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Intertextualidade: a migração

de um conceito

TANIA FRANCO CARVALHAL

E
I
scribir es un intento inútil de olvidar
lo que está escrito.
Ricardo Piglia

Nos comentários críticos que precedem e fundamentam a leitura de


Sarrasine, de Balzac, em S/Z (1971), Roland Barthes observa: le texte unique
vaut pour tous les textes de la littérature non en ce qu’il les représente (les abstrail et les
égalise), mais en ce que la littérature elle-même n’est jamais qu’un seul texte (BARTHES,
1971: 18-19).
O crítico francês alude, nesta passagem, a uma noção essencial ao
comparativismo literário e à reflexão teórica sobre a literatura: a idéia de
comunidade textual.
A crença de que há nos textos literários elementos comuns que identifi-
cam sua natureza, sem que isso os uniformize, é que ampara a atuação não
só da teoria literária como da literatura comparada quando ambas visam à
abstração de conceitos a partir da análise textual, orientando-se para aspec-
tos supra-individuais das obras. Assumem, no caso, como finalidade última,
a aproximação global da literatura, na qual cabe dar conta da complexidade
de relações interliterárias e de como, por força desses processos, se estabele-
ce a tradição.
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Esse procedimento, que afirma a vinculação da literatura comparada com


a teoria literária, recupera para os estudos comparativistas a noção de
Weltliteratur em novas bases, sem as marcas da inclinação cosmopolita de
inícios do século XIX ou da visão utópica de Goethe, quando empregou e
difundiu o termo, em 1827. Na perspectiva goethiana, a noção de “literatura
mundial” pressupunha a existência de nações com identidade própria e com
comunicação no plano literário. A construção lógica do conceito remete à
sua origem eurocêntrica, pois deve seu surgimento à pulverização progressi-
va da língua latina como código universal, que durante séculos constituiu
um meio de produção e de comunicação literária na Europa (NAUMANN,
1991). Foi com certeza o aparecimento de várias formas de expressão literá-
ria em latim vulgar, transmutado em línguas vulgares, que depois configura-
ram as diversas literaturas nacionais, o motivo provocador da reflexão sobre
relações recíprocas e liames entre elas e além delas. Hoje, sua utópica com-
preensão do fenômeno há que ser necessariamente revista, a partir de uma
concepção de uma perspectiva “planetária”, na qual tem insistido René
Etiemble (ETIEMBLE, 1974 [1975], 1982 e 1988).
Mas se Goethe ambicionou a criação de uma literatura mundial para a
qual todos os escritores colaborariam, a concepção da literatura como uma
totalidade, dinâmica e interativa, perpassa a obra de muitos escritores mo-
dernos. Na de Jorge Luís Borges, por exemplo, essa idéia configura-se como
uma biblioteca interminável que, ao ser percorrida por um eterno viajante
em qualquer direção, comprovaria, no final dos séculos, que os mesmos vo-
lumes se repetem em igual desordem.
Na noção do literário como globalidade estão presentes a de “comunida-
de” e a de “continuidade”, sendo esta entendida como um processo que
alterna memória e esquecimento. Vigora também aí, de forma subjacente, a
perda do conceito de propriedade privada, pois nesse grande conjunto tudo
se torna propriedade de todos, patrimônio comum a que os escritores recor-
rem consciente ou inconscientemente. A tradição se faz por um efeito de
memória. Ou como diz Ricardo Piglia: “Para um escritor a memória é a tra-
dição. Uma memória impessoal, feita de citações, na qual se falam todas as
línguas. Os fragmentos e os tons de outras escrituras voltam como recorda-
ções pessoais. Com mais nitidez, às vezes, que nas recordações vividas”
(PIGLIA, 1990).
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II

É nesse contexto que a noção de intertextualidade se torna muito impor-


tante. Sendo um dos princípios básicos da teoria textual, é útil ao comparatista
no estudo das relações literárias. Assim, o termo migrou nos estudos literári-
os desde seu emprego por Julia Kristeva, em 1966, para caracterizar a produ-
tividade textual a partir do conceito de dialogismo de M. Bakhtine. No en-
saio “Le mot, le dialogue et le roman”, a intertextualidade, cunhada e difun-
dida por Kristeva, é explicada como uma propriedade do texto literário, que
“se constrói como um mosaico de citações, como absorção e transformação
de outro texto”. Para ela, “em lugar da noção de intersubjetividade se instala
a de intertextualidade e a linguagem poética se lê, ao menos, como dupla”. A
teoria do texto se fundamenta logo em três grandes premissas: a primeira,
“que a linguagem poética é a única infinitude do código”, depois, que o texto
literário é duplo: “escrita/leitura” e, finalmente, que o texto literário é “um
feixe de conexões”. Isto posto, temos o texto como “diálogo de várias escri-
turas”, e o que era antes entendido numa relação individual (intersubjetiva)
passa a ser coletivizado, ou seja, as relações são estabelecidas no conjunto
dos textos. Desse modo, o texto ressalta sua natureza heterotextual, sendo
penetrado de alteridade, constituído de outras palavras além das próprias.
Por isso, mais tarde, Michel Riffaterre, em La Production du Texte (1979), fala-
rá de “indireção semântica”, isto é, a obra não significa apenas o que diz. Ela
absorve os significados dos textos com os quais dialoga num sentido amplo
do termo: o diálogo é aqui estabelecido entre três linguagens, a do escritor, a
do destinatário (que pode estar fora ou implícito na obra) e a do contexto
cultural, atual ou anterior.
Desse modo, a palavra, que é “dupla”, pertence ao texto em questão e a
outros, precedentes e diferentes, pertencendo também ao sujeito da escrita e
ao destinatário.
Não por acaso Roland Barthes, ainda em S/Z, escreveria que “este eu (moi)
que se aproxima do texto é já em si mesmo uma pluralidade de outros textos,
de códigos infinitos, ou mais exatamente perdidos (cuja origem se perde)”
(BARTHES, 1971: 16).
A instrumentalização do conceito teórico foi rápida. Foi tal sua difusão
nos anos 1970 que Marc Angenot observou, com razão, que seria possível
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ilustrar a própria noção de intertextualidade com a migração do termo


“intertexto” e de seu campo nocional (ANGENOT, 1984).
A idéia varia segundo os contextos teóricos: por vezes integra a poética gené-
tica, outras, a estética da recepção; em alguns autores ela ocupa uma posição
central; em outros, é termo ocasionalmente empregado. O fato é que a noção fez
“fortuna crítica”, não surpreendendo, pois, que se transladasse ao domínio
comparatista, fortalecendo a solidariedade existente entre as formas de investi-
gação do literário. Desde o número 27 da revista Poétique, “Intertextualités”, diri-
gido por Laurent Jenny, várias publicações são dedicadas ao tema.
A intertextualidade, como propriedade descrita, passou a significar um
procedimento indispensável à investigação das relações entre os diversos
textos. Tornou-se chave para a leitura e um modo de problematizá-la. Como
sinônimo das relações que um texto mantém com um corpus textual pré ou
coexistente, a intertextualidade passou a orientar a interpretação, que não
pode mais desconhecer os desdobramentos de significados e vai entrelaçá-
los como a própria origem etimológica da palavra esclarece: texere, isto é,
tecer, tramar. Daí “intertexto”, que significa “tecer no, misturar tecendo” e,
de forma figurada, entrelaçar, reunir, combinar (RUPRECHT, 1984).
O texto permite a leitura de intertextos, ou seja, do “conjunto de textos que se
pode aproximar daquele que temos sob os olhos, o conjunto de textos que en-
contramos na memória de uma dada passagem”, como definiu Riffaterre (1979).1
É, portanto, na trama do que se perde e do que se recupera, na alternância
de esquecimento e memória do que se lê que se organiza a continuidade
literária, tal como ela se manifesta em cada texto. A intertextualidade, ao
operacionalizar-se, possibilita que se recomponham os fios internos dessa
vasta continuidade em seus prolongamentos e rupturas. Mas se a
intertextualidade como propriedade textual é seletiva, pois a absorção de
elementos alheios responde a uma necessidade particular, o procedimento
nos leva a pensar na constituição de uma “tradição” não-ilimitada, como

1
Sobre “intertextualidade” há uma vasta bibliografia teórica. Cabe aqui registrar apenas os números
especiais de revistas literárias dedicados à questão. Trata-se de Poétique n. 27 (dirigido por Laurent
Jenny), 1976; Sémiotique et Bible, n. 15, 1979; Littérature n. 41, 1981 e Texte, 1984. Veja-se também o
livro de Nathalie Piégay-Gros, Introduction à l’intertextualité.
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queria T. S. Eliot, mas num conjunto de dimensões formais e temáticas que


certos grupos de textos têm em comum.
Nesse contexto, a convenção é importante como elemento que assegura a
comunicabilidade, o trânsito do literário. A apropriação significa sempre o
conhecimento e domínio das peculiaridades do código. Assim é possível en-
tender como a intertextualidade aponta para a sociabilidade da escrita literá-
ria, cuja individualidade se afirma no cruzamento de escritas anteriores.
Já nos distanciamos do sentido restrito com que o termo foi inicialmente
empregado e se pode explicitar o conceito como “todas as interações possí-
veis entre todos os fenômenos culturais”. Tomada num sentido largo, a
intertextualidade nos permite entender que ler um texto é lançá-lo num es-
paço interdiscursivo e na relação de vários códigos, que são constituídos
pelo “diálogo entre textos e leitura”. Por isso a intertextualidade é igualmen-
te entendida como um dado da percepção textual. Já nos Ensaios de estilística
estrutural, de 1971, M. Riffaterre encaminhava a reflexão nesse sentido, mos-
trando que o procedimento intertextual possibilita que se descrevam as con-
venções interpretativas, dando-nos um verdadeiro “traçado” de leituras.
A contribuição do conceito para os estudos de literatura comparada é
visível e essencial, pois modificou as leituras dos modos de apropriação, de
absorções e de transformações textuais, alterou o entendimento da “migra-
ção” de elementos literários, revertendo as tradicionais noções de “fontes” e
“influências”. A alteração é substantiva: se a noção de influência tendia a
individualizar a obra, sobrepondo o biográfico ao textual e impondo uma
causalidade determinista na produção literária, a de intertextualidade, ao
designar os sistemas impessoais de interação textual, coletiviza a obra. Por
outro lado, se as fontes são, por definição, exteriores ao texto, os traços da
existência de intertextos são intratextuais, formadores e constituintes da obra.
Se a influência parecia deixar passivo o receptor, minimizando sua impor-
tância e privilegiando a noção de originalidade, a compreensão da
intertextualidade como propriedade textual elide o sentido negativo e dá
ênfase à natureza criativa do processo de produção textual.
Nessa perspectiva, o dado absorvido por um texto é considerado “um
formante intertextual”, entendido numa relação de “performance” produto-
ra e “competência” receptora do sujeito, seja ele individual ou coletivo.
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Do mesmo modo, se a noção de intertextualidade nos permite incluir as


anônimas práticas discursivas da cultura como elementos que permitem a
uma obra produzir efeitos de sentido, a noção contribui também para que o
comparatista menospreze as “relações de fato” (os tradicionais rapports de
faits, que deveriam ser comprovados concretamente) por “relações de valor”
(rapports de valeur), cuja comprovação será textual e não histórica.
Graças à reflexão teórica sobre o conceito de intertextualidade, a noção de
influência aos moldes tradicionais se tornou inoperante, como também a tese
da dependência dela decorrente. Ao investigar as “fontes” na forma convenci-
onal, sem atentar para sua funcionalidade na obra que as incorpora ou na lite-
ratura a que esta pertence, o comparatismo tradicional deixava de considerar o
mais importante, ou seja, como e em que medida a apropriação de uma fonte
contribuía para a configuração pessoal daquela obra e para sua inserção no
conjunto maior do literário, ao aderir a uma tópica que integra a linguagem
convencional, a temática ou os procedimentos técnicos comuns aos escritores.
Em estudo sobre Cláudio Manuel da Costa, difundido graças à organiza-
ção de Antonio Candido sob o título geral de Capítulos de literatura colonial
(1991), Sergio Buarque de Holanda comprova largamente a utilidade dessa
leitura renovada de fontes, ao estudar nossa literatura colonial em suas rela-
ções com as literaturas das metrópoles, para mostrar, como diz Antonio
Candido, “como o tecido da obra literária é uma encruzilhada secular na
qual vem bater toda a aventura espiritual do Ocidente” (HOLANDA, 1991:
22). No corpo do ensaio, no qual pela colação direta dos textos explicita
como Cláudio se aproxima e se distancia, discrepando do modelo italiano de
Pietro Metastasio, Sergio B. de Holanda manifesta com clareza o andamento
de sua leitura crítica ao dizer:

“Se aplicada a épocas como a nossa, já saturadas do individualismo romântico,


essa determinação dos antepassados espirituais de um autor, tão do gosto dos
historiadores positivistas, redunda geralmente numa pesquisa de fontes estéril e
inconseqüente; o mesmo não se dirá com relação aos tempos em que a imita-
ção dos grandes modelos do passado se apresentava como virtude e quase
como dever. Nesse caso – é o caso, em particular, de Cláudio Manuel da Costa
e dos nossos árcades –, a presença de tais modelos pode fornecer-nos, ao
contrário, pontos de referência estáveis que serão singularmente úteis para qual-
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quer esforço de inteligência crítica e histórica do mesmo autor” (HOLANDA,


1991: 268-9).

Além de esclarecer quando e por que as pesquisas de fontes se justificam,


Sergio Buarque de Holanda se preocupa em comentar as repercussões desse
tipo de estudo de forma ampla e diz: “Não são as ‘influências’ recebidas,
através de sua evolução, por um determinado escritor, o que importa verifi-
car num esforço dessa natureza, nem saber as razões particulares que o teri-
am levado a escolher este ou aquele ‘antecedente’ literário – pois a verdade
é que tais escolhas se prendiam tanto quanto possível, naqueles tempos, a
convenções e padrões comumente aceitos e dependiam, em muito menor
grau do que hoje, de um critério pessoal –, nem ainda chegar a um julgamen-
to inequívoco de valor. Mas justamente pelo fato de nos apresentar a exis-
tência quase obrigatória daqueles ‘antecedentes’ uma escala de referências
mais ou menos fixa, temos maiores probabilidades de, partindo dela, ganhar
acesso ao que constitui mais propriamente a parte do autor em sua obra e ao
que haja, nesta, de verdadeiramente orgânico e intrínseco”. A seguir, ilustra
suas afirmações, completando: “Para Cláudio Manuel da Costa, aquele en-
contro do Metastasio fornece-lhe, numa primeira e inevitável etapa, o mode-
lo ideal que o ajudará a livrar-se, na medida de suas possibilidades, das ca-
deias que ainda o prendem a uma estética transacta: a do Seiscentismo. A
seguir, porém, o mestre antes absorvente irá transformar-se em eficaz estí-
mulo. A esse estímulo deveu o brasileiro a iniciação e o vinco arcádicos que
irão marcar toda a sua obra ulterior e sua ação no ambiente natal”
(HOLANDA, 1991: 269).
A transcrição dessa passagem do ensaio de Buarque de Holanda evidencia
como e em que medida a apropriação de determinados modelos é necessária à
constituição de uma certa obra e, por meio dela, alimenta a literatura a que
pertence. Evidencia, também, como o jogo intertextual que se estabelece se faz
por força de convenções cuja migração nos textos responde pela continuidade
literária. E mais, como o ponto de vista comparativo pode esclarecer o intercâm-
bio literário e suas repercussões na configuração definitiva de cada literatura.
Aliás, foi esse processo de relações interliterárias, objeto central da literatu-
ra comparada desde sua concepção, que René Wellek procurou reorientar em
seu conhecido ensaio sobre a “Crise da literatura comparada”. Já ali dizia:
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“A literatura comparada tem o imenso mérito de combater o falso isolamento das


histórias literárias nacionais: está obviamente certa (e tem apresentado um acúmulo
de provas para apoiar isso) na sua concepção de uma tradição ocidental coerente de literatura
entretecida numa ‘rede de inúmeras inter-relações” (WELLEK, p. 244, grifo meu).

Nesta passagem, Wellek pretendia desfazer a dicotomia entre literatura


geral e literatura comparada, estabelecida por Van Tieghem, julgando a dis-
tinção desnecessária, pois, como disse: “Literatura comparada tornou-se um
termo estabelecido para qualquer estudo de literatura que transcenda os li-
mites de uma literatura nacional”. Contudo, era preciso ressaltar que esse
estudo não poderia deter-se no simples mapeamento de relações entre as
diversas literaturas, mas necessitava, sobretudo, explicitar o que essas rela-
ções deviam indicar.
Deve-se reconhecer, em René Wellek, una visão sistêmica da literatura e,
nessa perspectiva, a “rede de inúmeras inter-relações” de que fala deveria abarcar
as relações intertextuais, cuja análise nos ajuda a perceber o andamento dos
elementos literários que configuram a tradição, mas também as relações entre
as literaturas em sentido amplo, cuja organização em conjuntos supranacionais
prefigura o que se poderia entender hoje como literatura mundial.

III

O alerta de René Wellek, como se sabe, foi produtivo e pode ser lido, hoje,
como um impulso às orientações comparativistas que se ocupam com os
modos de apropriação literária e permitem entender melhor a constituição e
o funcionamento das literaturas bem como suas inter-relações.
Para os estudos dos processos dessas inter-relações têm sido relevantes
alguns princípios teóricos estabelecidos e divulgados pelos formalistas rus-
sos, particularmente R. Jakobson e Tynianov, pelos estudiosos da escola de
Praga, como J. Mukarovsky e F. Vodicka, e por alguns semioticistas russos,
como J. Lotman e M. Bakhtine. São básicos os estudos sobre evolução literá-
ria e as noções de sistema e de dinamismo funcional. E o que se depreende
dos trabalhos de Itamar Even Zohar, da Universidade de Tel Aviv, que, de-
tendo-se especialmente em estudos sobre a literatura hebraica e sobre as
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relações desta com outras literaturas, desenvolveu a noção de polissistema,


isto é, da literatura como um sistema heterogêneo, um “sistema de siste-
mas”; ele explora uma série de hipóteses interdependentes sobre o literário e
o comportamento de seus elementos, definindo fenômenos de contato e de
interferências entre literaturas.
As investigações de Zohar facilitam o conhecimento do funcionamento
interno dos sistemas literários bem como comprovam que esse funciona-
mento depende de sua articulação com os demais. A aplicação desse tipo de
análise se tem revelado rentável sobretudo no esclarecimento de relações
que se constituem em fator de evolução literária. Quer dizer, facilitam o
entendimento de como e em determinadas situações e em distintos momen-
tos as relações estabelecidas orientam o rumo de uma literatura. E o caso
das traduções, pois a atuação da “literatura em tradução” no contexto literá-
rio que a acolhe pode determinar sua direção. A noção de polissistema per-
mite o estudo das relações literárias em diversas dimensões, entre sistema
canônico e não-canônico, entre literatura tout court e literatura infantil e ou-
tras formas ditas populares, evidenciando “tensões” no interior de uma dada
literatura, capazes de explicar casos que, por vezes, permanecem enigmáti-
cos. Zohar ilustra-o com uma questão específica da literatura hebraica, que
sempre manteve estreitas relações com a literatura russa. São estas relações
que explicam por que, em 1880, no chamado revival period, não se encontra
na literatura hebraica nenhum sistema não-canônico, pois os elementos não-
canônicos passavam através da literatura russa.
A ampliação e mesmo complementação das propostas de Even Zohar, conti-
das em Papers for Historical Poetics (1978/1981), que reúne estudos dos anos 1970,
pode ser dada pelos estudiosos de Bratislava, liderados por Dionýz Durisin, que
desenvolveram a noção de “comunidades interliterárias”, visando ao estabeleci-
mento de um sistema teórico e metodológico coerente para as relações literárias.
As investigações de Durisin e de seus colaboradores não querem apenas identi-
ficar os conjuntos históricos das literaturas e das unidades literárias, históricas e
analógicas do passado, como conjuntos supranacionais, mas intentam definir
conceitos e categorias que possibilitem interpretar melhor as relações que asse-
guram sua conformação e continuidade. A constituição dessas comunidades
interliterárias é de natureza múltipla, condicionada por fatores variados, que
podem ser geográficos políticos, lingüísticos, de proximidade de parentesco ou
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mesmo de analogia de procedimentos artísticos. Além disso, “as comunidades


interliterárias não existem nem se desenvolvem isoladamente, mas através de
uma interação variável com seu contexto” (DURISIN, 1991). Por isso, cada lite-
ratura nacional pode tornar-se, ao longo de seu desenvolvimento histórico, um
componente de várias comunidades interliterárias, não se constituindo essas em
sistemas fechados ou invariáveis. Essa proposta teórica nos permite reavaliar
noções como a da literatura nacional, examinando-a em suas articulações com
outras literaturas (CARVALHAL, 1993: 359-68 e 1994: 93-102).
Os estudos mais recentes sobre comunidades interliterárias fogem ao
esquematismo e ao determinismo mecânico que ainda pareciam persistir nos
primeiros textos. Isto se percebe, por exemplo, no estudo sobre “Retardement,
déplacement de phase, développement accéléré”, de István Fried, de Buda-
peste, no qual há a preocupação em ultrapassar os conceitos fixados de “di-
ferença cronológica” ou de “atraso”, dizendo não ser possível reduzir o pro-
cesso literário ao fator cronológico, pois ele tem cadências próprias. Segundo
ele, é preciso aceitar que em algumas literaturas os estilos marcados pela
época apareçam incompletos, fragmentários, enquanto em outras se
aclimatam e fixam-se correntes diferentes. São vários os fatores que colabo-
ram no processo, sendo impossível condensá-los em construções simplificadas
ou esquemáticas e menos ainda apriorísticas. Como dirá: “Nosso trabalho
será mais rentável e nós compreenderemos mais exatamente as transforma-
ções da literatura no espaço do tempo, se ao longo de nossas reconstruções
nós não nos limitarmos a observar et traiter processos reduzidos a um só pólo
e esquematizados” (DURISIN, 1987).
Além de possibilitarem a revisão de conceitos, de objetos e de métodos da
literatura comparada tradicional, as reflexões sobre comunidades interliterárias
permitem que se recupere a perspectiva da literatura mundial sob um novo
ângulo. E os estudos de literatura comparada encontram nas questões de
intertextualidade e de comunidades interliterárias um campo próprio de in-
vestigação no qual se consolida sua articulação com a teoria literária, que lhe
fornece o instrumental para fundamentar seus procedimentos, enquanto dá
a essa os elementos necessários para que formule conceitos específicos e
peculiares aos problemas literários de que o comparativismo se ocupa.
É nesse sentido que a comparação ou confrontação textual, característica
da literatura comparada e prática antes ocasional da crítica literária, por meio
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da noção de intertextualidade, passou a ocupar uma posição central nos es-


tudos literários em geral, não apenas comparativistas.
Diante disso, o comparatista se depara com a necessidade de redefinir
seus campos de atuação e de acentuar, em sua prática, a compreensão da
literatura como um todo. Com o embasamento teórico que recebe por sua
aproximação à teoria literária, a literatura comparada tende a acentuar a
generalização em detrimento da simples comparação entre elementos e a
ampliar os seus domínios numa perspectiva interdiscursiva e interdisciplinar.
Investe, portanto, no amplo relacionamento dos textos na cultura. “A pos-
sibilidade de comparar a literatura com qualquer coisa”, como sugere
Jonathan Culler em “Comparative Literature and Literary Theory”
(CULLER, 1979), onde refere a comparação do discurso literário com ou-
tros tipos de discursos, desde o mais corrente estudo da presença na litera-
tura e nos escritos históricos de esquemas narrativos similares e modelos
de compreensão, passando pelos textos autobiográficos até os textos filo-
sóficos e psicanalíticos.
Se a noção de intertextualidade trouxe para a literatura comparada uma
revitalização, também lhe provocou um grande desafio: a sua permanente
redefinição como prática de leitura que remete constantemente a outros tex-
tos, anteriores ou simultâneos, que estão presentes naquele que temos sob
os nossos olhos.

Referências Bibliográficas

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