o carnaval de Pelotas era
o mais forte do interior do Rio Grande do Sul, principalmente o carnaval de rua.
É nesse contexto que aparece uma grande quantidade de cordões, ranchos e
blocos carnavalescos, entre eles aqueles que reuniam os negros. Destas
entidades, acabaram se destacando por sua organização os seguintes clubes:
Chove Não Molha, Fica Ahí Pra Ir Dizendo, Quem Ri de Nós tem Paixão e o
Depois da Chuva47. Estes ganharam destaque no cenário carnavalesco local e
posteriormente viraram Clubes Sociais, organizando diversas atividades em
suas sedes, sendo que dois desses permanecem em atividade até os dias atuais,
o Fica Ahí e o Chove Não Molha.
Com relação a fronteira sul do Brasil, temos o estudo de Nunes (2010)
sobre a formação do Cordão União da Classe e a sua atuação junto ao Clube 24
de Agosto na cidade fronteiriça de Jaguarão. Para a autora, o referido cordão,
assim como os carnavais protagonizados pelo Clube 24 de Agosto serviram de
instrumento político e ideológico para homens e mulheres negras da cidade, que

47 Uma análise mais apurada dessas entidades pode ser encontrada em SILVA (2011).
90

no momento do carnaval buscavam se afirmar enquanto sujeitos trabalhadores


e respeitáveis. Tal estudo é fundamental para observarmos os protagonismos de
negros e negras na pequena cidade de Jaguarão, cuja narrativa histórica “oficial”
fez questão de silenciar.
Já para a cidade de Porto Alegre existem alguns trabalhos sobre o
carnaval e a participação de negros e negras, como é o caso do estudo de
Germano (1999) e Rosa (2008).
O estudo de Germano (1999) buscou analisar a construção da identidade
negra em Porto Alegre através do carnaval, isso nas décadas de 1930 e 1940.
Para a autora, o estudo do carnaval permite observar para além das
sociabilidades, os conflitos entre os grupos negros e demais entidades. Segundo
a autora, na conjuntura do governo Vargas, o Estado buscou se apropriar das
festas populares, dentre elas o carnaval, atrelando à essa festa um dos símbolos
da brasilidade. Ao mesmo tempo em que o Estado buscava se fortalecer
utilizando-se da festa do carnaval, foi nesse período que diversas entidades
carnavalescas negras buscaram também se apropriar dos festejos
carnavalescos, conferindo significados próprios à festa.
Nesse sentido, Germano (1999) afirma que ano após ano os blocos e
cordões carnavalescos de negros ganharam os primeiros lugares em todas as
categorias dos concursos do carnaval de rua porto-alegrense, ao mesmo tempo
em que estes segmentos “passaram a ser apresentados como os verdadeiros
representantes do carnaval popular, a festa do povo” (GERMANO, 1999, p. 137).
Nessa mesma perspectiva também existe o estudo de Rosa (2008), que
buscou analisar as diversas relações estabelecidas entre os grupos que
participavam da festa momesca, procurando perceber os variados significados
forjados por esses grupos ao período do carnaval. Ambos os estudos se focam
no mesmo período, por entender que as décadas de 1930 e 1940 foram muito
importantes do ponto de vista da (re) significação das festas populares pelo
Estado Novo, mas também os grupos que participavam dos festejos conferiam
diversos significados ao carnaval, fazendo com que esse período fosse
observado por uma ótica de arena de conflitos.
Sob a conjuntura do governo Vargas e a constituição de uma ideia de
identidade nacional brasileira, em que estava incluso elementos da cultura
popular como o samba, por exemplo, o estudo de Rosa (2008) aponta que os
91

blocos e/ou cordões carnavalescos fizeram seus usos próprios do carnaval,


muitas vezes opondo-se ao ideal de “nação brasileira” propagada pelos poderes
públicos e pela imprensa.
Nesse contexto, a imprensa desempenhou um papel importante como
irradiadora dos ideais do Estado e passou a dar mais ênfase ao período do
carnaval em suas páginas. Com isso, muitas entidades negras começaram a
figurar nas páginas da imprensa quando a mesma realizava a cobertura dos
festejos carnavalescos. Os blocos bem organizados, com boas orquestras e
solistas, recebiam elogios e “adjetivações positivas” nos periódicos locais,
conferindo-lhes visibilidade (ROSA, 2008, p. 57).
A grande maioria de entidades carnavalescas negras encontradas em
Bagé, através das pesquisas nos jornais mencionados anteriormente, diz
respeito às décadas de 1930 e 1940. Nesse sentido, as análises presentes em
Germano (1999) e Rosa (2008) se tornam importantes para fazer alguns
paralelos entre as cidades estudadas.
Com relação a cidade de Bagé, lócus dessa pesquisa, foi encontrado
apenas um trabalho de cunho acadêmico sobre o carnaval de rua da cidade. A
monografia escrita pelo produtor cultural Rafael Silva e intitulada Nem Confete,
nem serpentina: a resistência do Bloco Burlesco Brasa Viva no carnaval de rua
de Bagé (2016), procurou registrar a história do Bloco Burlesco Brasa Viva,
entidade fundada em 1968 na comunidade do Alto da Santa Casa. Para além de
registrar sua história, o trabalho procurou analisar como o bloco dialogou com as
diversas transformações que ocorreram ao longo de 30 anos no carnaval de rua
competitivo bageense. Observando as narrativas e histórias de vida de dois de
seus fundadores, o trabalho também contou com a narrativa do autor e de sua
trajetória dentro do carnaval de rua de Bagé. Dentro das narrativas de Alípio Dias
e Antônio Ritta, fundadores da entidade, buscou-se perceber a fundação do
bloco, os primeiros carnavais no bairro do Alto da Santa Casa, os desfiles na
avenida Sete de Setembro e posteriormente as principais mudanças desde a
década de 1980 até 2014. A construção de identidades negras em torno do bloco
Brasa Viva não foi muito explorada pelo autor, mesmo assim percebe-se vários
elementos para se pensar na atuação de negros e negras na constituição do
bloco, como é o caso da influência do tambor de Sopapo como elemento
constituinte da bateria da entidade.
92

Na década de 1930 e 1940 diversas entidades carnavalescas negras


ganharam destaque na imprensa local, seja através das páginas do jornal
Correio do Sul, bem como nas páginas da imprensa negra da cidade. Passamos
então a observar mais de perto essas entidades, dentre as quais se enquadram
o Rancho Carnavalesco Vamos de Qualquer Geito, Rancho Respinga, Cordão
Carnavalesco Adeantados, Bloco Carnavalesco Piratas do Amor e o Bloco
Garotos da Batucada. As três primeiras já marcavam presença nos festejos
carnavalescos da cidade nos anos finais da década de 1920.

3.2. Rancho Carnavalesco Vamos de Qualquer Geito


Uma das entidades de destaque nesse período foi o Rancho
Carnavalesco Vamos de Qualquer Geito. A primeira referência a esse
agrupamento foi encontrada no ano de 1928 nas páginas do jornal O Teimoso.
Esse periódico intitulava-se como “Orgam do Clube Carnavalesco As Teimosas”
e seu redator chefe era Dorval Lamothe e a diretora era Flora Gomes. A notícia
do referido jornal dizia que o Vamos de Qualquer Geito e As Teimosas realizaram
um desfile em conjunto por algumas ruas de Bagé, tendo o fim do desfile
culminado com um baile nos salões da Liga Operária da cidade (O Teimoso,
22/01/1928, p. 2).
No início da década de 1930 era comum as entidades negras percorrerem
as principais ruas da cidade de Bagé e realizarem visitas a setores da imprensa,
bem como a pessoas que julgavam serem influentes e que simpatizavam e/ou
ajudavam o bloco com mantimentos. Nesse período, também eram realizados
concursos carnavalescos dos blocos mais “simpáticos” pelo jornal Correio do
Sul. Porém, o jornal anunciava, em grande parte, entidades que realizavam
desfiles nos salões de sociedades da elite local, como é o caso dos Clubes
Comercial e Caixeiral.48 Nesses espaços, como ficará evidente no decorrer
dessa dissertação, por muito tempo foi vedada a entrada de negros e negras,
sendo configurado como um espaço pertencente à elite branca da cidade.

48No ano de 1937 o jornal Correio do Sul publicou a classificação das entidades que participavam
do concurso realizado pelo impresso, sendo que das doze entidades concorrentes, sete
desfilavam dentro do espaço do Clube Comercial de Bagé. (Correio do Sul, 07/02/1937, p. 6).
93

Como não poderiam ingressar nos concursos carnavalescos que ocorriam


nos clubes mencionados acima, sujeitos negros acionavam diversas estratégias
para os dias destinados à Momo, sendo a realização de seus próprios concursos
um deles, como fica evidente na nota publicada num periódico da imprensa
negra local:
Concurso Carnavalesco – Promovido pela benquista sociedade
As Teimosas, levarão a efeito um bem organizado concurso, em
que tomarão parte, todos os cordões locais, para o fim de se
apurar durante o período carnavalesco, qual é o cordão mais
“simpático”. Os prêmios se acharão expostos na vitrine da
Ferragem Magalhães, e a apuração será feita diariamente, na
redação deste semanário, a rua General Netto n: 6, onde de 2ª
feira em diante se acharão cupons a venda. O preço de cada
cupom será de cem reis. Só tomarão parte os cordões da raça.
(O Teimoso, 22/01/1928). (grifos do autor).

A partir do anúncio acima, observamos que ao mesmo tempo em que


entidades carnavalescas negras desfilavam em espaços públicos da cidade, eles
também promoviam concursos entre os seus, momento de mostrar para a
comunidade de Bagé que estes também podiam construir eventos no mesmo
nível dos clubes sociais da elite bageense. Como mostra a nota acima, apenas
os “cordões da raça” poderiam concorrer no concurso. Assim, esses grupos
criavam espaços racializados, constituindo uma identidade negra positiva, nos
termos postulados por Silva (2011), no seio de uma cidade demarcada
racialmente e que excluía a participação de entidades negras de determinados
espaços.
A realização de um concurso carnavalesco somente para os da raça é um
exemplo de como que coletividades negras acionavam a própria ideia de raça -
que foi criada com o objetivo inferiorizá-los - para criar seus próprios espaços
também pautados pela ótica da racialização.
Os grupos negros, na ânsia por existir de forma plena, gestaram
uma contra ideologia por meio das bases disponíveis e, se a raça
os impedia de acessar espaços, porque não a utilizar como uma
característica para forjar seus próprios espaços e por meio
destes contrapor os estereótipos que fundamentavam as
discriminações? (SILVA, 2017, p. 115).

Outro fator que chama bastante a atenção na notícia sobre o concurso


carnavalesco mencionado anteriormente diz respeito ao nome da referida
sociedade que a organizou: As Teimosas. Mesmo não encontrando os nomes
das pessoas que compunham tal entidade, esta provavelmente era composta
94

por mulheres negras de Bagé. Um indício disso é o fato de no jornal O Teimoso


- Órgão do Club Carnavalesco As Teimosas – a diretora ser uma mulher, Flora
Gomes. Não é comum encontrarmos diretoras e redatoras mulheres à frente de
jornais da imprensa negra, porém, no caso do referido periódico acabamos por
encontrar, e a importância de Flora Gomes na comunidade das Teimosas é
reforçada em uma nota que transcrevemos abaixo:
Flora Gomes – Acendeu ao gentil alvitre que lhe foi feito para
dirigir este quinzenário a distinta Sra. Flora Gomes, sócia das
Teimosas, a qual inaugura hoje, em sua nova fase a festejada
conterrânea. É com justo orgulho e vivo prazer que damos a
auspiciosa noticia aos nossos leitores aos quais todos,
conhecem já, o prestígio da nossa ilustre diretora (O Teimoso,
22/01/1928, p. 3).

A nota acima evidencia todo um protagonismo feminino, pois além de


pertencer a uma entidade carnavalesca negra, Flora Gomes estava na direção
do jornal que noticiava questões relativas à entidade em si, mas também sobre
outras questões que diziam respeito à cidade de Bagé e aos movimentos de
negros e negras. Infelizmente não encontramos mais informações sobre Flora
Gomes, se a mesma circulou em outros espaços negros de Bagé ou até mesmo
esteve à frente de outro periódico negro da cidade.
Ainda no ano de 1928, para além d’As Teimosas, também encontramos
referências a outras duas entidades carnavalescas compostas mulheres negras,
sendo As Filhas do Brasil e As Choves. A primeira, assim como As Teimosas,
não ficou restrita apenas ao espaço privado dos salões dos clubes locais e
acabou por ocupar o espaço público das ruas de Bagé. Sob a presidência de
Aguida Silveira, o referido bloco realizou, no dia 14 de janeiro de 1928 um
passeio pelas principais artérias da cidade de Bagé e que culminou com um baile
nos salões da Sociedade União Operária. (O Teimoso, 28/01/1928, p. 3).
Já a segunda entidade surgiu de mulheres torcedoras do tradicional
rancho carnavalesco de negros de Bagé, o Respinga, que como veremos adiante
ainda neste capítulo, acabou por se destacar no cenário carnavalesco da cidade.
O cordão As Choves, além de realizar desfiles pelas ruas de Bagé, também
organizava atividades sociais, como chás-dançantes, com o objetivo de angariar
fundos e assim se preparar para o período Momesco.
Outra entidade carnavalesca protagonizada por mulheres negras surgiu
de dentro da ala feminina do bloco Os Zíngaros, na década de 1940. O bloco
95

As Morenas do Brasil alcançou as páginas do Correio do Sul no ano de 1941, ao


conquistarem o prêmio de menção honrosa no concurso organizado pelo jornal.
Sendo assim, o jornal publicou a sua diretoria, sendo composto pelas seguintes
mulheres: Maria de Lourdes Muniz, presidente; Beatriz Rosa, diretora de fila; e
as demais componentes eram: Ervides Pereira, Vilma Romero, Beatriz P.
Camargo, Maria C. Costa, Celia e Aracy Nunes, Cledy Maciel, Celia Corrêa,
Maria Francisca, Eva Muniz, Ophelia, Abigail e Thereza Oliveira, Elza Corrêa,
Dora Bandeira, Zenaide e Patrona Oliveira, Alzira Santos, Zilda Rodrigues,
Galdina, Irene e Lourerey Cunha, e Maria Ferreira. Havia também, a presença
de homens no referido bloco, nos quais aparecem os nomes de Celso Muniz
(irmão de Maria de Lourdes Muniz), Adão Monteiro e Wilson Corrêa (Correio do
Sul, 14/02/1941, p. 6).

Imagem 3: Bloco Carnavalesco Morenas do Brasil, 1941. (Acervo de


Cleber Muniz Fernandes).

O que também nos chama a atenção é o nome do referido bloco. Mesmo


sendo composto por mulheres negras, o termo “morena” é que dava nome à
entidade, pois vale lembrar que na década de 1940 o termo “negro” e/ou “preto”
96

vinha carregado de estigmas que associavam aos sujeitos negros certa


inferioridade cultural, sendo remetido ao tempo do cativeiro. Esse fator também
foi encontrado por Weimer (2015), que estudando quatro gerações de uma
família negra da região de Morro Alto, em Osório-RS, percebeu que até haver a
politização/positivação do termo “negro”, os membros da família estudada se
referiam como “morenos”, pois o primeiro ainda possuía uma carga pejorativa49.
Evidentemente que bem antes do surgimento d’As Morenas do Brasil já havia
associações que se autodenominavam como “pretos” e “negros”, como é o caso
do Clube 13 de Maio dos Homens Pretos, encontrado na pesquisa de Siqueira
(2009) em São Paulo no início da primeira república e a própria Frente Negra
Brasileira, que mantinha um braço na cidade de Pelotas no início da década de
1930, a Frente Negra Pelotense (SILVA, 2011).
Essas entidades carnavalescas compostas por mulheres negras, muitas
delas vinculadas a outros cordões e/ou ranchos de negros já existentes, denotam
um protagonismo e uma organização feminina, que no período Momesco
ocupavam os espaços das ruas de Bagé e disputavam com grupos
carnavalescos compostos por homens. Algumas delas, como é o caso d’As
Morenas, chegaram a figurar entre as que mais se destacaram em um concurso
realizado pelo Correio do Sul. Além dessas entidades mencionadas, não foi
encontrado mais nenhum grupo carnavalesco composto por mulheres negras,
sendo que a partir da década de 1940 a única agremiação encontrada foi As
Morenas do Brasil.
De forma geral, é somente a partir dos anos finais da década de 1930 que
as entidades negras vão começar a destacar nas páginas do Correio do Sul,
principalmente após a instauração do regime do Estado Novo, em 1937. Nessa
nova conjuntura, segundo a imprensa, as entidades carnavalescas negras vão
ser as responsáveis por dar a tônica do carnaval de rua de Bagé, dentre elas o
Vamos de Qualquer Geito.
A primeira referência ao Rancho Vamos de Qualquer Geito nas páginas
do Correio do Sul foi encontrada no ano de 1936, no qual o jornal publicou a
seguinte notícia:

49Essa questão também é apontada pelo autor em: WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Ser
“moreno”, ser “negro”: memórias de experiências de racialização no litoral norte do Rio
Grande do Sul no século XX. Est. Hist. Rio de Janeiro, vol. 26, nº 52, p. 409 – 428, 2013.
97

BLOCOS CARNAVALESCOS – O BLOCO CARNAVALESCO


VAMOS DE QUALQUER GEITO já está a postos, com suas
valorosas hostes em plena forma. Hoje o aplaudido bloco
realizará uma animada passeata. No dia 15 do corrente o Vamos
de Qualquer Geito realizará, no cinema Apollo, um grande
festival em seu benefício. (Correio do Sul, 09/02/1936, p. 5).

Diversas entidades carnavalescas realizavam festivais na busca de


angariar fundos para os seus desfiles na época de carnaval. Assim, os foliões já
iam se aquecendo para o período do reinado de Momo e ensaiando diversas
marchas e sambas, que futuramente viriam a concorrer em concursos
carnavalescos.
Analisando a estrutura de alguns cordões carnavalescos negros de São
Paulo, Von Simson (2007) também observou que a grande maioria das
agremiações realizava diversas atividades durante o ano para angariar fundos
para os seus desfiles carnavalescos. Uma das características de muitas
agremiações foi a realização de bailes mensais, bem como a prática do futebol
e serenatas. Tais atividades engordavam o caixa das agremiações, levando em
consideração que no contexto pesquisado pela autora – década de 1910 e 1920
– era escasso a contribuição do poder municipal com os festejos de Momo. Com
relação à prática do futebol, Von Simson (2007) afirma que essa era recorrente
em várias agremiações e “parece ter sido regra: ou a entidade carnavalesca
surgia a partir de um agrupamento futebolístico, ou este complementava as
atividades da agremiação de Momo” (VON SIMSON, 2007, p. 112).
Como ficou evidente na nota do jornal acima, o Rancho Vamos de
Qualquer Geito utilizava o cinema Apollo para a realização de festivais em seu
benefício. Além de ocupar esse espaço, o Rancho também utilizava os salões
da Sociedade Liga Operária50 para a realização de bailes e quermesses, como
mostra a notícia abaixo vinculada num periódico da imprensa negra local:
Chás Quermesse – Recebemos o atencioso convite do R. C.
Vamos de Qualquer Geito dos chás quermesse que se realizará
nos dias 11, 18 e 25 de mês de julho e 1 de agosto, nos vastos
salões da Liga Operária. Deferência que agradecemos (Socega
Leão, 11/07/1937, p. 3).

A realização desse tipo de atividade durante o ano era uma garantia de


sobrevivência de muitas entidades carnavalescas negras de Bagé. Além de

50 Sobre a localização dessa associação no mapa de Bagé, ver Anexo.


98

guardar recursos para o período do carnaval, essas atividades também eram


destinadas a pagar o aluguel do espaço onde a mesma era realizada.
Era muito raro uma entidade carnavalesca negra de Bagé ter um salão
próprio onde pudesse realizar seus bailes e atividades carnavalescas.
Entrevistando a Sra. Zoila Pinto da Silva, figura de destaque dentro do Clube
Social Negro Os Zíngaros51, a mesma afirma que o Vamos de Qualquer Geito
também realizava suas festas em uma sede em frente ao Museu Dom Diogo de
Souza, localizado no centro da cidade de Bagé 52. Mesmo não lembrando se a
sede era realmente do Rancho ou alugada, Zoila afirma que nesse espaço eram
realizados diversos bailes e principalmente a escolha das rainhas do Rancho.
Sua mãe, Julieta Ribeiro Silva, foi eleita por três anos consecutivos a rainha do
Rancho Vamos de Qualquer Jeito, na década de 1930.

Imagem 4: Julieta Ribeiro Silva – Rainha do Rancho Carnavalesco Vamos de


Qualquer Geito, década de 1930 (Acervo privado de Zoila Pinto da Silva).

51 Uma análise sobre este clube será feita no capítulo 4 dessa dissertação.
52 Sobre a localização da sede do Qualquer Geito no mapa de Bagé, ver Anexo.
99

Infelizmente não foi encontrado em nenhuma das notícias vinculadas ao


Rancho Vamos de Qualquer Jeito, nomes de sujeitos que compunham seus
quadros diretivos. Porém, em uma notícia veiculada no jornal da imprensa negra
local de nome O 28 de Setembro, no ano de 1938, encontramos uma nota sobre
o Sr. Santiago da Rosa, que diz: “Santiago da Rosa, figura de destaque, no
nosso escol social, e pertenceu ao tradicional R. C. V. de Q. Geito” (O 28 de
Setembro, 23/10/1938, p. 2).
Segundo depoimento do Sr. Luís Barbosa, Santiago da Rosa foi um
sujeito negro que exercia a profissão de escriturário, sendo gerente do frigorífico
Sicadi, localizado na cidade de Bagé. Como se referiu Luís Barbosa, Santiago
da Rosa era um “nego fino”, ocupando um lugar de destaque entre os sujeitos
negros da cidade. O mesmo também pertenceu a diretoria da Sociedade União
Familiar (Jornal O Palmeira, 07/08/1949) e foi da diretoria da Sociedade
Recreativa Os Zíngaros, tradicional Clube Social Negro de Bagé. Foi na
presidência de Santiago da Rosa, no ano de 1948, que essa sociedade elaborou
o seu primeiro estatuto.
Ao se referir ao Vamos de Qualquer Geito, Dona Zoila afirma que esta era
uma entidade pautada por uma rigidez e muita organização. No ano de 1937, a
entidade dirigia, inclusive, um periódico intitulado O 28 de Setembro, juntamente
com o Bloco dos Cariocas. Como foi observado no capítulo anterior, o jornal era
descrito como um Quinzenário humorístico, noticioso e esportivo, responsável
por noticiar as atividades sociais realizadas pela comunidade negra bageense,
como também colunas de humor e esportivas.
Descrevendo alguns jornais da imprensa negra de São Paulo no Pós-
abolição, Domingues (2008) ressalta que muitos surgiram a partir de
associações, e por isso:
[o] seu caráter de órgão noticioso dos batizados, aniversários,
noivados, casamentos, falecimentos, formaturas, nomeações,
enfim, dos eventos sociais e da vida pessoal dos afiliados
dessas associações, principalmente. (DOMINGUES, 2008, p.
42).

No caso de Bagé, encontramos apenas dois impressos negros que eram


dirigidos por entidades locais, ambas carnavalescas. No ano de 1928 o jornal O
100

Teimoso que era dirigido pelo Club Carnavalesco As Teimosas e no ano de 1937
o impresso O 28 de Setembro, cuja direção estava a cargo das entidades Vamos
de Qualquer Geito e Blocos dos Cariocas.
Ao que tudo indica, no ano de 1937 o Vamos de Qualquer Geito obteve
destaque no carnaval de rua de Bagé, juntamente com o Cordão Respinga, como
mostra a notícia vinculada no jornal Correio do Sul:
EM PLENO REINADO DA FOLIA – Vários automóveis tomaram
parte nos corsos, bem como vários grupos populares, dos quais
se destacaram os cordões RESPINGA, apresentando um carro
alegórico e VAMOS DE QUALQUER GEITO que apresentou em
vários automóveis destoldados, a sua “rainha” acompanhada de
suas aias, com luzida guarda de honra e afinada banda de
clarins (Correio do Sul, 11/02/1937, p. 5).

Prática comum nas décadas de 1920 e 1930, os corsos atraíam a atenção


da população que acompanhava os festejos carnavalescos. Descrevendo o
carnaval de 1925 na cidade de Bagé, Taborda (2015)53 ressalta já nesse ano a
presença dos corsos carnavalescos, afirmando que nesse ano houve corso “das
20horas até a meia noite, com jogos de confete, serpentina e lança-perfume e
muita algazarra entre as ruas Dr. Penna e Bento Gonçalves” (TABORDA, 2015,
p. 423).
Os desfiles pelas ruas da cidade, através da prática do corso, acabavam
por dar visibilidade aos grupos carnavalescos negros, ao mesmo tempo em que
tais práticas acabavam por reforçar as diferenças sociais entre as entidades. No
ano de 1937, o jornal Correio do Sul publicou uma nota sobre a realização de
um corso pelas ruas de Bagé, fazendo questão de salientar o “lugar social” das
entidades que iriam realizar os desfiles:
O CORSO - Os cordões populares, em conjunto, deram entrada
no corso, com um bem feito carro alegórico, conduzindo a rainha
do Vamos De Qualquer Geito, puxado por uma banda de
clarins e uma luzida guarda de honra, montando belos corcéis.
Tomaram parte também, no corso de domingo, os blocos chics
da nossa sociedade (grifos do autor) (Correio do Sul,
16/02/1937, p. 5).

Como deixa evidente a notícia acima, havia, nos dias destinados a Momo,
desfiles separados entre as entidades consideradas “populares” e as
consideradas “chics” no carnaval de rua de Bagé. Primeiramente desfilavam os

53 Artigo publicado no Jornal Correio do Sul, em 09/02/1986.


101

cordões, ranchos e/ou blocos considerados populares, como é o caso do Vamos


de Qualquer Geito. No outro dia, era a vez das entidades carnavalescas
classificadas pelos redatores do jornal como “chics”. Essas entidades eram
pertencentes à clubes sociais da elite local, como é o caso do Club Caixeiral e o
Club Comercial. Geralmente, esses clubes realizavam atividades carnavalescas
em seus espaços privados, porém, também houve momentos em que tais clubes
ocupavam os espaços públicos da cidade, buscando se distinguir e ganhar
visibilidade.
Nesse sentido, como bem pontua Rosa (2008), o carnaval era um
momento propício para se realçar as diferenças, e a imprensa cumpriu papel
fundamental nesse quesito, fazendo questão de publicar em suas páginas notas
carnavalescas através das quais as distinções entre os grupos eram evidentes.
Um exemplo citado por Rosa (2008, p. 85) foi observado no carnaval de 1940 na
cidade de Porto Alegre. Nessa ocasião, à semelhança do caso citado acima
ocorrido em Bagé, a prefeitura da capital gaúcha em conjunto com setores da
imprensa local organizou desfiles carnavalescos separados, sendo um dia para
o “corso livre” e outro para “O Corso Oficial”, este último com entidades que o
jornal descreve como “as nossas sociedades”. Como bem pontua o autor, ao
grifar o primeiro dia com letras minúsculas e o segundo com iniciais maiúsculas,
o Jornal do Estado fez questão de distinguir os grupos e assim realçar as
diferenças.

3.3. Rancho Carnavalesco Respinga


Na década de 1930, outro grupo carnavalesco negro que acabou se
destacando no cenário bageense foi o Respinga. Esta entidade carnavalesca
negra de Bagé surgiu no ano de 1928 e segundo matéria vinculada no periódico
O Teimoso, já possuía nesse ano o significativo número de 145 jovens em suas
fileiras (O Teimoso, 22/01/1928, p. 3). Já nas décadas de 1930 e 1940 acabou
se destacando no cenário do carnaval de rua de Bagé.
Nas palavras do Sr. Luís Barbosa, nos carnavais da década de 1920 e
1930, alguns blocos desfilavam com carros alegóricos que eram puxados por
carroças, havendo blocos que se destacavam por colocar na rua diversos carros
enfeitados. Com relação a esses desfiles, o depoente narra um episódio que
102

envolve a rixa de alguns blocos. Segundo o Sr. Luís, houve um desfile em que o
carro do Respinga foi “sabotado” por outras entidades:
Uma vez o Respinga ia desfilar, no tempo que fazia os carro
encima das carroça, diz que os nego botavam aste (sic) quando
foi, a carroça foi arrancar com o carro quebrou as roda (risos)
[...] ficaram no meio do caminho (...) faziam “trampa” um pro
outro né “tchê”? Tu vê que se existia coisa [...]54

Von Simson (2007) também observou diversas rixas entre entidades


carnavalescas negras de São Paulo. Para a autora, havia algumas
características que influenciavam tais desavenças entre blocos e/ou cordões,
como é o caso de entidades que possuíam as mesmas cores; rixas também
advinham de diferenças socioeconômicas; outro fator poderia ser quando
entidades provinham de diferentes redutos negros da cidade e também quando
um antigo presidente fundava outra associação (VON SIMSON, 2007, p. 120-
121). Sr. Luís Barbosa, relembrando antigas entidades carnavalescas negras de
Bagé, também apontou para rixas de grupos de diferentes redutos da cidade,
como era o caso dos Garotos da Batucada e da Turma da Alegria. A primeira
localizava-se na Rua Maurity (Baixada), e a segunda ficava no Alto da Santa
Casa. Segundo Sr. Luís, “naquela época, nego do Alto não se dava com nego
da Baixada, e até em futebol era briga”55. Sendo assim, no período do carnaval
a rivalidade entre os diferentes bairros vinha à tona e em alguns casos seus
membros chegavam a ir “para as vias de fato”.
No ano de 1935 o Respinga era dirigido pelo Sr. Casemiro Rodrigues da
Silva, tio do Sr. Luís Barbosa, tendo como vice-presidente o Sr. Coraldino
Nogueira (A Tesoura, 19/10/1935, p. 4). Ao que tudo indica, Casemiro Rodrigues
se manteve na direção do Rancho nos anos seguintes, pois no ano de 1941
ainda encontramos seu nome da presidência da entidade.
Quando apareciam notícias desse rancho vinculadas no jornal Correio do
Sul, os redatores faziam questão de lembrar que esta era uma das entidades
carnavalescas mais antigas da cidade, como mostram os dois exemplos abaixo:
RANCHO C. RESPINGA – Os mais antigos da cidade, o
glorioso Rancho Respinga, está de baile amanhã, em sua sede,
na rua Gal. João Telles. O Casimiro, que é “o tal” o grande folião
“maioral”, nos afirmou ontem, que o baile de amanhã vai ser
mesmo do “balacobaco”, baile de “arrepiá a macacada”, as

54
Entrevista do Sr. Luís Barbosa da Silva concedida ao autor, no dia 18/03/2017.
55
Entrevista do Sr. Luís Barbosa da Silva concedida ao autor, no dia 18/03/2017.
103

danças serão animadas pelo Jazz Fontoura (...) (Correio do Sul,


15/02/1941) (grifos do autor).

RANCHO C. RESPINGA – O velho e sempre triunfante


“Rancho C. Respinga”, esteve este ano em plena forma.
Apresentou-se com mais de 40 componentes, originalmente
fantasiados e desfilaram com garbo, entoando sua marcha de
“guerra” na Avenida 7. Dessa forma, o mais extraordinário
sucesso. O antigo cordão brilhou mais uma vez (Correio do Sul,
27/02/1941, p. 6) (grifos do autor).

Assim como o Rancho Vamos de Qualquer Geito, o Rancho Respinga,


segundo depoimento do Sr. Luís Barbosa, se caracterizava por apresentar
fantasias luxuosas, músicos bons e muita organização. Ao relembrar dessas
entidades, Sr. Luís afirma que essas eram do tempo do seu pai, e que quando
criança ele sempre ouvia falar. Essa ligação familiar também deve ser levada em
conta, principalmente pelo fato do tio de Luís ser uma das figuras mais
importantes do Respinga. Nesse sentido, quando jovem, Luís experienciou o
carnaval negro bem de perto, ou melhor dizendo, de dentro de sua própria casa.

3.4. Cordão Carnavalesco Adeantados


Outro bloco colocado pelo Sr. Luís Barbosa como sendo “muito forte” na
época de seu pai, era o Adeantados. No ano de 1928 este bloco era dirigido por
Cherubim Bittencourt, sujeito negro que possuía uma alfaiataria no centro da
cidade de Bagé. Além de fundar o Rancho Carnavalesco Adeantados, ele
também fundou o Bloco Carnavalesco Malandros e foi membro do Sport Clube
América, importante time de futebol amador da cidade (O 28 de Setembro,
23/10/1938, p. 5).
Essa entidade possuía uma sede na Rua Almirante Gonçalves, região
localizada no centro da cidade de Bagé e que fica bem próxima a praça da
Catedral de São Sebastião.56 Para além de se fazer presente nos períodos
carnavalescos, o Adeantados também realizava atividades no decorrer do ano,
como fica evidente na nota publicada no jornal O Boato no ano de 1929:
C. C. Adeantados – Domingo p. p. em sua vasta caverna, sita a
rua Almirante Gonçalves, a galharda mocidade, que o bloco o
bloco carnavalesco “Os Adeantados”, levaram a efeito mais um
animado “sarau” dançante, que revestiu-se de um brilho

56 Sobre a localização dessa entidade no mapa de Bagé, ver Anexo.


104

encantador e atraente, achando-se presente elevado número de


torcedoras do mesmo (O Boato, 01/05/1929, p. 3).

Além da realização de festas em sua “caverna” e da atuação no carnaval,


ao que tudo indica, o Adeantados também marcava presença em comemorações
do calendário cívico, como mostra a nota publicada no mesmo jornal mencionado
anteriormente:
C.C. Adeantados – Em comemoração a grande data de 15 de
novembro, a galharda mocidade que fazem parte no C. C.
Adeantados fizeram uma passeata pelas ruas principais, onde
foram muito aplaudidos. Os Adeantados depois de
cumprimentarem as redações locais, ao som de sua bem afinada
orquestra, cantando sua marcha triunfante desfilaram em
direção para o salão da S. U. Operária, onde os mesmos estão
realizando uma serie de chás-dançantes, ao chegarem foram
saudados pela numera a repleta assistência prosseguindo-se
em seguida o chá-dançante que prolongou-se até altas horas da
madrugada. Felicitamos Os Adeantados e fazemos votos para
que com o mesmo entusiasmo atual prossigam seus trabalhos
para o próximo carnaval (O Boato, 16/11/1929, p. 2).

Marcar presença em comemorações do calendário cívico trazia


visibilidade às entidades carnavalescas negras, pois além de, em alguns casos,
serem anunciadas em jornais, acabava por mostrar toda uma organização, uma
disciplina e um engajamento que extrapolava os períodos do reinado de Momo.
Assim, ao desfilar pelas principais artérias da cidade de Bagé e visitar redações
de jornais locais, o cordão Adeantados acabava positivando sua imagem
publicamente e ganhando ainda mais força para a chegada do carnaval.
A importância dessas três entidades (Vamos de Qualquer Geito; Respinga
e Adeantados) não só é reforçada pelo Sr. Luís Barbosa, que cresceu em meio
a elas, como também pelos redatores do jornal Correio do Sul, como mostra a
notícia abaixo:
O CARNAVAL VEM AHÍ – E O CARNAVAL POPULAR? Será
que não o teremos este ano? Vamos esperar que se manifeste
os diretores dos ADEANTADOS, VAMOS DE QUALQUER
GEITO, RESPINGA, BAHIANAS e outros cordões e ranchos.
Não acreditamos que essa gente “bamba” tenha ido pro mato.
Tenha desaparecido como nas fitas. Esperamos algo para
domingo. Já é tempo de enfezar. O povo está esperando as
tradicionais passeatas, e pronto a concorrer para a sacola
(Correio do Sul, 18/01/1938, p. 6).

O ano era 1938, e os redatores do jornal Correio do Sul estavam atentos


esperando um parecer dos diretores dos blocos e cordões carnavalescos
populares, pois o carnaval se aproximava e estas entidades, que ao que tudo
105

indica davam a tônica do carnaval de rua de Bagé, ainda não haviam dado as
caras com seus ensaios e movimentos burlescos.
Esse fato nos chama atenção, principalmente por também ocorrer na
cidade de Pelotas e em Porto Alegre. Gill e Loner (2009) pesquisando alguns
clubes carnavalescos negros da cidade de Pelotas, apontaram que com a
configuração do Estado Novo, houve uma mudança nas regras de desfiles
populares na cidade. Assim, para desfiles nas ruas, como também para simples
reuniões associativas e recreativas, as entidades deveriam conseguir uma
permissão da polícia (GILL; LONER, 2009, p. 156). As despesas também
aumentaram nesse período, fazendo com que na cidade de Pelotas, no ano de
1937, cinco cordões negros não desfilassem, pois alegaram que não possuíam
verbas o suficiente para tal empreitada, julgando ser muito baixo o auxílio dado
pelo legislativo local.
Estudando o carnaval de Porto Alegre entre os anos de 1930 e 1940, Rosa
(2008) também observou que nos anos finais da década de 1930 o carnaval
porto-alegrense estava em declínio. Segundo o autor, com a instauração do
regime do Estado Novo, no ano de 1937, as relações entre os poderes públicos
com a imprensa sofreram alterações. Nos primeiros anos do novo regime, o
poder público não incentivou o carnaval, fazendo com que diversas entidades
enviassem cartas ao então prefeito de Porto Alegre, Loureiro da Silva, pedindo
auxílios.
Na cidade de Bagé o mesmo ocorreu no ano de 1938. As entidades
carnavalescas negras não deram o ar de seus desfiles nas ruas naquele ano,
alegando que eram “pesados emolumentos a que estão sujeitos, muito acima de
suas possibilidades” (Correio do Sul, 23/02/1938, p. 4).
A nota do Correio do Sul transcrita acima chama atenção para um detalhe
muito importante: a “súplica” dos redatores do jornal no que diz respeito às
entidades carnavalescas populares, deixando nítido a ideia de que sem aquela
“gente bamba” a festa do carnaval seria um fracasso.
As décadas de 1930 e 1940 foram muito significativas do ponto de vista
das apropriações do estado no que diz respeito aos festejos populares. Como
bem pontuou Velosso (2003), o governo Vargas se empenhou em utilizar a festa
do carnaval, por exemplo, como um canal de difusão de seu governo. Tal
situação se fez necessária, pois foi nesse contexto que o Estado brasileiro
106

buscou criar uma ideia de identidade nacional brasileira. A partir de vários


mecanismos, sobretudo com o auxílio de intelectuais e da imprensa, o governo
Vargas buscou forjar aquilo que representaria o verdadeiro “nacional”, o
sentimento de brasilidade. Evidentemente que essa tentativa de se criar uma
ideia de identidade nacional não surgiu de forma “natural”, e sim foi um processo
que envolveu vários agentes e permeado de conflitos.
Não só o carnaval foi alvo dessa iniciativa do Estado. Assim como
diversos festejos populares (muitos tidos como retrógados, primitivos e
vulgares), o índio e o negro também foram incorporados à essa ideia, fazendo
com que diversos intelectuais da época produzissem a respeito das
contribuições desses grupos, tendo como uma das expressões máximas os
estudos de Gilberto Freyre, sobretudo sua obra Casa Grande & Senzala.
No que diz respeito à música popular, Velosso (2003, p. 166) afirma que
“sambas e marchas carnavalescas sofrem modificação radical, a ponto de serem
apontados como dignos de compor uma antologia cívica”. Para além da música,
o cinema, o teatro e outras manifestações culturais vão sofrer alterações na
tentativa de serem incorporadas ao Estado.
Como já foi mencionado anteriormente, todo esse esforço do governo
Vargas teria sido em vão se não fosse a ajuda dos homens da imprensa. Assim
como os estudos de Germano (1999) e Rosa (2008) observaram para a cidade
de Porto Alegre, na pequena cidade de Bagé também podemos notar a
articulação da imprensa com os poderes públicos a respeito dos festejos
carnavalescos. Não é à toa que a nota do Correio do Sul “clama” pelas entidades
carnavalescas populares, no qual se enquadram o Vamos de Qualquer Geito,
Respinga, Adeantados e Bahianas, pois foi nesse período que o carnaval ganhou
o status da festa que sintetizava o povo brasileiro, e os grupos carnavalescos,
sobretudo os compostos por sujeitos negros, seriam os maiores responsáveis
por ela.
Mesmo que com as dificuldades impostas pela ditadura do Estado Novo,
principalmente nos seus anos iniciais – o que afetou também o carnaval - a partir
da década de 1940, o desfile de entidades carnavalescas negras em Bagé ganha
fôlego, aparecendo novos blocos e cordões que vão se destacar no cenário do
carnaval de rua da cidade. Nesse contexto, o jornal Correio do Sul deu mais
ênfase ao período carnavalesco, passando, juntamente com comerciantes
107

locais, a organizar diversos concursos no qual as entidades carnavalescas


negras ganhavam destaque ao serem, na maioria das vezes, as vencedoras.
Nesse período, o referido jornal também criou uma coluna através da qual
entrevistava algumas entidades carnavalescas que julgava serem referência no
carnaval de Bagé. Dentre as entidades que obtiveram destaque aparecem o
Piratas do Amor e Bloco Carnavalesco Garotos da Batucada.

3.5. Piratas do Amor


Surgido no ano de 1937, o Bloco Piratas do Amor logo nos seus primeiros
anos de atividade obteve reconhecimento por parte da comunidade
carnavalesca bageense. Segundo as memórias de Sr. Luís Barbosa e do Sr.
Vilmar Paiva dos Santos, o Piratas do Amor surge de uma iniciativa de sujeitos
negros que, em sua grande maioria, eram funcionários do DAER (Departamento
Autônomo de Estrada de Rodagem) na cidade de Bagé.
No seu quarto ano de atividades o bloco acabou obtendo o segundo lugar
num concurso organizado pela Casa Lyra, ocasião em que ganhou uma taça de
prata oferecida pela organização do concurso (Correio do Sul, 27/02/1941, p. 4).
No ano de 1942 o bloco era constituído pela seguinte diretoria: Presidente:
Romeu Machado; Vice-presidente: Guilherme da Rosa; Secretário: Ney Gomes;
Tesoureiro: Norival Pereira; Diretor de canto: Pedro Rosa (Correio do Sul,
18/01/1942, p. 5). Os ensaios do Piratas eram realizados em frente à sede da
Sociedade Liga Operária, na rua Monsenhor Constabile Hipólito, no centro de
Bagé. Ao passo que a entidade foi se destacando no carnaval de rua de Bagé,
foi ganhando cada vez mais adeptos e começou a realizar bailes e diversas
festas na sede da Liga.
Ao mesmo tempo que em utilizavam os salões da Liga Operária, os
membros do Piratas também circulavam em outros espaços, como é o caso de
um anúncio publicado no Correio do Sul, como mostra a imagem abaixo:
108

Imagem 5: Churrasco e baile organizado pelo Bloco Piratas do Amor (Correio


do Sul, 25/01/1942, p. 5).

Diferente das outras entidades negras até então encontradas nas fontes
pesquisadas, o bloco Piratas do Amor ocupava outros espaços, como é o caso
do churrasco e baile realizado nas dependências da sociedade Italiana de Bagé
no ano de 1942. Ocupar os salões da sociedade italiana57, essa que surgiu no
ano de 1871, denotava que os membros do referido bloco possuíam uma
articulação que extrapolava o próprio segmento negro da cidade. Pode-se atrelar
a isso os próprios cargos ocupados pelos sujeitos do bloco, pois como já foi
mencionado, a grande maioria eram funcionários públicos. Ter um cargo mais
estável poderia dar a possibilidade desses sujeitos negros circularem em outros
espaços e forjarem relações com setores mais elitizados da cidade.

57 A fundação da sociedade Italiana veio na esteira da fundação de outras sociedades


pertencentes à imigrantes europeus fixados em Bagé, como é o caso da Sociedade Espanhola,
fundada no ano de 1868 e a Sociedade Beneficência Portuguesa, que foi fundada em 1871.
(LEMIESZEK, 2000, p. 76).
109

Ainda com relação à nota publicada na imprensa sobre o churrasco e o


baile realizado pelos Piratas do Amor, chama a atenção um detalhe presente no
final da nota, referindo-se à Meireles, o “folião número Um da cidade”. A partir
da década de 1940, como já foi mencionado anteriormente, o jornal Correio do
Sul passou a dar uma maior visibilidade ao período carnavalesco, sobretudo às
entidades “populares”, da qual se enquadram em grande parte as entidades
negras aqui citadas. Com isso, no período do reinado de Momo, o jornal abria
uma coluna no qual Meireles – o folião número um – relatava toda a
movimentação do carnaval na cidade. Ele era o responsável por toda a cobertura
do carnaval de rua e de salão de Bagé, e também passou a realizar entrevistas
com algumas das principais lideranças dos blocos e cordões carnavalescos
locais, no qual entidades negras ganhavam destaque. Numa dessas entrevistas,
Meireles conversou com uma liderança do Piratas do Amor.
Na entrevista58 realizada em 1949 com Romeu Machado, popularmente
conhecido pela alcunha de “Risoleta”, podemos perceber a importância conferida
por Meireles ao Piratas do Amor e também observar como era composto a
direção da entidade. Na presidência estava Aristides Gomes; o vice era Omar
Silveira; na secretaria estava Ladislau Fagundes; tesoureiro Vitor Dias e o diretor
artístico era Romeu Machado, o “Risoleta”.
Conhecido por ser o dono do King Kong59, alegoria que era carregada por
“Risoleta”, O Piratas do Amor caracterizava-se por ser um bloco organizado e
que não media despesas, como menciona o entrevistado, para os desfiles do
carnaval bageense. Na entrevista publicada no Correio do Sul, Meireles afirma
que a turma do Piratas “vem sempre pra frente, porque a ‘vanguarda’ é o lugar
dos heróis” (Correio do Sul, 19/01/1949, p. 4). Fica evidente, na entrevista
realizada por Meireles, que o Piratas do Amor era um bloco de destaque no
carnaval de rua de Bagé, sobretudo por sua organização frente às demais
entidades carnavalescas negras locais.

58Correio do Sul, 06/02/1973, p. 6.


59 Fundado na comunidade do Altos da Santa Casa, no centro de Bagé, o bloco King Kong se
juntou aos Piratas do Amor e assim passou a realizar festas burlescas na sede da Liga Operária
de Bagé. O bloco ficou conhecido por ter uma alegoria de tamanho real de um King Kong, que
era carregado por “Risoleta”. Sobre outras entidades carnavalescas gestadas no Altos da Santa
Casa. (SILVA, 2016).
110

Imagem 6: Romeu Machado, o “Risoleta”, em entrevista à imprensa de Bagé já


na década de 1970. (Correio do Sul, 1973).

Em entrevista realizada com o Sr. Vilmar Paiva dos Santos, o mesmo


afirma que na sua mocidade o bloco de maior destaque era o Piratas do Amor.
O depoente, que forjou a sua infância no seio de diversas entidades
carnavalescas de Bagé afirma que com o sucesso obtido no carnaval, o Piratas
do Amor, nos anos finais da década de 1950 se transformou em uma Escola de
Samba, que durou mais ou menos uns quatro anos. Nessa época, segundo Sr.
Vilmar, uma das características do Piratas era a realização de “assaltos”
carnavalescos a residências de sujeitos simpatizantes com a entidade. Na
definição de “assalto”. Sr. Vilmar diz que consiste em uma visita programada ou
não a determinadas casas, no qual a entidade era recepcionada com muita festa,
comida e bebida:
[...] domingo, duas horas da tarde, nós botávamos a escola na
rua e a primeira casa que nós íamos era ali (cabaré da Ana
Gusmão), era festa, mas festa! Naquele tempo começava com
churrasco, depois vinham os frios, doces de confeitaria [...]
bebida a reveria! Então chamava-se aquilo de “assalto.60

60 Entrevista do Sr. Vilmar Paiva dos Santos concedida ao autor, no dia 10/05/2016.
111

O Piratas do Amor também esteve à frente da organização de concursos


de blocos carnavalescos, como foi o caso de um que ocorreu no ano de 1953 e
que foi realizado na rua Dr. Penna, em frente à Rádio Cultura de Bagé, no centro
da cidade. Na ocasião, o primeiro lugar seria do bloco que apresentasse o melhor
conjunto; o segundo lugar seria ao bloco de melhor fantasia; o terceiro ao bloco
de melhor instrumental e o quarto ao bloco que apresentasse a melhor baliza
(Correio do Sul, 22/02/1953, p. 4).
Juntamente com o Piratas do Amor, outra entidade carnavalesca negra
que ganhou destaque no carnaval de rua de Bagé foi o Bloco Carnavalesco
Garotos da Batucada, como veremos a seguir.

3.6. Garotos da Batucada


Fundado no ano de 1946, o Garotos da Batucada surgiu de uma
dissidência de um outro bloco, o Bambas da Cidade. Segundo o Sr. Luís, no
carnaval do ano de 1946, na dispersão do desfile do Bambas na Praça dos
Desportos, houve uma briga envolvendo alguns sujeitos que pertenciam ao
referido bloco, fazendo com que muitos abandonassem a entidade. No outro ano,
essa ala dissidente fundou o Garotos da Batucada.61
Uma das principais lideranças do Garotos da Batucada nos seus primeiros
anos foi Evilásio Pereira, que além de ser o fundador e presidente do bloco, era
também o mestre de bateria/harmonia. No boletim do departamento cultural do
Clube Palmeiras, no ano de 1951, encontramos uma reportagem especial com
traços biográficos de Evilásio Pereira.
Conhecido pelos seus como general do ritmo, Evilásio nasceu em Bagé
no dia 20 de setembro de 1920. Segundo a nota do boletim, ele descendia dos
chamados negros mina, trazendo “no sangue a nostalgia da raça e a inclinação
natural pela música” (Boletim do Departamento Cultural Casemiro de Abreu,
Clube Palmeiras, 12/01/1951, p. 4).
Com dezessete anos ele ingressou no Jazz Harmonia, grupo da cidade
de Bagé no qual ele tocava pandeiro. Depois de dissolvido o grupo, Evilásio foi
convidado a acompanhar um pianista, começando, assim, a tocar bateria. Daí

61 Entrevista do Sr. Luís Barbosa da Silva concedida ao autor, no dia 18/03/2017.


112

por diante o baterista viajou por diversos Estados brasileiros acompanhando


músicos e fazendo parte de algumas companhias. Evilásio veio a falecer no ano
de 1955 na cidade de São Gabriel, ocasião em que uma nota foi publicada no
Correio do Sul.
Descrito como “um gênio da música popular”, a nota escrita por Paulo
Correia Martins ressalta a importância de Evilásio para o carnaval da cidade de
Bagé, ressaltando também suas grandes habilidades como baterista autodidata
e, principalmente, sua grande qualidade de líder do Garotos da Batucada, “do
qual era Mestre que injetava o veneno típico do samba brasileiro” (Correio do
Sul, 26/02/1955, p. 6).

Imagem 7: Garotos da Batucada, 1951. Obs: Evilásio Pereira é o quinto da


direita para a esquerda, em pé e sem a fantasia do bloco). (Acervo de Luís
Barbosa da Silva).
113

Com Evilásio na linha de frente, o Bloco Garotos da Batucada conseguiu


se projetar no carnaval de rua de Bagé, vindo a ser um dos principais blocos
carnavalescos da cidade. Seus desfiles eram organizados de forma rígida pelo
seu presidente e demais diretores, havendo, inclusive, testes de música para
quem quisesse entrar no bloco. Sr. Luís Barbosa afirma que de tão organizado
que o bloco era, não era qualquer um que poderia ingressar na entidade, e sim
os melhores percussionistas da cidade. O depoente ainda afirma que no pátio
da sede do bloco era armada a bateria e quem desejasse ingressar na entidade
deveria marchar, cujo objetivo era ver se o sujeito tinha disciplina. Havia duas
“cozinhas”62, uma que saía à tarde e a que desfilava de noite, havendo, com isso,
uma separação entre os percussionistas entre os mais novos e os mais
experientes. Esses últimos seriam os responsáveis por participar dos concursos
realizados por setores do comercio e imprensa local.
Tais concursos eram realizados em frente ao jornal Correio do Sul, bem
como em espaços privados como o cinema Glória e Coliseu e também defronte
à Rádio Difusora de Bagé. Sr. Luís afirma que ao passo que cada entidade
desfilava, o público aplaudia e era a intensidade dos aplausos que indicava o
bloco vencedor. Além desses concursos que eram realizados nas ruas, havia o
concurso de bloco de maior popularidade realizado pelo jornal Correio do Sul em
parceria com a Rádio Cultura e comerciantes da cidade.
O concurso era destinado a apurar qual a entidade carnavalesca popular
era considerada a mais simpática do carnaval de rua de Bagé. Para votar, a
pessoa interessada teria que comprar o jornal Correio do Sul, preencher a ficha
de votação, recortar e depositar numa urna que ficava na redação do jornal.
Chegado o final da semana, os redatores do jornal apuravam as urnas e
indicavam quem era o ganhador daquela semana. Ao final do concurso, as
entidades vencedoras, além de ganharem uma quantia em dinheiro que era
oferecida por setores do comércio local, também tinham fotos e a composição
de suas diretorias publicadas no jornal, numa edição especial de carnaval.

62Termo que se refere a bateria do bloco, popularmente utilizada por pessoas ligadas ao
carnaval de Bagé.
114

Imagem 8: Bloco Garotos da Batucada campeões de popularidade do


concurso Correio do Sul em 1949 (Correio do Sul, 27/02/1949, p. 7).

Como mostra a imagem acima, além de dar um “click” nos integrantes do


bloco, o jornal também descrevia a direção do mesmo, dando, com isso,
visibilidade à essas entidades negras e seus sujeitos. Ao ocupar uma página
inteira do jornal mais lido da cidade, os blocos carnavalescos negros acabavam
por obterem reconhecimento público e prestígio no seio de uma sociedade muito
preconceituosa.
Relembrando alguns desfiles, Sr. Luís afirma que os Garotos buscavam
se destacar dos demais blocos, principalmente com relação às suas fantasias.
Assim, houve desfiles em que saíram de mosqueiros, de gaúchos, de romanos
e de príncipe. No período em que fez parte do bloco, Sr. Luís recorda que as
fantasias eram custeadas por cada integrante do bloco e que, geralmente, a
confecção ficava a cargo de uma senhora cuja residência ficava próxima à sede
da entidade, na Rua Maurity63.
Com relação ao apoio da prefeitura de Bagé com os festejos
carnavalescos, esse se deu a partir da década de 1950, pois até então quem

63 Sobre a localização da sede da entidade no mapa de Bagé, ver Anexo.


115

ajudava com os gastos das entidades eram setores do comércio local e pessoas
interessadas, principalmente através da utilização dos chamados “livros de
ouro”.
No que diz respeito aos desfiles, Sr. Luís relembra que naquela época as
entidades começavam a desfilar na Praça dos Desportos e iam até a Praça da
Matriz, onde se localiza a Igreja Matriz de São Sebastiao. Logo depois eles
retornavam e faziam o mesmo trajeto novamente. Muitas vezes depois de
findado o desfile nas ruas, os blocos também faziam incursões em clubes sociais
locais, como, por exemplo, para os salões dos clubes Zíngaros, Piratas do Amor
e do Clube Recreativo Palmeiras.
116

Imagem 9: Celso José Muniz. Garotos da Batucada, 1949. Fantasia de


Príncipe. (Acervo de Cleber Muniz Fernandes)

Na imagem acima podemos notar o quanto que o Bloco Garotos da


Batucada investia em suas fantasias, buscando se distinguir dos demais blocos.
Essa distinção também vinha através dos seus sambas e marchas de carnaval.
Para isso, Sr. Luís afirma que naquela época Evilásio comprava a revista da
Rádio Nacional e copiava as marchas e ritmos de samba mais tocados naquela
rádio. Como exemplo disso, o depoente afirma que foi muito sucesso a ocasião
em que o bloco desfilou tocando a canção Aquarela do Brasil, de Ary Barroso.
Como já foi mencionado anteriormente, as décadas de 1930 e 1940
presenciaram a construção de diversos símbolos de brasilidade, dentre os quais
o carnaval foi colocado nesse bojo. Nessa perspectiva, muitas entidades
carnavalescas populares propagavam esse ideal em seus desfiles, ideal esse
tão reproduzido por intelectuais e setores da imprensa. Ao desfilarem tocando
Aquarela do Brasil, os Garotos da Batucada acabaram por entoar um “hino”
associado à construção da identidade nacional. Mesmo assim, sempre é
importante lembrar que os setores populares fizeram diversos usos do carnaval,
e estes usos nem sempre correspondiam a esse sentimento nacionalizante
(ROSA, 2008).
Principalmente através de muito luxo, organização e disciplina, os Garotos
da Batucada conquistaram muitas glórias no carnaval de rua de Bagé, ganhando
diversos prêmios e concursos.
A partir da década de 1950, haverá uma certa mudança na estrutura da
organização do carnaval de rua de Bagé, momento no qual o poder municipal irá
encabeçar a organização de concursos e oficializar os festejos de rua, passando
a contribuir com entidades carnavalescas, o que até então era tarefa das próprias
entidades e de setores do comercio simpatizantes com a folia.
A primeira referência à ajuda do poder municipal de Bagé para com as
entidades foi encontrada no ano de 1953, através de uma nota publicada no
Correio do Povo, no qual dizia que o então prefeito João Batista Fico, dentro das
possibilidades da prefeitura, prometeu ajudar os blocos e cordões carnavalescos
da cidade, pois esses eram os “animadores de nossos festejos momescos”
117

(Correio do Sul, 29/01/1953, p. 5). Mesmo assim, na maioria das vezes a verba
era curta e as entidades criavam outras estratégias para angariar fundos para o
período do carnaval, como é o caso dos já mencionados festivais e bailes
durante o ano.
Em 1953 a prefeitura se comprometeu em ajudar as entidades
carnavalescas locais, porém, o envolvimento do legislativo local para com o
carnaval é a partir de 1950, onde juntamente com setores da imprensa como a
Rádio Cultura e o jornal Correio do Sul, passam a serem os organizadores
“oficiais” do carnaval de rua de Bagé, responsáveis por montar a programação
dos dias destinados à Momo. Como exemplo, no carnaval de 1950 a
programação consistia em um desfile dos blocos inscritos a parir das 22 horas,
para em seguida desfilarem as rainhas do carnaval dos clubes sociais locais e
os vencedores do concurso realizado pela imprensa (Correio do Sul, 19/02/1950,
p. 5).
Ao mesmo tempo em que a prefeitura e setores da imprensa passaram a
ser os responsáveis pelo carnaval “oficial” de Bagé, nota-se que a delegacia da
cidade começou a fechar mais o cerco nos dias destinados ao carnaval.
Restrições a passeatas depois da meia noite, bem como ao uso de fantasias
“indecorosas” e a coleta de dinheiro passaram a serem proibidos pela delegacia
de polícia local. Para realizarem seus desfiles, as entidades teriam que estar com
a autorização em dia com o departamento de polícia da cidade. Ou seja, ao
mesmo tempo em que o poder municipal passa a organizar os festejos
carnavalescos na cidade, o mesmo acaba por buscar disciplinar os blocos,
colocando restrições aos desfiles. Se antes os integrantes de entidades
carnavalescas podiam varar a noite se divertindo nas ruas da cidade, a partir de
agora isso era proibido. Se outrora a prática da coleta de dinheiro através da
utilização de “livros de ouro” era legalizada – como bem pontuou o entrevistado
Luís Barbosa – agora estava proibida mediante condução à delegacia de polícia.
Talvez, consista aí, uma das causas do desaparecimento gradual de muitas
entidades carnavalescas negras de Bagé, como é o caso do cordão Respinga,
Adeantados, Vamos de Qualquer Geito entre outros.
Muitas entidades carnavalescas acabaram se ajustando às normas e
restrições impostas pelo delegado de polícia da cidade, como foi o caso do
Garotos da Batucada, que sobreviveu até meados dos anos 1960. A partir dos
118

anos finais da década de 1950 e início 1960, começaram a surgir as escolas de


samba, momento em que muitos blocos e cordões negros foram dissolvidos.
Essa característica também pode ser observada em outras regiões do estado,
como é o caso de Pelotas (LONER; GILL, 2009) e Porto Alegre (GERMANO,
1999).
Nos anos seguintes, a prefeitura de Bagé seguiu na organização dos
festejos carnavalescos com ampla cobertura da imprensa, seja através do jornal
Correio do Sul, bem como através de rádios como a Rádio Cultura e a Rádio
Difusora.
Principalmente a partir dos anos finais da década de 1940, ganhou fôlego
a organização de negros e negras em torno dos Clubes Sociais, principalmente
através da realização de bailes temáticos, saraus, quermesses e também a
realização de bailes de carnaval em suas sedes sociais. Clubes como a
Sociedade Recreativa Palmeiras e a Sociedade Recreativa Os Zíngaros vão ser
os responsáveis por proporcionar lazer, descontração e também lutas políticas
à comunidade negra de Bagé.
119

CAPÍTULO 4

“(...) BEM SABEMOS QUE SOMOS NEGROS, MAS, EU CONSIDERO ISTO


AQUI IGUAL OU MELHOR DO QUE O CLUB COMMERCIAL OU
CAIXEIRAL”64: ORGANIZAÇÃO NEGRA ATRAVÉS DOS CLUBES SOCIAIS
EM BAGÉ

Como ficou evidente no capítulo anterior, sujeitos negros buscaram,


também através dos festejos de Momo, se projetar na cidade de Bagé ao
colocarem seus blocos, ranchos e cordões nas ruas no período carnavalesco.
Para além de entidades que tinham vida apenas no período do carnaval,
buscamos mostrar que muitos blocos negros da cidade mantinham uma vida
ativa durante o restante do ano, no qual organizavam festas e angariavam fundos
para poder “brilhar” nas ruas de Bagé nos dias destinados a Momo. Também, é
importante destacar que para além de meros grupos carnavalescos, tais
entidades estavam ocupando o espaço público das ruas de Bagé e forjando
identidades, ao passo que pessoas não negras não tinham acesso às mesmas.
A grande maioria desses sujeitos negros que estavam dentro das
entidades carnavalescas também se encontravam nos clubes sociais de negros
da cidade, como é o caso do Clube Recreativo Palmeira e da Sociedade
Recreativa Os Zíngaros. Assim como os grupos carnavalescos, os clubes
recreativos também eram espaços de valorização da raça, lugares onde a
comunidade negra poderia socializar entre os seus e construir projetos para
ascensão do grupo, ou seja, os clubes também era espaços de lutas políticas
(SILVA, 2017).
Nesse capítulo, iremos observar de perto a atuação de dois Clubes
Sociais Negros de Bagé, que foram responsáveis por proporcionar recreação e
luta dos sujeitos imersos nesses espaços, sendo eles o Clube Recreativo
Palmeira e a Sociedade Recreativa Os Zíngaros.

64 (Lampeão, 1934, p. 1).


120

Para o presente capítulo iremos utilizar como fonte as memórias de


pessoas que forjaram suas experiências nos clubes em questão, sendo: o Sr.
Ivoncléo Monteiro, Sr. Vilmar Paiva dos Santos, a Sr. Ieda Lisboa e a Sra. Zoila
da Silva.
Pensaremos a memória enquanto processo de rememoração do passado
a partir das experiências vividas no presente (WEIMER, 2015, p. 38). Esse
processo se dá a partir de escolhas do sujeito entrevistado e está dentro de um
contexto social, ou seja, mesmo que o ato de lembrar seja algo individual, as
memórias do sujeito são construídas dentro de grupos sociais. Candau (2012, p.
9) afirma que “[...] a memória é, acima de tudo, uma reconstrução continuamente
atualizada do passado, mais do que uma reconstituição fiel do mesmo”. É
importante destacar que ao rememorar, o indivíduo faz escolhas, ele acaba
enquadrando os conteúdos que julga serem os mais pertinentes. Nesse sentido,
o ato de rememorar é também uma estratégia que é usada de acordo com os
interesses de cada sujeito.
Halbwachs (1990) deu uma importante contribuição para os estudos da
memória ao atribuir seu caráter coletivo, ou seja, de pensar a memória enquanto
prática coletiva e não individualizada. Também pensando no caráter
coletivo/social da memória, Pollak (1989) levanta a questão da existência de
memórias subterrâneas, que são as memórias que são guardadas pelos
indivíduos, mas não são esquecidas, e que segundo o autor, afloram em
momentos de crise. O autor enfatiza a importância de se pensar no caráter
coletivo da memória, mas, além disso, pensar e problematizar o campo de
negociação que há entre as memórias individuais e coletivas. Nesse sentido, as
narrativas de mulheres também podem ser interessantes do ponto de vista
destas disputas de memórias, principalmente pensando no caráter
conservador/masculinizado do clube, no qual as equipes diretivas eram
compostas majoritariamente por homens. Assim, as memórias de mulheres que
ocupavam o espaço do clube podem revelar vários aspectos para pensarmos na
agência destas, que, mesmo excluídas muitas vezes dos espaços decisórios,
121

eram em muitos casos as principais responsáveis pela manutenção dos clubes


negros65.
Inicialmente, iremos fazer um pequeno balanço bibliográfico sobre os
estudos acerca do associativismo negro em terras gaúchas, valorizando as
pesquisas que vem mostrando o potencial associativo de negros e negras e as
suas experiências em torno dos clubes sociais. Em seguida, partiremos para a
análise do Clube Palmeiras e do Clube Os Zíngaros, objetivando perceber quais
foram as estratégias desses espaços negros de Bagé no Pós-abolição.

4.1. Associativismo negro em terras gaúchas


Vem crescendo o número de pesquisas que buscam observar a
experiência associativa de negros e negras tanto no Rio Grande do Sul como
também no restante do país. Porém, é importante ressaltar aqui a grande
contribuição, no ano de 2006, do 1º Encontro Nacional de Clubes e Sociedades
Negras, realizado na cidade de Santa Maria, região central do Estado do Rio
Grande do Sul. Como aponta Escobar (2010, p. 29), a partir da realização desse
encontro, foram tiradas propostas, cujo objetivo era “gerar uma pauta nacional
para o poder público e os clubes”. Para além de dar visibilidade aos milhares de
clubes negros espalhados pelo país e que aos poucos iam perdendo seus
espaços físicos devido, sobretudo às dívidas, esse encontro tinha como objetivo
pressionar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para
que reconhecesse tais espaços como Patrimônio Cultural do Brasil.
Nesse sentido, importantes conquistas foram obtidas através da luta
incessante de negros e negras pela valorização desses espaços de memória,
lutas e resistências negras.66 O legado da luta advinda desse encontro fortaleceu

65 Alguns trabalhos recentes vêm dando conta de mostrar o agenciamento de mulheres dentro
dos espaços dos clubes negros. Nessa perspectiva, ver: LOPES, Taiane Naressi. Protagonismo
feminino entre regras e padrões: uma história das mulheres negras do Clube Social 24 de
Agosto. Jaguarão: Universidade Federal do Pampa, 2015 (Monografia de conclusão de curso em
Licenciatura em História). GOMES. Fabrício, Romani. Sob a proteção da Princesa e São
Benedito: Identidade étnica, associativismo e projetos num clube negro em Caxias do Sul (1934
– 1988). 2008 Unisinos. (Dissertação de Mestrado em História).
66 Como exemplo, no ano de 2012 o Clube Social 24 de Agosto, localizado na cidade fronteiriça

de Jaguarão, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio
Grande do Sul (IPHAE), como bem cultural do Estado, através da luta dos seus dirigentes e
comunidade externa, que realizou diversos atos a fim de patrimonializar o clube. Sobre a portaria
do IPHAE, Ver:
122

o estímulo a pesquisadores para que voltassem seus olhares para os clubes


negros espalhados pelo Brasil e que ainda careciam de análises e estudos mais
específicos.
No que diz respeito à historiografia sobre o associativismo negro no Rio
Grande do Sul, essa vem demonstrando que os negros constituíram espaços
para a vivência entre os seus mesmo antes da abolição da escravidão.
Analisando a cidade de Porto Alegre, Müller (2008) ressalta a importância da
criação da irmandade religiosa Nossa Senhora do Rosário. Na capital da
Província de São Pedro, essa irmandade que congregou homens e mulheres
negros (as) teve atuação importante para a valorização destes sujeitos. Fundada
no ano de 1786, esta foi responsável, acima de tudo, pela instrumentalização do
grupo negro principalmente na questão educacional. Através disso, os sujeitos
negros envolvidos na irmandade alcançariam posições de maior prestigio numa
sociedade demarcada racialmente. A irmandade Nossa Senhora do Rosário
atuou também no sentido de angariar fundos para libertar negros e negras
escravizados(as).
Com a construção de sua igreja no ano de 1828, a irmandade estaria mais
estruturada para amparar seus irmãos. Com isso poderiam oferecer melhores
condições de vida ao grupo negro e, para isso, construiu nos arredores da sua
igreja casas que poderiam servir tanto para moradia como também para os
negócios de pessoas mais necessitadas.
A partir de tal fato, Muller (2008) afirma que:
Todas estas iniciativas levadas a cabo pela irmandade do
Rosário contribuíram, de fato, para a constituição de um grupo
diferenciado de negros, uma espécie de “elite” intelectual e
proprietária que, a partir de 1870, buscou ampliar seu espaço
social fundando clubes, associações beneficentes e até mesmo
um jornal (MULLER, 2008, p. 267-268).

A mesma autora afirma que de 1872 até 1920, Porto Alegre viu o
florescimento de 72 entidades criadas pelos e para os negros. Estes clubes de
caráter diversos tiveram grande presença de sujeitos negros que faziam parte
da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, mostrando, assim, a importante
atuação desta irmandade na valorização do grupo negro porto-alegrense, no

http://www.iphae.rs.gov.br/Main.php?do=BensTombadosDetalhesAc&item=43202. Acesso em
13/03/2018.
123

qual este grupo ampliou seus espaços de atuação forjando clubes sociais,
beneficentes, recreativos e também um jornal. A circulação destes sujeitos nos
mais variados espaços associativos buscava descontruir a ideia de que o negro
não sabia se organizar socialmente, bem como buscava positivar a sua imagem
numa sociedade pautada pela discriminação racial (SILVA, 2011).
A cidade de Pelotas também assistiu à criação de espaços destinados as
congregações religiosas negras. Silva (2011, p. 30) observou a existência da
Irmandade Nossa Senhora da Conceição; Irmandade de Nossa Senhora
Assumpção da Boa Morte e Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Tais
sociedades existiram em Pelotas durante o período da escravidão.
Matheus (2016) encontrou algumas referências sobre a Irmandade Nossa
Senhora do Rosário para a cidade lócus de nossa pesquisa – Bagé. Pesquisando
documentos do acervo do Museu Dom Diogo de Souza na referida cidade, dentre
os quais correspondências expedidas da câmara municipal de 1860, Matheus
(2016) encontrou indícios da autorização do Presidente da Província para a
aprovação da Irmandade, bem como a doação de um terreno pelo legislativo
local para a congregação (MATHEUS, 2016, p. 230). O autor também encontrou
informações sobre a Irmandade através do testamento de Maria Rosa Antônio
da Rosário. Liberta e natural da Bahia, em seu testamento ela deixou móveis
para Maximiano Domingos do Espirito Santo, este na condição de seu irmão na
Irmandade Nossa senhora do Rosário (MATHEUS, 2016, p. 230).
Com relação aos Clubes Sociais Negros, um dos mais antigos do país se
localiza na cidade de Porto Alegre. O clube Floresta Aurora foi fundado no ano
de 1872, principalmente com o objetivo de angariar fundos para pagar a
liberdade de homens e mulheres escravizados. Escobar (2010) afirma que este
clube foi fundamental dentro do cenário porto-alegrense, ajudando também nas
“despesas com funeral, defesa de direitos e na educação de seus associados,
atuando de forma incisiva na luta contra a escravidão e a discriminação racial”
(ESCOBAR, 2010, p. 59).
Além da capital Porto Alegre, como citado no caso da Irmandade do
Rosário fundada em 1786, mas estruturada em 1828, na cidade de Pelotas
também existiram diversos espaços associativos de negros ainda no século XIX.
Loner (2001, p. 448) observou a existência da Associação Lotérica Beneficente
Feliz Esperança (1877); Sociedade Beneficente Feliz Esperança (1880);
124

Sociedade Beneficente Socorro dos Artistas (1890); Montepio da União Africana


(1890) e Progresso da Raça Africana (1891).
Se desde o período colonial se encontram diversos espaços associativos
forjados pelos e para os negros, a partir da instauração da nova ordem
republicana em 1889 estes vão se intensificar. Domingues (2007) ressalta que
com o advento da República, “para reverter o quadro de marginalização, libertos,
ex-escravos e seus descendentes instituíram os movimentos de mobilização
racial negra no Brasil, criando inicialmente dezenas de grupos (grêmios, clubes
ou associações) ” (DOMINGUES, 2007, p. 103). O autor dá destaque para a
grande quantidade de associações negras criadas no Rio Grande do Sul,
principalmente em Porto Alegre e Pelotas.
As associações eram lugares responsáveis pela positivação da imagem
do grupo negro, pois vale lembrar que no pós-abolição o Brasil foi palco de
discussões que, através de critérios de raça, inferiorizavam este segmento.
Sobre a comunidade negra recaiam os mais pesados estigmas, dentre eles a
incapacidade de se tornarem cidadãos e a culpa pelo então atraso civilizatório
brasileiro, como já apontado em linhas anteriores.
Nesse sentido, foram criadas diversas entidades negras de norte a sul do
país, com destaque para as sociedades recreativas e culturais67. Como nosso
enfoque se dará a partir da criação de uma sociedade de negros na cidade
interiorana de Bagé, Rio Grande do Sul, apontaremos alguns trabalhos que
versam sobre Clubes Sociais Negros em território gaúcho, a fim de valorizar a
crescente produção acadêmica sobre a temática.
Para a cidade de Pelotas temos os trabalhos de Loner (2001), Gill e Loner
(2009) e Silva (2011), que mapeiam os clubes negros que foram forjados no Pós-

67 Os trabalhos sobre sociedades recreativas criadas por e para os negros vem buscando
abranger diversas localidades em diversos estados brasileiros. RIBEIRO, Jônatas Roque.
Associativismo, sociabilidade e liberdade: sociedades recreativas de negros e negras no pós-
emancipação em Minas Gerais. Anais do 7ª Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional. Curitiba, 2015. Link do texto:
http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos7/jonatas_ribeiro.pdf. Acesso em
11/04/2017. DOMINGUES, Petrônio. Esses intimoratos homens de cor: o associativismo
negro em Rio Claro (SP) no pós-abolição. História Social. nº 19, segundo semestre de 2010. Link
do artigo: http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/318/274. Acesso em:
13/04/2017. ROSA, Júlio Cesar da. Vivências de mulatos e pretos em Laguna: solidariedades
e sociabilidades nos clubes Sociedade Recreativa União Operária e Literário Cruz e Souza (1903
– 1950). MÉTIS: história e cultura. V. 15, n. 30. Link do artigo:
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/4592/pdf. Acesso em 13/04/2017.
125

abolição. Pioneira nos estudos sobre o associativismo de negros e negras na


cidade de Pelotas, Loner (2001) mapeou entidades negras tanto no período da
escravidão como depois da abolição. Mesmo preocupada com a formação do
operariado na região estudada, a autora não dispensou a análise sobre as
diversas associações negras que encontrou nas fontes consultadas, sobretudo
da imprensa. Para a autora:
Os negros tiveram que, praticamente, desenvolver uma rede
associativa própria como meio de sobrevivência e organização
do grupo. Para isso contaram com lideranças cuja preocupação
com a integração da etnia na sociedade, levou-os a desenvolver
várias associações e atividades na busca da elevação social e
econômica do homem negro (LONER, 2001, p. 282).

Assim, para Loner (2001) tais associações negras surgiram como


resposta à sociedade no qual os negros estavam inseridos, uma sociedade que
arranjou meios de marginalizá-los. Nessa perspectiva as associações criadas
por e para os negros tiveram um papel importante no processo de integração
desses sujeitos numa sociedade marcada pelo racismo.
Loner (2001) também frisou a importância das entidades carnavalescas
negras, tanto na cidade de Pelotas como em Rio Grande. Nesse sentido, a
autora apontou existência de diversas entidades, algumas cuja atuação se deu
ainda no século XIX, marcando presença nos festejos da abolição da escravidão.
À exemplo disso, a autora cita o clube Nagô e os Netos d’África, e para a cidade
de Rio Grande o Congresso Mina e o clube Congo, este não se limitando apenas
a atuação no período do carnaval. Mas é a partir da década de 1920 e 1930 que
principalmente a cidade de Pelotas viu o surgimento de diversas entidades
carnavalescas negras. Loner (2001) aponta como os principais blocos
carnavalescos negros de Pelotas o Chove Não Molha, Fica Ahí Pra Ir Dizendo,
Quem Ri de Nós tem Paixão e o Depois da Chuva. Estes acabaram por se
destacar no cenário carnavalesco local, obtendo também diversas atividades em
seus clubes, sendo que dois desses permanecem em atividade até os dias
atuais, o Fica Ahí e o Chove Não Molha.
Com relação à pesquisa de Silva (2011), esta afirma que havia grande
concentração negra em Pelotas, principalmente pelo fato da localidade ser a
referência da indústria do charque no século XIX, que dependia essencialmente
de mão de obra negra escravizada. Para a autora, a grande presença negra em
126

Pelotas intensificou o preconceito racial, fazendo com que os negros buscassem


espaços para conviver entre os seus. Esses espaços vêm desde a época da
escravidão, com as irmandades leigas do Império, seguido por associações
beneficentes no final do século XIX até chegar aos clubes sociais do século XX,
caracterizando uma complexa rede de movimento social negro em Pelotas.
Em sua dissertação, Silva (2011) buscou aprofundar o estudo sobre o
associativismo negro em Pelotas através dos clubes Fica Ahí P’ra Ir Dizendo
(1921), Depois da Chuva (1916), Chove Não Molha (1919), Está Tudo Certo
(1931) e Quem Ri de Nós tem Paixão (1921), os mesmos que já haviam sido
apontados por Loner (2001) e Loner e Gill (2009). Analisando aspectos destas
instituições de caráter étnico-raciais, a autora percebeu que houve na cidade de
Pelotas uma rede em perspectiva de enfrentamento da comunidade negra
pelotense frente à intensa discriminação racial. Essa rede em grande parte foi
influenciada pela criação, na década de 1930, da Frente Negra Pelotense (FNP),
sendo esta fundada no âmbito da Frente Negra Brasileira68, e, segundo Silva
(2011), foi um marco para a irradiação de ideias e diálogos com a comunidade
negra pelotense na busca por ações mais concretas na luta contra a
discriminação racial.
Segundo a mesma autora, participantes da Frente Negra Pelotense
transitavam entre os clubes sociais negros da cidade e também estavam
presentes no jornal semanal A Alvorada (1907-65). Este hebdomadário
pertencente a imprensa negra era responsável por propagar ideários da
comunidade negra pelotense e chegou a transcender as fronteiras da cidade,
tendo alcance em outros municípios. Os clubes, o jornal e a FNP foram
importantes ferramentas de luta em uma sociedade marcada pelo racismo e
responsáveis por tentar unificar a raça negra, incutindo a ideia de uma identidade
negra positiva contrapondo-se aos ideais preconceituosos e racistas que
sobrecaíam em cima dos negros.

68 A Frente Negra Brasileira surgiu em São Paulo em outubro de 1931 com os seguintes sujeitos
à sua frente: Arlindo Veiga dos Santos; José Correia Leite; Isaltino Veiga dos Santos; Gervásio
de Moraes e Jayme de Aguiar. Acabou por transformar-se em um movimento de massas,
congregando negros de diversos estados do país e possuindo filiais espalhadas por estados
brasileiros. Analisando o estatuto da FNB, Gomes (2005) afirma que a “ideia fundamental [da
FNB] era realizar a união política e social da Gente Negra Nacional, para a afirmação dos direitos
histórico da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no passado e para
reivindicação de seus direitos sociais e políticos, atuais, na comunhão brasileira (GOMES, 2005,
p. 52).
127

A autora também buscou observar os clubes pela ótica da racialização


destes espaços. Assim, acabou percebendo que estas associações faziam seus
próprios usos dos códigos de racialização que lhes eram impostos. Um exemplo
disso é dado ao clube Fica Ahí, que segundo Silva:
[...] diferenciou-se dos demais clubes negros locais ao colocar
em prática um controle sistemático quanto aos seus sócios,
atentava principalmente, para à cor destes, apresentava em
suas atas de diretoria inúmeras discussões quanto â cor dos
pretendentes a sócios, os quais deveriam ser reconhecidamente
membros da comunidade negra local, somado a preocupação
com a moralidade, não apenas na sede, mas nos diferentes
aspectos da vida destes. (SILVA, 2011, p. 125).

Nesse mesmo sentido, Silva (2012) encontrou um clube social negro no


Uruguai que se identificava enquanto pertencente à raça, o qual impunha um
controle sistemático às pessoas brancas, que até podiam entrar no clube, porém,
não podiam dançar com as mulheres negras. A autora afirma que a permissão
de pessoas brancas era vista com bastante cautela pelos membros de clubes
negros, pois “existia uma preocupação principalmente em função dos clubes
serem os espaços matrimoniais por excelência do grupo negro” (SILVA, 2012,
349).
Outras regiões do estado também estão ganhando a atenção de
pesquisadores interessados no associativismo negro, como é o caso de Santa
Maria. Escobar (2010) fez um levantamento de uma dezena de Clubes Sociais
Negros numa perspectiva de patrimonialização destes lugares como espaços de
memórias e resistências. Nesse sentido, a autora, que foi uma das responsáveis
pela criação do Museu 13 de Maio na cidade de Santa Maria, acabou se voltando
para a trajetória do Clube Ferroviário 13 de Maio, o mesmo que deu origem ao
museu. Segundo Grigio (2017, p. 238), este clube foi fundado no ano de 1903
por trabalhadores negros ex-escravizados: carroceiros, criados, jornaleiros e
carpinteiros. Escobar (2010, p. 98) traça alguns aspectos deste clube,
principalmente a partir de marcos referenciais da história do mesmo, como
origens, transição, auge e decadência. Entre 1920 e 1940 houve um período de
transição do clube, este se afirmando como um clube essencialmente negro. Já
no seu auge, apontado por Escobar (2010) como sendo entre os anos de 1950
a 1980, o clube se fortaleceu e se afirmou enquanto uma “classe média negra
emergente”. E o período que compreende os anos de 1990 a 2000 são
128

caracterizados pela autora como a fase de decadência, onde haverá a


desestruturação e o desaparecimento do clube na cidade.
Também sobre Santa Maria, recentemente a historiadora Franciele
Oliveira (2016) pesquisou a trajetória do clube negro União Familiar no pós-
abolição. Fundado no ano de 1896 e durando até meados dos anos de 1990,
este clube de negros e negras acabou congregando uma grande quantidade de
sujeitos, sobretudo operários (OLIVEIRA, 2016, p. 141). Mas para além do clube
em questão, a autora pode perceber uma rede de conexões que ligavam o clube
União, um bairro operário, um bloco de carnaval e um jornal negro. Tais aspectos
analisados por Oliveira (2106) se assemelham às abordagens sobre a rede
associativa negra na cidade de Pelotas analisada por Silva (2011), como
mencionado anteriormente. Assim, através de fontes produzidas através da
metodologia da História Oral; documentos internos do clube União, fotografias e
livros, Oliveira (2016) buscou tirar o Clube União da invisibilidade ao qual foi
submetido dentro da história de Santa Maria no pós-abolição.
Outros trabalhos sobre associativismo negro no Pós-abolição gaúcho que
são muito importantes, principalmente pelo fato de concentrarem suas análises
em regiões de colonização italiana e alemã, são os estudos de e Gomes (2008)
e Magalhães (2010), respectivamente.
Gomes (2008) mapeou o surgimento do Sport Club Gaúcho, fundado no
seio da cidade de Caxias do Sul, no ano de 1934. Utilizando como fontes as atas
do clube, a oralidade, jornais locais, correspondências do clube, processos e
relatórios policiais, o autor pode perceber que o clube Gaúcho serviu como polo
aglutinador da população negra caxiense. As atividades do clube estavam
voltadas, no seu início, à prática do futebol e a realização de bailes e
campeonatos. O futebol, como aponta o autor, era visto como uma maneira de
se integrar a sociedade de Caxias, porém, posteriormente o clube utilizará a
escola de samba como mecanismo de interação com os outros (GOMES, 2008,
p. 88). Foi na década de 1950 que surgiu o departamento de escola de samba
do clube, o qual foi responsável por dar maior visibilidade à entidade nos anos
que se seguiram.
Magalhães (2010) coloca em evidência a importância do Sport Clube
Cruzeiro, fundado em 1922 por negros em Novo Hamburgo, cidade localizada
na região do Vale do Rio dos Sinos. O Sport Clube Cruzeiro começou com o
129

objetivo de participar de torneios de futebol. Posteriormente houve a fusão do


time de futebol com o bloco carnavalesco em que muitos membros do clube
participavam, intitulado Os Leões, dando início assim a Associação Esportiva,
Beneficente e Cultural Sociedade Cruzeiro do Sul, no qual tinha o objetivo de
construir um espaço para os negros ficarem entre os seus.
Todos os trabalhos são importantes para percebermos o protagonismo de
homens e mulheres negros (as) na constituição de uma identidade racial negra
em territórios no qual a cultura que se sobressaía não era a sua. Territórios que
por muito tempo foram atribuídos quase que exclusivamente a presença de
imigrantes alemães e/ou italianos. No seio destas sociedades, negros forjaram
espaços de sociabilidade, de lazer e recreação, permeados por laços familiares
e de solidariedade, na tentativa de romper com estereótipos a eles atribuídos e
lutando contra a segregação racial e social.
Trabalho importante também foi desenvolvido por Nunes (2010). Em sua
monografia de conclusão do curso em História, a autora buscou apontar o
surgimento do Clube Social 24 de Agosto, localizado na cidade fronteiriça de
Jaguarão, no sul do Rio Grande do Sul. Segundo a autora - que buscava,
principalmente, observar aspectos do carnaval na localidade através do cordão
União da Classe, gerado no âmbito do clube – o Clube 24 de Agosto originou-se
através de sujeitos ligados ao Círculo Operário de Jaguarão. Segundo nos
informa Nunes (2010), essa agremiação foi fundada em 24 de agosto de 1918
por iniciativa de dois amigos: Theodoro Rodrigues e Malaquia de Oliveira. Sem
poder frequentar os clubes sociais existentes na cidade, estes sujeitos
resolveram criar um espaço para proporcionar lazer e diversão para os negros
jaguarenses.
Nunes (2010) também frisa a importância do espaço do Círculo Operário
Jaguarense para a inserção dos sujeitos negros da cidade:
[...] este proporcionava uma suposta integração dessa
comunidade [de negros] à sociedade branca, além de
escamotear a etnicidade dos libertos como desejavam as elites
intelectuais da época, através, por exemplo, do ensino de artes
e ofícios, da elevação desses indivíduos a “cidadãos de bem”,
incutindo-lhes novos valores morais e retirando, dessa forma, os
estigmas da escravidão que caíam sobre os negros do início do
século XX. (NUNES, 2010, p. 38).
130

Nesse sentido, deve-se considerar, também, o agenciamento dos sujeitos


negros de Jaguarão, que buscavam ocupar o espaço do Círculo Operário
objetivando uma vida mais justa, com o objetivo de qualificar-se para novos
postos de trabalho, na tentativa de fugir dos estigmas e positivar sua imagem
perante uma sociedade racializada.
Tendo o espaço fronteiriço Brasil-Uruguai como palco privilegiado de
análise, Silva (2017) observou as lutas políticas dos clubes negros nas cidades
de Bagé, Jaguarão, Pelotas, Melo e Montevidéu no Pós-abolição. A autora, que
utilizou como fontes os materiais produzidos no âmbito dos clubes, bem como
periódicos da imprensa negra brasileira e uruguaia e também depoimentos orais,
acabou por evidenciar processos de racialização e construções de identidades
negras nos espaços dos clubes sociais forjados pelos sujeitos negros.
Entendendo os clubes negros como espaços de lutas e pautados por projetos
políticos, Silva (2017) observou que a racialização era vivida e ressignificada
pelas pessoas negras numa relação dialética, o que acabava por não torná-las
passivas ao processo de racialização, levando em conta um contexto em que
esse processo era muito presente no cotidiano desses sujeitos.
Estes trabalhos acabam apontando para uma gama de entidades negras
e agenciamento destes sujeitos no estado do Rio Grande do Sul, este tido como
um estado em que ainda nos dias atuais mantém a pecha de ser uma região de
brancos europeizados se comparado às outras regiões do país. A historiografia
sobre a participação da população negra, tanto no mundo da escravidão como
no período Pós-abolição em terras gaúchas, vem mostrando que, para além de
um paraíso de pessoas brancas descendentes de comunidades europeias, esse
chão foi marcado pela atuação de africanos e seus descendentes na busca por
um lugar ao sol, ajudando a construir o que hoje é o Rio Grande do Sul e lutando
contra as estruturas de uma sociedade racializada.
Assim como diversas cidades interioranas do Rio Grande do Sul, em Bagé
a população negra também se organizou em torno de Clubes Sociais Negros.
Como veremos no decorrer desse capítulo, a homens e mulheres negras era
cerceado o ingresso em clubes da cidade de Bagé até meados dos anos 1980,
principalmente nos clubes Caixeiral e Comercial. Para isso, na década de 1940,
sujeitos negros da cidade forjaram seus próprios espaços sociais/recreativos,
131

redutos de sociabilidade da raça negra e que extrapolaram apenas a recreação,


pois acabaram se configurando enquanto espaços de luta política.
No que diz respeito a presença negra na cidade de Bagé no ano de 1940,
o censo demográfico69 realizado nesse ano aponta que Bagé tinha 59.000
habitantes. Destes, os brancos somavam 47.064 pessoas (79,76%), ao passo
que os negros – inclusos pretos e pardos – somavam 11.899 pessoas (20, 16%).
Evidentemente que esses censos não abrangiam a população em sua totalidade,
porém, observamos ainda assim um número um tanto significativo de pessoas
negras na cidade.
Com relação a esses espaços, os clubes negros, usaremos como
conceito a definição esboçada pela historiadora Fernanda Oliveira da Silva, no
qual:
[...] os clubes negros são espaços associativos criados a partir
do século XIX, sobretudo a partir da década de 1870, por e para
pessoas negras – com base em uma ideia de raça –
autoidentificadas como negras; pretas; morenas; mulatas;
colored; da raça de cor/raza de color; etiópica; de cor;
conrazanea; mantidos por associados e associadas, instalados
em uma sede física, própria ou não, na qual
desenvolviam/desenvolvem atividades sociais – de caráter
autodenominado cultural; social; político; bailante/dançante;
beneficente; recreativo e/ou carnavalesco – cuja nomeação
era/é autoatribuída como club/clube, centro, associação e/ou
sociedade e cujo objetivo era/é manter um espaço de convívio
social no qual eram/são realizadas festas (SILVA, 2017, p. 148).

Passaremos, então, a observar de perto a experiência negra em Bagé em


torno da Clube Recreativo Palmeiras e da Sociedade Recreativa Os Zíngaros,
ambas sociedades forjadas por negros e negras na cidade de Bagé no Pós-
abolição.

4.2. Clube Recreativo Palmeiras: experiências de recreação e luta


Ao descrever a cidade onde nasceu e viveu a sua adolescência, o escritor
negro Gilberto Alves Soares deixa evidente a racialização que imperava nos
espaços sociais/recreativos de Bagé em meados da década de 1960.
Cresci cercado pelos preconceitos de uma cidade de
estancieiros, funcionários públicos, comerciantes, pequenos
empreendedores e os “demais” – pintores de parede, pedreiros,

69Recenseamento Geral do Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Rio de


Janeiro, 1950. pp. 307.
132

peões, cozinheiras, prostitutas e tantos outros subalternos de


menor valia – quase miseráveis. Demais para serem
protagonistas, mais ainda assim indispensáveis. Um tempo não
muito distante, no qual a cultura da senzala e casa grande
separava as noites de dança entre clubes de brancos, de negros
e alguns “zonas mistas”, pois aceitavam, brancos, negros,
sararás, mulatos. (SOARES, 2015, p. 24).

As narrativas da Sra. Ieda Lisboa também apontam para a racialização


das festas na cidade de Bagé, onde a mesma afirma que “[...] na época [era]
bem separado, né? Clube de negros era de negros, e clube de brancos era de
brancos”.70 Essa característica de espaços segregados entre brancos e negros,
principalmente nos seus espaços festivos, não é uma particularidade de Bagé.
Não podemos esquecer que o período Pós-abolição foi marcado pela
acentuação das teorias raciais, no qual a ideia científica de raça foi usada de
forma perversa para justificar desigualdades e reforçar as hierarquias, na
tentativa de colocar os negros nos seus “devidos lugares”.
Nesse sentido, em sociedades que experenciaram a escravidão negra e
cuja as relações sociais eram racializadas, a criação de espaços específicos
para sujeitos negros passou a ser comum, pois como bem pontua Mosnsma
(2013, p. 12) “em qualquer contexto social marcado pelo racismo, as redes
sociais – de amizades, famílias, de contatos, de colaboração profissional –
tendem a ser racializadas”.
Em Bagé, para além dos espaços “festivos” serem racializados, havia,
também, alguns espaços públicos. Um dos exemplos mais emblemáticos e que
aparece em diversas narrativas de homens e mulheres negras da cidade diz
respeito à calçada do Clube Comercial, situado na principal artéria da cidade, a
rua Sete de Setembro. Até meados dos anos 1970, homens e mulheres negras
não passavam na calçada em frente ao clube, somente do lado oposto. Ao
conversar, mesmo que informalmente com sujeitos negros da cidade, é comum
aparecerem relatos sobre a calçada do Comercial. Segundo a Sra. Ieda Lisboa,
aos negros e negras também era proibida a entrada em alguns estabelecimentos
comerciais da cidade, como restaurantes e sorveterias.
Seja nas calçadas ou em espaços comerciais, a reprodução e a
institucionalização do racismo marcaram presença também na cidade de Bagé,

70 Entrevista concedida pela Sra. Ieda Maria Santos Lisboa ao autor, no dia 04/10/2017.
133

fazendo com que sujeitos negros buscassem criar seus próprios espaços e forjar
lutas entre os seus, na tentativa, principalmente, de poder melhor viver.
Na década de 1940, a cidade de Bagé fervilhava de associações negras,
principalmente as de cunho carnavalesco. Nos períodos do reinado de Momo,
eram muitas as entidades carnavalescas negras que colocavam seus blocos nas
ruas e em muitos casos davam a tônica do carnaval de rua da cidade. Mas além
dessas entidades, também havia a circulação de periódicos escritos por e para
as coletividades negras de Bagé, como é o caso do jornal O Palmeira, cuja uma
pequena trajetória já foi esboçada no capítulo segundo dessa dissertação.
A referência ao nome “Palmeira” foi encontrada nas pesquisas no ano de
1913, quando da fundação do time de futebol Sport Club Palmeira, que naquela
época estava sob a liderança do Sr. Delfino Menezes. Já na década de 1920,
encontramos além do time, um grupo de amadores que se organizava em torno
do Grêmio Dramático Palmeira, realizando diversos espetáculos para a
sociedade negra bageense. É dessa mesma década, mais precisamente do dia
1º de janeiro, que aparece na cena da imprensa de Bagé o periódico O Palmeira,
também na liderança de Delfino Menezes.
No ano de 1948, surge na cena social/recreativa em Bagé a Sociedade
Recreativa Palmeiras, um clube composto por famílias negras e que possuía sua
sede social na Rua José Otávio, no centro da cidade. Ao analisarmos o nome do
clube em questão, logo vem à mente a semelhança com as outras entidades
elencadas anteriormente, sendo o time de futebol, o grêmio dramático e o jornal.
Porém, até o presente momento não temos como saber se o clube fundado em
1948 tem alguma relação com as outras entidades, ou se tem nas mesmas, o
seu embrião. Até porque, no ano de 1949 e 1952, em pleno funcionamento do
clube recreativo, o jornal O Palmeira noticiava questões relativas ao Clube Os
Zíngaros e outros clubes carnavalescos da cidade em seus eventos sociais,
deixando de noticiar questões relativas ao Palmeira.
Já o jornal A Alvorada, importante periódico negro da cidade de Pelotas,
possuía um correspondente em Bagé e nos anos finais da década de 1940
passou a cobrir as atividades realizadas pelo Palmeiras.
E é justamente pelo referido jornal, que temos acesso a uma matéria cujo
título é “nasceu uma sociedade”, fazendo alusão ao surgimento do Club
Palmeiras na cidade de Bagé. Nessa matéria, o jornal afirma que uma das
134

diferenças do Palmeira é que a entidade não se restringiu somente ao âmbito de


uma sociedade meramente recreativa/dançante, e sim buscou criar meios de
ampliar suas ações, criando um departamento cultural e outro esportivo. (A
Alvorada, 19/03/1949, p 3).
O departamento cultural do Club Palmeiras foi fundado pelo Sr. Catalino
Brasil Machado e chamava-se Casimiro de Abreu71. No ano de 1951, o
departamento cultural chegou a possuir um jornal. Nesse impresso, está implícito
toda uma organização por parte do clube, com notas sobre eventos e projetos
encabeçados pela equipe diretiva da sociedade, bem como uma coluna social,
encarregada de publicar os aniversários, casamentos e demais atividades
sociais dos membros do clube.
O departamento também possuía uma biblioteca, no qual os associados
do clube poderiam ampliar seus conhecimentos intelectuais e culturais. No ano
de 1951, o jornal do departamento lançava uma nota agradecendo aos
funcionários da agencia do Banco do Brasil de Bagé por terem doado livros para
a biblioteca da entidade.72
O referido jornal também publicou uma matéria sobre a trajetória do
músico negro Evilásio Pereira, conhecido entre os seus como “general do ritmo”.
Evilásio foi um dos fundadores do Bloco Carnavalesco Garotos da Batucada,
entidade carnavalesca que se destacou no carnaval de rua de Bagé nas décadas
de 1940 e 1950 como foi apontado no capítulo 3 dessa dissertação. Evilásio,
assim como alguns integrantes do seu bloco, eram associados do Club
Palmeiras, o que talvez indique uma homenagem em forma de samba realizada
pelo bloco ao clube no de 1949:

Samba Palmeira
Sim, aceitamos o convite especial
Está legal, é uma brincadeira
Vamos cantar o samba
Que fizemos pr’á o Palmeira.
Compomos este samba
Com o nome da sociedade
E não achemos difícil
Porque é uma realidade,
O Sr. Nicolau Rosa
Que também tem seu lugar
Salve, salve, salve, salve,

71 Casimiro de Abreu foi um poeta brasileiro da segunda geração do romantismo.


72 Boletim do Departamento Cultural Casemiro de Abreu, Clube Palmeiras, 12/01/1951, p. 4.
135

Sr. Presidente Oscar Martins.73

Na letra acima aparecem os nomes de Nicolau Rosa e Oscar Martins,


ambos diretores do Palmeiras e que também pertenceram à outras sociedades
locais, como é o caso do próprio Oscar Martins que no ano de 1948 era o
presidente de honra do clube Os Zíngaros.
Uma das características do Palmeiras era a sua rígida organização e o
reduzido quadro de sócios que a entidade possuía. Nas falas de Ieda e Ivoncléo,
ambos afirmam que o Palmeira era um clube da “elite” negra da cidade, de
pessoas que possuíam empregos estáveis, principalmente como funcionários
públicos. Sendo caracterizado por Ivoncléo como um “clube pequeno” se
comparado ao Zíngaros, os membros do Palmeiras buscavam criar uma
identidade negra que os diferenciasse dos demais espaços negros da cidade,
sobretudo ao colocar em prática a criação de uma biblioteca e um departamento
cultural.
Assim como é recorrente em diversos espaços associativos de negros e
negras no Rio Grande do Sul, o Palmeira também manteve articulações com
outras associações negras de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, como já foi
bem apontado por Silva (2017).
As escolhas das rainhas da entidade também era o momento propicio
para a troca de experiências com entidades de outros locais. Um exemplo disso
foi a coroação da Sra. Suely Cardoso, rainha do ano de 1949 e que foi
“enfaixada” na Associação Satélite Prontidão, clube localizado na capital Porto
Alegre.

73 A Alvorada, 19/03/1949, p. 3.
136

Imagem 10: Suely Cardoso coroada Rainha do Palmeira na Associação


Satélite Prontidão, Porto Alegre, 1949. (Acervo de Suely Cardoso).

A excursão em caravanas para outras cidades também estava na agenda


do Palmeiras, como uma que ocorreu no ano de 1955 para a cidade de Rio
Grande, no qual uma comitiva palmeirista iria participar de atividades promovidas
pelo clube Floresta Recreativa Riograndina (Correio do Sul, 08/01/1955, p. 5).
O clube também realizava atividades carnavalescas, porém, diferente de
muitas entidades que ocupavam o espaço das ruas, o Palmeiras restringia-se
apenas à sua sede social, na Rua José Otávio, no centro de Bagé 74. Porém, os
festejos carnavalescos eram planejados de forma muito organizada pela direção
do clube. Havia a realização de diversos bailes para adultos e para o público
infantil, ao passo que também havia a escolha das rainhas adultas e de Rainha
e Príncipe infantis. Segundo uma nota presente no boletim do departamento
cultural do clube, as festas infantis eram preparadas pelas mulheres do clube.
Na presente nota ainda consta o nome da Sra. Antonieta Camargo e Licélia L.

74 Sobre a localização da sede da associação no mapa de Bagé, ver Anexo.


137

da Silva apresentadas como diretoras75, indicando que, diferente da maioria dos


clubes negros, as mulheres exerciam cargos formais dentro da direção do clube.
O clube também realizava atividades comuns à muitos clubes negros,
como é o caso de chás-dançantes, quermesses, bailes de debutantes e as
escolhas das rainhas, nos concursos de misses.76

Imagem 11: Maria Joana, Miss Palmeiras, década de 1950. (Acervo de Suely
Cardoso).

Para além de uma sociedade apenas de caráter recreativo/dançante, os


membros do Palmeiras buscaram construir um modelo de clube social em que a
recreação e a luta andavam lado a lado. Por isso, a iniciativa de montar uma
biblioteca para instrumentalizar a coletividade palmeirista, juntamente com a
iniciativa de montar um Departamento Cultural, cuja expressão máxima se deu

75Boletim do Departamento Cultural Casemiro de Abreu, Clube Palmeiras, 12/01/1951, p.3.


76Sobre a representação das rainhas dos Clubes Sociais Negros em jornais, ver (ESCOBAR,
2018).
138

com a circulação de um periódico. Essas questões deixam evidente que o clube


buscou construir uma identidade negra pautada na valorização da cultura e da
instrumentalização da raça, mostrando todo um potencial organizativo frente a
outras associações locais.
Como veremos a seguir, o clube Os Zíngaros, outra sociedade negra de
destaque na cidade, também buscou construir uma identidade racial pautada na
diferença, principalmente através de alguns critérios rigorosos de ingressos na
entidade. Tal fato mostra que esses clubes sociais estavam atentos aos estigmas
sociais/raciais presentes com muita força no contexto em que surgiram e que
delegavam a eles a incapacidade de se organizar associativamente.

4.3. De Bloco à Sociedade Recreativa Os Zíngaros: protagonismos negros


em Bagé
O carnaval do ano de 1936 se aproximava e os preparativos para a festa
momesca também. Diversas entidades carnavalescas de Bagé já ensaiavam
suas marchas e organizavam os últimos detalhes para o carnaval na tentativa de
ganhar os concursos realizados por lojas e também por outras entidades locais.
Como observamos no capítulo anterior dessa dissertação, não faltaram
entidades carnavalescas compostas por sujeitos negros na cidade, muitas das
quais acabaram ganhando destaque principalmente nas páginas do jornal
Correio do Sul. Uma das entidades mencionadas anteriormente foi o Rancho
Carnavalesco Vamos de Qualquer Geito, que na década de 1930 ganhou
destaque na cena carnavalesca bageense ao realizar desfiles com carros
alegóricos “e com luzida guarda de honra e afinada banda de clarins” (Correio
do Sul, 11/02/1937, p. 5). Porém, segundo depoimento de Ivoncléo Monteiro 77,
um racha de dentro do respectivo rancho, no ano de 1936, acabou dando origem
ao Bloco Os Zíngaros.
Surgindo na cena do carnaval de Bagé no dia 2 de janeiro de 1936, o
Bloco Os Zíngaros foi fundado pelos seguintes trabalhadores: Pedro Mendes,
Nadir Alves da Costa, Martin C. Fernandes, Constantino Monteiro, Antonio Alves,
Antonio S. Alves, Claudio Cavalheiro, Edmar C. Madruga, Ferdinando Saraiva,

77 Entrevista concedida pelo Sr. Ivonléo Monteiro ao autor, no dia 16/05/2016.


139

Elias Bell e Gervasio Rodrigues.78 Inicialmente o bloco Os Zíngaros pretendia


ocupar os espaços públicos das ruas de Bagé nos dias destinados ao carnaval,
bem como concorrer em concursos realizados por comerciantes locais.
No ano de 1937 já encontramos referência ao Zíngaros no carnaval de
rua de Bagé, como mostra a notícia presente no jornal Correio do Sul:
OS ZÍINGAROS – É grande a azafama que vae pelos arraiaes
dos Zíngaros, cuja atividade é assombrosa por parte de seus
componentes. Tanto os jovens como as graciosas senhoritas
componentes dos Zíngaros, estão tratando das respectivas
fantasias, que prometem ser lindas. Mas tudo dentro de uma
dura economia, segundo nos disse uma esforçada conselheira
dos Zíngaros. (Correio do Sul, 14/01/1937, p. 4).

Na notícia acima já podemos observar a participação das mulheres no


bloco, que mesmo não constando seus nomes no estatuto posteriormente
elaborado, já compunham a entidade e inclusive, como mostra a respectiva
notícia, estavam incumbidas de fazer falas, como é o caso da conselheira que
relatou a situação da entidade para o jornal Correio do Sul para o período
carnavalesco do ano de 1937.
Mas é mesmo a partir da década de 1940 que este bloco se destacou,
ganhando diversos concursos organizados por setores do comércio local. Como
exemplo, no ano de 1941 o bloco ganhou o concurso carnavalesco organizado
pelo jornal Correio do Sul, ocasião em que o Zíngaros fez um desfile com
fantasias de Joana d’Arc e marchas e sambas escritos por Nadir Alves,
integrante do bloco. (Correio do Sul, 23/02/1941, p. 5).
Assim como algumas das entidades carnavalescas negras analisadas no
capítulo anterior desse trabalho, na época de carnaval o Bloco Os Zíngaros
também realizava bailes em sua sede, que inicialmente localizava-se na rua
Barão do Triunfo, ao lado da Rádio Difusora, no centro da cidade 79. Segundo
matéria vinculada no Correio do Sul no ano de 1941, num desses bailes, mais
de 10 blocos e cordões locais desfilavam na sede do Zíngaros “e dansaram (sic)
até altas horas da madrugada” (Correio do Sul, 27/02/1941, p. 6).
O Bloco Os Zíngaros seguiu suas atividades momescas, porém, no ano
de 1944, os integrantes da entidade resolveram expandir suas atividades sociais

78 Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros. 1948. Typografia da Casa Maciel, Bagé.


p. 27-28.
79 Sobre a localização dessa associação no mapa de Bagé, ver Anexo.
140

e recreativas e dar início a uma Sociedade. Nesse sentido, no dia 4 de abril do


ano de 194480 o Zíngaros se consolida enquanto Sociedade Recreativa. Além
de agora ser uma sociedade, o Zíngaros seguiu desfilando nos concursos
carnavalescos organizados por setores do comércio local e imprensa, vindo, no
ano de 1945, a consagrar-se tetracampeão do carnaval popular em concurso
organizado pelo jornal Correio do Sul. (Correio do Sul, 11/01/1945, p. 6).
Nos seus primeiros anos de existência enquanto sociedade, Os Zíngaros
utilizava os salões da Sociedade União Operária (SUO), situada no centro da
cidade de Bagé, com sede em frente à antiga praça da estação férrea. Criada
em 1898, a SUO já nos seus primeiros anos agregou muitos trabalhadores da
cidade, vindo a ser uma das principais agremiações de classe existentes em
Bagé e cujo objetivo era alcançar o fortalecimento, desenvolvimento e a proteção
da classe trabalhadora local (LEMIESZEK, 2000, p. 85). Em seus estatutos81, a
SUO afirmava que não se distinguia por nacionalidades, e nesse sentido, poderia
haver sujeitos negros em seus quadros diretivos, como é o caso de Nicolau
Tolentino Marques. Esse homem negro, que exercia a profissão de contabilista,
circulou em diversas sociedades de classe existentes em Bagé, como é o caso
da já mencionada União Operária. Para se ter uma ideia, no ano de 1913 Nicolau
era o 1º Secretário da referida sociedade (A Federação, 02/12/1914, p. 2). Já no
ano de 1918 chegou ao cargo de presidente da União Operária de Bagé (A
Alvorada, 1918, p. 2). Na década de 1920, Nicolau foi colaborador e colunista do
jornal da imprensa negra de Bagé A Liberdade, escrevendo, principalmente,
artigos relativos às suas experiências em torno da Sociedade União Operária.
Também foi presidente, em 1946, da Sociedade Protetora dos Artistas82,
importante entidade da cidade de Bagé e que protagonizou diversas lutas para

80 Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros. 1948. Typografia da Casa Maciel, Bagé.


p. 3.
81 Extracto dos Estatutos da Sociedade União Operária de Bagé. (A Federação, 02/12/1914,

p. 2). Agradeço a Profa. Dra. Fernanda Oliveira da Silva por compartilhar o excerto do referido
jornal.
82 Criada no ano de 1883, essa sociedade tinha como objetivos reunir artistas (artífices de

diversas profissões), além de prestar a esses trabalhadores diversos auxílios, como os relativos
a doença e funeral. (LOPES, 2007, p. 90). No ano de 1919, a Sociedade Protetora dos Artistas,
juntamente com a União Operária e a Liga Operária de Bagé, assinou uma petição pela jornada
de oito horas e por melhores condições de trabalho, em decorrência da Conferência Geral do
Trabalho, que se realizou em Washington, capital dos EUA. (A Razão, 26/09/1919, p. 8).
Periódico encontrado no site: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em
13/02/2018.
141

os seus associados (Correio do Sul, 09/02/1946, p. 5). Além de atuar nessas


sociedades, Nicolau também fez parte dos quadros da Sociedade Beneficente
dos Padeiros de Bagé (LOPES, 2007, p. 39).
Percebe-se que Nicolau Tolentino Marques era um sujeito militante e ativo
que desde as primeiras décadas do século XX estava engajado nas lutas sociais.
O seu caso só reforça a importância de observarmos as experiências de pessoas
negras dentro de entidades de classe tanto no mundo da escravidão quanto no
Pós-abolição.
Com relação ao Zíngaros, ao utilizar os salões da SUO para a realizações
de suas atividades, podemos especular que os membros do clube também
estavam presentes na dita sociedade, o que infelizmente não podemos
comprovar devido a carência de fontes sobre a mesma. Porém, como veremos
mais adiante, alguns membros do Zíngaros estavam presentes na Liga Operária
de Bagé.
Tal fato faz com que se torne fundamental debater a importância conferida
por sujeitos negros nas suas lutas em ambas as frentes, ou seja, muitos faziam
parte de sociedades recreativas e de classe ao mesmo tempo, o que já vem
sendo observado por pesquisadores, principalmente os engajados nas histórias
sobre os mundos do trabalho e do Pós-abolição.83 Nesse sentido, pedimos
licença ao leitor/a para abrirmos um pequeno parêntese.
Ao discorrer sobre a participação negra na história do trabalho no Brasil,
Nascimento (2016) afirma existir um “paradigma da ausência”, no qual os
estudos sobre os mundos do trabalho acabaram por construir uma história no
singular, privilegiando a questão dos imigrantes e suas contribuições para a
formação do movimento operário no país. Buscando o caminho inverso, o autor
aponta que está mais do que na hora de historiadores que estudam a classe
operária no Brasil dialogarem com os estudiosos da escravidão e do Pós-
abolição, para assim perceberem a presença de pessoas negras e suas
articulações com trabalhadores “livres”. Ao privilegiar a análise da formação da
classe operária na figura dos imigrantes, sobretudo dos anarquistas e socialistas
italianos, parte da historiografia sobre os trabalhadores no Brasil invisibilizou a
atuação de homens e mulheres negras, que desde as épocas da escravidão já

83 LONER, 2000; MATTOS, 2009; SILVA, 2011.


142

vinham protagonizando lutas e insurreições na busca por melhores condições de


vida e de trabalho. Nesse sentido, torna-se importante a afirmação de Gomes e
Negro (2016):
O mito do imigrante radical é também um preconceito porque,
entre silêncios e esquecimentos, impede que o trabalhador local
(a começar pelo escravo) apareça como protagonista das lutas
operárias.84

Numa perspectiva semelhante, Mattos (2009) observou que o estudo


sobre a formação da classe operária na cidade do Rio de Janeiro deveria levar
em consideração as experiências de negros e não negros ainda no século XIX,
em plena sociedade escravista, pois para o autor:
(...) trabalhadores escravizados e “livres” partilharam também
formas de organização e de luta, gerando valores e expectativas
comuns, que acabariam tendo uma importância central para
momentos posteriores do processo de formação da classe.
(MATTOS, 2009, p. 51).

Além de apontar para a existência de diversas entidades negras da cidade


de Pelotas, uma das grandes contribuições de Loner (2001) foi no sentido de
perceber a estreita relação entre tais entidades negras com entidades de classe.
Assim a autora acabou encontrando diversos sujeitos negros que militavam em
associações de classe e ao mesmo tempo compuseram o quadro de entidades
recreativas negras locais. Para Loner:
[...] as organizações operárias foram um dos grandes espaços
de sua atuação [de negros], porque, para um grupo
marginalizado, a conquista de posições como operários, podia
representar um avanço em termos sociais e econômicos, além
de romper o isolamento imposto pela discriminação, passando a
fazer parte de um grupo maior: aquele dos trabalhadores
(LONER, 2001, p. 283).

Formado por sujeitos trabalhadores, muitas entidades recreativas de


negros mantinham estreitos vínculos com entidades de classe, no qual
utilizavam seus salões tanto para a realização de festas como também para
ocasiões mais formais, como é o caso de reuniões e eleições para cargos
diretivos. Em Bagé, não foram poucas as entidades negras que utilizavam os

84 Texto extraído da página: https://www.ceert.org.br/noticias/historia-cultura-arte/12581/as-


greves-escravas-entre-silencios-e-esquecimentos. Acessado em 22/03/2018.
143

salões de sociedades classistas, principalmente as dependências da SUO e a


Sociedade Liga Operária de Bagé.85
Assim como já foi encontrado por Loner (2001) e Silva (2011) para a
cidade de Pelotas, na cidade de Bagé, ao cruzar algumas fontes, acabamos por
observar um trânsito de pessoas negras em mais de uma frente, principalmente
dos membros do Zíngaros. Esse trânsito pode ser observado na tabela abaixo,
no qual informamos os nomes, profissões, entidades e cargos em que essas
pessoas negras ocupavam nas respectivas associações.

Tabela 3: Trânsito de membros do Clube Os Zíngaros em associações de


Bagé no Pós-abolição.
NOME PROFISSÃO ASSOCIAÇÃO CARGO/ANO
Dalveu Barbosa Pintor 1 – Sociedade 1 – Direção
dos Santos Recreativa Os (década de 1950 e
Zíngaros 1960)
2– Sociedade Liga 2 – Mordomo
Operária (1950)

José M. de Lima ---- 1 – Jornal O 28 de 1 – Fundador


Setembro (1937)
2 – Grêmio Dramático 2 – Amador (1937)
José do Patrocínio 3 – Orador (1939)
3 - Bloco dos Pavões 4 – Diretor
4 - Jazz Harmonia (Década de 1930)
5 – Sport Club Niterói 5 – Diretor (1940)
6 - Bloco Zíngaros 6 – 1º Secretário
7 - Sociedade (1942)
Recreativa Os 7 – Orador (1948)
Zíngaros

Manoel Arideu Músico 1 – Niterói Futebol 1 – Diretor (1940)


Monteiro Clube 2 – Amador
2 – Teatro em Família (década de 1940)
3 – Diretor (1948)

85 Na pesquisa encontramos as seguintes entidades negras que utilizavam os salões de


entidades de classe na cidade de Bagé: Sport Club Palmeiras – Sociedade Protetora dos Artistas
(1920) e SUO (1929); Sport Club América – Sociedade Liga Operária (1935); Cordão
Carnavalesco Adeantados – SUO (1929); Clube Carnavalesco As Teimosas – Sociedade Liga
Operária (1928); Rancho Carnavalesco Vamos de Qualquer Geito – Sociedade Liga Operária
(1937); Grêmio Dramático Palmeira – SUO (1927); Clube Carnavalesco Piratas do Amor –
Sociedade Liga Operária (décadas de 1940 e 1950); Clube Recreativo Os Zíngaros – SUO
(décadas de 1940, 1950 e 1960).
144

3 - Sociedade 4 – Professor
Recreativa Os (década de 1940)
Zíngaros 5 – Maestro/Diretor
4 - Instituto Musical (1950)
Santa Cecília
5 - Jazz Vitória

Nicolau da Rosa ---- 1 - Jornal O Palmeira 1 – Redator (1952)


2 - Sociedade 2 – Diretor
Recreativa Os (Década de 1960)
Zíngaros 3 – 2º Bibliotecário
3 - Sociedade (1955)
Beneficente Liga
Operária

Santiago da Rosa Escriturário 1 - Rancho C. Vamos 1 – Diretor


de Qualquer Jeito (Década de 1930)
2 - Sociedade 2 – Presidente
Recreativa Os (1948)
Zíngaros 3 – Secretário
3 - Sociedade União (1949)
Familiar 4 – Mordomo
4 - Sociedade Liga (1951)
Operária
Fonte: Jornal O 28 de Setembro; Jornal O Palmeira; Jornal Correio do Sul;
Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros; LOPES, 2007.

A partir da tabela acima, podemos perceber que os cinco sujeitos negros


elencados não se restringiram a apenas a fazer parte de uma associação local,
e sim acabaram por transitar em mais de uma, chegando, como no caso de José
M. de Lima, a participar de sete entidades de Bagé entre as décadas de 1930 e
1940. Corroborando o que algumas pesquisas vêm demostrando para outras
localidades, muitos sujeitos negros mantiveram uma vida ativa no seio de
práticas associativas, fazendo parte de jornais, entidades dramáticas, entidades
de classe e de sociedades recreativas, pois para muitos homens e mulheres
negras, a busca pela luta em mais de uma frente poderia ser uma garantia de
melhores condições de vida e de ascensão social. Esse fator também reforça
nosso argumento de que as sociedades recreativas também eram redutos de
lutas e projetos políticos para a elevação da raça, pois assim como outras
entidades negras de Bagé, os clubes sociais eram uma ferramenta estratégica
para a construção de identidades negras dentro de uma sociedade racializada.
145

Fechando o parêntese e seguindo na observação do Zíngaros, foi


somente no ano de 1948, ou seja, quatro anos depois de se efetivar enquanto
sociedade, que o clube elaborou o seu primeiro estatuto. Para tal missão, foi
montada uma comissão formada por Manoel Arideu Monteiro, José M. de Lima,
Santiago da Rosa e José Antônio Corrêa. Como ficou evidente na tabela 2, os
três primeiros sujeitos, além de compor o quadro do clube Os Zíngaros, também
circularam em outras associações locais, seja no âmbito de sociedades de
classe como a Liga Operária, bem como em associações dramáticas, esportivas,
musicais, em jornais e grupos carnavalescos. Com relação ao Sr. José Antônio
Corrêa, infelizmente não conseguimos, até o presente momento, mapear outros
espaços associativos em que fez parte. Com isso, percebe-se que para a
elaboração dos estatutos da sociedade, estavam a frente sujeitos que
provavelmente seriam referência para o restante do grupo, pois estes acabaram
por se destacar nas atividades que desenvolveram em diversas associações da
cidade.
Através de algumas características do seu estatuto, podemos perceber
aspectos da organização dos membros do Zíngaros. Primeiramente,
percebemos que há uma certa rigidez com relação a postura que se deve ter
para se associar na sociedade, principalmente para com as mulheres. No artigo
número dois do referido estatuto, escreve-se que:
Todo o cidadão para ser admitido como sócio é preciso ser
moralizado e que não se dê á prática de maus costumes, assim
como a senhora ou senhorita é preciso ser de conduta
inatacável86.

Fazendo um paralelo com os estudos de Loner e Gill (2009), que


pesquisaram alguns clubes negros da cidade de Pelotas no período republicano,
observamos que o Clube Fica Ahí, da referida cidade, também possuía critérios
rígidos para com os seus associados, no qual:
[...] utilizava, como padrão de comportamento para seus sócios,
o mesmo vigente nos clubes de classe média da cidade, sendo
extremamente rigoroso com a moral e o vestuário próprio para
festas, etc. (LONER; GILL, 2009, p. 155).

86 Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros. 1948. Typografia da Casa Maciel, Bagé.


p. 4.
146

Formado sobretudo por trabalhadores autônomos, o clube Zíngaros,


segundo Ivoncléo Monteiro, era uma sociedade que “respirava a simplicidade, o
operariado, de pessoas com uma faixa socioeconômica modesta, sem
suntuosidade”.87 Ao analisarmos alguns empregos de membros do clube no ano
de 1948, observamos que a grande maioria dos sujeitos negros possuíam
empregos autônomos, como é o caso de Santiago da Rosa e Norberto Moreira,
que possuíam escritórios na cidade. Já Martin Fernandes, que era da comissão
de contas do clube, possuía uma oficina de marcenaria em Bagé. Os Srs. Elias
Bell, Walter Santos Bell, Elias Santos Bell e Nadir Alves da Costa exerciam a
profissão de sapateiros, ao passo que Constantino Monteiro, que era o diretor
fiscal do Zíngaros, exercia a profissão de pintor.
Mesmo a grande maioria sendo trabalhadores autônomos, eram sujeitos,
que ao que tudo indica, tinham estabilidade em seus ofícios e exerciam grande
influência no grupo negro em que faziam parte, servindo de referência.
Ao frisar que o Zíngaros “não era assim uma coisa muito popular, [mas]
uma elite da raça negra”,88 podemos indicar que a Sra. Ieda Lisboa está frisando
que a referida sociedade era um espaço seleto, sendo organizado de forma
rígida, no qual o ingresso no clube não era acessível para a grande parcela de
sujeitos negros da cidade de Bagé. Toda essa organização e rigor presentes na
estrutura de organização do Zíngaros devem ser analisados pela ótica de
afirmação dos membros do clube, que buscavam criar uma identidade
“contrastante” do restante do grupo negro de Bagé. Nesse sentido, a construção
da identidade do Zíngaros é marcada pela diferença, de um nós em contraste
com os outros (WOODWARD, 2009, p. 9).
A partir disso, havia a necessidade de se afirmar numa sociedade
bageense pautada pela racialização das relações sociais e que impedia sujeitos
negros de acessarem determinados espaços. Essa afirmação também está
presente na elaboração do referido estatuto do clube, pois sua a sua construção
perpassa a busca de uma identidade - de cunho racial -, no qual seus membros
estavam procurando positivar sua imagem perante a sociedade bageense. Isso
fica evidente no parágrafo do estatuto citado acima, em que sujeitos cuja moral

87 Entrevista concedida pelo Sr. Ivoncléo Monteiro ao autor, no dia 16/05/2016.


88 Entrevista concedida pela Sra. Ieda Maria dos Santos Lisboa ao autor, no dia 19/09/2017.
147

e a boa conduta pudessem ser postas em dúvida, não poderiam se associar no


Zíngaros.
Outro fator que deve ser levada em consideração, é que ao forjarem uma
identidade baseada na diferença, ou seja, no contraste, os sujeitos negros
“zingarianos”89estavam também construindo um espaço racializado na cidade de
Bagé. Imbuídos num processo de racialização, os membros do Zíngaros também
estavam atentos a esses processos, sendo tal fato perceptível na construção de
seus espaços recreativos.
[Os clubes e centros negros] não apenas reage(m) a uma
racialização imposta, mas articula(m) formas de lidar com a
racialização criando e conferindo novos significados a códigos
impostos. Observar a racialização pela ótica negra, não perde
de vista o contexto maior de racialização, visto que com este,
obviamente, dialoga (SILVA, 2013, p. 3).

A rigidez apresentada nos estatutos do Clube Os Zíngaros também fica


evidente na narrativa da Sra. Ieda Maria dos Santos Lisboa, que questionada
sobre quando começou a frequentar o clube, no final dos anos de 1950, afirmou
que “devia ter todo um traje para frequentar os bailes, rapaz sempre de terno e
as mulheres sempre de vestido social”.90 Evidentemente que toda essa rigidez
recaía, principalmente para com as mulheres, que eram as mais vigiadas dentro
do espaço do clube e também no âmbito das suas vidas privadas. Um exemplo
pode ser observado através do artigo número 35 do referido estatuto, no qual
afirma que “só poderão fazer parte da sociedade como sócias efetivas, as
senhoras e senhoritas, cuja honestidade não se possa pôr em dúvida”.91
No que diz respeito à presença de mulheres em cargos diretivos do clube,
tanto nas informações dos jornais pesquisados, bem como nas narrativas dos
sujeitos entrevistados, não aparecem seus nomes, o que aponta que a direção
do Zíngaros era composta apenas por homens. Isso não exclui a participação e
o agenciamento das mulheres no âmbito do clube em questão, até por que, como
aparece na fala da Sra. Ieda Lisboa e da Sra. Zoila da Silva, as “senhoras e
senhoritas” eram responsáveis por diversas atividades, como por exemplo, as
decorações do salão antes das festas, bem como a própria manutenção do

89 Zingariano ou Zingariana é um termo utilizado por alguns membros do Zíngaros para se referir
às pessoas que frequentavam o clube.
90 Entrevista concedida pela Sra. Ieda Maria dos Santos Lisboa ao autor, no dia 19/09/2017.
91 Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros. p. 19.
148

espaço no decorrer do ano. Fica evidente que tais tarefas desempenhadas pelas
mulheres reproduzem as que as mesmas praticam em casa, porém, em alguns
espaços negros, essas tarefas extrapolam às do âmbito doméstico.
Esse detalhe foi bem apontado por Silva (2017), que ao analisar a atuação
de mulheres negras nos clubes na fronteira Brasil/Uruguai no Pós-abolição,
observou que houve momentos em que as mesmas desempenharam funções
majoritariamente masculinas, como é o caso da coleta de fundos para a
construção da sede própria do clube Fica Ahí da cidade de Pelotas. Já
especificamente sobre a atuação de mulheres negras nos clubes uruguaios, a
referida autora afirma que:
As mulheres negras, muitas das quais com profissões ligadas às
lides domésticas e poucos anos de estudo, residentes em Melo
ou em Montevidéu, com as raízes bastante sólidas no Centro
Uruguay, tinham na cor da pele e na experiência coletiva do
clube a identificação de um projeto político comum em prol da
raça, que incluía homens e mulheres. As formas como as
mulheres negras se colocaram e foram colocadas não permitem
observá-las a priori como à margem, fosse do próprio clube,
fosse das demais organizações negras em que se inseriam e
mesmo da sociedade de uma forma geral. Os condicionamentos
existiam, afinal, é nítido que elas criaram suas sub organizações,
como o vocábulo já adverte, em decorrência de não poderem
fazer-se presentes nos órgãos deliberativos dos conrazaneos.
Ora, em não podendo lá estar nada mais plausível que compor
os seus próprios órgãos e por meio deles dialogar com aqueles
que elas consideravam seus iguais. (SILVA, 2017, p. 219).

Na imagem abaixo, além de observar intensa a rigidez da direção do clube


em relação ao traje do Baile da Neve, no ano de 1949, cujo traje para a festa
deveria ser “soirée92, também fica evidente a atuação das mulheres através de
um centro feminino, característica muito comum nos clubes sociais de negros e
de brancos também.

92Consiste em um traje de gala, em que o homem deve vestir um terno preto com gravata
borboleta e as mulheres vestidos com muito brilho.
149

Imagem 12: Convite Baile da Neve no Clube Os Zíngaros. (Jornal O Palmeira,


7 de agosto de 1949, p. 4).

A agência de mulheres negras já vem sendo observado por


pesquisadores que se dedicam a observar a experiência dos clubes sociais
negros. Gomes (2008), ao analisar a criação e as estratégias de atuação do
Sport Club Gaúcho, clube negro da cidade serrana de Caxias, observou que as
mulheres eram as principais responsáveis pela manutenção do espaço do clube.
Além disso, nos momentos de crise, as coletividades femininas eram as
responsáveis por forjar atividades na tentativa de angariar fundos para a
entidade. Ao estudar a atuação feminina dentro do espaço do Clube 24 de
Agosto na cidade de Jaguarão, Lopes (2015) notou que mesmo imersas num
espaço rígido pautado por uma moral, as mulheres do clube mantinham espaços
de autonomia.
Estas mulheres que frequentaram o Clube [24 de agosto] (...)
também tiveram de se enquadrar nos estatutos que cerceavam
seus espaços, mas diante disso, não deixaram de traçar e forjar
suas histórias lá dentro, mesmo não estando representadas nos
espaços oficiais, não deixavam de decidir e serem consultadas.
(LOPES, 2015, p. 43).
150

Todo esse controle em relação ao comportamento das mulheres, também


presente de forma intensa aos olhos da imprensa negra bageeense como
mostrado no capítulo 2 dessa dissertação, não foi suficiente para que as mesmas
não forjassem as suas histórias no âmbito dos espaços dos clubes sociais.
Mesmo sob intensa vigilância e controle, características de uma sociedade que
se estrutura sob o machismo, não podemos esquecer que eram as mulheres
responsáveis por um dos momentos mais importantes de muitos clubes negros
espalhados pelo Brasil afora, referimo-nos aos concursos de rainha do carnaval
e os concursos de miss, momentos ápices nas trajetórias desses espaços
negros.
A escolha da Rainha era um evento importante que mobilizava
público, que estabelecia fronteiras entre quem podia e quem não
podia escolher, selecionar, bem como definir o que era beleza
negra dentro do clube social negro (ESCOBAR, 2017, p. 269).

No clube Os Zíngaros, a primeira rainha de carnaval foi eleita no ano de


1949, momento em que o clube buscou expandir suas atividades valorizando o
carnaval de salão e, também, conferindo outras estratégias de atuação, como,
por exemplo a busca pela construção de uma sede própria, como veremos mais
adiante.
No carnaval do ano de 1949, depois de intensa mobilização em torno de
apurações de votos e desfiles na sua sede social, localizada no prédio da
Sociedade União Operária, os associados do clube elegeram a Sra. Zaida Moura
Campos como a primeira rainha de carnaval do clube. Nesse processo, foi feita
uma comissão que apurou os votos, composta por pessoas ligadas a Rádio
Cultura de Bagé. A coroação de Zaida ocorreu no dia 20 de fevereiro, em uma
solenidade que teve a presença de setores da imprensa local, como é o caso
dos jornais Correio do Sul, Correio do Povo e também da Rádio Cultura.
151

Imagem 13: Zaida Moura Campos. Rainha de carnaval do Clube Os Zíngaros,


1949. (Jornal Correio do Sul, 27/02/1949, p. 6).

Para além das escolhas das rainhas de carnaval, o clube também


realizava outras atividades sociais durante o ano, como é o caso de bailes da
primavera, quermesses, festas de São João, baile da pelúcia, chás-dançantes e
os bailes de debutantes. Porém, segundo as narrativas da Sra. Ieda Lisboa,
coroada rainha no carnaval de 1959, o carnaval ainda seguia como um dos
principais momentos sociais e recreativos do clube Os Zíngaros. Isso indica que
o clube buscou preservar aquilo que deu origem à entidade, ou seja, os festejos
de Momo, tidos como um embrião da sociedade.
152

Imagem 14: Ieda Maria dos Santos Lisboa. Rainha do carnaval do Clube Os
Zíngaros, 1959. (Acervo da Sociedade Recreativa e Cultural Os Zíngaros).

Ao frisar algumas atividades realizadas pelo Zíngaros, a Sra. Ieda Lisboa


afirma que uma das mais aguardadas eram as excursões realizadas pelo clube
em cidades vizinhas, momento no qual partilhavam experiências e forjavam
laços de solidariedade e apoio. No caso do Zíngaros, havia excursões para as
cidades de Dom Pedrito, Cachoeira do Sul e São Gabriel, momento em que
levavam a rainha do clube e toda a corte para visitar outras associações.
A articulação dos clubes negros com sociedades de outras cidades já vem
sendo apontada pelos pesquisadores desses espaços, como é o caso dos
estudos da historiadora Fernanda Oliveira da Silva, que mostram as articulações
do clube Fica Ahí de Pelotas com os clubes Zíngaros e Palmeira da cidade de
Bagé nas décadas de 1930 e 1940 (SILVA, 2017, p. 146). Para além das cidades
vizinhas, muitos clubes negros acabavam extrapolando as fronteiras nacionais e
mantendo relações com entidades negras do Uruguai, como bem pontuado por
Silva (2017, p. 147):
153

Era também nos bailes que pessoas de diferentes espaços


encontravam-se e estreitavam os laços, deslocando-se,
sobretudo, em excursões. O Fica Ahí deslocava-se até Bagé por
meio das excursões e caravanas e, nesse momento, se
encontrava com a comissão d’Os Zíngaros quando era
recepcionado na sede do Palmeira. Nos bailes de Bagé,
especialmente n’Os Zíngaros, estavam também os negros
uruguaios e a representação formal do Centro Uruguay que, por
sua vez, recepcionava os associados d’Os Zíngaros e do 24 de
Agosto, e esse recebia grupo de associados do Centro Uruguay,
especialmente os residentes em Rio Branco entre 1942 e 1945.

Algumas informações referentes ao clube Zíngaros aparecem em atas de


assembleias do clube Fica Ahí, como uma no ano de 1949, no qual informa que
um membro do clube “Zíngaro” está presente em uma reunião do clube de
Pelotas.93 Outro exemplo de incursão do Zíngaros em outro município pode ser
analisado na nota transcrita abaixo:
SOCIEDADE RECREATIVA OS ZÍNGAROS /
DEPARTAMENTO ARTISTICO – Continuam em franco
andamento os preparativos da Sociedade Recreativa Os
Zíngaros, para a excursão a cidade de Lavras, onde, a convite
do Clube Operário 1º de Maio, realizarão um espetáculo, na noite
de 2 de agosto próximo, tomando parte após no grande baile de
pelúcia, que o referido clube realizará. (O Palmeira, 26/07/1952,
p. 2).

A partir da nota acima, podemos observar que o clube Os Zíngaros


excursionou para a cidade vizinha de Lavras, localizada a 73 km de Bagé, para
uma atividade artística, o que seria, provavelmente, um espetáculo teatral.
Depois da realização do espetáculo, o clube de Lavras iria realizar um baile de
pelúcia – nos mesmos moldes do que o clube bageense realizava – no qual os
membros da caravana “zingariana” tomariam parte. Porém, um dos fatores mais
interessantes dessa excursão diz respeito ao clube em que o Zíngaros estava
visitando: uma sociedade operária. Essa aproximação entre as sociedades
recreativas e de classe só reforçam a importância conferida pelos sócios de
clubes recreativos/dançantes para com entidades classistas, pois esses sujeitos
negros eram, acima de tudo, trabalhadores. É a partir dessa ótica que devemos,
também, observar as experiências desses homens e mulheres negras.
Como demonstrado na tabela 3 deste capítulo, vários foram os diretores
do Zíngaros que mantinham laços e compunham os quadros de sociedades

93Livro de atas de Assembleia, Conselho e Diretoria do Clube Fica Ahí P’ra Ir Dizendo, anos
1947 a 1956. Ata nº 446, de 07/04/1949. Acervo do NDH – UFPel.
154

classistas de Bagé, principalmente a Liga Operária, o que demonstra que lazer


e militância94 andavam lado a lado na experiência cotidiana dos associados
desses clubes (COSTA, 2014; PEREIRA, 2017).
Não somente os clubes sociais realizavam excursões para outros
municípios aos seus co-irmãos, pois como já foi demonstrado no capítulo 2
desse trabalho, os times de futebol negros que disputavam a Liga 13 de Maio
também participavam de jogos amistosos contra equipes de futebol da cidade de
Pelotas e que disputavam a Liga José do Patrocínio. No ano de 1936, o Grêmio
Sportivo América, time de futebol composto por jogadores negros de Bagé, fez
uma excursão para a cidade de Rio Grande e depois Pelotas. Em Rio Grande, a
equipe bageense disputou um jogo amistoso contra o Combinado Gaúcho, time
de futebol rio-grandino que já havia visitado Bagé. Porém, para além de apenas
um jogo amistoso, o Grêmio Sportivo América apresentou uma peça de teatro
intitulada O Que Há em Bagé, fazendo da caravana um festival
artístico/futebolístico. (O Arauto, 26/04/1936, p. 3). Ao realizar uma peça
artística, esses sujeitos negros estavam desconstruindo estereótipos a eles
atribuídos, principalmente os que afirmavam que homens e mulheres negras não
tinham capacidades para realizar atividades culturais, afirmativa essa decorrente
das teorias raciais dos séculos XIX e início do século XX.
Já na cidade de Pelotas, a caravana do América iria disputar um jogo
amisto com o co-irmão também chamado América, cujo ao vencedor “será
oferecida uma linda e artística taça, em regozijo pelo 29 aniversário da fundação
da nossa apreciada colega A Alvorada” (O Arauto, 26/04/1936, p. 3).
Na liderança da caravana do América, estava seu diretor, o Sr. Cherubim
Bittencourt, homem cuja influência no meio negro bageense era significativa.
Como já mencionado no capítulo anterior, além de dirigir o time do América,

94No ano de 1937, o jornal da imprensa negra O 28 de Setembro anunciou o seguinte evento
em suas páginas: “O festival do Grêmio Dramático José do Patrocínio que levará à cena o drama
em 3 atos, intitulado “A Hora do Operário”, que tomarão parte os seguintes amadores: Delfino
Menezes; Oscar Camargo; Luiz Couto; Paulino Ximendes; Amazonas Bittencourt; Heitor Alves;
Anselmo Couto; Helio Paraíso; José Machado; José M. de Lima e diversas senhorinhas do nosso
escol social. ” (O 28 de Setembro, 14/ 11/1937, p. 2). Esse espetáculo teatral, protagonizado por
pessoas negras, demonstra que a experiência enquanto trabalhadores/operários estava
presente nas ações culturais de muitos grupos negros. O teatro foi uma das ferramentas
acionadas pelos grêmios dramáticos compostos por negros para expressarem suas vivências e
suas lutas em prol da classe trabalhadora.
155

Cherubim esteve à frente de dois blocos carnavalescos negros de destaque em


Bagé.

Imagem 15: Cherubim Bittencourt, 1938. (O 28 de Setembro, 23/10/1938, p. 5).

Além do time do América, outro que realizou excursões foi o Sport Club
Niterói, cuja liderança estava a cargo do Sr. Arideu Monteiro, importante quadro
do Clube Zíngaros e que esteve também a frente da elaboração do primeiro
estatuto da referida sociedade. No ano de 1940, os quadros do Niterói foram a
Porto Alegre disputar um jogo amistoso contra o time do Clube Floresta Aurora
(Diário de Notícias, 03/12/1940, p. 9). Cabe lembrar que o Floresta Aurora é a
sociedade negra mais antiga do Rio Grande do Sul e uma das mais antigas do
Brasil, sendo a sua criação datada de 1872 (ESCOBAR, 2010; SILVA, 2017).
As articulações dos membros do Zíngaros, que como já vimos extrapolava
os limites do município de Bagé, também ficam evidentes quando nos propomos
a observar a campanha para a sede própria, que foi lançada no ano de 1949,
como mostra a notícia abaixo vinculada no periódico O Palmeira:
CAMPANHA DA SEDE PRÓPRIA – A diretoria desta sociedade
também, deu início a uma grande campanha, em prol de sua
156

sede própria. Diversas são as modalidades que os Zíngaros


empregarão para a aquisição de fundos para a compra de sua
sede, constando uma delas de um Livro de Ouro, o qual já foi
aberto, por alta gentileza, pelos exmos. Srs. Drs. Valter Jobim e
Carlos Kluwe, digníssimo governador do estado e prefeito
municipal, respectivamente, livro este que será levado a todos
os associados e simpatizantes dos Zíngaros. (O Palmeira,
07/08/1949, p. 1).

Na nota acima, observa-se que para angariar fundos para a aquisição da


sua sede própria, os membros do Zíngaros fizeram um livro de ouro, que na
ocasião foi inaugurado pelo então governador do Estado do Rio Grande do Sul,
Valter Jobim e pelo então prefeito de Bagé Carlos Kluwe. Ambos políticos
pertenciam ao quadro do Partido Social Democrático (PSD).
Essa proximidade dos membros do clube com as autoridades políticas do
Estado e de Bagé nos chama a atenção, pois além disso, o clube mantinha
relações com entidades classistas, o que denota toda uma agência desses
sujeitos negros nas suas articulações tanto com grupos políticos “hegemônicos”
como também com entidades de classe que transitavam mais a margem do jogo
político institucional.
Também é importante salientar que nos anos finais da década de 1940, o
ideário da Democracia Racial estava pulsando nas mentes dos intelectuais e
políticos brasileiros, sobretudo depois que Getúlio Vargas governou o país em
dois mandatos (1930 – 1945 e 1951 – 1954). Nesse contexto, o Estado buscou
criar um sentimento de unidade nacional, o que pode ter feito com que os
membros do Zíngaros buscassem ampliar seus espaços de atuação e assim
forjar novas redes políticas afim de interesses próprio.
Infelizmente não encontramos nenhuma referência se houvera algum
diretor do Zíngaros que fosse filiado e/ou candidato pelo PSD, o que poderia
ampliar nosso raio de observação. Mesmo assim, a proximidade de alguns de
seus membros com políticos do partido denota que sujeitos negros pertencentes
aos clubes sociais da raça estavam atentos e ativos nos processos políticos do
Brasil no Pós-abolição e não eram somente meros “espectadores”.
No que diz respeito à sede própria do clube Zíngaros, essa veio a se
concretizar somente no final da década de 1960. Porém, em 1959, um decreto
do poder executivo de Bagé, na figura do então prefeito municipal em exercício
157

Abib Ieffret, autorizou o executivo a doar um terreno para a construção da sede


através da lei municipal nº 774. Esse terreno estava localizado na Rua Dr.
Veríssimo95, no centro da cidade e ao lado da então cadeia municipal.
Com a instalação da sede própria nos anos finais da década de sessenta,
veio também uma renovação dos quadros diretivos do clube e a inauguração de
outras atividades socais, sem que isso não acompanhasse alguns conflitos
internos.
Nas narrativas do Sr. Ivoncléo Monteiro, filho do Sr. Arideu Monteiro, uma
das grandes lideranças do Zíngaros já mencionado anteriormente, o mesmo
afirma que na época em que ingressou no clube, nos idos dos anos sessenta,
esse era pautado por muita rigidez e conservadorismo. É interessante notar que
Ivoncléo, assim que completou dezoito anos foi servir ao exército e em seguido
viajou em missão para a faixa de Gaza.96 Ao escrever sobre o seu amigo no seu
livro sobre as memórias de Bagé na sua adolescência, Gilberto Alves Soares
afirma que:
Ivoncléo tornara-se um negro diferente. Um filho de militar que
aproveitou o ambiente favorável para estudar e abrir os espaços
rarefeitos pela segregacionista e conservadora sociedade da
Rainha da Fronteira. Ao ir a Suez e voltar coberto da glória do
reconhecimento, pôde exercer a plenitude de seu talento como
professor e propiciar um espaço menos árduo para o talentoso
irmão Ivonléo, raro pianista “de cor”. (SOARES, 2015, p. 30).

Depois de regressar do Oriente Médio e ter acumulado diversas


experiências na bagagem, Ivoncléo afirma que entrou em atrito com a equipe
diretiva do Zíngaros, que na época estava sob a direção de seu pai Arideu
Monteiro. Nesse sentido, Ivoncléo saiu do Zíngaros e junto com outros sujeitos
fundou o Aurora Social Clube.
Tendo uma vida efêmera dentro do cenário social/recreativo de Bagé, o
Aurora se caracterizou também por ser um clube seleto e “chic” no meio negro
da cidade. Segundo relata o próprio Ivoncléo:
[...] Aqueles negos metido a bons, que queriam ser diferentes
dos outros, os negros hipócritas, entendeu”? Então eles se
achavam um pouquinho melhor, as negras eram mais clarinhas,
mais descascadas [...] e os Zíngaros era o clube das lavadeiras,

95 Sobre a localização da sede dessa associação no mapa de Bagé, ver Anexo.


96 A ida de Ivoncléo Monteiro para a faixa de Gaza teve como objetivo participar de uma
intervenção do Reino Unido, Israel e França contra o Egito, que naquele contexto era governado
por Nasser e que havia nacionalizado a Companhia do Canal, em 1956.
158

das costureiras, das bordadeiras, então sempre houve,


lamentavelmente, aqueles que queriam ser melhor que os
outros.97

Na narrativa de Ivoncléo percebe-se as diferenças entre os dois clubes e


seus associados, pois os membros do Zíngaros, segundo relata, exerciam
profissões mais modestas. Já os membros do Aurora eram caracterizados como
sendo negros de pele mais clara, e segundo Ivoncléo eram negros que exerciam
profissões mais estáveis, como funcionários públicos.
Esse relato é importante para percebermos o quanto que os espaços dos
clubes negros também eram permeados por conflitos e em muitos casos
dissidências, como foi o caso da criação do Aurora, que mesmo tendo uma vida
curta denota um “racha” no seio do Zíngaros, um clube já muito tradicional na
comunidade negra de Bagé.
Outro fator que merece destaque diz respeito ao entrevistado mencionar
a “cor” dos membros do Aurora. Ao frisar que as associadas do referido clube
eram “mais clarinhas, mais descascadas”, percebemos uma hierarquia racial no
seio dos sujeitos negros envolvidos nas práticas associativas da cidade. Ou seja,
as narrativas de Ivoncléo sugerem que o Aurora era composto por uma parcela
de negros com a cor da pele mais clara, fazendo disso um critério de
diferenciação. Mesmo sendo pessoas negras, as variações de pele
hierarquizavam as ações e algumas práticas associativas destes sujeitos,
havendo, inclusive, espaços separados dentro do próprio grupo, pois como
afirma Rosa (2014, p. 281) “a raça unificava os indivíduos de cor, as variações
de pele criavam fronteiras entre eles”.
Mas a diferença dentro do próprio grupo não resultava somente das
variações da tonalidade de pele. Ao lembrar algumas lideranças negras que
estavam presentes nos espaços associativos de Bagé, seja em entidades
carnavalescas ou nos clubes sociais, Sr. Luís Barbosa da Silva cita o nome de
Oscar Camargo. Segundo o depoente, Oscar foi um dos fundadores do bloco
Bambas da Cidade e também pertencera aos quadros do clube Zíngaros e
Palmeiras nas décadas de 1940 e 1950. Ao se referir a esse sujeito, Sr. Luís
afirma que o mesmo era “nego de gente de finíssima”, e em seguida completa:

97 Entrevista concedida pelo Sr. Ivoncléo Monteiro ao autor, no dia 16/05/2016.


159

“[...] era uns nego rico, rapá, tudo metido a rico”.98 Na sequência, ao ser
questionado sobre como eram as relações entre o depoente e Oscar Camargo
– pois os mesmos desfilaram no mesmo bloco – Sr. Luís afirma que naquele
contexto, “nego rico não se misturava com nego pobre”.99 Ou seja, as narrativas
do Sr. Luís sugerem haver uma distância e uma hierarquia baseada na classe
social entre pessoas negras, o que também era critério de exclusão de
determinados espaços criados por membros do mesmo grupo. Mas também, é
importante ressaltar que nem sempre essas hierarquias prevaleceram, pois
como foi apontado anteriormente, o próprio Sr. Luís, operário e de condição
financeira modesta, fez parte dos quadros do Bambas da Cidade, no qual uma
das lideranças era Oscar Camargo. Mesmo assim, em muitos casos, como já
vem sendo apontado por alguns historiadores que se dedicam a estudar as
relações entre pessoas negras e seus espaços associativos no Pós-abolição,
haviam hierarquias e fronteiras nítidas no qual a cor da pele e a classe social
eram requisitos para a exclusão de grupos de pessoas negras de determinados
espaços, mostrando um processo de racialização entre os próprios negros.
(SILVA, 2013, 2017; ROSA, 2014).
Com relação a Ivoncléo, ao ter experiências em outros países e em outros
estados do Brasil, o mesmo buscou referências novas para levar para o Zíngaros
assim que retornou ao clube nos anos finais da década de 1960. Com isso,
acabou por ser eleito presidente da sociedade e renovar seu quadro diretivo.
Apaixonado por carnaval, buscou colocar o Zíngaros no seio dos desfiles
carnavalescos de rua novamente, porque até aquele momento o carnaval era
festejado somente no âmbito do espaço do clube.
A década de 1970 marca uma nova etapa e a criação de outros projetos
elencados pelo Zíngaros, como é o caso da criação da Academia de Samba Os
Zíngaros e um time de futebol, cuja liderança do último ficou a cargo do sócio
remido Vanderlei Barbosa da Silva.
O carnaval passa então a ser uma das principais estratégias empregadas
pelo Zíngaros na sua atuação em Bagé, momento no qual a entidade passa a
ganhar ainda mais visibilidade. Outros clubes negros usaram o carnaval como

98 Entrevista concedida pelo Sr. Luís Barbosa da Silva ao autor, no dia 27/04/2017.
99 Ibdem.
160

estratégia para (re) significar seus ares e projetos de atuação em suas cidades,
como foi o caso do Sport Club Gaúcho de Caxias do Sul.
Gomes (2008) aponta que a partir da década de 1960 o carnaval passa a
ser uma das principais estratégias de atuação do referido clube. Surgida
inicialmente enquanto Bloco carnavalesco, Os Protegidos da Princesa irão
ganhar diversos concursos do carnaval de rua de Caxias, aumentando, assim,
as arrecadações e os fundos do clube. Sendo assim, posteriormente a entidade
irá criar uma escola de samba com o mesmo nome do bloco mencionado
anteriormente, no qual irá cair nas graças da população de Caxias, exibindo
espetáculos por diversos anos nas ruas da cidade. Percebe-se, assim, que a
escola de samba do clube Gaúcho se tornou o projeto mais significativo daquela
instituição, substituindo o futebol como forma de interação com os outros
(GOMES, 2008, p. 88).

Imagem 16: Academia de Samba Os Zíngaros, 1973. (Correio do Sul,


08/03/1973, p. 6)

Assim que concorreu pela primeira vez nos desfiles das escolas de samba
de Bagé em 1973, a escola do Zíngaros obteve o primeiro lugar, ficando na frente
161

de tradicionais escolas da cidade como a Aliança e Copacabana. Esse título, fez


com que a Academia de Samba Os Zíngaros excursionasse para a cidade
uruguaia de Melo, com o auxílio do da secretaria de cultura e turismo de Bagé,
reforçando ainda mais as articulações entre entidades brasileiras e uruguaias
como bem pontuada por Silva (2017).
Para além do carnaval, agora tomado como um dos principais objetivos
do clube, a direção seguiu na organização de festas temáticas como acontecia
nos anos anteriores, como escolhas das rainhas e chás-dançantes. Porém, a
década de 1970 também marca o ingresso do Zíngaros nos circuitos dos
concursos de beleza da mulher negra.
Presentes nos clubes negros espalhados pelo Brasil sobretudo a partir
dos anos de 1970, tais concursos acabaram por dar visibilidade a esses espaços,
como é o caso do estudo de Giacomini (2008) sobre o clube Renascença, que
projetou diversas mulheres negras em concursos na cidade do Rio de Janeiro e
em âmbito nacional, sendo eventos importantes para a criação de uma
autoestima da mulher negra. Porém, também é importante destacar que tais
concursos, principalmente os que se de denominavam “Miss Mulata”, serviam
também para reproduzir estereótipos sob os corpos das mulheres negras.
Já as mulatas são exaltadas na década de 1980, tanto pelos
clubes negros, com os Concursos de Miss Mulata [...] pois era a
materialização do mito da democracia racial e o ideal de relações
étnico-raciais que o Brasil da Ditadura Militar queria ver e
propagar: um país da harmonia, sem conflitos raciais ou de
qualquer outra natureza. (ESCOBAR, 2017, p. 344).

Um desses concursos era o Boneca Café do Brasil, evento que ocorria


inicialmente no âmbito das cidades, depois dos Estados e por último
nacionalmente. Segundo relata o Sr. Ivoncléo, na década de 1970 Tânia Mara
Bittencourt ficou em segundo lugar na etapa principal do concurso, a fase
nacional, perdendo para a miss Renascença em evento realizado na cidade de
São Paulo e que reunia uma dezena de misses de diversos clubes negros
brasileiros.100
Os concursos de beleza negra vão fazer parte da agenda do Zíngaros
até os anos finais da década de 1970, momento em que a escola de samba do

100 Uma reportagem sobre o concurso Boneca Café do Brasil pode ser lida em:
https://revistaraca.com.br/concurso-bonequinha-do-cafe/. (Acessado em 22/03/2018).
162

clube também deixa de existir, principalmente devido ao acúmulo de dívidas,


muito recorrente em espaços dos clubes negros gaúchos e brasileiros nesse
contexto.
O clube Zíngaros ainda está ativo no seio da sociedade bageense e
realiza diversas atividades sociais/recreativas e políticas, como é o caso de
debates em torno do 13 de maio e o 20 de novembro. Com 82 anos de existência,
o clube ainda resiste, demarcando um espaço de luta na fronteira sul do Brasil.
Assim como os estudos de Silva (2011; 2017) apontaram para as
associações negras de Pelotas e seus sujeitos históricos, creiamos, também,
que os membros do clube Os Zíngaros, imersos numa cidade cujo racismo
imperava, buscaram construir uma identidade negra positiva pautada na
desconstrução de estereótipos a eles atribuídos.
163

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas construídas em torno da cidade Bagé, assim como é


característica comum nas demais cidade interioranas do Rio Grande do Sul,
guardam resquícios de uma história no singular, priorizando pessoas da elite
local e que estão entre os nomes que ajudaram a fazer com que a cidade seja
conhecida pela alcunha de Rainha da Fronteira. Esses sujeitos são os
estadistas, comerciantes, charqueadores e políticos da elite local, mas o
principal: são pessoas brancas. Aos demais sujeitos da cidade, esquecidos em
meio aos fundos documentais, nem o papel de coadjuvantes lhes foi dado, pois
bem como pontuou Soares (2015), estes não “mereciam” ser os protagonistas
da história.
Buscando trilhar um caminho inverso ao já cristalizado pela historiografia
“oficial” de Bagé, a presente dissertação teve como objetivo observar as
experiências e as vivências de homens e mulheres negras da cidade na
constituição de seus espaços associativos e de cunho racial, cuja análise se
concentrou em torno da imprensa negra, nas entidades carnavalescas e nos
clubes sociais forjados pelos e para os negros no Pós-abolição.
Como ficou nítido no decorrer da escrita do presente trabalho, no Pós-
abolição a cidade interiorana de Bagé viu o nascimento de uma dezena de
associações criadas por e para os negros, com destaque para os impressos de
cunho racial, as entidades carnavalescas negras e os cubes sociais, redutos da
raça e permeados por diversas estratégias de afirmação e múltiplos projetos
políticos.
No primeiro capítulo, cuja objetivo foi debater sobre a escrita da história
local, observamos nitidamente que diversos escritores acabaram por construir
uma narrativa que invisibilizou a atuação de homens e mulheres negras.
Presentes em Bagé desde o século XIX em números significativos, ainda que
em sua maioria enquanto escravizados, esses sujeitos não foram observados
por aqueles que se dedicaram a estudar a história de Bagé. Fica a impressão
que Bagé é um reduto de pessoas brancas e descendentes de europeus, como
bem tentou mostrar por muito tempo a historiografia sobre o Rio Grande do Sul,
164

fazendo com que ainda nos dias atuais muitas pessoas se identifiquem com
essas assertivas históricas.
Como ficou evidente, a escravidão desempenhou um papel significativo
na cidade, fomentando a economia local e gerando riquezas para a região da
campanha. Ao passo que isso ocorria, diversos trabalhadores negros
escravizados buscavam lutar contra as estruturas de uma sociedade escravista,
seja na tentativa de fugas, bem como nas tentativas de insurgências e demais
estratégias de resistências cotidianas a escravidão.
Já no alvorecer da República, a historiografia local seguiu a silenciar a
atuação desses sujeitos, preocupados, acima de tudo, em retratar homens e
mulheres negros de forma estigmatizada e caricata, reforçando estereótipos
racistas e cujas construções remontam ao século XIX. Sabemos que essa
invisibilidade na história de negros e negras fez parte de uma agenda de
pesquisadores (OLIVEN, 1996). Porém, o que buscamos mostrar nesse capítulo,
foi de que está mais do que na hora de atentarmos para a experiência de
pessoas negras em Bagé, seja nos anos em que vigorou a escravidão e
atravessando o período Pós-abolição.
No segundo capítulo a proposta foi a de observar as experiências de
jornais produzidos por e para pessoas negras em Bagé, atentando para as
notícias que eram vinculadas em suas páginas e os projetos políticos
encabeçados pelos seus redatores. Percebemos que assim como em outras
regiões do Estado do Rio Grande do Sul e mesmo do Brasil, a imprensa negra
de Bagé também estava preocupada em construir uma ideia de moral e disciplina
em torno da figura do sujeito negro, sobretudo das mulheres do grupo através
de uma intensa vigilância e controle de suas atitudes.
Essas questões, como foi apontado no decorrer da dissertação, devem
ser analisadas sob a ótica de busca de afirmação, levando em consideração que
o contexto de surgimento desses jornais estava carregado pelas construções
das teorias raciais e que buscavam inferiorizar o segmento negro através de
discursos científicos. Através da análise da imprensa negra de Bagé, ficou
evidente que além de buscarem construir uma identidade negra de base racial,
tais jornais foram também os responsáveis por pautar diversos projetos políticos
afim da ascensão social de homens e mulheres negras, como é o caso da
importância conferida a instrução primária e a alfabetização, questões
165

levantadas por muitos jornais negros espalhados pelo Brasil e que denota uma
problemática intrínseca do Pós-abolição.
Através de alguns jornais da imprensa negra bageense, também
tivemos contato com diversas outras associações negras que protagonizaram
múltiplas ações na cidade, como é o caso dos times de futebol da raça que
disputavam a Liga de Futebol 13 de Maio, competição que reunia somente
equipes formadas por jogadores negros. Além de times de futebol, encontramos
diversas referências a entidades dramáticas, mostrando que homens e mulheres
negras de Bagé estavam forjando diversas ações culturais/sociais na cidade.
Outra questão levantada pelo presente estudo diz respeito a importante
atuação de entidades carnavalescas negras em Bagé, sobretudo a partir dos
anos de 1930 e 1940. Nesse contexto de tentativa de se criar um sentimento de
unidade nacional propagado pelo Estado na figura de Getúlio Vargas e com
amplo apoio de intelectuais e instituições públicas e privadas, o carnaval passou
a ser visto como a síntese da festa popular brasileira. Ao percorrermos as
experiências de diversos ranchos, cordões e blocos carnavalescos negros da
cidade, notamos que estes se aproveitaram da conjuntura e ocuparam os
espaços públicos das ruas de Bagé, mostrando toda uma organização frente à
outras entidades e dando a tônica do carnaval bageense. Porém, como a
presente pesquisa demonstrou, algumas entidades carnavalescas organizavam
atividades para além do período do carnaval, principalmente na tentativa de
angariar fundos para seus cofres.
A cidade de Bagé foi observada nessa dissertação atentando para uma
localidade cujas relações sociais eram balizadas por critérios raciais. Com isso,
diversos espaços da cidade eram segregados e às pessoas negras era proibido
o acesso. Para além de alguns espaços públicos da cidade, como calçadas e
estabelecimentos comerciais, os processos de racialização também estavam
presentes nos clubes e espaços festivos da cidade. Proibidos de frequentarem
determinados clubes, homens e mulheres negras criaram os seus espaços, no
qual a utilização da ideia de raça também se fez presente, como foi o caso do
concurso carnavalesco organizado pelas Teimosas e que teria a participação
somente dos cordões da raça.
Ao analisar as experiências dos clubes negros de Bagé – espaços
racializados e de resistência negra por excelência – acabamos encontrando uma
166

gama de ações protagonizados pelos sujeitos históricos presentes nesses


espaços. A rigidez dos estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros acaba
por denotar toda uma postura de construção de uma identidade baseada na
diferença, ou seja, na tentativa de afastamento de estereótipos negativos que
recaia sobre o grupo negro, porém, assim como já apontado por outros estudos
sobre a temática, notamos que essa rigidez atingia fundamentalmente as
mulheres do clube.
Ao serem eleitas rainhas ou princesas, as mulheres negras ganhavam
visibilidade no interior do clube, e assim, estas também eram as responsáveis
por levar o nome da entidade para outras regiões, principalmente nos momentos
em que a corte e a rainha realizavam visitas à clubes coirmãos. Mesmo fazendo
parte de um espaço pautado por práticas machistas e sexistas, pois a sociedade
se estrutura dessa forma, as mulheres, em muitos casos, puderam exercer
espaços de autonomia e eram as principais responsáveis por representar o clube
para além das cidades em que estes estavam presentes. Ao mesmo tempo, os
concursos de beleza que foram realizados, principalmente pelo Zíngaros a partir
da década de 1970, foram responsáveis por incentivar a autoestima da mulher
negra conferindo-lhes visibilidade, da mesma forma também reforçavam
estereótipos sobre a beleza da mulher negra.
As articulações dos membros do clube para com diversas outras
entidades negras do estado mostra as redes criadas pelos diretores e
associados desses espaços. Mas também, como bem pontuou Silva (2017),
essas redes ultrapassaram as fronteiras dos limites nacionais, sendo forjadas
também com entidades negras do Uruguai.
As ligações de entidades negras de cunho recreativo com as de cunho
classista já vinham sendo observadas, principalmente nas pesquisas pioneiras
realizadas por Loner (2001) para as cidades de Pelotas e Rio Grande, e
posteriormente através dos estudos de Silva (2011; 2017) para a primeira cidade.
Em Bagé, também encontramos um estreito vínculo do clube Os Zíngaros com
entidades de classe, seja de outros municípios como também as existentes em
Bagé. Além disso, ao mapearmos os trânsitos de alguns membros do Zíngaros,
acabamos notando que muitos circulavam por mais de uma associação local,
seja relacionada a questões de classe, mas também à pratica do futebol, do
teatro, da música e através da atuação na imprensa. Um exemplo dessa prática
167

diz respeito ao Sr. José Moraes de Lima, que entre os anos de 1930 e 1940
circulou em sete associações de Bagé.
No clube Palmeiras, fundado no final da década de 1940 por sujeitos
negros que já haviam frequentado outros espaços associativos de negros da
cidade, como é o caso do próprio clube e bloco do Zíngaros, foi criada uma
biblioteca e um departamento cultural. Essas preocupações denotam que além
de serem espaços meramente recreativos, muitos clubes negros estavam
engajados em lutas políticas para o fortalecimento da raça. Mostrar-se
organizados, disciplinados, era fundamental na busca pela desconstrução de
estigmas que atribuíam a esses trabalhadores negros a incapacidade de se
organizar enquanto coletividade.
Às angustias expressas no primeiro capítulo dessa dissertação pelo
escritor negro Gilberto Alves Soares, sobre as lacunas existentes nas histórias
de negros e negras de Bagé, tentamos, na medida do possível contribuir para
minimizá-las.
168

ANEXOS

Mapa da cidade de Bagé numerado com as sedes das associações.


1 - Rua Almirante Gonçalves – Sede do Cordão Adeantados.
2 - Rua Dr. Veríssimo – Sede da Sociedade Recreativa Os Zíngaros.
3 - Rua Emílio Guilain - Sede do Rancho Carnavalesco Vamos de Qualquer
Geito.
4 - Rua João Telles – Sede da Sociedade União Operária.
5 - Rua José Otávio – Sede da Sociedade Recreativa Palmeiras.
6 - Rua Maurity – Sede do Bloco Garotos da Batucada.
7 - Rua Monsenhor Costábile Hipólito – Sede Sociedade Liga Operária.

Fonte: https://www.google.com.br/maps/place/Bag%C3%A9,+RS/@-
31.3276975,-
54.1093968,1364m/data=!3m1!1e3!4m5!3m4!1s0x950675847493ab7d:0x667e
3efbe8e31985!8m2!3d-31.3301424!4d-54.1004622 (Acesso em 31/05/2018).
169

LISTA DE FONTES

Museu Dom Diogo de Souza, Bagé.


Fundo: jornais
Jornal A Liberdade, Bagé – 1920.
Jornal O Palmeira, Bagé – 1922; 1927; 1949; e 1952.
Jornal A Revolta, Bagé - 1925.
Jornal O Teimoso, Bagé - 1928.
Jornal O 28 de Setembro, Bagé – 1937; 1938 e 1939.
Boletim do Departamento Cultural Casemiro de Abreu - Clube Palmeiras, 1951.

Arquivo Público Municipal Tarcísio Taborda, Bagé


Fundo: jornais
Jornal Correio do Sul, Bagé – 1936 – 1973.
Fundo: Inventários e Testamentos
Inventário de falecimento de Delfino Menezes. 1962.

Museu Hipólito José da Costa.


Fundo: acervo digitalizado
Jornal O Rio Branco, Bagé – 1913.
Jornal Socega Leão, Bagé – 1937 e 1939.
Jornal O Boato, Bagé – 1929.
Jornal A Defeza, Bagé – 1920.
Jornal O Rouxinol, Bagé – 1924.
Jornal Lampeão, Bagé – 1934.

Hemeroteca Digital Brasileira – Biblioteca Nacional Digital


Fundo: periódicos
Jornal A Alvorada, Pelotas – 1949.
Jornal A Federação, Porto Alegre – 1914.
Jornal A Razão, São Paulo – 1919.
170

Jornal Diário de Notícias, Porto Alegre – 1940.

Sociedade Recreativa e Cultural Os Zíngaros


Fundo: documentos internos
Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros. 1948. Typografia da Casa
Maciel, Bagé.

Relatório do Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul -


Joaquim Antão Fernandes leão, 1859. Encontrada em: (http://www
apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_grande_do_sul). Acesso em 14/03/2017.

Censos demográficos
Recenseamento Geral do Brasil. 1872. (Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=225477).
Acesso em 15/03/2017.
Recenseamento Geral do Brasil. (1º de setembro de 1940). Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), Rio de Janeiro, 1950. pp. 307.

Entrevistas
Sr. Ivoncléo Monteiro – Entrevista concedida ao autor, no dia 16/05/2016.
Sr. Luis Barbosa da Silva – Entrevista concedida ao autor, no dia 18/03/2017.
Sr. Vilmar Paiva dos Santos – Entrevista concedida ao autor, no dia
10/05/2016.
Sra. Ieda Maria dos Santos Lisboa – Entrevista concedida ao autor, no dia
04/10/2017.
Sra. Zoila da Silva Pinto – Entrevista concedida ao autor, no dia 19/09/2017.
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