O Dia em Que A Revolução Começou
O Dia em Que A Revolução Começou
O Dia em Que A Revolução Começou
COMEÇOU
Reinterpretando a Crucificação de
Jesus
N. T. WRIGHT
Sumário
Parte I: Introdução
1. Um Escândalo de Suma Importância: Por que a Cruz?
2. Lidando com a Cruz: o Passado e a Atualidade
3. A Cruz e o Primeiro Século
Agradecimentos
PARTEI
Introdução
Capítulo 1
Um Escândalo de Suma Importância
Por que a Cruz?
Ali havia uma cruz e um sepulcro em sua base. Vi no meu sonho que à
medida que Christian se aproximava da cruz, o fardo de seus ombros ficava
mais leve até cair no sepulcro e desaparecer...
Christian ficou feliz, sentiu-se mais leve e falou com um coração contente:
Ele me deu descanso com sua tristeza e vida com a sua morte. Ele ficou
quieto por um momento observando maravilhado. Foi algo surpreendente
2
para ele: a visão da cruz era capaz de reduzir seu fardo .
E secretamente no jardim,
a cruz ali no alto,
ensinaria aos irmãos,
inspirando a sofrer e morrer.
O Deus todo poderoso com sua doce misericórdia pela humanidade deu
seu Filho, nosso Salvador Jesus Cristo, para sofrer a morte na cruz e nos
redimir; se ofereceu pelos pecados de todo o mundo como um sacrifício
completo, perfeito e suficiente.
Modelos e Doutrinas
Como originou o modo pelo qual os seguidores de Jesus entenderam
Sua morte? Muitos livros foram escritos sobre esse assunto, e aqui realizo
um breve esboço do que encontramos. As grandes disputas dogmáticas do
terceiro, quarto e quinto séculos focaram em questões sobre Deus, Jesus e o
Espírito Santo. Seus participantes definiram as doutrinas oficiais da
Trindade e da encarnação. Para ter certeza, todos acreditavam que Jesus
havia "morrido pelos seus pecados", e em sermões e documentos ainda
maiores eles disseram muitas coisas profundas sobre a morte e o que ela
significava. Mas ela nunca foi definida como tal, nem confinada a uma
única teoria.
Quando a Reforma do século XVI aconteceu, muitos ramos das novas
igrejas articulavam suas próprias teorias sobre a expiação em suas
declarações oficiais, mas o grande credo ecumênico dos primeiros séculos
não o fez. Eles meramente reformularam a fórmula mais antiga que
encontramos em 1 Coríntios 15, como, por exemplo, o Credo Niceno-
Constantinopolitano (promulgado em 381 A.D.): "Cremos em um só Deus
(...) o qual por nós homens e para a nossa salvação, desceu dos céus (...)
também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos e padeceu e foi
sepultado". O mais curto Credo dos Apóstolos nem sequer acrescenta "por
nós". Em outras palavras, não há equivalente na teologia da expiação
consagrada à pessoa e à obra de Cristo formulações que surgiram das
controvérsias sobre o que podia ou não ser dito e o que devia ou não ser
dito sobre a pessoa de Jesus e Deus (Pai, Filho e Espírito Santo). A rica
alegoria que encontramos, por exemplo, na exposição da cruz pelo bispo
Atanásio de Alexandria, do século IV, é impressionante. Porém, ela não se
transforma em fórmulas oficiais.
Muitos patriarcas da igreja primitiva pareciam assumir duas coisas
em particular a respeito do significado da cruz, segurando esses dois pontos
em uma combinação mais fluida do que os teóricos mais recentes
imaginam. Por um lado, muitos expõem alguma versão da ideia de que na
cruz Deus em Cristo venceu uma grande vitória, talvez devamos dizer a
grande vitória contra o poder maligno. Esse é o tema que muitos hoje
chamam de Christus Victor, o Messias vencedor. Já por um outro lado,
muitos dos teólogos mais antigos falavam da morte de Jesus como
"tornando o nosso lugar": ele morreu, logo, não morreremos. Poderíamos,
em retrospectiva, descrever isso como uma combinação de dois temas,
juntamente a um terceiro, o uso continuado de imagens que
representavam o sacrifício. Mas a visão bíblica do perdão é mais do que a
congruência de dois temas ou até dois modelos. Esses são momentos
históricos. Sendo que é a própria história que importa — uma história real
hoje e sempre. Por isso, considero que os patriarcas da igreja proveram
muito alimento para o raciocínio. Todavia, como eles mesmos insistiam, a
Bíblia permanece determinante como a base de tudo.
O desenvolvimento detalhado de teorias em referência ao que a cruz
conquistou e como conquistou emergiram depois da cisão entre o
cristianismo oriental e ocidental (a Oriental Ortodoxa e a Romana
Católica) mil anos atrás. Colocando friamente, a igreja Cristã Ortodoxa
nunca teve "um Anselmo". Esse detalhe deve ser suficiente para nos alertar
quanto à possibilidade de que algumas das nossas grandes controvérsias
estão mais ligadas a esquemas novos de interpretações introduzidos em
data posterior do que com o sentido original da Bíblia. Anselmo, um
arcebispo da Cantuária no século XI, foi o primeiro a trabalhar
detalhadamente o que viria a ser conhecido como a teoria da "satisfação"
da expiação: a honra de Deus foi impugnada pelo pecado humano e deve
ser satisfeita. (A ideia de que a honra de alguém precisa ser satisfeita — ou
restituída — fazia sentido dentro do complexo código de conduta da Alta
Idade Média.) A famosa alternativa da época era associada a Abelardo, que
foi pioneiro da teoria do "exemplo moral": a cruz mostra o quanto Deus
nos ama e, portanto, uma forte razão para amá-lo e amar uns aos outros.
Pesquisas detalhadas revelaram que Anselmo não ensinava uma teoria tão
rígida quanto alguns de seus seguidores, e que Abelardo — apesar de ter
colocado o "exemplo moral" como parte central — também desejava
manter a "satisfação". Mas ambos os nomes têm sido utilizados como
rótulos para versões mais simplistas de suas posições.
Enquanto isso, as igrejas orientais nunca acharam necessário indagar
o tipo de questões que Anselmo e Abelardo abordavam. Em certa ocasião,
quando tive a ousadia de perguntar a um arcebispo da Igreja Ortodoxa
Grega o que sua igreja ensinava a respeito da cruz, tudo que ele dizia (com
um radiante sorriso), em resposta às minhas tentativas de trazer o assunto à
tona sob diferentes ângulos, era que a cruz constituía o "prelúdio da
ressurreição".
Essa ênfase na ressurreição, em oposição à cruz, é mais ou menos o
exato oposto da teologia que está implícita nos contextos gloriosos de
Johann Sebastian Bach sobre as narrativas da crucificação de João e
Mateus. Bach, evidentemente, afirmou a ressurreição e a transportou para
a música, mas de maneira menos memorável do que a Paixão. Mas sua obra
nunca pareceu exercer um papel na questão sobre como as pessoas são
salvas. Ao final da Paixão de São Mateus ou da Paixão de São João,
sentimos que a história está completa: o adorador se identificou com Jesus
em seu sofrimento e é, de alguma forma, abraçado pelo seu significado
mais profundo. Por outro lado, para a Igreja Ortodoxa Oriental o momento
verdadeiro está prestes a começar. Esse não é o lugar para explorar a
história de dois mil anos de diferentes visões. Mencionei-as para indicar o
amplo espectro de crenças sobre a crucificação construídas enquanto várias
tradições se desenvolviam.
Martinho Lutero e João Calvino, dois dos grandes reformadores do
século XVI, bebiam de muitas fontes da Bíblia e dos patriarcas da igreja a
fim de desenvolverem novas formas de falar sobre a morte de Jesus que,
em última análise, possuía algo em comum com Anselmo. Calvino, em
particular, ansiava distinguir sua visão da teoria da "satisfação" de
Anselmo, enfatizando, no lugar dela, a combinação da justiça de Deus, a
santidade e o amor. Mas com isso nos encontramos firmados no século XVI
com seu resgate em linhas de raciocínio e pregações mais recentes.
(Isso dá a ideia de uma "fome" que é satisfeita por uma boa refeição).
Muitos pregadores e mestres são bem mais sutis que isso, mas essa
ainda é a história que as pessoas ouvem. Essa é a história que elas esperam
escutar. Em algumas igrejas, caso você não conte a história mais ou menos
dessa maneira, as pessoas dirão que não está "pregando o evangelho".
A reação natural de muitos que cresceram escutando essa mensagem
e sentindo que deveriam acreditar nela — caso contrário iriam para o
inferno — é pensarem que Deus seria alguém aborrecido. Tais pessoas
sentem, instintivamente, que Deus é um tirano sanguinário. Se existe um
Deus, devemos ter esperanças e orar para que ele (ou ela, ou isso) não se
pareça em nada com aquilo. Então elas reagem de várias maneiras
possíveis. Algumas · passam a dizer que tudo isso não passa de um grande
absurdo. Outras, intrigadas, voltam às suas Bíblias e aos grandes mestres da
igreja primitiva e lá encontram todo tipo de coisa sendo dita sobre a cruz,
por exemplo: que foi uma maneira pela qual o amor resgatador de Deus
venceu a batalha final sobre todas as forças das trevas. Ou então encontram
escritores antigos suplicando aos cristãos que imitassem o amor altruísta de
Jesus. Eles pregam isso como uma possível "resposta": a cruz não seria a
punição de Deus ao pecado, nus Jesus dando o maior exemplo de amor.
Assim, várias diferentes interpretações surgiram, afetando o aprendizado
da Bíblia e a fé cristã. Essa tem sido a receita para a confusão.
Essa confusão, como irei sugerir, atrapalha aquilo que,
indiscutivelmente, é a coisa mais importante. O Novo Testamento insiste,
livro após livro, que quando Jesus de Nazaré morreu na cruz, algo
aconteceu e fez do mundo um lugar diferente. Os cristãos primitivos
insistiram que quando as pessoas eram tornadas pelo significado da cruz,
elas se tornavam parte dessa diferença. Você não chegaria a essa conclusão
considerando os muitos debates e reações que eu acabei de apresentar,
infelizmente, nem pela maneira que muitos cristãos e muitas igrejas,
algumas vezes, se comportam. Mas é isso que os primeiros cristãos
ensinaram, disseram e pensaram. A crucificação de Jesus foi o dia em que a
revolução começou.
De uma maneira especial, eles pareciam ter interpretado a
crucificação de Jesus dentro de uma história muito maior — e talvez muito
mais perigosa — do que simplesmente uma questão sobre as pessoas indo
para o "céu" ou para o "inferno". Essa questão, de fato — para surpresa de
muitos — não é abraçada pelo Novo Testamento. O Novo Testamento,
com a história da crucificação de Jesus em seu centro, é sobre o reino de
Deus vindo para a terra assim como é no céu. Afinal, foi assim que Jesus
ensinou seus discípulos a orar. Essa é uma evidência bem óbvia, mas as
pessoas a ignoram na prática. Porém, aponta-nos para a direção que
seguirei enquanto tentamos entender exatamente o que aconteceu na cruz
e porque ela inaugurou uma revolução que continua até hoje.
Confusões sobre a cruz vieram de várias formas e tamanhos, mas
aquela que a maioria dos cristãos ocidentais conhecem atualmente tem a
ver com a violência. A população global atual é mais consciente da
violência, sua escala e sua natureza, mais do que qualquer outra geração
passada. Mas agora, entre as consequências não desejadas da revolução
tecnológica, o século XX e o começo do século XXI ofereceram duas coisas
relevantes. Primeiro, os seres humanos idealizaram maneiras de matar uns
aos outros em escala industrial. Segundo, os detalhes mais repulsivos de
tais horrores são agora transmitidos simultaneamente ao redor do mundo
pelas mídias sociais. Com exceção daqueles que estavam diretamente
envolvidos com guerras ou com tortura, a maioria das pessoas nas gerações
mais antigas nunca haviam testemunhado as barbáries da violência
desumana. Todos sabemos agora não somente que ela tem acontecido e
acontece, mas também como se parece e como soa. E mesmo se não
assistirmos aos noticiários relevantes, a indústria cinematográfica criou
toda uma forma de arte nova e sombria a partir da representação explícita
de todo tipo de violência.
Essa parece ter sido a marca registrada do século XX, no qual atos de
violência apavorantes se tornaram momentos decisivos para a cultura
global. Os meros nomes "Auschwitz" e "Hiroshima" demonstram tudo isso.
Há de se ver se o 11 de setembro de 2001 se tornará um momento decisivo
do mesmo tipo para o século XXI ou se será sobreposto por outros crimes
ainda mais terríveis. Mas esse é o ponto. A presente geração tem observado
com repulsa justificada toda a cultura recente da violência e da morte, e ela
percebeu sinais preocupantes da mesma cultura em algumas expressões do
cristianismo. Muitos apontaram que expressões tradicionais ou crenças
sobre a crucificação de Jesus algumas vezes refletem em demasiada
proximidade a linguagem que tem sido utilizada para justificar a violência.
Falar dessa maneira é deliberadamente vago. As coisas não foram
ajudadas pela tendência em alguns ambientes de primeiro mencionar a
Bíblia como um livro de "exemplos morais", e depois de expressar choque e
alarme quando um número significante de histórias, especialmente, mas
não exclusivamente o Antigo Testamento, mostram várias pessoas se
comportando extremamente mal. O livro de Juízes traz vários exemplos
(como o de Jefté e sua filha), mas ainda há muitos outros. Frequentemente
parece ser as mulheres quem mais sofrem: a filha assassinada, a concubina
estuprada e morta, a garota escrava que é tratada como a esposa substituta
e depois é expulsa com seu filho.
Em primeiro lugar, é claro que a Bíblia não foi escrita como um
conjunto de "exemplos morais". As histórias são normalmente contadas de
maneira sofisticada, induzindo o leitor a enxergar padrões subjacentes,
complexos, sérios e narrativas que trazem um aviso contra leituras
simplistas e isso, de fato, encoraja-o a buscar conclusões além de qualquer
coisa citada na superfície do texto.
Mas essas ambas coisas não ajudaram muito. As pessoas naturalmente
perguntam: a Bíblia justifica a violência? E em particular: a morte de Jesus
não seria o exemplo supremo do Deus da Bíblia usando violência —
aparentemente contra seu próprio filho! — como uma maneira de cumprir
Seus propósitos? (Certa vez ouvi esse argumento explicitamente, na década
de 1970, por alguém que queria usar a violência para se opor ao regime de
apartheid Sul-africano. Eles diziam, com efeito, que se Deus poderia fazê-
lo, nós também poderíamos). Mesmo entendendo que esses propósitos são
sobretudo amorosos e voltados para o resgate do povo, seria esse um
comportamento apropriado ao único e verdadeiro Deus?
Essa confusão vem à tona quando alguns pregadores e mestres
apresentam o significado da cruz relacionado à punição. Aqui precisamos
ser cautelosos. Existem muitas maneiras de falar sobre a "punição do
pecado" e como isso pode relacionar-se ao evento da morte de Jesus. Pelo
menos uma dessas maneiras é nitidamente ensinada na Bíblia, mas denota
algo significativamente diferente do que muitas pessoas pensam_ —
muitos, isto é, dos que a ensinam e dos que se opõem a ela. Mas outra
forma pela qual a cruz tem sido interpretada em conexão à "punição" tem
sido muito popular em algumas esferas. Nessa visão, Deus odeia os
pecadores de tal maneira que está determinado a puni-los, mas Jesus mais
ou menos intercede e leva o golpe da morte no lugar deles, logo, eles foram
de alguma forma poupados. Penso que seria difícil encontrar um trabalho
sério de teologia de qualquer linha que coloque o assunto de forma tão
direta quanto aquela. Teólogos quase sempre dirão: "É evidente que isso
aconteceu por causa do amor de Deus por nós". Mas em um nível popular,
em sermões e conversas com jovens, pregadores entusiasmados
frequentemente jogarão a cautela pela janela e utilizarão ilustrações ou
explicações que caem nessa armadilha.
Assim que escrevi essa última frase, recebi um e-mail que incluía um
link para um vídeo curto alegando resumir o evangelho de uma forma que
eu consideraria revigorante. Edificaria a minha fé. Intrigado, assisti-o. Era
bem montado, com sequências inteligentes e muitos toques de efeitos
visuais de alta tecnologia. Mas no centro de sua mensagem havia uma
afirmação que fez o meu sangue congelar. O vídeo descrevia co1T10
bagunçamos nossas vidas e estragamos o mundo de Deus, e por aí vai.
Então, o narrador dizia: "Alguém precisa morrer". Acontece que,
obviamente, era Jesus. Isso fazia um apanhado geral do problema. Que tipo
de "boa-nova" é essa? A que tipo de Deus nos referimos quando proferimos
tal coisa? Se Deus deseja nos perdoar, por que Ele não pode simplesmente
fazê-lo? (Voltaire sugeriu que Deus de fato nos perdoaria, afinal de contas
esse era o trabalho dEle). Por que "alguém, precisa morrer"? Por que a
morte? Por que isso ajudaria? Esse "alguém" poderia ser qualquer pessoa?
Precisava ter sido o próprio filho de Deus? Como tudo isso funciona?
O perigo com esse tipo de ensinamento popular — e exemplos dele
não são difíceis de aparecer — é que acabamos reescrevendo um dos
versículos mais famosos da Bíblia. Já citei a versão King James de João 3.16
— "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho
Unigênito". Repare esses dois verbos: Deus amou o mundo de tal maneira
que deu seu Filho. O problema com a versão popular que descrevi é que
pode ser facilmente entendida da seguinte maneira: Deus odiou o mundo
de tal maneira que matou seu Filho Unigênito. E isso não parece ser boa-
nova de nenhuma maneira. Se chegamos a essa conclusão, sabemos que
não somente cometemos um trivial erro que pode ser facilmente corrigido,
como também cometemos uma grande tolice. Temos representado Deus
não como um Criador generoso, o Pai de amor, mas como um déspota
colérico. Essa ideia não pertence à imagem bíblica de Deus, e sim às
crenças pagãs.
Há muitas razões, a maioria delas boas, pelas quais as pessoas querem
rejeitar a imagem de um Deus déspota e colérico. (Entre as razões ruins
para querer libertar-se dela existe a ideia preguiçosa de que Deus, se é que
tal ser existe, é como um parente ancião indulgente que não deseja roubar
a diversão das pessoas e por isso nunca se aborrece com nada. Como tem
sido frequentemente elucidado, trata-se de um mero sentimentalismo. Se
há um Deus, e se Ele não odeia a injustiça, prostituição infantil, genocídio,
e muitas outras coisas além dessas, logo não é um bom Deus). Página após
página, o Novo Testamento insiste, como já vislumbramos, que aquilo que
acontece na morte de Jesus acontece por causa do amor de Deus. Mas o
problema com a imagem do "déspota furioso" não é solucionado pela
simples reprodução de alguns textos que dizem o contrário. Muitos
pregadores que realmente oferecem essa imagem sempre dirão — quando
confrontados — que Deus fez o que fez por causa do "amor". Acontece que
isso nem parece nem soa como amor para ninguém que tenta entender o
que acabou de ser dito. É fácil para um pregador negar a imagem do Deus
"déspota furioso" na teoria, mas reforçá-la na prática. Converse com
pessoas que frequentam essas igrejas. Elas sabem.
Mas o problema não acaba aí. Muitas pessoas destacaram que a ideia
de uma deidade furiosa e implicante que precisa ser apaziguada,
subornada, que precisa derrubar a sua ira em alguém mesmo que ela não
seja a pessoa certa cai muito bem com a maneira com que muitas figuras de
autoridades humanas — algumas vezes, tragicamente, pais ou no geral
homens mais velhos da família — comportam-se: tiranos, mandões,
autoritários. E, obviamente, algumas vezes também o clero. Pessoas que
cresceram em uma família com um pai violento ou beberrão, ou que foram
abusadas de uma forma ou outra por pessoas com autoridade, ouvem
alguém no púlpito contar a história de um Deus irritadiço e pensam:
"Conheço esse caráter, e eu o odeio". Dizer às pessoas nesse estado de
espírito que esse Deus colérico é realmente um Deus amoroso disfarçado
não é um argumento muito útil. "Se isso é amor", pensam, "não quero".
Provavelmente elas ouviram de alguém que as abusou o quanto essa pessoa
"as amava". Você não pode resgatar alguém das cicatrizes de um passado de
abuso reproduzindo novamente a mesma narrativa em escala cósmica e
dizendo a palavra "amor" com muita ênfase.
Agora, como eu digo, existem muitas maneiras de falar da morte de
Jesus relacionada à punição do pecado. Pelo menos uma dessas formas é
bíblica. Chegaremos lá e, quando chegarmos, descobriremos que todo esse
contexto impossibilita qualquer sugestão de um Deus irado e implicante.
Existe uma história diferente, uma que precisamos pensar a respeito com
uma nova abordagem. Mas mesmo quando dizemos assim, precisamos
enfrentar o outro desafio de se opor a qualquer outra tentativa de deturpar
o significado da cruz.
Alguém pode dizer que a história na qual Deus usa a violência para
redimir o mundo pode servir como pretexto para aqueles que desejam
acreditar, naturalmente sob outras condições, que a "violência redentora" é
o método pelo qual o mundo é resgatado das suas muitas mazelas.
Mencionei um exemplo desse argumento que veio da década de 1970, mas
ainda continua hoje. Críticos descobriram que é fácil apontar que algumas
versões da visão punitiva da morte de Jesus parecem perpetuadas nas
mesmas comunidades, por exemplo em partes dos Estados Unidos da
América, onde um código penal severo é promulgado, incluindo a pena de
morte, e se trata não somente da norma como também é considerado o
padrão de excelência em como lidar com o crime e as inquietações sociais.
Em algumas dessas mesmas comunidades, pode ser encontrada a crença de
que quando as coisas vão mal no mundo, a melhor coisa a ser feita é usar
mais violência lá também, bombardeando vilarejos ou cidades pequenas e
enviando drones para executar alvos predeterminados.
Meu ponto aqui não é que algumas maneiras de lidar com o
terrorismo global são mais justificáveis moralmente ou mais efetivas do
que outras. Esses são assuntos complexos. "Soluções" fáceis estão
determinadas a ser simplificação generalizada. Eu quero dizer
simplesmente isto: observa-se uma aparente conexão entre como as pessoas
entenderam o significado da morte de Jesus e como parecem estar aptas
para "resolverem" os problemas do mundo. Se Deus precisa punir, talvez
nós também, Se Deus resolve problemas com o uso da violência, talvez Ele
deseja que também o façamos. Porém, uma mudança em direção ao
pacifismo ou uma restrição para as respostas militares aos problemas
globais em determinados nichos da opinião pública no mundo ocidental,
durante o último século como um todo, tem feito com que algumas igrejas
apresentassem versões da morte de Jesus nas quais a punição divina não
exerceria nenhuma função. Algumas até sugeriram que a relação entre a
punição divina e a morte de Jesus é uma invenção moderna, ainda que, na
verdade, consigamos encontrar o mesmo tema estabelecido (mostrarei isso
em um contexto diferente) na própria Bíblia. Também o encontramos nos
patriarcas da igreja, e precisamos perceber que muitos deles se opuseram
radicalmente à pena de morte quando ela foi promulgada e perpetuada no
Império Romano. Não devemos presumir que as teorias da expiação são
refletidas ou reflexos da prática social.
Tudo isso leva à complexidade dos debates mais recentes do
significado da crucificação de Jesus: o "porquê" assombra todo esse assunto.
Se determinados modelos "punitivos" da Expiação são entendidos como
permissivos ao abuso ou ao comportamento agressivo, seja em famílias ou
entre nações, isso significa que devemos aniquilá-los mesmo que sejam
aparentemente endossados por algumas passagens das escrituras? Ou —
observando na outra extremidade do telescópio — se tais modelos de
expiação são considerados centrais para as escrituras e para a pregação do
evangelho, e se com a atenuação de tais ideias abríssemos mão de um
elemento vital de poder espiritual, então deveríamos, em contraposição,
abordar os tipos de objeção que descrevi como sendo um truque diabólico
para distrair a igreja da sua mensagem central? Infelizmente, essas questões
são frequentemente somadas a outras, incluindo as que abordam
problemas culturais, políticos e sociais. Nesse ponto, uma leitura lúcida das
escrituras pode ajudar a diluir tais emaranhados.
Mas caso considere a primeira frase — aquela em que modelos
"punitivos" da expiação devem ser erradicados por conta da pavorosa
perspectiva de Deus que possuem, ou das consequências sociais igualmente
horripilantes que causam — quais são as alternativas? Tradicionalmente,
há duas, ambas possuem fortes reivindicações com algum tipo de
embasamento bíblico.
Em primeiro lugar, como vimos anteriormente, há uma ideia
memorável e paradoxal que na cruz, Jesus conquistou uma vitória — ou,
pelo ao menos, Deus conquistou a vitória por meio de Jesus — sobre os
"poderes" sombrios que outrora usurparam Seu senhorio sobre a terra. Essa
ideia era popular em alguns nichos durante os primeiros séculos cristãos.
Muitos pensadores desde a segunda metade do século XX até os dias de
hoje, advogam alguma versão disso, parcialmente por entenderem estar
expondo aquilo que entendem ser ideias perigosas sobre punição. Mas isso
simplesmente delonga a questão em vez de respondê-la. O que ou quem
são esses "poderes"? Por que a morte de uma pessoa — a morte de qualquer
pessoa, a morte do Messias, a morte do próprio filho de Deus — derrotaria
esses "poderes"? Por que isso seria uma revelação do amor divino? E —
talvez a questão mais impositiva de todas — se esses "poderes" foram
derrotados, por que o maligno parece continuar em ação, reinando sem
impedimento? Será que alguma coisa realmente aconteceu naquela cruz
que fez uma diferença verdadeira no mundo, e caso tenha acontecido, qual
é a atribuição que podemos dar a esse fato? A revolução realmente
começou ou foi apenas um sonho?
Em segundo lugar, há outra ideia que se sobressai proeminentemente
ao longo da Bíblia que muitos defendem ser o "real significado" da morte
de Jesus. De acordo com essa visão, Jesus ofereceu o exemplo supremo de
amor na cruz, a demonstração máxima do que o amor fará. Portanto, Ele
transformou o mundo ao oferecer um exemplo único e poderoso, um
padrão para que outras pessoas imitassem. Agora, obviamente, o Novo
Testamento de fato insiste nessa linha de raciocínio. A morte de Jesus é
normalmente entendida como o padrão-ouro do "amor". No evangelho de
João, Jesus ordenou que seus seguidores amassem uns aos outros e
declarou: "Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a sua vida pelos
seus amigos" (15.13). A primeira carta de João insiste no mesmo ponto,
assim como Paulo o faz e também vários outros escritores dos primeiros
séculos.
Mas isso também acaba levando a problemas. A não ser que houvesse
uma razão para que Jesus morresse, e talvez, mesmo uma razão para uma
morte tão terrível, é difícil ver como essa morte pode ser, de fato, um
exemplo de amor. Se o melhor amigo de Joãozinho cai em um rio
turbulento e Joãozinho pula para salvá-lo, arriscando sua própria vida, isso
realmente traria um exemplo de amor (como também de coragem heroica)
para qualquer pessoa que testemunhasse esse evento ou ouvisse sobre ele.
Mas se Fred, desejando mostrar para seu melhor amigo o quanto o ama,
pula em um rio turbulento enquanto seu amigo está são e salvo em terra
firme, isso não demonstraria amor nem coragem, e sim tolice impensada.
Esse é o meu ponto: a menos que a morte de Jesus tenha conquistado
algo — alguma coisa que precisava ser feita com urgência e que não
poderia ser feita de nenhuma outra maneira — ela não pode servir de
exemplo moral. O significado "exemplar" deve sempre depender de algo
precedente. Como João escreveu: "Nisto consiste o amor: não em que nós
tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu Filho
como propiciação pelos nossos pecados. Amados, visto que Deus assim nos
amou, nós também devemos amar-nos uns aos outros" (1 João 4.10-11).
João não espera que seus leitores ofereçam a si próprios como sacrifício
para o perdão do pecado uns dos outros. Isso já foi feito. Espera-se que eles
copiem o amor altruísta que Jesus expressou para fazer algo único, algo que
precisava ser feito urgentemente. Logo, nossa questão permanece: o que foi
esse "algo"?
★ ★ ★
Nos primeiros versos do grande épico homérico "A Ilíada", encontra-
se a palavra "ira": Mênin aeide, thea, Peleiadeo Achilleos "Canta-me, ó
deusa, do Peleio Aquiles a ira tenaz". A palavra mênin é frequentemente
utilizada por Homero para se referir tanto à ira humana (como nessa
passagem) quanto à ira divina que é irascível e vingativa, uma ira que só
pode ser aplacada por sacrifício ou meramente substituída por uma outra
ainda maior (como no caso de Aquiles). Todo épico da "Ilíada" é sobre a
ira: a vingança dos gregos pelo rapto de Helena por Páris e todas as
vinganças e batalhas consequentes que aconteceram em todas as camadas
sociais entre Grécia e Troia — e também entre os deuses que observavam
todo o espetáculo do Monte Olimpo, intervindo ocasionalmente de um
lado ou de outro. Inveja, ódio e ofensa; temas constantes no primeiro
grande poema do mundo. Se buscamos "salvação", queremos ser resgatados
dessas coisas. Mesmo alguns séculos mais tarde, tudo isso ainda era
considerado verdade, quando emergiu do povo judeu para o mundo pagão,
notícias de um senhor diferente, um império diferente, uma salvação
diferente e, talvez, uma ira diferente.
Virgílio foi o equivalente romano de Homero. Seu grande épico, a
"Eneida", inicia-se não com ira, mas com armas: Arma virumque cano, "As
armas e o Varão insigne canto". Assim como Homero nos deu maravilhosas
alegorias da natureza, Virgílio também escreveu poemas de grande beleza
campestre. Mas não é coincidência o fato de que dois dos maiores e mais
famosos poemas da antiguidade pagã se iniciam com "armas" e "ira". Este
era o mundo que todos conheciam, mesmo quando se revoltavam contra
ele: guerra e violência, e a ira humana ou divina que entre eles ardia ou
sobre eles queimava. Ira e armas! Com os próprios deuses tomando parte
da ira e promulgado a violência, que escapatória existiria? É impossível não
notar também o seguinte: não seria esse mundo (de ira, de armas e seu
aparente reflexo em várias teorias da "expiação") que provocou grande
parte da reação contrária da teologia atual e da opinião popular?
Leitores do Novo Testamento podem querer dizer, de maneira mais
sutil, que acreditamos em um tipo diferente de ira, um tipo diferente de
batalha e, de fato, numa visão muito diferente de Deus e da salvação. E
sim, realmente acreditamos. Mas foi no mundo dos gregos e dos romanos
que Jesus foi crucificado; e foi dentro de tal mundo que a primeira
mensagem judaica acerca de Jesus recebeu sua divulgação mais ampla e,
indiscutivelmente, sua primeira formatação.
O mundo da ira e das armas explica por que alguém desejaria
executar outro ser humano de maneira tão brutal. Pontuar a crueldade
inerente ao ato da crucificação — necessário mais cedo ou mais tarde neste
livro — nos ajudará a não desprezar ou esconder o que realmente estava
envolvido no evento cujo significado estamos discutindo.
Poucos leitores deste livro testemunharam o tipo de violência que
era comum no primeiro século. Alguns outros podem tê-la visto em
representações cinematográficas. Porém, mesmo entre aqueles que
assistem A Paixão de Cristo de Mel Gibson, existem os que fecham os olhos
durante as cenas de horror gratuito de toda a crucificação e aqueles que se
sentem tão afetados pela brutalidade física que acabam não entendendo
que assim como a morte era necessária, o rebaixamento também o era. A
crucificação era uma das principais formas utilizadas pelas autoridades do
mundo antigo como demonstração de poder com a finalidade de subjugar o
espírito de qualquer resistência.
A crucificação foi, afinal, uma das piores sentenças que o ser humano
já criou. E essa afirmação não é um exagero moderno; tanto Flávio Josefa, o
historiador judaico-romano, quanto Cícero, o orador romano,
compartilhavam-na. Esses dois homens testemunharam muitas
crucificações. Além deles, também havia um outro que sabia do que estava
falando: Orígenes, o patriarca da igreja. Cícero se refere à crucificação com
crudelissimum taeterrimumque supplicium, a "sentença mais cruel e
tenebrosa" (In Verrem 2.5.165). Flávio Josefa fala sobre um protesto
judaico contra uma "das mais lamentáveis mortes", thanaton ton oiktiston
(Jewish War 7.202f.). Orígenes a chama de mors turpissima crucis, a "mais
vergonhosa forma de morrer, esta é a cruz" (Mateus 27.22).
O ponto é frequentemente considerado, mas carece de repetição:
nós, no Ocidente Moderno, que usamos pingentes dourados em forma de
cruz, que a estampamos em nossas Bíblias e em nossos livros de oração, que
a carregamos em alegres procissões, precisamos ser lembrados que a
própria palavra "cruz" fora uma palavra que dificilmente pronunciaríamos
em círculos sociais formais. O mero pensamento da cruz não somente
acabaria com nosso apetite, como também nos renderia inúmeras noites
em claro. E caso tivéssemos testemunhado uma ou duas crucificações,
como vários do mundo romano testemunharam, seríamos tomados por
pesadelos enquanto as memórias surgiriam espontaneamente: lembranças
de seres humanos entre a vida e a morte, pendurados por dias a fio,
cobertos em sangue e moscas, sendo afligidos por ratos e corvos, enquanto
os parentes pranteavam sem nada poder fazer, mas ainda assim em vigília
e, por fim, com uma plateia de pessoas hostis e jocosas, acrescentando suas
ofensas aos terríveis ferimentos de quem estivesse na cruz. Tudo isso
explica a afirmação de Cícero de que tudo o que estivesse envolvido com a
crucificação, inclusive a própria palavra crux,
Seria possível para uma pessoa como eu, condenado pelos poderes da terra
e do inferno, transformar-se em um bode expiatório para a nação! Assim
como hordas de inimigos destruíram Décio quando ele ofereceu sua vida,
que assim ambos os exércitos atravessem este corpo, que os selvagens de
Reno mirem suas armas em mim; que eu seja atingido por cada lança, e
que eu intervenha e intercepte cada golpe que é direcionado para cá! Que
meu sangue redima as nações, que minha morte cumpra toda a sentença
da corrupção de Roma ... Coloquem suas espadas somente contra mim; que
luto uma batalha perdida em favor da justiça e da lei desfavorecida. Meu
sangue, apenas o meu, trará paz ao povo da Itália e cessará o seu
sofrimento. Não há mais necessidade de guerra, pois já me entreguei.
"Àquele que nos amou, e em seu sangue nos lavou dos nossos
pecados, e nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai; a ele
glória e poder para todo sempre. Amém". (Apocalipse 1.5-6).
"E tudo isto provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus
Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação" (5.18).
"Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós; para que nele
fôssemos feitos em fidelidade à aliança de Deus" (5.21).
A tradução do último versículo é controversa. A palavra que traduzi
com a frase "fidelidade à aliança" é geralmente colocada como "justiça" — a
palavra que regularmente é utilizada dentro do "contrato de obras" que
descrevi (Cristo levando nossos pecados, nós recebendo a Sua "justiça", no
sentido de Suas conquistas morais). Mas, como eu e outros argumentamos
extensivamente em outros lugares, isso é enganoso. Paulo está falando da
mesma coisa que o ocupa desde o final do capítulo 2 de 2 Coríntios até o
final do capítulo 7: a natureza do seu ministério apostólico. O versículo 21
é uma afirmação adicional, alinhada com as outras duas anteriores, da
maneira pela qual a morte reconciliadora do Messias resulta em uma nova
vocação humana. Aqui Paulo está falando especificamente da sua vocação
"apostólica". Esse ponto seria facilmente aplicado para todos aqueles que
estão "em Cristo", mas esse não é o assunto principal aqui. Ele está
explicando o porquê de fazer o que faz e a razão pela qual seu sofrimento
— que envergonhava os coríntios — ser parte necessária do arranjo.
Paulo se enxerga na vanguarda da revolução. A morte de Jesus
inaugurou um mundo totalmente novo, e ele é parte do time pioneiro que
desbrava o território inexplorado. Ele não deve apenas anunciar, mas
também personificar a fidelidade do Deus criador com Sua aliança e com
Seu mundo. Ele está pensando na visão de Isaías da vocação "servil" de
Israel e citando um dos seus capítulos preferidos, Isaías 49: "Ouvi-te em
tempo aceitável e socorri-te no dia da salvação" (2 Coríntios 6.2, citando
Isaías 49.8). O restante desse texto em Isaías prossegue em: "te guardarei, e
te darei por aliança do povo". Paulo não está resumindo o "contrato de
obras" (Jesus levando nossos pecados, e nós recebendo Sua "justiça"). Ele
está fazendo o mesmo de Apocalipse: celebrando o fato de que a morte
reconciliadora de Jesus liberta as pessoas para que recebam sua verdadeira
vocação. A morte do Messias deu a ele, e por extensão a todos os que
seguem Jesus, a vocação de ser tornar parte do contínuo plano divino, o
propósito aliançado para todo o mundo.
Algo similar é visível em Gálatas 3.13: "Cristo nos resgatou da
maldição da lei", escreve Paulo, "fazendo-se maldição por nós". Essa não é
uma afirmação de uma teologia da expiação baseada em obras abstratas,
embora frequentemente seja despida de seu contexto para que cumpra esse
papel. Muitos sermões foram pregados sobre como a "maldição da lei"
(vista como uma ameaça ao código moral) é removida pela morte de Jesus.
Alguns até consideram que Paulo se referia à própria lei de Israel como
algo ruim que pronunciava sua "maldição" indevidamente e que a morte de
Jesus precisou acontecer para evidenciar isso. Mas isso nada tem a ver com
o que Paulo queria dizer. Ele não prossegue — como muitos sermões
comumente o fazem — dizendo que: "O Messias se fez maldição por nós
para que pudéssemos ser libertos do pecado e ir para o céu", ou qualquer
coisa do tipo. Ele diz, no versículo 14, que o Messias carregou a maldição
da lei "para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios por Jesus Cristo, e
para que pela fé nós recebêssemos a promessa do Espírito".
Paulo não está dizendo que a morte do Messias resgata as pessoas do
inferno. Tampouco que resgata os homens de volta para uma comunhão
com Deus. Essas coisas são importantes, mas não são enfatizadas por ele.
Gálatas 3, como um todo, fala como as promessas de Deus a Abraão sempre
tiveram em vista toda uma família global e como os eventos do Evangelho
fizeram disso uma realidade. A morte de Jesus iniciou uma revolução; ela
removeu a pedra que estava no caminho entre as promessas divinas e as
nações para as quais elas foram direcionadas. E também abriu o caminho
para que o Espírito fosse derramado a fim de equipar o povo de Deus para
suas tarefas. Mais uma vez, a visão bíblica do que foi alcançado pela morte
de Jesus tem a ver com a restauração da vocação humana, da vocação de
Israel, do grande propósito divino para o mundo.
Algo parecido também está acontecendo — apesar desta passagem
ser uma das mais densas de Paulo — em Romanos 5.17. Em. um grande
passeio pela história bíblica, ele contrasta os efeitos da violação de Adão
com os efeitos do trabalho do Messias. Aqui, como em nenhum outro
lugar, devemos assumir que estaríamos lidando com um "contrato de
obras" no qual a execução das tarefas de Jesus — as quais Adão falhou em
executar — seria creditada a Seu povo. Mas não. A "obediência" de Jesus é
importante nessa passagem, mas não por esse motivo. O que Paulo tem em
mente é, outra vez, a aliança da vocação:
"Porque, se pela ofensa de um só, a morte reinou por esse, muito mais os
que recebem a abundância da graça, e do dom da justiça, reinarão em vida
por um só, Jesus Cristo".
"Vós tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de
águias, e vos trouxe a mim; Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a
minha voz e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade
peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é minha. E vós me
sereis um reino sacerdotal e o povo santo. Estas são as palavras que falarás
aos filhos de Israel" (Êxodos 19.4-6).
"Disse mais: Pouco é que sejas o meu servo, para restaurares as tribos de
Jacó, e tornares a trazer os preservados de Israel; também te dei para luz
dos gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra. Assim
diz o Senhor, o Redentor de Israel, o seu Santo, à alma desprezada, ao que
a nação abomina, ao servo dos que dominam: Os reis o verão, e se
levantarão, como também os príncipes, e eles diante de ti se inclinarão,
por amor do Senhor, que é fiel, e do Santo de Israel, que te escolheu"
(Isaías 49.6-7).
Israel e Adão
As escrituras, precisamente, contam a história de como Israel foi
exilado. Olhando por um lado, toda a história aborda poucas outras coisas.
A narrativa maior, em que há um grande "exílio" na Babilónia, é mostrada,
vez após vez, com outros "exílios" que culminam em um só. Abraão vai até
o Egito e por pouco não escapa de uma grande confusão. Assim também
faz seu filho, Isaque. O filho mais novo de Isaque, Jacó, ao escapar da fúria
de seu irmão, foge e faz morada na terra de seus ancestrais por quatorze
anos antes de retornar para o território que Deus havia prometido a
Abraão. A família de Jacó vai para o Egito para escapar da fome, e os
israelitas lá permanecem por séculos até que se tornam escravos, até que
vêm os eventos dramáticos da Páscoa e do Êxodo, por meio dos quais são
libertos e por fim guiados à sua terra prometida.
Uma vez lá, eles lutam para sobreviverem e serem independentes.
Mesmo quando são bem-sucedidos durante o reinado do rei Davi, isso se
dá por pouco tempo, pois uma rebelião interna força Davi a se exilar antes
de retornar e continuar o seu governo. Então, depois que o reino é
dividido em "norte" (com seus reis que não são da linhagem de Davi) e
"sul" (debaixo do governo da linhagem de Davi), as tribos do norte são
capturadas e levadas pelos Assírios, sem nunca retornarem de lá. As tribos
do sul — Benjamim, Judá, e os Levitas que vivem entre eles —
permanecem. Mas também acabam sucumbindo ao poderio da Babilónia, e
muitos deles são levados cativos. O Templo é destruído. De acordo com
Ezequiel, isso acontece porque o próprio YHWH o abandonou,
principalmente por causa do comportamento assustador dos sacerdotes e
das pessoas. O cativeiro babilónico é normalmente referido como "o
exílio".
Claro que aqui houve um trocadilho com a palavra "casa". Davi pede
permissão para construir um edifício, mas Deus o promete uma família.
Teria Deus, falando através de Natan, mudado de assunto? Seria isso apenas
um trocadilho verbal? Não. Primeiro: porque o filho de Davi, Salomão,
seria responsável por edificar o Templo em Jerusalém. Segundo: porque, de
alguma forma extraordinária e inespecífica, o maior filho de Davi seria o
próprio filho de Deus. Em todas as incríveis possibilidades dos escritos
posteriores, sobretudo nos documentos dos primeiros cristãos que foram
gerados pela ressurreição de Jesus (o que leva a promessa de Deus a um
significado nunca antes imaginado), a edificação que Salomão levantou era
apenas uma placa que direcionava a resposta soberana ao pedido de Davi.
Se deve existir um lugar onde o Deus vivo habitará eternamente entre o
seu povo, não seria um edifício feito de pedra e argamassa; será na verdade
um ser humano, o maior filho de Davi. De algum modo, tudo o que se
pode pensar e celebrar sobre o Templo e sobre a vontade de Deus em
repousar entre seu povo chegaria em um novo mundo de significado no
momento em que a "casa" que Davi planejou era, na verdade, um ser
humano.
Os grandes salmos reais, como o Salmo 2, 72 e 132, celebram essa
promessa. O Salmo 89, curiosamente, também a celebra, mas questiona o
motivo dela ainda não ter sido cumprida como esperado. Podemos
imaginar os judeus, nos dias de Jesus e além deles, orando e cantando
aquelas antigas orações na esperança de que a libertação e o verdadeiro rei
chegariam em algum dia; e que o Deus vivo resgataria todo o mundo e
voltaria para viver eternamente com seu povo. Como Ele faria isso,
quando, onde e por meio de quem, permanecia frustrantemente
indefinido. O fato de que ele faria era a promessa das escrituras.
Quando Salomão construiu o Templo e o consagrou com grande
pompa, esplendor e com sacrifício de milhares de animais, a Glória divina
de fato veio e repousou dentro dele. Essa maravilhosa cena é descrita em l
Reis 8, onde está registrado como os sacerdotes eram incapazes de
permanecerem diante da gloriosa Presença divina (v.11). Essa descrição
ressoa com aquilo que havia acontecido quando o tabernáculo fora
construído e consagrado no deserto (Êxodo 40). O criador do mundo havia
decidido fazer residência nesse edifício em cumprimento das promessas a
essa família real. Trata-se do momento em que o céu tocou a terra, nele "o
pequeno mundo" passou a existir como um sinal do objetivo final, ou seja,
que a Glória divina enchesse toda a terra (Salmo 72.19). Fato é que, na
versão posterior do profeta Isaías, os anjos ao redor da Presença cantavam
que toda a terra já estava cheia da sua Glória (6.3). Não há nenhum outro
registro de alguma ocasião em que a Glória divina foi tão visível no
Templo de Salomão. Mas o edifício permaneceu sendo o centro de oração,
sacrifício e peregrinação para os grandes festivais até que os babilónios o
destruíram em 587 a.C. Mesmo depois disso, os judeus oravam na direção
do Templo. Isso, de acordo com Daniel 6.10, é o que Daniel fez em seu
quarto na Babilónia, o que talvez reflita a oração de Salomão em 1 Reis
8.46-53.
A destruição do Templo só foi possível, de acordo com Ezequiel,
porque a Presença o havia abandonado. Ezequiel relata detalhadamente,
nos capítulos 10 e 11, a Glória divina saindo do Templo (com rodas e tudo
mais), resplandecendo brevemente no Monte das Oliveiras e depois indo
para algum destino desconhecido. A Glória se fora. Era apenas uma
questão de tempo antes do Templo também ser destruído.
Mas é para Ezequiel, no final do seu livro — no capítulo 43 — que
devemos gratidão por uma das mais ricas descrições da Glória divina
retornando para um Templo reedificado, uma vez que Deus havia
purificado e limpado o seu povo. Eis o lugar em que a promessa da
"ressurreição" (a restauração prometida depois da "morte" no exílio) se
encaixa. E novamente voltamos para Isaías 40.55, em que o profeta declara
que a Glória de YHWH será revelada mais uma vez e que toda a carne
haveria de vê-la, porque os pecados e as pessoas foram perdoados. O exílio
terminará, a Babilónia cairá, a antiga aliança será renovada e a própria
criação prosperará como deveria. Percebemos que essa é a passagem em
que encontramos, nos capítulos 52 e 53, a surpreendente imagem bíblica
de uma pessoa sofrendo e morrendo pelo bem de muitos. Tudo isso — a
abundante combinação de história e promessa, Glória e Templo, exílio e
restauração — estaria em primeiro lugar na mente das pessoas do período
do Segundo Templo que se dá entre o tardio século V a. C. e o final do
primeiro século d. C.
Por esse período, ainda que o Templo tenha sido reedificado e os
sacrifícios tenham sido oferecidos regularmente até 70 d.C., quando os
romanos o derrubaram definitivamente, ninguém sugeriu que a Presença
divina havia de fato retornado em poder e glória. Como em todos os
lugares santos, o Templo manteve um forte senso de memória e da
"presença" (nesse sentido). E ainda o faz até os dias de hoje, por isso os
judeus devotos oram ferventemente no Muro das Lamentações,
frequentemente anotando orações, dobrando-as e colocando-as entre as
rachaduras das enormes pedras antigas. Mas eles não pensam que a Glória
divina, que é chamada de Shekinah pelos rabinos mais recentes, está lá da
mesma forma que estava em Êxodo 40, 1 Reis 8, na visão de Isaías, ou nas
promessas de Ezequiel 43, Isaías 40 ou 52. Isaías falou, afinal, das sentinelas
nos muros de Jerusalém que não se calavam e cantavam com alegria,
porque viam claramente o retorno de YHWH para Sião (52.8). Isso jamais
aconteceu. Os profetas do pós-exílio -Agar, Zacarias e Malaquias —
insistiram que isso aconteceria, mas que ainda não havia acontecido.
Séculos mais tarde, os rabinos olharam para trás, para esse período, e
produziram uma lista, com uma espécie de resignação sombria, de todas as
maneiras que o Segundo Templo era deficiente em comparação ao
Primeiro Templo. Notoriamente, a ausência da própria gloriosa Presença
divina, a Shekinah, é listada. Nos dias de Jesus, havia esperança de que a
Glória finalmente retornaria. Mas ninguém sabia por certo o que aquilo
significava, como aconteceria ou como seria.
Para essas questões, os escritores do Novo Testamento oferecem uma
resposta que é tão explosiva, tão inesperada e tão revolucionária que
permaneceu totalmente fora do radar para a maioria dos leitores
modernos, inclusive os leitores cristãos modernos. Pegando o exemplo
mais óbvio, o Evangelho de João diz: "E o Verbo se fez carne, e habitou
entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de
graça e de verdade" (1.14). A palavra para "habitou" aqui é eskenosen, "em
tabernáculo", "dentro de sua tenda". João está dizendo que em Jesus o novo
tabernáculo, o novo Templo, havia sido edificado, e que a Glória divina
finalmente havia retornado. O "verbo," que era e é Deus, havia se feito
carne. O veículo dessa glória é o "filho primogénito do Pai"; ao se remeter
a 2 Samuel 16 e aos Salmos relacionados, o evangelista está declarando que
as antigas promessas e esperanças haviam sido cumpridas nesse Messias,
nesse Jesus, o filho de Deus da linhagem de Davi. Por meio desse Jesus,
temos um vislumbre de que a própria frase "filho de Deus", como o próprio
tabernáculo, referia-se a um edifício construído por Deus para que Ele
próprio pudesse nele habitar. Os leitores estão convidados a enxergar o
Verbo criativo, por meio do qual todas as coisas foram feitas, tornando-se
humano e, assim como Isaías anunciou, revelando a Glória divina perante
todas as nações. É mais fácil entendermos isso quando compreendemos o
propósito dos seres humanos de portar a imagem. À medida que o
Evangelho de João progride, percebemos que o momento em que a Glória
é totalmente revelada é o momento em que Jesus é crucificado. Essa é
parte da revolucionária teologia de João sobre a cruz.
Precisamos assimilar tudo o que isso significa. Os cristãos modernos
precisam ser lembrados regularmente de que os judeus daquele período
não se percebiam como participantes da narrativa de um Deus moralista
que ameaçava as pessoas ao inferno caso elas O desapontasse. Nem
tampouco eles esperavam que iriam para um lugar chamado céu e ficariam
com Deus eternamente caso fossem capazes de resolver tudo. Alguns
pagãos da antiguidade pensavam assim, a maioria dos antigos judeus.
Eles esperavam, desejavam e oravam por aquilo que os profetas
haviam esboçado, aquilo que os Salmos haviam cantado, e aquilo que as
antigas promessas aos patriarcas haviam posto em prospecção: não um
resgate do mundo presente, mas um resgate e um renovo dentro desse
mesmo mundo. As fortunas de Israel chegariam a níveis cada vez mais
baixos, até às profundezas; mas chegaria um tempo em que Deus retornaria
em pessoa para fazer algo totalmente novo. E, através dessa coisa nova, não
apenas Israel seria resgatada da "morte" do exílio (o resultado inevitável da
idolatria e do pecado), como também todas as nações do planeta se
tornariam, de alguma forma, a nova criação que o Deus criador planejava.
Uma das maneiras centrais de expressar toda essa esperança — resgate do
exílio, a reconstrução do Templo e o retorno de YHWH — era falar sobre
o "perdão dos pecados". O exílio foi o resultado do pecado. Como muitos
escritores bíblicos insistiram (como em Deuteronômio, Isaías, Jeremias,
Daniel e Salmos), se o exílio tivesse que ser desfeito, os pecados também
precisariam ser perdoados.
É possível ver isso em muitos lugares, mas um exemplo se sobressai
em Lamentações, a poesia que apanhou todo o tema do exílio resultado do
pecado. Cada verso indica essa conexão: o pecado de Israel é a causa do
exílio. Por fim, após uma breve nota de consolação no capítulo 3, achamos
a repentina promessa no final do capítulo 4:
"O castigo da tua maldade está consumado, ó filha de Sião; ele nunca mais
te levará para o cativeiro; ele visitará a tua maldade, ó filha de E dom,
descobrirá os teus pecados" (Lamentações 4.22).
"Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei uma aliança nova com a casa
de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus
pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito;
porque eles invadiram a minha aliança apesar de eu os haver desposado,
diz o Senhor. Mas esta é a aliança que farei com a casa de Israel depois
daqueles dias, diz o Senhor: Porei a minha lei no seu interior, e a
escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. E
não ensinará mais cada um a seu próximo, nem cada um a seu irmão,
dizendo: Conhecei ao Senhor; porque todos me conhecerão, desde o
menor até o maior deles, diz o Senhor; porque lhes perdoarei a sua
maldade, e nunca mais me lembrarei dos seus pecados" Jeremias 31.31-34).
Reino de Deus
A célebre profecia de Isaías 52.7 retrata os mensageiros das boas-
novas se apressando para Jerusalém com as notícias de que a Babilónia
havia sido derrotada e que a gloriosa Presença divina estava finalmente
retornando. A mensagem deles pode ser resumida em uma forte frase de
efeito: "O seu Deus reina!". A ideia do Deus de Israel como o poderoso e
justo rei da terra ecoa por grande parte das escrituras de Israel, observada
especialmente nos Salmos. O Deus de Israel, criador do mundo, governa o
planeta com justiça e, no final, agirá estabelecendo essa justiça
definitivamente.
Isso é, obviamente, uma declaração de fé, proferida ou cantada
frequentemente, mesmo diante de situações e evidências que sugerem o
contrário. Imagine proclamar o Salmo 98 que celebra o poderoso reino de
justiça de YHWH, ou então, o Salmo 46 que celebra a forte defesa de que
YHWH provê a Jerusalém, enquanto exércitos estrangeiros invadem Israel
e resistir parece ser ineficaz. Como muitas gerações descobriram, invocar o
poder real do único e verdadeiro Deus era, em si mesmo, um ato de
resistência e, talvez em algumas ocasiões, o ato de resistência mais
importante que estava disponível.
Ao longo da história, o povo de Israel precisou aprender que Deus
era capaz de agir em assuntos humanos de várias maneiras, algumas delas
envolveria seu povo como agentes ativos dentro dos seus propósitos,
enquanto outras não. Mas o fator importante era a fé na soberania do
poder e da justiça de Deus, uma fé que era regularmente manifesta como
esperança diante da adversidade: a fé que o Deus de Israel já era, por
direito, o único e verdadeiro rei do mundo e que um dia Seu reinado seria
estabelecido eternamente. Em Isaías 52 está claro: a Babilónia, a maior
potência daqueles dias, cairia subitamente, e todos aqueles que eram
mantidos cativos debaixo de seu poder seriam libertos. O poder sombrio
seria deposto, o pecado do povo seria perdoado, o exílio seria desfeito e a
gloriosa Presença manifestada. Tudo isso é linguagem do reino de Deus,
resumida no excitante brado: "O seu Deus reina!".
Esse evento seria, mais do que qualquer outra coisa, um novo
"Êxodo". Até os dias de hoje, os judeus guardam o festival da Páscoa, assim
como seus ancestrais o faziam nos dias de Jesus. A páscoa relembra a
história e o festival do cumprimento da promessa do grande ato libertador
em que Deus derrotou Faraó e seus exércitos, libertou o seu povo e veio
repousar entre eles. Esse evento, assim como o novo que Isaías profetizou,
era celebrado como um sinal do reinado universal de Deus (Êxodo 15.18).
Entretanto, há uma diferença entre o Êxodo original e o novo
prometido pelos profetas. O original nada tinha a ver com o perdão dos
pecados; a escravidão no Egito nunca antes havia sido entendida como
resultado do pecado de Israel. O exílio na Babilónia, entretanto, era visto
dessa maneira. Isso quer dizer dois temas combinados em uma realidade
nova e complexa. O "novo Êxodo", que liberta Israel da opressão, também
seria o "perdão de pecados", o verdadeiro retorno do exílio. Isso prepara o
palco para as reivindicações feitas pelos primeiros cristãos sobre o que a
morte de Jesus havia conquistado. Perdão dos pecados e a deposição do
poder escravagista estavam unidos. Ambos seriam parte do significado
central da vinda do Reino de Deus na terra como é no céu.
Esse mesmo ponto coerente, porém complexo, emerge da outra
grande fonte de temas do reino sobre resistência: o livro de Daniel. Todo
esse livro, apesar das significantes altercações de género e tom, possui um
tema constante: o Deus de Israel é soberano sobre as nações do mundo, e
um dia libertará o seu povo da opressão pagã. Esse tema é expressado de
várias formas, mas entre as passagens que parecem ser relevantes para o
primeiro século e que receberam uma revigorante leitura por Jesus e Seus
seguidores, estão os capítulos 2, 7 e 9.
No capítulo 2, Daniel interpreta o sonho do rei Nabucodonosor em
que uma estátua composta de diferentes metais é esmiuçada por uma
pedra. A estátua é um símbolo da sucessão dos impérios do mundo; a pedra
representa a chegada do reinado messiânico estabelecido por Deus. Esse
tema é repetido na visão de monstros no capítulo 7, em que "um como o
filho de homem" é exaltado e recebe o reino, o poder e a autoridade.
Novamente, os monstros são obviamente impérios pagãos, e aquele "como
o filho de homem", pelo menos na versão final do livro, é o reinado
messiânico. (Isso criou um enigma para os pensadores judaicos recentes. O
que poderia significar o Messias assentado ao lado de Deus e
compartilhando a Sua autoridade?).
Depois, no capítulo 9, em uma passagem que já analisamos, Daniel
recebe uma visão de um exílio muito prolongado que finalmente termina.
Depois de "setenta semanas de anos", os pecados seriam absolvidos de uma
vez por todas. Esse será o tempo de "cessar a transgressão, para dar fim aos
pecados, e para expiar a iniquidade, e trazer a justiça eterna, e selar a visão
e a profecia, e para ungir o Santíssimo (Daniel 9.24). A passagem vai além e
alerta que dentro dessa mesma sequência de eventos, a cidade sagrada será
destruída e o Templo profanado por uma "abominação" desoladora.
Os leitores do segundo século a. C. não teriam dificuldades para
identificar os eventos descritos acima com o tempo em que os sírios
profanaram o Templo em 167 a.C. Leitores do século I d.C., incluindo os
primeiros cristãos, entenderiam naturalmente que Roma era o império
invasor e não a Síria. Tudo isso tem a ver com a vinda da multifacetada
realidade do final do exílio, o perdão dos pecados, o renovo da aliança, a
vitória sobre os poderes pagãos, a revelação da Glória divina e,
especialmente, a manifestação do reinado divino.
O reinado ou "reino" de Deus era, evidentemente, um grande tema
das manifestações públicas do próprio Jesus. Ele o relacionava com seu
trabalho. Tanto ele quanto aqueles que mais tarde contariam essa história o
relacionavam direta e dinamicamente com a sua própria morte. Somente
isso é suficiente para justificar a atenção que devemos dar ao tema do reino
de Deus em um livro sobre o significado da cruz, assim sendo, voltaremos a
esse tema em outra parte do livro. Mas também é importante observar que
a ideia de Deus sendo rei exerceu um papel maior nos movimentos
revolucionários do primeiro século, movimentos que já estavam ativos nos
dias do nascimento de Jesus e ainda mais nos anos que culminaram na
guerra Romano-judaica no tardar do mesmo século. A ideia do próprio
Jesus como rei, rei que obteve sua condição real por meio da sua morte,
pertence ao mapa dos movimentos de resistência do primeiro século. Eles
se apoiavam em tema s escriturais, particularmente em Daniel, a fim de
promover uma teologia revolucionária na qual o Deus de Israel "daria cabo
às transgressões, cessaria o pecado, perdoaria a iniquidade" e dessa forma
vencendo a vitória suprema sobre os poderes do mal. Se estamos
procurando contexto histórico em que os cristãos primitivos diziam que o
"Messias morreu por nossos pecados de acordo com a Bíblia", esse seria um
bom lugar para começar.
Para desenvolver esse tema, precisaremos examinar dois outros
assuntos mencionados há pouco: a relação do sofrimento de Israel com a
vinda do reino, a revelação do amor divino e a fidelidade da aliança que
estão debaixo de todo esse contexto. Para isso, precisaremos de um novo
capítulo.
Capítulo 7
Sofrimento, Redenção e Amor
(22.22-23, 27-28)
(50.5-6)
(53.3-4, 7-9)
"Quanto a nós é por causa de nossos pecados que sofremos e se, para nos
punir e corrigir, o Deus vivo e Senhor nosso se irou por pouco tempo
contra nós, ele há de se reconciliar de novo com seus servos. A exemplo de
meus irmãos, entrego meu corpo e minha vida em defesa às leis de nossos
pais e suplico a Deus que ele não se demore em apiedar-se de seu povo;
oxalá tu, em meio aos sofrimentos e provações, reconheças neles o Deus
único; enfim, que se detenha em mini e em meus irmãos a cólera do Todo
poderoso que se desencadeou sobre toda a nossa raça". (2 Macabeus 7.32-
33, 37-38).
"Suplico aos que lerem esse livro, que não se deixem abater por esses
tristes acontecimentos, mas que considerem que esses castigos tiveram em
mira não a ruína, mas a correção de nossa raça; porque é sinal de uma
grande benevolência a seu respeito o fato de não suportar por muito tempo
os maus e de, ao contrário, castigá-los sem tardança. Quanto às outras
nações, o Senhor espera pacientemente, antes de puni-las, que tenham
enchido a medida de suas iniquidades; a nós, porém, ele prefere não nos
tratar assim, com receio de ter que nos punir mais tarde, quando tivermos
pecado demasiadamente. Assim, não nos retire ele jamais a sua
misericórdia e não abandone seu povo, no momento em que o corrige pela
adversidade!" (2 Macabeus 6.12-16).
"Neste tempo, parece-me apropriado elogiar aqueles que por suas virtudes,
e com suas mães, morreram em n0111e da bondade e da nobreza, mas
também os chamo de abençoados pela honra que são lembrados. Todas as
pessoas, até mesmo seus torturadores, maravilharam-se com a coragem e a
força que tiveram. Assim, tornaram-se o motivo da deposição da tirania
sobre sua nação. Por sua força, conquistaram o tirano e purificaram sua
terra natal" (4 Macabeus 1.10-11, Apócrifo em Livre Tradução).
"Tu sabes, ó Deus, que pensei que poderia me salvar. Padeço em ardente
tormento em nome da lei. Sejas misericordioso com teu povo, e permitas
que nossa aflição seja suficiente para eles. Faças do meu sangue a
purificação deles, e tomes minha vida no lugar da deles" (4ª Macabeus,
6.27-29, Apócrifo em Livre Tradução).
Pois vocês são um povo santo para o Senhor, o seu Deus. O Senhor, o seu
Deus, os escolheu dentre todos os povos da face da terra para ser o seu
povo, o seu tesouro pessoal. O Senhor não se afeiçoou a vocês nem os
escolheu por serem mais numerosos do que os outros povos, pois vocês
eram o menor de todos os povos. Mas foi porque o Senhor os amou e por
causa do juramento que fez aos seus antepassados. Por isso ele os tirou com
mão poderosa e os redimiu da terra da escravidão, do poder do faraó, rei
do Egito. Saibam, portanto, que o Senhor, o seu Deus, é Deus; ele é o Deus
fiel, que mantém a aliança e a bondade por mil gerações daqueles que o
amam e guardam os seus mandamentos. (Deuteronômio 7.6-9)
Ao Senhor, ao seu Deus, pertencem os céus e até os mais altos céus, a terra
e tudo o que nela existe. No entanto, o Senhor se afeiçoou aos seus
antepassados e os amou, e a vocês, descendentes deles, escolheu entre
todas as nações, como hoje se vê. Seja ele o motivo do seu louvor, pois ele
é o seu Deus, que por vocês fez aquelas grandes e temíveis maravilhas que
vocês viram com os próprios olhos. (Deuteronômio 10.14,15, 21, cf. 4.37)
Mas agora assim diz o Senhor, aquele que o criou, ó Jacó, aquele que o
formou, ó Israel: "Não tema, pois eu o resgatei; eu o chamei pelo nome;
você é meu. Pois eu sou o Senhor, o seu Deus, o Santo de Israel, o seu
Salvador; dou o Egito como resgate por você, a Etiópia e Sebá em troca de
você. Visto que você é precioso e honrado à minha vista, e porque eu o
amo, darei homens em seu lugar, e nações em troca de sua vida. (Isaías
43.1, 3-4)
"Sem dúvida eles são o meu povo", disse ele; "são filhos que não me vão
trair"; e assim ele se tornou o Salvador deles. Em toda a aflição do seu povo
ele também se afligiu, e o anjo da sua presença os salvou. Em seu amor e
em sua misericórdia ele os resgatou; foi ele que se1npre os levantou e os
conduziu nos dias passados. (Isaías 63.8-9)
Eu a amei com amor eterno; com amor leal a atrai. (Jeremias 31.3) Graças
ao grande amor do Senhor é que não somos consumidos, pois as suas
misericórdias são inesgotáveis. Renovam-se cada manhã; grande é a tua
fidelidade! (Lamentações 3.22-23)
O Soberano YHWH vem com poder! Com seu braço forte ele governa. A
sua recompensa com ele está, e seu galardão o acompanha. Como pastor
ele cuida de seu rebanho, com o braço ajunta os cordeiros e os carrega no
colo; conduz com cuidado as ovelhas que amamentas suas crias. (Isaías
40.10-11)
"Você, porém, ó Israel, meu servo, Jacó, a quem escolhi, vocês,
descendentes de Abraão, meu amigo, eu os tirei dos confins da terra, de
seus recantos mais distantes eu os chamei. Eu disse: "Você é meu servo";
eu o escolhi e não o rejeitei. Por isso não tema, pois estou com você; não
tenha medo, pois sou o seu Deus. Eu o fortalecerei e o ajudarei; Eu o
segurarei com a minha mão direita vitoriosa. (Isaías 4 l.8-10)
"Venham, todos vocês que estão com sede, venham às águas; e, vocês que
não possuem dinheiro algum, venham, comprem e comam! Venham,
comprem vinho e leite sem dinheiro e sem custo. Por que gastar dinheiro
naquilo que não é pão e o seu trabalho árduo naquilo que não satisfaz?
Escutem, escutem-me, e comam o que é bom, e a alma de vocês se
deliciará na mais fina refeição. Dêem ouvidos e venham a mim; ouçam-
me, para que sua alma viva. Farei uma aliança eterna com vocês, minha
fidelidade prometida a Davi. (Isaías 55.1-3)
Com certeza o Senhor consolará Sião e olhará com compaixão para todas
as ruínas dela; ele tornará seus desertos como o Éden, seus ermos, como o
jardim do Senhor. Alegria e contentamento serão achados nela, ações de
graças e o som de canções. (Isaías 51.3)
(Isaías 40.10);
(Isaías 51.9-10);
(Isaías 52.10).
Parece, finalmente, que o "braço" de YHWH é revelado — na pessoa e no destino
do próprio servo:
(Isaías 53.1-2)
A única forma que isso parece fazer qualquer tipo de sentido é se, de
alguma forma, ao ter sido ungido pelo próprio espírito de YHWH (42.1), o
"servo" se tornou — de alguma forma — a personificação do poderoso e
redentor amor do Deus de Israel. Como muitas outras questões que são
lançadas nas águas turbulentas desse poderoso poema, isso não é algo sobre
o qual podemos ser dogmáticos. É como se o próprio profeta apontasse para
a escuridão, dificilmente acreditando naquilo que está dizendo. Mas ele
declara saber de três coisas: primeiro, que a redenção virá pela obra do
ungido de YHWH; segundo, que ela envolverá intenso sofrimento e morte
e por meio disso o exílio causado pelos pecados de Israel seria resolvido; e
terceiro, que essa conquista será o trabalho do próprio YHWH.
Exatamente como as seguintes passagens registram:
(Isaías 59.15-16);
(63.5,9).
“Bendito o Senhor Deus de Israel, porque visitou e remiu o seu povo, E nos
levantou uma salvação poderosa na casa de Davi seu servo.
Como falou pela boca dos seus santos profetas, desde o princípio do mundo;
Para nos livrar dos nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam;
Para manifestar misericórdia a nossos pais, E lembrar-se da sua santa aliança,
E do juramento que jurou a Abraão nosso pai,
De conceder-nos que, libertados da mão de nossos inimigos, o serviríamos sem
temor,
Em santidade e justiça perante ele, todos os dias da nossa vida”. (Lucas 1.68-75)
Mais uma vez temos o seguinte: “perdão dos pecados” é uma das
principais formas de se referir ao cumprimento das antigas promessas,
promessas cujas praticidades não seriam “ir para o céu”, mas sim a tão
aguardada e grandiosa libertação nacional. E rumo a esse objetivo que a
noção de “perdão dos pecados” e “de acordo com a Bíblia” aponta. Junto a
isso, no Novo Testamento, assim como em alguns temas das próprias
escrituras de Israel, esse objetivo se estenderá além dos judeus para o
mundo inteiro. O curto poema que Lucas atribui a Simeão, saudando o
garoto Jesus no Templo, deixa isso bem claro:
“E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco:
Que convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de
Moisés, e nos profetas e nos Salmos.
E eis que sobre vós envio a promessa de meu Pai; ficai, porém, na cidade
de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder”. (Lucas 24.44-49).
“Mas Deus assim cumpriu o que já dantes pela boca de todos os seus
profetas havia anunciado; que o Cristo havia de padecer.
Porque Moisés disse aos pais: O Senhor vosso Deus levantará de entre
vossos irmãos um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo
quanto vos disser.
E acontecerá que toda a alma que não escutar esse profeta será
exterminada dentre o povo.
Vós sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus fez com nossos pais.
dizendo a Abraão: Na tua descendência serão benditas todas as famílias
da terra.
Ressuscitando Deus a seu Filho Jesus, primeiro o enviou a vós. para que
nisso vos abençoasse, no apartar, a cada um de vós, das vossas maldades”
(Atos 3.18-26).
A última frase deve acalmar qualquer suspeita que pode ter aparecido
ao longo das últimas páginas, suspeitas que a frase “perdão dos pecados”
agora era usada de maneira puramente técnica (significando simplesmente
“fim do exílio”) sem qualquer referência às obras da iniquidade. Longe
disso. Não se trata disso ou daquilo. Meu ponto é que nas primeiras
pregações — e é muito interessante que Lucas, ao escrever (como
assumimos) em pelo menos uma geração após os eventos, não tenta injetar
nenhuma “teologia da expiação” adicional à imagem — descobrimos o
objetivo da operação de resgate de Deus muito resoluta e claramente
sustentada na narrativa e nas profecias bíblicas. Isso é o que “de acordo
com a Bíblia” realmente significa: que a narrativa escriturai da restauração
de Israel e depois, do recebimento dos não-judeus nesse povo restaurado
(embora isso ainda não esteja no escopo de Atos 2-3), foi inaugurada pela
morte e ressurreição de Jesus, e que a frase que resume tudo isso —
operando tanto em larga escala, a nível nacional, quanto em escala menor,
a nível pessoal — era “perdão dos pecados”.
Evidentemente, havia um “pecado” em particular que requereria o
arrependimento, e ele é registrado nos primeiros capítulos de Atos: a
rejeição de Jesus como Messias pelos líderes judeus. Supostamente, foi por
isso que os líderes sacerdotes e saduceus acusaram os apóstolos de tentarem
lançar sobre eles “o sangue desse homem” (Atos 5.28). A resposta de Pedro
é repetir, brevemente, o que já havia afirmado anteriormente. Ele não diz
simplesmente “nós sabemos sobre Jesus e por isso precisamos continuar a
falar sobre ele”, e sim “o que aconteceu por meio de Jesus e do Espírito é o
cumprimento das profecias de Israel”; em outras palavras, a corte não
poderia acusar os discípulos de serem desleais às tradições ancestrais de
Israel:
Deus com a sua destra o elevou a Príncipe e Salvador, para dar a Israel o
arrependimento e a remissão dos pecados. E nós somos testemunhas
acerca destas palavras, nós e também o Espírito Santo, que Deus deu
àqueles que lhe obedecem”. (Atos 5.30-32)
Ressurreição
Por onde devemos começar quando buscamos nos evangelhos a
interpretação da morte de Jesus? O primeiro fator a ser percebido é que a
crucificação, por si só, não carregava nenhum outro “significado” além
daquele mais terrível e usual. A “justiça” romana estava, novamente,
fazendo o que fazia de melhor, eliminando qualquer sinal de dissidência.
Os romanos crucificaram dezenas de milhares de jovens judeus ao longo do
primeiro século. Foi um evento familiar pavoroso. Enquanto o corpo de
Jesus era retirado da cruz para ser sepultado. Ninguém — nem os
seguidores de Jesus, nem sua mãe, nem Pôncio Pilatos, nem a multidão
zombadora — pensava: “Então ele morreu pelos nossos pecados”! Ninguém
estava afirmando “Tudo isso aconteceu de acordo com a Bíblia”! Ninguém,
com base em todas as evidências que temos, esperava que o Messias de
Israel morreria pelos pecados do mundo. Ninguém, na tarde da
crucificação de Jesus, tinha a mais vaga ideia de que um evento
revolucionário acabara de acontecer.
Realmente, Mateus e Marcos relatam que o centurião responsável
pela execução resmungou algo sobre Jesus ser verdadeiramente o “filho de
Deus”. (Em Lucas, ele declara que Jesus era inocente, concordando, assim,
com aquilo que um dos ladrões ao lado de Jesus havia dito um pouco antes;
23.47, 41). No mundo do centurião, a frase “filho de Deus” se referia a
Tibério César. Os níveis de ironia detectado pelos autores dos evangelhos,
e talvez almejado pelo próprio centurião, são profundos, mas não chegam
nem perto de algo como a confissão de fé do cristianismo primitivo.
Não. Apesar de Jesus tentar repetidamente avisar seus seguidores do
que havia de acontecer e até mesmo explicar-lhes parte do que aquilo
significaria, sua repentina prisão, julgamento e execução foram recebidos
como um terrível choque que isoladamente não tinha explicação e nem
significado. Como vimos, algumas pessoas no antigo mundo judaico
esperavam e oravam por um Messias. Os seguidores de Jesus haviam até
mesmo concluído que ele era o Messias, ainda que ele não agisse da
maneira que eles esperavam que um Messias agiria (para começar,
liderando a batalha contra as forças pagãs). Porém, ninguém imaginava
que um Messias, mesmo se um aparecesse, teria uma terrível morte nas
mãos dessas mesmas torças pagãs.
Semelhantemente, como percebemos na parte anterior do livro,
algumas pessoas no antigo mundo judaico ponderavam sobre o destino dos
mártires das gerações passadas. Talvez, assim como alguém pode ter tido a
ousadia de sugerir, seus sofrimentos, tortura, e terríveis mortes,
encontrariam uma estranha função dentro de um estranho e sombrio
plano divino no qual o sofrimento de alguns resultaria na libertação de
muitos. Mas, não há evidência de que qualquer pessoa considerava que tal
cenário de sofrimento seria imposto ao Messias. Os elementos das
interpretações tardias do cristianismo estão em ordem, mas requerem um
novo ímpeto para que entre em uma nova configuração. No entardecer da
primeira Sexta-feira Santa, ninguém estava teorizando nada que sequer
teria a aparência de “teologia da expiação”.
O primeiro impulso apareceu, de acordo com todos os registros, no
terceiro dia após a crucificação de Jesus. Assim como seus seguidores não
esperavam que ele fosse crucificado, eles também não esperavam que, após
sua crucificação, ele seria erguido fisicamente dentre os mortos. O choque,
inicialmente incompreensível, as dúvidas persistentes e a empolgação
excitante das histórias no final dos quatro evangelhos demonstram
perfeita- mente o que parece ter acontecido e o fato de que ninguém estava
esperando aquilo.
Na linguagem daqueles dias, “ressurreição” não significava “ir para o
céu”; não significava que Jesus, ou talvez “sua alma”, sobreviveria de
alguma maneira. Era precisamente isso que não significava. Havia palavras
que denotavam esse tipo de sobrevivência sem corpo post-mortem. Muitas
pessoas em várias culturas considerariam normal uma sobrevivência como
essa de alguém que havia morrido recentemente. Muitos judeus do
primeiro século acreditavam na “ressurreição do corpo” dessa maneira.
Mas para eles, esse seria um último grande evento no qual o povo de Deus
voltaria da morte no final. Seria o ponto de inauguração do novo mundo
de Deus, da sua nova criação e da “era vindoura”. Aconteceria com todo o
povo de Deus no final, não com uma pessoa só, principalmente não no
meio da história (como aconteceu), com toda a desordem e confusão do
mundo ainda existente. Como eu e outros argumentamos detalhadamente
em outro lugar, a única maneira que podemos entender o primeiro século
é afirmar que os seguidores de Jesus realmente acreditavam que ele havia
sido corporalmente erguido dos mortos e que isso significava que a “nova
era” de Deus havia, de alguma forma, começado.
A única maneira de entendermos isso é afirmar que eles não estavam
enganados ou iludidos, e sim contando a verdade, ainda que fosse uma
verdade para qual o mundo não estivesse preparado: a de que Jesus estava
completamente vivo novamente, de fato, mais pleno e mais corpóreo do
que antes. Ele atravessou a morte e saiu do outro lado, e seu corpo foi o
início da nova criação. Não era uma discussão sobre a “ressurreição”, mas
sobre um tipo de corpo novo e transformado. E — mesmo que isso
requeira tempo para explicar — esse novo corpo parecia estar situado nas
duas dimensões interligadas da realidade criada, aquilo que a Bíblia chama
de “céu” e “terra”, ou seja, o espaço de Deus e o espaço da humanidade.
Tudo isso e muito mais foi dado com o extraordinário e inesperado evento
da ressurreição de Jesus.
E com essa ressurreição, encontramos os começos da interpretação da
crucificação. A cruz teve seu significado sob a luz do que aconteceria
adiante.
Todos naquele mundo, assim como todos no nosso mundo, sabiam
que as pessoas mortas não voltam à vida, muito menos reaparecerem em
um novo e transformado corpo. Algo deve ter acontecido que tornou isso
possível. Se a porta da prisão está aberta, alguém teve que destrancá-la e
talvez derrotado os carcereiros no processo. Algo sobre a morte de Jesus
parecia ter esse efeito. De acordo com Lucas, o próprio Jesus começou esse
processo de interpretação quando explicou aos discípulos na estrada de
Emaús que a sua morte não foi simplesmente um terrível erro, um trágico
acidente, e sim o estranho cumprimento da longa narrativa das escrituras
de Israel. E dentro dessa narrativa, encontramos, como veremos passo a
passo, o significado profundo da reivindicação de que a sua morte foi
“pelos nossos pecados”. A fórmula pela qual os primeiros cristãos
resumiram sua crença básica (“O Messias morreu pelos nossos pecados de
acordo com a Bíblia”) está enraizada na história do que havia
verdadeiramente acontecido.
A ressurreição de Jesus não gerou, de imediato, qualquer coisa como
a “teologia da expiação”. As histórias da ressurreição em todos os
evangelhos canônicos e a passagem semelhante no início do livro de Atos
são repletas de uma interpretação densa e fascinante acerca do que havia
acontecido, mas nenhuma delas sequer começa a oferecer interpretação da
própria morte de Jesus — com a importante exceção, como vimos há
pouco, de que o Jesus de Lucas havia explicado que era necessário que o
Messias sofresse como parte do plano divino (24.26). Mas nem o Jesus de
Lucas, nem ninguém, explica o porquê disso.
Tampouco, como temos visto, existe qualquer explicação desse tipo
subsequente do livro de Atos. Isso é ainda mais surpreendente não
somente porque Atos foi certamente escrito depois que Paulo escreveu
todas as suas cartas (imagine a tentação de incluir uma cena ou duas na
qual Paulo ou qualquer outra pessoa explica parte da teologia das epístolas
paulinas), mas também porque, como veremos a seguir, Lucas possuía uma
crença deveras sofisticada da cruz, a qual ele costurou dentro da narrativa
em vez de deixá-la aparente como uma fórmula. Parece que para todo o
mundo, o pensamento de que “o Messias morreu pelos nossos pecados”,
ainda que tenha sido o eixo da fórmula popularmente aceita no começo
dos anos 50, não foi imediatamente deduzido do fato de que, após sua
morte, Jesus ressuscitou.
Ouvindo os Evangelistas
Todos os quatro evangelhos contam a história de Jesus como o tão
esperado retorno do Deus de Israel. Esse tema, tão ignorado no passado,
veio à tona em recentes análises acadêmicas. Quando Marcos abre seu
evangelho alinhando João Batista aos mensageiros proféticos de Malaquias
3 e Isaías 40, o objetivo é que aqueles mensageiros estejam preparando o
caminho não somente para a vinda do Messias, mas para o próprio YHWH.
Quando João abre seu evangelho com múltiplos ecos de Gênesis e Êxodo,
trazendo o prólogo ao seu ápice no versículo 14 com o Verbo se tornando
carne e revelando a Glória divina e, no versículo 18, com a revelação do
Pai, que nunca antes fora visto, por meio do Filho, ele está montando o
cenário para que seus leitores entendam que Jesus não é simplesmente o
“Filho de Deus” como no sentido do rei Davi do Salmo 2, 2 Samuel 7 e
assim por diante. O Jesus de João é a personificação viva do Deus criador,
do Deus da aliança de Israel. A linguagem messiânica do “Filho” divino é
discernida como o veículo perfeito (datando desde o próprio Jesus, como
podemos pensar) para expressar isso. Quando Mateus escreve sobre o anjo
contando a José que seu filho se chamaria “Emanuel”, “Deus conosco”, e
depois, quando termina seu evangelho com Jesus dizendo aos seus
seguidores que ele estaria com eles por toda a eternidade, leitores
atenciosos sabem que toda a história deve ser lida tendo isso em mente. A
narrativa de Lucas sobre o nascimento de Jesus é ainda mais clara,
referindo-se à criança no ventre de Maria como “santo, Filho de Deus”
(Lucas 1.35). Quando o evangelho de Lucas está perto do seu ápice, a
entrada de Jesus em Jerusalém deve ser vista como o momento em que o
Deus de Israel estava, finalmente, “visitando o seu povo”, isto é, voltando
em pessoa para julgar e resgatar (19.44). Há muito mais que se poderia ser
dito para preencher essa imagem. Mas isso é o suficiente para os nossos
propósitos aqui.
Não devemos nos surpreender quando todos os evangelhos contam a
história de Jesus de tal forma a enaltecer, repetidamente, seu senso de
compaixão e amor, o que já devemos ter percebido ser uma característica
notável. Esse não era o caso para potenciais figuras messiânicas no mundo
judeu do Segundo Templo. Não sabemos o quanto desejamos saber a
respeito dos líderes e dos supostos Messias, os quais encontramos
rapidamente nas páginas de Josefo ou até mesmo a respeito de Simão bar
Kokhba, que liderou uma fracassada revolta quase cem anos após a carreira
pública de Jesus. Mas não recebemos deles a impressão de caráter tal como
a que encontramos nas histórias sobre Jesus. Nem, ao que importa, João
Batista demonstra ser o tipo de pessoa que poderia alegar ter um coração
“gentil e não arrogante” ou que oferecia aos seus seguidores “o descanso
que tanto precisavam” (Mateus 11.28-29).
E aqui que as antigas tradições que retratam um Jesus romântico ou
sentimental nos decepciona. Estamos tão acostumados com a imagem
enternecida de um Jesus gentil, manso e com as reações que essa imagem
provoca, enfatizando a ocasional dureza de Jesus contra os fariseus e
outros, que talvez não tenhamos percebido quão estranho é ter uma
grande figura pública que está andando sobre uma tênue linha entre
afirmar tradições antigas, criticar os abusos que existiam e que é
conhecido, ao mesmo tempo, por ter uma abordagem profundamente
afetuosa a todos os tipos de pessoas, especialmente aquelas que sofriam. O
motivo de enfatizar isso aqui não é simplesmente o fato de que isso é uma
importante característica dos evangelhos facilmente negligenciada, e sim
que para todos os quatro evangelistas isso constrói, deliberadamente e
explicitamente, a imagem da morte de Jesus não em termos de um pai
raivoso atacando um filho indefeso, mas em termos de alguém
personificando o amor do próprio Deus, agindo como a expressão pessoal
daquele amor até a sua morte.
Se mais atenção tivesse sido dada a essa característica, que está
inserida na narrativa e não explicitamente apresentada em uma ou duas
passagens bíblicas, comentários, ou mesmo algum “aparte” do autor,
algumas das mais preocupantes características antibíblicas da chamada
“teologia da expiação” — e as ramificações sociais e culturais que algumas
vezes as acompanham — poderiam ter sido evitadas. João, como vimos,
abre o seu registro dos eventos que culminaram na morte de Jesus
enfatizando que essa era a concretização do constante amor de Jesus (13.1).
Mas tal ponto não está sozinho. Para João, essa realização enaltece e
esclarece o que estava implícito em cada passagem que Jesus transforma a
vida das pessoas de todos os tipos; metáforas bíblicas, tal como a do “bom
pastor”, afirmam a mesma coisa.
O “centro de massa” do retrato de Jesus em todos os evangelhos é a
crescente hostilização que é direcionada a ele, à sua mensagem e às suas
conquistas. Argumentei em outro lugar (contra algumas correntes
preocupantes no pensamento contemporâneo que desejam fazer a história
de Jesus se sustentar totalmente sozinha sem nenhum contexto histórico)
que todos os evangelhos canônicos são diligentes em ligar a história de
Jesus à grande narrativa de Israel, indo desde as tradições proféticas
(Marcos 1; Lucas 1-2), Abraão (Mateus 1), Adão (Lucas 2) até a própria
criação (João 1). Mas isso não significa de maneira nenhuma, como alguns
imaginaram, que os evangelistas estavam simplesmente enxergando a
história de Israel como um tipo de “revelação progressiva”, um tipo de
desenvolvimento crescente que desencadeia no repentino surgimento de
Jesus como um cumprimento final. A história de Israel nunca foi vista
assim, nem mesmo ao ser recontada positivamente como no Salmo 105 (e
de toda forma, aqui, o salmo 106 vem logo em seguida trazendo à tona
todo o tom sombrio). A correspondência da história do povo escolhido,
passo a passo, e, às vezes, um estudo extraordinário o qual prova que a
história nas sombras e na desgraça é a longa história do mal.
O mal aparece de muitas formas nas escrituras de Israel. Ele é visto
detalhadamente em toda a iniquidade das gerações anteriores e posteriores
da história do dilúvio e, depois, na arrogância louca de Babel. Mas, depois
do chamado de Abraão, jamais recebemos a impressão de que o “mal”
existe apenas fora da família de Abraão. O próprio Abraão parece ter
defeitos profundos, assim como todos os seus sucessores, inclusive Jacó,
cujo novo nome, “Israel”, torna-se a designação da sua família por toda a
eternidade. Moisés começa sua vida pública com um homicídio
premeditado. Os livros de Josué e Juízes não poupam a reputação da nova
nação. Inclusive os grandes reis — como Davi, Salomão, Ezequias e Josias
— possuem defeitos graves e danosos. O sacerdócio não é nada melhor. E
quanto aos profetas — bom, para cada profeta que parece genuinamente
dedicado a ouvir e anunciar a verdadeira palavra de YHWH, parece haver
centenas de outros que dirão qualquer coisa que as pessoas, especialmente
autoridades, querem ouvir. O próprio exílio, como vimos, indica o maior
fracasso de Israel e suas consequências. O “mal” não é um ponto casual no
radar, ou um problema que pode ser posto de lado, ou imputado às outras
nações. Ele é universal. De acordo com as escrituras de Israel, o mal está
evidenciado em Israel assim como em qualquer outro lugar.
“Agora pois, ó Senhor, olha para as suas ameaças, e concede aos teus servos
que falem com toda a intrepidez a tua palavra, enquanto estendes a mão
para curar e para que se façam sinais e prodígios pelo nome de teu santo
Servo Jesus” (Atos 4.29-30).
Substituição Representativa
O que agora irei sugerir é que, dentro desse grande quadro, os
evangelistas também explicaram como esse “perdão dos pecados”, esse “fim
do exílio”, veio a ser. Veio a ser porque um se posicionará em favor de
muitos, porque Jesus morreu, inocentemente, suportando a punição que
ele mesmo retirou dos seus colegas judeus como um todo. Veio a ser
porque desde o início, Jesus estava redefinindo a natureza do reino em
relação radical à autonegação e à generosidade, e parece que isso nunca
havia sido uma demanda ética, mas, em seu cerne, uma vocação pessoal.
Veio a ser porque, por meio da carreira pública, Jesus estava redefinindo o
próprio poder e sua violenta morte seria a demonstração final dessa
redefinição. As afirmações acima resumem algumas correntes de João,
Lucas, Mateus e Marcos e devemos distingui-las com mais precisão. (Cada
uma pode ser expandida em um capítulo inteiro, pelo menos. Minha meta
aqui é esboçar, não aprofundar nos detalhes).
Para João, Caifás declara a verdade, ainda que para ele fosse apenas
uma manobra política. “Não percebeis que vos é melhor que morra um
homem pelo povo, e que não pereça toda a nação” (João 11.50). João
comenta que Caifás, o sumo sacerdote daquele ano, estava inspirado a
profetizar, mesmo que ele não concordasse com isso. Isso significava,
afirmou João, “que Jesus morreria pela nação judaica, e não somente por
aquela nação, mas também pelos filhos de Deus que estão espalhados, para
reuni-los em um povo” (João 11.51-52).
Isso aponta para a verdade que é posteriormente articulada de outra
perspectiva no capítulo 12. Quando alguns gregos chegam procurando por
Jesus, esse comenta que quando ele “for levantado da terra, atrairá a todos”
(João 12.32). Quando o “príncipe do mundo” for “expulso”, todos que
foram mantidos cativos sob seu reinado estarão livres. Essa corrente de
pensamento faz sentido na crença que, enraizada nas escrituras de Israel,
aquilo que Deus finalmente faz por Israel terá repercussões globais. Essa é
a raiz teológica profunda da missão aos gentios, até então impossível, mas
agora, com a vitória sobre as forças das trevas, uma possibilidade aberta. O
servo morrerá pela nação e, portanto, fará para o mundo aquilo que Israel
foi chamado para fazer, mas não conseguiu, libertando as nações de seus
antigos cativeiros para que eles agora se tornem um com o povo de Deus. A
mesma corrente de pensamento é visível na Primeira Epístola de João:
“Jesus Cristo, o Justo... é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente
pelos nossos, mas também pelos pecados de todo mundo” (1 João 2.1-2). E
assim também vemos passagem por passagem em Paulo.
Saindo da Epístola de João e de volta ao seu Evangelho, há pistas e
sinais que Jesus está levando sobre si a sentença de outros. João teceu isso
dentro da grande narrativa da vitória de Jesus sobre “o príncipe do
mundo”. Assim, no início do capítulo 8, a multidão está pronta para
apedrejar a mulher adúltera; e no final do mesmo capítulo, é o próprio
Jesus a quem desejam apedrejar. Quando os soldados prendem Jesus, ele
insiste para que deixem seus companheiros irem (18.8; João explica isso
com uma referência àquilo que Jesus disse em 17.12 sobre não perder
nenhuma das pessoas que o Pai lhe deu). Tudo isso acontece sob o grande
tema registrado nas notórias imagens bíblicas:
Caso tenhamos perdido o ponto, Lucas repete, dessa vez, por meio de
um estranho diálogo entre dois criminosos crucificados ao lado de Jesus:
“Então ele disse: ‘Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino’”
(Lucas 23.42).
“Jesus lhe respondeu: ‘Eu lhe garanto: hoje você estará comigo no paraíso’”
(Lucas 23.43).
“Está escrito: ‘E ele foi contado com os transgressores’; e eu lhes digo que
isto precisa cumprir-se em mim. Sim, o que está escrito a meu respeito está
para se cumprir” (Lucas 22.37, citando Isaías 53.12).
“Jesus os chamou e disse: “Vocês sabem que aqueles que são considerados
governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem
poder sobre elas.
Não será assim entre vocês. Pelo contrário, quem quiser tornar-se
importante entre vocês deverá ser servo; e quem quiser ser o primeiro
deverá ser escravo de todos.
Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir
e dar a sua vida em resgate por muitos” (Marcos 10.42-45).
Aqui vemos a completa integração daquilo que parece ter sido, para
as futuras gerações, as duas chaves para o significado da crucificação de
Jesus. Um novo tipo de poder seria liberado sobre o mundo, e seria o poder
do amor que nada poupou. Esse é o cerne da revolução que fora iniciada na
Sexta-feira Santa. Não podemos derrotar o tipo comum de poder por meios
comuns. Se uma força conquista a outra, ela ainda é uma “força” que
vence. Ao contrário, no cerne da vitória de Deus sobre os poderes do
mundo reside um amor generoso, o qual, em obediência à antiga vocação
profética, dará a sua vida como “resgate para muitos”. Assim como está
registrado em Isaías 53, o qual é inferido por aquela frase, a morte de um
em favor de muitos será a chave pela qual os poderes são depostos, o reino
de Deus é manifestado (com a gloriosa Presença divina no campo de visão
dos guardas em vigília sobre os muros de Jerusalém), a aliança renovada e a
criação restaurada ao seu propósito original.
Marcos 10.35-45 contém em si aproximadamente toda visão
complexa, porém coerente, do Novo Testamento. Visão que trata como a
morte de Jesus no lugar dos pecadores completou sua vocação de Messias
de Israel e derrotou os poderes tenebrosos que haviam escravizado o
mundo. A nova Páscoa foi obtida pelo “perdão dos pecados” que pôs fim ao
exílio, sendo que o perdão foi alcançado por aquele que se colocou no lugar
de muitos outros. Se formos resumir o que Marcos nos contou, tanto nessa
passagem (embora não tenhamos o tempo de acompanhá-la totalmente)
quando em seu evangelho como um todo, podemos afirmar que “o Messias
morreu pelos nossos pecados de acordo com a Bíblia”.
Isso, claro, nos aponta para Paulo, onde encontramos esse resumo
registrado e explicado. Mas, antes de chegarmos lá, há algumas reflexões
que devemos fazer acerca da morte de Jesus nos evangelhos.
Primeiro, é essencial enxergar que Mateus, Marcos, Lucas e João não
estão apenas nos contando em uma linguagem descritiva algo que
“realmente” pertence a uma fórmula dogmática. Na verdade, é o contrário.
A fórmula é uma narrativa portátil, uma história de muitos níveis. A
história é a realidade — porque é a história da realidade, da realidade
histórica, da realidade em carne e sangue, a realidade de Israel, a realidade
de vida e morte. A tendência à platonização na teologia cristã — pela qual
o objetivo da expiação tem visto não como o reino de Deus chegado na
terra como é no céu, e sim como o povo de Deus sendo resgatado da terra e
levado para o paraíso — também nos ensinou por implicação a diminuir o
significado das narrativas dos evangelhos para que eles se tornem meros
veículos que demonstram outra coisa, ilustrações da “verdade” em vez de
“exposições” dela, a maneira pela qual, na versão de João, “o Verbo se fez
carne”.
No que concerne aos quatro evangelistas, então, o significado da
morte de Jesus não é um tema que deve ser abstraído de sua narrativa ou
imposto sobre ela. O significado da morte de Jesus não é uma verdade
“celestial” para a qual essa história “terrena” é apenas uma simples analogia
ou arquétipo. Nem é, tampouco, a verdadeira história um simples plano de
fundo contra o qual um drama “sobrenatural” ou não histórico é atuado. A
marginalização dos quatro evangelhos dentro de boa parte da teologia da
“expiação” comum não é um mero acidente. É o resultado direto e a longo
prazo pelo qual a “expiação” tem sido vista como uma transação
acontecendo, como foi, em pleno ar, com resultados que são apenas
remotamente relacionados à própria vida humana e à contínua história da
humanidade.
O “objetivo” tem sido visto como uma ideia distante de “ir para o
céu”, e uma vez que os evangelhos não estão falando sobre isso (embora
estejam cientes do futuro pós-morte), mas sobre o reino de Deus vindo na
terra como é no céu, eles foram colocados de lado, sendo só
ocasionalmente mencionados a fim de se obter a estranha afirmação fora
de contexto para servir aos propósitos que uma teologia posterior visava.
Uma passagem como a de Marcos 10.45, com sua alusão a Isaías 53, tem
sido retirada de contexto e feita para servir ao “contrato de obras” em vez
da “aliança da vocação”, na qual, em toda a Bíblia, os pecados são
absolvidos a fim de que a humanidade possa ser libertada e se tornar
portadora da imagem, parte dos maiores propósitos do Deus criador. A
visão da cruz em todos os quatro evangelhos não nos permite descansar
contentes com um entendimento desprendido do reino ou da expiação.
Segundo, portanto, antes de entrarmos em Paulo, encontramos o
desafio da cruz nos alcançando de novas formas. Ela é de fato
revolucionária. Nada é perdido. Não precisamos desistir da ideia de Jesus
“morrendo por nossos pecados” obviamente. De fato, isso permanece
central. Mas essa ideia recebe um novo foco, com uma nova
contextualização, colocada dentro não da narrativa da petulância divina,
mas da inquebrável aliança divina do amor, incorporada na pessoa, na
vida, nas ações e nos ensinamentos de Jesus. Isso significa que para
tomarmos isso para nós mesmos e para nos beneficiarmos da história, não
basta acreditarmos em uma doutrina abstrata, nessa ou naquela teoria
sobre o “funcionamento” da “expiação”. Sem dúvidas isso pode ajudar,
embora distorções possam surgir com as abstrações.
Não, os evangelhos nos convidam para fazermos dessa história a
nossa história, para vivermos dentro da narrativa em todas as suas
reviravoltas e surpresas, para nos vermos entre as multidões que seguiam
Jesus e testemunharam suas obras, para nos vermos na continuação a longo
prazo daquela narrativa que chamamos, tremendo e temerosamente
(porque conhecemos suas ambiguidades), de vida da igreja. Em especial,
como os seguidores de Jesus sabiam desde o começo, devemos fazer dessa
história a nossa própria história mediante as repetidas ceias nas quais a
Última Ceia é trazida à vida novamente. Se foi assim que Jesus desejou que
seus seguidores não somente entendessem, mas também se apropriassem
do significado da morte que ele em breve sofreria, temos todas as razões
para levá-las a sério como sinal e prévia do reino, carregando nelas a
certeza de que nós também somos aqueles que tomam parte no “perdão dos
pecados”. E, com isso, os evangelhos dão àqueles que os leem a energia e o
senso de direção para que se tornem o povo das bem-aventuranças para o
mundo, sabendo que a vitória foi conquistada na cruz, que Jesus já está
estabelecido como o senhor do mundo e que esse caminho de paz e
reconciliação tem se mostrado mais poderoso do que todos os poderes do
mundo.
Existe um momento em particular nas histórias dos evangelhos de
Mateus e Marcos para o qual devemos voltar, porque somente sob a luz de
todo o quadro podemos começar a abordá-lo em toda sua complexidade.
Esse é o famoso clamor de Jesus na cruz que está em Mateus 27.46 e
Marcos 15.34: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” Tenho
afirmado que todos os quatro evangelistas viram Jesus como a
personificação do próprio YHWH, o Deus de Israel, e que enxergaram sua
conquista de manifestação do reino, até a sua morte na cruz, como a
conquista do próprio Deus. Não se trata de um homem tentando dobrar o
braço de Deus, como na célebre ilustração (utilizada por Albert
Schweitzer) de Jesus se atirando na frente da locomotiva da história e
colocando-a em rumo oposto. Trata-se do Senhor da história vindo em
pessoa, na pessoa que representou o povo que carregava a promessa, que
faria aquilo que precisava ser feito. Como, então, pode esse Deus
personificado clamar “meu Deus” dizendo que havia sido abandonado?
Quando voltarmos a essa questão seremos capazes não somente de
responder isso, mas de mostrar como essa resposta opera dentro da vida e
da obra dos seguidores de Jesus nos desafios e nas realidades sombrias do
mundo.
Capítulo 11
Paulo e a Cruz (Separado dos Romanos)
“Pois a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para
nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus. Os judeus pedem sinais
miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos a
Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura
para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como
gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. Porque a loucura
de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais
forte que a força do homem” (1 Coríntios 1.18, 22-25).
“Pois eu lhes digo que Cristo se tornou servo dos que são da circuncisão,
por amor à verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos
patriarcas, a fim de que os gentios glorifiquem a Deus por sua
misericórdia, como está escrito: “Por isso, eu te louvarei entre os gentios;
Cantarei louvores ao teu nome”. (Romanos 15.8-9)
Gálatas
O tema da união não está mais claro em nenhum outro lugar a não
ser na tão mal-entendida Carta aos Gálatas. Apesar das repetidas suposições
dos estudantes, professores e pessoas da igreja, Gálatas não fala sobre a
“salvação”: nem tal palavra, nem “salvar”, nem “salvador” são encontradas
na carta. É claro que a ideia de “salvação” é subentendida, assim como
vemos em muitos paralelos com Romanos, em que “salvação” é um grande
tema e os termos relacionados a ela aparecem regularmente. Mas o
argumento central de Gálatas não tem nada a ver com “como ser salvo”.
Pensar o contrário — sem considerar que o tradicional “contrato de obras”
é o enquadramento apropriado para responder essa questão — é deixar
passar todo o tema da carta, é forçar a linguagem de Paulo a dizer o que
não diz e, portanto, impedi-la de dizer o que ela de fato diz.
Essa epístola é sobre unidade: o fato de que no Messias,
particularmente por meio de sua morte, o Deus verdadeiro fez o que havia
prometido a Abraão. Ele lhe deu uma única família na qual os judeus e
gentios que creram formavam um só corpo. O que Paulo diz sobre a cruz
em Gálatas está totalmente direcionado a esse fim: por causa da cruz, todos
os cristãos estão no mesmo nível. E se esse é o objetivo da cruz em Gálatas,
receberemos uma compreensão muito melhor dos “meios”. Como está
registrado em outro lugar neste livro, nosso esforço é resgatar “o objetivo”
de suas interpretações platônicas de “ir para o céu” e os “meios” de suas
interpretações pagãs de um “Deus irado punindo Jesus” — dessa forma
transformando a percepção comum daquilo que a “teologia da expiação”
pode ser, deixando de ser um mistério sombrio e desconfortável e se
tornando uma verdade enérgica e relevante.
“Revelar a verdade” é de fato a essência de Gálatas. Para Paulo, os
eventos messiânicos da morte e da ressurreição de Jesus (mesmo que, como
a “salvação”, a ressurreição seja pouco citada aqui) tratam de revelar a
vitória que Deus havia conquistado, por meio de Jesus, contra os “poderes”
que mantiveram as nações que não eram judias em cativeiro sob a opressão
de suas pseudodivindades e que, da mesma forma, mantiveram os judeus
escravizados debaixo do poder do pecado. Como sempre, quando Paulo e
outros autores da Bíblia falam sobre o povo sendo liberto do cativeiro, eles
estão ecoando a história da Páscoa e a narrativa do Êxodo. Não há
exceções. Mas antes de entrarmos nesse ponto, que está de fato no cerne da
nossa narrativa, devemos olhar rapidamente para o começo e para o fim. É
claro que a morte do Messias está dirigindo todo o argumento.
Primeiro, para reiterar, temos a seguinte afirmação:
“A vocês, graça e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo,
que se entregou a si mesmo por nossos pecados a fim de nos resgatar desta
presente era perversa, segundo a vontade de nosso Deus e Pai”. (Gálatas
1.3-4).
"Quanto a mim, que eu jamais me glorie, a não ser 11a cruz de nosso
Senhor Jesus Cristo, por meio da qual o mundo foi crucificado para mim, e
eu para o mundo. De nada vale ser circuncidado ou não. O que importa é
ser uma nova criação. Paz e misericórdia estejam sobre todos os que
andam conforme essa regra, e também sobre o Israel de Deus". (Gálatas
6.14-16)
“Já os que são pela prática da lei estão debaixo de maldição, pois está
escrito: ‘Maldito todo aquele que não persiste em praticar todas as coisas
escritas no livro da Lei’. Cristo nos redimiu da maldição da lei quando se
tornou maldição em nosso lugar, pois está escrito: ‘Maldito todo aquele
que for pendurado num madeiro’. Isso para que em Cristo Jesus a bênção
de Abraão chegasse também aos gentios, para que recebêssemos a
promessa do Espírito mediante a fé”. (Gálatas 3.10, 13-14)
“Porque eu, pela lei, estou morto para a lei, para viver para Deus. Já estou
crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a
vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé do filho de Deus, o qual me
amou, e se entregou a si mesmo por mim”. (Gálatas 2:19-20)
Coríntios
Há muitas passagens na correspondência de Paulo com Corinto nas
quais ele bebe do significado da cruz de Jesus para fundamentar os pontos
básicos que ele está construindo. Em nenhum momento ele oferece
qualquer tipo de exposição completa do que a cruz conquistou, ou de como
ou porque ela o conquistou. Já percebemos a maneira pela qual, em 1
Coríntios 1-2, ele parece se maravilhar com o fato de que a mensagem de
um Messias crucificado é escandalosa para os judeus e pura loucura para os
que não são judeus — e que quando os “poderes dessa era” se apressaram e
crucificaram “o Senhor da glória” eles estavam, por implicação, assinando
seus próprios atestados de óbito. Aqui e em muitos outros lugares,
desejamos que Paulo tivesse usado mais palavras para explicar exatamente
o que ele queria dizer, incluindo o motivo e a forma como essa morte teve
tal efeito. Em diversos momentos, ele busca em várias imagens da Páscoa,
particularmente a necessidade de se livrar do “fermento” e a ideia de ser
“redimido” por um preço, e de insistir que o povo do Messias precisa
abandonar os padrões de vida que pertencem ao antigo cativeiro. Isso
implica que sua audiência já estava razoavelmente familiar com a história
do Êxodo e, portanto, conseguiam fazer as conexões:
“Alimpai-vos, pois, do fermento velho, para que sejais uma nova massa,
assim como estais sem fermento. Porque Cristo, nossa páscoa, foi
sacrificado por nós. Por isso façamos a festa, não com o fermento velho,
nem com o fermento da maldade e da malícia, mas com os ázimos da
sinceridade e da verdade... Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do
Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de
vós mesmos? Porque fostes comprados por bom preço; glorificai, pois, a
Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus”. (1
Coríntios 5.7-8, 6.19-20).
E com ainda mais ênfase retórica, ele explica a verdadeira vida apostólica
de sofrimento e angústias como algo a se recomendar e não como algo para
se envergonhar:
Filipenses
Uma passagem, de uma das epístolas que Paulo escreveu na prisão, Filipenses,
pode aparecer aqui. O famoso poema em Filipenses 2 articula a crucificação: cada uma
das duas metades do poema consiste de estrofes de três versos, e o verso do meio age
como uma ponte nas duas direções, trazendo um sentido chocante e revolucionário:
“Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação set igual a Deus,
Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,
Fazendo-se semelhante aos homens;
E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo,
sendo obediente até à morte, e morte de cruz.
Por isso, também Deus o exaltou soberanamente,
e lhe deu um nome que é sobre todo nome;
Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus,
e na terra, e debaixo da terra,
E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor,
para Glória de Deus Pai” (2.6-11).
“Completai o meu gozo, para que sintais o mesmo, tendo o mesmo amor, o
mesmo ânimo, sentindo uma mesma coisa. Nada façais por contenda ou
por vangloria, mas por humildade; cada um considere os outros superiores
a si mesmo. Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada
qual também para o que é dos outros” (Filipenses 2.3-4).
O poema então dispõe a história de Jesus não apenas como um
exemplo a ser seguido, mas também, por assim dizer, o lugar onde esse tipo
de vida é encontrado. O “lugar” é o próprio Messias, “em quem” seu povo
encontra sua identidade: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus”
(2.5). Eles já pertencem a ele e essa é a sua “atitude”, logo, eles deveriam
operar da mesma forma não porque estavam apenas o copiando, mas
porque “a mente” de Cristo estava em operação neles.
Mas isso nos traz uma pista de como Paulo pelo menos entende a
lógica da cruz por baixo da superfície do poema. O Messias era o Senhor de
todos, mas ainda assim se fez escravo. Ele era todo poderoso, mas se tornou
fraco. Ele era igual ao Pai, mas se recusou a tirar vantagem de sua posição.
Acrescente nisso os ecos de toda a passagem de Isaías 40-55,
particularmente os poemas do “servo”, e podemos ir além: ele era inocente,
ainda assim morreu no lugar dos culpados. Essa é a forma que a cruz
estabelece o reino de Deus: suportando afim de remover o peso do pecado
e da morte. O reino de Deus é estabelecido pela destruição do poder da
idolatria, e os ídolos são empoderados porque os humanos, quando pecam,
entregam-lhes o seu poder. Trate o pecado e os ídolos são esmiuçados.
Trate o pecado e o mundo glorificara a Deus.
Há muitas coisas incríveis sobre esse poema, mas precisamos
enfatizar uma em particular. Paulo escreveu essa epístola na década de 50
do primeiro século, ou seja, menos de 30 anos depois da execução de Jesus.
Ou ele escreveu esse poema para utilizá-lo nessa epístola, o que é bem
possível, ou ele estava citando um poema que ele ou alguma outra pessoa
havia escrito. O poema é uma obra-prima de teologia bíblica comprimida.
Só podemos ficar maravilhados pela combinação de informação e
expressão que podem abranger muito em meras setenta e seis palavras
gregas. O que isso me diz é que desde o começo da primeira igreja a moeda
comum era, primeiro, que a morte de Jesus estabeleceu o reino de Deus;
segundo, que isso se deu por causa da sua identificação na forma de servo
com a humanidade em pecado, compartilhando sua morte e carregando
seus pecados; e, em terceiro, que essa ação não era algo que Jesus fez apesar
do fato de que ele era “a forma de Deus” e “igual a Deus”, e sim algo que
ele fez porque era tais coisas. Seja lá qual for a maneira como o Novo
Testamento conta a história da cruz, ela sempre será a história do generoso
amor divino.
Colossenses
Uma passagem de outra “carta da prisão” que é essencial para nossos
propósitos é Colossenses 2.13-15:
“Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude, e por
meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra
quanto as que estão no céu” (Colossenses 1.19-20).
★ ★ ★
“Porque, aquilo que a lei fora incapaz de fazer por estar enfraquecida pela
carne, Deus o fez, enviando seu próprio Filho, à semelhança do homem
pecador, como oferta pelo pecado. E assim condenou o pecado da carne, a
fim de que as justas exigências da lei fossem plenamente satisfeitas em nós,
que não vivemos segundo a carne, mas segundo o Espírito”. (Romanos 8.3-
4)
“Que diremos, pois, diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será
contra nós? Aquele que não poupou a seu próprio Filho, mas o entregou
por todos nós, como não nos dará juntamente com ele, e de graça, todas as
coisas? Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem
demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem
altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz
de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”.
(Romanos 8.31-32, 38-39).
“Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu
sangue, demonstrando a sua justiça. Em sua tolerância, havia deixado
impunes os pecados anteriormente cometidos; mas, no presente,
demonstrou a sua justiça, a fim de ser justo e justificador daquele que tem
fé em Jesus”. (Romanos 3.25-26).
Quase toda palavra nessa densa afirmação tem recebido diferentes
interpretações ao longo de diferentes períodos da história da igreja,
principalmente nas últimas duas ou três gerações. Há um motivo para isso,
o qual devemos analisar de imediato, porque ele está relacionado com a
principal preocupação deste livro.
Os primeiros quatro capítulos de Romanos têm sido lidos por muitos
anos como se fossem uma declaração do nosso velho amigo, o “contrato de
obras”. Supunha-se que os humanos deveriam se comportar — eles não se
comportaram. Deus precisava puni-los, mas Jesus intercedeu, então Deus
perdoou a todos (desde que acreditassem em Jesus). Em vez de irem para o
inferno, agora eles podem alcançar o paraíso. Isso, com pequenas variações,
tem sido a maneira que Romanos 1-4 é lido. Esses capítulos e essa
interpretação são frequentemente chamados de “Estrada de Romanos”.
Quando as pessoas nas igrejas pregam e ensinam o tipo de visão que tenho
alertado neste livro, é para Romanos que eles vão para “provar” o que estão
dizendo.
Estou convencido que isso é um erro. É por isso que precisamos,
neste capítulo e no próximo, olhar para Romanos com muito mais afinco.
Não podemos evitar, agora, o trabalho de ler o texto minuciosamente.
Tenho sugerido nos capítulos anteriores que os quatro evangelhos são
muito mais importantes do que se acredita no entendimento da visão cristã
primitiva daquilo que a morte de Jesus alcançou. Porém, mais cedo ou mais
tarde, precisamos voltar para Romanos. Debates acerca do significado da
morte de Jesus no Novo Testamento tendem a ruir ou permanecer de pé
aqui.
“Pois eu lhes digo que Cristo se tornou servo dos que são da circuncisão,
por amor à verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos
patriarcas, a fim de que os gentios glorifiquem a Deus por sua
misericórdia, como está escrito: ‘Por isso, eu te louvarei entre os gentios;
Cantarei louvores ao teu nome’” (Romanos 15.8-9).
“Como agora tomos justificados por seu sangue, muito mais ainda seremos
salvos da ira de Deus por meio dele!” (Romanos 5.9).
A “ira” de Deus foi mencionada por Paulo como a principal ameaça à raça
humana em 1.18. Isso foi reafirmado em 2.5 (“Por causa da sua teimosia e
do seu coração obstinado, você está acumulando ira contra si mesmo, para
o dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento”). A
maioria das pessoas, ao lerem 3.24-26, pensam e depois tentam demonstrar
que Paulo está afirmando que essa “ira” cai sobre Jesus em vez de cair sobre
seu povo, que Deus pôs Jesus como uma “propiciação”, uma forma de
desviar a ira. Essa é a posição que eu acatei em meus comentários e em
meus livros. Mas há um problema com essa leitura. Aqui, em Romanos 5.9,
Paulo se refere a ser “justificado por seu sangue”, o que é um claro resumo
de 3.21-26, e depois afirm a que como resultado dessa “justificação”, os
crentes serão salvos por Jesus da ira que ainda está para vir. Isso não parece
certo. Se a ira foi abordada em 3.24-26 — em outras palavras, mediante a
morte de Jesus, apresentado na presente “justificação” — então por que
Paulo falaria sobre ela novamente no capítulo 5 e no futuro? A resposta,
penso eu, está em 8.1-4, para a qual voltaremos em breve.
De toda forma, tendo sua esperança assegurada por causa da morte
do Messias, Paulo pode analisar toda a narrativa bíblica, desde Adão até o
Messias (5.12-21). Se o chamado de Deus de Abraão e a aliança que ele fez
com ele foi feita para resgatar o mundo da sua condição, esse propósito
agora estava conquistado no Messias, ou mais: o Messias havia inaugurado
a nova criação, não um simples retorno à criação original. Portanto, o
“muito mais” (Romanos 5.15 e 17). Consequentemente, também a
promessa que aqueles que recebem a abundância da graça divina “reinarão
em vida” (v. 17). Aqui está, mais uma vez, o objetivo da salvação, a
restauração da verdadeira identidade humana, da aliança da vocação na
qual os humanos são chamados para ser o sacerdócio real. A passagem é
densa, mas quando a analisamos com calma, tudo faz sentido se estiver
dentro desse contexto. O “Projeto Adão” em que os humanos deveriam
compartilhar o domínio de Deus sobre a criação está em andamento
novamente.
Por meio de tudo isso, a morte de Jesus é referida de várias maneiras.
Ela é “a dádiva pela graça de um só homem, Jesus Cristo” (Romanos 5.15),
“a dádiva de Deus” (Romanos 5.16), “a imensa provisão da graça”
(Romanos 5.17), “um só ato de justiça” (Romanos 5.18), “obediência de um
único homem” (Romanos 5.19) — sendo as últimas coisas um eco da
“obediência até a morte” de Filipenses 2.8. Tudo isso é visto como o
trabalho da “aliança fiel da justiça de Deus”, que é uma frase que se esforça
para traduzir e descompactar a densa linguagem que Paulo usa no
versículo 21. E tudo, em particular, é sobre a inauguração do reino de Deus
ou da “graça” (5.21). A ideia do “reino da graça” é um sinônimo para o
reino de Deus, que é visto como reino da graça divina.
Tudo isso, em outras palavras, é uma linguagem do reino de Deus.
Desse modo Deus inaugurou sua soberania sobre a terra assim como é no
céu. Foi assim que ele resgatou os seres humanos para que fossem parte de
uma nova realidade, para que fossem participantes ativos, não apenas
beneficiários. Uma vez que foram libertados do pecado, eles podem
exercer suas funções novamente — um ponto de considerável relevância
quando pensamos como essa “revolução” funciona dentro e mediante os
seguidores de Jesus dos nossos dias. Tudo isso, entretanto, declara que Deus
resgatou a humanidade mediante a morte de Jesus, vista de vários ângulos
diferentes, mas complementares. Porém, ele ainda não explica como isso
tem sido feito. Temos um vislumbre da meta, mas não dos meios. Isso
ainda há de vir.
Paulo colocou isso dentro dessa narrativa de Adão e do Messias, o
tema mais sombrio da Lei Judaica: “A lei foi introduzida para que a
transgressão fosse ressaltada. Mas onde aumentou o pecado, transbordou a
graça” (5.20). Qual o significado disso? Teologias mais antigas, incluindo o
“contrato de obras” como se entende frequentemente, enxergaram a Lei
Judaica como o equivalente dos comandos originais dados a Adão e Eva. As
pessoas pensavam que era o padrão moral que Israel deveria manter para
que fosse o povo de Deus. Era o teste moral que as pessoas no geral, e Israel
em particular, precisava gabaritar para que fossem consideradas “justas”
diante de Deus. Logo, nessa mesma análise do contrato de obras, tornou-se
claro que Israel não conseguiria obedecer a lei. A “lei” passou então a ser
vista como um poder negativo, perigoso e talvez até demoníaco. De acordo
com algumas pessoas. Deus deu a lei para aterrorizar as pessoas com o
prospecto de julgamento, a fim de que elas corressem para o evangelho a
fim obter alívio. Isso parece fazer sentido, desde que você aborde tudo isso
a partir de um ponto de vista do contrato de obras. Mas não é isso, porém,
que Paulo tem em sua mente.
O que Paulo tem em mente é uma história muito mais complexa que
ele desenvolverá no capítulo 7. Essa história é sobre o estranho e
inesperado propósito divino de dar a lei — e é isso que ele teceu, como
prévia — na história de Adão e do Messias do capítulo 5. “A lei”, ele
afirma, “foi introduzida para que a transgressão fosse ressaltada”. As
palavras “para que”, em itálico, são vitais. Paulo está dando dicas de que a
história muitas vezes sombria e trágica de Israel, a longa “descida” para a
maldição de Deuteronômio, não era em si o propósito divino. Essa descida,
sob a lei, seria o meio pelo qual a redenção chegaria, Mesmo o próprio
exílio, a grande jornada debaixo da maldição da lei, fazia parte desse
propósito de salvação. O “para que” indica que essa era a intenção de Deus.
Não foi um acidente. Tampouco uma intrusão demoníaca ao propósito
divino.
Percebemos que, particularmente no final de Romanos 5, Paulo, à
sua maneira, fez exatamente o que enxergamos nos quatro evangelhos. Ele
contou a história de como “Deus se tornou rei" de tal forma que
demonstrasse que a morte de Jesus era a indicação desse resultado. Nesse
ponto, parecemos estar bem próximos de um ponto central e quase
universal da percepção cristã primitiva acerca do que o evangelho se
tratava e como seu poder foi liberado. Se assim for, devemos estar menos
surpresos que Paulo, como os outros evangelhos ao descreverem os últimos
dias de Jesus, discerne o significado daqueles dias sendo a nova Páscoa, o
novo Êxodo.
“Porque bem sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido
sob o pecado. Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não
faço, mas o que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto
com a lei, que é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas
o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha
carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não
consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que
não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas
o pecado que habita em mim. Acho então esta lei em mim, que, quando
quero fazer o bem, o mal está comigo”. (Romanos 7.14-20).
“Mas agora, bem separado da lei (embora a lei e os profetas tenham sido
testemunhas), a justiça da aliança de Deus [dikaiosyne] foi demonstrada. A
justiça da aliança de Deus se manifestou através da fidelidade de Jesus, o
Cristo, em benefício de todos aqueles na fé. Pois não existe distinção: todos
pecaram, todos ficaram aquém da glória de Deus — e pela graça de Deus
são gratuitamente declarados justos [dikaiouneuoi], para que sejam
membros da aliança mediante a redenção que é encontrada em Cristo
Jesus. Deus enviou e fez de Jesus o propiciatório, através de sua fidelidade
e do seu sangue. Ele assim o fez para demonstrar sua justiça da aliança
[dikaiosyne], por causa dos pecados antes cometidos sob sua paciência. Isso
se deu para demonstrar sua justiça da aliança [dikaiosyne] no presente: isto
é, que ele próprio é justo [dikaios], e que ele declara a justiça [dikaioutai]
para todos aqueles que confiam na fidelidade de Jesus". (Tradução Livre).
Ele concorda — e sim, ele teria insistido nesse ponto — que esses
privilégios são concedidos para que Israel se torne luz para as nações:
“E confias que és guia dos cegos, luz dos que estão em trevas, instruidor
dos néscios, mestre de crianças, que tens a forma da ciência e da verdade
na lei”. (Romanos 2.19-20).
Deus não desistiu do seu plano de trazer luz para o mundo através de
Israel. Além do mais, a “fidelidade de Deus” com esse plano (em oposição a
outros planos) é exatamente o significado de “a justiça de Deus”, como 3.5
esclarece. Em uma tradução literal, o começo daquele versículo registra:
“Mas se a nossa injustiça estabelece a justiça de Deus...” Isso define o tom.
Paulo finalmente chega à conclusão da primeira grande seção de Romanos
(1.18-3.20) com um problema complexo a ser resolvido. Se Deus deve
revelar a sua “justiça”, esses problemas precisam ser resolvidos.
Primeiro, temos o problema subjacente à idolatria, à injustiça e ao
“pecado”. Isso está claro e não foi embora. Ele não foi, como algumas
pessoas acham, removido por conta de toda essa conversa de aliança e da
vocação de Israel. Também não devemos esquecer que o problema com o
“pecado” não foi apenas a quebra das leis morais, mas a idolatria e a
consequente falha em entender a verdadeira vocação humana e refletir a
glória de Deus no mundo: “Todos pecaram e destituídos estão da glória de
Deus” (3.23). O pecado importa, então, por trás dele, a idolatria também.
Tudo isso precisa ser resolvido para Deus colocar o mundo em seu devido
lugar.
Mas, em segundo lugar, temos o problema da fidelidade de Deus com
a aliança. Diante do problema da idolatria e do pecado (1.18-2.16), Deus
chamou Israel para ser a luz do mundo (2.17-24), tendo estabelecido
mediante sua aliança com Abraão aquilo que o daria uma família global
(4.1-25). Seria deveras estranho se Deus houvesse feito promessas de
resgate para o mundo através de Israel e da família de Abraão, e depois
respondido à falta de fé de Israel sendo, ele mesmo, infiel com essas
promessas. Romanos 4 trata a aliança que Deus fez com Abraão em Gênesis
15, não se trata, portanto, de uma afirmação deslocada sobre alguém nas
escrituras antigas que foi “justificado pela fé”. Não é simplesmente uma
evidência das escrituras ou de uma “doutrina” que Paulo citou em
Romanos 3. Abraão não é um mero “exemplo” da maneira que a graça de
Deus opera ou do modo que alguns seres humanos têm fé.
Quando Paulo cita Gênesis 15.6 em Romanos 4.3 (“Creu Abraão em
Deus, e isso lhe foi imputado justiça”), ele invoca todo o capítulo, assim
como suas referências frequentes e suas citações deixam claro. Para ter
certeza, Paulo insiste que a fé de Abraão (no Deus que ressuscita os
mortos) é, em sua essência, a mesma fé cristã (que Deus ressuscitou Jesus
dos mortos). Mas isso acontece dentro do grande contexto da aliança.
Gênesis 15, por fim, é onde Deus estabeleceu com Abraão a aliança: ele o
dará uma família de muitas nações, e isso envolve não apenas uma “terra
prometida”, mas todo o mundo. E isso que Paulo afirma em Romanos 4.13,
sugerindo que ele está lendo Gênesis sob a luz dos Salmos, tais como os
Salmos 2 e 72, nos quais a “herança” é estendida sob o domínio do Messias
de um pedaço do território até toda a criação. E isso, por sua vez, depende
(como ele afirma em 4.5) de que a promessa a Abraão signifique que Deus
“justificaria os ímpios”, em outras palavras, que Deus pegaria os
“pecadores” do mundo e os traria, perdoados, para sua família. (A nota vital
de perdão dos pecados é enfatizada nessa citação de Salmos 32, em
Romanos 4.6-8). A família em questão, Paulo deixa claro em 4.17-22, é a
família que compartilha com Abraão a verdadeira adoração de Deus
(“fidelidade”). Abraão, ao contrário daqueles que são mencionados em
1.18-23, “não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas foi
fortificado na fé, dando glória a Deus” (4.20-21).
A questão que Paulo enfrenta em 3.21-26 é, então, o problema duplo
do pecado humano e da idolatria, por um lado, e da fidelidade divina, por
outro. Essa passagem central está cercada de passagens que falam da
fidelidade divina com a aliança com Abraão e com sua família sendo o
meio pelo qual essa condição humana será resolvida.
Tudo isso significa uma mudança vital da leitura tradicional de
Romanos para uma verdadeiramente paulina. Paulo não está dizendo
“Deus justificará os pecadores pela fé para que possam ir para o céu, e
Abraão é um exemplo avançado disso”. Ele está dizendo: “Deus fez uma
aliança com Abraão a fim de lhe dar uma família global de pecadores
redimidos que se transformaram em adoradores fiéis, e a morte de Jesus é a
maneira pela qual isso acontece”. Isso se une com a implicação clara de
2.17-20: Deus chamou Israel para ser a luz do mundo, a resposta do
problema da idolatria humana e do pecado.
A leitura habitual de Romanos 3.21-26 está, portanto, sitiada. Ela é
apenas uma redução superficial daquilo que Paulo realmente está dizendo.
O Pecado e Deus providenciando o perdão na morte de Jesus são
inquestionavelmente centrais, mas isso está determinado dentro das
grandes questões da idolatria (e, portanto da adoração verdadeira) e do
compromisso de Deus em resgatar o mundo através da família de Abraão:
Israel. Nem Romanos 1.18-3.20, nem Romanos 4 se preocupa com o
pecado e a justificação, como na leitura comum. Eles se preocupam com
ambos, mas os enquadram dentro da questão do culto e da questão da
aliança. Se existem sinais que Romanos 3.21-26 também se trata do culto e
da aliança, devemos assumir que isso é o que Paulo pensa que está falando.
Podemos nos aproximar ainda mais. Romanos 3.27-31, a ponte entre
a nossa passagem-chave e o capítulo 4, é totalmente sobre a união dos
judeus e dos gentios, circuncidados e incircuncisos, na base da pistis, “fé”, o
que parece ser uma efetivação adicional às pistas que Paulo deixou em 2.2-
29. E no cerne de Romanos 3.27-31 está a firme declaração de que Deus,
aquele em quem tanto os judeus quanto os gentios devem crer, é o Único
Deus de Israel: o monoteísmo judaico está no centro da justificação pela
qual os gentios e os judeus passam ser parte de uma mesma família remida.
Toda a passagem, de 2.17 a 4.25, é sobre a aliança de Deus com Israel e por
meio de Israel para o mundo e sobre a verdadeira adoração no cerne dessa
aliança, a adoração do único e verdadeiro Deus, que substitui a idolatria de
1.18-23 e desfaz o pecado de 1.24-32.
Assim, antes de entrarmos em qualquer especificidade dessa
passagem, está claro que a leitura tradicional de 3.21-26 tem excluído esses
contextos de significados maiores. Também é possível que Paulo tenha ido
de um assunto a outro diferente e depois retornado. Alguns têm tentado
ler o texto dessa forma. Mas dentro de uma escrita tão entrelaçada como
essa, a grande probabilidade é de que o autor deseja que a parte opaca
central (opaca para nós, supostamente não para ele!) seja uma ponte
transparente entre o que aconteceu e o que virá a seguir. O que aconteceu
com a leitura tradicional, ao contrário, é que um significado determinado
foi deduzido para 3.21-26 e as passagens que precedem ou procedem esse
trecho foram lidas sob a luz desse significado deduzido, distorcendo
ambos.
Dessa forma, percebemos que 3.25-26 ao menos parece falar da
aliança fiel de Deus, a dikaiosyne theou, então não devemos considerar
como “formulações judaicas cristãs” aquilo que Paulo citou anteriormente
e que depois ele altera ansiosamente, e sim que isso é de fato o tópico
principal. A fidelidade de Deus com a aliança de Israel, mesmo tendo
garantido a falha em larga escala de Israel como um todo, resultará no
resgate de todo o mundo pecador. Devemos considerar que é a isso que a
passagem se refere.
Da mesma forma, quando percebemos que a afirmação principal da
passagem (que Deus enviou Jesus para ser o propiciatório) utiliza a palavra
hilasterion, que nas escrituras se refere à tampa da “arca da aliança”, o
lugar onde Deus purifica Israel dos pecados para que ele e o seu povo possa
se encontrar, devemos considerar que ele está falando da forma na qual a
verdadeira adoração está sendo restaurada no lugar da idolatria. Paulo não
está simplesmente invocando uma “metáfora de culto” junto a uma de
“corte da lei”, por um lado, e uma metáfora de “mercado de escravos”, por
outro. Ele está pensando na restauração do verdadeiro culto, a verdadeira
adoração: o Deus verdadeiro purificando o povo de toda infração a fim de
que o verdadeiro encontro, o coração da aliança, possa acontecer.
Essas considerações não nos desapontam. A aliança é de fato o
contexto; a restauração da verdadeira adoração é o objetivo. A passagem é
sobre Deus abordando o pecado. Mas a maneira que Deus o faz é,
primeiramente, cumprindo suas antigas promessas da aliança e, em
segundo lugar, lidando com a idolatria, o problema subjacente de toda
infidelidade humana. Em outras palavras, Deus está revelando sua “justiça”
mediante a fidelidade da morte do Messias de Israel, Jesus. Tentar entender
Deus lidando com o pecado, nessa passagem, sem centralizar a aliança e o
culto é optar por um entendimento superficial e enganoso. Precisamos
colocar o raciocínio de Paulo nos eixos se queremos entender seu ponto
central, a morte de Jesus como a forma de lidar com o pecado.
Tudo isso é reforçado quando olhamos para as passagens que
continuam imediatamente o argumento maior de 1.18-4.25. Em 5.1-2,
Paulo ressalta que o resultado da fidelidade de Deus é como a restauração
do “acesso” à “graça” e como a esperança “da glória”. E, como em 5.6-11
esclarece, tudo que Paulo disse está sustentado na inquebrável aliança de
amor do verdadeiro Deus: “Deus demonstra seu amor por nós” em 5.8 é a
dimensão ampliada da “justiça da aliança de Deus que foi demonstrada” em
3.21. Isso aponta para a cena final de Romanos 1-8, na qual (8.31-39)
encontramos a justificação enraizada na morte de Jesus como a expressão
efetiva do amor divino. Nessa passagem, o culto renovado está focado no
próprio Jesus, à direita de Deus, intercedendo pelo seu povo: o rei, em
outras palavras, agindo como sacerdote (8.34). Não temos espaço para
desenvolver esse tópico aqui, mas ele aumenta o forte senso que em 3.21-
26, que no relato de qualquer pessoa deve ser visto como a virada principal
no argumento, estamos lidando não com o “contrato de obras” como se
entendeu na tradicional “Estrada de Romanos”, mas com a aliança e o culto
pelos quais Deus lida com os pecados e cria um povo global remido e
adorador.
Agora, vamos tomar um fôlego e nos aprofundar nos complexos
detalhes dessa passagem.
A Redenção Re-imaginada
A Fidelidade da Aliança de Deus
Romanos 3.21-26 endossa seu próprio tema com uma ênfase tão
firme que não podemos perdê-la: a dikaiosyne theou, a “justiça de Deus”.
Paulo enfatiza isso nos versículos 21 e 22, e depois em 25 e 26:
“Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para
demonstrar a justiça da sua aliança [dikaiosyne] pela remissão dos pecados
dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da justiça
da sua aliança [dikaiosyne] neste tempo presente, para que ele seja justo
[dikaios] e justificador [dikaioutai] daquele que tem fé em Jesus”.
(Romanos 3.25-26, grifos do autor).
Justificado Pela Fé
Antes de entrarmos no nosso propósito principal de olhar essa
passagem — de entender o que Paulo está dizendo sobre a morte de Jesus
— precisamos olhar, rapidamente, para o resultado dessa demonstração da
fidelidade da aliança divina. Todos que creem, Paulo declara, são
“justificados”. O contexto duplo que já temos há muito percebido (como a
“justiça da aliança de Deus”) providencia um significado duplo
intimamente interconectado a essa noção famosa e complexa. Por um lado,
todos os que creem são declarados membros da família de Abraão, da
mesma forma, por exemplo, em Gálatas 3.29. “Justificação” é a declaração
da aliança, estabelecendo uma família única que compartilha a pistis
messiânica. Da mesma forma, por outro lado, a justificação significa que
essa família agora é declarada justa. Entre as primeiras afirmações acima,
encontramos a resposta de Romanos 2.17-29, que termina com uma nota
enigmática sobre Deus redefinindo o seu povo. A segunda, responde à
questão mais complexa de 2.1-16: o juízo final está chegando, e as pessoas
serão justificadas ou condenadas. O último significado está, de fato,
próximo da superfície das mentes atenciosas que leem esse trecho por
conta da repetitiva linguagem legal de 3.19-20: toda boca se calará, e todo
o mundo será responsabilizado diante de Deus; a própria Torá será incapaz
de resgatar qualquer um e poderá apontar somente o pecado.
O que precisamos entender é que esses dois contextos de significado
não devem se colidir. Eles andam em fila indiana. Deus escolheu Abraão
para reverter o pecado de Adão; Deus deu a Israel a tarefa de trazer a luz
para o mundo. A promessa e o propósito da aliança sempre objetivaram
lidar com o pecado. Deus não perdoaria o pecado de nenhuma outra forma;
isso é parte do ponto de 3.1-5. E Deus não seria fiel à aliança se não
perdoasse os pecados; toda a narrativa de Gênesis se rebela contra a ideia. E
por isso que, enquanto explica Gênesis 15 em Romanos 4, Paulo enfatiza o
perdão (4.6-8). Como de costume, não devemos separar o que Paulo
(seguindo as escrituras!) manteve unido.
Essa “justificação” acontece no presente, como Paulo diz em 3.21 e
3.26. A sentença do futuro, como em 2.1-16 e 8.31-39, já foi anunciada no
presente. Isso nos dá uma dinâmica particular da famosa teologia da
justificação de Paulo e é o resultado direto do que aconteceu no Messias.
Quando Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos, ele não apenas declarou
que Jesus era o seu “filho” (1.3-4), aquele que ele “enviou” para o mundo a
fim de cumprir seu propósito (8.3-4); ele também o justificou contra
acusações de que era o falso Messias, declarando que ele também era justo.
Isso pode ser visto como uma sentença legal, com dois significados iguais
(da aliança e forense) como anteriormente: Jesus realmente era o
representante de Israel, o Messias, cumprindo os propósitos da aliança de
Deus; e Jesus era “justo”, apesar da sentença que o havia enviado para a
morte.
E com essa declaração, anunciada na ressurreição de Jesus, Deus
também complementou que aqueles que estivessem “no Messias”
receberiam a mesma atribuição: “Sendo justificados gratuitamente pela sua
graça, pela redenção que há em Cristo Jesus” (Romanos 3.24). A
justificação acontece em Cristo Jesus. O que Deus disse a respeito de Jesus
em sua ressurreição, Deus diz a respeito de todos os que estão “nele”. As
pessoas, algumas vezes, colocam a linguagem da justificação contra a
linguagem da incorporação, mas isso é claramente um erro. Vimos o
mesmo ponto (ser justificado no Messias) em Gálatas 2.17 ou em Filipenses
3.9.
É por isso que, resumindo o argumento de 4.24-25, ele afirma que
Jesus foi entregue por causa das nossas iniquidades e ressuscitado para a
nossa justificação. Ou seja, não é que a ressurreição de Jesus cause essa
“justificação”. Na verdade, ela é o sinal de que essa justificação aconteceu, a
princípio, na cruz. Como Paulo afirma em Romanos 5.9, somos justificados
“pelo seu sangue”; e, como ele declara em 1 Coríntios 15.17: “Se o Messias
não ressuscitou... vocês ainda estão no pecado” — uma afirmação e tanto.
Aqui estamos próximos da essência da teologia de Paulo e, de fato, a deste
livro: na cruz a verdadeira revolução aconteceu, e a ressurreição é o
primeiro sinal de que ela aconteceu. Entre os muitos resultados da
ressurreição, a justificação possui um lugar vital, parcialmente porque se
trata da certeza que os pecados foram perdoados, mas também por causa da
segurança da filiação à família de Abraão (Gálatas 3). Atrás de ambos
resultados, existe para Paulo um sentido de que, na vitória da cruz, os
poderes que controlavam o mundo e os ídolos que subjugaram a
humanidade foram derrotados. Como em João 12.30-32, esse é o passo
necessário para que os povos do mundo sejam libertos de seus atuais
“governantes” e sejam atraídos ao Messias de Israel.
De toda forma, o objetivo da justificação “no presente” é que ela
antecipa a sentença que será anunciada no dia do juízo final. Essa sentença
final, seja de condenação ou justificação, foi descrita em 2.1-16, e Paulo
sinaliza esse momento em 8.31-39 — mas com o conhecimento de que
“não há condenação para aqueles que estão em Cristo, Jesus (8.1), porque
Deus já havia condenado o pecado (8.3). O que Paulo está afirmando é que
em Romanos 3, essa sentença Já é conhecida quando alguém “acredita
naquele que ressuscitou dos mortos, Jesus nosso Senhor” (4.24). Um dos
temas de Romanos 5-8 é a explicação de como a sentença pronunciada no
presente corresponde àquela que será dada no futuro (com as pessoas sendo
ressuscitadas, assim como Jesus). Mas essa não é nossa preocupação aqui.
Até agora, vimos que 3.21-26 anuncia a revelação da ação da justiça
de Deus, cumprindo as promessas a Abraão e o propósito de Israel. Vimos
que isso foi efetivado em Jesus, o Messias de Israel, quando recebeu sobre
si a vocação para a qual Israel foi infiel. Vimos que isso resulta na
declaração da aliança de “justificação”, no “agora”, para todos os que
acreditam. Precisamos nos mover com cuidado a partir de agora, a fim de
ver o que Paulo afirma sobre como essa complexa revelação da aliança
aconteceu.
A Vocação de Servo
Nossa explanação de Romanos 3.21-26 nos introduziu a uma
combinação de temas que parecem soar um resoluto acorde que é,
discutivelmente, a maior parte do maior livro profético de Israel. Isaías 40-
55, como um todo, fala sobre a revelação da fidelidade da aliança divina ao
derrotar os deuses da Babilônia e libertar o povo de Deus do inimigo
pagão. Ele antecipa, em outras palavras, um novo Êxodo. Mas esse poema
também é, do começo ao fim, sobre a maneira pela qual esse ato envolverá
o perdão dos pecados de Israel e como isso será feito por meio da fiel
obediência de uma estranha figura que, em um nível, é Israel (“Tu és meu
servo; és Israel, aquele por quem hei de ser glorificado” Isaías 49.3) e em
outro, posiciona-se acima de Israel, representando o povo e fazendo por
eles o que eles não puderam fazer por conta própria. Dentro da
dramaticidade do poema, todas essas linhas de pensamento se unem no
anúncio do reino de YHWH em 52.7-12 e na quarta canção final do Servo
em 52.13-53.12. Se o exílio é a punição do pecado de Israel, essa punição
agora recai sobre o “servo”. Ele representa Israel; sua obediência fiel é
oferecida no lugar da infiel desobediência de Israel. E se o exílio é o
resultado da idolatria de Israel, o “servo” revela, em ação, o “braço de
YHWH”, demonstrando o Deus de Israel diante das nações para que todos
possam ser convocados a adorar:
“Ora, não só por causa dele está escrito, que lhe fosse tomado em conta,
mas também por nós, a quem será tomado em conta, os que cremos
naquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor; o qual por
nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação”.
(Romanos 4.23-25).
De certo, isso não é uma citação direta de Isaías 53, embora existam
várias semelhanças. Ninguém que conhecia Isaías 53, especialmente a
versão grega, perderia essa semelhança. Embora Paulo tenha feito essa
afirmação de uma maneira nova, essa conclusão tem êxito ao resumir o
grande argumento e reivindicar, poderosamente, que aquilo que aconteceu
em Jesus cumpre não somente a Torá, como registrado na referência de
Gênesis 15 no total de Romanos 4, mas também o que foi dito pelos
profetas. E isso que Paulo reivindica em 3.21, e que agora demonstrou.
Mas a resolução desse problema, essas pisaduras que nos sarou (Isaías
53.5), têm o seu devido significado e o seu sentido apropriado não dentro
do moralista contrato de obras, como um tema abstrato do pecado e da
punição, mas dentro da aliança da vocação, da aliança do
compartilhamento da glória. A vocação humana, a vocação de Israel e a
vocação de Jesus. A vocação de Deus. A encarnação está, de fato, no cerne
de Romanos 3. Mas a encarnação aqui não é a alternativa à eleição e aos
propósitos de Deus para o povo de Abraão. Jesus em si mesmo, e em sua
morte, é o lugar onde Deus encontra o seu mundo, o lugar onde
finalmente une o céu e a terra, removendo por intermédio do seu sangue
as impurezas do pecado e da morte que teriam tornado esse encontro
impossível. “Se quando éramos inimigos de Deus”, escreve Paulo
resgatando o presente discurso novamente, “fomos reconciliados com ele
mediante a morte de seu Filho, quanto mais agora, tendo sido
reconciliados seremos salvos por sua vida” (Romanos 5.10)! Exato! Não é
sobre obras realizadas ou não. E não tem nada a ver com “punição”. Trata-
se de vocação, trata-se de Templo, trata-se de amor.
Amor (outro grande tema de Isaías) é, afinal, o significado mais
profundo detrás do vocabulário de Paulo acerca da “justiça da aliança”. A
aliança é, afinal, o casamento de Deus e Israel. Paulo utiliza essa linguagem
em muitas passagens em que fala sobre o Messias e o seu povo — um sinal
certo de que ele parece enxergar em Jesus a personificação humana do
Deus de Israel. (Algumas vezes, dou-me a tarefa de utilizar a palavra
“personificação” nesse contexto como se estivesse evitando utilizar
“encarnação”. Na verdade, não estou. Simplesmente prefiro os termos
traduzidos aos latinos — particularmente quando termos em latim foram
tão utilizados que nem todos os seus propósitos apropriados são visíveis). E
para esse casamento e para esse propósito que Deus tem sido fiel. Esse é o
motivo pelo qual em Romanos 5-8, ao levantar todo significado daquilo
que afirmou nos capítulos 3 e 4, Paulo pode falar do amor divino sem
nenhuma ambiguidade — o amor ágape — e também do amor do Messias
(8.31-39). O Capítulo 8, como um todo, é a gloriosa celebração do céu e da
terra, cheia de uma linguagem do Templo, que segue o encontro do céu e
da terra no envio de Jesus em cumprimento da aliança do capítulo 3.
Então, o que ele diz quando olhamos de volta para Romanos 3.21-26?
Essa passagem insiste que leiamos o que Paulo diz aqui sobre a morte de
Jesus sob a luz da grande narrativa da aliança, desde Abraão, durante a
história do Êxodo, e até o exílio e a questão do perdão definitivo que
desfaria tal exílio e cumpriria o propósito original da aliança. E no cerne
disso, o que descobrimos não é uma punição arbitrária ou abstrata
sentenciada para uma vítima inocente, e sim o Deus vivo vindo em
incógnito (“A quem se manifestou o braço do Senhor?” — em outras
palavras, “Quem teria pensado que ele era YHWH em pessoa e em
poder?”) para receber sobre si a consequência da idolatria de Israel, do
pecado e do exílio que trouxe ao foco a idolatria, o pecado e o exílio de
toda raça humana. Expulso do jardim, o ser humano acabou planejando
Babel. Expulso de Canaã, Israel acabou na Babilônia. Depois de Babel,
Deus chamou Abraão e fez uma aliança constituída sobre promessas com
ele; depois da Babilônia, aquelas promessas foram cumpridas.
Aqui vemos uma pista para uma distinção importante. O exílio não é
uma punição arbitrária. Se Israel adorava outros deuses em vez de YHWH,
era impossível que permanecessem na terra — e era impossível que a
gloriosa Presença de YHWH permanecesse ali também. Ao adorar outros
deuses, o povo de Deus se vendeu como escravo. A escravidão do exílio
era, então, a consequência do que Israel havia feito. Ela também pode ser
vista como “punição”, e essa é a imagem que Isaías 53 utiliza
repetidamente (“Ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído
por causa das nossas iniquidades... e pelas suas pisaduras fomos sarados... o
Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos” [Isaías 53.5-6]). Mas
Isaías enquadrou essa descrição da morte do servo dentro do grande poema
sobre a fidelidade de Deus à aliança, sua vitória sobre os ídolos, sua solução
para o exílio, o renovo da aliança (capítulo 54) e a renovação da criação
(capítulo 55). Nosso estudo de Romanos indica que Paulo também possui
essa exata narrativa em mente em vez do contrato de obras truncado no
qual a “punição” é o tema central.
Isso significa que o vocabulário de “punição” deve ser usado com
cautela. Seria fácil, nesse ponto, perder o nosso equilíbrio voltando mais
uma vez para o “contrato de obra”. Alguém pode dizer: “Muito bem, então
Paulo estava se referindo a Isaías 53, isso quer dizer que ele acreditava na
expiação penal substitutiva, então podemos continuar contando a história
como temos feito”. Paulo responderia: “Devagar aí”! O vocabulário de
Isaías e Paulo possuem seus devidos significados dentro da grande história
de Deus e Israel, dos propósitos da aliança de Deus por meio de Israel para
o mundo. Não podemos retirar essa linguagem do contexto sem modificá-
la. (Considere o que aconteceu quando o vocabulário de “resgate” foi
retirado do seu contexto bíblico e colocado sozinho, gerando questões
erradas sobre para quem o preço do resgate deveria ser pago).
A ideia da “punição” é, na realidade, uma metáfora afiada para a
consequência que está registrada em abundância em toda história de Israel
— assim como quando Paulo está falando sobre o pecado e seus resultados
em Romanos 1, ele repete três vezes que “Deus os abandonou”. O estilo de
vida de concupiscências e imundícia que ele descreve não são arbitrários, e
sim o resultado, a consequência da idolatria original. Isso não significa que
Deus não está envolvido nessas consequências. Deus, como o Criador,
odeia a idolatria e a desumanização que distorce e danifica seu belo mundo
e suas criaturas. Se não fosse assim, Deus não seria Deus e sim um
burocrata imprudente e anônimo.
Mas se pegarmos a metáfora da “punição” e a tornamos central, uma
narrativa muito diferente surge. A mesma coisa acontece se pegarmos uma
frase como “a justiça de Deus” e a tornamos em uma fórmula medieval
acerca do padrão moral que precisamos, que Deus possui e que Deus
atribui ao seu povo. Neste caso, transformamos o significado do primeiro
século em algo que, como já vimos, distorce tudo de Romanos 1-4 e perde
muitas nuances importantes de Paulo. A leitura normal de Romanos 3
como “contrato de obras” e “punição” que recai sobre Jesus para que nós
sejamos poupados, é apenas mais uma distorção. E como se alguém pegasse
a metáfora vivida de Paulo sobre toda a criação em dores de parto e a
tornasse o principal elemento de Romanos 8, insistindo nelas e lendo o
restante do capítulo com a referência de uma mulher de verdade entrando
em trabalho de parto. Alguém só faria isso, obviamente, se tivesse perdido
de vista o significado do resto do capítulo; e é exatamente isso que
aconteceu com a tradição cristã enquanto a história de Israel tem sido
negligenciada e outros temas surgido para substituí-la.
Se Paulo está apontando para “punição” nessa passagem, ela só pode
significar o que significa em Isaías, que tem a ver com o “servo” cumprindo
a vocação de Israel e simultaneamente com o “servo” personificando o
próprio YHWH, o poderoso “Braço de YHWH”, para levar sobre si a
consequência da rebeldia, da idolatria e do pecado de Israel para que esse e
o mundo pudessem ser resgatados. Ele atrairá sobre si os resultados do
pecado de Israel — a hostilidade pagã contra o povo de Deus — a fim de
esgotá-lo e criar um novo caminho.
Mas se o “servo” é de fato o “braço de YHWH” manifestado em um
israelita moído, sofrido e irreconhecível, então uma nova possibilidade
emerge no cerne de Romanos 3.21-26. A principal culpa da humanidade,
de acordo com Romanos 1, é a idolatria. A principal resposta, vinda do
próprio Deus, é “enviar” o Messias como o lugar do encontro, a revelação
divina suprema da justiça e do amor divino.
“Por causa [dos mártires] nossos inimigos não conquistaram a nossa nação,
o tirano fora punido e a pátria purificada — eles se tornaram o resgate pelo
pecado da nossa nação. E mediante seu sangue e de suas mortes como um
sacrifício expiatório [hilasterion], a Providência divina preservou Israel
que outrora havia sido maltratada”. (4 Macabeus 17.20-22, Livre
Tradução).
A Revolução Continua
Capítulo 14
O Povo da Páscoa
★★★
Repensando A Missão
O caso que tenho apresentado neste livro não é apenas um enigma
para teólogos discutirem em seminários. E algo de prática urgente e
imediata. A “vitória” é conquistada porque Jesus “se entregou pelos nossos
pecados”, resgatando e perdoando os humanos, quebrando os poderes que
eles antes adoravam. Uma missão baseada em uma “vitória” que não
possuiu o “perdão dos pecados” em seu cerne irá na direção errada. Esse era
o perigo da primeira visão que apresentei: triunfalismo sem o perdão no
seu eixo. Uma missão baseada no “perdão dos pecados” em que enxergamos
as coisas apenas em termos de “almas indo para o céu” irá em uma direção
errada. Esse era o perigo da segunda visão: uma mensagem de perdão que
deixava os poderes governarem o mundo sem serem desafiados. O Novo
Testamento insiste em ambas e no relacionamento das duas. Esse é o meu
discurso. Quando conseguirmos entender isso, a verdadeira vocação de
igreja emergirá novamente.
Perceba o que acontecerá. Quando vemos a vitória de Jesus
relacionada à tradição bíblica da Páscoa, remodelada por meio do desejo
judaico pelo “perdão dos pecados” como um evento de libertação dentro da
história, enxergamos o movimento cristão primitivo não como uma
“religião” como no sentido moderno da palavra, mas como uma forma
completamente nova de ser humano no mundo e para o mundo. As pessoas
falam bobagens sobre a “ascensão do cristianismo” ou até mesmo sobre
Jesus como o “fundador do cristianismo” sem perceberem que dar para o
movimento de Jesus um nome como esse (um “ismo”) está, de uma vez só,
diminuindo-o, fazendo dele um exemplo em uma categoria, uma espécie
dentro de um gênero. Não era assim que os contemporâneos de Jesus
pensavam. Pensar sobre seu movimento revolucionário dessa forma é
distorcer todo o seu senso de missão.
Claro, muitos agora ouvem a palavra “cristianismo” dentro de uma
câmara de eco de um modernismo ocidental cínico e desgastado, para o
qual a “igreja” é simplesmente uma grande organização repleta de rituais
arcanos e chavões ritualísticos, com seus dedos dentro da fatia do queijo de
outras pessoas, agindo como uma força imperial e triunfal no mundo e
encucando culpa e medo do inferno em qualquer pessoa que fique no seu
caminho. Uma caricatura, evidentemente, mas a igreja precisa carregar
parte da culpa por isso. E dessa forma que uma nova visão da cruz deve
desafiar os entendimentos padrões daquilo que os seguidores de Jesus são
chamados para fazer e para ser — se eles forem verdadeiros à revolução
original.
De acordo com essa revolução original, os humanos resgatados são
libertos para serem o que eles foram feitos para ser. O “perdão” alcançado
por meio do Filho de Deus “se entregando pelos nossos pecados” é a chave
para a vitória. O pecado importa e o perdão dos pecados também, mas eles
importam porque o pecado, fluindo da idolatria, corrompe, distorce e
descapacita a vocação humana, que é muito mais do que simplesmente “ir
para o céu”. Uma concentração exagerada no pecado e em como Deus lida
com ele significa que enxergamos as coisas apenas por intermédio de
“obras”, mesmo se confessarmos que não temos nossas próprias “obras” e
que precisamos confiar em Jesus para supri-las para nós. (Igualmente, uma
ênfase fraca no “pecado” e em como Deus lida com ele é uma tentativa de
reivindicar algum tipo de vitória sem procurar a raiz do problema). A visão
bíblica daquilo que significa ser humano, a vocação de “sacerdócio real”, é
mais multidimensional do que qualquer alternativa comum. Refletir a
imagem divina significa se posicionar entre o céu e a terra, mesmo no
tempo presente, adorando o Criador e trazendo seus propósitos para a
realidade na terra, à frente do tempo quando Deus completará sua tarefa
fazendo todas as coisas novas. O “sacerdócio real” é a companhia de
homens resgatados que, fazendo parte da “terra”, adoram o Deus celestial e
são equipados com o sopro do Céu em seus pulmões renovados a trabalhar
pelo Seu reino na terra. A revolução da cruz nos liberta para sermos o povo
que está entre o ritmo da adoração e da missão.
Expressar e basear a missão vocacional sobre a vitória revolucionária
da cruz nos ajuda a evitar alguns perigos óbvios. Sem a percepção de que a
vitória já foi conquistada, podemos facilmente cair na arrogância
(pensando que precisamos conquistar essa vitória por nós mesmos) e no
medo (pensando que o mundo era poderoso demais e que precisamos fugir
dele, ou pelo menos, nos encolhermos e aguardar o retorno de Jesus para
que ele organize tudo). A vitória inicial nos dá a plataforma para trabalhar
com confiança e humildade. Porém, sem a percepção de que a vitória foi
conquistada por meio do perdão dos pecados, a “missão” pode facilmente
remover-se do chamado de sermos pessoas que já foram resgatadas dos
poderes deste mundo, pessoas que sabem o que significa viver como
pecadores perdoados em gratidão.
Não há dúvidas de que existem pesos e contrapesos dentro da igreja
como um todo e dentro de vidas individualmente. Precisamos uns dos
outros, e precisamos de cuidado pastoral e direcionamento dentro da
igreja. Algumas vezes, para o nosso próprio bem e para o trabalho no qual
estamos engajados, precisamos perceber o quão sombrio e profundo o
poder do pecado realmente é, descobrindo o que significa sermos libertos
dele. Em outras vezes, focar no pecado o tempo todo pode se tornar algo
neurótico ou autoindulgente, sendo que deveríamos estar olhando para
fora, trabalhando para trazer cura e esperança para o mundo. Toda a
peregrinação cristã é uma questão de ritmo e equilíbrio. Isso varia de
acordo com as diferentes personalidades, diferentes igrejas e diferentes
situações culturais e sociais. Precisamos da ajuda uns dos outros para
obtermos o ritmo e o equilíbrio e para mantê-los revigorados. Mas dentro
do Corpo de Cristo como um todo, precisamos manter nossos olhos fixos
no quadro geral e discernir nossas vocações individuais, tão cheias de
possibilidades de cura para todos nós.
O que importa é que sempre estamos sendo levados de volta ao
contato com o centro da fé: que Jesus se entregou pelos nossos pecados,
para nos resgatar na presente era perversa, de acordo com a vontade de
Deus, nosso pai (Gálatas 1.4). Cada elemento dessa passagem é vital; cada
um informa e dá sustento aos outros. O propósito do amor de Deus,
trabalhando mediante a morte de Jesus que perdoou os pecados, nos liberta
dos poderes da “presente era perversa”, para que possamos ser parte da
nova era de Deus, da sua nova criação, inaugurada quando Jesus
ressuscitou dos mortos e aguardando sua finalização quando ele retornar,
mas agora ativa por meio do trabalho dos resgatadores remidos, os seres
humanos chamados para trazer o amor redentor ao mundo — os agentes
da justiça que foram justificados, os reconciliadores reconciliados, o povo
da Páscoa.
Muitos cristãos ocidentais descobriram que se devemos tentar agir
com base nisso, trazendo Deus para a esfera pública, trabalhando como
cristãos explícitos pela justiça e pela paz no mundo, iremos encontrar
problemas. Em parte, porque o mundo ocidental que não é cristão,
estridente em seu secularismo zeloso, gostaria de ver a igreja diminuir, ser
encurralada e desaparecer por completo. Estatísticas que parecem apontar
para essa direção aparecem com frequência. Da mesma forma, qualquer
sinal de uma missão renovada encontrará berros de protesto e acusações de
“triunfalismo” ou pior. Parte disso é consideravelmente justificável. Todos
nós podemos recitar a ladainha dos fracassos da igreja: as cruzadas, a
inquisição e assim por diante. O mundo moderno, de alguns séculos atrás,
tem visto grandes erros sendo cometidos em nome do evangelho. Por
muitas vezes, quando o povo cristão se lançou a fazer do mundo um lugar
melhor, eles infelizmente fizeram dele um lugar pior. Seus esquemas
confusos e defeituosos se tornaram simplesmente outra variação dos jogos
de poder tradicionais do mundo.
Isso não deve nos desanimar. Um mundo cheio de pessoas que leem e
oram o Sermão do Monte, ou um mundo com apenas um pouco dessas
pessoas, sempre será um lugar melhor do que um mundo sem essas pessoas.
A história da igreja nos lembra da diferença radical que pode ser feita, que
foi feita e que Deus, por favor, vai fazer. Mas o ponto é que uma vez que a
revolução foi inaugurada na Sexta-feira Santa, o trabalho mais importante
já foi feito. Não precisamos lutar essa batalha novamente. O que
precisamos fazer é responder ao amor derramado na cruz com o nosso
amor: o amor por aquele que morreu, sim, mas também o amor por aqueles
ao nosso redor, especialmente aqueles que estão necessitados. E parte do
desafio de colocar isso em prática é que os poderes, de quaisquer formas,
vão ficar enraivecidos. Eles querem manter o mundo debaixo do seu
punho. Eles revidarão.
O Novo Testamento mostra o que isso significa na prática. O livro de
Atos, em particular, mostra a igreja enfrentando perigo a cada esquina.
Certa vez, vi um comentário sobre o livro de Atos que era intitulado “A
Igreja Marcha”. Essa é uma maneira arriscada de observá-la, pois implica
uma vitória militar facilmente conquistada. A missão da igreja nunca foi
fácil e nem militar. Tampouco uma “invasão”. Trata-se do criador do
mundo reivindicando suas posses dos poderes usurpadores. Atos é um livro
animador (e algumas vezes, nem tão animador assim) de enigmas e
confusão, acompanhando os primeiros seguidores de Jesus tentando
descobrir o que estariam fazendo, empurrados para um caminho ou outro
pelo Espírito, diante de uma séria discordância, uma potencial divisão
dentro do movimento e uma hostilidade ainda maior fora. Atos tem muitos
mártires, revoltas, e fracassos frustrantes. Os poderes estão revidando.
Ainda assim, Atos termina com Paulo em Roma, sob o nariz de César,
anunciando Deus como Rei e Jesus como o Senhor.
A própria interpretação de Paulo para esse estranho fenômeno
merece uma citação completa, porque ela abre o ponto que deve estar no
centro de qualquer missão cristã: a vitória da cruz será implementada por
meio da cruz. Um dos perigos de falar com muita facilidade que “o Messias
morreu pelos nossos pecados” é imaginar que depois disso, não haverá mais
mortes e nem mais sofrimento. O mesmo problema surge quando
celebramos avidamente a vitória decisiva como se não houvesse mais
vitórias a serem conquistadas. Na verdade, o caso é o contrário assim como
o próprio Jesus avisou. A vitória foi de fato conquistada e a revolução foi
inaugurada mediante o sofrimento de Jesus; elas agora serão
implementadas pelo labor do seu povo. E por isso que Paulo podia
escrever:
Foi difícil para a audiência de Paulo entender isso. Eles viviam, como
nós, em uma sociedade competitiva em que todos estavam empenhados em
ter uma boa aparência, sucesso e impressionar os vizinhos. A figura abatida
e maltrapilha de Paulo dificilmente era de um líder de quem alguém se
orgulharia. Ainda assim, Paulo esfrega seus narizes no ponto de que esse é
o padrão do Messias, o padrão da cruz. E assim que a vitória foi
conquistada. O próprio Jesus foi para o lugar de vergonha e degradação.
Foi assim que a revolução foi iniciada; é assim que ela faz o seu caminho
pelo mundo. E é por isso que, para cada pessoa que lê Sêneca, Plutarco ou
Epiteto (dentre outros grandes filósofos contemporâneos de Paulo),
existem outros milhares que leem Paulo e descobrem que sua mensagem
gera vida. E por isso também que, para cada teólogo que se debruça sobre
definições abstratas da “expiação”, existem outros mil que dirão com Paulo:
“O filho de Deus me amou e se entregou por mim” — e que então
prosseguirão com o trabalho de irradiar esse mesmo amor para o mundo.
Suspeito que essa mensagem sobre a necessidade do sofrimento não
tenha sido completamente compreendida na igreja atual, especialmente
nas confortáveis igrejas ocidentais as quais eu e muitos outros leitores
pertencemos. Todos sabemos, em teoria, que a vida cristã envolve o
sofrimento. Ainda assim, aqueles que estão desejosos em “trazer o reino”
para o renovo cultural e social dos nossos dias, esquecem-se facilmente de
que a revolução que começou na cruz funciona apenas por meio da cruz. E
aqueles que estão empenhados para “salvar almas para o céu” estão
inclinados a se referirem ao sofrimento simplesmente como algo pelo qual
a maioria de nós terá de enfrentar em algum momento e que alguns de nós
sempre enfrentará, em vez de algo que é a maneira pela qual o amor
resgatador de Deus é derramado no mundo.
“O sangue dos mártires é a semente da igreja”. Essa frase famosa do
teólogo africano Tertuliano, escrita no segundo século, reflete a percepção
do cristianismo primitivo tu qual o sofrimento ou a morte na fé não é
apenas um mal necessário, mas a concomitante mandatória de seguir um
caminho que o mundo entende ser perigosamente subversivo. É mediante
o sofrer e o morrer que o mundo é transformado. E assim que a revolução
continua.
Isso está costurado no Novo Testamento. Voltamos, novamente, para
Atos. Dessa vez para o capítulo 12. O fato de que a vitória já foi
conquistada quando Jesus morreu não significou que Herodes não mataria
Tiago, mas significou que Pedro seria milagrosamente resgatado da prisão.
Atos não oferece uma interpretação clara dessa estranha combinação de
eventos. Se eu fosse a mãe ou a esposa de Tiago, penso que ficaria
decepcionado com a estranha providência que operou suas vitórias de
forma tão aleatória, e eu encontraria conforto apenas no fato do que a
própria mãe de Jesus sentiu aos pés da cruz. Ou, tomemos Atos 16. O fato
de que a vitória já foi conquistada não significou que Paulo e Silas não
seriam espancados (ilegalmente) pelas autoridades em Filipos, mas
significou que quando cantassem à meia-noite, as portas da prisão
estremeceriam e seriam escancaradas por um terremoto e eles se
encontrariam convertendo o carcereiro, exigindo e recebendo desculpas
públicas por parte dos magistrados. Ou vamos para Atos 27-28. A vitória
conquistada por Jesus não impediu Paulo de sofrer um naufrágio, mas
significou que quando ele chegasse a Roma para anunciar Deus como Rei e
Jesus como Senhor, ele saberia que já havia chegado sentindo o cheiro da
vitória. O Deus que derrotou a morte por meio de Jesus e resgatou Paulo
das profundezas do oceano, o permitiria que encarasse imperadores
romanos sem nenhuma hesitação.
Em cada ponto, temos uma percepção de que essas coisas não são
coincidências. Aqueles que seguem Jesus são justamente aqueles que
devem saber que poderá haver sofrimento pelo caminho e que, se houver,
não significa que eles pecaram ou se rebelaram para que merecessem isso.
(Pode ser o caso, claro, mas esse não é o ponto, assim como Paulo enfatiza
em 2 Coríntios). Pelo contrário. O sofrimento dos seguidores de Jesus —
de todo o corpo de Cristo, ora sobre um membro, ora sobre outro — traz a
vitória da Cruz para uma realidade nova, para que o novo fluir dessa
vitória possa emergir.
É isso que Paulo parece ter em mente quando afirma, em Colossenses
1.24, que está celebrando suas aflições, pois são em benefício da igreja. Ele
está cumprindo na própria carne “o resto das aflições de Cristo, pelo seu
corpo, que é a igreja”. Essa é uma reivindicação surpreendente. Ela parece
significar que parte da vocação apostólica de Paulo é ir à frente da jovem
igreja espalhada ao redor do mundo mediterrâneo, como um bravo
comandante no campo de guerra atraindo para si o fogo inimigo para que
ele desvie daqueles que estão mais vulneráveis, recebendo sobre si o
sofrimento que poderia chegar sobre eles. Paulo não está tentando fazer
algum acréscimo à vitória de Jesus. Ele enfatiza isso, em outro lugar, por
exemplo em Romanos 6.10. Mas sua reivindicação aqui está próxima
àquela que eles afirmam de modo mais discursivo em Romanos 5.3-5 e
depois em 8.17-25. Vale a pena observar nos dois.
Na primeira dessas passagens, Paulo explora a dinâmica interna do
sofrimento. E assim que ela funciona, por assim dizer, dentro da pessoa em
questão:
“E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo
que a tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a
experiência a esperança.
“E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus,
e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que
também com ele sejamos glorificados. Porque para mim tenho por certo
que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória
que em nós há de ser revelada.
Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por
causa do que a sujeitou,
E eis que sobre vós envio a promessa do meu Pai; ficai, porém, na cidade
de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder”. (Lucas 24.46-49).
Liberdade
Uma das grandes conquistas da cruz é frequentemente negligenciada
pelos cristãos modernos. Temos uma tendência a pensar na primeira
missão ao mundo não judeu como uma simples nota editorial que deveria
ser compartilhada o máximo possível: “Jesus morreu para que você possa ir
para o céu — agarre essa oportunidade enquanto você ainda pode”! Mas
mesmo quando revisamos essa formulação para focar na nova criação em
vez de “céu”, perdemos algo profundo que se posiciona atrás disso e
também o sustenta. Por causa da cruz, o mundo inteiro está liberto para ser
leal ao Deus que o criou.
Até os dias de Jesus, as pessoas nos países e nas culturas ao redor de
Israel haviam seguido seus próprios caminhos. Eles haviam adorado e
servido a ídolos. Essa era a percepção judaica normal e os registros, tanto
arqueológicos quanto escritos, a apoiam. Para termos certeza, em muitas
nações e em muitas ocasiões, o povo havia reagido aos sistemas pagãos que
os cercavam. Moralistas e pensadores sonhavam com um mundo melhor.
Assim como Paulo percebeu em Atenas, os poetas pagãos apontavam para
uma verdade maior. Mas as nações, como um todo, estavam sob o senhorio
de sistemas impiedosos e sombrios. E a vitória de Jesus na cruz significou
que agora, finalmente, aquele poder foi derrotado.
Vimos isso anteriormente em nosso breve estudo do evangelho de
João. Alguns gregos haviam chegado em Jerusalém para a Páscoa e eles
queriam ver Jesus. Em vez de ir encontrá-los (talvez ele o fez, mas João não
registra isso),no entanto Jesus fez um comentário que implicava que ele
enxergava o pedido deles como um sinal de que havia chegado o tempo
para uma grande vitória ser conquistada, uma vitória pela qual os não
judeus seriam libertos do poder tenebroso que os mantinha sob cativeiro,
seriam libertos para adorar ao único e verdadeiro Deus.
E depois, após uma outra interrupção, ele explica o que havia dito:
“Agora é o juízo deste inundo; agora será expulso o príncipe deste mundo.
E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim”. (João 12.31-32).
Em outras palavras, Jesus morrerá na cruz; essa será a forma pela qual sua glória
será completamente revelada (um grande tema do evangelho); e também será a vitória
contra “o príncipe deste mundo”, o poder sombrio que manteve as nações em cativeiro.
Essa é a resposta de Jesus à chegada dos gregos. Quando morresse na cruz, “todos”
estarão livres para adorá-lo e descobrir o Deus vivo e verdadeiro.
Esse é o segredo da “Missão aos Gentios”, que se iniciou com a visita de Pedro a
Cornélio em Atos 10 e continuou, espetacularmente, em prática e em teoria no
trabalho de Paulo. As pessoas frequentemente imaginam que a missão de Paulo ao
mundo não judeu foi realizada simplesmente porque, ao encontrar seus
contemporâneos judeus se recusando a digerir uma mensagem tão estranha, ele se
desesperou para conquistar alguns seguidores, então decidiu recorrer aos não judeus,
oferecendo-lhes uma mensagem menos exigente. Essa análise degradante erra o alvo. A
missão aos gentios não era uma reação pragmática à suposta intransigência judaica,
tampouco uma tentativa oportunista de recrutar um novo setor. Desde os documentos
mais antigos que temos, ela foi vista como um resultado direto e necessário do Deus
criador derrotando na cruz os poderes que haviam mantido as nações em cativeiro. Até
aquele momento, as nações haviam sido escravizadas — a cruz abriu os portões para a
liberdade.
E isso que Paulo afirma em seu discurso diante de Herodes Agripa II, o bisneto
de Herodes. Ele fala sobre o encontro com Jesus no caminho para Damasco e o
comissionamento específico que Jesus lhe entregou:
“Mas levanta-te e põe-te sobre teus pés, porque te apareci por isto, para te
pôr por ministro e testemunha tanto das coisas que tens visto como
daquelas pelas quais te aparecerei ainda; livrando-te deste povo, e dos
gentios, a quem agora te envio, para lhes abrires os olhos, e das trevas os
converteres à luz, e do poder de Satanás a Deus; a fim de que recebam a
remissão de pecados, e herança entre os que são santificados pela fé em
mim”. (Atos 26.16-18).
Agora, por fim, o poder se satanás foi quebrado, e o perdão dos pecados e a
participação em uma nova família está ao alcance de todos! Isso se encaixa
perfeitamente com o que Paulo diz quando recorda os tessalonicenses da mensagem que
ele tem proclamado para eles desde o começo. Pessoas de toda a Grécia, dizia ele,
estavam dizendo sobre como os tessalonicenses haviam se convertido a Deus:
“Porque eles mesmos anunciam de nós qual a entrada que tivemos para
convosco, e como dos ídolos vos convertestes a Deus, para servir Deus
vivo e verdadeiro, e esperar dos céus o seu Filho, a quem ressuscitou
dentre os mortos, a saber, Jesus, que nos livra da ira futura”. (1
Tessalonicenses 1.9-10)
“Graça e paz da parte de Deus Pai e do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se deu a
si mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente século mau, segundo a
vontade de Deus nosso Pai. Assim também nós, quando éramos meninos,
estávamos reduzidos à servidão debaixo dos primeiros rudimentos do mundo.
Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher,
nascido sob a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a
adoção de filhos. Mas quando não conhecíeis a Deus, servíeis aos que por
natureza não são deuses. Mas agora, conhecendo a Deus, ou, antes, sendo
conhecidos por Deus, como tornais outra vez a esses rudimentos fracos e pobres,
aos quais de novo quereis servir?” (Gálatas 1.3-4; 4.3-5, 8-9).
Declaramos sabedoria entre as pessoas maduras. Mas isso não é uma
maturidade desse mundo presente ou dos governadores do mundo presente — os
mesmos governadores que estão sendo derrotados. Não! Nós falamos da sabedoria
escondida de Deus em mistério. Essa é a sabedoria que Deus preparou
previamente, antes que o mundo começasse, para a nossa glória.
“Havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual
de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a
na cruz. E, despojando os principados e potestades, os expôs publicamente
e deles triunfou em si mesmo”. (Colossenses 2.14-15).
Deve estar claro, a partir de uma maneira casual que Paulo introduz
a maioria desses pontos, que isso é uma característica vital do seu
pensamento. Ele não está nem explorando, nem abordando uma nova
ideia. Trata-se de algo básico. Quando Jesus morreu, “os poderes”
perderam o seu poder. Eles ainda podem se irar e gritar, mas o poder de
Jesus é mais forte. E é o poder d o perdão. O passado foi obliterado. Um
novo mundo começou. Uma revolução teve início, nela o próprio poder é
redefinido como o poder do amor. Paulo descobriu, em cidades e vilas, em
casas e ruas públicas, em contextos formais e informais, que as boas-novas
de Cristo, crucificado, ressuscitado e reinando, era “poder de Deus para
salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego”
(Romanos 1.16). O reino do Jesus crucificado só precisava ser anunciado
para que se tornasse efetivo. Os poderes que mantiveram as pessoas sob
cativeiro nada podiam fazer para impedi-los de crer, e preveni-los de se
tornarem parte da nova criação de Deus. O evangelho era, e ainda é, a
poderosa anunciação de que o mundo tem um novo senhor. O motivo pelo
qual o evangelho carrega esse poder é porque é verdadeiro: na cruz, Jesus
realmente derrotou os poderes que escravizaram as pessoas. Para os
primeiros cristãos, a revolução aconteceu na primeira Sexta-feira Santa. Os
governos e as autoridades haviam recebido seu golpe fatal. Isso não
significava: “Agora podemos escapar desse mundo e ir para o céu”, e sim:
“Jesus é o Senhor desse mundo e agora, precisamos viver sob seu senhorio
e anunciar o seu reino”. A revolução havia começado e precisava
continuar. Os seguidores de jesus não eram apenas meros beneficiários.
Eles também eram seus agentes.
O que pode significar para a igreja atual viver sob essa mesma
crença? Significaria reconhecer, para começar, que os “poderes” derrotados
na cruz ainda são capazes de escravizar milhões de pessoas. Quando nós,
no mundo ocidental, pensamos em forças que podem escravizar milhões,
tendemos a pensar em ideologias do século XX, como o Comunismo, que
até 1989 tinha metade do mundo sob o seu poder e ainda controla a vida
de milhões. Muitos na África do Sul pensam nos terríveis dias do
apartheid, e se lembram como a segregação racial e a inexistência dos
direitos civis básicos da população que não era de pele branca eram
baseados em uma justificativa de aparência cristã. Reflexões parecidas
continuam acontecendo em partes dos Estados Unidos da América, onde as
vitórias dos movimentos pelos direitos civis da década de 1960 ainda
aparecem de forma mais precária do que as pessoas haviam imaginado.
Vale a pena ressaltar que em cada caso a igreja cristã tinha um papel
fundamental para exercer na queda de cada um desses sistemas. Os
protestos Polacos do começo da década de 1980, sob liderança de católicos
devotos, começaram vagarosamente o processo de derrubar a Casa de
Cartas da Europa Oriental. O antigo sistema do apartheid foi quebrado não
apenas por processos e boicotes de moralistas seculares no restante do
mundo, mas através do incansável e caro trabalho, da oração de Desmond
Tutu e muitos outros cristãos, alguns trabalhando na esfera pública e
outros debaixo do radar. Aqueles que se lembram da década de 1970,
lembrarão que se predizia uma grande guerra civil na África do Sul, e isso
era dado como certo. O fato de que isso não aconteceu foi principalmente
por causa do labor de paciência e oração. Coisas parecidas podem ser
afirmadas acerca do trabalho de Martin Luther King Jr. e muitos outros nos
Estados Unidos, que falavam com uma poderosa voz cristã que se recusava
a se calar pelo Ku Klux Klan, por um lado, ou pelos militantes Black
Power, por outro. Essas coisas aconteceram durante o meu tempo de vida,
e elas não são descontadas nem explicadas como o inevitável progresso dos
valores liberais esclarecidos do mundo moderno. Como deveríamos saber,
não há nada de inevitável sobre essas coisas. O que testemunhamos foi o
poder da cruz resgatando o poder das mãos dos ídolos opressores.
E comparativamente fácil nomear os sistemas de idolatria de outrora.
E muito mais difícil apontar os equivalentes no mundo de hoje e no de
amanhã. Aqui, a igreja precisa da astúcia da serpente e a inocência da
pomba, e ambas parecem estar em falta. Mas quando os cristãos dos países
que não são ocidentais olham para a Europa e a América, eles enxergam,
por trás das nossas tão valiosas “liberdades”, outro conjunto de idolatrias e
cativeiros. O trio familiar do dinheiro, sexo e poder estão seguramente
entronizados como nunca antes. Uma placa na minha loja de caridade local
me diz que um quarto da riqueza do mundo está nas mãos de uma
quantidade de pessoas que poderia encher um ônibus comum, enquanto
milhões de outras pessoas pobres economizam o que podem para pagar
contrabandistas que os podem lançar sobre barcos perigosos em uma
jornada pelo Mediterrâneo, e, se eles atravessarem o mar, campos de
refugiados e paredes de arames farpados os aguardam enquanto os políticos
locais se esforçam tentando cooperar.
Você não precisa de um doutorado em economia global para saber
que existe algo de errado com seja lá qual for o “sistema” que temos
estabelecido, ou não. Os políticos ocidentais claramente não possuem
respostas prontas, empenhados como estão em resolver os problemas de
ontem com soluções pragmáticas de curto prazo. Não temos sequer uma
narrativa que possa tentar resolver o problema, imagine então uma que
possa resolvê-lo. E com um novo ramo militar do Islã (não reconhecido,
obviamente, pela grande maioria dos muçulmanos do mundo) pronto para
avançar a sua causa explorando a aflição de outras pessoas, estamos mais do
que conscientes de que as coisas podem piorar.
Diante dessa situação, as igrejas de todos os tipos e de todos os países
precisam do dom do discernimento para entenderem onde a idolatria
gerou escravidão e o que significaria anunciar, nesses lugares, o perdão dos
pecados e a quebra dos poderes opressores. Isso será complicado e
controverso, esse tipo de coisa sempre é. Mas a tentativa deve ser feita.
Claramente, o dinheiro é um fator importante, e as nações que por séculos
se beneficiam de sua posição de “esclarecimento” cultural, tecnológico e
econômico, devem se olhar no espelho e questionar os tipos de perguntas
que a África do Sul branca precisou enfrentar na década 1980. De fato,
também, a maneira pela qual o Iluminismo definiu a “religião” como algo
que devia ser separado do restante da vida real se mostrou ser um preço
alto que só agora está sendo revelado. Os principados e as potestades estão
bem felizes de terem recebido esse discreto véu sobre seu avanço contínuo,
e chegou o momento de serem desmascarados.
A vitória da cruz precisa ser anunciada contra esse poder usurpado,
para que as milhares de vidas daquelas pessoas que foram esmagadas
possam ter esperança mais uma vez — uma esperança real, não uma
simples esperança de chegar no norte da Europa incrivelmente hostil.
Como tornar essa vitória conhecida é ainda mais difícil por causa do fato
de que muitas igrejas
entraram em conluio com a privatização e a espiritualização da “salvação”
no mesmo modelo que mencionei anteriormente. Mas a tentativa precisa
ser feita — não como um simples retorno para o otimismo do século XVII,
que como vimos, poderia facilmente levar a alguma forma de triunfalismo,
e sim como algo que sustente toda a verdade do evangelho, o perdão dos
pecados por meio do qual o poder das trevas é quebrado, e que encontre
cada caminho possível através de símbolo e ação, palavras e razão pelas
quais ele pode ser anunciado e aplicado. A tarefa parece impossível, mas é
isso o que eles dizem a respeito da ressurreição.
Se o dinheiro é um problema óbvio, o outro é o sexo. Todos nós
temos consciência que pessoas vulneráveis estão sendo sexualmente
exploradas em uma larga escala. O que acontecia até pouco tempo às
escondidas, agora veio à luz. Nós nos perguntamos o que podemos fazer,
enquanto nossos filhos e netos estão expostos à pornografia e encorajados a
considerar como “normal” várias práticas que muitos da minha geração
nunca antes ouviram. Mas o problema, creio eu, vai muito além e veio à
luz, pelo menos no meu país, por meio das revelações de abusos sexuais
cometidos por parte de grandes figuras públicas. Eles foram capazes de sair
ilesos na década de 1960 e 1970 porque, naquela época, o espírito dos
tempos era a favor da “liberação” e contra qualquer forma de “repressão”.
Era comum, e ainda é, zombar do casamento, da virgindade, da abstinência
e do autocontrole. Aqueles que desejassem defender a ética sexual, que até
recentemente era defendida pelos judeus, cristãos e muçulmanos, eram
zombados nas cortes, acusados de serem “reprimidos” ou “infelizes”, e
convidados a “crescerem” e “viverem no mundo moderno”. Imagine,
então, aqueles que a praticavam.
Os frutos disso estão em todos os lugares. As celebridades foram
capazes de advogar seus apetites sexuais de maneira cada vez mais aberta,
apoiando-se na opinião pública, especialmente na mídia, que não deveriam
“julgar”, mas sim “tolerar” ou até mesmo “apoiar”. Como sabemos agora,
muitos da igreja entraram nesse movimento, citando para si mesmos e
frequentemente para outros, avisos bíblicos sobre não viver pela lei, mas
por amor. O fato de que esses ensinamentos bíblicos se assentaram lado a
lado nas escrituras com uma robusta ética sexual foi silenciosamente
esquecido. A igreja enfrentou, e ainda enfrenta, um processo atrás do outro
apresentados por vítimas inocentes cuja saúde mental foi irreparavelmente
danificada no processo. Sabemos de tudo isso, mas ainda assim, o discurso
público do mundo ocidental acha impensável dizer para adultos que seus
desejos sexuais devem ser resistidos. A exceção a isso, obviamente, é a
pedofilia, e por esse tabu que ainda persiste, nós somos gratos.
O que poderia significar para o evangelho confrontar o poder de
Afrodite, a deusa do amor erótico, nos dias de hoje? Significaria, para
começar, ir além do freudianismo de terceira mão em que diferentes
grupos acusam uns aos outros de instabilidade psicológica. Significaria uma
reafirmação clara do ensinamento cristão primitivo, especialmente para
aqueles que estão em posição de autoridade na igreja. Os desentendimentos
aqui estão tão abrangentes e o pensamento tão confuso que alguém pode
ser tentado a se desesperar. Mas se acreditamos que na cruz Jesus venceu
sobre todos os poderes opressores, precisamos nos encorajar e prosseguir.
Em particular, precisamos reafirmar que no cerne dessa vitória está o
perdão dos pecados. Isso também pode ser mal compreendido. “Você não
acredita no perdão?”, as pessoas perguntarão quando alguém é pego em
algum comportamento ruim — como se o “perdão” significasse
“tolerância” ou a declaração de um tipo de anistia geral. Porém, isso não é
verdade. No Novo Testamento, “perdão” está próximo de
“arrependimento”; e “arrependimento” não significa apenas se lamentar
(talvez porque alguém foi pego!), mas é uma ação de se afastar dos ídolos
antes adorados. Assim como no mundo dos negócios, e também no mundo
dos jogos de azar, Mamom está disponível para ser adorado em cada
esquina e em cada tela de computador para que no mundo das relações
humanas, Afrodite possa ser convocada nos iPads, iPhones, ou em
qualquer um dos muitos aparelhos chamados de smart.
A outra deidade falsa que é regularmente vista no nosso mundo
contemporâneo é, claramente, o próprio “poder”, particularmente no
sentido militar de poder e força. Aqui, ao lado de Afrodite e Mamom,
encontramos Marte, o antigo deus da guerra. Muitos, nos últimos anos,
cientes dos centenários ligados à Primeira Guerra Mundial, têm se
perguntado as causas daquele terrível conflito. Entre outras reflexões tem
sido fascinante ver como, uma vez que todas as preparações iniciais foram
posicionadas somente “se houvesse necessidade”, foi quase impossível
prevenir que a guerra explodisse: uma concentração massiva de tropas
aqui, uma falta total de confiança ali. E como com Mamom e Afrodite,
assim que as pessoas entregam suas responsabilidades humanas para as
forças sombrias da violência militar, algo parece tomar conta cujas
consequências não podem ser previstas, muito menos controladas. Os
horrores da guerra continuam aparecendo, pois a luxúria e as intenções
escondidas que antes estavam sob as restrições da coleira moral, rebelam-se
e causam todo tipo de violência impiedosa, produzindo um caos que
somente a exaustão humana ou financeira pode parar. Enquanto as
sociedades fazem com Marte aquilo que parecemos ter feito com Mamom e
Afrodite, rendendo-lhes adoração e obediência, esse padrão se perpetuará e
o desastre humano consequentemente — milhões de refugiados, órfãos,
cidades arruinadas — será visto apenas como mais um “problema” que
deve ser resolvido pelos políticos em vez de ser encarado como sinal da
idolatria da qual devemos nos arrepender. Parte da crença na vitória de
Jesus na cruz é acreditar que ele derrotou esses ídolos, dessa forma, agora é
possível — apesar do que muitas pessoas dizem e acreditam — resisti-los e
encontrar maneiras radicalmente diferentes de abordar as dificuldades
globais. Não é à toa que Jesus invocou as bênçãos de Deus sobre os
pacificadores.
Essas idolatrias não devem ser evitadas e seu poder não será
quebrado apenas por esforço moral. No Novo Testamento, o esforço moral
— que é atribuído a todos os seguidores de Jesus — acontece no contexto
em que a vitória inicial foi conquistada na cruz. O esforço moral precisa de
esforço mental, e esforço mental precisa estar focado naquela vitória e se
transformar em oração para que a vitória seja aplicada hoje e amanhã. Os
sacramentos ajudarão aqui, mas orientação e conselho espiritual também
serão de muita valia.
Da mesma forma, o fracasso moral deve ser visto pelo que é.
Ninguém imaginou que os cristãos seriam perfeitos da noite para o dia.
Quando os cristãos pecam, nessa ou em qualquer outra área da vida, o que
está acontecendo é uma inconsistência radical, como um músico tocando
um refrão errado de uma música ou um anfitrião de um jantar servindo
vinagre em vez de vinho. Isso está relacionado ao problema elucidado
anteriormente: se vemos a vocação humana simplesmente como o
“contrato de obras”, então veremos as falhas morais apenas como quebras
de determinadas regras. Elas são muito mais que isso. São uma recusa de
seguir o roteiro de uma grande peça de teatro que fomos convidados para
encenar. Um cristão pecador é como alguém que sobe no palco recitando
um texto da peça do dia anterior. Recebemos novas falas para a nova peça,
o grande romance em que o sacerdócio real chega à altura de suas novas
tarefas, inclusive da visão renovada da santidade, mas que transcende para
uma vida de adoração e testemunho em que as “regras” são elementos
pequenos, se ainda vitais, de uma vocação ainda muito maior E parte dessa
vocação é precisamente celebrar Jesus como Senhor na terra que antes
outros deuses foram adorados.
Quando se trata de Mamom, precisamos saber como usar o dinheiro,
e especialmente como doá-lo. Quando se trata de Afrodite, precisamos
saber como celebrar e sustentar o casamento, como celebrar e sustentar o
celibato, e como aconselhar e confrontar aqueles que, em qualquer estado,
encontram-se oprimidos com desejos contrários e conflituosos. Não somos,
afinal, definidos pelos desejos ou pelas aspirações que surgem de nossos
corações, apesar da extraordinária retórica dos nossos tempos. Na área do
bem-estar humano, esse é o caminho da instabilidade radical; na área das
crenças teológicas, esse é o caminho do Gnosticismo (em que você tenta
discernir a faísca divina dentro de si e depois tenta ser verdadeiro a ela).
Jesus foi muito claro, de acordo com a tradição profética: o coração
humano é enganoso, e dele surgem todos os tipos de coisas que pervertem
as pessoas, isto é, que as torna incapazes de funcionar como seres humanos
genuínos, como o sacerdócio real para o qual foram chamados. O
evangelho que Jesus anunciou não era sobre se conectar com seus
sentimentos mais profundos ou se aceitar como você é. Era sobre carregar
a sua cruz e segui-lo. Isso é duro, e não deixa de ser depois de um ano, uma
década ou uma vida inteira. A vitória conquistada na cruz é implementada,
aqui como em qualquer outro lugar, mediante o sofrimento dos seguidores
de Jesus, a maioria dos quais continuarão a ser atormentados, de tempos
em tempos, pela tentação em relação ao dinheiro, ao sexo e muitas outras
coisas.
Incluindo, naturalmente, o poder. No cerne do evangelho está uma
redefinição de poder. Essa é uma das principais formas pelas quais os
cristãos primitivos interpretaram a morte de Jesus. A razão pela qual a cruz
carregou tal poder transformador, e ainda o carrega, é porque ela
personificou, expressou e simbolizou o verdadeiro poder pelo qual todo
poder terreno revela ser uma imitação ou uma paródia corrompida. Não é
o caso de que o poder como o conhecemos no mundo “real” é o “padrão” e
que a subversão cristã desse poder é um tipo estranho que pode funcionar
mesmo que não enxerguemos como. O evangelho de Jesus nos convoca a
crer que o poder do amor altruísta revelado na cruz é o que é real, o poder
que fez o mundo em primeiro lugar e agora o está redefinindo; e não as
outras formas de “poder”, o corrupto e o de benefício próprio, tão
frequentes no mundo, desde impérios globais, negócios multimilionários,
salas de aula, famílias e gangues.
Por favor, perceba que não estou sugerindo (como outras pessoas o
fizeram) que o poder em si é algo ruim. Como tenho insistido em todo este
livro e em outros lugares, o Deus criador deseja que seu mundo floresça e
seja fértil sob a direção humana, e isso se aplica às comunidades e
organizações humanas tais como: fazendas, campos e jardins. A Bíblia nada
sabe sobre a anarquia, exceto o estado que se resulta quando tiranias
entram em colapso sob seu próprio peso, deixando um perigoso vácuo
onde estiveram.
Parte da problemática com o poder no mundo ocidental atual é que,
porque muitos países ocidentais se livraram das ditaduras na história
recente — ou ao menos pensamos assim — não estamos mais em uma boa
posição de identificar uma ditadura quando ela nos encara. O triunfo da
democracia liberal significa que todos nós consideramos duas coisas básicas
(incluindo o fato de que podemos modificá-las aqui ou ali na prática).
Primeiro, pensamos que ser eleito dá aos oficiais um mandato para que
façam as coisas, nos anos seguintes, do jeito que achar que devem.
Segundo, pensamos que a maneira de interromper um governo ruim é
votar por um melhor na próxima vez. Se pararmos para refletir um pouco,
e ainda mais, lembrar o que governos ocidentais eleitos fizeram nas últimas
gerações, devemos perceber que isso, no mínimo, não é suficiente. Nas
antigas democracias da Grécia e de Roma, assim como elas eram, oficiais
eleitos eram frequentemente colocados sob julgamento por corrupção e
quebra de decoro depois do período que estivessem exercendo o
determinado cargo, algo que para nós pode parecer difícil de se imaginar. E
de toda forma, os cristãos e os judeus daqueles dias não estavam muito
interessados em como alguém podia obter cargos oficiais, mas eles tinham
muito interesse no que acontecia depois que obtivessem tais cargos. E aqui
que a vocação da profecia entra junto com a do sacerdócio real. Outra
consideração sobre isso pode nos ajudar.
O poder, afinal de contas, não é frequentemente mantido e exercido
por oficiais e políticos eleitos, mas sim pela mídia de um lado e por um
grupo de lobby bem posicionado do outro. A mídia se defenderá afirmando
que sua tarefa é responsabilizar os oficiais, enquanto os lobbyistas
afirmarão que devem lembrá-los dos interesses de seus constituintes. Sem
dúvidas, há um pouco de verdade nisso, mas está quase totalmente
escondido debaixo de uma agenda sem escrúpulos. A oposição oficial
algumas vezes oferece uma crítica genuína, mas na maioria das vezes, não.
Os jornalistas algumas vezes o fazem, mas frequentemente apenas refletem
suas agendas igualmente distorcidas. Não devemos assumir que nossos
sistemas são automaticamente os melhores que poderíamos ter. E aqui que
aqueles que acreditam na vitória da cruz tem algo a dizer, literalmente.
Como cristãos, nosso papel na sociedade não é abanar as nossas mãos para a
corrupção do poder ou simplesmente escolher um candidato que apoie
uma ou outra política supostamente cristã. O papel cristão, como parte da
identificação do Jesus crucificado e ressurreto sobre o território atualmente
ocupado por ídolos, é proclamar a verdade ao poder e, especialmente,
posicionar-se a favor daqueles que não tem nenhum poder.
Tenho visto isso em muitas ocasiões, principalmente nos casos que nunca
chegam aos jornais, mas transformam significativamente as comunidades.
Vi isso quando amigos que trabalhavam no sistema carcerário foram
capazes de ir até os governantes responsáveis pelas prisões e apontar onde
o sistema estava falhando em proteger jovens vulneráveis sob seu cuidado.
Vi isso quando um pequeno grupo protestou com sucesso em favor de um
homem que havia fugido de outro país para proteger a sua vida durante
uma ocasião em que o governo estava inclinado a aumentar os números de
deportações. Também o vi quando a juventude de uma igreja foi até uma
boca de fumo de um bairro pobre onde os traficantes negociavam sem
nenhuma preocupação. Os jovens reviraram o bairro, pintaram as casas e
plantaram flores pelo caminho, o que incentivou os moradores a cuidarem
do seu próprio ambiente em vez de deixá-lo nas mãos dos bandidos. E
também o vi na alegre campanha empenhada por muitas grandes igrejas a
favor do perdão da dívida da África e de outros lugares; ninguém estava
fazendo barulho por causa disso, e os banqueiros (que em breve ficarão
diante de suas próprias impagáveis dívidas, que também serão anuladas!)
estavam ansiosos para calar tal protesto. Mas as igrejas persistiram,
ressaltando as realidades da presente situação e dos resultados
extremamente favorecedores da remissão da dívida. Em alguns casos, as
dívidas foram perdoadas.
Tudo isso pode acontecer e de fato acontece com frequência.
Algumas vezes, deixa a igreja em uma situação problemática. Nos dizem:
“Parem de lutar por coisas que não entendem!”. Mas os seguidores de Jesus
não têm opção. Parte central da nossa vocação é lembrar às pessoas que
estão no poder, oficiais ou não, que existe uma maneira diferente de ser
humano. Uma maneira verdadeira. A maneira de Jesus. Não se trata de
eleger alguém que possui uma agenda que condiz com a nossa; isso pode
ser apropriado ou não. Significa estar preparado, seja lá qual for os oficiais
atuais, para fazer o que Jesus fez com Pilatos: confrontá-los com uma visão
diferente de reino, verdade e poder.
A maneira de Jesus, inaugurada em sua carreira pública, venceu por
meio da sua morte perdoadora de pecados na cruz e que abalou o mundo
com a sua ressurreição, alinhando-se com as antigas profecias das
escrituras, incluindo a gloriosa visão de como o poder deve ser exercido.
Esta é uma das expressões entre muitas outras que jamais devemos nos
cansar de repetir:
Estive escrevendo sobre a cruz em vários lugares durante muitos anos. Isso
é inevitável, pois o foco do meu trabalho acadêmico é o Novo Testamento
e o foco do meu trabalho como sacerdote, pregador e bispo tem sido a vida
litúrgica, bíblica e sacramental da igreja que todos os dias traz alguém de
volta à cruz, ou ao menos a cada semana. Mas essa foi a primeira vez que
tentei dar um passo para trás e estabelecer todo o quadro daquilo que os
primeiros cristãos falaram sobre a morte de Jesus. Enquanto o fiz, fui
surpreendido para ver novos elementos emergindo e novas ligações entre
eles. O argumento geral apresentado aqui é bem novo; eu mesmo me
surpreendi com as linhas de pensamento e interpretações que me
encontrei buscando, inclusive em alguns lugares afirmando coisas
significativamente diferentes do que eu havia dito anteriormente em meus
trabalhos mais antigos.
Espero que este livro encoraje os seguidores de Jesus a ter um novo
pensamento sobre os eventos centrais de sua fé. Mas também espero que
ele explique para os leitores ocasionais algo do porquê nós, cristãos,
referimos à brutal execução de um jovem judeu há dois mil anos da forma
que o fazemos. Também espero que, embora esteja ausente pedaços de um
estudo “acadêmico”, ele encoraje teólogos, pregadores e mestres nas igrejas
a retornarem para seus textos fundamentais e enxergarem se talvez existe
mais a ser dito daquilo que previamente chamamos de “expiação”. Os
primeiros cristãos acreditaram que Jesus inaugurou uma revolução. Ela
modificou o mundo. Creio que eles estavam certos. Este livro é a minha
tentativa de explicar o porquê.
Este de fato é um livro “popular” no sentido de que não providenciei
um aparato acadêmico detalhado pelo qual o argumento dele pode ser
apoiado. Uma boa quantidade dele pode ser encontrada em meus trabalhos
anteriores, particularmente nos títulos: Origem Crista e Questões sobre
Deus.
O presente livro começou como uma série de lições extracurriculares
em St. Mary’s College, St. Andrews, organizadas pelo Dr. Andrew
Torrance. Sou grato a ele e à audiência de colegas e estudantes que sempre
vinham, que tinham perguntas desafiadoras e que continuavam se
esforçando com tais questões. Faço uma menção especial a um dos alunos,
Dr. Norio Yamaguchi do Japão, seu próprio estudo dos significados da
Páscoa no primeiro século, por um lado, e do Dia do Perdão, por outro,
começaram algumas das linhas de raciocínio que tentei seguir aqui. Dr.
Yamaguchi não é, obviamente, responsável pelo que fiz com essas ideias,
mas eu provavelmente não teria começado alguns questionamentos
fundamentais se ele não tivesse chamado a minha atenção para elas.
Também agradeço o bispo Robert Forsyth, de Sidney, na Austrália,
por sua ajuda nas primeiras reuniões de brainstorming para as aulas e o
absolvo com muita alegria de qualquer responsabilidade pela maneira que
minhas ideias se desenvolveram. O mesmo também vale para meu colega
Dr. David Moffitt, cujo próprio trabalho sobre a Epístola aos Hebreus e
sobre os entendimentos de sacrifício no mundo Judaico antigo e no Novo
Testamento é extremamente estimulante. Embora venham de várias
perspectivas distintas, Dr. Michael Horton, Dr. William Lane Craig e Dr.
Jack Levision me deram o benefício de suas experiências e suas
informações, e mesmo ainda descordamos de muitas coisas, espero ainda
poder aprender muito uns com os outros. O Reverendo Peter Rodgers,
continuando uma amizade acadêmica de quase meio século, se tornou um
encorajador constante e um crítico de discernimento. Devo fazer menção
especial ao Dr. Jamie Davies e Max Botner, meus auxiliares na pesquisa do
começo ao fim desse projeto, que muito ajudaram de inúmeras maneiras,
inclusive no processo racional de muitas perguntas complexas que estou
abordando.
Esse livro formou a base das lições e dos seminários que lecionei na
Universidade Pepperdine em Malibu, Califórnia, durante uma semana
memorável de Maio de 2016, e sou especialmente grato ao Mike Cope e
aos seus colegas, que organizaram aquela semana, e ao presidente da
universidade, Dr. Andy Benton, e aos seus colegas por sua hospitalidade.
Leções parecidas foram dadas na Wycliffe Hall, em Oxford, em Junho de
2016, e sou muito grato ao Reverendo Dr. Michael Lloyd e aos seus colegas
por seu encorajamento e sua hospitalidade.
Também devo agradecer uma companhia muito maior ao redor do mundo
que apoiaram esse projeto em oração, em mensagens de e-mail, e algumas
vezes, em encontros especiais e discussões cruciais. Pensar e escrever sobre
a cruz é desafiador em vários níveis, e aqueles que me apoiaram durante
esse processo possuem minha gratidão profunda. Meus agradecimentos ao
Mickey Maudlin da HarperOne e ao Simon Kingston da SPCK pelos
conselhos editoriais sábios que ofereceram, e aos seus respectivos colegas
por levarem outro livro meu através do processo editorial. Minha família, e
particularmente a minha esposa, me sustentaram através deste trabalho.
Este livro é dedicado para o Leo Valentine Wright, nascido em Maio
de 2016, em esperança e oração para que ele mesmo descubra a verdade e
amor a respeito dos quais tentei escrever aqui.
N. T. WRIGHT
St. Andrews
Julho de 2016
Notes
[←1]
http://jesus.org.uk/blog/streetpaper/cross-my-heart-and-hope.
[←2]
John Bunyan, O Peregrino, ed. J M. Dent (Londres, 1898), 38.
[←3]
Flávio Justino, First Apology 55.
[←4]
Timothy Rees, "God is Love, Let Heaven Adore Him".
[←5]
Nota do Tradutor 1: do inglês “mercy seat”, traduzido literalmente para “assento
da misericórdia”. Optou-se pelo equivalente “comum” registrado nas versões da
Bíblia no Português Brasileiro;
[←6]
Nota do Tradutor 2: do termo em inglês “seat of emotions”, que traduzido
literalmente seria “assento das emoções”. Considera-se prática comum no inglês
utilizar o termo “seat of...” para denominar o centro de algo.
Table of Contents
Notes 387