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R E V I S T A
Revista do Laboratório de
Estudos Históricos das
Drogas e da Alimentação
LEHDA - USP
nesta edição:
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional
de Pesquisa em Alimentação: circuitos de
produção e consumo
Ingesta
Revista eletrônica do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas
e da Alimentação da Universidade de São Paulo (LEHDA/USP)
ISSN 2596-3147
Comissão editorial
Nicole Leite Bianchini (mestranda em História Social na FFLCH/USP) e
Viviane Soares Aguiar (doutoranda em História Social na FFLCH/USP)
Comissão científica
Alexandre Varella (Unila), Carlos Alberto Dória (Escola do Gosto),
Carlos Torcato (UFRN), Carmen Rial (UFSC), Elaine de Azevedo
(UFES), Eliane Morelli Abrahão (Unicamp), Frederico Policardo
(UFF), Henrique Soares Carneiro (LEHDA/USP), Jeferson Bacelar
(UFBA), João Luiz Máximo da Silva (Centro Universitário Senac),
Leila Mezan Algranti (Unicamp), Ligia Amparo Santos (UFBA), Maria
Aparecida de Menezes Borrego (Museu Paulista/USP), Maria Betânia
B. Albuquerque (UEPA), Sônia Magalhães (UFG), Tania Andrade
Lima (Museu Nacional/UFRJ), Viviane Kraieski de Assunção (UNESC),
Wanessa Asfora (Universidade de Coimbra)
LEHDA
Comissão Científica
Henrique Carneiro (coordenador), Luís Fernando Tófoli, Ruy Braga.
Pesquisadores
Adriana Salay Leme, Alexandre Varella, Carlos Torcato, Cauê
Tanan, Fernanda Moreira, Frederico Toscano, Júlio Delmanto, Lucas
Endrigo Avelar, Luciano Thomé, Luís Fernando Teberga Gonçalves,
Natasha Magior, Nicole Leite Bianchini, Viviane Soares Aguiar
Imagem da capa
Montagem sobre identidade visual do II Simpósio Internacional de
Pesquisa em Alimentação: circuitos de produção e consumo, criada
por Claudio Rother (Museu Paulista/USP)
S UMÁRI O
1 Caderno de Resumos
Lançada em março de 2019, a revista Ingesta surgiu no cenário acadêmico em uma edição
especial, restrita a artigos de professores e pesquisadores convidados especialmente para a sua
estreia. Em seu segundo número, que publicamos em dezembro do mesmo ano, em vez de enfim
entrarmos naquela que será nossa rotina, insistimos em mais uma edição especial: além de quatro
artigos, incluímos aqui um caderno com os mais de 100 resumos de todos os trabalhos apresentados
durante o II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação: circuitos de produção e
consumo, realizado na Universidade de São Paulo entre os dias 4 e 6 de dezembro de 2019. Isso
talvez comprove como o campo da História da Alimentação e das Drogas têm se mostrado prolífico
– ao menos no que diz respeito aos esforços do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da
Alimentação, o LEHDA-USP, responsável tanto por esta publicação quanto pela organização do
referido simpósio, ao lado do portal de divulgação acadêmica Comida na Cabeça, do Museu Paulista
da USP e do Programa de Pós-Graduação em História Social da USP.
Seguimos, assim, no caminho que nos trouxe até aqui, com o propósito de contribuir
para o desenvolvimento e a consolidação dessa área de estudos, discutindo e buscando para ela
delineamentos teóricos e metodológicos. Pequenos desvios (ou acertos) de rota, no entanto,
não deixaram de acontecer: se iniciamos a revista com um escopo que seria restrito a produções
científicas de estudantes de pós-graduação, procuramos, agora, ampliá-lo para também abarcar
artigos de professores e pesquisadores pós-graduados, com titulação mínima de mestre. Isso
já aconteceu nesta edição, em que, na seção de artigos, publicamos a pesquisa dos professores
doutores da Universidade Federal da Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino
Assis sobre as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), um trabalho que se volta para uma
questão muito pertinente em tempos atuais e ainda pouco discutida no meio acadêmico.
Também focado no cenário baiano, o artigo de Vagner José Rocha Santos, doutorando no
Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, traz
interessantes considerações históricas sobre o acará de Iansã na festa de Santa Bárbara. É pelo viés
histórico que outro pesquisador, o historiador Rafael Morato Zanatto, estuda a representação do
álcool no cinema em um artigo pontuado por cenas de filmes do início do século XX, analisadas a
partir da relação delas com os discursos proibicionistas e reveladoras das amplas potencialidades
dessa fonte para as pesquisas sobre história da alimentação, das bebidas e das drogas. Por fim, fiéis
à busca de interdisciplinaridade, ainda publicamos um artigo vindo da área do Direito, de Francisco
de Assis de França Júnior, doutorando na Universidade de Coimbra, que faz uma aprofundada e
crítica análise comparativa da política de drogas adotada no Brasil e em Portugal.
Em um ano especialmente difícil para a Educação e para a própria História no Brasil, é
com muito orgulho que apresentamos nossa singela porção de resistência, no formato de revista
acadêmica e de simpósio científico. Unir essas duas ações aqui, publicando o diversificado Caderno
de Resumos do evento, permite divulgá-las para o maior número possível de interessados e pode
estimular – assim esperamos – novas iniciativas neste sentido. Antes de terminar, deixamos
registrados nossos agradecimentos à Elisabeth Adriana Dudziak, da Agência USP de Gestão da
Informação Acadêmica; à designer Ziza Pasqual, que mais uma vez cuidou, com a costumeira
atenção, do projeto gráfico e da diagramação da revista; e a todos os professores e colegas que
contribuíram para a realização do simpósio. Em especial, àquelas que nos acompanharam na
Comissão Organizadora e que assinam conosco a carta de apresentação e de agradecimentos do
Caderno de Resumos, mais adiante: Adriana Salay Leme e Joana Pellerano.
Boa leitura!
1 Doutor em História pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, em Assis. Contato: [email protected].
Entre meados do século XIX e o primeiro terço do século seguinte, o tema do alcoolismo
aparece com certa frequência na literatura, na imprensa e em trabalhos científicos, sendo o cinema
o último instrumento de irradiação do assunto. Ao analisarmos hoje os filmes que tratam do tema,
podemos facilmente incorrer no erro em pensar apenas na função propagandística destes filmes.
Mas, entre 1896 e 1908, o cinema ainda era obra de artesãos que dependiam da bilheteria de seus
filmes para dar andamento aos projetos futuros. Para tanto, a seleção adequada dos temas a par-
tir do potencial em atender ou dialogar com a sociedade pode explicar a adesão dos realizadores
do período aos temas já consagrados pela linguagem escrita, como romances de sucesso ou temas
largamente difundidos pela imprensa, como crimes incomuns ou todo o tipo de acontecimentos
capazes de suscitar o interesse do público.
Ao refletir sobre a questão, o historiador de cinema Paulo Emílio Sales Gomes afirma que
“[...] o cinema não modelava a opinião pública, mas se modelava de acordo com ela. Quer dizer
que era muito mais passivo do que ativo, muito mais expressão social do que propaganda” (Gomes,
1958, PE/PI 0049), corroborando com as ideias de Siegfried Kracauer, para quem “os filmes ajudam
a mudar as atitudes das massas, contanto que estas atitudes já tenham começado a mudar”
(Kracauer, 1988, p. 323). No caso do combate ao consumo de álcool considerado abusivo, cientistas,
religiosos, industriais, escritores e jornalistas já haviam se lançado nessa cruzada ao menos meio
século antes que os cineastas.
Em A fabricação do vício (2002), Henrique Carneiro afirma que o século XIX é o momento
em que drogas como ópio, tabaco, café, chocolate, cocaína etc. seduzem as populações mundiais,
recebem teorizações médicas sobre os seus efeitos e marcam “o isolamento químico de drogas
puras (morfina, 1805; codeína, 1832; atropina, 1833; cafeína, 1860; heroína, 1874; mescalina, 1888)”,
suscitando a dosificação e a experimentação controlada. Segundo Carneiro,
Todo esse período foi de uma escalada crescente na intervenção do Estado sobre
a disciplinarização dos corpos, a medicalização das populações, recenseadas
estatisticamente de acordo aos modelos epidemiológicos para os objetivos da eugenia
social e racial, “higiene social” e a “profilaxia moral”, ou seja, tentativas de evitar a
deterioração racial supostamente causada pelos degenerados hereditários, entre
os quais se incluíam com lugar de destaque os viciados e bêbados. Assim como se
buscava, a essa época, a erradicação das doenças contagiosas, com o estabelecimento
de medidas como quarentenas e notificação compulsória dos doentes (Disease Act, em
1889, na Inglaterra), também planejou-se uma campanha de aniquilação do vício, que
desaguou no massivo movimento pela temperança nos Estados Unidos. O Controle
epidemiológico impunha-se para um comportamento infeccioso como o alcoolismo.
(Carneiro, 2002, p. 4)
O processo iniciado no século XIX irá se intensificar, no século XX, com a transformação do
consumo de bebidas alcóolicas em uma patologia, um problema sanitário a ser sanado. Segundo
a historiadora Daisy de Camargo no livro Alegrias Engarrafadas (2012), “o século XX representa uma
reviravolta de valores e um ponto de inflexão na história da embriaguez”, a partir da ampliação dos
estudos sobre o “processamento químico do álcool” e a compreensão de seus efeitos no organismo.
Segundo a autora, será nesse momento que o alcoolismo aflorou como uma nova patologia nos
trabalhos médicos, e consequentemente, “um novo personagem a ser estigmatizado: o alcoólatra.
Nessa mesma névoa vem uma falha moral (o desmedido) e um flagelo social (a destruição da
família e do trabalho)” (Camargo, 2012, p. 192). A partir da definição do consumo abusivo de álcool
como uma doença e de seu personagem, o alcoólatra, não demorou muito para que o cinema se
apropriasse do tema bastante corrente e de interesse no período.
[...] o esmagador tom moral destes filmes – pregando as virtudes restritas aos vínculos
familiares e ao trabalho disciplinado – certamente impediria os trabalhadores de serem
“proletários” que poderiam colaborar com os fins da classe, como Sadoul argumentou.
Em vez disso, como os suplementos especiais de publicidade de Victimes de l´alcoolisme
sugerem, muito mais serviriam para garantir que a classe trabalhadora e artesãos (assim
como a pequena burguesia e os colarinhos brancos) concordassem com a harmonia do-
méstica e pública da ordem social burguesa. (ABEL, 1998, pp. 99-101)
O filme de Zecca apela para o melodrama ao retratar famílias corroídas pela miséria pro-
vocada pelo consumo problemático do álcool, assim como a influência das más amizades em sua
adesão. O conteúdo ideológico do filme encontra-se concatenado ao interesse dos industriais e do
Estado em restringir as sociabilidades operárias aos espaços familiares – proposta largamente di-
fundida pela imprensa. No trabalho de Phil Baker, Absinto, uma história cultural, encontramos logo
nas primeiras páginas um retrato bastante elucidativo acerca da cobertura da imprensa francesa
no início do século XX dos problemas referentes ao consumo de álcool. No mês de agosto de 1905,
um ano após o lançamento do filme de Zecca, as manchetes dos jornais noticiam que um camponês
havia matado a esposa grávida e suas duas filhas, de dois e quatro anos. Após o crime, motivado, se-
gundo a imprensa, pela ingestão de duas doses de absinto, o camponês ainda tentou, sem sucesso,
o suicídio. No extrato abaixo, Baker oferece um retrato preciso de como a imprensa francesa força o
vínculo entre as mortes e o consumo do álcool:
Notícias como a que trataram do caso Lanfray evidenciam a seleção de temas polêmicos
como estratégia de difusão comercial de filmes de acordo com temas já consolidadas na literatura,
no discurso médico e na imprensa burguesa, não sendo exagero dizer que propiciaram o surgimen-
to de filmes dessa natureza. Apesar da importância do cinema francês do primeiro período, será nos
Estados Unidos onde poderemos observar maiores desdobramentos no cinema da transformação
do consumo de álcool em uma patologia a ser combatida.
No filme A Drunkard´s Reformation (A recuperação de um alcoólatra, 1909), do célebre cineasta
David Wark Griffith, observamos como o enredo apresenta o constrangimento de um pai alcoólatra
ao levar sua filha ao teatro para assistir a uma peça que narra o processo de degeneração do
personagem pelo álcool. O cidadão de bem da peça toma partido das políticas de temperança, como
fica evidente na cena em que assina um abaixo-assinado que pede restrições à “bebida demoníaca”.
Ao aderir à campanha, receberá como recompensa de seu ato o amor de uma linda jovem.
Apesar do gesto, pouco tempo depois o homem é seduzido por uma mulher de moral duvi-
dosa e ébria; seus amigos o arrastam para o bar e o que começa em uma dose termina na agressão
de sua esposa e filha ao irem buscá-lo no estabelecimento. Valendo-se da montagem paralela,
Griffith intercala a história trágica do alcoólatra da peça teatral com a expressão facial do homem
sentado no teatro, acompanhado de sua filha. Ao longo da peça, sua face se transforma: se pri-
meiramente esboçava profunda tranquilidade, ao longo da história a perturbação ascendente fica
evidenciada não apenas pelo terror de sua face, mas pelo modo como aproxima seu corpo de sua
filha, procurando preservar o que lhe havia de mais precioso no mundo. Ao fim da peça, o homem,
profundamente tocado, retorna para casa ao encontro da esposa. Lá chegando, a mulher mergu-
lhada em profunda tristeza é surpreendida com sua promessa de nunca mais beber. Ao comentar
o filme, Ismail Xavier afirma que o esquema adotado por Griffith
Dentro dessa ordem de considerações, Xavier afirma no livro O olhar e a cena (2003) que A
Drunkard´s Reformation apresenta no interior da concepção do espetáculo de Griffith “mensagens
regeneradoras do espírito, cumprindo uma nobre função moral, conforme o desejo das instâncias
de poder”. Como expressão social de uma época o filme se ajusta
por suas comédias de perseguição e pela constante sátira às autoridades policiais, em especial na
série Keystone Cops. Nesse cenário próspero, a chegada de Chaplin irá agregar ao estilo de Sennett
lições cômicas aprendidas com pioneiros como Onésime e Max Linder (Walker, 2008, pp. 20-21).
Após esse período inicial ao lado de Sennett na Keystone, Chaplin realiza alguns filmes
para a Essanay, onde experimenta fórmulas cômicas que, pouco tempo depois, nos estúdios da
Mutual, serão levadas à perfeição, como as transposições cômicas, pantômicas e a agilidade nas
transformações, ao lado do desenvolvimento nítido das notas “de emoção melancólica, ironia
e sátira social que caracterizarão as obras de sua plena maturidade” (Gomes, 1954). Ainda nessa
fase, Chaplin substitui o vagabundo pelo tipo grã-fino e bêbado, devorado pelo tédio e pelo vício.
Nos filmes que Chaplin representa o grã-fino, Paulo Emílio afirma que o ator se apoia no solo de
pantomima, evocando seu passado na Karno Pantomime Company ao atuar no filme The Cure (1917)
da série Mutual, considerado o mais rico em comicidade no período.
[imagem 01 – centralizada]
Em The Cure (1917), Carlitos chega de cadeira de rodas em um local de tratamento para al-
coólatras de alta classe. Os endinheirados tomados de melancolia encontram-se aglomerados ao
redor de uma fonte de água fresca, na qual homens e mulheres curvam-se à altura do solo para
encher suas canecas. Temos assim a apresentação de uma terapia substitutiva que visava combater
a abstinência ao considerar, ao lado da substância em si, um conjunto de hábitos, rituais e sensações
presentes no consumo de álcool, como portar utensílios e beber repetidamente líquidos. Logo nas
primeiras cenas a sátira social está posta ao apresentar personagens bem-nascidos em estado de
fragilidade, invertendo assim a ordem das coisas. Neste ambiente, Carlitos invade a ação cambale-
ante e salta pela fonte sem se isentar de deixar uma breve e sutil pisadela enquanto é observado e
encarado negativamente pelos que compactuavam do ritual.
Carlitos retoma o eixo e, auxiliado por um funcionário do centro de recuperação, é precipita-
do para dentro do edifício. Já no quarto, após passar desastrosamente pela porta giratória, Carlitos
recebe sua bagagem: um robusto baú que quase alcança seu tamanho. Após a entrega, o superior
sai do recinto e o funcionário do hotel, um tipo bastante barbudo com olhar perdido, ingere por
uma de suas narinas uma substância que tanto poderia ser rapé quanto cocaína. Na sequência, sem
esboçar nenhum pudor, tenta fumar algo que poderia ser um cigarro de tabaco ou de maconha.
Carlitos o repreende, afinal eram aqueles vícios reprováveis, derivados de uma classe social que não
era a sua. O agravo é levado ao ápice quando Carlitos retira o cigarro da boca do funcionário do
hotel, o analisa e o joga fora, para imediatamente na sequência abrir seu baú, ou melhor, uma ver-
dadeira adega repleta de bebidas alcoólicas, como licores, vinhos, uísques, gins etc. Propriamente
para vestir, Carlitos possui um chapéu, uma escova de dente, uma navalha e um colarinho, fato que
intensifica a denúncia da hipocrisia dos consumidores de álcool para com os vícios ou hábitos dos
outros e de outras classes sociais.
Figura 03: Após beberem da fonte, batizada pela dispensa do suprimento de Carlitos, os
hóspedes protagonizam uma grande algazarra no hall do centro de recuperação.
The Cure, dirigido por Charles Chaplin, Mutual Film Corporation, 1917
No dia seguinte, todos estão acometidos por uma grande ressaca, e Carlitos, diante da fonte
e na iminência de beber novamente, é interrompido pela jovem que conhecera e se apaixonara.
Ele promete que não irá mais beber, mas, na sequência, ao caminhar com a dama ao seu lado, cai
de corpo inteiro dentro do poço de álcool, uma das fatalidades que o impedem de levar uma vida
abstêmia.
Figura 04: Na cena, personagens ébrios se divertem, tocam um abajur como trompete ou
repousam sonolentos, enquanto a amiga de Carlitos observa em sua sobriedade o estado ébrio
dos demais. The Cure, dirigido por Charles Chaplin, Mutual Film Corporation, 1917.
O tom cômico aplicado ao filme destoa assim dos melodramas de Zecca e Griffith, ao satirizar
de modo mais ameno o consumo de álcool das classes mais abastadas ao invés de tratar o consumo
de álcool associado à miséria e à degradação da família operária. Ao fim da década de 1910, o gênero
cômico talvez expressasse algumas mudanças sociais trabalhadas pelas ficções, afastando-se do
maniqueísmo posto pelos primeiros melodramas. Segundo Xavier,
Um ano depois, o filme Good Night Nurse (1917), de Roscoe Fatty Arbuckle, narra a história de
um alcoólatra inveterado, capaz de acender um cigarro no meio da chuva sob o amparo do cap de
um policial distraído, ou ainda enviar seu amigo ébrio pelo correio. Enfim, é um degenerado rico e
cômico, levando a vida a seu bel prazer, quando sua esposa o surpreende na sala de casa na compa-
nhia de uma dançarina, um tocador de realejo e seu macaco treinado – a gota d’água para aceitar se
submeter a um tratamento milagroso que prometia curar o alcoolismo.
Ao chegar à clínica, o médico (Buster Keaton) o aguarda vestindo um avental branco tingido
de sangue, o que causa terror ao personagem e gargalhadas aos espectadores. Fatty tenta escapar
de todos os modos, mas a administração hospitalar acaba restringindo sua liberdade ao ser levado
à força para a mesa de cirurgia, onde é dopado com uma farta porção de éter. Através da câmera
subjetiva, podemos observar a simulação dos efeitos do éter no personagem mediante o desfoque
da imagem dos médicos e enfermeiros.
Nas cenas seguintes, Fatty acorda em seu leito e dá continuidade à fuga, acompanhado
de uma das pacientes da clínica. Uma grande luta de almofadas entre pacientes e funcionários
proporciona a ocasião perfeita para a fuga de Fatty e sua colega. Fatty encontra tempo para simular
seu afogamento com uma mangueira e para se vestir de enfermeira, enganando o médico e os
outros funcionários da clínica. Mas logo seu disfarce desaba, e nosso herói protagoniza uma virtuosa
e clássica comédia de perseguição ao encontrar pelo caminho uma competição de velocidade.
Perseguido pelo médico, enfermeiros e seguranças da clínica, Fatty corre tanto que ultrapassa os
corredores, acabando por vencer a corrida e consagrar, ao mesmo tempo, o tipo cômico do gordo
ágil que surpreende pelas proezas físicas pouco condizentes com seu tamanho.
Seu feito prodigioso é vencer a corrida e receber uma fabulosa soma em dinheiro, que apro-
veitaria se não fosse a chegada sorrateira de seus algozes, tendo Keaton na liderança. A intervenção
que sofre o leva a protagonizar uma luta digna da comédia física, na qual um conjunto de homens
pequenos supera a destreza física de um Golias. A luta termina com o médico agarrando Fatty pela
garganta, quando através de uma transição estamos de volta à mesa de cirurgia, no momento em
que Fatty acorda da anestesia à base de éter. Tudo não passou de um sonho – ou pesadelo. Vemos
nosso personagem sentado sobre a maca e esboçando um largo sorriso, que pode, entre outras coi-
sas, insinuar o alívio de que tudo não passou de um sonho, ou ainda, a cura do alcoolismo.
Figura 09: Buster Keaton afia sua faca, enquanto, totalmente distraído,
Fatty Arbuckle conversa com a enfermeira. Good Night, Nurse!,
dirigido por Roscoe Fatty Arbuckle, Comique Film Corporation, 1918
Em conjunto, os filmes que tratamos até aqui demonstram como o alcoolismo foi um tema
social tratado tanto pelo melodrama quanto pelos aspectos cômicos que se poderia tirar de um
consumo problemático – ou hedônico. Tanto Fatty quanto Carlitos são bêbados alegres ou mesmo
personagens satíricos, assim como os álcoois dos filmes de Zecca e Griffith prejudicam apenas a
si próprios ou sua família. Mas, nessa esteira, a expressão social do consumo de álcool e drogas
receberá nos Estados Unidos novos contornos com a proibição do álcool e a intensificação do
combate a outras drogas.
O consumo de tabaco e álcool, assim como das drogas legais e ilegais em geral, passou a
ser objeto de uma forte intervenção reguladora estatal desde o início do século XX, que
redundou em tratados internacionais, legislações específicas, aparatos policiais e numa
consequente hipertrofia do preço e do lucro do comércio de drogas. Ao mesmo tempo,
desenvolveu-se um imenso aparato de observação, intervenção e regulação dos hábitos
cotidianos das populações [...]. O controle dos hábitos populares tornou-se objeto de
corpos policiais, estamentos médicos, psicológicos, industriais, administradores cientí-
ficos. O taylorismo e o fordismo foram concomitantes aos mecanismos puritanos da Lei
Seca, e a discriminação racial de imigrantes serviu de pretexto para a estigmatização do
ópio chinês e da marijuana mexicana nos Estados Unidos. (Carneiro, 2002, p. 9)
Sociedades parecem estar sujeitas, de vez em quando, a períodos de pânico moral. Uma
condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas é definido como uma ameaça aos va-
lores e interesses da sociedade; sua natureza é apresentada de uma forma estilizada e
estereotipada pela mídia de massa; as barricadas morais são tripuladas por editores,
bispos, políticos e outras pessoas bem pensantes; socialmente acreditados, peritos pro-
nunciam seus diagnósticos e soluções; formas de enfrentamento são evoluídas [...]; a
condição depois desaparece, submerge ou deteriora-se e torna-se mais visível. Às vezes
o objeto do pânico é bastante novo e em outros momentos é algo que tem existido por
muito tempo, mas de repente aparece no centro das atenções. Às vezes, o pânico passa
por cima e é esquecido, exceto no folclore e na memória coletiva; em outros momentos
ele tem repercussões mais graves e de longa duração, e pode produzir tais mudanças
como aquelas em política jurídica e social ou mesmo na forma como a sociedade conce-
be a si mesmo. (Cohen, 2011, p. 1)
Segundo Cohen (2011, p. 1), “quando tais apelos vêm de vozes de autoridade (como juízes,
especialistas, profissionais, inquéritos governamentais) o pânico moral é mais fácil de manter,
mesmo que apenas por pura repetição”. Para o autor, apesar da necessidade do depoimento de
peritos para explicar os perigos ocultos por trás do superficialmente inofensivo, como beber ou
fumar maconha, eles também são problemas passíveis de serem identificados pelo senso comum.
Desse modo, “drama, estado de emergência e de crise; exagero; valores estimados ameaçados;
objeto de preocupação, ansiedade e hostilidade; forças do mal ou pessoas para serem identificadas
e interrompidas etc.” (Cohen, 2011, p. 35) pela ação das autoridades competentes.
Tendo em vista o conjunto de fatores responsáveis pela legitimação social do pânico, o ci-
nema não teria propriamente lastro social e estaria alijado do público e da bilheteria. Mas a função
despendida por outros setores da sociedade aprofundou a capacidade desses filmes transmitirem
tendências ideológicas conservadoras e eugenistas, defendidas por médicos, juristas, industriais,
policiais etc.
mão. O melodrama era o ingrediente principal do ciclo, mas à medida que os escritores
dominaram os filmes de gangster de 1930 e 1931, formaram um mosaico documental,
um panorama do crime e sua punição em uma sociedade instável. (Paiva, 1953, pp. 74-75)
Figura 11: O ativista pró-cerveja Jimmy em seu carro. No adesivo, pode-se ler “estou todo molhado”,
o mesmo que dizer estou bêbado, ou ainda, não sou abstêmio.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933
A trama sutil, pouco engenhosa, mas verossímil ao basear a comicidade em situações pal-
páveis, é construída sob dois personagens centrais: Jimmy (Durante), um barbeiro profissional e
ativista inflamado, e Elmer (Keaton), taxidermista de ofício, solitário, por vezes apático e inocente,
mas motivado pela ideia de se tornar milionário e se casar. Nas cenas iniciais, Jimmy dirige um car-
ro repleto de adesivos e mensagens antiproibicionistas. Ao estacionar e adentrar por uma porta,
mergulhamos no mundo sombrio e monótono do ateliê de Elmer, repleto de animais empalhados.
Os tipos cômicos de Elmer e Jimmy são complementares: um é apático, inocente, desligado,
e o outro ativo, ladino e fanfarão. Juntos eles conseguem adquirir uma antiga cervejaria para
alcançarem o sonho estadunidense: se tornar milionários. Mas o sucesso financeiro aparece como
uma consequência ou meio para a realização de projetos pessoais: de Jimmy, em difundir o álcool,
e Elmer, de se casar.
A fixação por uma jovem que observa na rua o faz adentrar em um grande salão, ocupado
por uma convenção proibicionista. Sorrateiro, Elmer observa Hortense (Phillys Barry) e seu acom-
panhante, Butch Lorado (John Miljan), um tipo cuja vilania emana de seu aspecto mais superficial.
O público assiste com atenção o palestrante da noite, Dr. Smith (Sidney Bracey), opositor ferrenho à
regulamentação do álcool. Assim como na vida real, a autoridade médica dissemina o pânico entre
seus ouvintes, assegurando com veemência os malefícios mortais da substância. Ao ouvir o discurso,
Elmer protesta, mas é rapidamente atirado para fora do anfiteatro, como um saco de batatas.
A representação dos proibicionistas em trajes de gala, divididos entre austeros e esnobes
os posiciona no campo oposto do universo popularesco de onde efluem as tendências favoráveis
à regulamentação do álcool, como na barbearia em que Jimmy trabalha. Clientes e trabalhadores
comungam da mesma animação com o resultado favorável obtido no plebiscito regional, entoando
em coro palavras de ordem como “nós queremos cerveja”. A empolgação que acomete a barbearia
acaba por produzir cenas bastante cômicas, com exageros de creme de barbear e golpes de navalha
que evocam a tradição cômica de Mack Sennett. O horizonte de expectativas dos personagens é
ampliado quando Jimmy convence Elmer a investir suas economias na compra de uma cervejaria
abandonada e revitalizá-la.
Ao chegar ao local, encontram o estabelecimento ocupado por desabrigados, que de
pronto são contratados como funcionários da cervejaria. Eles limpam o local e começam a fabri-
car cerveja a partir de uma receita de Jimmy, que nunca havia fabricado algo semelhante. Como
era de se esperar, a caldeira transborda e em meio a tombos e trapalhadas, os novos empresá-
rios envasam sua mercadoria e abrem seu estabelecimento, sinalizado com um grande anúncio
na entrada. Rapidamente, as forças policiais invadem o local e interrompem as atividades. Na
delegacia, em frente ao chefe de polícia, Jimmy afirma conhecer seus direitos e que o país está
mudando – pessoas de Nova York à Califórnia pensam como ele. Elmer fica em silêncio e, alge-
mado a Jimmy, é arrastado de um lado para o outro pelos largos gestos de indignação do sócio
ítalo-americano que preserva a construção inicial dos tipos cômicos: o atrapalhado, cínico, mas
perseverante, e o apático, sonso, mas comprometido. A dupla escapa dos seis anos de prisão aos
quais seriam condenados após o teste químico da polícia apontar que a cerveja apreendida não
possuía graduação alcoólica. O jogo vira e Jimmy, mais uma vez inflamado, destaca: “Vocês pen-
saram que éramos o quê? Gângsteres?”
Figura 13: A produção de cerveja recomeça em grande velocidade e com maior pragmatismo.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933
Do ponto de vista estilístico, as cenas em que Elmer é perseguido prestam nova referência
à tradição cômica de Sennett que perduraram em seu estilo, como no filme A General (1926), ao
perseguir incansavelmente os raptores de sua locomotiva. No filme What! No Beer? (1933), a perse-
guição aparece ainda em outras ocasiões, como na cena em que Elmer, ao conduzir um caminhão
repleto de barris de cerveja pelas ruas da cidade é perseguido pela organização de Butch Lorado.
Sem saber que os gângsteres se preparam para a emboscada, Elmer dirige tranquilamente, até
o momento em que um pneu estoura no alto de uma grande ladeira. Uma lufada de ar retira seu
chapéu da cabeça e desvia sua atenção para um sutil desarranjo da carga, mas sua intervenção
acaba precipitando uma sequência grandiosa, talvez a mais condizente com o estilo cômico físico
de Keaton: ao se desprenderem da carroceria, os barris rolam ladeira abaixo, tendo Elmer à frente,
correndo para não ser esmagado. Enquanto vemos Elmer tomar distância, os gângsteres de Lorado
invadem com seus carros a ladeira, sendo massacrados pelo mar de barris – um acaso e tanto para
Elmer, que de nada desconfia.
Figuras 15 e 16: Elmer desce a ladeira em grande velocidade para não ser esmagado pelos barris de cerveja.
De outro ângulo, vemos a fuga de Elmer. Ao fundo, gângsteres em seus carros precipitam-se para a emboscada.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933.
Após o incidente com os barris, Lorado não desiste e invade a cervejaria, obrigando os tra-
balhadores e proprietários a trabalharem sob suas ordens. Não restando muito a fazer, obedecem
Lorado, mas conseguem colocar Elmer dentro de um barril e o atiram desastrosamente para fora
da fábrica. Pensando em um modo de resolver a situação, Elmer tem a ideia de convidar a cidade
toda para um drinque grátis, criando uma distração que possibilite a retomada de seu empreendi-
mento. Em cortejo, o personagem desfila por ruas e avenidas, portando uma placa com a seguinte
inscrição: “Hoje! Cerveja grátis na cervejaria. Sigam-me!”.
A cidade entra em polvorosa e o persegue até a fábrica, empunhando baldes, canecas e
sorrisos faciais que expressam o sentimento de alegria geral. A ideia funciona e rapidamente, com
a invasão pública da fábrica, os gângsteres são dominados, e tem início a distribuição massiva de
cerveja. Enquanto o povo faz a festa, os antagonistas da alegria (forças policiais) se preparam para
tomar de assalto a fortaleza do vício. A sátira às autoridades, elemento básico das primeiras comé-
dias, é intensificada em cenas como as do burro que, atado à charrete, seca um caldeirão que havia
sido deixado ao seu alcance. Após o burro estar bêbado e o estoque de cerveja acabar, os policiais
chegam ao local, onde não encontram uma gota de álcool sequer. A cena da chegada da polícia é in-
tercalada ao close-up do burro a relinchar, puxando a charrete em câmera lenta pelas ruas da cidade
para dar a exata extensão de sua embriaguez e sugerir claramente o atraso das autoridades.
No fim do filme, um salto para o futuro mostra Jimmy e Elmer sendo festejados como em-
presários bem-sucedidos do ramo de cervejas, ao serem recepcionados em uma festa grã-fina em
carro aberto. As imagens mostram a realização do sonho americano, e o de Elmer, em se casar com
Hortense, antiga amásia de Lorado, e, é claro, em um contexto em que a Lei Seca havia chegado
ao fim. Um happy end que ainda não havia se concretizado, pois o filme foi lançado em fevereiro
de 1933, um mês antes da regulamentação federal da produção, da distribuição e do consumo de
bebidas alcoólicas pelo Congresso estadunidense. Uma moldura narrativa é agregada ao filme, tra-
zendo o espectador para o exato momento em que se encontravam, em um contexto de proibição,
mas com um futuro diferente no horizonte de possibilidades, como podemos observar na cena final
em que Jimmy, bebendo uma grande caneca de cerveja, se dirige à câmera e diz: “É a vez de vocês,
pessoal. Agora não falta muito”. E dá um grande e prazeroso gole em sua grande caneca espumante.
Em conjunto, o filme What! No Beer? possui valor sociológico, ao expressar o ponto de vista
antiproibicionista através das aventuras dos ativistas e empresários dos anos 1930, e artístico, ao
adaptar lições cômicas da época do mudo ao falado e ao apresentar tipos cômicos antagonistas,
mas complementares, próprios das comédias de perseguição, assim como da comicidade retirada
de situações incomuns. Podemos ainda pensar o filme em duas partes: se, na primeira, Jimmy é o
Considerações finais
Ao longo de nosso artigo, procuramos apresentar algumas características que ligam os fil-
mes aos movimentos mais gerais da sociedade nos primeiros 40 anos do século XX, no que se refere
à proibição do álcool. Ao longo de nossa narrativa, demonstramos que, num primeiro momento,
o consumo abusivo de álcool foi tratado pelo cinema ao dar vasão a temas bastante correntes na
literatura e na imprensa, tanto quando pontuamos algumas contribuições do melodrama para o
esclarecimento das classes proletárias quanto aos perigos do alcoolismo, doença que os impedia
de desempenhar suas funções no ritmo exigido pelos industriais – e o cinema, como arte plebeia,
possuía o público-alvo a ser alcançado pela mensagem.
Do mesmo modo, demonstramos como os problemas do alcoolismo foram satirizados por
Chaplin e Fatty Arbuckle em suas comédias, ao refletir o trato menos maniqueísta que os melodra-
mas no momento em que o discurso proibicionista se intensificava na sociedade americana, e que
culminaria pouco tempo depois na aprovação da Lei Seca e no fortalecimento do crime organizado,
heroicizado pelos filmes de gângsteres após a crise de 1929, momento da história estadunidense
em que apenas através da contravenção o sonho americano poderia se realizar. Em What! No Beer?,
a regulamentação álcool é apresentada como saída viável para uma política fracassada – o proibi-
cionismo –, ao apresentar pessoas comuns que poderiam realizar o sonho americano mais uma vez,
mas agora amparadas pela legislação. Enfim, acreditamos que a conjunção dos filmes apresenta-
dos recompõe um quadro de trinta anos da história do álcool no cinema, da proibição à regulamen-
tação, mediante o exame do papel de gêneros cinematográficos como o melodrama, os filmes de
gângsteres e as comédias para a construção de uma narrativa palatável para o público – expressões
sociais do discurso proibicionista e de seu antagonista, o antiproibicionismo.
Após o fim da Lei Seca, médicos, cientistas, juristas e legisladores cessavam a perseguição
aos álcoois, ao mesmo tempo que mobilizaram sua razão de ser no combate ao consumo de ou-
tras substâncias, como a maconha, a heroína e o ópio, inaugurando uma verdadeira cruzada étnica
contra seus consumidores, como negros, chineses e latinos. Nota-se, ainda na década de 1930, a ex-
pressão desse movimento nos filmes de exploração, na imprensa, nos discursos médicos e jurídicos
do período. Enfim, esses e outros temas tratados pelo cinema em épocas e contextos específicos
reafirmam questões em aberto que devem ser discutidas por uma sociedade que se pretende de-
mocrática, inclusiva, horizontal.
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1 Doutorando do Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos (Centro de Estudos Afro-Orientais) da Faculdade de Filosofia e Ciências
Considerações iniciais
O culto à Santa Bárbara é uma das devoções religiosas populares mais antigas da capital
baiana. Depois que chegou a Salvador, ainda no século XVII, a festa à santa protetora contra os
perigos dos raios e das tempestades ganhou muitos adeptos e novos elementos, especialmente
os relacionados à cultura de matriz africana. Todos os anos, no dia 04 de dezembro, a festa oficial
acontece no bairro do Pelourinho e reúne milhares de devotos que se vestem de vermelho e branco
para saudar “Bárbara guerreira”.
No sincretismo afro-católico, Santa Bárbara foi associada principalmente com o orixá iorubá
Oiá-Iansã. Primeira esposa de Xangô, Iansã divide com o marido o controle do fogo e o domínio dos
raios. Nos terreiros de candomblé, ela é homenageada com acará (bolinho de feijão fradinho frito no
azeite de dendê). Já Santa Bárbara, sua “irmã de criação”, é reverenciada com o oferecimento de caruru.
Ainda que, neste artigo, eu trabalhe apenas com um dos aspectos que envolvem o sincretis-
mo afro-religioso com o catolicismo – a saber: a associação/correspondência entre santos e orixás
–, cabe ressaltar que considero o sincretismo mais do que uma mera estratégia encontrada pelos
negros escravizados para louvar suas divindades. Pensar o sincretismo religioso apenas por esse viés
é reduzir a discussão às exterioridades, sem considerar as práticas imbricadas nos modos de vida
reinventados pelos africanos depois que chegaram ao Brasil.
Além de explicar as razões que levaram as duas divindades a serem homenageadas com co-
midas diferentes, o texto destaca a importância da sociabilidade propiciada pela comida, bem como
outros princípios acionados a partir da comensalidade. Tendo em vista que o caruru é sempre lem-
brado quando se fala da festa de Santa Bárbara em Salvador, o presente trabalho busca enfatizar
também a relevância de outro alimento para a festa: o acará. Para ajudar na compreensão do fenô-
meno que envolve festa, religião e comida, a historiadora Edilece Couto (2015) e pesquisadores da
antropologia afro-baiana como Manuel Querino (2006) e Pierre Verger (1999) foram acionados.
Anualmente, ao celebrar a santa (e o orixá) com comidas à base de azeite de dendê, seus
devotos acabam por reforçar um dos traços da herança cultural africana que foi ressignificada
no processo diaspórico. Ao longo do texto, a partir do olhar sobre essas comidas, será possível
observar algumas especificidades que fizeram a festa de 04 de dezembro atravessar os séculos,
permanecendo viva no rol de devoções do povo baiano.
Bárbara foi uma jovem que viveu durante o século III d. C., na região da Nicomédia (Tur-
quia). Filha de uma família pagã, sua conversão ao cristianismo fez com que seu pai Dióscoro a apri-
sionasse numa torre. O mesmo denunciou Bárbara ao Império Romano e ela foi presa, açoitada e
teve os seios arrancados, mas ainda assim não renunciou à fé cristã. Foi, então, condenada à morte e
seu próprio pai a degolou com uma espada. Logo depois de matá-la, um raio atingiu Dióscoro, que
caiu morto no chão.
A história muito antiga e cercada de uma bruma lendária não impediu que o culto à Santa
Bárbara chegasse aos dias atuais com devotos espalhados por várias partes do mundo. No caso do
Brasil, parece que a devoção a essa mártir chegou primeiro à Bahia, em Salvador, no ano de 1641,
através de um casal português que instituiu um morgado2 em honra à santa na Freguesia de Nossa
Senhora da Conceição da Praia.
No século XVII, mesmo no XVIII, não houve senhor branco, por mais indolente, que
se furtasse ao sagrado esforço de rezar ajoelhado diante dos nichos; às vezes, rezas
quase sem fim, tiradas por negros e mulatos. [...]. Quando trovejava forte, brancos e
escravos reuniam-se na capela ou no quarto do santuário para cantar o bendito, rezar o
Magnificat, a oração de São Brás, de São Jerônimo, de Santa Bárbara. Acendiam-se velas;
queimavam-se ramos bentos, recitava-se o credo em cruz. (Freyre, 2006, pp. 520-521)
Em Salvador, a santa protetora contra os perigos de raios e tempestades ganhou mais um
título: “senhora dos mercados”, tendo em vista que o morgado da Cidade Baixa funcionava princi-
palmente como um centro comercial. Pela proximidade com o porto de Salvador, o morgado era um
dos pontos de abastecimento da cidade durante os primeiros séculos da colonização. Nessa região,
circulavam também bastante africanos e crioulos (filhos de africanos nascidos no Brasil). Os escra-
vos de ganho costumavam vender uma variedade de produtos, inclusive, comidas prontas nas áreas
do cais e do mercado de Santa Bárbara.
De acordo com Cecília Soares (1994, p. 17), “nesse local encontravam-se dois grandes
mercados,3 sendo o principal o de Santa Bárbara. Ali trabalhavam as negras vendendo diversos
produtos, mas elas também comercializavam nas ruas e no cais frutas, verduras e principalmente
comida pronta”. Habilidosas no comércio de alimentos, a arte de mercar era uma atividade que as
negras dominavam há muito tempo na África Ocidental e Central.
2 Morgado (ou morgadio) era uma forma de organização da linhagem familiar na qual as propriedades eram inalienáveis e, após a morte do seu
instituidor, os bens eram transmitidos ao filho primogênito, perpetuando o poder de determinadas famílias.
3 O outro grande mercado que funcionava na Cidade Baixa era o mercado de São João e, com o de Santa Bárbara, cumpria a função de abastecer a
cidade até meados do século XIX. O Celeiro Público da Bahia, fundado em 1785, gradativamente, assumiu o papel de abastecer a cidade com gêneros
de primeira necessidade (farinha, arroz, feijão e milho).
Segundo Ferreira Filho (2003), durante o século XIX, os produtos encontrados nos tabuleiros
e nas gamelas das ganhadeiras seguiam os preceitos do orixá de cada vendedora. “De acordo com o
orixá, a atividade variava. Assim, as filhas de Iansã e Xangô vendiam acarajés; as de Ogum, vísceras
de boi; as de Omolú, sarapatel e moqueca de peixe. Já Oxalufã, Oxaguiã e Oxalá prescreviam acaçá,
o cuscuz, o mingau e a cocada branca” (2003, p. 47).
Circulando pela região comercial da Cidade Baixa, os africanos e crioulos não só transitavam
pelos mercados como também se aproximaram da devoção à padroeira do morgado. Os negros es-
cravizados não demoraram muito para adotar o culto à mártir cristã que foi degolada pelo próprio
pai. Não resta dúvida que a devoção ganhou força e popularidade entre os africanos e seus descen-
dentes em função da associação de Santa Bárbara com deuses iorubanos. Oiá (Iansã), orixá do fogo,
foi uma das divindades africanas sincretizada com Santa Bárbara.
Na descrição de Pierre Verger (1999),
Durante mais de 250 anos (1641 a 1898) a festa de Santa Bárbara aconteceu no antigo bairro
comercial. Os comerciantes e mercadores da região se mobilizavam para arrecadar fundos para a
realização do festejo. De acordo com Hildegardes Vianna (1983),
Todos os anos, no Mercado que integrava o citado Morgado, bem como no Mercado São
João, que lhe ficava fronteiriço, os encarregados dos festejos se movimentavam para uma
cotização geral. Os negociantes do Comércio da Cidade Baixa davam a sua contribuição,
sem exceção, o nicho era reformado, fazia-se uma rigorosa limpeza no Mercado de Santa
Bárbara, cordões de bandeirinhas coloridas, palmas de coqueiros, palmeirinhas, folhas
de pitanga eram arrumados à guisa de ornamentação. (Vianna, 1983, p. 37)
passando despercebida pela maioria dos soteropolitanos. Todos estavam com a atenção voltada
para o novenário e a celebração de Nossa Senhora da Conceição da Praia, no dia 08 de dezembro.
Após um incêndio em 1899, que atingiu o mercado e a capela de Santa Bárbara, a imagem
foi transferida para a Igreja do Corpo Santo, também localizada na Cidade Baixa. No início do século
XX, os comerciantes do antigo mercado foram transferidos para um novo centro comercial no bair-
ro da Baixa dos Sapateiros. Em 1987, a imagem que se encontrava nesse novo mercado dedicado
à Santa Bárbara foi doada à Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às Portas do
Carmo (Irmandade dos Homens Pretos). Isso aconteceu no período em que o Mercado de Santa
Bárbara estava bastante deteriorado, necessitando de uma reforma.
Os herdeiros da família Pompílio de Bittencourt, proprietários do mercado, registraram em
cartório a doação da imagem que ficava no estabelecimento comercial à Irmandade dos Homens
Pretos, que deveria assumir a organização da festa em louvor à santa. Tanto assim que, após a con-
clusão da reforma do Mercado de Santa Bárbara (1997), a imagem permaneceu na Igreja do Rosário
dos Pretos, mesmo com os protestos de alguns comerciantes que queriam a devolução da santa.
Desde então, é desta igreja que anualmente, no dia 04 de dezembro, a imagem de Santa
Bárbara sai em procissão e percorre as principais ruas do Pelourinho, passando pelo Quartel do Corpo
de Bombeiros e pelo mercado que leva seu nome. Após a missa campal e ao longo da procissão,
muitos devotos (a maioria mulheres) distribuem acarajés aos presentes. Ao fim da procissão, a
imagem retorna à Igreja do Rosário para posteriormente ser guardada em seu nicho.
É depois da procissão que se inicia o que muitas pessoas chamam de parte profana da
festa. No palco montado no Largo do Pelourinho, acontecem apresentações culturais e shows de
samba que só terminam à noite. Já no Corpo de Bombeiros da Barroquinha, em sobrados do Centro
Histórico e nas casas de devotos espalhados em vários bairros da cidade, começa a ser servido o
tradicional caruru de Santa Bárbara.
Sempre que se fala da festa de Santa Bárbara na capital baiana, o caruru é um dos elemen-
tos mais lembrados das comemorações. Na Bahia, as homenagens à santa turca ganharam novos
elementos desde que sua devoção chegou a Salvador. Como dito, o encontro de culturas possibili-
tou que os africanos e crioulos associassem a figura de Bárbara à do orixá iorubá Iansã. Com isso, as
comidas à base de azeite de dendê foram incorporadas ao festejo desde a época do morgado, onde
era possível degustar comidas como efó,5 acarajé, vatapá, caruru...
Assim como as demais correspondências entre santos e orixás, a articulação da santa turca
com a deusa iorubana não foi aleatória. Iansã é uma divindade de origem africana cultuada nas
religiões de matriz africana, em especial o candomblé e a umbanda. Orixá do fogo, ela também
5 Efó é uma comida feita com uma folha popularmente conhecida como língua-de-vaca, podendo ser substituída pela folha da mostarda ou taioba.
Preparada de forma similar ao caruru, com o passar do tempo, tornou-se uma comida “esquecida” pela população soteropolitana/baiana, sendo
dificilmente encontrada nos dias de hoje.
domina o vento e as tempestades e era inicialmente conhecida como Oiá. Tornou-se Iansã (que sig-
nifica mãe nove vezes) depois de sacrificar um carneiro e, finalmente, conseguir dar à luz nove filhos
(Prandi, 2001, p. 294). Cheia de atributos, Iansã teve vários amantes: Ogum, Oxaguiã, Exu, Oxóssi,
Logum Edé... Até conhecer Xangô.
Iansã usava seus encantos e sedução para adquirir poder. Por isso entregou-se a vários
homens, deles recebendo sempre algum presente. [...] Ao final de suas conquistas e
aquisições, Iansã partiu para o reino de Xangô, envolvendo-o, apaixonando-se e vivendo
com ele para a vida toda. Com Xangô, adquiriu o poder do encantamento, o posto da
justiça e o domínio dos raios. (Prandi, 2001, pp. 296-297)
É bem provável que o raio, domínio que Iansã ganhou de Xangô, tenha sido um dos
motivos que levaram os seguidores das religiões de matriz africana a sincretizarem o orixá que
teve tantos amantes com a virgem Bárbara. Além do raio que fulminou Dióscoro, o pai da mártir,
a espada e a cor vermelha (utilizadas por ambas) são os elementos em comum que ajudam a
entender tal associação.
Mas levando em consideração que, nos terreiros de candomblé, Iansã come acará, qual o
motivo de Santa Bárbara (sincretizada com o orixá Iansã) ser reverenciada com um caruru? A expli-
cação está numa antiga associação da mártir cristã também ao orixá Xangô, rei do império de Oió.
Até a década de 1930, essa correspondência era feita pelos afrorreligiosos que, a partir de então, co-
meçaram a associar a santa apenas à divindade feminina (Iansã). Antes disso, a diferença de gênero
entre a santa católica e o rei de Oió parecia irrelevante, pois, de acordo com Nina Rodrigues (2014),
Assim, em todos os terreiros e para todos os negros que conhecem os santos africanos,
Sango é equivalente de Santa Bárbara ou é a própria Santa Bárbara. Mas Sango sendo
masculino e Santa Bárbara do sexo feminino era preciso que entre eles houvesse de
comum um ponto de contacto tão capital que tornasse secundária a diferença de sexo.
Sango é o deus do trovão e é representado por meteoritos, machados de pedra ou pedra
de raio. Santa Bárbara é por sua vez a padroeira das tempestades e dos raios de que foi ví-
tima. Como é o sentimento de terror provocado pelo fenômeno físico do trovão e do raio,
que constitui o elemento fundamental da crença e a origem da invocação do patrono, a
identidade mental dos protetores foi mais forte do que as suas diferenças individuais de
sexo. (Rodrigues, 2014, p. 129)
A constatação feita por Nina Rodrigues em fins do século XIX foi depois observada por
Donald Pierson (1971, p. 332), que escreveu o seguinte: “Mesmo Xangô, o orixá do relâmpago e do
trovão, julgado por alguns prêtos como sendo distinto de todos os santos católicos, era adorado em
várias das mais representativas seitas de gêge-nagô, sob o nome de São Jerônimo e, ocasionalmente,
de Santa Bárbara”.
Conhecido como o orixá comedor de quiabo, o fruto do quiabeiro é um alimento ligado à
dinastia de Oió, e o amalá (uma variação do caruru) é a comida preferida de Xangô. Ou seja, é por
esse motivo que Santa Bárbara, inicialmente associada ao rei de Oió, compartilha a mesma comi-
da de Xangô. Ademais, mesmo sendo vinculada posteriormente apenas ao orixá Iansã, Bárbara
continuou sendo homenageada com este prato, já que Iansã, esposa de Xangô, também come a
comida do marido.
Tanto Iansã (esposa) como os Ibejis (filhos) comem quiabo em função deste vínculo familiar
e real, que une a corte de Oió em torno da mesa. Com isso, o caruru tornou-se motivo de festa e, ape-
sar de outros pratos da cozinha afro-baiana terem sido servidos durante anos aos fiéis de Bárbara/
Iansã, foi o caruru que se consagrou como a comida-símbolo dessa festa em Salvador.
E caruru, na verdade, é apenas maneira de falar porque o prato servido nos carurus de pro-
messa é composto por caruru, vatapá, feijão-fradinho, arroz, xinxim de galinha, feijão-preto, fa-
rofa de dendê, banana-da-terra frita, abará, acarajé... Tudo regado a azeite de dendê, num dos
pratos que sintetizam a culinária afro-diaspórica no Brasil. Como as chamadas “comidas de azeite”
já estavam presentes nas feiras, barracas e festas, não foi difícil reuni-las no mesmo prato para
homenagear a protetora contra os raios e a senhora dos mercados.
Contudo, mesmo o prato do caruru de promessa sendo a comida destaque da festa de 04 de
dezembro, o acarajé também é uma marca forte das comemorações e se faz presente não somente
como um dos acompanhamentos do referido prato, mas em grandes balaios e tabuleiros que as
devotas (muitas delas baianas de acarajé) levam para o Largo do Pelourinho, no dia dedicado à
Santa Bárbara. Enchendo os cestos de palha, os inúmeros bolinhos são carregados nos braços e nas
cabeças dos fiéis da santa que não por acaso também é padroeira das baianas de acarajé.
Como exposto, o acará (sem os acompanhamentos) é a comida preferida de Iansã.
Originário da África Ocidental, esse bolinho era inicialmente conhecido como acará (“bola de fogo”)
para ajeum,6 servido puro ou, no máximo, com pimenta. O acarajé é um bolinho de feijão-fradinho
moído, batido com cebola ralada e sal, que é frito no azeite de dendê. Manuel Querino (2006), ao
descrever a receita do quitute, diz ainda que
O azeite é renovado todas as vezes que é absorvido pela massa, a qual toma exteriormente
a cor do azeite. Ao acarajé acompanha um molho, preparado com pimenta malagueta
seca, cebola e camarões, moído tudo isso na pedra e frigido em azeite de cheiro, em
outro vaso de barro. (Querino, 2006, p. 26)
Um mito africano narra que, depois de se separar de Ogum e se casar com Xangô, Iansã foi
enviada pelo novo esposo à terra dos baribas para buscar um preparado que, uma vez ingerido, lhe
daria o poder de cuspir fogo. Ousada, Iansã desobedeceu a Xangô e experimentou o preparado an-
tes dele, também se tornando capaz de lançar chamas de fogo pela boca. É graças a isso que nos
rituais dos deuses do fogo, Xangô e Iansã disputam para engolir os acarás – mechas de algodão
embebidas em dendê e acesas com fogo, numa cerimônia que lembra a origem do acarajé.7
alongados (formato fálico, masculino), e servidos com o amalá (comida preferida de Xangô). Já os acarajés oferecidos a Oiá-Iansã são menores
(formato redondo, feminino), enfeitados com pimenta-da-costa ou camarão seco, ou simplesmente servidos puro.
Ainda no período da escravidão, essa comida sagrada dos terreiros de candomblé ganhou as
ruas através da “obrigação do acarajé”, quando as negras passaram a vender o quitute para custear
os gastos com as obrigações de iniciação religiosa. Escolhidas por Oiá-Iansã, essas mulheres rece-
biam autorização do orixá para preparar e comercializar publicamente o alimento votivo da deusa
poderosa, senhora dos ventos e das tempestades.
Sendo assim, o acarajé foi incorporado aos festejos de Santa Bárbara por ser o principal ali-
mento do orixá com o qual a santa é sincretizada até hoje. Além disso, o bolinho funciona como uma
espécie de aperitivo, uma entrada que prepara o estômago para o caruru de Santa Bárbara, que é
um verdadeiro banquete. Entretanto, nem todos os devotos que recebem os acarajés distribuídos
na procissão da santa ingerem o alimento. Alguns fiéis dão um tratamento diferenciado ao bolinho,
como explicarei a seguir.
Historicamente, a festa de Santa Bárbara em Salvador foi uma devoção popular que cresceu
graças ao empenho dos africanos e crioulos do antigo morgado. Como o festejo não estava sob o
controle da Igreja Católica (presente na festa apenas na figura do padre responsável por celebrar a
missa da santa), o samba, a capoeira, as comidas e bebidas foram incorporadas às manifestações
populares durante a festa.
Todos os anos, ao preparar e servir o caruru em honra à Santa Bárbara, mesmo sem saber,
seus devotos reatualizam o banquete da família do rei de Oió. Se quiabo representa fartura para
Xangô, o caruru é a festa da abundância. Não é à toa que, na capital baiana, carurus costumam ser
oferecidos tanto em setembro (Ibejis/Cosme e Damião) como em dezembro (Iansã/Santa Bárbara).
Conforme já pontuado, além do caruru, o acarajé em forma de acará (sem acompanha-
mentos) também está presente na festa oficial da santa. Nos terreiros de candomblé, na cerimônia
de Iansã, esse alimento até hoje é distribuído pelo próprio orixá aos participantes da festa. Como
assinalou o jornal A Tarde de 05 de dezembro de 1972 (p. 3): “À noite, em algumas casas de candom-
blé, a Santa distribuiu acarajés milagrosos em tijelas de cobre e de barro”. Alguns comem, outros
guardam no bolso e tem aquelas pessoas que passam o bolinho no corpo e depois o despacham,
num pedido de limpeza e proteção. Os acarajés distribuídos durante a festa de Santa Bárbara, no
Pelourinho, recebem o mesmo tratamento pelos fiéis.
Segundo o Jornal da Bahia8 de 05 de dezembro de 1979, não apenas os adeptos das religiões
de matriz africana reverenciavam Iansã com distribuição de acarajés e oferendas nas ruas: “A
enfermeira Sandra Ferreira, residente na Graça, há dois anos que compra o acarajé para colocar
‘em qualquer mato’. Ela diz que nunca foi a um candomblé, mas o respeita e sempre leva flores a
Iemanjá e acarajé para Iansã”. O depoimento dessa mulher é representativo da religiosidade de
muitos soteropolitanos que se dizem católicos (não praticantes) ou sem religião, mas não veem
problema em transitar pelos credos religiosos, inclusive os de matriz africana.
8 Jornal da Bahia, Salvador, 05 dez. 1979.
A oferenda do acará também pode ser observada na capela em honra à virgem mártir, loca-
lizada no interior do Mercado de Santa Bárbara (Baixa dos Sapateiros). Nas proximidades da data
festiva, fiéis costumam depositar aos pés da santa católica nagés (pratos) de barro com acará. Em
geral, as oferendas são compostas de nove bolinhos. A quantidade dos acarás faz referência às his-
tórias relacionadas a Iansã, já que o número nove é sagrado para esse orixá.
Mais elementos desse encontro de religiões são observados no momento do ofertório, na
missa solene que acontece no Largo do Pelourinho. Durante a procissão das ofertas, além dos habi-
tuais cálices, hóstias, água e vinho, aparecem também os abarás, acarajés e acaçás. Segundo Manuel
Querino (2006), essas três comidas compõem os “alimentos puramente africanos” encontrados na
Bahia desde o período da escravidão.
Edilece Couto (2018) defende que, em Salvador, os elementos dessas diferentes religiões se
unem num convívio de crenças que compõe a festa. Ela não acredita em mistura, mas em comple-
mentação religiosa.
Os fiéis entendem que, para os católicos, a hóstia é o corpo de Cristo e o acarajé, para
candomblecistas e umbandistas, é o alimento de Iansã. Eles ocupam momentaneamente
o mesmo espaço, estão presentes na liturgia católica, na missa, mas não se misturam,
não se sobrepõem nem se confundem. São alimentos rituais que se complementam no
momento em que os fiéis homenageiam Santa Bárbara e Iansã. Eles, respectivamente,
representam a santa e o orixá. (Couto, 2018, p. 210)
O acarajé é um elemento tão presente no dia 04 de dezembro que, durante a missa fes-
tiva do ano de 2004, o celebrante falou do quitute em sua homilia. Ao criticar a postura dos
segmentos religiosos que transformaram o acarajé em “bolinho de Jesus”,9 o padre Josival Lemos
Barbosa declarou: “O acarajé pertence à cultura afro, é a comida dos orixás. Não pode ser esva-
ziado do seu significado”.10
Em se tratando de acarajé e festa de Santa Bárbara, entre tantas baianas de tabuleiro, uma
delas se destacou e ficou conhecida pela distribuição gratuita dos bolinhos, todos os anos, no dia 04
de dezembro. Por mais de uma década (anos 1970 e 1980), a baiana Eulina Maria dos Santos, filha de
Iansã Balé, servia gratuitamente cerca de 2 mil acarajés e abarás (sem recheios), além de caramelos,
para os clientes que se aproximavam do seu ponto no bairro da Graça.
O Jornal da Bahia11 explicou quando Eulina começou a fazer isso e os detalhes na arrumação
do seu tabuleiro de acarajé.
Há 12 anos com tabuleiro na esquina da avenida Euclides da Cunha com a rua Rio de
São Pedro, Eulina, 42 anos, sete filhos e três netos, faz essa distribuição a sete anos,
como pagamento de uma promessa feita a Iansã. Ela frequenta o Terreiro de Oxosse
Amburana, de Mãe Linalva, em Sete de Abril, o qual rendeu durante a noite de ontem
homenagens à “deusa”.
9 Para mais informações sobre o surgimento do “bolinho de Jesus” e as tensões entre baianas de acarajé adeptas do candomblé e evangélicas
Vestida em traje típico de baiana (bata e saia rendada branca, grossos colares e tor-
ço bordado de fios prateados) Eulina a todo instante solicitava aos curiosos, fregueses,
que não permanecessem em frente ao tabuleiro todo ornamentado de flores verme-
lhas e com as imagens de Santa Bárbara e Santo Antônio – é que a seita não permite.
A “festa” de Eulina, além de ser uma homenagem entre muitas que os baianos oferecem
a Santa Bárbara no seu dia, é também o pagamento de uma promessa que ela fez para
que seu irmão, o motorista Antônio Santos, fosse recuperado de uma doença, depois de
ter sido desenganado por cinco médicos. Completamente recuperado, Antônio é um dos
primeiros a chegar no local da festa.
Considerações finais
Periódicos consultados
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Resumo: O objetivo desta pesquisa consiste em Abstract: The objective of this research is to
apresentar uma reflexão histórica e sociológica present a historical and sociological reflection on
sobre as Plantas Alimentícias Não-Convencionais Non-Conventional Food Plants (PANC) based on
(PANC) com base em dois eixos centrais. Em two central axes. First, we discuss the marginal
primeiro lugar, discutimos a importância marginal importance of PANC in the hegemonic food
das PANC no modelo alimentar hegemônico como model as the leitmotiv for a critical re-reading of
leitmotiv para uma releitura crítica do “paradoxo do the “omnivore paradox,” as formulated by Claude
onívoro”, tal como formulado por Claude Fischler. Fischler. By differentiating the contradictory reasons
Assim, ao diferenciarmos as razões contraditórias that oppose or favor the inclusion of these plants in
que se opõem ou que favorecem a inclusão dessas the chains of production and consumption, we adopt
plantas nas cadeias de produção e consumo, a type of theoretical-methodological procedure
adotamos um tipo de procedimento teórico- that confers greater historicity and concreteness to
metodológico que confere maior historicidade the discussions about the dynamic frontiers of the
e concretude às discussões acerca das fronteiras “edible”. Secondly, we present the experience of the
dinâmicas do “comestível”. Em segundo lugar, PANC-Bahia Network as an original modality of food
apresentamos a experiência da Rede PANC-Bahia activism that develops a series of strategies oriented
como uma modalidade original de ativismo by the valorization of the socio-biodiversity with
alimentar que desenvolve uma série de estratégias the purpose of contributing to the expansion of the
orientadas pela valorização da sociobiodiversidade cultivation of PANC and its greater insertion in the
com o propósito de contribuir para a ampliação do diets of rural and urban populations.
cultivo de PANC e sua maior inserção nas dietas das Keywords: Non-Conventional Food Plants; PANC-
populações rurais e urbanas. Bahia Network; “omnivore paradox”; food security.
Palavras-chave: Plantas Alimentícias Não-
Convencionais; Rede PANC-Bahia; “paradoxo do
onívoro”; segurança alimentar.
1 Luiz Enrique Vieira de Souza é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Contato: [email protected]. José Geraldo de Aquino Assis é professor do Instituto de Biologia (UFBA). Contato: [email protected].
Torta de chaya, bolo de licuri, trufa de hortelã da borda branca e suco de cana-de-maca-
co. Tão logo esses alimentos foram colocados à mostra, aglomeraram-se os frequentadores da
tradicional Feira Agroecológica da Universidade Federal da Bahia na intenção de experimentar
combinações de sabores que lhes eram antes desconhecidas. O mote para a seleção desse inusita-
do menu baseou-se no fato de que cada um dos itens levava em sua composição alguma “Planta
Alimentícia Não-Convencional” (PANC), pois a degustação havia sido preparada também com o
objetivo de chamar a atenção para as mudas ali expostas – taioba, bertalha, feijão-de-porco, vina-
greira – e para uma conversa sobre técnicas de cultivo e modos de preparo que agregariam novos
ingredientes ao léxico alimentar daquelas pessoas. Como os alimentos tornam-se mais saborosos
quando azeitados com protagonismo, as despedidas ao fim da interação vieram acompanhadas
pela oferta de sementes de moringa, caxixe e almeirão.
Os responsáveis por essa intervenção são alunos e professores envolvidos num projeto in-
terdisciplinar de extensão universitária, cuja finalidade é discutir os vários aspectos relacionados às
PANC e refletir sobre estratégias para que essa categoria ganhe espaço frente ao modelo alimentar
hegemônico, pautado pelo agrobusiness e pela indústria de processados. Na realidade, trata-se de
uma entre outras iniciativas referenciadas no trabalho da Rede PANC-Bahia, formada por um grupo
de ativistas que se reuniram com o propósito de disseminar conhecimentos acerca dessas plantas
e assim contribuir para a segurança alimentar numa perspectiva que incorpore critérios socioam-
bientais ao cultivo e comercialização dos produtos agrícolas.
Em poucas palavras, o termo PANC refere-se ao conjunto de plantas que possuem uma ou
mais partes que podem ser utilizadas na alimentação – raízes tuberosas, bulbos, folhas, brotos,
frutos, sementes –, mas que por diversas razões não chegam à mesa dos comensais. Ao invés de
serem reconhecidas enquanto alimentos, muitas dessas plantas com frequência são confundidas
com ervas daninhas ou vistas simplesmente como “mato” (Kinupp; Lorenzi, 2014). Embora os levan-
tamentos relativos à fitodiversidade comestível apresentem variações, estima-se que existam cerca
de 12.500 espécies potencialmente alimentícias no planeta, entre as quais aproximadamente duas
mil variedades não-convencionais presentes no território brasileiro. Essa ampla variedade explicita
as tendências de homogeneização das dietas, visto que 95% das nossas exigências alimentares são
cobertas por apenas 30 plantas e mais da metade dos nutrientes que absorvemos provêm do milho,
do arroz, do trigo e da soja (Kinupp; Barros, 2004).
À luz dessa contradição, propomos ao leitor uma reflexão organizada em torno de dois eixos.
Em primeiro lugar, interessa-nos promover uma releitura do debate a respeito das PANC sob um
enquadramento teórico-metodológico ancorado na sociologia da alimentação. Isso porque a quase
totalidade das pesquisas disponíveis sobre esse tema foram conduzidas na perspectiva dos estudos
etnobotânicos ou das ciências da nutrição. Nesse sentido, interessa-nos uma apropriação crítica do
“paradoxo do onívoro” (Fischler, 1995) que confira maior historicidade e concretude às discussões
sobre as incertezas relacionadas à escolha dos alimentos. Em segundo lugar, apresentaremos
um registro da experiência da Rede PANC-Bahia como uma modalidade de ativismo alimentar
(Azevedo, 2015) pautado por ações comunitárias voltadas para uma reformulação dos paradigmas
de produção, comercialização e consumo de alimentos que contemple a sociobiodiversidade.
Nossa condição enquanto seres onívoros oferece-nos uma ampla margem de autonomia
e liberdade para subsistirmos graças a uma variedade de alimentos, que podem ser substituídos
por outros a depender das condições impostas pelo entorno socioambiental. Ao mesmo tempo em
que nos proporciona tais capacidades de ajuste, a condição onívora nos força, porém, a buscar a di-
versificação, pois, ao contrário das espécies cuja fisiologia requer uma alimentação especializada,
não conseguimos, quando adultos, extrair todos os nutrientes de que precisamos de uma única
espécie alimentícia.
Nos termos formulados por Claude Fischler (1995) em sua obra seminal para as pesquisas
em sociologia da alimentação, o “paradoxo do onívoro” se situaria na tensão, isto é, na oscilação
entre os polos da “neofilia” (tendência para a exploração, inclinação para a variação e novidade)
e a “neofobia” (prudência, temor do desconhecido e resistência à inovação). Nesse último caso,
o conservadorismo alimentar relaciona-se com o perigo que pode decorrer da ingestão de
espécies tóxicas que, no limite, ocasionam a morte do indivíduo. De qualquer forma, o autor
ressalta que a angústia relacionada com a escolha dos alimentos não é consubstancial apenas ao
nosso ser biológico, mas também à nossa mente. Assim, somos onívoros também no plano das
representações sociais, incorporando e rejeitando alimentos, abrindo-nos para a experimentação
ou protegendo-nos contra o perigo a depender do gosto ou desgosto que a comida nos provoca no
âmbito simbólico.
Por que comemos? Quero dizer, por que comemos o que comemos? A pergunta parece
absurda: comemos o que é comestível, e isso é tudo. “Comestível”: deveríamos, contudo,
tornar essa noção mais precisa; poderíamos perguntar-nos, por exemplo, o que faz uma
espécie ou substância ser incomível? É uma simples questão de toxicidade ou podemos
declarar não comestível uma substância cujo único defeito é seu sabor? O incomível
responde sempre a uma definição objetiva ou se trata de outra coisa, no plano do
imaginário, por exemplo? (Fischler, 1995, p. 27, tradução nossa)
Fischler tem razão ao afirmar que nem tudo que é biologicamente comestível também se-
ria culturalmente comestível. A questão da entomofagia ilustra esse argumento, pois o consumo
de insetos tem sido debatido por especialistas como uma alternativa para a garantia da segurança
alimentar, embora ainda figure como uma opção aversiva para a maioria das sociedades ocidentais
(Fao, 2015). De acordo com Fischler, tampouco faria sentido negar que os gostos ou aversões inatas
– se é que elas de fato existem – não podem ser modeladas ou mesmo invertidas pela influência
social e imersão numa dada cultura. Por essas razões, a “cozinha” aparece aos olhos do autor como
o elemento cultural que atenuaria as tensões características do “paradoxo do onívoro”. Ao elabo-
rar gustativa e simbolicamente os alimentos, ela tanto familiariza o indivíduo com o desconhecido
como introduz a variação naquilo que já se fez monótono.
fluxo migratório para as grandes cidades, uma vez que, ao se estabelecerem no meio urbano, as
famílias de antigos agricultores viram-se obrigadas a desenvolver modos de vida muito diferen-
tes daqueles regulados pelos ciclos da natureza a que estavam habituadas (Monteiro; Mendon-
ça, 2004). Por vezes, as hortas urbanas e os quintais domésticos ainda contribuem para manter,
mesmo que em escala reduzida, o vínculo do migrante com a terra e algum grau de autonomia
na produção de alimentos. Mas, apesar de terem importante função ecológica e de conservarem
uma diversidade de plantas na sua composição, fatores geracionais e a difusão de novos hábitos
alimentares pautados pelo consumo de processados têm levado à desarticulação dos quintais
agrícolas e à perda de espaço dessas práticas tradicionais para a agroindústria, inclusive em algu-
mas localidades rurais (Amaral; Neto, 2008).
Já no âmbito do imaginário e do simbólico, o prestígio das PANC sofre não apenas com a
concorrência do marketing dos gigantes da indústria alimentícia, mas também com o fato de que
o consumo de certas espécies evoca a lembrança triste e desagradável dos tempos de escassez,
como atestam algumas narrativas a respeito da palma forrageira, da língua-de-vaca e do bredo.
Em outras palavras, as PANC não raro são vistas como “comida de gente pobre” ou “isso que dá aí
no quintal”, desvalorizadas simbolicamente perante os alimentos plastificados que figuram nas
prateleiras dos supermercados.
De qualquer forma, seria errôneo apreender tais elementos numa perspectiva unilateral
que considerasse as PANC apenas sob o ângulo do desprestígio simbólico e do esquecimento. Em
nossa concepção, a esfera alimentar apresenta-se como um “campo de forças antagônicas”, de modo
que, concomitantemente aos vetores de erosão das práticas e dos saberes tradicionais agrícolas,
emergem contra-tendências que atuam no sentido de favorecer uma maior inserção das PANC nas
cadeias produtivas. Um exemplo disso tem sido o impulso dado pela gastronomia, uma vez que al-
guns chefs reconhecidos no meio culinário têm desenvolvido receitas que incluem PANC entre os
ingredientes de seus pratos. Além do ganho em termos de originalidade, os chefs se valem dessa
estratégia culinária para explorar os “gostos transgressivos”, que se respaldam nas dissonâncias en-
tre o nobre e o humilde, o precioso e o rústico, elevando muitas vezes a “gosto de luxo” o que antes
se representava como “gosto por necessidade” (Bourdieu, 2013). Essa promoção ganha repercussão
ainda maior quando os pratos são expostos nos cardápios de restaurantes da haute cuisine, festivais
populares ou quando divulgados na mídia por expoentes da alimentação natural (Abdala, 2019).
Embora surjam vozes que questionem o “modismo” das PANC e os esforços recentes
para conferir visibilidade ao tema como uma questão de “apropriação cultural” de elementos da
cozinha ancestral, parece-nos mais razoável apontar para a emergência de diálogos entre os
experimentos gastronômicos que lançam mão do uso de PANC e os saberes culinários nos quais
eles se referenciam. Considerar a historicidade dos esforços para a promoção das PANC não se
confunde com qualquer diluição a priori do conceito de tradição alimentar de grupos específicos,
como indígenas e quilombolas. Uma vez feita a ressalva de que um alimento aparece enquanto
“convencional” ou “não convencional” a depender do referencial cultural de quem enuncia, trata-
se de um processo que pode em alguma medida contribuir para reforçar identidades alimentares
antes pouco conhecidas e desprestigiadas.
Com seus novos sabores, perfumes e texturas, as PANC também despertam o apetite
daqueles comensais mais atentos aos benefícios da “alimentação saudável”. De fato, uma parcela
significativa das pesquisas que lhes são dedicadas apontam que as PANC são alimentos funcionais
que proporcionam vitaminas essenciais, antioxidantes, fibras e sais minerais que nem sempre são
encontrados em quantidade desejável em outros alimentos mais corriqueiros – sem falar naquelas
variedades, como a ora-pro-nóbis, que despontam como importantes alternativas de proteína
vegetal (Kinupp; Barros, 2008). Vale lembrar também que as partes não convencionais de alimentos
do dia a dia (cascas, folhas, talos) apresentam teores de fibras, vitamina C, ferro, cálcio e potássio
próximos ou superiores às suas partes convencionais, vinculando assim as reflexões sobre PANC
às discussões acerca da importância do combate ao desperdício de alimentos para a garantia da
segurança alimentar (Monteiro, 2009).
Nosso leitor já deve ter atentado para o poder de atração dos discursos que problematizam
as escolhas alimentares segundo critérios de saúde, de modo que as ciências dietéticas – assim
como a medicina em geral – assumiram um importante papel na mediação do “paradoxo do onívoro”
durante a modernidade. Na esteira das preocupações com a “alimentação saudável”, as PANC
apresentam vantagens relativas tanto no que concerne às funções medicinais (propriedades anti-
inflamatórias, por exemplo), quanto no que diz respeito à superação do consumo de agrotóxicos,
pois muitas delas são resistentes às pragas, seca e doenças, tornando-as particularmente
convenientes para o cultivo orgânico e afeitas ao plantio em condições pouco adequadas para as
espécies convencionais (Duarte, 2017; Instituto Kairós, 2017).
Com efeito, a racionalização da dieta constitui um dos vetores fundamentais que orientam
os indivíduos quanto à formação de seus hábitos alimentares. Ao lado dos “menus racionais”, que
se guiam pelo que as ciências têm a dizer sobre o consumo de alimentos e a performance física e
mental, Beardsworth e Keil (2002) elencaram ainda um tipo de “menu tradicional”, que se pauta
pelas crenças e proibições, e um “menu moral”, no qual o ato de comer ganha conotação explicita-
mente política em virtude de considerações étnicas, ambientais e posicionamentos éticos perante
animais não humanos.
É evidente que a relevância dessa tipologia para a análise empírica das escolhas alimentares
depende de uma compreensão não esquemática de tais categorias, mas de sua articulação em ter-
mos de sobreposição dos menus. De maneira ilustrativa, o efó é um prato da culinária baiana, cuja lis-
ta de ingredientes inclui hortaliças não convencionais como a taioba e a língua-de-vaca. No contexto
do candomblé, é uma comida que se oferece a Nanã, senhora da morte e responsável pelos portais de
reencarnação e desencarne das almas. Na qualidade de “comida de santo”, o efó conjuga, portanto,
crenças, ancestralidade e etnia, numa articulação original de tradição e moralidade (Querino, 1957).
A práxis alimentar dos vegetarianos englobaria, por sua vez, diferentes possibilidades de
articulação entre o “menu racional” e o “menu moral”, haja vista que a exclusão de alimentos de
origem animal depende, na prática, de múltiplas combinações entre narrativas fundamentadas na
ciência da nutrição, nos diagnósticos relativos à crise ambiental e perda de biodiversidade, assim
como nos posicionamentos éticos em defesa da “libertação animal” (Radnitz et al., 2015). Embora a
promoção das PANC não se restrinja aos círculos vegetarianos, ela representa para os seus adeptos
uma alternativa para contrabalancear as restrições autoimpostas com um amplo leque de opções
alimentares. Não por acaso, diversas edições da Feira Vegana de Salvador incluíram em sua progra-
mação oficinas dedicadas ao reconhecimento de PANC e ao intercâmbio de receitas em que essas
plantas figuram como ingredientes.
Em resumo, a presente seção esteve orientada por uma discussão acerca das PANC segundo o
referencial teórico da sociologia da alimentação. Nela elencamos uma série de fatores que explicam,
por um lado, a marginalização dessas plantas nas cadeias de produção estabelecidas e, por outro, as
vantagens relativas e pontos de apoio para que elas sejam paulatinamente incorporadas aos nossos
cardápios. Conforme argumentamos acima, essa reflexão esteve pautada por uma concepção da es-
fera alimentar como um campo de forças contraditórias, de modo que seu mapeamento contribui
para dotar de maior especificidade e concretude histórica as reflexões em torno do “dilema do onívo-
ro”. Na próxima seção, apresentaremos ao leitor um relato sobre a Rede PANC-Bahia que, no âmbito
dos ativismos alimentares, surge como uma experiência voltada para a difusão do conhecimento e
popularização das PANC por meio de um conjunto de estratégias multifacetadas.
Desde então, os debates sobre PANC conquistaram maior penetração nas instâncias da
UFBA, inserindo-se nos currículos disciplinares, orientando pesquisas em socioantropologia da ali-
mentação e conservação do patrimônio genético, além de se tornarem eixo temático de projetos
de extensão. Assim, a universidade tornou-se referência institucional, polo de agregação e foco ir-
radiador de uma série de estratégias articuladas para a promoção dos conhecimentos sobre PANC
na Bahia. Na perspectiva científica, foi criada uma coleção de exsicatas de plantas no Herbário Ale-
xandre Leal Costa, que servirá como uma coleção referência de PANC, banco de DNA e banco de
sementes. Essas ações darão suporte a uma série de trabalhos de pesquisa que se somam às ações
de diálogos comunitários promovidos pela Rede.
Ainda no âmbito dos projetos de extensão, criou-se uma horta na universidade que se tem
prestado a funções didáticas, fornecido insumos para oficinas gastronômicas e mudas para doação.
Mais do que isso, o próprio campus tornou-se palco de oficinas para reconhecimento de PANC e
espaço privilegiado para a ampliação da Rede – vide o estreitamento de laços com os pequenos
agricultores que comercializam seus produtos na Feira da Reforma Agrária e na Feira Agroecológica,
que ocorrem às quartas e sextas-feiras, respectivamente.
O contato direto com os agricultores é decisivo para que um maior número de PANC consiga
se inserir nas cadeias produtivas, pois aqueles que lavram a terra precisam ter alguma garantia de
que o plantio dessas variedades pode encontrar demanda e se converter em fonte de renda. Pensan-
do nisso, a Rede PANC-Bahia auxilia os pequenos produtores rurais a identificar aquelas espécies
alimentícias que crescem espontaneamente em seus terrenos, dialogando sobre as possibilidades
de uso para consumo próprio e comercialização. Nesse último caso, os membros da Rede oferecem
suporte para uma análise microeconômica da propriedade e apresentam uma estimativa de quanto
o agricultor pode auferir com a comercialização de determinadas variedades de PANC.
Como parte de suas reflexões sobre as dimensões culturais da alimentação, a Rede
PANC-Bahia busca aproximar-se de comunidades referenciadas na “cozinha ancestral”. Um
exemplo disso é sua participação regular no “Permangola”, um evento promovido anualmente
pelo Kilombo Tenondé (Valença/BA), cujas oficinas de permacultura e Capoeira Angola possuem
repercussão internacional. Além de praticantes do vegetarianismo, os membros dessa comunidade
desenvolveram um mapeamento local de espécies alimentícias que se combinou com uma horta
fundamentalmente voltada para o cultivo de PANC – tais como bredo, beldroega, inhame quiçare,
entre outras. Paralelamente, a Rede estabeleceu diálogo com a “Fundação Terra Mirim”, uma
comunidade xamânica localizada no município de Simões Filho (BA), onde o uso de PANC na
alimentação faz parte de um rol mais amplo de práticas voltadas para a preservação ecológica, para
o desenvolvimento espiritual e para a valorização da ancestralidade.
Os esforços para a promoção das PANC e o enfoque na diversificação dos hábitos alimenta-
res também se apresentam como pontos de apoio para a socialização e integração comunitária. Isso
porque as oficinas de gastronomia e de reconhecimento de PANC são conjugadas com eventos para
a troca de sementes e mudas, articulando estratégias que favorecem não apenas o intercâmbio de
material genético, como também de conhecimentos e experiências. Nesse sentido, é importante
ressaltar as afinidades dos projetos concebidos pela Rede PANC-Bahia com o ativismo alimentar na
perspectiva das hortas urbanas e do locavorismo (Azevedo, 2015).
Juntamente do plantio de espécies não convencionais nos canteiros da UFBA, os projetos de
extensão universitária vinculados à Rede desenvolvem intervenções nas escolas públicas de Salva-
dor e da região metropolitana. Esse foi o caso, por exemplo, do Centro Educacional Carneiro Ribei-
ro (Escola Parque), cujo Núcleo de Jardinagem envolveu a comunidade escolar no cultivo de uma
horta de espécies tradicionais. A iniciativa foi protagonizada por pessoas mais idosas, que atuaram
como “elos de memória” com a geração mais jovem, mobilizando saberes e sabores para fomentar
a inclusão de PANC no cardápio da merenda escolar.
Evidentemente, nosso leitor não deve tomar este relato como uma descrição exaustiva das
iniciativas empreendidas pela Rede PANC-Bahia. Em vez disso, nosso objetivo consistiu em reunir
elementos para caracterizá-la como uma modalidade de ativismo alimentar que se configura en-
quanto antítese do agronegócio e do modelo alimentar hegemônico em geral: 1) ao passo que o
agrobusiness se respalda na propriedade latifundiária, a Rede PANC-Bahia sublinha que a resiliência
das espécies não convencionais favorece seu cultivo em pequenas propriedades, hortas urbanas e
mesmo em terrenos baldios; 2) ao invés das monoculturas voltadas para a produção de commodities,
o discurso de promoção das PANC respalda-se na diversificação das culturas agrícolas; 3) em decor-
rência disso, elas apresentam-se como um aporte para a biodiversidade em oposição ao modelo de
devastação das florestas que redunda na extinção de um sem número de espécies; 4) levando-se
em conta as propriedades biológicas de várias espécies não convencionais e de sua afinidade com
o modelo da agroecologia, o cultivo de PANC dispensa o uso intensivo de agrotóxicos; 5) as PANC
são ricas em termos nutricionais e nutracêuticos, ao contrário dos alimentos processados, ricos em
gorduras, sódio e aditivos prejudiciais à saúde; 6) a incorporação de PANC aos menus representa
uma incursão em novos sabores, aromas e texturas, oferecendo um contraponto à homogeneização
das dietas; 7) na contramão do modelo agroindustrial, o ativismo da Rede PANC-Bahia valoriza a
produção local e a socialização entre produtores e consumidores de alimentos; 8) num marcante
contraste com os “alimentos plastificados”, as PANC são “boas para pensar” na medida em que rea-
vivam a tradição, a memória e a “cozinha ancestral”.
Numa palavra, compreender o ativismo da Rede PANC-Bahia como antitético à perspectiva
do agrobusiness e ao modelo alimentar hegemônico reforça a concepção que apresentamos na seção
anterior, segundo a qual a esfera alimentar constitui-se como um campo de forças contraditórias.
Essa disputa eleva-se ao plano das políticas públicas, de modo que a Rede PANC-Bahia vem buscan-
do traduzir seu discurso em termos de propostas para o debate público sobre segurança alimentar.
Num plano geral, todas as políticas que beneficiam a agricultura familiar podem, em algu-
ma medida, contribuir para a disseminação do cultivo e comercialização das PANC. Um exemplo
disso foi a aprovação no estado do Amazonas da Lei 4.813 (17/04/2019) que, entre outras disposições,
prevê redução e/ou isenção de impostos para o cultivo e comercialização de espécies não conven-
cionais. Já no Recôncavo Baiano, a inclusão da farinha de araruta na merenda escolar aumentou
a demanda local por esse produto, ao mesmo tempo que se mostrou uma estratégia eficiente no
combate à desnutrição infantil. Além de corroborar essas medidas, a Rede PANC-Bahia sublinha
também a necessidade de investimento em pesquisas interdisciplinares sobre PANC, sua inclusão
no cardápio dos refeitórios públicos e um maior apoio logístico na distribuição desses produtos
agrícolas. Trata-se, portanto, de um conjunto de iniciativas que objetivam a inserção dessas espé-
cies nas cadeias de produção e cujo horizonte orienta-se para que elas deixem de ser “não conven-
cionais” e assegurem seus lugares em nosso léxico alimentar.
Agradecimentos
Agradecemos o apoio concedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado da Bahia (Fapesb)
e pelo Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT/CNPq). Também agradecemos
em especial aos membros do grupo de estudos “A práxis está na mesa” e aos participantes da ACCS
“Plantas Alimentícias Não Convencionais”, ambos vinculados à Universidade Federal da Bahia.
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Resumo: O presente artigo tem como objetivo Abstract: The objective of this research is to present
principal analisar critica e comparativamente a a historical and sociological reflection on This article
política pública de drogas adotada tanto no Brasil aims to analyze critically and comparatively the
quanto em Portugal. Com a adoção do método da public policy of drugs that are adopted both in Brazil
revisão bibliográfica, construímos a hipótese de and in Portugal. With the adoption of the method
que o respeito aos valores democráticos só nos será of bibliographic review, we have hypothesized that
possível em território brasileiro quando a política respect for democratic values will only be possible
pública em matéria criminal atualmente em curso in Brazilian territory when the current public policy
sofrer profundas modificações, tomando-se como in criminal matters undergoes profound changes,
base o modelo português. Por fim, concluímos based on the Portuguese model. Finally, we
que, embora não seja perfeito, o modelo adotado conclude that, although it is not perfect, the model
em Portugal é o que mais se aproxima de um adopted in Portugal is the one closest to a substantial
substancial Estado Democrático de Direito. Democratic State of Law.
Palavras-chave: política pública; drogas; Brasil; Keywords: public policy; drugs; Brazil; Portugal;
Portugal; democracia. democracy.
1 Doutorando na Universidade de Coimbra, em Portugal, e professor no Centro Universitário CESMAC (Maceió/AL). Contato: [email protected].
Como bem sabemos, a história é feita de marchas e contramarchas, o que significa reco-
nhecer, dentre outras coisas, que nosso capital cultural é constituído através da correlação de forças
entre grupos de poder que nos fazem vivenciar, de tempos em tempos, sob a perspectiva democrá-
tica, avanços e retrocessos. Assim também o é o Direito (ubi societas, ibi jus), sobretudo na utilização
de sua face mais coercitiva. Criminalizações e descriminalizações são, portanto, produtos dessa
dinâmica. Mas, de início, faz-se necessário alertar que não nos vai interessar, especialmente por
conta do tempo e do espaço escassos que possuímos para cumprir o objetivo a que nos propomos,
pormenorizadas incursões históricas2 dos ilícitos administrativos ou das contra-ordenações, até
mesmo porque, tal como destacado por Faria Costa (1983, p. 45), estas possuem “longa gestação”.
Pois bem, numa dessas marchas, rumo aos valores democráticos,3 o legislador português,
inspirado na legislação germânica, de maneira “equilibrada”, tal como ele mesmo enfatizou no pre-
âmbulo do Decreto Lei nº 433 de 27 de outubro de 1982, que estabelece o regime geral do ilícito de
mera ordenação social, ora vigente, deixou aberto “um vasto campo” para que o Direito Administra-
tivo Sancionatório pudesse atuar, ressalvando-se as hipóteses de comportamentos ofensivos àquilo
que a própria doutrina denomina de “dignidade penal”. E, nessa esteira, a dogmática relacionada
ao tema ganhou notoriedade, desenvolvendo-se no sentido de ganhar certa autonomia4 e capilari-
dade nas estruturas de poder. Ou seja, o Direito Administrativo Sancionatório passou a assumir um
protagonismo, em determinados conflitos, dantes só reconhecido ao Direito Penal.
Apesar desse protagonismo na vida prática, cada vez mais visível, faz-se necessário trazer à
baila a crítica do professor Licínio Lopes Martins (2014, pp. 20-21), uma vez que, em sua perspectiva,
“o ilícito administrativo e particularmente o contra-ordenacional não tem merecido, entre nós (ao
contrário do que sucede em alguns outros sistemas de direito comparado), estudos aprofundados
da dogmática administrativa”, ainda segunda ele, o que tem predominado nessa área são “as
2 Diante das circunstâncias, talvez esse não fosse o caminho metodológico mais adequado. Apesar de reconhecermos
que, por vezes, incursões históricas são necessárias na compreensão de determinados institutos jurídicos. Mas não, como
já dissemos, com os objetivos que temos aqui, ou seja, breves reflexões sobre o funcionamento de institutos que são
articulados na tentativa de resolução de um complexo conflito. Justamente por isso, não nos convém arriscar incorrer em
“universalismos”, dando a institutos que possuem os mesmos nomes, “o mesmo lugar e o mesmo valor”, desprezando o
contexto social em que foram criados e manuseados, o que demanda tempo para expor. A este respeito, interessante a
crítica que faz Michel Miaille. Utilizando-se do pensamento do autor, é de se questionar criticamente se seria possível,
caso adotássemos um método historicamente comparativo, em linhas tão apertadas, “designar instituições muito afas-
tadas no tempo como sendo ‘antepassados’ de instituições actuais, invocar testemunho de uma ‘evolução’ para explicar
a situação actual”? (Miaille, 2005, p. 54). As mesmas reflexões podem ser encontradas em opúsculo de Luciano Oliveira.
3 “É, por exemplo, a partir de princípios como o do respeito da dignidade humana, da liberdade (máxime de crença ou de
religião), da igualdade e do Estado de Direito, que a doutrina alemã tem vindo recentemente a fundamentar os programas
de descriminalização. Tem sido, v. g., em nome da dignidade humana que se tem sentido a necessidade de restringir o
recurso ao gravame da pena criminal a certas lesões de bens jurídicos de reconhecida importância ético-social” (Costa
Andrade, 1980/1981, p. 118).
4 “Dados normativos que, pelo menos, indicam, na perspectiva jurídico-constitucional, uma autonomia substantiva e
adjetiva do direito contra-ordenacional – e do direito administrativo sancionatório em geral – em relação ao direito penal
e ao processo penal e que a doutrina e a jurisprudência do Tribunal Constitucional confirmam” (Lopes Martins, 2014, p. 22).
A esta luz, a inflação das normas criminais seria, tão só, a consequência de que o Estado,
para impedir comportamentos contrários a certos interesses sociais que visa realizar, em
vez de utilizar uma adequada e diferenciada política de informação, assistência ou de
recurso a medidas de natureza eticamente indiferente, prefere punir e reprimir a sua
prática recorrendo abusivamente a sanções criminais.
[...]
Face a uma tal confusão de normas e de sanções, chega a dizer-se que os homens aca-
bam por pensar ou concluir que, já que tudo é criminalmente proibido, tudo passa afinal
a ser permitido. E daí o estado de anomia, de ausência de padrões ético-jurídicos, que
prejudica a própria dignidade do direito criminal.
O uso e o abuso dos recursos mais invasivos do Direito Penal, portanto, além de abarrotar
as mais variadas instâncias do Poder Judiciário, sem efeitos práticos de grandes relevâncias nos
índices de criminalidade, acabou permitindo que outros mecanismos (menos invasivos) de resolu-
ção de conflitos fossem descobertos, desenvolvidos e aprimorados. Um deles, como vimos, foi jus-
tamente o Direito Administrativo Sancionatório com sua respectiva instância de julgamento, cujo
fenômeno que lhe interessa, para os efeitos do presente estudo, denomina-se geralmente, com
5 “Uma visão simplista e simplificadora, de acordo com a qual todos os “ilícitos contraordenacionais” decorreriam de um
fenómeno de descriminalização, não basta para explicar e compreender – de modo adequado e sistemático – o objeto
do Direito Contraordenacional” (Prata Roque, 2013, pp. 120-121).
vimos, de contra-ordenação, definida legalmente como “todo facto ilícito e censurável que preencha
um tipo legal no qual se comine uma coima”.6 Eis aí, a priori, um ilícito de natureza administrativa
ou de pura ordenação social.
Mas, não nos custa alertar, é preciso se cercar de uma série de cuidados na utilização do
Direito Administrativo Sancionatório. Não se pode alargar demasiado seu âmbito de atuação, ou
seja, não deve ser todo e qualquer comportamento censurável socialmente que deve ser alçado à
categoria de contra-ordenação.7 Ademais, apesar de inicialmente ter se desenvolvido no seio do Di-
reito Penal,8 possui características e métodos próprios, postulando-se, dentre outras coisas, por um
lado, já que não está em xeque a liberdade alheia, mais celeridade e eficiência, e por outro, menos
burocracia e, como já dissemos, estigmatização.
É Eduardo Correia (1973, pp. 269-270) quem nos dirá, alertando-nos, que as sanções
administrativas, grosso modo, poderiam ser pensadas como aquele “tipo de reações, impostas sem
quaisquer garantias processuais, independentemente de toda a ideia de culpa, de tipicidade ou
de ponderação de circunstâncias que possam excluir a ilicitude o a censura, mesmo social, de um
comportamento humano”. Muito pelo contrário, tanto que ele mesmo arremata dizendo que “não
é para as lançar num domínio tão odioso como o desse tipo de reações, reminiscência do Estado
policial, que, certamente, se fala em descriminalizar certas formas de ilícito administrativo”.
Daí que, mesmo sendo categoria diversa dos crimes, o vínculo à legalidade, com todos
os seus corolários garantidores de um ambiente democrático, tal como preza a Constituição
da República Portuguesa (Art. 2.º), é condição básica de validade das sanções impostas como
consequências das contra-ordenações. Até mesmo porque o manuseio de suas consequências
implicará, quer seja direta ou indiretamente, em interferências no pleno exercício dos direitos e
garantias fundamentais dos cidadãos. É exatamente nesse sentido que Prata Roque (2013, p. 124)
se pronuncia, senão vejamos:
a aplicação de uma “sanção administrativa”, em sentido amplo, implica sempre uma res-
trição de um direito fundamental; seja ele o direito de exercício de uma atividade ou
6 Artigo 1.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro. Coima, por sua vez, “é sanção normal do direito de ordenação social:
constitui uma sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas, como sentido dissuasor
de uma advertência social, traduzindo-se na imposição do pagamento de uma quantia fixada entre os montantes pre-
vistos no artigo 17.º do DL n.º 433/82, de 27-10”. Extraído dos sumários de apoio 2015/2016 do professor Dr. Licínio Lopes
Martins, Direito Público I, direcionado ao curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses, da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra.
7 “Como ensina FORSTHOFF, ‘um Estado que aproveita as necessidades dos seus súbditos para aumentar o seu poder...
não realiza um Estado social, mas afirma-se como Estado totalitário’” (Correia, 1973, p. 281).
8 “Esta ligação assume, no caso português, uma peculiaridade digna de menção: a do ensino universitário do direito admi-
nistrativo (instituído pela reforma dos estudos jurídicos de 1836 como uma parte da cadeira de direito público português)
ter sido desde 1843 anexado ao ensino do direito criminal, com Basílio Alberto de Sousa Pinto como professor, só a partir
de 1853 sendo objecto de uma cadeira autônoma (ver P. Merêa, Esboço de uma História da Faculdade de Direito. 1º Período:
1836-1865, Boletim da Faculdade de Direito, XXVIII, 1953, pp. 112 e 150 e seguintes). (Figueiredo Dias, 1984, p. 266, nota 19).
Desse modo, nosso interesse pelas nuances legais e doutrinárias das contra-ordenações, pro-
curando deixar claro o tipo de instituto com o qual teremos que lidar, como já deixamos antever pelo
título deste trabalho, se dá justamente pelo fato de o legislador português ter reservado ao consumo,
aquisição e a detenção para o consumo de drogas (praticamente todas elas, como, por exemplo, a
maconha, a cocaína e a heroína) a essa categoria de ilícito, deixando-a de fora do alcance do Direito
Penal substancial, empoderando, por consequência, o Direito Administrativo Sancionatório.
Sendo assim, desde o advento da Lei 30/2000 de 29 de novembro, que define o regime ju-
rídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a proteção
sanitária e social das pessoas que as consomem sem prescrição médica em território português,
tais comportamentos são encarados como contra-ordenações (Art. 2°, 1), desde que (e é isso o que
objetivamente diferencia o crime – de tráfico – da contra-ordenação) a quantidade encontrada com
o investigado não exceda o necessário para o período de dez dias, conforme dispõe a legislação (Art.
2.º, 2 da Lei nº 30/2000 c/c Art. 71.º, I, “c”, do Decreto-Lei nº 15/1993 c/c Art. 9.º, da Portaria nº 94/1996).
Diante dos debates sobre o respeito à liberdade, à privacidade e à autolesão, direitos desig-
nadamente típicos de um ambiente verdadeiramente democrático, e confrontado com o flagrante
fracasso do ideário de guerra às drogas, especialmente sobre os usuários9, deflagrado com pompa
pelo governo norte americano na década de setenta10, Portugal se viu, como não nos deixa esquecer
Faria Costa (2002, p. 275), frente a basicamente três possibilidades: 1) liberalizar; 2) despenalizar; 3)
ou atenuar as penas. No que o Catedrático de Coimbra conclui:
9 É lapidar a reflexão de Figueiredo Dias a esse respeito: “a institucionalização, assim verificada, de actividades ilícitas,
principais e secundárias, acaba por dar origem a uma cultura delinquente específica, que une, segundo certos códigos de
conduta, as pessoas que nelas estão envolvidas. Ouçamos ainda Schur, no que à droga respeita (ob. cit., p. 145): ‘a imersão
gradual de muitos viciados num mundo próprio está […] ligada ao processo geral que os afastou da sociedade respeitável.
A definição social do viciado como delinquente não só influencia decisivamente o seu comportamento, como altera a sua
autoimagem. […] Levado para um mundo de ligações subterrâneas e para o crime a fim de satisfazer o seu hábito, começa
a sentirse inimigo da sociedade, ou pelo menos a sentir a sociedade como sua inimiga. Desencadeia-se assim um ciclo de
selffulfilling prophecy de que é muito difícil para um viciado libertarse. Tem a consciência de que as pessoas respeitáveis
o encaram como um criminoso, e ele próprio se vê a agir como tal. O que reforça a sua ligação e dependência em relação
ao mundo da droga tanto no que se refere ao apoio interpessoal, como no que diz respeito à obtenção da droga. Uma vez
que a necessidade de financiar o seu vício ocupa uma parte cada vez maior do seu tempo e energia, e dado que os outros
universos (trabalho, família…) o repelem ou rejeitam, a droga tornase um modo de vida’”. Ver Figueiredo Dias, José de.
Uma proposta alternativa ao discurso da criminalização/descriminalização das drogas. Disponível em: http://www.ibadpp.com.
br/wp-content/uploads/2013/02/Drogas-JorgedeFigueiredoDias.pdf. Acesso em: 18 out. 2015.
10 Modelo proibicionista replicado quase que automaticamente pelos países da América Latina, entre eles, como veremos,
o Brasil. Segundo Salo de Carvalho (2013, p. 71), “os reflexos do projeto externo norte-americano incidiram diretamente
nas políticas de segurança pública dos países da América Latina”.
Ora, se a primeira destas três possibilidades era a mais consentânea com a forma como
o consumo de estupefacientes passara a ser encarado, a verdade é que compromissos
internacionais a que o Estado português permanecia e permanece vinculado parecem
impor que aquela conduta continue a ser considerada juridicamente desvaliosa e, por
isso, sancionada. Configurando-se a mera atenuação como claramente insuficiente face
aos objetivos pretendidos, parecia sobrar a via intermédia. A despenalização aparecia, as-
sim, como a via possível para retirar o mero consumidor de drogas do estigmatizante
corredor da delinquência que muitos continuam a considerar o processo penal e o pró-
prio cumprimento das sanções criminais, mantendo, pesar disso, a consideração como
juridicamente reprovável de tal conduta.
Mas o ideário de guerra às drogas ainda está tão arraigado no mundo que os movimentos de
descriminalização têm, em grande parte das vezes, sido marginalizados pela opinião pública.11 Os
debates sobre esse tipo de problema muitas vezes costumam envolver questões ideológicas, éticas,
morais e até religiosas, em detrimento dos postulados da política criminal e da criminologia. No
auge dos debates sobre a descriminalização do consumo em Portugal, setores mais conservadores
chegaram a afirmar que o país se tornaria o “paraíso” dos consumidores.
Foi, portanto, nesse contexto, que Portugal ascendeu como o primeiro país do mundo a ter
a coragem de descriminalizar (ou despenalizar, como preferem alguns autores, a exemplo de Faria
Costa) o consumo, a aquisição e a detenção para o consumo de praticamente todas as drogas até
então conhecidas. Mirava-se, desta forma, na ideia de que “através do contato com as Comissões
[administrativas, das quais falaremos a seguir]”, pudesse-se “fomentar a compreensão das caracte-
rísticas do consumo do próprio agente e das circunstâncias envolventes, de modo a encaminhá-lo,
se for o caso disso, para o desejado – por todos – tratamento” (Faria Costa, 2002, p. 277).
Trecho do relatório divulgado pela Open Society Foundations12 em 2011 confirma que, contra-
riamente às preocupações iniciais quanto às novas estratégias em Portugal, “estudos mostram que
o número de consumidores de drogas não aumentou dramaticamente, chegando mesmo a dimi-
nuir em algumas categorias”. Além disso, “o número de pessoas com doenças relacionadas com o
consumo de drogas (como VIH e Hepatites B ou C) diminuiu na generalidade”. Carla Alexandra Ne-
ves da Cunha Lima Espírito Santo (2014, p. 15) não nos permite olvidar que, “a título de exemplo, na
C.D.T. de Coimbra, desde a entrada em vigor da Lei e até ao final do ano de 2013, apenas 2,80% dos
indiciados eram estrangeiros, e destes a grande maioria era residente em Portugal, 87,35%”.
Mas a iniciativa não frutificou sem críticas mais dogmáticas. Para Cristina Líbano Monteiro
(2001, p. 90), analisando a “correção técnica” da referida produção legislativa na lida com as drogas,
induvidosamente “o diploma é mau”. Veja-se ainda, por exemplo, a reflexão feita por Faria Costa
(2002, p. 276), um dos juristas que contribuiu decisivamente para que esse giro valorativo no trato
com o problema das drogas em território português acontecesse:
11 No Brasil, por exemplo, movimentos de descriminalização, como os denominados de “marcha da maconha”, conse-
guiram, somente na justiça, garantir os direitos de reunião e de livre expressão do pensamento quanto à matéria. Em
decisão unânime (8 votos), no julgamento da ação (ADPF 187) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), o
Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a realização dos eventos.
12 Política da droga em Portugal – os benefícios da descriminalização do consumo de drogas. Disponível em: https://www.open-
De qualquer forma, como bem resumido por Carla Alexandra Neves da Cunha Lima Espí-
rito Santo (2014, p. 9), partiu-se “de uma visão jurídico-repressiva”, para uma espécie de “modelo
bio-psico-jussocial”.
Nessa senda, para funcionarem como foro responsável pelo processamento de tais casos,
agora sob a égide do Direito Administrativo Sancionatório, a já mencionada lei determinou que fos-
sem instituídas em cada distrito, as Comissões para Dissuasão da Toxicodependência (Art. 5º, 1 da
Lei 30/2000), que devem ser formadas por três pessoas, devidamente remuneradas (Portaria n.º
428-A, de 23 de abril), sendo que uma delas tendo que ser da área jurídica (Art. 7º da Lei 30/2000).
Dito pormenorizadamente, os integrantes serão nomeados por despacho do membro do Governo
responsável pela coordenação da política da droga e da toxicodependência, sendo que o jurista será
designado pelo Ministro da Justiça. No entanto, os critérios adotados não ficam imunes às críticas,
em especial quando se mira a autonomia (financeira e administrativa) e a independência (político-
-partidária), com o que concordamos com Cristina Líbano Monteiro (2001, p. 80), quando diz:
Na prática, o que fez o legislador português com esse novo subsistema normativo, na se-
quência do trabalho da equipa13 que elaborou a Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, aprovada
pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, como já se anteviu, foi dar empoderamento a se-
tores da Administração Pública, mais propriamente ao Executivo, notadamente aqueles mais afetos
à saúde pública, e, por via de consequência, ao próprio Direito Administrativo Sancionatório, para
atuarem numa área antes só reservada ao crivo do Direito Penal e do Poder Judiciário.
Deflagra-se um importante movimento de “desjudiciarização”, dotando-se de “novos meios
as instituições não judiciais indispensáveis para o bom funcionamento de um modelo de justiça di-
ferente do tradicional ou de articular melhor os diversos agentes que devem colaborar entre si neste
autêntico trabalho em rede” (Líbano Monteiro, 2001, p. 95).
13 Criada pelo Despacho do Ministro Adjunto do Primeiro Ministro n.º 3223/98, publicado na II Série do D.R. de 16/02/98.
a Assembleia da República, competente, segundo a Constituição [art. 165.º, n.º 1, al. c)]
para definir o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do
respectivo processo, não parece impedida de alargar o leque de sanções por ela própria
estabelecido na lei-quadro das contra-ordenaões.
Passando ao largo dessa discussão – e de algumas outras tão importantes quanto, e que
surgem como desdobramentos das reflexões já evidenciadas –, pelas já citadas razões de econo-
mia de tempo e de espaço, e pelos objetivos aqui pretendidos, interessa-nos mais propriamente
enfocar as características da dinâmica do funcionamento das Comissões para Dissuasão da Toxi-
14 Importa-nos frisar que a contra-ordenação ora em questão alcança não apenas os toxicodependentes, mas a todos
aqueles que, mesmo não dependentes, prestarem-se ao consumo ocasional, a aquisição e a detenção para o consumo
de drogas nos limites legalmente estabelecidos. A propósito, é interessante notar ainda que, segundo as autoridades
portuguesas, asendo referentes a consumidores toxicodependentes (Espírito Santo, 2014, p. 16).
15 “Questão mais problemática é a de saber se e em que medida é que os princípios da ‘constituição processual cri-
minal’, enunciados neste artigo, valem também para outros processos próximos do processo penal, ou de caráter
‘para-penal’ (v. g., extradição e expulsão de estrangeiros, habeas corpus, execução de penas etc.)” (Gomes Canotilho; Mo-
reira, 2014, p. 526).
16 Essa é outra questão que reputamos deficiente no diploma que regula o procedimento objeto de nossa pesquisa.
Primeiro, o Art. 17 do Decreto Lei 130-A/2001 diz que as análises técnicas da substância encontrada com o investigado
só serão devidas caso ele negue sua natureza, com o que não concordamos, pois o próprio investigado pode estar enga-
nado quanto a tal, ou pode até mesmo simular se tratar de uma determinada substância proibida, por razões várias. E,
segundo, porque faz recair o encargo financeiro das análises técnicas sobre o próprio investigado, desincumbindo-se a
administração de uma responsabilidade que é sua, não podendo ser “penalizado”, sobretudo financeiramente, o inves-
tigado, por não ter admitido a natureza da substância, uma vez que ninguém deve ser obrigado a produzir prova contra
si mesmo, ou seja, nesses casos, deve-se respeitar o direto ao silêncio (dentre outros, Art. 343.º, 1 do Código de Processo
Penal Português c/c Art. 41.º do Decreto Lei n.º 433/82).
que selecionam as pessoas que devem se submeter ao procedimento contra-ordenacional que ora
analisamos.
No mesmo caminho, mas numa perspectiva muito mais ampla, José Narciso da Cunha Ro-
drigues (1998, p. 406) aponta que, “reclama-se então uma polícia culturalmente formada, tecnica-
mente apetrechada e socialmente inserida”. Pierre-Henri Bolle (1998, pp. 409-410), por sua vez, dirá
que “hoje, já não se vê no polícia um cidadão de uniforme e capacete; olha-se para ele sobretudo
como um representante da força, do poder, da autoridade pública”. O mesmo Bolle ainda dirá que “o
polícia passou a ser o técnico funcionarizado da segurança e da ordem, o especialista na luta contra o
crime, o agente de repressão do tráfego rodoviário, o desmancha prazeres, o papão das crianças mal-
comportadas, a quem os pais ameaçam com a polícia se não obedecerem”. É preciso corrigir esse rumo.
Aproveitemos a oportunidade para não deixarmos de explorar academicamente o cenário
com o qual convivemos em nossa pátria de origem, reforçando, ainda mais, os históricos laços que
unem a doutrina penal luso-brasileira, para traçar um breve paralelo entre as legislações que deter-
minam a política de drogas e, portanto, a própria dinâmica policial nessa política, em ambos os países.
A estrutura policial brasileira está basicamente estabelecida na Constituição Federal, no seu
Art. 144, e que contempla os Estados membros com grande carga de responsabilidade na gestão
do sistema. Já na estrutura policial portuguesa, é de se destacar, além do Art. 272.º da Constitui-
ção, as Leis n.º 53/2007; 63/2007; 49/2008, que estabelecem, dentre outras questões correlatas, a
organização e distribuição da política de segurança pública nacional. Os sistemas, organicamente
distribuídos, pode-se dizer, grosso modo, não são tão díspares. Mas, aqui (em Portugal),17 como lá
(no Brasil), os problemas são igualmente graves, com o aumento da criminalidade e da sensação de
insegurança. Obviamente que cada qual com sua intensidade e seu contexto.18
Quanto ao nosso foco principal, no específico caso brasileiro, é a Lei n.º 11.343/2006 que, den-
tre outras coisas, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de
drogas, atuação especialmente levada a cabo pelas agências policias. Tanto o tráfico (Art. 33) quanto
o consumo de drogas (Art. 28), são sancionados e submetidos necessariamente ao âmbito do Po-
der Judiciário, recebendo ambos a pecha legal de crime. Ou seja, enquanto Portugal preocupou-se,
como vimos, pioneiramente, com o tratamento absolutamente diferenciado aos casos relacionados
ao mero consumo, especialmente empoderando o Direito Administrativo Sancionatório, o Brasil,
apesar da retórica, continuou apostando prioritariamente no Direito Penal e no Poder Judiciário.
Mas, para sermos justos, abriremos aqui um parêntese para reconhecer que o legislador bra-
sileiro, nesse contexto de sua “nova” política de drogas, dotou o Direito Administrativo Sancionatório
17 “A problematização da ordem pública agudiza-se quando a insegurança apercebida contrasta com uma atitude contínua
de negação da mesma pelo Ministério da administração Interna e pelo Secretário-Geral da Segurança interna que, frente
ao crescimento de novas formas de crime violento de grande visibilidade, optaram até ao segundo trimestre de 2011 por
se refugiar na mais pura condimentação estatística”. Carlos Blanco de Morais (2012, p. 26), professor da Faculdade de
Direito de Lisboa, refere-se ao relatório anual de segurança de 2010, que apontou Portugal como um dos Estados mais
seguros da Europa.
18 Como já fizemos constar, uma análise minuciosa tenderá a fugir dos objetivos deste trabalho, razão pela qual, apenas
para nos situarmos, as presentes informações sobre a orgânica da segurança pública luso-brasileira já nos bastam.
de extrema relevância. Da pior maneira possível, segundo pensamos. Com a entrada em vigência da
Lei n.º 9.614/98, que surgiu em virtude da verificação de transportes de drogas pelo espaço aéreo bra-
sileiro, especialmente por sobre a Amazônia, próximo à fronteira com a Colômbia, um dos maiores
produtores e exportadores nessa seara, instituiu-se, em caráter administrativo, nova modalidade de
pena de morte, e o que é pior, sem o devido processo legal, nem ampla defesa ou contraditório.
A execução da medida administrativa pelos órgãos de controle do transporte aéreo brasilei-
ro, regulamentada a partir de 2004 pelo Decreto n.º 5.144, fica a cargo da autorização do Presidente
da República ou de alguém por ele designado. A já mencionada lei de 1998 alterou, portanto, o Art.
303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei n.º 7.565/86), que eufemisticamente previu “medidas
de destruição” para aeronaves classificadas como hostis, que tenham infringido o procedimento pa-
drão delineado no já referido artigo. Ricardo de Brtio Freitas19 dirá que, “afinal trata-se de autoriza-
ção legal para a realização de execução sumária por mera suspeita de tráfico de drogas”.
Fechando-se o parêntese, vê-se patente, com isso, a inconstitucionalidade na ampliação
da supressão da vida humana, sobretudo por conta de suposto transporte de drogas, primeiro,
por uma legislação infraconstitucional e, segundo, por um processo administrativo praticamente
oral, o que se reveste de completa falta de razoabilidade e proporcionalidade diante de um bem
garantido constitucionalmente.
Voltando à Lei n.º 11.343/06, de início, tentou-se incutir a ideia de priorização de políticas
públicas preventivas de redução do tráfico e do consumo problemático. Não se daria mais, da pers-
pectiva mais otimista, uma conotação de “guerra” ao tratamento estatal junto às drogas. Tanto que,
dos seus 75 artigos, pelo menos 32 visam prioritariamente políticas de prevenção e assistência. Não
obstante as prescrições legais, as práticas do sistema de segurança pública no Brasil, marcada e his-
toricamente repressivas (França Júnior, 2014), não permitiram uma significativa viragem valorativa.
Pior ainda: mais recentemente, a política de drogas vem sendo modificada para que se enfatize seu
o caráter repressivo e de “tolerância zero”.20
Ademais, desde a inserção dessa política preponderantemente repressiva em terrae brasi-
lis, um dos maiores problemas tem sido a ausência de critérios mais objetivos (como a quantidade)
21
para diferenciar situações de tráfico e de consumo. Há aqui uma margem demasiadamente larga
de discricionariedade. Não é, por exemplo, o caso da legislação portuguesa, cujo ponto de partida,
como vimos, é justamente a quantidade, mas que nem mesmo por isso se exime de problemas. Já
no caso brasileiro, o critério diferenciador que se determinou, com previsão no Art. 28, § 2o, obriga o
magistrado a atender à natureza e à quantidade (não fixada previamente) da substância apreendi-
da, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem
como à conduta e aos antecedentes do agente. Mais subjetivo impossível.
19 Disponível em: http://www.mpm.mp.br/portal/editorial/revista-20.pdf. Acesso em 29 abr. 2015.
20 É, por exemplo, o caso da Lei 13.840/2019, que, dentre outras coisas, possibilita a internação involuntária do usuário
de drogas.
21 Que não se inicia com a Lei 11.343/2006. Ver França Júnior, Francisco de Assis de. Criminologia das drogas: considerações
a partir do excurso biográfico entre Medellín e Rocinha. Revista Brasileira de Ciências Criminais – RBCCrim, São Paulo,
v. 25, n. 130, pp. 269-315, abr. 2017.
Antes de prosseguirmos, porém, não nos custa frisar que as matrizes culturais de Brasil e
Portugal são muito aproximadas. Isso é fato. Afinal, foram os portugueses que colonizaram terrae
brasilis. As leis e, por consequência, os costumes portugueses, de forma direta, regiam intensamen-
te a vida das pessoas em território brasileiro, isso pelo menos até o século XIX. A cultura brasileira,
portanto, inclusive jurídica, foi forjada sob essas fortes influências. Daí que os laços que unem am-
bos os países são sólidos e lastreados pela histórica relação.
Atualmente, as características gerais de ambos os sistemas sancionatórios são muito aproxi-
madas, sendo ambos norteados pelo princípio da humanidade, como, por exemplo, com a vedação
da pena de morte (Art. 24.º, 2. CRP/Art. 5º, XLVII, “a”, CRFB), de natureza perpétua (Art. 30.º, 1. CRP/
Art. 5º, XLVII, “b”, CRFB), ou cruéis (Art. 25.º, 2. CRP/Art. 5º, XLVII, “e”, CRFB). Ambos estabelecem
constitucionalmente em seus primeiros artigos os valores democráticos como norteadores de todo
o sistema jurídico. Dirá Gomes Canotilho:22
Estes princípios constam de textos internacionais (declarações, resoluções, tratados) e nos textos
constitucionais mais recentes também não deixam de ter acolhimento como normas de conduta e
como limites jurídicos do actuar estadual. Para citarmos apenas as constituições dos países da Co-
munidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), é o caso da Constituição da República Portuguesa
de 1976 (artigo 7º, nº I), da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (artigo 4º), da Cons-
tituição da República Democrática de São Tomé e Príncipe de 1989 (artigo 12º), da Lei Constitucional
da República de Angola de 1992 (artigo 15º), da constituição da República de Moçambique de 1990
(artigos 62º e 63º), da Constituição da República de Cabo Verde de 1992 (artigo 10º) e da Constituição
da República da Guiné-Bissau de 1993 (artigo 18º).
em 18 out. 2015.
Voltando ao Brasil, a retórica preventiva da “nova” política de drogas, inaugurada pela Lei
n.º 11.343/2006, já deixamos antever, não tem se prestado às finalidades precipuamente democrá-
ticas fartamente anunciadas. Salo de Carvalho (2013, p. 140), numa das mais completas abordagens
sobre a política criminal de drogas brasileira, afirma categoricamente que, apesar de algumas alte-
rações, “a base ideológica da Lei 11.343/06 mantém inalterado o sistema proibicionista inaugurado
pela Lei 6.368/76, reforçando-o”.
O aumento das complexidades do mundo moderno impõe-nos, o que nos parece já ter sido
percebido pelo legislador português, rever os paradigmas até então usuais no trato com o problema
das drogas, quer seja no Brasil ou em Portugal,24 este último, como dissemos, um passo à frente. A
constatação que nos é apresentada por Jean-Claude Monet (2006, pp. 28-29) precisa ser refletida no
sentido de atentarmos para a necessidade de modificação dos tais paradigmas, do autoritário para
o democrático, nesse caso, sobretudo, agora dizemos nós, no Brasil. Dirá ele:
Com muita frequência, hoje, as percepções que os policiais tem da natureza de seu
trabalho e das finalidades que devem perseguir com prioridade divergem sensivelmente
do que os cidadãos esperam. Estudando as relações entre a polícia e o público em Devon
e na Cornualha, um pesquisador inglês observou que o público se mostra tanto mais
satisfeito com a polícia quanto mais ela age de maneira cortês por ocasião das batidas
policiais que faz e cujas razões ela explica. Os policiais, por seu lado, enfatizam critérios
estritamente profissionais: para eles, a batida foi bem conduzida quando resulta na
prisão de um suspeito; quanto a saber se as batidas foram efetuadas de modo a garantir
a simpatia dos revistados, é, a seus olhos, um detalhe muito secundário.
pp. 396-397) dirá: “A doutrina não acompanhou suficientemente as transformações motivadas pela alteração das condi-
ções de vida em sociedade, tendendo a fornecer respostas casuísticas, ainda que condensadas em excelentes manuais
de conduta e procedimento. Não existe, quanto à missão policial, um pensamento claro sobre funções de soberania,
administrativas, de segurança e judiciárias. Esta falta de definição é compensada por regras concretas de actuação mas
impede a pré-compreensão do papel que as polícias devem desempenhar em democracia e não esclarece em que me-
dida esse papel deve ser-lhes exclusivo, comunicar-se a outros órgão do Estado ou ser por eles tutelado ou fiscalizado”.
Stephen D. Mastrofski (2012, p. 202), o cidadão apenas ao papel de “fornecer informação (relato de
um crime e de circunstâncias suspeitas)”.
Em um Estado verdadeiramente democrático, ambas as vertentes (reativa e proativa) aqui
anunciadas no âmbito da segurança pública devem existir. O problema é encontrar um ponto de
equilíbrio, fazendo a balança pender prioritariamente para medidas preventivas, mais proativas,
portanto, e menos invasivas às liberdades. Num Estado autoritário, privilegia-se, por exemplo, a re-
atividade, negligenciando-se a resolução do conflito, pois a prioridade é infligir dor ao desviante,
que sirva de exemplo aos demais, trazendo à tona uma mera sensação de resolutividade.
Na lógica belicosa de operacionalização desse sistema, falasse “nele”, pensa-se “nele”, pu-
ne-se “ele” para que o próprio sistema se redima, ao invés de fazer-nos pensar no conflito, e em
como resolvê-lo da maneira mais eficaz e duradoura. Pensar em formas de punir em detrimento
das formas de resolver o conflito é o “mantra” da segurança pública brasileira atualmente. Não tem
nos parecido, a priori, ser o caso de Portugal. Ao menos não na intensidade encontrada no Brasil.
Mas há boas iniciativas espalhadas pelo mundo, no que Canadá e Estados Unidos têm
se apresentado como referências, notadamente com a implantação de modelos de polícia
comunitária, uma polícia de proximidade. Nenhuma grande novidade na história da humanidade.
Pierre-Henri Bolle (1998, p. 410) lembra-nos de um tempo não muito distante em que “o polícia
estava como peixe na água entre habitantes da aldeia e a sua presença visível e constante na vida
social tornava-a incontornável”, mas não é só uma questão de mera presença, pois “não se ia ter
com ele ao posto de polícia; era ele que estava na rua, no café, nos correios ou na igreja, membro
de um bom número de associações locais; e, muitas vezes, era ele o primeiro autóctone que o
estrangeiro encontrava na aldeia”.
Tínhamos, em determinadas partes do mundo, como, por exemplo, Inglaterra e Japão, e em
outro contexto social, um modelo de polícia presente, participativo, parceiro, proativo, aberto e que
despertava confiança, um modelo mais horizontal de resolução de conflitos, ou verdadeiramente
comunitário. E é justamente nesse modelo que nos parece residir o aporte necessário para lidar de
maneira eficaz com o problema das drogas.
Nessa esteira, os estudos sobre agências policiais, no caso brasileiro, têm se limitado, na
grande maioria das vezes, a sua perspectiva política, dada sua participação no golpe militar de 1964,
negligenciando uma análise mais aprofundada de sua formação, atuação histórica e, sobretudo, de
sua adequação aos valores democráticos. Inolvidável, portanto, o fato de ser justamente a polícia,
em qualquer país do mundo, a agência responsável pelo primeiro exercício hermenêutico nessa
complexa cadeia de fases do sistema responsabilização criminal e/ou administrativa. Identificar,
descrever, sistematizar e tipificar, são as providências mais básicas das agências policiais. Daí a im-
portância de vencer eventuais resistências e proceder uma análise sistêmica delas.
Não bastasse certa resistência de tais agências policias de se utilizarem das discussões pro-
duzidas no ambiente acadêmico – esse problema, mais uma vez, parece ser agudizado no Brasil –, a
própria academia, por sua vez, parece não se interessar demasiadamente por elas e por seus proble-
mas. Segundo Herman Goldstein (2003, p. 372), isso se explicaria pelas seguintes razões:
Entre os fatores que contribuem para essa situação está o óbvio conflito entre o caráter
aberto e flexível das universidades e o caráter fechado e rígido das organizações policiais.
O questionamento em um ambiente universitário é rotineiro e encorajado; em uma
agência de polícia, um valor muito mais alto é dado à obediência sem questionamentos.
[...] A polícia através de suas ações e pronunciamentos, quase sempre soa anti-intelectual
e suspeitosa em relação aos acadêmicos. O pessoal das universidades quase sempre tem
desprezo pela polícia e a trata como se ela fosse inferior. As duas atitudes alimentam-se
mutuamente: a atitude intelectual esnobe dos acadêmicos fornece justificativas para a
atitude anti-intelectual da polícia, e as ações e pronunciamentos da polícia fornecem
justificação contínua para o desprezo que os intelectuais sentem por ela.
Referências
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Amêndola Pinheiro. São Paulo: Edusp, 2012.
spalimenta.hypotheses.org
Caderno de Resumos* Realização:
(em ordem alfabética de autores)
Book of Abstracts
(in alphabetical order of authors)
4 a 6 de dezembro de 2019
Departamento de História – Universidade de São Paulo
São Paulo, Brasil
Comissão editorial
Viviane Soares Aguiar (doutoranda em História Social na FFLCH/USP)
Nicole Leite Bianchini (mestranda em História Social na FFLCH/USP)
Comissão Organizadora
Adriana Salay Leme, Henrique Soares Carneiro, Joana Pellerano,
Nicole Leite Bianchini, Rafael de Bivar Marquese, Vânia Carneiro de
Carvalho, Viviane Soares Aguiar Apoio:
Comissão Científica
Carlos Alberto Dória (Escola do Gosto), Henrique Soares Carneiro
(FFLCH/USP), Janine Collaço (UFG), Joana Monteleone (Unifesp),
Joana Pellerano (Centro Universitário Senac), João Luiz Máximo
da Silva (Centro Universitário Senac), José Raimundo Sousa Ribeiro
Junior (Unifesp), Maria Aparecida de Menezes Borrego (Museu
Paulista/USP), Maria Henriqueta Gimenes-Minasse (Universidade
Anhembi Morumbi), Rafael de Bivar Marquese (FFLCH/USP), Vânia
Carneiro de Carvalho (Museu Paulista/USP)
Realização
Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação
(LEHDA/USP), Comida na Cabeça (comidanacabeca.com), Museu
Paulista (MP/USP), Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema
Mundial (LabMundi/USP), Programa de Pós-Graduação em História
Social (FFLCH/USP), Departamento de História (FFLCH/USP)
Identidade Visual
Claudio Rother (Museu Paulista/USP)
Nos dias 4, 5 e 6 de dezembro de 2019, ocupamos auditórios e salas de aula do prédio de História da
Universidade de São Paulo com palestras, mesas-redondas e sessões de comunicação dedicadas a discutir
a temática da alimentação a partir das mais diversas perspectivas, da história da fome na Idade Média
às maneiras como as mídias digitais e a propaganda vêm se acercando do assunto em tempos recentes.
Reunimos pesquisadores, professores e estudantes da Amazônia ao Rio Grande do Sul, passando pela
Bahia, por Goiás, pelo Rio de Janeiro, por São Paulo e até mesmo por Paris e Berna, na Suíça. Trouxemos
especialistas da Espanha (o antropólogo Jesús Contreras), da França (o historiador da alimentação Bruno
Laurioux), dos Estados Unidos (a historiadora e curadora de museus Shirley Wajda). Montamos uma farta
programação (disponível no site spalimenta.hypotheses.org), contrariando todas as tendências deste ano
político de 2019, marcado por lamentáveis cortes, ou “incontingências”, exatamente no setor da Educação.
Foi preciso acionar uma ampla rede de amigos, professores e colaboradores para que o simpósio
se tornasse realidade nesse contexto. E aproveitamos este espaço para deixar registrado nosso sincero
agradecimento aos professores que fizeram parte da organização – Henrique Soares Carneiro, Rafael de
Bivar Marquese, Vânia Carneiro de Carvalho – e da Comissão Científica – além dos já citados, Carlos Alberto
Dória, Janine Collaço, João Luiz Máximo da Silva, José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, Joana Monteleone,
Maria Aparecida de Menezes Borrego, Maria Henriqueta Gimenes-Minasse. Muitos destes ainda
coordenaram Grupos de Trabalho, ao lado de outros colegas a quem também agradecemos imensamente:
Bianca Briguglio, Cintia Gama, Isabela Rodrigues de Souza, Lucas Endrigo Avelar, Luís Fernando Teberga
Gonçalves, Juliana Dias, Rafaela Basso e Talita Roim.
Ao Programa de Pós-Graduação em História Social da USP, na figura do professor Marcos Napolitano,
ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e ao Museu Paulista da
USP agradecemos pelo fundamental apoio, bem como à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ao restaurante
Mocotó. Igualmente essenciais foram Claudio Rother, responsável pela identidade visual do simpósio, Ziza
Pasqual, a cargo do projeto gráfico da revista Ingesta e deste Caderno de Resumos, e toda a equipe da Seção
Técnica de Informática da FFLCH-USP, que nos ajudou em diversas fases da organização.
Agradecemos, ainda, aos palestrantes estrangeiros e brasileiros que, gentilmente, aceitaram
nosso convite e agigantaram o simpósio: Jesús Contreras, Bruno Laurioux, Shirley Wajda, Carlos Dória,
Eliane Morelli Abrahão, Gustavo Acioli, Henrique Carneiro, Leila M. Algranti, José Newton Coelho Meneses,
Marle Alvarenga, Rafael Marquese e Tania Andrade Lima. Aos monitores Caio César Alves da Costa,
Guilherme Rodrigues Soares, Milena Spadafora e Pedro Neves, à tradutora Silvia Makansi. E a todos que se
interessaram, se inscreveram, participaram e, como já dissemos, tornaram esse simpósio uma realidade.
Adriana Salay Leme, Joana Pellerano, Nicole Leite Bianchini, Viviane S. Aguiar
Comissão Organizadora
Letter of Presentation
II International Symposium on Food Research:
production and consumption circuits
On December 4, 5 and 6, 2019, we occupied the auditoriums and classrooms of the University
of São Paulo, Brazil, with lectures, roundtables, and paper sessions dedicated to discussing “food” from
various perspectives, from the history of famine in the Middle Ages to the ways in which digital media and
advertising have been approaching the subject in recent times. We gathered researchers, professors and
students from the Amazon to Rio Grande do Sul, Bahia, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo and even Paris
and Bern, Switzerland. We brought in specialists from Spain (food anthropologist Jesús Contreras), from
France (food historian Bruno Laurioux), from the United States (historian and museum curator Shirley
Wajda). We have put together a rich schedule (available at spalimenta.hypotheses.org), counteracting all
the trends of this Brazilian political year of 2019, marked by lamentable cuts, or “contingencies,” exactly in
the education sector.
It took a wide network of friends, professors and collaborators to make the symposium a reality
in this context. And we take this space to register our sincere thanks to the professors who were part of the
Organizing Committee – Henrique Soares Carneiro, Rafael de Bivar Marquese, Vânia Carneiro de Carvalho –
and of the Scientific Committee – beyond the latter, Carlos Alberto Dória, Janine Collaço, João Luiz Máximo
da Silva, José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, Joana Monteleone, Maria Aparecida de Menezes Borrego,
Maria Henriqueta Gimenes-Minasse. Many of them also coordinated the Work Groups, as well as our
colleagues Bianca Briguglio, Cintia Gama, Isabela Rodrigues de Souza, Lucas Endrigo Avelar, Luís Fernando
Teberga Gonçalves, Juliana Dias, Rafaela Basso, and Talita Roim.
We also thank the Post-Graduation Program in Social History from USP, in the person of Marcos
Napolitano, the History Department and the Museu Paulista from USP for the essential funding, as well as
the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), the Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp) and the Mocotó restaurant. Equally essentials were Claudio Rother (also from
Museu Paulista), responsible for the visual identity of the symposium, Ziza Pasqual, who created the graphic
project of Ingesta and of this Book of Abstracts, and the whole team of the Seção Técnica de Informática
from FFLCH-USP.
We thank foreign and Brazilian lecturers: Jesús Contreras, Bruno Laurioux, Shirley Wajda, Carlos
Dória, Eliane Morelli Abrahão, Gustavo Acioli, Henrique Carneiro, Leila M. Algranti, José Newton Coelho
Meneses, Marle Alvarenga, Rafael Marquese, and Tania Andrade Lima; staff Caio César Alves da Costa,
Guilherme Rodrigues Soares, Milena Spadafora and Pedro Neves; translator Silvia Makansi. And, finally, we
thank everyone who registered, participated and, as we said, made this symposium possible.
Adriana Salay Leme, Joana Pellerano, Nicole Leite Bianchini, Viviane S. Aguiar
Organizing Committee
Caderno de Resumos
S UMÁRI O
CONTE NTS
76 Mesas-redondas [Roundtables]
Conferências internacionais
[International conferences]
de
pesquisa
Between Food and Drugs: Spices from Antiquity to Early Modern Time
Bruno Laurioux 1
From 1st to 17th centuries, spices have been a commodity as well as a necessity for the
Western Europe. These “aromatic items of commerce with a high unit cost... imported from distant
lands”, as they are defined by Paul Freedman, included many dry products that were mainly culinary
ingredients, but also perfumes of high quality which could be used in cooking. Most of spices were
supposed to have medical properties too: they were drugs, in the wide meaning that the Ancient
Medicine gave to this term. The medical impacts of spices partly explain how, in 14th and 15th
centuries, Far East spices offered the wider range of tastes and scents that European cuisine has ever
known. But even when the French Cuisine has got rid of eastern spices from the middle of the 17th
century, these ones remained quite important in a medicine that kept alive the principles of the
Ancient Medicine. How the changing tastes affected the discourse on spices? We will answer this
question through a long-term study of cook recipes, medical instructions and travel writings.
Keywords: spices; cook recipes; food history; drugs.
Palavras-chave: especiarias; receitas culinárias; história da alimentação; drogas.
1 Professor de História Medieval e História da Alimentação na Université de Tours, na França, onde preside o Institut
Européen d’Histoire et des Cultures de l’Alimentation. Entre inúmeros artigos, capítulos e livros, publicou “Medieval
Food” em A Companion to Food in the Ancient World (ed. J. Wilkins & R. Nadeau, Wiley, 2015), e Pour une histoire de la Viande.
Fabrique et représentations de l’Antiquité à nos jours (com M.-P. Horard-Herbin), Rennes-Tours, PUR-PUFR (Series Tables des
Hommes), 2017.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 73
Paradojas de la globalización alimentaria
Jesús Contreras 1
1 Antropólogo espanhol, diretor do grupo de estudos e pesquisas Observatorio de la Alimentación (Odela), vinculado
à Universitat de Barcelona. Autor de, entre outros livros, Alimentación y cultura: perspectivas antropológicas (2005), publi-
cado em parceria com a antropóloga Mabel Gracia e lançado em português com o título Alimentação, sociedade e cultura
(2011), pela Editora Fiocruz.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 74
To Kitchen: Making, Modeling, and Museumizing American Cookery
Shirley Wajda 1
The word kitchen has done as much work in the English language as the people who have
toiled in the space the word names. The Bard himself, William Shakespeare, “verbed” the term in
1623, using kitchen to mean serving the food in the space in which it was prepared: “There is a fat
friend at your master’s house, That kitchin’d me for you to day at dinner.” A century later, Scots
used the term as a synonym for both pleasurable eating and frugality—for seasoning food and for
budgeting and provisioning food beyond harvest. By the end of the nineteenth century, kitchening
was interchangeable with cooking, food service, and the related work undertaken in this domestic
production space.
Existing examinations of the American kitchen emphasize the architectural design of the
space, often pointing to technological and energy innovations as factors for the space’s changing
design over the centuries. Historians of women and labor also stress mechanization, arguing that
the technologies touted as labor saving were, in reality, not—in many cases, new technology raised
standards and increased women’s work. Understanding this, scholars have focused on women’s
decisions about kitchen design and cookery, seeking evidence in diaries, letters, and recipes. Rising
research interest in food studies has renewed scholarly attention to the kitchen and its contents and
occupants, linking in interesting ways food, material culture, labor, and consumption.
In this presentation I discuss how attention to the material and visual evidence of American
women’s kitchening, from making food to (re)modeling the workspace of the kitchen itself, improves
our understanding of the history of the kitchen derived from prescriptive literature such as household
manuals and home economics texts. I consider the related changes in domestic kitchens and American
foodways in the United States since the 1840s, when the processes of industrialization shifted the
ways Americans worked and ate. Last, I devote attention to the ways in which American museums
have and continue to collect and display kitchen objects. Museums depicting preindustrial kitchens
often feature cooking demonstrations utilizing the era’s tools and foodways or emphasize the dining
experience, while museums with industrial and postindustrial collections display the kitchen and
its mass-produced material culture as aesthetically delightful products of design divorced from
the foods these objects help to prepare. I hope this presentation may elicit a discussion about what
museums should be collecting to represent kitchening in the 21st century.
Keywords: domestic kitchen; material culture; museums.
Palavras-chave: cozinha doméstica; cultura material; museus.
1 Historiadora, Ph.D em “American civilization” pela University of Pennsylvania e diretora do Enfield Shaker Museum em
New Hampshire, nos Estados Unidos. Entre outras publicações, editou, em parceria com Helen Sheumaker, a enciclo-
pédia Material culture in America: understanding everyday life (2008). Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp) pelo financiamento para a vinda dela ao simpósio.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 75
II Simpósio
Internacion
Mesas-Redondas
[Roundtables]
de
pesquisa
Deculturar os índios para torná-los Índio: arqueologia e arqueobotânica como
expedientes disciplinares para restaurar os índios plurais na formação cultural brasileira
O mito original da culinária brasileira nos diz que seu processo de formação começa em
1500, com o consumo gradativo de uma alimentação “miscigenada”. Ele nega que haja cozinha que
possa ser chamada “brasileira” antes do descobrimento. Em outras palavras, lhe é indiferente o que
os índios comiam. Assim, uma moderna consciência descolonizada precisa reconstruir o passado
arqueológico de centenas de povos originais como substrato básico a partir do qual se formou a
culinária atual – considerando o comer indígena em suas diferenças culturais, regionais e locais
anteriores à chegada dos portugueses.
A arqueologia dos povos pré-coloniais brasileiros teve enorme impulso atualmente, bem
como seu ramo denominado arqueobotânica que se aproxima da biologia e tende a configurar-se
como devotada a um objeto de estudo próprio que enfatiza as relações dos grupos humanos pré-
-coloniais com o meio ambiente circundante, permitindo mesmo descrever e datar as dietas corres-
pondentes a partir de micro-restos vegetais (fitólitos, grãos de pólen, grãos de amido), fornecendo
evidências das práticas agrícolas e de domesticação de vegetais em vários locais da América do Sul
que remontam a 7.000 anos Antes do Presente (AP).
Pela falta desses conhecimentos, muitas espécies domesticadas pelos índios em tempos
passados (como pupunha, abiu, ananás, mandiocas, milho, abóboras, amendoim, a formação de
castanhais etc.), bem como a produção de variedades suas, foram tomadas como produtos naturais
e não construções culturais.
A naturalização das espécies correspondeu a uma forma particular de deculturação dos
indígenas. O caso do milho é especialmente notável, pois embora tenham cultivado mais de 10
variedades suas, e predominando no imenso território da Paulistânia, a historiografia romântica,
por exemplo, o atribuía exclusivamente aos povos da cordilheira, restando aos brasileiros a “genuí-
na” mandioca (Varnhagen e outros).
Esse processo foi ainda mais longe, como se lê em Gilberto Freyre e em Câmara Cascudo que
os índios não conheciam o doce – que, sabemos, é um sabor básico, isto é, percebido pela fisiologia
humana independentemente de sua produção industrial –, atribuindo sua emergência na cultura
brasileira à agroindústria do açúcar (fato sobejamente contestado pelo antropólogo Mártin Cesar
Tempass, em Quanto mais doce melhor. Um estudo antropológico das praticas alimentares da doce sociedade
Mbyá-Guarani, de 2010).
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 77
Do mesmo modo, há um complexo processo “escondido” que diz respeito à hierarquia ori-
ginal entre as carnes, com sua total subversão e a imposição da galinha, do porco e, finalmente,
dos bovinos à dieta colonial – incluindo-se aí seus derivados, como o leite e os ovos –, silenciando
gradativamente a preferência pelas carnes de caça, por si só diferentes entre os vários grupos indí-
genas, apesar de algumas persistirem na dieta popular até hoje (notadamente a paca, o tatu e o
mocó, além de várias aves).
Por fim, atribui-se ao indígena um só processo de cocção – o moquém –, desdenhando-se das
formas ricas e variadas de utilização do fogo, como as brasas (sob e sobre os alimentos) e as cinzas.
Assim é possível e desejável ampliar o estudo da alimentação brasileira em direção às suas
raízes pré-coloniais e para o processo de deculturação que se seguiu à conquista, igualando todos os
povos tribais no “Índio” mítico da historiografia romântica e daquela que a seguiu.
Palavras-chave: deculturação; etnologia; arqueologia; arqueobotânica; cozinha brasileira.
Keywords: deculturation; ethnology; Archeology; Archaeobotany; Brazilian cuisine.
1 Doutor e pós-doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especializou-se na
área de Sociologia da Alimentação, sendo autor de livros como Formação da culinária brasileira (2014) e, em parceria
com Marcelo Corrêa Bastos, A culinária caipira da Paulistânia (2018). Mantém o blog e-BocaLivre, focado na temática, e
a coluna Tarja Preta, sobre a indústria e as políticas atuais de agrotóxicos, no blog Nocaute de Fernando Morais. No II
Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação, participou da mesa-redonda “Interdisciplinaridade na pesquisa
em alimentação”.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 78
A estética dos sabores e do poder:
os cardápios da Coleção Washington Luís Pereira de Sousa. Brasil (1889-1930)*
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 79
recém-criada para selar alianças políticas e de autopromoção. A participação de Washington Luís
nas refeições cerimoniosas favorece a reconstituição das práticas alimentares, desde a escolha dos
pratos, das bebidas, os artefatos de mesa e de decoração, até as relações que engendram o contexto
sociopolítico e cultural desse período de consolidação da República e de ênfase na unidade nacional.
Palavras-chave: História da Alimentação; práticas alimentares; sociabilidade; Política-Brasil
(1889-1930).
Keywords: Food History; Food Culture; sociability; Politics-Brazil (1889-1930)
* Esta pesquisa conta com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp - Processo
2019/15623-0).
1Historiadora responsável pelos Arquivos Históricos do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre e doutora pela Unicamp, é pós-doutoranda junto ao Museu
Republicano “Convenção de Itu”/Museu Paulista da Universidade de São Paulo. No II Simpósio Internacional de Pesquisa
em Alimentação, além de apresentar este trabalho, fez, ao lado de Maria Aparecida de Menezes Borrego, a curadoria da
exposição Os cardápios da coleção Washington Luís no acervo do Museu Republicano "Convenção de Itu" - USP, instalada no hall
dos auditórios Milton Santos e Nicolau Sevcenko.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 80
Uma commodity para os sentidos: a difusão global do tabaco na Era Moderna
A commodity for the senses: the global diffusion of tobacco in the Modern Age
O tabaco esteve entre as commodities a ter rápida difusão global na Era Moderna, a partir
das navegações e interações dos europeus com os povos dos demais continentes conhecidos então.
Nativo da América, onde era consumido pelos povos originários de várias partes do continente,
cerca de um século depois da chegada de Colombo ao Novo Mundo, o tabaco já era conhecido em
várias partes da Europa, África, Oriente Médio e Leste Asiático. Neste périplo global, a erva passou
de elemento ritualístico a commodity: vendido, trocado, taxado e produzido nas quatro partes do
mundo, ganhou a preferência de homens e, em menor medida, mulheres, de todas as camadas
sociais. Indivíduos de diversas idades mascavam, aspiravam e/ou fumavam, principalmente, o taba-
co das Américas, nas suas diversas variedades. Assim, essa commodity, que conquistava as pessoas
pelo paladar, olfato, tato e visão, tornou-se intensamente negociada e difundida nas sociedades que
com ela tiveram contato. Proponho-me a abordar essa difusão, destacando seus diversos condicio-
nantes, desde a produção ao consumo do tabaco.
Palavras-chave: tabaco; mercado atlântico; história global; Idade Moderna.
Keywords: Tobacco; Atlantic Market; Global History; Modern Age.
1Graduado e mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco, doutor em História Econômica pela
Universidade de São Paulo. É professor adjunto de História Econômica da Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE) e membro colaborador do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRPE. No II Simpósio
Internacional de Pesquisa em Alimentação, participou da mesa-redonda “Produção alimentar e sistema global”.
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História da alimentação no Brasil contemporâneo
A apresentação irá resumir a trajetória recente dos estudos sobre alimentação no Brasil
e, especialmente, no âmbito das pesquisas realizadas pelo Laboratório de Estudos Históricos das
Drogas e da Alimentação. Também serão destacadas as questões alimentares diante dos impasses
da crise do modelo econômico global em seus impactos socioambientais.
Palavras-chave: História da Alimentação; História das Drogas; crise do modelo econômico global.
1Professor Doutor de História Moderna do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. Fundador e coordenador do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e
da Alimentação (LEHDA-USP) e coordenador do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação. No simpósio,
também participou da mesa-redonda "Interdisciplinaridade na pesquisa em alimentação".
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 82
Minas, comida, palavra: perspectivas sobre o patrimônio imaterial e os modos de fazer
Minas, food, word: perspectives on immaterial heritage and the ways of making
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Entre a cozinha e a mesa:
notas sobre a doçaria e seus artefatos (América portuguesa, séculos XVII-XIX)
Até meados do século XVI, o açúcar era um produto raro e caro no mercado europeu, sendo
pouco incorporado à cozinha. Destinava-se especialmente aos enfermos, encontrando-se presente
nas receitas de infusões e de outros medicamentos. Não fazia parte, portanto, dos registros de con-
sumo de alimentos diários das populações. Mas constava nos compêndios do fim da Idade Média e
início da Moderna, como tempero e especiaria, associado a alimentos doces e salgados.
Foi, porém, o sucesso dos portugueses na exploração do cultivo da cana-de-açúcar nas
suas colônias atlânticas e a consequente expansão da indústria açucareira no império português
que transformou o produto exótico em necessidade nas mesas de indivíduos de todas as classes
sociais, no século XVII.
Seu amplo consumo estimulou a arte da confeitaria na Europa e nas zonas produtoras de
açúcar, a qual representa um campo importante de reflexão para o historiador da cultura, já que
os doces, devido ao seu intenso caráter simbólico e festivo, encontravam-se presentes nas mais
diversas ocasiões de sociabilidade.
Com base em livros de receitas antigos, inventários de bens dos séculos XVII e XVIII refe-
rentes à região Sudeste do Brasil (post mortem e Autos da Devassa da Inconfidência) e em relatos de
viajantes estrangeiros, pretende-se refletir sobre o lugar do doce na América portuguesa e comentar
o repertório dos equipamentos de mesa e cozinha utilizados pelos colonos em seus rituais ligados à
produção e ao consumo de doces.
O estudo visa ainda propor caminhos para uma análise do universo material da cultura,
deslocando os artefatos dos espaços originais e das trajetórias de vida de seus proprietários, a fim
de estabelecer novos contextos e conexões entre os objetos.
Palavras-chave: América portuguesa; alimentação; doçaria; sociabilidade; artefatos de mesa e
cozinha.
Keywords: Portuguese America; food; sweets; sociability; kitchen and dining room artifacts.
1 Mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e professora aposentada de História do Brasil na
Universidade Estadual de Campinas. Publicou livros como Honradas e devotas: mulheres da colônia (1993). No II Simpósio
Internacional de Pesquisa em Alimentação, apresentou o pré-lançamento do livro História e Alimentação: Brasil séculos
XVI-XXI (Editora Paka-tatu), organizado em parceria com Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo, e participou da
mesa-redonda “Cultura material e alimentação”.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 84
A necessidade um olhar biopsicosociocultural na ciência da Nutrição
Marle Alvarenga 1
A Nutrição, classicamente classificada como uma disciplina da área das biológicas, infe-
lizmente tem focado muito apenas os nutrientes, sendo caracterizada hoje até pelo nutricionis-
mo: foco tão grande no nutriente e energia que faz as pessoas esquecerem que comem comida.
Concordamos com alguns pesquisadores que afirmam que a Nutrição pode ser quase classificada
como “uma racionalidade científica do comer”.
A interdisciplinaridade na área da alimentação é fundamental, e a Nutrição como ciência
precisa aprender muito com historiadores, antropólogos, sociólogos e outros pesquisadores das
ciências humanas, para resgatar o foco no alimento – que vem antes do nutriente; e também o foco
no ser humano comedor e consumidor – que vem antes de um processo fisiológico e metabólico de
assimilação de nutrientes.
Alguns pesquisadores da área da Nutrição têm se debruçado sobre o tema alimento e seus
arredores socioculturais e psicológicos, mas há muito a ampliar nesse sentido, e a interdisciplinari-
dade é, portanto, fundamental.
Esta necessidade se evidencia também pelo fato de que nunca se falou tanto de Nutrição
e o acesso às informações sobre o tema nunca foi tão amplo (mesmo havendo desinformação e
controvérsias), mas as pessoas não estão mais saudáveis: os índices de obesidade e transtornos ali-
mentares e doenças crônicas não transmissíveis atestam isto. Mais do que nunca é preciso entender
os múltiplos fatores envolvidos nas decisões sobre o que comer, e apenas parâmetros nutricionais
numéricos de necessidades e recomendações não vão responder às demandas da atualidade.
Palavras-chave: nutrição; interdisciplinaridade; alimentação; nutricionismo.
Keywords: nutrition; interdisciplinarity; food; nutritionism.
1 Mestre e doutora em Nutrição Humana Aplicada pela Universidade de São Paulo, concluiu o pós-doutorado no
Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, com um período como “short-term scholar” na
Pennsylvania University. É professora visitante do Departamento de Nutrição da FSP-USP e credenciada como orienta-
dora no programa de pós-graduação em Nutrição em Saúde Pública da mesma instituição. No II Simpósio Internacional
de Pesquisa em Alimentação, participou da mesa-redonda “Interdisciplinaridade na pesquisa em alimentação”.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 85
Duas colônias cafeeiras:
meio ambiente e escravidão no Suriname e em Saint-Domingue, c.1750-1790
1 Mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, onde atua como professor titular. Ao lado do Prof.
Dr. João Paulo Garrido Pimenta, coordena o Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi-USP)
e o Departamento de História da FFLCH-USP, na posição de vice-diretor. No II Simpósio Internacional de Pesquisa em
Alimentação, fez parte da Comissão Organizadora e da Comissão Científica e participou da mesa-redonda “Produção
alimentar e sistema global”.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 86
Arqueologia das práticas alimentares de uma vizinhança no Rio de Janeiro, século XIX:
o que a história não conta
Com vistas à liberação de uma área para a construção civil no centro do Rio de Janeiro, foi
feita uma intervenção arqueológica no seu subsolo, que recuperou os restos materiais de seis unida-
des habitacionais oitocentistas contíguas. Em meio a uma abundante tralha doméstica de pessoas
comuns, fazendo coisas simples no seu dia a dia, foi resgatada uma expressiva quantidade de restos
alimentares, em sua esmagadora maioria ossos de mamíferos e aves. Um estudo detalhado das
marcas observadas nesses ossos identificou cortes padronizados que remetem às formas de aquisi-
ção de carne à época, e as ferramentas e utensílios utilizados para produzi-los; e também ao modo
como eles foram processados e consumidos por essa vizinhança, aqui entendida como um conjunto
de pessoas que moram em estreita proximidade. Uma análise comparada do que foi encontrado
em cada uma das casas permitiu observar os hábitos de consumo desses grupos domésticos e as
práticas alimentares que eles adotaram em suas rotinas diárias no Rio de Janeiro do século XIX.
Palavras-chave: arqueologia; restos alimentares; hábitos alimentares; Rio de Janeiro.
Keywords: archaeology; food remains; foodways; Rio de Janeiro.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 87
II Simpósio
Internacion
Grupos de Trabalho
[Work Groups]
de
pesquisa
Grupo de trabalho 1
Work group 1
Coordenadores/Coordinators:
Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo, professor visitante do Instituto
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 89
Alimentação escolar no Brasil: considerações sobre questões educacionais, sociais e culturais
A vida cotidiana das escolas públicas brasileiras é marcada pela diversidade social, cultural,
política e econômica que constitui o Brasil. O sistema de Ensino Básico é formado por escolas qui-
lombolas, indígenas, do campo e urbanas que são caracterizadas por especificidades que buscam
ser mantidas diante dos desafios de políticas públicas educacionais comuns. No início do século
XX, em meio aos projetos de formação da nação brasileira, dois grandes problemas precisavam
ser enfrentados, a educação e a fome, e que estavam intrinsicamente relacionados à pobreza e à
desnutrição, fazendo com que a constituição histórica do sistema público de Ensino Básico fosse
acompanhada de um sentido assistencialista. Neste contexto, a alimentação escolar ocupou um
complexo lugar dentro da cultura escolar brasileira. A partir desta breve introdução, apresentamos
a alimentação escolar como o tema problematizador desta apresentação, que está integrada a uma
pesquisa em andamento e intitulada História da alimentação escolar no Brasil (séculos XX-XXI): refle-
xões sobre políticas públicas educacionais, cultura alimentar e Campo. De modo geral, essa pesquisa vem
estudando a historicidade da alimentação escolar no contexto da estruturação e consolidação da
Educação Básica no Brasil, considerando a alimentação como um ato marcado por aspectos que são
econômicos, políticos, ambientais, culturais, sociais e também educacionais, sendo, portanto, um
lugar de resistência cultural, como pontuou Jean-Pierre Poulain, na obra Sociologia da alimentação: os
comedores e o espaço social alimentar (2002). No entanto, como a alimentação escolar no Brasil, ainda
profundamente marcada por características assistencialistas e pouco vinculada à garantia de um
direito, se apresenta nas atuais políticas públicas para a educação no Brasil? Destacaremos a tra-
jetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), problematizando questões que vão
além da educação nutricional e consideram a educação alimentar na sua relação com a vida social
e identitária das comunidades escolares. Identificamos, assim, que boa parte das políticas públicas
para a alimentação escolar destaca e evidencia o que o sujeito vai comer, mas pouco considera o
sujeito que come, desvinculando a complexa cadeia dos sujeitos que produzem, comercializam, pre-
param e consomem. Se, por um lado, as políticas educacionais proporcionam esses desajustes, por
outro, também geram ressignificações e lutas. Por fim, a partir de um levantamento bibliográfico
interdisciplinar, esta apresentação busca mostrar como a alimentação escolar, na consolidação da
Educação Básica no Brasil, vem se construindo como um espaço de disputas econômicas e políticas,
mas, sobretudo, como um território sociocultural de resistência.
Palavras-chave: história da alimentação; alimentação escolar; cultura escolar; educação alimentar;
cultura alimentar.
Keywords: food history, school feeding; school culture; food education; food culture.
1 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora na Universidade Federal de Santa Catarina.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 90
Representações da fome e suas metamorfoses nas décadas de 1930 e 1940 no Brasil
Hunger representations and its metamorphoses in the 1930s and 1940s in Brazil
1 Doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo, pesquisadora do Laboratório de Estudos Históricos das
Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP).
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 91
Experiência de elaboração de um material técnico gastronômico voltado ao uso
sustentável de espécies nativas brasileiras
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 92
Palavras-chave: biodiversidade; educação; espécies nativas; segurança alimentar; nutrição.
Keywords: biodiversity; education; native species; food security; nutrition.
1 Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
2 Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, docente da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 93
Ampliação da segurança alimentar através de material gastronômico com
espécies nativas da região Sudeste do Brasil
Increasing food security through gastronomic material with native species from
Southeastern Brazil
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 94
Doenças carenciais no período da seca de 1877-1879 na Província do Rio Grande do Norte
Diseases in the drought period of 1877-1879 in the province of Rio Grande do Norte
Este trabalho tem como objetivo analisar as doenças de ordem carencial que foram registra-
das durante a seca de 1877-1879 no Rio Grande do Norte. Eu parto desta seca para entender as con-
dições sociais pelas quais as populações viviam, pensando na saúde e nas enfermidades, pois como
defendem Durval Muniz de Albuquerque Junior e Paulo Cesar Gonçalves, esta seca se diferencia das
anteriores pela visibilidade que a elite política do Norte (atual Nordeste) trouxe em seus discursos,
utilizando-a como argumento para conseguir recursos no intuito de combater as secas e as misérias
assoladas pela fome nas províncias afetadas (dentre elas, o Rio Grande do Norte), chegando ao pata-
mar de “problema nacional”, com seu cortejo de calamidades: falta d’água, de alimentos, dizimação
dos rebanhos, elevada mortalidade e epidemias. Outra justificativa em optar por esta delimitação
temporal é que, por meio da análise das fontes governamentais, pude encontrar notificações de
doenças carenciais como beribéri e escorbuto. No tocante à metodologia, utilizo o cruzamento das
fontes, classificação e análise qualitativa das temáticas encontradas na documentação, mapeamento
das doenças carenciais que assolavam a população sertaneja do Rio Grande do Norte e produção de
tabelas a partir dos dados encontrados nas fontes. Por meio da análise dos Relatórios dos Presidentes
de Província do RN, dos jornais e dos relatos de memorialistas que viveram neste período, quero
entender a dimensão social dessas doenças a partir das discussões de Anny Jackeline Torres Silveira,
Dilene Raimundo do Nascimento e Claudine Herzlich, levando em consideração a dieta alimentar
que era consumida pela população sertaneja, as condições econômicas da agricultura, pecuária e
a situação da água durante este período. Todos estes aspectos são importantes para refletir sobre
as condições de vida e saúde dos retirantes que migravam à procura de alimentos e água, além dos
impactos que a fome causava na vida dessa população. Assim, dos resultados colhidos até o presente
momento, as doenças mais comuns (além dos surtos epidêmicos) foram de ordem carencial como
beribéri e escorbuto, cujo motivo estava relacionado a uma dieta pobre em nutrientes e vitaminas
e em virtude dos alimentos que se tornavam escassos durante a seca. Problematizar as doenças
carenciais, levando em consideração a sua dimensão social, amplia o olhar dos historiadores para
refletir sobre os problemas frequentes de crise alimentícia, as dificuldades no abastecimento dos
gêneros alimentícios, a qualidade dos alimentos que existiam disponíveis no comércio das cidades
dos sertões do Rio Grande do Norte, a dieta-base da população migrante, as condições de vida e as
explicações médicas perante o aparecimento dessas moléstias. Isso nos leva a compreender também
o próprio papel do Estado perante as políticas de calamidade que envolviam, principalmente, a seca,
a fome e as doenças em fins do século XIX.
Palavras-chave: beribéri; escorbuto; fome; seca; alimentação.
Keywords: beriberi; scurvy; hunger; drought; food.
1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
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Soberania e segurança alimentar e nutricional na formação em
Gastronomia por instituições de ensino superior no Brasil
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 96
Palavras-chave: gastronomia; soberania alimentar; segurança alimentar e nutricional.
Keywords: gastronomy; food sovereignty; food and nutrition security.
pela Capes.
2 Licenciada em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista e bacharela em Gastronomia na Universidade
Federal do Ceará.
3 Doutora em Ciências dos Alimentos pela Universidade de São Paulo.
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Na trama das “Cestas Verdes”: análise sociotécnica de uma política entre produção e
consumo em Limeira (SP)
Este trabalho tem como objetivo apresentar pesquisa de mestrado acerca da implementação
do programa “Cestas Verdes”, uma vertente do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), na cida-
de de Limeira (SP), de abril de 2015 a novembro de 2016. Este desenrolou-se de maneira particular no
município, com uma mudança de traçado no intuito de abranger famílias em Insegurança Alimentar
e Nutricional (IAN) com as chamadas “Cestas Verdes”. Estavam envolvidos o Centro de Promoção
Social Municipal (Ceprosom), responsável pela gestão do programa, bem como a cooperativa de
agricultores do acampamento rural Elizabeth Teixeira. Tendo o alimento como fio condutor, obser-
vou-se a rede sociotécnica que o programa foi capaz de articular nos eixos: I. produção no acampa-
mento, II. gestão municipal e III. distribuição às famílias. Por meio de entrevistas semiestruturadas,
observação participante e grupos focais, foi possível constatar que a experiência em Limeira garantiu
renda às famílias do acampamento que trabalham e se identificam com a agricultura, melhorando
sua situação de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), uma vez que os alimentos que vendiam
também eram para autoconsumo; para as gestoras essa política representou um desafio e um novo
modo de fazer o trabalho mesmo com acesso limitado à discussão de SAN; e, para as famílias, os
alimentos foram uma melhora material e significativa na alimentação, tanto nos casos que tiveram
profissionais da Nutrição trabalhando conjuntamente, quanto para os que não passaram por esse
acompanhamento. Com efeito, essa experiência mostrou a teia que o programa foi capaz de coa-
dunar entre humanos e não humanos em prol da noção de SAN, mesmo que por um breve período.
Palavras-chave: Programa de Aquisição de Alimentos; Cestas Verdes; rede sociotécnica; sociologia
da alimentação.
Keywords: Food Acquisition Program; “Cestas Verdes”; socio-technical network; sociology of food.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 98
As consequências do neoliberalismo para a soberania alimentar haitiana
e a produção da fome
Dentre os países do continente americano, o Haiti configura o que apresenta maior índi-
ce em relação à desnutrição com aproximadamente metade da população dentro desse quadro.
Não apenas no continente americano, mas também mundialmente o país configurou entre 2004
e 2006 o país com maior prevalência (57,1%) e, no último período analisado, entre 2015 e 2017,
apenas Zimbábue classifica-se com maior índice que o Haiti. Inserido na América Latina e Caribe,
o país aponta como um caso necessário a ser evidenciado no tocante à questão alimentar, para
além da atenção fundamental que a alimentação, independentemente de índices maiores ou
menores, deve tomar. A região foi exemplo ao alcançar uma das metas dos Objetivos do Milênio,
conseguindo reduzir pela metade o número de desnutridos. Infelizmente, nos últimos três anos, o
inverso tem se colocado a partir do crescimento da desnutrição na região distanciando, portanto,
dos atuais Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. A partir disso, em pesquisa para disserta-
ção de mestrado, buscou-se compreender quais as relações estabelecidas podem influenciar para
o quadro de fome no Haiti. Renunciando inicialmente o determinismo geográfico, que frequen-
temente é utilizado pela mídia para justificar e naturalizar a fome não apenas no país, mas em
outras regiões do mundo, partiu-se da compreensão de que tal flagelo tem origens multidimen-
sionais, sendo que suas consequências são multifacetadas. A partir desse ponto inicial e de revisão
bibliográfica sobre os tipos de fome e suas consequências, observou-se a utilização e evolução dos
termos acerca da questão alimentar, tais como “segurança alimentar” e como esses podem ser
angariados para, primeiro, justificar um comércio internacional de commodities e, segundo, inten-
sificar a dependência alimentar de alguns países em relação a outros. Para tanto, fez-se primordial
a abordagem a partir de uma perspectiva de soberania alimentar, evidenciando como esta tem
relação com a própria dificuldade de soberania política do país. Partindo de tais constatações, se
optou por compreender uma das implicações ocorrentes na questão alimentar: o comércio. Nesse
sentido, o neoliberalismo apareceu como um divisor de águas durante a pesquisa. Medidas aplica-
das a partir de 1980 implicaram uma ampla abertura de mercado, sendo que tarifas alfandegárias
caíram de 35% para 3% em alguns produtos, dentre eles, o arroz. A partir de consultas no banco de
dados da USDA, foi possível constatar que após a década de 1980, especificamente a partir de 1986,
duas coisas ocorreram: o aumento do consumo doméstico de arroz e a consequente importação
de arroz estadunidense. A principal problemática que se coloca é que esse arroz originário dos
Estados Unidos da América é altamente subsidiado por Washington, resultando em um arroz mais
barato que o local e também mais fácil de ser consumido, uma vez que os fazendeiros estaduni-
denses têm (além dos subsídios) algo que os haitianos não possuem: insumos agrícolas.
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Palavras-chave: fome; neoliberalismo; Haiti; soberania alimentar.
Keywords: hunger; neoliberalism; Haiti; food sovereignty.
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O PNAE como estratégia para construção de novas lógicas de produção e consumo de
alimentos no Rio Grande do Sul
PNAE as a strategy for building new food production and consumption logics in Rio Grande do Sul
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 101
mercados da agricultura familiar e aproximação entre produtores e consumidores finais, compon-
do uma estratégia alternativa aos sistemas de produção industrial.
Palavras-chave: PNAE; alimentação escolar; segurança alimentar e nutricional.
Keywords: PNA; school feeding; food and nutrition security.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 102
Fome e redes comerciais na Bacia Parisiense (séculos VII-XI)
A Alta Idade Média foi entendida pelos historiadores até meados do século XX como um
longo período de crise e de declínio, não apenas devido aos múltiplos períodos de fome, mas tam-
bém por questões econômicas e políticas. Essa interpretação pessimista tem sido contestada nas
últimas décadas. Com um panorama menos negativo com relação à economia medieval, também
vieram questionamentos a cerca da “veracidade” das crises alimentares, ou pelo menos de seus
aspectos mais sombrios. Alguns relatos da fome usam passagens bíblicas como modelo. Isso fez
com que alguns historiadores enxergassem as “colheitas falsas” e o canibalismo de sobrevivência
como recursos retóricos, pois eram associados com a ação divina, uma punição pelos pecados dos
habitantes do reino.
Ao realizar um estudo da fome no início da Idade Média, entramos em contato com a dura
realidade fornecida por fontes rarefeitas. Diferente do que se observa para o século XIV em diante,
os primeiros séculos da Idade Média distinguem-se pela ausência de documentação precisa acerca
da produção, compra, venda e estocagem de alimentos. No lugar de inventários detalhados, ou
de séries de preços, temos evidências imprecisas que, no entanto, apontam para a escassez de ali-
mentos em diversos momentos. A análise arqueológica oferece dados fundamentais para a melhor
compreensão da fome durante a Alta Idade Média. Nesta apresentação, buscarei analisar os indícios
arqueológicos de La Confiserie, localizado em Villiers-le-Bel, usando como pontos de comparação
outros dois sítios contemporâneos da bacia parisiense: Les Ruelles e La Chapelle/La Croix Verte.
La Confiserie e Les Ruelles possuem registros arqueológicos diametralmente opostos. No
primeiro deles, há o único provável indício encontrado de canibalismo de sobrevivência durante
toda a Idade Média, fenômeno descrito treze vezes nas fontes escritas entre os séculos VIII e XI. Em
contrapartida, Les Ruelles tem silos muito bem abastecidos e variados. Foram encontrados, indícios
de alimentos raros, como faisão e ostras. La Chapelle/La Croix Verte não possui registros tão extremos
quanto os outros sítios, mas conta com muitas estruturas relacionadas à produção e à estocagem
de alimentos, que foram descritas e analisadas pelos arqueólogos. Além disso, La Chapelle/La Croix
Verte pode ser usado como um ponto neutro entre os outros dois sítios por não estar em condições
tão extremas quanto eles.
Até o momento, de acordo com o andamento da pesquisa, podemos dizer que há dois pontos
principais para esta análise: a proximidade com os habitats aristocráticos e a integração dos sítios
com as redes comerciais. La Confiserie era o único sítio que se encontrava isolado delas. De acordo
com as evidências alimentares e os resquícios de comércio, a fome não parece ter sido tão abran-
gente e total quanto os historiadores apontavam no século XX. Ainda que ela fosse uma realidade
e seu impacto claro, seus efeitos de distribuem se maneira desigual de acordo com diversos fatores.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 103
Palavras-chave: fome; arqueologia medieval; abastecimento.
Keywords: hunger; medieval archeology; supply.
1 Graduando em História pela Universidade de São Paulo, bolsista de Iniciação Científica pela Fapesp.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 104
Em busca da emancipação dos brasileiros à mesa: diálogos entre Slow Food e MST
In search of Brazilians’ emancipation at the table: dialogues between Slow Food and MST
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 105
Palavras-chave: cultura alimentar; segurança alimentar; processo emancipatório; Slow Food; MST.
Keywords: food culture; food security; emancipation process; Slow Food; MST.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 106
O estômago da cidade: alimentação popular no centro de Belo Horizonte
O mundo atual é pautado por um contexto de crises, no qual os avanços técnicos constituem
uma corrida desenfreada por novas modernizações, criando perversidades (ver a obra de Milton
Santos, Por uma outra globalização, de 2000). Estas perversidades são concretizadas no território, ou
no seu uso, permitindo uma leitura por meio da pobreza que se manifesta como fome e/ou fome
oculta, como já observava Josué de Castro em Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951).
Segundo Milton Santos, em A Natureza do Espaço (1994), as cidades são a confluência entre
verticalidades e horizontalidades, ou seja, o espaço banal, onde todos vivem, mesmo que a possibi-
lidade de ação não seja igual para todos. Nesta situação, a comunicação procura abarcar a dinâmica
dos processos que englobam o comércio popular de alimentos no centro de Belo Horizonte.
A alimentação é uma das necessidades básicas humanas, afetando diretamente o seu
cotidiano. Por isso, o objetivo é compreender como se dão a alimentação dos pobres na metró-
pole e a formação de um mercado socialmente necessário ou um circuito inferior da economia
urbana (formas de organização rudimentares, baixa capitalização e densidade tecnológica),
conforme Milton Santos, em O Espaço Dividido (1979), tendo o objetivo de assegurar a alimenta-
ção desta população.
Como metodologia de pesquisa, realizamos um recorte espacial de uma área no centro
de Belo Horizonte, nas proximidades do Terminal Rodoviário, onde se percebe uma alta presença
de trabalhadores e transeuntes, além de linhas de transporte que conectam o centro da urbe à
sua periferia e Região Metropolitana. Observam-se, no centro de Belo Horizonte, processos do
comércio popular de alimentação semelhantes àqueles notados por Lívia C. Antipon, em O circuito
inferior da economia urbana no centro do município de Campinas (2017), como um dinamismo local de
comércios e serviços populares, atividades que concretizam um circuito comercial de alimentação
necessário aos trabalhadores e consumidores pobres que perpassam o centro.
Como fruto de uma pesquisa em curso, encontrou-se nessa área típicos traços do circuito
inferior, como estabelecimentos com preços e publicidades chamativas e com diversas promoções
para o consumidor de baixa renda. Além disso, em horários estratégicos, como o de almoço, o
comércio ambulante se faz presente com a oferta de marmitas (5 a 10 reais), haja vista que essa área
também é composta por um amplo setor de comércios, do qual o trabalhador não pode se fazer
ausente e por isso a atuação dos ambulantes se faz essencial. Por fim, além de apresentar a dinâ-
mica de um mercado socialmente necessário da alimentação, observa-se também uma nova fome
oculta, sustentada pela ingestão de alimentos ultraprocessados/industrializados e com baixo valor
nutricional. Pois, em muitos casos, o alimento ingerido não é resultado do que se deseja consumir
e sim do que se pode comprar.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 107
Palavras-chave: fome oculta; alimentação urbana; alimentação popular; Belo Horizonte; circuito
inferior da economia urbana.
Keywords: hidden hunger; urban food; popular food; Belo Horizonte; urban economy’s lower circuit.
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Desperdício alimentar: impactos e simbolismos do consumo globalizado
O consumo de alimentos, ainda que seja um hábito que supostamente deveria atender a
uma necessidade básica comum a todos os seres humanos, é afetado pelo processo de consolidação
do consumismo na sociedade moderna que alterou um princípio fundamental: a definição do que
seriam as necessidades básicas comuns; esta afirmativa pode estar atrelada, em definitivo, ao pro-
cesso de desperdício de alimentos. Por mais básica que possa aparentar ser a necessidade humana
de se alimentar, é imprescindível – para a compreensão da situação hodierna dicotômica entre a
fome e a opulência – localizar a comercialização e o consumo de alimentos dentro dessa teia de sig-
nificados reorganizados pela “fome” socialmente imposta por ideias mercantilistas. A partir de revi-
sões de bibliografias que pautam o desperdício de alimentos, a liquidez do consumo, a cultura ali-
mentar moderna e uma fusão com uma vivência etnográfica feita na Feira de São Joaquim na cidade
de Salvador, o presente estudo nasceu da necessidade de entender por que, apesar de o desperdício
de alimentos se manter como uma realidade crescente e preocupante em todo o mundo, grandes
quantidades de alimentos ainda são descartadas por não se encaixarem nos padrões “estéticos” da
grande maioria da sociedade? Logo, há-se a necessidade de refletir sobre o que pode ser considera-
do “lixo” quando se fala em alimentação e de que forma as ideias de consumo na sociedade moder-
na influenciam o descarte desses alimentos. O consumo parte da intencionalidade dos sujeitos de
“vender-se”, ou seja, de, mediante a avaliação externa positiva, galgar posição social superior. Estes,
suscetíveis a aceitações e rejeições, inserem-se em parâmetros estabelecidos socialmente numa
hierarquia de consumo, na qual quão “melhores” forem os produtos consumidos, melhores sujeito
serão; posicionando os indivíduos como mercadorias antes mesmo de se firmarem como sujeitos.
Tal contexto contribui para que a população jogue no lixo porções de comida adequadas para o con-
sumo, desperdiçadas pela vaidade em valorizar o consumo constante de comidas industrializadas.
Dessa maneira, se desde os primórdios a necessidade básica comum era puramente a satisfação
biológica e nutricional do corpo, com a emergência das ideias consumistas na modernidade, esse
princípio passa a competir com aquele que valoriza o consumo como um mecanismo de promoção
social sob uma lógica da mercantilização da vida e da sobrevalorização do bem individual em detri-
mento do coletivo. Por fim, sob um enfoque crítico da dinâmica global, é possível identificar que o
consumo, em seu auge na era capitalista, nos insere em hábitos forjados que reforçam a estética
do produto e mascaram as desigualdades. Hoje, em todo o mundo se produz muito mais do que se
consome, provocando um alto índice de desperdício de alimentos; o que, em contrapartida, contri-
bui diretamente para que populações inteiras continuem vivendo sob uma ótica de vulnerabilidade
social e insegurança alimentar severa.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 109
Palavras-chave: desperdício de alimentos; liquidez do consumo; cultura alimentar; segurança ali-
mentar e nutricional; vulnerabilidade social.
Keywords: food waste; consumption liquidity; food culture; food and nutrition security; social
vulnerability.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 110
Saúde da população negra no Brasil: segurança alimentar e nutricional
e políticas públicas de equidade racial
Black population health in Brazil: food and nutritional security and racial equity public policies
Apesar de a maioria populacional brasileira se declarar preta ou parda, são poucas as pes-
quisas a respeito da saúde da população negra, sobretudo, da segurança alimentar e nutricional.
Os silenciamentos justificam a reflexão proposta, que analisa políticas públicas de saúde e os seus
impactos no âmbito da segurança alimentar de homens e mulheres negros. A partir de documentos
oficiais, com destaque para a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, a pesquisa
revelou que políticas públicas de equidade racial partem da mobilização da população negra, que
participa ativamente das demandas, e buscam alinhá-las com as demais ações em saúde. No entan-
to, a redução das desigualdades étnico-raciais e os cuidados com hábitos alimentares da população
negra brasileira são conquistas recentes, cujo enfrentamento evidencia atenção subalternizada
tanto no âmbito da Gestão Pública, quanto das reflexões acadêmicas, que pouco tratam o tema.
Os desdobramentos do estudo permitem considerar a importância da interdisciplinaridade, pois a
formação humanística, social, em relação ao universo das profissões, com especial atenção para o
campo da Saúde, colabora decisivamente para o entendimento dos problemas e suas existências,
bem como para as ações de seu enfrentamento. Como salientam Liane Maria Bertucci, André Mota
e Lilia Blima Schraiber, organizadores do livro Saúde e Educação: um encontro plural (2017), a instru-
ção da população para transformar maneiras de vida consideradas inadequadas no que se refere à
manutenção da saúde resulta do diálogo entre as disciplinas. Deste modo, o estudo compreende
ser imperiosa a ampliação das bases interdisciplinares na formação de políticas públicas, pois tro-
cas teóricas e metodológicas produzem efeitos de sentido e extrapolam o polo técnico das práticas
sociais sem, contudo, deixar de subsidiá-lo.
Palavras-chave: população negra; políticas públicas; segurança alimentar; interdisciplinaridade.
Keywords: black population; public policies; food security; interdisciplinarity.
1Graduada em Nutrição com Especialização em Gestão Pública pelo Programa Universidade Aberta do Brasil –
Universidade Federal de São Paulo (UAB-Unifesp).
2Doutor em História com Pós-Doutorado EE/USP/Fapesp, bolsista Capes/Orientador no Programa UAB-Unifesp –
Gestão Pública, professor do Mestrado em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 111
Alguns apontamentos sobre a transformação da fome a partir da trajetória
social do programa Fome Zero
Até o ano de 2010 não havia na Constituição Federal Brasileira o direito à alimentação básica.
Esse processo de inclusão do direito à alimentação se deu em conjunto com diversas medidas do
governo brasileiro desde 2003, sendo a principal delas o Programa Fome Zero. Quinze anos após
sua criação, o programa ainda é tema de discussão, apesar de, atualmente, ter sido diluído em
diversas políticas de segurança alimentar, e até mesmo distribuição e geração de renda.
Assim, é objetivo geral desta apresentação trazer alguns apontamentos sobre a transfor-
mação da fome, a partir da trajetória social do programa Fome Zero. Ao recuperar as discussões de
Josué de Castro e José Graziano enquanto intelectuais paradigmáticos na construção da fome no
Brasil, bem como a articulação desses atores em uma escala global e nacional, pretendo discutir
as políticas públicas de combate à fome explorando as inter-relações construídas neste processo.
Como alguns autores clássicos da antropologia já apontavam para a possibilidade de
entender a comida como um objeto diferente para aqueles que passam fome e para aqueles que
tem suas necessidades satisfeitas, a exemplo de Audrey Richards, cabe perguntar como a fome é
coordenada na construção prática de uma política pública que precisa definir, medir e avaliar para
existir e, assim, como diversos saberes tecnopolíticos trabalham nesse processo de coagulação e
transformação da fome.
Dessa forma, a comunicação pretende lançar luz à maneira em que o fenômeno da fome se
transformou ao longo dos anos na “Insegurança Alimentar”, e de que maneira essa transformação
influi diretamente nos processos de feitura do Estado. Para tanto, desenvolvo uma etnografia da
fome realizada nos documentos de criação do programa Fome Zero, mas também busco explorar
as inter-relações construídas neste processo, as diferentes arenas em jogo e os diferentes sujeitos
políticos que se projetavam e consolidavam em tais planos, compreendendo algumas categorias
imbricadas nesta disputa, tais como a noção de direitos, assistência, vulnerabilidade e bem-estar
social em ação/circulação/pauta.
Para tornar evidente essa transformação, apresento aqui uma análise dos aparatos insti-
tucionais criados a partir do Programa Fome Zero e as estruturas institucionais decorrentes desse
processo. Trarei também alguns apontamentos sobre a tecnopolítica da fome e, por fim, buscarei
elucidar as maneiras pelas quais as tecnologias de estado relacionadas à fome e, posteriormente, à
Insegurança Alimentar passam a incidir sobre a vida de uma população, promulgando uma multi-
plicidade de associações que transformam a própria ideia de Estado e governamentalidade.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 112
Palavras-chave: fome; insegurança alimentar; Fome Zero; políticas públicas; Estado.
Keywords: hunger; food insecurity; Zero Hunger; public policies; State.
1 Doutoranda em Antropologia Social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.
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Espaço social alimentar e sociobiodiversidade em uma comunidade
do Vale do Jequitinhonha (MG)
1 Mestre em Saúde, Sociedade e Ambiente pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
2 Doutora em Ciências Biológicas (Botânica) pela Universidade de São Paulo.
3 Doutora em Ciências Sociais: Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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“A Civilização da Mandioca”: a alimentação do amazônida ressignificada pela
ciência da nutrição
Desde o século XVIII, a mandioca, seu método de plantação (coivara) e seu papel na dieta
local têm sido criticados por viajantes e cronistas que estiveram pela região amazônica. De forma
geral, era reconhecida sua importância na alimentação dos amazônidas, mas seu uso excessivo
teria como consequência a “monotonia alimentar” da Amazônia. Esta comunicação pretende trazer
reflexões sobre os usos e “abusos” da mandioca em escritos dos séculos XVIII ao XX, problemati-
zando o enquadramento do tubérculo pela nutrição do pós-Segunda Guerra Mundial. A partir da
institucionalização e do desenvolvimento da nutrição nos anos 1940, a mandioca sofreu diversos
estudos e análises, sendo considerada, em alguns casos, um elemento que impediria o desenvolvi-
mento da “civilização” da Amazônia. Além disso, serão expostas ações de organizações nacionais e
internacionais na região que tinham como prioridade a mudança na dieta local, com destaque para
o Serviço de Saúde Pública e a Food and Agriculture Organization of the United Nation (FAO).
Palavras-chave: história da alimentação; história da FAO no Brasil; história da Amazônia.
Keywords: food history; FAO’s history on Brazil; Amazonian history.
1 Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências (COC/Fiocruz).
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 115
A efetividade das políticas de segurança alimentar e nutricional a
partir da preservação das tradições alimentares
O processo de criação dos sistemas alimentares não se define como algo natural, mas como
resultado das tradições e dos significados atribuídos a tal. Logo, a comida e as significações envolvi-
das no ato de alimentar-se surgem como determinantes culturais de um grupo social, fazendo com
que todo indivíduo carregue consigo os hábitos provenientes da sua cultura alimentar. O que se
come e de que forma se come são significados provenientes de tradições culinárias que apresentam
a distinção entre “alimento”, que é natural e referente a todos os seres humanos, e “comida”, que se
define por meio de marcadores identitários. Tendo vista dos objetivos que compõem o conceito de
segurança alimentar e nutricional, faz-se necessário assegurar que as características socioculturais
e as tradições alimentares dos indivíduos estão sendo consideradas na criação de políticas públicas
que venham a garantir o direito humano à alimentação adequada. Sendo assim, o presente trabalho
teve por objetivo discutir acerca do que seriam tradições alimentares em paralelo com o conceito de
cultura alimentar e sua relação com a segurança alimentar e nutricional. A metodologia utilizada
consistiu em uma revisão bibliográfica, referenciando publicações de autores relevantes sobre os
conceitos discutidos, tendo como intenção buscar referências que pautem a necessidade de preser-
vação das tradições culinárias para a garantia do direito humano à alimentação adequada. Dado a
isso, subentendemos que os hábitos alimentares dos brasileiros fazem parte de um sistema cultural
composto por símbolos, significados e classificações, ao ponto de que todo os alimentos fazem parte
das associações culturais que lhes são atribuídas pela sociedade. Com a imensa extensão territorial
do Brasil, com uma variedade de recursos naturais e povo, a sua diversidade cultural é indiscutível;
desde o início do processo de colonização, a cultura alimentar diversa já era relatada. Os hábitos
alimentares de uma sociedade são fruto de particularidades como capacidade produtiva, facilida-
de de distribuição, conhecimento acerca da produção e do consumo de determinados alimentos,
além do aspecto financeiro para aquisição do alimento. Dentro do constante movimento do mundo
globalizado, encontramos o processo de construção e reconstrução das tradições alimentares, fruto
proveniente das inúmeras modificações nos modelos de produção e consumo. Porém, para que se
tenha efetividade nas políticas de segurança alimentar e nutricional do Brasil, faz-se necessário
preservar as tradições culinárias existentes no sistema alimentar de cada indivíduo, considerando
todos seus significados de consumo. O que resulta na diminuição na incidência de fracassos rela-
tivos às políticas públicas, tendo em vista que as verdadeiras necessidades do grupo social serão
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 116
consideradas. Contribuindo diretamente com o equilíbrio do sistema alimentar brasileiro, servindo
de alicerce para que, por fim, a soberania alimentar do país seja instaurada com criteriosidade.
Palavras-chave: tradições alimentares; segurança alimentar e nutricional; diversidade cultural;
marcadores identitários; direito humano à alimentação adequada.
Keywords: food traditions; food and nutrition security; cultural diversity; identity markers; human
rights to adequate food.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 117
O alimento ingerido e comercializado: dieta e hábitos alimentares dos
escravizados no Rio de Janeiro oitocentista (1800-1831)
Eaten and traded food: diet and eating habits of the enslaved in the 19th century
Rio de Janeiro (1800-1831)
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Refletindo sobre lobbies alimentares e outras ações corporativas:
uma questão de saúde pública
Foi identificada na última década uma mudança no padrão de consumo alimentar da popu-
lação brasileira, com substituição de alimentos menos processados pelos ultraprocessados, que
contêm alta densidade energética, perfil nutricional desfavorável e que estão associados a com-
portamentos alimentares nocivos à saúde. Essa nova forma de classificação, proposta por Carlos
Monteiro e colaboradores em 2010, se baseia no grau e propósito de processamento dos alimentos
e foi pela primeira vez utilizada em uma política pública no Guia Alimentar para a População Brasileira
de 2014. Nasce, assim, forte crítica à grande indústria de alimentos ultraprocessados, com o setor
produtivo se posicionando, desde o momento de formulação do Guia, contrário a esta classificação.
Convergente com este movimento científico-político, diversos autores defendem que, por meio de
mecanismos regulatórios, o Estado precisaria lidar com essas corporações, tanto por sua atuação
em escala global, quanto por sua capacidade de interferir nos ambientes alimentares – cada vez
mais obesogênicos – e, assim, ferir o direito à alimentação adequada e saudável em seu sentido
mais amplo. Uma noção promissora a ser utilizada no enfrentamento dessas questões parece ser
a dos regimes alimentares, que vêm caminhando em estreita relação com a trajetória da noção de
segurança alimentar e nutricional. Desenvolvida por Harriet Friedman e Philip McMichael, essa
abordagem visa estabelecer os elos entre a produção e o consumo alimentar e as formas de acu-
mulação próprias aos diferentes períodos do capitalismo desde o fim do século XIX. Nesse sen-
tido, Renato Maluf e Márcio Reis apontam que o segundo regime alimentar deixou como herança
um maior distanciamento entre a regulação das atividades em nível nacional e a organização
econômica transnacional. Assim, é necessário que novas regras e instituições características de um
novo regime alimentar sejam construídas no contexto atual. O presente estudo visa, então, iden-
tificar e classificar as ações corporativas da indústria de alimentos frente ao Guia Alimentar para a
População Brasileira de acordo com Amy Hillman e Michael Hitt, tendo como possíveis resultados
a caracterização das ações corporativas das indústrias alimentícias em relação ao Guia e a identi-
ficação de potenciais estratégias contrárias a estas, que visem garantir a manutenção da cultura
alimentar do país, respeitando suas características regionais, frente à massificação imposta pelas
dietas baseadas em alimentos ultraprocessados. Como potencial contribuição teórica, tal como
apontado por Elaine de Azevedo, embora altamente relevante, o tema dos lobbies alimentares e
seus impactos à saúde coletiva ainda é pouco pesquisado no Brasil. Assim, torna-se importante
um maior aprofundamento do tema, bem como dos movimentos contrários e de resistência a essa
atuação.
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Palavras-chave: ação corporativa; lobbies alimentares; políticas de alimentação e nutrição; indús-
tria de alimentos.
Keywords: corporate activities; food lobbies; food and nutrition policies; food industry.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 120
Entraves estruturais à segurança alimentar e nutricional a partir da oferta de
alimentos no Brasil
Structural barriers to food and nutrition security from food supply in Brazil
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Palavras-chave: segurança alimentar e nutricional; desenvolvimento econômico;
sistemas agroalimentares.
Keywords: food and nutrition security; economic development; agri-food systems.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 122
Agricultura urbana e Segurança Alimentar e Nutricional:
conceitos, contextos e possíveis intersecções
Vanessa Daufenback 1
Letícia Machado 2
Claudia Maria Bógus 3
Nas últimas décadas, instituições como a FAO [Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura] vêm justificando a prática da agricultura urbana (AU) como uma ati-
vidade fundamental para superação da fome e da miséria. No Brasil foi elaborado um Panorama
sobre Agricultura Urbana e Periurbana, no qual a prática é vinculada com obtenção da Segurança
Alimentar e Nutricional (SAN).
O estudo possui natureza de revisão sistemática, no qual foi utilizada a base de dados Scielo,
devido à sua maior abrangência e interdisciplinaridade de publicações e temas. Optou-se por fazer
uma busca por artigos latino-americanos, pensando no pioneirismo de Cuba nas ações de AU.
Primeiramente, foi feita uma busca utilizando a palavra-chave “agricultura urbana”, através da qual
foram encontrados 156 artigos. No segundo momento, foi realizada outra seleção pensando nos
títulos e nas palavras-chaves disponíveis nos documentos, chegando ao final de 32 artigos. Após o
descarte de artigos que não eram latino-americanos, chegou-se a 26 artigos que faziam correlação,
mesmo que primária entre AU e SAN.
Apenas 5 trabalhos fazem uma relação direta entre SAN e AU, sendo que os demais artigos
apenas exploraram alguma dimensão presente neste conceito. De forma geral, os trabalhos mos-
traram que existe uma multiplicidade nas experiências de AU nos países latino-americanos, com
destaque para o debate da sustentabilidade. Notou-se que ainda não existe uma definição concreta
ao redor do que seja AU; a maioria dos estudos traz definições amplas que vão da produção de ali-
mentos à questão ambiental. Poucos estudos levantam a problemática do agricultor urbano e da
escala de produção enquanto elemento central à promoção da Segurança Alimentar e Nutricional,
apesar de promover o princípio da Soberania Alimentar e Nutricional (troca de sementes, preser-
vação de tradições de plantio). Apesar de representar uma atividade com valor simbólico-afetiva,
de formação de laços comunitários e promoção de saúde, a maioria dos estudos aponta algumas
problemáticas importantes: contaminação do cultivo por metais pesados, dificuldades para atingir
sustentabilidade ambiental, social e econômica, principalmente para agricultores, que acabam por
trabalhar em outros setores; ausência de assistência técnica permanente e de inclusão social dos
agricultores, em sua maioria migrantes vulneráveis de regiões rurais, residindo em áreas de grande
vulnerabilidade. Essa amplitude pode explicar a não formalização de um conceito para agricultura
urbana, que é entendido como um conceito aberto que pode trazer vários significados. Conclui-se
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 123
que poucos estudos analisam a vinculação entre AU e SAN, mesmo no Brasil, onde o direito huma-
no à alimentação adequada é um direito constitucional. Em geral, a agricultura urbana é vinculada
à sustentabilidade ambiental, na criação de cidades mais verdes melhorando a qualidade de vida
de seus habitantes.
Palavras-chave: agricultura urbana; segurança alimentar e nutricional; soberania alimentar e nutri-
cional; direito humano à alimentação adequada.
Keywords: urban agriculture; food and nutrition security; food and nutritional sovereignty; human
right to adequate food.
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Esboço de uma Análise Econômica do Direito à Alimentação Adequada
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Palavras-chave: Análise Econômica do Direito; Direito à Alimentação Adequada; PNSAN.
Keywords: Economy Analysis of Law; Right to Adequate Food; PNSAN.
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Grupo de trabalho 2
MODELOS REGULATÓRIOS
Work group 2
REGULATORY MODELS
Coordenadores/Coordinators:
Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), professor de História Moderna do
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 127
A Lei Seca e a ascensão do controle biopolítico estadunidense
A pulsão pela alteração da consciência alcançada por meio do uso das mais diversas subs-
tâncias, incluindo o álcool, acompanha a humanidade desde seus tempos primordiais e exerceu – e
ainda exerce – um papel central na formação do tecido social e na construção da cultura humana.
Anteriormente, a economia desses usos era regida por valores religiosos e morais. No entanto, a
partir da modernidade, temos como fruto da articulação e expansão do aparato estatal um aumen-
to do controle biopolítico sobre os cidadãos.
A regulação de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos ascendeu apoiada em movimentos
religiosos de temperança dinamizados pelo crescimento de uma classe média que tinha como pre-
ceito a autodisciplina visando à ascensão social; o movimento feminista, que fazia parte do movi-
mento progressista da época; e o interesse de grandes empresários, como John Rockefeller e Henry
Ford, os quais doaram milhões às organizações proibicionistas e eugenistas em busca de uma mão
de obra mais eficiente e um maior controle da vida privada de seus empregados.
É sobre essa temática que me debruço em minha pesquisa de iniciação científica com a finali-
dade de melhor compreender o contexto social e político que propiciou o surgimento de uma medida
regulatória radical como o Vosltead Act, analisar a importância e centralidade do álcool na cultura das
minorias sociais como imigrantes e afro-americanos e suas divergências com os valores protestantes,
explicitar o aumento do poder policial do governo – tanto federal quanto estadual –, além de rastrear
as possíveis continuidades das mudanças ocorridas durante a proibição na sociedade estadunidense.
A metodologia utilizada para alcançar esses objetivos é uma revisão bibliográfica utilizando
uma vasta gama de títulos sobre o tema – sendo sua grande maioria no idioma inglês –, tendo como
obra basilar o livro The War On Alcohol: Prohibition And The Rise of The American State, de Lisa McGirr
(2016). Com isso, pretendo realizar um mapeamento da historiografia já publicada sobre o tema,
além de disponibilizar uma produção científica para os leitores de língua portuguesa, abrindo espa-
ço para novos desdobramentos na área em questão.
Palavras-chave: proibicionismo; Lei Seca; Estados Unidos; Volstead Act.
Keywords: prohibitionism; Prohibition; United States; Volstead Act.
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Avaliação do consumo de bebida alcoólica na dieta habitual de pessoas que vivem
com HIV/AIDS em unidade de referência da cidade Rio de Janeiro
Evaluation of alcohol consumption in the usual diet of people with HIV/Aids in a reference
unit of the city of Rio de Janeiro
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Palavras-chave: HIV; dieta habitual; cerveja; QFCA.
Keywords: HIV; usual diet; beer; QFCA.
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Entre proibição e regulamentação: a via canadense perante a cruzada antialcoolista
Between prohibition and regulation: the Canadian way to the anti-alcohol crusade
O álcool foi um importante elemento dentro da sociedade colonial que viria formar o Cana-
dá desde seus primórdios – seja como valoroso produto dentro da dinâmica do comércio de peles
com os nativos, seja como fonte segura para hidratação – e se fez fortemente presente no Cana-
dá em sua era pré-industrial como um todo, tanto em momentos de lazer como até mesmo nos
ambientes de trabalho, podendo ser consumido sem maiores problemas.
No século XIX, entretanto, em conjunto com a ascensão industrial, essa substância vê cres-
cerem exponencialmente questionamentos acerca de seu uso na Europa e na América do Norte por
conta de um possível uso problemático, abuso por parcela da população que trazia consigo pro-
blemas de ordem pública – como a segurança – bem como de ordem privada – como o bem-estar
das famílias –, onde religião e ciência moveram os movimentos e as sociedades pela temperança
emergentes nesse período, sendo o cunho religioso predominante dos espaços norte-americano e
canadense. O historiador canadense Desmond Morton considerou a luta antialcoólica como a maior
cruzada do século XIX no Canadá.
Num primeiro momento, nas primeiras décadas do século XIX, mostrou-se um movimento
que visava à moderação, à temperança de fato, condenando os destilados e considerando os fer-
mentados higiênicos, aptos a serem consumidos em moderação; a ideia era, por via educacional
e informacional, resolver o problema pela autoindulgência individual. Na década de 1830, porém,
começam a emergir grupos denominados teetotallers que visavam à abstinência total acerca do
consumo alcoólico; com o crescimento desses grupos, começaram a surgir demandas legais para
combater o consumo alcoólico no país, dando origem a medidas como o Scott Act de 1878, o qual
permitiu aos municípios decidirem sobre a proibição alcoólica em seus territórios.
Essa grande disputa ideológica acerca do consumo alcoólico leva, em 1898, à realização de
um plebiscito nacional sobre proibir ou não a venda e consumo alcoólico; a não implementação da
proibição em nível nacional por ele devido à forte oposição franco-católica é um ponto de virada
importante para os movimentos pela temperança, que voltarão suas forças às esferas provinciais a
partir de então, conseguindo sucessivas vitórias pró-proibição nas duas primeiras décadas do século
XX. O Québec, que seria a última província a implementar a proibição, adota via plebiscito realizado
em 1919 um modelo regulatório de estatização da distribuição e venda de bebidas alcoólicas que
serviu de modelo para outras províncias que viriam a adotá-lo nas décadas seguintes.
A presente pesquisa estrutura-se sobre análise crítica de historiografia em língua inglesa
e francesa – sendo Booze: a distilled history (2003) do historiador canadense Craig Heron obra central
nessa análise – amparando-se na teoria do deslocamento do psicólogo canadense Bruce Alexander e
busca trazer uma contribuição em uma temática pouco trabalhada no cenário historiográfico nacional.
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Palavras-chave: antialcoolismo; história das drogas; Canadá; América do Norte.
Keywords: anti-alcoholism; drugs history; Canada; North America.
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Comida, álcool e outras drogas: a boca como local de exercício de poder
Food, alcohol, and other drugs: the mouth as a place of power acting
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Palavras-chave: alimentação; comida; drogas.
Keywords: alimentation; food; drugs.
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O elogio à cachaça: o discurso médico-naval sobre os benefícios
do consumo de aguardente a bordo dos navios da Marinha Brasileira no século XIX
Na segunda metade do século XIX alguns médicos do Corpo de Saúde da Armada brasi-
leira redigiram relatórios a respeito das viagens que haviam participado em navios da Marinha
do Brasil. Além de apresentar a descrição dos aspectos nosológicos das tripulações durante as via-
gens, os cirurgiões da Armada – nome pelo qual os médicos a serviço da Marinha eram chama-
dos – expunham suas convicções médicas a respeito do modo ideal de manutenção da saúde dos
militares diante das variadas adversidades impostas aos homens do mar quando em viagem. Tal
atuação punha em destaque a importância e legitimava o saber médico na instituição, tornan-
do os cirurgiões da Armada mais que sujeitos que se devotavam à cura, pois também possuiriam
em seu repertório o controle dos corpos do pessoal da Marinha com vias à maximização de seu
desempenho a bordo. Dentre os diversos aspectos tratados em tais relatórios-médicos a respeito
de práticas e comportamentos que possibilitariam saúde física e moral aos tripulantes, estava o
consumo de bebidas alcoólicas por parte dos marinheiros, em especial a aguardente. Advogava-se
que o moderado consumo da cachaça pelos homens do mar ante o trabalho exaustivo a que esta-
vam expostos seria salutar, na medida em que sua composição era estimulante e reanimadora,
além de necessária para o organismo em climas mais frios. Não obstante, tal elogio à cachaça não
se tratava de uma ode ao prazer ou à sociabilidade que tal prática poderia proporcionar, mas sim
um discurso que dava ao médico do navio o controle a respeito de tal consumo, o qual prescreveria
a quantidade e o momento em que a “bebida espirituosa” deveria ser usada, de modo a ser útil à
manutenção de corpos sãos, potencializando os benefícios à saúde humana. Tendo por mote teó-
rico as abordagens da normatização dos corpos dos indivíduos e da ascensão do saber médico em
Michel Foucault, tal comunicação discutirá o enfoque dado por cirurgiões da Armada brasileira ao
consumo da aguardente pelos militares da Marinha no século XIX, especificamente nos relatórios
das viagens: às nações banhadas pelo Oceano Pacífico, na Corveta Vital de Oliveira em 1876 pelos
médicos Luiz Agapito da Veiga e Guilherme de Paiva Magalhães Calvet; de circum-navegação, na
Corveta Vital de Oliveira entre 1879 e 1881 pelo médico Galdino Cícero de Magalhães; e às nações
banhadas pelo Oceano Atlântico, no Cruzador Almirante Barroso em 1886 pelo médico Prudêncio
Augusto Suzano Brandão.
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Palavras-chave: aguardente; Marinha; medicina; século XIX.
Keywords: alcohol; Navy; medicine; 19th century.
1 Mestre em Gestão de Alimentos e Bebidas pela Universidade Anhembi Morumbi, bacharel em Gastronomia pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, professora do Instituto Federal Fluminense (IFF-Cabo Frio) e da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (UFRJ).
2 Doutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador do Departamento de
História da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM).
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Aspectos da cultura de consumo de álcool dos grupos escravizados
No século XVIII a ideologia religiosa associava a ingestão de álcool pelos escravizados com a
fonte dos pecados e no século XIX com a origem de males morais. Exemplo desta ideologia aparece
quando, ao descrever as senzalas que observou, o viajante Ribeyrolles refere-se a elas como sendo
“antros, onde reinam às vezes as distrações e prazeres bestiais da embriaguez, em que jamais se
fala do passado, porque é a dor, nem do futuro porque está cerrado”. A senzala então seria o espaço
dominado pelo prazer bestial da embriaguez escrava, por sua vez, momento de negação completa
(“jamais”) do trabalho de memória marcado pelo sofrimento e negação completa do planejamento
do porvir. Ademais, o consumo de álcool parecia apenas acontecer em excesso, como se não houves-
se uso regulado e socialmente aceito entre os grupos escravizados.
Estudando a “macumba paulista”, Roger Bastide encontra relato de que naquele ritual
faziam “‘um feitiço’ diante da imagem de Cristo, ao pé do qual puseram pinga e mandioca”. Câmara
Cascudo informa que a aguardente penetrou o cerimonial religioso e se integrou ao “patrimônio
oblacional africano”. Uma série de outras referências dão notícia da presença do álcool destilado
presente nas experiências religiosas dos grupos escravizados. Nas festividades do cachambu e do
jongo, por exemplo, a pinga é usada para molhar o couro dos tambores e afiná-los na fogueira, não
apenas para ingestão. Por sua vez, ao estudar a vida cotidiana dos escravizados no Rio de Janeiro
do século XIX, Mary Karash acrescentou outras razões do lugar da cachaça entre os africanos e seus
descendentes: baixo preço, gênero básico da dieta, complemento alimentar (carência de alimentos
nutritivos), socialmente aceitável entre os próprios escravizados e provoca embriaguez.
Tomando como horizonte conceitual as noções de gramática profunda (Mintz e Price) e
memória subterrânea (Michael Pollak), pretendo nesta apresentação expor os resultados parciais
do significado do consumo do álcool destilado durante a escravidão brasileira do período imperial,
com destaque para a dimensão religiosa e embriagante da ingestão alcoólica. A proposta é fazer
a crítica desta ideologia racista da embriaguez escrava identificando traços de uma cultura etílica
afro-orientada, forjada no Sudeste escravista e que ainda guarda reminiscências nas práticas con-
temporâneas. Deste modo pretendemos investigar em que medida esta cultura de consumo alcoó-
lico foi elemento de resistência ao cativeiro.
Palavras-chave: drogas; memória; escravidão; resistência.
Keywords: drugs; memory; slavery; resistance.
1 Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo, professor efetivo da Universidade Estadual de Roraima,
pesquisador do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP).
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“A toxicomania que tanto trabalho dá ao médico e ao jurista”:
o discurso moral sobre o uso de entorpecentes nos livros de medicina legal (1932-1964)
“Drug addiction that gives so much work to the doctor and the jurist”:
the moral discourse on the use of narcotics in the forensic medicine books (1932-1964)
Este trabalho parte de um pré-projeto de mestrado, aprovado para o ano de 2020, que
propõe estudar os discursos de médicos-legistas em meados do século XX acerca das substâncias
denominadas “tóxicas”, especificamente aquelas consideradas causadoras do problema da chama-
da “toxicomania”. O que norteia a questão central desta proposta é a percepção de que há um uso
da retórica da moralidade sobre os “tóxicos” e “toxicômanos”. Interessa-nos entender os argumentos
mobilizados para definir tais conceitos e de que maneiras as leis proibicionistas sobre drogas no
país afetaram e foram afetadas pelo discurso médico-científico do período. Assim, atentamo-nos
às relações sociais e de poder que estão imbricadas no saber científico, não obstante a suposição de
que a ciência seria um local neutro de produção.
O termo “toxicomania” adquiriu diferentes significados e conotações ao longo do tempo,
mas, de maneira geral, designa o hábito de uso de tóxicos em níveis elevados, associado ao vício.
Há uma grande diversidade de matérias que poderiam ser enquadradas na categoria “tóxico”, mas
o objeto desta proposta são exclusivamente aquelas substâncias associadas às “toxicomanias”. Até
o momento, nos livros de medicina legal aos quais já tivemos acesso, não encontramos nenhuma
menção à palavra “droga”, denominação muito comum para se designar as substâncias psicoativas
nos dias atuais. Assim, referindo-nos ao período que pretendemos analisar, optamos pelo uso da
palavra “tóxico”, por ser este o termo que majoritariamente aparece nas fontes consultadas, sendo
por vezes substituído pelas palavras “narcótico” e “entorpecente”. Acreditamos que seja pertinen-
te, portanto, problematizar o conceito de “droga”, uma vez que diferentes denominações têm sido
utilizadas ao longo da história para se referir a um conjunto de substâncias muito variadas entre si,
tanto na sua composição química quanto nos usos e aplicações práticas.
Para realizar essa discussão, analisaremos livros de medicina legal – à luz de decretos
oficiais – publicados entre 1932 e 1964, quando foram delineadas algumas das principais leis
brasileiras que serviram de base para decretos futuros sobre entorpecentes. Não pretendemos
reforçar uma visão maniqueísta acerca das ciências médicas, mas buscaremos problematizar um
ideal de objetividade e neutralidade que foi muitas vezes reivindicado por profissionais dessa área.
Inserindo-se no campo da história das ciências, este trabalho procura ainda dialogar com estudos
da história da medicina e da história das ciências da saúde para situar historicamente as discussões
sobre substâncias psicoativas e seus usuários no contexto nacional e internacional. Não obstante
o recente crescimento do tema das drogas dentro das humanidades, trata-se de um objeto que
ainda carece de mais trabalhos historiográficos. Assim, pretendemos contribuir para um campo
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 138
de estudos ainda em crescimento, que tem grande importância no debate atual sobre drogas e as
consequências de seus abusos.
Palavras-chave: toxicomania; drogas; medicina; história das ciências.
Keywords: drug addiction; drugs; medicine; history of science.
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O paradoxo da cerveja nas estratégias da Ambev: do uso glamourizado à proibição
O uso dependente do álcool é um dos principais problemas de saúde pública no Brasil. Entre-
tanto, a cerveja goza de um lugar privilegiado na regulamentação do uso de drogas. Nesse estudo,
analisamos o tour cervejeiro do Centro de Experiência Cervejeira da Bohemia (CECB), localizado na
cidade de Petrópolis, bem como a cartilha sobre o uso do álcool distribuída aos visitantes. A Cerve-
jaria Bohemia foi fundada por colonos alemãs no século XIX, sendo adquiria pela Antarctica, que
mais tarde se associa à Cervejaria Brahma dando origem à Companhia de Bebidas das Américas
(Ambev), uma multinacional de capital internacionalizado que é líder no mercado brasileiro de cer-
vejas. O CECB utiliza estratégias da indústria cultural para a formação do gosto por cervejas especiais
da marca Bohemia, o que problematizamos na perspectiva de Adorno e Horkheimer e da distinção
de Pierre Bourdieu. Na pesquisa de campo não foi identificada qualquer abordagem a respeito do
uso de cerveja enquanto droga, apesar dos inúmeros aparatos interativos que contavam a história e
o modo de produção da bebida. O público visitante tinha perfil familiar, sendo comum a presença de
menores de idade acompanhando os responsáveis em visita ao local. Durante a pesquisa o tour foi
realizado 66 vezes sendo observado que no momento da “degustação” surgia uma partilha entre os
visitantes baseada no interdito etário, que dividia maiores e menores de 18 anos entre os que podiam
e os que não podiam beber. O ritual do brinde é uma expressão de proximidade que no contexto da
comensalidade tende a incluir, mas pode também excluir, como ocorria com os menores de 18 anos
proibidos de experimentar as cervejas servidas, ainda que viessem interagindo com os seus pares
em toda sorte de aparatos ao longo das salas de visitação, se apresentando uma espécie de fim da
brincadeira. Tendo em vista que durante a degustação ficaria em aberta a pergunta – por que os jo-
vens não devem beber? –, foi realizada uma análise da cartilha distribuída no local intitulada Papo em
família: como falar sobre bebidas alcoólicas com menores de 18 anos (Editora Maurício de Sousa). A pesquisa
de cunho qualitativo utilizou como método a análise de conteúdo a partir de dados advindos das
salas de visitação do tour e da cartilha em três etapas: i) pré-análise, ii) exploração do material, iii) tra-
tamento dos resultados, inferência e interpretação. Os resultados apontam a existência de um para-
doxo no qual, por um lado, a Ambev estimula o uso de cerveja glamourizado nas salas de visitação
do CECB e, por outro, adota uma abordagem proibicionista nas ações formais. Esses tensionamentos
giram em torno dos interesses mercadológicos e dos dispositivos médico-legais, como o ECA, bem
como o lugar privilegiado que a cerveja goza na regulamentação de bebidas, retroalimentados pela
política de guerra às drogas.
Palavras-chave: cerveja; dispositivos médico-legais; indústria cultural; educação sobre drogas.
Keywords: beer; medical-legal devices; cultural industry; drug education.
1 Doutor em Educação em Ciências e Saúde, professor de “Café, Bares e Bebidas” do Departamento de Gas-
tronomia do Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Cultura cervejeira: breve história da cerveja artesanal no Brasil
Tatiana Rotolo 1
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esta temática são exíguas e muitas das informações sobre o assunto encontram-se vivas na rede e
na memória dos seus protagonistas.
Palavras-chave: cerveja artesanal; cultura cervejeira; história da cerveja no Brasil.
Keywords: craft beer; brewing culture; history of beer in Brazil.
1 Doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo,
coordenadora do Grupo de Pesquisa em Cultura e História da Alimentação (CHA).
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Grupo de trabalho 3
CIRCUITOS GLOBAIS
Work group 3
GLOBAL CIRCUITS
Coordenadores/Coordinators:
Nicole Bianchini
Rafael Marquese
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor titular do Programa de
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O consumo de arroz em Portugal e a rizicultura americana (1750-1808)
Cereal domesticado em locais tão variados quanto o oeste da África e a Ásia, o arroz, desde
o século VIII, passou a ser produzido em solo europeu. Em Portugal, contudo, quando comparado
a cereais consumidos e produzidos de modo usual, como o trigo, o arroz levou um longo tempo
para ocupar um espaço decisivo nos hábitos alimentares da população. No século XVIII, o cereal
já havia angariado relevante espaço nas mesas portuguesas das mais variadas condições. Seu
principal emprego se manteve, todavia, substitutivo. Ou seja, a importação de arroz tomava força,
normalmente, quando havia carestia de grãos consumidos de forma habitual (sobre o assunto,
ver as obras de Judith Carney, O arroz africano na história do Novo Mundo, de 2017, pp. 183-185; Peter
Coclanis, Distant Thunder: the creation of a world market in rice and the transformation it wrought, de
1993, pp. 1052-1054; Nuno Ferreira, A alimentação portuguesa na idade medieval, de 2008, p. 106; Carlos
Veloso, A alimentação em Portugal no século XVIII nos relatos dos viajantes estrangeiros, de 1992, pp.
29-103; Kenneth Morgan, The organization of the colonial American rice trade, de 1995, p. 436).
Uma relevante parcela da demanda portuguesa, antes e durante parte do período conside-
rado na pesquisa, foi atendida, por um lado, pelo arroz produzido na Península Itálica. Por outro,
havia remessas de arroz produzido, por exemplo, na colônia britânica da Carolina do Sul a partir do
século XVII (sobre o assunto, ver as obras de Judith Carney, O arroz africano na história do Novo Mundo,
de 2017, pp. 185-188; e Dauril Alden, Manoel Luís Vieira: an entrepreneur in Rio de Janeiro during Brazil’s
eighteenth century agricultural renaissance, de 1959, p. 534).
Todavia, a partir de meados dos setecentos, ao proporem reformas na administração
imperial, intelectuais e agentes governativos portugueses tiveram como um de seus objetivos a
substituição de importações que pesavam sobre a balança comercial. O arroz, nesse contexto, não
foi negligenciado. Essa transformação, não analisada com vagar pela historiografia, é o foco da pes-
quisa de mestrado em andamento, que cobre um período que se estende de 1750, com o início das
reformas ilustradas portuguesas, até o ano de 1808 (ver Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do
Antigo Sistema Colonial, 1777-1808, 2011, pp. 213-298).
Para avaliar tal mudança, a pesquisa analisará os discursos econômicos, surgidos nas refor-
mas em Portugal, que tiveram como um de seus alvos a diversificação da produção agrícola imperial
(incluindo o arroz). Sendo assim, escritos de intelectuais luso-americanos e de agentes governativos
do império serão essenciais na pesquisa. Ademais, com o fim de avaliar a adequação entre os planos
e a realidade agrícola na América portuguesa, as correspondências trocadas entre as autoridades
imperiais, que versaram sobre os problemas da agricultura americana, serão centrais na análise (ver
Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, 1777-1808, 2011, pp. 213-298).
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Palavras-chave: arroz; diversificação agrícola; mercado mundial; Portugal; século XVIII.
Keywords: rice; agricultural diversification; world market; Portugal; 18th century.
1 Mestrando em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista Fapesp (processo 2019/12541-2).
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 145
Revolução Haitiana e as transformações da economia de plantation:
Saint-Domingue, 1790-1803
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 146
maroons que viviam nas montanhas). Esperamos ao fim que, de maneira geral, possamos lançar
luz para um entendimento renovado da Revolução Haitiana.
Palavras-chave: Revolução Haitiana; plantation; escravidão; café; açúcar.
Keywords: Haitian Revolution; plantation; slavery; coffee; sugar.
1 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista Fapesp, integrante do Laboratório de Estudos
sobre o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi-USP).
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Relação entre representação e hábitos alimentares: alimentos e bebidas como atributos
identitários em imagens da colonização europeia (notas de pesquisa)
Relation between representation and eating habits: food and beverages as identity attributes in
images of European colonization (research notes)
1 Doutor em História e professor de História da América Colonial na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Grãos sacralizados: notas sobre a difusão popular de preparações culinárias do milho a
partir do seu uso simbólico em rituais religiosos
Sacralized grains: notes on the popular spread of corn culinary preparations from their symbolic use
in religious rituals
Marcella Sulis 1
Myriam Melchior 2
Em nossas pesquisas acerca de uma cultura brasileira do milho, notamos algumas dinâmicas
que dizem respeito à assimilação social e aos significados simbólicos do milho no Brasil que ajudam
a descortinar a sua importância como alimento de resistência associado a uma sacralidade pouco
visível à historiografia oficial (ver Gastronomia, Cultura e Memória: por uma cultura brasileira do milho,
organizado por Myriam Melchior, em 2017). Tal seria a difusão do milho em preparações culinárias
no Brasil devida aos povos afrodescendentes que adaptaram o seu uso doméstico e ritualístico,
desde o período colonial (ver A Cultura Alimentar Paulista: uma civilização do milho?, de Rafaela Basso,
de 2014). Este dado parece ser um elemento-chave para compreender a sobrevivência do milho
em preparações culinárias populares, tendo em vista que, durante o período colonial, o milho foi
quase sempre desprezado pelo colonizador. Ademais, a utilização do milho nos rituais afro-indíge-
nas rivalizava com os cultos cristãos onde o trigo era o alimento simbólico máximo, perfazendo o
vínculo metafórico com o corpo sagrado de Cristo (ver o capítulo “Formação e dinâmica das religiões
afro-brasileiras”, de Vagner Gonçalves da Silva, em Religião e Sociedade na América Latina, de 2010).
Embora sejam raras as informações sobre as religiões originais dos povos nativos, sobretudo no
que concerne à utilização de alimentos, é possível comparar algumas práticas ritualísticas atuais
herdeiras das etnias indígenas e afrodescendentes com relatos do período colonial brasileiro. A
partir desta comparação, encontramos algumas características semelhantes presentes nos rituais
religiosos afro-indígenas que apontam para um traço de união importantíssimo à sobrevivência do
milho na alimentação brasileira.
O estudo sobre a sacralidade do milho sinaliza para modos de transmissão de uma cultura
alimentar envolta em embates vinculados às suas representações e potencialidades simbólicas
e mágicas. Para tanto, utilizamos fontes bibliográficas no âmbito da história da alimentação, da
antropologia cultural e da memória social. Também nos apoiamos em algumas investigações de
artistas brasileiros contemporâneos que nos permitiram expandir as reflexões acerca do tema.
Neste sentido, este estudo busca novas formas de se pensar e perceber as tradições alimentares
cujos aspectos memoriais são difusos, rarefeitos ou, por vezes, pouco visíveis na historiografia
gastronômica fundamentada por aspectos ambientais, econômicos ou meramente biológicos nos
quais os alimentos e suas trajetórias são observados. Trata-se também de um estudo acerca dos
significados e usos simbólicos e poéticos dos alimentos na existência humana.
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Palavras-chave: milho; afro-indígenas; sacralidade; arte.
Keywords: corn; Afro-Indians; sacredness; art.
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Açúcares e americanidades: sobre representações sociais do açúcar nas Américas e impactos
nas tradições da doçaria
Sugar and Americanities: about social representations of sugar in the Americas and impacts on
confectionery traditions
Myriam Melchior 1
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Palavras-chave: tradições do açúcar; Américas; colonialidade-modernidade; representações
sociais; resistência.
Keywords: sugar traditions; America; coloniality-modernity; social representations; resistance.
1 Doutora em Memória Social na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), professora do bacharelado
em Gastronomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 152
Café e chá na representação visual europeia, 1640-1790
1 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista CNPq, integrante do Laboratório de Estudos
sobre o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi-USP) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas
e da Alimentação (LEHDA-USP).
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Grupo de trabalho 4
ABASTECIMENTO E COMÉRCIO
Work group 3
Coordenadores/Coordinators:
Rafaela Basso
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, coordenador e professor do curso de
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Contrastes na terra do café: São Paulo entre a publicidade e a crônica nos anos 1920
Contrasts in the coffee land: São Paulo between advertising and chronicles in the 1920s
Este trabalho tem por intenção discutir como determinados locais de sociabilidade, especial-
mente os dedicados ao comer e ao beber, apresentaram alterações significativas na vida urbana. O
que esta pesquisa busca é compreender as formas de sociabilidades modernas, em que o comer fora
de casa, mais que atitude natural que visa à alimentação para suprir necessidades, esteve carregada
de valores simbólicos e distinção social, demonstrando sua face cultural. Articulado à formação do
gosto e à distinção social, verifica-se que os padrões higiênicos e o discurso médico estiveram pre-
sentes em diversas esferas da sociedade: nos lares, nas obras estruturais, nos cuidados com o corpo
e a saúde, mas também nos estabelecimentos comerciais destinados à alimentação. Tais aspectos
apontam para a alimentação como prática de lazer e convívio social, que agitaram a vida urbana da
metrópole em construção, e o que se vê é uma adequação de São Paulo ao chamado mundo civilizado.
Para o desenvolvimento desta pesquisa foram pesquisadas e tabuladas as edições do jornal O Estado
de S. Paulo, entre os anos de 1920 e 1929, compreendendo que a imprensa periódica atuou de forma
pedagógica nessa tentativa de incluir São Paulo no mundo civilizado, mas também exerceu papel de
vigilância das novas práticas urbanas, notadamente a partir da coluna de crônicas intitulada “Coisas da
Cidade”. Foram levantados também os anúncios de casas comerciais destinados ao comer e ao beber:
restaurantes, confeitarias, leiterias, bombonieres, salões de chá. A intenção é perceber, portanto,
as divergências entre o que anunciava a publicidade e o controle da vida social por meio da coluna
de crônicas. Se de um lado anunciava-se uma vida elegante, de outro constatava-se a inexistência à
época, em São Paulo, de algum café de bom nível. O cronista atentava para a sujeira dos ambientes
enquanto a publicidade divulgava o bom gosto. A publicidade exerceu um importante papel na cons-
trução de imaginários sobre a modernidade. Vendendo mais do que produtos, foi por meio dela que
novas formas de sociabilidade foram propagandeadas pelas páginas dos jornais. Entretanto, por mais
que as casas comerciais anunciassem todo seu luxo e requinte, algumas observações não escaparam
do olhar do cronista. O jornalista utilizava suas crônicas como forma de denúncia sobre tudo aquilo
que pudesse representar o atraso e prejudicar o andamento de São Paulo rumo ao progresso. O que
se pôde constatar através da pesquisa foi essa inconsistência entre os anúncios publicitários e o coti-
diano da cidade, narrado pelo colunista do matutino. É senso comum o estabelecimento da década
de 1920 como os anos dourados da modernização no Brasil, tendo a capital paulistana como centro
deste processo. Por meio da pesquisa sobre a alimentação na cidade que se transformava foi possível
perceber os embates em torno de um projeto modernizador.
Palavras-chave: São Paulo; café; sociabilidades; publicidade; crônicas.
Keywords: São Paulo; coffee; sociability; advertising; chronicles.
1 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora colaboradora no Departamento de
História da Universidade do Estado de Santa Catarina.
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Alimentação e escravidão no vale do rio Cauca, Nova Granada,
através dos olhos de romancistas e viajantes (1750-1851)
1 Antropólogo da Universidad Nacional de Colombia, mestrando em História na linha de História Social da Cultura na
Universidade Federal de Minas Gerais.
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Do garfo à pena: uma história da alimentação do Rio Grande do Sul a partir de relatos de
viajantes oitocentistas
From fork to quill: a history of Rio Grande do Sul’s food from reports of 19th century travelers
1 Doutor em História no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bolsista
Capes-PROSUC, professor e coordenador do curso de Gastronomia da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
2 Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professora do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
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A Corte Joanina no Rio de Janeiro:
novos hábitos alimentares expressos na Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1821)
Este trabalho objetiva discutir a emergência de novos hábitos alimentares na capital flumi-
nense, expressos pelos classificados do primeiro impresso brasileiro, a Gazeta do Rio de Janeiro, entre
os anos de 1808-1821. Por meio do método de análise proposto pela pesquisadora Laurence Bardin,
na obra Análise de Conteúdo (1977), buscamos identificar e apontar a emersão de produtos, bens e
serviços nos classificados do impresso que sejam caros ao cotidiano alimentar das elites à época.
Em paralelo a esta análise, contextualizaremos os feitos ligados ao Rei e seu séquito no período de
estada da corte lusa no Brasil, rastreando alguns caminhos relacionados às modificações nas sensi-
bilidades alimentares no período. Assim, ingredientes estrangeiros, louças importadas, produtos a
la europeia, cozinheiros d’além-mar, negras escravizadas treinadas em cozinha e outros enunciados
que se relacionem com a alimentação são parte do arsenal de análise. Outro viés de observação
relaciona-se com a oferta de dados produtos, o custo e os sentidos atribuídos a eles frente à socie-
dade de grosso trato local.
O recorte repousa no período em que a corte lusa esteve no Rio de Janeiro, entre os anos de
1808 e 1821. Tal escolha está ligada diretamente à emergência de novos padrões de convivência, ao
choque entre os padrões que já faziam parte da sociedade aristocrata brasileira e à emergência de
hábitos criados em decorrência deste contato. Assim, conhecer os produtos alimentares anunciados
nos classificados do impresso é possibilitar à História revisitar uma parte do passado e descortinar
mais um possível olhar sobre o período.
O jornal foi fundado, junto à Imprensa Régia, em 13 de maio de 1808. Suas edições eram
publicadas duas vezes por semana, às quartas e aos sábados, contando ainda com edições extraor-
dinárias. Além do cotidiano local, o jornal versava sobre as decisões administrativas reais e o cenário
internacional; nos classificados, tratava da venda, da compra e da oferta de um sem-fim de produ-
tos e serviços, caros ao contexto do período. Este foi um dos vieses que subsidiaram a construção
de um séquito local nos moldes do Antigo Regime à brasileira, para sustentar uma condução que se
configurava e que ganhava novas dinâmicas à época.
Palavras-chave: história da alimentação; alimentação no Brasil Joanino; Gazeta do Rio de Janeiro.
Keywords: food history; eating during Joanine Period in Brazil; Gazeta do Rio de Janeiro.
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Do ideal à concretude: o abastecimento alimentar nos primeiros anos após a criação de
Belo Horizonte
From ideal to concreteness: food supply in the first years after the creation of Belo Horizonte
Para o presente estudo, estabelecemos como abastecimento alimentar todas as ações que
permeiam o ato de comer na cidade. As estruturas cotidianas que viabilizam a comensalidade, ou
a partilha dos alimentos, constituem-se atividades relacionadas à vida material. De acordo com
o historiador Massimo Montanari, os processos que envolvem a alimentação são mais complexos
do que uma necessidade elementar do corpo, sobretudo carregam forte conteúdo social. Esta pes-
quisa busca compreender o abastecimento para além de simples fenômeno biológico ou de uma
atividade econômica. Nosso objetivo é compreender o lugar do abastecimento alimentar em Belo
Horizonte a partir da administração pública. Ou seja, é de nosso interesse examinar os processos
de organização dos serviços que a municipalidade entendeu como responsabilidade pública, e a
alimentação é uma dessas demandas presente na estrutura organizacional da prefeitura desde o
nascimento da nova capital mineira.
Belo Horizonte é uma cidade planejada e não foi criada de forma espontânea, o poder públi-
co municipal sempre esteve presente nos processos de produção, comércio e acesso dos gêneros
alimentícios. A Coleção Relatórios Anuais de Atividades da Prefeitura de Belo Horizonte (1899-2005) e a
legislação aprovada pertinente ao tema são fontes históricas que nos permitem afirmar que a pre-
feitura teve papel importante na definição dos lugares do abastecimento na cidade. A alimentação
revela organizações sociais desde o núcleo mais íntimo e se expande às relações políticas visando a
interesses econômicos que se estabeleceram ao longo da história.
Considerando a República como sistema político vigente no Brasil quando a nova capital
mineira foi criada, nossa análise se apoia na busca pela compreensão do abastecimento alimentar
como bem comum. Entendemos que a regulamentação da produção e do comércio de gêneros
alimentícios, feita pela administração pública, pode ser considerada uma ação em prol da ordem
social. Tal afirmativa carrega muitas nuances e interesses, afinal é imprescindível questionarmos
qual República foi essa e para quem se governava. Para uma reflexão teórica acerca das estruturas
da cidade – econômicas, culturais, políticas etc. –, compreendemos a alimentação como necessi-
dade social inerente à sociedade urbana. Nesse sentido, é pertinente identificar como as ideias
republicanas inspiraram a experiência de organização do espaço urbano para receber os habitantes
da primeira cidade planejada do Brasil moderno. Compreender o contexto histórico de criação da
nova capital mineira auxilia-nos a entender como e porque o poder público municipal controlou
seu abastecimento, sobretudo a partir de quais parâmetros os prefeitos que estiveram à frente do
município realizaram reformas administrativas, as quais estabeleceram diretrizes para as políticas
públicas alimentares.
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Palavras-chave: abastecimento alimentar; Belo Horizonte; política pública.
Keywords: food supply; Belo Horizonte; public policy.
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Virado de feijão: discursos médicos sobre a culinária caipira em São Paulo (1890-1930)
Nos últimos anos, a formação de uma culinária caipira em São Paulo se constituiu em objeto
de reflexão de historiadores, cientistas sociais e gastrônomos interessados na história da alimenta-
ção. No livro A culinária caipira da Paulistânia (2018), os autores Carlos Alberto Dória e Marcelo Côrrea
Bastos observam que a origem deste modo de comer se situa na conjunção de hábitos alimentares
portugueses e indígenas, plasmados na figura do bandeirante e consolidados no amplo território
desbravado e colonizado pelos paulistas do período colonial. Esta culinária caipira teria se modifica-
do somente no final do século XIX, após o advento da República, sob a influência de transformações
socioeconômicas promovidas pela expansão cafeeira e o processo de urbanização deste período.
Nesta apresentação, discutimos como esta tese dialoga com uma tradição intelectual que
remete ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e suas proposições acerca da identidade
paulista, cuja elaboração simbólica se caracterizou por uma construção mítica da figura do caipira
e do bandeirante, na qual a presença e a contribuição dos negros foram escamoteadas do processo
histórico regional. Quanto à desagregação desta culinária caipira na Primeira República, analisamos
a intervenção dos médicos e das instituições paulistas de saúde pública, organizadas no período,
na fiscalização sanitária dos alimentos e na formulação de propostas de reforma dos hábitos ali-
mentares vigentes, como dimensões fundamentais para os projetos de modernização de São Paulo
promovidos pelas elites cafeeiras.
Desse modo, visamos contribuir para o debate historiográfico sobre a formação desta
culinária caipira pelos sertões do país, analisando as condições socioeconômicas do abastecimento
de gêneros alimentícios em São Paulo, nos séculos XVIII e XIX, no qual os negros se engajaram
diretamente na produção e comércio de alimentos, “interagindo nas práticas sociais e nos relacio-
namentos deste universo caipira”, conforme observa Maria Cristina Cortez Wissenbach.
Em relação às transformações nos hábitos alimentares em São Paulo, no início do século XX,
a análise dos discursos das autoridades médicas vinculadas às instituições paulistas de medicina e
de saúde pública aponta para uma crescente suspeita sanitária sobre os gêneros que compõem a
alimentação do caipira – milho, feijão, carne de porco – em um contexto de elaboração de uma ideia
de dieta moderna e saudável, baseada nos conhecimentos das ciências da Higiene.
Concomitantemente, os médicos incentivaram a diversificação na produção agrícola de
alimentos em São Paulo, particularmente de gêneros associados a uma cultura alimentar europeia
como o pão de trigo, o vinho e a carne de vaca, como uma medida para reduzir a dependência da
economia paulista em relação à cultura cafeeira e proporcionar melhores condições sociais para a
adaptação e fixação do imigrante europeu no estado.
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Palavras-chave: culinária caipira; São Paulo; abastecimento de alimentos; saúde pública; História.
Keywords: caipira cuisine; São Paulo; food supply; public health; History.
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Comer e sobreviver em São Luís (MA): o mercado popular de alimentação
Eating and surviving in São Luís (Maranhão): the popular food market
Aborda-se a dinâmica da economia política dos espaços da alimentação dos pobres que, nas
grandes metrópoles desiguais socioterritorialmente, permanece atual e necessária, visto que há,
nessas atividades, uma importante função socioespacial: resistência e abrigo dos trabalhadores e
consumidores das classes populares.
São Luís, capital do Maranhão e núcleo de uma região metropolitana coorporativa e fragmen-
tada (ver Metrópole Corporativa Fragmentada: O Caso de São Paulo, de Milton Santos, de 1990), segue a
tendência de muitas cidades que compõem a rede urbana brasileira, pois evidencia em seu território
uma população com baixos salários e altos gastos com as necessidades básicas de sobrevivência,
justificando a procura por parte de trabalhadores que precisam se alimentar fora de casa, por um
circuito popular de comércio de alimentos, no qual o preço das refeições é, muitas vezes, mais barato.
A pesquisa busca nos restaurantes populares e ambulantes de alimentação do centro da
urbe, uma reflexão acerca do circuito inferior da economia urbana (ver O Espaço Dividido: Os Dois Circuitos
Da Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos, de Milton Santos, de 1978), o qual dinamiza nas cida-
des uma força econômica aos mais pobres, que produzem e sobrevivem desse mercado socialmente
necessário (ver Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário, de Ana Clara
Torres Ribeiro, de 2005).
Signo de uma cidade desigual, o circuito inferior da economia urbana é referido às atividades
em que os capitais são reduzidos e o nível organizacional é realizado segundo ações face a face e
de base normalmente familiar. O mercado socialmente necessário é representativo de uma parcela
da população trabalhadora que, por meio de solidariedades domésticas e redes de sociabilidade,
consegue produzir trabalho e renda como alternativa viável ao mercado hegemônico, constituindo
uma economia solidária.
Abordagens realizadas nos interstícios do tecido urbano de São Luís permitem um olhar
sobre o novo uso que se faz nesses espaços. Criado, mantido, dinamizado e transformado pelos
mais pobres, o centro da cidade abriga as diversas táticas e formas de resistência que essas ati-
vidades econômicas traduzem: a luta diária por uma reprodução do trabalho materializada no
espaço de uma maneira menos desigual, onde o sentido da produção é aquele da possibilidade de
reprodução da vida.
Fundamentais à pesquisa, os trabalhos de campo e entrevistas revelam as particularidades
do lugar e evidenciam os importantes aconteceres solidários (ver A Natureza do Espaço, de Milton
Santos, de 1996) da cidade: redes domésticas e grandes empresas abastecem o comércio popular;
ex-trabalhadores assalariados lutam pelo espaço e pela renda ao movimentarem seus carrinhos
com rede wi-fi gratuita e máquinas de débito e crédito, facilitando a venda na “informalidade” da
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economia; a cooperação, o improviso e a potencialidade criativa imperam nessas trocas comerciais.
As incursões no cotidiano dos trabalhadores e consumidores do comércio popular de alimentos tem
sido uma forte ferramenta para pensar esses novos espaços de abrigo dos agentes produtores da
cidade e, sobretudo, para obter conhecimento das distintas maneiras de sobrevivência dos pobres e
segregados nesta cidade desigual.
Palavras-chave: São Luís; comércio popular de alimentação; circuito inferior da economia urbana;
mercado socialmente necessário.
Keywords: São Luís; popular food trade; lower circuit of the urban economy; socially necessary
market.
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A obtenção de gelo e derivados na província de São Paulo em fins do século XIX
Obtaining ice and derivates in the province of São Paulo in the late 19th century
O presente trabalho tem por finalidade realizar uma pesquisa focada na obtenção, na pro-
dução local e na importação de gelo e alimentos e bebidas dependentes de baixas temperaturas
no âmbito da província de São Paulo no final do século XIX, tendo, como ponto de partida, os
dados obtidos no comércio de alimentos importados encontrados no município de Itu no mesmo
recorte cronológico.
É ao longo do século XIX que começam a se aperfeiçoar os métodos de evaporação com
a utilização de gases como o dióxido de enxofre ou sais como o nitrato de amônia para, com o
auxílio de bombas de ar movidas a vapor, potencializar o processo de produção de gelo artificial
em uma escala que o tornasse uma opção razoavelmente viável em relação ao gelo natural, que à
época era exportado para os trópicos em caixas térmicas com consideráveis perdas em volume ao
longo do trajeto.
Outro eixo de nosso trabalho trata de alimentos e bebidas que necessitam de refrigeração
para serem produzidos ou que necessitam se manter refrigerados para que se conservem em con-
dições de serem consumidos. Destacamos inicialmente o sorvete que, de um alimento circunscrito
a algumas regiões do Hemisfério Norte nos séculos anteriores, passa a estar disponível em algumas
casas de comércio na província de São Paulo no final do século XIX. É desse mesmo período o início
da produção de cerveja de baixa fermentação não só na província de São Paulo como também na
Corte, impulsionada pela possibilidade de se obter refrigeração abaixo de 10º C por períodos pro-
longados graças às máquinas de gelo. Além desses dois produtos, julgamos importante destacar
as mudanças surgidas no comércio de carne, que em finais do XIX passa a poder contar com a
refrigeração para mantê-la em condições de consumo por períodos prolongados, sendo as duas
últimas décadas deste século, inclusive, marcadas pelos primeiros transportes transoceânicos de
carne refrigerada.
Elencamos como fontes para este trabalho anúncios selecionados em periódicos da provín-
cia de São Paulo, dados de tráfego nacional e internacional de mercadorias relacionadas ao nosso
recorte no período abordado, além de trabalhos sobre o comércio de alimentos e bebidas na provín-
cia e sobre coleta e produção de gelo no final do século XIX, levando em conta, inclusive, fontes de
História da Ciência e da Técnica que tratam do tema.
Ainda que poucos trabalhos explorem este tema de forma mais detida, consideramos
que a obtenção de um maior controle sobre a variação de temperatura é base para uma profunda
alteração nas práticas alimentares que, iniciada no final do século XIX, se desenrolará ao longo
do século XX, com a eletrificação e o aperfeiçoamento dos refrigeradores domésticos, sendo este
debate, portanto, fundamental para a compreensão das práticas alimentares contemporâneas em
uma perspectiva histórica.
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Palavras-chave: século XIX; abastecimento; São Paulo; conservação de alimentos; refrigeração.
Keywords: 19th century; supply; São Paulo; food conservation; refrigeration.
1 Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos Históricos das
Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP).
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Eat the street: food consumption in 19th century Rio de Janeiro (1830-1860)
Melina Teubner 1
Female street vendors were a common sight in cities worldwide in the first half of the 19th
century. Fields of history like women’s history have dealt with the role of these street vendors in
European cities. In recent decades, female street vendors have also been studied by a number of
Brazilian scholars, who have shed light on urban slavery, domestic slavery and other forms of
unfree labor. These studies commonly focus on community building among urban slaves and the
formation of a West African diaspora. All around the globe female street vendors were (and still
are) not merely passive victims of marginalization, but capable actors, who created a gendered
niche of economic opportunity, through the capitalization of their cooking and vending skills. The
popularity of female hawkers was closely connected to their being women.
Until now, few studies explore the food stalls in the city of Rio de Janeiro in the first half
of the 19th century as special places of consumption within a global perspective. Street food gave
rise to a working-class consumer culture. This study aims to focus on the social, material and
imaginary aspects of these vending places. What role did they play within the consumer culture
of Rio de Janeiro? What food did they provide? What was the communication between vendors
and customers like? These questions are especially interesting to ask against the background of Rio
de Janeiro’s intensive sociocultural transformation in the years between 1830 and 1860, after the
official prohibition of the transatlantic slave trade.
Places of food consumption such as the Paris-style restaurant (representative of luxury
dining) and taverns (representative of more commonplace, popular restaurants) saw a great
increase in the first half of the 19th century.
Analyzing food stands as places of food consumption offers the possibility to break up the
narrative of the male centered public sphere and show that women especially played a crucial
role in providing 19th century cities with food. Daily newspapers, contemporary descriptions by
foreign visitors and social novels demonstrate in an excellent manner the contemporary discourse
of eating out, the dishes that were served, who consumed these dishes and female vendors in a
global perspective.
The paper argues that eating out was not only a necessity for some, but also a form of
entertainment comparable to professional theater plays. Food stands were places were gender
roles, prejudices against foreign food and sexual honor were negotiated. Since cooking is one of the
most time-consuming types of labor in history the paper combines food history with labor history
and demonstrates public eating as a special form of entertainment.
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Keywords: public eating; gender; entertainment; labor; food supply.
Palavras-chave: alimentação no espaço público; gênero; entretenimento; trabalho; abastecimento
de alimentos.
1 M.A., Post-Doc at the Department of Iberian and Latin American History at the University of Bern, Switzerland, and
PhD in History at University of Cologne, Germany.
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Alimentação em Os Parceiros do Rio Bonito:
mudanças nas práticas alimentares do caipira frente à urbanização
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 169
fundamentais para seu equilíbrio social e ecológico e contribuiu para perda de características
tradicionais da alimentação.
Palavras-chave: alimentação; literatura brasileira; rural.
Keywords: food; Brazilian literature; rural space.
Apoio financeiro: Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.
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Os trânsitos e as influências estrangeiras na alimentação
da cidade de São Paulo (1800-1830)
Transits and foreign influences on eating habits of the city of São Paulo (1800-1830)
Rafaela Basso 1
A cidade de São Paulo vivenciou nas primeiras décadas do século XIX um movimento de
expansão econômica e populacional. Isto fez com que a região se tornasse um entreposto de distri-
buição de mercadorias e estivesse, cada vez mais, vinculada à dinâmica internacional de circulação
de mercadorias e capitais. A disponibilidade de novos estabelecimentos, animada pela multipli-
cação dos serviços urbanos, transformou os espaços da cidade e foi responsável por mudanças na
alimentação da cidade.
À medida que o século XIX avançava, portanto, veremos que parte considerável dos paulista-
nos foi confrontada com novos comportamentos alimentares, que englobaram desde o surgimento
de estabelecimentos onde se podia fazer refeições, como as casas de pastos, até a difusão de novos
gêneros comestíveis e bebidas disponíveis à venda no mercado local para consumo na hora ou para
serem preparados em casa. Isso sem falar nas novas práticas alimentares, cada vez mais associadas
a uma ideia de sociabilidade, observadas intra e extramuros. A proposta da presente comunicação
é destacar as diferentes influências estrangeiras nas transformações dos hábitos alimentares dos
paulistanos nas primeiras décadas dos Oitocentos, através da discussão tanto dos produtos quanto
dos estabelecimentos surgidos no período. Utilizaremos como fontes principais para aprofundar-
mos nossa compreensão sobre as atividades mercantis ligadas à alimentação a documentação da
imprensa periódica.
Palavras-chave: São Paulo; século XIX; influências estrangeiras; casas de pasto.
Keywords: São Paulo; 19th century; foreign influences; “casas de pasto”.
1 Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diretora de Gestão e Preservação de
Documentos e Informação do Arquivo Central da Unicamp.
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Grupo de trabalho 5
Work group 5
Coordenadores/Coordinators:
Cintia Gama
Museu Paulista e de História Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,
vinculado ao projeto temático Fapesp “Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a
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A transformação de alimentos tradicionais em produtos simbólicos:
um estudo de caso com o Queijo Canastra
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Palavras-chave: Queijo Canastra; estudo de caso; valorização; terroir; tradição.
Keywords: Canastra Cheese; case study; valorization; terroir; tradition.
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Notas sobre culinária caipira na obra de Almeida Júnior
Bruno Brito 1
Muitos escritos sobre culinária caipira mencionam uma pequena pintura de 1895 intitulada
Cozinha Caipira, do pintor ituano Almeida Júnior, artista responsável por retratar cenas rurais pau-
listas no último quartel do século XIX. De fato, a detalhada pintura nos fornece uma série de ele-
mentos significativos para compreender tal cultura alimentar, principalmente na forma de objetos
como o pilão, a banqueta, a urupema, o fumeiro, o forno romano, o fogão de poial ou “de rabo”, bem
como a própria arquitetura em taipa de mão. No entanto, o restante das obras da fase regionalista,
realizadas após seu regresso de Paris, nos dão muitas pistas para compreender de que modo estas
populações se relacionavam com o meio rural, com os processos vitais e a própria alimentação.
Além de Cozinha Caipira, neste trabalho irei comentar as seguintes pinturas: Apertando o Lombilho,
Paisagem do Sítio Rio das Pedras, Caipiras Negaceando, Caipira Picando Fumo e O Violeiro.
Em Apertando o Lombilho temos um mastro no centro do terreiro. Vale ressaltar que este
mastro não leva uma bandeira de santo no topo e por isso remete aos antigos mastros pagãos do
hemisfério norte. É possível notar que há frutas espetadas no esteio, aliás, ainda hoje em algumas
localidades do Vale do Paraíba, moradores da zona rural amarram espigas de milho e colocam ovos
em sua base, fazendo do objeto um instrumento de fertilização agrícola, já que, simbolicamente
liga o céu e a terra nos solstícios de inverno.
Já em Paisagem do Sítio Rio das Pedras adentramos o perímetro florestal não muito distante da
casa roceira. Nesta pintura temos no primeiro plano uma espécie de palmito, comum principalmen-
te nos sítios caiçaras do litoral. O pequeno ribeirão ao centro parece operar como uma subdivisão na
propriedade, sendo a margem esquerda mais próxima da casa, justamente pelo fato da presença
da palmeira e também pela cobertura rala do solo, provavelmente desgastada pelo pisoteamento
humano e animal. Em contraposição, na margem direita temos uma árvore de grande porte ao
fundo, que evoca a ideia de “mata virgem”, intocada. Mais atrás há uma espécie de pinguela que
conecta a margem civilizada à margem primitiva. Podemos empregar os termos de Lévi-Strauss a
essa pintura: “o cru e o cozido”, sendo a pequena ponte a representação da passagem do estado
natural para o cultural. A mesma relação ocorre em Cozinha Caipira, como bem observou Daniela
Perutti ao chamar atenção para a galinha na soleira da porta: a ave se encontra justamente no limite
entre a natureza e a civilização, basta adentrar o recinto para ir direto para a panela e se tornar comi-
da, ou seja, um elemento da cultura.
Por meio de uma narrativa espaço-temporal é possível conectar todas as pinturas citadas
anteriormente empregando outros exemplos similares que dizem respeito à ocupação da paisagem
e à alimentação. O trabalho tem como objetivo ampliar o debate da cultura caipira e sua culinária a
partir da obra de Almeida Júnior.
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Palavras-chave: Almeida Júnior; propriedade rural; culinária caipira; arte; antropologia.
Keywords: Almeida Júnior; rural property; caipira cuisine; art; Anthropology.
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Uma análise discursiva sobre a autoria de A Ciência na Cozinha e a Arte de Comer Bem,
de Pellegrino Artusi
A discursive analysis on the authorship of the book Science in the Kitchen and the Art of Eating Well,
by Pellegrino Artusi
A gastronomia é sem dúvidas um dos elos mais fortes de um povo. Nela, identidade e cultura
são expressas através de práticas alimentares. Inscrita na Análise do Discurso francesa, compreendo
tais práticas como discursos. Ao tratar a gastronomia e os discursos sobre por tal perspectiva, abor-
do a face política dessas práticas, as relações de forças que estão implicadas nelas, os conflitos e a
constituição dos sujeitos a partir desses modos e saberes. Assim, ao tomar como objeto de pesquisa
o livro de culinária considerado um dos pilares da construção identitária italiana pós-unificação, o
tomo como uma materialidade significante.
O livro A Ciência na Cozinha e a Arte de Comer Bem foi escrito e publicado por Pellegrino Artusi em
1891 – trinta anos após a unificação – e acrescido e reeditado por vinte anos, graças à relação epistolar man-
tida entre autor e leitores. Enquanto o Estado investia na tentativa de consolidar a Itália como nação,
Artusi, um senhor burguês de 70 anos, diletante, patriota, liberal e anticlerical, chegava aos lares
de muitos desses “novos italianos” quase que sorrateiramente com uma linguagem técnica, clara e
eficaz, mas nem por isso monótona. Com a grande circulação de seu manual prático para as famílias o
autor foi capaz de apresentar a Itália aos italianos através não somente de receitas, mas também de
observações pessoais que ficam entre a etnologia e a picuinha, entre a descrição e a interpretação,
em um movimento complexo de autoria que, ao mesmo tempo em que sistematizava a terminolo-
gia culinária, gerando um efeito de unidade através da língua, salientava as diferenças entre as regi-
ões apontando particularidades dos dialetos e das mentalidades. Seria, então, a primeira tentativa
de reconhecimento nacional, de uma unidade que se construiu a partir das diferenças: a unidade na
dispersão, a alteridade para se constituir como um.
A partir das quinze edições do livro e das correspondências encontradas em Pellegrino Artusi
e la cucina di casa, de Martina Fabretti (2008), analisei a constituição do receituário suspendendo
as evidências simbólicas tanto sobre a figura do autor quanto da obra também conhecida como O
Artusi. A realização do estudo permitiu compreender a particularidade da autoria – a qual categorizo
como autoria bumerangue – e também a descrição de um estilo e de um método discursivo encontra-
dos nas linhas artusianas que asseguraram o sucesso editorial naquele momento aos dias de hoje.
Palavras-chave: análise do discurso; culinária; autoria; Pellegrino Artusi; Itália.
Keywords: discourse analysis; culinary; authorship; Pellegrino Artusi; Italy.
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Possibilidades de estudo da alimentação egípcia antiga
Cintia Gama 1
1 Pós-doutoranda pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora da École Pratique
des Hautes Études, coordenadora do curso de gastronomia do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas
Unidas (FMU).
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“A arte culinária na Bahia”: obra de Manuel Querino
“A arte culinária na Bahia” [The art of cooking in Bahia]: a work by Manuel Querino
Claude G. Papavero 1
A presente comunicação visa delinear o contexto sociocultural que deu origem ao conjunto
de receitas coligidas por Manuel Querino (1851-1923), publicadas na obra intitulada: A arte culinária
na Bahia (1922). Três décadas após a abolição do sistema escravista e a proclamação da República,
diversos intelectuais brasileiros, empenhados em valorizar os traços específicos do país, procu-
raram distanciar-se da herança portuguesa. Ampliaram o conceito de três raças formadoras da
nação: indígena, portuguesa e africana, acoplado (na visão de autores como Gilberto Freyre) a uma
utópica democracia racial.
Ao apresentar um rol costumeiro de receitas soteropolitanas, Querino, estudioso negro, não
limitou seu escopo à divulgação de criações culinárias locais. Comentários acompanhando o deta-
lhamento dos preparos possibilitam ao leitor inferir o intento que orientou o empreendimento: um
desejo de afirmar e dignificar o aporte cultural da população negra à modelagem de um cardápio
local. Segundo observou Raul Lody (na apresentação de edição recente da obra do autor), Querino
“inaugurou um olhar e um estilo em torno de matriz africana, baseado em suas vivências pessoais
no Recôncavo baiano...”.
Semelhante contribuição suscita indagações. Em que circunstâncias uma culinária de matriz
africana teria surgido na Bahia? Em área rural ou urbana? Nas casas ou nas ruas da cidade (às mãos de
vendedoras ambulantes)? E, por conseguinte, quando foi que essas iguarias saborosas e nutritivas,
de tempero marcante, elaboradas com ingredientes de custo módico e um uso trabalhoso da pedra
de ralar começaram a ser amplamente apreciadas pelo conjunto da população, tornando-se ele-
mento simbólico representativo de uma identidade baiana? Em tempos coloniais? Após a abolição?
Fundamentada na perspectiva da micro-história apresentada por Carlo Ginzburg em Mito,
emblemas e sinais (1986; em versão brasileira, publicado pela Companhia das Letras, 1989), pretendo
delinear uma reflexão etno-histórica sobre os fenômenos envolvidos e apontar aspectos da história
da alimentação baiana que merecem discussão. Comentários rápidos de cronistas, de viajantes ou
de autores do período colonial como o poeta Gregório de Matos Guerra e documentos analisados
por historiadores como Richard Graham, autor da obra Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à
reforma liberal (Salvador, 1780 –1860), servirão de indícios para desvendar as peculiaridades do con-
texto soteropolitano que presidiram à publicação da obra de Manuel Querino.
Palavras-chave: Manuel Querino; culinária na Bahia; alimentação dos escravos; década de 1920.
Keywords: Manuel Querino; culinary in Bahia; slave feeding; 1920s.
1 Doutora em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo.
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Comida como patrimônio: consumo, soberania e identidade na Indicação Geográfica da
Farinha de Bragança, no Pará (2013-2018)
Esta comunicação tem por objetivo apresentar resultados de uma pesquisa em curso sobre o
processo de Indicação Geográfica (IG) e certificação como produto artesanal da farinha de mandioca
produzida na região bragantina, situada no nordeste do estado do Pará, parte da Amazônia brasilei-
ra. Através de pesquisas com fontes arquivísticas e trabalho de campo com agricultores familiares
e gestores públicos localizados nas cidades de Augusto Corrêa, Tracuateua e Bragança, o trabalho
dimensiona aspectos dos debates sobre o selo de certificação da farinha bragantina. Analisamos as
concepções de “farinha boa” para a ciência e para as populações tradicionais da região (sobretudo
indígenas, quilombolas e ribeirinhas), observando o discurso construído pelos entes públicos que
acompanham o processo, onde a pureza do produto é questionada pela meritocracia acadêmica
das comunidades científicas. Debatemos ainda à luz da teoria antropológica e da historiografia,
tendo Néstor Canclini e Pierre Bourdieu como referências, de que maneira a sociedade capitalista
ocidental demanda uma fuga da padronização das escolhas, empreendendo uma distinção simbó-
lica. Ou seja, o consumo tem também dimensões políticas e cidadãs, os desejos viram demandas
em atos que são socialmente regulados. Para efeito do nosso estudo, o produto com IG certifica a
procedência e o “bom gosto”, o que justifica a sua aceitação especialmente nos núcleos urbanos,
afastando a associação histórica entre o ato de comer farinha e a condição de pobreza e miséria.
É possível observar que o processo de IG e a posterior criação de um selo higiênico para farinha
bragantina representam complexas medidas de transferência de um produto tradicional, do patri-
mônio alimentar de populações amazônidas, para o status de capital simbólico. Dessa maneira, o
processo de IG está inserido em regras de mercado e consumo externas e alheias aos anseios das
comunidades produtoras de um item da cultura alimentar amazônida que configura identidade e
pertencimento.
Palavras-chave: farinha; Bragança (Pará); patrimônio cultural.
Keywords: flour; Bragança (Pará); cultural heritage.
1 Doutor em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz, professor adjunto
do Campus Universitário de Bragança/Universidade Federal do Pará.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 180
O consumo como experiência:
de vestimentas e alimentos a luxo e gastronomia (séculos XIX-XXI)
Consumption as experience:
from clothing and food to luxury and gastronomy (19th-21st centuries)
Giulia Falcone 1
A moda de luxo e a gastronomia não foram invenções do século XIX. Vestimentas suntuosas
e alimentos refinados eram habitualmente consumidos pelas cortes aristocráticas nos séculos XVII
e XVIII. A grande diferença introduzida pelo século XIX, portanto, foi o banimento da restrição do
consumo desses bens à classe aristocrática.
A possibilidade do acesso ao luxo e à gastronomia implica na necessidade do estabeleci-
mento de novos critérios que garantam sua exclusividade à nova classe dominante. Esse preceito é
traduzido em preços mais elevados, o que certifica não apenas a manutenção da restrição do consu-
mo do luxo e da gastronomia à burguesia, como reforça a distinção da produção sofisticada desses
bens ao modo de produção industrial em crescimento.
Entretanto, no século XX, especialmente a partir dos anos 1950, o desenvolvimento dos
meios de reprodutibilidade técnica promove a massificação na produção de bens de luxo e artigos
gastronômicos, equiparando-se cada vez mais à produção daquilo que é considerado banal. A partir
de então, se a forma como são produzidos não demarca mais a diferenciação entre o simples e o
refinado, é necessário que novas formas de consumo o façam.
Deste modo, a experiência do consumo assume uma posição de especial relevância, inclusi-
ve em comparação à forma de produção. Assim, não é mais a experiência da produção que confere
ao bem de luxo ou ao artigo gastronômico a qualidade de exclusivo, mas a forma como são consu-
midos que garante a reprodução da sensação de exclusividade.
Este trabalho pretende discutir como se manifestam essas experiências de consumo do luxo
e da gastronomia no século XXI. Será dada especial atenção às expressões que combinam a moda
de luxo e a gastronomia a uma experiência estética, na qual se busca a desvinculação da reproduti-
bilidade técnica através da compreensão do consumo como um momento supra-histórico, em que
é privilegiada a experiência sensorial do “aqui e agora”.
Palavras-chave: luxo; gastronomia; moda; experiência.
Keywords: luxury; gastronomy; fashion; experience.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 181
Between health and pleasure: the culinary recipes of the Kitāb al-ṭabīẖ
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Os doces de Pelotas: a confeitaria dos imigrantes na região Sul do Brasil
A cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, é conhecida por sua cultura doceira. Essa tradição
foi construída historicamente, remetendo-nos à influência gastronômica dos imigrantes europeus
que chegaram à região e promoveram o desenvolvimento da identidade cultural da confeitaria
local. A riqueza étnica local, juntamente com o declínio da produção de charque, principal atividade
econômica da região até o início do século XX, possibilitou o início da produção doceira característi-
ca de Pelotas, transformando a cidade em referência na confeitaria nacional.
O presente trabalho tem como objetivo apresentar um estudo realizado a partir de pesquisa
bibliográfica, sobre o contexto histórico que levou a cidade de Pelotas a se tornar um marco na con-
feitaria nacional, destacando as referências, os principais ingredientes e as influências da cultura
doceira dos imigrantes no desenvolvimento de receitas típicas da região. Espera-se, com o desen-
volvimento da pesquisa, contribuir para o estudo das origens da confeitaria brasileira através de
aprofundamento em aspectos relacionados às transformações que permeiam a confeitaria clássica
e atual. Trabalho apresentado como requisito parcial para obtenção dos créditos na disciplina de
confeitaria ministrada pela professora e orientadora Paola Biselli F. Scheliga.
Ao longo da pesquisa bibliográfica realizada, foi possível adquirir e aprofundar conheci-
mentos sobre receitas específicas de doces denominados “de Pelotas” e produzidos na região. A
diversidade de tipos de produções e ingredientes utilizados é enorme, porém, foi possível verificar
as influências dos imigrantes na composição através dos ovos, do açúcar e de especiarias, como a
canela, por exemplo. Para representar as receitas da tradição doceira da região, foram seleciona-
das três receitas típicas: ambrosia, arroz de leite e papo-de-anjo. No desenvolvimento de estudo
sobre as fichas técnicas a partir dessas receitas, verificou-se que é notória, tanto na composição dos
ingredientes como no modo de fazer, a importância de ingredientes como ovo e especiarias para o
resultado e sabor final do preparo.
O sucesso dos chamados doces de Pelotas parece ser resultado de receitas que aliam o gosto
por sobremesas com menos açúcar e adaptações aos ingredientes locais. Outro aspecto que influen-
ciou na manutenção dessa tradição doceira está relacionado à transmissão de receitas pelas famílias
imigrantes, que perpetuaram a cultura europeia de consumo de doces e sobremesas. O resultado
desses fatores, que levaram à continuidade da confeitaria dos imigrantes adaptadas à cultura
gastronômica local, gerou contribuição para a confeitaria da região Sul do Brasil, sendo de grande
importância para o curso de confeitaria adquirir e aprofundar os conhecimentos sobre o tema.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 183
Palavras-chave: confeitaria; doces; Pelotas; imigrantes; gastronomia.
Keywords: confectionery; sweets; Pelotas; immigrants; gastronomy.
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A cozinha caipira na obra de Cornélio Pires: cultura e sabor
1 Doutora em História pela Universidade de São Paulo, livre-docente pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, professora titular do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisadora
produtividade em pesquisa do CNPq 1A.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 185
A cultura material das práticas de beberagem quilombola e suas contribuições
para a cerâmica afro-indígena
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 186
Palavras-chave: educação; beberagem; cerâmica; quilombolas.
Keywords: education; drinking; pottery; quilombolas.
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A doçaria paulista no início do século XX
1 Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, docente e pesquisadora
no curso de Gastronomia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 188
Civilidade, distinção e identidade nacional nas páginas do Cozinheiro Imperial (1840)
Civility, distinction, and national identity in the pages of the cookbook Cozinheiro Imperial (1840)
1 Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora vinculada ao Programa de
História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 189
Vive la France: as influências no cenário cultural e social de São Paulo no início do século XX
Vive la France: influences on the cultural and social scene of São Paulo in the early 20th century
As primeiras décadas do século XX, no Brasil, foram marcadas por uma grande aceitação das
elites às influências culturais provenientes das capitais europeias. As cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro passaram por um extenso processo de reforma urbana, assim como o barão Georges-Eugène
Haussmann havia promovido em Paris. Na cena social destas capitais, surgiram os chamados salões,
ambientes frequentados por intelectuais, poetas, artistas e pela alta sociedade, nos mesmos moldes
adotados pela burguesia parisiense. Nestes ambientes realizavam-se serões literários, palestras e
exposições e eram servidos banquetes com pratos de nomes franceses, que seguiam as regras de boas
maneiras e etiqueta nascidas nas sociedades de corte da França.
O presente estudo busca apresentar o processo de urbanização da cidade de São Paulo e o
cenário social e cultural da elite daquele período e também compreender de que forma aquele grupo
via a necessidade de se distanciar do estilo de vida provinciano e romper com os costumes da socie-
dade imperial para considerar-se civilizado.
O grande esforço da elite brasileira para se afastar de seu passado colonial e se aproximar dos
padrões franceses pode ser, de certo modo, elucidado pelo raciocínio de Stuart Hall de que a identi-
dade é algo sempre em processo, em constante modificação. Assim, na contramão do que havia sido
visto durante o Romantismo, período em que nossos autores expressavam forte nacionalismo e certa
ânsia de criar um estilo autêntico que valorizasse as tradições do país, nos primeiros anos do século
XX prevalece a vitória do cosmopolitismo francês e adotam-se o mobiliário, as roupas e o modo de
vida parisienses.
Nos encontros da alta sociedade paulistana nos salões do senador José de Freitas Valle, os
convivas falavam francês sobre poesia, literatura e artes, o que, conforme Norbert Elias, demonstra o
anseio de usar da língua como forma de definir o seu caráter nacional. Ademais, naqueles ambientes
predominavam a etiqueta e o refinamento à mesa franceses que, segundo Pierre Bourdieu, são instru-
mentos de diferenciação social e evidenciam que a cultura que une é também a cultura que separa.
A partir do trabalho dos autores mencionados e também dos arquivos de periódicos em
circulação desde aquela época, como O Estado de S. Paulo, A Cigarra e A Lua, esta pesquisa analisará
os fatores que são relevantes na formação de uma identidade nacional e como o “desejo de ser brasi-
leiro”, que imperou no Brasil durante o período do Romantismo, afastou-se de qualquer elemento da
cultura popular e transformou-se em “desejo de ser estrangeiro”.
Palavras-chave: São Paulo; século XX; identidade nacional; pós-colonialismo.
Keywords: São Paulo; 20th century; national identity; post-colonialism.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 190
Repertório Histórico Ilustrado de Equipamentos e Ferramentas de Cozinha:
uma discussão metodológica
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 191
objetos. É neste sentido que o fogão se apresenta não só como parte atuante na definição de práticas
e configurações sociais no espaço doméstico, mas também como produto e produtor da sociedade.
Palavras-chave: cultura material; museus; alimentação; espaço doméstico; cozinha.
Keywords: material culture; museums; food; domestic space; kitchen.
1 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora do Museu Paulista da USP.
2 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo.
3 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista CNPq.
4 Doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo.
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Grupo de trabalho 6
IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES
Work group 6
Coordenadores/Coordinators:
Joana Pellerano
Universidade Anhembi Morumbi e uma das fundadoras e responsáveis pelo portal Comida na Cabeça
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 193
Nossa culinária, nosso patrimônio:
narrativas e registros de estudantes de Gastronomia sobre comida e memória social
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 194
assumindo a condição de dispositivos de salvaguarda do patrimônio intangível e das narrativas de
memória social e identidade.
Palavras-chave: História da Alimentação – estudo e ensino; memória social; patrimônio cultural
imaterial; experiências de formação; recursos audiovisuais.
Keywords: food history – study and teaching; social memory; intangible cultural heritage; training
experiences; audiovisual resources.
1 Mestranda em Educação na Universidade de Santa Cruz do Sul, bolsista Capes/Prosuc Modalidade II.
2 Doutor em História, professor titular na Universidade de Santa Cruz do Sul.
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Para ser feliz é só começar? Um estudo sobre o uso da felicidade
em uma campanha publicitária voltada para a venda de alimentos
To be happy one just needs to start being? A study on the use of happiness
in a food advertising campaign
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 196
Palavras-chave: felicidade; publicidade; identidade; alimentação e nutrição.
Keywords: happiness; advertising; identity; food and nutrition.
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O migrante nordestino e a cena gastronômica do Bairro do Bixiga (São Paulo/SP)
The Northeastern migrant and the gastronomic scene of Bixiga neighborhood (São Paulo)
A cidade de São Paulo (SP) há muitos anos atrai migrantes, que a consideram um lugar com
capacidade de prover melhores oportunidades. Dos grupos que migraram para São Paulo, os nordes-
tinos merecem uma atenção à parte, tanto por representarem parcela expressiva nessa população
quanto pela contribuição inegável para o desenvolvimento da cidade. Motivados por fatores diversos,
os nordestinos tinham algo em comum: a busca por trabalho e em consequência a melhoria das suas
condições de vida. A partir da década de 1970 um bairro em particular tornou-se destino atrativo para
eles, em virtude da presença de edificações com baixo custo de aluguel e a sua proximidade com o
centro da cidade: o Bixiga. Ocupado inicialmente por ex-escravos, o bairro recebeu significativo con-
tingente de imigrantes, sobretudo os italianos, que acabaram se tornando “símbolo” de representa-
ção do bairro. Esse foco na temática italiana, contudo, acaba ofuscando as demais comunidades que
coexistem no bairro cuja combinação sociocultural o torna um local multiétnico, rico em diversidade,
onde o contato com a alteridade é frequente. Esse trato com a alteridade impacta diretamente a
formação dos processos identitários desses migrantes, que a partir das relações interculturais pas-
sam a encarar suas identidades como múltiplas; a comida, representante das culturas e sociedades,
porta-se como elemento essencial nesse processo. Encontra-se associada ao processo de afirmação
de identidades e adaptação dos migrantes à cidade. Também é tida como um meio de reconectar o
migrante à sua origem, preservando raízes mesmo estando longe, criando um “senso de casa” onde
quer que tenha ido morar. Os migrantes nordestinos possuem forte laço com a comida, e frequente-
mente ela se torna labor; eles são identificados como atores importantes na cena gastronômica de
São Paulo. No Bixiga, hoje representam proprietários de empreendimentos do ramo gastronômico,
chefs, cozinheiros, brigada de salão, dentre outras funções. Os migrantes nordestinos são considera-
dos mão de obra versátil, tidos como bons observadores, sendo hábeis em se relacionar com diferen-
tes cozinhas étnicas, rapidamente se familiarizando com elas e não se limitando apenas à sua cozinha
típica, sendo assim imprescindíveis para a manutenção do status do Bixiga de polo gastronômico da
cidade. Assim, o objetivo geral proposto nesse trabalho é discutir o papel do migrante nordestino na
cena gastronômica do Bixiga. Para tanto foi adotada a etnografia, cujas técnicas de coleta foram a
observação participante, entrevistas abertas semiestruturadas gravadas e transcritas, com a finali-
dade de registrar as experiências vividas pelos indivíduos. Como resultado, foi observado que apesar
de merecerem reconhecimento, os empreendimentos nordestinos possuem baixa expressividade
na cena gastronômica do bairro e a presença nordestina nas cantinas como mão de obra, apesar de
imprescindível, é apagada.
Palavras-chave: nordestinos; identidade; comida nordestina; Bixiga.
Keywords: Northeastern migrants; identity; Northeastern food; Bixiga.
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Características dos produtores artesanais dos festivais gastronômicos da cidade
de São Paulo
1 Doutora em Turismo e Hotelaria na Universidade do Vale do Itajaí, docente e pesquisadora do curso de bacharelado
em Turismo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, campus Cubatão.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 200
Tradições, rituais e memórias alimentares:
formação de identidade bicultural em filhos de imigrantes poloneses no Brasil
Pais imigrantes e filhos nascidos no país de acolhimento têm suas identidades construídas
a partir de universos culturais distintos; no entanto, as referências culturais do país de origem dos
pais, dentre elas, as alimentares, podem constituir elementos importantes na construção dessa
identidade. Este estudo de natureza qualitativa procurou compreender quais elementos da cultura
polonesa e da brasileira foram transmitidos e como influenciaram a construção da identidade bicul-
tural em uma família estabelecida no Brasil. Três filhos, com 57 a 66 anos, representando a segunda
geração, foram entrevistados a partir da perspectiva das escolhas alimentares ao longo do curso
da vida sobre a trajetória migratória de seus pais e as práticas alimentares pessoais e da família. A
partir da análise de conteúdo foram identificados três núcleos temáticos: “Trajetória migratória”;
“Biculturalismo: trajetórias pessoais e redes sociais” e “Tradições e rituais alimentares e a identi-
dade polonesa”. A migração dos pais ocorre no contexto da Segunda Guerra Mundial. Embora os
pais tenham se estabelecido em uma cidade sem diáspora polonesa, os filhos se sentem poloneses
em maior ou menor grau, caracterizando a internalização de duas culturas, ou biculturalismo. Dois
elementos surgem como os principais marcadores da identidade polonesa: o polonês como primei-
ro idioma dos filhos e a alimentação. Apesar da adoção de uma alimentação caracteristicamente
brasileira no cotidiano, a comida polonesa, cercada de rituais, é protagonista nas datas especiais,
principalmente nas festas católicas (Natal e Páscoa), caracterizando tradições étnicas, religiosas
e familiares. A responsabilidade pela preparação da comida polonesa aparece como sendo das
mulheres, assim como a transmissão de receitas. Embora as receitas tenham sofrido inúmeras
modificações quando comparadas às receitas originais, devido à falta de ingredientes, às diferenças
climáticas e às preferências alimentares da família, os rituais que cercam sua preparação e consumo
e a convivialidade se mantêm e é nesses momentos que a identidade polonesa se manifesta. No
entanto, essas “tradições” familiares são mantidas exclusivamente quando os momentos são orga-
nizados pelos pais, se perdendo nos núcleos familiares da segunda geração. Cada filho demonstra
graus e formas diferentes de manutenção dessas “tradições” familiares. Outras referências culturais
específicas do país de acolhimento, assim como das trajetórias pessoais e redes sociais, indicam
que outras experiências agregaram novas práticas alimentares, embora o sentimento de duplo
pertencimento ainda se mantenha na segunda geração. Este estudo traz elementos que ajudam a
entender como a cultura alimentar contribui para a construção identitária e a trajetória alimentar
de indivíduos expostos a diferentes culturas.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 201
Palavras-chave: migração; biculturalismo; identidade; práticas alimentares.
Keywords: migration; biculturalism; identity; eating practices.
1 Nutricionista, pós-doutora na área de Antropologia da Alimentação pela Universitat de Barcelona, professora asso-
ciada da Universidade Federal de São Paulo.
2 Historiador, mestrando do Programa de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.
3 Cientista política, mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano, com especialidade em migração pela
Universidade de Maastricht & UNU-MERIT.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 202
Guia Gastronômico Pernambucano: a construção da identidade cultural
de uma população a partir do modus faciendi das técnicas de culinária pernambucana
A atividade turística pode ser desenvolvida a partir de diversos aspectos culturais, dentre
eles a gastronomia local. A culinária regional é capaz de traduzir a cultura da população. O Brasil tem
potencial de ser recortado e representado através da sua oferta gastronômica. Difundir os aspectos
idiossincráticos do povo brasileiro através da cozinha que o representa torna a experiência turística
ampla e diversa, possibilitando ao turista realidades distintas e peculiares a cada região que visita.
Em termos regionais, a tipicidade culinária do povo brasileiro varia de Norte a Sul. Ao citar o Nordeste,
destaca-se o estado de Pernambuco. Este detém as mais variadas ofertas de ingredientes exóticos
ou típicos a outros lugares, porém o modus faciendi do povo pernambucano torna o resultado gastro-
nômico, deste estado, único. Ao diferenciar-se das conhecidas técnicas da gastronomia clássica, os
resultados são pratos característicos que perpassam todo o estado pernambucano. Tornando-se inte-
ressante atrativo do turismo criativo, que, por conseguinte, caracteriza a prática do turismo susten-
tável, posicionando aspectos culturais da população em questão, como grande protagonista da ati-
vidade turística. No litoral de Pernambuco, destacam-se os peculiares aspectos gastronômicos desta
região, além dos hábitos alimentares da população local. Identifica-se que as praias de Pernambuco
recebem turistas estrangeiros e domésticos, ávidos para vivenciar a cultura local. Este estudo objetiva
identificar as expectativas gastronômicas a partir da visão dos turistas e a maneira como esta oferta
é realizada. Elaborou-se diagnóstico, junto aos ofertantes de alimentação deste local e enquetes jun-
tamente aos turistas. Dentre os principais resultados desta pesquisa, constata-se que o viajante tem
elevado interesse em experimentar a culinária local. Priorizando conhecer o novo através da culinária
local. Destaca-se, controversamente, a existência da limitação da oferta de produtos locais. Constata-
se que tal entrave é devido à inexistência de condições mínimas de higiene nas boas práticas na
manipulação dos alimentos, possibilitando, desta maneira, a preferência, por parte dos turistas, por
redes de fast-food. A conclusão deste trabalho parte do princípio que o litoral pernambucano possui
grande potencial na oferta da culinária típica e local – por toda sua característica diferenciada nas
matérias-primas e/ou maneira de preparo dos alimentos; o turista demonstra interesse em vivenciar
a gastronomia local; porém, esta oportunidade tem sido limitada devido às condições de higiene,
referentes à boa prática na manipulação dos alimentos, por parte dos gestores dos restaurantes.
Palavras-chave: culinária regional; turismo sustentável; alimento seguro.
Keywords: regional cuisine; sustainable tourism; safe food.
1 Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, professora de Hotelaria do Instituto Federal de Pernambuco, campus
Cabo de Santo Agostinho.
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Representações sociais sobre o consumo de açúcar no dia a dia
À medida em que somos levados a refletir sobre algum de nossos hábitos alimentares é onde
percebemos tê-lo. O consumo de açúcar está presente no cotidiano e enraizado nos hábitos alimen-
tares dentro de um contexto urbano, seja pela facilidade de encontrar produtos industrializados,
seja pelo hábito social das bebidas açucaradas ou somente pelo gosto. De acordo com o artigo de
Levy e colaboradores sobre a disponibilidade de “açúcares de adição” no Brasil, existem dois tipos de
açúcares: aqueles encontrados naturalmente nos alimentos, como a frutose e a sacarose presentes
nas frutas e a lactose presente no leite, e aqueles extraídos de alimentos (cana-de-açúcar, beterraba
e milho) para uso posterior em preparações culinárias ou na elaboração de alimentos processados.
Para compreender melhor como percebemos o consumo de açúcar no dia a dia, foram rea-
lizadas dez entrevistas com indivíduos de classe média que vivem em cidades da Grande São Paulo
e sempre viveram em São Paulo, sendo três mulheres e sete homens. Cinco possuíam o segundo
grau completo e cinco o superior completo. A idade variou de 23 a 55 anos. A coleta de dados ocorreu
entre agosto e setembro de 2019 quando os entrevistados responderam à questão que norteou a
pesquisa: “Como é o seu consumo de açúcar no dia a dia?”.
Para a análise dos discursos foi utilizado o conceito de representações sociais de Moscovici
tendo como objetivo compreender como as informações sobre o açúcar são incorporadas pelo indi-
víduo de modo que essas ideias interajam no seu cotidiano em seus costumes e valores, ajudando
a compor sua identidade. Foi também observado como o indivíduo utiliza esses conceitos teóricos
como balizadores de suas práticas alimentares, adotando um discurso ora permissivo ora não para
justificar suas escolhas e hábitos alimentares.
A pesquisa procurou traçar paralelos entre as entrevistas e dados obtidos sobre o consumo de
açúcar do brasileiro de classe média que vive em ambientes urbanos para contextualizar os discursos
e suas realidades.
A associação do consumo de açúcar a doenças como o diabetes foi um ponto bastante citado
quanto à questão de saúde, porém em alguns casos era identificado como fatores causais o pão e
arroz, assumindo a representação que o indivíduo faz do que é o açúcar. Por outro lado, as frutas
continham o açúcar que era “bom” para a saúde. Segundo Laplantine, em a Antropologia da Doença
(1991), temos a tendência de classificar os alimentos em “bons” ou “maus”, e assim fazemos com o
açúcar. O consumo de açúcar do brasileiro é de 16,7% do total de calorias diárias, muito acima do
que a Organização Mundial de Saúde estipula, de 10%. As representações sociais sobre o consumo
de açúcar no dia a dia podem promover algumas reflexões sobre propostas de educação alimentar
tanto na esfera de políticas púbicas de saúde quanto no individual.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 204
Palavras-chave: representações sociais; açúcar; hábitos alimentares.
Keywords: social representations; sugar; eating habits.
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Rede de conhecimento sobre a produção quilombola de alimentos no IFSP Campus
Registro: cultura e tradição alimentar
O Vale do Ribeira está entre as áreas de maior preservação da Mata Atlântica. Neste bioma
habitam 88 comunidades quilombolas que praticam a agricultura de coivara itinerante. Segundo o
Instituto Socioambiental (2017), o sistema agrícola tradicional quilombola (SAT) se define por saberes,
técnicas aplicadas na agricultura de subsistência, na medicina e cultura material. Assim, o SAT norteia
as relações e organizações de trabalho, os contextos sociais de plantio, colheita e consumo dos produ-
tos dentro das comunidades produtores nesse sistema. Com programas como o Programa Nacional
de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) existem melhores con-
dições de manutenção dos meios e modos de vida das comunidades quilombolas, garantindo maior
autonomia e a permanência na terra. Nesta pesquisa, buscamos compreender em que medida os
esforços realizados pelo IFSP sobre esses programas pode ajudar na ampliação do conhecimento des-
sas tradições no âmbito institucional. Este questionamento se deu com o desenvolvimento do projeto
ligado à implantação, em 2018, de uma horta no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de São Paulo (IFSP), campus Registro, intitulado “Quilombos de lá, quilombos de cá: uma vivência na
horta escolar”. Analisamos fontes orais com base no método da história oral: documentos produzidos
para o reconhecimento do SAT como Patrimônio Imaterial Brasileiro, o Dossiê SAT Quilombola do Vale
do Ribeira (2017), bem como o Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira (2013). Estes relatos
são fontes documentais e, portanto, passíveis de interpretação, análise e crítica. Na abordagem teóri-
ca, trabalhamos conceitos de identidades, apresentadas por Anthony Kwame Appiah como complexas
e múltiplas, elas surgem de uma história de respostas mutáveis às forças econômicas, políticas e cul-
turais, quase sempre em oposição a outras identidades; bem como a memória discutida por Michael
Pollak, que, construída socialmente, é formadora do sentimento de identidade, tanto individual como
coletiva. Tomamos para estudo de caso o referido projeto de extensão desenvolvido com quilombolas
de Sapatu, através de seus conhecimentos e da prática da agricultura tradicional dentro do campus;
dois alunos quilombolas foram bolsistas. Como resultado, ocorreu aproximação dos alunos com a
realidade quilombola e dos alunos quilombolas que estudam na instituição; valorizou-se o consumo
de alimentos in natura, sem agrotóxicos; e estimularam-se parcerias nos processos de compras institu-
cionais de alimentos: a banana fornecida pelo PNAE em 2019 para os alunos será de Sapatu.
Palavras-chave: povos tradicionais; quilombos; memória; agricultura; alimentação.
Keywords: traditional communities; quilombos; memory; agriculture; food.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 206
Consumo alimentar e comunicação identitária na convivência intercultural
entre jovens: o caso da Escola Sesc de Ensino Médio
Joana Pellerano 1
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Palavras-chave: alimentação; identidade; consumo; convivência intercultural.
Keywords: food; identity; consumption; intercultural coexistence.
1 Doutora em Comunicação e Práticas de Consumo pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP),
mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Comunicação e Gastronomia pela
Universitat de Vic.
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Nem tudo é concreto: a etnobotânica nas hortas comunitárias do ABC Paulista
Not everything is concrete: the ethnobotany in community food gardens of ABC Paulista
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Palavras-chave: ecologia urbana; etnociências; direitos humanos.
Keywords: urban ecology; ethnosciences; human rights.
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Comer e cozinhar nas feiras do Guará e da Torre de TV
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 211
caráter local, dados os registros de falas, as imagens anexas e a análise das identidades e represen-
tações ali presentes.
Palavras-chave: alimentação; representação; identidade; patrimônio cultural; Brasília.
Keywords: food; representation; identity; cultural heritage; Brasília.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 212
Comidas do sertão – uma leitura da história e da cultura
Julie Cavignac 1
Maria Isabel Dantas 2
Gabriela da Silva Sales Beltrão 3
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 213
imaginário urbano e nacional o lugar da autenticidade e da gastronomia, com a entrada de chefs
que imprimiram refinamentos culinários aos produtos “da terra”. Em paralelo com as mudanças
estruturais recentes da sociedade brasileira, verificamos que os detentores da cultura alimentar do
sertão foram pouco a pouco levados a abandonar seu estilo de vida, e hoje são impossibilitados de
consumir a “comida da terra” e os produtos que até pouco plantavam.
Palavras-chave: tradição culinária; sertão; comida da terra; gourmetização.
Keywords: culinary tradition; hinterland; traditional food; “gourmetization”.
1 Antropóloga, doutora, pesquisadora PQ/CNPq, professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
2 Antropóloga, doutora, professora titular aposentada do Instituto Federal do Rio Grande do Norte.
3 Graduada, chef, gastróloga, professora da Universidade Potiguar.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 214
Vinho de dendê: história, cultura e socioeconomia do vinho de dendê na cidade
de Salvador (BA) até o século XIX
Oil palm wine: history, culture, and socioeconomics of the oil palm wine in the city
of Salvador, Bahia, until the 19th century
O vinho de dendê ou vinho de palma é uma bebida alcoólica fermentada, obtida através da
seiva da palmeira do dendezeiro, a Elaeis guineensis L., planta nativa da costa ocidental da África, uma
das palmeiras mais importantes do continente africano, por possuir diversas formas de utilização,
como a produção de gordura, palmito e azeite de dendê. O vinho é conhecido e produzido em alguns
países do mundo, como na Índia, Malásia, Indonésia, e em diversos países da África, como Guiné-
Bissau, São Tomé e Príncipe, Benin e Angola. A bebida é conhecida por diferentes nomes, como emu,
marafo, malafo, malufú, oguro e mapamá.
A palmeira do dendê chegou ao Brasil por volta do século XVI, com o tráfico de negros escra-
vizados. Por volta do século XVIII, o vinho de dendê já era vendido comumente na cidade de Salvador.
Dados afirmam que atualmente o estado da Bahia possui mais de 800.000 hectares de dendezeiros,
porém a utilização da palmeira do dendê fica por vezes restrita apenas à extração do azeite. Já o vinho
de dendê é um produto muito pouco conhecido pela população da região, mesmo sendo um produto
que faz parte da construção da história afro-baiana. Hoje trata-se apenas de produto difundido oral-
mente de geração para geração por alguns poucos conhecedores.
A pesquisa propõe apresentar os aspectos históricos, socioeconômicos e culturais do consu-
mo e da produção do vinho de dendê na cidade de Salvador, na Bahia, até o início do século XIX,
descrevendo o que é o vinho de dendê, relatando os seus métodos de produção, analisando a inserção
do vinho de dendê na cidade de Salvador, revelando os motivos para a estagnação e o fim da sua
produção na capital da Bahia. Visando compreender os fatos e fenômenos, recuperando informações
acerca do vinho de dendê, foi feita uma revisão bibliográfica e documental a partir de matérias já
existentes relacionados ao tema.
Um dos argumentos de grande relevância para o desenvolvimento da pesquisa é a impor-
tância do vinho de dendê como representante identitário da cultura afro-baiana em Salvador, per-
passando seus aspectos sociais e econômicos, já que o mesmo é um produto que percorre parte da
história e do desenvolvimento da cidade. Tem ainda a sua devida importância para a conservação
dos valores religiosos, visto que a bebida tem significado real para as religiões de matrizes africanas,
e, tragicamente, a ocupação de bebidas industrializadas dentro dessas religiões vem provocando o
afastamento das raízes tradicionais identitárias, além de possibilitar a expansão do uso do dendezei-
ro não apenas para a produção do azeite de dendê.
Palavras-chave: bebida; palmeira; seiva; fermentação; dendê.
Keywords: drink; palm tree; sap; fermentation; palm oil.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 215
O Festival Garimpando Sabores e a ressignificação dos saberes e fazeres
culinários de Mendanha
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 216
Palavras-chave: comunidades rurais; conhecimentos tradicionais; cultura alimentar; festival gas-
tronômico; saberes e fazeres culinários.
Keywords: rural communities; traditional knowledge; food culture; gastronomic festival; culinary
knowledge and practices.
1 Mestre em Estudos Rurais pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
2 Doutora em Ciências Sociais: Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 217
Como os Airbnb da comida promovem a cena gastronômica em ambientes domésticos
A proposta deste trabalho é apresentar o resultado da pesquisa feita com pessoas que
recebem em casa para refeições compartilhadas a partir de plataformas de internet que oferecem
experiências gastronômicas.
Da soleira para dentro, a cena gastronômica não ocorre ao acaso porque é um ato de hospi-
talidade que Luiz Octávio de Lima Camargo “ressalta de forma inequívoca como um ritual, com dois
atores e o espaço no qual uma marcação precisa, no sentido teatral da palavra, se desenrola”. Um
jantar compartilhado não é uma atividade corriqueira em que as pessoas apenas se encontram for-
tuitamente, sentam-se ao redor de uma mesa e comem juntas. A cena gastronômica de que trata esse
trabalho é um ritual no qual estão envolvidos protagonistas, coadjuvantes e figurantes atuando em
um cenário cuja indumentária e a comida são elementos cênicos fundamentais e há um roteiro a ser
seguido. Para que a cena transcorra há ensaios e bastidores. A ausência de qualquer desses elemen-
tos indispensáveis leva ao fracasso do espetáculo. Como nos roteiros de teatro, a divisão em atos e
cenas marca os tempos que compõem a peça como um todo e, conforme o texto se vai desenvolvendo,
no decorrer da encenação, misturam-se marcações e improvisos, sem que a plateia sequer perceba.
Atores e expectadores participam do espetáculo, passam por momentos de entrosamento, tensões e
expectativas, vivem emoções que podem levar à gargalhada, ao riso ou às lágrimas e experimentam o
clímax, tendo consigo a certeza de um desfecho em breve, que pode ser trágico ou feliz, dependendo
do gênero que tenham escolhido previamente.
A comensalidade tratada pelo viés do encontro hospitaleiro que ocorre em ambientes
domésticos a partir da comercialização feita por sites de compartilhamento de refeições – os “Airbnb”
da comida” – possibilita a reflexão sobre a comida e os costumes à mesa como sinais distintivos e/ou
identitários de crenças compartilhadas.
A relação entre anfitrião e convidado, representados, respectivamente, por chef-anfitrião e
hóspede-comensal, ganha um novo entendimento. Segundo Pierre Bourdieu, aquilo que é compre-
endido como natural ou aquilo que se aprende como tal é uma interpretação cultural e distintiva dos
indivíduos e seus grupos.
O homem nutre-se também do imaginário e de significados partilhando representações
coletivas, como trata Claude Fischler. À mesa não se compartilham apenas alimentos, mas também
ideias, ideais, entendimentos, desejos, prazeres, ou seja, valores simbólicos.
Palavras-chave: cena gastronômica; comensalidade; hospitalidade; sites de compartilhamento de
refeições.
Keywords: gastronomic scene; commensality; hospitality; meal sharing websites.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 218
Uma proposta de periodização do fast-food “frango frito no balde”
em Belo Horizonte (MG)
Periodization proposal for “fried chicken bucket” fast food in Belo Horizonte, Minas Gerais
Marina Araújo 1
Fábio Tozi 2
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 219
Palavras-chave: flexibilidade tropical; globalização do gosto; fast-food; hábitos alimentares.
Keywords: tropical flexibility; globalization of taste; fast food; eating habits.
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Os desafios dos produtores e comerciantes de orgânicos
no Mercado Kinjo Yamato de São Paulo
Challenges of organic producers and traders at São Paulo’s Kinjo Yamato Market
A agricultura surgiu há mais de dez mil anos, conforme Ernesto Paterniani, em sua obra
Agricultura sustentável nos trópicos (2001). Ela foi uma das ferramentas mais importantes para a
obtenção regular de alimentos e, consequentemente, para o combate à fome. Chegamos à metade
do século XX ainda com problemas de fome no mundo. No período pós-Segunda Guerra Mundial,
a fome se agravou ainda mais e justificou o início do chamado Pacote Tecnológico da Agricultura.
Apesar da melhoria de produtividade, tal modelo tem sido contestado por causar danos ao meio
ambiente e à saúde da população. José Lutzenber em seu artigo “O absurdo da agricultura” (2001) já
alertava para os riscos do uso intensivo de agrotóxicos e da monocultura. A agricultura sustentável
ressurge, então, como uma alternativa capaz de oferecer alimentos saudáveis e com minimização
de impactos ambientais. A engenheira agrônoma Ana Maria Primavese, em seu artigo “Revisão do
conceito de agricultura orgânica: conservação do solo e seu efeito sobre a água” (2003), apresenta
os benefícios e as vantagens de uma agricultura agroecológica. Esta pesquisa propõe a elaboração
de um estudo de caso utilizando a metodologia de pesquisa exploratória, apoiada na pesquisa de
campo realizada no Mercado Municipal paulistano Kinjo Yamato, objetivando entender, perante os
produtores de orgânicos e comerciantes, integrantes do cinturão verde de São Paulo, suas caracte-
rísticas, conexões e principais dificuldades em escoamento e venda de produção. Nesse mercado
encontram-se apenas quatro bancas, mas que estão nessa região há mais de 20 anos e enfrentam
muitas dificuldades desde as alterações na localização, comercialização da produção e até mesmo
incertezas sobre a possibilidade de continuidade em função de processos licitatórios de responsa-
bilidade da Prefeitura Municipal. No Brasil, a defesa de um modelo de agricultora ecológica e sus-
tentável vem sendo feita desde a década de 1970 por pesquisadores como José Lutzenberger e Ana
Maria Primavese, que por sua atuação denunciavam a agricultura baseada no uso de agrotóxicos
que levariam ao esgotamento dos solos, poluição de mananciais hídricos e extinção de animais.
Ainda assim, o consumo de agrotóxicos não para de crescer. Entre 2000 e 2017, o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis apontou que o Brasil aumentou em 135% o
uso de agrotóxicos. A agricultura orgânica é uma alternativa para equilibrar os absurdos da agri-
cultura química. É neste contexto que assume importância conhecer a realidade dos produtores de
orgânicos e contribuir para entender os entraves ao seu desenvolvimento. Nessa pesquisa explora-
tória, procuraremos compreender as dificuldades encontradas pelos produtores na comercializa-
ção de seus produtos no Mercado Kinjo. E assim contribuir para que também a gastronomia seja
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 221
um elemento de apoio a agricultores agroecológicos, visando à sustentabilidade dos produtores e
à saúde da população.
Palavras-chave: produtores orgânicos; agricultura sustentável; pacote tecnológico na agricultura;
cinturão verde.
Keywords: organic producers; sustainable agriculture; technological package in agriculture;
green belt.
1 Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pós-graduando em
Gastronomia – Cozinha Brasileira no Centro Universitário Senac, em São Paulo.
2 Pós-graduando em Gastronomia – Cozinha Brasileira no Centro Universitário Senac, em São Paulo.
3 Pós-graduando em Gastronomia – Cozinha Brasileira no Centro Universitário Senac, em São Paulo.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 222
Feira de Agricultura Familiar e Economia Solidária: espaço de socialização e aprendizado
Family Farming and Solidarity Economy Fair: a socialization and learning space
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 223
Palavras-chave: segurança alimentar e nutricional; economia solidária; circuitos curtos de
comercialização.
Keywords: food and nutrition security; solidarity economy; short marketing circuits.
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A cozinha de herança italiana: memórias, culturas e identidades de um tesouro compartilhado
Silvana Azevedo 1
Cerca de um milhão e meio de italianos chegaram ao Brasil entre 1870 e 1970. Desse total, 70%
permaneceram em São Paulo e influenciaram na fala, nos costumes e na mesa dos paulistanos. Eles
trouxeram um repertório cultural particular e ingredientes até então desconhecidos pela maior parte
da população brasileira. Diante de uma sociedade tão diversa, os imigrantes viram na culinária uma
maneira de preservação da própria identidade. Assim como a língua, a cozinha evidencia uma iden-
tificação cultural, carrega o sentimento de pertencimento de uma comunidade, revela o valor social,
sinaliza a origem e os laços afetivos de quem a consome e traz imbricadas memórias e costumes.
“A cozinha de herança italiana: memórias, cultura e identidade de um tesouro compartilha-
do” parte dos testemunhos de imigrantes italianos que deixaram o país de origem por melhores
oportunidades, sonhos e amores. Os caminhos que os conduziram à cozinha foram diversos. Em
comum, os relatos revelaram a dificuldade de sobrevivência em localidades diferentes da pátria-
-mãe e a importância da culinária como meio de preservação da própria história de vida, língua e
cultura. Como parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, esta comunicação pretende
abordar a comida caseira dos primeiros imigrantes italianos que aqui chegaram, segue pelo con-
ceito de “cozinha da mamma” e criação da expressão “cozinha cantineira”, enquanto espelho de uma
culinária adaptada, criativa e transgressora – se comparada às inspirações clássicas italianas –, mas
carregada de histórias, memórias e emoções que temperam as receitas que resistem aos efeitos do
tempo e refletem a italianidade presente no cardápio brasileiro.
Palavras-chave: memória; identidade; cultura; cozinha de herança; imigração italiana.
Keywords: memory; identity; culture; heritage culture; Italian immigration.
1 Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de Letras Modernas, pelo
programa de pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas, da Universidade de São Paulo.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 225
Entre os saberes e os sabores: análise do livro Receitas de Inhame do Ponto de Cultura Rural
de Barra Alegre
Between knowledge and taste: an analysis of the cookbook Receitas de Inhame [Yam’s Recipes]
from Barra Alegre’s Point of Rural Culture
Este trabalho faz parte de um projeto que foi iniciado pelo Núcleo Interdisciplinar de
Agroecologia (NIA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ) em diálogo com o Ponto
de Cultura Rural de Barra Alegre, localizado no município de Bom Jardim, na região serrana do Rio de
Janeiro, no vilarejo de Santo Antônio, em distrito de Barra Alegre. O projeto incorporou nas suas ativi-
dades grupos organizados da UFRRJ que pesquisam a temática agroecológica; de forma interdiscipli-
nar, foi vivenciada uma série de experiências possibilitando a troca e a construção de conhecimento.
Esta iniciativa foi organizada a partir de um ciclo de vivências periódicas, cujo objetivo foi
construir, a partir da análise da região, do diálogo com a comunidade e do estudo sistemático do
material selecionado pelos grupos, propostas de intervenções colaborativas e dialógicas no Ponto
de Cultura Rural de Bom Jardim e no território. Ao longo de um ano, aproximadamente, foi resga-
tado o histórico de ações implementadas pelo Ponto de Cultura Rural de Barra Alegre, tais como a
realização de rodas de conversa e participação em eventos sociais da região, como também a con-
fecção de obras sobre os costumes, a culinária, o papel das mulheres na agricultura, as festas tradi-
cionais e demais temas da cultura regional (parte considerável das atividades promovidas possui
registro na página: https://www.facebook.com/sobradoculturalrural; acesso em 9 nov. 2019).
Uma das contribuições do Ponto de Cultura Rural de Barra Alegre para a região foi a elabo-
ração do livro Receitas de Inhame (disponível em <https://issuu.com/imagemcidadania/docs/livro_
receitas_web?fbclid=IwAR1EmoO2u4h-VrxM88KFufJlILtz24P5u_hR83AxzmnrDmDdk04vpo6Gd-
fY>, acesso em 9 nov. 2019). Tal obra é fruto de uma percepção da cultura que valoriza as práticas
cotidianas regionais e vê na plantação, colheita e alimentação relações de convivência. O mesmo
foi produzido a partir de um amplo diálogo com a comunidade e relata os diversos usos do inhame
para a culinária local e sua importância cultural para o território.
A pesquisa a ser apresentada no II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação
consiste em uma etnografia (embasada em Clifford Geertz, em “Uma descrição densa: por uma
teoria interpretativa da cultura”) de um livro de receitas que o Ponto de Cultura confeccionou em
parceria com membros da comunidade para entender as conexões que a mesma tem em relação
com o passado e o presente. A comida aparece como uma linguagem que fala de uma memória
familiar como uma memória gastronômica, nos termos de Ellen Woortmann. Partimos da premissa
de que a representação da comida, o ato de comer e o modo de fazer representam um código de
sociabilidade, de distinção de geração, de diferenças entre os gêneros e de contexto político e social.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 226
Como resultado, podemos dizer que a pesquisa tem demonstrado a possibilidade de cons-
trução de uma memória a partir dos costumes alimentares, ou seja, a obra em questão foi impor-
tante para a valorização das culinárias cotidianas e, por conseguinte, colaborou com a retomada da
memória histórica da região, através da relevância do inhame para a rotina cultural da população.
Palavras-chave: história regional; cultura alimentar; memória rural.
Keywords: regional history; food culture; rural memory.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 227
Trinchando o potencial gastronômico: reflexões sobre as fronteiras do comer na
contemporaneidade
Temos pensado sobre as possíveis condições e consequências das relações que a gastronomia tece
com comunidades tradicionais por meio de produtos que carregam “potencial gastronômico”. Nosso recorte
diz respeito à produção e à circulação da Pimenta Baniwa do Tipo Jiquitaia e à execução do Projeto Baunilha
do Cerrado, ambos vinculados ao Instituto ATA, de Alex Atala. A Pimenta Baniwa do Tipo Jiquitaia é um pó
à base de uma mistura de pimentas secas com sal, produzido por mulheres indígenas da etnia Baniwa, na
região amazônica do Alto Rio Negro. Já o Projeto Baunilha do Cerrado é desenvolvido no Sítio Histórico e
Patrimônio Cultural Kalunga, em Cavalcante, Goiás, e prevê a estruturação de uma cadeia para escoar bauni-
lhas nativas a partir do manejo de quilombolas Kalunga.
Os temas do gosto e dos seus processos de construção em contextos distintos impõem-se à nossa aná-
lise, levando-nos a repensar a complexidade do postulado de que “comer é cultura”, afirmado, por exemplo,
por Lívia Barbosa e Massimo Montanari. Se, por um lado, aos gostos praticados pela gastronomia agradam os
usos de alguns produtos provenientes de comunidades tradicionais quando transformados em ingredientes
e experiências estéticas que não estão acessíveis a todas as pessoas, às comunidades tradicionais, por outro
lado, voltam-se os gostos pelo manejo de uma diversidade de espécies que, histórica e simultaneamente,
tem permitido suas existências, conforme lemos em Práticas e saberes de agrobiodiversidade: a contribuição de
povos tradicionais (2018).
Partindo disso, os gostos dos Baniwa pelas pimentas que originam a jiquitaia, assim como os possí-
veis gostos dos Kalunga pelas orquídeas de baunilha, são resultantes de longevos processos de coevolução
entre humanos e plantas. Como nos lembram Anna Tsing, Manuela Carneiro da Cunha e Laure Emperaire,
a organização dos sentidos que envolvem os modos de vida dessas e outras comunidades tradicionais não
se pauta em especismos fundados na própria separação entre natureza e cultura, cara às análises sobre o
comer e a alimentação. A partir do exposto, desdobraremos algumas reflexões acerca da gastronomia e do
comer, tanto do ponto de vista dos fatores sociais de formação do gosto e dos paladares – lendo autores
como Pierre Bourdieu e Carlos Alberto Dória –, quanto dos fatores sociobiológicos do desenvolvimento de
determinadas plantas.
Para pensar os usos e os sentidos variados que essas plantas engendram em contextos diferentes
e distintos, recorreremos ainda a uma revisão bibliográfica de caráter multidisciplinar, que inclui relatos de
viagens, etnografias e trabalhos nas áreas da sociologia, história, biologia e ecologia. Assim, poderemos
apontar, mesmo que de modo preliminar, alguns limites e possibilidades das relações estabelecidas entre a
gastronomia e as comunidades tradicionais, considerando os processos coevolutivos que subjazem as exis-
tências das últimas e, por consequência, de ingredientes com “potencial gastronômico”.
Palavras-chave: gastronomia; gosto; comunidades tradicionais; coevolução.
Keywords: gastronomy; taste; traditional communities; coevolution.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 228
Construção da identidade na sociedade de consumo: uma análise a partir do consumo de
alimentos no Brasil
Identity construction in the consumer society: an analysis from food consumption in Brazil
A formação da identidade social, em uma sociedade de consumo, é cada vez mais submeti-
da pelo processo dinâmico de mercantilização da vida social, que se transpõe na esfera do consumo,
desencadeando novas formas de diferenciação social, que é o propulsor do caráter perpétuo de
renovação do consumo na sociedade contemporânea.
O consumo reflete a diferenciação já existente na sociedade, cria, renova e amplia as desi-
gualdades, de acordo com a capacidade de decodificação e manipulação da linguagem do sistema
de objetos. Dessa forma, a identidade é construída por uma lógica do mercado e também por uma
lógica social do consumo, ambas funcionando em razão da estrutura social desigual, que reforça
as diferenças, criando um círculo que coloca o consumo como central também no processo de acu-
mulação de valor.
Para Jean Baudrillard, nenhum objeto de consumo escapa dessa lógica, principalmente
devido à ideologia das necessidades, fundamental para a reprodução do sistema, uma vez que o
caráter ilimitado das necessidades é o que mantém o processo de acumulação de valor. Ele afirma
em seu clássico livro Sociedade de consumo que: “Não existem limites para as necessidades do homem
enquanto ser social (isto é, enquanto produto de sentido e enquanto relativo aos outros em valor) A
absorção quantitativa de alimentos é limitada, o sistema digestivo é limitado, mas o sistema cultu-
ral da alimentação revela-se como indefinitivo [...]”.
Se aceitarmos essa hipótese, o consumo de alimentos não escapa da lógica da sociedade
de consumo, sendo submetido pela mesma dinâmica. Porém, será que é possível identificar pecu-
liaridades no consumo de alimentos que explicam o seu crescente protagonismo na construção da
identidade social na contemporaneidade?
Além de Baudrillard, dois outros sociólogos franceses fazem parte do nosso referencial
teórico para buscar encontrar essas peculiaridades: Jean-Pierre Poulain e Claude Fischler. Ambos se
caracterizam pela vontade de fundar um território onde a alimentação seja objeto de estudo e não
apenas apêndice de outros fenômenos sociais.
A partir dessa problemática, o trabalho buscará responder/refletir as seguintes questões: a)
Como a desigualdade social se manifesta no Brasil nos padrões de consumo de alimentos industria-
lizados? b) Como a indústria de alimentos no Brasil se baseia na diferenciação social (forte caracte-
rística da sociedade de consumo) para formatar suas estratégias de mercado?
Além da contribuição da reflexão teórica sobre o tema, buscando estabelecer conexões entre
os três autores mencionados, o trabalho buscará responder as duas questões acima elaboradas por
meio dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, tanto sobre o consumo (POF) como
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 229
em relação à pesquisa sobre a indústria (PIA). Além disso, serão coletadas as principais campanhas
publicitárias dos principais oligopólios da indústria de alimentos, para buscar analisar de que forma
a estratégia publicitária engloba os diversos valores sociais da atualidade para agregar valor em
seus produtos.
Palavras-chave: identidade social; consumo de alimentos; sociedade de consumo.
Keywords: social identity; food consumption; consumer society.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 230
O empreendedorismo étnico de refugiados em pequenos negócios de alimentação na
cidade de São Paulo
Refugees ethnic entrepreneurship in small food businesses in the city of São Paulo
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 231
Palavras-chave: hospitalidade; comensalidade; empreendedorismo étnico; refugiados; São Paulo.
Keywords: hospitality; commensality; ethnic entrepreneurship; refugees; São Paulo.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 232
Grupo de trabalho 7
GÊNERO
Work group 7
GENDER
Coordenadores/Coordinators:
Joana Monteleone
Bianca Briguglio
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 233
Educação de meninas para uma alimentação “sadia” no
Centro de Puericultura do Instituto de Educação de São Paulo (1930)
1 Pós-doutoranda pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Departamento de Medicina Preventiva).
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 234
A divisão sexual do trabalho culinário
Bianca Briguglio 1
A comunicação tem como objetivo apresentar um referencial teórico para pensar a divisão
sexual do trabalho nas cozinhas. Para tanto, pretendo discutir o que é a divisão sexual do trabalho,
o que são as relações sociais de sexo e o que eu entendo por gênero, para explicar como eu observei
a divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais na minha pesquisa Cozinha é lugar de mulher?
A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais, realizada no Doutorado em Ciências Sociais da
Universidade Estadual de Campinas.
A divisão sexual do trabalho, mediada por situações historicamente dadas, fundamenta-se
na ideia de antagonismo entre homens e mulheres, assim como relações de exploração-dominação
que estão colocadas na sociedade, principalmente em torno do trabalho.
Os elementos que serão analisados são a) a divisão sexual que se expressa nas cozinhas pro-
fissionais com a separação entre cozinha quente e cozinha fria, e suas diferentes valorações; b) a cria-
ção de um ambiente masculino e masculinizante, hostil para mulheres, que valoriza as características
socialmente associadas ao gênero masculino; c) as dificuldades que as mulheres têm de conciliar
família e trabalho, na medida em que elas continuam sendo responsáveis pelo trabalho doméstico
e de cuidados, o que já foi chamado de “dupla jornada” e que, do ponto de vista prático, cria maiores
dificuldades para as mulheres; finalmente, d) a questão da autoridade na cozinha e a associação do
chef a uma figura masculina.
A metodologia utilizada para escrever esse artigo será o apoio nas bibliografias de Saffioti
e Kergoat e Hirata, em suas teorizações sobre relações sociais de sexo, divisão sexual do trabalho, o
conceito de gênero e o conceito de patriarcado, que utilizo para analisar meus achados de pesquisa e
os elementos das entrevistas que realizei entre 2015 e 2019.
Para além do chamado teto de vidro, as mulheres encontram muito mais obstáculos do que
os homens em construir carreiras e percursos profissionais, até para permanecerem no emprego, em
função de relações de gênero e discriminações pelo fato de serem mulheres. Todavia, não são apenas
as mulheres que são afetadas por tal discriminação: os homens também se veem obrigados a segui-
rem determinados comportamentos que colocam sua saúde em risco, para corresponderem ao papel
social que lhes cabe.
Assim, pretendo oferecer elementos teóricos que subsidiem outras pesquisas, outras obser-
vações das relações sociais de sexo e a imposição de papéis sociais generificados, assim como apoiar
dessa perspectiva outras investigações no campo da alimentação e das relações de gênero.
Palavras-chave: divisão sexual do trabalho; trabalho em cozinhas; gênero; relações sociais de sexo.
Keywords: sexual division of labor; work in kitchens; gender; social relations of sex.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 235
Os anúncios de leite artificial no Rio de Janeiro da Primeira República – maternidade
e alimentação infantil em debate
Artificial milk advertisements in Rio de Janeiro during the First Republic – maternity
and infant feeding in debate
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 236
A hipótese levantada é de que os médicos também foram responsáveis pela difusão do
leite artificial, mesmo que em desacordo com as premissas do parecer acadêmico. A relação entre
medicina e indústria, na certificação de produtos, foi essencial para a transformação do aleitamento
artificial em prática cultural.
Palavras-chaves: infância; alimentação; leite artificial.
Keywords: childhood; food; artificial milk.
1 Doutoranda em História das Ciências e da Saúde pelo Programa de Pós-Graduação da Casa de Oswaldo Cruz.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 237
De Juana Paula Manso a Juana Manuela Gorriti:
cozinha e culinária nos escritos de duas letradas argentinas do século XIX
Juana Paula Manso (1819-1875) e Juana Manuela Gorriti (1816-1892) foram duas letradas
argentinas que, além de publicar em jornais de Buenos Aires e de outras cidades americanas, foram
autoras de relatos de viagens, obras históricas, contos e romances, tendo participado do espaço
público letrado bonaerense de forma ativa durante a segunda metade do século XIX. A partir de
suas atividades, Manso e Gorriti refletiam sobre os temas que mais lhes interessavam: o papel da
mulher na sociedade, a educação e a política eram questões que constantemente faziam parte de
suas preocupações e de suas narrativas.
Segundo estudiosas das letradas, como Graciela Batticuore e Marina L. Guidotti, seus textos
demonstram que o espaço feminino não deveria restringir-se somente ao âmbito doméstico. A
cozinha e a culinária, assim, acabaram fazendo parte de suas reflexões. Nesta comunicação preten-
do compreender como esse lugar e esse fazer foram pensados e representados pelas duas mulhe-
res públicas aqui estudadas em seus escritos. Para isso, serão analisadas fontes históricas como o
Jornal das Senhoras, editado por Juana Paula Manso em 1852, e Cocina Eclética, um livro de receitas
publicado por Juana Manuela Gorriti em 1890. Há que se considerar que Manso escreveu palavras
como as seguintes no Jornal das Senhoras (1852): “La emancipación moral de la mujer es considerada
por la vulgaridad como el apocalipsis del siglo. Los unos corren al diccionario y exclaman: ¡Ya no
hay autoridad paterna! ¡Adiós despotismo marital! ¡Emancipar a la mujer! ¡Cómo! Pues ese trasto
de salón (o de cocina), esa máquina procreativa, ese cero dorado, ese frívolo juguete, esa muñeca
de las modas, ¿será un ser racional?”. No mesmo sentido, segundo Graciela Batticuore em La Mujer
Romántica: Lectoras, Autoras y Escritores en la Argentina (2005), “as heroínas dos relatos de Gorriti
dizem não ao ideal da família e ao lar”, já que, em sua produção literária, o “mundo de fora” e “os
caminhos e a ânsia de sair” é que regiam o universo de expectativas que forjavam o imaginário das
personagens femininas,
Juana Manuela Gorriti, no entanto, acabou por produzir, no fim de sua vida, Cocina Eclética.
Especialmente sobre essa obra, buscarei respostas para as seguintes questões: o que poderia ter
motivado a letrada a produzir uma obra abordando exatamente e estritamente os fazeres culiná-
rios? Por que a escritora pensou ser preciso registrar e publicar um receituário? O que exatamente
contém essa obra? A quem esse escrito era dirigido? O que a sua “culinária de papel” – como Laura
G. Gomes e Lívia Barbosa entendem os materiais impressos relativos às cozinhas e à culinária em
artigo por elas publicado em 2005 – queria expressar, especialmente no que diz respeito à relação
das mulheres com a cozinha (enquanto espaço doméstico) e com a comida nela produzida? Minha
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 238
comunicação, assim, contribuirá para as discussões sobre a história das mulheres, os estudos de
gênero e suas relações com a história da alimentação.
Palavras-chave: Juana Paula Manso; Juana Manuela Gorriti; cozinha; culinária; gênero.
Keywords: Juana Paula Manso; Juana Manuela Gorriti; kitchen; culinary; gender.
1 Doutora em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora colaboradora do Programa de Pós-
Graduação em História e do curso de Graduação Tecnológica em Gastronomia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
e na Especialização em História da Alimentação e Patrimônio Cultural da Universidade de Santa Cruz.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 239
Alimentação, sociabilidades e a atuação feminina nas guerras luso-holandesas (1630-1654)
Esta apresentação tem por objetivo explorar as relações entre as práticas alimentares, sobre-
tudo no que diz respeito às redes de sociabilidade envolvidas neste ato, e as atuações das mulheres
no âmbito das guerras luso-holandesas, entre 1630 e 1654, na região setentrional do Brasil.
Em um primeiro momento, tomando como base os relatos de cronistas do período, buscarei
traçar um panorama das permissões e interdições direcionadas às mulheres luso-brasileiras quanto
às práticas alimentares, especialmente aquelas relacionadas à sociabilidade – como a proibição de
partilhar o momento das refeições com outros homens que não seus maridos.
Tal panorama será contraposto a dois episódios marcantes da atuação das mulheres no con-
texto de guerra, ambos relacionados ao ato alimentar: o convite de jantar direcionado por Maurício
de Nassau às mulheres que se reuniram em seu palácio pedindo a libertação de uma matrona acu-
sada de conspirar contra os holandeses e condenada à morte, dona Jerônima de Almeida; e o jantar
ocorrido na casa da mesma Jerônima, anos depois, no qual supostamente portugueses e holande-
ses teriam conspirado contra o governo holandês. Em ambos os episódios, o momento da refeição
coloca-se como também um momento de encontros, pleitos, disputas políticas e conspirações.
A análise será, por fim, acrescida de outros episódios nos quais o ato de cozinhar ou oferecer
alimentos a aliados ou inimigos revela-se como uma das possibilidades de atuação das mulheres
dentro do cotidiano das guerras luso-holandesas, sobre as quais avento a hipótese de que teriam
aberto novos e diversificados caminhos à iniciativa feminina, não apenas pela mudança brusca da
dinâmica social dos envolvidos na guerra, mas também por colocar em contato pessoas com expe-
riências culturais diversas.
Palavras-chave: sociabilidade; história das mulheres; Brasil holandês; banquetes e jantares.
Keywords: sociability; women’s history; Dutch Brazil; feasts and dinners.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 240
Discutindo gênero e trabalho culinário a partir de experiências de cozinheiras escolares
da cidade de Salvador (BA)
Discussing gender and culinary work from the experiences of school cooks from Salvador, Bahia
Esta comunicação pretende discutir as relações entre trabalho culinário e gênero, pontu-
ando sua intersecção com as categorias raça e classe, a partir de uma pesquisa que buscou com-
preender os sentidos do cozinhar para merendeiras. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas
com nove trabalhadoras, todas mulheres negras, de quatro escolas públicas da cidade de Salvador,
Bahia. É importante destacarmos que o trabalho culinário cotidiano se insere na produção de
valores de uso na esfera doméstica, através do atendimento às necessidades concretas e subjetivas
que constituem comer. Observamos na pesquisa que o espaço doméstico serviu como lócus para a
construção das primeiras experiências das merendeiras com o cozinhar e a figura feminina emer-
giu como portadora e transmissora dos saberes relativos à culinária. Elas destacam que aprender
a cozinhar foi necessário para auxiliar a mãe nos afazeres de casa e para cuidar da família após o
matrimônio, sendo desde então as únicas responsáveis por tal atividade. Outro ponto observado
foi a proximidade entre o trabalho culinário e o emprego doméstico, tornando este integrante da
prestação de serviços em um nicho historicamente generizado e racializado, tendo em vista os
relatos sobre o desenvolvimento dos saberes culinários em “casa de família”. A partir disto, desta-
camos como as atividades realizadas pelas mulheres negras e da classe trabalhadora, dentre elas
o cuidado alimentar, garantem entre outras coisas o sustento e reprodução dos sujeitos, sejam
estes seus entes ou aqueles a quem prestam serviços. Observamos que apesar de relatar o esforço
e desgaste nas atividades que envolvem o trabalho culinário, as merendeiras acabam por aceitar o
ônus de serem direcionadas à exploração nas tarefas que desenvolvem, acreditando que estas são
sua obrigação. Para elas, cozinhar é uma atribuição natural das mulheres, por vezes considerada
um dom. Todavia destacamos que o domínio do trabalho culinário irá possuir como um de seus
aspectos constitutivos as experiências que estas possuem como donas de casa. Nesse sentido, o
cozinhar na escola é visto como um prolongamento das tarefas domésticas, fazendo com que o tra-
balho de merendeira se encontre em uma zona de intersecção entre a esfera pública e privada. Tal
aspecto contribui para a destituição do caráter profissional do seu trabalho fazendo com que este
seja desvalorizado socialmente e condicionado à exploração das mais diversas formas. A partir da
pesquisa, observamos como o desenvolvimento das práticas culinárias na vida das mulheres negras
e trabalhadoras adquire contornos específicos de exploração da força de trabalho, através do seu
direcionamento sob um domínio material e ideológico. Por fim, destacamos a necessidade de estu-
dos que considerem as dimensões raça e classe nas análises sobre o trabalho culinário feminino,
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 241
tendo em vista que tais elementos incidem diretamente nas relações que envolvem a produção da
alimentação e consequentemente do comer.
Palavras-chave: trabalho feminino; interseccionalidade; trabalho culinário; merendeiras.
Keywords: female work; intersectionality; culinary work; school cooks.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 242
Aspectos da divisão sexual do trabalho e o consumo alimentar fora do lar:
os impactos para o trabalho das mulheres
Aspects of the sexual division of labor and food consumption away from home:
impacts on women’s work
Iriana Cadó 1
Luciana de Oliveira Silva 2
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 243
dimensões de como o local da alimentação impacta o trabalho da mulher, tendo como hipótese
que apesar das mudanças de hábitos de consumo alimentar no Brasil, não há uma amenização da
divisão sexual do trabalho e há manutenção da carga de trabalho da mulher no âmbito doméstico
que permeia sua inserção precária no mercado trabalho.
Palavras-chave: divisão sexual do trabalho; consumo alimentar; trabalho.
Keywords: sexual division of labor; food consumption; work.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 244
Uma análise do livro Doceira Brasileira: gênero, açúcar e engenhos
An analysis of the cookbook Doceira Brasileira: gender, sugar, and sugar mills
Joana Monteleone 1
O livro Doceira Brasileira, de Constança Oliva de Lima, teve seu primeiro anúncio de publici-
dade publicado no Jornal do Comércio no sábado, dia 20 de julho de 1850. Foi editado por uma das
maiores editoras do país, a Laemmert, sediada no Rio de Janeiro. A história do livro é fundamental
para se entender as complexas relações econômicas, sociais e de gênero envolvidas no seu feitio
e publicação. A autora que aparece assinando a capa é Constança Oliva de Lima. Mas a autora que
realmente escreveu o volume é Anna Maria das Virgens Pereira Rabello e Gavinho, uma senhora de
engenho da região noroeste do Rio de Janeiro, na cidade de Macaé. Nesta comunicação, explicito
essas complexas relações e a importância do livro para o estudo da História da Alimentação no Brasil.
O estudo dos livros de receita implica em diferentes formas de análise. A primeira, e mais
evidente, é a análise das receitas propriamente ditas: se é um livro específico de doces ou licores,
como as receitas estão divididas, quantas receitas de salgados, quantas de doces, o nível de difi-
culdade das receitas, se as receitas vieram de outros livros publicados antes ou se parecem ter sido
testadas pelos autores ou autoras.
Mas a análise desses livros também implica em se descobrir outras informações sobre os
volumes: qual editora publicou o livro, qual o papel da editora, em que mercado ela se inseria e como
distribuía os livros. A maneira como os autores e as autoras se insere dentro do catálogo da editora
também é fundamental – era um jornalista ou uma dona de casa? O livro seria vendido em livrarias?
Era uma edição caseira ou seria comercializado apenas em eventos de caridade? Esse circuito de
leitura e inserção do livro de receitas é fundamental para se entender como e por quem ele era lido.
O livro faz parte de um conjunto de livros de receitas editados no Brasil do século XIX que
tem ajudado os historiadores interessados em alimentação a se debruçar sobre o período. Já foram
objetos de estudo e de algumas reedições, atualizadas ou não. Dentre os livros de receitas editados
no período, o Doceira Brasileira sugere muitas questões: é o único escrito por uma mulher, ainda que
sob pseudônimo, que também é de uma mulher, ele tem o gênero – feminino – bem explícito no
título, o que nos dá uma ideia para quem ele foi escrito, a relação entre doces, mulheres e regiões
produtoras de açúcar é evidente. Esta comunicação se insere na minha mais recente pesquisa para o
pós-doutorado na Universidade de São Paulo, que é “Açúcar e Industrialização”.
Palavras-chave: açúcar; gênero; livros de receitas; século XIX; Rio de Janeiro.
Keywords: sugar; gender; cookbooks; 19th century; Rio de Janeiro.
1 Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo, pós-doutora pela Universidade Federal de São Paulo.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 245
Manuais técnicos de confeitaria:
apontamentos sobre edições e o mercado editorial carioca (Rio de Janeiro, 1850-1930)
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 246
Nesta comunicação, focaremos na análise das edições, público, receitas e utensílios de espe-
cialmente cinco livros de receitas: Doceiro Nacional, Dicionário do Doceiro Brasileiro, Confeiteiro Popular,
Manual do Distillador e Licorista e Manual de Confeitaria.
Palavras-chave: doçaria; açúcar; edições; consumo.
Keywords: confectionery; sugar; editions; consumption.
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Entre bebidas, panelas e educação: a produção feminina do cauim no Brasil colonial
Between drinks, pots, and education: the female production of “cauim” in Colonial Brazil
1 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora titular do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 248
Práticas culinárias de mulheres residentes em Cruzeiro do Sul, no Acre:
uma abordagem qualitativa e feminista
A culinária doméstica é uma prática social imbricada em um sistema de gênero que (re)
produz ideias de trabalhos diferenciados para homens e mulheres, bem como comportamentos
considerados “adequados” para as pessoas. Este trabalho objetiva descrever e discutir o trabalho
culinário doméstico realizado por mulheres a partir da perspectiva de performatividade de gênero
da filosofa Judith Butler. Trata-se de um estudo qualitativo e feminista. Realizamos entrevistas em
profundidade semiestruturadas com 14 mulheres casadas ou que residem com os cônjuges, com
idade entre 25 a 41 anos e que cozinhavam em domicílio pelo menos 1 vez por dia; e 05 cônjuges com
idade entre 28 a 51 anos. Analisamos os dados com análise de conteúdo, codificamos as entrevistas
com especial atenção para os status atribuídos às mulheres e aos homens no núcleo familiar, às
diferenças e aos jogos de poderes, aos privilégios que permitem às diferentes pessoas exercerem
ou se beneficiarem do poder, às forças e aos processos que emergem dos itens supracitados. Em
nossa pesquisa, as mulheres eram as principais responsáveis por realizar os trabalhos culinários
domésticos, executando-os sozinhas ou compartilhando com outras figuras femininas. Enquanto
seus cônjuges eram praticantes secundários ou terciários da culinária doméstica, realizando essas
atividades apenas na ausência de figuras femininas. Todas as mulheres entrevistadas reconheciam
a culinária doméstica como uma obrigação social e familiar atribuída à “mãe”, à “esposa” e à “dona
de casa”. Elas realizavam diariamente e continuamente uma série de atividades físicas e cognitivas
relacionadas ao trabalho culinário doméstico com intuito de contribuir com a família, cuidar do
marido e das crianças, e evitar reclamações ou crítica dos maridos ou outros membros da família.
Em relação aos cônjuges, eles identificavam que negar que homens e mulheres deveriam realizar
as mesmas atividades domésticas indicaria um pensamento “machista” de sua parte. Contudo, eles
afirmavam que os homens deveriam cozinhar apenas quando: morassem sozinhos, não trabalhas-
sem fora de casa, soubessem cozinhar, tivessem “dom” para culinária, gostassem e/ou tivessem o
interesse em cozinhar. Dentro de tantas condições e restrições socioculturais para a participação
masculina no trabalho culinário doméstico, os maridos e companheiros que realizavam essa ativi-
dade em maior frequência se reconheciam como desviantes de uma norma hegemônica por esta-
rem executando uma atividade considerada feminina. Concluímos que as mulheres e os homens
disputam ativamente poderes, privilégios, controles e autonomia com intuito de implementar
modelos de práticas culinárias que possam performar dentro das suas conjunturas de vidas atuais.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 249
Palavras-chave: mulheres; culinária; papéis de gênero; feminismo; pesquisa qualitativa.
Keywords: women; culinary; gender roles; feminism; qualitative research.
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Alimentação e gênero em Minas Gerais:
um estudo sobre a atuação de LGBTs na cena gastronômica contemporânea
Marco Aurélio Máximo Prado e Frederico Viana Machado, no livro Preconceito contra homos-
sexualidades: a hierarquia da invisibilidade (2008), dissertam sobre as várias hierarquias sociais criadas
ao longo da história humana e como estas são utilizadas para manter certos grupos marginalizados
ou, até mesmo, fora da visão do resto da sociedade. De acordo com o texto, essa “invisibilidade”
legitima a inferiorização dessas pessoas e permite que o status quo se mantenha. Se o patriarcado,
presente na Gastronomia desde sua formalização, é uma dessas hierarquias, preocupadas em man-
ter as mulheres fora do espaço masculino, a heteronormatividade é outra, responsável por manter
as pessoas queer à margem da sociedade.
Tomando como base o machismo na indústria gastronômica e os caráteres cultural e de
gênero pelos quais a gastronomia é analisada, é que se vê necessidade em abordar esses temas do
ponto de vista dos membros do grupo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer e Outrxs
(LGBTQ+). A partir da correlação entre esses dois pontos-chaves, a invisibilidade atribuída ao grupo
LGBTQ+ e o machismo presente no âmbito da gastronomia, perguntamo-nos como as pessoas
LGBTQ+ são vistas nessa indústria, tanto fora quanto dentro da cozinha, e quais seriam as ações
adequadas para combater possíveis problemas.
Resultados e discussões: Para a pesquisa, um questionário foi formulado e distribuído entre
pessoas atuantes no meio da gastronomia. Para realizar a análise de dados obtidos e facilitar a
leitura, xs participantes foram divididxs em dois grupos principais. No primeiro grupo, as pessoas
cisgêneras e heterossexuais, totalizando 42 pessoas. No segundo grupo foram colocadas as pessoas
que se classificaram como LGBTQ+ da Grande Belo Horizonte, totalizando 16 pessoas.
Entre xs participantes queer, 62,5% (n=10) afirmaram terem sofrido assédio moral devido
à sua orientação sexual, sendo que 3 participantes afirmaram serem assediadxs frequentemente.
68,75% (n=11) das pessoas queer conhecem alguém que já sofreu discriminação devido à sua orien-
tação sexual. Esta última pergunta também foi feita às participantes não-queer, e 44,3% (n=27)
delas afirmaram conhecer alguém que já sofreu discriminação devido sua orientação sexual.
Considerações finais: Se a invisibilidade pode ser vista como um problema para pessoas
queer que trabalham na área da gastronomia, então o que pode ser feito é dar maior visibilidade
para essas pessoas. Se discriminação e homofobia se fazem possíveis devido à marginalização desse
grupo, então, trazer esse grupo para a consciência pública pode ser uma tática para ajudar no que
diz respeito à sua aceitação e inclusão.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 251
Apesar de existirem vários programas sociais focados na profissionalização de pessoas
queer, poucas pessoas não-queer estão cientes dessas iniciativas. Uma possível solução para margi-
nalização seria a promoção de programas de conscientização e sensibilidade, direcionados princi-
palmente a pessoas não-queer.
Palavras-chave: homofobia; queer; feminismo; LGBTQ+.
Keywords: homophobia; queer; feminism; LGBTQ+.
1 Graduando em Tecnologia da Gastronomia na Faculdade Senac de Belo Horizonte e bolsista de Iniciação Científica
através do Senac.
2 Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
3 Doutoranda em História da Alimentação na Universidade de Évora, Portugal.
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“O daime ferve no caldeirão”: questões de gênero que perpassam o ritual feitio do Santo Daime
“Daime boils in the cauldron”: gender issues that pervade the Santo Daime ritual
Este trabalho é resultado de uma pesquisa etnográfica realizada na Casa de Oração Estrela
D’Água, localizada na Ilha de Colares, no Pará, e objetiva analisar as questões de gênero que perpassam
os processos educativos vivenciados no ritual de feitio do Santo Daime. O Santo Daime é uma religião
ayahuasqueira nascida na periferia de Rio Branco, no Acre, no início do século XX, que se caracteriza,
dentre outros aspectos, pelo consumo da ayahuasca – beberagem de origem indígena produzida a
partir da decocção do cipó Banisteriopsis caapi, da folha Psychotria viridis e água. O ritual de feitio do
Daime é o momento destinado à feitura da bebida, considerado como a “universidade” da doutrina,
dada a complexidade de sua execução, uma vez que pressupõe intenso trabalho físico e espiritual,
e pauta-se em uma divisão sexual do trabalho, na qual os homens são os responsáveis pela maior
parte do processo diretamente ligado à produção da bebida, que compreende a coleta, a limpeza e a
maceração do cipó, além do cozimento das plantas e do cuidado com o fogo da fornalha, enquanto às
mulheres cabe a seleção e limpeza das folhas, além da recepção de visitantes, preparo dos alimentos
e limpeza de modo geral. Essa divisão se instituiu historicamente na cosmologia daimista, fruto dos
processos históricos de colonização, como a colonialidade de gênero. Metodologicamente, a pesquisa
resulta de uma imersão etnográfica em dois rituais de feitio acontecidos no ano de 2019, pautada na
observação participante, entrevistas semiestruturadas e conversas informais com os dirigentes, com
homens e mulheres fardados do centro religioso e importantes lideranças que participaram dos ritu-
ais, como o feitor e a puxadora que o acompanha. Teoricamente, a pesquisa inspira-se na perspectiva
decolonial, apoiada nos estudos de Edgardo Lander sobre colonialidade do saber, de Maria Lugones
sobre colonialidade de gênero, de Maria Betânia Barbosa Albuquerque acerca da educação no Santo
Daime e de Camila de Pieri Benedito sobre questões de gênero que perpassam a religião daimista.
Dentre as considerações, constatamos a dimensão educativa vivenciada no cotidiano religioso do
Santo Daime, em especial no ritual de feitio, como uma pedagogia cultural decolonial, pois imbrica
processos educativos organizados a partir de uma base epistemológica particular na qual os saberes
são mediados por uma planta mestra, contudo, a despeito disso, as contradições, os tabus e as sanções
genderificadas revelam um aspecto conservador da religião no que tange aos aspectos de gênero e
sexualidade, ao passo que despontam reações de membros que não assumem o discurso daimista
patriarcal, heteronormativo e binário, até mesmo o questionam e apresentam resistências.
Palavras-chave: educação; gênero; feitio; Santo Daime.
Keywords: education; gender; “feitio”; Santo Daime.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 253
Grupo de trabalho 8
DIETAS CONTEMPORÂNEAS
Work group 8
CONTEMPORARY DIETS
Coordenadores/Coordinators:
Janine Collaço
Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutora pela Fiocruz/Palin e
Juliana Dias
Doutora em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 254
Agricultores familiares no Vale do Paraíba Paulista:
entre a produção e o consumo de alimentos
A categoria “agricultor familiar” mobiliza, não de forma homogênea, relações entre a natu-
reza, produção de alimentos e reprodução da vida, que, no rural e urbano transformado, resiste,
adapta-se e modifica suas formas produtivas e de consumo. A industrialização, ao distanciar ali-
mento e natureza, conforme afirma Jean-Pierre Poulain em Sociologias da Alimentação (2004), oculta
variáveis simbólicas que reverberam nas práticas alimentares. Nos interessa como esse movimento
impacta também produtores de alimentos.
Aqui apresento um recorte da pesquisa que tem o objetivo de analisar sociologicamente
como agricultores familiares mobilizam a categoria valor (construto teórico, simbólico e social)
correlacionada à alimentação. Sobretudo, quais variáveis envolvem a identificação dos agentes de
sua produção como alimento. Através de entrevistas, observações de discursos e ações (falas sobre
a alimentação e refeições), a pesquisa de campo se desenvolve em três cidades do Vale do Paraíba
(SP), acompanhando quatro famílias posicionadas diferentemente nos espaços sociais.
Uma breve caracterização sobre elas: a primeira é produtora de orgânicos, plantam frutas,
legumes e verduras (FLV) e criam galinhas. Comercializam em feiras e com cestas, porém a renda
principal não é da agricultura. Relatam que possuem “tendência” de consumir o que plantam e o que
“encontram” de orgânico no mercado; a segunda tem na agricultura a principal fonte de renda, mas
além de plantarem FLV, também atuam como atravessadores em comércio atacadista. Possuem
um ponto de venda na propriedade e comercializam no centro da cidade (carrinho de mão), além
de entregarem para restaurantes. Não costumam almoçar e comem “qualquer coisa”, e a “fome”
é um discurso recorrente nas falas do casal; a terceira família, de assentados da reforma agrária,
também se sustentam com a agricultura (FLV). Escoam em supermercados, atacadistas, mercados
locais e institucionais. Quando necessário, compram marmita para o almoço e possuem o hábito de
consumir produtos ultraprocessados. Na quarta família, também de assentados, quem trabalha na
horta (FLV) é a filha do meio do casal, sendo que a agricultura não corresponde à renda principal da
família. O escoamento da produção é feito em mercados institucionais, por encomendas e mercea-
rias. Afirmam que “procuram ter uma alimentação saudável”, dando preferência para saladas e um
baixo consumo de “carne”.
A incursão inicial no campo permitiu observar que, para os agentes, a alimentação é ínti-
ma e privada, sendo difícil acessar os discursos e momentos dela. Já o cruzamento dos dados nos
levou a uma correlação inesperada (comparada à literatura sobre subsistência): conforme aumenta
a dependência econômica da família à agricultura, mais distante fica a identificação da produção
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 255
como alimento (para consumo), e ela é tida como produto e renda que levará à compra desses. E
de maneira inversa: os que menos dependem da agricultura como fonte de renda aproximam a
identificação de sua produção para consumo.
Palavras-chave: produção e consumo alimentar; agricultura familiar; Vale do Paraíba (SP); sociolo-
gia econômica.
Keywords: food production and consumption; family farming; Vale do Paraíba; economic sociology.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 256
Vegetarianismo: uma escolha que transcende a alimentação
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 257
Palavras-chave: vegetarianismo; veganismo; alimentação vegetariana; nutrição e cultura.
Keywords: vegetarianism; vegan; vegetarian diet; nutrition and culture.
1 Graduanda do curso de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bolsista de Iniciação Científica PROPESQ.
2 Doutora em Medicina: Ciências Médicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Laboratório de Técnica
Dietética, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 Doutora em Ciência dos Alimentos pela Universidade de São Paulo; Departamento de Nutrição, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 258
Alimentos provenientes da agricultura familiar na gastronomia contemporânea:
análise a partir de conteúdo em meio digital
Clarissa Magalhães 1
Fabiana Bom Kraemer 2
Flavia Milagres Campos 3
Daniela Menezes Neiva Barcelos 4
Este trabalho se insere na temática sobre novas formas de interação entre a produção e o
consumo de alimentos nas sociedades contemporâneas ocidentais, com recorte nas relações sociais
entre atores gastronômicos e agricultores. Compreende a gastronomia para além de um fenômeno
relacionado aos restaurantes sofisticados e chefs premiados, mas que possui uma tendência que
percebe o consumo de alimentos provenientes de agricultores locais como estratégia de reforço da
identidade cultural e apoio à agricultura familiar. Interessa-nos compreender esse processo que, por
um lado, possui atores inseridos em contextos de distinção simbólica e, por outro, atores excluídos
dos espaços de produção dominados pelo agronegócio. A pesquisa se inscreve em uma abordagem
qualitativa, de produção de sentidos compartilhados na cultura contemporânea, e tem como recorte
empírico conteúdos digitais de publicações jornalísticas e de instituições públicas e privadas, entre
2017 e 2019. Como Jesús Martin-Barbero, entendemos que, na “redefinição de cultura, a pista está
na compreensão da natureza comunicacional da cultura como um processo de produção de sentido
e não apenas como circulação de informações”. A partir da identificação dos autores dos textos,
reconheceu-se duas naturezas de texto e conceitos-chaves. Um primeiro grupo de textos publicados
por sites de negócio e economia e pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento com
uma tendência a valorizar a agricultura familiar como uma oportunidade empreendedora, tendo
os restaurantes como um bom local para escoar os produtos. Neste sentido, a legitimação passa por
movimentos sociais que buscam melhorar a organização da produção de orgânicos, a fim de obter
certificações que propiciem a ampliação deste mercado e também por exemplos de chefs de cozi-
nha que desenvolvem receitas com estes produtos. O segundo grupo corresponde aos conteúdos de
jornalismo independente e blogs de projetos sociais com uma tendência a valorizar a produção de
alimentos regionais com atributos de qualidade relacionados ao saudável e sustentável, em que se
ressalta uma posição crítica às políticas governamentais com ações destinadas ao aumento do uso
de agrotóxicos e incentivo fiscal ao agronegócio. Observa-se um discurso que promove a discussão
de um modo de produção mais justo e equilibrado ecologicamente, legitimado pelo saber científico
e por atores sociais da agroecologia. Também está no debate a apropriação de produtos regionais
que são patenteados para serem comercializados, internacionalmente, por chefs de cozinha des-
tacados na mídia. Acreditamos ser relevante este olhar para os usos dos alimentos provenientes
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 259
da agricultura familiar como objetos de consumos e códigos distintivos, a partir da valorização de
produtos regionais e sazonais como uma problemática científica para contribuir na discussão dos
problemas sociais decorrentes do atual modelo do sistema alimentar.
Palavras-chave: agricultura familiar; consumo; gastronomia.
Keywords: family farming; consumption; gastronomy.
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ).
2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ).
3 Docente da Escola de Nutrição da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
4 Jornalista e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ).
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 260
“A carne não é o alimento do homem”:
a circulação de ideias vegetarianas numa economia pastoril – Belém, 1912-1918
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 261
Fake meat e ultraprocessados:
um diálogo sobre saúde, alimentação e preservação ambiental na mídia
Esta comunicação visa explorar a cobertura feita pela mídia brasileira em meios digitais,
no ano de 2019, sobre o lançamento do produto “carne do futuro”, também conhecido como fake
meat. O nome em inglês vem do fato de se tratar de um produto alimentar feito a partir de plantas
que pretende imitar o gosto e a textura da carne animal. Partindo dos pressupostos de que notícias
sobre saúde causam grande impacto e que o alto consumo humano de carne bovina é hoje um dos
fatores apontados como determinantes no cenário de mudanças climáticas, a “promessa” de uma
solução para a questão da carne causa impacto considerável na opinião pública.
Analisaremos notícias veiculadas em portais como G1, Uol, El País, Huffington Post, Exame e
Valor Econômico durante o ano de 2019. Nessa metodologia, o material analisado sobre a “carne do
futuro” será relacionado ao conceito de alimentos ultraprocessados (ver o artigo de Carlos Augusto
Monteiro et al, “Uma nova classificação de alimentos baseada na extensão e propósito do seu pro-
cessamento”. Cadernos Saúde Pública, v. 26, n. 11, pp. 2039-2049, 2010), desenvolvido pelo Núcleo de
Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens) durante
a elaboração da classificação de alimentos NOVA. Criada em 2009, a classificação propõe que os
alimentos sejam classificados de acordo com o nível de processamento. Assim, os ultraprocessados
são aqueles que foram amplamente processados ficando, assim, distantes do alimento “in natura”.
Hoje existem evidências científicas que mostram relação entre doenças não transmissíveis, tais
como diabetes, com o consumo de ultraprocessados. A fake meat é um alimento desta categoria,
desenvolvida em laboratório a partir de vegetais altamente processados.
A problemática de pesquisa busca identificar se a divulgação das notícias sobre a carne do
futuro mostra que este alimento é ultraprocessado e as consequências da substituição da carne ani-
mal por esses produtos. Afinal, é uma questão de saúde pública deixar claro quais seriam as perdas
e os ganhos em relação à saúde e à cultura em uma substituição de tal porte, o que nem sempre é
uma preocupação da imprensa.
A abordagem está dentro da discussão sobre o alimento em relação tanto a questões bioló-
gicas quanto culturais. A carne carrega simbologias e histórias na alimentação humana (ver Claude
Fischler, em L’Homnivore, de 2001, e Jean-Pierre Poulain, em Sociologies de l’alimentation, de 2002)
e não pode ser substituída sem impactos em vários aspectos humanos. Do mesmo modo, causa
estranheza que a substituição seja feita por simulações de comida, como é o caso do hambúrguer
– o “hambúrguer do futuro” é a representação mais vista da fake meat na imprensa. Assim, nos
interessa como objeto de pesquisa avaliar tal processo a partir da epistemologia do jornalismo,
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 262
tratando do ofício comunicativo como produtor de conhecimento e formador de opinião pública, e
as consequências da divulgação científica realizada sobre a novíssima “carne do futuro”.
Palavras-chave: mídia; ultraprocessados; alimentação; jornalismo; opinião pública.
Keywords: media; ultra-processed foods; food; journalism; public opinion.
1 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora da Faculdade
Cásper Líbero e do Centro Universitário Fecap.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 263
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), dieta contemporânea
e politização da alimentação
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 264
elementos cívicos, os quais podem contribuir para o entendimento do comedor enquanto ator polí-
tico e aliado de movimentos e causas sociais.
Palavras-chave: dieta contemporânea; alimentação saudável; movimentos sociais do campo;
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); relação produção-consumo.
Keywords: contemporary diet; healthy eating; social rural movements; Small Farmers Movement
(MPA); production-consumption ratio.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 265
A crescente onda do veganismo e o surf das FoodTechs
O vegetarianismo e seu sucessor veganismo vêm ganhando força e espaço gradativo entre
dietas contemporâneas.
Em pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) de 2012, 8% da
população brasileira se declarou vegetariana. A mesma pesquisa aplicada em 2018 teve resultado
nacional de 14% de população vegetariana. O índice eleva-se a 16% se consideradas apenas as regi-
ões metropolitanas, com crescimento de 75% em apenas 6 anos.
O veganismo também vem crescendo globalmente. Termo derivado da palavra inglesa
vegan, pela primeira vez mencionada em 1944 por Donald Watson, na Inglaterra, quando fundou
a Vegan Society como defensora de alimentação vegetariana e non-dairy (não láctea) – ou seja,
define-se por uma dieta com restrição radical aos alimentos de origem animal, inclusive mel de
abelhas ou derivados do leite.
As razões para reduzir o consumo de alimentos de origem animal e com isso adotar uma dieta
vegetariana, vegana ou até mesmo a mista flexitariana (onívoros que reduzem o consumo de carne,
mas não a eliminam do menu) são de cunhos variados. Com a divulgação global de documentários,
livros, organizações ativistas e órgãos defensores dos animais – impulsionada pela velocidade de
acesso à informação através das redes sociais –, a população vem tomando consciência do impacto
em sua própria saúde, no meio ambiente e na vida dos animais quando escolhem carne para comer.
O comensal, comovido de acordo com os seus valores, decide então pela mudança de seus hábitos
alimentares ou, no caso dos extremos veganos, até mesmo em seu vestuário e objetos pessoais.
Entretanto, ser vegano – pela sustentabilidade, pelos direitos animais ou até mesmo por
uma melhor nutrição – tem seu viés também capitalista. De olho nessa tendência, grandes mul-
tinacionais de alimentos adaptam seu portfólio para oferecer ao consumidor versões veganas dos
seus produtos. Pequenas empresas surgem com opções plant-based de alimentos. A startup chilena
The Not Company, fundada em 2015, com sua versão vegana da maionese que não é maionese, teve
crescimento exponencial a ponto de, em 2019, receber um aporte de USD 30 mi vindo de Jeff Bezos,
fundador da Amazon. A foodtech Beyond Meat, fundada em 2009 com o propósito de entregar uma
proposta vegana de um hambúrguer usando os adventos da tecnologia, abriu oferta pública de
ações na bolsa de valores americana Nasdaq em maio de 2019 a USD 45 a cota e já apresentou picos
de USD 239 nesses últimos meses.
Comida industrial, vegana ou não, sempre foi “tech”. A indústria de alimentos, desde que
invadiu os lares no pós-guerra, substituiu o hábito de cozinhar através da tecnologia, produzindo
enlatados, congelados e afins. Assim, os ultraprocessados dominaram a alimentação cotidiana,
gerando uma verdadeira amnésia referencial gastronômica. Ser vegano e entregar-se às propostas
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 266
tech resolvem a consciência do comensal com respeito aos animais. As consequências sobre sua
saúde, no entanto, ainda estão por ser conhecidas. Citando Michael Pollan: “se é planta, coma. Se é
feito uma planta, não”.
Palavras-chave: veganismo; vegetarianismo; foodtech; ultraprocessados; plant-based.
Keywords: veganism; vegetarianism; foodtech; ultra-processed foods; plant-based.
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Quem vê cara não vê coração?
A dialética da equidade-distinção no consumo de alimentos alternativos
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 268
Palavras-chave: redes alimentares alternativas; distinção social; equidade social.
Keywords: alternative food networks; social distinction; social equity.
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Menus onívoros com opções veganas. Um estudo exploratório do veganismo sob a ótica de
chefs e críticos gastronômicos brasileiros
Omnivorous menus with vegan options. An exploratory study of veganism from the perspective of
Brazilian chefs and food critics
Diminuir o consumo de carne é uma solução para reduzir os problemas ambientais atuais.
Para Joseph Poore e Thomas Nemecek, uma mudança global substituindo ingredientes de origem
animal reduziria em 76% o uso de terras e em 49% a emissão de CO2 (referência do ano 2010); o que
valoriza dietas não carnívoras. O veganismo é um estilo de vida que exclui em termos possíveis a
exploração animal para fins alimentares, de vestuário ou outro propósito, promovendo alternativas
em benefício de humanos, animais e meio ambiente (disponível em: <https://www.vegansociety.
com>, acesso em 16 abr. 2019). É uma subcultura alimentar, com o conjunto de restrições de consu-
mo e a perspectiva ideológica criando laços de identidade entre seus adeptos.
A oferta de produtos compatíveis ainda é limitada e a substituição de derivados animais
garantindo uma alimentação saudável e prazerosa exige novos aprendizados e posturas da área. A
temática é pouco explorada academicamente: as bases Scopus, Scielo e Spell revelaram 11 artigos
compatíveis com esta pesquisa, sendo dois nacionais: de Isabela Moreira e Cláudia Acevedo, de 2015
(sobre veganismo e anti-consumismo), e Anelise Schinaider e Leonardo da Silva, de 2018 (sobre o
perfil consumidor vegano).
Esta comunicação investiga a percepção de chefs de cozinha e críticos gastronômicos bra-
sileiros sobre o veganismo em uma pesquisa qualitativa e exploratória desenvolvida com revisão
de literatura e entrevistas com quatro chefs e quatro críticos de relevância nacional escolhidos por
conveniência. As respostas foram analisadas por análise de conteúdo, e os principais resultados são:
(1) os respondentes percebem o veganismo como uma subcultura em crescimento que tem conse-
guido destaque nos restaurantes; (2) reconhecem a atual relevância do veganismo no cenário da
gastronomia comercial, algo similar ao alcançado por outros movimentos culinários ao longo da
história; (3) indicam a necessidade de inclusão de itens veganos nos cardápios, mas sem torná-los
majoritários. Conclui-se que a percepção dos entrevistados sobre veganismo é exclusivamente rela-
cionada ao consumo nos estabelecimentos e dissociada das implicações ambientais.
Palavras-chave: veganismo; gastronomia vegana; chefs de cozinha; críticos gastronômicos.
Keywords: veganism; vegan gastronomy; chefs; food critics.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 270
Veganismo para além do prato:
uma relação entre carnismo, dominância masculina e transformação social
O presente resumo é parte integrante de uma pesquisa em História Social, com ênfase em
História da Alimentação. Em sua primeira parte, citando as justificativas ideológicas, teológicas,
culturais e sociais que naturalizam a matança e o consumo de seres sencientes, o trabalho demons-
tra que a atual configuração do mundo ocidental é, além de racista ou sexista, antropocêntrica e
especista – sobretudo nos hábitos alimentares.
Já o capítulo subsequente do trabalho resgata a histórica, porém desconhecida, relação
entre feminismo, veganismo e direitos animais, salientando como a sociedade patriarcal associa
dominância, masculinidade e força ao ato de comer carne, ao passo que vê nos alimentos vegetais
elementos feminilizantes. As mulheres, por serem consideradas cidadãs de segunda classe, comem
alimentos também considerados de segunda classe: grãos, folhas, frutas, verduras.
Neste sentido, tem-se que consumo de carne revela distinções não apenas de classe, mas
também de gênero e de raça. A aproximação entre especismo, sexismo e racismo está cada vez
mais evidente dentro da teoria feminista-vegana; afinal, em um mundo dominado pelo masculino,
fêmeas humanas e não humanas são tidas como objetos e não como sujeitos. Corpos de mulheres
são consumidos visualmente; de animais, literalmente.
A partir de uma perspectiva ecossocialista, antiespecista e anticapitalista, a terceira parte
do trabalho visa a outro resgate: o caráter político do movimento vegano que, nos últimos anos,
vem sendo cooptado pelo sistema econômico vigente.
Historicamente, o veganismo, em sua forma politizada, mostra-se um movimento social
pulsante; hoje – considerando a conjuntura de estafa ambiental, insegurança alimentar, liberação
desenfreada de agrotóxicos e mercantilização da vida, seja ela humana ou não humana –, o vega-
nismo emerge como uma ferramenta ativa na construção de um mundo igualitário para as multies-
pécies nele existentes.
Portanto, o veganismo extrapola a definição de dieta ou de estilo de vida; é um movimento
potente de combate ao sistema opressor dentro do qual vivemos. A luta anti-especista e o veganis-
mo, segundo Angela Davis, fazem parte de uma perspectiva revolucionária pois desafiam tanto a
política alimentar que nos é imposta pelas grandes corporações quanto o sistema industrial que
submete, sistêmica e silenciosamente, incontáveis seres sencientes a um regime desnecessário de
dor, sofrimento e morte, cuja intenção é simplesmente satisfazer o paladar e os interesses de uma
única espécie.
Por se tratar de um trabalho teórico e de síntese, a metodologia consiste na busca por dados
secundários, feita mediante revisão bibliográfica de autoras como Carol J. Adams, Donna Haraway,
Sônia T. Felipe e Melanie Joy.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 271
Palavras-chave: veganismo; feminismo; especismo; carnismo; alimentação.
Keywords: veganism; feminism; speciesism; carnism; food.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 272
A comida de verdade: a literatura gastronômica e o debate sobre o comer bem
The real food: the gastronomic literature and the debate about eating well
Atualmente, a alimentação humana é vista como mais do que apenas ingerir alimentos para
manter a vida e a saúde, havendo um consenso de que comida é cultura e que, por meio dela, se des-
cortinam identidades individuais e coletivas, reforçam-se rituais e constroem-se tradições. O resgate
de tradições relacionadas ao ato de comer é fundamental para que o conhecimento culinário não seja
perdido. Nesse movimento, tem sido cada vez mais presente a discussão sobre o que é comer bem, e
a questão da saudabilidade tem se colocado como tema. A proposta deste trabalho é investigar como
essa ideia de “comida de verdade” vem sendo construída, divulgada e apreendida entre consumido-
res e, em especial, na literatura gastronômica. O objetivo é investigar como se deu sua construção,
como tem sido operacionalizada, que tipo de narrativas são construídas e como aparece nos livros de
cozinha publicados nos últimos vinte anos. Além disso, por meio de uma pesquisa qualitativa, com
análise de fontes de imprensa e etnografia desses livros, serão analisados também alguns títulos
publicados entre 1900 e 1960. Dessa forma, se pretende analisar em que medida a ideia de comer
bem estava presente naquele período, apontando similaridades e diferenças em relação ao conceito
de comida de verdade e do que seja comer bem na contemporaneidade. O recorte temporal inferior
se justifica por se ter vários títulos publicados, com grande sucesso editorial, inclusive o mais famoso
deles, o Comer bem, de Dona Benta. O recorte temporal superior diz respeito ao chamado boom da gas-
tronomia, momento no qual o mercado editorial e tudo o que diz respeito à culinária e à gastronomia
adquirem mais visibilidade, despertando a atenção de consumidores cada vez mais interessados em
cozinha e comida. Diversas publicações na área vêm à luz, ao lado da emergência de vários nomes
– cozinheiros, apresentadores de TV, colunistas de imprensa, influenciadores digitais etc., que se
tornam referência para quem deseja se aventurar no mundo das panelas ou apenas conhecer esse
universo. Parte-se da hipótese de que os livros de cozinha mais antigos traziam ingredientes, técnicas
e receitas que se aproximam das preparações encontradas em publicações mais recentes, sobretudo
em autores como Rita Lobo e Bela Gil, entre outros. Analisando a estrutura de algumas das receitas
de ambos os períodos, a forma como são apresentadas, como se define comida de verdade e o que
seja comer bem, espera-se demonstrar que a indústria alimentícia, ao apresentar ao mercado consu-
midor alimentos processados que são vistos muitas vezes como “não comida”, vem enfrentando um
movimento de resistência decorrente da maior conscientização dos indivíduos acerca da qualidade
da sua alimentação, favorecendo um resgate de tradições e receitas, enfim, de uma culinária que em
muito se aproxima daquela praticada nas primeiras décadas do século XX.
Palavras-chave: culinária; cozinha; livros de cozinha; comida de verdade; saúde.
Keywords: culinary; kitchen; cookbooks; real food; health.
1 Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná, professora na Universidade Positivo, em disciplinas de
História da Gastronomia e História da Alimentação de cursos de graduação e pós-graduação.
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