Document PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 273

Ingesta

R E V I S T A

Revista do Laboratório de
Estudos Históricos das
Drogas e da Alimentação
LEHDA - USP

SÃO PAULO | V. 1 . N. 2 | DEZ . 2019

nesta edição:
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional
de Pesquisa em Alimentação: circuitos de
produção e consumo
Ingesta
Revista eletrônica do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas
e da Alimentação da Universidade de São Paulo (LEHDA/USP)
ISSN 2596-3147

Revista Ingesta, São Paulo, v. 1, n. 2, dez. 2019


Com Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa
em Alimentação: circuitos de produção e consumo
revistas.usp.br/revistaingesta

Comissão editorial
Nicole Leite Bianchini (mestranda em História Social na FFLCH/USP) e
Viviane Soares Aguiar (doutoranda em História Social na FFLCH/USP)

Projeto gráfico e diagramação


Ziza Pasqual

Comissão científica
Alexandre Varella (Unila), Carlos Alberto Dória (Escola do Gosto),
Carlos Torcato (UFRN), Carmen Rial (UFSC), Elaine de Azevedo
(UFES), Eliane Morelli Abrahão (Unicamp), Frederico Policardo
(UFF), Henrique Soares Carneiro (LEHDA/USP), Jeferson Bacelar
(UFBA), João Luiz Máximo da Silva (Centro Universitário Senac),
Leila Mezan Algranti (Unicamp), Ligia Amparo Santos (UFBA), Maria
Aparecida de Menezes Borrego (Museu Paulista/USP), Maria Betânia
B. Albuquerque (UEPA), Sônia Magalhães (UFG), Tania Andrade
Lima (Museu Nacional/UFRJ), Viviane Kraieski de Assunção (UNESC),
Wanessa Asfora (Universidade de Coimbra)

LEHDA

Comissão Científica
Henrique Carneiro (coordenador), Luís Fernando Tófoli, Ruy Braga.

Pesquisadores
Adriana Salay Leme, Alexandre Varella, Carlos Torcato, Cauê
Tanan, Fernanda Moreira, Frederico Toscano, Júlio Delmanto, Lucas
Endrigo Avelar, Luciano Thomé, Luís Fernando Teberga Gonçalves,
Natasha Magior, Nicole Leite Bianchini, Viviane Soares Aguiar

Imagem da capa
Montagem sobre identidade visual do II Simpósio Internacional de
Pesquisa em Alimentação: circuitos de produção e consumo, criada
por Claudio Rother (Museu Paulista/USP)
S UMÁRI O
1 Caderno de Resumos

283 Da “devoração” à hospitalidade: uma narrativa


C ONTE
NàTS
alimentar moda antiga [From “devouring” to
h

4 Carta dos Editores

6 Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do


discurso proibicionista [The alcohols in the cinema (1904-1933):
affirmation and satire of the prohibitionist discourse] . Rafael Morato Zanatto

26 O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações


sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador [ Iansã’s
acará at the Saint Barbara festival: brief considerations on the foods of a popular
religious festival in Salvador, Brazil ] . Vagner José Rocha Santos

38 Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia [Diversity on


the plate: the experience of the PANC-Bahia Network] . Luiz Enrique Vieira de Souza e
José Geraldo de Aquino Assis

49 Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas:


análise crítica da política de drogas luso-brasileira: Direito
Administrativo Sancionatório (Lei n.º 30/2000) x Direito Penal
(Lei n.º 11.343/06) [Consumption, acquisition and detention for the consumption
of drugs: critical analysis of the Portuguese-Brazilian drug policy: Administrative
Law Sanctioning (Law no. 30/2000) x Criminal Law (Law no. 11.343/06)] . Francisco de
Assis de França Júnior

67 Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa


em Alimentação [Book of abstracts of the II International Symposium on
Food Research]
CARTA D O S E DITORES
Um volume, dois números especiais

Lançada em março de 2019, a revista Ingesta surgiu no cenário acadêmico em uma edição
especial, restrita a artigos de professores e pesquisadores convidados especialmente para a sua
estreia. Em seu segundo número, que publicamos em dezembro do mesmo ano, em vez de enfim
entrarmos naquela que será nossa rotina, insistimos em mais uma edição especial: além de quatro
artigos, incluímos aqui um caderno com os mais de 100 resumos de todos os trabalhos apresentados
durante o II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação: circuitos de produção e
consumo, realizado na Universidade de São Paulo entre os dias 4 e 6 de dezembro de 2019. Isso
talvez comprove como o campo da História da Alimentação e das Drogas têm se mostrado prolífico
– ao menos no que diz respeito aos esforços do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da
Alimentação, o LEHDA-USP, responsável tanto por esta publicação quanto pela organização do
referido simpósio, ao lado do portal de divulgação acadêmica Comida na Cabeça, do Museu Paulista
da USP e do Programa de Pós-Graduação em História Social da USP.
Seguimos, assim, no caminho que nos trouxe até aqui, com o propósito de contribuir
para o desenvolvimento e a consolidação dessa área de estudos, discutindo e buscando para ela
delineamentos teóricos e metodológicos. Pequenos desvios (ou acertos) de rota, no entanto,
não deixaram de acontecer: se iniciamos a revista com um escopo que seria restrito a produções
científicas de estudantes de pós-graduação, procuramos, agora, ampliá-lo para também abarcar
artigos de professores e pesquisadores pós-graduados, com titulação mínima de mestre. Isso
já aconteceu nesta edição, em que, na seção de artigos, publicamos a pesquisa dos professores
doutores da Universidade Federal da Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino
Assis sobre as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), um trabalho que se volta para uma
questão muito pertinente em tempos atuais e ainda pouco discutida no meio acadêmico.
Também focado no cenário baiano, o artigo de Vagner José Rocha Santos, doutorando no
Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, traz
interessantes considerações históricas sobre o acará de Iansã na festa de Santa Bárbara. É pelo viés
histórico que outro pesquisador, o historiador Rafael Morato Zanatto, estuda a representação do
álcool no cinema em um artigo pontuado por cenas de filmes do início do século XX, analisadas a
partir da relação delas com os discursos proibicionistas e reveladoras das amplas potencialidades
dessa fonte para as pesquisas sobre história da alimentação, das bebidas e das drogas. Por fim, fiéis
à busca de interdisciplinaridade, ainda publicamos um artigo vindo da área do Direito, de Francisco
de Assis de França Júnior, doutorando na Universidade de Coimbra, que faz uma aprofundada e
crítica análise comparativa da política de drogas adotada no Brasil e em Portugal.
Em um ano especialmente difícil para a Educação e para a própria História no Brasil, é
com muito orgulho que apresentamos nossa singela porção de resistência, no formato de revista
acadêmica e de simpósio científico. Unir essas duas ações aqui, publicando o diversificado Caderno
de Resumos do evento, permite divulgá-las para o maior número possível de interessados e pode
estimular – assim esperamos – novas iniciativas neste sentido. Antes de terminar, deixamos
registrados nossos agradecimentos à Elisabeth Adriana Dudziak, da Agência USP de Gestão da
Informação Acadêmica; à designer Ziza Pasqual, que mais uma vez cuidou, com a costumeira
atenção, do projeto gráfico e da diagramação da revista; e a todos os professores e colegas que
contribuíram para a realização do simpósio. Em especial, àquelas que nos acompanharam na
Comissão Organizadora e que assinam conosco a carta de apresentação e de agradecimentos do
Caderno de Resumos, mais adiante: Adriana Salay Leme e Joana Pellerano.

Boa leitura!

Nicole Leite Bianchini e Viviane S. Aguiar


Comissão Editorial
[email protected]
Os álcoois no cinema (1904-1933):
afirmação e sátira do discurso proibicionista

The alcohols in the cinema (1904-1933):


affirmation and satire of the prohibitionist discourse

Rafael Morato Zanatto


RESUMO: O presente artigo analisa a representação ABSTRACT: The present article analyzes the
dos álcoois no cinema em relação ao avanço do representation of alcohols in the cinema in relation to
discurso proibicionista comprometido em transformar the advance of the prohibitionist discourse committed
o consumo de álcool em patologia. Veremos como, a in transforming alcohol consumption into pathology.
partir do início do século XX, cineastas como o francês We will see how from the beginning of the twentieth
Ferdinand Zecca e o estadunidense D.W. Griffith century, filmmakers such as the Frenchman Ferdinand
adotaram em seus filmes um discurso moralizante Zecca and the American D.W. Griffith adopted in their
que visava amedrontar a classe trabalhadora ao films a moralizing discourse aimed at frightening the
propagar os perigos do consumo abusivo de álcool. working class by propagating the dangers of abusive
Posteriormente, o tema será tratado satiricamente alcohol consumption. In a next moment, we will see
por cômicos como Charles Chaplin e Roscoe Fatty how the subject will be treated satirically by comedians
Arbuckle, ao representarem o alcoolismo das classes like Charles Chaplin and Roscoe Fatty Arbuckle, in
mais abastadas dois anos antes da promulgação da Lei exploring the theme of alcoholism in the wealthier
Seca (1919). Por último, compreenderemos como nos classes, tree years before the promulgation of the
primeiros anos da década de 1930 os desdobramentos Volstead Law (1919). Finally, we will understand how
da Lei Seca (1933) serão tratados no cinema não apenas in the early 1930s the unfolding of Volstead Law (1933)
pelos filmes de gângsteres, mas também em comédias will be treated in the movies not only by gangster
como What! No Beer? (1933), no qual Buster Keaton e movies, but also in comedies such as What! No Beer?
Jimmy Durante protagonizam uma dupla de ativistas (1933), in which Buster Keaton and Jimmy Durante,
e empreendedores do ramo de bebidas, um mês a duo of beverage activists and entrepreneurs, one
antes da revogação da lei. Em conjunto, pretendemos month before the repeal of the law. Taken together, we
demonstrar como o cinema pode ser considerado intend to demonstrate how the cinema of these three
uma excelente fonte de pesquisa para o estudo dos specific moments constitutes an excellent source of
discursos proibicionistas e antiproibicionistas em historical research for the study of current discourses in
épocas e contextos específicos, dos quais esses filmes society of which these films are at the same time social
são ao mesmo tempo expressão social, entretenimento expression, entertainment and propaganda.
e propaganda. Keywords: history and cinema; anti-prohibitionism;
Palavras-chave: história e cinema; antiproibicionismo; social expression and propaganda; moral panic.
expressão social e propaganda; pânico moral.

1 Doutor em História pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, em Assis. Contato: [email protected].

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 6


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Entre meados do século XIX e o primeiro terço do século seguinte, o tema do alcoolismo
aparece com certa frequência na literatura, na imprensa e em trabalhos científicos, sendo o cinema
o último instrumento de irradiação do assunto. Ao analisarmos hoje os filmes que tratam do tema,
podemos facilmente incorrer no erro em pensar apenas na função propagandística destes filmes.
Mas, entre 1896 e 1908, o cinema ainda era obra de artesãos que dependiam da bilheteria de seus
filmes para dar andamento aos projetos futuros. Para tanto, a seleção adequada dos temas a par-
tir do potencial em atender ou dialogar com a sociedade pode explicar a adesão dos realizadores
do período aos temas já consagrados pela linguagem escrita, como romances de sucesso ou temas
largamente difundidos pela imprensa, como crimes incomuns ou todo o tipo de acontecimentos
capazes de suscitar o interesse do público.
Ao refletir sobre a questão, o historiador de cinema Paulo Emílio Sales Gomes afirma que
“[...] o cinema não modelava a opinião pública, mas se modelava de acordo com ela. Quer dizer
que era muito mais passivo do que ativo, muito mais expressão social do que propaganda” (Gomes,
1958, PE/PI 0049), corroborando com as ideias de Siegfried Kracauer, para quem “os filmes ajudam
a mudar as atitudes das massas, contanto que estas atitudes já tenham começado a mudar”
(Kracauer, 1988, p. 323). No caso do combate ao consumo de álcool considerado abusivo, cientistas,
religiosos, industriais, escritores e jornalistas já haviam se lançado nessa cruzada ao menos meio
século antes que os cineastas.
Em A fabricação do vício (2002), Henrique Carneiro afirma que o século XIX é o momento
em que drogas como ópio, tabaco, café, chocolate, cocaína etc. seduzem as populações mundiais,
recebem teorizações médicas sobre os seus efeitos e marcam “o isolamento químico de drogas
puras (morfina, 1805; codeína, 1832; atropina, 1833; cafeína, 1860; heroína, 1874; mescalina, 1888)”,
suscitando a dosificação e a experimentação controlada. Segundo Carneiro,

Todo esse período foi de uma escalada crescente na intervenção do Estado sobre
a disciplinarização dos corpos, a medicalização das populações, recenseadas
estatisticamente de acordo aos modelos epidemiológicos para os objetivos da eugenia
social e racial, “higiene social” e a “profilaxia moral”, ou seja, tentativas de evitar a
deterioração racial supostamente causada pelos degenerados hereditários, entre
os quais se incluíam com lugar de destaque os viciados e bêbados. Assim como se
buscava, a essa época, a erradicação das doenças contagiosas, com o estabelecimento
de medidas como quarentenas e notificação compulsória dos doentes (Disease Act, em
1889, na Inglaterra), também planejou-se uma campanha de aniquilação do vício, que
desaguou no massivo movimento pela temperança nos Estados Unidos. O Controle
epidemiológico impunha-se para um comportamento infeccioso como o alcoolismo.
(Carneiro, 2002, p. 4)

O processo iniciado no século XIX irá se intensificar, no século XX, com a transformação do
consumo de bebidas alcóolicas em uma patologia, um problema sanitário a ser sanado. Segundo
a historiadora Daisy de Camargo no livro Alegrias Engarrafadas (2012), “o século XX representa uma
reviravolta de valores e um ponto de inflexão na história da embriaguez”, a partir da ampliação dos
estudos sobre o “processamento químico do álcool” e a compreensão de seus efeitos no organismo.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 7


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Segundo a autora, será nesse momento que o alcoolismo aflorou como uma nova patologia nos
trabalhos médicos, e consequentemente, “um novo personagem a ser estigmatizado: o alcoólatra.
Nessa mesma névoa vem uma falha moral (o desmedido) e um flagelo social (a destruição da
família e do trabalho)” (Camargo, 2012, p. 192). A partir da definição do consumo abusivo de álcool
como uma doença e de seu personagem, o alcoólatra, não demorou muito para que o cinema se
apropriasse do tema bastante corrente e de interesse no período.

A afirmação do proibicionismo nas telas

O alcoolismo aparece representado nas telas no melodrama Victimes de l’alcoolisme (Vítimas


do Alcoolismo, 1904), de Ferdinand Zecca. Na história, um pai de família sai de casa para trabalhar,
mas, no meio do caminho, local em que podemos ler nas placas as palavras absinto, vinho, en-
tre outros nomes de bebidas, alguns amigos o interceptam e o conduzem ao interior de um bar,
apresentado como espaço de sociabilidade degenerado pela embriaguez e pelo jogo. Sua esposa,
levando as duas filhas pela mão, implora para que o marido retorne para a casa, deixe de jogar
e retome o trabalho para prover as necessidades básicas de sua família. Pouco a pouco, os efei-
tos devastadores do álcool transformam um pai de família carinhoso em um bêbado insensível e
egoísta. Como resultado do consumo problemático de álcool, a família do trabalhador é lançada
à miséria e o homem, já bastante degradado, é internado em um manicômio, numa cela com pa-
redes acolchoadas contra as quais nós o vemos se debater atado a uma camisa de força. Segundo
o historiador de cinema Richard Abel, o filme foi provavelmente adaptado do romance de Émile
Zola, L´Assommoir (1876), destinado ao esclarecimento dos operários quanto aos problemas rela-
cionados ao alcoolismo, um livro escrito sobre e para os operários. Além das questões referentes à
presença deste tema no século XIX, Abel observa no filme de Zecca alguns aspectos do discurso e
seus impactos na classe trabalhadora:

[...] o esmagador tom moral destes filmes – pregando as virtudes restritas aos vínculos
familiares e ao trabalho disciplinado – certamente impediria os trabalhadores de serem
“proletários” que poderiam colaborar com os fins da classe, como Sadoul argumentou.
Em vez disso, como os suplementos especiais de publicidade de Victimes de l´alcoolisme
sugerem, muito mais serviriam para garantir que a classe trabalhadora e artesãos (assim
como a pequena burguesia e os colarinhos brancos) concordassem com a harmonia do-
méstica e pública da ordem social burguesa. (ABEL, 1998, pp. 99-101)

O filme de Zecca apela para o melodrama ao retratar famílias corroídas pela miséria pro-
vocada pelo consumo problemático do álcool, assim como a influência das más amizades em sua
adesão. O conteúdo ideológico do filme encontra-se concatenado ao interesse dos industriais e do
Estado em restringir as sociabilidades operárias aos espaços familiares – proposta largamente di-
fundida pela imprensa. No trabalho de Phil Baker, Absinto, uma história cultural, encontramos logo
nas primeiras páginas um retrato bastante elucidativo acerca da cobertura da imprensa francesa
no início do século XX dos problemas referentes ao consumo de álcool. No mês de agosto de 1905,

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 8


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

um ano após o lançamento do filme de Zecca, as manchetes dos jornais noticiam que um camponês
havia matado a esposa grávida e suas duas filhas, de dois e quatro anos. Após o crime, motivado, se-
gundo a imprensa, pela ingestão de duas doses de absinto, o camponês ainda tentou, sem sucesso,
o suicídio. No extrato abaixo, Baker oferece um retrato preciso de como a imprensa francesa força o
vínculo entre as mortes e o consumo do álcool:

A reação do público ao caso Lanfray foi extraordinária e concentrou-se em um só deta-


lhe. Ninguém atentou para o fato de Lanfray ser um alcoólatra contumaz e de ele, no
dia anterior ao massacre, ter consumido não só as relatadas suas duas doses de absinto
antes de sair para o trabalho (...), mas também um crème de menthe, um conhaque, seis
taças de vinho no almoço, outra taça antes de sair do trabalho, uma xícara de café com
brandy, um litro de vinho chegando em casa e mais um café com marc”. (Baker, 2010, p. 11)

Notícias como a que trataram do caso Lanfray evidenciam a seleção de temas polêmicos
como estratégia de difusão comercial de filmes de acordo com temas já consolidadas na literatura,
no discurso médico e na imprensa burguesa, não sendo exagero dizer que propiciaram o surgimen-
to de filmes dessa natureza. Apesar da importância do cinema francês do primeiro período, será nos
Estados Unidos onde poderemos observar maiores desdobramentos no cinema da transformação
do consumo de álcool em uma patologia a ser combatida.
No filme A Drunkard´s Reformation (A recuperação de um alcoólatra, 1909), do célebre cineasta
David Wark Griffith, observamos como o enredo apresenta o constrangimento de um pai alcoólatra
ao levar sua filha ao teatro para assistir a uma peça que narra o processo de degeneração do
personagem pelo álcool. O cidadão de bem da peça toma partido das políticas de temperança, como
fica evidente na cena em que assina um abaixo-assinado que pede restrições à “bebida demoníaca”.
Ao aderir à campanha, receberá como recompensa de seu ato o amor de uma linda jovem.
Apesar do gesto, pouco tempo depois o homem é seduzido por uma mulher de moral duvi-
dosa e ébria; seus amigos o arrastam para o bar e o que começa em uma dose termina na agressão
de sua esposa e filha ao irem buscá-lo no estabelecimento. Valendo-se da montagem paralela,
Griffith intercala a história trágica do alcoólatra da peça teatral com a expressão facial do homem
sentado no teatro, acompanhado de sua filha. Ao longo da peça, sua face se transforma: se pri-
meiramente esboçava profunda tranquilidade, ao longo da história a perturbação ascendente fica
evidenciada não apenas pelo terror de sua face, mas pelo modo como aproxima seu corpo de sua
filha, procurando preservar o que lhe havia de mais precioso no mundo. Ao fim da peça, o homem,
profundamente tocado, retorna para casa ao encontro da esposa. Lá chegando, a mulher mergu-
lhada em profunda tristeza é surpreendida com sua promessa de nunca mais beber. Ao comentar
o filme, Ismail Xavier afirma que o esquema adotado por Griffith

é comum a um sem-número de melodramas da época, entretenimento barato oferecido


a imigrantes analfabetos, operários, office-boys, mulheres com crianças no colo, desocu-
pados. O dado relevante para nós é o estratagema de Griffith para caracterizar os vários
passos, para dramatizar esta iluminação de consciência. Pela primeira vez, faz uso do
chamado campo/contracampo: alterna a imagem do palco e a imagem do alcoólatra na

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 9


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

plateia (reação): repetida a alternância, seguimos as suas mudanças (19) de expressão à


medida que a ação evolui no palco. Pela montagem, a situação vivida em determinado
espaço é decomposta. Na sucessão de imagens, vemos ora uma porção deste espaço, ora
outra – uma direção do olhar, e sua inversão, de modo a observar campos opostos. [...]
A preocupação pelo sério, pelos bons efeitos do espetáculo, evidenciada nestes exem-
plos é a reação do cineasta a um contexto social onde as classes mais altas rejeitam o
cinema. Carente de legitimidade, o novo espetáculo popular tem de lutar para superar
os preconceitos [...]. Nesta institucionalização, põe-se em prática um velho pressuposto:
a imitação da vida deve ser instância de um “exemplo regenerador”. A ficção, que atrai
pelo prazer, justifica-se pela correção do caráter. (Xavier, 1982, pp. 18-22)

Dentro dessa ordem de considerações, Xavier afirma no livro O olhar e a cena (2003) que A
Drunkard´s Reformation apresenta no interior da concepção do espetáculo de Griffith “mensagens
regeneradoras do espírito, cumprindo uma nobre função moral, conforme o desejo das instâncias
de poder”. Como expressão social de uma época o filme se ajusta

às necessidades do momento, pois sabemos o quanto o cinema, naquela época mais


ainda do que hoje, era alvo da desconfiança dos moralistas e das igrejas, quando não
objeto de censura policial direta e de uma vontade de extermínio, porque coisa vulgar do
populacho. A batalha da legitimidade e a conquista do público mais respeitável pediam
verdadeiros filmes-manifesto como esse, em que o senso griffithiano da arte reduzia o
problema da catarse a tal efeito mecânico de iluminação imediata pela contemplação
do exemplo. [...] Griffith é direto na inscrição do cinema no campo da fábula moral – fór-
mula que privilegiou por toda sua carreira. (Xavier, 2003, pp. 69-70)

Ao analisarmos os filmes Victimes de l’alcoolisme (1904), de Ferdinand Zecca, e A Drunkard’s


Reformation (1909), de D. W. Griffith, é possível determinar a função do melodrama na formação
da compreensão binária e maniqueísta na questão do consumo de álcool. Como pontua Xavier, ao
descrever o cinema do período como um entretenimento ou uma arte em busca de legitimidade
cultural, esse cenário iria mudar progressivamente a partir da realização do filme francês O
assassinato do Duque de Guise (1908), marco no qual o cinema estabelece vínculos mais profundos
com expressões artísticas consagradas, como o teatro e a literatura. A partir do filme, nota-se na
história do cinema o delineamento de uma receita artística interessada em atrair um público
“mais respeitável” às salas de projeção, mas que continuava a ser um fabuloso entretenimento
popular, no qual o gênero cômico se consagrou pelo grande sucesso comercial e por personagens
cômicos de extrema maestria como Charles Chaplin. Nesses filmes, o tom moralizante da primeira
década do século sofrerá transformações, particularmente, em sua matéria satírica à época que o
proibicionismo do álcool avança nos Estados Unidos.

A sátira ao alcoolismo das elites

Em meados da década de 1910, o cinema estadunidense do gênero cômico contava com o


grande nome de Mack Sennett, produtor dos estúdios Keystone responsável por introduzir o britâ-
nico Charles Chaplin no cinema. À época, mais precisamente em 1914, Sennett já era consagrado

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 10


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

por suas comédias de perseguição e pela constante sátira às autoridades policiais, em especial na
série Keystone Cops. Nesse cenário próspero, a chegada de Chaplin irá agregar ao estilo de Sennett
lições cômicas aprendidas com pioneiros como Onésime e Max Linder (Walker, 2008, pp. 20-21).
Após esse período inicial ao lado de Sennett na Keystone, Chaplin realiza alguns filmes
para a Essanay, onde experimenta fórmulas cômicas que, pouco tempo depois, nos estúdios da
Mutual, serão levadas à perfeição, como as transposições cômicas, pantômicas e a agilidade nas
transformações, ao lado do desenvolvimento nítido das notas “de emoção melancólica, ironia
e sátira social que caracterizarão as obras de sua plena maturidade” (Gomes, 1954). Ainda nessa
fase, Chaplin substitui o vagabundo pelo tipo grã-fino e bêbado, devorado pelo tédio e pelo vício.
Nos filmes que Chaplin representa o grã-fino, Paulo Emílio afirma que o ator se apoia no solo de
pantomima, evocando seu passado na Karno Pantomime Company ao atuar no filme The Cure (1917)
da série Mutual, considerado o mais rico em comicidade no período.

[imagem 01 – centralizada]

Figura 01: Prestes a pisar na fonte de água terapêutica do centro de recuperação,


Carlitos cambaleia bêbado em direção ao primeiro plano.
The Cure, dirigido por Charles Chaplin, Mutual Film Corporation, 1917

Em The Cure (1917), Carlitos chega de cadeira de rodas em um local de tratamento para al-
coólatras de alta classe. Os endinheirados tomados de melancolia encontram-se aglomerados ao
redor de uma fonte de água fresca, na qual homens e mulheres curvam-se à altura do solo para
encher suas canecas. Temos assim a apresentação de uma terapia substitutiva que visava combater
a abstinência ao considerar, ao lado da substância em si, um conjunto de hábitos, rituais e sensações
presentes no consumo de álcool, como portar utensílios e beber repetidamente líquidos. Logo nas
primeiras cenas a sátira social está posta ao apresentar personagens bem-nascidos em estado de
fragilidade, invertendo assim a ordem das coisas. Neste ambiente, Carlitos invade a ação cambale-
ante e salta pela fonte sem se isentar de deixar uma breve e sutil pisadela enquanto é observado e
encarado negativamente pelos que compactuavam do ritual.
Carlitos retoma o eixo e, auxiliado por um funcionário do centro de recuperação, é precipita-
do para dentro do edifício. Já no quarto, após passar desastrosamente pela porta giratória, Carlitos
recebe sua bagagem: um robusto baú que quase alcança seu tamanho. Após a entrega, o superior
sai do recinto e o funcionário do hotel, um tipo bastante barbudo com olhar perdido, ingere por

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 11


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

uma de suas narinas uma substância que tanto poderia ser rapé quanto cocaína. Na sequência, sem
esboçar nenhum pudor, tenta fumar algo que poderia ser um cigarro de tabaco ou de maconha.
Carlitos o repreende, afinal eram aqueles vícios reprováveis, derivados de uma classe social que não
era a sua. O agravo é levado ao ápice quando Carlitos retira o cigarro da boca do funcionário do
hotel, o analisa e o joga fora, para imediatamente na sequência abrir seu baú, ou melhor, uma ver-
dadeira adega repleta de bebidas alcoólicas, como licores, vinhos, uísques, gins etc. Propriamente
para vestir, Carlitos possui um chapéu, uma escova de dente, uma navalha e um colarinho, fato que
intensifica a denúncia da hipocrisia dos consumidores de álcool para com os vícios ou hábitos dos
outros e de outras classes sociais.

Figura 02: Em seu quarto, Carlitos confere a bagagem: chapéu, navalha


e uma escova de dente rivalizam com o fabuloso arsenal.
The Cure, dirigido por Charles Chaplin, Mutual Film Corporation, 1917

Ao analisarmos a cena, podemos ainda considerar a partir da grande quantidade de bebida


na mala de Carlitos que a opção que visa pelo exagero atingir o ápice cômico simultaneamente revela
um dos aspectos culturais que acompanham o consumo de substâncias: o colecionismo, observado
mais tarde em obras da literatura americana como Almoço Nu (2016), de William S. Burroughs, e Medo
e Delírio em Las Vegas (2016), de Hunter S. Thompson.
Ao fim de The Cure, o arsenal de Carlitos é descoberto e um funcionário é obrigado a lançar as
bebidas pela janela, que, por ironia do destino, acabam caindo no interior da fonte de água visitada
pelos alcoólatras em recuperação. É possível que o leitor possa imaginar sem dificuldade a verda-
deira algazarra que toma o local, com os hóspedes alegres, felizes, ébrios.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 12


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Figura 03: Após beberem da fonte, batizada pela dispensa do suprimento de Carlitos, os
hóspedes protagonizam uma grande algazarra no hall do centro de recuperação.
The Cure, dirigido por Charles Chaplin, Mutual Film Corporation, 1917

No dia seguinte, todos estão acometidos por uma grande ressaca, e Carlitos, diante da fonte
e na iminência de beber novamente, é interrompido pela jovem que conhecera e se apaixonara.
Ele promete que não irá mais beber, mas, na sequência, ao caminhar com a dama ao seu lado, cai
de corpo inteiro dentro do poço de álcool, uma das fatalidades que o impedem de levar uma vida
abstêmia.

Figura 04: Na cena, personagens ébrios se divertem, tocam um abajur como trompete ou
repousam sonolentos, enquanto a amiga de Carlitos observa em sua sobriedade o estado ébrio
dos demais. The Cure, dirigido por Charles Chaplin, Mutual Film Corporation, 1917.

O tom cômico aplicado ao filme destoa assim dos melodramas de Zecca e Griffith, ao satirizar
de modo mais ameno o consumo de álcool das classes mais abastadas ao invés de tratar o consumo
de álcool associado à miséria e à degradação da família operária. Ao fim da década de 1910, o gênero
cômico talvez expressasse algumas mudanças sociais trabalhadas pelas ficções, afastando-se do
maniqueísmo posto pelos primeiros melodramas. Segundo Xavier,

À medida que o século XX avançou, as mudanças sociais e as novas questões trabalhadas


na ficção deram lugar a um imaginário gradualmente marcado pela psicologia moderna
e por uma franca medicalização do senso comum, em que a admissão da utilidade do pra-
zer para a vida sadia veio combater o ascetismo religioso e ajudar os padrões morais do
melodrama à tolerância e ao hedonismo da sociedade de consumo. (Xavier, 2003, p. 93)

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 13


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Um ano depois, o filme Good Night Nurse (1917), de Roscoe Fatty Arbuckle, narra a história de
um alcoólatra inveterado, capaz de acender um cigarro no meio da chuva sob o amparo do cap de
um policial distraído, ou ainda enviar seu amigo ébrio pelo correio. Enfim, é um degenerado rico e
cômico, levando a vida a seu bel prazer, quando sua esposa o surpreende na sala de casa na compa-
nhia de uma dançarina, um tocador de realejo e seu macaco treinado – a gota d’água para aceitar se
submeter a um tratamento milagroso que prometia curar o alcoolismo.

Figura 05: Acompanhado de sua esposa, Fatty Arbuckle chega ao centro de


tratamento, recepcionado pelas enfermeiras e por uma paciente que salta ao seu colo.
No papel de médico, Buster Keaton, todo coberto de sangue, afia uma grande faca.
Good Night, Nurse!, dirigido por Roscoe Fatty Arbuckle, Comique Film Corporation, 1918

Ao chegar à clínica, o médico (Buster Keaton) o aguarda vestindo um avental branco tingido
de sangue, o que causa terror ao personagem e gargalhadas aos espectadores. Fatty tenta escapar
de todos os modos, mas a administração hospitalar acaba restringindo sua liberdade ao ser levado
à força para a mesa de cirurgia, onde é dopado com uma farta porção de éter. Através da câmera
subjetiva, podemos observar a simulação dos efeitos do éter no personagem mediante o desfoque
da imagem dos médicos e enfermeiros.

Figuras 06 e 07: Os enfermeiros ministram éter como anestésico em Fatty Arbuckle.


Na cena seguinte, vemos a partir da perspectiva do paciente os efeitos do éter.
Good Night, Nurse!, dirigido por Roscoe Fatty Arbuckle, Comique Film Corporation, 1918

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 14


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Nas cenas seguintes, Fatty acorda em seu leito e dá continuidade à fuga, acompanhado
de uma das pacientes da clínica. Uma grande luta de almofadas entre pacientes e funcionários
proporciona a ocasião perfeita para a fuga de Fatty e sua colega. Fatty encontra tempo para simular
seu afogamento com uma mangueira e para se vestir de enfermeira, enganando o médico e os
outros funcionários da clínica. Mas logo seu disfarce desaba, e nosso herói protagoniza uma virtuosa
e clássica comédia de perseguição ao encontrar pelo caminho uma competição de velocidade.
Perseguido pelo médico, enfermeiros e seguranças da clínica, Fatty corre tanto que ultrapassa os
corredores, acabando por vencer a corrida e consagrar, ao mesmo tempo, o tipo cômico do gordo
ágil que surpreende pelas proezas físicas pouco condizentes com seu tamanho.

Figura 08: Fatty Arbuckle desperta da anestesia, retornando do mundo onírico.


Good Night, Nurse!, dirigido por Roscoe Fatty Arbuckle, Comique Film Corporation, 1918

Seu feito prodigioso é vencer a corrida e receber uma fabulosa soma em dinheiro, que apro-
veitaria se não fosse a chegada sorrateira de seus algozes, tendo Keaton na liderança. A intervenção
que sofre o leva a protagonizar uma luta digna da comédia física, na qual um conjunto de homens
pequenos supera a destreza física de um Golias. A luta termina com o médico agarrando Fatty pela
garganta, quando através de uma transição estamos de volta à mesa de cirurgia, no momento em
que Fatty acorda da anestesia à base de éter. Tudo não passou de um sonho – ou pesadelo. Vemos
nosso personagem sentado sobre a maca e esboçando um largo sorriso, que pode, entre outras coi-
sas, insinuar o alívio de que tudo não passou de um sonho, ou ainda, a cura do alcoolismo.

Figura 09: Buster Keaton afia sua faca, enquanto, totalmente distraído,
Fatty Arbuckle conversa com a enfermeira. Good Night, Nurse!,
dirigido por Roscoe Fatty Arbuckle, Comique Film Corporation, 1918

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 15


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Em conjunto, os filmes que tratamos até aqui demonstram como o alcoolismo foi um tema
social tratado tanto pelo melodrama quanto pelos aspectos cômicos que se poderia tirar de um
consumo problemático – ou hedônico. Tanto Fatty quanto Carlitos são bêbados alegres ou mesmo
personagens satíricos, assim como os álcoois dos filmes de Zecca e Griffith prejudicam apenas a
si próprios ou sua família. Mas, nessa esteira, a expressão social do consumo de álcool e drogas
receberá nos Estados Unidos novos contornos com a proibição do álcool e a intensificação do
combate a outras drogas.

Proibicionismo e pânico moral



Assim como o álcool, a proibição de outras drogas remonta ao início do século XX. Segundo
Delmanto (2016, p. 29), interessada no aproveitamento máximo da forma de trabalho, “a coerção
industrial estabeleceu como principais alvos o sexo e as drogas, inclusive o álcool. É daí que vêm
as proibições estadunidenses contra a venda e consumo de ópio (1909), cocaína e heroína (1914) e
finalmente das bebidas alcoólicas, com a famosa lei de 1919”. Ou seja, a proibição do álcool começa
a se delinear no início do século XX, refletindo as temáticas associadas à degeneração nos filmes de
Zecca e Griffith, ou como assunto, dois anos antes da promulgação da Lei Seca, dos filmes cômicos
de Chaplin e Fatty Arbuckle, expressões de um contexto histórico abalado pela I Guerra Mundial,
que pouco tempo depois irá formular e fortalecer políticas restritivas ao consumo de álcool e outras
substâncias. Segundo Henrique Carneiro,

O consumo de tabaco e álcool, assim como das drogas legais e ilegais em geral, passou a
ser objeto de uma forte intervenção reguladora estatal desde o início do século XX, que
redundou em tratados internacionais, legislações específicas, aparatos policiais e numa
consequente hipertrofia do preço e do lucro do comércio de drogas. Ao mesmo tempo,
desenvolveu-se um imenso aparato de observação, intervenção e regulação dos hábitos
cotidianos das populações [...]. O controle dos hábitos populares tornou-se objeto de
corpos policiais, estamentos médicos, psicológicos, industriais, administradores cientí-
ficos. O taylorismo e o fordismo foram concomitantes aos mecanismos puritanos da Lei
Seca, e a discriminação racial de imigrantes serviu de pretexto para a estigmatização do
ópio chinês e da marijuana mexicana nos Estados Unidos. (Carneiro, 2002, p. 9)

Desse modo, os filmes destinados ao combate do alcoolismo e posteriormente de outras


drogas aliaram-se ao movimento mais geral da sociedade, irradiando através do cinema o que
Stanley Cohen chamou de “pânico moral”. Segundo esse autor,

Sociedades parecem estar sujeitas, de vez em quando, a períodos de pânico moral. Uma
condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas é definido como uma ameaça aos va-
lores e interesses da sociedade; sua natureza é apresentada de uma forma estilizada e
estereotipada pela mídia de massa; as barricadas morais são tripuladas por editores,
bispos, políticos e outras pessoas bem pensantes; socialmente acreditados, peritos pro-
nunciam seus diagnósticos e soluções; formas de enfrentamento são evoluídas [...]; a
condição depois desaparece, submerge ou deteriora-se e torna-se mais visível. Às vezes
o objeto do pânico é bastante novo e em outros momentos é algo que tem existido por

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 16


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

muito tempo, mas de repente aparece no centro das atenções. Às vezes, o pânico passa
por cima e é esquecido, exceto no folclore e na memória coletiva; em outros momentos
ele tem repercussões mais graves e de longa duração, e pode produzir tais mudanças
como aquelas em política jurídica e social ou mesmo na forma como a sociedade conce-
be a si mesmo. (Cohen, 2011, p. 1)

Segundo Cohen (2011, p. 1), “quando tais apelos vêm de vozes de autoridade (como juízes,
especialistas, profissionais, inquéritos governamentais) o pânico moral é mais fácil de manter,
mesmo que apenas por pura repetição”. Para o autor, apesar da necessidade do depoimento de
peritos para explicar os perigos ocultos por trás do superficialmente inofensivo, como beber ou
fumar maconha, eles também são problemas passíveis de serem identificados pelo senso comum.
Desse modo, “drama, estado de emergência e de crise; exagero; valores estimados ameaçados;
objeto de preocupação, ansiedade e hostilidade; forças do mal ou pessoas para serem identificadas
e interrompidas etc.” (Cohen, 2011, p. 35) pela ação das autoridades competentes.

Figura 10: Buster Keaton, coberto de sangue, ordena que seus


enfermeiros conduzam o paciente para a sala de cirurgia.
Good Night, Nurse!, dirigido por Roscoe Fatty Arbuckle, Comique Film Corporation, 1918

Tendo em vista o conjunto de fatores responsáveis pela legitimação social do pânico, o ci-
nema não teria propriamente lastro social e estaria alijado do público e da bilheteria. Mas a função
despendida por outros setores da sociedade aprofundou a capacidade desses filmes transmitirem
tendências ideológicas conservadoras e eugenistas, defendidas por médicos, juristas, industriais,
policiais etc.

Gângsteres e álcoois em busca do sonho americano

Nas décadas de 1920 e 1930, a proibição do álcool favoreceu o desenvolvimento de


empreendimentos organizados, verdadeiros sindicatos do crime que detinham o controle do
mercado ilegal de bebidas alcoólicas. Este novo mundo, regido pelo crime organizado, aparece
representado nas ondas do rádio, nas páginas dos jornais e nos filmes de gângsteres:

Os filmes de gângsteres falados eram escritos por jornalistas e dramaturgos, veteranos e


observadores que conheciam o mundo metropolitano e seus escoadouros em primeira

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 17


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

mão. O melodrama era o ingrediente principal do ciclo, mas à medida que os escritores
dominaram os filmes de gangster de 1930 e 1931, formaram um mosaico documental,
um panorama do crime e sua punição em uma sociedade instável. (Paiva, 1953, pp. 74-75)

Seguindo as considerações de Salvyano Paiva, os filmes de gângsteres nasceram diretamen-


te e sentimentalmente da Lei Seca e da injustiça penal, dois fenômenos paralelos, no tempo, da
civilização norte-americana. No princípio da década de 1930, o gângster se tornou um herói popu-
lar porque somente um contraventor poderia encontrar sucesso no caos social provocado pela crise
econômica de 1929. Uma espécie de banditismo focado na salvação pessoal aparecia como única
alternativa para aqueles que sonhavam em “fazer a América”. Na perspectiva de Paiva, esta ótica
perdurou nos filmes do gênero entre 1931 e 1934, em filmes que apresentavam o contraventor como
herói e estabeleciam laços de identificação com o público. Mas, com o rearranjo da economia esta-
dunidense e o fim da lei seca, os papéis retomam a configuração maniqueísta original: o bandido
é o malvado e o policial, o salvador da pátria, assim como o poder das forças policiais é inigualável
ao poder do crime, baseado na força bruta e na truculência. Em filmes como G-Man (1935), os pro-
cedimentos científicos de investigação adotados pela polícia são apresentados como arma secreta
na luta contra o crime (Paiva, 1953). Em todo caso, uma rápida observação dessa inversão temática é
expressão direta do arrefecimento da recessão, o fim da Lei Seca e a redução do sentimento de im-
punidade, orquestrada com a punição de grandes gângsteres, como a prisão de Al Capone em 1931.
Em meio à diluição paulatina dessa atmosfera, os gângsteres aparecem ora como vilões,
ora como heróis, na comédia What! No Beer? (Entre Secos e Molhados, 1933), protagonizada por Buster
Keaton e Jimmy Durante e dirigida por Edward Sedgwick. A história protagonizada pelo taxider-
mista Elmer (Keaton) e o barbeiro Jimmy (Durante) foi lançada um mês antes da revogação da Lei
Seca, produzida nos estúdios da Metro-Goldwin-Mayer, de modo que não poderemos considerá-la
como um filme de exploração, como os produzidos por diretores como Dwain Esper. Contudo, o tom
propagandístico do filme a favor da regulamentação do álcool reforça os vínculos que as imagens
estabelecem com a sociedade no sentido de corroborar com a opinião pública.

Figura 11: O ativista pró-cerveja Jimmy em seu carro. No adesivo, pode-se ler “estou todo molhado”,
o mesmo que dizer estou bêbado, ou ainda, não sou abstêmio.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 18


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

A trama sutil, pouco engenhosa, mas verossímil ao basear a comicidade em situações pal-
páveis, é construída sob dois personagens centrais: Jimmy (Durante), um barbeiro profissional e
ativista inflamado, e Elmer (Keaton), taxidermista de ofício, solitário, por vezes apático e inocente,
mas motivado pela ideia de se tornar milionário e se casar. Nas cenas iniciais, Jimmy dirige um car-
ro repleto de adesivos e mensagens antiproibicionistas. Ao estacionar e adentrar por uma porta,
mergulhamos no mundo sombrio e monótono do ateliê de Elmer, repleto de animais empalhados.
Os tipos cômicos de Elmer e Jimmy são complementares: um é apático, inocente, desligado,
e o outro ativo, ladino e fanfarão. Juntos eles conseguem adquirir uma antiga cervejaria para
alcançarem o sonho estadunidense: se tornar milionários. Mas o sucesso financeiro aparece como
uma consequência ou meio para a realização de projetos pessoais: de Jimmy, em difundir o álcool,
e Elmer, de se casar.
A fixação por uma jovem que observa na rua o faz adentrar em um grande salão, ocupado
por uma convenção proibicionista. Sorrateiro, Elmer observa Hortense (Phillys Barry) e seu acom-
panhante, Butch Lorado (John Miljan), um tipo cuja vilania emana de seu aspecto mais superficial.
O público assiste com atenção o palestrante da noite, Dr. Smith (Sidney Bracey), opositor ferrenho à
regulamentação do álcool. Assim como na vida real, a autoridade médica dissemina o pânico entre
seus ouvintes, assegurando com veemência os malefícios mortais da substância. Ao ouvir o discurso,
Elmer protesta, mas é rapidamente atirado para fora do anfiteatro, como um saco de batatas.
A representação dos proibicionistas em trajes de gala, divididos entre austeros e esnobes
os posiciona no campo oposto do universo popularesco de onde efluem as tendências favoráveis
à regulamentação do álcool, como na barbearia em que Jimmy trabalha. Clientes e trabalhadores
comungam da mesma animação com o resultado favorável obtido no plebiscito regional, entoando
em coro palavras de ordem como “nós queremos cerveja”. A empolgação que acomete a barbearia
acaba por produzir cenas bastante cômicas, com exageros de creme de barbear e golpes de navalha
que evocam a tradição cômica de Mack Sennett. O horizonte de expectativas dos personagens é
ampliado quando Jimmy convence Elmer a investir suas economias na compra de uma cervejaria
abandonada e revitalizá-la.
Ao chegar ao local, encontram o estabelecimento ocupado por desabrigados, que de
pronto são contratados como funcionários da cervejaria. Eles limpam o local e começam a fabri-
car cerveja a partir de uma receita de Jimmy, que nunca havia fabricado algo semelhante. Como
era de se esperar, a caldeira transborda e em meio a tombos e trapalhadas, os novos empresá-
rios envasam sua mercadoria e abrem seu estabelecimento, sinalizado com um grande anúncio
na entrada. Rapidamente, as forças policiais invadem o local e interrompem as atividades. Na
delegacia, em frente ao chefe de polícia, Jimmy afirma conhecer seus direitos e que o país está
mudando – pessoas de Nova York à Califórnia pensam como ele. Elmer fica em silêncio e, alge-
mado a Jimmy, é arrastado de um lado para o outro pelos largos gestos de indignação do sócio
ítalo-americano que preserva a construção inicial dos tipos cômicos: o atrapalhado, cínico, mas
perseverante, e o apático, sonso, mas comprometido. A dupla escapa dos seis anos de prisão aos
quais seriam condenados após o teste químico da polícia apontar que a cerveja apreendida não

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 19


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

possuía graduação alcoólica. O jogo vira e Jimmy, mais uma vez inflamado, destaca: “Vocês pen-
saram que éramos o quê? Gângsteres?”

Figura 12: Acusados de produção clandestina de cerveja, Elmer (Buster Keaton) e


Jimmy (Durante) se defendem diante do comissário de polícia.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933

Liberados e preocupados com a perda do investimento de Elmer, Jimmy decide fabricar


cerveja a partir de uma receita oferecida por um dos “vagabundos” que havia contratado. Elmer
se encarrega da contabilidade e logo o empreendimento está a todo vapor, a ponto de despertar
a atenção de gângsteres como Spyke Moran (Edward Brophy) e Butch Lorado, o mesmo homem
honorável visto frequentando os círculos proibicionistas. A construção do personagem condensa
temas como a hipocrisia, a má fé e os interesses ocultos de setores interessados na manutenção da
legislação proibicionista, como o crime organizado.
Ao mesmo tempo, o gângster Spyke Moran é representado como um empresário mais só-
brio, na sequência em que conhece Elmer e percebe que ao contrário de ameaçar e tentar tomar o
empreendimento, como desejava Lorado, o mais sábio seria contratar a cervejaria para abastecer
seus bares clandestinos. A construção dessa tomada evidencia outro dos objetivos ideológicos do
filme, que é representar a possibilidade de adequação de empresários ilegais a modos de produção
regulamentados ou em vias de, e abandonar os mecanismos de violência empregados no controle
do mercado negro. O gângster encomenda e paga no ato 10 mil dólares em cerveja, convencido pela
oferta irrecusável de Elmer. Sem saber, nosso herói começa a trabalhar para o mafioso e, diante do
novo contrato firmado, avisa os empregados e parte alucinadamente para a central de emprego, à
procura de novos trabalhadores.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 20


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Figura 13: A produção de cerveja recomeça em grande velocidade e com maior pragmatismo.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933

Ao chegar ao local, Elmer observa o grande número de desempregados sentados na calçada,


imagens que refletem condição do emprego nos Estados Unidos após a crise de 1929. Encostando
sutilmente no guichê, Elmer anuncia que está à procura de trabalhadores, agitando a grande turba
desanimada e empilhada às margens da central de emprego. Assim como o primeiro ato de Elmer
e Jimmy como empresários cervejeiros havia sido contratar os desempregados que habitavam
a antiga fábrica, o crescimento do empreendimento aquece a economia e amplia o mercado de
emprego. A turba contratada que quase esmaga e persegue Elmer até a fábrica sustenta outro dos
argumentos antiproibicionistas do período: a geração de empregos com a retomada da produção
legal de bebidas alcoólicas e uma das alternativas para os altos níveis de desemprego – pauta que
convenceu o presidente Franklin Delano Roosevelt a apoiar a medida.

Figura 14: A ampliação da produção é representada como oportunidade de trabalho


para o exército de desempregados à época da depressão econômica.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933

Do ponto de vista estilístico, as cenas em que Elmer é perseguido prestam nova referência
à tradição cômica de Sennett que perduraram em seu estilo, como no filme A General (1926), ao
perseguir incansavelmente os raptores de sua locomotiva. No filme What! No Beer? (1933), a perse-
guição aparece ainda em outras ocasiões, como na cena em que Elmer, ao conduzir um caminhão
repleto de barris de cerveja pelas ruas da cidade é perseguido pela organização de Butch Lorado.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 21


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Sem saber que os gângsteres se preparam para a emboscada, Elmer dirige tranquilamente, até
o momento em que um pneu estoura no alto de uma grande ladeira. Uma lufada de ar retira seu
chapéu da cabeça e desvia sua atenção para um sutil desarranjo da carga, mas sua intervenção
acaba precipitando uma sequência grandiosa, talvez a mais condizente com o estilo cômico físico
de Keaton: ao se desprenderem da carroceria, os barris rolam ladeira abaixo, tendo Elmer à frente,
correndo para não ser esmagado. Enquanto vemos Elmer tomar distância, os gângsteres de Lorado
invadem com seus carros a ladeira, sendo massacrados pelo mar de barris – um acaso e tanto para
Elmer, que de nada desconfia.

Figuras 15 e 16: Elmer desce a ladeira em grande velocidade para não ser esmagado pelos barris de cerveja.
De outro ângulo, vemos a fuga de Elmer. Ao fundo, gângsteres em seus carros precipitam-se para a emboscada.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933.

Após o incidente com os barris, Lorado não desiste e invade a cervejaria, obrigando os tra-
balhadores e proprietários a trabalharem sob suas ordens. Não restando muito a fazer, obedecem
Lorado, mas conseguem colocar Elmer dentro de um barril e o atiram desastrosamente para fora
da fábrica. Pensando em um modo de resolver a situação, Elmer tem a ideia de convidar a cidade
toda para um drinque grátis, criando uma distração que possibilite a retomada de seu empreendi-
mento. Em cortejo, o personagem desfila por ruas e avenidas, portando uma placa com a seguinte
inscrição: “Hoje! Cerveja grátis na cervejaria. Sigam-me!”.
A cidade entra em polvorosa e o persegue até a fábrica, empunhando baldes, canecas e
sorrisos faciais que expressam o sentimento de alegria geral. A ideia funciona e rapidamente, com
a invasão pública da fábrica, os gângsteres são dominados, e tem início a distribuição massiva de
cerveja. Enquanto o povo faz a festa, os antagonistas da alegria (forças policiais) se preparam para
tomar de assalto a fortaleza do vício. A sátira às autoridades, elemento básico das primeiras comé-
dias, é intensificada em cenas como as do burro que, atado à charrete, seca um caldeirão que havia
sido deixado ao seu alcance. Após o burro estar bêbado e o estoque de cerveja acabar, os policiais
chegam ao local, onde não encontram uma gota de álcool sequer. A cena da chegada da polícia é in-
tercalada ao close-up do burro a relinchar, puxando a charrete em câmera lenta pelas ruas da cidade
para dar a exata extensão de sua embriaguez e sugerir claramente o atraso das autoridades.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 22


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Figura 17: Um exército de pessoas draga todo o estoque de cerveja,


a fim de eliminar todas as provas antes da chegada da polícia.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933

No fim do filme, um salto para o futuro mostra Jimmy e Elmer sendo festejados como em-
presários bem-sucedidos do ramo de cervejas, ao serem recepcionados em uma festa grã-fina em
carro aberto. As imagens mostram a realização do sonho americano, e o de Elmer, em se casar com
Hortense, antiga amásia de Lorado, e, é claro, em um contexto em que a Lei Seca havia chegado
ao fim. Um happy end que ainda não havia se concretizado, pois o filme foi lançado em fevereiro
de 1933, um mês antes da regulamentação federal da produção, da distribuição e do consumo de
bebidas alcoólicas pelo Congresso estadunidense. Uma moldura narrativa é agregada ao filme, tra-
zendo o espectador para o exato momento em que se encontravam, em um contexto de proibição,
mas com um futuro diferente no horizonte de possibilidades, como podemos observar na cena final
em que Jimmy, bebendo uma grande caneca de cerveja, se dirige à câmera e diz: “É a vez de vocês,
pessoal. Agora não falta muito”. E dá um grande e prazeroso gole em sua grande caneca espumante.

Figura 18: Jimmy convoca os espectadores a votar a favor da regulamentação da produção,


da distribuição e do consumo de álcool, portando uma grande caneca de cerveja.
What! No Beer?, dirigido por Edward Sedgwick, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1933.

Em conjunto, o filme What! No Beer? possui valor sociológico, ao expressar o ponto de vista
antiproibicionista através das aventuras dos ativistas e empresários dos anos 1930, e artístico, ao
adaptar lições cômicas da época do mudo ao falado e ao apresentar tipos cômicos antagonistas,
mas complementares, próprios das comédias de perseguição, assim como da comicidade retirada
de situações incomuns. Podemos ainda pensar o filme em duas partes: se, na primeira, Jimmy é o

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 23


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

responsável pelo desenvolvimento do projeto, do ponto de vista da tomada de decisão e da constru-


ção cômica das ações, Elmer, sonso, apático e por vezes melancólico, toma em suas mãos a liderança
do empreendimento, fechando contratos, contratando novos empregados e salvando o dia.

Considerações finais

Ao longo de nosso artigo, procuramos apresentar algumas características que ligam os fil-
mes aos movimentos mais gerais da sociedade nos primeiros 40 anos do século XX, no que se refere
à proibição do álcool. Ao longo de nossa narrativa, demonstramos que, num primeiro momento,
o consumo abusivo de álcool foi tratado pelo cinema ao dar vasão a temas bastante correntes na
literatura e na imprensa, tanto quando pontuamos algumas contribuições do melodrama para o
esclarecimento das classes proletárias quanto aos perigos do alcoolismo, doença que os impedia
de desempenhar suas funções no ritmo exigido pelos industriais – e o cinema, como arte plebeia,
possuía o público-alvo a ser alcançado pela mensagem.
Do mesmo modo, demonstramos como os problemas do alcoolismo foram satirizados por
Chaplin e Fatty Arbuckle em suas comédias, ao refletir o trato menos maniqueísta que os melodra-
mas no momento em que o discurso proibicionista se intensificava na sociedade americana, e que
culminaria pouco tempo depois na aprovação da Lei Seca e no fortalecimento do crime organizado,
heroicizado pelos filmes de gângsteres após a crise de 1929, momento da história estadunidense
em que apenas através da contravenção o sonho americano poderia se realizar. Em What! No Beer?,
a regulamentação álcool é apresentada como saída viável para uma política fracassada – o proibi-
cionismo –, ao apresentar pessoas comuns que poderiam realizar o sonho americano mais uma vez,
mas agora amparadas pela legislação. Enfim, acreditamos que a conjunção dos filmes apresenta-
dos recompõe um quadro de trinta anos da história do álcool no cinema, da proibição à regulamen-
tação, mediante o exame do papel de gêneros cinematográficos como o melodrama, os filmes de
gângsteres e as comédias para a construção de uma narrativa palatável para o público – expressões
sociais do discurso proibicionista e de seu antagonista, o antiproibicionismo.
Após o fim da Lei Seca, médicos, cientistas, juristas e legisladores cessavam a perseguição
aos álcoois, ao mesmo tempo que mobilizaram sua razão de ser no combate ao consumo de ou-
tras substâncias, como a maconha, a heroína e o ópio, inaugurando uma verdadeira cruzada étnica
contra seus consumidores, como negros, chineses e latinos. Nota-se, ainda na década de 1930, a ex-
pressão desse movimento nos filmes de exploração, na imprensa, nos discursos médicos e jurídicos
do período. Enfim, esses e outros temas tratados pelo cinema em épocas e contextos específicos
reafirmam questões em aberto que devem ser discutidas por uma sociedade que se pretende de-
mocrática, inclusiva, horizontal.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 24


Os álcoois no cinema (1904-1933): afirmação e sátira do discurso proibicionista Rafael Morato Zanatto

Referências

ABEL, Richard. The Ciné Goes to Town: French Cinema 1896-1914. Los Angeles: University of Califor-
nia Press, 1998.
BAKER, Phil. Absinto, uma história cultural. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.
BURROUGHS, William S. Almoço nu. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
CAMARGO, Daisy. Alegrias engarrafadas: os álcoois e a embriaguez na cidade de São Paulo no final
do século XIX e começo do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
CARNEIRO, Henrique. A fabricação do vício (2002). Disponível em: <www.neip.info/downloads/t_
hen1.pdf>. Acesso em 10 out. 2019.
COHEN, Stanley. Folk’s devils and moral panics: the creations of the mods and rockers. Nova York:
Routledge Classics, 2011.
DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda Editorial, 2016.
GOMES, Paulo Emílio Sales. Expressão social e propaganda. Anotações da 19ª aula da disciplina de
Linguagem Cinematográfica, Estilo e Expressão Social, parte do Curso para Dirigentes de Cine-
clubes (1958). Cinemateca Brasileira: PE/PI. 0049.
______. Catálogo da mostra “Grandes Momentos do Cinema”. São Paulo: Catálogo do I Festival In-
ternacional de Cinema, 1954.
KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro:
Zahar Editor, 1988.
PAIVA, Salvyano. O gângster no cinema. Rio de Janeiro: Andes, 1953.
THOMPSON, Hunter S. Medo e delírio em Las Vegas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016.
WALKER, Brent E. Mack Sennett´s Fun Factory. A History and Filmography of His Keystone and
Mack Sennett Comedies with Biographies of Players and Personnel. Nova York: Mc Farland, 2008.
XAVIER, Ismail. D.W. Griffith, o nascimento de um cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984.
______. O olhar e a cena. Melodrama, Hollywood, Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
ZOLA, Émile. L´Assommoir. Paris: G. Charpentier, Éditeur, 1877.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 25


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara:
breves considerações sobre as comidas de uma
festa religiosa popular em Salvador

Iansã’s acará at the Saint Barbara festival:


brief considerations on the foods of a popular religious festival in
Salvador, Brazil

Vagner José Rocha Santos 1


RESUMO: Este artigo aborda os hábitos alimentares ABSTRACT: This article approaches the eating habits
na festa centenária de Santa Bárbara, que acontece at the centenary festival of Saint Barbara, which takes
anualmente em Salvador, na Bahia, no dia 04 de place annually in Salvador, Brazil, on December 4th. In
dezembro. Além de tratar do tradicional caruru addition to addressing the traditional caruru offered
oferecido em honra à santa, o texto visa destacar a in honor of the saint, the text aims to highlight the
presença do acará nas celebrações. Graças à influência presence of the acará in the celebrations. Thanks to
afro-diaspórica, a devoção de origem branco-europeia the Afro-Diasporic influence, the white-European
ganhou elementos de matriz africana ao chegar à original devotion gained elements of African origins
capital baiana, sendo as comidas à base de azeite de when arriving in the Bahian capital, and palm oil-
dendê uma prova inconteste. E mesmo o sincretismo based foods are undisputed proof. And even though
afro-católico tendo aproximado Santa Bárbara do orixá Afro-Catholic syncretism has brought Saint Barbara
Iansã, as divindades são reverenciadas com diferentes closer to the Iansã orixá, the deities are revered with
comidas. Ao esclarecer essa aparente divergência, different foods. In clarifying this apparent divergence,
o trabalho demonstra a importância do acarajé na the work demonstrates the importance of acarajé at
festa de 04 de dezembro e a herança africana de the December 4th festival and the African heritage
celebrar com comida. Para auxiliar na discussão sobre of celebrating with food. To assist in the discussion
festas populares em Salvador, culinária afro-baiana about popular parties in Salvador, Afro-Bahian cuisine
e sincretismo religioso, o texto dialogou com autores and religious syncretism, the text dialogued with
como Edilece Couto (2015), Manuel Querino (2006) e authors such as Edilece Couto (2015), Manuel Querino
Pierre Verger (1999). Baseado em revisão bibliográfica, (2006) and Pierre Verger (1999). Based on literature
pesquisa em periódicos e observação participante, o review, journal research and participant observation,
artigo ressalta a relevância da comensalidade na festa the article highlights the relevance of commensality
religiosa popular que começou no século XVII e se in the popular religious festival that began in the 17th
mantém viva até hoje. Desta forma, o texto evidencia century and remains alive today. Thus, the text shows
como determinadas comidas se consolidaram how certain foods were consolidated as constitutive
enquanto elementos constituintes da festa à Santa elements of the Saint Barbara festival in Salvador.
Bárbara em Salvador. Keywords: acará; caruru; Saint Barbara; Salvador, Brazil.
Palavras-chave: acará; caruru; Iansã; Santa Bárbara;
Salvador.

1 Doutorando do Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos (Centro de Estudos Afro-Orientais) da Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas da Universidade Federal da Bahia. Contato: [email protected].

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 26


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

Considerações iniciais

O culto à Santa Bárbara é uma das devoções religiosas populares mais antigas da capital
baiana. Depois que chegou a Salvador, ainda no século XVII, a festa à santa protetora contra os
perigos dos raios e das tempestades ganhou muitos adeptos e novos elementos, especialmente
os relacionados à cultura de matriz africana. Todos os anos, no dia 04 de dezembro, a festa oficial
acontece no bairro do Pelourinho e reúne milhares de devotos que se vestem de vermelho e branco
para saudar “Bárbara guerreira”.
No sincretismo afro-católico, Santa Bárbara foi associada principalmente com o orixá iorubá
Oiá-Iansã. Primeira esposa de Xangô, Iansã divide com o marido o controle do fogo e o domínio dos
raios. Nos terreiros de candomblé, ela é homenageada com acará (bolinho de feijão fradinho frito no
azeite de dendê). Já Santa Bárbara, sua “irmã de criação”, é reverenciada com o oferecimento de caruru.
Ainda que, neste artigo, eu trabalhe apenas com um dos aspectos que envolvem o sincretis-
mo afro-religioso com o catolicismo – a saber: a associação/correspondência entre santos e orixás
–, cabe ressaltar que considero o sincretismo mais do que uma mera estratégia encontrada pelos
negros escravizados para louvar suas divindades. Pensar o sincretismo religioso apenas por esse viés
é reduzir a discussão às exterioridades, sem considerar as práticas imbricadas nos modos de vida
reinventados pelos africanos depois que chegaram ao Brasil.
Além de explicar as razões que levaram as duas divindades a serem homenageadas com co-
midas diferentes, o texto destaca a importância da sociabilidade propiciada pela comida, bem como
outros princípios acionados a partir da comensalidade. Tendo em vista que o caruru é sempre lem-
brado quando se fala da festa de Santa Bárbara em Salvador, o presente trabalho busca enfatizar
também a relevância de outro alimento para a festa: o acará. Para ajudar na compreensão do fenô-
meno que envolve festa, religião e comida, a historiadora Edilece Couto (2015) e pesquisadores da
antropologia afro-baiana como Manuel Querino (2006) e Pierre Verger (1999) foram acionados.
Anualmente, ao celebrar a santa (e o orixá) com comidas à base de azeite de dendê, seus
devotos acabam por reforçar um dos traços da herança cultural africana que foi ressignificada
no processo diaspórico. Ao longo do texto, a partir do olhar sobre essas comidas, será possível
observar algumas especificidades que fizeram a festa de 04 de dezembro atravessar os séculos,
permanecendo viva no rol de devoções do povo baiano.

Breve histórico da festa em Salvador

Bárbara foi uma jovem que viveu durante o século III d. C., na região da Nicomédia (Tur-
quia). Filha de uma família pagã, sua conversão ao cristianismo fez com que seu pai Dióscoro a apri-
sionasse numa torre. O mesmo denunciou Bárbara ao Império Romano e ela foi presa, açoitada e
teve os seios arrancados, mas ainda assim não renunciou à fé cristã. Foi, então, condenada à morte e
seu próprio pai a degolou com uma espada. Logo depois de matá-la, um raio atingiu Dióscoro, que
caiu morto no chão.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 27


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

A história muito antiga e cercada de uma bruma lendária não impediu que o culto à Santa
Bárbara chegasse aos dias atuais com devotos espalhados por várias partes do mundo. No caso do
Brasil, parece que a devoção a essa mártir chegou primeiro à Bahia, em Salvador, no ano de 1641,
através de um casal português que instituiu um morgado2 em honra à santa na Freguesia de Nossa
Senhora da Conceição da Praia.

A festa de Santa Bárbara é um bom exemplo de homenagem que se expandiu


independentemente do clero. O culto a Mártir teve início em Salvador, no século XVII,
por iniciativa de um casal português, Francisco Pereira Lago e Andressa Araújo. Eles
compraram um imóvel e um terreno à Rua Portugal, na cidade baixa, e estabeleceram
vários pontos comerciais que funcionavam em regime de aluguel. No mesmo espaço,
construíram uma capela para Santa Bárbara. (Couto, 2015, p. 132)

O catolicismo que chegou ao Brasil, durante o processo de colonização, valorizava muito a


devoção aos santos. Essa relação próxima entre santos e devotos foi uma herança do catolicismo
ibérico trazido pelos portugueses. Sobre as práticas religiosas no Brasil colonial, Gilberto Freyre
(2006) escreveu que

No século XVII, mesmo no XVIII, não houve senhor branco, por mais indolente, que
se furtasse ao sagrado esforço de rezar ajoelhado diante dos nichos; às vezes, rezas
quase sem fim, tiradas por negros e mulatos. [...]. Quando trovejava forte, brancos e
escravos reuniam-se na capela ou no quarto do santuário para cantar o bendito, rezar o
Magnificat, a oração de São Brás, de São Jerônimo, de Santa Bárbara. Acendiam-se velas;
queimavam-se ramos bentos, recitava-se o credo em cruz. (Freyre, 2006, pp. 520-521)

Em Salvador, a santa protetora contra os perigos de raios e tempestades ganhou mais um
título: “senhora dos mercados”, tendo em vista que o morgado da Cidade Baixa funcionava princi-
palmente como um centro comercial. Pela proximidade com o porto de Salvador, o morgado era um
dos pontos de abastecimento da cidade durante os primeiros séculos da colonização. Nessa região,
circulavam também bastante africanos e crioulos (filhos de africanos nascidos no Brasil). Os escra-
vos de ganho costumavam vender uma variedade de produtos, inclusive, comidas prontas nas áreas
do cais e do mercado de Santa Bárbara.
De acordo com Cecília Soares (1994, p. 17), “nesse local encontravam-se dois grandes
mercados,3 sendo o principal o de Santa Bárbara. Ali trabalhavam as negras vendendo diversos
produtos, mas elas também comercializavam nas ruas e no cais frutas, verduras e principalmente
comida pronta”. Habilidosas no comércio de alimentos, a arte de mercar era uma atividade que as
negras dominavam há muito tempo na África Ocidental e Central.
2 Morgado (ou morgadio) era uma forma de organização da linhagem familiar na qual as propriedades eram inalienáveis e, após a morte do seu

instituidor, os bens eram transmitidos ao filho primogênito, perpetuando o poder de determinadas famílias.
3 O outro grande mercado que funcionava na Cidade Baixa era o mercado de São João e, com o de Santa Bárbara, cumpria a função de abastecer a

cidade até meados do século XIX. O Celeiro Público da Bahia, fundado em 1785, gradativamente, assumiu o papel de abastecer a cidade com gêneros
de primeira necessidade (farinha, arroz, feijão e milho).

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 28


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

Segundo Ferreira Filho (2003), durante o século XIX, os produtos encontrados nos tabuleiros
e nas gamelas das ganhadeiras seguiam os preceitos do orixá de cada vendedora. “De acordo com o
orixá, a atividade variava. Assim, as filhas de Iansã e Xangô vendiam acarajés; as de Ogum, vísceras
de boi; as de Omolú, sarapatel e moqueca de peixe. Já Oxalufã, Oxaguiã e Oxalá prescreviam acaçá,
o cuscuz, o mingau e a cocada branca” (2003, p. 47).
Circulando pela região comercial da Cidade Baixa, os africanos e crioulos não só transitavam
pelos mercados como também se aproximaram da devoção à padroeira do morgado. Os negros es-
cravizados não demoraram muito para adotar o culto à mártir cristã que foi degolada pelo próprio
pai. Não resta dúvida que a devoção ganhou força e popularidade entre os africanos e seus descen-
dentes em função da associação de Santa Bárbara com deuses iorubanos. Oiá (Iansã), orixá do fogo,
foi uma das divindades africanas sincretizada com Santa Bárbara.
Na descrição de Pierre Verger (1999),

A devoção a Santa Bárbara é reforçada, entre os pretos, pelo sincretismo estabelecido


entre ela e uma divindade conhecida na África sob o nome de “Oya” ou “Iansan” cujo cul-
to é discretamente celebrado por alguns deles. A festa católica consiste em uma missa
e uma procissão em torno do mercado dos Arcos de Santa Bárbara. Os devotos dessa
santa organizam regozijos no interior do mercado, onde sambam e bebem cachaça em
abundância. (Verger, 1999, p. 73)

Durante mais de 250 anos (1641 a 1898) a festa de Santa Bárbara aconteceu no antigo bairro
comercial. Os comerciantes e mercadores da região se mobilizavam para arrecadar fundos para a
realização do festejo. De acordo com Hildegardes Vianna (1983),

Todos os anos, no Mercado que integrava o citado Morgado, bem como no Mercado São
João, que lhe ficava fronteiriço, os encarregados dos festejos se movimentavam para uma
cotização geral. Os negociantes do Comércio da Cidade Baixa davam a sua contribuição,
sem exceção, o nicho era reformado, fazia-se uma rigorosa limpeza no Mercado de Santa
Bárbara, cordões de bandeirinhas coloridas, palmas de coqueiros, palmeirinhas, folhas
de pitanga eram arrumados à guisa de ornamentação. (Vianna, 1983, p. 37)

Depois da missa e da procissão com a imagem da santa, as comemorações continuavam


nas instalações do mercado, com samba de roda, capoeira, comes e bebes. A animação ficava por
conta dos próprios vendedores e frequentadores do mercado, em sua maioria gente preta e pobre.
As comidas oferecidas ao povo eram preparadas pelas “mulheres do mercado”: fateiras, quituteiras
e vendedoras de comida. Segundo o jornal A Tarde4, “a festa que a data de hoje relembra e que
tanta animação dava ao bairro commercial, tinha o seu valor local até porque os pretos do mercado
improvisaram formidáveis sambas com fartas mesas”.
Entretanto, por ser celebrada no dia 04 de dezembro, mesmo período da novena prepara-
tória para o festejo da padroeira da Bahia e do Império Português, a festa de Santa Bárbara acabava

4 A Tarde, Salvador, 04 dez. 1929, capa.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 29


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

passando despercebida pela maioria dos soteropolitanos. Todos estavam com a atenção voltada
para o novenário e a celebração de Nossa Senhora da Conceição da Praia, no dia 08 de dezembro.
Após um incêndio em 1899, que atingiu o mercado e a capela de Santa Bárbara, a imagem
foi transferida para a Igreja do Corpo Santo, também localizada na Cidade Baixa. No início do século
XX, os comerciantes do antigo mercado foram transferidos para um novo centro comercial no bair-
ro da Baixa dos Sapateiros. Em 1987, a imagem que se encontrava nesse novo mercado dedicado
à Santa Bárbara foi doada à Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às Portas do
Carmo (Irmandade dos Homens Pretos). Isso aconteceu no período em que o Mercado de Santa
Bárbara estava bastante deteriorado, necessitando de uma reforma.
Os herdeiros da família Pompílio de Bittencourt, proprietários do mercado, registraram em
cartório a doação da imagem que ficava no estabelecimento comercial à Irmandade dos Homens
Pretos, que deveria assumir a organização da festa em louvor à santa. Tanto assim que, após a con-
clusão da reforma do Mercado de Santa Bárbara (1997), a imagem permaneceu na Igreja do Rosário
dos Pretos, mesmo com os protestos de alguns comerciantes que queriam a devolução da santa.
Desde então, é desta igreja que anualmente, no dia 04 de dezembro, a imagem de Santa
Bárbara sai em procissão e percorre as principais ruas do Pelourinho, passando pelo Quartel do Corpo
de Bombeiros e pelo mercado que leva seu nome. Após a missa campal e ao longo da procissão,
muitos devotos (a maioria mulheres) distribuem acarajés aos presentes. Ao fim da procissão, a
imagem retorna à Igreja do Rosário para posteriormente ser guardada em seu nicho.
É depois da procissão que se inicia o que muitas pessoas chamam de parte profana da
festa. No palco montado no Largo do Pelourinho, acontecem apresentações culturais e shows de
samba que só terminam à noite. Já no Corpo de Bombeiros da Barroquinha, em sobrados do Centro
Histórico e nas casas de devotos espalhados em vários bairros da cidade, começa a ser servido o
tradicional caruru de Santa Bárbara.

Caruru para a santa e acará para o orixá

Sempre que se fala da festa de Santa Bárbara na capital baiana, o caruru é um dos elemen-
tos mais lembrados das comemorações. Na Bahia, as homenagens à santa turca ganharam novos
elementos desde que sua devoção chegou a Salvador. Como dito, o encontro de culturas possibili-
tou que os africanos e crioulos associassem a figura de Bárbara à do orixá iorubá Iansã. Com isso, as
comidas à base de azeite de dendê foram incorporadas ao festejo desde a época do morgado, onde
era possível degustar comidas como efó,5 acarajé, vatapá, caruru...
Assim como as demais correspondências entre santos e orixás, a articulação da santa turca
com a deusa iorubana não foi aleatória. Iansã é uma divindade de origem africana cultuada nas
religiões de matriz africana, em especial o candomblé e a umbanda. Orixá do fogo, ela também

5 Efó é uma comida feita com uma folha popularmente conhecida como língua-de-vaca, podendo ser substituída pela folha da mostarda ou taioba.

Preparada de forma similar ao caruru, com o passar do tempo, tornou-se uma comida “esquecida” pela população soteropolitana/baiana, sendo
dificilmente encontrada nos dias de hoje.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 30


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

domina o vento e as tempestades e era inicialmente conhecida como Oiá. Tornou-se Iansã (que sig-
nifica mãe nove vezes) depois de sacrificar um carneiro e, finalmente, conseguir dar à luz nove filhos
(Prandi, 2001, p. 294). Cheia de atributos, Iansã teve vários amantes: Ogum, Oxaguiã, Exu, Oxóssi,
Logum Edé... Até conhecer Xangô.

Iansã usava seus encantos e sedução para adquirir poder. Por isso entregou-se a vários
homens, deles recebendo sempre algum presente. [...] Ao final de suas conquistas e
aquisições, Iansã partiu para o reino de Xangô, envolvendo-o, apaixonando-se e vivendo
com ele para a vida toda. Com Xangô, adquiriu o poder do encantamento, o posto da
justiça e o domínio dos raios. (Prandi, 2001, pp. 296-297)

É bem provável que o raio, domínio que Iansã ganhou de Xangô, tenha sido um dos
motivos que levaram os seguidores das religiões de matriz africana a sincretizarem o orixá que
teve tantos amantes com a virgem Bárbara. Além do raio que fulminou Dióscoro, o pai da mártir,
a espada e a cor vermelha (utilizadas por ambas) são os elementos em comum que ajudam a
entender tal associação.
Mas levando em consideração que, nos terreiros de candomblé, Iansã come acará, qual o
motivo de Santa Bárbara (sincretizada com o orixá Iansã) ser reverenciada com um caruru? A expli-
cação está numa antiga associação da mártir cristã também ao orixá Xangô, rei do império de Oió.
Até a década de 1930, essa correspondência era feita pelos afrorreligiosos que, a partir de então, co-
meçaram a associar a santa apenas à divindade feminina (Iansã). Antes disso, a diferença de gênero
entre a santa católica e o rei de Oió parecia irrelevante, pois, de acordo com Nina Rodrigues (2014),

Assim, em todos os terreiros e para todos os negros que conhecem os santos africanos,
Sango é equivalente de Santa Bárbara ou é a própria Santa Bárbara. Mas Sango sendo
masculino e Santa Bárbara do sexo feminino era preciso que entre eles houvesse de
comum um ponto de contacto tão capital que tornasse secundária a diferença de sexo.
Sango é o deus do trovão e é representado por meteoritos, machados de pedra ou pedra
de raio. Santa Bárbara é por sua vez a padroeira das tempestades e dos raios de que foi ví-
tima. Como é o sentimento de terror provocado pelo fenômeno físico do trovão e do raio,
que constitui o elemento fundamental da crença e a origem da invocação do patrono, a
identidade mental dos protetores foi mais forte do que as suas diferenças individuais de
sexo. (Rodrigues, 2014, p. 129)

A constatação feita por Nina Rodrigues em fins do século XIX foi depois observada por
Donald Pierson (1971, p. 332), que escreveu o seguinte: “Mesmo Xangô, o orixá do relâmpago e do
trovão, julgado por alguns prêtos como sendo distinto de todos os santos católicos, era adorado em
várias das mais representativas seitas de gêge-nagô, sob o nome de São Jerônimo e, ocasionalmente,
de Santa Bárbara”.
Conhecido como o orixá comedor de quiabo, o fruto do quiabeiro é um alimento ligado à
dinastia de Oió, e o amalá (uma variação do caruru) é a comida preferida de Xangô. Ou seja, é por
esse motivo que Santa Bárbara, inicialmente associada ao rei de Oió, compartilha a mesma comi-

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 31


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

da de Xangô. Ademais, mesmo sendo vinculada posteriormente apenas ao orixá Iansã, Bárbara
continuou sendo homenageada com este prato, já que Iansã, esposa de Xangô, também come a
comida do marido.
Tanto Iansã (esposa) como os Ibejis (filhos) comem quiabo em função deste vínculo familiar
e real, que une a corte de Oió em torno da mesa. Com isso, o caruru tornou-se motivo de festa e, ape-
sar de outros pratos da cozinha afro-baiana terem sido servidos durante anos aos fiéis de Bárbara/
Iansã, foi o caruru que se consagrou como a comida-símbolo dessa festa em Salvador.
E caruru, na verdade, é apenas maneira de falar porque o prato servido nos carurus de pro-
messa é composto por caruru, vatapá, feijão-fradinho, arroz, xinxim de galinha, feijão-preto, fa-
rofa de dendê, banana-da-terra frita, abará, acarajé... Tudo regado a azeite de dendê, num dos
pratos que sintetizam a culinária afro-diaspórica no Brasil. Como as chamadas “comidas de azeite”
já estavam presentes nas feiras, barracas e festas, não foi difícil reuni-las no mesmo prato para
homenagear a protetora contra os raios e a senhora dos mercados.
Contudo, mesmo o prato do caruru de promessa sendo a comida destaque da festa de 04 de
dezembro, o acarajé também é uma marca forte das comemorações e se faz presente não somente
como um dos acompanhamentos do referido prato, mas em grandes balaios e tabuleiros que as
devotas (muitas delas baianas de acarajé) levam para o Largo do Pelourinho, no dia dedicado à
Santa Bárbara. Enchendo os cestos de palha, os inúmeros bolinhos são carregados nos braços e nas
cabeças dos fiéis da santa que não por acaso também é padroeira das baianas de acarajé.
Como exposto, o acará (sem os acompanhamentos) é a comida preferida de Iansã.
Originário da África Ocidental, esse bolinho era inicialmente conhecido como acará (“bola de fogo”)
para ajeum,6 servido puro ou, no máximo, com pimenta. O acarajé é um bolinho de feijão-fradinho
moído, batido com cebola ralada e sal, que é frito no azeite de dendê. Manuel Querino (2006), ao
descrever a receita do quitute, diz ainda que

O azeite é renovado todas as vezes que é absorvido pela massa, a qual toma exteriormente
a cor do azeite. Ao acarajé acompanha um molho, preparado com pimenta malagueta
seca, cebola e camarões, moído tudo isso na pedra e frigido em azeite de cheiro, em
outro vaso de barro. (Querino, 2006, p. 26)

Um mito africano narra que, depois de se separar de Ogum e se casar com Xangô, Iansã foi
enviada pelo novo esposo à terra dos baribas para buscar um preparado que, uma vez ingerido, lhe
daria o poder de cuspir fogo. Ousada, Iansã desobedeceu a Xangô e experimentou o preparado an-
tes dele, também se tornando capaz de lançar chamas de fogo pela boca. É graças a isso que nos
rituais dos deuses do fogo, Xangô e Iansã disputam para engolir os acarás – mechas de algodão
embebidas em dendê e acesas com fogo, numa cerimônia que lembra a origem do acarajé.7

6 Ajeum: verbo comer em iorubá.


7 Além de Iansã e Xangô, em alguns terreiros de candomblé, o acarajé é comida ritual de Obá e dos Erês. Para Xangô, os bolinhos são maiores e

alongados (formato fálico, masculino), e servidos com o amalá (comida preferida de Xangô). Já os acarajés oferecidos a Oiá-Iansã são menores
(formato redondo, feminino), enfeitados com pimenta-da-costa ou camarão seco, ou simplesmente servidos puro.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 32


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

Ainda no período da escravidão, essa comida sagrada dos terreiros de candomblé ganhou as
ruas através da “obrigação do acarajé”, quando as negras passaram a vender o quitute para custear
os gastos com as obrigações de iniciação religiosa. Escolhidas por Oiá-Iansã, essas mulheres rece-
biam autorização do orixá para preparar e comercializar publicamente o alimento votivo da deusa
poderosa, senhora dos ventos e das tempestades.
Sendo assim, o acarajé foi incorporado aos festejos de Santa Bárbara por ser o principal ali-
mento do orixá com o qual a santa é sincretizada até hoje. Além disso, o bolinho funciona como uma
espécie de aperitivo, uma entrada que prepara o estômago para o caruru de Santa Bárbara, que é
um verdadeiro banquete. Entretanto, nem todos os devotos que recebem os acarajés distribuídos
na procissão da santa ingerem o alimento. Alguns fiéis dão um tratamento diferenciado ao bolinho,
como explicarei a seguir.

Celebrar com comida

Historicamente, a festa de Santa Bárbara em Salvador foi uma devoção popular que cresceu
graças ao empenho dos africanos e crioulos do antigo morgado. Como o festejo não estava sob o
controle da Igreja Católica (presente na festa apenas na figura do padre responsável por celebrar a
missa da santa), o samba, a capoeira, as comidas e bebidas foram incorporadas às manifestações
populares durante a festa.
Todos os anos, ao preparar e servir o caruru em honra à Santa Bárbara, mesmo sem saber,
seus devotos reatualizam o banquete da família do rei de Oió. Se quiabo representa fartura para
Xangô, o caruru é a festa da abundância. Não é à toa que, na capital baiana, carurus costumam ser
oferecidos tanto em setembro (Ibejis/Cosme e Damião) como em dezembro (Iansã/Santa Bárbara).
Conforme já pontuado, além do caruru, o acarajé em forma de acará (sem acompanha-
mentos) também está presente na festa oficial da santa. Nos terreiros de candomblé, na cerimônia
de Iansã, esse alimento até hoje é distribuído pelo próprio orixá aos participantes da festa. Como
assinalou o jornal A Tarde de 05 de dezembro de 1972 (p. 3): “À noite, em algumas casas de candom-
blé, a Santa distribuiu acarajés milagrosos em tijelas de cobre e de barro”. Alguns comem, outros
guardam no bolso e tem aquelas pessoas que passam o bolinho no corpo e depois o despacham,
num pedido de limpeza e proteção. Os acarajés distribuídos durante a festa de Santa Bárbara, no
Pelourinho, recebem o mesmo tratamento pelos fiéis.
Segundo o Jornal da Bahia8 de 05 de dezembro de 1979, não apenas os adeptos das religiões
de matriz africana reverenciavam Iansã com distribuição de acarajés e oferendas nas ruas: “A
enfermeira Sandra Ferreira, residente na Graça, há dois anos que compra o acarajé para colocar
‘em qualquer mato’. Ela diz que nunca foi a um candomblé, mas o respeita e sempre leva flores a
Iemanjá e acarajé para Iansã”. O depoimento dessa mulher é representativo da religiosidade de
muitos soteropolitanos que se dizem católicos (não praticantes) ou sem religião, mas não veem
problema em transitar pelos credos religiosos, inclusive os de matriz africana.
8 Jornal da Bahia, Salvador, 05 dez. 1979.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 33


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

A oferenda do acará também pode ser observada na capela em honra à virgem mártir, loca-
lizada no interior do Mercado de Santa Bárbara (Baixa dos Sapateiros). Nas proximidades da data
festiva, fiéis costumam depositar aos pés da santa católica nagés (pratos) de barro com acará. Em
geral, as oferendas são compostas de nove bolinhos. A quantidade dos acarás faz referência às his-
tórias relacionadas a Iansã, já que o número nove é sagrado para esse orixá.
Mais elementos desse encontro de religiões são observados no momento do ofertório, na
missa solene que acontece no Largo do Pelourinho. Durante a procissão das ofertas, além dos habi-
tuais cálices, hóstias, água e vinho, aparecem também os abarás, acarajés e acaçás. Segundo Manuel
Querino (2006), essas três comidas compõem os “alimentos puramente africanos” encontrados na
Bahia desde o período da escravidão.
Edilece Couto (2018) defende que, em Salvador, os elementos dessas diferentes religiões se
unem num convívio de crenças que compõe a festa. Ela não acredita em mistura, mas em comple-
mentação religiosa.

Os fiéis entendem que, para os católicos, a hóstia é o corpo de Cristo e o acarajé, para
candomblecistas e umbandistas, é o alimento de Iansã. Eles ocupam momentaneamente
o mesmo espaço, estão presentes na liturgia católica, na missa, mas não se misturam,
não se sobrepõem nem se confundem. São alimentos rituais que se complementam no
momento em que os fiéis homenageiam Santa Bárbara e Iansã. Eles, respectivamente,
representam a santa e o orixá. (Couto, 2018, p. 210)

O acarajé é um elemento tão presente no dia 04 de dezembro que, durante a missa fes-
tiva do ano de 2004, o celebrante falou do quitute em sua homilia. Ao criticar a postura dos
segmentos religiosos que transformaram o acarajé em “bolinho de Jesus”,9 o padre Josival Lemos
Barbosa declarou: “O acarajé pertence à cultura afro, é a comida dos orixás. Não pode ser esva-
ziado do seu significado”.10
Em se tratando de acarajé e festa de Santa Bárbara, entre tantas baianas de tabuleiro, uma
delas se destacou e ficou conhecida pela distribuição gratuita dos bolinhos, todos os anos, no dia 04
de dezembro. Por mais de uma década (anos 1970 e 1980), a baiana Eulina Maria dos Santos, filha de
Iansã Balé, servia gratuitamente cerca de 2 mil acarajés e abarás (sem recheios), além de caramelos,
para os clientes que se aproximavam do seu ponto no bairro da Graça.
O Jornal da Bahia11 explicou quando Eulina começou a fazer isso e os detalhes na arrumação
do seu tabuleiro de acarajé.

Há 12 anos com tabuleiro na esquina da avenida Euclides da Cunha com a rua Rio de
São Pedro, Eulina, 42 anos, sete filhos e três netos, faz essa distribuição a sete anos,
como pagamento de uma promessa feita a Iansã. Ela frequenta o Terreiro de Oxosse
Amburana, de Mãe Linalva, em Sete de Abril, o qual rendeu durante a noite de ontem
homenagens à “deusa”.

9 Para mais informações sobre o surgimento do “bolinho de Jesus” e as tensões entre baianas de acarajé adeptas do candomblé e evangélicas

(neopentecostais), na cidade de Salvador, consultar Santos (2013).


10 Correio da Bahia, Salvador, 05 dez. 2004, p. 13.
11 Jornal da Bahia, Salvador, 05 dez. 1979, p. 2.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 34


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

Vestida em traje típico de baiana (bata e saia rendada branca, grossos colares e tor-
ço bordado de fios prateados) Eulina a todo instante solicitava aos curiosos, fregueses,
que não permanecessem em frente ao tabuleiro todo ornamentado de flores verme-
lhas e com as imagens de Santa Bárbara e Santo Antônio – é que a seita não permite.

Já o vespertino A Tarde12 apresentou mais informações sobre a promessa paga anualmente


pela baiana de acarajé.

A “festa” de Eulina, além de ser uma homenagem entre muitas que os baianos oferecem
a Santa Bárbara no seu dia, é também o pagamento de uma promessa que ela fez para
que seu irmão, o motorista Antônio Santos, fosse recuperado de uma doença, depois de
ter sido desenganado por cinco médicos. Completamente recuperado, Antônio é um dos
primeiros a chegar no local da festa.

A partir dos fatos relatados, é possível constatar como, no festejo de 04 de dezembro, os


traços culturais dos negros aparecem não só na expressão religiosa, mas também nessa tradição de
distribuir acarajés e servir caruru de promessa. Celebrar suas divindades com comida é uma carac-
terística forte do povo negro, que herdou a tradição africana de dançar e comer junto dos deuses.
Nas comemorações de Santa Bárbara, a comensalidade propiciada pelo caruru estimula ainda o
princípio da reciprocidade.
A retribuição do agrado é reforçada por um preceito adotado no preparo dos carurus de
promessa na Bahia. No caso de Santa Bárbara, nove quiabos inteiros são colocados na panela,
antes da finalização do caruru. A explicação para esse número de quiabos encontra fundamento na
relação mitológica do orixá com a qual a santa foi sincretizada. Como já assinalado, o número nove
é sagrado para Iansã, aquela que deu à luz nove vezes.
Ainda segundo esse preceito, o convidado que for contemplado com um quiabo inteiro em
seu prato deve também oferecer um caruru para a santa. Acontece que, no passado, na maioria
dos carurus de promessa, os convidados já recebiam o prato pronto. Hoje, nos carurus em que há
a opção do próprio convidado se servir, muitos desviam a concha do quiabo inteiro no momento
de colocar essa comida no prato. Mesmo assim, do que observei, a prática de adicionar os quiabos
inteiros continua sendo seguida pela maioria dos pagadores de promessa.
Importante destacar que, antes do momento de servir o caruru, o devoto precisa cumprir
uma série de obrigações que vai da escolha e compra dos ingredientes (em geral, nas feiras livres)
até a preparação de cada comida que compõe o prato. Como é algo trabalhoso, costuma-se convidar
outras pessoas (geralmente parentes e amigos próximos) para auxiliar na tarefa da cozinha. De to-
dos os afazeres, o corte dos quiabos é o que demanda mais tempo e costuma se iniciar dias antes da
data marcada para distribuir o caruru. Ao cortar os quiabos, os devotos aproveitam para “conversar
com o santo”, agradecer pelas graças alcançadas e renovar os pedidos.

12 Jornal da Bahia, Salvador, 05 dez. 1980, p. 30.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 35


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

A distribuição de acarajés e o oferecimento do caruru demonstram como a comensalidade


é uma particularidade da festa de Santa Bárbara na capital baiana. Nesse sentido, não só os devotos
comem como também a santa e o orixá recebem comidas que são oferecidas nos seus altares e
pejis. Os fiéis (em especial, as mulheres) oferecem esses alimentos para pagar promessa à santa,
reverenciar seu orixá de cabeça ou, ainda, celebrar com comida o arquétipo da mulher valente
representada nas figuras de Bárbara e Iansã.

Considerações finais

No decorrer do artigo, busquei pontuar como a devoção à Santa Bárbara em Salvador


ganhou novos elementos desde que seu culto foi adotado por africanos e crioulos. A presença
das comidas à base de azeite de dendê, especialmente o acarajé e o caruru, demonstra como
aconteceu o processo histórico de correspondência entre a santa católica e as divindades africanas,
sintetizado através dessas comidas.
Todos os anos, na festa oficial, a missa campal no Pelourinho parece potencializar ainda
mais as manifestações de fé e um diálogo religioso de dupla pertença que acaba por fundir uma
divindade à outra (para muitos devotos, Santa Bárbara é Iansã, e vice-versa). Na festa de 2017, por
exemplo, o próprio capelão da Igreja do Rosário dos Pretos, padre Lázaro Muniz, reforçou essa as-
sociação logo no início da celebração. Ao perceber que a multidão presente respondeu de forma
tímida ao seu “Viva Santa Bárbara!”, ele imediatamente completou: “O povo parece que não tomou
café hoje... Eparrei, Iansã!”.
Marcas da herança africana também podem ser percebidas ao longo da missa festiva, já que
todos os cânticos são acompanhados de instrumentos como atabaque e agogô. Algumas músicas,
inclusive, contêm frases ou palavras em iorubá, a exemplo do canto das ofertas: “Obá, obá, obá,
recebe Olorum nossos dons”. Além disso, como já destacado, no momento do ofertório, cestos com
acarajé, abará e acaçá também são colocados no altar da celebração.
Se, para os católicos mais ortodoxos, tais elementos desvirtuam o culto à santa, a maior
parte dos fiéis que acompanham a celebração de 04 de dezembro reconhece nessas comidas
traços da sua ancestralidade que foram ressignificados no processo afro-diaspórico. Nesse sentido,
ao distribuir acarajés antes, durante e depois da missa festiva, as(os) filhas(os) de Santa Bárbara/
Iansã encontraram uma forma concreta de pagar promessa que alimenta não só o corpo, mas
também a alma.
A riqueza da festa de Santa Bárbara, em Salvador, está justamente nessa diversidade reli-
giosa que reúne adeptos de tantos credos em torno da figura da santa que, ao mesmo tempo que
morreu virgem, é considerada por muitos fiéis como a esposa de São Jerônimo (santo que precede
o andor de Bárbara na procissão e é sincretizado com o orixá Xangô, marido de Iansã). Seja em Bár-
bara ou Iansã, a fé dos devotos supera essas divergências analíticas, relativiza a separação entre
santa e orixá, e renova todo ano, através da distribuição de acarajés e carurus, a fé na divindade que
é sempre invocada para acalmar as tempestades e afastar os perigos desta vida.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 36


O acará de Iansã na festa de Santa Bárbara: breves considerações Vagner José Rocha Santos
sobre as comidas de uma festa religiosa popular em Salvador

Periódicos consultados
A Tarde, 04 dez. 1929, capa; 05 dez. 1972, p. 3; 05 dez. 1980, p. 3.
Correio da Bahia, 05 dez. 2004, p. 13.
Jornal da Bahia, 05 dez. 1979, p. 2.

Referências
COUTO, Edilece. Festas afro-católicas em Salvador, Bahia, Brasil. Revista del CESLA, n. 18, 2015, pp. 117-142.
______. Festa de Santa Bárbara e Iansã: os baianos entre fronteiras tênues e complementação de
crenças. Revista Brasileira de História das Religiões, ANPUH, ano XI, n. 31, 2018, pp. 203-219.
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Quem pariu e bateu que balance! Mundos femininos, materni-
dade e pobreza em Salvador, 1890-1940. Salvador: CEB, 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 51ª ed. rev. São Paulo: Global, 2006.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PIERSON, Donald. Brancos e prêtos na Bahia: estudo de contacto racial. 2ª edição. São Paulo:
Nacional, 1971.
QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. Salvador: P555 Edições, 2006.
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. 2 ed. Salvador: P55 Edições, 2014.
(Coleção Autoconhecimento Brasil).
SANTOS, Vagner José Rocha. O sincretismo na culinária afro-baiana: o acarajé das filhas de Iansã
e das filhas de Jesus. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Universidade Federal da
Bahia. Salvador, 2013.
SOARES, Cecília. Mulher negra na Bahia no século XIX. Dissertação (História) – Universidade Fede-
ral da Bahia. Salvador, 1994.
VERGER, Pierre. Notícias da Bahia de 1850. Tradução Maria Aparecida da Nóbrega. 2ª ed. Salvador:
Corrupio, 1999.
VIANNA, Hildegardes. Calendário de festas populares da cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura
Municipal, 1983.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 37


Diversidade no prato:
a experiência da Rede PANC-Bahia

Diversity on the plate:


the experience of the PANC-Bahia Network

Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis 1

Resumo: O objetivo desta pesquisa consiste em Abstract: The objective of this research is to
apresentar uma reflexão histórica e sociológica present a historical and sociological reflection on
sobre as Plantas Alimentícias Não-Convencionais Non-Conventional Food Plants (PANC) based on
(PANC) com base em dois eixos centrais. Em two central axes. First, we discuss the marginal
primeiro lugar, discutimos a importância marginal importance of PANC in the hegemonic food
das PANC no modelo alimentar hegemônico como model as the leitmotiv for a critical re-reading of
leitmotiv para uma releitura crítica do “paradoxo do the “omnivore paradox,” as formulated by Claude
onívoro”, tal como formulado por Claude Fischler. Fischler. By differentiating the contradictory reasons
Assim, ao diferenciarmos as razões contraditórias that oppose or favor the inclusion of these plants in
que se opõem ou que favorecem a inclusão dessas the chains of production and consumption, we adopt
plantas nas cadeias de produção e consumo, a type of theoretical-methodological procedure
adotamos um tipo de procedimento teórico- that confers greater historicity and concreteness to
metodológico que confere maior historicidade the discussions about the dynamic frontiers of the
e concretude às discussões acerca das fronteiras “edible”. Secondly, we present the experience of the
dinâmicas do “comestível”. Em segundo lugar, PANC-Bahia Network as an original modality of food
apresentamos a experiência da Rede PANC-Bahia activism that develops a series of strategies oriented
como uma modalidade original de ativismo by the valorization of the socio-biodiversity with
alimentar que desenvolve uma série de estratégias the purpose of contributing to the expansion of the
orientadas pela valorização da sociobiodiversidade cultivation of PANC and its greater insertion in the
com o propósito de contribuir para a ampliação do diets of rural and urban populations.
cultivo de PANC e sua maior inserção nas dietas das Keywords: Non-Conventional Food Plants; PANC-
populações rurais e urbanas. Bahia Network; “omnivore paradox”; food security.
Palavras-chave: Plantas Alimentícias Não-
Convencionais; Rede PANC-Bahia; “paradoxo do
onívoro”; segurança alimentar.

1 Luiz Enrique Vieira de Souza é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Contato: [email protected]. José Geraldo de Aquino Assis é professor do Instituto de Biologia (UFBA). Contato: [email protected].

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 38


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

Torta de chaya, bolo de licuri, trufa de hortelã da borda branca e suco de cana-de-maca-
co. Tão logo esses alimentos foram colocados à mostra, aglomeraram-se os frequentadores da
tradicional Feira Agroecológica da Universidade Federal da Bahia na intenção de experimentar
combinações de sabores que lhes eram antes desconhecidas. O mote para a seleção desse inusita-
do menu baseou-se no fato de que cada um dos itens levava em sua composição alguma “Planta
Alimentícia Não-Convencional” (PANC), pois a degustação havia sido preparada também com o
objetivo de chamar a atenção para as mudas ali expostas – taioba, bertalha, feijão-de-porco, vina-
greira – e para uma conversa sobre técnicas de cultivo e modos de preparo que agregariam novos
ingredientes ao léxico alimentar daquelas pessoas. Como os alimentos tornam-se mais saborosos
quando azeitados com protagonismo, as despedidas ao fim da interação vieram acompanhadas
pela oferta de sementes de moringa, caxixe e almeirão.
Os responsáveis por essa intervenção são alunos e professores envolvidos num projeto in-
terdisciplinar de extensão universitária, cuja finalidade é discutir os vários aspectos relacionados às
PANC e refletir sobre estratégias para que essa categoria ganhe espaço frente ao modelo alimentar
hegemônico, pautado pelo agrobusiness e pela indústria de processados. Na realidade, trata-se de
uma entre outras iniciativas referenciadas no trabalho da Rede PANC-Bahia, formada por um grupo
de ativistas que se reuniram com o propósito de disseminar conhecimentos acerca dessas plantas
e assim contribuir para a segurança alimentar numa perspectiva que incorpore critérios socioam-
bientais ao cultivo e comercialização dos produtos agrícolas.
Em poucas palavras, o termo PANC refere-se ao conjunto de plantas que possuem uma ou
mais partes que podem ser utilizadas na alimentação – raízes tuberosas, bulbos, folhas, brotos,
frutos, sementes –, mas que por diversas razões não chegam à mesa dos comensais. Ao invés de
serem reconhecidas enquanto alimentos, muitas dessas plantas com frequência são confundidas
com ervas daninhas ou vistas simplesmente como “mato” (Kinupp; Lorenzi, 2014). Embora os levan-
tamentos relativos à fitodiversidade comestível apresentem variações, estima-se que existam cerca
de 12.500 espécies potencialmente alimentícias no planeta, entre as quais aproximadamente duas
mil variedades não-convencionais presentes no território brasileiro. Essa ampla variedade explicita
as tendências de homogeneização das dietas, visto que 95% das nossas exigências alimentares são
cobertas por apenas 30 plantas e mais da metade dos nutrientes que absorvemos provêm do milho,
do arroz, do trigo e da soja (Kinupp; Barros, 2004).
À luz dessa contradição, propomos ao leitor uma reflexão organizada em torno de dois eixos.
Em primeiro lugar, interessa-nos promover uma releitura do debate a respeito das PANC sob um
enquadramento teórico-metodológico ancorado na sociologia da alimentação. Isso porque a quase
totalidade das pesquisas disponíveis sobre esse tema foram conduzidas na perspectiva dos estudos
etnobotânicos ou das ciências da nutrição. Nesse sentido, interessa-nos uma apropriação crítica do
“paradoxo do onívoro” (Fischler, 1995) que confira maior historicidade e concretude às discussões
sobre as incertezas relacionadas à escolha dos alimentos. Em segundo lugar, apresentaremos
um registro da experiência da Rede PANC-Bahia como uma modalidade de ativismo alimentar
(Azevedo, 2015) pautado por ações comunitárias voltadas para uma reformulação dos paradigmas
de produção, comercialização e consumo de alimentos que contemple a sociobiodiversidade.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 39


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

Redefinindo as fronteiras do “comestível”: Plantas Alimentícias Não-Convencionais segundo o


“paradoxo do onívoro”

Nossa condição enquanto seres onívoros oferece-nos uma ampla margem de autonomia
e liberdade para subsistirmos graças a uma variedade de alimentos, que podem ser substituídos
por outros a depender das condições impostas pelo entorno socioambiental. Ao mesmo tempo em
que nos proporciona tais capacidades de ajuste, a condição onívora nos força, porém, a buscar a di-
versificação, pois, ao contrário das espécies cuja fisiologia requer uma alimentação especializada,
não conseguimos, quando adultos, extrair todos os nutrientes de que precisamos de uma única
espécie alimentícia.
Nos termos formulados por Claude Fischler (1995) em sua obra seminal para as pesquisas
em sociologia da alimentação, o “paradoxo do onívoro” se situaria na tensão, isto é, na oscilação
entre os polos da “neofilia” (tendência para a exploração, inclinação para a variação e novidade)
e a “neofobia” (prudência, temor do desconhecido e resistência à inovação). Nesse último caso,
o conservadorismo alimentar relaciona-se com o perigo que pode decorrer da ingestão de
espécies tóxicas que, no limite, ocasionam a morte do indivíduo. De qualquer forma, o autor
ressalta que a angústia relacionada com a escolha dos alimentos não é consubstancial apenas ao
nosso ser biológico, mas também à nossa mente. Assim, somos onívoros também no plano das
representações sociais, incorporando e rejeitando alimentos, abrindo-nos para a experimentação
ou protegendo-nos contra o perigo a depender do gosto ou desgosto que a comida nos provoca no
âmbito simbólico.

Por que comemos? Quero dizer, por que comemos o que comemos? A pergunta parece
absurda: comemos o que é comestível, e isso é tudo. “Comestível”: deveríamos, contudo,
tornar essa noção mais precisa; poderíamos perguntar-nos, por exemplo, o que faz uma
espécie ou substância ser incomível? É uma simples questão de toxicidade ou podemos
declarar não comestível uma substância cujo único defeito é seu sabor? O incomível
responde sempre a uma definição objetiva ou se trata de outra coisa, no plano do
imaginário, por exemplo? (Fischler, 1995, p. 27, tradução nossa)

Fischler tem razão ao afirmar que nem tudo que é biologicamente comestível também se-
ria culturalmente comestível. A questão da entomofagia ilustra esse argumento, pois o consumo
de insetos tem sido debatido por especialistas como uma alternativa para a garantia da segurança
alimentar, embora ainda figure como uma opção aversiva para a maioria das sociedades ocidentais
(Fao, 2015). De acordo com Fischler, tampouco faria sentido negar que os gostos ou aversões inatas
– se é que elas de fato existem – não podem ser modeladas ou mesmo invertidas pela influência
social e imersão numa dada cultura. Por essas razões, a “cozinha” aparece aos olhos do autor como
o elemento cultural que atenuaria as tensões características do “paradoxo do onívoro”. Ao elabo-
rar gustativa e simbolicamente os alimentos, ela tanto familiariza o indivíduo com o desconhecido
como introduz a variação naquilo que já se fez monótono.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 40


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

O aporte de Fischler para a equação do “paradoxo do onívoro” constitui, no entanto, o ponto


de partida e não a solução do problema que nos interessa. Isso porque ela recairia numa tautolo-
gia se pautasse a “cozinha” como elemento de mediação cultural sem explicitar por meio de quais
operações simbólicas o espaço social alimentar é efetivamente delimitado. Na prática, afirmar que
a cultura – ou mais especificamente, a “cozinha” – define os procedimentos de classificação que in-
corporam ou excluem elementos à categoria do “comestível” não explica, por si só, as tendências de
homogeneização da dieta nem os obstáculos para que uma vasta gama de espécies alimentícias
chegue aos nossos pratos.
Nosso argumento ganha maior evidência quando sublinhamos o fato de que a categoria
do “comestível” possui uma dimensão diacrônica. Isso quer dizer que uma espécie reconhecida em
seu potencial alimentício pode, por razões históricas, decair à condição de “mato” e, por outras ra-
zões também históricas e dotadas de concretude, serem posteriormente reabilitadas e reinseridas
em nosso cardápio. Trata-se, portanto, de identificar as tendências e eventos que promovem essas
mudanças em articulação com os operadores simbólicos que incluem ou excluem certas espécies
daquilo que entendemos por comida.
Do ponto de vista histórico, não há como subestimar a importância das grandes navegações
para a conformação dos hábitos alimentares modernos, uma vez que a expansão marítima europeia
trouxe consigo um intercâmbio de espécies que alterou radicalmente a dieta de praticamente todos
os povos do mundo. Além de incorporar gêneros que mudaram significativamente sua própria
alimentação – tomate, milho e batata, entre vários outros –, os europeus promoveram também um
fluxo de produtos tropicais entre as colônias, que pode ser ilustrado pela introdução do quiabo, maxixe
e inhame – alimentos originários da África – em solo brasileiro. Mais do que um simples intercâmbio,
no entanto, os europeus lançaram mão de espécies exóticas para estabelecer a monocultura
agroexportadora em função dos interesses comerciais das metrópoles, desarticulando práticas
tradicionais de cultivo para subsistência e condicionando a quase totalidade do empreendimento
agrário aos preços e às demandas do mercado internacional (Carneiro, 2003).
Mesmo que a definição de PANC não se refira estritamente ao caráter nativo ou exótico
dessas espécies, deve-se ressaltar que a inserção de plantas e alimentos durante o processo colo-
nizador reduziu consideravelmente o peso relativo de frutíferas e oleráceas autóctones em nossas
cadeias de produção agrícola. Assim, ao privilegiar os ingredientes trazidos pelos europeus em
detrimento da fitodiversidade nativa, teve lugar a emergência de uma “alimentação colonizada”,
que se expressa, por exemplo, no fato de que, entre as dez espécies frutíferas mais produzidas
atualmente no Brasil, nenhuma é nativa (Instituto Kairós, 2017; Kinupp, 2009). É bem verdade que
algumas espécies ainda possuem expressão regional (e nesse caso deve-se relativizar a utilização
do termo PANC à luz das perspectivas geográficas), mas seu cultivo permanece circunscrito em
razão dos vetores que mutatis mutandis continuam orientando nossa produção agrícola para a mo-
nocultura em larga escala.
Por outro lado, a perda de memória e a corrosão de práticas de cultivo e hábitos alimen-
tares tradicionais aprofundaram-se em virtude de processos históricos mais recentes, como o

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 41


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

fluxo migratório para as grandes cidades, uma vez que, ao se estabelecerem no meio urbano, as
famílias de antigos agricultores viram-se obrigadas a desenvolver modos de vida muito diferen-
tes daqueles regulados pelos ciclos da natureza a que estavam habituadas (Monteiro; Mendon-
ça, 2004). Por vezes, as hortas urbanas e os quintais domésticos ainda contribuem para manter,
mesmo que em escala reduzida, o vínculo do migrante com a terra e algum grau de autonomia
na produção de alimentos. Mas, apesar de terem importante função ecológica e de conservarem
uma diversidade de plantas na sua composição, fatores geracionais e a difusão de novos hábitos
alimentares pautados pelo consumo de processados têm levado à desarticulação dos quintais
agrícolas e à perda de espaço dessas práticas tradicionais para a agroindústria, inclusive em algu-
mas localidades rurais (Amaral; Neto, 2008).

O cultivo e o consumo de hortaliças frescas têm diminuído em diversas regiões do país,


em áreas rurais e urbanas e entre todas as classes sociais, resultado da globalização e do
crescente uso de alimentos industrializados, verificando-se mudanças significativas no
padrão alimentar dos brasileiros e perdas de características culturais e identidade com
o consumo de alimentos locais e regionais. [...] Especificamente com relação às hortali-
ças não-convencionais, variedades presentes em determinadas localidades exercendo
influência na alimentação e na cultura de populações tradicionais, a redução no cultivo e
consumo é mais evidente ainda, verificando-se sua substituição por hortaliças de maior
apelo comercial. (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2010, p. 6)

Já no âmbito do imaginário e do simbólico, o prestígio das PANC sofre não apenas com a
concorrência do marketing dos gigantes da indústria alimentícia, mas também com o fato de que
o consumo de certas espécies evoca a lembrança triste e desagradável dos tempos de escassez,
como atestam algumas narrativas a respeito da palma forrageira, da língua-de-vaca e do bredo.
Em outras palavras, as PANC não raro são vistas como “comida de gente pobre” ou “isso que dá aí
no quintal”, desvalorizadas simbolicamente perante os alimentos plastificados que figuram nas
prateleiras dos supermercados.
De qualquer forma, seria errôneo apreender tais elementos numa perspectiva unilateral
que considerasse as PANC apenas sob o ângulo do desprestígio simbólico e do esquecimento. Em
nossa concepção, a esfera alimentar apresenta-se como um “campo de forças antagônicas”, de modo
que, concomitantemente aos vetores de erosão das práticas e dos saberes tradicionais agrícolas,
emergem contra-tendências que atuam no sentido de favorecer uma maior inserção das PANC nas
cadeias produtivas. Um exemplo disso tem sido o impulso dado pela gastronomia, uma vez que al-
guns chefs reconhecidos no meio culinário têm desenvolvido receitas que incluem PANC entre os
ingredientes de seus pratos. Além do ganho em termos de originalidade, os chefs se valem dessa
estratégia culinária para explorar os “gostos transgressivos”, que se respaldam nas dissonâncias en-
tre o nobre e o humilde, o precioso e o rústico, elevando muitas vezes a “gosto de luxo” o que antes
se representava como “gosto por necessidade” (Bourdieu, 2013). Essa promoção ganha repercussão
ainda maior quando os pratos são expostos nos cardápios de restaurantes da haute cuisine, festivais
populares ou quando divulgados na mídia por expoentes da alimentação natural (Abdala, 2019).

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 42


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

Embora surjam vozes que questionem o “modismo” das PANC e os esforços recentes
para conferir visibilidade ao tema como uma questão de “apropriação cultural” de elementos da
cozinha ancestral, parece-nos mais razoável apontar para a emergência de diálogos entre os
experimentos gastronômicos que lançam mão do uso de PANC e os saberes culinários nos quais
eles se referenciam. Considerar a historicidade dos esforços para a promoção das PANC não se
confunde com qualquer diluição a priori do conceito de tradição alimentar de grupos específicos,
como indígenas e quilombolas. Uma vez feita a ressalva de que um alimento aparece enquanto
“convencional” ou “não convencional” a depender do referencial cultural de quem enuncia, trata-
se de um processo que pode em alguma medida contribuir para reforçar identidades alimentares
antes pouco conhecidas e desprestigiadas.
Com seus novos sabores, perfumes e texturas, as PANC também despertam o apetite
daqueles comensais mais atentos aos benefícios da “alimentação saudável”. De fato, uma parcela
significativa das pesquisas que lhes são dedicadas apontam que as PANC são alimentos funcionais
que proporcionam vitaminas essenciais, antioxidantes, fibras e sais minerais que nem sempre são
encontrados em quantidade desejável em outros alimentos mais corriqueiros – sem falar naquelas
variedades, como a ora-pro-nóbis, que despontam como importantes alternativas de proteína
vegetal (Kinupp; Barros, 2008). Vale lembrar também que as partes não convencionais de alimentos
do dia a dia (cascas, folhas, talos) apresentam teores de fibras, vitamina C, ferro, cálcio e potássio
próximos ou superiores às suas partes convencionais, vinculando assim as reflexões sobre PANC
às discussões acerca da importância do combate ao desperdício de alimentos para a garantia da
segurança alimentar (Monteiro, 2009).
Nosso leitor já deve ter atentado para o poder de atração dos discursos que problematizam
as escolhas alimentares segundo critérios de saúde, de modo que as ciências dietéticas – assim
como a medicina em geral – assumiram um importante papel na mediação do “paradoxo do onívoro”
durante a modernidade. Na esteira das preocupações com a “alimentação saudável”, as PANC
apresentam vantagens relativas tanto no que concerne às funções medicinais (propriedades anti-
inflamatórias, por exemplo), quanto no que diz respeito à superação do consumo de agrotóxicos,
pois muitas delas são resistentes às pragas, seca e doenças, tornando-as particularmente
convenientes para o cultivo orgânico e afeitas ao plantio em condições pouco adequadas para as
espécies convencionais (Duarte, 2017; Instituto Kairós, 2017).
Com efeito, a racionalização da dieta constitui um dos vetores fundamentais que orientam
os indivíduos quanto à formação de seus hábitos alimentares. Ao lado dos “menus racionais”, que
se guiam pelo que as ciências têm a dizer sobre o consumo de alimentos e a performance física e
mental, Beardsworth e Keil (2002) elencaram ainda um tipo de “menu tradicional”, que se pauta
pelas crenças e proibições, e um “menu moral”, no qual o ato de comer ganha conotação explicita-
mente política em virtude de considerações étnicas, ambientais e posicionamentos éticos perante
animais não humanos.
É evidente que a relevância dessa tipologia para a análise empírica das escolhas alimentares
depende de uma compreensão não esquemática de tais categorias, mas de sua articulação em ter-

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 43


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

mos de sobreposição dos menus. De maneira ilustrativa, o efó é um prato da culinária baiana, cuja lis-
ta de ingredientes inclui hortaliças não convencionais como a taioba e a língua-de-vaca. No contexto
do candomblé, é uma comida que se oferece a Nanã, senhora da morte e responsável pelos portais de
reencarnação e desencarne das almas. Na qualidade de “comida de santo”, o efó conjuga, portanto,
crenças, ancestralidade e etnia, numa articulação original de tradição e moralidade (Querino, 1957).
A práxis alimentar dos vegetarianos englobaria, por sua vez, diferentes possibilidades de
articulação entre o “menu racional” e o “menu moral”, haja vista que a exclusão de alimentos de
origem animal depende, na prática, de múltiplas combinações entre narrativas fundamentadas na
ciência da nutrição, nos diagnósticos relativos à crise ambiental e perda de biodiversidade, assim
como nos posicionamentos éticos em defesa da “libertação animal” (Radnitz et al., 2015). Embora a
promoção das PANC não se restrinja aos círculos vegetarianos, ela representa para os seus adeptos
uma alternativa para contrabalancear as restrições autoimpostas com um amplo leque de opções
alimentares. Não por acaso, diversas edições da Feira Vegana de Salvador incluíram em sua progra-
mação oficinas dedicadas ao reconhecimento de PANC e ao intercâmbio de receitas em que essas
plantas figuram como ingredientes.
Em resumo, a presente seção esteve orientada por uma discussão acerca das PANC segundo o
referencial teórico da sociologia da alimentação. Nela elencamos uma série de fatores que explicam,
por um lado, a marginalização dessas plantas nas cadeias de produção estabelecidas e, por outro, as
vantagens relativas e pontos de apoio para que elas sejam paulatinamente incorporadas aos nossos
cardápios. Conforme argumentamos acima, essa reflexão esteve pautada por uma concepção da es-
fera alimentar como um campo de forças contraditórias, de modo que seu mapeamento contribui
para dotar de maior especificidade e concretude histórica as reflexões em torno do “dilema do onívo-
ro”. Na próxima seção, apresentaremos ao leitor um relato sobre a Rede PANC-Bahia que, no âmbito
dos ativismos alimentares, surge como uma experiência voltada para a difusão do conhecimento e
popularização das PANC por meio de um conjunto de estratégias multifacetadas.

Rede PANC-Bahia: uma modalidade de ativismo alimentar na contramão do agrobusiness

A Rede PANC-Bahia é formada por um grupo de ativistas reunidos em torno do propósito de


contribuir para a diversificação da alimentação com base no reconhecimento de espécies vegetais
subutilizadas do ponto de vista nutricional, gastronômico e comercial. Sua origem remete a um con-
junto de estudantes da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia com preocupações
na área de “economia solidária” que, em meados de 2013, desenvolveu um projeto em comunidades
que buscavam responder com autonomia às suas necessidades alimentares por meio do plantio de
hortas. Ao verificarem, porém, que tais comunidades se restringiam a um pequeno leque de espécies,
buscaram o apoio de membros do Instituto de Biologia que promoviam discussões em agroecologia
para refletir sobre as possibilidades de diversificação dos cultivos naquelas hortas. A partir desse en-
contro, nasceu uma rede horizontal, que se ampliaria numa perspectiva interdisciplinar, agregando
parceiros nas áreas de nutrição, gastronomia, antropologia e sociologia (Assis et al., 2016).

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 44


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

Desde então, os debates sobre PANC conquistaram maior penetração nas instâncias da
UFBA, inserindo-se nos currículos disciplinares, orientando pesquisas em socioantropologia da ali-
mentação e conservação do patrimônio genético, além de se tornarem eixo temático de projetos
de extensão. Assim, a universidade tornou-se referência institucional, polo de agregação e foco ir-
radiador de uma série de estratégias articuladas para a promoção dos conhecimentos sobre PANC
na Bahia. Na perspectiva científica, foi criada uma coleção de exsicatas de plantas no Herbário Ale-
xandre Leal Costa, que servirá como uma coleção referência de PANC, banco de DNA e banco de
sementes. Essas ações darão suporte a uma série de trabalhos de pesquisa que se somam às ações
de diálogos comunitários promovidos pela Rede.
Ainda no âmbito dos projetos de extensão, criou-se uma horta na universidade que se tem
prestado a funções didáticas, fornecido insumos para oficinas gastronômicas e mudas para doação.
Mais do que isso, o próprio campus tornou-se palco de oficinas para reconhecimento de PANC e
espaço privilegiado para a ampliação da Rede – vide o estreitamento de laços com os pequenos
agricultores que comercializam seus produtos na Feira da Reforma Agrária e na Feira Agroecológica,
que ocorrem às quartas e sextas-feiras, respectivamente.
O contato direto com os agricultores é decisivo para que um maior número de PANC consiga
se inserir nas cadeias produtivas, pois aqueles que lavram a terra precisam ter alguma garantia de
que o plantio dessas variedades pode encontrar demanda e se converter em fonte de renda. Pensan-
do nisso, a Rede PANC-Bahia auxilia os pequenos produtores rurais a identificar aquelas espécies
alimentícias que crescem espontaneamente em seus terrenos, dialogando sobre as possibilidades
de uso para consumo próprio e comercialização. Nesse último caso, os membros da Rede oferecem
suporte para uma análise microeconômica da propriedade e apresentam uma estimativa de quanto
o agricultor pode auferir com a comercialização de determinadas variedades de PANC.
Como parte de suas reflexões sobre as dimensões culturais da alimentação, a Rede
PANC-Bahia busca aproximar-se de comunidades referenciadas na “cozinha ancestral”. Um
exemplo disso é sua participação regular no “Permangola”, um evento promovido anualmente
pelo Kilombo Tenondé (Valença/BA), cujas oficinas de permacultura e Capoeira Angola possuem
repercussão internacional. Além de praticantes do vegetarianismo, os membros dessa comunidade
desenvolveram um mapeamento local de espécies alimentícias que se combinou com uma horta
fundamentalmente voltada para o cultivo de PANC – tais como bredo, beldroega, inhame quiçare,
entre outras. Paralelamente, a Rede estabeleceu diálogo com a “Fundação Terra Mirim”, uma
comunidade xamânica localizada no município de Simões Filho (BA), onde o uso de PANC na
alimentação faz parte de um rol mais amplo de práticas voltadas para a preservação ecológica, para
o desenvolvimento espiritual e para a valorização da ancestralidade.
Os esforços para a promoção das PANC e o enfoque na diversificação dos hábitos alimenta-
res também se apresentam como pontos de apoio para a socialização e integração comunitária. Isso
porque as oficinas de gastronomia e de reconhecimento de PANC são conjugadas com eventos para
a troca de sementes e mudas, articulando estratégias que favorecem não apenas o intercâmbio de
material genético, como também de conhecimentos e experiências. Nesse sentido, é importante

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 45


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

ressaltar as afinidades dos projetos concebidos pela Rede PANC-Bahia com o ativismo alimentar na
perspectiva das hortas urbanas e do locavorismo (Azevedo, 2015).
Juntamente do plantio de espécies não convencionais nos canteiros da UFBA, os projetos de
extensão universitária vinculados à Rede desenvolvem intervenções nas escolas públicas de Salva-
dor e da região metropolitana. Esse foi o caso, por exemplo, do Centro Educacional Carneiro Ribei-
ro (Escola Parque), cujo Núcleo de Jardinagem envolveu a comunidade escolar no cultivo de uma
horta de espécies tradicionais. A iniciativa foi protagonizada por pessoas mais idosas, que atuaram
como “elos de memória” com a geração mais jovem, mobilizando saberes e sabores para fomentar
a inclusão de PANC no cardápio da merenda escolar.
Evidentemente, nosso leitor não deve tomar este relato como uma descrição exaustiva das
iniciativas empreendidas pela Rede PANC-Bahia. Em vez disso, nosso objetivo consistiu em reunir
elementos para caracterizá-la como uma modalidade de ativismo alimentar que se configura en-
quanto antítese do agronegócio e do modelo alimentar hegemônico em geral: 1) ao passo que o
agrobusiness se respalda na propriedade latifundiária, a Rede PANC-Bahia sublinha que a resiliência
das espécies não convencionais favorece seu cultivo em pequenas propriedades, hortas urbanas e
mesmo em terrenos baldios; 2) ao invés das monoculturas voltadas para a produção de commodities,
o discurso de promoção das PANC respalda-se na diversificação das culturas agrícolas; 3) em decor-
rência disso, elas apresentam-se como um aporte para a biodiversidade em oposição ao modelo de
devastação das florestas que redunda na extinção de um sem número de espécies; 4) levando-se
em conta as propriedades biológicas de várias espécies não convencionais e de sua afinidade com
o modelo da agroecologia, o cultivo de PANC dispensa o uso intensivo de agrotóxicos; 5) as PANC
são ricas em termos nutricionais e nutracêuticos, ao contrário dos alimentos processados, ricos em
gorduras, sódio e aditivos prejudiciais à saúde; 6) a incorporação de PANC aos menus representa
uma incursão em novos sabores, aromas e texturas, oferecendo um contraponto à homogeneização
das dietas; 7) na contramão do modelo agroindustrial, o ativismo da Rede PANC-Bahia valoriza a
produção local e a socialização entre produtores e consumidores de alimentos; 8) num marcante
contraste com os “alimentos plastificados”, as PANC são “boas para pensar” na medida em que rea-
vivam a tradição, a memória e a “cozinha ancestral”.
Numa palavra, compreender o ativismo da Rede PANC-Bahia como antitético à perspectiva
do agrobusiness e ao modelo alimentar hegemônico reforça a concepção que apresentamos na seção
anterior, segundo a qual a esfera alimentar constitui-se como um campo de forças contraditórias.
Essa disputa eleva-se ao plano das políticas públicas, de modo que a Rede PANC-Bahia vem buscan-
do traduzir seu discurso em termos de propostas para o debate público sobre segurança alimentar.
Num plano geral, todas as políticas que beneficiam a agricultura familiar podem, em algu-
ma medida, contribuir para a disseminação do cultivo e comercialização das PANC. Um exemplo
disso foi a aprovação no estado do Amazonas da Lei 4.813 (17/04/2019) que, entre outras disposições,
prevê redução e/ou isenção de impostos para o cultivo e comercialização de espécies não conven-
cionais. Já no Recôncavo Baiano, a inclusão da farinha de araruta na merenda escolar aumentou
a demanda local por esse produto, ao mesmo tempo que se mostrou uma estratégia eficiente no

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 46


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

combate à desnutrição infantil. Além de corroborar essas medidas, a Rede PANC-Bahia sublinha
também a necessidade de investimento em pesquisas interdisciplinares sobre PANC, sua inclusão
no cardápio dos refeitórios públicos e um maior apoio logístico na distribuição desses produtos
agrícolas. Trata-se, portanto, de um conjunto de iniciativas que objetivam a inserção dessas espé-
cies nas cadeias de produção e cujo horizonte orienta-se para que elas deixem de ser “não conven-
cionais” e assegurem seus lugares em nosso léxico alimentar.

Agradecimentos

Agradecemos o apoio concedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado da Bahia (Fapesb)
e pelo Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT/CNPq). Também agradecemos
em especial aos membros do grupo de estudos “A práxis está na mesa” e aos participantes da ACCS
“Plantas Alimentícias Não Convencionais”, ambos vinculados à Universidade Federal da Bahia.

Referências

ABDALA, M. C. Práticas sustentáveis temperadas por memórias e experiências. Revista Ingesta, São
Paulo, v. 1, n. 1, mar. 2019.
AMARAL, C. N.; NETO, G. G. Os quintais como espaços de conservação e cultivo de alimentos: um
estudo na cidade de Rosário Oeste (Mato Grosso, Brasil). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências
Humanas, Belém, v. 3, n. 3, pp. 329-341, 2008.
ASSIS, J. G. A.; GALVÃO, R. F. M.; CASTRO, I. R.; MELO, J. F. Plantas Alimentícias Não Convencionais na
Bahia: uma rede em consolidação. Agriculturas, v. 13, n. 2, pp. 16-20, 2016.
AZEVEDO, E. O ativismo alimentar na perspectiva do locavorismo. Ambiente & Sociedade, v. XVIII,
n. 3, pp. 81-98, 2015.
BEARDSWORTH, A.; KEIL, T. Sociology on the menu. Londres: Routledge, 2002.
BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2013.
CARNEIRO, H. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
DUARTE, G. Levantamento e caracterização das plantas alimentícias não convencionais do Parque
Florestal de Monsanto (Lisboa). Dissertação (Mestrado em Ecologia Humana e Problemas Sociais
da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Lisboa, 2017.
FISCHLER, C. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Barcelona: Editorial Anagrama, 1995.
FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION (FAO). The Contribution of Insects to Food Security,
Livelihoods and the Environment. Roma: FAO, 2015.
INSTITUTO KAIRÓS. Guia prático sobre PANCs. São Paulo: Instituto Kairós, 2017.
KINUPP, V.F.; BARROS, I. B. I. Levantamento de dados e divulgação do potencial das plantas alimen-
tícias alternativas no Brasil. Horticultura brasileira, v. 22, n.2, 2004.
KINUPP, V.F.; BARROS, I. B. I. Teores de proteína e minerais de espécies nativas, potenciais hortaliças
e frutas. Ciência e Tecnologia de Alimentos, Campinas, v. 28, n. 4, 2008.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 47


Diversidade no prato: a experiência da Rede PANC-Bahia Luiz Enrique Vieira de Souza e José Geraldo de Aquino Assis

KINUPP, V. F.; LORENZI, H. Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil: guia de
identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas. Nova Odessa: Instituto Plantarun de
Estudos de Flora, 2014.
KINUPP, V. F. Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC): uma riqueza negligenciada. Anais
da 61ª Reunião Anual da SBPC, Manaus, 2009.
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Manual de hortaliças não conven-
cionais. Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo. Brasília: Mapa/ACS, 2010.
MONTEIRO, D.; MENDONÇA, M. M. Quintais na cidade: a experiência de moradores da periferia do
Rio de Janeiro. Agriculturas, v.1, 2004.
MONTEIRO, B. A. Valor nutricional de partes convencionais e não convencionais de frutas e horta-
liças. Dissertação (Mestrado em Agronomia) – Faculdade de Ciências Agronômicas da Universi-
dade Estadual Paulista. Botucatu: 2009.
QUERINO, M. A arte culinária na Bahia. Salvador: Livraria Progresso, 1957.
RADNITZ, C.; BEEZHOLD, D.; DIMATTEO, J. Investigation of lifestyle choices of individuals following
a vegan diet for health and ethical reasons. Appetite, n. 90, pp. 31-36, 2015.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 48


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas:
análise crítica da política de drogas luso-brasileira: Direito
Administrativo Sancionatório (Lei n.º 30/2000) x Direito Penal
(Lei n.º 11.343/06)
Consumption, acquisition and detention for the consumption of drugs:
critical analysis of the Portuguese-Brazilian drug policy: Administrative Law
Sanctioning (Law no. 30/2000) x Criminal Law (Law no. 11.343/06)

Francisco de Assis de França Júnior 1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo Abstract: The objective of this research is to present
principal analisar critica e comparativamente a a historical and sociological reflection on This article
política pública de drogas adotada tanto no Brasil aims to analyze critically and comparatively the
quanto em Portugal. Com a adoção do método da public policy of drugs that are adopted both in Brazil
revisão bibliográfica, construímos a hipótese de and in Portugal. With the adoption of the method
que o respeito aos valores democráticos só nos será of bibliographic review, we have hypothesized that
possível em território brasileiro quando a política respect for democratic values will only be possible
pública em matéria criminal atualmente em curso in Brazilian territory when the current public policy
sofrer profundas modificações, tomando-se como in criminal matters undergoes profound changes,
base o modelo português. Por fim, concluímos based on the Portuguese model. Finally, we
que, embora não seja perfeito, o modelo adotado conclude that, although it is not perfect, the model
em Portugal é o que mais se aproxima de um adopted in Portugal is the one closest to a substantial
substancial Estado Democrático de Direito. Democratic State of Law.
Palavras-chave: política pública; drogas; Brasil; Keywords: public policy; drugs; Brazil; Portugal;
Portugal; democracia. democracy.

1 Doutorando na Universidade de Coimbra, em Portugal, e professor no Centro Universitário CESMAC (Maceió/AL). Contato: [email protected].

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 49


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

Como bem sabemos, a história é feita de marchas e contramarchas, o que significa reco-
nhecer, dentre outras coisas, que nosso capital cultural é constituído através da correlação de forças
entre grupos de poder que nos fazem vivenciar, de tempos em tempos, sob a perspectiva democrá-
tica, avanços e retrocessos. Assim também o é o Direito (ubi societas, ibi jus), sobretudo na utilização
de sua face mais coercitiva. Criminalizações e descriminalizações são, portanto, produtos dessa
dinâmica. Mas, de início, faz-se necessário alertar que não nos vai interessar, especialmente por
conta do tempo e do espaço escassos que possuímos para cumprir o objetivo a que nos propomos,
pormenorizadas incursões históricas2 dos ilícitos administrativos ou das contra-ordenações, até
mesmo porque, tal como destacado por Faria Costa (1983, p. 45), estas possuem “longa gestação”.
Pois bem, numa dessas marchas, rumo aos valores democráticos,3 o legislador português,
inspirado na legislação germânica, de maneira “equilibrada”, tal como ele mesmo enfatizou no pre-
âmbulo do Decreto Lei nº 433 de 27 de outubro de 1982, que estabelece o regime geral do ilícito de
mera ordenação social, ora vigente, deixou aberto “um vasto campo” para que o Direito Administra-
tivo Sancionatório pudesse atuar, ressalvando-se as hipóteses de comportamentos ofensivos àquilo
que a própria doutrina denomina de “dignidade penal”. E, nessa esteira, a dogmática relacionada
ao tema ganhou notoriedade, desenvolvendo-se no sentido de ganhar certa autonomia4 e capilari-
dade nas estruturas de poder. Ou seja, o Direito Administrativo Sancionatório passou a assumir um
protagonismo, em determinados conflitos, dantes só reconhecido ao Direito Penal.
Apesar desse protagonismo na vida prática, cada vez mais visível, faz-se necessário trazer à
baila a crítica do professor Licínio Lopes Martins (2014, pp. 20-21), uma vez que, em sua perspectiva,
“o ilícito administrativo e particularmente o contra-ordenacional não tem merecido, entre nós (ao
contrário do que sucede em alguns outros sistemas de direito comparado), estudos aprofundados
da dogmática administrativa”, ainda segunda ele, o que tem predominado nessa área são “as
2 Diante das circunstâncias, talvez esse não fosse o caminho metodológico mais adequado. Apesar de reconhecermos
que, por vezes, incursões históricas são necessárias na compreensão de determinados institutos jurídicos. Mas não, como
já dissemos, com os objetivos que temos aqui, ou seja, breves reflexões sobre o funcionamento de institutos que são
articulados na tentativa de resolução de um complexo conflito. Justamente por isso, não nos convém arriscar incorrer em
“universalismos”, dando a institutos que possuem os mesmos nomes, “o mesmo lugar e o mesmo valor”, desprezando o
contexto social em que foram criados e manuseados, o que demanda tempo para expor. A este respeito, interessante a
crítica que faz Michel Miaille. Utilizando-se do pensamento do autor, é de se questionar criticamente se seria possível,
caso adotássemos um método historicamente comparativo, em linhas tão apertadas, “designar instituições muito afas-
tadas no tempo como sendo ‘antepassados’ de instituições actuais, invocar testemunho de uma ‘evolução’ para explicar
a situação actual”? (Miaille, 2005, p. 54). As mesmas reflexões podem ser encontradas em opúsculo de Luciano Oliveira.
3 “É, por exemplo, a partir de princípios como o do respeito da dignidade humana, da liberdade (máxime de crença ou de
religião), da igualdade e do Estado de Direito, que a doutrina alemã tem vindo recentemente a fundamentar os programas
de descriminalização. Tem sido, v. g., em nome da dignidade humana que se tem sentido a necessidade de restringir o
recurso ao gravame da pena criminal a certas lesões de bens jurídicos de reconhecida importância ético-social” (Costa
Andrade, 1980/1981, p. 118).
4 “Dados normativos que, pelo menos, indicam, na perspectiva jurídico-constitucional, uma autonomia substantiva e
adjetiva do direito contra-ordenacional – e do direito administrativo sancionatório em geral – em relação ao direito penal
e ao processo penal e que a doutrina e a jurisprudência do Tribunal Constitucional confirmam” (Lopes Martins, 2014, p. 22).

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 50


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

reflexões da doutrina penalista, em especial as reflexões de autores clássicos”. A propósito disso,


como logo se perceberá, é a partir dessa perspectiva jurídico-normativa, justamente por conta da
escassa articulação entre o emergente Direito Administrativo Sancionatório e o invasivo ramo do
Direito Penal, que enfocaremos o tema proposto.
No entanto, como já se pôde antever, esse protagonismo não surge nem se desenvolve sem
dificuldades. Não por acaso, Costa Andrade (1980/1981, p. 82) faz questão de destacar o tamanho do
desafio com o qual se depara a doutrina correlata. Na perspectiva do catedrático de Coimbra, “certo
como é que o direito de ordenação social constitui um dos ramos do direito mais rebeldes à cate-
gorização dogmática e que, por isso mesmo, tem condenado a doutrina ao destino de Sisifo”. Em
termos mais práticos, ainda com Costa Andrade (1980/1981, p. 120), estamos a falar, portanto, de “sa-
ber se um dado perigo pode ser suficientemente prevenido através das sanções civis ou ordenação
social ou se, pelo contrário, reclama a ultima ratio que são as reações criminais”, no que arremata,
“eis uma questão onde não podem esperar-se respostas unívocas nem soluções vinculadas”.
O fato é que a ascensão do Direito Administrativo Sancionatório se dá, prioritariamente,5 para
conter o uso desmedido das sanções criminais, em especial, de uma de suas vertentes mais drásticas,
a privação da liberdade e seu consequente poder traumatizante e de estigmatização. O movimento
de hipertrofia da legislação penal, muitas vezes fruto de um reverberado discurso de pânico, e na
grande maioria das vezes, flagrantemente ineficaz, ao invés de proporcionar liberdade, acabou por
restringi-la em níveis cada vez mais preocupantes. Assim, já em 1973, Eduardo Correia (1973, pp. 258-
263) alertava para uma das possíveis consequências do problema. Segundo ele:

A esta luz, a inflação das normas criminais seria, tão só, a consequência de que o Estado,
para impedir comportamentos contrários a certos interesses sociais que visa realizar, em
vez de utilizar uma adequada e diferenciada política de informação, assistência ou de
recurso a medidas de natureza eticamente indiferente, prefere punir e reprimir a sua
prática recorrendo abusivamente a sanções criminais.
[...]
Face a uma tal confusão de normas e de sanções, chega a dizer-se que os homens aca-
bam por pensar ou concluir que, já que tudo é criminalmente proibido, tudo passa afinal
a ser permitido. E daí o estado de anomia, de ausência de padrões ético-jurídicos, que
prejudica a própria dignidade do direito criminal.

O uso e o abuso dos recursos mais invasivos do Direito Penal, portanto, além de abarrotar
as mais variadas instâncias do Poder Judiciário, sem efeitos práticos de grandes relevâncias nos
índices de criminalidade, acabou permitindo que outros mecanismos (menos invasivos) de resolu-
ção de conflitos fossem descobertos, desenvolvidos e aprimorados. Um deles, como vimos, foi jus-
tamente o Direito Administrativo Sancionatório com sua respectiva instância de julgamento, cujo
fenômeno que lhe interessa, para os efeitos do presente estudo, denomina-se geralmente, com

5 “Uma visão simplista e simplificadora, de acordo com a qual todos os “ilícitos contraordenacionais” decorreriam de um
fenómeno de descriminalização, não basta para explicar e compreender – de modo adequado e sistemático – o objeto
do Direito Contraordenacional” (Prata Roque, 2013, pp. 120-121).

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 51


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

vimos, de contra-ordenação, definida legalmente como “todo facto ilícito e censurável que preencha
um tipo legal no qual se comine uma coima”.6 Eis aí, a priori, um ilícito de natureza administrativa
ou de pura ordenação social.
Mas, não nos custa alertar, é preciso se cercar de uma série de cuidados na utilização do
Direito Administrativo Sancionatório. Não se pode alargar demasiado seu âmbito de atuação, ou
seja, não deve ser todo e qualquer comportamento censurável socialmente que deve ser alçado à
categoria de contra-ordenação.7 Ademais, apesar de inicialmente ter se desenvolvido no seio do Di-
reito Penal,8 possui características e métodos próprios, postulando-se, dentre outras coisas, por um
lado, já que não está em xeque a liberdade alheia, mais celeridade e eficiência, e por outro, menos
burocracia e, como já dissemos, estigmatização.
É Eduardo Correia (1973, pp. 269-270) quem nos dirá, alertando-nos, que as sanções
administrativas, grosso modo, poderiam ser pensadas como aquele “tipo de reações, impostas sem
quaisquer garantias processuais, independentemente de toda a ideia de culpa, de tipicidade ou
de ponderação de circunstâncias que possam excluir a ilicitude o a censura, mesmo social, de um
comportamento humano”. Muito pelo contrário, tanto que ele mesmo arremata dizendo que “não
é para as lançar num domínio tão odioso como o desse tipo de reações, reminiscência do Estado
policial, que, certamente, se fala em descriminalizar certas formas de ilícito administrativo”.
Daí que, mesmo sendo categoria diversa dos crimes, o vínculo à legalidade, com todos
os seus corolários garantidores de um ambiente democrático, tal como preza a Constituição
da República Portuguesa (Art. 2.º), é condição básica de validade das sanções impostas como
consequências das contra-ordenações. Até mesmo porque o manuseio de suas consequências
implicará, quer seja direta ou indiretamente, em interferências no pleno exercício dos direitos e
garantias fundamentais dos cidadãos. É exatamente nesse sentido que Prata Roque (2013, p. 124)
se pronuncia, senão vejamos:

a aplicação de uma “sanção administrativa”, em sentido amplo, implica sempre uma res-
trição de um direito fundamental; seja ele o direito de exercício de uma atividade ou

6 Artigo 1.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro. Coima, por sua vez, “é sanção normal do direito de ordenação social:

constitui uma sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas, como sentido dissuasor
de uma advertência social, traduzindo-se na imposição do pagamento de uma quantia fixada entre os montantes pre-
vistos no artigo 17.º do DL n.º 433/82, de 27-10”. Extraído dos sumários de apoio 2015/2016 do professor Dr. Licínio Lopes
Martins, Direito Público I, direcionado ao curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses, da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra.
7 “Como ensina FORSTHOFF, ‘um Estado que aproveita as necessidades dos seus súbditos para aumentar o seu poder...
não realiza um Estado social, mas afirma-se como Estado totalitário’” (Correia, 1973, p. 281).
8 “Esta ligação assume, no caso português, uma peculiaridade digna de menção: a do ensino universitário do direito admi-

nistrativo (instituído pela reforma dos estudos jurídicos de 1836 como uma parte da cadeira de direito público português)
ter sido desde 1843 anexado ao ensino do direito criminal, com Basílio Alberto de Sousa Pinto como professor, só a partir
de 1853 sendo objecto de uma cadeira autônoma (ver P. Merêa, Esboço de uma História da Faculdade de Direito. 1º Período:
1836-1865, Boletim da Faculdade de Direito, XXVIII, 1953, pp. 112 e 150 e seguintes). (Figueiredo Dias, 1984, p. 266, nota 19).

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 52


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

profissão, a liberdade de circulação ou o próprio direito de propriedade, que fica posto


em crise, no caso da aplicação de uma mera sanção pecuniária (por exemplo, do tipo
“coima”).

Desse modo, nosso interesse pelas nuances legais e doutrinárias das contra-ordenações, pro-
curando deixar claro o tipo de instituto com o qual teremos que lidar, como já deixamos antever pelo
título deste trabalho, se dá justamente pelo fato de o legislador português ter reservado ao consumo,
aquisição e a detenção para o consumo de drogas (praticamente todas elas, como, por exemplo, a
maconha, a cocaína e a heroína) a essa categoria de ilícito, deixando-a de fora do alcance do Direito
Penal substancial, empoderando, por consequência, o Direito Administrativo Sancionatório.
Sendo assim, desde o advento da Lei 30/2000 de 29 de novembro, que define o regime ju-
rídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a proteção
sanitária e social das pessoas que as consomem sem prescrição médica em território português,
tais comportamentos são encarados como contra-ordenações (Art. 2°, 1), desde que (e é isso o que
objetivamente diferencia o crime – de tráfico – da contra-ordenação) a quantidade encontrada com
o investigado não exceda o necessário para o período de dez dias, conforme dispõe a legislação (Art.
2.º, 2 da Lei nº 30/2000 c/c Art. 71.º, I, “c”, do Decreto-Lei nº 15/1993 c/c Art. 9.º, da Portaria nº 94/1996).
Diante dos debates sobre o respeito à liberdade, à privacidade e à autolesão, direitos desig-
nadamente típicos de um ambiente verdadeiramente democrático, e confrontado com o flagrante
fracasso do ideário de guerra às drogas, especialmente sobre os usuários9, deflagrado com pompa
pelo governo norte americano na década de setenta10, Portugal se viu, como não nos deixa esquecer
Faria Costa (2002, p. 275), frente a basicamente três possibilidades: 1) liberalizar; 2) despenalizar; 3)
ou atenuar as penas. No que o Catedrático de Coimbra conclui:

9 É lapidar a reflexão de Figueiredo Dias a esse respeito: “a institucionalização, assim verificada, de actividades ilícitas,

principais e secundárias, acaba por dar origem a uma cultura delinquente específica, que une, segundo certos códigos de
conduta, as pessoas que nelas estão envolvidas. Ouçamos ainda Schur, no que à droga respeita (ob. cit., p. 145): ‘a imersão
gradual de muitos viciados num mundo próprio está […] ligada ao processo geral que os afastou da sociedade respeitável.
A definição social do viciado como delinquente não só influencia decisivamente o seu comportamento, como altera a sua
autoimagem. […] Levado para um mundo de ligações subterrâneas e para o crime a fim de satisfazer o seu hábito, começa
a sentirse inimigo da sociedade, ou pelo menos a sentir a sociedade como sua inimiga. Desencadeia-se assim um ciclo de
selffulfilling prophecy de que é muito difícil para um viciado libertarse. Tem a consciência de que as pessoas respeitáveis
o encaram como um criminoso, e ele próprio se vê a agir como tal. O que reforça a sua ligação e dependência em relação
ao mundo da droga tanto no que se refere ao apoio interpessoal, como no que diz respeito à obtenção da droga. Uma vez
que a necessidade de financiar o seu vício ocupa uma parte cada vez maior do seu tempo e energia, e dado que os outros
universos (trabalho, família…) o repelem ou rejeitam, a droga tornase um modo de vida’”. Ver Figueiredo Dias, José de.
Uma proposta alternativa ao discurso da criminalização/descriminalização das drogas. Disponível em: http://www.ibadpp.com.
br/wp-content/uploads/2013/02/Drogas-JorgedeFigueiredoDias.pdf. Acesso em: 18 out. 2015.
10 Modelo proibicionista replicado quase que automaticamente pelos países da América Latina, entre eles, como veremos,
o Brasil. Segundo Salo de Carvalho (2013, p. 71), “os reflexos do projeto externo norte-americano incidiram diretamente
nas políticas de segurança pública dos países da América Latina”.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 53


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

Ora, se a primeira destas três possibilidades era a mais consentânea com a forma como
o consumo de estupefacientes passara a ser encarado, a verdade é que compromissos
internacionais a que o Estado português permanecia e permanece vinculado parecem
impor que aquela conduta continue a ser considerada juridicamente desvaliosa e, por
isso, sancionada. Configurando-se a mera atenuação como claramente insuficiente face
aos objetivos pretendidos, parecia sobrar a via intermédia. A despenalização aparecia, as-
sim, como a via possível para retirar o mero consumidor de drogas do estigmatizante
corredor da delinquência que muitos continuam a considerar o processo penal e o pró-
prio cumprimento das sanções criminais, mantendo, pesar disso, a consideração como
juridicamente reprovável de tal conduta.

Mas o ideário de guerra às drogas ainda está tão arraigado no mundo que os movimentos de
descriminalização têm, em grande parte das vezes, sido marginalizados pela opinião pública.11 Os
debates sobre esse tipo de problema muitas vezes costumam envolver questões ideológicas, éticas,
morais e até religiosas, em detrimento dos postulados da política criminal e da criminologia. No
auge dos debates sobre a descriminalização do consumo em Portugal, setores mais conservadores
chegaram a afirmar que o país se tornaria o “paraíso” dos consumidores.
Foi, portanto, nesse contexto, que Portugal ascendeu como o primeiro país do mundo a ter
a coragem de descriminalizar (ou despenalizar, como preferem alguns autores, a exemplo de Faria
Costa) o consumo, a aquisição e a detenção para o consumo de praticamente todas as drogas até
então conhecidas. Mirava-se, desta forma, na ideia de que “através do contato com as Comissões
[administrativas, das quais falaremos a seguir]”, pudesse-se “fomentar a compreensão das caracte-
rísticas do consumo do próprio agente e das circunstâncias envolventes, de modo a encaminhá-lo,
se for o caso disso, para o desejado – por todos – tratamento” (Faria Costa, 2002, p. 277).
Trecho do relatório divulgado pela Open Society Foundations12 em 2011 confirma que, contra-
riamente às preocupações iniciais quanto às novas estratégias em Portugal, “estudos mostram que
o número de consumidores de drogas não aumentou dramaticamente, chegando mesmo a dimi-
nuir em algumas categorias”. Além disso, “o número de pessoas com doenças relacionadas com o
consumo de drogas (como VIH e Hepatites B ou C) diminuiu na generalidade”. Carla Alexandra Ne-
ves da Cunha Lima Espírito Santo (2014, p. 15) não nos permite olvidar que, “a título de exemplo, na
C.D.T. de Coimbra, desde a entrada em vigor da Lei e até ao final do ano de 2013, apenas 2,80% dos
indiciados eram estrangeiros, e destes a grande maioria era residente em Portugal, 87,35%”.
Mas a iniciativa não frutificou sem críticas mais dogmáticas. Para Cristina Líbano Monteiro
(2001, p. 90), analisando a “correção técnica” da referida produção legislativa na lida com as drogas,
induvidosamente “o diploma é mau”. Veja-se ainda, por exemplo, a reflexão feita por Faria Costa
(2002, p. 276), um dos juristas que contribuiu decisivamente para que esse giro valorativo no trato
com o problema das drogas em território português acontecesse:
11 No Brasil, por exemplo, movimentos de descriminalização, como os denominados de “marcha da maconha”, conse-

guiram, somente na justiça, garantir os direitos de reunião e de livre expressão do pensamento quanto à matéria. Em
decisão unânime (8 votos), no julgamento da ação (ADPF 187) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), o
Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a realização dos eventos.
12 Política da droga em Portugal – os benefícios da descriminalização do consumo de drogas. Disponível em: https://www.open-

societyfoundations.org/sites/default/files/drug-policy-in-portugal-portuguese-20111206_0.pdf. Acesso em 19 nov. 2015.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 54


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

se o facto de termos, de alguma forma, estado na génese da elaboração do anteprojeto


que veio a consagrar o actual regime jurídico referente a esta matéria não poderia nunca
desobrigar-nos de um posterior mea culpa caso chegássemos à conclusão da existência
de melhores opções, a verdade é que o normal funcionamento das regras democráticas
na produção legislativa fez com que o “produto” final se apresentasse com tantas dife-
renças face à sua versão mais embrionária que a análise que agora se faz é a um “ser” – a
uma lei – com natureza autónoma. Mais do que isso, um “ser” herdeiro de características
díspares. Um “ser”, digamo-lo francamente, por vezes com qualquer coisa de desarmo-
nia e de incoerência.

De qualquer forma, como bem resumido por Carla Alexandra Neves da Cunha Lima Espí-
rito Santo (2014, p. 9), partiu-se “de uma visão jurídico-repressiva”, para uma espécie de “modelo
bio-psico-jussocial”.
Nessa senda, para funcionarem como foro responsável pelo processamento de tais casos,
agora sob a égide do Direito Administrativo Sancionatório, a já mencionada lei determinou que fos-
sem instituídas em cada distrito, as Comissões para Dissuasão da Toxicodependência (Art. 5º, 1 da
Lei 30/2000), que devem ser formadas por três pessoas, devidamente remuneradas (Portaria n.º
428-A, de 23 de abril), sendo que uma delas tendo que ser da área jurídica (Art. 7º da Lei 30/2000).
Dito pormenorizadamente, os integrantes serão nomeados por despacho do membro do Governo
responsável pela coordenação da política da droga e da toxicodependência, sendo que o jurista será
designado pelo Ministro da Justiça. No entanto, os critérios adotados não ficam imunes às críticas,
em especial quando se mira a autonomia (financeira e administrativa) e a independência (político-
-partidária), com o que concordamos com Cristina Líbano Monteiro (2001, p. 80), quando diz:

A apreciação política e financeira e um eventual juízo sobre a praticabilidade desta nova


estrutura administrativa representariam um desvio ao que se espera de um jurista que
ensaia um comentário sobre a nova lei da droga na área do saber que cultiva. Diremos
apenas que causa alguma estranheza uma tão acentuada dependência do poder
instituído de uma comissão que, apesar de tudo, vai julgar cidadãos.

Na prática, o que fez o legislador português com esse novo subsistema normativo, na se-
quência do trabalho da equipa13 que elaborou a Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, aprovada
pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, como já se anteviu, foi dar empoderamento a se-
tores da Administração Pública, mais propriamente ao Executivo, notadamente aqueles mais afetos
à saúde pública, e, por via de consequência, ao próprio Direito Administrativo Sancionatório, para
atuarem numa área antes só reservada ao crivo do Direito Penal e do Poder Judiciário.
Deflagra-se um importante movimento de “desjudiciarização”, dotando-se de “novos meios
as instituições não judiciais indispensáveis para o bom funcionamento de um modelo de justiça di-
ferente do tradicional ou de articular melhor os diversos agentes que devem colaborar entre si neste
autêntico trabalho em rede” (Líbano Monteiro, 2001, p. 95).

13 Criada pelo Despacho do Ministro Adjunto do Primeiro Ministro n.º 3223/98, publicado na II Série do D.R. de 16/02/98.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 55


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

Equilibram-se, portanto, as reservas de poder de duas das mais importantes instâncias de


gestão e resolução de conflitos sociais: o Judiciário e o Executivo. Ao primeiro, a responsabilidade
sobre o ilícito penal, ao segundo, a responsabilidade sobre o ilícito administrativo, muito embora
saibamos que neste último caso, poderá o Judiciário também ser demandado para aferir a legalida-
de do procedimento administrativo e de suas consequências. De qualquer forma, terá a instância
administrativa que, como já tivemos a oportunidade de frisar alhures, assegurar ao investigado, os
mesmos direitos de audiência e defesa, dentre outros, tal como no processo criminal, o que não sig-
nifica, dirá Licínio Lopes Martins (2014, p. 22), “uma opção do legislador constitucional [Art. 32.º] no
sentido de determinar uma associação material do direito contra-ordenacional ao direito criminal
e ao processo penal”.
Assim, como dissemos, são contra-ordenações aqueles fatos ilícitos e censuráveis cuja
sanção seja uma coima, de natureza, portanto, pecuniária (cujo incumprimento poderá resultar
numa ação de execução de bens), sem prejuízo de eventuais sanções acessórias. Mas, no caso da Lei
30/2000, o legislador, prevendo uma eventual insuficiência de recursos entre os toxicodependen-
tes,14 ampliou as possibilidades de sanções principais, estabelecendo vias alternativas (arts.15 e 17)
não pecuniárias, o que também não escapou às críticas.
Faria Costa (2002, p. 276), por exemplo, dirá que “a unidade e coerência do sistema jurídico
teria talvez beneficiado com uma solução que partisse da aplicação de uma coima – ainda que de
valor diminuto e sobretudo simbólico – complementada por sanções acessórias mais vocaciona-
das para o tratamento”, no que conclui, com ar de perplexidade, dizendo: “Temos, portanto, sanções
principais várias que não são coimas, ou então, como já se aceita, coimas não pecuniárias (classifica-
ção dogmática com que, aliás, estamos longe de concordar)”.
Por outro lado, Cristina Líbano Monteiro (2001, p. 70) também atenta para esta “inovação”,
não sem antes apontar a “originalidade” do legislador português, dirá que “a Lei n.º 30/2000 inventa
sanções não pecuniárias (não coimas, no sentido que a estas últimas parece conferir a lei-quadro)
para ilícitos que classifica como de mera ordenação”, no que arremata dizendo:

a Assembleia da República, competente, segundo a Constituição [art. 165.º, n.º 1, al. c)]
para definir o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do
respectivo processo, não parece impedida de alargar o leque de sanções por ela própria
estabelecido na lei-quadro das contra-ordenaões.

Passando ao largo dessa discussão – e de algumas outras tão importantes quanto, e que
surgem como desdobramentos das reflexões já evidenciadas –, pelas já citadas razões de econo-
mia de tempo e de espaço, e pelos objetivos aqui pretendidos, interessa-nos mais propriamente
enfocar as características da dinâmica do funcionamento das Comissões para Dissuasão da Toxi-

14 Importa-nos frisar que a contra-ordenação ora em questão alcança não apenas os toxicodependentes, mas a todos
aqueles que, mesmo não dependentes, prestarem-se ao consumo ocasional, a aquisição e a detenção para o consumo
de drogas nos limites legalmente estabelecidos. A propósito, é interessante notar ainda que, segundo as autoridades
portuguesas, asendo referentes a consumidores toxicodependentes (Espírito Santo, 2014, p. 16).

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 56


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

codependência. Ou seja, qual a competência, e quais são as atribuições, os princípios e os deveres


com os quais esse órgão da Administração Pública tem que lidar no processamento das contra-or-
denações do consumo, da aquisição e da detenção para o consumo de drogas?
As já referidas Comissões, constituídas na capital de cada distrito (Art. 2.º, 1, do Decreto Lei
n.º 130-A/2001), e que não trabalham sozinhas (Art. 6.º e 7.º do Decreto Lei n.º 130-A/2001) têm como
matéria prima os autos de ocorrência registrados pelo aparelho de polícia (Art. 4.º da Lei 30/2000 c/c
Arts. 9.º e 12.º do Decreto Lei n.º 130-A/2001) e terão sua competência territorial conforme o domicí-
lio do investigado, podendo, no entanto, caso tal informação não esteja disponível, a competência
ser fixada com base no local em que o investigado foi encontrado (Art. 8.º da Lei 30/2000 c/c Art. 2.º,
2, do Decreto Lei n.º 130-A/2001).
Já na fase instrutória, o processamento dos autos de ocorrência será prioritariamente re-
alizado pela via informática (Art. 8.º do Decreto Lei n.º 130-A/2001), privilegiando-se, portanto, a
celeridade e a economia processuais, respeitando-se ao investigado o direito da assistência de um
advogado (Art. 20.º, 2 da Constituição da República Portuguesa), bem como, repise-se, todas as ga-
rantias básicas necessárias para que, no curso da investigação, mantenha-se incólume a dignidade
humana, núcleo essencial do Estado Democrático de Direito. Sobre este aspecto, importa-nos apro-
fundar, o que mais se discute na doutrina atualmente: em quais medidas as mesmas garantias do
processo criminal serão adotadas no processo de natureza administrativa?
A Constituição da República Portuguesa garante que em quaisquer processos administra-
tivos sancionatórios devem ser assegurados os direitos de audiência e de defesa (Art. 32, 10). Disso
já falamos. Mas, em que medida? Esse é justamente o problema, tal como reconhecido por Gomes
Canotilho e Vital Moreira,15 que, de certa forma, deixam a questão em aberto. Na nossa perspecti-
va, não há dúvida, especialmente pelas inúmeras sanções alternativas à coima disponíveis na Lei
30/2000, todos os direitos e garantias estabelecidos ao processo criminal devem valer ao processo
contra-ordenacional do consumo, da aquisição e da detenção para o consumo de drogas, sob pena
de sua nulidade.
Dessa forma, antes de tomar qualquer decisão que pese substancialmente sobre os direitos
e garantias fundamentais do investigado, até mesmo porque ainda é preciso verificar se há real-
mente uma droga em questão,16 as autoridades administrativas devem diligenciar no sentido de

15 “Questão mais problemática é a de saber se e em que medida é que os princípios da ‘constituição processual cri-
minal’, enunciados neste artigo, valem também para outros processos próximos do processo penal, ou de caráter
‘para-penal’ (v. g., extradição e expulsão de estrangeiros, habeas corpus, execução de penas etc.)” (Gomes Canotilho; Mo-
reira, 2014, p. 526).
16 Essa é outra questão que reputamos deficiente no diploma que regula o procedimento objeto de nossa pesquisa.

Primeiro, o Art. 17 do Decreto Lei 130-A/2001 diz que as análises técnicas da substância encontrada com o investigado
só serão devidas caso ele negue sua natureza, com o que não concordamos, pois o próprio investigado pode estar enga-
nado quanto a tal, ou pode até mesmo simular se tratar de uma determinada substância proibida, por razões várias. E,
segundo, porque faz recair o encargo financeiro das análises técnicas sobre o próprio investigado, desincumbindo-se a
administração de uma responsabilidade que é sua, não podendo ser “penalizado”, sobretudo financeiramente, o inves-
tigado, por não ter admitido a natureza da substância, uma vez que ninguém deve ser obrigado a produzir prova contra

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 57


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

dar-lhe a oportunidade de se defender pessoal e tecnicamente. Para isso, previu-se a necessidade


de audição do mesmo (Artigos 13 e ss da Lei 30/2000), conforme destacado por Manuel Monteiro
Guedes Valente (2014, p. 181), a previsão do referido procedimento é um “direito deste e dever da
CTD [Comissão para Dissuasão da Toxicodependência]”.
Não se pode perder de vista que, boa parte das sanções alternativas previstas no Artigo 17.º
da Lei 30/2000 – tais como a proibição de exercer profissão ou atividade, interdição de frequência
de certos lugares, proibição de acompanhar, alojar ou receber certas pessoas, interdição de ausência
para o estrangeiro sem autorização, apresentação periódica em local a designar pela Comissão –,
estabelece medidas que, muito embora não prive a pessoa humana de sua liberdade, acaba restrin-
gindo substancialmente o seu pleno desenvolvimento, impondo condições que a direcionam, o que
deve ser observado com o rigor que qualquer restrição a um direito fundamental demanda.
Diante dessas circunstâncias, a Comissão para Dissuasão da Toxicodependência, dado o
alargamento das possibilidades de sanções, reveste-se de um poder ainda mais intenso e leve-
mente mais invasivo do que o de outros órgãos da administração pública sancionatória, e, como
tal, deve atuar primando pelo respeito aos direitos e interesses legalmente protegidos dos cida-
dãos (Art. 266.º da Constituição da República Portuguesa). Esse é, portanto, um sistema que goza
de um status “especial” (Líbano Monteiro, 2011, p. 71).
Em Miguel Prata Roque (2013, pp. 1206-127), pode-se encontrar um elenco exemplificativo
de diversos comandos normativos que precisam ser resguardados pela administração pública, e,
por consequência, pela Comissão, durante seu processo de apuração e julgamento. Segundo ele,
imparcialidade, participação, informação, não autoincriminação, audiência prévia, fundamenta-
ção, dentre tantos outros, como, agora dizemos nós, o dever de não exposição do investigado, são
garantias que precisam ser observadas como forma de legitimar o procedimento administrativo.
Desse modo, conforme determina o Art. 41 do regime geral das contra-ordenações (Decreto Lei
n.º 433/82), “as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos
mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não
resulte do presente diploma”.
Finda a fase instrutória, a Comissão emite sua decisão, respeitando-se nesse particular, den-
tre outros comandos, as disposições do Art. 26.º e ss do Decreto Lei n.º 130-A/2001, devendo, diante
da irresignação, o recurso ser encaminhado ao tribunal com jurisdição na sede da Comissão recor-
rida (Art. 31.º do Decreto Lei n.º 130-A/2001 c/c Art. 55.º e 59.º do Decreto Lei n.º 433/82 c/c Art. 8.º da
Lei 30/2000), sendo o acompanhamento do cumprimento das sanções definitivas feito pelas auto-
ridades policiais (Art. 30, 1 do mencionado decreto).
A propósito, tendo em vista as substanciais mudanças no sistema de responsabilização dos
usuários de drogas em Portugal, as agências policias, como gestores de partes importantes do sis-
tema administrativo sancionatório, também precisariam se adequar, adotando um modelo mais
democrático na atuação e na formação de seus quadros. Afinal, são os agentes da administração

si mesmo, ou seja, nesses casos, deve-se respeitar o direto ao silêncio (dentre outros, Art. 343.º, 1 do Código de Processo
Penal Português c/c Art. 41.º do Decreto Lei n.º 433/82).

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 58


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

que selecionam as pessoas que devem se submeter ao procedimento contra-ordenacional que ora
analisamos.
No mesmo caminho, mas numa perspectiva muito mais ampla, José Narciso da Cunha Ro-
drigues (1998, p. 406) aponta que, “reclama-se então uma polícia culturalmente formada, tecnica-
mente apetrechada e socialmente inserida”. Pierre-Henri Bolle (1998, pp. 409-410), por sua vez, dirá
que “hoje, já não se vê no polícia um cidadão de uniforme e capacete; olha-se para ele sobretudo
como um representante da força, do poder, da autoridade pública”. O mesmo Bolle ainda dirá que “o
polícia passou a ser o técnico funcionarizado da segurança e da ordem, o especialista na luta contra o
crime, o agente de repressão do tráfego rodoviário, o desmancha prazeres, o papão das crianças mal-
comportadas, a quem os pais ameaçam com a polícia se não obedecerem”. É preciso corrigir esse rumo.
Aproveitemos a oportunidade para não deixarmos de explorar academicamente o cenário
com o qual convivemos em nossa pátria de origem, reforçando, ainda mais, os históricos laços que
unem a doutrina penal luso-brasileira, para traçar um breve paralelo entre as legislações que deter-
minam a política de drogas e, portanto, a própria dinâmica policial nessa política, em ambos os países.
A estrutura policial brasileira está basicamente estabelecida na Constituição Federal, no seu
Art. 144, e que contempla os Estados membros com grande carga de responsabilidade na gestão
do sistema. Já na estrutura policial portuguesa, é de se destacar, além do Art. 272.º da Constitui-
ção, as Leis n.º 53/2007; 63/2007; 49/2008, que estabelecem, dentre outras questões correlatas, a
organização e distribuição da política de segurança pública nacional. Os sistemas, organicamente
distribuídos, pode-se dizer, grosso modo, não são tão díspares. Mas, aqui (em Portugal),17 como lá
(no Brasil), os problemas são igualmente graves, com o aumento da criminalidade e da sensação de
insegurança. Obviamente que cada qual com sua intensidade e seu contexto.18
Quanto ao nosso foco principal, no específico caso brasileiro, é a Lei n.º 11.343/2006 que, den-
tre outras coisas, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de
drogas, atuação especialmente levada a cabo pelas agências policias. Tanto o tráfico (Art. 33) quanto
o consumo de drogas (Art. 28), são sancionados e submetidos necessariamente ao âmbito do Po-
der Judiciário, recebendo ambos a pecha legal de crime. Ou seja, enquanto Portugal preocupou-se,
como vimos, pioneiramente, com o tratamento absolutamente diferenciado aos casos relacionados
ao mero consumo, especialmente empoderando o Direito Administrativo Sancionatório, o Brasil,
apesar da retórica, continuou apostando prioritariamente no Direito Penal e no Poder Judiciário.
Mas, para sermos justos, abriremos aqui um parêntese para reconhecer que o legislador bra-
sileiro, nesse contexto de sua “nova” política de drogas, dotou o Direito Administrativo Sancionatório
17 “A problematização da ordem pública agudiza-se quando a insegurança apercebida contrasta com uma atitude contínua
de negação da mesma pelo Ministério da administração Interna e pelo Secretário-Geral da Segurança interna que, frente
ao crescimento de novas formas de crime violento de grande visibilidade, optaram até ao segundo trimestre de 2011 por
se refugiar na mais pura condimentação estatística”. Carlos Blanco de Morais (2012, p. 26), professor da Faculdade de
Direito de Lisboa, refere-se ao relatório anual de segurança de 2010, que apontou Portugal como um dos Estados mais
seguros da Europa.
18 Como já fizemos constar, uma análise minuciosa tenderá a fugir dos objetivos deste trabalho, razão pela qual, apenas
para nos situarmos, as presentes informações sobre a orgânica da segurança pública luso-brasileira já nos bastam.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 59


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

de extrema relevância. Da pior maneira possível, segundo pensamos. Com a entrada em vigência da
Lei n.º 9.614/98, que surgiu em virtude da verificação de transportes de drogas pelo espaço aéreo bra-
sileiro, especialmente por sobre a Amazônia, próximo à fronteira com a Colômbia, um dos maiores
produtores e exportadores nessa seara, instituiu-se, em caráter administrativo, nova modalidade de
pena de morte, e o que é pior, sem o devido processo legal, nem ampla defesa ou contraditório.
A execução da medida administrativa pelos órgãos de controle do transporte aéreo brasilei-
ro, regulamentada a partir de 2004 pelo Decreto n.º 5.144, fica a cargo da autorização do Presidente
da República ou de alguém por ele designado. A já mencionada lei de 1998 alterou, portanto, o Art.
303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei n.º 7.565/86), que eufemisticamente previu “medidas
de destruição” para aeronaves classificadas como hostis, que tenham infringido o procedimento pa-
drão delineado no já referido artigo. Ricardo de Brtio Freitas19 dirá que, “afinal trata-se de autoriza-
ção legal para a realização de execução sumária por mera suspeita de tráfico de drogas”.
Fechando-se o parêntese, vê-se patente, com isso, a inconstitucionalidade na ampliação
da supressão da vida humana, sobretudo por conta de suposto transporte de drogas, primeiro,
por uma legislação infraconstitucional e, segundo, por um processo administrativo praticamente
oral, o que se reveste de completa falta de razoabilidade e proporcionalidade diante de um bem
garantido constitucionalmente.
Voltando à Lei n.º 11.343/06, de início, tentou-se incutir a ideia de priorização de políticas
públicas preventivas de redução do tráfico e do consumo problemático. Não se daria mais, da pers-
pectiva mais otimista, uma conotação de “guerra” ao tratamento estatal junto às drogas. Tanto que,
dos seus 75 artigos, pelo menos 32 visam prioritariamente políticas de prevenção e assistência. Não
obstante as prescrições legais, as práticas do sistema de segurança pública no Brasil, marcada e his-
toricamente repressivas (França Júnior, 2014), não permitiram uma significativa viragem valorativa.
Pior ainda: mais recentemente, a política de drogas vem sendo modificada para que se enfatize seu
o caráter repressivo e de “tolerância zero”.20
Ademais, desde a inserção dessa política preponderantemente repressiva em terrae brasi-
lis, um dos maiores problemas tem sido a ausência de critérios mais objetivos (como a quantidade)
21

para diferenciar situações de tráfico e de consumo. Há aqui uma margem demasiadamente larga
de discricionariedade. Não é, por exemplo, o caso da legislação portuguesa, cujo ponto de partida,
como vimos, é justamente a quantidade, mas que nem mesmo por isso se exime de problemas. Já
no caso brasileiro, o critério diferenciador que se determinou, com previsão no Art. 28, § 2o, obriga o
magistrado a atender à natureza e à quantidade (não fixada previamente) da substância apreendi-
da, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem
como à conduta e aos antecedentes do agente. Mais subjetivo impossível.
19 Disponível em: http://www.mpm.mp.br/portal/editorial/revista-20.pdf. Acesso em 29 abr. 2015.
20 É, por exemplo, o caso da Lei 13.840/2019, que, dentre outras coisas, possibilita a internação involuntária do usuário
de drogas.
21 Que não se inicia com a Lei 11.343/2006. Ver França Júnior, Francisco de Assis de. Criminologia das drogas: considerações

a partir do excurso biográfico entre Medellín e Rocinha. Revista Brasileira de Ciências Criminais – RBCCrim, São Paulo,
v. 25, n. 130, pp. 269-315, abr. 2017.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 60


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

Antes de prosseguirmos, porém, não nos custa frisar que as matrizes culturais de Brasil e
Portugal são muito aproximadas. Isso é fato. Afinal, foram os portugueses que colonizaram terrae
brasilis. As leis e, por consequência, os costumes portugueses, de forma direta, regiam intensamen-
te a vida das pessoas em território brasileiro, isso pelo menos até o século XIX. A cultura brasileira,
portanto, inclusive jurídica, foi forjada sob essas fortes influências. Daí que os laços que unem am-
bos os países são sólidos e lastreados pela histórica relação.
Atualmente, as características gerais de ambos os sistemas sancionatórios são muito aproxi-
madas, sendo ambos norteados pelo princípio da humanidade, como, por exemplo, com a vedação
da pena de morte (Art. 24.º, 2. CRP/Art. 5º, XLVII, “a”, CRFB), de natureza perpétua (Art. 30.º, 1. CRP/
Art. 5º, XLVII, “b”, CRFB), ou cruéis (Art. 25.º, 2. CRP/Art. 5º, XLVII, “e”, CRFB). Ambos estabelecem
constitucionalmente em seus primeiros artigos os valores democráticos como norteadores de todo
o sistema jurídico. Dirá Gomes Canotilho:22

Estes princípios constam de textos internacionais (declarações, resoluções, tratados) e nos textos
constitucionais mais recentes também não deixam de ter acolhimento como normas de conduta e
como limites jurídicos do actuar estadual. Para citarmos apenas as constituições dos países da Co-
munidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), é o caso da Constituição da República Portuguesa
de 1976 (artigo 7º, nº I), da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (artigo 4º), da Cons-
tituição da República Democrática de São Tomé e Príncipe de 1989 (artigo 12º), da Lei Constitucional
da República de Angola de 1992 (artigo 15º), da constituição da República de Moçambique de 1990
(artigos 62º e 63º), da Constituição da República de Cabo Verde de 1992 (artigo 10º) e da Constituição
da República da Guiné-Bissau de 1993 (artigo 18º).

Assim, em nossa perspectiva, se há possibilidade de aplicação de uma política pública eu-


ropeia exitosa em segurança, que poderia ser aplicada no Brasil com potencial de efetividade e
aproveitamento, essa investigação, parece-nos, deve se iniciar em terras lusitanas. Obviamente que
estamos cientes das semelhanças que os aproximam, mas, sobretudo, estamos também atentos
às diferenças sociais brutais que os afastam. Em se tratando de política de drogas, muito pode ser
aprendido (com os acertos e com os erros) diante da experiência portuguesa.
Importa-nos, num futuro próximo, observar e avaliar o funcionamento e a efetividade de-
mocrática dos modelos de segurança pública de ambos os países, procurando desafiar a crença
(comum entre os brasileiros), como pioneiramente fez Portugal nessa seara, de que o mais impor-
tante papel da polícia seria o enfrentamento, a reatividade, a produtividade calcada em números,
o combate ao crime, e que todas as outras atividades eventualmente praticadas seriam periféricas
ou auxiliares. Sobre esse tipo hermético e autoritário de política, vem bem a calhar o escólio de
Figueiredo Dias,23 que dirá:

Eis, sintetizadas, as razões principais que tornariam inaceitáveis quer o processo de


criminalização, quer a necessidade de pena num âmbito como o da droga. Com um tal

22 Disponível em http://www.libertarianismo.org/livros/jjgcoedd.pdf. Acesso em 17 out. 2015.


23 Disponível em: http://www.ibadpp.com.br/wp-content/uploads/2013/02/Drogas-JorgedeFigueiredoDias.pdf. Acesso

em 18 out. 2015.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 61


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

procedimento o Estado estará verdadeiramente a «criar» muito mais delinquência do


que aquela que é capaz de evitar. Importaria, pois, descriminalizar radicalmente um
âmbito tal, com a consequente trasladação dos meios de reacção e de controlo do campo
da política criminal para o campo mais vasto da política social de carácter não criminal.

Voltando ao Brasil, a retórica preventiva da “nova” política de drogas, inaugurada pela Lei
n.º 11.343/2006, já deixamos antever, não tem se prestado às finalidades precipuamente democrá-
ticas fartamente anunciadas. Salo de Carvalho (2013, p. 140), numa das mais completas abordagens
sobre a política criminal de drogas brasileira, afirma categoricamente que, apesar de algumas alte-
rações, “a base ideológica da Lei 11.343/06 mantém inalterado o sistema proibicionista inaugurado
pela Lei 6.368/76, reforçando-o”.
O aumento das complexidades do mundo moderno impõe-nos, o que nos parece já ter sido
percebido pelo legislador português, rever os paradigmas até então usuais no trato com o problema
das drogas, quer seja no Brasil ou em Portugal,24 este último, como dissemos, um passo à frente. A
constatação que nos é apresentada por Jean-Claude Monet (2006, pp. 28-29) precisa ser refletida no
sentido de atentarmos para a necessidade de modificação dos tais paradigmas, do autoritário para
o democrático, nesse caso, sobretudo, agora dizemos nós, no Brasil. Dirá ele:

Com muita frequência, hoje, as percepções que os policiais tem da natureza de seu
trabalho e das finalidades que devem perseguir com prioridade divergem sensivelmente
do que os cidadãos esperam. Estudando as relações entre a polícia e o público em Devon
e na Cornualha, um pesquisador inglês observou que o público se mostra tanto mais
satisfeito com a polícia quanto mais ela age de maneira cortês por ocasião das batidas
policiais que faz e cujas razões ela explica. Os policiais, por seu lado, enfatizam critérios
estritamente profissionais: para eles, a batida foi bem conduzida quando resulta na
prisão de um suspeito; quanto a saber se as batidas foram efetuadas de modo a garantir
a simpatia dos revistados, é, a seus olhos, um detalhe muito secundário.

A necessidade de dar efetividade a uma série de direitos e garantias fundamentais


prometidas (no entanto, constantemente frustradas) especialmente no caso brasileiro, que, com
justiça, pressionam os gestores do sistema, mantém em curso um autoritário círculo vicioso: uma
polícia voltada eminentemente para respostas às provocações (reativa), preocupada apenas com
os números (produtividade), visando aquilo o que consideram o produto final de seu trabalho, ou
seja, a prisão e a punição (geralmente cobrada e dita como “exemplar”) do selecionado e apontado
como desviante. Nesse sistema, fórmulas “rígidas” são retoricamente sustentadas ao trabalho
policial, disfarçando-se o alto grau de arbítrio que o envolve na prática, relegando, como ressalta
24 Na doutrina portuguesa, apontando para uma carência de suporte teórico, José Narciso da Cunha Rodrigues (1998,

pp. 396-397) dirá: “A doutrina não acompanhou suficientemente as transformações motivadas pela alteração das condi-
ções de vida em sociedade, tendendo a fornecer respostas casuísticas, ainda que condensadas em excelentes manuais
de conduta e procedimento. Não existe, quanto à missão policial, um pensamento claro sobre funções de soberania,
administrativas, de segurança e judiciárias. Esta falta de definição é compensada por regras concretas de actuação mas
impede a pré-compreensão do papel que as polícias devem desempenhar em democracia e não esclarece em que me-
dida esse papel deve ser-lhes exclusivo, comunicar-se a outros órgão do Estado ou ser por eles tutelado ou fiscalizado”.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 62


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

Stephen D. Mastrofski (2012, p. 202), o cidadão apenas ao papel de “fornecer informação (relato de
um crime e de circunstâncias suspeitas)”.
Em um Estado verdadeiramente democrático, ambas as vertentes (reativa e proativa) aqui
anunciadas no âmbito da segurança pública devem existir. O problema é encontrar um ponto de
equilíbrio, fazendo a balança pender prioritariamente para medidas preventivas, mais proativas,
portanto, e menos invasivas às liberdades. Num Estado autoritário, privilegia-se, por exemplo, a re-
atividade, negligenciando-se a resolução do conflito, pois a prioridade é infligir dor ao desviante,
que sirva de exemplo aos demais, trazendo à tona uma mera sensação de resolutividade.
Na lógica belicosa de operacionalização desse sistema, falasse “nele”, pensa-se “nele”, pu-
ne-se “ele” para que o próprio sistema se redima, ao invés de fazer-nos pensar no conflito, e em
como resolvê-lo da maneira mais eficaz e duradoura. Pensar em formas de punir em detrimento
das formas de resolver o conflito é o “mantra” da segurança pública brasileira atualmente. Não tem
nos parecido, a priori, ser o caso de Portugal. Ao menos não na intensidade encontrada no Brasil.
Mas há boas iniciativas espalhadas pelo mundo, no que Canadá e Estados Unidos têm
se apresentado como referências, notadamente com a implantação de modelos de polícia
comunitária, uma polícia de proximidade. Nenhuma grande novidade na história da humanidade.
Pierre-Henri Bolle (1998, p. 410) lembra-nos de um tempo não muito distante em que “o polícia
estava como peixe na água entre habitantes da aldeia e a sua presença visível e constante na vida
social tornava-a incontornável”, mas não é só uma questão de mera presença, pois “não se ia ter
com ele ao posto de polícia; era ele que estava na rua, no café, nos correios ou na igreja, membro
de um bom número de associações locais; e, muitas vezes, era ele o primeiro autóctone que o
estrangeiro encontrava na aldeia”.
Tínhamos, em determinadas partes do mundo, como, por exemplo, Inglaterra e Japão, e em
outro contexto social, um modelo de polícia presente, participativo, parceiro, proativo, aberto e que
despertava confiança, um modelo mais horizontal de resolução de conflitos, ou verdadeiramente
comunitário. E é justamente nesse modelo que nos parece residir o aporte necessário para lidar de
maneira eficaz com o problema das drogas.
Nessa esteira, os estudos sobre agências policiais, no caso brasileiro, têm se limitado, na
grande maioria das vezes, a sua perspectiva política, dada sua participação no golpe militar de 1964,
negligenciando uma análise mais aprofundada de sua formação, atuação histórica e, sobretudo, de
sua adequação aos valores democráticos. Inolvidável, portanto, o fato de ser justamente a polícia,
em qualquer país do mundo, a agência responsável pelo primeiro exercício hermenêutico nessa
complexa cadeia de fases do sistema responsabilização criminal e/ou administrativa. Identificar,
descrever, sistematizar e tipificar, são as providências mais básicas das agências policiais. Daí a im-
portância de vencer eventuais resistências e proceder uma análise sistêmica delas.
Não bastasse certa resistência de tais agências policias de se utilizarem das discussões pro-
duzidas no ambiente acadêmico – esse problema, mais uma vez, parece ser agudizado no Brasil –, a
própria academia, por sua vez, parece não se interessar demasiadamente por elas e por seus proble-
mas. Segundo Herman Goldstein (2003, p. 372), isso se explicaria pelas seguintes razões:

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 63


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

Entre os fatores que contribuem para essa situação está o óbvio conflito entre o caráter
aberto e flexível das universidades e o caráter fechado e rígido das organizações policiais.
O questionamento em um ambiente universitário é rotineiro e encorajado; em uma
agência de polícia, um valor muito mais alto é dado à obediência sem questionamentos.
[...] A polícia através de suas ações e pronunciamentos, quase sempre soa anti-intelectual
e suspeitosa em relação aos acadêmicos. O pessoal das universidades quase sempre tem
desprezo pela polícia e a trata como se ela fosse inferior. As duas atitudes alimentam-se
mutuamente: a atitude intelectual esnobe dos acadêmicos fornece justificativas para a
atitude anti-intelectual da polícia, e as ações e pronunciamentos da polícia fornecem
justificação contínua para o desprezo que os intelectuais sentem por ela.

Também Dennis P. Rosenbaum (2012, p. 52), apontando para a necessidade de fomentarmos


outro modelo de segurança pública no mundo, mais adequado ao ambiente democrático, dessa
forma, mais proativo e aberto para se articular com as outras áreas do conhecimento e de contato
social, nos dirá acertadamente que, por demandar tempo, “os políticos [gestores do sistema] não
querem esperar de cinco a dez anos por resultados”.
Por fim, o pior dos cenários com o qual podemos nos deparar é aquele em que o Estado
autoritário (em suas práticas) se utiliza da retórica democrática (em seu discurso) para manter em
curso seu círculo vicioso. Esse é justamente o caso do Brasil, com uma Carta constitucional repleta
de direitos e garantias que, na maioria das vezes, diante das expectativas sociais em sua realização,
são defraudadas (não preenchidas) por agentes públicos, especialmente na seara da segurança
pública. Como oportunamente destaca Rui Cunha Martins (2013, p. 25), “importa não confundir a
retórica dos movimentos com a sua prática uma vez chegados ao poder”.

Referências

BLANCO DE MORAIS, Carlos. A insegurança pública em tempo de crise. In: FARIA DE OLIVEIRA,
Nelson; VERA-CRUZ PINTO, Eduardo; MARQUES DA SILVA, Marco Antonio. Segurança Pública e
privada – 1º Congresso Internacional de Segurança Pública e Privada. Coimbra: 2012.
BOLLE, Pierre-Henri. A polícia de proximidade: noção, instituição, ação. Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, ano 8, 1998.
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil – estudo criminológico e dogmático da
Lei 11.343/06. 6ª ed. São Paulo: 2013.
CORREIA, Eduardo. Direito Penal e Direito de mera ordenação social. Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, vol. XLIX, 1973.
COSTA ANDRADE, Manuel da. Contributo para o conceito de contra-ordenação (A experiência
alemã). Revista de Direito e Economia, anos VI/VII, 1980/1981.
CUNHA RODRIGUES, José Narciso da. Para um novo conceito de polícia. Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, ano 8, 1998.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 64


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

ESPÍRITO SANTO, Carla Alexandra Neves da Cunha Lima. Contributo para uma visão crítica do Re-
gime Jurídico do consumo de drogas. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses) –
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2014.
FARIA COSTA, José de. A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a
distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social. Revista de Direito e Economia,
ano IX, n. 1-2, 1983.
FARIA COSTA, José de. Algumas breves notas sobre o regime jurídico do consumo e do tráfico de
drogas. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 134, n. 3930, 2002.
FRANÇA JÚNIOR, Francisco de Assis de. Cadáveres indiscretos – segurança pública e o (ab)uso de
práticas ban(d)idas em ambiente democrático. Maceió: Viva, 2014.
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Para uma dogmática do direito penal secundário – um contributo para
a reforma do direito penal econômico e social português. Revista de Legislação e de Jurispru-
dência, ano 116, n. 3714, 1984.
FIGUEIREDO DIAS, José de. Uma proposta alternativa ao discurso da criminalização/descriminali-
zação das drogas. Disponível em: http://www.ibadpp.com.br/wp-content/uploads/2013/02/Dro-
gas-JorgedeFigueiredoDias.pdf. Acesso em: 18 out. 2015.
FREITAS, Ricardo de Brito. Aspectos jurídicos das Forças Armadas na interceptação e no abate de
aeronaves: a Lei do Tiro de Destruição. Disponível em: http://www.mpm.mp.br/portal/editorial/
revista-20.pdf. Acesso em 29 abr. 2015.
GOLDSTEIN, Herman. Policiando uma sociedade livre. Trad. Marcello Rollemberg. São Paulo:
Edusp, 2003.
GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Estado de Direito. Disponível em http://www.libertarianismo.
org/livros/jjgcoedd.pdf. Acesso em 17 out. 2015.
GOMES CANOTILHO, José Joaquim; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Ano-
tada. V. I. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2014.
GUEDES VALENTE, Manuel Monteiro. Consumo de drogas: reflexões sobre o quadro legal. 4ª ed.
Coimbra: Almedina, 2014.
LÍBANO MONTEIRO, Cristina. O consumo de droga na política e na técnica legislativas: comentário
à Lei n.º 30/2000. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 11, 2001.
LOPES MARTINS, Licínio. Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Adminis-
trativos e Fiscais revisto. Cadernos de Justiça Administrativa, n. 106, 2014.
MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados – corrupção, expectativa e processo penal. São
Paulo: Atlas, 2013.
MASTROFSKI, Stephen D. Policiamento comunitário e estrutura da organização policial. In: BRO-
DEUR, Jean-Paul. Como reconhecer um bom policiamento. Trad. Ana Luísa Amêndola Pinheiro.
São Paulo: Edusp, 2012.
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Trad. Ana Prata. 3ª ed. Lisboa: Editorial Estampa, 2005.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 65


Consumo, aquisição e detenção para o consumo de drogas: Francisco de Assis de França Júnior
análise crítica da política de drogas luso-brasileira

MONET, Jean-Claude. Polícias e sociedades na Europa. Trad. Mary Amazonas Leite de Barros. 2ª ed.
São Paulo: Edusp, 2006.
OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurabi. Disponível em: https://www.uniceub.br/me-
dia/180293/Texto_IX.pdf. Acesso em: 06 nov. 2015.
PRATA ROQUE, Miguel. O Direito Sancionatório Público enquanto bissetriz (imperfeita) entre o
Direito Penal e o Direito Administrativo – a pretexto de alguma jurisprudência constitucional.
Revista de concorrência e regulação, ano IV, n. 14/15, 2013.
ROSENBAUM, Dennis P. A mudança no papel da polícia: avaliando a transição para policiamento
comunitário. In: BRODEUR, Jean-Paul. Como reconhecer um bom policiamento. Trad. Ana Luísa
Amêndola Pinheiro. São Paulo: Edusp, 2012.

Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 - dez . 2019 66


Caderno de
Resumos
II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação:
circuitos de produção e consumo

Departamento de História – Universidade de São Paulo


São Paulo, Brasil

spalimenta.hypotheses.org
Caderno de Resumos* Realização:
(em ordem alfabética de autores)

Book of Abstracts
(in alphabetical order of authors)

II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação: circuitos


de produção e consumo

II International Symposium on Food Research: production and


consumption circuits

4 a 6 de dezembro de 2019
Departamento de História – Universidade de São Paulo
São Paulo, Brasil

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em


Alimentação - Revista Ingesta, São Paulo, v. 1, n. 2, dez. 2019
ISSN 2596-3147
spalimenta.hypotheses.org
revistas.usp.br/revistaingesta

Comissão editorial
Viviane Soares Aguiar (doutoranda em História Social na FFLCH/USP)
Nicole Leite Bianchini (mestranda em História Social na FFLCH/USP)

Comissão Organizadora
Adriana Salay Leme, Henrique Soares Carneiro, Joana Pellerano,
Nicole Leite Bianchini, Rafael de Bivar Marquese, Vânia Carneiro de
Carvalho, Viviane Soares Aguiar Apoio:

Comissão Científica
Carlos Alberto Dória (Escola do Gosto), Henrique Soares Carneiro
(FFLCH/USP), Janine Collaço (UFG), Joana Monteleone (Unifesp),
Joana Pellerano (Centro Universitário Senac), João Luiz Máximo
da Silva (Centro Universitário Senac), José Raimundo Sousa Ribeiro
Junior (Unifesp), Maria Aparecida de Menezes Borrego (Museu
Paulista/USP), Maria Henriqueta Gimenes-Minasse (Universidade
Anhembi Morumbi), Rafael de Bivar Marquese (FFLCH/USP), Vânia
Carneiro de Carvalho (Museu Paulista/USP)

Realização
Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação
(LEHDA/USP), Comida na Cabeça (comidanacabeca.com), Museu
Paulista (MP/USP), Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema
Mundial (LabMundi/USP), Programa de Pós-Graduação em História
Social (FFLCH/USP), Departamento de História (FFLCH/USP)

Identidade Visual
Claudio Rother (Museu Paulista/USP)

Projeto Gráfico e Diagramação


Ziza Pasqual

*Este caderno é parte integrante da Revista Ingesta, v. 1, n. 2, dez. 2019.


CA RTA DE AP RE SE NTAÇÃO
II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação:
circuitos de produção e consumo

Nos dias 4, 5 e 6 de dezembro de 2019, ocupamos auditórios e salas de aula do prédio de História da
Universidade de São Paulo com palestras, mesas-redondas e sessões de comunicação dedicadas a discutir
a temática da alimentação a partir das mais diversas perspectivas, da história da fome na Idade Média
às maneiras como as mídias digitais e a propaganda vêm se acercando do assunto em tempos recentes.
Reunimos pesquisadores, professores e estudantes da Amazônia ao Rio Grande do Sul, passando pela
Bahia, por Goiás, pelo Rio de Janeiro, por São Paulo e até mesmo por Paris e Berna, na Suíça. Trouxemos
especialistas da Espanha (o antropólogo Jesús Contreras), da França (o historiador da alimentação Bruno
Laurioux), dos Estados Unidos (a historiadora e curadora de museus Shirley Wajda). Montamos uma farta
programação (disponível no site spalimenta.hypotheses.org), contrariando todas as tendências deste ano
político de 2019, marcado por lamentáveis cortes, ou “incontingências”, exatamente no setor da Educação.
Foi preciso acionar uma ampla rede de amigos, professores e colaboradores para que o simpósio
se tornasse realidade nesse contexto. E aproveitamos este espaço para deixar registrado nosso sincero
agradecimento aos professores que fizeram parte da organização – Henrique Soares Carneiro, Rafael de
Bivar Marquese, Vânia Carneiro de Carvalho – e da Comissão Científica – além dos já citados, Carlos Alberto
Dória, Janine Collaço, João Luiz Máximo da Silva, José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, Joana Monteleone,
Maria Aparecida de Menezes Borrego, Maria Henriqueta Gimenes-Minasse. Muitos destes ainda
coordenaram Grupos de Trabalho, ao lado de outros colegas a quem também agradecemos imensamente:
Bianca Briguglio, Cintia Gama, Isabela Rodrigues de Souza, Lucas Endrigo Avelar, Luís Fernando Teberga
Gonçalves, Juliana Dias, Rafaela Basso e Talita Roim.
Ao Programa de Pós-Graduação em História Social da USP, na figura do professor Marcos Napolitano,
ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e ao Museu Paulista da
USP agradecemos pelo fundamental apoio, bem como à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ao restaurante
Mocotó. Igualmente essenciais foram Claudio Rother, responsável pela identidade visual do simpósio, Ziza
Pasqual, a cargo do projeto gráfico da revista Ingesta e deste Caderno de Resumos, e toda a equipe da Seção
Técnica de Informática da FFLCH-USP, que nos ajudou em diversas fases da organização.
Agradecemos, ainda, aos palestrantes estrangeiros e brasileiros que, gentilmente, aceitaram
nosso convite e agigantaram o simpósio: Jesús Contreras, Bruno Laurioux, Shirley Wajda, Carlos Dória,
Eliane Morelli Abrahão, Gustavo Acioli, Henrique Carneiro, Leila M. Algranti, José Newton Coelho Meneses,
Marle Alvarenga, Rafael Marquese e Tania Andrade Lima. Aos monitores Caio César Alves da Costa,
Guilherme Rodrigues Soares, Milena Spadafora e Pedro Neves, à tradutora Silvia Makansi. E a todos que se
interessaram, se inscreveram, participaram e, como já dissemos, tornaram esse simpósio uma realidade.

São Paulo, dezembro de 2019

Adriana Salay Leme, Joana Pellerano, Nicole Leite Bianchini, Viviane S. Aguiar
Comissão Organizadora
Letter of Presentation
II International Symposium on Food Research:
production and consumption circuits

On December 4, 5 and 6, 2019, we occupied the auditoriums and classrooms of the University
of São Paulo, Brazil, with lectures, roundtables, and paper sessions dedicated to discussing “food” from
various perspectives, from the history of famine in the Middle Ages to the ways in which digital media and
advertising have been approaching the subject in recent times. We gathered researchers, professors and
students from the Amazon to Rio Grande do Sul, Bahia, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo and even Paris
and Bern, Switzerland. We brought in specialists from Spain (food anthropologist Jesús Contreras), from
France (food historian Bruno Laurioux), from the United States (historian and museum curator Shirley
Wajda). We have put together a rich schedule (available at spalimenta.hypotheses.org), counteracting all
the trends of this Brazilian political year of 2019, marked by lamentable cuts, or “contingencies,” exactly in
the education sector.
It took a wide network of friends, professors and collaborators to make the symposium a reality
in this context. And we take this space to register our sincere thanks to the professors who were part of the
Organizing Committee – Henrique Soares Carneiro, Rafael de Bivar Marquese, Vânia Carneiro de Carvalho –
and of the Scientific Committee – beyond the latter, Carlos Alberto Dória, Janine Collaço, João Luiz Máximo
da Silva, José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, Joana Monteleone, Maria Aparecida de Menezes Borrego,
Maria Henriqueta Gimenes-Minasse. Many of them also coordinated the Work Groups, as well as our
colleagues Bianca Briguglio, Cintia Gama, Isabela Rodrigues de Souza, Lucas Endrigo Avelar, Luís Fernando
Teberga Gonçalves, Juliana Dias, Rafaela Basso, and Talita Roim.
We also thank the Post-Graduation Program in Social History from USP, in the person of Marcos
Napolitano, the History Department and the Museu Paulista from USP for the essential funding, as well as
the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), the Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp) and the Mocotó restaurant. Equally essentials were Claudio Rother (also from
Museu Paulista), responsible for the visual identity of the symposium, Ziza Pasqual, who created the graphic
project of Ingesta and of this Book of Abstracts, and the whole team of the Seção Técnica de Informática
from FFLCH-USP.
We thank foreign and Brazilian lecturers: Jesús Contreras, Bruno Laurioux, Shirley Wajda, Carlos
Dória, Eliane Morelli Abrahão, Gustavo Acioli, Henrique Carneiro, Leila M. Algranti, José Newton Coelho
Meneses, Marle Alvarenga, Rafael Marquese, and Tania Andrade Lima; staff Caio César Alves da Costa,
Guilherme Rodrigues Soares, Milena Spadafora and Pedro Neves; translator Silvia Makansi. And, finally, we
thank everyone who registered, participated and, as we said, made this symposium possible.

São Paulo, December 2019

Adriana Salay Leme, Joana Pellerano, Nicole Leite Bianchini, Viviane S. Aguiar
Organizing Committee
Caderno de Resumos

S UMÁRI O
CONTE NTS

72 Conferências internacionais [International conferences]

76 Mesas-redondas [Roundtables]

88 Grupos de Trabalho [Work groups]

89 Grupo de Trabalho 1: Fome e (in)segurança alimentar


[Work group 1: Hunger and food (in)security]

127 Grupo de Trabalho 2: Modelos regulatórios


[Work group 2: Regulatory models]

143 Grupo de Trabalho 3: Circuitos globais


[Work group 3: Global circuits]

154 Grupo de Trabalho 4: Abastecimento e comércio


[Work group 4: Supply and trade]

172 Grupo de Trabalho 5: Cultura material e patrimônio


[Work group 5: Material culture and heritage ]

193 Grupo de Trabalho 6: Identidades e representações


[Work group 6: Identities and representations]

233 Grupo de Trabalho 7: Gênero


[Work group 7: Gender]

254 Grupo de Trabalho 8: Dietas contemporâneas


[Work group 8: Contemporary diets]
II Simpósio
Internacion

Conferências internacionais
[International conferences]

de

pesquisa
Between Food and Drugs: Spices from Antiquity to Early Modern Time

Entre alimentos e drogas: especiarias da Antiguidade até o início da Idade Moderna

Bruno Laurioux 1

From 1st to 17th centuries, spices have been a commodity as well as a necessity for the
Western Europe. These “aromatic items of commerce with a high unit cost... imported from distant
lands”, as they are defined by Paul Freedman, included many dry products that were mainly culinary
ingredients, but also perfumes of high quality which could be used in cooking. Most of spices were
supposed to have medical properties too: they were drugs, in the wide meaning that the Ancient
Medicine gave to this term. The medical impacts of spices partly explain how, in 14th and 15th
centuries, Far East spices offered the wider range of tastes and scents that European cuisine has ever
known. But even when the French Cuisine has got rid of eastern spices from the middle of the 17th
century, these ones remained quite important in a medicine that kept alive the principles of the
Ancient Medicine. How the changing tastes affected the discourse on spices? We will answer this
question through a long-term study of cook recipes, medical instructions and travel writings.
Keywords: spices; cook recipes; food history; drugs.
Palavras-chave: especiarias; receitas culinárias; história da alimentação; drogas.

1 Professor de História Medieval e História da Alimentação na Université de Tours, na França, onde preside o Institut
Européen d’Histoire et des Cultures de l’Alimentation. Entre inúmeros artigos, capítulos e livros, publicou “Medieval
Food” em A Companion to Food in the Ancient World (ed. J. Wilkins & R. Nadeau, Wiley, 2015), e Pour une histoire de la Viande.
Fabrique et représentations de l’Antiquité à nos jours (com M.-P. Horard-Herbin), Rennes-Tours, PUR-PUFR (Series Tables des
Hommes), 2017.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 73
Paradojas de la globalización alimentaria

Paradoxes of food globalization

Jesús Contreras 1

La historia de la humanidad ha sido, en buena medida, la de la búsqueda de recursos


o soluciones para resolver los problemas del hambre, cuantitativa (alimentos) o cualitativa
(nutrientes). Gracias a las tecnologías actuales, podría pensarse que la producción y productividad
alimentaria han aumentado de tal manera que el hambre podría haber sido totalmente erradicada.
Por otro lado, gracias a la investigación biomédica, la prevención de las enfermedades derivadas de
la alimentación es hoy más posible que nunca. Podría decirse que estamos frente a un “nuevo orden
alimentario”. Sin embargo, a pesar de la sobreabundancia, persiste el hambre; y la ciudadanía,
no parece estar convencida de reducir la alimentación a su dimensión nutricional. En efecto, los
beneficios de la abundancia alimentaria se hacen menos obvios cuando, por una parte, se pone en
duda la calidad de los alimentos producidos y cuando, por otra, se convierte en posible causa de
enfermedades y riesgos de diverso alcance. El cambio alimentario tropieza, pues, con una cierta
insatisfacción de la ciudadanía confrontada a unos alimentos “industriales”, que los encuentra
insípidos, faltos del sabor de antaño e, incluso, peligrosos. Ello coincide, paradójicamente, con el
aumento de las reglamentaciones sobre higiene y políticas de calidad puestas en marcha por las
autoridades políticas y sanitarias. Por otra parte, muchas de las que fueron soluciones alimentarias
en el pasado han tenido “efectos colaterales” que hoy parecen inaceptables por razones de salud, de
sostenibilidad ambiental o de desigualdad social. Además, los desarrollos recientes de la tecnología
o de la industria alimentaria han perturbado la doble función identificadora de lo culinario – la
identificación del alimento y la construcción de la identidad del sujeto.
Así, la progresiva globalización alimentaria provoca una “nostalgia” relativa a los “patrimonios
culinarios”. La cocina constituye un patrimonio cultural. La patrimonialización alimentaria se
produce en el contexto del conjunto de las transformaciones socioeconómicas contemporáneas y
de sus repercusiones en los comportamientos y en las ideas relativas a la alimentación. Identidad
y/o patrimonio son nuevos “recursos” de la modernidad y de usos polivalentes. Ya no se trata de
producciones mundiales que pierden progresivamente la huella de su lugar de origen sino de
productos que, por el contrario, lo encarnan y se espera de ellos que evoquen un territorio, un
paisaje, unas costumbres, una identidad.
Palabras-clave: identidad; patrimonio alimentar; globalización.
Keywords: identity; food heritage; globalization.

1 Antropólogo espanhol, diretor do grupo de estudos e pesquisas Observatorio de la Alimentación (Odela), vinculado
à Universitat de Barcelona. Autor de, entre outros livros, Alimentación y cultura: perspectivas antropológicas (2005), publi-
cado em parceria com a antropóloga Mabel Gracia e lançado em português com o título Alimentação, sociedade e cultura
(2011), pela Editora Fiocruz.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 74
To Kitchen: Making, Modeling, and Museumizing American Cookery

Para a cozinha: fazendo, modelando e musealizando a culinária americana

Shirley Wajda 1

The word kitchen has done as much work in the English language as the people who have
toiled in the space the word names. The Bard himself, William Shakespeare, “verbed” the term in
1623, using kitchen to mean serving the food in the space in which it was prepared: “There is a fat
friend at your master’s house, That kitchin’d me for you to day at dinner.” A century later, Scots
used the term as a synonym for both pleasurable eating and frugality—for seasoning food and for
budgeting and provisioning food beyond harvest. By the end of the nineteenth century, kitchening
was interchangeable with cooking, food service, and the related work undertaken in this domestic
production space.
Existing examinations of the American kitchen emphasize the architectural design of the
space, often pointing to technological and energy innovations as factors for the space’s changing
design over the centuries. Historians of women and labor also stress mechanization, arguing that
the technologies touted as labor saving were, in reality, not—in many cases, new technology raised
standards and increased women’s work. Understanding this, scholars have focused on women’s
decisions about kitchen design and cookery, seeking evidence in diaries, letters, and recipes. Rising
research interest in food studies has renewed scholarly attention to the kitchen and its contents and
occupants, linking in interesting ways food, material culture, labor, and consumption.
In this presentation I discuss how attention to the material and visual evidence of American
women’s kitchening, from making food to (re)modeling the workspace of the kitchen itself, improves
our understanding of the history of the kitchen derived from prescriptive literature such as household
manuals and home economics texts. I consider the related changes in domestic kitchens and American
foodways in the United States since the 1840s, when the processes of industrialization shifted the
ways Americans worked and ate. Last, I devote attention to the ways in which American museums
have and continue to collect and display kitchen objects. Museums depicting preindustrial kitchens
often feature cooking demonstrations utilizing the era’s tools and foodways or emphasize the dining
experience, while museums with industrial and postindustrial collections display the kitchen and
its mass-produced material culture as aesthetically delightful products of design divorced from
the foods these objects help to prepare. I hope this presentation may elicit a discussion about what
museums should be collecting to represent kitchening in the 21st century.
Keywords: domestic kitchen; material culture; museums.
Palavras-chave: cozinha doméstica; cultura material; museus.

1 Historiadora, Ph.D em “American civilization” pela University of Pennsylvania e diretora do Enfield Shaker Museum em
New Hampshire, nos Estados Unidos. Entre outras publicações, editou, em parceria com Helen Sheumaker, a enciclo-
pédia Material culture in America: understanding everyday life (2008). Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp) pelo financiamento para a vinda dela ao simpósio.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 75
II Simpósio
Internacion

Mesas-Redondas
[Roundtables]

de

pesquisa
Deculturar os índios para torná-los Índio: arqueologia e arqueobotânica como
expedientes disciplinares para restaurar os índios plurais na formação cultural brasileira

Archeology and Archaeobotany as disciplinary expedients to restore plural Indians


in Brazilian cultural formation

Carlos Alberto Dória 1

O mito original da culinária brasileira nos diz que seu processo de formação começa em
1500, com o consumo gradativo de uma alimentação “miscigenada”. Ele nega que haja cozinha que
possa ser chamada “brasileira” antes do descobrimento. Em outras palavras, lhe é indiferente o que
os índios comiam. Assim, uma moderna consciência descolonizada precisa reconstruir o passado
arqueológico de centenas de povos originais como substrato básico a partir do qual se formou a
culinária atual – considerando o comer indígena em suas diferenças culturais, regionais e locais
anteriores à chegada dos portugueses.
A arqueologia dos povos pré-coloniais brasileiros teve enorme impulso atualmente, bem
como seu ramo denominado arqueobotânica que se aproxima da biologia e tende a configurar-se
como devotada a um objeto de estudo próprio que enfatiza as relações dos grupos humanos pré-
-coloniais com o meio ambiente circundante, permitindo mesmo descrever e datar as dietas corres-
pondentes a partir de micro-restos vegetais (fitólitos, grãos de pólen, grãos de amido), fornecendo
evidências das práticas agrícolas e de domesticação de vegetais em vários locais da América do Sul
que remontam a 7.000 anos Antes do Presente (AP).
Pela falta desses conhecimentos, muitas espécies domesticadas pelos índios em tempos
passados (como pupunha, abiu, ananás, mandiocas, milho, abóboras, amendoim, a formação de
castanhais etc.), bem como a produção de variedades suas, foram tomadas como produtos naturais
e não construções culturais.
A naturalização das espécies correspondeu a uma forma particular de deculturação dos
indígenas. O caso do milho é especialmente notável, pois embora tenham cultivado mais de 10
variedades suas, e predominando no imenso território da Paulistânia, a historiografia romântica,
por exemplo, o atribuía exclusivamente aos povos da cordilheira, restando aos brasileiros a “genuí-
na” mandioca (Varnhagen e outros).
Esse processo foi ainda mais longe, como se lê em Gilberto Freyre e em Câmara Cascudo que
os índios não conheciam o doce – que, sabemos, é um sabor básico, isto é, percebido pela fisiologia
humana independentemente de sua produção industrial –, atribuindo sua emergência na cultura
brasileira à agroindústria do açúcar (fato sobejamente contestado pelo antropólogo Mártin Cesar
Tempass, em Quanto mais doce melhor. Um estudo antropológico das praticas alimentares da doce sociedade
Mbyá-Guarani, de 2010).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 77
Do mesmo modo, há um complexo processo “escondido” que diz respeito à hierarquia ori-
ginal entre as carnes, com sua total subversão e a imposição da galinha, do porco e, finalmente,
dos bovinos à dieta colonial – incluindo-se aí seus derivados, como o leite e os ovos –, silenciando
gradativamente a preferência pelas carnes de caça, por si só diferentes entre os vários grupos indí-
genas, apesar de algumas persistirem na dieta popular até hoje (notadamente a paca, o tatu e o
mocó, além de várias aves).
Por fim, atribui-se ao indígena um só processo de cocção – o moquém –, desdenhando-se das
formas ricas e variadas de utilização do fogo, como as brasas (sob e sobre os alimentos) e as cinzas.
Assim é possível e desejável ampliar o estudo da alimentação brasileira em direção às suas
raízes pré-coloniais e para o processo de deculturação que se seguiu à conquista, igualando todos os
povos tribais no “Índio” mítico da historiografia romântica e daquela que a seguiu.
Palavras-chave: deculturação; etnologia; arqueologia; arqueobotânica; cozinha brasileira.
Keywords: deculturation; ethnology; Archeology; Archaeobotany; Brazilian cuisine.

1 Doutor e pós-doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especializou-se na
área de Sociologia da Alimentação, sendo autor de livros como Formação da culinária brasileira (2014) e, em parceria
com Marcelo Corrêa Bastos, A culinária caipira da Paulistânia (2018). Mantém o blog e-BocaLivre, focado na temática, e
a coluna Tarja Preta, sobre a indústria e as políticas atuais de agrotóxicos, no blog Nocaute de Fernando Morais. No II
Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação, participou da mesa-redonda “Interdisciplinaridade na pesquisa
em alimentação”.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 78
A estética dos sabores e do poder:
os cardápios da Coleção Washington Luís Pereira de Sousa. Brasil (1889-1930)*

The aesthetics of flavour and power:


the menus of Collection Washington Luís Pereira de Souza. Brazil (1889-1930)

Eliane Morelli Abrahão 1

O propósito desta pesquisa é estudar os banquetes como espaços e instrumentos de


poder que engendravam a teia política durante a Primeira República. Busca-se analisar aspectos
das práticas alimentares, colocando em perspectiva histórica as ações comportamentais de um
segmento da sociedade – elites econômica, política e cultural –, que tornam visíveis a alimenta-
ção como uma linguagem de pertencimento social e de fortalecimento da imagem de unidade e
modernidade do Estado.
O foco principal é a Coleção Washington Luís Pereira de Sousa, depositada no Museu
Republicano “Convenção de Itu” da Universidade de São Paulo. O conjunto documental contém
cartas, diários, objetos, imagens e uma coleção de cardápios formada por 56 menus completos –
com informações sobre os alimentos, as bebidas e, em alguns casos, o programa musical do evento.
A trajetória política deste personagem, que de vereador em Batatais alçou outros postos,
chegando ao posto máximo, Presidente da República, governando de 1926 a 1930, foi acompanhada
de diversas atividades que pretendiam dar visibilidade às suas ações e consolidar a ideia de progres-
so ao seu governo.
O fato de Washington Luís viajar por diversas cidades do interior do estado de São Paulo e
do Brasil descortinou uma incipiente mudança nas práticas alimentares. Nota-se um movimento de
nacionalização das iguarias com alusão a quitutes regionais que aparecem, ora em pratos típicos,
ora nos ingredientes característicos da localidade visitada por esse estadista. Outra característica
desta coleção é o equilíbrio entre os cardápios redigidos em português e francês, embora fossem
comuns os menus confeccionados na língua francófona, como os que compunham as recepções
que aconteciam nas capitais, preparadas e ofertadas por hotéis e restaurantes – Casa Paschoal (RJ),
Hotel do Globo (RJ), Rotisserie Sportsman (SP).
A rede de relacionamentos e a reconstituição das práticas adotadas nos almoços e jantares
podem ser apreendidas nos periódicos da época. Os jornais e revistas narram com minúcias as
refeições cerimoniosas oferecidas a Washington Luís e a outros políticos. A decoração do ambiente,
o arranjo das mesas, o cardápio, a menção nominal aos convidados, os discursos e os brindes são
detalhes que completam o cenário desses ágapes. Agrega-se a isso o fato de que em diversas ocasi-
ões os convidados ou anfitriões faziam questão de assinar os cardápios, imprimindo um caráter de
perenidade e relevância a esses documentos “efêmeros”.
Por fim, as várias imagens do político em almoços e jantares, a repercussão na imprensa
de suas viagens e ações manifestas, sugerem o uso desses eventos sociais públicos na República

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 79
recém-criada para selar alianças políticas e de autopromoção. A participação de Washington Luís
nas refeições cerimoniosas favorece a reconstituição das práticas alimentares, desde a escolha dos
pratos, das bebidas, os artefatos de mesa e de decoração, até as relações que engendram o contexto
sociopolítico e cultural desse período de consolidação da República e de ênfase na unidade nacional.
Palavras-chave: História da Alimentação; práticas alimentares; sociabilidade; Política-Brasil
(1889-1930).
Keywords: Food History; Food Culture; sociability; Politics-Brazil (1889-1930)

* Esta pesquisa conta com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp - Processo
2019/15623-0).

1Historiadora responsável pelos Arquivos Históricos do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre e doutora pela Unicamp, é pós-doutoranda junto ao Museu
Republicano “Convenção de Itu”/Museu Paulista da Universidade de São Paulo. No II Simpósio Internacional de Pesquisa
em Alimentação, além de apresentar este trabalho, fez, ao lado de Maria Aparecida de Menezes Borrego, a curadoria da
exposição Os cardápios da coleção Washington Luís no acervo do Museu Republicano "Convenção de Itu" - USP, instalada no hall
dos auditórios Milton Santos e Nicolau Sevcenko.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 80
Uma commodity para os sentidos: a difusão global do tabaco na Era Moderna

A commodity for the senses: the global diffusion of tobacco in the Modern Age

Gustavo Acioli Lopes 1

O tabaco esteve entre as commodities a ter rápida difusão global na Era Moderna, a partir
das navegações e interações dos europeus com os povos dos demais continentes conhecidos então.
Nativo da América, onde era consumido pelos povos originários de várias partes do continente,
cerca de um século depois da chegada de Colombo ao Novo Mundo, o tabaco já era conhecido em
várias partes da Europa, África, Oriente Médio e Leste Asiático. Neste périplo global, a erva passou
de elemento ritualístico a commodity: vendido, trocado, taxado e produzido nas quatro partes do
mundo, ganhou a preferência de homens e, em menor medida, mulheres, de todas as camadas
sociais. Indivíduos de diversas idades mascavam, aspiravam e/ou fumavam, principalmente, o taba-
co das Américas, nas suas diversas variedades. Assim, essa commodity, que conquistava as pessoas
pelo paladar, olfato, tato e visão, tornou-se intensamente negociada e difundida nas sociedades que
com ela tiveram contato. Proponho-me a abordar essa difusão, destacando seus diversos condicio-
nantes, desde a produção ao consumo do tabaco.
Palavras-chave: tabaco; mercado atlântico; história global; Idade Moderna.
Keywords: Tobacco; Atlantic Market; Global History; Modern Age.

1Graduado e mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco, doutor em História Econômica pela
Universidade de São Paulo. É professor adjunto de História Econômica da Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE) e membro colaborador do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRPE. No II Simpósio
Internacional de Pesquisa em Alimentação, participou da mesa-redonda “Produção alimentar e sistema global”.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 81
História da alimentação no Brasil contemporâneo

Food history in contemporary Brazil

Henrique Soares Carneiro 1

A apresentação irá resumir a trajetória recente dos estudos sobre alimentação no Brasil
e, especialmente, no âmbito das pesquisas realizadas pelo Laboratório de Estudos Históricos das
Drogas e da Alimentação. Também serão destacadas as questões alimentares diante dos impasses
da crise do modelo econômico global em seus impactos socioambientais.
Palavras-chave: História da Alimentação; História das Drogas; crise do modelo econômico global.

1Professor Doutor de História Moderna do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. Fundador e coordenador do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e
da Alimentação (LEHDA-USP) e coordenador do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação. No simpósio,
também participou da mesa-redonda "Interdisciplinaridade na pesquisa em alimentação".

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 82
Minas, comida, palavra: perspectivas sobre o patrimônio imaterial e os modos de fazer

Minas, food, word: perspectives on immaterial heritage and the ways of making

José Newton Coelho Meneses 1

A comunicação propõe refletir sobre a denominada “imaterialidade” de construções cultu-


rais identitárias, especificamente, observando a tradição artesanal dos modos de fazer queijo arte-
sanal em Minas Gerais. Contrapõe essa ideia do “imaterial” a um repertório de valores fundamen-
tados em cotidiano material, dele parte inseparável, interpretando uma vivência, onde artefatos
instrumentais, saberes, práticas rotineiras e experiências complexas denotam os limites da ideia
de “patrimônio imaterial”. Reflete, ainda, sobre a memória e a dinâmica experiencial de homens e
de mulheres envolvidos no processo. Elas apontam para saberes e práticas manuais que, ao serem
pensadas teoricamente, apresentam um repertório complexo de atos e de valores associados ao
modo de fazer artesanal do queijo de Minas. Evidencia que tal complexidade fragiliza a síntese
convencional do termo “imaterial” na reflexão sobre as culturas.
A inconsistência da expressão patrimônio imaterial apresenta-se como decorrência da contra-
posição dicotômica entre materialidade e imaterialidade em cultura, herdeira de uma tradição que,
nas discussões, opõe, de forma simplista, o natural e o cultural. O seu simplismo traz riscos teóricos
e reflexos práticos no processo de patrimonialização. Denota, ainda, uma apreensão parcial dessas
práticas, na medida em que, como produto de cultura, espetacularizado para o consumo, torna-se
segmentado, destituído de sua complexidade.
Palavras-chave: cultura material; patrimônio; patrimônio imaterial; tradição artesanal.
Keywords: material culture; heritage; intangible heritage; artisanal tradition.

1 Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais e orientador pleno
do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal
de Minas Gerais, linha História Social da Cultura. Graduado em Medicina Veterinária (UFMG/1979) e em História
(UFMG/1993). Mestre em História pelo PPGH/FAFICH/UFMG (1997) e Doutor em História pela Universidade Federal
Fluminense (2003). É Diretor do centro de Estudos Mineiros da FAFICH/UFMG (gestão 2015-2017, reconduzido na
gestão 2018-2019). No II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação, participou da mesa-redonda “Cultura
material e alimentação”.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 83
Entre a cozinha e a mesa:
notas sobre a doçaria e seus artefatos (América portuguesa, séculos XVII-XIX)

From the kitchen to the dining room:


sweets and material culture in Portuguese America (17th-19th centuries)

Leila Mezan Algranti 1

Até meados do século XVI, o açúcar era um produto raro e caro no mercado europeu, sendo
pouco incorporado à cozinha. Destinava-se especialmente aos enfermos, encontrando-se presente
nas receitas de infusões e de outros medicamentos. Não fazia parte, portanto, dos registros de con-
sumo de alimentos diários das populações. Mas constava nos compêndios do fim da Idade Média e
início da Moderna, como tempero e especiaria, associado a alimentos doces e salgados.
Foi, porém, o sucesso dos portugueses na exploração do cultivo da cana-de-açúcar nas
suas colônias atlânticas e a consequente expansão da indústria açucareira no império português
que transformou o produto exótico em necessidade nas mesas de indivíduos de todas as classes
sociais, no século XVII.
Seu amplo consumo estimulou a arte da confeitaria na Europa e nas zonas produtoras de
açúcar, a qual representa um campo importante de reflexão para o historiador da cultura, já que
os doces, devido ao seu intenso caráter simbólico e festivo, encontravam-se presentes nas mais
diversas ocasiões de sociabilidade.
Com base em livros de receitas antigos, inventários de bens dos séculos XVII e XVIII refe-
rentes à região Sudeste do Brasil (post mortem e Autos da Devassa da Inconfidência) e em relatos de
viajantes estrangeiros, pretende-se refletir sobre o lugar do doce na América portuguesa e comentar
o repertório dos equipamentos de mesa e cozinha utilizados pelos colonos em seus rituais ligados à
produção e ao consumo de doces.
O estudo visa ainda propor caminhos para uma análise do universo material da cultura,
deslocando os artefatos dos espaços originais e das trajetórias de vida de seus proprietários, a fim
de estabelecer novos contextos e conexões entre os objetos.
Palavras-chave: América portuguesa; alimentação; doçaria; sociabilidade; artefatos de mesa e
cozinha.
Keywords: Portuguese America; food; sweets; sociability; kitchen and dining room artifacts.

1 Mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e professora aposentada de História do Brasil na
Universidade Estadual de Campinas. Publicou livros como Honradas e devotas: mulheres da colônia (1993). No II Simpósio
Internacional de Pesquisa em Alimentação, apresentou o pré-lançamento do livro História e Alimentação: Brasil séculos
XVI-XXI (Editora Paka-tatu), organizado em parceria com Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo, e participou da
mesa-redonda “Cultura material e alimentação”.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 84
A necessidade um olhar biopsicosociocultural na ciência da Nutrição

The need for a “biopsychosocialcultural” perspective at Nutrition Science

Marle Alvarenga 1

A Nutrição, classicamente classificada como uma disciplina da área das biológicas, infe-
lizmente tem focado muito apenas os nutrientes, sendo caracterizada hoje até pelo nutricionis-
mo: foco tão grande no nutriente e energia que faz as pessoas esquecerem que comem comida.
Concordamos com alguns pesquisadores que afirmam que a Nutrição pode ser quase classificada
como “uma racionalidade científica do comer”.
A interdisciplinaridade na área da alimentação é fundamental, e a Nutrição como ciência
precisa aprender muito com historiadores, antropólogos, sociólogos e outros pesquisadores das
ciências humanas, para resgatar o foco no alimento – que vem antes do nutriente; e também o foco
no ser humano comedor e consumidor – que vem antes de um processo fisiológico e metabólico de
assimilação de nutrientes.
Alguns pesquisadores da área da Nutrição têm se debruçado sobre o tema alimento e seus
arredores socioculturais e psicológicos, mas há muito a ampliar nesse sentido, e a interdisciplinari-
dade é, portanto, fundamental.
Esta necessidade se evidencia também pelo fato de que nunca se falou tanto de Nutrição
e o acesso às informações sobre o tema nunca foi tão amplo (mesmo havendo desinformação e
controvérsias), mas as pessoas não estão mais saudáveis: os índices de obesidade e transtornos ali-
mentares e doenças crônicas não transmissíveis atestam isto. Mais do que nunca é preciso entender
os múltiplos fatores envolvidos nas decisões sobre o que comer, e apenas parâmetros nutricionais
numéricos de necessidades e recomendações não vão responder às demandas da atualidade.
Palavras-chave: nutrição; interdisciplinaridade; alimentação; nutricionismo.
Keywords: nutrition; interdisciplinarity; food; nutritionism.

1 Mestre e doutora em Nutrição Humana Aplicada pela Universidade de São Paulo, concluiu o pós-doutorado no
Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, com um período como “short-term scholar” na
Pennsylvania University. É professora visitante do Departamento de Nutrição da FSP-USP e credenciada como orienta-
dora no programa de pós-graduação em Nutrição em Saúde Pública da mesma instituição. No II Simpósio Internacional
de Pesquisa em Alimentação, participou da mesa-redonda “Interdisciplinaridade na pesquisa em alimentação”.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 85
Duas colônias cafeeiras:
meio ambiente e escravidão no Suriname e em Saint-Domingue, c.1750-1790

A Tale of Two Coffee Colonies:


Environment and Slavery in Suriname and Saint-Domingue, c.1750-1790

Rafael de Bivar Marquese 1

Na segunda metade do século XVIII, as potências metropolitanas europeias conseguiram


superar o domínio que o Iêmen até então exercera sobre a oferta mundial de café. Duas colônias
do Novo Mundo se destacaram nessa transformação, ambas recorrendo ao emprego em larga
escala do trabalho escravo africano: Suriname, pertencente aos holandeses, e Saint-Domingue, a
principal colônia francesa do Caribe. No entanto, o crescimento do Suriname teve vida curta, logo
superado pelo salto produtivo de Saint-Domingue. A comunicação explora as trajetórias diver-
gentes dessas duas colônias, com as lentes focadas nas condições ambientais de operação de suas
fazendas de café.

1 Mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, onde atua como professor titular. Ao lado do Prof.
Dr. João Paulo Garrido Pimenta, coordena o Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi-USP)
e o Departamento de História da FFLCH-USP, na posição de vice-diretor. No II Simpósio Internacional de Pesquisa em
Alimentação, fez parte da Comissão Organizadora e da Comissão Científica e participou da mesa-redonda “Produção
alimentar e sistema global”.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 86
Arqueologia das práticas alimentares de uma vizinhança no Rio de Janeiro, século XIX:
o que a história não conta

Archaeology of foodways in a neighborhood in 19th century Rio de Janeiro:


what history does not tell

Tania Andrade Lima 1


Martha Locks 2

Com vistas à liberação de uma área para a construção civil no centro do Rio de Janeiro, foi
feita uma intervenção arqueológica no seu subsolo, que recuperou os restos materiais de seis unida-
des habitacionais oitocentistas contíguas. Em meio a uma abundante tralha doméstica de pessoas
comuns, fazendo coisas simples no seu dia a dia, foi resgatada uma expressiva quantidade de restos
alimentares, em sua esmagadora maioria ossos de mamíferos e aves. Um estudo detalhado das
marcas observadas nesses ossos identificou cortes padronizados que remetem às formas de aquisi-
ção de carne à época, e as ferramentas e utensílios utilizados para produzi-los; e também ao modo
como eles foram processados e consumidos por essa vizinhança, aqui entendida como um conjunto
de pessoas que moram em estreita proximidade. Uma análise comparada do que foi encontrado
em cada uma das casas permitiu observar os hábitos de consumo desses grupos domésticos e as
práticas alimentares que eles adotaram em suas rotinas diárias no Rio de Janeiro do século XIX.
Palavras-chave: arqueologia; restos alimentares; hábitos alimentares; Rio de Janeiro.
Keywords: archaeology; food remains; foodways; Rio de Janeiro.

1 Professora do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


No II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação, participou da mesa-redonda "Cultura material e alimentação".
2 Bióloga do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 87
II Simpósio
Internacion

Grupos de Trabalho
[Work Groups]

de

pesquisa
Grupo de trabalho 1

FOME E (IN)SEGURANÇA ALIMENTAR

Work group 1

HUNGER AND FOOD (IN)SECURITY

Coordenadores/Coordinators:

Adriana Salay Leme

Doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo, pesquisadora do Laboratório

de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP)

José Raimundo Sousa Ribeiro Junior

Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo, professor visitante do Instituto

de Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo e representante da Associação

dos Geógrafos Brasileiros (AGB-SP) no Conselho Municipal de Segurança Alimentar (COMUSAN)

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 89
Alimentação escolar no Brasil: considerações sobre questões educacionais, sociais e culturais

School meals in Brazil: considerations on educational, social, and cultural issues

Adriana Angelita da Conceição 1

A vida cotidiana das escolas públicas brasileiras é marcada pela diversidade social, cultural,
política e econômica que constitui o Brasil. O sistema de Ensino Básico é formado por escolas qui-
lombolas, indígenas, do campo e urbanas que são caracterizadas por especificidades que buscam
ser mantidas diante dos desafios de políticas públicas educacionais comuns. No início do século
XX, em meio aos projetos de formação da nação brasileira, dois grandes problemas precisavam
ser enfrentados, a educação e a fome, e que estavam intrinsicamente relacionados à pobreza e à
desnutrição, fazendo com que a constituição histórica do sistema público de Ensino Básico fosse
acompanhada de um sentido assistencialista. Neste contexto, a alimentação escolar ocupou um
complexo lugar dentro da cultura escolar brasileira. A partir desta breve introdução, apresentamos
a alimentação escolar como o tema problematizador desta apresentação, que está integrada a uma
pesquisa em andamento e intitulada História da alimentação escolar no Brasil (séculos XX-XXI): refle-
xões sobre políticas públicas educacionais, cultura alimentar e Campo. De modo geral, essa pesquisa vem
estudando a historicidade da alimentação escolar no contexto da estruturação e consolidação da
Educação Básica no Brasil, considerando a alimentação como um ato marcado por aspectos que são
econômicos, políticos, ambientais, culturais, sociais e também educacionais, sendo, portanto, um
lugar de resistência cultural, como pontuou Jean-Pierre Poulain, na obra Sociologia da alimentação: os
comedores e o espaço social alimentar (2002). No entanto, como a alimentação escolar no Brasil, ainda
profundamente marcada por características assistencialistas e pouco vinculada à garantia de um
direito, se apresenta nas atuais políticas públicas para a educação no Brasil? Destacaremos a tra-
jetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), problematizando questões que vão
além da educação nutricional e consideram a educação alimentar na sua relação com a vida social
e identitária das comunidades escolares. Identificamos, assim, que boa parte das políticas públicas
para a alimentação escolar destaca e evidencia o que o sujeito vai comer, mas pouco considera o
sujeito que come, desvinculando a complexa cadeia dos sujeitos que produzem, comercializam, pre-
param e consomem. Se, por um lado, as políticas educacionais proporcionam esses desajustes, por
outro, também geram ressignificações e lutas. Por fim, a partir de um levantamento bibliográfico
interdisciplinar, esta apresentação busca mostrar como a alimentação escolar, na consolidação da
Educação Básica no Brasil, vem se construindo como um espaço de disputas econômicas e políticas,
mas, sobretudo, como um território sociocultural de resistência.
Palavras-chave: história da alimentação; alimentação escolar; cultura escolar; educação alimentar;
cultura alimentar.
Keywords: food history, school feeding; school culture; food education; food culture.

1 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora na Universidade Federal de Santa Catarina.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 90
Representações da fome e suas metamorfoses nas décadas de 1930 e 1940 no Brasil

Hunger representations and its metamorphoses in the 1930s and 1940s in Brazil

Adriana Salay Leme 1

A fome é elemento inescapável na história. Se não estava presente em algum momento


em determinado lugar, ela era um paradigma do qual se buscava distanciar. E se a fome assim o é,
perpassando as diferentes sociedades, não é, entretanto, homogênea nem no seu entendimento
nem enquanto fenômeno. As definições dos dicionários não são suficientes para lidar com a com-
plexidade do assunto. Na maioria das vezes, eles se limitam ao problema biológico individual e não
a um grupo complexo de problemas sociais. Aqui pretende-se se debruçar sobre a fome enquanto
questão e não enquanto fenômeno e desmembrar suas diferentes interpretações. O propósito
aqui não é dizer que não existe uma realidade enquanto tal ou que a fome é apenas cultural, e sim
assumir a direção da análise: o foco é como um determinado grupo social olhava para o fenômeno
da fome. Ela não é exclusiva do período proposto, mas as novas ferramentas científicas disponi-
bilizaram um novo entendimento sobre a fome. Desta forma, suas ocorrências serão usadas para
entender como elas ajudaram o fenômeno a se tornar um tema debatido publicamente como
questão política, mudando sua percepção, sua conceitualização e, consequentemente, as políticas
públicas do período. Como, por exemplo, os relatos de fome intensa durante as secas nordestinas
desde o fim do século XIX e os da Segunda Guerra Mundial que ampliaram as discussões sobre o
tema, possibilitando uma nova compreensão. Somado a essa exposição, nesse momento houve
também a racionalização da alimentação – novas ferramentas que possibilitaram medir a ingestão
cotidiana assim como suas ausências, ampliando o debate em torno do que seria uma alimentação
ideal. As descobertas científicas que estavam acontecendo desde meados do século XIX na Europa
e nos Estados Unidos reverberaram no Brasil principalmente depois da Primeira Guerra Mundial
e promoveram diferentes pesquisas sobre a temática. Josué de Castro foi um dos personagens
importantes para esse novo olhar para fome no país. A sua publicação Geografia da Fome, em 1946,
evidenciou o tema e colocou na mesma esfera debates que ocorriam em paralelo: fome endêmica
e fome epidêmica. Enfim, a proposta é jogar luz sobre os debates da época que possibilitaram uma
nova compreensão do fenômeno como a levada a cabo por Castro.
Palavras-chave: fome endêmica; fome epidêmica; Brasil; alimentação; Josué de Castro.
Keywords: endemic hunger; epidemic hunger; Brazil; alimentation; Josué de Castro.

1 Doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo, pesquisadora do Laboratório de Estudos Históricos das
Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 91
Experiência de elaboração de um material técnico gastronômico voltado ao uso
sustentável de espécies nativas brasileiras

Experience of elaboration of a gastronomic technical material focused on the sustainable use


of native Brazilian species

Ana Carolina Almada Colucci Paternez 1


Camila de Meirelles Landi 2

A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano e abrange a ampliação das


condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional
e familiar, conservação da biodiversidade e utilização sustentável destes recursos. As áreas do
conhecimento voltadas para a alimentação, nutrição e gastronomia desempenham papel rele-
vante na valorização e preservação da biodiversidade nativa e na discussão sobre sistemas agro-
alimentares sustentáveis, com vistas à ampliação do acesso e consumo de alimentos, promoção
da economia local e preservação do patrimônio cultural. O presente trabalho apresenta o relato
de experiência pedagógica de elaboração de material técnico gastronômico, de natureza inter-
disciplinar, sobre preservação da biodiversidade brasileira, voltado ao uso sustentável de espécies
nativas. A elaboração da pesquisa envolveu docentes e estudantes de graduação dos cursos de
Nutrição e Tecnologia em Gastronomia de uma universidade privada de São Paulo. As ativida-
des deste trabalho representam uma ramificação das ações do Projeto Biodiversity for Food and
Nutrition, coordenado pelo Bioversity International com as agências implementadoras: Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação
e a Agricultura. Foram executadas receitas com espécies vegetais nativas da região Sudeste do
Brasil, selecionadas no projeto “Plantas para o futuro” do Ministério do Meio Ambiente, com obje-
tivo de compilação e publicação em livro representativo de todas regiões geopolíticas e biomas
do Brasil. A etapa de seleção das receitas compreendeu a realização de oficinas de degustação e
preparo das receitas propostas para avaliação da viabilidade de execução. Foram realizadas de 3 a 5
preparações para cada espécie, aprovadas na etapa denominada “avaliação sensorial de bancada”.
As receitas aprovadas foram organizadas em formato de fichas técnicas, com a realização de aná-
lise nutricional utilizando os valores apresentados no Banco de dados do Projeto BFN e a Tabela
de Composição Química de Alimentos TACO (2004), pelos alunos da Nutrição. Foram realizados os
registros fotográficos das espécies in natura e das produções culinárias, com emprego de enxoval
gastronômico, equipamentos e técnicas específicas. O trabalho com os estudantes de Nutrição e
Gastronomia promoveu a integração dos cursos e aplicação de conhecimentos, como o incentivo
ao trabalho de pesquisa e investigação científica. Conclui-se que as instituições de ensino superior
(IES), por serem espaços de reflexão, geração de conhecimentos, formação de estudantes para
as futuras práticas profissionais e desenvolvimento de pesquisas e tecnologias, são importantes
campos reflexivos e propositores de soluções para valorização do patrimônio cultural e promoção
da segurança alimentar e nutricional humana.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 92
Palavras-chave: biodiversidade; educação; espécies nativas; segurança alimentar; nutrição.
Keywords: biodiversity; education; native species; food security; nutrition.

1 Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
2 Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, docente da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 93
Ampliação da segurança alimentar através de material gastronômico com
espécies nativas da região Sudeste do Brasil

Increasing food security through gastronomic material with native species from
Southeastern Brazil

Andrea Carvalheiro Guerra Matias 1


Paola Biselli Ferreira Scheliga 2

O Brasil é o principal país dentre os considerados de megabiodiversidade. Esse patrimônio


representa um dos principais ativos brasileiros com papel estratégico na solidificação do desenvolvi-
mento nacional. O Bioversity International e o PNUMA, órgãos vinculados à Organização das Nações
Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), convidaram o Brasil, o Quênia, o Sri Lanka e a Turquia
para o projeto Biodiversity for Food and Nutrition (Projeto BFN), que teve por objetivo a conservação e
a promoção do uso sustentável da biodiversidade para melhorar a segurança alimentar e a nutrição
humana. Historicamente, o Brasil possui notoriedade por sua variedade cultural também retratada
no campo da alimentação. Todavia, alimentos nativos reconhecidamente nutritivos e saborosos
foram gradativamente sendo esquecidos ou desvalorizados, até o ponto de serem desconhecidos por
grande parte da população local. Dentre as iniciativas brasileiras do Projeto BFN surgiu a proposta de
elaboração de um material técnico gastronômico (livro). O presente trabalho apresenta os dados de
um recorte deste projeto. As espécies alimentícias nativas utilizadas foram propostas pela Iniciativa
“Plantas para o futuro”: Araçá, Cambuci, Grumixama, Jenipapo, Major Gomes, Mangaba, Mangarito,
Pequi, Taioba. Para avaliação das características sensoriais e potenciais usos das espécies foram con-
duzidas oficinas de reconhecimento dos frutos, com posterior prospecção de receitas. As propostas
foram testadas e validadas com posterior produção fotográfica. Como resultado, foram desenvolvi-
das 38 produções. A distribuição das preparações segundo contribuição ao cardápio foi de 37% pratos
principais, 26% sobremesas, 17% entradas, 10 acompanhamentos, 6% quitandas e bolos e 4% pães.
Estas produções foram reunidas a iniciativas de mesmo caráter da própria região Sudeste e demais
regiões do Brasil no livro Biodiversidade Brasileira: Sabores e Aromas, publicado pelo Ministério do Meio
Ambiente (2018). O desenvolvimento de ações desta natureza, voltadas para a disseminação do uso de
espécies nativas do Brasil, contribui para a promoção de demanda ao estudo das características físicas,
químicas e nutricionais, com potencial aplicação de técnicas de manejo e conservação que viabilizem
a comercialização e o uso destas espécies pela população; promove a melhoria e o incentivo de uma
alimentação rica e completa nutricionalmente; e não obstante valoriza a Gastronomia Brasileira e seu
patrimônio cultural esquecido e/ou desconhecido por grande parte da população devido ao processo
de urbanização e industrialização do país.
Palavras-chave: sustentabilidade; biodiversidade; dietética; espécies nativas; segurança alimentar.
Keywords: sustainability; biodiversity; dietetic; native species; food security.

1 Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.


2 Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, docente e pesquisadora
no curso de Gastronomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 94
Doenças carenciais no período da seca de 1877-1879 na Província do Rio Grande do Norte

Diseases in the drought period of 1877-1879 in the province of Rio Grande do Norte

Avohanne Isabelle Costa de Araújo 1

Este trabalho tem como objetivo analisar as doenças de ordem carencial que foram registra-
das durante a seca de 1877-1879 no Rio Grande do Norte. Eu parto desta seca para entender as con-
dições sociais pelas quais as populações viviam, pensando na saúde e nas enfermidades, pois como
defendem Durval Muniz de Albuquerque Junior e Paulo Cesar Gonçalves, esta seca se diferencia das
anteriores pela visibilidade que a elite política do Norte (atual Nordeste) trouxe em seus discursos,
utilizando-a como argumento para conseguir recursos no intuito de combater as secas e as misérias
assoladas pela fome nas províncias afetadas (dentre elas, o Rio Grande do Norte), chegando ao pata-
mar de “problema nacional”, com seu cortejo de calamidades: falta d’água, de alimentos, dizimação
dos rebanhos, elevada mortalidade e epidemias. Outra justificativa em optar por esta delimitação
temporal é que, por meio da análise das fontes governamentais, pude encontrar notificações de
doenças carenciais como beribéri e escorbuto. No tocante à metodologia, utilizo o cruzamento das
fontes, classificação e análise qualitativa das temáticas encontradas na documentação, mapeamento
das doenças carenciais que assolavam a população sertaneja do Rio Grande do Norte e produção de
tabelas a partir dos dados encontrados nas fontes. Por meio da análise dos Relatórios dos Presidentes
de Província do RN, dos jornais e dos relatos de memorialistas que viveram neste período, quero
entender a dimensão social dessas doenças a partir das discussões de Anny Jackeline Torres Silveira,
Dilene Raimundo do Nascimento e Claudine Herzlich, levando em consideração a dieta alimentar
que era consumida pela população sertaneja, as condições econômicas da agricultura, pecuária e
a situação da água durante este período. Todos estes aspectos são importantes para refletir sobre
as condições de vida e saúde dos retirantes que migravam à procura de alimentos e água, além dos
impactos que a fome causava na vida dessa população. Assim, dos resultados colhidos até o presente
momento, as doenças mais comuns (além dos surtos epidêmicos) foram de ordem carencial como
beribéri e escorbuto, cujo motivo estava relacionado a uma dieta pobre em nutrientes e vitaminas
e em virtude dos alimentos que se tornavam escassos durante a seca. Problematizar as doenças
carenciais, levando em consideração a sua dimensão social, amplia o olhar dos historiadores para
refletir sobre os problemas frequentes de crise alimentícia, as dificuldades no abastecimento dos
gêneros alimentícios, a qualidade dos alimentos que existiam disponíveis no comércio das cidades
dos sertões do Rio Grande do Norte, a dieta-base da população migrante, as condições de vida e as
explicações médicas perante o aparecimento dessas moléstias. Isso nos leva a compreender também
o próprio papel do Estado perante as políticas de calamidade que envolviam, principalmente, a seca,
a fome e as doenças em fins do século XIX.
Palavras-chave: beribéri; escorbuto; fome; seca; alimentação.
Keywords: beriberi; scurvy; hunger; drought; food.

1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 95
Soberania e segurança alimentar e nutricional na formação em
Gastronomia por instituições de ensino superior no Brasil

Sovereignty, and food and nutrition security


in Gastronomy training by higher education institutions in Brazil

Barbara Cassetari Sugizaki 1


Moara Volpato Cortazzo 2
Maria Rita Marques de Oliveira 3

Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) é uma temática intersetorial, trans-


versal e multiprofissional, relacionada à produção, à distribuição, ao acesso, ao preparo e, sobretudo,
ao consumo dos alimentos. Seu conceito leva em conta uma alimentação nutricionalmente balan-
ceada e que respeite os conhecimentos tradicionais bem como as práticas culturais da população,
tomando-se por referência o próprio Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014. No entanto,
nem sempre o tema da SSAN está presente no currículo das instituições de ensino superior (IES)
de Gastronomia. Distanciamento ainda maior ocorre na inserção profissional na área, em que o
conhecimento das técnicas culinárias “clássicas” é compreendido erroneamente como objeto único
e central deste conhecimento da prática. Assim, este trabalho justifica-se ao considerar o papel que
o gastrônomo, enquanto profissional do ramo da alimentação, desempenha ou pode desempenhar
nos campos da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, e também pela necessidade de refor-
ço ou incorporação de um caráter que compreenda o dilema humanista-tecnológico que perpassa
a temática da Gastronomia. Assim, procura-se discutir a relação entre SSAN e Gastronomia para
além da técnica, reconhecendo-se a indissociabilidade desta no preparo do alimento, bem como
a existência de um contexto alimentar muito mais amplo. Desta forma, este trabalho possui como
objetivo investigar a relação da SSAN com a Gastronomia nos processos de consolidação e reconhe-
cimento da profissão nos currículos de instituições de ensino superior (IES) do Brasil e na percepção
de docentes e discentes do curso, especificamente nas instituições públicas. Procura-se assim (a)
sistematizar informações de documentos norteadores da formação superior em Gastronomia,
associando-as com a SSAN; (b) levantar a presença da SSAN nas atividades de ensino, pesquisa
e extensão desenvolvidas nos cursos de Gastronomia; e (c) levantar a percepção dos docentes e
discentes quanto à temática da SSAN em suas as atividades de ensino, pesquisa e extensão, esta-
belecendo paralelo das respostas obtidas com o currículo do curso e o planejamento da gestão.
Para isso, esta pesquisa possuirá um caráter qualitativo, documental e exploratório. Nesse sentido,
envolverá a aplicação de entrevistas de profundidade, a serem realizadas com gestores de cursos de
Gastronomia, e questionários, nos quais será utilizada a técnica Delphi para avaliação da validade
dos mesmos. Espera-se através desta pesquisa conhecer mais profundamente a formação do pro-
fissional em Gastronomia na temática da SSAN, para que assim os mesmos possam vir a auxiliar na
inserção plena da temática nos Projetos Políticos Pedagógicos, currículos e atividades de Ensino,
Pesquisa e Extensão dos cursos de Gastronomia, dada sua abrangência e importância.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 96
Palavras-chave: gastronomia; soberania alimentar; segurança alimentar e nutricional.
Keywords: gastronomy; food sovereignty; food and nutrition security.

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Alimentos e Nutrição na Universidade Estadual Paulista; bolsista

pela Capes.
2 Licenciada em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista e bacharela em Gastronomia na Universidade
Federal do Ceará.
3 Doutora em Ciências dos Alimentos pela Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 97
Na trama das “Cestas Verdes”: análise sociotécnica de uma política entre produção e
consumo em Limeira (SP)

“Cestas Verdes”: socio-technical analysis of a policy between production and consumption in


Limeira, São Paulo

Bárbara Lellis de Sá Frizo 1


Mariana Fagundes Grilo 2
Roberto Donato da Silva Júnior 3
Julicristie Machado de Oliveira 4

Este trabalho tem como objetivo apresentar pesquisa de mestrado acerca da implementação
do programa “Cestas Verdes”, uma vertente do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), na cida-
de de Limeira (SP), de abril de 2015 a novembro de 2016. Este desenrolou-se de maneira particular no
município, com uma mudança de traçado no intuito de abranger famílias em Insegurança Alimentar
e Nutricional (IAN) com as chamadas “Cestas Verdes”. Estavam envolvidos o Centro de Promoção
Social Municipal (Ceprosom), responsável pela gestão do programa, bem como a cooperativa de
agricultores do acampamento rural Elizabeth Teixeira. Tendo o alimento como fio condutor, obser-
vou-se a rede sociotécnica que o programa foi capaz de articular nos eixos: I. produção no acampa-
mento, II. gestão municipal e III. distribuição às famílias. Por meio de entrevistas semiestruturadas,
observação participante e grupos focais, foi possível constatar que a experiência em Limeira garantiu
renda às famílias do acampamento que trabalham e se identificam com a agricultura, melhorando
sua situação de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), uma vez que os alimentos que vendiam
também eram para autoconsumo; para as gestoras essa política representou um desafio e um novo
modo de fazer o trabalho mesmo com acesso limitado à discussão de SAN; e, para as famílias, os
alimentos foram uma melhora material e significativa na alimentação, tanto nos casos que tiveram
profissionais da Nutrição trabalhando conjuntamente, quanto para os que não passaram por esse
acompanhamento. Com efeito, essa experiência mostrou a teia que o programa foi capaz de coa-
dunar entre humanos e não humanos em prol da noção de SAN, mesmo que por um breve período.
Palavras-chave: Programa de Aquisição de Alimentos; Cestas Verdes; rede sociotécnica; sociologia
da alimentação.
Keywords: Food Acquisition Program; “Cestas Verdes”; socio-technical network; sociology of food.

1 Mestra em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Campinas.


2 Mestranda em Saúde Coletiva na área de Epidemiologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual
de Campinas.
3 Doutor em Ambiente e Sociedade pela Universidade Estadual de Campinas, e professor da Faculdade de Ciências
Aplicadas da Unicamp.
4 Doutora em Saúde Coletiva pela Faculdade de Saúde Coletiva da Universidade de São Paulo, professora da Faculdade
de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 98
As consequências do neoliberalismo para a soberania alimentar haitiana
e a produção da fome

Consequences of neoliberalism for Haitian food sovereignty and famine production

Beatriz Gomes Cornachin 1

Dentre os países do continente americano, o Haiti configura o que apresenta maior índi-
ce em relação à desnutrição com aproximadamente metade da população dentro desse quadro.
Não apenas no continente americano, mas também mundialmente o país configurou entre 2004
e 2006 o país com maior prevalência (57,1%) e, no último período analisado, entre 2015 e 2017,
apenas Zimbábue classifica-se com maior índice que o Haiti. Inserido na América Latina e Caribe,
o país aponta como um caso necessário a ser evidenciado no tocante à questão alimentar, para
além da atenção fundamental que a alimentação, independentemente de índices maiores ou
menores, deve tomar. A região foi exemplo ao alcançar uma das metas dos Objetivos do Milênio,
conseguindo reduzir pela metade o número de desnutridos. Infelizmente, nos últimos três anos, o
inverso tem se colocado a partir do crescimento da desnutrição na região distanciando, portanto,
dos atuais Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. A partir disso, em pesquisa para disserta-
ção de mestrado, buscou-se compreender quais as relações estabelecidas podem influenciar para
o quadro de fome no Haiti. Renunciando inicialmente o determinismo geográfico, que frequen-
temente é utilizado pela mídia para justificar e naturalizar a fome não apenas no país, mas em
outras regiões do mundo, partiu-se da compreensão de que tal flagelo tem origens multidimen-
sionais, sendo que suas consequências são multifacetadas. A partir desse ponto inicial e de revisão
bibliográfica sobre os tipos de fome e suas consequências, observou-se a utilização e evolução dos
termos acerca da questão alimentar, tais como “segurança alimentar” e como esses podem ser
angariados para, primeiro, justificar um comércio internacional de commodities e, segundo, inten-
sificar a dependência alimentar de alguns países em relação a outros. Para tanto, fez-se primordial
a abordagem a partir de uma perspectiva de soberania alimentar, evidenciando como esta tem
relação com a própria dificuldade de soberania política do país. Partindo de tais constatações, se
optou por compreender uma das implicações ocorrentes na questão alimentar: o comércio. Nesse
sentido, o neoliberalismo apareceu como um divisor de águas durante a pesquisa. Medidas aplica-
das a partir de 1980 implicaram uma ampla abertura de mercado, sendo que tarifas alfandegárias
caíram de 35% para 3% em alguns produtos, dentre eles, o arroz. A partir de consultas no banco de
dados da USDA, foi possível constatar que após a década de 1980, especificamente a partir de 1986,
duas coisas ocorreram: o aumento do consumo doméstico de arroz e a consequente importação
de arroz estadunidense. A principal problemática que se coloca é que esse arroz originário dos
Estados Unidos da América é altamente subsidiado por Washington, resultando em um arroz mais
barato que o local e também mais fácil de ser consumido, uma vez que os fazendeiros estaduni-
denses têm (além dos subsídios) algo que os haitianos não possuem: insumos agrícolas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 99
Palavras-chave: fome; neoliberalismo; Haiti; soberania alimentar.
Keywords: hunger; neoliberalism; Haiti; food sovereignty.

1 Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 100
O PNAE como estratégia para construção de novas lógicas de produção e consumo de
alimentos no Rio Grande do Sul

PNAE as a strategy for building new food production and consumption logics in Rio Grande do Sul

Etho Roberio Medeiros Nascimento 1


Amália Leonel Nascimento 2
Luciana Dias de Oliveira 3

Nos últimos anos, se observou a intensificação do processo de modernização da agricultura


e o aprofundamento das crises sociais nos sistemas agroalimentares. Em meio a esse fenômeno,
se consolidou o modelo de transição nutricional com a difusão do consumo de alimentos ultrapro-
cessados, resultando na elevação da insegurança alimentar. Nesse cenário, cresce o apelo de novas
estratégias de produção, consumo e comercialização de alimentos, com destaque para a promoção
de modelos regionais sustentáveis, com a oferta de alimentos frescos e livres de agrotóxicos; retoma-
da da ação estatal por meio de políticas públicas; e inclusão de agricultores familiares nos mercados
agrícolas. Assim, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por meio das abordagens
de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e Direito à Alimentação Adequada (DHAA), estimula
a compra de no mínimo 30% da agricultura familiar para fornecimento de alimentos à alimenta-
ção escolar. Tal iniciativa tem por objetivo fornecer uma alimentação saudável e sustentável aos
escolares da rede pública, além de promover a inclusão socioprodutiva e dinamização econômica
de agricultores familiares por meio das compras institucionais. Com isso, o presente trabalho tem
por objetivo descrever os resultados obtidos pelo monitoramento e assessoria técnica às Entidades
Executoras (EEx) do Rio Grande do Sul (RS), realizada pelo Centro Colaborado em Alimentação e
Nutrição Escolar (CECANE), nos anos de 2016 a 2018. A fonte dos dados foi baseada na metodo-
logia da assessoria, definida pelo CECANE/FNDE. Todos os dados foram coletados por meio de
questionários semiestruturados, com o objetivo de realizar um diagnóstico sobre a gestão do PNAE
nos municípios. Como resultados, temos que no presente período foram realizadas assessorias a
102 municípios, o que abrange 20,5% do total de municípios do estado. Destes municípios, 67,3%
atingem o percentual mínimo de 30% de compra da agricultura familiar. De uma maneira geral, a
porcentagem de municípios que compram acima de 30% da agricultura familiar esteve próxima
à média do estado (71,2%) e superior à média nacional (24,84%), com aumento dos municípios
que realizam a compra. A maior concentração desses municípios (56,6%) também incluiu o tema
da alimentação saudável nos projetos político-pedagógicos das escolas, e 85% promoviam ações
de educação alimentar, abordando os temas de SAN, DHAA e utilização de alimentos orgânicos e
conscientização do consumo de ultraprocessados. Além disso, observa-se o aumento das compras
institucionais de produtos orgânicos ou em transição agroecológica. Logo, estes dados denotam
que a compra da agricultura familiar contribui com a oferta e o consumo de alimentos saudáveis
no ambiente escolar, causando impacto direto nas realidades locais a partir da dinamização dos

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 101
mercados da agricultura familiar e aproximação entre produtores e consumidores finais, compon-
do uma estratégia alternativa aos sistemas de produção industrial.
Palavras-chave: PNAE; alimentação escolar; segurança alimentar e nutricional.
Keywords: PNA; school feeding; food and nutrition security.

1 Doutorando em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


2 Doutora em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 Prof. Dra. do Curso de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 102
Fome e redes comerciais na Bacia Parisiense (séculos VII-XI)

Famine and commercial networks in the Parisian Basin (7 th-11 th centuries)

Gabriel Rodrigues Sanches Cordeiro 1

A Alta Idade Média foi entendida pelos historiadores até meados do século XX como um
longo período de crise e de declínio, não apenas devido aos múltiplos períodos de fome, mas tam-
bém por questões econômicas e políticas. Essa interpretação pessimista tem sido contestada nas
últimas décadas. Com um panorama menos negativo com relação à economia medieval, também
vieram questionamentos a cerca da “veracidade” das crises alimentares, ou pelo menos de seus
aspectos mais sombrios. Alguns relatos da fome usam passagens bíblicas como modelo. Isso fez
com que alguns historiadores enxergassem as “colheitas falsas” e o canibalismo de sobrevivência
como recursos retóricos, pois eram associados com a ação divina, uma punição pelos pecados dos
habitantes do reino.
Ao realizar um estudo da fome no início da Idade Média, entramos em contato com a dura
realidade fornecida por fontes rarefeitas. Diferente do que se observa para o século XIV em diante,
os primeiros séculos da Idade Média distinguem-se pela ausência de documentação precisa acerca
da produção, compra, venda e estocagem de alimentos. No lugar de inventários detalhados, ou
de séries de preços, temos evidências imprecisas que, no entanto, apontam para a escassez de ali-
mentos em diversos momentos. A análise arqueológica oferece dados fundamentais para a melhor
compreensão da fome durante a Alta Idade Média. Nesta apresentação, buscarei analisar os indícios
arqueológicos de La Confiserie, localizado em Villiers-le-Bel, usando como pontos de comparação
outros dois sítios contemporâneos da bacia parisiense: Les Ruelles e La Chapelle/La Croix Verte.
La Confiserie e Les Ruelles possuem registros arqueológicos diametralmente opostos. No
primeiro deles, há o único provável indício encontrado de canibalismo de sobrevivência durante
toda a Idade Média, fenômeno descrito treze vezes nas fontes escritas entre os séculos VIII e XI. Em
contrapartida, Les Ruelles tem silos muito bem abastecidos e variados. Foram encontrados, indícios
de alimentos raros, como faisão e ostras. La Chapelle/La Croix Verte não possui registros tão extremos
quanto os outros sítios, mas conta com muitas estruturas relacionadas à produção e à estocagem
de alimentos, que foram descritas e analisadas pelos arqueólogos. Além disso, La Chapelle/La Croix
Verte pode ser usado como um ponto neutro entre os outros dois sítios por não estar em condições
tão extremas quanto eles.
Até o momento, de acordo com o andamento da pesquisa, podemos dizer que há dois pontos
principais para esta análise: a proximidade com os habitats aristocráticos e a integração dos sítios
com as redes comerciais. La Confiserie era o único sítio que se encontrava isolado delas. De acordo
com as evidências alimentares e os resquícios de comércio, a fome não parece ter sido tão abran-
gente e total quanto os historiadores apontavam no século XX. Ainda que ela fosse uma realidade
e seu impacto claro, seus efeitos de distribuem se maneira desigual de acordo com diversos fatores.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 103
Palavras-chave: fome; arqueologia medieval; abastecimento.
Keywords: hunger; medieval archeology; supply.

1 Graduando em História pela Universidade de São Paulo, bolsista de Iniciação Científica pela Fapesp.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 104
Em busca da emancipação dos brasileiros à mesa: diálogos entre Slow Food e MST

In search of Brazilians’ emancipation at the table: dialogues between Slow Food and MST

Gabrieli Aparecida da Fonseca 1


Jean Marcel Caum Camoleze 2

Este trabalho resulta de um recorte e união de duas pesquisas de doutorado intituladas


O papel da informação no resgate da cultura alimentar brasileira: uma análise do catálogo Arca do Gosto
e Movimentos sociais e Tipologia Documental: estudo de caso do acervo documental do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A partir da análise dos estudos de caso em questão, busca-
-se refletir aqui a respeito de um ponto comum a ambas pesquisas: a relação entre a defesa de
políticas públicas voltadas para questão agrária, consumo e produção de alimentos por parte dos
movimentos Slow Food e MST, valorizando a produção da agricultura familiar e o resgate de hábi-
tos saudáveis e sustentáveis da alimentação brasileira.
Slow Food e MST atuam como importantes mediadores na área da alimentação, exercendo
influência nos hábitos de consumo da população a partir do desenvolvimento de políticas públicas
e uma agricultura sustentável. Trata-se de movimentos que pregam, entre outras coisas, a valori-
zação da agricultura familiar para o desenvolvimento social e econômico do país. Nesse processo,
o consumo se faz como um fator de extrema importância, pois é a partir dele que o circuito de
produção se concretiza e integra diversos setores da sociedade. Contudo, na atualidade, os indiví-
duos se encontram presos às armadilhas da alienação da mídia e do agronegócio, que influenciam
e regulamentam o mercado consumidor.
Em defesa da biodiversidade, da emancipação do consumidor e uma agricultura susten-
tável, o Slow Food trabalha com a Arca do Gosto, um catálogo promovido pelo movimento e que
seleciona alimentos em risco de extinção a partir da indicação da população, com base em critérios
pré-estabelecidos, e o MST realiza ações referentes a questões agrárias nacionais e da estrutura-
ção de políticas públicas para o uso social da terra. Nesse sentido, a Arca do Gosto trata de uma
seleção de alimentos tradicionais em risco de desaparecer, que informa a população a respeito da
importância desses alimentos, e o MST promove ações de acessibilidade universal a uma alimen-
tação saudável. Dessa forma, ambos os movimentos fomentam a preservação da cultura local, a
segurança alimentar, a salvaguarda da biodiversidade e estimulam o consumo dos mesmos e da
agricultura familiar.
Em complemento ao alerta que a Arca do Gosto oferece à população em relação à neces-
sidade de se consumir e proteger alimentos tradicionais, temos as ações do MST pela reforma
agrária justa. O MST também age em direção à busca por um futuro onde cada um possa consumir
o alimento de seu território. O respeito ao território tende a contribuir com a preservação dos hábi-
tos alimentares, espécies e cultivares tradicionais, pois cada região possui seus modos de preparo
e cada espécie/cultivar tem sua origem em um bioma distinto.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 105
Palavras-chave: cultura alimentar; segurança alimentar; processo emancipatório; Slow Food; MST.
Keywords: food culture; food security; emancipation process; Slow Food; MST.

1 Doutoranda em Ciência da Informação, mestra em Ciência da Informação, graduada em Arquivologia pela


Universidade Estadual Paulista de Marília.
2 Doutorando em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista de Marília, docente no Centro
Universitário Padre Anchieta, mestre em Ciência da Informação pela Unesp-Marília, graduado em História pelo
Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 106
O estômago da cidade: alimentação popular no centro de Belo Horizonte

The stomach of the city: popular food in downtown Belo Horizonte

João Marcos Teixeira G. das Graças 1


Fábio Tozi 2

O mundo atual é pautado por um contexto de crises, no qual os avanços técnicos constituem
uma corrida desenfreada por novas modernizações, criando perversidades (ver a obra de Milton
Santos, Por uma outra globalização, de 2000). Estas perversidades são concretizadas no território, ou
no seu uso, permitindo uma leitura por meio da pobreza que se manifesta como fome e/ou fome
oculta, como já observava Josué de Castro em Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951).
Segundo Milton Santos, em A Natureza do Espaço (1994), as cidades são a confluência entre
verticalidades e horizontalidades, ou seja, o espaço banal, onde todos vivem, mesmo que a possibi-
lidade de ação não seja igual para todos. Nesta situação, a comunicação procura abarcar a dinâmica
dos processos que englobam o comércio popular de alimentos no centro de Belo Horizonte.
A alimentação é uma das necessidades básicas humanas, afetando diretamente o seu
cotidiano. Por isso, o objetivo é compreender como se dão a alimentação dos pobres na metró-
pole e a formação de um mercado socialmente necessário ou um circuito inferior da economia
urbana (formas de organização rudimentares, baixa capitalização e densidade tecnológica),
conforme Milton Santos, em O Espaço Dividido (1979), tendo o objetivo de assegurar a alimenta-
ção desta população.
Como metodologia de pesquisa, realizamos um recorte espacial de uma área no centro
de Belo Horizonte, nas proximidades do Terminal Rodoviário, onde se percebe uma alta presença
de trabalhadores e transeuntes, além de linhas de transporte que conectam o centro da urbe à
sua periferia e Região Metropolitana. Observam-se, no centro de Belo Horizonte, processos do
comércio popular de alimentação semelhantes àqueles notados por Lívia C. Antipon, em O circuito
inferior da economia urbana no centro do município de Campinas (2017), como um dinamismo local de
comércios e serviços populares, atividades que concretizam um circuito comercial de alimentação
necessário aos trabalhadores e consumidores pobres que perpassam o centro.
Como fruto de uma pesquisa em curso, encontrou-se nessa área típicos traços do circuito
inferior, como estabelecimentos com preços e publicidades chamativas e com diversas promoções
para o consumidor de baixa renda. Além disso, em horários estratégicos, como o de almoço, o
comércio ambulante se faz presente com a oferta de marmitas (5 a 10 reais), haja vista que essa área
também é composta por um amplo setor de comércios, do qual o trabalhador não pode se fazer
ausente e por isso a atuação dos ambulantes se faz essencial. Por fim, além de apresentar a dinâ-
mica de um mercado socialmente necessário da alimentação, observa-se também uma nova fome
oculta, sustentada pela ingestão de alimentos ultraprocessados/industrializados e com baixo valor
nutricional. Pois, em muitos casos, o alimento ingerido não é resultado do que se deseja consumir
e sim do que se pode comprar.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 107
Palavras-chave: fome oculta; alimentação urbana; alimentação popular; Belo Horizonte; circuito
inferior da economia urbana.
Keywords: hidden hunger; urban food; popular food; Belo Horizonte; urban economy’s lower circuit.

1 Graduando em Geografia na Universidade Federal de Minas Gerais.


2 Professor Doutor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 108
Desperdício alimentar: impactos e simbolismos do consumo globalizado

Food waste: impacts and symbolism of globalized consumption

João Paulo de Oliveira Rigaud 1


Rafael Arcanjo Tavares Filho 2

O consumo de alimentos, ainda que seja um hábito que supostamente deveria atender a
uma necessidade básica comum a todos os seres humanos, é afetado pelo processo de consolidação
do consumismo na sociedade moderna que alterou um princípio fundamental: a definição do que
seriam as necessidades básicas comuns; esta afirmativa pode estar atrelada, em definitivo, ao pro-
cesso de desperdício de alimentos. Por mais básica que possa aparentar ser a necessidade humana
de se alimentar, é imprescindível – para a compreensão da situação hodierna dicotômica entre a
fome e a opulência – localizar a comercialização e o consumo de alimentos dentro dessa teia de sig-
nificados reorganizados pela “fome” socialmente imposta por ideias mercantilistas. A partir de revi-
sões de bibliografias que pautam o desperdício de alimentos, a liquidez do consumo, a cultura ali-
mentar moderna e uma fusão com uma vivência etnográfica feita na Feira de São Joaquim na cidade
de Salvador, o presente estudo nasceu da necessidade de entender por que, apesar de o desperdício
de alimentos se manter como uma realidade crescente e preocupante em todo o mundo, grandes
quantidades de alimentos ainda são descartadas por não se encaixarem nos padrões “estéticos” da
grande maioria da sociedade? Logo, há-se a necessidade de refletir sobre o que pode ser considera-
do “lixo” quando se fala em alimentação e de que forma as ideias de consumo na sociedade moder-
na influenciam o descarte desses alimentos. O consumo parte da intencionalidade dos sujeitos de
“vender-se”, ou seja, de, mediante a avaliação externa positiva, galgar posição social superior. Estes,
suscetíveis a aceitações e rejeições, inserem-se em parâmetros estabelecidos socialmente numa
hierarquia de consumo, na qual quão “melhores” forem os produtos consumidos, melhores sujeito
serão; posicionando os indivíduos como mercadorias antes mesmo de se firmarem como sujeitos.
Tal contexto contribui para que a população jogue no lixo porções de comida adequadas para o con-
sumo, desperdiçadas pela vaidade em valorizar o consumo constante de comidas industrializadas.
Dessa maneira, se desde os primórdios a necessidade básica comum era puramente a satisfação
biológica e nutricional do corpo, com a emergência das ideias consumistas na modernidade, esse
princípio passa a competir com aquele que valoriza o consumo como um mecanismo de promoção
social sob uma lógica da mercantilização da vida e da sobrevalorização do bem individual em detri-
mento do coletivo. Por fim, sob um enfoque crítico da dinâmica global, é possível identificar que o
consumo, em seu auge na era capitalista, nos insere em hábitos forjados que reforçam a estética
do produto e mascaram as desigualdades. Hoje, em todo o mundo se produz muito mais do que se
consome, provocando um alto índice de desperdício de alimentos; o que, em contrapartida, contri-
bui diretamente para que populações inteiras continuem vivendo sob uma ótica de vulnerabilidade
social e insegurança alimentar severa. 

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 109
Palavras-chave: desperdício de alimentos; liquidez do consumo; cultura alimentar; segurança ali-
mentar e nutricional; vulnerabilidade social.
Keywords: food waste; consumption liquidity; food culture; food and nutrition security; social
vulnerability.

1 Gastrônomo, pós-graduando em Antropologia na Faculdade Dom Alberto.

2 Nutricionista, bacharelado Interdisciplinar em Saúde em andamento pela Universidade Federal da Bahia.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 110
Saúde da população negra no Brasil: segurança alimentar e nutricional
e políticas públicas de equidade racial

Black population health in Brazil: food and nutritional security and racial equity public policies

Jussara de Oliveira Romualdo 1


Paulo Fernando de Souza Campos 2

Apesar de a maioria populacional brasileira se declarar preta ou parda, são poucas as pes-
quisas a respeito da saúde da população negra, sobretudo, da segurança alimentar e nutricional.
Os silenciamentos justificam a reflexão proposta, que analisa políticas públicas de saúde e os seus
impactos no âmbito da segurança alimentar de homens e mulheres negros. A partir de documentos
oficiais, com destaque para a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, a pesquisa
revelou que políticas públicas de equidade racial partem da mobilização da população negra, que
participa ativamente das demandas, e buscam alinhá-las com as demais ações em saúde. No entan-
to, a redução das desigualdades étnico-raciais e os cuidados com hábitos alimentares da população
negra brasileira são conquistas recentes, cujo enfrentamento evidencia atenção subalternizada
tanto no âmbito da Gestão Pública, quanto das reflexões acadêmicas, que pouco tratam o tema.
Os desdobramentos do estudo permitem considerar a importância da interdisciplinaridade, pois a
formação humanística, social, em relação ao universo das profissões, com especial atenção para o
campo da Saúde, colabora decisivamente para o entendimento dos problemas e suas existências,
bem como para as ações de seu enfrentamento. Como salientam Liane Maria Bertucci, André Mota
e Lilia Blima Schraiber, organizadores do livro Saúde e Educação: um encontro plural (2017), a instru-
ção da população para transformar maneiras de vida consideradas inadequadas no que se refere à
manutenção da saúde resulta do diálogo entre as disciplinas. Deste modo, o estudo compreende
ser imperiosa a ampliação das bases interdisciplinares na formação de políticas públicas, pois tro-
cas teóricas e metodológicas produzem efeitos de sentido e extrapolam o polo técnico das práticas
sociais sem, contudo, deixar de subsidiá-lo.
Palavras-chave: população negra; políticas públicas; segurança alimentar; interdisciplinaridade.
Keywords: black population; public policies; food security; interdisciplinarity.

1Graduada em Nutrição com Especialização em Gestão Pública pelo Programa Universidade Aberta do Brasil –
Universidade Federal de São Paulo (UAB-Unifesp).
2Doutor em História com Pós-Doutorado EE/USP/Fapesp, bolsista Capes/Orientador no Programa UAB-Unifesp –
Gestão Pública, professor do Mestrado em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 111
Alguns apontamentos sobre a transformação da fome a partir da trajetória
social do programa Fome Zero

Notes on the transformation of the hunger through the analysis of the


social trajectory of the Zero Hunger program

Lis Furlani Blanco 1

Até o ano de 2010 não havia na Constituição Federal Brasileira o direito à alimentação básica.
Esse processo de inclusão do direito à alimentação se deu em conjunto com diversas medidas do
governo brasileiro desde 2003, sendo a principal delas o Programa Fome Zero. Quinze anos após
sua criação, o programa ainda é tema de discussão, apesar de, atualmente, ter sido diluído em
diversas políticas de segurança alimentar, e até mesmo distribuição e geração de renda.
Assim, é objetivo geral desta apresentação trazer alguns apontamentos sobre a transfor-
mação da fome, a partir da trajetória social do programa Fome Zero. Ao recuperar as discussões de
Josué de Castro e José Graziano enquanto intelectuais paradigmáticos na construção da fome no
Brasil, bem como a articulação desses atores em uma escala global e nacional, pretendo discutir
as políticas públicas de combate à fome explorando as inter-relações construídas neste processo.
Como alguns autores clássicos da antropologia já apontavam para a possibilidade de
entender a comida como um objeto diferente para aqueles que passam fome e para aqueles que
tem suas necessidades satisfeitas, a exemplo de Audrey Richards, cabe perguntar como a fome é
coordenada na construção prática de uma política pública que precisa definir, medir e avaliar para
existir e, assim, como diversos saberes tecnopolíticos trabalham nesse processo de coagulação e
transformação da fome.
Dessa forma, a comunicação pretende lançar luz à maneira em que o fenômeno da fome se
transformou ao longo dos anos na “Insegurança Alimentar”, e de que maneira essa transformação
influi diretamente nos processos de feitura do Estado. Para tanto, desenvolvo uma etnografia da
fome realizada nos documentos de criação do programa Fome Zero, mas também busco explorar
as inter-relações construídas neste processo, as diferentes arenas em jogo e os diferentes sujeitos
políticos que se projetavam e consolidavam em tais planos, compreendendo algumas categorias
imbricadas nesta disputa, tais como a noção de direitos, assistência, vulnerabilidade e bem-estar
social em ação/circulação/pauta.
Para tornar evidente essa transformação, apresento aqui uma análise dos aparatos insti-
tucionais criados a partir do Programa Fome Zero e as estruturas institucionais decorrentes desse
processo. Trarei também alguns apontamentos sobre a tecnopolítica da fome e, por fim, buscarei
elucidar as maneiras pelas quais as tecnologias de estado relacionadas à fome e, posteriormente, à
Insegurança Alimentar passam a incidir sobre a vida de uma população, promulgando uma multi-
plicidade de associações que transformam a própria ideia de Estado e governamentalidade.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 112
Palavras-chave: fome; insegurança alimentar; Fome Zero; políticas públicas; Estado.
Keywords: hunger; food insecurity; Zero Hunger; public policies; State.
1 Doutoranda em Antropologia Social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 113
Espaço social alimentar e sociobiodiversidade em uma comunidade
do Vale do Jequitinhonha (MG)

Food social space and socio-biodiversity in a community of


Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais

Luiza Helena Pedra da Silva 1


Fabiane Nepomuceno Costa 2
Nadja Maria Gomes Murta 3

A riqueza de relações entre populações humanas e a biota presente no Vale do Jequitinhonha


confere à região uma elevada sociobiodiversidade. Atualmente, esta encontra-se ameaçada pelas
pressões da economia hegemônica, ocasionando perdas de conhecimentos e de práticas tradicionais
que envolvem tais recursos. Sobretudo as comunidades rurais e tradicionais têm agravo em seus pro-
blemas sociais ao terem impactos em seus conhecimentos e práticas, que se constituem em estratégias
de vivência na região. O uso dos recursos vegetais disponíveis no ambiente é uma dessas estratégias
que contribui para a segurança alimentar, historicamente desenvolvida pelas populações rurais, mas
que se encontram em processo de desuso em decorrência da homogeneização da alimentação. Neste
contexto, a presente pesquisa objetivou investigar o espaço social alimentar – em suas dimensões de
espaço do comestível, do culinário, da diferenciação social, da temporalidade, dos hábitos e consu-
mo, e sistema alimentar – no distrito de São João da Chapada (Diamantina, em Minas Gerais), com
foco no papel das plantas alimentícias espontâneas nesse espaço social alimentar. Sob abordagem
qualitativa e quantitativa foram realizadas entrevistas semiestruturadas, caminhadas etnobotânicas,
demonstrações culinárias e observação participante – como método etnográfico. A análise dos resul-
tados se deu por análise de conteúdo temática e estatística descritiva. O sistema alimentar de São João
da Chapada tem forte vínculo com o território e a autoprodução, sendo gerido pelo trabalho feminino.
O conhecimento sobre plantas espontâneas entre os participantes é superior ao seu uso efetivo, em
função de aspectos como o aumento do consumo de alimentos antes inacessíveis, e às memórias
negativas em relação ao consumo dessas plantas em circunstâncias de escassez. Essa memória afetiva
de negação ocorre, sobretudo, para as espécies consumidas nas refeições principais, enquanto para as
espécies frutíferas, de consumo de caráter complementar, as memórias são positivas, relacionadas à
família e infância. As práticas e os conhecimentos sobre os recursos vegetais não têm sido de interesse
pela juventude local, o que ameaça a continuidade dos saberes tradicionais e ambientais. Dadas as
particularidades observadas na localidade, é necessário que as ações de fomento à segurança alimen-
tar e nutricional considerem a configuração e as dinâmicas do espaço social alimentar em questão.
Palavras-chave: conhecimento tradicional; plantas comestíveis; recursos vegetais alimentares;
São João da Chapada.
Keywords: traditional knowledge; edible plants; green resources; São João da Chapada.

1 Mestre em Saúde, Sociedade e Ambiente pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
2 Doutora em Ciências Biológicas (Botânica) pela Universidade de São Paulo.
3 Doutora em Ciências Sociais: Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 114
“A Civilização da Mandioca”: a alimentação do amazônida ressignificada pela
ciência da nutrição

“The Mandioca Civilization”: Amazonian diet resignified by the science of nutrition

Rômulo de Paula Andrade 1

Desde o século XVIII, a mandioca, seu método de plantação (coivara) e seu papel na dieta
local têm sido criticados por viajantes e cronistas que estiveram pela região amazônica. De forma
geral, era reconhecida sua importância na alimentação dos amazônidas, mas seu uso excessivo
teria como consequência a “monotonia alimentar” da Amazônia. Esta comunicação pretende trazer
reflexões sobre os usos e “abusos” da mandioca em escritos dos séculos XVIII ao XX, problemati-
zando o enquadramento do tubérculo pela nutrição do pós-Segunda Guerra Mundial. A partir da
institucionalização e do desenvolvimento da nutrição nos anos 1940, a mandioca sofreu diversos
estudos e análises, sendo considerada, em alguns casos, um elemento que impediria o desenvolvi-
mento da “civilização” da Amazônia. Além disso, serão expostas ações de organizações nacionais e
internacionais na região que tinham como prioridade a mudança na dieta local, com destaque para
o Serviço de Saúde Pública e a Food and Agriculture Organization of the United Nation (FAO).
Palavras-chave: história da alimentação; história da FAO no Brasil; história da Amazônia.
Keywords: food history; FAO’s history on Brazil; Amazonian history.

1 Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências (COC/Fiocruz).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 115
A efetividade das políticas de segurança alimentar e nutricional a
partir da preservação das tradições alimentares

The effectiveness of food and nutrition security policies


based on the preservation of food traditions

Tamires Lopes dos Santos 1


João Paulo de Oliveira Rigaud 2
Carlos Ernesto de Oliveira Cruz 3

O processo de criação dos sistemas alimentares não se define como algo natural, mas como
resultado das tradições e dos significados atribuídos a tal. Logo, a comida e as significações envolvi-
das no ato de alimentar-se surgem como determinantes culturais de um grupo social, fazendo com
que todo indivíduo carregue consigo os hábitos provenientes da sua cultura alimentar. O que se
come e de que forma se come são significados provenientes de tradições culinárias que apresentam
a distinção entre “alimento”, que é natural e referente a todos os seres humanos, e “comida”, que se
define por meio de marcadores identitários. Tendo vista dos objetivos que compõem o conceito de
segurança alimentar e nutricional, faz-se necessário assegurar que as características socioculturais
e as tradições alimentares dos indivíduos estão sendo consideradas na criação de políticas públicas
que venham a garantir o direito humano à alimentação adequada. Sendo assim, o presente trabalho
teve por objetivo discutir acerca do que seriam tradições alimentares em paralelo com o conceito de
cultura alimentar e sua relação com a segurança alimentar e nutricional. A metodologia utilizada
consistiu em uma revisão bibliográfica, referenciando publicações de autores relevantes sobre os
conceitos discutidos, tendo como intenção buscar referências que pautem a necessidade de preser-
vação das tradições culinárias para a garantia do direito humano à alimentação adequada. Dado a
isso, subentendemos que os hábitos alimentares dos brasileiros fazem parte de um sistema cultural
composto por símbolos, significados e classificações, ao ponto de que todo os alimentos fazem parte
das associações culturais que lhes são atribuídas pela sociedade. Com a imensa extensão territorial
do Brasil, com uma variedade de recursos naturais e povo, a sua diversidade cultural é indiscutível;
desde o início do processo de colonização, a cultura alimentar diversa já era relatada. Os hábitos
alimentares de uma sociedade são fruto de particularidades como capacidade produtiva, facilida-
de de distribuição, conhecimento acerca da produção e do consumo de determinados alimentos,
além do aspecto financeiro para aquisição do alimento. Dentro do constante movimento do mundo
globalizado, encontramos o processo de construção e reconstrução das tradições alimentares, fruto
proveniente das inúmeras modificações nos modelos de produção e consumo. Porém, para que se
tenha efetividade nas políticas de segurança alimentar e nutricional do Brasil, faz-se necessário
preservar as tradições culinárias existentes no sistema alimentar de cada indivíduo, considerando
todos seus significados de consumo. O que resulta na diminuição na incidência de fracassos rela-
tivos às políticas públicas, tendo em vista que as verdadeiras necessidades do grupo social serão

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 116
consideradas. Contribuindo diretamente com o equilíbrio do sistema alimentar brasileiro, servindo
de alicerce para que, por fim, a soberania alimentar do país seja instaurada com criteriosidade.
Palavras-chave: tradições alimentares; segurança alimentar e nutricional; diversidade cultural;
marcadores identitários; direito humano à alimentação adequada.
Keywords: food traditions; food and nutrition security; cultural diversity; identity markers; human
rights to adequate food.

1 Mestranda da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal da Bahia.


2 Pós-graduando em Antropologia na Faculdade Dom Alberto.
3 Nutricionista pela União Metropolitana de Educação e Cultura.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 117
O alimento ingerido e comercializado: dieta e hábitos alimentares dos
escravizados no Rio de Janeiro oitocentista (1800-1831)

Eaten and traded food: diet and eating habits of the enslaved in the 19th century
Rio de Janeiro (1800-1831)

Tâmisa Marques Caduda 1

A presente comunicação busca analisar a dieta e os hábitos alimentares dos indivíduos


pretos – cativos, livres e libertos – no Rio de Janeiro no início do século XIX, focalizando a cons-
trução dos hábitos alimentares e as dietas alimentares da população escrava e afrodescendente a
partir do prisma analítico e cotidiano citadino. Com o intuito de analisar a base da dieta alimentar
e seus impactos na vida desses indivíduos durante escravidão urbana carioca, pretende-se desvelar
o cotidiano alimentar dessas populações negras no meio urbano carioca, a partir da investiga-
ção historiográfica sobre escravidão no Rio de Janeiro, junto à interpretação de fontes primárias
como relatos dos viajantes acerca do cotidiano do império, os conjuntos documentais da Junta do
Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegações, localizados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro,
consulta de teses médicas que retratam algumas enfermidade que acometiam os escravizados. Em
paralelo a isso, uma análise sobre os insumos produzidos, comercializados e consumidos na cidade
e os respectivos processos de abastecimento alimentar dos centros urbanos a partir da dinâmica de
fornecimento de insumos alimentares do recôncavo fluminense. A hipótese proposta nesse proje-
to é que as opções alimentares disponíveis no ambiente urbano carioca e o cenário de carência de
alguns tipos de alimentos junto ao quadro de desnutrição são postos-chaves para a compreensão
dessa sociedade negra oitocentista, pois a partir da análise da dieta e de hábitos alimentares das
populações escravizadas compreendem-se os impactos diretos nas relações sociais, econômicas,
culturais e nutricionais.
Palavras-chaves: escravidão; Rio de Janeiro; alimentação; dieta alimentar.
Keywords: slavery; Rio de Janeiro; food; diet.

1 Graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 118
Refletindo sobre lobbies alimentares e outras ações corporativas:
uma questão de saúde pública

Thinking on food lobbies and other corporate activities:


a public health issue

Thamillys Rodrigues Souza 1


Camila Maranha Paes de Carvalho 2

Foi identificada na última década uma mudança no padrão de consumo alimentar da popu-
lação brasileira, com substituição de alimentos menos processados pelos ultraprocessados, que
contêm alta densidade energética, perfil nutricional desfavorável e que estão associados a com-
portamentos alimentares nocivos à saúde. Essa nova forma de classificação, proposta por Carlos
Monteiro e colaboradores em 2010, se baseia no grau e propósito de processamento dos alimentos
e foi pela primeira vez utilizada em uma política pública no Guia Alimentar para a População Brasileira
de 2014. Nasce, assim, forte crítica à grande indústria de alimentos ultraprocessados, com o setor
produtivo se posicionando, desde o momento de formulação do Guia, contrário a esta classificação.
Convergente com este movimento científico-político, diversos autores defendem que, por meio de
mecanismos regulatórios, o Estado precisaria lidar com essas corporações, tanto por sua atuação
em escala global, quanto por sua capacidade de interferir nos ambientes alimentares – cada vez
mais obesogênicos – e, assim, ferir o direito à alimentação adequada e saudável em seu sentido
mais amplo. Uma noção promissora a ser utilizada no enfrentamento dessas questões parece ser
a dos regimes alimentares, que vêm caminhando em estreita relação com a trajetória da noção de
segurança alimentar e nutricional. Desenvolvida por Harriet Friedman e Philip McMichael, essa
abordagem visa estabelecer os elos entre a produção e o consumo alimentar e as formas de acu-
mulação próprias aos diferentes períodos do capitalismo desde o fim do século XIX. Nesse sen-
tido, Renato Maluf e Márcio Reis apontam que o segundo regime alimentar deixou como herança
um maior distanciamento entre a regulação das atividades em nível nacional e a organização
econômica transnacional. Assim, é necessário que novas regras e instituições características de um
novo regime alimentar sejam construídas no contexto atual. O presente estudo visa, então, iden-
tificar e classificar as ações corporativas da indústria de alimentos frente ao Guia Alimentar para a
População Brasileira de acordo com Amy Hillman e Michael Hitt, tendo como possíveis resultados
a caracterização das ações corporativas das indústrias alimentícias em relação ao Guia e a identi-
ficação de potenciais estratégias contrárias a estas, que visem garantir a manutenção da cultura
alimentar do país, respeitando suas características regionais, frente à massificação imposta pelas
dietas baseadas em alimentos ultraprocessados. Como potencial contribuição teórica, tal como
apontado por Elaine de Azevedo, embora altamente relevante, o tema dos lobbies alimentares e
seus impactos à saúde coletiva ainda é pouco pesquisado no Brasil. Assim, torna-se importante
um maior aprofundamento do tema, bem como dos movimentos contrários e de resistência a essa
atuação.
Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 119
Palavras-chave: ação corporativa; lobbies alimentares; políticas de alimentação e nutrição; indús-
tria de alimentos.
Keywords: corporate activities; food lobbies; food and nutrition policies; food industry.

1 Bacharel em Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco, graduanda em Nutrição na Universidade Federal


Fluminense, bolsista PIBIC/CNPq.
2 Doutora em Saúde Coletiva na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 120
Entraves estruturais à segurança alimentar e nutricional a partir da oferta de
alimentos no Brasil

Structural barriers to food and nutrition security from food supply in Brazil

Thomás Herr Zaterka 1

No debate contemporâneo, a temática da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) procura


agregar as distintas dimensões do problema social da má alimentação e suas complexas relações
com o sistema econômico e com as instituições públicas e privadas. Trata-se de um conceito interdis-
ciplinar em construção, um conceito normativo em disputa política e um conceito que se transforma
junto do processo de complexificação das expressões epidemiológicas da má nutrição nas socieda-
des modernas. Uma possível abordagem interpretativa dos determinantes das condições nutricio-
nais de uma população toma como ponto de partida os sistemas de instituições que conformam a
estrutura econômica associada à oferta, como à produção e à distribuição, e associada à demanda,
como à acessibilidade econômica e à capacidade de uso pelas comunidades ou indivíduos. Para as
famílias, a estrutura de oferta deveria garantir alimentos em quantidade suficiente, diversificados
e de boa qualidade nutricional e livres de contaminações, além de assegurar uma disponibilidade
regular, tanto no curto como no longo prazo.
No Brasil, as políticas públicas pela SAN convergiram até 2014 para os problemas diagnos-
ticados na esfera da demanda, principalmente para a garantia da acessibilidade econômica das
famílias. Partia-se do correto diagnóstico de que a questão alimentar no país era primeiramente
um problema de baixa renda, embasado nas estatísticas sobre a desigualdade e a pobreza no país e
também nas cifras de produção agrícola que cresciam aceleradamente. Decorre, todavia, que ainda
podem ser identificados graves entraves estruturais à boa qualidade do alimento, à regularidade da
oferta e mesmo às quantidades efetivamente comercializadas no elo final da cadeia. No presente
contexto de fragilização das instituições comprometidas com a dignidade alimentar no país, enten-
de-se ser importante esclarecer a essencialidade das ações do Poder Público para a SAN também na
esfera da oferta doméstica.
A comunicação parte, assim, da seguinte questão norteadora: persistem problemas estru-
turais de oferta doméstica para garantir o direito à alimentação adequada no Brasil? Para respon-
dê-la, o estudo se subdivide em cinco panoramas quali-quantitativos, que abarcam diferentes elos
do sistema de oferta: 1. O modelo de produção agropecuária; 2. O sistema de transportes de carga;
3. O sistema de abastecimento urbano; 4. A atividade da indústria processadora; e 5. A acessibi-
lidade física da família rural e a produção de autoconsumo. Para cada segmento são elencados
limitantes estruturais às seguintes categorias da oferta adequada de alimentos: a) Quantidade
disponibilizada; b) Qualidade, no que tange o aspecto nutricional e a inocuidade; e c) Regularidade
e sustentabilidade da oferta. Objetiva-se esclarecer a complexidade da questão alimentar no país,
indicando a necessidade de um projeto de desenvolvimento que traga mudanças estruturais para
a oferta adequada de alimentos.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 121
Palavras-chave: segurança alimentar e nutricional; desenvolvimento econômico;
sistemas agroalimentares.
Keywords: food and nutrition security; economic development; agri-food systems.

1 Mestrando em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 122
Agricultura urbana e Segurança Alimentar e Nutricional:
conceitos, contextos e possíveis intersecções

Urban agriculture and food and nutrition security:


concepts, contexts, and possible intersections

Vanessa Daufenback 1
Letícia Machado 2
Claudia Maria Bógus 3

Nas últimas décadas, instituições como a FAO [Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura] vêm justificando a prática da agricultura urbana (AU) como uma ati-
vidade fundamental para superação da fome e da miséria. No Brasil foi elaborado um Panorama
sobre Agricultura Urbana e Periurbana, no qual a prática é vinculada com obtenção da Segurança
Alimentar e Nutricional (SAN).
O estudo possui natureza de revisão sistemática, no qual foi utilizada a base de dados Scielo,
devido à sua maior abrangência e interdisciplinaridade de publicações e temas. Optou-se por fazer
uma busca por artigos latino-americanos, pensando no pioneirismo de Cuba nas ações de AU.
Primeiramente, foi feita uma busca utilizando a palavra-chave “agricultura urbana”, através da qual
foram encontrados 156 artigos. No segundo momento, foi realizada outra seleção pensando nos
títulos e nas palavras-chaves disponíveis nos documentos, chegando ao final de 32 artigos. Após o
descarte de artigos que não eram latino-americanos, chegou-se a 26 artigos que faziam correlação,
mesmo que primária entre AU e SAN.
Apenas 5 trabalhos fazem uma relação direta entre SAN e AU, sendo que os demais artigos
apenas exploraram alguma dimensão presente neste conceito. De forma geral, os trabalhos mos-
traram que existe uma multiplicidade nas experiências de AU nos países latino-americanos, com
destaque para o debate da sustentabilidade. Notou-se que ainda não existe uma definição concreta
ao redor do que seja AU; a maioria dos estudos traz definições amplas que vão da produção de ali-
mentos à questão ambiental. Poucos estudos levantam a problemática do agricultor urbano e da
escala de produção enquanto elemento central à promoção da Segurança Alimentar e Nutricional,
apesar de promover o princípio da Soberania Alimentar e Nutricional (troca de sementes, preser-
vação de tradições de plantio). Apesar de representar uma atividade com valor simbólico-afetiva,
de formação de laços comunitários e promoção de saúde, a maioria dos estudos aponta algumas
problemáticas importantes: contaminação do cultivo por metais pesados, dificuldades para atingir
sustentabilidade ambiental, social e econômica, principalmente para agricultores, que acabam por
trabalhar em outros setores; ausência de assistência técnica permanente e de inclusão social dos
agricultores, em sua maioria migrantes vulneráveis de regiões rurais, residindo em áreas de grande
vulnerabilidade. Essa amplitude pode explicar a não formalização de um conceito para agricultura
urbana, que é entendido como um conceito aberto que pode trazer vários significados. Conclui-se

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 123
que poucos estudos analisam a vinculação entre AU e SAN, mesmo no Brasil, onde o direito huma-
no à alimentação adequada é um direito constitucional. Em geral, a agricultura urbana é vinculada
à sustentabilidade ambiental, na criação de cidades mais verdes melhorando a qualidade de vida
de seus habitantes.
Palavras-chave: agricultura urbana; segurança alimentar e nutricional; soberania alimentar e nutri-
cional; direito humano à alimentação adequada.
Keywords: urban agriculture; food and nutrition security; food and nutritional sovereignty; human
right to adequate food.

1 Doutoranda em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.


2 Mestranda em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.
3 Professora associada pelo Departamento de Política, Gestão e Saúde da Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 124
Esboço de uma Análise Econômica do Direito à Alimentação Adequada

Outline of an Economic Analysis of the Right to Adequate Food

Vanessa Santos do Canto 1

Este trabalho apresenta um esboço de Análise Econômica do Direito centrada na Política


Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) elaborada no ano de 2009. Destaca dois
principais aspectos, quais sejam: o custo para garantir o direito à alimentação e a atualidade da dis-
cussão acerca do papel representado pelo direito à diferença na Teoria do Estado Contemporânea
desde a perspectiva da filosofia analítica e dos estudos culturais. Ressalta, notadamente a relação
existente entre multiculturalismo e Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), mas tam-
bém alguns aspectos relativos ao gênero e às formas de preparar os alimentos e sua relação com
a Análise Econômica do Direito (AED).
Neste sentido, destacamos que, nos muros da Avenida Brasil situada na cidade do Rio de
Janeiro, existem algumas pichações que descrevem: “Amarrações do amor”. “Médium das causas
impossíveis”. Qual seria a relação dessas frases com o direito à alimentação adequada? Quais as
possibilidades de ser garantida a alimentação adequada no atual contexto societário brasileiro?
A indagação se deve ao fato de que o Estado brasileiro tem passado por importantes discussões
acerca da reforma trabalhista que está impactando toda a base normativa do Direito do Trabalho
e, de maneira mediata, a base do Direito Financeiro e Tributário, essenciais à intervenção do
Estado na área econômica.
Isto significa que, em um contexto no qual a crise do Estado Social também tem passado
por importantes mudanças, consideramos relevante discutir os alcances e limites de um dos direitos
fundamentais mais essenciais, recentemente incluído no rol dos direitos sociais no texto constitu-
cional da República Federativa do Brasil, qual seja, o direito à alimentação, através da EC nº. 64/2010.
Nesse sentido, discutiremos e desenvolveremos alguns aspectos acerca da Política Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) elaborada no ano de 2009, desde a perspectiva da
Análise Econômica do Direito. Destacaremos dois principais aspectos, quais sejam: o custo para
garantir o direito à alimentação e a atualidade da discussão acerca do papel representado pelo
direito à diferença na Teoria do Estado Contemporânea desde a perspectiva da filosofia analítica e
dos estudos culturais, notadamente a relação existente entre multiculturalismo e Direito Humano
à Alimentação Adequada (DHAA).
Neste sentido, no contexto do multiculturalismo, comer é igual a “rezar e amar”? Não ape-
nas, mas cada vez mais. É também definição de padrão de estética, de racialidade e de exercício da
sexualidade, conforme afirma Stuart Hall no texto “A questão multicultural”. É “justamente” por
isso que a discussão acerca do direito à alimentação adequada não pode ser menosprezada.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 125
Palavras-chave: Análise Econômica do Direito; Direito à Alimentação Adequada; PNSAN.
Keywords: Economy Analysis of Law; Right to Adequate Food; PNSAN.

1 Doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional do Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 126
Grupo de trabalho 2

MODELOS REGULATÓRIOS

Work group 2

REGULATORY MODELS

Coordenadores/Coordinators:

Henrique Soares Carneiro

Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), professor de História Moderna do

Departamento de História da USP, fundador e coordenador do Laboratório de Estudos

Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP)

Lucas Endrigo Brunozi Avelar

Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo, professor efetivo da

Universidade Estadual de Roraima, pesquisador do Laboratório de

Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP)

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 127
A Lei Seca e a ascensão do controle biopolítico estadunidense

Prohibition and the rise of US biopolitical control

Caio César Alves da Costa 1

A pulsão pela alteração da consciência alcançada por meio do uso das mais diversas subs-
tâncias, incluindo o álcool, acompanha a humanidade desde seus tempos primordiais e exerceu – e
ainda exerce – um papel central na formação do tecido social e na construção da cultura humana.
Anteriormente, a economia desses usos era regida por valores religiosos e morais. No entanto, a
partir da modernidade, temos como fruto da articulação e expansão do aparato estatal um aumen-
to do controle biopolítico sobre os cidadãos.
A regulação de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos ascendeu apoiada em movimentos
religiosos de temperança dinamizados pelo crescimento de uma classe média que tinha como pre-
ceito a autodisciplina visando à ascensão social; o movimento feminista, que fazia parte do movi-
mento progressista da época; e o interesse de grandes empresários, como John Rockefeller e Henry
Ford, os quais doaram milhões às organizações proibicionistas e eugenistas em busca de uma mão
de obra mais eficiente e um maior controle da vida privada de seus empregados.
É sobre essa temática que me debruço em minha pesquisa de iniciação científica com a finali-
dade de melhor compreender o contexto social e político que propiciou o surgimento de uma medida
regulatória radical como o Vosltead Act, analisar a importância e centralidade do álcool na cultura das
minorias sociais como imigrantes e afro-americanos e suas divergências com os valores protestantes,
explicitar o aumento do poder policial do governo – tanto federal quanto estadual –, além de rastrear
as possíveis continuidades das mudanças ocorridas durante a proibição na sociedade estadunidense.
A metodologia utilizada para alcançar esses objetivos é uma revisão bibliográfica utilizando
uma vasta gama de títulos sobre o tema – sendo sua grande maioria no idioma inglês –, tendo como
obra basilar o livro The War On Alcohol: Prohibition And The Rise of The American State, de Lisa McGirr
(2016). Com isso, pretendo realizar um mapeamento da historiografia já publicada sobre o tema,
além de disponibilizar uma produção científica para os leitores de língua portuguesa, abrindo espa-
ço para novos desdobramentos na área em questão.
Palavras-chave: proibicionismo; Lei Seca; Estados Unidos; Volstead Act.
Keywords: prohibitionism; Prohibition; United States; Volstead Act.

1 Graduando em História pela Universidade de São Paulo, aluno de Iniciação Científica.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 128
Avaliação do consumo de bebida alcoólica na dieta habitual de pessoas que vivem
com HIV/AIDS em unidade de referência da cidade Rio de Janeiro

Evaluation of alcohol consumption in the usual diet of people with HIV/Aids in a reference
unit of the city of Rio de Janeiro

Camila Bezerra Gomes de Lima 1


Paulo Roberto Borges de Souza Júnior 2

Segundo o Ministério da Saúde, no Brasil, de 1980 a junho de 2018, foram identificados


926.742 casos de AIDS. Nos últimos cinco anos o país tem registrado, anualmente, uma média de 40
mil novos casos de AIDS. A introdução da terapia antirretroviral (TARV) para o tratamento de pes-
-soas com HIV/AIDS ocasionou redução da morbidade e aumento da sobrevida dos casos de AIDS,
bem como melhora da qualidade de vida em pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA). Em contra-
partida, entre as PVHAs houve um aumento do consumo de substâncias que causam dependência e
repercutem na vida social, econômica e psicológica dessa população. O uso de álcool por PVHA está
relacionado a um pior prognóstico, com aumento da incidência de comorbidades, como a coexis-
tência de doenças hepáticas e anemia.
Objetivos: Avaliar consumo de bebida alcoólica (cerveja) e relação com perfil sociodemo-
gráfico de PVHA.
Metodologia: Estudo de corte transversal, com amostra de 69 indivíduos assistidos em um
hospital de referência para o tratamento de HIV/AIDS na cidade do Rio de Janeiro, utilizando-se
de Questionário de Frequência de Consumo Alimentar (QFCA) para levantamento de informações
sobre a dieta habitual.
Resultados: Acerca do consumo de bebidas alcoólicas e suas possíveis correlações, obser-
vou-se a participação da cerveja com um consumo semanal representativo em meio aos indivíduos
do sexo masculino (34,1%), com primeiro grau incompleto (40%), renda familiar estimada entre 1 e
3 salários mínimos (30%) e moradores da Zona Norte (33,3%) do município do Rio de Janeiro. O per-
fil sociodemográfico de indivíduos que fazem consumo diário de cerveja mostra que a escolaridade
exerce influência sobre as decisões de consumo desses indivíduos, uma vez que os que possuíam
mais anos de estudo abdicavam, em sua maioria, desse hábito, onde é possível inferir que há um
maior grau de apropriação do conhecimento acerca dos efeitos adversos gerados pelo consumo de
álcool durante o tratamento com a terapia antirretroviral.
Conclusão: Diante de tais resultados, fica clara a necessidade da criação de um espaço de
diálogo em que se destaque a Educação Alimentar e Nutricional (EAN), a fim de que esses indivíduos
sejam aconselhados a cerca das adversidades do uso contínuo de bebidas alcoólicas e o que estas
acarretam ao tratamento do HIV/AIDS, trazendo-os assim, ao papel de protagonistas do cuidado
com a própria saúde.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 129
Palavras-chave: HIV; dieta habitual; cerveja; QFCA.
Keywords: HIV; usual diet; beer; QFCA.

1 Mestranda em Informação e Comunicação em Saúde no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnoló-


gica em Saúde da Fiocruz (PPGICS/ICICT/Fiocruz).
2 Pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnoló-
gica em Saúde da Fiocruz (LIS/Fiocruz).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 130
Entre proibição e regulamentação: a via canadense perante a cruzada antialcoolista

Between prohibition and regulation: the Canadian way to the anti-alcohol crusade

Guilherme Rodrigues Soares 1

O álcool foi um importante elemento dentro da sociedade colonial que viria formar o Cana-
dá desde seus primórdios – seja como valoroso produto dentro da dinâmica do comércio de peles
com os nativos, seja como fonte segura para hidratação – e se fez fortemente presente no Cana-
dá em sua era pré-industrial como um todo, tanto em momentos de lazer como até mesmo nos
ambientes de trabalho, podendo ser consumido sem maiores problemas.
No século XIX, entretanto, em conjunto com a ascensão industrial, essa substância vê cres-
cerem exponencialmente questionamentos acerca de seu uso na Europa e na América do Norte por
conta de um possível uso problemático, abuso por parcela da população que trazia consigo pro-
blemas de ordem pública – como a segurança – bem como de ordem privada – como o bem-estar
das famílias –, onde religião e ciência moveram os movimentos e as sociedades pela temperança
emergentes nesse período, sendo o cunho religioso predominante dos espaços norte-americano e
canadense. O historiador canadense Desmond Morton considerou a luta antialcoólica como a maior
cruzada do século XIX no Canadá.
Num primeiro momento, nas primeiras décadas do século XIX, mostrou-se um movimento
que visava à moderação, à temperança de fato, condenando os destilados e considerando os fer-
mentados higiênicos, aptos a serem consumidos em moderação; a ideia era, por via educacional
e informacional, resolver o problema pela autoindulgência individual. Na década de 1830, porém,
começam a emergir grupos denominados teetotallers que visavam à abstinência total acerca do
consumo alcoólico; com o crescimento desses grupos, começaram a surgir demandas legais para
combater o consumo alcoólico no país, dando origem a medidas como o Scott Act de 1878, o qual
permitiu aos municípios decidirem sobre a proibição alcoólica em seus territórios.
Essa grande disputa ideológica acerca do consumo alcoólico leva, em 1898, à realização de
um plebiscito nacional sobre proibir ou não a venda e consumo alcoólico; a não implementação da
proibição em nível nacional por ele devido à forte oposição franco-católica é um ponto de virada
importante para os movimentos pela temperança, que voltarão suas forças às esferas provinciais a
partir de então, conseguindo sucessivas vitórias pró-proibição nas duas primeiras décadas do século
XX. O Québec, que seria a última província a implementar a proibição, adota via plebiscito realizado
em 1919 um modelo regulatório de estatização da distribuição e venda de bebidas alcoólicas que
serviu de modelo para outras províncias que viriam a adotá-lo nas décadas seguintes.
A presente pesquisa estrutura-se sobre análise crítica de historiografia em língua inglesa
e francesa – sendo Booze: a distilled history (2003) do historiador canadense Craig Heron obra central
nessa análise – amparando-se na teoria do deslocamento do psicólogo canadense Bruce Alexander e
busca trazer uma contribuição em uma temática pouco trabalhada no cenário historiográfico nacional.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 131
Palavras-chave: antialcoolismo; história das drogas; Canadá; América do Norte.
Keywords: anti-alcoholism; drugs history; Canada; North America.

1 Graduando em História na Universidade de São Paulo, bolsista de Iniciação Científica FFLCH-USP.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 132
Comida, álcool e outras drogas: a boca como local de exercício de poder

Food, alcohol, and other drugs: the mouth as a place of power acting

Leticia de Almeida Sant’anna 1


Cristiane Marques Seixas 2
Francisco Romão Ferreira 3

Na história da Humanidade, o uso de substâncias se faz presente desde épocas longínquas,


podendo ser considerada como uma categoria polissêmica e que por muitas vezes se apresenta de
maneira ambígua. A comida, como as drogas, ganha novos sentidos e significações, e não por acaso
alguns autores defendem que vivemos numa “cultura das drogas” da qual não podemos excluir o
fumo, as bebidas alcoólicas e as drogas ditas medicinais. A Idade Média foi um período de reafirma-
ção ideológica e cultural por parte da Igreja cristã, acusava práticas contrárias a estes ideais, inclusi-
ve no que diz respeito aos usos terapêuticos e recreativos de substâncias, também vivenciou intensa
crise, e via nas drogas uma tentativa de se proteger da dolorosa agressão dos seus sonhos, por meio
de uma “farmacologia mágica”, que protegesse a sociedade do sofrimento decorrente da crueldade
da vida ou lhes desse forças para responder às exigências laborais do capitalismo crescente, perde
lugar para um modelo repressor que localiza nas drogas uma modalidade de transgressão social.
No século XVII, com o declínio das especiarias e as mudanças sociais oriundas do capitalismo, houve
a ascensão de um grupo de alimentos, num primeiro momento considerados “de luxo”: o café, o
chá, o chocolate, o açúcar, o tabaco e as bebidas alcoólicas, todos vindos de fora da Europa, e essas
mudanças levaram mais tarde a uma expansão social do consumo de açúcar, intensificando seu
uso como adoçante, conservante e confeito, retirando-o do lugar de substância “custosa, exótica e
estrangeira”, colocando-a em usos cotidianos, consumidos pelas classes mais pobres. É nesse con-
texto que o álcool, o tabaco, as drogas e a comida vêm a ser “armas” formidáveis de atuação do Esta-
do, que encontra formas sutis de guerrear por meio de um investimento na regulação dos impulsos
orais, com objetivos biopolíticos. Nessa guerra sem armas, o Estado atua através do controle (ou da
vontade de controle) do corpo e do domínio sobre a vida, que extrapolam o discurso dos elevados
custos para os sistemas de saúde causados pelo alto índice de adoecimento da população através
de substâncias lançadas boca adentro, tendo o que Corinne Maier, em Politique de la Bouche (2011),
denomina de “política interna da boca” – controle por meio da alimentação da população, onde ter
uma população forte e saudável tornava-se capital nas competições internacionais. Michel Foucault
em Microfísica do Poder (1989) nos permite interrogar o caráter normatizador, disciplinar e de con-
trole que estão além das proibições e regulamentações; e Sigmund Freud em Tres ensayos de teoría
sexual (1905-2006) para compreender o desenvolvimento do corpo psíquico, através do desenvolvi-
mento psicossexual e entender as relações que envolvem a comida e de outras substâncias tendo a
boca e seus prazeres como horizontes de incidência de controle, fazendo emergir questões do espa-
ço simbólico que as drogas (i)lícitas e a comida ocupam na vida de cada um.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 133
Palavras-chave: alimentação; comida; drogas.
Keywords: alimentation; food; drugs.

1 Doutoranda em Alimentação, Nutrição e Saúde na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


2 Professora adjunta do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
3 Professor adjunto do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 134
O elogio à cachaça: o discurso médico-naval sobre os benefícios
do consumo de aguardente a bordo dos navios da Marinha Brasileira no século XIX

Praising cachaça: the naval-medical discourse on the benefits


of alcohol consumption aboard Brazilian Navy ships in the 19th century

Luana Costa Pierre de Messias 1


Sergio Willian de Castro Oliveira Filho 2

Na segunda metade do século XIX alguns médicos do Corpo de Saúde da Armada brasi-
leira redigiram relatórios a respeito das viagens que haviam participado em navios da Marinha
do Brasil. Além de apresentar a descrição dos aspectos nosológicos das tripulações durante as via-
gens, os cirurgiões da Armada – nome pelo qual os médicos a serviço da Marinha eram chama-
dos – expunham suas convicções médicas a respeito do modo ideal de manutenção da saúde dos
militares diante das variadas adversidades impostas aos homens do mar quando em viagem. Tal
atuação punha em destaque a importância e legitimava o saber médico na instituição, tornan-
do os cirurgiões da Armada mais que sujeitos que se devotavam à cura, pois também possuiriam
em seu repertório o controle dos corpos do pessoal da Marinha com vias à maximização de seu
desempenho a bordo. Dentre os diversos aspectos tratados em tais relatórios-médicos a respeito
de práticas e comportamentos que possibilitariam saúde física e moral aos tripulantes, estava o
consumo de bebidas alcoólicas por parte dos marinheiros, em especial a aguardente. Advogava-se
que o moderado consumo da cachaça pelos homens do mar ante o trabalho exaustivo a que esta-
vam expostos seria salutar, na medida em que sua composição era estimulante e reanimadora,
além de necessária para o organismo em climas mais frios. Não obstante, tal elogio à cachaça não
se tratava de uma ode ao prazer ou à sociabilidade que tal prática poderia proporcionar, mas sim
um discurso que dava ao médico do navio o controle a respeito de tal consumo, o qual prescreveria
a quantidade e o momento em que a “bebida espirituosa” deveria ser usada, de modo a ser útil à
manutenção de corpos sãos, potencializando os benefícios à saúde humana. Tendo por mote teó-
rico as abordagens da normatização dos corpos dos indivíduos e da ascensão do saber médico em
Michel Foucault, tal comunicação discutirá o enfoque dado por cirurgiões da Armada brasileira ao
consumo da aguardente pelos militares da Marinha no século XIX, especificamente nos relatórios
das viagens: às nações banhadas pelo Oceano Pacífico, na Corveta Vital de Oliveira em 1876 pelos
médicos Luiz Agapito da Veiga e Guilherme de Paiva Magalhães Calvet; de circum-navegação, na
Corveta Vital de Oliveira entre 1879 e 1881 pelo médico Galdino Cícero de Magalhães; e às nações
banhadas pelo Oceano Atlântico, no Cruzador Almirante Barroso em 1886 pelo médico Prudêncio
Augusto Suzano Brandão.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 135
Palavras-chave: aguardente; Marinha; medicina; século XIX.
Keywords: alcohol; Navy; medicine; 19th century.

1 Mestre em Gestão de Alimentos e Bebidas pela Universidade Anhembi Morumbi, bacharel em Gastronomia pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, professora do Instituto Federal Fluminense (IFF-Cabo Frio) e da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (UFRJ).
2 Doutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador do Departamento de
História da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 136
Aspectos da cultura de consumo de álcool dos grupos escravizados

Aspects of the alcohol consumption culture of enslaved groups

Lucas Endrigo Brunozi Avelar 1

No século XVIII a ideologia religiosa associava a ingestão de álcool pelos escravizados com a
fonte dos pecados e no século XIX com a origem de males morais. Exemplo desta ideologia aparece
quando, ao descrever as senzalas que observou, o viajante Ribeyrolles refere-se a elas como sendo
“antros, onde reinam às vezes as distrações e prazeres bestiais da embriaguez, em que jamais se
fala do passado, porque é a dor, nem do futuro porque está cerrado”. A senzala então seria o espaço
dominado pelo prazer bestial da embriaguez escrava, por sua vez, momento de negação completa
(“jamais”) do trabalho de memória marcado pelo sofrimento e negação completa do planejamento
do porvir. Ademais, o consumo de álcool parecia apenas acontecer em excesso, como se não houves-
se uso regulado e socialmente aceito entre os grupos escravizados.
Estudando a “macumba paulista”, Roger Bastide encontra relato de que naquele ritual
faziam “‘um feitiço’ diante da imagem de Cristo, ao pé do qual puseram pinga e mandioca”. Câmara
Cascudo informa que a aguardente penetrou o cerimonial religioso e se integrou ao “patrimônio
oblacional africano”. Uma série de outras referências dão notícia da presença do álcool destilado
presente nas experiências religiosas dos grupos escravizados. Nas festividades do cachambu e do
jongo, por exemplo, a pinga é usada para molhar o couro dos tambores e afiná-los na fogueira, não
apenas para ingestão. Por sua vez, ao estudar a vida cotidiana dos escravizados no Rio de Janeiro
do século XIX, Mary Karash acrescentou outras razões do lugar da cachaça entre os africanos e seus
descendentes: baixo preço, gênero básico da dieta, complemento alimentar (carência de alimentos
nutritivos), socialmente aceitável entre os próprios escravizados e provoca embriaguez.
Tomando como horizonte conceitual as noções de gramática profunda (Mintz e Price) e
memória subterrânea (Michael Pollak), pretendo nesta apresentação expor os resultados parciais
do significado do consumo do álcool destilado durante a escravidão brasileira do período imperial,
com destaque para a dimensão religiosa e embriagante da ingestão alcoólica. A proposta é fazer
a crítica desta ideologia racista da embriaguez escrava identificando traços de uma cultura etílica
afro-orientada, forjada no Sudeste escravista e que ainda guarda reminiscências nas práticas con-
temporâneas. Deste modo pretendemos investigar em que medida esta cultura de consumo alcoó-
lico foi elemento de resistência ao cativeiro.
Palavras-chave: drogas; memória; escravidão; resistência.
Keywords: drugs; memory; slavery; resistance.

1 Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo, professor efetivo da Universidade Estadual de Roraima,
pesquisador do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 137
“A toxicomania que tanto trabalho dá ao médico e ao jurista”:
o discurso moral sobre o uso de entorpecentes nos livros de medicina legal (1932-1964)

“Drug addiction that gives so much work to the doctor and the jurist”:
the moral discourse on the use of narcotics in the forensic medicine books (1932-1964)

Luíza Lima Dias 1

Este trabalho parte de um pré-projeto de mestrado, aprovado para o ano de 2020, que
propõe estudar os discursos de médicos-legistas em meados do século XX acerca das substâncias
denominadas “tóxicas”, especificamente aquelas consideradas causadoras do problema da chama-
da “toxicomania”. O que norteia a questão central desta proposta é a percepção de que há um uso
da retórica da moralidade sobre os “tóxicos” e “toxicômanos”. Interessa-nos entender os argumentos
mobilizados para definir tais conceitos e de que maneiras as leis proibicionistas sobre drogas no
país afetaram e foram afetadas pelo discurso médico-científico do período. Assim, atentamo-nos
às relações sociais e de poder que estão imbricadas no saber científico, não obstante a suposição de
que a ciência seria um local neutro de produção. 
O termo “toxicomania” adquiriu diferentes significados e conotações ao longo do tempo,
mas, de maneira geral, designa o hábito de uso de tóxicos em níveis elevados, associado ao vício.
Há uma grande diversidade de matérias que poderiam ser enquadradas na categoria “tóxico”, mas
o objeto desta proposta são exclusivamente aquelas substâncias associadas às “toxicomanias”. Até
o momento, nos livros de medicina legal aos quais já tivemos acesso, não encontramos nenhuma
menção à palavra “droga”, denominação muito comum para se designar as substâncias psicoativas
nos dias atuais. Assim, referindo-nos ao período que pretendemos analisar, optamos pelo uso da
palavra “tóxico”, por ser este o termo que majoritariamente aparece nas fontes consultadas, sendo
por vezes substituído pelas palavras “narcótico” e “entorpecente”. Acreditamos que seja pertinen-
te, portanto, problematizar o conceito de “droga”, uma vez que diferentes denominações têm sido
utilizadas ao longo da história para se referir a um conjunto de substâncias muito variadas entre si,
tanto na sua composição química quanto nos usos e aplicações práticas.
Para realizar essa discussão, analisaremos livros de medicina legal – à luz de decretos
oficiais – publicados entre 1932 e 1964, quando foram delineadas algumas das principais leis
brasileiras que serviram de base para decretos futuros sobre entorpecentes. Não pretendemos
reforçar uma visão maniqueísta acerca das ciências médicas, mas buscaremos problematizar um
ideal de objetividade e neutralidade que foi muitas vezes reivindicado por profissionais dessa área.
Inserindo-se no campo da história das ciências, este trabalho procura ainda dialogar com estudos
da história da medicina e da história das ciências da saúde para situar historicamente as discussões
sobre substâncias psicoativas e seus usuários no contexto nacional e internacional. Não obstante
o recente crescimento do tema das drogas dentro das humanidades, trata-se de um objeto que
ainda carece de mais trabalhos historiográficos. Assim, pretendemos contribuir para um campo

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 138
de estudos ainda em crescimento, que tem grande importância no debate atual sobre drogas e as
consequências de seus abusos.
Palavras-chave: toxicomania; drogas; medicina; história das ciências.
Keywords: drug addiction; drugs; medicine; history of science.

1 Graduada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 139
O paradoxo da cerveja nas estratégias da Ambev: do uso glamourizado à proibição

Beer paradox in Ambev’s strategies: from glamorized use to prohibition

Renato Augusto da Silva Monteiro 1

O uso dependente do álcool é um dos principais problemas de saúde pública no Brasil. Entre-
tanto, a cerveja goza de um lugar privilegiado na regulamentação do uso de drogas. Nesse estudo,
analisamos o tour cervejeiro do Centro de Experiência Cervejeira da Bohemia (CECB), localizado na
cidade de Petrópolis, bem como a cartilha sobre o uso do álcool distribuída aos visitantes. A Cerve-
jaria Bohemia foi fundada por colonos alemãs no século XIX, sendo adquiria pela Antarctica, que
mais tarde se associa à Cervejaria Brahma dando origem à Companhia de Bebidas das Américas
(Ambev), uma multinacional de capital internacionalizado que é líder no mercado brasileiro de cer-
vejas. O CECB utiliza estratégias da indústria cultural para a formação do gosto por cervejas especiais
da marca Bohemia, o que problematizamos na perspectiva de Adorno e Horkheimer e da distinção
de Pierre Bourdieu. Na pesquisa de campo não foi identificada qualquer abordagem a respeito do
uso de cerveja enquanto droga, apesar dos inúmeros aparatos interativos que contavam a história e
o modo de produção da bebida. O público visitante tinha perfil familiar, sendo comum a presença de
menores de idade acompanhando os responsáveis em visita ao local. Durante a pesquisa o tour foi
realizado 66 vezes sendo observado que no momento da “degustação” surgia uma partilha entre os
visitantes baseada no interdito etário, que dividia maiores e menores de 18 anos entre os que podiam
e os que não podiam beber. O ritual do brinde é uma expressão de proximidade que no contexto da
comensalidade tende a incluir, mas pode também excluir, como ocorria com os menores de 18 anos
proibidos de experimentar as cervejas servidas, ainda que viessem interagindo com os seus pares
em toda sorte de aparatos ao longo das salas de visitação, se apresentando uma espécie de fim da
brincadeira. Tendo em vista que durante a degustação ficaria em aberta a pergunta – por que os jo-
vens não devem beber? –, foi realizada uma análise da cartilha distribuída no local intitulada Papo em
família: como falar sobre bebidas alcoólicas com menores de 18 anos (Editora Maurício de Sousa). A pesquisa
de cunho qualitativo utilizou como método a análise de conteúdo a partir de dados advindos das
salas de visitação do tour e da cartilha em três etapas: i) pré-análise, ii) exploração do material, iii) tra-
tamento dos resultados, inferência e interpretação. Os resultados apontam a existência de um para-
doxo no qual, por um lado, a Ambev estimula o uso de cerveja glamourizado nas salas de visitação
do CECB e, por outro, adota uma abordagem proibicionista nas ações formais. Esses tensionamentos
giram em torno dos interesses mercadológicos e dos dispositivos médico-legais, como o ECA, bem
como o lugar privilegiado que a cerveja goza na regulamentação de bebidas, retroalimentados pela
política de guerra às drogas.
Palavras-chave: cerveja; dispositivos médico-legais; indústria cultural; educação sobre drogas.
Keywords: beer; medical-legal devices; cultural industry; drug education.

1 Doutor em Educação em Ciências e Saúde, professor de “Café, Bares e Bebidas” do Departamento de Gas-
tronomia do Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 140
Cultura cervejeira: breve história da cerveja artesanal no Brasil

Brewing culture: a brief history of craft beer in Brazil

Tatiana Rotolo 1

Nos últimos anos, assistimos um crescimento vertiginoso de pequenas cervejarias e bares


oferecendo ao público cervejas artesanais. Segundo dados da Associação das Microcervejarias Bra-
sileiras (Abracerva), neste ano chegamos ao registro de 1000 cervejarias, número composto basi-
camente por pequenas fábricas ou brewpubs (também conhecido como modelo “fábrica-bar”; dis-
ponível em <https://abracerva.com.br/2019/06/07/brasil-chega-a-mil-fabricas-de-cerveja/>, acesso
em 10 nov. 2019). Os números do crescimento desafiam as estatísticas de crescimento do setor. Isto
é, enquanto a economia brasileira patina nos últimos anos, o setor de cervejas artesanais cresce em
torno de 35% ao ano (dados disponíveis em <https://exame.abril.com.br/negocios/dino/mercado-
-de-cervejas-artesanais-cresce-exponencialmente-no-brasil/>, acesso em 10 nov. 2019). São empre-
endimentos abrindo, cervejarias, distribuidores, festivais, cursos, concursos, eventos que envolvem
milhares de pessoas. Isto tudo acontecendo de modo extremamente rápido, no decorrer de menos
de 20 anos. Este processo tem mudado hábitos de consumo, alimentado relação sociais e criado
em torno de si uma “cultura cervejeira” (também chamada de “cultura craft beer”, uma vez que este
processo no Brasil é bastante influenciado pelo movimento craft norte-americano), fortemente
enraizada no consumo de cerveja artesanal, com modos específicos de se comunicar, com atitudes
diferenciadas e identidades próprias. Este cenário de uma cultura em torno da cerveja artesanal,
que teve início nos Estados Unidos, quando chega ao Brasil ganha matizes ainda mais interessantes,
uma vez que se desenvolve à parte (e muitas vezes contra, dado que a palavra “opressora” é comu-
mente usada para se referir à grande indústria de cerveja) da maior multinacional de cerveja do
mundo: a Ambev (e sua vertente internacional AB-Inbev).
Este trabalho, deste modo, pretende investigar os primeiros passos do nascimento e cresci-
mento da cerveja artesanal no Brasil, situado no início dos anos 2000, quando algumas pequenas
fábricas brasileiras começaram a lançar cervejas artesanais no mercado brasileiro (por exemplo,
a Eisenbahn, a Colorado ou, um pouco anterior, a Dado Bier), e como este setor veio se desen-
volvendo até os dias de hoje, criando em torno de si uma cultura que regulamenta não apenas o
consumo, mas os comportamentos, forjando identidades tanto dos produtores de cerveja, como
também dos apreciadores de cerveja artesanal. Tal cultura tem na ideia de “consumo local” um dos
seus pilares, invertendo os hábitos e costumes dos consumidores de cerveja em curto período de
tempo, criando em torno de si um conjunto simbólico ligado a um produto, mobilizando afetos e
atitudes dos seus apreciadores.
A metodologia usada, além das referências acerca da história da cerveja no mundo e no
Brasil, é a análise de sites, mídias sociais e entrevistas com participantes desse movimento, numa
etnografia digital de um lado e uma história oral de outro, uma vez que as fontes primárias sobre

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 141
esta temática são exíguas e muitas das informações sobre o assunto encontram-se vivas na rede e
na memória dos seus protagonistas.
Palavras-chave: cerveja artesanal; cultura cervejeira; história da cerveja no Brasil.
Keywords: craft beer; brewing culture; history of beer in Brazil.

1 Doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo,
coordenadora do Grupo de Pesquisa em Cultura e História da Alimentação (CHA).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 142
Grupo de trabalho 3

CIRCUITOS GLOBAIS

Work group 3

GLOBAL CIRCUITS

Coordenadores/Coordinators:

Isabela Rodrigues de Souza

Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista Fapesp,

integrante do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi-USP)

Nicole Bianchini

Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista CNPq,

integrante do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi-USP)

e do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP)

Comissão Científica/Scientific Committee:

Rafael Marquese

Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor titular do Programa de

Pós-Graduação em História Social e coordenador do Departamento de História da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Coordenador do Laboratório de Estudos sobre

o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi-USP)

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 143
O consumo de arroz em Portugal e a rizicultura americana (1750-1808)

Rice consumption in Portugal and American rice plantations (1759-1808)

Alberto Camargo Portella 1

Cereal domesticado em locais tão variados quanto o oeste da África e a Ásia, o arroz, desde
o século VIII, passou a ser produzido em solo europeu. Em Portugal, contudo, quando comparado
a cereais consumidos e produzidos de modo usual, como o trigo, o arroz levou um longo tempo
para ocupar um espaço decisivo nos hábitos alimentares da população. No século XVIII, o cereal
já havia angariado relevante espaço nas mesas portuguesas das mais variadas condições. Seu
principal emprego se manteve, todavia, substitutivo. Ou seja, a importação de arroz tomava força,
normalmente, quando havia carestia de grãos consumidos de forma habitual (sobre o assunto,
ver as obras de Judith Carney, O arroz africano na história do Novo Mundo, de 2017, pp. 183-185; Peter
Coclanis, Distant Thunder: the creation of a world market in rice and the transformation it wrought, de
1993, pp. 1052-1054; Nuno Ferreira, A alimentação portuguesa na idade medieval, de 2008, p. 106; Carlos
Veloso, A alimentação em Portugal no século XVIII nos relatos dos viajantes estrangeiros, de 1992,  pp.
29-103; Kenneth Morgan, The organization of the colonial American rice trade, de 1995, p. 436).
Uma relevante parcela da demanda portuguesa, antes e durante parte do período conside-
rado na pesquisa, foi atendida, por um lado, pelo arroz produzido na Península Itálica. Por outro,
havia remessas de arroz produzido, por exemplo, na colônia britânica da Carolina do Sul a partir do
século XVII (sobre o assunto, ver as obras de Judith Carney, O arroz africano na história do Novo Mundo,
de 2017, pp. 185-188; e Dauril Alden, Manoel Luís Vieira: an entrepreneur in Rio de Janeiro during Brazil’s
eighteenth century agricultural renaissance, de 1959, p. 534).
Todavia, a partir de meados dos setecentos, ao proporem reformas na administração
imperial, intelectuais e agentes governativos portugueses tiveram como um de seus objetivos a
substituição de importações que pesavam sobre a balança comercial. O arroz, nesse contexto, não
foi negligenciado. Essa transformação, não analisada com vagar pela historiografia, é o foco da pes-
quisa de mestrado em andamento, que cobre um período que se estende de 1750, com o início das
reformas ilustradas portuguesas, até o ano de 1808 (ver Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do
Antigo Sistema Colonial, 1777-1808, 2011, pp. 213-298).
Para avaliar tal mudança, a pesquisa analisará os discursos econômicos, surgidos nas refor-
mas em Portugal, que tiveram como um de seus alvos a diversificação da produção agrícola imperial
(incluindo o arroz). Sendo assim, escritos de intelectuais luso-americanos e de agentes governativos
do império serão essenciais na pesquisa. Ademais, com o fim de avaliar a adequação entre os planos
e a realidade agrícola na América portuguesa, as correspondências trocadas entre as autoridades
imperiais, que versaram sobre os problemas da agricultura americana, serão centrais na análise (ver
Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, 1777-1808, 2011, pp. 213-298).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 144
Palavras-chave: arroz; diversificação agrícola; mercado mundial; Portugal; século XVIII.
Keywords: rice; agricultural diversification; world market; Portugal; 18th century.

1 Mestrando em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista Fapesp (processo 2019/12541-2).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 145
Revolução Haitiana e as transformações da economia de plantation:
Saint-Domingue, 1790-1803

Haitian Revolution and the transformations of plantation economy:


Saint-Domingue, 1790-1803

Isabela Rodrigues de Souza 1

Neste trabalho analisamos a economia do café e do açúcar na colônia francesa de Saint-


Domingue no intervalo de 1790 a 1803, isto é, no decurso do que posteriormente seria denominado
Revolução Haitiana. Ele é desdobramento direto da pesquisa precedente de Iniciação Científica, na
qual exploramos os censos dominiais e urbanos produzidos entre 1795 e 1803, uma documentação
massiva e que até aquele momento tinha sido negligenciada pela historiografia – as tabulações
produzidas com base nos dados dessa fonte foram complementadas e comparadas com as infor-
mações da ilha na véspera da revolução escrava, contidas no relato minucioso de Moreau de Saint-
Méry, e, em conjunto, possibilitaram uma delimitação mais precisa das trajetórias de recuperação e
remodelação da cultura cafeeira e de derrocada da cultura açucareira.
Os impactos das guerras entre escravos, forças revolucionárias francesas, armadas bri-
tânica e espanhola ao longo de 13 anos de batalhas incontínuas, bem como a abolição geral dos
cativos de 1794, transformaram profundamente a dinâmica produtiva na colônia, apesar dos esfor-
ços dos líderes negros, em especial Toussaint Louverture – principal figura revolucionária – em
recuperar o sistema de plantations. A destruição dos engenhos de açúcar por meio de incêndios
e pilhagem no início da revolução não foi o ponto final das exportações de commodities: o café,
segundo produto de importância comercial em Saint-Domingue, não conheceu o destino fatalista
das unidades açucareiras, conseguindo recuperar dois terços do cultivo pré-revolucionário sem o
uso de mão-de-obra escravizada e em fazendas reorganizadas. Tal foi o sucesso que o comércio
com os Estados Unidos aumentou neste período. E no caso da economia açucareira, mesmo com
o resultado desastroso ao final da guerra de independência, as políticas econômicas motivaram
uma relativa melhora no ano de 1802.
Pretendemos aprofundar os dados encontrados na pesquisa anterior com a leitura de rela-
tos de contemporâneos ao evento (disponíveis em suporte online e nos Archives Nationales de Paris),
dos arquivos notariais (depositados nos Archives Nationales d’Outre-Mer na França) e da legislação e
outros textos legislativos revolucionários, a fim de compreender melhor o funcionamento do siste-
ma de plantation em meio à revolução escrava.
Duas hipóteses guiam esta pesquisa: a participação no restabelecimento das plantations
era mais generalizada do que imaginou a historiografia, incluindo não apenas o grupo de militares
negros e mulatos de alto escalão, mas também os antigos donos, anciens libres, petits-blancs e até
mesmo ex-escravos; e o parcelamento das fazendas cafeeiras se tornou uma prática no contexto
da revolução, seja ele legal (promovido pelas políticas de arrendamento) ou ilicitamente (pelos

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 146
maroons que viviam nas montanhas). Esperamos ao fim que, de maneira geral, possamos lançar
luz para um entendimento renovado da Revolução Haitiana.
Palavras-chave: Revolução Haitiana; plantation; escravidão; café; açúcar.
Keywords: Haitian Revolution; plantation; slavery; coffee; sugar.

1 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista Fapesp, integrante do Laboratório de Estudos
sobre o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi-USP).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 147
Relação entre representação e hábitos alimentares: alimentos e bebidas como atributos
identitários em imagens da colonização europeia (notas de pesquisa)

Relation between representation and eating habits: food and beverages as identity attributes in
images of European colonization (research notes)

Jorge Victor de Araújo Souza 1

Durante a conquista do Novo Mundo, a arte europeia da gravura encontrava-se em seu


apogeu. E do mesmo modo que as gravuras chegavam à América, a América ganhava espaço nas
pranchas dos gravadores europeus. Os territórios então colonizados forneceram um rico repertório
de temáticas aos gravadores. No entanto, obviamente, não só as regiões das Américas foram repre-
sentadas. Os livros que investigaremos tratam de outras regiões que foram alcançadas na expansão
ultramarina europeia na Ásia e na África. Nesse sentido, nossa pesquisa está inserida numa
perspectiva do fazer historiográfico que conecta territórios que em geral são estudados de forma
isolada. Partimos do pressuposto de que imagens conectavam espaços geográficos, tanto quanto
as próprias embarcações.
No livro Um mundo em movimento, Russel-Wood escreveu uma síntese da expansão maríti-
ma portuguesa privilegiando o fluxo constante de pessoas, mercadorias, exemplares da fauna e da
flora. A historiadora Patricia Seed destacou de forma comparativa a ocupação territorial no Novo
Mundo e suas cerimônias de posse como atos identitários, casos como o da leitura do “requeri-
mento” entre os espanhóis, a missa entre os portugueses e o levantar de cercas entre os ingleses.
Pesquisas como a de Russel-Wood, Boxer, Seed e, mais recentemente, Diogo Ramada Curto e Serge
Gruzinski mostram que a partir de uma perspectiva comparativa as dinâmicas do Mundo Atlântico
podem ser melhor compreendidas.
As “quatro partes do mundo” foram iconograficamente representadas sob a forma de ale-
gorias femininas. Em nossa comunicação, analisaremos, em gravuras europeias, os atributos em
forma de alimentos que eram relacionados com as respectivas alegorias da Ásia, África e América.
Será que se pudessem exercer a autorrepresentação, os nativos do Novo Mundo escolheriam o
cacau como um atributo identitário? E os habitantes das “índias orientais”, por sua vez, escolheriam
o chá para identificá-los? Em outras palavras, nos interessa identificar os principais alimentos que
compunham um vocabulário visual que ajudou a forjar “identidades mundializadas”, e que eram,
na verdade, fruto do imaginário colonizador. Para tal, partiremos das reflexões empreendidas por
Stuart Hall sobre as relações entre “representação e identidade”, e das proposições de François
Hartog sobre enunciados de viajantes e operações de alteridade. O acervo de gravuras que utiliza-
remos será o Archive of Early American Images da John Carter Brown Library.
Palavras-chave: gravuras; alimentos; atributos; identidade; colonização.
Keywords: engravings; food; attributes; identity; colonization.

1 Doutor em História e professor de História da América Colonial na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 148
Grãos sacralizados: notas sobre a difusão popular de preparações culinárias do milho a
partir do seu uso simbólico em rituais religiosos

Sacralized grains: notes on the popular spread of corn culinary preparations from their symbolic use
in religious rituals

Marcella Sulis 1
Myriam Melchior 2

Em nossas pesquisas acerca de uma cultura brasileira do milho, notamos algumas dinâmicas
que dizem respeito à assimilação social e aos significados simbólicos do milho no Brasil que ajudam
a descortinar a sua importância como alimento de resistência associado a uma sacralidade pouco
visível à historiografia oficial (ver Gastronomia, Cultura e Memória: por uma cultura brasileira do milho,
organizado por Myriam Melchior, em 2017). Tal seria a difusão do milho em preparações culinárias
no Brasil devida aos povos afrodescendentes que adaptaram o seu uso doméstico e ritualístico,
desde o período colonial (ver A Cultura Alimentar Paulista: uma civilização do milho?, de Rafaela Basso,
de 2014). Este dado parece ser um elemento-chave para compreender a sobrevivência do milho
em preparações culinárias populares, tendo em vista que, durante o período colonial, o milho foi
quase sempre desprezado pelo colonizador. Ademais, a utilização do milho nos rituais afro-indíge-
nas rivalizava com os cultos cristãos onde o trigo era o alimento simbólico máximo, perfazendo o
vínculo metafórico com o corpo sagrado de Cristo (ver o capítulo “Formação e dinâmica das religiões
afro-brasileiras”, de Vagner Gonçalves da Silva, em Religião e Sociedade na América Latina, de 2010).
Embora sejam raras as informações sobre as religiões originais dos povos nativos, sobretudo no
que concerne à utilização de alimentos, é possível comparar algumas práticas ritualísticas atuais
herdeiras das etnias indígenas e afrodescendentes com relatos do período colonial brasileiro. A
partir desta comparação, encontramos algumas características semelhantes presentes nos rituais
religiosos afro-indígenas que apontam para um traço de união importantíssimo à sobrevivência do
milho na alimentação brasileira.
O estudo sobre a sacralidade do milho sinaliza para modos de transmissão de uma cultura
alimentar envolta em embates vinculados às suas representações e potencialidades simbólicas
e mágicas. Para tanto, utilizamos fontes bibliográficas no âmbito da história da alimentação, da
antropologia cultural e da memória social. Também nos apoiamos em algumas investigações de
artistas brasileiros contemporâneos que nos permitiram expandir as reflexões acerca do tema.
Neste sentido, este estudo busca novas formas de se pensar e perceber as tradições alimentares
cujos aspectos memoriais são difusos, rarefeitos ou, por vezes, pouco visíveis na historiografia
gastronômica fundamentada por aspectos ambientais, econômicos ou meramente biológicos nos
quais os alimentos e suas trajetórias são observados. Trata-se também de um estudo acerca dos
significados e usos simbólicos e poéticos dos alimentos na existência humana.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 149
Palavras-chave: milho; afro-indígenas; sacralidade; arte.
Keywords: corn; Afro-Indians; sacredness; art.

1 Doutoranda em Hospitalidade na Universidade Anhembi Morumbi, professora do bacharelado em Gastronomia da


Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2 Doutora em Memória Social na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), professora do bacharelado
em Gastronomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 150
Açúcares e americanidades: sobre representações sociais do açúcar nas Américas e impactos
nas tradições da doçaria

Sugar and Americanities: about social representations of sugar in the Americas and impacts on
confectionery traditions

Myriam Melchior 1

As tradições da doçaria brasileira remontam a práticas milenares. Na Pérsia Sasaniana, por


volta de 460 CE, o processo de refino do xarope de cana-de-açúcar já existia, e o açúcar era expor-
tado para os países vizinhos. Dessa região, as tradições da doçaria foram difundidas em torno do
Mediterrâneo e suas influências chegaram à Península Ibérica. Portugal, aliás, foi o maior difusor da
cultura do açúcar, sendo responsável pelo estabelecimento de refinarias em Flandres, na Antuérpia
e Amsterdã, tendo dominado o seu comércio atlântico e impulsionado a empresa colonizadora das
Américas. O interesse por dominar os lucros e o mercado do açúcar levaram a uma sucessão de prá-
ticas violentas para a tomada de entrepostos, colônias e negócios marítimos dos portugueses pelos
holandeses e os ingleses. Estes últimos se tornaram “vitoriosos” no controle da nova commodity. A
plantation dos ingleses, consoante o antropólogo Sydney Mintz, foi o primeiro empreendimento
capitalista. Logo, podemos dizer que a história do açúcar é também a da invenção do sistema-mun-
do moderno. Segundo os sociólogos Immanuel Wallerstein e Aníbal Quijano, esse sistema mundo-
-moderno caracterizou-se pelo nascimento de uma nova identidade: a americanidade. A partir da
posição geossocial que estava fora de um sistema cultural, histórico, socioeconômico e geopolítico
já existente, as Américas produziram uma contraface ao mundo europeizado, inventando desigual-
dades de culturas e “raças” e entre periferias e os países centrais da modernidade. Considerando
essas condições, como poderíamos pensar a representação social do açúcar no âmbito da america-
nidade? Uma pesquisa sobre a “evolução” dos doces na história da alimentação nos Estados Unidos
e na Grã-Bretanha nos auxilia a responder a questão. Verificou-se que, quando se trata de explicar
a origem dos doces nessas regiões, cuja cultura tem pouca relação com as tradições milenares da
cana-de-açúcar, há uma omissão do seu vínculo histórico com estas tradições. É como se a cultura das
caldas de açúcar, tal como nas tradições brasileiras, fosse apenas uma tipologia menor, esvaziada de
sua importância histórica. Num exame atento, pautado pelo conceito de americanidade, encontrare-
mos elementos para perceber que a cultura do açúcar de cana-de-açúcar foi associada à etnicidade
periférica, pautada por representações negativas. A historiografia em questão desvinculou-se de sua
participação nas práticas violentas da exploração do açúcar, passando a enfatizar positivamente os
açúcares artificializados, o uso da tecnologia e a indústria. O estudo nos ajuda a entender melhor a
construção social de representações negativas do açúcar, com as quais convivemos na contempora-
neidade e de que maneiras estas não coadunam com a importância social e cultural do açúcar no
Brasil. O estudo fornece um contraponto aos discursos atuais sobre os males causados pelo açúcar de
cana-de-açúcar, fortalecendo argumentos em prol da valorização e importância da doçaria brasileira.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 151
Palavras-chave: tradições do açúcar; Américas; colonialidade-modernidade; representações
sociais; resistência.
Keywords: sugar traditions; America; coloniality-modernity; social representations; resistance.

1 Doutora em Memória Social na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), professora do bacharelado
em Gastronomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 152
Café e chá na representação visual europeia, 1640-1790

Coffee and tea in the European visual representation, 1640-1790

Nicole Leite Bianchini 1

O propósito desta apresentação será o de expor, em linhas gerais, os primeiros resultados de


uma pesquisa de mestrado, iniciada em 2017, acerca das representações visuais do consumo de café
e de chá. O escopo deste trabalho foram as imagens produzidas em torno destas bebidas a partir dos
primeiros registros de seu consumo em torno da década de 1640, dentro do noroeste europeu, até a
sua completa assimilação ao cotidiano desta região, que compreende Inglaterra, França e Províncias
Unidas, na virada para o século XIX.
Diante da extensão temporal e geográfica proposta, foram usadas as coleções digitalizadas
de inúmeros museus, bibliotecas e arquivos, das quais foram reunidas quase duzentas imagens
pertinentes ao tema. Na sequência, tais imagens foram reunidas em séries temáticas, que por sua
vez poderiam ser analisadas em busca de padrões de representação, escolhas materiais, composição
interna e aspectos de sua produção. Paralelo à análise destas séries, o discurso em torno do con-
sumo destas novas bebidas exóticas também foi reunido e revisto a partir das fontes escritas mais
utilizadas em torno da bibliografia especializada. Foram reunidos, neste âmbito, documentos como
tratados em torno destas bebidas, narrativas de viajantes, propagandas, manuais de bons modos e
comportamento direcionados tanto ao público masculino quanto ao feminino, e periódicos.
A pesquisa realizada, assim, se enquadra em uma diversidade de campos historiográficos,
atuando dentro da história social e econômica ao passo em que entende as commodities enquanto
objetos que compreendem tanto as estruturas de produção e circulação quanto de consumo. O estu-
do do aspecto visual deste mundo tem por objetivo intervir em uma fortuna historiográfica que ora
se debruça somente pelos aspectos econômicos do mercado de commodities moderno, ora se dedica
somente aos estudos dos padrões e significados do seu consumo no mundo europeu, entendendo a
visualidade como uma fonte privilegiada para observar o encontro destas duas esferas. Dentro dos
estudos sobre história da alimentação, a proposta foi agrupar a dimensão material do café e do chá
com o seu aspecto mental enquanto símbolo visual adotado por pintores e gravadores.
A partir do diálogo entre as fontes escritas e visuais, então, foi possível delimitar três momen-
tos distintos no processo de longa duração da incorporação do consumo de bebidas quentes ao coti-
diano urbano europeu. Partindo da ideia de “aglomerados de consumo”, que são definidos por Jan de
Vries como conjuntos de artigos que têm significados específicos que seus componentes em separado
não possuem, foi possível pensar a visualidade do café e do chá ao longo desta transformação.
Palavras-chave: café; chá; representação visual; consumo.
Keywords: coffee; tea; visual representation; consumption.

1 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista CNPq, integrante do Laboratório de Estudos
sobre o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi-USP) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas
e da Alimentação (LEHDA-USP).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 153
Grupo de trabalho 4

ABASTECIMENTO E COMÉRCIO

Work group 3

SUPPLY AND TRADE

Coordenadores/Coordinators:

Luís Fernando Teberga Gonçalves

Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, pesquisador do

Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP)

Rafaela Basso

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diretora de

Gestão e Preservação de Documentos e Informação do Arquivo Central da Unicamp

Comissão Científica/Scientific Committee:

João Luiz Máximo da Silva

Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, coordenador e professor do curso de

pós-graduação “Gastronomia: História e Cultura” do Centro Universitário Senac, em São Paulo.

Integrante do banco de pareceristas do Ministério da Cultura e assessor científico da Fapesp

Maria Aparecida de Menezes Borrego

Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora em

História Social pelo Museu Paulista da USP. Docente do Departamento de Acervo e

Curadoria do Museu Paulista e do programa de pós-graduação em História Social da USP, e

supervisora técnico-científica do Museu Republicano “Convenção de Itu” da USP

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 154
Contrastes na terra do café: São Paulo entre a publicidade e a crônica nos anos 1920

Contrasts in the coffee land: São Paulo between advertising and chronicles in the 1920s

Ana Luíza Mello Santiago de Andrade 1

Este trabalho tem por intenção discutir como determinados locais de sociabilidade, especial-
mente os dedicados ao comer e ao beber, apresentaram alterações significativas na vida urbana. O
que esta pesquisa busca é compreender as formas de sociabilidades modernas, em que o comer fora
de casa, mais que atitude natural que visa à alimentação para suprir necessidades, esteve carregada
de valores simbólicos e distinção social, demonstrando sua face cultural. Articulado à formação do
gosto e à distinção social, verifica-se que os padrões higiênicos e o discurso médico estiveram pre-
sentes em diversas esferas da sociedade: nos lares, nas obras estruturais, nos cuidados com o corpo
e a saúde, mas também nos estabelecimentos comerciais destinados à alimentação. Tais aspectos
apontam para a alimentação como prática de lazer e convívio social, que agitaram a vida urbana da
metrópole em construção, e o que se vê é uma adequação de São Paulo ao chamado mundo civilizado.
Para o desenvolvimento desta pesquisa foram pesquisadas e tabuladas as edições do jornal O Estado
de S. Paulo, entre os anos de 1920 e 1929, compreendendo que a imprensa periódica atuou de forma
pedagógica nessa tentativa de incluir São Paulo no mundo civilizado, mas também exerceu papel de
vigilância das novas práticas urbanas, notadamente a partir da coluna de crônicas intitulada “Coisas da
Cidade”. Foram levantados também os anúncios de casas comerciais destinados ao comer e ao beber:
restaurantes, confeitarias, leiterias, bombonieres, salões de chá. A intenção é perceber, portanto,
as divergências entre o que anunciava a publicidade e o controle da vida social por meio da coluna
de crônicas. Se de um lado anunciava-se uma vida elegante, de outro constatava-se a inexistência à
época, em São Paulo, de algum café de bom nível. O cronista atentava para a sujeira dos ambientes
enquanto a publicidade divulgava o bom gosto. A publicidade exerceu um importante papel na cons-
trução de imaginários sobre a modernidade. Vendendo mais do que produtos, foi por meio dela que
novas formas de sociabilidade foram propagandeadas pelas páginas dos jornais. Entretanto, por mais
que as casas comerciais anunciassem todo seu luxo e requinte, algumas observações não escaparam
do olhar do cronista. O jornalista utilizava suas crônicas como forma de denúncia sobre tudo aquilo
que pudesse representar o atraso e prejudicar o andamento de São Paulo rumo ao progresso. O que
se pôde constatar através da pesquisa foi essa inconsistência entre os anúncios publicitários e o coti-
diano da cidade, narrado pelo colunista do matutino. É senso comum o estabelecimento da década
de 1920 como os anos dourados da modernização no Brasil, tendo a capital paulistana como centro
deste processo. Por meio da pesquisa sobre a alimentação na cidade que se transformava foi possível
perceber os embates em torno de um projeto modernizador.
Palavras-chave: São Paulo; café; sociabilidades; publicidade; crônicas.
Keywords: São Paulo; coffee; sociability; advertising; chronicles.

1 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora colaboradora no Departamento de
História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 155
Alimentação e escravidão no vale do rio Cauca, Nova Granada,
através dos olhos de romancistas e viajantes (1750-1851)

Food and slavery in the Cauca River Valley, New Granada,


through the eyes of novelists and travelers (1750-1851)

Esteban Zabala Gómez 1

O presente trabalho pretende abordar o uso da literatura, principalmente romances costum-


bristas do século XIX e relatos de viajantes estrangeiros do mesmo período, como fonte histórica para
a análise das práticas alimentares dos escravizados da região do vale do rio Cauca, na Nova Granada,
durante os anos de 1750 – última etapa do comércio negreiro – até 1851 – o fim da escravidão. Já o
historiador da alimentação Henrique Carneiro, no seu texto As fontes para os estudos históricos sobre
a alimentação (2005), prestou atenção na dificuldade que essa área da história tem quanto à pouca
quantidade de documentos oficiais úteis para a compreensão dos fenômenos alimentares. Porém, o
pesquisador faz um chamado para o uso de múltiplos tipos de fontes, dos quais os relatos de viagens,
crônicas e romances sobressaem.
Portanto, no decorrer desta pesquisa tem sido importante prestar especial atenção às meto-
dologias necessárias para o uso da literatura como fonte histórica, assim, temos nos aproximado às
teorias produzidas principalmente pela História Cultural, que propõem que para analisar esse tipo
de fonte é necessário entender que o que é escrito pelos romancistas e viajantes são representações
da realidade e, portanto, como escreveu o historiador José da Silva Horta no seu texto “Nações”, marca-
dores identitários e complexidades da representação étnica nas escritas portuguesas de viagem: Guiné do Cabo
Verde (séculos XVI e XVII), publicado em 2013, essas representações provinham de uma “grelha cultural”
de que dispunham os europeus para representar, no nosso caso, os escravizados e libertos, sendo o
conceito de representação fundamental para entender os métodos para o análise da literatura desde
uma perspectiva histórica.
Assim, este trabalho é uma tentativa de compreender o complexo contexto de contato cultu-
ral produto da colonização espanhola nas Américas e o comércio transatlântico de pessoas originárias
de diferentes partes da África Ocidental, através das suas práticas alimentares: utensílios, alimentos e
preparações, representadas por esses romancistas e viajantes.
Finalmente, os romances aqui usados são María de Jorge Isaacs (1867) e El alférez real de
Eustaquio Palacios (1886), ademais dos relatos de viajantes de diferentes nacionalidades como o frei
espanhol Juan de Santa Gertrudis, que viajou à Nova Granada entre 1757 e 1767, o coronel britânico
John Potter Hamilton, que esteve na década de 20 do século XIX, e o botânico estadunidense Isaac
Holton, que passou pelo vale do Cauca no ano de 1851.
Palavras-chave: história da alimentação; literatura; escravidão; Nova Granada; 1750-1851.
Keywords: food history; literature; slavery; New Granada; 1750-1851.

1 Antropólogo da Universidad Nacional de Colombia, mestrando em História na linha de História Social da Cultura na
Universidade Federal de Minas Gerais.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 156
Do garfo à pena: uma história da alimentação do Rio Grande do Sul a partir de relatos de
viajantes oitocentistas

From fork to quill: a history of Rio Grande do Sul’s food from reports of 19th century travelers

Everton Luiz Simon 1


Eliane Cristina Deckmann Fleck 2

Nesta comunicação apresentamos a análise das narrativas de viagem de Nicolau Dreys,


Auguste de Saint-Hilaire, Carl Seidler e Robert Avé-Lallemant, que percorreram a província do Rio
Grande do Sul, entre 1817 e 1858, com o objetivo de identificar e discutir as representações constru-
ídas por estes viajantes sobre as práticas alimentares vigentes na província, bem como de demons-
trar cartograficamente as atividades relativas ao preparo/trabalho na terra, ao cultivo e ao consumo
de alimentos nas diversas regiões da província no Oitocentos. A investigação se fundamenta teori-
camente na História Cultural e metodologicamente na Análise Textual Discursiva, tendo conside-
rado, para a análise das obras dos quatro viajantes, as categorias produção, preparação e consumo
de alimentos; comensalidade e etiqueta [distinção e estratificação social à mesa]; hospitalidade,
reciprocidade e sociabilidade; saúde e alimentação e tabus e significados simbólicos. Para além
das representações sobre as práticas alimentares e das evidências de que elas estiveram inequi-
vocamente vinculadas às experiências sociais e culturais daqueles que as descreveram, a análise
que fizemos das narrativas dos viajantes possibilitou a identificação e a discussão das informações
sobre os alimentos produzidos, as práticas de cultivo, de consumo e de sociabilidade e, também,
sobre as relações de trabalho nas diferentes regiões da província do Rio Grande do Sul, apontando
para a inegável contribuição dessas fontes para uma História da Alimentação do Rio Grande do Sul
oitocentista.
Palavras-chave: história da alimentação do Rio Grande do Sul; práticas alimentares; viagens e
viajantes; representações; patrimônio alimentar.
Keywords: Rio Grande do Sul’s food history; eating practices; travels and travelers; representations;
food heritage.

1 Doutor em História no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bolsista
Capes-PROSUC, professor e coordenador do curso de Gastronomia da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
2 Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professora do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 157
A Corte Joanina no Rio de Janeiro:
novos hábitos alimentares expressos na Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1821)

Joanine Court in Rio de Janeiro:


new eating habits expressed in the newspaper Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1821)

Fernando Santa Clara Viana Junior 1

Este trabalho objetiva discutir a emergência de novos hábitos alimentares na capital flumi-
nense, expressos pelos classificados do primeiro impresso brasileiro, a Gazeta do Rio de Janeiro, entre
os anos de 1808-1821. Por meio do método de análise proposto pela pesquisadora Laurence Bardin,
na obra Análise de Conteúdo (1977), buscamos identificar e apontar a emersão de produtos, bens e
serviços nos classificados do impresso que sejam caros ao cotidiano alimentar das elites à época.
Em paralelo a esta análise, contextualizaremos os feitos ligados ao Rei e seu séquito no período de
estada da corte lusa no Brasil, rastreando alguns caminhos relacionados às modificações nas sensi-
bilidades alimentares no período. Assim, ingredientes estrangeiros, louças importadas, produtos a
la europeia, cozinheiros d’além-mar, negras escravizadas treinadas em cozinha e outros enunciados
que se relacionem com a alimentação são parte do arsenal de análise. Outro viés de observação
relaciona-se com a oferta de dados produtos, o custo e os sentidos atribuídos a eles frente à socie-
dade de grosso trato local.
O recorte repousa no período em que a corte lusa esteve no Rio de Janeiro, entre os anos de
1808 e 1821. Tal escolha está ligada diretamente à emergência de novos padrões de convivência, ao
choque entre os padrões que já faziam parte da sociedade aristocrata brasileira e à emergência de
hábitos criados em decorrência deste contato. Assim, conhecer os produtos alimentares anunciados
nos classificados do impresso é possibilitar à História revisitar uma parte do passado e descortinar
mais um possível olhar sobre o período.
O jornal foi fundado, junto à Imprensa Régia, em 13 de maio de 1808. Suas edições eram
publicadas duas vezes por semana, às quartas e aos sábados, contando ainda com edições extraor-
dinárias. Além do cotidiano local, o jornal versava sobre as decisões administrativas reais e o cenário
internacional; nos classificados, tratava da venda, da compra e da oferta de um sem-fim de produ-
tos e serviços, caros ao contexto do período. Este foi um dos vieses que subsidiaram a construção
de um séquito local nos moldes do Antigo Regime à brasileira, para sustentar uma condução que se
configurava e que ganhava novas dinâmicas à época.
Palavras-chave: história da alimentação; alimentação no Brasil Joanino; Gazeta do Rio de Janeiro.
Keywords: food history; eating during Joanine Period in Brazil; Gazeta do Rio de Janeiro.

1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 158
Do ideal à concretude: o abastecimento alimentar nos primeiros anos após a criação de
Belo Horizonte

From ideal to concreteness: food supply in the first years after the creation of Belo Horizonte

Lays Silva de Souza 1

Para o presente estudo, estabelecemos como abastecimento alimentar todas as ações que
permeiam o ato de comer na cidade. As estruturas cotidianas que viabilizam a comensalidade, ou
a partilha dos alimentos, constituem-se atividades relacionadas à vida material. De acordo com
o historiador Massimo Montanari, os processos que envolvem a alimentação são mais complexos
do que uma necessidade elementar do corpo, sobretudo carregam forte conteúdo social. Esta pes-
quisa busca compreender o abastecimento para além de simples fenômeno biológico ou de uma
atividade econômica. Nosso objetivo é compreender o lugar do abastecimento alimentar em Belo
Horizonte a partir da administração pública. Ou seja, é de nosso interesse examinar os processos
de organização dos serviços que a municipalidade entendeu como responsabilidade pública, e a
alimentação é uma dessas demandas presente na estrutura organizacional da prefeitura desde o
nascimento da nova capital mineira.
Belo Horizonte é uma cidade planejada e não foi criada de forma espontânea, o poder públi-
co municipal sempre esteve presente nos processos de produção, comércio e acesso dos gêneros
alimentícios. A Coleção Relatórios Anuais de Atividades da Prefeitura de Belo Horizonte (1899-2005) e a
legislação aprovada pertinente ao tema são fontes históricas que nos permitem afirmar que a pre-
feitura teve papel importante na definição dos lugares do abastecimento na cidade. A alimentação
revela organizações sociais desde o núcleo mais íntimo e se expande às relações políticas visando a
interesses econômicos que se estabeleceram ao longo da história.
Considerando a República como sistema político vigente no Brasil quando a nova capital
mineira foi criada, nossa análise se apoia na busca pela compreensão do abastecimento alimentar
como bem comum. Entendemos que a regulamentação da produção e do comércio de gêneros
alimentícios, feita pela administração pública, pode ser considerada uma ação em prol da ordem
social. Tal afirmativa carrega muitas nuances e interesses, afinal é imprescindível questionarmos
qual República foi essa e para quem se governava. Para uma reflexão teórica acerca das estruturas
da cidade – econômicas, culturais, políticas etc. –, compreendemos a alimentação como necessi-
dade social inerente à sociedade urbana. Nesse sentido, é pertinente identificar como as ideias
republicanas inspiraram a experiência de organização do espaço urbano para receber os habitantes
da primeira cidade planejada do Brasil moderno. Compreender o contexto histórico de criação da
nova capital mineira auxilia-nos a entender como e porque o poder público municipal controlou
seu abastecimento, sobretudo a partir de quais parâmetros os prefeitos que estiveram à frente do
município realizaram reformas administrativas, as quais estabeleceram diretrizes para as políticas
públicas alimentares.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 159
Palavras-chave: abastecimento alimentar; Belo Horizonte; política pública.
Keywords: food supply; Belo Horizonte; public policy.

1 Mestranda em História Social da Cultura na Universidade Federal de Minas Gerais.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 160
Virado de feijão: discursos médicos sobre a culinária caipira em São Paulo (1890-1930)

“Virado de feijão”: medical discourses on caipira cuisine in São Paulo (1890-1930)

Leopoldo Fernandes da Silva 1

Nos últimos anos, a formação de uma culinária caipira em São Paulo se constituiu em objeto
de reflexão de historiadores, cientistas sociais e gastrônomos interessados na história da alimenta-
ção. No livro A culinária caipira da Paulistânia (2018), os autores Carlos Alberto Dória e Marcelo Côrrea
Bastos observam que a origem deste modo de comer se situa na conjunção de hábitos alimentares
portugueses e indígenas, plasmados na figura do bandeirante e consolidados no amplo território
desbravado e colonizado pelos paulistas do período colonial. Esta culinária caipira teria se modifica-
do somente no final do século XIX, após o advento da República, sob a influência de transformações
socioeconômicas promovidas pela expansão cafeeira e o processo de urbanização deste período.
Nesta apresentação, discutimos como esta tese dialoga com uma tradição intelectual que
remete ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e suas proposições acerca da identidade
paulista, cuja elaboração simbólica se caracterizou por uma construção mítica da figura do caipira
e do bandeirante, na qual a presença e a contribuição dos negros foram escamoteadas do processo
histórico regional. Quanto à desagregação desta culinária caipira na Primeira República, analisamos
a intervenção dos médicos e das instituições paulistas de saúde pública, organizadas no período,
na fiscalização sanitária dos alimentos e na formulação de propostas de reforma dos hábitos ali-
mentares vigentes, como dimensões fundamentais para os projetos de modernização de São Paulo
promovidos pelas elites cafeeiras.
Desse modo, visamos contribuir para o debate historiográfico sobre a formação desta
culinária caipira pelos sertões do país, analisando as condições socioeconômicas do abastecimento
de gêneros alimentícios em São Paulo, nos séculos XVIII e XIX, no qual os negros se engajaram
diretamente na produção e comércio de alimentos, “interagindo nas práticas sociais e nos relacio-
namentos deste universo caipira”, conforme observa Maria Cristina Cortez Wissenbach.
Em relação às transformações nos hábitos alimentares em São Paulo, no início do século XX,
a análise dos discursos das autoridades médicas vinculadas às instituições paulistas de medicina e
de saúde pública aponta para uma crescente suspeita sanitária sobre os gêneros que compõem a
alimentação do caipira – milho, feijão, carne de porco – em um contexto de elaboração de uma ideia
de dieta moderna e saudável, baseada nos conhecimentos das ciências da Higiene.
Concomitantemente, os médicos incentivaram a diversificação na produção agrícola de
alimentos em São Paulo, particularmente de gêneros associados a uma cultura alimentar europeia
como o pão de trigo, o vinho e a carne de vaca, como uma medida para reduzir a dependência da
economia paulista em relação à cultura cafeeira e proporcionar melhores condições sociais para a
adaptação e fixação do imigrante europeu no estado.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 161
Palavras-chave: culinária caipira; São Paulo; abastecimento de alimentos; saúde pública; História.
Keywords: caipira cuisine; São Paulo; food supply; public health; History.

1 Doutor em História Econômica e pós-doutorando em Saúde Coletiva na Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 162
Comer e sobreviver em São Luís (MA): o mercado popular de alimentação

Eating and surviving in São Luís (Maranhão): the popular food market

Livia Cangiano Antipon 1

Aborda-se a dinâmica da economia política dos espaços da alimentação dos pobres que, nas
grandes metrópoles desiguais socioterritorialmente, permanece atual e necessária, visto que há,
nessas atividades, uma importante função socioespacial: resistência e abrigo dos trabalhadores e
consumidores das classes populares.
São Luís, capital do Maranhão e núcleo de uma região metropolitana coorporativa e fragmen-
tada (ver Metrópole Corporativa Fragmentada: O Caso de São Paulo, de Milton Santos, de 1990), segue a
tendência de muitas cidades que compõem a rede urbana brasileira, pois evidencia em seu território
uma população com baixos salários e altos gastos com as necessidades básicas de sobrevivência,
justificando a procura por parte de trabalhadores que precisam se alimentar fora de casa, por um
circuito popular de comércio de alimentos, no qual o preço das refeições é, muitas vezes, mais barato.
A pesquisa busca nos restaurantes populares e ambulantes de alimentação do centro da
urbe, uma reflexão acerca do circuito inferior da economia urbana (ver O Espaço Dividido: Os Dois Circuitos
Da Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos, de Milton Santos, de 1978), o qual dinamiza nas cida-
des uma força econômica aos mais pobres, que produzem e sobrevivem desse mercado socialmente
necessário (ver Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário, de Ana Clara
Torres Ribeiro, de 2005).
Signo de uma cidade desigual, o circuito inferior da economia urbana é referido às atividades
em que os capitais são reduzidos e o nível organizacional é realizado segundo ações face a face e
de base normalmente familiar. O mercado socialmente necessário é representativo de uma parcela
da população trabalhadora que, por meio de solidariedades domésticas e redes de sociabilidade,
consegue produzir trabalho e renda como alternativa viável ao mercado hegemônico, constituindo
uma economia solidária.
Abordagens realizadas nos interstícios do tecido urbano de São Luís permitem um olhar
sobre o novo uso que se faz nesses espaços. Criado, mantido, dinamizado e transformado pelos
mais pobres, o centro da cidade abriga as diversas táticas e formas de resistência que essas ati-
vidades econômicas traduzem: a luta diária por uma reprodução do trabalho materializada no
espaço de uma maneira menos desigual, onde o sentido da produção é aquele da possibilidade de
reprodução da vida.
Fundamentais à pesquisa, os trabalhos de campo e entrevistas revelam as particularidades
do lugar e evidenciam os importantes aconteceres solidários (ver A Natureza do Espaço, de Milton
Santos, de 1996) da cidade: redes domésticas e grandes empresas abastecem o comércio popular;
ex-trabalhadores assalariados lutam pelo espaço e pela renda ao movimentarem seus carrinhos
com rede wi-fi gratuita e máquinas de débito e crédito, facilitando a venda na “informalidade” da

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 163
economia; a cooperação, o improviso e a potencialidade criativa imperam nessas trocas comerciais.
As incursões no cotidiano dos trabalhadores e consumidores do comércio popular de alimentos tem
sido uma forte ferramenta para pensar esses novos espaços de abrigo dos agentes produtores da
cidade e, sobretudo, para obter conhecimento das distintas maneiras de sobrevivência dos pobres e
segregados nesta cidade desigual.
Palavras-chave: São Luís; comércio popular de alimentação; circuito inferior da economia urbana;
mercado socialmente necessário.
Keywords: São Luís; popular food trade; lower circuit of the urban economy; socially necessary
market.

1 Doutoranda em Geografia na Universidade Estadual de Campinas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 164
A obtenção de gelo e derivados na província de São Paulo em fins do século XIX

Obtaining ice and derivates in the province of São Paulo in the late 19th century

Luís Fernando Teberga Gonçalves 1

O presente trabalho tem por finalidade realizar uma pesquisa focada na obtenção, na pro-
dução local e na importação de gelo e alimentos e bebidas dependentes de baixas temperaturas
no âmbito da província de São Paulo no final do século XIX, tendo, como ponto de partida, os
dados obtidos no comércio de alimentos importados encontrados no município de Itu no mesmo
recorte cronológico.
É ao longo do século XIX que começam a se aperfeiçoar os métodos de evaporação com
a utilização de gases como o dióxido de enxofre ou sais como o nitrato de amônia para, com o
auxílio de bombas de ar movidas a vapor, potencializar o processo de produção de gelo artificial
em uma escala que o tornasse uma opção razoavelmente viável em relação ao gelo natural, que à
época era exportado para os trópicos em caixas térmicas com consideráveis perdas em volume ao
longo do trajeto.
Outro eixo de nosso trabalho trata de alimentos e bebidas que necessitam de refrigeração
para serem produzidos ou que necessitam se manter refrigerados para que se conservem em con-
dições de serem consumidos. Destacamos inicialmente o sorvete que, de um alimento circunscrito
a algumas regiões do Hemisfério Norte nos séculos anteriores, passa a estar disponível em algumas
casas de comércio na província de São Paulo no final do século XIX. É desse mesmo período o início
da produção de cerveja de baixa fermentação não só na província de São Paulo como também na
Corte, impulsionada pela possibilidade de se obter refrigeração abaixo de 10º C por períodos pro-
longados graças às máquinas de gelo. Além desses dois produtos, julgamos importante destacar
as mudanças surgidas no comércio de carne, que em finais do XIX passa a poder contar com a
refrigeração para mantê-la em condições de consumo por períodos prolongados, sendo as duas
últimas décadas deste século, inclusive, marcadas pelos primeiros transportes transoceânicos de
carne refrigerada.
Elencamos como fontes para este trabalho anúncios selecionados em periódicos da provín-
cia de São Paulo, dados de tráfego nacional e internacional de mercadorias relacionadas ao nosso
recorte no período abordado, além de trabalhos sobre o comércio de alimentos e bebidas na provín-
cia e sobre coleta e produção de gelo no final do século XIX, levando em conta, inclusive, fontes de
História da Ciência e da Técnica que tratam do tema.
Ainda que poucos trabalhos explorem este tema de forma mais detida, consideramos
que a obtenção de um maior controle sobre a variação de temperatura é base para uma profunda
alteração nas práticas alimentares que, iniciada no final do século XIX, se desenrolará ao longo
do século XX, com a eletrificação e o aperfeiçoamento dos refrigeradores domésticos, sendo este
debate, portanto, fundamental para a compreensão das práticas alimentares contemporâneas em
uma perspectiva histórica.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 165
Palavras-chave: século XIX; abastecimento; São Paulo; conservação de alimentos; refrigeração.
Keywords: 19th century; supply; São Paulo; food conservation; refrigeration.

1 Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos Históricos das
Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 166
Eat the street: food consumption in 19th century Rio de Janeiro (1830-1860)

Comer na rua: o consumo de alimentos no Rio de Janeiro do século XIX (1830-1860)

Melina Teubner 1

Female street vendors were a common sight in cities worldwide in the first half of the 19th
century. Fields of history like women’s history have dealt with the role of these street vendors in
European cities. In recent decades, female street vendors have also been studied by a number of
Brazilian scholars, who have shed light on urban slavery, domestic slavery and other forms of
unfree labor. These studies commonly focus on community building among urban slaves and the
formation of a West African diaspora. All around the globe female street vendors were (and still
are) not merely passive victims of marginalization, but capable actors, who created a gendered
niche of economic opportunity, through the capitalization of their cooking and vending skills. The
popularity of female hawkers was closely connected to their being women.
Until now, few studies explore the food stalls in the city of Rio de Janeiro in the first half
of the 19th century as special places of consumption within a global perspective. Street food gave
rise to a working-class consumer culture. This study aims to focus on the social, material and
imaginary aspects of these vending places. What role did they play within the consumer culture
of Rio de Janeiro? What food did they provide? What was the communication between vendors
and customers like? These questions are especially interesting to ask against the background of Rio
de Janeiro’s intensive sociocultural transformation in the years between 1830 and 1860, after the
official prohibition of the transatlantic slave trade.
Places of food consumption such as the Paris-style restaurant (representative of luxury
dining) and taverns (representative of more commonplace, popular restaurants) saw a great
increase in the first half of the 19th century.
Analyzing food stands as places of food consumption offers the possibility to break up the
narrative of the male centered public sphere and show that women especially played a crucial
role in providing 19th century cities with food. Daily newspapers, contemporary descriptions by
foreign visitors and social novels demonstrate in an excellent manner the contemporary discourse
of eating out, the dishes that were served, who consumed these dishes and female vendors in a
global perspective.
The paper argues that eating out was not only a necessity for some, but also a form of
entertainment comparable to professional theater plays. Food stands were places were gender
roles, prejudices against foreign food and sexual honor were negotiated. Since cooking is one of the
most time-consuming types of labor in history the paper combines food history with labor history
and demonstrates public eating as a special form of entertainment.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 167
Keywords: public eating; gender; entertainment; labor; food supply.
Palavras-chave: alimentação no espaço público; gênero; entretenimento; trabalho; abastecimento
de alimentos.

1 M.A., Post-Doc at the Department of Iberian and Latin American History at the University of Bern, Switzerland, and
PhD in History at University of Cologne, Germany.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 168
Alimentação em Os Parceiros do Rio Bonito:
mudanças nas práticas alimentares do caipira frente à urbanização

Food in the book Os Parceiros do Rio Bonito:


changes in caipira’s eating practices in the face of the urbanization

Nichole Ramos da Silva 1


Fabiana Bom Kraemer 2

Trata-se de uma análise de um clássico da literatura brasileira, Os Parceiros do Rio Bonito,


escrito por Antonio Candido em meados de 1954, que reflete a cultura dos caipiras paulistas em
um determinado momento histórico. Voltar ao passado é uma forma de compreender aspectos do
presente e quiçá do futuro. A transformação dos meios de vida desse grupo social frente à urbani-
zação pode ser profícua para refletir sobre as novas formas de ruralidade. O recorte aqui adotado
refere-se à relação entre produção dos meios de vida e sociabilidade através da alimentação. Para
tanto, foram selecionados para análise os capítulos 9, 10 e 11. O caipira paulista, grupo que em sua
constituição combina traços culturais indígenas e portugueses e que obedece ao ritmo nômade
do bandeirante, pode ser visto como uma espécie de retrato das culturas tradicionais do homem
do campo, que apresentam formas de persistências e manutenção de sua autonomia e de seus
modos de vida tradicionais, porém, quando confrontadas pela cultura urbana, tendem a incorpo-
rar seus traços, principalmente no que diz respeito à cultura material. Antonio Candido sinaliza
que o caipira se alimentava no plano da subsistência, realizando, em média, quatro refeições ao
dia: café da manhã, almoço, merenda e jantar. Apesar das restrições alimentares acompanhadas
de fome fisiológica e psíquica, definida pelo autor como o desejo constante de misturas, os caipiras
não se fechavam em seus universos sociais e alimentares, ao contrário, compartilhavam carnes por
meio da caça, promoviam empréstimos de alimentos e davam festas. A obtenção dos alimentos
foi marcada pela passagem de uma alimentação pautada pelo autoconsumo para uma onde havia
crescente aquisição de gêneros do comércio. O caipira que optou por priorizar a manutenção dos
aspectos culturais de sua vida se defrontou com a fome, para além daquela psíquica, a que já esta-
va habituado e que figurava no plano dos desejos, mas a fome física que ronca e dói. Observamos
outro fenômeno, o do maior isolamento e individualização entre os caipiras, que diminuíram a
realização de festas e socialização da comida através do compartilhamento das carnes caçadas.
Através da presente análise, observamos que as mudanças ocorridas na alimentação dos caipiras
estiveram sempre associadas às mudanças econômicas e sociais, que, como resultado de incor-
porações progressivas da economia moderna, afetaram a organicidade da vida social e causaram
rupturas em diversos aspectos da vida do grupo. Hoje, podemos concluir que o fenômeno da urba-
nização se constituiu como uma ameaça à Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional dos cai-
piras, uma vez que influenciou seus modos de plantar, retirando-lhes protagonismo e autonomia;
implicou no acesso regular a alimentos, em quantidade e qualidade necessárias; alterou aspectos

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 169
fundamentais para seu equilíbrio social e ecológico e contribuiu para perda de características
tradicionais da alimentação.
Palavras-chave: alimentação; literatura brasileira; rural.
Keywords: food; Brazilian literature; rural space.

Apoio financeiro: Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde na Universidade do Estado do Rio de


Janeiro.
2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 170
Os trânsitos e as influências estrangeiras na alimentação
da cidade de São Paulo (1800-1830)

Transits and foreign influences on eating habits of the city of São Paulo (1800-1830)

Rafaela Basso 1

A cidade de São Paulo vivenciou nas primeiras décadas do século XIX um movimento de
expansão econômica e populacional. Isto fez com que a região se tornasse um entreposto de distri-
buição de mercadorias e estivesse, cada vez mais, vinculada à dinâmica internacional de circulação
de mercadorias e capitais. A disponibilidade de novos estabelecimentos, animada pela multipli-
cação dos serviços urbanos, transformou os espaços da cidade e foi responsável por mudanças na
alimentação da cidade.
À medida que o século XIX avançava, portanto, veremos que parte considerável dos paulista-
nos foi confrontada com novos comportamentos alimentares, que englobaram desde o surgimento
de estabelecimentos onde se podia fazer refeições, como as casas de pastos, até a difusão de novos
gêneros comestíveis e bebidas disponíveis à venda no mercado local para consumo na hora ou para
serem preparados em casa. Isso sem falar nas novas práticas alimentares, cada vez mais associadas
a uma ideia de sociabilidade, observadas intra e extramuros. A proposta da presente comunicação
é destacar as diferentes influências estrangeiras nas transformações dos hábitos alimentares dos
paulistanos nas primeiras décadas dos Oitocentos, através da discussão tanto dos produtos quanto
dos estabelecimentos surgidos no período. Utilizaremos como fontes principais para aprofundar-
mos nossa compreensão sobre as atividades mercantis ligadas à alimentação a documentação da
imprensa periódica.
Palavras-chave: São Paulo; século XIX; influências estrangeiras; casas de pasto.
Keywords: São Paulo; 19th century; foreign influences; “casas de pasto”.

1 Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diretora de Gestão e Preservação de
Documentos e Informação do Arquivo Central da Unicamp.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 171
Grupo de trabalho 5

CULTURA MATERIAL E PATRIMÔNIO

Work group 5

MATERIAL CULTURE AND HERITAGE

Coordenadores/Coordinators:

Cintia Gama

Pós-doutoranda pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora da

École Pratique des Hautes Études, coordenadora do curso de gastronomia do

Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU)

Viviane Soares Aguiar

Doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo,

pesquisadora do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP)

Comissão Científica/Scientific Committee:

Vânia Carneiro de Carvalho

Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora do

Museu Paulista e de História Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,

coordenadora do subprojeto “Processamento de alimentos no espaço doméstico. São Paulo, 1860-1960”,

vinculado ao projeto temático Fapesp “Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a

produção de conhecimento” (2018-2022)

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 172
A transformação de alimentos tradicionais em produtos simbólicos:
um estudo de caso com o Queijo Canastra

The transformation of traditional food into symbolic product:


the case study of Canastra Cheese

Bianca Silva da Cruz 1


Lertiane Maria Lima Moreira 2

Objetivo: Atualmente a gastronomia nacional e mundial vive um momento de valorização
e certificação de seus ingredientes tradicionais, a fim de se destacarem e sobreviverem em um
mercado industrial cada vez mais competitivo. No Brasil, o Queijo Canastra é um exemplo disso.
Nosso objetivo, então, é expor o processo que transformou o queijo artesanal produzido na Serra da
Canastra em um símbolo gastronômico e cultural.
Metodologia: Por meio de um levantamento bibliográfico, foi feito um estudo de caso sobre
o Queijo Canastra. Na bibliografia, buscamos dados sobre a história de Minas Gerais, sua ocupação
e produção queijeira, além de expor e discutir os elementos mais relevantes na transformação do
Queijo Canastra, de um alimento tradicional/rural para um produto gastronômico.
Resultados: Neste trabalho destacamos quatro questões que juntas propiciaram a ressig-
nificação do Queijo Canastra. A primeira expõe a chancela do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) nesse produto, decorrente do processo de registro do Modo Artesanal de
Fazer Queijo Minas, que na prática atesta a tradição e a importância cultural desse alimento para o
país. A segunda questão trata do reconhecimento desse queijo como um produto de terroir, ou seja,
um produto cujos aspectos únicos advindos daquela região em conjunto com o trabalho artesanal
o tornam diferenciado e passível de ações de salvaguarda. A terceira disserta sobre a obtenção da
Indicação de Procedência, uma certificação utilizada para assegurar a tradição em relação ao modo
de preparo e comercialização do produto. Por fim, a quarta analisa as ações de marketing desenvol-
vidas por um grupo de produtores do Queijo Canastra, respaldadas nas certificações conquistadas,
cujo intuito era fazer a promoção desse queijo e torná-lo valorizado perante a gastronomia e a
sociedade. Assim, analisando essas questões conjuntamente, verificam-se relações contraditórias,
que se estabelecem através de interesses distintos e nem sempre convergentes. É possível afirmar,
por ora, que os benefícios advindos desses processos de valorização do queijo não são equitativa-
mente distribuídos entre os agentes que participam dele.
Contribuição: Este trabalho tem um potencial de contribuição teórica às diferentes áreas
que abrangem os estudos sobre alimentação, incluindo as ciências sociais e a história, visto que, ao
analisar um dos caminhos de transformação dos alimentos tradicionais em produtos valorizados
monetária e simbolicamente, é possível registrar um pouco das mudanças sociais que vêm ocorren-
do na gastronomia brasileira e na forma de nos alimentarmos. Além disso, as observações acerca
das contradições levantadas em nosso estudo podem servir para pensar os casos de alimentos tra-
dicionais que tem passado por processos semelhantes de valorização.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 173
Palavras-chave: Queijo Canastra; estudo de caso; valorização; terroir; tradição.
Keywords: Canastra Cheese; case study; valorization; terroir; tradition.

1 Pós-graduada em Cozinha Brasileira no Centro Universitário Senac.


2 Pós-graduada em Cozinha Brasileira no Centro Universitário Senac.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 174
Notas sobre culinária caipira na obra de Almeida Júnior

Notes on caipira cuisine from Almeida Júnior’s paintings

Bruno Brito 1

Muitos escritos sobre culinária caipira mencionam uma pequena pintura de 1895 intitulada
Cozinha Caipira, do pintor ituano Almeida Júnior, artista responsável por retratar cenas rurais pau-
listas no último quartel do século XIX. De fato, a detalhada pintura nos fornece uma série de ele-
mentos significativos para compreender tal cultura alimentar, principalmente na forma de objetos
como o pilão, a banqueta, a urupema, o fumeiro, o forno romano, o fogão de poial ou “de rabo”, bem
como a própria arquitetura em taipa de mão. No entanto, o restante das obras da fase regionalista,
realizadas após seu regresso de Paris, nos dão muitas pistas para compreender de que modo estas
populações se relacionavam com o meio rural, com os processos vitais e a própria alimentação.
Além de Cozinha Caipira, neste trabalho irei comentar as seguintes pinturas: Apertando o Lombilho,
Paisagem do Sítio Rio das Pedras, Caipiras Negaceando, Caipira Picando Fumo e O Violeiro.
Em Apertando o Lombilho temos um mastro no centro do terreiro. Vale ressaltar que este
mastro não leva uma bandeira de santo no topo e por isso remete aos antigos mastros pagãos do
hemisfério norte. É possível notar que há frutas espetadas no esteio, aliás, ainda hoje em algumas
localidades do Vale do Paraíba, moradores da zona rural amarram espigas de milho e colocam ovos
em sua base, fazendo do objeto um instrumento de fertilização agrícola, já que, simbolicamente
liga o céu e a terra nos solstícios de inverno.
Já em Paisagem do Sítio Rio das Pedras adentramos o perímetro florestal não muito distante da
casa roceira. Nesta pintura temos no primeiro plano uma espécie de palmito, comum principalmen-
te nos sítios caiçaras do litoral. O pequeno ribeirão ao centro parece operar como uma subdivisão na
propriedade, sendo a margem esquerda mais próxima da casa, justamente pelo fato da presença
da palmeira e também pela cobertura rala do solo, provavelmente desgastada pelo pisoteamento
humano e animal. Em contraposição, na margem direita temos uma árvore de grande porte ao
fundo, que evoca a ideia de “mata virgem”, intocada. Mais atrás há uma espécie de pinguela que
conecta a margem civilizada à margem primitiva. Podemos empregar os termos de Lévi-Strauss a
essa pintura: “o cru e o cozido”, sendo a pequena ponte a representação da passagem do estado
natural para o cultural. A mesma relação ocorre em Cozinha Caipira, como bem observou Daniela
Perutti ao chamar atenção para a galinha na soleira da porta: a ave se encontra justamente no limite
entre a natureza e a civilização, basta adentrar o recinto para ir direto para a panela e se tornar comi-
da, ou seja, um elemento da cultura.
Por meio de uma narrativa espaço-temporal é possível conectar todas as pinturas citadas
anteriormente empregando outros exemplos similares que dizem respeito à ocupação da paisagem
e à alimentação. O trabalho tem como objetivo ampliar o debate da cultura caipira e sua culinária a
partir da obra de Almeida Júnior.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 175
Palavras-chave: Almeida Júnior; propriedade rural; culinária caipira; arte; antropologia.
Keywords: Almeida Júnior; rural property; caipira cuisine; art; Anthropology.

1 Doutorando em Artes Visuais no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 176
Uma análise discursiva sobre a autoria de A Ciência na Cozinha e a Arte de Comer Bem,
de Pellegrino Artusi

A discursive analysis on the authorship of the book Science in the Kitchen and the Art of Eating Well,
by Pellegrino Artusi

Carla Maicá Silva 1

A gastronomia é sem dúvidas um dos elos mais fortes de um povo. Nela, identidade e cultura
são expressas através de práticas alimentares. Inscrita na Análise do Discurso francesa, compreendo
tais práticas como discursos. Ao tratar a gastronomia e os discursos sobre por tal perspectiva, abor-
do a face política dessas práticas, as relações de forças que estão implicadas nelas, os conflitos e a
constituição dos sujeitos a partir desses modos e saberes. Assim, ao tomar como objeto de pesquisa
o livro de culinária considerado um dos pilares da construção identitária italiana pós-unificação, o
tomo como uma materialidade significante.
O livro A Ciência na Cozinha e a Arte de Comer Bem foi escrito e publicado por Pellegrino Artusi em
1891 – trinta anos após a unificação – e acrescido e reeditado por vinte anos, graças à relação epistolar man-
tida entre autor e leitores. Enquanto o Estado investia na tentativa de consolidar a Itália como nação,
Artusi, um senhor burguês de 70 anos, diletante, patriota, liberal e anticlerical, chegava aos lares
de muitos desses “novos italianos” quase que sorrateiramente com uma linguagem técnica, clara e
eficaz, mas nem por isso monótona. Com a grande circulação de seu manual prático para as famílias o
autor foi capaz de apresentar a Itália aos italianos através não somente de receitas, mas também de
observações pessoais que ficam entre a etnologia e a picuinha, entre a descrição e a interpretação,
em um movimento complexo de autoria que, ao mesmo tempo em que sistematizava a terminolo-
gia culinária, gerando um efeito de unidade através da língua, salientava as diferenças entre as regi-
ões apontando particularidades dos dialetos e das mentalidades. Seria, então, a primeira tentativa
de reconhecimento nacional, de uma unidade que se construiu a partir das diferenças: a unidade na
dispersão, a alteridade para se constituir como um.
A partir das quinze edições do livro e das correspondências encontradas em Pellegrino Artusi
e la cucina di casa, de Martina Fabretti (2008), analisei a constituição do receituário suspendendo
as evidências simbólicas tanto sobre a figura do autor quanto da obra também conhecida como O
Artusi. A realização do estudo permitiu compreender a particularidade da autoria – a qual categorizo
como autoria bumerangue – e também a descrição de um estilo e de um método discursivo encontra-
dos nas linhas artusianas que asseguraram o sucesso editorial naquele momento aos dias de hoje.
Palavras-chave: análise do discurso; culinária; autoria; Pellegrino Artusi; Itália.
Keywords: discourse analysis; culinary; authorship; Pellegrino Artusi; Italy.

1 Doutoranda em Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 177
Possibilidades de estudo da alimentação egípcia antiga

Possibilities of the study of ancient Egyptian food

Cintia Gama 1

O estudo de culturas passadas, principalmente no que concerne ao cotidiano e às práticas


mais habituais a uma determinada sociedade em períodos históricos recuados, apresenta diversas
dificuldades devido à falta de documentação escrita que trate de padrões tão comuns a uma cole-
tividade. Tendo em vista as dificuldades do estudo de padrões cotidianos, as pesquisas acerca da
alimentação na antiguidade não escapam a essas questões, especialmente no que concerne às fon-
tes tanto epigráficas quanto arqueológicas bem como a uma metodologia de estudo. Deste modo,
tendo em vista tanto questões metodológicas quanto documentais, nossa breve apresentação tem
como objetivo mostrar como a arqueologia, as fontes epigráficas e escritas têm auxiliado na com-
preensão dos padrões alimentares egípcios antigos e na relação desse povo com seus alimentos.
Apresentaremos as diversas fontes para o estudo dos padrões alimentares dessa população, bem
como faremos uma análise dos textos funerários associados à alimentação, mais precisamente os
Textos dos Caixões, do Médio Império (2.000-1580 a.C.), bem como a apresentação de fontes arque-
ológicas que corroboram ou não com os textos, passando por uma breve revisão bibliográfica do
tema que se encontra bastante em voga na atualidade.
Assim, trataremos também da questão do excesso de fontes acerca do cotidiano egípcio, o
que, na contramão do estudo das culturas da antiguidade, pode também nos induzir ao erro.
Nossa apresentação terá, dessa maneira, o intuito de discutir abordagens metodológicas,
bem como as fontes para o estudo da alimentação do período faraônico, colocando, assim, a egipto-
logia como um campo fértil para o conhecimento dos meios de produção e consumo de alimentos
no campo de estudos da história/arqueologia alimentar.
Palavras-chave: egiptologia; alimentação; fontes; arqueologia; epigrafia.
Keywords: Egyptology; food; sources; archaeology; epigraphy.

1 Pós-doutoranda pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora da École Pratique
des Hautes Études, coordenadora do curso de gastronomia do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas
Unidas (FMU).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 178
“A arte culinária na Bahia”: obra de Manuel Querino

“A arte culinária na Bahia” [The art of cooking in Bahia]: a work by Manuel Querino

Claude G. Papavero 1

A presente comunicação visa delinear o contexto sociocultural que deu origem ao conjunto
de receitas coligidas por Manuel Querino (1851-1923), publicadas na obra intitulada: A arte culinária
na Bahia (1922). Três décadas após a abolição do sistema escravista e a proclamação da República,
diversos intelectuais brasileiros, empenhados em valorizar os traços específicos do país, procu-
raram distanciar-se da herança portuguesa. Ampliaram o conceito de três raças formadoras da
nação: indígena, portuguesa e africana, acoplado (na visão de autores como Gilberto Freyre) a uma
utópica democracia racial.
Ao apresentar um rol costumeiro de receitas soteropolitanas, Querino, estudioso negro, não
limitou seu escopo à divulgação de criações culinárias locais. Comentários acompanhando o deta-
lhamento dos preparos possibilitam ao leitor inferir o intento que orientou o empreendimento: um
desejo de afirmar e dignificar o aporte cultural da população negra à modelagem de um cardápio
local. Segundo observou Raul Lody (na apresentação de edição recente da obra do autor), Querino
“inaugurou um olhar e um estilo em torno de matriz africana, baseado em suas vivências pessoais
no Recôncavo baiano...”.
Semelhante contribuição suscita indagações. Em que circunstâncias uma culinária de matriz
africana teria surgido na Bahia? Em área rural ou urbana? Nas casas ou nas ruas da cidade (às mãos de
vendedoras ambulantes)? E, por conseguinte, quando foi que essas iguarias saborosas e nutritivas,
de tempero marcante, elaboradas com ingredientes de custo módico e um uso trabalhoso da pedra
de ralar começaram a ser amplamente apreciadas pelo conjunto da população, tornando-se ele-
mento simbólico representativo de uma identidade baiana? Em tempos coloniais? Após a abolição?
Fundamentada na perspectiva da micro-história apresentada por Carlo Ginzburg em Mito,
emblemas e sinais (1986; em versão brasileira, publicado pela Companhia das Letras, 1989), pretendo
delinear uma reflexão etno-histórica sobre os fenômenos envolvidos e apontar aspectos da história
da alimentação baiana que merecem discussão. Comentários rápidos de cronistas, de viajantes ou
de autores do período colonial como o poeta Gregório de Matos Guerra e documentos analisados
por historiadores como Richard Graham, autor da obra Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à
reforma liberal (Salvador, 1780 –1860), servirão de indícios para desvendar as peculiaridades do con-
texto soteropolitano que presidiram à publicação da obra de Manuel Querino.
Palavras-chave: Manuel Querino; culinária na Bahia; alimentação dos escravos; década de 1920.
Keywords: Manuel Querino; culinary in Bahia; slave feeding; 1920s.

1 Doutora em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 179
Comida como patrimônio: consumo, soberania e identidade na Indicação Geográfica da
Farinha de Bragança, no Pará (2013-2018)

Food as heritage: consumption, sovereignty, and identity in the Geographical Indication of


Bragança flour, in Pará (2013-2018)

Érico Silva Alves Muniz 1

Esta comunicação tem por objetivo apresentar resultados de uma pesquisa em curso sobre o
processo de Indicação Geográfica (IG) e certificação como produto artesanal da farinha de mandioca
produzida na região bragantina, situada no nordeste do estado do Pará, parte da Amazônia brasilei-
ra. Através de pesquisas com fontes arquivísticas e trabalho de campo com agricultores familiares
e gestores públicos localizados nas cidades de Augusto Corrêa, Tracuateua e Bragança, o trabalho
dimensiona aspectos dos debates sobre o selo de certificação da farinha bragantina. Analisamos as
concepções de “farinha boa” para a ciência e para as populações tradicionais da região (sobretudo
indígenas, quilombolas e ribeirinhas), observando o discurso construído pelos entes públicos que
acompanham o processo, onde a pureza do produto é questionada pela meritocracia acadêmica
das comunidades científicas. Debatemos ainda à luz da teoria antropológica e da historiografia,
tendo Néstor Canclini e Pierre Bourdieu como referências, de que maneira a sociedade capitalista
ocidental demanda uma fuga da padronização das escolhas, empreendendo uma distinção simbó-
lica. Ou seja, o consumo tem também dimensões políticas e cidadãs, os desejos viram demandas
em atos que são socialmente regulados. Para efeito do nosso estudo, o produto com IG certifica a
procedência e o “bom gosto”, o que justifica a sua aceitação especialmente nos núcleos urbanos,
afastando a associação histórica entre o ato de comer farinha e a condição de pobreza e miséria.
É possível observar que o processo de IG e a posterior criação de um selo higiênico para farinha
bragantina representam complexas medidas de transferência de um produto tradicional, do patri-
mônio alimentar de populações amazônidas, para o status de capital simbólico. Dessa maneira, o
processo de IG está inserido em regras de mercado e consumo externas e alheias aos anseios das
comunidades produtoras de um item da cultura alimentar amazônida que configura identidade e
pertencimento.
Palavras-chave: farinha; Bragança (Pará); patrimônio cultural.
Keywords: flour; Bragança (Pará); cultural heritage.

1 Doutor em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz, professor adjunto
do Campus Universitário de Bragança/Universidade Federal do Pará.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 180
O consumo como experiência:
de vestimentas e alimentos a luxo e gastronomia (séculos XIX-XXI)

Consumption as experience:
from clothing and food to luxury and gastronomy (19th-21st centuries)

Giulia Falcone 1

A moda de luxo e a gastronomia não foram invenções do século XIX. Vestimentas suntuosas
e alimentos refinados eram habitualmente consumidos pelas cortes aristocráticas nos séculos XVII
e XVIII. A grande diferença introduzida pelo século XIX, portanto, foi o banimento da restrição do
consumo desses bens à classe aristocrática.
A possibilidade do acesso ao luxo e à gastronomia implica na necessidade do estabeleci-
mento de novos critérios que garantam sua exclusividade à nova classe dominante. Esse preceito é
traduzido em preços mais elevados, o que certifica não apenas a manutenção da restrição do consu-
mo do luxo e da gastronomia à burguesia, como reforça a distinção da produção sofisticada desses
bens ao modo de produção industrial em crescimento.
Entretanto, no século XX, especialmente a partir dos anos 1950, o desenvolvimento dos
meios de reprodutibilidade técnica promove a massificação na produção de bens de luxo e artigos
gastronômicos, equiparando-se cada vez mais à produção daquilo que é considerado banal. A partir
de então, se a forma como são produzidos não demarca mais a diferenciação entre o simples e o
refinado, é necessário que novas formas de consumo o façam.
Deste modo, a experiência do consumo assume uma posição de especial relevância, inclusi-
ve em comparação à forma de produção. Assim, não é mais a experiência da produção que confere
ao bem de luxo ou ao artigo gastronômico a qualidade de exclusivo, mas a forma como são consu-
midos que garante a reprodução da sensação de exclusividade.
Este trabalho pretende discutir como se manifestam essas experiências de consumo do luxo
e da gastronomia no século XXI. Será dada especial atenção às expressões que combinam a moda
de luxo e a gastronomia a uma experiência estética, na qual se busca a desvinculação da reproduti-
bilidade técnica através da compreensão do consumo como um momento supra-histórico, em que
é privilegiada a experiência sensorial do “aqui e agora”.
Palavras-chave: luxo; gastronomia; moda; experiência.
Keywords: luxury; gastronomy; fashion; experience.

1 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 181
Between health and pleasure: the culinary recipes of the Kitāb al-ṭabīẖ

Entre a saúde e o prazer: as receitas culinárias do livro Kitāb al-ṭabīẖ

Hélène Jawhara Piñer 1

Between pleasure and health, why should we have to choose?


Though this combination did not mainly concern the culinary tradition of the Christian
Middle Ages, on the other hand, it fits fully into an Arabic tradition of both East and West of the
said period.
In the late Middle Ages under Islamic domination, doctors, agronomists or botanists, offer
–through multiple medical treatises on food or agriculture–, culinary recipes good for health.
Thus, for Ibn Rush, Ibn Rāzī, Avicenne or Maimonides –as for many others scholars–, foodstuffs
play a key role in its benefits for health. In this way, cookbooks occupy pride of place in this alliance
between health and cooking. Therefore, the culinary recipes of half a dozen cookbooks of the
Muslim Middle East dating back to the 10th-14th centuries, suggest this combination: listen to
your body, take pleasure when you eat, do it according to your health and eat in a measured way.
Cookbooks of the Iberian Peninsula written in Arabic in the Dar al-Islam testify to the transmission
–from the Muslim Middle East– of the medico-culinary tradition based on humoral theory and
culinary practices.
This paper will focus on the place occupied by dietetic in the first known cookbook of
the Iberian Peninsula: the Kitāb al-ṭabīẖ [The cookbook]. Its anonymous author quote Galen and
Hippocrates that, therefore, inscribes the Kitāb al-ṭabīẖ in the influence of the Greek dietetic
tradition. Furthermore, the knowledge of the anonymous author concerning medicine, dietetic, and
cuisine is undeniable.
Through half a thousand recipes, I will first present a reflection on this source commonly
named “The Cookbook”, and then underscore the proportion of dishes containing medical
recommendations. Then I will offer an approach to frequently used foodstuffs in the recipes where
health seems to take precedence over the pleasure of eating the dish. Curing the illness, avoiding
it, take pleasure, what is the goal of the culinary recipes? Thus, the aim is to identify both the most
common dietetics recommendations and the disease that seem the most important to avoid.
Finally, I will provide a glimpse of one of the most characteristic culinary recipes of this alliance
health/pleasure that can offer the Andalusian cookbook. A brief reflection can be conducted on the
current phenomenon that shows the willingness to return to healthy food which recommendations
can be found in the cookbooks dating from the Middle Ages.
Keywords: recipe; health; food; Iberian Peninsula; heritage.
Palavras-chave: receita; saúde; alimentação; Península Ibérica; patrimônio.

1 PhD in Medieval History at the University of Tours (France).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 182
Os doces de Pelotas: a confeitaria dos imigrantes na região Sul do Brasil

Sweets of Pelotas: immigrants’ confectionery in Southern Brazil

Izabela Arantes Bertachini 1


Thiago Alves José 2
Vivianne Hermógenes Pereira Martinho 3
Paola Biselli Ferreira Scheliga 4

A cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, é conhecida por sua cultura doceira. Essa tradição
foi construída historicamente, remetendo-nos à influência gastronômica dos imigrantes europeus
que chegaram à região e promoveram o desenvolvimento da identidade cultural da confeitaria
local. A riqueza étnica local, juntamente com o declínio da produção de charque, principal atividade
econômica da região até o início do século XX, possibilitou o início da produção doceira característi-
ca de Pelotas, transformando a cidade em referência na confeitaria nacional. 
O presente trabalho tem como objetivo apresentar um estudo realizado a partir de pesquisa
bibliográfica, sobre o contexto histórico que levou a cidade de Pelotas a se tornar um marco na con-
feitaria nacional, destacando as referências, os principais ingredientes e as influências da cultura
doceira dos imigrantes no desenvolvimento de receitas típicas da região. Espera-se, com o desen-
volvimento da pesquisa, contribuir para o estudo das origens da confeitaria brasileira através de
aprofundamento em aspectos relacionados às transformações que permeiam a confeitaria clássica
e atual. Trabalho apresentado como requisito parcial para obtenção dos créditos na disciplina de
confeitaria ministrada pela professora e orientadora Paola Biselli F. Scheliga.
Ao longo da pesquisa bibliográfica realizada, foi possível adquirir e aprofundar conheci-
mentos sobre receitas específicas de doces denominados “de Pelotas” e produzidos na região. A
diversidade de tipos de produções e ingredientes utilizados é enorme, porém, foi possível verificar
as influências dos imigrantes na composição através dos ovos, do açúcar e de especiarias, como a
canela, por exemplo. Para representar as receitas da tradição doceira da região, foram seleciona-
das três receitas típicas: ambrosia, arroz de leite e papo-de-anjo. No desenvolvimento de estudo
sobre as fichas técnicas a partir dessas receitas, verificou-se que é notória, tanto na composição dos
ingredientes como no modo de fazer, a importância de ingredientes como ovo e especiarias para o
resultado e sabor final do preparo.
O sucesso dos chamados doces de Pelotas parece ser resultado de receitas que aliam o gosto
por sobremesas com menos açúcar e adaptações aos ingredientes locais. Outro aspecto que influen-
ciou na manutenção dessa tradição doceira está relacionado à transmissão de receitas pelas famílias
imigrantes, que perpetuaram a cultura europeia de consumo de doces e sobremesas. O resultado
desses fatores, que levaram à continuidade da confeitaria dos imigrantes adaptadas à cultura
gastronômica local, gerou contribuição para a confeitaria da região Sul do Brasil, sendo de grande
importância para o curso de confeitaria adquirir e aprofundar os conhecimentos sobre o tema.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 183
Palavras-chave: confeitaria; doces; Pelotas; imigrantes; gastronomia.
Keywords: confectionery; sweets; Pelotas; immigrants; gastronomy.

1 Graduanda em Gastronomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.


2 Graduando em Gastronomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
3 Graduanda em Gastronomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
4 Profa. Orientadora; mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 184
A cozinha caipira na obra de Cornélio Pires: cultura e sabor

Caipira cuisine in Cornélio Pires’ work: culture and taste

Maria Izilda Santos de Matos 1



"[...] ao sair após o almoção, um almoção paulista: feijão com couve, angu, torres-
mo, carne de porco e arroz-mole, fechando com um bom caldo de cambuquira [...]”
(Cornélio Pires)

Inserida numa perspectiva da história cultural, esta investigação focaliza as polêmicas em


torno da construção cultural do caipira e da cozinha caipira, para tanto privilegia-se a produção de
Cornélio Pires, considerado como porta-voz desta cultura.
A cultura caipira é aqui identificada como modo de ser e de viver do homem do campo nas
áreas do Vale do Paraíba (Rio de Janeiro e São Paulo), se estendendo pelo oeste do estado de São
Paulo (Piracicaba, Tietê, Pirapora), e, por um processo de circularidade cultural, atingindo o sul de
Minas Gerais, Mato Grosso e norte do Paraná.
Alimentar-se é uma necessidade fisiológica, um imperativo biológico que atende às neces-
sidades de sobrevivência, mas não se come apenas para saciar a fome e se nutrir, também para
saborear, por prazer e envolve construções simbólicas e culturais. As pessoas se reúnem à mesa
para além de se alimentar, para se sociabilizar, conversar, comungar crenças, compartilhar sonhos,
memórias e valores.
Tendo isso como norte, pretende-se focalizar gostos, hábitos, práticas e tradições alimenta-
res dos caipiras, a partir da análise da produção de Cornélio Pires (publicações, composições, regis-
tros sonoros, espetáculos, ações de divulgação), que se tornam documentos com grande potencial
para levantar questões sobre esta temática.
Palavras-chave: cozinha caipira; Cornélio Pires; sabores; cultura.
Keywords: caipira cuisine; Cornélio Pires; taste; culture.

1 Doutora em História pela Universidade de São Paulo, livre-docente pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, professora titular do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisadora
produtividade em pesquisa do CNPq 1A.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 185
A cultura material das práticas de beberagem quilombola e suas contribuições
para a cerâmica afro-indígena

The material culture of quilombola drinking practices and their contributions


to Afro-Indigenous pottery

Mayre Dione Mendes da Silva Mascarenhas 1

Este estudo se propõe a compreender as interações entre a materialidade do artesanato,


particularmente canecas, jarros e potes, e os sentidos atribuídos ao ato de preparar, consumir e
servir a bebida Emu no cotidiano de comunidades quilombolas. Tais interações evidenciam experi-
ências compartilhadas, no sentido de preservar modos de vida ancestral, bem como a cultura local,
configurando-se como prática educativa, na qual saberes relacionados às técnicas da cerâmica são
produzidos e transmitidos entre os membros das comunidades. Focaliza-se na pesquisa a bebida
sagrada Emu, de origem africana com interseção com a cultura indígena, produzida nas comunida-
des quilombolas de África e Laranjituba, localizadas na cidade de Abaetetuba, Pará. A produção do
Emu é uma tradição de aproximadamente 300 anos, feita a partir da mistura das ervas coletadas na
mata. A bebida passa por um ritual de consagração, considerado por eles sagrado, e, somente após
esse processo, estará pronta para ser utilizada em rituais de cura e também em festividades. A cul-
tura material que perpassa as práticas de beberagem evoca questionamentos que impulsionaram
esta pesquisa, a saber: como a fabricação do Emu impulsionou os saberes relacionadas à produção
da cerâmica? Como a cerâmica utilitária é compreendida como patrimônio material quilombola?
O percurso metodológico escolhido segue o estudo etnográfico e arqueológico, sendo os artefatos
as pistas a serem seguidas do modo de beber de povos da diáspora africana em interseção com
os indígenas. Tanto a tradição de fabricar e consumir o Emu quanto a tradição de fazer a cerâmica
contribuem para a geração de renda e também para a coesão social da comunidade ao fortalecer os
vínculos culturais e identitários, assim como apontam o encontro da cultura indígena com a cultura
africana na Amazônia. As sociabilidades centradas na produção e no consumo de bebidas fermen-
tadas entre as populações indígenas são conhecidas desde muito tempo; há relatos e documentos
da história oficial e registro de consumo da beberagem como uma prática cultural amplamente
disseminada entre os indígenas no Brasil colonial, de acordo com Maria Betânia B. Albuquerque.
No entanto, ao que se refere às populações quilombolas na Amazônia, ainda há poucos estudos
sobre tais práticas, principalmente se pensadas enquanto processos educativos em interface com a
Antropologia e com a História Cultural. Este fato aponta a perspectiva de atualização desse campo
de pesquisa, no sentido de ampliar os estudos já realizados até aqui sobre beberagens. Ao descrever
a cultura material que envolve a fabricação do Emu, esta pesquisa visa contribuir com os estudos
no campo da história cultural, apoiada nas teorias de Peter Burke, de Tim Ingold, com educação da
atenção, de saberes culturais de Maria Betânia B. Albuquerque, entre outros.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 186
Palavras-chave: educação; beberagem; cerâmica; quilombolas.
Keywords: education; drinking; pottery; quilombolas.

1 Mestranda em Educação na Universidade do Estado do Pará.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 187
A doçaria paulista no início do século XX

Sweets consumption in São Paulo in the early 20th century

Paola Biselli Ferreira Scheliga 1

Esta pesquisa discute a mudança de hábitos alimentares voltados ao consumo de doces no


processo de urbanização da cidade de São Paulo entre o final do século XIX e o início do século XX.
Através de uma abordagem qualitativa, o estudo faz um levantamento bibliográfico teóri-
co-reflexivo tanto dos autores basilares sobre a alimentação no Brasil, bem como acompanha his-
toricamente a formação da doçaria nacional e seu desenvolvimento. Esse esforço culmina com um
aprofundamento sobre a doçaria caipira com suas raízes já não mais comuns na cidade de São Paulo.
Por fim, através de uma abordagem quantitativa e também qualitativa, foram focalizados
cinco livros de receitas publicados entre 1910 e 1930, como fontes para os estudos da alimentação
com o objetivo de compreender a doçaria paulista no início do século XX. O resultado foi uma base
de dados de 700 receitas para identificação dos principais ingredientes utilizados. Os livros selecio-
nados foram: A sciencia no lar moderno (1912), Delícias das sinhás: receitas culinárias da segunda metade
do século XIX e início do século XX (2007), Culinária tradicional do Vale do Paraíba (1992), A doceira paulista
(1916), Guia prático da doceira (1930).
De acordo com a análise realizada é possível perceber uma forte influência da confeitaria
tradicional portuguesa. A partir do levantamento de receitas realizado, foi possível perceber a
predominância de ingredientes como a farinha de trigo, os ovos, a manteiga, a canela, o cravo e a
amêndoa. Todos estes ingredientes são muito utilizados na doçaria tradicional portuguesa.
Poucas foram as referências encontradas nos livros que remetem aos ingredientes reconhe-
cidos como base da alimentação caipira, como o milho, o amendoim, a mandioca, a abóbora, entre
outros. Os estudos sobre o caipira são muito mais aprofundados em relação a seus hábitos culturais,
sua formação étnica, peculiaridades sobre a sua linguagem do que sobre os hábitos alimentares
propriamente ditos. Há uma carência de material específico sobre a doçaria caipira e isto está dire-
tamente relacionado à perda de referências e tradições.
Mais do que definir quais as principais influências na culinária paulista do início do século
XX, este trabalho traz a conclusão de que outros caminhos de pesquisa podem ser utilizados para
estudos sobre cultura material e cultura alimentar brasileiras ainda pouco explorados. A busca por
novas fontes de pesquisa pode trazer resultados diferentes do esperado e propiciar um novo enten-
dimento sobre a formação cultural da sociedade paulistana.
Palavras-chave: doçaria; caipira; cultura; Belle époque paulistana.
Keywords: sweets; caipira; culture; Belle époque in the city of São Paulo.

1 Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, docente e pesquisadora
no curso de Gastronomia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 188
Civilidade, distinção e identidade nacional nas páginas do Cozinheiro Imperial (1840)

Civility, distinction, and national identity in the pages of the cookbook Cozinheiro Imperial (1840)

Patrícia Maria da Silva Merlo 1

A chegada da Corte lusa ao Rio de Janeiro, em 1808, reforçou a importância da alimentação


como critério de diferenciação social. Saber comportar-se em público, sobretudo à mesa, era essen-
cial para os membros da elite local por expressar sua conformidade cultural e social com os pares
portugueses. Aliás, tal forma de comportamento, replicada dos modelos de comportamento das
cortes europeias, converteu-se em um dos meios que as elites açucareira e cafeicultora encontraram
para sustentar sua distinção social, nos termos de Pierre Bourdieu. No decurso do século XIX, o Rio
de Janeiro, capital do país, corte da monarquia e maior porto comercial, converteu-se no modelo de
comportamento que deveria moldar o novo país. Contudo, mesmo após a independência, a elite local
continuou a se europeizar, assinalando mais profundamente a distinção entre os vários grupos que
compunham a sociedade brasileira.
O primeiro receituário nacional nasceu nesse cenário, Cozinheiro Imperial, publicado em 1840.
Sua principal base foram os livros portugueses Arte de Cozinha, de autoria de Domingos Rodrigues,
publicado em 1680, e Cozinheiro Moderno, de Lucas Rigaud, datado de 1780. Soma-se a isso a influ-
ência francesa, em menor medida. Todavia, diferentemente de Portugal, no Brasil ainda se estava
vivenciando a fixação de um discurso sobre a alimentação, tanto nas relações com a prática culinária,
quanto com seu aspecto discursivo. Por isso, muitas novidades ligadas à emergência da gastronomia
enquanto campo autônomo aparecem de maneira pálida em Cozinheiro Imperial. De fato, o primeiro
livro de cozinha brasileiro não atesta uma “culinária brasileira”, mas suas reedições parecem apontar
que a ampliação do público leitor implicou na reinterpretação e inclusão de ingredientes e modos
de preparo mais ao gosto local. Acreditamos que o uso crescente de ingredientes locais e de recei-
tas à brasileira pode ser interpretado como indício do lento delineamento da cozinha nacional, que
caracterizou a emergência das cozinhas regionais no final do século XIX. Como apontado por Carlos
Dória, o Cozinheiro Imperial representou o esforço inicial de nacionalização do saber culinário e, por
essa razão, foi um marco na formação do pensamento brasileiro sobre o comer entre a elite agrária e
os setores urbanos do país. No entanto, esse esforço esteve associado ao que a elite quis comer como
construção de nacionalidade, preservando-se, pari passu, fiel ao modo de vida europeizado. Não obs-
tante, Cozinheiro Imperial, apesar de reunir receitas aos moldes internacionais, já integrava na sua apre-
sentação o apelo para que o livro fosse abrasileirado. Assim como o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro começava a escrever uma história do Brasil, o receituário colaborou para o fortalecimento
dessa identidade nacional em construção.
Palavras-chave: Cozinheiro Imperial; história da alimentação; civilidade; identidade nacional; receituário.
Keywords: Cozinheiro Imperial; food history; civility; national identity; recipes.

1 Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora vinculada ao Programa de
História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 189
Vive la France: as influências no cenário cultural e social de São Paulo no início do século XX

Vive la France: influences on the cultural and social scene of São Paulo in the early 20th century

Thais Morais Salomão 1

As primeiras décadas do século XX, no Brasil, foram marcadas por uma grande aceitação das
elites às influências culturais provenientes das capitais europeias. As cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro passaram por um extenso processo de reforma urbana, assim como o barão Georges-Eugène
Haussmann havia promovido em Paris. Na cena social destas capitais, surgiram os chamados salões,
ambientes frequentados por intelectuais, poetas, artistas e pela alta sociedade, nos mesmos moldes
adotados pela burguesia parisiense. Nestes ambientes realizavam-se serões literários, palestras e
exposições e eram servidos banquetes com pratos de nomes franceses, que seguiam as regras de boas
maneiras e etiqueta nascidas nas sociedades de corte da França.
O presente estudo busca apresentar o processo de urbanização da cidade de São Paulo e o
cenário social e cultural da elite daquele período e também compreender de que forma aquele grupo
via a necessidade de se distanciar do estilo de vida provinciano e romper com os costumes da socie-
dade imperial para considerar-se civilizado.
O grande esforço da elite brasileira para se afastar de seu passado colonial e se aproximar dos
padrões franceses pode ser, de certo modo, elucidado pelo raciocínio de Stuart Hall de que a identi-
dade é algo sempre em processo, em constante modificação. Assim, na contramão do que havia sido
visto durante o Romantismo, período em que nossos autores expressavam forte nacionalismo e certa
ânsia de criar um estilo autêntico que valorizasse as tradições do país, nos primeiros anos do século
XX prevalece a vitória do cosmopolitismo francês e adotam-se o mobiliário, as roupas e o modo de
vida parisienses.
Nos encontros da alta sociedade paulistana nos salões do senador José de Freitas Valle, os
convivas falavam francês sobre poesia, literatura e artes, o que, conforme Norbert Elias, demonstra o
anseio de usar da língua como forma de definir o seu caráter nacional. Ademais, naqueles ambientes
predominavam a etiqueta e o refinamento à mesa franceses que, segundo Pierre Bourdieu, são instru-
mentos de diferenciação social e evidenciam que a cultura que une é também a cultura que separa.
A partir do trabalho dos autores mencionados e também dos arquivos de periódicos em
circulação desde aquela época, como O Estado de S. Paulo, A Cigarra e A Lua, esta pesquisa analisará
os fatores que são relevantes na formação de uma identidade nacional e como o “desejo de ser brasi-
leiro”, que imperou no Brasil durante o período do Romantismo, afastou-se de qualquer elemento da
cultura popular e transformou-se em “desejo de ser estrangeiro”.
Palavras-chave: São Paulo; século XX; identidade nacional; pós-colonialismo.
Keywords: São Paulo; 20th century; national identity; post-colonialism.

1 Mestranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduanda em Gastronomia: História e Cultura


no Centro Universitário Senac.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 190
Repertório Histórico Ilustrado de Equipamentos e Ferramentas de Cozinha:
uma discussão metodológica

Illustrated Historical Repertoire of Kitchen Equipment and Tools:


a methodological discussion

Vânia Carneiro de Carvalho 1


Laura Stocco Felicio 2
Maria Eugênia Ferreira Gomes 3
Viviane Soares Aguiar 4

Esta comunicação enfoca a metodologia usada no desenvolvimento do subprojeto


“Processamento de alimentos no espaço doméstico. São Paulo, 1860-1960”, desenvolvido como
parte do projeto temático Fapesp “Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a pro-
dução de conhecimento” (processo 2017/07366-1). O objetivo é apresentar as etapas do projeto em
curso, que tem como objetivos finais a elaboração e a publicação de um repertório ilustrado sobre
objetos de cozinha e o embasamento da exposição “CasaCorpo”, proposta para a reinauguração do
Museu Paulista da Universidade de São Paulo, em 2022.
O projeto associa-se aos estudos de cultura material da forma como vêm se expandindo na
historiografia em articulação com teorias da Antropologia, em especial no que concerne às intera-
ções entre sujeito e objeto e ao enfoque dessa dinâmica por meio do conceito de “agenciamento”,
que sugere uma relação não passiva, mas de ação e transformação mútua entre eles. Esta aborda-
gem, defendida de diferentes maneiras por antropólogos como Bruno Latour, Jean-Pierre Warnier
e Daniel Miller, tem se desenvolvido no meio acadêmico brasileiro, sobretudo, por pesquisadores
ligados a instituições museológicas como o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e o Museu Paulista da USP.
É nesta linha que se insere nossa pesquisa, que foi elaborada a partir de seis etapas principais:
1) o levantamento das fontes a partir de referências bibliográficas, inventários, cadernos e livros de
receitas, anúncios publicitários etc.; 2) a formulação de uma ficha inicial de pesquisa; 3) a elaboração
de uma ampla amostragem de objetos, a partir das fontes, com potencialidade de serem reunidos
em um repertório ilustrado; 4) a análise das fontes e o subsequente preenchimento da ficha e de um
banco de dados; e 5) a seleção de objetos que farão parte do repertório e sua redação final.
Por fim, apresentaremos um estudo de caso focado na análise do fogão como equipamento
doméstico, buscando demonstrar a importância da perspectiva da cultura material para os estudos
de história da alimentação. Ao identificarmos o artefato em suas diversas configurações – como
trempe, fogão de poial (a lenha), fogão a gás ou elétrico, mencionado em fontes documentais
que vão de relatos de viajantes do século XVIII, inventários e testamentos a anúncios de lojas de
departamento do início do século XX –, foi possível compreender que sua presença no cotidiano
das residências paulistas associa-se ao carácter recíproco do processo de constituição de sujeitos e

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 191
objetos. É neste sentido que o fogão se apresenta não só como parte atuante na definição de práticas
e configurações sociais no espaço doméstico, mas também como produto e produtor da sociedade.
Palavras-chave: cultura material; museus; alimentação; espaço doméstico; cozinha.
Keywords: material culture; museums; food; domestic space; kitchen.

1 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora do Museu Paulista da USP.
2 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo.
3 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo, bolsista CNPq.
4 Doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 192
Grupo de trabalho 6

IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES

Work group 6

IDENTITIES AND REPRESENTATIONS

Coordenadores/Coordinators:

Joana Pellerano

Doutora em Comunicação e Práticas de Consumo pela Escola Superior de

Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Docente do programa de pós-graduação lato sensu

“Gastronomia: História e Cultura” do Centro Universitário Senac, em São Paulo, e uma

das fundadoras e responsáveis pelo portal Comida na Cabeça

Maria Henriqueta Gimenes-Minasse

Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná, com estágio

pós-doutoral na Universidad de Vigo. Professora das áreas de Gastronomia e Hospitalidade na

Universidade Anhembi Morumbi e uma das fundadoras e responsáveis pelo portal Comida na Cabeça

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 193
Nossa culinária, nosso patrimônio:
narrativas e registros de estudantes de Gastronomia sobre comida e memória social

Our culinary, our heritage:


Gastronomy students’ narratives and records about food and social memory

Ana Paula Benetti Machado 1


Éder da Silva Silveira 2

Esta discussão emerge como atividade final do curso de pós-graduação especialização em


História da Alimentação e Patrimônio Cultural, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), no Rio
Grande do Sul. Nesta lógica, o tema proposto deste estudo tem como pano de fundo o projeto Nossa
culinária, nosso patrimônio, desenvolvido na disciplina de História da Alimentação: cultura e sociedade,
do Curso Superior Tecnológico de Gastronomia, da mesma universidade. O projeto, desenvolvido
desde o ano de 2015, possui como um de seus objetivos proporcionar aos estudantes a compreensão
do alimento como categoria histórica e sua relação com o patrimônio imaterial e com a memória
social de seus municípios de origem. Para tanto, após o estudo teórico, os alunos são instigados a
identificar e pesquisar sobre uma prática gastronômica da Região do Vale do Rio Pardo (RS), rela-
cionando-a com conteúdos relativos aos bens culturais, ao patrimônio cultural imaterial, à comida
enquanto cultura e seus aspectos simbólicos, afetivos e identitários. Além disso, como materializa-
ção desta pesquisa, os discentes são convidados a planejar e elaborar uma produção audiovisual,
com envolvimento na organização de roteiros, definição de quais os caminhos metodológicos a
seguir, assim como atividades de seleção e edição de som e imagem. A escolha desse projeto como
tema de estudo se deu pelo propósito em descrever e analisar algumas práticas culturais gastronô-
micas da Região do Vale do Rio Pardo, identificadas pelos discentes, em comunidades pesquisadas
no projeto, como tendo ou não elementos de patrimônio intangível e/ou como narrativas de memó-
ria social. E para compreender como emerge a constituição histórica e de memória coletiva sobre
a culinária no Vale do Rio Pardo, a história oral foi eleita como o caminho que viabiliza a escuta
dessas comunidades, pois ela possibilita aos sujeitos, muitas vezes invisibilizados no campo da
História, compor novos olhares e vozes sobre o que já se conhece. Quanto à análise, esta se baseou
em elementos da categorização na pesquisa qualitativa, inspirada na perspectiva da análise textual
discursiva. E, a partir disso, também se verificou se o projeto possibilitou aos estudantes experiên-
cias de formação para a compreensão e construção dos conceitos de comensalidade, de memória
social e de patrimônio cultural imaterial no âmbito da alimentação. Para isso, como fonte, foram
usadas duas produções elaboradas pelos alunos e, assim, também se abriu o espaço para a refle-
xão sobre os modos de preservação dos patrimônios gastronômicos e saberes locais, analisando as
potencialidades das fontes audiovisuais na pesquisa em história da alimentação. Nesse sentido,
os audiovisuais, além de propiciarem contribuições para a ilustração de conteúdos da história da
alimentação, podem viabilizar a preservação e a divulgação de saberes e fazeres gastronômicos,

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 194
assumindo a condição de dispositivos de salvaguarda do patrimônio intangível e das narrativas de
memória social e identidade.
Palavras-chave: História da Alimentação – estudo e ensino; memória social; patrimônio cultural
imaterial; experiências de formação; recursos audiovisuais.
Keywords: food history – study and teaching; social memory; intangible cultural heritage; training
experiences; audiovisual resources.

1 Mestranda em Educação na Universidade de Santa Cruz do Sul, bolsista Capes/Prosuc Modalidade II.
2 Doutor em História, professor titular na Universidade de Santa Cruz do Sul.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 195
Para ser feliz é só começar? Um estudo sobre o uso da felicidade
em uma campanha publicitária voltada para a venda de alimentos

To be happy one just needs to start being? A study on the use of happiness
in a food advertising campaign

Ana Paula dos Passos Cancio 1


Francisco Romão Ferreira 2
Fabiana Bom Kraemer 3

A publicidade desempenha importante papel na atribuição de significados às mercadorias


na contemporaneidade, sendo capaz de transformar rituais de aquisição em comunicação, mos-
trando-se um discurso acerca dos objetos, no qual estes surgem carregados de valor identitário. O
consumo de bens se tornou um mediador das relações sociais, e a problemática central encontra-se
em entender como as narrativas publicitárias constroem algumas representações sociais voltadas
para o público consumidor, mostrando-se relevante entender o papel dos bens de consumo na cul-
tura contemporânea. No campo da alimentação e nutrição, no Brasil, destacam-se estudos sobre
regulamentação da propaganda de alimentos, sendo insuficientes aqueles que buscam compre-
ender a relação entre publicidade, a produção de subjetividades e a constituição da identidade
individual a partir da alimentação entendida como sistema simbólico. Entendendo a felicidade na
contemporaneidade como uma obrigação, o objetivo é analisar qual representação de felicidade é
construída em uma campanha publicitária do grupo Pão de Açúcar.
Metodologia: esta é uma pesquisa de natureza qualitativa interpretativa. O objeto da pes-
quisa, a campanha publicitária “Para ser feliz é só começar” foi analisada por meio do estudo do
discurso através das unidades mínimas de representação. Para tanto, a fundamentação teórica se
assenta nas leituras de Zygmunt Bauman e Gilles Lipovetsky.
Resultado e discussão: o corpus de análise aqui definido foi a cena de duas mulheres que
se conhecem em um transporte público e, naquele momento, decidem ir juntas à praia. Esta cena
remete a um cotidiano imaginado onde observam-se as relações de amizade e demonstra um
momento de demasiada felicidade. A história ocorre em aproximadamente três cenas e 3 a 5 segun-
dos de filmagem, apresentando ao telespectador uma felicidade momentânea e que nega qual-
quer tipo de sofrimento, marcando um tempo pontilhista, sobre o qual discorre Bauman. Parece
que o grupo de supermercados busca chamar os consumidores para assumir sua própria felicidade
materializada em práticas de consumo, ou seja, uma narrativa que se apresenta a partir de uma
perspectiva utilitarista da felicidade.
Contribuição teórica: ao campo da nutrição, acreditamos que este trabalho contribuirá ao
formular um diálogo que aborde como a publicidade se utiliza da subjetividade para influenciar o
consumo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 196
Palavras-chave: felicidade; publicidade; identidade; alimentação e nutrição.
Keywords: happiness; advertising; identity; food and nutrition.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do


Rio de Janeiro.
2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
3 Docente do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 197
O migrante nordestino e a cena gastronômica do Bairro do Bixiga (São Paulo/SP)

The Northeastern migrant and the gastronomic scene of Bixiga neighborhood (São Paulo)

Anna Paula Telino de Abreu Fernandes 1

A cidade de São Paulo (SP) há muitos anos atrai migrantes, que a consideram um lugar com
capacidade de prover melhores oportunidades. Dos grupos que migraram para São Paulo, os nordes-
tinos merecem uma atenção à parte, tanto por representarem parcela expressiva nessa população
quanto pela contribuição inegável para o desenvolvimento da cidade. Motivados por fatores diversos,
os nordestinos tinham algo em comum: a busca por trabalho e em consequência a melhoria das suas
condições de vida. A partir da década de 1970 um bairro em particular tornou-se destino atrativo para
eles, em virtude da presença de edificações com baixo custo de aluguel e a sua proximidade com o
centro da cidade: o Bixiga. Ocupado inicialmente por ex-escravos, o bairro recebeu significativo con-
tingente de imigrantes, sobretudo os italianos, que acabaram se tornando “símbolo” de representa-
ção do bairro. Esse foco na temática italiana, contudo, acaba ofuscando as demais comunidades que
coexistem no bairro cuja combinação sociocultural o torna um local multiétnico, rico em diversidade,
onde o contato com a alteridade é frequente. Esse trato com a alteridade impacta diretamente a
formação dos processos identitários desses migrantes, que a partir das relações interculturais pas-
sam a encarar suas identidades como múltiplas; a comida, representante das culturas e sociedades,
porta-se como elemento essencial nesse processo. Encontra-se associada ao processo de afirmação
de identidades e adaptação dos migrantes à cidade. Também é tida como um meio de reconectar o
migrante à sua origem, preservando raízes mesmo estando longe, criando um “senso de casa” onde
quer que tenha ido morar. Os migrantes nordestinos possuem forte laço com a comida, e frequente-
mente ela se torna labor; eles são identificados como atores importantes na cena gastronômica de
São Paulo. No Bixiga, hoje representam proprietários de empreendimentos do ramo gastronômico,
chefs, cozinheiros, brigada de salão, dentre outras funções. Os migrantes nordestinos são considera-
dos mão de obra versátil, tidos como bons observadores, sendo hábeis em se relacionar com diferen-
tes cozinhas étnicas, rapidamente se familiarizando com elas e não se limitando apenas à sua cozinha
típica, sendo assim imprescindíveis para a manutenção do status do Bixiga de polo gastronômico da
cidade. Assim, o objetivo geral proposto nesse trabalho é discutir o papel do migrante nordestino na
cena gastronômica do Bixiga. Para tanto foi adotada a etnografia, cujas técnicas de coleta foram a
observação participante, entrevistas abertas semiestruturadas gravadas e transcritas, com a finali-
dade de registrar as experiências vividas pelos indivíduos. Como resultado, foi observado que apesar
de merecerem reconhecimento, os empreendimentos nordestinos possuem baixa expressividade
na cena gastronômica do bairro e a presença nordestina nas cantinas como mão de obra, apesar de
imprescindível, é apagada.
Palavras-chave: nordestinos; identidade; comida nordestina; Bixiga.
Keywords: Northeastern migrants; identity; Northeastern food; Bixiga.

1 Mestranda em Hospitalidade na Universidade Anhembi Morumbi; bolsista Capes.


Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 198
A formação da gastronomia ítalo-paulistana: vestígios e histórias contadas

The formation of “Italian-paulistana” gastronomy: signs and told stories

Camila de Meirelles Landi 1

A presente pesquisa, ainda em andamento, busca investigar o hibridismo cultural na cozinha


ítalo-paulistana. A cidade de São Paulo apresenta em seus traços históricos a marcante chegada de
imigrantes de diversas etnias e nacionalidades entre meados do século XIX e o decorrer do século
XX. A vinda dos imigrantes, unida às marcas anteriores de formação da cidade, deixou sequelas
ligadas ao processo de adaptação da nova população que resultou em mudanças significativas
no viver social, no modo de falar (sotaques), nos hábitos, na produção cultural e na alimentação
da cidade. Esse mosaico de informações compõe as marcas da chegada dos imigrantes na então
sociedade paulista do período das grandes levas até os atuais. Em um recorte entre os anos de 1880
e 1889, o Brasil registrou a entrada de 453.788 imigrantes, sendo que deles, 183.349 vieram para a
cidade de São Paulo (40,1%). A mais representativa na cidade entre os anos de 1820 e 1972 advém
da Itália, sendo a segunda maior leva de imigrantes no período. Dessa forma, nasce a necessidade
de explorar o cenário paulistano, diante das mudanças gastronômicas presentes na cidade e de sua
relevância no cenário gastronômico mundial, por meio da sociedade paulistana, dos imigrantes ita-
lianos dentro do cenário presente no período de recorte da pesquisa, investigando traços culturais
e de que forma esses traços se encontraram e expressaram na cidade de São Paulo em forma de
diálogo formando uma cozinha ítalo-paulistana, uma das mais presentes e aceitas na gastronomia
da cidade. Suas histórias e vestígios encontrados, que dão base para um hibridismo cultural. Como
método, utiliza-se a pesquisa documental e a bibliográfica. Espera-se, por fim, entender a formação
da cozinha ítalo-paulistana para posteriores estudos das cozinhas presentes na cidade, que é um
dos polos gastronômicos do Brasil e do mundo.
Palavras-chave: gastronomia; alimentação; história da alimentação e da gastronomia; cozinha
ítalo-paulistana; imigração na cidade de São Paulo.
Keywords: gastronomy; food; food and gastronomy history; “Italian-paulistana” cuisine; immigra-
tion in São Paulo.

1 Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura edocente na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 199
Características dos produtores artesanais dos festivais gastronômicos da cidade
de São Paulo

Characteristics of artisanal producers of gastronomic festivals in the city of São Paulo

Cinthia Rolim de Albuquerque Meneguel 1

A cidade de São Paulo é caracterizada pela ocorrência de inúmeros festivais gastronômicos


que recebem formatos diferenciados de acordo com o seu conceito e objetivo. Os festivais são aconte-
cimentos que geram expressões culturais importantes, ilustram práticas sociais da humanidade evi-
denciadas pelas experiências. São capazes de revelar e compartilhar conhecimento, saberes, crenças
e visões de mundo das culturas para com os visitantes que participam, afirmando ou denunciando
certos valores sociais estruturais da comunidade celebrante. Observam-se na cidade de São Paulo
propostas de festivais gastronômicos focados no fomento do diálogo entre produtores artesanais
com os cozinheiros, cientistas e com o público geral. A agricultura familiar brasileira é majoritaria-
mente o setor mais representativo do agro brasileiro e apresenta diversos modos de fazer agricultura,
representados por agricultores familiares, artesanais, urbanos, quilombolas, assentamentos agrários
e de barragens, sendo uma forma de expressão cultural e social com contribuições no âmbito mate-
rial e imaterial, considerando como características tradicionais, culturais ou regionais, os processos
de elaboração de alimentos que se transmite de geração em geração, conforme a tradição cultural ou
que utilizam matérias-primas produzidas na região. Portanto, esta investigação buscou compreender
o papel assumido pelos produtores artesanais nos festivais gastronômicos da cidade de São Paulo,
por meio da caracterização dos produtores e de seus produtos, identificando o fator patrimonial e o
motivacional de participação nos festivais gastronômicos e suas relações. Portanto, para a presente
investigação qualitativa, exploratória e descritiva, realizou-se a coleta de dados em fontes primárias
e secundárias, observação direta dos festivais, aplicação de questionários semiestruturados com
perguntas abertas e fechadas a 103 produtores artesanais expositores dos festivais: Sabor Nacional e
Feira Viva. Assim, este estudo permitiu mostrar que o universo dos festivais gastronômicos da cidade
de São Paulo oferece aos produtores artesanais uma ação protagonista de inclusão produtiva, condu-
tora e norteadora de ações e narrativas, gerando expressões culturais, compartilhando conhecimen-
to, saberes e vivências, sendo seu pilar principal. Estabelecendo pela alimentação o elo entre o campo
e a cidade, apresentando produtores artesanais e tipicidades regionais. Certamente, os produtores
artesanais assumem de modo intrínseco a responsabilidade de comunicar valores socioculturais,
ambientais e econômicos, enaltecendo a relação do homem com a biodiversidade, conectando o
alimento a sua identidade, território e cultura. Incentivando a valorização da cultura alimentar, o
resgate e a preservação de tradições e o fortalecimento social.
Palavras-chave: festival; feira; produto artesanal; produtor; São Paulo.
Keywords: festival; market; artisanal product; producer; São Paulo.

1 Doutora em Turismo e Hotelaria na Universidade do Vale do Itajaí, docente e pesquisadora do curso de bacharelado
em Turismo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, campus Cubatão.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 200
Tradições, rituais e memórias alimentares:
formação de identidade bicultural em filhos de imigrantes poloneses no Brasil

Traditions, rituals, and food memories:


the development of a bicultural identity in children of Polish immigrants in Brazil

Claudia Ridel Juzwiak 1


Victor Ridel Juzwiak 2
Teressa Ridel Juzwiak 3

Pais imigrantes e filhos nascidos no país de acolhimento têm suas identidades construídas
a partir de universos culturais distintos; no entanto, as referências culturais do país de origem dos
pais, dentre elas, as alimentares, podem constituir elementos importantes na construção dessa
identidade. Este estudo de natureza qualitativa procurou compreender quais elementos da cultura
polonesa e da brasileira foram transmitidos e como influenciaram a construção da identidade bicul-
tural em uma família estabelecida no Brasil. Três filhos, com 57 a 66 anos, representando a segunda
geração, foram entrevistados a partir da perspectiva das escolhas alimentares ao longo do curso
da vida sobre a trajetória migratória de seus pais e as práticas alimentares pessoais e da família. A
partir da análise de conteúdo foram identificados três núcleos temáticos: “Trajetória migratória”;
“Biculturalismo: trajetórias pessoais e redes sociais” e “Tradições e rituais alimentares e a identi-
dade polonesa”. A migração dos pais ocorre no contexto da Segunda Guerra Mundial. Embora os
pais tenham se estabelecido em uma cidade sem diáspora polonesa, os filhos se sentem poloneses
em maior ou menor grau, caracterizando a internalização de duas culturas, ou biculturalismo. Dois
elementos surgem como os principais marcadores da identidade polonesa: o polonês como primei-
ro idioma dos filhos e a alimentação. Apesar da adoção de uma alimentação caracteristicamente
brasileira no cotidiano, a comida polonesa, cercada de rituais, é protagonista nas datas especiais,
principalmente nas festas católicas (Natal e Páscoa), caracterizando tradições étnicas, religiosas
e familiares. A responsabilidade pela preparação da comida polonesa aparece como sendo das
mulheres, assim como a transmissão de receitas. Embora as receitas tenham sofrido inúmeras
modificações quando comparadas às receitas originais, devido à falta de ingredientes, às diferenças
climáticas e às preferências alimentares da família, os rituais que cercam sua preparação e consumo
e a convivialidade se mantêm e é nesses momentos que a identidade polonesa se manifesta. No
entanto, essas “tradições” familiares são mantidas exclusivamente quando os momentos são orga-
nizados pelos pais, se perdendo nos núcleos familiares da segunda geração. Cada filho demonstra
graus e formas diferentes de manutenção dessas “tradições” familiares. Outras referências culturais
específicas do país de acolhimento, assim como das trajetórias pessoais e redes sociais, indicam
que outras experiências agregaram novas práticas alimentares, embora o sentimento de duplo
pertencimento ainda se mantenha na segunda geração. Este estudo traz elementos que ajudam a
entender como a cultura alimentar contribui para a construção identitária e a trajetória alimentar
de indivíduos expostos a diferentes culturas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 201
Palavras-chave: migração; biculturalismo; identidade; práticas alimentares.
Keywords: migration; biculturalism; identity; eating practices.

1 Nutricionista, pós-doutora na área de Antropologia da Alimentação pela Universitat de Barcelona, professora asso-
ciada da Universidade Federal de São Paulo.
2 Historiador, mestrando do Programa de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.
3 Cientista política, mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano, com especialidade em migração pela
Universidade de Maastricht & UNU-MERIT.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 202
Guia Gastronômico Pernambucano: a construção da identidade cultural
de uma população a partir do modus faciendi das técnicas de culinária pernambucana

Gastronomic Guide of Pernambuco: the construction of cultural identity


from the modus faciendi of Pernambuco culinary techniques

Fernanda Calumby Fernandes 1

A atividade turística pode ser desenvolvida a partir de diversos aspectos culturais, dentre
eles a gastronomia local. A culinária regional é capaz de traduzir a cultura da população. O Brasil tem
potencial de ser recortado e representado através da sua oferta gastronômica. Difundir os aspectos
idiossincráticos do povo brasileiro através da cozinha que o representa torna a experiência turística
ampla e diversa, possibilitando ao turista realidades distintas e peculiares a cada região que visita.
Em termos regionais, a tipicidade culinária do povo brasileiro varia de Norte a Sul. Ao citar o Nordeste,
destaca-se o estado de Pernambuco. Este detém as mais variadas ofertas de ingredientes exóticos
ou típicos a outros lugares, porém o modus faciendi do povo pernambucano torna o resultado gastro-
nômico, deste estado, único. Ao diferenciar-se das conhecidas técnicas da gastronomia clássica, os
resultados são pratos característicos que perpassam todo o estado pernambucano. Tornando-se inte-
ressante atrativo do turismo criativo, que, por conseguinte, caracteriza a prática do turismo susten-
tável, posicionando aspectos culturais da população em questão, como grande protagonista da ati-
vidade turística. No litoral de Pernambuco, destacam-se os peculiares aspectos gastronômicos desta
região, além dos hábitos alimentares da população local. Identifica-se que as praias de Pernambuco
recebem turistas estrangeiros e domésticos, ávidos para vivenciar a cultura local. Este estudo objetiva
identificar as expectativas gastronômicas a partir da visão dos turistas e a maneira como esta oferta
é realizada. Elaborou-se diagnóstico, junto aos ofertantes de alimentação deste local e enquetes jun-
tamente aos turistas. Dentre os principais resultados desta pesquisa, constata-se que o viajante tem
elevado interesse em experimentar a culinária local. Priorizando conhecer o novo através da culinária
local. Destaca-se, controversamente, a existência da limitação da oferta de produtos locais. Constata-
se que tal entrave é devido à inexistência de condições mínimas de higiene nas boas práticas na
manipulação dos alimentos, possibilitando, desta maneira, a preferência, por parte dos turistas, por
redes de fast-food. A conclusão deste trabalho parte do princípio que o litoral pernambucano possui
grande potencial na oferta da culinária típica e local – por toda sua característica diferenciada nas
matérias-primas e/ou maneira de preparo dos alimentos; o turista demonstra interesse em vivenciar
a gastronomia local; porém, esta oportunidade tem sido limitada devido às condições de higiene,
referentes à boa prática na manipulação dos alimentos, por parte dos gestores dos restaurantes.
Palavras-chave: culinária regional; turismo sustentável; alimento seguro.
Keywords: regional cuisine; sustainable tourism; safe food.

1 Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, professora de Hotelaria do Instituto Federal de Pernambuco, campus
Cabo de Santo Agostinho.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 203
Representações sociais sobre o consumo de açúcar no dia a dia

Social representations about daily sugar consumption

Giovana Duarte dos Santos 1

À medida em que somos levados a refletir sobre algum de nossos hábitos alimentares é onde
percebemos tê-lo. O consumo de açúcar está presente no cotidiano e enraizado nos hábitos alimen-
tares dentro de um contexto urbano, seja pela facilidade de encontrar produtos industrializados,
seja pelo hábito social das bebidas açucaradas ou somente pelo gosto. De acordo com o artigo de
Levy e colaboradores sobre a disponibilidade de “açúcares de adição” no Brasil, existem dois tipos de
açúcares: aqueles encontrados naturalmente nos alimentos, como a frutose e a sacarose presentes
nas frutas e a lactose presente no leite, e aqueles extraídos de alimentos (cana-de-açúcar, beterraba
e milho) para uso posterior em preparações culinárias ou na elaboração de alimentos processados.
Para compreender melhor como percebemos o consumo de açúcar no dia a dia, foram rea-
lizadas dez entrevistas com indivíduos de classe média que vivem em cidades da Grande São Paulo
e sempre viveram em São Paulo, sendo três mulheres e sete homens. Cinco possuíam o segundo
grau completo e cinco o superior completo. A idade variou de 23 a 55 anos. A coleta de dados ocorreu
entre agosto e setembro de 2019 quando os entrevistados responderam à questão que norteou a
pesquisa: “Como é o seu consumo de açúcar no dia a dia?”.
Para a análise dos discursos foi utilizado o conceito de representações sociais de Moscovici
tendo como objetivo compreender como as informações sobre o açúcar são incorporadas pelo indi-
víduo de modo que essas ideias interajam no seu cotidiano em seus costumes e valores, ajudando
a compor sua identidade. Foi também observado como o indivíduo utiliza esses conceitos teóricos
como balizadores de suas práticas alimentares, adotando um discurso ora permissivo ora não para
justificar suas escolhas e hábitos alimentares.
A pesquisa procurou traçar paralelos entre as entrevistas e dados obtidos sobre o consumo de
açúcar do brasileiro de classe média que vive em ambientes urbanos para contextualizar os discursos
e suas realidades.
A associação do consumo de açúcar a doenças como o diabetes foi um ponto bastante citado
quanto à questão de saúde, porém em alguns casos era identificado como fatores causais o pão e
arroz, assumindo a representação que o indivíduo faz do que é o açúcar. Por outro lado, as frutas
continham o açúcar que era “bom” para a saúde. Segundo Laplantine, em a Antropologia da Doença
(1991), temos a tendência de classificar os alimentos em “bons” ou “maus”, e assim fazemos com o
açúcar. O consumo de açúcar do brasileiro é de 16,7% do total de calorias diárias, muito acima do
que a Organização Mundial de Saúde estipula, de 10%. As representações sociais sobre o consumo
de açúcar no dia a dia podem promover algumas reflexões sobre propostas de educação alimentar
tanto na esfera de políticas púbicas de saúde quanto no individual.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 204
Palavras-chave: representações sociais; açúcar; hábitos alimentares.
Keywords: social representations; sugar; eating habits.

1 Pós-graduanda em Gastronomia: História e Cultura no Centro Universitário Senac, em São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 205
Rede de conhecimento sobre a produção quilombola de alimentos no IFSP Campus
Registro: cultura e tradição alimentar

Knowledge network on quilombola food production in the IFSP Campus Registro:


culture and food tradition

Iamara de Almeida Nepomuceno 1


Juliana Cesário Aragi 2

O Vale do Ribeira está entre as áreas de maior preservação da Mata Atlântica. Neste bioma
habitam 88 comunidades quilombolas que praticam a agricultura de coivara itinerante. Segundo o
Instituto Socioambiental (2017), o sistema agrícola tradicional quilombola (SAT) se define por saberes,
técnicas aplicadas na agricultura de subsistência, na medicina e cultura material. Assim, o SAT norteia
as relações e organizações de trabalho, os contextos sociais de plantio, colheita e consumo dos produ-
tos dentro das comunidades produtores nesse sistema. Com programas como o Programa Nacional
de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) existem melhores con-
dições de manutenção dos meios e modos de vida das comunidades quilombolas, garantindo maior
autonomia e a permanência na terra. Nesta pesquisa, buscamos compreender em que medida os
esforços realizados pelo IFSP sobre esses programas pode ajudar na ampliação do conhecimento des-
sas tradições no âmbito institucional. Este questionamento se deu com o desenvolvimento do projeto
ligado à implantação, em 2018, de uma horta no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de São Paulo (IFSP), campus Registro, intitulado “Quilombos de lá, quilombos de cá: uma vivência na
horta escolar”. Analisamos fontes orais com base no método da história oral: documentos produzidos
para o reconhecimento do SAT como Patrimônio Imaterial Brasileiro, o Dossiê SAT Quilombola do Vale
do Ribeira (2017), bem como o Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira (2013). Estes relatos
são fontes documentais e, portanto, passíveis de interpretação, análise e crítica. Na abordagem teóri-
ca, trabalhamos conceitos de identidades, apresentadas por Anthony Kwame Appiah como complexas
e múltiplas, elas surgem de uma história de respostas mutáveis às forças econômicas, políticas e cul-
turais, quase sempre em oposição a outras identidades; bem como a memória discutida por Michael
Pollak, que, construída socialmente, é formadora do sentimento de identidade, tanto individual como
coletiva. Tomamos para estudo de caso o referido projeto de extensão desenvolvido com quilombolas
de Sapatu, através de seus conhecimentos e da prática da agricultura tradicional dentro do campus;
dois alunos quilombolas foram bolsistas. Como resultado, ocorreu aproximação dos alunos com a
realidade quilombola e dos alunos quilombolas que estudam na instituição; valorizou-se o consumo
de alimentos in natura, sem agrotóxicos; e estimularam-se parcerias nos processos de compras institu-
cionais de alimentos: a banana fornecida pelo PNAE em 2019 para os alunos será de Sapatu.
Palavras-chave: povos tradicionais; quilombos; memória; agricultura; alimentação.
Keywords: traditional communities; quilombos; memory; agriculture; food.

1 Mestra em História Social na Universidade de São Paulo.


2 Graduada em Nutrição na Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 206
Consumo alimentar e comunicação identitária na convivência intercultural
entre jovens: o caso da Escola Sesc de Ensino Médio

Food consumption and identity communication in intercultural coexistence


among young people: the case of Sesc High School

Joana Pellerano 1

O objetivo do trabalho proposto aqui é discutir como se dá a relação entre o consumo


alimentar e a comunicação identitária na convivência entre os 450 estudantes da Escola Sesc de
Ensino Médio (Esem), que são oriundos das 27 unidades federativas do Brasil e moram e estudam
no campus localizado no Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada em abril e maio de 2017, e contou
com observação participante durante as refeições realizadas pelos estudantes e dois grupos de dis-
cussão com oito desses jovens vindos das regiões Norte, Sudeste e Sul (especificamente dos estados
de Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima e Santa Catarina). Essas
experiências mostraram um pouco de como esses jovens entendem melhor a si mesmos e à alteri-
dade também por meio do que comem e do que deixam de comer. Como vêm de todas as partes do
país, os estudantes da Esem trazem para esse convívio diferentes visões e gostos culturais, inclusive
aqueles relacionados à alimentação.
A sociabilidade desses jovens passa também pela comensalidade: todos se alimentam na
escola, em um refeitório que oferece seis refeições diárias gratuitas (café da manhã, almoço, dois
lanches, jantar e ceia) e em uma lanchonete onde podem adquirir alguns produtos alimentícios.
Como não é permitido levar alimentos para os quartos, a maior parte das refeições é feita em grupo,
e os estudantes aprendem a conviver também por meio do ato de compartilhar comida, ou consu-
mi-la juntos em um mesmo espaço. Das diferenças – por exemplo, a nomenclatura de pratos como o
cuscuz, que dependendo da região pode ser uma preparação salgada, de flocos ou farinha grossa de
milho, ou doce, de tapioca e coco – às semelhanças – os jovens reconhecem arroz, feijão e brigadeiro
como comidas presentes no Brasil todo –, passando pelos estereótipos que são desconstruídos no
encontro com a alteridade, inúmeras manifestações culturais relacionadas à alimentação apare-
cem em situações de convivência entre sujeitos e grupos sociais com origens diversas, ajudando no
entendimento, na formação e na comunicação da identidade.
As relações interculturais impactam a formação de processos identitários dos sujeitos
migrantes, que passam a ver suas identidades de forma múltipla e fluida, combinando aspectos
da cultura dentro da qual nasceram e das demais com as quais vão conviver em seus destinos. A
alimentação, como um elemento cultural presente no cotidiano, pode funcionar como importante
ferramenta de reconhecimento, diferenciação e adaptação a essas novas realidades. Assim, é possí-
vel perceber que os estudantes da Esem também se relacionam por meio da comida dentro de um
ambiente novo e intercultural, e se enxergam como sujeitos também a partir desse consumo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 207
Palavras-chave: alimentação; identidade; consumo; convivência intercultural.
Keywords: food; identity; consumption; intercultural coexistence.

1 Doutora em Comunicação e Práticas de Consumo pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP),
mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Comunicação e Gastronomia pela
Universitat de Vic.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 208
Nem tudo é concreto: a etnobotânica nas hortas comunitárias do ABC Paulista

Not everything is concrete: the ethnobotany in community food gardens of ABC Paulista

Júlia Alice Vila Furgeri 1


Ana Maria Dietrich 2

Agências Nacionais e Internacionais reconhecem a urgência das questões sociais e ecológi-


cas atuais, em que o crescimento demográfico de uma população extremamente desigual, econô-
mica e socialmente, concentra-se em centros urbanos, baseando-se em um sistema produtivo que
acentua estas desigualdades enquanto destrói as bases materiais e ecológicas de sua reprodução.
Neste cenário, a agroecologia urbana é prática promissora para a resiliência ecológica das cidades e
a garantia de acesso a Direitos Humanos relacionados ao ambiente, à saúde, à segurança nutricio-
nal e à soberania alimentar nestes ambientes.
As cidades representam um vasto conjunto de processos etnoecológicos cuja compreensão
e significação podem contribuir para a configuração de ambientes urbanos ecologicamente viáveis,
economicamente sustentáveis e socialmente justos. Saberes ecológicos tradicionais seculares
expressam-se nas formas de uso e ocupação, produção e reprodução do espaço urbano, em especial
no que se refere à agricultura e à territorialidade. Os estudos das relações e dos saberes etnoecoló-
gicos são recorrentes quando relacionados aos povos originários, tradicionais, ribeirinhos e rurais,
mas escasso no que se refere às relações entre os cidadãos, o imaginário e a materialidade urbana.
Com este estudo pretendemos construir um inventário etnobotânico de hortas urbanas no
ABC Paulista, buscando relacionar oralidade, ciências, saberes, sabores, imaginário, territorialidade
e identidade expressos nestes espaços, contribuindo para identificar atores, desvendar a memória
biocultural e etnocientífica envolvida e compreender as dinâmicas de aprendizagem e transmis-
são deste conhecimento, incentivando a difusão destas práticas neste território. Será desenvolvida
uma pesquisa com base nas técnicas de documentação direta e registro audiovisual das memórias
culturais e afetivas acerca da agrobiodiversidade. Os dados obtidos a partir de observação parti-
cipante, trabalho de campo e entrevistas serão analisados em abordagem qualitativa à luz das
discussões propostas pelo ecofeminismo. Segundo esta teoria, a partir da divisão social do trabalho
e do distanciamento entre os seres humanos, os processos ecológicos e a biodiversidade, a mulher
foi subjugada através do uso dos mesmos argumentos que justificaram a dominação humana
sobre a natureza. Com isso, foram delegadas historicamente às mulheres as tarefas relacionadas
aos cuidados familiares e comunitários e à reprodução cotidiana da vida, estando o conhecimento
sobre a biodiversidade alimentar e a culinária entre estas tarefas e legados. O material coletado e as
receitas e modos de preparo expressas por horticultoras e horticultores durante as entrevistas serão
organizados em publicações físicas e digitais em parceria com o Projeto de Extensão Memória dos
Paladares, fornecendo base de dados para outros trabalhos acadêmicos.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 209
Palavras-chave: ecologia urbana; etnociências; direitos humanos.
Keywords: urban ecology; ethnosciences; human rights.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino e História das Ciências e da Matemática da Universidade


Federal do ABC.
2 Doutora em História pela Universidade de São Paulo, pós-doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de
Campinas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 210
Comer e cozinhar nas feiras do Guará e da Torre de TV

Eating and cooking at Feira do Guará and Feira da Torre de TV

Juliana Rampim Florêncio 1

Esta comunicação apresenta os resultados expostos no segundo capítulo de minha disser-


tação de mestrado, concluída em 2018 no programa de pós-graduação em História da Universidade
de Brasília (UnB): Comer e cozinhar: revelando tramas e práticas alimentares como possibilidades de repre-
sentação e identidades nas feiras do Guará e da Torre de TV, em Brasília. O capítulo analisa as falas obtidas
com o uso da História Oral – entrevistas realizadas com feirantes e frequentadores das duas feiras.
A comunicação tem a intenção, portanto, de descrever e analisar as representações e iden-
tidades encontradas nas entrevistas realizadas, a partir das práticas alimentares como patrimônio
cultural nesses espaços.
Dentre os resultados obtidos, destaco a apresentação das representações de tipicidade, tradi-
ção e de identidades dos alimentos comercializados. É frequente nas falas dos entrevistados termos
como “comida típica”, especialmente na Feira da Torre. Ali, há várias bancas de comidas chamadas de
típicas, como o acarajé baiano, o tacacá paraense, o pastel de queijo mineiro e o churrasco gaúcho. Os
feirantes entrevistados buscam alcançar a legitimidade do típico e do tradicional de seus produtos de
várias formas: na indumentária, nas placas e fotos afixadas às paredes, e nas próprias falas.
A partir das representações de identidades encontradas, dialogo, entre outros autores,
com Eric Hobsbawm, Carlos Dória, Câmara Cascudo, Néstor Canclini, Stuart Hall e Norbert Elias.
Utilizo os três primeiros para questionar as possibilidades de existência dos conceitos de tipicidade
e tradição nas comidas ali preparadas. Ao considerar a alimentação como cultura, como Massimo
Montanari, é possível perceber a complexidade das relações que a envolvem. Deste modo, as ideias
elaboradas pelos três autores realçam as ressignificações simbólicas e a constante transformação
pelas quais os pratos chamados de típicos passam, o que problematiza a ideia de pureza e origina-
lidade intocada pretendida nas falas.
O acarajé, descrito nas entrevistas como “tipicamente” baiano, é objeto de destaque e
maior análise no capítulo devido à presença marcante nas citações e às formas em que o encontrei
sendo vendido: no prato – desconstruído e acompanhado de talheres – e na barca de sushi (na
qual todas as partes que compõem o acarajé são servidas para serem montadas pelo comensal). O
artigo analisa também as fotografias que ilustram esses aspectos e corroboram a argumentação,
feitas durante as entrevistas.
A pesquisa pretende contribuir para a historiografia da cidade de Brasília (não havia ainda
estudos sobre as práticas alimentares forjadas nesses espaços sob a perspectiva do patrimônio
cultural além do Inventário Nacional de Referências Culturais, INRC, documento analisado e criti-
cado no primeiro capítulo da dissertação. Todavia, este parece falhar em seu objetivo – inventariar
as referências culturais desses espaços), bem como para a história da alimentação brasileira em

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 211
caráter local, dados os registros de falas, as imagens anexas e a análise das identidades e represen-
tações ali presentes.
Palavras-chave: alimentação; representação; identidade; patrimônio cultural; Brasília.
Keywords: food; representation; identity; cultural heritage; Brasília.

1 Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 212
Comidas do sertão – uma leitura da história e da cultura

Hinterland food - a reading of history and culture

Julie Cavignac 1
Maria Isabel Dantas 2
Gabriela da Silva Sales Beltrão 3

A alimentação, que no Nordeste brasileiro é apresentada como um dos principais elemen-


tos de reivindicação de uma tradição histórica e de uma identidade regional, tem como referência a
sociedade colonial que se estruturou no século XVI.
A arte culinária, tal qual foi retratada por Gilberto Freyre na sua obra, seria uma resposta
cultural à situação colonial: num sistema escravocrata determinado por constrangimentos históri-
cos, econômicos e sociais, a comida teria sido um dos elementos que “adoçou” as relações entre os
Mestres e os escravos e permitiu desenvolver uma sociedade supostamente harmoniosa. Segundo
Câmara Cascudo, o sertão seria uma sociedade marcada pela escassez dos recursos naturais e com
uma influência predominantemente europeia. Sendo assim, as tradições culinárias africanas teriam
tido pouco importância para a organização social e o desenvolvimento da economia regional. Nessa
linha de raciocínio, a alimentação é apresentada como um dos principais elementos de reivindi-
cação de uma tradição histórica e de uma identidade regional. Os elementos culturais encenados
pelos moradores do Seridó como sendo tradicionais correspondem a uma retórica passeísta: além
de reproduzir fraturas sociais, as práticas e os saberes culinários são reflexos de uma dominação
colonial ainda vigente. Para se tornarem produtos de consumo urbano, os “alimentos da terra”
devem ser transformados em produtos gourmets e se tornarem uma bandeira da identidade cul-
tural regional. Aqui os conflitos não aparecem, o campo é folclorizado e é associado a um passado
exótico: os pratos típicos não seriam a materialização da versão colonial da história e a prova da
existência das estruturas de dominação em vigor até hoje? Entende-se então porque as questões
raciais, as desigualdades e os conflitos territoriais continuam no silêncio.
No entanto, ao lado da narrativa colonial e desse modelo alimentar elitizado que tem como
base alimentos “ricos” (leite, manteiga, queijo e carne), existe uma culinária elaborada a partir das
vísceras, de ossos e de partes pouco valorizadas dos animais. As cozinheiras, geralmente negras e
de extratos sociais inferiores, têm o saber-fazer dessas receitas adquiridas tanto nas “casas-grandes”
quanto nas “senzalas”. Assim, ao lado da comida dos “ricos”, isto é, da carne e de seus derivados,
existe uma culinária elaborada a partir das partes pouco valorizadas dos animais e de produtos mais
comuns (milho, mandioca e açúcar). Apesar do estigma, observa-se uma revalorização relativamen-
te recente dessas “comidas de raiz”, que são apresentadas como autênticas e que se popularizaram
com a abertura do Nordeste ao turismo nacional e internacional, o sucesso do forró e o ciclo das
festas juninas transplantado em meio urbano e a “gourmetização” da cozinha regional.
Iremos mostrar como o sertão, que sempre foi o lugar do “atraso”, foi se tornando no

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 213
imaginário urbano e nacional o lugar da autenticidade e da gastronomia, com a entrada de chefs
que imprimiram refinamentos culinários aos produtos “da terra”. Em paralelo com as mudanças
estruturais recentes da sociedade brasileira, verificamos que os detentores da cultura alimentar do
sertão foram pouco a pouco levados a abandonar seu estilo de vida, e hoje são impossibilitados de
consumir a “comida da terra” e os produtos que até pouco plantavam.
Palavras-chave: tradição culinária; sertão; comida da terra; gourmetização.
Keywords: culinary tradition; hinterland; traditional food; “gourmetization”.

1 Antropóloga, doutora, pesquisadora PQ/CNPq, professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
2 Antropóloga, doutora, professora titular aposentada do Instituto Federal do Rio Grande do Norte.
3 Graduada, chef, gastróloga, professora da Universidade Potiguar.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 214
Vinho de dendê: história, cultura e socioeconomia do vinho de dendê na cidade
de Salvador (BA) até o século XIX

Oil palm wine: history, culture, and socioeconomics of the oil palm wine in the city
of Salvador, Bahia, until the 19th century

Laiana De Jesus São Ricardo 1

O vinho de dendê ou vinho de palma é uma bebida alcoólica fermentada, obtida através da
seiva da palmeira do dendezeiro, a Elaeis guineensis L., planta nativa da costa ocidental da África, uma
das palmeiras mais importantes do continente africano, por possuir diversas formas de utilização,
como a produção de gordura, palmito e azeite de dendê. O vinho é conhecido e produzido em alguns
países do mundo, como na Índia, Malásia, Indonésia, e em diversos países da África, como Guiné-
Bissau, São Tomé e Príncipe, Benin e Angola. A bebida é conhecida por diferentes nomes, como emu,
marafo, malafo, malufú, oguro e mapamá.
A palmeira do dendê chegou ao Brasil por volta do século XVI, com o tráfico de negros escra-
vizados. Por volta do século XVIII, o vinho de dendê já era vendido comumente na cidade de Salvador.
Dados afirmam que atualmente o estado da Bahia possui mais de 800.000 hectares de dendezeiros,
porém a utilização da palmeira do dendê fica por vezes restrita apenas à extração do azeite. Já o vinho
de dendê é um produto muito pouco conhecido pela população da região, mesmo sendo um produto
que faz parte da construção da história afro-baiana. Hoje trata-se apenas de produto difundido oral-
mente de geração para geração por alguns poucos conhecedores.
A pesquisa propõe apresentar os aspectos históricos, socioeconômicos e culturais do consu-
mo e da produção do vinho de dendê na cidade de Salvador, na Bahia, até o início do século XIX,
descrevendo o que é o vinho de dendê, relatando os seus métodos de produção, analisando a inserção
do vinho de dendê na cidade de Salvador, revelando os motivos para a estagnação e o fim da sua
produção na capital da Bahia. Visando compreender os fatos e fenômenos, recuperando informações
acerca do vinho de dendê, foi feita uma revisão bibliográfica e documental a partir de matérias já
existentes relacionados ao tema.
Um dos argumentos de grande relevância para o desenvolvimento da pesquisa é a impor-
tância do vinho de dendê como representante identitário da cultura afro-baiana em Salvador, per-
passando seus aspectos sociais e econômicos, já que o mesmo é um produto que percorre parte da
história e do desenvolvimento da cidade. Tem ainda a sua devida importância para a conservação
dos valores religiosos, visto que a bebida tem significado real para as religiões de matrizes africanas,
e, tragicamente, a ocupação de bebidas industrializadas dentro dessas religiões vem provocando o
afastamento das raízes tradicionais identitárias, além de possibilitar a expansão do uso do dendezei-
ro não apenas para a produção do azeite de dendê.
Palavras-chave: bebida; palmeira; seiva; fermentação; dendê.
Keywords: drink; palm tree; sap; fermentation; palm oil.

1 Bacharel em Gastronomia pela Universidade Federal da Bahia.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 215
O Festival Garimpando Sabores e a ressignificação dos saberes e fazeres
culinários de Mendanha

“Garimpando Sabores” Festival and the resignification of Mendanha’s culinary


knowledge and practices

Luciana Teixeira Silva 1


Nadja Maria Gomes Murta 2

A pesquisa “O Festival Garimpando Sabores e a ressiginificação dos saberes e fazeres culi-


nários de Mendanha” buscou desenvolver uma análise sistemática acerca da realização do Festival
Garimpando Sabores, um evento focado na culinária que surgiu com o propósito de incluir os dis-
tritos rurais do município de Diamantina, Minas Gerais, na atividade turística, além de resgatar
pratos, receitas, ingredientes e formas de preparos antigas. Estes, muitas vezes já esquecidos,
podem, ao serem retomados, se transformar em atrativos, gerando também autoestima e senti-
mento de pertencimento àquelas comunidades.
A análise enfoca o caso específico da comunidade rural de Mendanha, verificando se
o evento de fato estimulou a ressignificação dos saberes e fazeres culinários desta população.
Através de uma abordagem que mescla o pensamento complexo e a abordagem qualitativa da
pesquisa-ação, estruturada em questionários aplicados em três tipos distintos de público – cozi-
nheiros que participaram do evento, moradores desta comunidade rural e membros da comissão
organizadora do festival –, este método apreende as percepções dos atores sobre o evento e sua
contribuição para a ressignificação desses conhecimentos tradicionais, que vinham se extinguin-
do em função de seu caráter de transmissão essencialmente oral, do êxodo rural e da situação de
marginalidade econômico-social que alguns territórios, como as comunidades rurais no Vale do
Jequitinhonha, tinham sido compelidos.
As discussões em torno dos resultados da pesquisa asseveram que a valorização da
comida como atrativo turístico é mais complexa do que se imagina, indo além da possibilidade
de geração de renda, da preservação da identidade local e da memória gustativa, perpassando o
debate da introdução de inovações, autoestima das comunidades e perspectivas de médio e longo
prazo. Apesar da verificação de retomada de saberes e fazeres tradicionais, há outros aspectos
importantes a serem tratados, sobretudo comportamentais, culturais e de ordem econômica,
que podem se tornar dificultadores para que se garanta uma maior efetividade e perenidade
na ressignificação destes conhecimentos, sendo este um dos principais pontos em que o estudo
pode contribuir para as reflexões acerca da construção da alimentação enquanto alimento
simbólico, na medida em que esta, mais que um fenômeno fisiológico, é humano, permeado de
subjetividades e individualidades.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 216
Palavras-chave: comunidades rurais; conhecimentos tradicionais; cultura alimentar; festival gas-
tronômico; saberes e fazeres culinários.
Keywords: rural communities; traditional knowledge; food culture; gastronomic festival; culinary
knowledge and practices.

1 Mestre em Estudos Rurais pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
2 Doutora em Ciências Sociais: Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 217
Como os Airbnb da comida promovem a cena gastronômica em ambientes domésticos

How food Airbnbs promote the gastronomic scene in domestic environments

Maria Cláudia Gavioli 1

A proposta deste trabalho é apresentar o resultado da pesquisa feita com pessoas que
recebem em casa para refeições compartilhadas a partir de plataformas de internet que oferecem
experiências gastronômicas.
Da soleira para dentro, a cena gastronômica não ocorre ao acaso porque é um ato de hospi-
talidade que Luiz Octávio de Lima Camargo “ressalta de forma inequívoca como um ritual, com dois
atores e o espaço no qual uma marcação precisa, no sentido teatral da palavra, se desenrola”. Um
jantar compartilhado não é uma atividade corriqueira em que as pessoas apenas se encontram for-
tuitamente, sentam-se ao redor de uma mesa e comem juntas. A cena gastronômica de que trata esse
trabalho é um ritual no qual estão envolvidos protagonistas, coadjuvantes e figurantes atuando em
um cenário cuja indumentária e a comida são elementos cênicos fundamentais e há um roteiro a ser
seguido. Para que a cena transcorra há ensaios e bastidores. A ausência de qualquer desses elemen-
tos indispensáveis leva ao fracasso do espetáculo. Como nos roteiros de teatro, a divisão em atos e
cenas marca os tempos que compõem a peça como um todo e, conforme o texto se vai desenvolvendo,
no decorrer da encenação, misturam-se marcações e improvisos, sem que a plateia sequer perceba.
Atores e expectadores participam do espetáculo, passam por momentos de entrosamento, tensões e
expectativas, vivem emoções que podem levar à gargalhada, ao riso ou às lágrimas e experimentam o
clímax, tendo consigo a certeza de um desfecho em breve, que pode ser trágico ou feliz, dependendo
do gênero que tenham escolhido previamente.
A comensalidade tratada pelo viés do encontro hospitaleiro que ocorre em ambientes
domésticos a partir da comercialização feita por sites de compartilhamento de refeições – os “Airbnb”
da comida” – possibilita a reflexão sobre a comida e os costumes à mesa como sinais distintivos e/ou
identitários de crenças compartilhadas.
A relação entre anfitrião e convidado, representados, respectivamente, por chef-anfitrião e
hóspede-comensal, ganha um novo entendimento. Segundo Pierre Bourdieu, aquilo que é compre-
endido como natural ou aquilo que se aprende como tal é uma interpretação cultural e distintiva dos
indivíduos e seus grupos.
O homem nutre-se também do imaginário e de significados partilhando representações
coletivas, como trata Claude Fischler. À mesa não se compartilham apenas alimentos, mas também
ideias, ideais, entendimentos, desejos, prazeres, ou seja, valores simbólicos.
Palavras-chave: cena gastronômica; comensalidade; hospitalidade; sites de compartilhamento de
refeições.
Keywords: gastronomic scene; commensality; hospitality; meal sharing websites.

1 Mestre em Hospitalidade na Universidade Anhembi Morumbi.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 218
Uma proposta de periodização do fast-food “frango frito no balde”
em Belo Horizonte (MG)

Periodization proposal for “fried chicken bucket” fast food in Belo Horizonte, Minas Gerais

Marina Araújo 1
Fábio Tozi 2

Este estudo se propõe a refletir sobre a implantação da rede estadunidense de fast-food


Kentucky Fried Chicken (KFC), especializada na venda de cortes de frango frito em baldes, em Belo
Horizonte, Minas Gerais. Sua implantação na capital mineira, em maio de 2017, foi noticiada por
diferentes meios de comunicação enquanto um espaço de consumo desejado e esperado pela
população. No entanto, antes de sua chegada, desde 2012, havia outros 20 restaurantes também
especializados em fornecer baldes de frango frito espalhados pelo município.
Nesse sentido, a implantação da rede KFC em Belo Horizonte encontrou no ambiente cons-
truído, na diversidade das formas de consumo das classes sociais, nas diferenças de renda entre
elas e nos modelos culturais do município, ações de resistência denominadas por Milton Santos de
flexibilidade tropical. Esta se relaciona às técnicas populares e ao poder criativo das massas, a partir
de uma divisão do trabalho imitativa ou caricatural.
Infere-se, então, que a compreensão deste fato passa pela análise da resistência do território,
seja na sua organização (tecnoesfera), seja nos seus hábitos e valores (psicoesfera). A ideia de espaço
é indissociável da noção de sistemas de tempo, uma vez que, a cada momento da história, a ação de
diversas variáveis depende das condições do correspondente sistema temporal ao qual estão vincu-
ladas. Assim, entende-se que a sucessão dos sistemas temporais relativos à implantação da rede KFC
no Brasil e em Belo Horizonte coincide com a sucessão das modernizações nesses territórios.
Portanto, propõe-se uma periodização do produto “frango frito no balde” em Belo Horizonte,
identificando-se quatro eventos principais: 1) a criação do frango frito no balde nos Estados Unidos
e a consequente geração do desejo de consumo, de 1952 a 1964; 2) a criação do primeiro restaurante
brasileiro especializado em frango frito no balde, em 1967; 3) a implantação da primeira franquia
de restaurante brasileiro especializado em frango frito no balde em Belo Horizonte, em 2012; e 4) a
implantação da KFC em Belo Horizonte, em 2017.
Afirma-se que estes períodos correspondem a sequências de eventos que significaram
importantes mudanças dentro do contexto das relações socioculturais e espaciais que a rede mun-
dial KFC fomentou por sua simples existência enquanto cadeia de fast-food global. Assim como
aconteceu em nível nacional, a psicoesfera antecedeu a tecnoesfera no território belo-horizontino,
isto é, o hábito de comer chegou antes da rede que o criou e, devido à escala de análise, observa-se
na capital mineira relevante número de restaurantes do circuito inferior da economia, especiali-
zados na venda de “frango frito no balde”, que têm na criatividade sua forma de resistência e con-
tinuidade. Esses criaram uma expressiva heterogeneidade de formas e fluxos neste território e se
constituem, empiricamente, formas de flexibilidade tropical.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 219
Palavras-chave: flexibilidade tropical; globalização do gosto; fast-food; hábitos alimentares.
Keywords: tropical flexibility; globalization of taste; fast food; eating habits.

1 Graduanda em Licenciatura em Geografia na Universidade Federal de Minas Gerais.


2 Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Geografia pela
Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 220
Os desafios dos produtores e comerciantes de orgânicos
no Mercado Kinjo Yamato de São Paulo

Challenges of organic producers and traders at São Paulo’s Kinjo Yamato Market

Rafael Reckziegel de Lucena 1


Paulo Donizete 2
Henrique Ianaze 3

A agricultura surgiu há mais de dez mil anos, conforme Ernesto Paterniani, em sua obra
Agricultura sustentável nos trópicos (2001). Ela foi uma das ferramentas mais importantes para a
obtenção regular de alimentos e, consequentemente, para o combate à fome. Chegamos à metade
do século XX ainda com problemas de fome no mundo. No período pós-Segunda Guerra Mundial,
a fome se agravou ainda mais e justificou o início do chamado Pacote Tecnológico da Agricultura.
Apesar da melhoria de produtividade, tal modelo tem sido contestado por causar danos ao meio
ambiente e à saúde da população. José Lutzenber em seu artigo “O absurdo da agricultura” (2001) já
alertava para os riscos do uso intensivo de agrotóxicos e da monocultura. A agricultura sustentável
ressurge, então, como uma alternativa capaz de oferecer alimentos saudáveis e com minimização
de impactos ambientais. A engenheira agrônoma Ana Maria Primavese, em seu artigo “Revisão do
conceito de agricultura orgânica: conservação do solo e seu efeito sobre a água” (2003), apresenta
os benefícios e as vantagens de uma agricultura agroecológica. Esta pesquisa propõe a elaboração
de um estudo de caso utilizando a metodologia de pesquisa exploratória, apoiada na pesquisa de
campo realizada no Mercado Municipal paulistano Kinjo Yamato, objetivando entender, perante os
produtores de orgânicos e comerciantes, integrantes do cinturão verde de São Paulo, suas caracte-
rísticas, conexões e principais dificuldades em escoamento e venda de produção. Nesse mercado
encontram-se apenas quatro bancas, mas que estão nessa região há mais de 20 anos e enfrentam
muitas dificuldades desde as alterações na localização, comercialização da produção e até mesmo
incertezas sobre a possibilidade de continuidade em função de processos licitatórios de responsa-
bilidade da Prefeitura Municipal. No Brasil, a defesa de um modelo de agricultora ecológica e sus-
tentável vem sendo feita desde a década de 1970 por pesquisadores como José Lutzenberger e Ana
Maria Primavese, que por sua atuação denunciavam a agricultura baseada no uso de agrotóxicos
que levariam ao esgotamento dos solos, poluição de mananciais hídricos e extinção de animais.
Ainda assim, o consumo de agrotóxicos não para de crescer. Entre 2000 e 2017, o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis apontou que o Brasil aumentou em 135% o
uso de agrotóxicos. A agricultura orgânica é uma alternativa para equilibrar os absurdos da agri-
cultura química. É neste contexto que assume importância conhecer a realidade dos produtores de
orgânicos e contribuir para entender os entraves ao seu desenvolvimento. Nessa pesquisa explora-
tória, procuraremos compreender as dificuldades encontradas pelos produtores na comercializa-
ção de seus produtos no Mercado Kinjo. E assim contribuir para que também a gastronomia seja

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 221
um elemento de apoio a agricultores agroecológicos, visando à sustentabilidade dos produtores e
à saúde da população.
Palavras-chave: produtores orgânicos; agricultura sustentável; pacote tecnológico na agricultura;
cinturão verde.
Keywords: organic producers; sustainable agriculture; technological package in agriculture;
green belt.

1 Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pós-graduando em
Gastronomia – Cozinha Brasileira no Centro Universitário Senac, em São Paulo.
2 Pós-graduando em Gastronomia – Cozinha Brasileira no Centro Universitário Senac, em São Paulo.
3 Pós-graduando em Gastronomia – Cozinha Brasileira no Centro Universitário Senac, em São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 222
Feira de Agricultura Familiar e Economia Solidária: espaço de socialização e aprendizado

Family Farming and Solidarity Economy Fair: a socialization and learning space

Raquel Nunes Silva 1


Bianca Aparecida Lima Costa 2
Silvia Eloiza Priore 3

Os circuitos curtos de comercialização aproximam produtor e consumidor, e, no caso dos


alimentos, promovem uma reorganização dos sistemas agroalimentares, já que essencialmente
são administrados por poucas redes varejistas transnacionais. A venda direta de alimentos tem se
desenvolvido no Brasil junto a políticas públicas no campo da segurança alimentar e nutricional,
agroecologia e economia solidária. Famílias da agricultura familiar têm ocupado os espaços de com-
pras institucionais, feiras, cestas agroecológicas e comunidades que sustentam a agricultura (CSA),
por exemplo. No caso das feiras, observa-se que elas proporcionam intercâmbios entre a ciência e a
prática, construindo redes que permitem o fortalecimento de todos os envolvidos (agricultor fami-
liar, empreendimentos solidários e consumidores). Nesse contexto, foi criado em 2016 o “Quintal
Solidário – Feira de Economia Solidária e Agricultura Familiar” em Viçosa, Minas Gerais. A feira vem
sendo realizada pelo Programa de Extensão Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares
(ITCP-UFV) e diversas parcerias, como a Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de
Viçosa (ASPUV), Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER), Serviço de Vigilância
Sanitária Municipal, Departamento de Nutrição e Saúde da UFV, entre outras. O “Quintal Solidário”
objetiva valorizar e promover a economia solidária junto à agricultura familiar, de modo a melhorar
a renda e a qualidade de vida dos atores envolvidos, integrando o público participante da feira e
proporcionando a todos a oportunidade de conhecer e divulgar a economia solidária e a agricultura
familiar. A feira é realizada semanalmente na sede da ASPUV, no campus da Universidade Federal de
Viçosa, e é organizada pelos parceiros e expositores, construindo relações horizontais e uma gestão
compartilhada. Objetivou-se sistematizar a percepção das famílias de agricultura familiar sobre a
participação na feira. Para isso, utilizou-se como aspectos metodológicos a observação participante
e entrevistas, sendo parte de um projeto de mestrado aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa com
Seres Humanos da UFV. Observa-se que todos os expositores relataram como ponto primordial de
participação na feira a criação de vínculos afetivos entre a própria equipe e com os consumidores,
percebem a feira como um espaço de convivência e aprendizado, ressaltando o ambiente agradável
e acolhedor. A importância da renda para as famílias também foi relatada, mas como ponto secun-
dário, o que traz discussões a respeito da ressignificação do trabalho, principalmente no contexto
da economia solidária. Então, a feira, nesse caso, se mostrou como circuito curto de comercialização
que cumpre papel de aproximação dos atores sociais, entre produção e consumo. Para além disso,
possibilita que públicos muitas vezes marginalizados tenham possibilidade de reconhecimento
e socialização, como valorização do trabalho no campo. Apoio: Programa de Pós-Graduação em
Agroecologia da UFV e Capes.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 223
Palavras-chave: segurança alimentar e nutricional; economia solidária; circuitos curtos de
comercialização.
Keywords: food and nutrition security; solidarity economy; short marketing circuits.

1 Doutoranda em Saúde Global e Sustentabilidade na Universidade de São Paulo.


2 Doutora em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
3 Doutora em Nutrição na Universidade Federal de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 224
A cozinha de herança italiana: memórias, culturas e identidades de um tesouro compartilhado

Italian heritage cuisine: memories, cultures, and identities of a shared treasure

Silvana Azevedo 1

Cerca de um milhão e meio de italianos chegaram ao Brasil entre 1870 e 1970. Desse total, 70%
permaneceram em São Paulo e influenciaram na fala, nos costumes e na mesa dos paulistanos. Eles
trouxeram um repertório cultural particular e ingredientes até então desconhecidos pela maior parte
da população brasileira. Diante de uma sociedade tão diversa, os imigrantes viram na culinária uma
maneira de preservação da própria identidade. Assim como a língua, a cozinha evidencia uma iden-
tificação cultural, carrega o sentimento de pertencimento de uma comunidade, revela o valor social,
sinaliza a origem e os laços afetivos de quem a consome e traz imbricadas memórias e costumes.
“A cozinha de herança italiana: memórias, cultura e identidade de um tesouro compartilha-
do” parte dos testemunhos de imigrantes italianos que deixaram o país de origem por melhores
oportunidades, sonhos e amores. Os caminhos que os conduziram à cozinha foram diversos. Em
comum, os relatos revelaram a dificuldade de sobrevivência em localidades diferentes da pátria-
-mãe e a importância da culinária como meio de preservação da própria história de vida, língua e
cultura. Como parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, esta comunicação pretende
abordar a comida caseira dos primeiros imigrantes italianos que aqui chegaram, segue pelo con-
ceito de “cozinha da mamma” e criação da expressão “cozinha cantineira”, enquanto espelho de uma
culinária adaptada, criativa e transgressora – se comparada às inspirações clássicas italianas –, mas
carregada de histórias, memórias e emoções que temperam as receitas que resistem aos efeitos do
tempo e refletem a italianidade presente no cardápio brasileiro.
Palavras-chave: memória; identidade; cultura; cozinha de herança; imigração italiana.
Keywords: memory; identity; culture; heritage culture; Italian immigration.

1 Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de Letras Modernas, pelo
programa de pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas, da Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 225
Entre os saberes e os sabores: análise do livro Receitas de Inhame do Ponto de Cultura Rural
de Barra Alegre

Between knowledge and taste: an analysis of the cookbook Receitas de Inhame [Yam’s Recipes]
from Barra Alegre’s Point of Rural Culture

Thaís Xavier de Assumpção 1


Juliana Borges de Souza 2

Este trabalho faz parte de um projeto que foi iniciado pelo Núcleo Interdisciplinar de
Agroecologia (NIA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ) em diálogo com o Ponto
de Cultura Rural de Barra Alegre, localizado no município de Bom Jardim, na região serrana do Rio de
Janeiro, no vilarejo de Santo Antônio, em distrito de Barra Alegre. O projeto incorporou nas suas ativi-
dades grupos organizados da UFRRJ que pesquisam a temática agroecológica; de forma interdiscipli-
nar, foi vivenciada uma série de experiências possibilitando a troca e a construção de conhecimento.
Esta iniciativa foi organizada a partir de um ciclo de vivências periódicas, cujo objetivo foi
construir, a partir da análise da região, do diálogo com a comunidade e do estudo sistemático do
material selecionado pelos grupos, propostas de intervenções colaborativas e dialógicas no Ponto
de Cultura Rural de Bom Jardim e no território. Ao longo de um ano, aproximadamente, foi resga-
tado o histórico de ações implementadas pelo Ponto de Cultura Rural de Barra Alegre, tais como a
realização de rodas de conversa e participação em eventos sociais da região, como também a con-
fecção de obras sobre os costumes, a culinária, o papel das mulheres na agricultura, as festas tradi-
cionais e demais temas da cultura regional (parte considerável das atividades promovidas possui
registro na página: https://www.facebook.com/sobradoculturalrural; acesso em 9 nov. 2019).
Uma das contribuições do Ponto de Cultura Rural de Barra Alegre para a região foi a elabo-
ração do livro Receitas de Inhame (disponível em <https://issuu.com/imagemcidadania/docs/livro_
receitas_web?fbclid=IwAR1EmoO2u4h-VrxM88KFufJlILtz24P5u_hR83AxzmnrDmDdk04vpo6Gd-
fY>, acesso em 9 nov. 2019). Tal obra é fruto de uma percepção da cultura que valoriza as práticas
cotidianas regionais e vê na plantação, colheita e alimentação relações de convivência. O mesmo
foi produzido a partir de um amplo diálogo com a comunidade e relata os diversos usos do inhame
para a culinária local e sua importância cultural para o território.
A pesquisa a ser apresentada no II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação
consiste em uma etnografia (embasada em Clifford Geertz, em “Uma descrição densa: por uma
teoria interpretativa da cultura”) de um livro de receitas que o Ponto de Cultura confeccionou em
parceria com membros da comunidade para entender as conexões que a mesma tem em relação
com o passado e o presente. A comida aparece como uma linguagem que fala de uma memória
familiar como uma memória gastronômica, nos termos de Ellen Woortmann. Partimos da premissa
de que a representação da comida, o ato de comer e o modo de fazer representam um código de
sociabilidade, de distinção de geração, de diferenças entre os gêneros e de contexto político e social.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 226
Como resultado, podemos dizer que a pesquisa tem demonstrado a possibilidade de cons-
trução de uma memória a partir dos costumes alimentares, ou seja, a obra em questão foi impor-
tante para a valorização das culinárias cotidianas e, por conseguinte, colaborou com a retomada da
memória histórica da região, através da relevância do inhame para a rotina cultural da população.
Palavras-chave: história regional; cultura alimentar; memória rural.
Keywords: regional history; food culture; rural memory.

1 Licenciada em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.


2 Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 227
Trinchando o potencial gastronômico: reflexões sobre as fronteiras do comer na
contemporaneidade

Carving the gastronomic potential: thoughts on the borders of contemporary eating

Talitha Alessandra Ferreira 1

Temos pensado sobre as possíveis condições e consequências das relações que a gastronomia tece
com comunidades tradicionais por meio de produtos que carregam “potencial gastronômico”. Nosso recorte
diz respeito à produção e à circulação da Pimenta Baniwa do Tipo Jiquitaia e à execução do Projeto Baunilha
do Cerrado, ambos vinculados ao Instituto ATA, de Alex Atala. A Pimenta Baniwa do Tipo Jiquitaia é um pó
à base de uma mistura de pimentas secas com sal, produzido por mulheres indígenas da etnia Baniwa, na
região amazônica do Alto Rio Negro. Já o Projeto Baunilha do Cerrado é desenvolvido no Sítio Histórico e
Patrimônio Cultural Kalunga, em Cavalcante, Goiás, e prevê a estruturação de uma cadeia para escoar bauni-
lhas nativas a partir do manejo de quilombolas Kalunga.
Os temas do gosto e dos seus processos de construção em contextos distintos impõem-se à nossa aná-
lise, levando-nos a repensar a complexidade do postulado de que “comer é cultura”, afirmado, por exemplo,
por Lívia Barbosa e Massimo Montanari. Se, por um lado, aos gostos praticados pela gastronomia agradam os
usos de alguns produtos provenientes de comunidades tradicionais quando transformados em ingredientes
e experiências estéticas que não estão acessíveis a todas as pessoas, às comunidades tradicionais, por outro
lado, voltam-se os gostos pelo manejo de uma diversidade de espécies que, histórica e simultaneamente,
tem permitido suas existências, conforme lemos em Práticas e saberes de agrobiodiversidade: a contribuição de
povos tradicionais (2018).
Partindo disso, os gostos dos Baniwa pelas pimentas que originam a jiquitaia, assim como os possí-
veis gostos dos Kalunga pelas orquídeas de baunilha, são resultantes de longevos processos de coevolução
entre humanos e plantas. Como nos lembram Anna Tsing, Manuela Carneiro da Cunha e Laure Emperaire,
a organização dos sentidos que envolvem os modos de vida dessas e outras comunidades tradicionais não
se pauta em especismos fundados na própria separação entre natureza e cultura, cara às análises sobre o
comer e a alimentação. A partir do exposto, desdobraremos algumas reflexões acerca da gastronomia e do
comer, tanto do ponto de vista dos fatores sociais de formação do gosto e dos paladares – lendo autores
como Pierre Bourdieu e Carlos Alberto Dória –, quanto dos fatores sociobiológicos do desenvolvimento de
determinadas plantas.
Para pensar os usos e os sentidos variados que essas plantas engendram em contextos diferentes
e distintos, recorreremos ainda a uma revisão bibliográfica de caráter multidisciplinar, que inclui relatos de
viagens, etnografias e trabalhos nas áreas da sociologia, história, biologia e ecologia. Assim, poderemos
apontar, mesmo que de modo preliminar, alguns limites e possibilidades das relações estabelecidas entre a
gastronomia e as comunidades tradicionais, considerando os processos coevolutivos que subjazem as exis-
tências das últimas e, por consequência, de ingredientes com “potencial gastronômico”.
Palavras-chave: gastronomia; gosto; comunidades tradicionais; coevolução.
Keywords: gastronomy; taste; traditional communities; coevolution.

1 Doutoranda em Sociologia da Cultura na Universidade Estadual de Campinas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 228
Construção da identidade na sociedade de consumo: uma análise a partir do consumo de
alimentos no Brasil

Identity construction in the consumer society: an analysis from food consumption in Brazil

Valter Palmieri Júnior 1

A formação da identidade social, em uma sociedade de consumo, é cada vez mais submeti-
da pelo processo dinâmico de mercantilização da vida social, que se transpõe na esfera do consumo,
desencadeando novas formas de diferenciação social, que é o propulsor do caráter perpétuo de
renovação do consumo na sociedade contemporânea.
O consumo reflete a diferenciação já existente na sociedade, cria, renova e amplia as desi-
gualdades, de acordo com a capacidade de decodificação e manipulação da linguagem do sistema
de objetos. Dessa forma, a identidade é construída por uma lógica do mercado e também por uma
lógica social do consumo, ambas funcionando em razão da estrutura social desigual, que reforça
as diferenças, criando um círculo que coloca o consumo como central também no processo de acu-
mulação de valor.
Para Jean Baudrillard, nenhum objeto de consumo escapa dessa lógica, principalmente
devido à ideologia das necessidades, fundamental para a reprodução do sistema, uma vez que o
caráter ilimitado das necessidades é o que mantém o processo de acumulação de valor. Ele afirma
em seu clássico livro Sociedade de consumo que: “Não existem limites para as necessidades do homem
enquanto ser social (isto é, enquanto produto de sentido e enquanto relativo aos outros em valor) A
absorção quantitativa de alimentos é limitada, o sistema digestivo é limitado, mas o sistema cultu-
ral da alimentação revela-se como indefinitivo [...]”.
Se aceitarmos essa hipótese, o consumo de alimentos não escapa da lógica da sociedade
de consumo, sendo submetido pela mesma dinâmica. Porém, será que é possível identificar pecu-
liaridades no consumo de alimentos que explicam o seu crescente protagonismo na construção da
identidade social na contemporaneidade?
Além de Baudrillard, dois outros sociólogos franceses fazem parte do nosso referencial
teórico para buscar encontrar essas peculiaridades: Jean-Pierre Poulain e Claude Fischler. Ambos se
caracterizam pela vontade de fundar um território onde a alimentação seja objeto de estudo e não
apenas apêndice de outros fenômenos sociais.
A partir dessa problemática, o trabalho buscará responder/refletir as seguintes questões: a)
Como a desigualdade social se manifesta no Brasil nos padrões de consumo de alimentos industria-
lizados? b) Como a indústria de alimentos no Brasil se baseia na diferenciação social (forte caracte-
rística da sociedade de consumo) para formatar suas estratégias de mercado?
Além da contribuição da reflexão teórica sobre o tema, buscando estabelecer conexões entre
os três autores mencionados, o trabalho buscará responder as duas questões acima elaboradas por
meio dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, tanto sobre o consumo (POF) como

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 229
em relação à pesquisa sobre a indústria (PIA). Além disso, serão coletadas as principais campanhas
publicitárias dos principais oligopólios da indústria de alimentos, para buscar analisar de que forma
a estratégia publicitária engloba os diversos valores sociais da atualidade para agregar valor em
seus produtos.
Palavras-chave: identidade social; consumo de alimentos; sociedade de consumo.
Keywords: social identity; food consumption; consumer society.

1 Mestre e doutor em Desenvolvimento Econômico na Universidade Estadual de Campinas, professor da Fundação


Getúlio Vargas (FGV).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 230
O empreendedorismo étnico de refugiados em pequenos negócios de alimentação na
cidade de São Paulo

Refugees ethnic entrepreneurship in small food businesses in the city of São Paulo

Vera Lúcia Stahelin Rustomgy 1


Sênia Regina Bastos 2

Atribui-se à comida um importante papel na preservação de tradições e costumes de imi-


grantes e refugiados. Isso porque, compreendida como uma dimensão da hospitalidade, a comen-
salidade proporciona experiências de acolhimento e sociabilidade entre anfitrião e hóspede ao
promover o ato de compartilhar refeições e, consequentemente, propiciar possíveis relações entre
ambos. Este trabalho visa compreender o empreendedorismo étnico na gastronomia, protagoni-
zado por refugiados na cidade de São Paulo. Para tanto, primeiramente, realizou-se uma pesquisa
exploratória, que buscou elencar os negócios destes novos empreendedores, inclusive, investigando
quais nações estão representadas nas culinárias oferecidas e em quais bairros estão localizados. A
partir de um levantamento de artigos e de obras relacionadas ao tema, foram selecionados textos, a
fim de se averiguar aspectos de comensalidade por meio de uma análise de caráter qualitativo. Além
disso, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com refugiados empreendedores com o propó-
sito de se averiguar o contexto de seu refúgio, sua origem, o porquê de ter optado por empreender
em um negócio gastronômico, qual o significado da comida em sua vida etc. Os resultados apontam
que os negócios gastronômicos protagonizados por esses refugiados sobrevivem em virtude de redes
de apoio, da sagacidade dos empreendedores e da atração desencadeada pelo interesse e pela curio-
sidade de moradores da cidade em fazer uma imersão cultural pelas diferentes etnias presentes em
solo paulistano. Tais etnias são provenientes dos seguintes países: Síria, Palestina, Congo, Turquia,
Venezuela etc. A contribuição do estudo para o campo acadêmico se dá pela abordagem ainda pouco
explorada do empreendedorismo étnico protagonizado por refugiados em São Paulo, associado a
outros fenômenos atrelados, tais como: food nostalgia, foodways, comidas tradicionais, patrimônio
cultural, que permitem estabelecer uma reflexão sobre as motivações que os levam a empreender
nessa área. As pesquisas na área de estudos da alimentação demonstram que a comida se relaciona
a lembranças, cultura e identidade dos migrantes em geral, elementos talvez não tão presentes em
outras áreas, nas quais também seria possível empreender. Por se tratar de deslocamentos huma-
nos, migrações e refúgios, estão inseridos em políticas públicas, planejamento urbano e outros
temas relativos à gestão da cidade. Sendo São Paulo uma das maiores metrópoles do planeta, faz-se
necessária e imediata a compreensão deste fenômeno da atualidade, para que possam ser tomadas
medidas, não apenas paliativas de acolhimento e auxílio a esses estrangeiros. Visto que, baseado
no conhecimento dessa realidade, principalmente, no que se refere à comensalidade, pode-se dar
fomento à elaboração de projetos de inclusão de imigrantes e refugiados, possibilitando seu melhor
aproveitamento e inserção no mercado de trabalho paulistano no ramo de alimentos e bebidas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 231
Palavras-chave: hospitalidade; comensalidade; empreendedorismo étnico; refugiados; São Paulo.
Keywords: hospitality; commensality; ethnic entrepreneurship; refugees; São Paulo.

1 Mestranda em Hospitalidade na Universidade Anhembi Morumbi, bolsista Capes.


2 Prof. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Hospitalidade na Universidade Anhembi Morumbi, bolsista de produ-
tividade nível II CNPq.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 232
Grupo de trabalho 7

GÊNERO

Work group 7

GENDER

Coordenadores/Coordinators:

Joana Monteleone

Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo,

pós-doutoranda na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Bianca Briguglio

Doutoranda em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),

integrante do grupo temático “Contradições do trabalho no Brasil atual:

formalização, precariedade, terceirização e regulação” e do Grupo de Estudos e Pesquisas

sobre Diferenciação Sociocultural, ambos da Unicamp

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 233
Educação de meninas para uma alimentação “sadia” no
Centro de Puericultura do Instituto de Educação de São Paulo (1930)

Girls’ education for “healthy” eating at the Childcare Center


of the Institute of Education of São Paulo (1930)

Ariadne Lopes Ecar 1

Neste trabalho propomos analisar o papel social e educativo do Centro de Puericultura do


Instituto de Educação de São Paulo na década de 1930. O Centro de Puericultura (CP) foi criado em
3 de março de 1933, por iniciativa de alunos da Escola de Professores, sob orientação de Almeida
Junior, professor catedrático de Biologia Educacional. As alunas da Escola de Professores eram
sócias-contribuintes da instituição e tinham por incumbência angariar sócios fora da escola para
assistência às crianças atendidas. Dentro do CP funcionavam as seções de lactário e dispensário. O
Serviço Sanitário mantinha junto ao CP um Dispensário de Puericultura, sob a direção do médico
pediatra Sylvio Sucupira, com a colaboração das educadoras sanitárias Mariah Costa Valente e Paula
Cecília Dias. Todas as alunas da escola faziam estágio com o médico e as educadoras sanitárias para
aprenderem de forma prática sobre a puericultura para, no futuro, ensiná-la nas escolas primárias.
As atividades que o CP oferecia podem ser elencadas em: 1) Gabinete médico, com seção de consul-
tas e aulas sobre puericultura pelo pediatra Sylvio Sucupira às estagiárias; 2) Pesagem, com observa-
ção da curva de peso e registro em fichários; 3) Costura, com confecção de enxovais pelas alunas da
Escola de Professores; 4) Educação, com palestras sobre assuntos de puericultura, feitas pelas estagi-
árias às mães; 5) Lactário, com preparo dos mingaus especiais, de acordo com as condições de saúde
das crianças, dentro das prescrições médicas; e 6) Visitas domiciliares, realizadas pelas alunas aos
bairros pobres, com o objetivo de aconselhar sobre a puericultura e a higiene geral. Na área social,
o CP prestava assistência à infância, com campanha sistemática e intensa em prol da diminuição da
mortalidade infantil, por meio do combate à “miséria” e à “ignorância”. No fim da década de 1930 o
CP estava sob responsabilidade do Serviço de Saúde Escolar. As fontes utilizadas para a escrita deste
trabalho serão os jornais Correio de S. Paulo e Correio Paulistano, as Mensagens do Governador do Estado
de São Paulo (década de 1930), disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, bem como
documentos sobre o Centro de Puericultura do Instituto de Educação acondicionados no Acervo
Caetano de Campos, do Centro de Referência em Educação Mário Covas. Utilizaremos o conceito
de “retórica” de Michel de Certeau, que significa “um discurso para mudar a vontade do outro”. O
discurso sobre o que era considerado “sadio” emanado do ensino juntamente com o saber médico
gerou a noção do que seria apropriado ou não para a saúde da infância paulista. Desse modo, pre-
tende-se conhecer as atividades do CP e perceber como o ensino foi acionado para intervir na saúde
da infância paulista.
Palavras-chave: Centro de Puericultura; alimentação sadia; saúde da infância paulista.
Keywords: Childcare; healthy eating; childhood health in São Paulo.

1 Pós-doutoranda pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Departamento de Medicina Preventiva).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 234
A divisão sexual do trabalho culinário

The sexual division of culinary work

Bianca Briguglio 1

A comunicação tem como objetivo apresentar um referencial teórico para pensar a divisão
sexual do trabalho nas cozinhas. Para tanto, pretendo discutir o que é a divisão sexual do trabalho,
o que são as relações sociais de sexo e o que eu entendo por gênero, para explicar como eu observei
a divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais na minha pesquisa Cozinha é lugar de mulher?
A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais, realizada no Doutorado em Ciências Sociais da
Universidade Estadual de Campinas.
A divisão sexual do trabalho, mediada por situações historicamente dadas, fundamenta-se
na ideia de antagonismo entre homens e mulheres, assim como relações de exploração-dominação
que estão colocadas na sociedade, principalmente em torno do trabalho.
Os elementos que serão analisados são a) a divisão sexual que se expressa nas cozinhas pro-
fissionais com a separação entre cozinha quente e cozinha fria, e suas diferentes valorações; b) a cria-
ção de um ambiente masculino e masculinizante, hostil para mulheres, que valoriza as características
socialmente associadas ao gênero masculino; c) as dificuldades que as mulheres têm de conciliar
família e trabalho, na medida em que elas continuam sendo responsáveis pelo trabalho doméstico
e de cuidados, o que já foi chamado de “dupla jornada” e que, do ponto de vista prático, cria maiores
dificuldades para as mulheres; finalmente, d) a questão da autoridade na cozinha e a associação do
chef a uma figura masculina.
A metodologia utilizada para escrever esse artigo será o apoio nas bibliografias de Saffioti
e Kergoat e Hirata, em suas teorizações sobre relações sociais de sexo, divisão sexual do trabalho, o
conceito de gênero e o conceito de patriarcado, que utilizo para analisar meus achados de pesquisa e
os elementos das entrevistas que realizei entre 2015 e 2019.
Para além do chamado teto de vidro, as mulheres encontram muito mais obstáculos do que
os homens em construir carreiras e percursos profissionais, até para permanecerem no emprego, em
função de relações de gênero e discriminações pelo fato de serem mulheres. Todavia, não são apenas
as mulheres que são afetadas por tal discriminação: os homens também se veem obrigados a segui-
rem determinados comportamentos que colocam sua saúde em risco, para corresponderem ao papel
social que lhes cabe.
Assim, pretendo oferecer elementos teóricos que subsidiem outras pesquisas, outras obser-
vações das relações sociais de sexo e a imposição de papéis sociais generificados, assim como apoiar
dessa perspectiva outras investigações no campo da alimentação e das relações de gênero.
Palavras-chave: divisão sexual do trabalho; trabalho em cozinhas; gênero; relações sociais de sexo.
Keywords: sexual division of labor; work in kitchens; gender; social relations of sex.

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da


Universidade Estadual de Campinas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 235
Os anúncios de leite artificial no Rio de Janeiro da Primeira República – maternidade
e alimentação infantil em debate

Artificial milk advertisements in Rio de Janeiro during the First Republic – maternity
and infant feeding in debate

Caroline Amorim Gil 1

O estudo parte do esforço de analisar as políticas de combate à mortalidade infantil no início


do século XX, ambiente em que a alimentação da criança se apresentava como aspecto de discussão
médica e das páginas de revistas e jornais que circulavam na época, dando maior visibilidade ao
duelo estabelecido entre aleitamento natural e aleitamento artificial.
Em fins do século XIX é possível observar o crescimento de anúncios de leite industrializa-
do na imprensa carioca. As propagandas presentes em periódicos como o Jornal do Brasil e revistas
especializadas, destinadas ao público feminino das classes mais elevadas, traziam a promessa de
alimentos que funcionavam como substitutos do leite materno.
A cruzada médica em favor do aleitamento era uma luta antiga. Ao longo do século XIX foi
possível observar a presença massiva de teses na Faculdade de Medicina destacando a importân-
cia materna no controle da mortalidade, que assolava a primeira infância. No início do século XX,
médicos como Moncorvo Filho, à frente do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de
Janeiro, e Fernandes Figueira, na Policlínica das Crianças, seriam porta-vozes da luta contra a mor-
talidade, e neste cenário a alimentação apareceu como o fator primordial para garantia do futuro
nacional – o infante.
Entre 1900 e 1909 a presença de amas de leite que circulavam na cidade do Rio de Janeiro
anunciando seus serviços no Jornal do Brasil ou sendo requisitadas por famílias era numerosa; em
1900 temos a presença de 44 anúncios, número que se eleva para 438 em 1903, chegando a 1.176
em 1906. O recurso à ama atravessava status sociais, sendo requisitada nas freguesias mais pobres
da cidade, corroborando a tese de que o hábito de não amamentar havia se disseminado entre as
classes populares.
Foi nesse ambiente de defesa médica em favor da supremacia do leite materno e de
combate às amas que o leite artificial cresceu como uma alternativa de alimentação. Tendo como
diferencial a praticidade de preparo, a promessa de preço acessível aos mais pobres e um repre-
sentante da vida moderna, da mulher independente, que podia cuidar da casa, trabalhar fora e
manter os filhos bem alimentados.
A partir das teses da FMRJ é possível observar o discurso médico, os congressos em prol da
infância e as discussões entre os pares. E cruzar estes dados com a publicidade da indústria alimen-
tícia – tanto a distribuição do leite de vaca, como os alimentos processados, presentes em revistas
como Fon Fon, Vida Doméstica e Tico Tico. Este conjunto nos permitirá delinear as políticas públicas
traçadas em prol da criança.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 236
A hipótese levantada é de que os médicos também foram responsáveis pela difusão do
leite artificial, mesmo que em desacordo com as premissas do parecer acadêmico. A relação entre
medicina e indústria, na certificação de produtos, foi essencial para a transformação do aleitamento
artificial em prática cultural.
Palavras-chaves: infância; alimentação; leite artificial.
Keywords: childhood; food; artificial milk.

1 Doutoranda em História das Ciências e da Saúde pelo Programa de Pós-Graduação da Casa de Oswaldo Cruz.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 237
De Juana Paula Manso a Juana Manuela Gorriti:
cozinha e culinária nos escritos de duas letradas argentinas do século XIX

From Juana Paula Manso to Juana Manuela Gorriti:


kitchen and cooking in the writings of two 19th century Argentine literate women

Deise Cristina Schell 1

Juana Paula Manso (1819-1875) e Juana Manuela Gorriti (1816-1892) foram duas letradas
argentinas que, além de publicar em jornais de Buenos Aires e de outras cidades americanas, foram
autoras de relatos de viagens, obras históricas, contos e romances, tendo participado do espaço
público letrado bonaerense de forma ativa durante a segunda metade do século XIX. A partir de
suas atividades, Manso e Gorriti refletiam sobre os temas que mais lhes interessavam: o papel da
mulher na sociedade, a educação e a política eram questões que constantemente faziam parte de
suas preocupações e de suas narrativas.
Segundo estudiosas das letradas, como Graciela Batticuore e Marina L. Guidotti, seus textos
demonstram que o espaço feminino não deveria restringir-se somente ao âmbito doméstico. A
cozinha e a culinária, assim, acabaram fazendo parte de suas reflexões. Nesta comunicação preten-
do compreender como esse lugar e esse fazer foram pensados e representados pelas duas mulhe-
res públicas aqui estudadas em seus escritos. Para isso, serão analisadas fontes históricas como o
Jornal das Senhoras, editado por Juana Paula Manso em 1852, e Cocina Eclética, um livro de receitas
publicado por Juana Manuela Gorriti em 1890. Há que se considerar que Manso escreveu palavras
como as seguintes no Jornal das Senhoras (1852): “La emancipación moral de la mujer es considerada
por la vulgaridad como el apocalipsis del siglo. Los unos corren al diccionario y exclaman: ¡Ya no
hay autoridad paterna! ¡Adiós despotismo marital! ¡Emancipar a la mujer! ¡Cómo! Pues ese trasto
de salón (o de cocina), esa máquina procreativa, ese cero dorado, ese frívolo juguete, esa muñeca
de las modas, ¿será un ser racional?”. No mesmo sentido, segundo Graciela Batticuore em La Mujer
Romántica:  Lectoras, Autoras y Escritores en la Argentina (2005), “as heroínas dos relatos de Gorriti
dizem não ao ideal da família e ao lar”, já que, em sua produção literária, o “mundo de fora” e “os
caminhos e a ânsia de sair” é que regiam o universo de expectativas que forjavam o imaginário das
personagens femininas,
Juana Manuela Gorriti, no entanto, acabou por produzir, no fim de sua vida, Cocina Eclética.
Especialmente sobre essa obra, buscarei respostas para as seguintes questões: o que poderia ter
motivado a letrada a produzir uma obra abordando exatamente e estritamente os fazeres culiná-
rios? Por que a escritora pensou ser preciso registrar e publicar um receituário? O que exatamente
contém essa obra? A quem esse escrito era dirigido? O que a sua “culinária de papel” – como Laura
G. Gomes e Lívia Barbosa entendem os materiais impressos relativos às cozinhas e à culinária em
artigo por elas publicado em 2005 – queria expressar, especialmente no que diz respeito à relação
das mulheres com a cozinha (enquanto espaço doméstico) e com a comida nela produzida? Minha

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 238
comunicação, assim, contribuirá para as discussões sobre a história das mulheres, os estudos de
gênero e suas relações com a história da alimentação.
Palavras-chave: Juana Paula Manso; Juana Manuela Gorriti; cozinha; culinária; gênero.
Keywords: Juana Paula Manso; Juana Manuela Gorriti; kitchen; culinary; gender.

1 Doutora em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora colaboradora do Programa de Pós-
Graduação em História e do curso de Graduação Tecnológica em Gastronomia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
e na Especialização em História da Alimentação e Patrimônio Cultural da Universidade de Santa Cruz.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 239
Alimentação, sociabilidades e a atuação feminina nas guerras luso-holandesas (1630-1654)

Food, sociability, and female acting in the Portuguese-Dutch wars (1630-1654)

Elisielly Falasqui da Silva 1

Esta apresentação tem por objetivo explorar as relações entre as práticas alimentares, sobre-
tudo no que diz respeito às redes de sociabilidade envolvidas neste ato, e as atuações das mulheres
no âmbito das guerras luso-holandesas, entre 1630 e 1654, na região setentrional do Brasil.
Em um primeiro momento, tomando como base os relatos de cronistas do período, buscarei
traçar um panorama das permissões e interdições direcionadas às mulheres luso-brasileiras quanto
às práticas alimentares, especialmente aquelas relacionadas à sociabilidade – como a proibição de
partilhar o momento das refeições com outros homens que não seus maridos.
Tal panorama será contraposto a dois episódios marcantes da atuação das mulheres no con-
texto de guerra, ambos relacionados ao ato alimentar: o convite de jantar direcionado por Maurício
de Nassau às mulheres que se reuniram em seu palácio pedindo a libertação de uma matrona acu-
sada de conspirar contra os holandeses e condenada à morte, dona Jerônima de Almeida; e o jantar
ocorrido na casa da mesma Jerônima, anos depois, no qual supostamente portugueses e holande-
ses teriam conspirado contra o governo holandês. Em ambos os episódios, o momento da refeição
coloca-se como também um momento de encontros, pleitos, disputas políticas e conspirações.
A análise será, por fim, acrescida de outros episódios nos quais o ato de cozinhar ou oferecer
alimentos a aliados ou inimigos revela-se como uma das possibilidades de atuação das mulheres
dentro do cotidiano das guerras luso-holandesas, sobre as quais avento a hipótese de que teriam
aberto novos e diversificados caminhos à iniciativa feminina, não apenas pela mudança brusca da
dinâmica social dos envolvidos na guerra, mas também por colocar em contato pessoas com expe-
riências culturais diversas.
Palavras-chave: sociabilidade; história das mulheres; Brasil holandês; banquetes e jantares.
Keywords: sociability; women’s history; Dutch Brazil; feasts and dinners.

1 Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 240
Discutindo gênero e trabalho culinário a partir de experiências de cozinheiras escolares
da cidade de Salvador (BA)

Discussing gender and culinary work from the experiences of school cooks from Salvador, Bahia

Gabriela Brito de Lima Silva 1


Virgínia Campos Machado 2
Lígia Amparo-Santos 3

Esta comunicação pretende discutir as relações entre trabalho culinário e gênero, pontu-
ando sua intersecção com as categorias raça e classe, a partir de uma pesquisa que buscou com-
preender os sentidos do cozinhar para merendeiras. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas
com nove trabalhadoras, todas mulheres negras, de quatro escolas públicas da cidade de Salvador,
Bahia. É importante destacarmos que o trabalho culinário cotidiano se insere na produção de
valores de uso na esfera doméstica, através do atendimento às necessidades concretas e subjetivas
que constituem comer. Observamos na pesquisa que o espaço doméstico serviu como lócus para a
construção das primeiras experiências das merendeiras com o cozinhar e a figura feminina emer-
giu como portadora e transmissora dos saberes relativos à culinária. Elas destacam que aprender
a cozinhar foi necessário para auxiliar a mãe nos afazeres de casa e para cuidar da família após o
matrimônio, sendo desde então as únicas responsáveis por tal atividade. Outro ponto observado
foi a proximidade entre o trabalho culinário e o emprego doméstico, tornando este integrante da
prestação de serviços em um nicho historicamente generizado e racializado, tendo em vista os
relatos sobre o desenvolvimento dos saberes culinários em “casa de família”. A partir disto, desta-
camos como as atividades realizadas pelas mulheres negras e da classe trabalhadora, dentre elas
o cuidado alimentar, garantem entre outras coisas o sustento e reprodução dos sujeitos, sejam
estes seus entes ou aqueles a quem prestam serviços. Observamos que apesar de relatar o esforço
e desgaste nas atividades que envolvem o trabalho culinário, as merendeiras acabam por aceitar o
ônus de serem direcionadas à exploração nas tarefas que desenvolvem, acreditando que estas são
sua obrigação. Para elas, cozinhar é uma atribuição natural das mulheres, por vezes considerada
um dom. Todavia destacamos que o domínio do trabalho culinário irá possuir como um de seus
aspectos constitutivos as experiências que estas possuem como donas de casa. Nesse sentido, o
cozinhar na escola é visto como um prolongamento das tarefas domésticas, fazendo com que o tra-
balho de merendeira se encontre em uma zona de intersecção entre a esfera pública e privada. Tal
aspecto contribui para a destituição do caráter profissional do seu trabalho fazendo com que este
seja desvalorizado socialmente e condicionado à exploração das mais diversas formas. A partir da
pesquisa, observamos como o desenvolvimento das práticas culinárias na vida das mulheres negras
e trabalhadoras adquire contornos específicos de exploração da força de trabalho, através do seu
direcionamento sob um domínio material e ideológico. Por fim, destacamos a necessidade de estu-
dos que considerem as dimensões raça e classe nas análises sobre o trabalho culinário feminino,

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 241
tendo em vista que tais elementos incidem diretamente nas relações que envolvem a produção da
alimentação e consequentemente do comer.
Palavras-chave: trabalho feminino; interseccionalidade; trabalho culinário; merendeiras.
Keywords: female work; intersectionality; culinary work; school cooks.

1 Mestra em Alimentos, Nutrição e Saúde na Universidade Federal da Bahia.


2 Doutora em Psicologia da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
3 Doutora em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 242
Aspectos da divisão sexual do trabalho e o consumo alimentar fora do lar:
os impactos para o trabalho das mulheres

Aspects of the sexual division of labor and food consumption away from home:
impacts on women’s work

Iriana Cadó 1
Luciana de Oliveira Silva 2

O objetivo da comunicação é associar a alimentação fora do lar à divisão sexual do trabalho,


apresentando de que forma comer fora ou dentro de casa tem implicações para a mulher, a quem
são atribuídas socialmente as tarefas de planejamento alimentar e preparo das refeições dentro da
esfera domiciliar. Busca-se responder se uma maior socialização pública, isto é, a retirada da esfera
privada da realização destas tarefas – que são generificadas – contribui para a diminuição do núme-
ro de horas trabalhadas no âmbito privado, permitindo uma inserção mais igualitária das mulheres
no trabalho produtivo.
O aumento das despesas das famílias com a alimentação fora do lar foi significante nos anos
2000 no Brasil. A média mensal de gastos para essa categoria de uma família passou de 24,1% em
2002 para 31,1% em 2008. O hábito de comer fora de casa é uma tendência mundial que a popula-
ção brasileira acompanhou nesse período. A expansão desse setor pode ser entendida por questões
estruturais como a urbanização acelerada; como pela recente conjuntura econômica entre 2003-
2014 caracterizada por um crescimento econômico junto com inclusão social, com bons indicadores
do mercado de trabalho e do campo social. Esse período trouxe elementos para que o Brasil fosse
pensado a partir de um projeto de desenvolvimento ancorado no consumo de massa. Assim, no
regime de crescimento da demanda das famílias ocorreu um aumento da renda familiar que provo-
cou incremento da demanda de serviços de alimentação.
Historicamente, a inserção das mulheres no mercado de trabalho é marcada pela divisão
sexual do trabalho. Segundo Danièle Kergoat e Helena Hirata, as relações socioeconômicas se
fundamentam na articulação das esferas da produção e da reprodução, tendo dois princípios ele-
mentares: separação e hierarquização. A divisão sexual do trabalho configura-se como um determi-
nante da condição inferior da mulher no mercado de trabalho e o trabalho doméstico permanece
principalmente sob a responsabilidade das mulheres. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, o número de horas trabalhadas pelas mulheres na esfera doméstica manteve-se estável
desde 2001. Enquanto as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais a afazeres e/ou cuida-
dos, os homens dedicam 10,9 horas. Ademais, 95% das mulheres era responsável por preparar ou
servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louça contra 60% dos homens em 2018.
A metodologia consiste em uma revisão bibliográfica sobre: i) trabalho reprodutivo e a
inserção das mulheres no trabalho produtivo; ii) o consumo alimentar das famílias no contexto
econômico dos anos 2000 e análise de dados da PNAD e da POF. Esta comunicação amplifica as

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 243
dimensões de como o local da alimentação impacta o trabalho da mulher, tendo como hipótese
que apesar das mudanças de hábitos de consumo alimentar no Brasil, não há uma amenização da
divisão sexual do trabalho e há manutenção da carga de trabalho da mulher no âmbito doméstico
que permeia sua inserção precária no mercado trabalho.
Palavras-chave: divisão sexual do trabalho; consumo alimentar; trabalho.
Keywords: sexual division of labor; food consumption; work.

1 Mestranda em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas.


2 Mestranda em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 244
Uma análise do livro Doceira Brasileira: gênero, açúcar e engenhos

An analysis of the cookbook Doceira Brasileira: gender, sugar, and sugar mills

Joana Monteleone 1

O livro Doceira Brasileira, de Constança Oliva de Lima, teve seu primeiro anúncio de publici-
dade publicado no Jornal do Comércio no sábado, dia 20 de julho de 1850. Foi editado por uma das
maiores editoras do país, a Laemmert, sediada no Rio de Janeiro. A história do livro é fundamental
para se entender as complexas relações econômicas, sociais e de gênero envolvidas no seu feitio
e publicação. A autora que aparece assinando a capa é Constança Oliva de Lima. Mas a autora que
realmente escreveu o volume é Anna Maria das Virgens Pereira Rabello e Gavinho, uma senhora de
engenho da região noroeste do Rio de Janeiro, na cidade de Macaé. Nesta comunicação, explicito
essas complexas relações e a importância do livro para o estudo da História da Alimentação no Brasil.
O estudo dos livros de receita implica em diferentes formas de análise. A primeira, e mais
evidente, é a análise das receitas propriamente ditas: se é um livro específico de doces ou licores,
como as receitas estão divididas, quantas receitas de salgados, quantas de doces, o nível de difi-
culdade das receitas, se as receitas vieram de outros livros publicados antes ou se parecem ter sido
testadas pelos autores ou autoras.
Mas a análise desses livros também implica em se descobrir outras informações sobre os
volumes: qual editora publicou o livro, qual o papel da editora, em que mercado ela se inseria e como
distribuía os livros. A maneira como os autores e as autoras se insere dentro do catálogo da editora
também é fundamental – era um jornalista ou uma dona de casa? O livro seria vendido em livrarias?
Era uma edição caseira ou seria comercializado apenas em eventos de caridade? Esse circuito de
leitura e inserção do livro de receitas é fundamental para se entender como e por quem ele era lido.
O livro faz parte de um conjunto de livros de receitas editados no Brasil do século XIX que
tem ajudado os historiadores interessados em alimentação a se debruçar sobre o período. Já foram
objetos de estudo e de algumas reedições, atualizadas ou não. Dentre os livros de receitas editados
no período, o Doceira Brasileira sugere muitas questões: é o único escrito por uma mulher, ainda que
sob pseudônimo, que também é de uma mulher, ele tem o gênero – feminino – bem explícito no
título, o que nos dá uma ideia para quem ele foi escrito, a relação entre doces, mulheres e regiões
produtoras de açúcar é evidente. Esta comunicação se insere na minha mais recente pesquisa para o
pós-doutorado na Universidade de São Paulo, que é “Açúcar e Industrialização”.
Palavras-chave: açúcar; gênero; livros de receitas; século XIX; Rio de Janeiro.
Keywords: sugar; gender; cookbooks; 19th century; Rio de Janeiro.

1 Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo, pós-doutora pela Universidade Federal de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 245
Manuais técnicos de confeitaria:
apontamentos sobre edições e o mercado editorial carioca (Rio de Janeiro, 1850-1930)

Confectionery technical manuals:


notes on editions and the editorial market in Rio de Janeiro (1850-1930)

Larissa Alves de Lima 1

O presente resumo trata-se de um recorte de meu projeto de pesquisa de mestrado intitula-


do A arte de fazer toda qualidade de doces (Rio de Janeiro, 1850-1930).
Considerando a intensa publicação de manuais técnicos de confeitaria entre a segunda
metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, indicando a existência de um mercado
editorial no setor, a presente comunicação abordará o significado desse mercado editorial.
Entre 1850 e 1930, foram publicados no Rio de Janeiro diversos livros de culinária. Dentre
eles, estão nove livros de receitas doces: Doceiro Nacional ou Arte de Fazer toda qualidade de doces;
Dicionário do Doceiro Brasileiro; O Confeiteiro Popular ou Manual theorico e pratico de confeitaria e paste-
laria para uso dos professionaes e particulares; Manual do Distillador e Licorista; A Doceira Doméstica; O
Confeiteiro Nacional. Manual Theorico e Pratico de Confeitaria, Refinação e Pastelaria; Doceira Brasileira ou
nova guia para se fazerem todas as espécies de doces; DOCEIRA Nacional; Manual de Confeitaria.
Com o objetivo de compreender a edição dos livros de receitas doces do período em ques-
tão, é necessário esboçar algumas considerações sobre o mercado editorial fin de siècle. Capital do
Império, a cidade do Rio de Janeiro possuía o maior “número de leitores em potencial”, segundo
Tânia Bessone em O que liam os cariocas? (2005). Em estudo intitulado Páginas de Sensação, Alessandra
El Far preocupava-se com os livros destinados para o “povo” – a autora não está se referindo às cama-
das mais baixas da sociedade, mas sim a um crescente público consumidor em formação no espaço
urbano e alvo dos impressos a preços populares.
De acordo com Bessone, os livros mais vendidos e lidos pelos cariocas diziam respeito,
sobretudo, aos romances de aventura. No entanto, existiam obras que fugiam desse formato e
obtinham sucesso, como é o caso dos manuais práticos “que ensinavam a cozinhar ou alguma outra
atividade similiar ou manuais de polidez”. Neste setor encontram-se os manuais técnicos de con-
feitaria. Segundo El Far, o desenvolvimento desse mercado livreiro deve ser compreendido a partir
da proclamação da República e o fim do sistema escravocrata. Nesse sentido, esse mercado fomen-
tou-se com a “chegada das inovações tecnológicas de impressão, que viabilizaram a produção de
exemplares mais baratos, a entrada maciça de imigrantes dispostos a se instalarem no mercado
varejista munidos de um pequeno capital trazido na bagagem, o número sempre crescente de
escravos libertos capaz de compor um aglomerado cada vez maior de consumidores em potencial,
os pequenos progressos no processo de alfabetização” (ver Alessandra El Far, Páginas de Sensação –
Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924), 2004).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 246
Nesta comunicação, focaremos na análise das edições, público, receitas e utensílios de espe-
cialmente cinco livros de receitas: Doceiro Nacional, Dicionário do Doceiro Brasileiro, Confeiteiro Popular,
Manual do Distillador e Licorista e Manual de Confeitaria.
Palavras-chave: doçaria; açúcar; edições; consumo.
Keywords: confectionery; sugar; editions; consumption.

1 Mestranda em História Econômica na Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 247
Entre bebidas, panelas e educação: a produção feminina do cauim no Brasil colonial

Between drinks, pots, and education: the female production of “cauim” in Colonial Brazil

Maria Betânia B. Albuquerque 1

O estudo analisa as possibilidades de uma história da educação de natureza não esco-


lar tomando como objeto de investigação os rituais de consumo do cauim entre os índios
Tupinambá do Brasil colonial, grupo étnico considerado como amante das bebidas fermentadas.
Metodologicamente, resulta de uma pesquisa documental baseada em fontes históricas como car-
tas jesuíticas e os relatos de viajantes que estiveram no Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII e presen-
ciaram esse costume entre os indígenas. Inseridas no campo teórico das práticas alimentares, em
sua interface com o conceito de educação como cultura, de Carlos Rodrigues Brandão, as práticas
de beber, para além dos seus significados nutricionais, encerram dimensões simbólicas e educati-
vas, configurando-se como estratégias significativas de entendimento das formas como homens e
mulheres ordenam o mundo e lhe atribuem sentido. A fabricação das bebidas era perpassada por
um conjunto de saberes que tinham suas próprias regras e códigos de conduta. Obedeciam, tam-
bém, a uma concepção particular de conhecimento, cuja elaboração pautava-se em parâmetros de
classificação, experimentação e controle. Eram, contudo, as mulheres as agentes por excelência da
produção e transmissão desses saberes, razão pela qual a historiografia indígena precisa ser refina-
da em sua análise da condição feminina naquelas sociedades. Reiteram-se, assim, as possibilidades
da cultura material como fonte para a compreensão das estruturas mentais e dos valores dos gru-
pos. A cultura material que envolveu a fabricação e o consumo do cauim é um indício significativo
das hierarquias sociais e dos valores entre os Tupinambá, uma vez que os bebedores tinham papéis
sociais bem demarcados. Os índios mais velhos, por exemplo, recebiam tratamento especial posto
que desfrutavam da honraria de valentes guerreiros, sendo, portanto, os primeiros a serem servidos.
Entre as índias, a capacidade de fabricar o cauim, bem como a habilidade técnica de confeccionar
e pintar as vasilhas, tarefas eminentemente femininas, também eram indícios de prestígio e poder
que lhes permitiam ocupar uma situação diferenciada na sociedade, em face às mulheres que não
possuíam tais habilidades. Como acontecimentos que possibilitavam a coesão social indígena,
as beberagens – ao transmitirem a memória coletiva, incutirem valores, perpetuarem a tradição
e promoverem a resistência indígena aos ditames da colonização – funcionavam, portanto, como
instâncias de socialização ou como mediadores culturais dos saberes da coletividade, motivo pelo
qual também podem ser interpretadas como uma prática eminentemente educativa.
Palavras-chave: educação não escolar; mulheres Tupinambá; bebidas fermentadas; cultura material.
Keywords: non-school education; Tupinambá women; fermented drinks; material culture.

1 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora titular do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 248
Práticas culinárias de mulheres residentes em Cruzeiro do Sul, no Acre:
uma abordagem qualitativa e feminista

Culinary practices of women living in Cruzeiro do Sul, Acre:


a qualitative and feminist approach

Mayara Sanay da Silva Oliveira 1


Ramiro Andres Fernandez Unsain 2
Mariana Dimitrov Ulian 3
Priscila de Morais Sato 4
Fernanda Baeza Scagliusi 5

A culinária doméstica é uma prática social imbricada em um sistema de gênero que (re)
produz ideias de trabalhos diferenciados para homens e mulheres, bem como comportamentos
considerados “adequados” para as pessoas. Este trabalho objetiva descrever e discutir o trabalho
culinário doméstico realizado por mulheres a partir da perspectiva de performatividade de gênero
da filosofa Judith Butler. Trata-se de um estudo qualitativo e feminista. Realizamos entrevistas em
profundidade semiestruturadas com 14 mulheres casadas ou que residem com os cônjuges, com
idade entre 25 a 41 anos e que cozinhavam em domicílio pelo menos 1 vez por dia; e 05 cônjuges com
idade entre 28 a 51 anos. Analisamos os dados com análise de conteúdo, codificamos as entrevistas
com especial atenção para os status atribuídos às mulheres e aos homens no núcleo familiar, às
diferenças e aos jogos de poderes, aos privilégios que permitem às diferentes pessoas exercerem
ou se beneficiarem do poder, às forças e aos processos que emergem dos itens supracitados. Em
nossa pesquisa, as mulheres eram as principais responsáveis por realizar os trabalhos culinários
domésticos, executando-os sozinhas ou compartilhando com outras figuras femininas. Enquanto
seus cônjuges eram praticantes secundários ou terciários da culinária doméstica, realizando essas
atividades apenas na ausência de figuras femininas. Todas as mulheres entrevistadas reconheciam
a culinária doméstica como uma obrigação social e familiar atribuída à “mãe”, à “esposa” e à “dona
de casa”. Elas realizavam diariamente e continuamente uma série de atividades físicas e cognitivas
relacionadas ao trabalho culinário doméstico com intuito de contribuir com a família, cuidar do
marido e das crianças, e evitar reclamações ou crítica dos maridos ou outros membros da família.
Em relação aos cônjuges, eles identificavam que negar que homens e mulheres deveriam realizar
as mesmas atividades domésticas indicaria um pensamento “machista” de sua parte. Contudo, eles
afirmavam que os homens deveriam cozinhar apenas quando: morassem sozinhos, não trabalhas-
sem fora de casa, soubessem cozinhar, tivessem “dom” para culinária, gostassem e/ou tivessem o
interesse em cozinhar. Dentro de tantas condições e restrições socioculturais para a participação
masculina no trabalho culinário doméstico, os maridos e companheiros que realizavam essa ativi-
dade em maior frequência se reconheciam como desviantes de uma norma hegemônica por esta-
rem executando uma atividade considerada feminina. Concluímos que as mulheres e os homens
disputam ativamente poderes, privilégios, controles e autonomia com intuito de implementar
modelos de práticas culinárias que possam performar dentro das suas conjunturas de vidas atuais.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 249
Palavras-chave: mulheres; culinária; papéis de gênero; feminismo; pesquisa qualitativa.
Keywords: women; culinary; gender roles; feminism; qualitative research.

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Nutrição em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da


Universidade de São Paulo.
2 Doutor em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde da Universidade Federal
de São Paulo.
3 Doutora em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Nutrição em Saúde Pública da Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo.
4 Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Nutrição em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo, doutora em ciências pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da
Saúde da Universidade Federal de São Paulo.
5 Professora Doutora no Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 250
Alimentação e gênero em Minas Gerais:
um estudo sobre a atuação de LGBTs na cena gastronômica contemporânea

Food and gender in Minas Gerais:


a study on the performance of LGBT in the contemporary gastronomic scene

Paulo André Natale Belato 1


Edna Aparecida Lisboa Soares 2
Carolina Figueira da Costa 3

Marco Aurélio Máximo Prado e Frederico Viana Machado, no livro Preconceito contra homos-
sexualidades: a hierarquia da invisibilidade (2008), dissertam sobre as várias hierarquias sociais criadas
ao longo da história humana e como estas são utilizadas para manter certos grupos marginalizados
ou, até mesmo, fora da visão do resto da sociedade. De acordo com o texto, essa “invisibilidade”
legitima a inferiorização dessas pessoas e permite que o status quo se mantenha. Se o patriarcado,
presente na Gastronomia desde sua formalização, é uma dessas hierarquias, preocupadas em man-
ter as mulheres fora do espaço masculino, a heteronormatividade é outra, responsável por manter
as pessoas queer à margem da sociedade.
Tomando como base o machismo na indústria gastronômica e os caráteres cultural e de
gênero pelos quais a gastronomia é analisada, é que se vê necessidade em abordar esses temas do
ponto de vista dos membros do grupo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer e Outrxs
(LGBTQ+). A partir da correlação entre esses dois pontos-chaves, a invisibilidade atribuída ao grupo
LGBTQ+ e o machismo presente no âmbito da gastronomia, perguntamo-nos como as pessoas
LGBTQ+ são vistas nessa indústria, tanto fora quanto dentro da cozinha, e quais seriam as ações
adequadas para combater possíveis problemas.
Resultados e discussões: Para a pesquisa, um questionário foi formulado e distribuído entre
pessoas atuantes no meio da gastronomia. Para realizar a análise de dados obtidos e facilitar a
leitura, xs participantes foram divididxs em dois grupos principais. No primeiro grupo, as pessoas
cisgêneras e heterossexuais, totalizando 42 pessoas. No segundo grupo foram colocadas as pessoas
que se classificaram como LGBTQ+ da Grande Belo Horizonte, totalizando 16 pessoas.
Entre xs participantes queer, 62,5% (n=10) afirmaram terem sofrido assédio moral devido
à sua orientação sexual, sendo que 3 participantes afirmaram serem assediadxs frequentemente.
68,75% (n=11) das pessoas queer conhecem alguém que já sofreu discriminação devido à sua orien-
tação sexual. Esta última pergunta também foi feita às participantes não-queer, e 44,3% (n=27)
delas afirmaram conhecer alguém que já sofreu discriminação devido sua orientação sexual.
Considerações finais: Se a invisibilidade pode ser vista como um problema para pessoas
queer que trabalham na área da gastronomia, então o que pode ser feito é dar maior visibilidade
para essas pessoas. Se discriminação e homofobia se fazem possíveis devido à marginalização desse
grupo, então, trazer esse grupo para a consciência pública pode ser uma tática para ajudar no que
diz respeito à sua aceitação e inclusão.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 251
Apesar de existirem vários programas sociais focados na profissionalização de pessoas
queer, poucas pessoas não-queer estão cientes dessas iniciativas. Uma possível solução para margi-
nalização seria a promoção de programas de conscientização e sensibilidade, direcionados princi-
palmente a pessoas não-queer.
Palavras-chave: homofobia; queer; feminismo; LGBTQ+.
Keywords: homophobia; queer; feminism; LGBTQ+.

1 Graduando em Tecnologia da Gastronomia na Faculdade Senac de Belo Horizonte e bolsista de Iniciação Científica
através do Senac.
2 Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
3 Doutoranda em História da Alimentação na Universidade de Évora, Portugal.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 252
“O daime ferve no caldeirão”: questões de gênero que perpassam o ritual feitio do Santo Daime

“Daime boils in the cauldron”: gender issues that pervade the Santo Daime ritual

Sabrina Augusta da Costa Arrais 1


Maria Betânia B. Albuquerque 2

Este trabalho é resultado de uma pesquisa etnográfica realizada na Casa de Oração Estrela
D’Água, localizada na Ilha de Colares, no Pará, e objetiva analisar as questões de gênero que perpassam
os processos educativos vivenciados no ritual de feitio do Santo Daime. O Santo Daime é uma religião
ayahuasqueira nascida na periferia de Rio Branco, no Acre, no início do século XX, que se caracteriza,
dentre outros aspectos, pelo consumo da ayahuasca – beberagem de origem indígena produzida a
partir da decocção do cipó Banisteriopsis caapi, da folha Psychotria viridis e água. O ritual de feitio do
Daime é o momento destinado à feitura da bebida, considerado como a “universidade” da doutrina,
dada a complexidade de sua execução, uma vez que pressupõe intenso trabalho físico e espiritual,
e pauta-se em uma divisão sexual do trabalho, na qual os homens são os responsáveis pela maior
parte do processo diretamente ligado à produção da bebida, que compreende a coleta, a limpeza e a
maceração do cipó, além do cozimento das plantas e do cuidado com o fogo da fornalha, enquanto às
mulheres cabe a seleção e limpeza das folhas, além da recepção de visitantes, preparo dos alimentos
e limpeza de modo geral. Essa divisão se instituiu historicamente na cosmologia daimista, fruto dos
processos históricos de colonização, como a colonialidade de gênero. Metodologicamente, a pesquisa
resulta de uma imersão etnográfica em dois rituais de feitio acontecidos no ano de 2019, pautada na
observação participante, entrevistas semiestruturadas e conversas informais com os dirigentes, com
homens e mulheres fardados do centro religioso e importantes lideranças que participaram dos ritu-
ais, como o feitor e a puxadora que o acompanha. Teoricamente, a pesquisa inspira-se na perspectiva
decolonial, apoiada nos estudos de Edgardo Lander sobre colonialidade do saber, de Maria Lugones
sobre colonialidade de gênero, de Maria Betânia Barbosa Albuquerque acerca da educação no Santo
Daime e de Camila de Pieri Benedito sobre questões de gênero que perpassam a religião daimista.
Dentre as considerações, constatamos a dimensão educativa vivenciada no cotidiano religioso do
Santo Daime, em especial no ritual de feitio, como uma pedagogia cultural decolonial, pois imbrica
processos educativos organizados a partir de uma base epistemológica particular na qual os saberes
são mediados por uma planta mestra, contudo, a despeito disso, as contradições, os tabus e as sanções
genderificadas revelam um aspecto conservador da religião no que tange aos aspectos de gênero e
sexualidade, ao passo que despontam reações de membros que não assumem o discurso daimista
patriarcal, heteronormativo e binário, até mesmo o questionam e apresentam resistências.
Palavras-chave: educação; gênero; feitio; Santo Daime.
Keywords: education; gender; “feitio”; Santo Daime.

1 Mestranda em Educação na Universidade do Estado do Pará, bolsista Capes.


2 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora titular do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 253
Grupo de trabalho 8

DIETAS CONTEMPORÂNEAS

Work group 8

CONTEMPORARY DIETS

Coordenadores/Coordinators:

Janine Collaço

Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutora pela Fiocruz/Palin e

Odela (Observatório de la Alimentación) da Universidade de Barcelona. Professora da

Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás e membro do

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na mesma instituição. Coordenadora do

GECCA (Grupo de Estudos em Consumo, Cultura e Alimentação)

Juliana Dias

Doutora em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do

Rio de Janeiro, pós-doutoranda em Educação em Ciências e Saúde pelo Instituto Nutes da

mesma universidade. Coordenadora dos cursos de extensão e

pós-graduação em Jornalismo Gastronômico na Facha, no Rio de Janeiro

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 254
Agricultores familiares no Vale do Paraíba Paulista:
entre a produção e o consumo de alimentos

Family farmers in Vale do Paraíba, São Paulo:


between food production and consumption

Camila Benjamim Vieira 1

A categoria “agricultor familiar” mobiliza, não de forma homogênea, relações entre a natu-
reza, produção de alimentos e reprodução da vida, que, no rural e urbano transformado, resiste,
adapta-se e modifica suas formas produtivas e de consumo. A industrialização, ao distanciar ali-
mento e natureza, conforme afirma Jean-Pierre Poulain em Sociologias da Alimentação (2004), oculta
variáveis simbólicas que reverberam nas práticas alimentares. Nos interessa como esse movimento
impacta também produtores de alimentos.
Aqui apresento um recorte da pesquisa que tem o objetivo de analisar sociologicamente
como agricultores familiares mobilizam a categoria valor (construto teórico, simbólico e social)
correlacionada à alimentação. Sobretudo, quais variáveis envolvem a identificação dos agentes de
sua produção como alimento. Através de entrevistas, observações de discursos e ações (falas sobre
a alimentação e refeições), a pesquisa de campo se desenvolve em três cidades do Vale do Paraíba
(SP), acompanhando quatro famílias posicionadas diferentemente nos espaços sociais.
Uma breve caracterização sobre elas: a primeira é produtora de orgânicos, plantam frutas,
legumes e verduras (FLV) e criam galinhas. Comercializam em feiras e com cestas, porém a renda
principal não é da agricultura. Relatam que possuem “tendência” de consumir o que plantam e o que
“encontram” de orgânico no mercado; a segunda tem na agricultura a principal fonte de renda, mas
além de plantarem FLV, também atuam como atravessadores em comércio atacadista. Possuem
um ponto de venda na propriedade e comercializam no centro da cidade (carrinho de mão), além
de entregarem para restaurantes. Não costumam almoçar e comem “qualquer coisa”, e a “fome”
é um discurso recorrente nas falas do casal; a terceira família, de assentados da reforma agrária,
também se sustentam com a agricultura (FLV). Escoam em supermercados, atacadistas, mercados
locais e institucionais. Quando necessário, compram marmita para o almoço e possuem o hábito de
consumir produtos ultraprocessados. Na quarta família, também de assentados, quem trabalha na
horta (FLV) é a filha do meio do casal, sendo que a agricultura não corresponde à renda principal da
família. O escoamento da produção é feito em mercados institucionais, por encomendas e mercea-
rias. Afirmam que “procuram ter uma alimentação saudável”, dando preferência para saladas e um
baixo consumo de “carne”.
A incursão inicial no campo permitiu observar que, para os agentes, a alimentação é ínti-
ma e privada, sendo difícil acessar os discursos e momentos dela. Já o cruzamento dos dados nos
levou a uma correlação inesperada (comparada à literatura sobre subsistência): conforme aumenta
a dependência econômica da família à agricultura, mais distante fica a identificação da produção

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 255
como alimento (para consumo), e ela é tida como produto e renda que levará à compra desses. E
de maneira inversa: os que menos dependem da agricultura como fonte de renda aproximam a
identificação de sua produção para consumo.
Palavras-chave: produção e consumo alimentar; agricultura familiar; Vale do Paraíba (SP); sociolo-
gia econômica.
Keywords: food production and consumption; family farming; Vale do Paraíba; economic sociology.

1 Doutoranda em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos e bolsista Capes.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 256
Vegetarianismo: uma escolha que transcende a alimentação

Vegetarianism: a choice that transcends eating

Camilla Horn Soares 1


Divair Doneda 2
Vanuska Lima da Silva 3

Introdução: Pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), de 2018,


informou que 14% dos brasileiros se declararam vegetarianos, o que soma, aproximadamente, 30
milhões de pessoas, 75% a mais do que o encontrado em 2012. Considerando o aumento do per-
centual de pessoas que estão aderindo a dietas vegetarianas, julga-se que a ampliação do conheci-
mento sobre essa população possa contribuir para compreender melhor quem realiza essa escolha.
Objetivo: Caracterizar a população vegetariana e identificar fatores culturais e de estilo de vida
envolvidos no vegetarianismo. Método: Estudo transversal, exploratório. Os dados de identificação,
cultura, sociabilidade, alimentação e motivação para adesão ao vegetarianismo foram coletados por
meio do questionário eletrônico. Projeto aprovado pelo CEP UFRGS, CAAE: 70213317.0.0000.5347.
Resultados e discussão: Participaram 202 pessoas (mulheres = 178, 88%) com média de idade de
29 anos (DP = 9,5), dos quais 48% se declararam ovolactovegetarianos e 33% veganos, 93% com
curso superior incompleto, completo, mestrado e/ou doutorado e 73% pertencendo à classe média.
Sobre as principais motivações para aderir ao vegetarianismo, os destaques foram: ética e direito
dos animais (92%), meio ambiente (56%) e saúde (35%). Os participantes responderam que sua
ingestão de industrializados era baixa ou adequada e que o de leguminosas era diário, bem como
também consumiam de duas a três porções de frutas diariamente e que as maiores dificuldades
encontradas em relação à alimentação situavam-se no ambiente familiar. Sobre a motivação para
a escolha pelo vegetarianismo, a ampla maioria informou motivos éticos e de respeito ao direito
dos animais. Em relação ao estado nutricional, 61% afirmaram que seu peso estava adequado. A
maioria respondeu que realiza atividade física regular (61%), que reserva tempo para relaxar (85%)
e que costuma dormir de 6 a 8 horas por noite (62%). Quanto ao uso de substâncias, as respostas
indicaram utilização frequente de cafeína (70%) e consumo ausente ou raro de álcool (66%). Como
poderia ser explicada a ampla prevalência de mulheres no vegetarianismo? Sob a perspectiva de
gênero, é plausível que tal fato se deva a motivos socioculturais, os quais relacionam o consumo
de carne à virilidade. Nesse contexto, as mulheres estariam mais atentas às diferentes formas de
dominação, pois percebem também outras relações de desigualdade, uma vez que ainda subsiste
a dominação masculina na sociedade (ver A Política sexual da carne, de 2012). Conclusões: Os dados
mostraram que o vegetarianismo tem mais adeptos entre jovens do sexo feminino, de classe média,
com bom nível de escolaridade e com alimentação balanceada. A escolha pelo vegetarianismo
parece transcender a alimentação, pois contempla aspectos éticos, ambientais e de saúde. Além
da alimentação, se preocupam também com a qualidade da dieta e dos alimentos, bem como com
aspectos éticos e políticos que contestam diferentes formas de dominação.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 257
Palavras-chave: vegetarianismo; veganismo; alimentação vegetariana; nutrição e cultura.
Keywords: vegetarianism; vegan; vegetarian diet; nutrition and culture.

1 Graduanda do curso de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bolsista de Iniciação Científica PROPESQ.
2 Doutora em Medicina: Ciências Médicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Laboratório de Técnica
Dietética, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 Doutora em Ciência dos Alimentos pela Universidade de São Paulo; Departamento de Nutrição, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 258
Alimentos provenientes da agricultura familiar na gastronomia contemporânea:
análise a partir de conteúdo em meio digital

Foods from family farming in contemporary gastronomy:


an analysis from digital content

Clarissa Magalhães 1
Fabiana Bom Kraemer 2
Flavia Milagres Campos 3
Daniela Menezes Neiva Barcelos 4

Este trabalho se insere na temática sobre novas formas de interação entre a produção e o
consumo de alimentos nas sociedades contemporâneas ocidentais, com recorte nas relações sociais
entre atores gastronômicos e agricultores. Compreende a gastronomia para além de um fenômeno
relacionado aos restaurantes sofisticados e chefs premiados, mas que possui uma tendência que
percebe o consumo de alimentos provenientes de agricultores locais como estratégia de reforço da
identidade cultural e apoio à agricultura familiar. Interessa-nos compreender esse processo que, por
um lado, possui atores inseridos em contextos de distinção simbólica e, por outro, atores excluídos
dos espaços de produção dominados pelo agronegócio. A pesquisa se inscreve em uma abordagem
qualitativa, de produção de sentidos compartilhados na cultura contemporânea, e tem como recorte
empírico conteúdos digitais de publicações jornalísticas e de instituições públicas e privadas, entre
2017 e 2019. Como Jesús Martin-Barbero, entendemos que, na “redefinição de cultura, a pista está
na compreensão da natureza comunicacional da cultura como um processo de produção de sentido
e não apenas como circulação de informações”. A partir da identificação dos autores dos textos,
reconheceu-se duas naturezas de texto e conceitos-chaves. Um primeiro grupo de textos publicados
por sites de negócio e economia e pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento com
uma tendência a valorizar a agricultura familiar como uma oportunidade empreendedora, tendo
os restaurantes como um bom local para escoar os produtos. Neste sentido, a legitimação passa por
movimentos sociais que buscam melhorar a organização da produção de orgânicos, a fim de obter
certificações que propiciem a ampliação deste mercado e também por exemplos de chefs de cozi-
nha que desenvolvem receitas com estes produtos. O segundo grupo corresponde aos conteúdos de
jornalismo independente e blogs de projetos sociais com uma tendência a valorizar a produção de
alimentos regionais com atributos de qualidade relacionados ao saudável e sustentável, em que se
ressalta uma posição crítica às políticas governamentais com ações destinadas ao aumento do uso
de agrotóxicos e incentivo fiscal ao agronegócio. Observa-se um discurso que promove a discussão
de um modo de produção mais justo e equilibrado ecologicamente, legitimado pelo saber científico
e por atores sociais da agroecologia. Também está no debate a apropriação de produtos regionais
que são patenteados para serem comercializados, internacionalmente, por chefs de cozinha des-
tacados na mídia. Acreditamos ser relevante este olhar para os usos dos alimentos provenientes

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 259
da agricultura familiar como objetos de consumos e códigos distintivos, a partir da valorização de
produtos regionais e sazonais como uma problemática científica para contribuir na discussão dos
problemas sociais decorrentes do atual modelo do sistema alimentar.
Palavras-chave: agricultura familiar; consumo; gastronomia.
Keywords: family farming; consumption; gastronomy.

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ).
2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ).
3 Docente da Escola de Nutrição da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
4 Jornalista e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ).

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 260
“A carne não é o alimento do homem”:
a circulação de ideias vegetarianas numa economia pastoril – Belém, 1912-1918

“Meat is not the food of man”:


the circulation of vegetarian ideas in a pastoral economy – Belém, 1912-1918

Fabrício Herbeth Teixeira da Silva 1

Este trabalho apresenta os resultados preliminares da pesquisa em curso para o desenvol-


vimento do estágio de pós-doutoramento a ser realizado na Universidade de Lisboa, sobre o vege-
tarianismo na Amazônia paraense no princípio do século XX, sob supervisão da professora doutora
Isabel Drumond Braga. Neste momento, procuramos apresentar parcialmente o levantamento
documental/bibliográfico e as contribuições teórico-metodológicas deste tema para a historiografia.
Compreende-se que os estudos das dietas alimentares contemporâneas recentemente passaram a
ser discutidos pelos historiadores, tema esse, por excelência, das áreas da saúde, especialmente da
nutrição. Nessa direção, a sociedade atual, dita moderna, criou dietas “ideais” para um público leigo
e especializado, sendo seguida religiosamente para alcançar/enquadrar-se nos padrões de beleza ou
manter-se saudáveis. Portanto, o objeto de estudo desta pesquisa são as ideias vegetarianas contidas
na revista O Vegetariano (1909-1935), dirigida pelo médico português Amilcar de Souza. Deste modo,
este trabalho se propõe a discutir/analisar o intercâmbio, a circulação, a recepção, a divulgação e as
tensões em torno das ideias vegetarianas na cidade de Belém do Pará, durante a primeira metade do
século XX (1909-1920). A proposta de estudar os discursos vegetarianos na capital paraense emergiu
a partir da constatação de recomendações médicas, de pronunciamentos das autoridades admi-
nistrativas e da publicação de artigos no princípio do século XX, acerca dos malefícios do consumo
excessivo de carne, da violência imputada aos animais do transporte até o momento de abate e dos
benefícios de uma dieta vegetariana. Nesta perspectiva, emergem os seguintes questionamentos:
quais os impactos das ideias vegetarianas no cotidiano alimentar da população belenense, marcada
por uma progressiva demanda por carne verde? Quais grupos aderiram à dieta vegetariana? Qual o
papel da imprensa na divulgação e na popularização dessas ideias? A elucidação desses problemas
possibilita perceber as representações e os impactos dos discursos vegetarianos no cotidiano bele-
nense. A metodologia adotada para o desenvolvimento deste estudo foi o cruzamento do corpus
documental arrolado, no caso, o jornal Folha do Norte (1912-1918), as Mensagens dos Governadores (1912-
1918), a revista O Vegetariano (1909-1918) e as Noções Gerais de Higiene (1912). Por meio destes materiais
diversificados, buscaremos verificar as implicações das ideias vegetarianas e as possíveis mudanças
nos hábitos alimentares da população. Por fim, convém destacar que a principal referência para o
desenvolvimento deste estudo é a revista O Vegetariano.
Palavras-chave: vegetarianismo; dietas; abastecimento de carne; circulação de ideias.
Keywords: vegetarianism; diets; meat supply; circulation of ideas.

1 Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 261
Fake meat e ultraprocessados:
um diálogo sobre saúde, alimentação e preservação ambiental na mídia

Fake meat and ultra-processed food:


a dialogue on health, food, and environmental preservation in the media

Helena Maria Afonso Jacob 1

Esta comunicação visa explorar a cobertura feita pela mídia brasileira em meios digitais,
no ano de 2019, sobre o lançamento do produto “carne do futuro”, também conhecido como fake
meat. O nome em inglês vem do fato de se tratar de um produto alimentar feito a partir de plantas
que pretende imitar o gosto e a textura da carne animal. Partindo dos pressupostos de que notícias
sobre saúde causam grande impacto e que o alto consumo humano de carne bovina é hoje um dos
fatores apontados como determinantes no cenário de mudanças climáticas, a “promessa” de uma
solução para a questão da carne causa impacto considerável na opinião pública.
Analisaremos notícias veiculadas em portais como G1, Uol, El País, Huffington Post, Exame e
Valor Econômico durante o ano de 2019. Nessa metodologia, o material analisado sobre a “carne do
futuro” será relacionado ao conceito de alimentos ultraprocessados (ver o artigo de Carlos Augusto
Monteiro et al, “Uma nova classificação de alimentos baseada na extensão e propósito do seu pro-
cessamento”. Cadernos Saúde Pública, v. 26, n. 11, pp. 2039-2049, 2010), desenvolvido pelo Núcleo de
Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens) durante
a elaboração da classificação de alimentos NOVA. Criada em 2009, a classificação propõe que os
alimentos sejam classificados de acordo com o nível de processamento. Assim, os ultraprocessados
são aqueles que foram amplamente processados ficando, assim, distantes do alimento “in natura”.
Hoje existem evidências científicas que mostram relação entre doenças não transmissíveis, tais
como diabetes, com o consumo de ultraprocessados. A fake meat é um alimento desta categoria,
desenvolvida em laboratório a partir de vegetais altamente processados.
A problemática de pesquisa busca identificar se a divulgação das notícias sobre a carne do
futuro mostra que este alimento é ultraprocessado e as consequências da substituição da carne ani-
mal por esses produtos. Afinal, é uma questão de saúde pública deixar claro quais seriam as perdas
e os ganhos em relação à saúde e à cultura em uma substituição de tal porte, o que nem sempre é
uma preocupação da imprensa.
A abordagem está dentro da discussão sobre o alimento em relação tanto a questões bioló-
gicas quanto culturais. A carne carrega simbologias e histórias na alimentação humana (ver Claude
Fischler, em L’Homnivore, de 2001, e Jean-Pierre Poulain, em Sociologies de l’alimentation, de 2002)
e não pode ser substituída sem impactos em vários aspectos humanos. Do mesmo modo, causa
estranheza que a substituição seja feita por simulações de comida, como é o caso do hambúrguer
– o “hambúrguer do futuro” é a representação mais vista da fake meat na imprensa. Assim, nos
interessa como objeto de pesquisa avaliar tal processo a partir da epistemologia do jornalismo,

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 262
tratando do ofício comunicativo como produtor de conhecimento e formador de opinião pública, e
as consequências da divulgação científica realizada sobre a novíssima “carne do futuro”.
Palavras-chave: mídia; ultraprocessados; alimentação; jornalismo; opinião pública.
Keywords: media; ultra-processed foods; food; journalism; public opinion.

1 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora da Faculdade
Cásper Líbero e do Centro Universitário Fecap.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 263
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), dieta contemporânea
e politização da alimentação

Small Farmers Movement (MPA), contemporary diet and politicization of food

Jennifer Harumi Tanaka 1

As transformações do sistema agroalimentar a partir de meados do século XX causaram


grandes impactos na relação produção-consumo. Nesse contexto, “comer”, “comida de verdade” e
“alimentação saudável” tornaram-se termos que representam disputas de projetos ideológicos,
sociais, econômicos e ambientais.
Nesse contexto, movimentos de consumidores e movimentos sociais que congregam
pequenos produtores passaram a contestar e a contrapor-se aos modelos coorporativos globais atu-
almente dominantes no sistema agroalimentar, reivindicando as definições, os sentidos e os signifi-
cados do que deveria ser a dieta contemporânea. Eles defendem, especialmente, a incorporação de
valores sociais e culturais nas práticas de produção, comercialização e consumo de alimentos, indo
de encontro a algumas das tendências da alimentação contemporânea, tais como: saudabilidade,
sustentabilidade e valorização de origem.
Os efeitos desta discussão são nítidos na construção de pautas e propostas políticas do
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), por exemplo. Uma revisão histórica da trajetória do
MPA aponta que sua atuação enquanto movimento social do campo se dá predominantemente
no âmbito político ideológico. O foco principal de suas ações se circunscreve, sobretudo, em torno
de atividades que visem à garantia das condições da reprodução social de camponeses. Contudo,
nota-se, nos anos mais recentes, que outras pautas vêm ganhando centralidade para o movimento,
o qual, como forma de resistência ao agronegócio e visando à construção de mercados, tem disputa-
do e se posicionado sobre quais são os alimentos que devem compor a dieta contemporânea.
Frente a isso, a proposta do presente estudo é analisar tanto a trajetória histórica quanto
as experiências mais atuais capitaneadas pelo MPA no estado do Rio de Janeiro, tendo como foco
as discussões sobre a dieta contemporânea proposta e defendida por esse movimento social. A
estratégia metodológica baseia-se em uma abordagem qualitativa de coleta e análise de dados,
a partir de conteúdo de documentos e posicionamentos oficiais no âmbito nacional e estadual do
movimento, aliado a uma entrevista semiestruturada com um membro da Coordenação Nacional
do MPA e à observação participante durante algumas atividades realizadas pelo movimento na
capital fluminense.
Avalia-se que o estudo das discussões sobre dieta contemporânea por movimentos sociais
clássicos que defendem bandeiras tradicionais a partir de um ponto de vista histórico pode con-
tribuir para ampliar o entendimento acadêmico do comer, da comida e da alimentação como
espaços de ação política. Espera-se, dessa maneira, explorar outras concepções de dieta para além
de seu caráter biológico, trazendo, nesse caso, reflexões que apontam para a redescoberta de seus

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 264
elementos cívicos, os quais podem contribuir para o entendimento do comedor enquanto ator polí-
tico e aliado de movimentos e causas sociais.
Palavras-chave: dieta contemporânea; alimentação saudável; movimentos sociais do campo;
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); relação produção-consumo.
Keywords: contemporary diet; healthy eating; social rural movements; Small Farmers Movement
(MPA); production-consumption ratio.

1 Doutoranda em Ciências Sociais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 265
A crescente onda do veganismo e o surf das FoodTechs

The rising wave of veganism and the “surfing” of FoodTechs

Lígia Moraes de Campos 1

O vegetarianismo e seu sucessor veganismo vêm ganhando força e espaço gradativo entre
dietas contemporâneas.
Em pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) de 2012, 8% da
população brasileira se declarou vegetariana. A mesma pesquisa aplicada em 2018 teve resultado
nacional de 14% de população vegetariana. O índice eleva-se a 16% se consideradas apenas as regi-
ões metropolitanas, com crescimento de 75% em apenas 6 anos.
O veganismo também vem crescendo globalmente. Termo derivado da palavra inglesa
vegan, pela primeira vez mencionada em 1944 por Donald Watson, na Inglaterra, quando fundou
a Vegan Society como defensora de alimentação vegetariana e non-dairy (não láctea) – ou seja,
define-se por uma dieta com restrição radical aos alimentos de origem animal, inclusive mel de
abelhas ou derivados do leite.
As razões para reduzir o consumo de alimentos de origem animal e com isso adotar uma dieta
vegetariana, vegana ou até mesmo a mista flexitariana (onívoros que reduzem o consumo de carne,
mas não a eliminam do menu) são de cunhos variados. Com a divulgação global de documentários,
livros, organizações ativistas e órgãos defensores dos animais – impulsionada pela velocidade de
acesso à informação através das redes sociais –, a população vem tomando consciência do impacto
em sua própria saúde, no meio ambiente e na vida dos animais quando escolhem carne para comer.
O comensal, comovido de acordo com os seus valores, decide então pela mudança de seus hábitos
alimentares ou, no caso dos extremos veganos, até mesmo em seu vestuário e objetos pessoais.
Entretanto, ser vegano – pela sustentabilidade, pelos direitos animais ou até mesmo por
uma melhor nutrição – tem seu viés também capitalista. De olho nessa tendência, grandes mul-
tinacionais de alimentos adaptam seu portfólio para oferecer ao consumidor versões veganas dos
seus produtos. Pequenas empresas surgem com opções plant-based de alimentos. A startup chilena
The Not Company, fundada em 2015, com sua versão vegana da maionese que não é maionese, teve
crescimento exponencial a ponto de, em 2019, receber um aporte de USD 30 mi vindo de Jeff Bezos,
fundador da Amazon. A foodtech Beyond Meat, fundada em 2009 com o propósito de entregar uma
proposta vegana de um hambúrguer usando os adventos da tecnologia, abriu oferta pública de
ações na bolsa de valores americana Nasdaq em maio de 2019 a USD 45 a cota e já apresentou picos
de USD 239 nesses últimos meses.
Comida industrial, vegana ou não, sempre foi “tech”. A indústria de alimentos, desde que
invadiu os lares no pós-guerra, substituiu o hábito de cozinhar através da tecnologia, produzindo
enlatados, congelados e afins. Assim, os ultraprocessados dominaram a alimentação cotidiana,
gerando uma verdadeira amnésia referencial gastronômica. Ser vegano e entregar-se às propostas

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 266
tech resolvem a consciência do comensal com respeito aos animais. As consequências sobre sua
saúde, no entanto, ainda estão por ser conhecidas. Citando Michael Pollan: “se é planta, coma. Se é
feito uma planta, não”.
Palavras-chave: veganismo; vegetarianismo; foodtech; ultraprocessados; plant-based.
Keywords: veganism; vegetarianism; foodtech; ultra-processed foods; plant-based.

1 Pós-graduada em Gestão Estratégica de Embalagens na Escola Superior de Propaganda e Marketing.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 267
Quem vê cara não vê coração?
A dialética da equidade-distinção no consumo de alimentos alternativos

Who sees face does not see heart?


The dialectic of equity-distinction in alternative food consumption

Luciana Pereira da Fonseca 1


Daiane Pereira da Fonseca Lopes 2
Edilene Sampaio 3

Em resposta à expansão da produção de commodities agrícolas detentoras de um siste-


ma agroalimentar caracterizado como insustentável, as comunidades agroalimentares alterna-
tivas (por exemplo: coloniais, orgânicos e artesanais) inseriram-se em iniciativas que admitem
práticas sustentáveis. Dito isso, o consumo de alimentos advindos desse sistema apresenta-se,
na contemporaneidade, como um movimento inerente ao funcionamento da sociedade, sendo
visto como um agrupamento que ampara esferas e perspectivas díspares. Embora esse sistema
fomente ações que apoiam a dinamicidade da sustentabilidade, estes preservam características
que orientam a divisão de classe, evidenciando o status social, ainda a exclusão e a distinção dos
sujeitos. Nesse sentido, para avançar na discussão relativa aos regimes alimentares contemporâ-
neos, este artigo explora a dialética ecoante no consumo alimentar alternativo. A metodologia
utilizada será caracterizada através de pesquisa bibliográfica, que é conduzida a partir de dados
bibliográficos. Inicialmente, as redes alimentares alternativas evocam a reaproximação entre
produtores e consumidores, retomando a necessidade do conhecimento a respeito da origem
dos alimentos. Moacir Roberto, parafraseando Goodman, aponta que as interações entre os elos
da cadeia produtiva, a retomada de uma produção regionalizada e uma qualidade diferenciada
são cruciais nos mercados alternativos. A partir desses fundamentos, as análises apontaram para
um consumo alimentar alternativo amparado, simultaneamente, em duas vertentes: igualdade
social e distinção social. No primeiro cenário, notou-se um consumo orientado para a geração e
consolidação de um mercado, onde são evidenciadas relações igualitárias de poder. A despeito da
distinção social, Joanne Hollows e Steve Jones destacam que a alimentação alternativa, como um
mercado com preposições éticas, pode ser utilizada para a geração de lucros. Constata-se que, ao
oferecer produtos diferenciados (que sedimentam uma distribuição desigual), o mercado alterna-
tivo possibilita a elitização, estruturada no habitus e na distinção de classes. Nesse sentido, através
das informações apresentadas, identificou-se que o consumo alternativo estabelece tensões entre
consumidores orientados para a igualdade e os voltados para a distinção. Assim, à medida que a
orientação distintiva emprega uma dinâmica que disfarça a comida de simples e disponível, indica
democratização, gerando ruídos na comunicação na rede.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 268
Palavras-chave: redes alimentares alternativas; distinção social; equidade social.
Keywords: alternative food networks; social distinction; social equity.

1 Graduanda em Administração na Faculdade Anhanguera de Brasília (FACNET-DF).


2 Mestre em Agronegócios pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora do Centro de Apoio ao Desenvolvimento
Tecnológico da UnB.
3 Mestre em Agronegócios pela Universidade de Brasília (UnB), professora da Faculdade de Economia e Administração
da UnB.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 269
Menus onívoros com opções veganas. Um estudo exploratório do veganismo sob a ótica de
chefs e críticos gastronômicos brasileiros

Omnivorous menus with vegan options. An exploratory study of veganism from the perspective of
Brazilian chefs and food critics

Mariana da Silva Lopes 1


Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes-Minasse 2

Diminuir o consumo de carne é uma solução para reduzir os problemas ambientais atuais.
Para Joseph Poore e Thomas Nemecek, uma mudança global substituindo ingredientes de origem
animal reduziria em 76% o uso de terras e em 49% a emissão de CO2 (referência do ano 2010); o que
valoriza dietas não carnívoras. O veganismo é um estilo de vida que exclui em termos possíveis a
exploração animal para fins alimentares, de vestuário ou outro propósito, promovendo alternativas
em benefício de humanos, animais e meio ambiente (disponível em: <https://www.vegansociety.
com>, acesso em 16 abr. 2019). É uma subcultura alimentar, com o conjunto de restrições de consu-
mo e a perspectiva ideológica criando laços de identidade entre seus adeptos.
A oferta de produtos compatíveis ainda é limitada e a substituição de derivados animais
garantindo uma alimentação saudável e prazerosa exige novos aprendizados e posturas da área. A
temática é pouco explorada academicamente: as bases Scopus, Scielo e Spell revelaram 11 artigos
compatíveis com esta pesquisa, sendo dois nacionais: de Isabela Moreira e Cláudia Acevedo, de 2015
(sobre veganismo e anti-consumismo), e Anelise Schinaider e Leonardo da Silva, de 2018 (sobre o
perfil consumidor vegano).
Esta comunicação investiga a percepção de chefs de cozinha e críticos gastronômicos bra-
sileiros sobre o veganismo em uma pesquisa qualitativa e exploratória desenvolvida com revisão
de literatura e entrevistas com quatro chefs e quatro críticos de relevância nacional escolhidos por
conveniência. As respostas foram analisadas por análise de conteúdo, e os principais resultados são:
(1) os respondentes percebem o veganismo como uma subcultura em crescimento que tem conse-
guido destaque nos restaurantes; (2) reconhecem a atual relevância do veganismo no cenário da
gastronomia comercial, algo similar ao alcançado por outros movimentos culinários ao longo da
história; (3) indicam a necessidade de inclusão de itens veganos nos cardápios, mas sem torná-los
majoritários. Conclui-se que a percepção dos entrevistados sobre veganismo é exclusivamente rela-
cionada ao consumo nos estabelecimentos e dissociada das implicações ambientais.
Palavras-chave: veganismo; gastronomia vegana; chefs de cozinha; críticos gastronômicos.
Keywords: veganism; vegan gastronomy; chefs; food critics.

1 Doutoranda em Hospitalidade na Universidade Anhembi Morumbi.


2 Doutora em História na Universidade Federal do Paraná, professora das áreas de Gastronomia e Hospitalidade na
Universidade Anhembi Morumbi.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 270
Veganismo para além do prato:
uma relação entre carnismo, dominância masculina e transformação social

Veganism beyond the dish:


a relationship between carnism, male dominance, and social transformation

Natasha Ribeiro Fabiano Magior 1

O presente resumo é parte integrante de uma pesquisa em História Social, com ênfase em
História da Alimentação. Em sua primeira parte, citando as justificativas ideológicas, teológicas,
culturais e sociais que naturalizam a matança e o consumo de seres sencientes, o trabalho demons-
tra que a atual configuração do mundo ocidental é, além de racista ou sexista, antropocêntrica e
especista – sobretudo nos hábitos alimentares.
Já o capítulo subsequente do trabalho resgata a histórica, porém desconhecida, relação
entre feminismo, veganismo e direitos animais, salientando como a sociedade patriarcal associa
dominância, masculinidade e força ao ato de comer carne, ao passo que vê nos alimentos vegetais
elementos feminilizantes. As mulheres, por serem consideradas cidadãs de segunda classe, comem
alimentos também considerados de segunda classe: grãos, folhas, frutas, verduras.
Neste sentido, tem-se que consumo de carne revela distinções não apenas de classe, mas
também de gênero e de raça. A aproximação entre especismo, sexismo e racismo está cada vez
mais evidente dentro da teoria feminista-vegana; afinal, em um mundo dominado pelo masculino,
fêmeas humanas e não humanas são tidas como objetos e não como sujeitos. Corpos de mulheres
são consumidos visualmente; de animais, literalmente.
A partir de uma perspectiva ecossocialista, antiespecista e anticapitalista, a terceira parte
do trabalho visa a outro resgate: o caráter político do movimento vegano que, nos últimos anos,
vem sendo cooptado pelo sistema econômico vigente.
Historicamente, o veganismo, em sua forma politizada, mostra-se um movimento social
pulsante; hoje – considerando a conjuntura de estafa ambiental, insegurança alimentar, liberação
desenfreada de agrotóxicos e mercantilização da vida, seja ela humana ou não humana –, o vega-
nismo emerge como uma ferramenta ativa na construção de um mundo igualitário para as multies-
pécies nele existentes.
Portanto, o veganismo extrapola a definição de dieta ou de estilo de vida; é um movimento
potente de combate ao sistema opressor dentro do qual vivemos. A luta anti-especista e o veganis-
mo, segundo Angela Davis, fazem parte de uma perspectiva revolucionária pois desafiam tanto a
política alimentar que nos é imposta pelas grandes corporações quanto o sistema industrial que
submete, sistêmica e silenciosamente, incontáveis seres sencientes a um regime desnecessário de
dor, sofrimento e morte, cuja intenção é simplesmente satisfazer o paladar e os interesses de uma
única espécie.
Por se tratar de um trabalho teórico e de síntese, a metodologia consiste na busca por dados
secundários, feita mediante revisão bibliográfica de autoras como Carol J. Adams, Donna Haraway,
Sônia T. Felipe e Melanie Joy.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 271
Palavras-chave: veganismo; feminismo; especismo; carnismo; alimentação.
Keywords: veganism; feminism; speciesism; carnism; food.

1 Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 272
A comida de verdade: a literatura gastronômica e o debate sobre o comer bem

The real food: the gastronomic literature and the debate about eating well

Solange Menezes da Silva Demeterco 1

Atualmente, a alimentação humana é vista como mais do que apenas ingerir alimentos para
manter a vida e a saúde, havendo um consenso de que comida é cultura e que, por meio dela, se des-
cortinam identidades individuais e coletivas, reforçam-se rituais e constroem-se tradições. O resgate
de tradições relacionadas ao ato de comer é fundamental para que o conhecimento culinário não seja
perdido. Nesse movimento, tem sido cada vez mais presente a discussão sobre o que é comer bem, e
a questão da saudabilidade tem se colocado como tema. A proposta deste trabalho é investigar como
essa ideia de “comida de verdade” vem sendo construída, divulgada e apreendida entre consumido-
res e, em especial, na literatura gastronômica. O objetivo é investigar como se deu sua construção,
como tem sido operacionalizada, que tipo de narrativas são construídas e como aparece nos livros de
cozinha publicados nos últimos vinte anos. Além disso, por meio de uma pesquisa qualitativa, com
análise de fontes de imprensa e etnografia desses livros, serão analisados também alguns títulos
publicados entre 1900 e 1960. Dessa forma, se pretende analisar em que medida a ideia de comer
bem estava presente naquele período, apontando similaridades e diferenças em relação ao conceito
de comida de verdade e do que seja comer bem na contemporaneidade. O recorte temporal inferior
se justifica por se ter vários títulos publicados, com grande sucesso editorial, inclusive o mais famoso
deles, o Comer bem, de Dona Benta. O recorte temporal superior diz respeito ao chamado boom da gas-
tronomia, momento no qual o mercado editorial e tudo o que diz respeito à culinária e à gastronomia
adquirem mais visibilidade, despertando a atenção de consumidores cada vez mais interessados em
cozinha e comida. Diversas publicações na área vêm à luz, ao lado da emergência de vários nomes
– cozinheiros, apresentadores de TV, colunistas de imprensa, influenciadores digitais etc., que se
tornam referência para quem deseja se aventurar no mundo das panelas ou apenas conhecer esse
universo. Parte-se da hipótese de que os livros de cozinha mais antigos traziam ingredientes, técnicas
e receitas que se aproximam das preparações encontradas em publicações mais recentes, sobretudo
em autores como Rita Lobo e Bela Gil, entre outros. Analisando a estrutura de algumas das receitas
de ambos os períodos, a forma como são apresentadas, como se define comida de verdade e o que
seja comer bem, espera-se demonstrar que a indústria alimentícia, ao apresentar ao mercado consu-
midor alimentos processados que são vistos muitas vezes como “não comida”, vem enfrentando um
movimento de resistência decorrente da maior conscientização dos indivíduos acerca da qualidade
da sua alimentação, favorecendo um resgate de tradições e receitas, enfim, de uma culinária que em
muito se aproxima daquela praticada nas primeiras décadas do século XX.
Palavras-chave: culinária; cozinha; livros de cozinha; comida de verdade; saúde.
Keywords: culinary; kitchen; cookbooks; real food; health.

1 Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná, professora na Universidade Positivo, em disciplinas de
História da Gastronomia e História da Alimentação de cursos de graduação e pós-graduação.

Caderno de Resumos do II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação | Revista Ingesta | São Paulo - v1 . n2 . dez . 2019 273

Você também pode gostar