O Mito de Gaia
O Mito de Gaia
O Mito de Gaia
GOIÂNIA
2019
RENATA FIORESE FERNANDES
GOIÂNIA
2019
INTRODUÇÃO
Os arquétipos se apresentam, portanto, como formas sem conteúdo, que são preenchidos de
acordo com a vivência pessoal de cada indivíduo. Se referem a etapas e temas da vida
experenciadas por toda a espécie humana no decorrer dos tempos, como a morte, o nascimento, o
casamento, o amor e a fúria, gerando uma espécie de padrão comportamental vivenciado através das
gerações. São também compreendidos como imagens primordiais que atuam como “predisposições
psicossomáticas herdadas e atuantes sobre a atitude individual”, possuindo a qualidade de uma
divindade ou “daimones”, em grego, utilizado como referência aos vários tipos de entidades
intermediárias entre os deuses e os homens. (PEREIRA apud JUNG, 2009, p. 380)
A linguagem do inconsciente funciona por meio de analogias, sendo essencialmente
imagética, o que pode ser visto nos sonhos, nas fantasias e no pensamento mítico. O relacionamento
entre consciente e inconsciente opera, principalmente, por meio da imagem e da imaginação, de
caráter simbólico, sendo os símbolos oriundos de estruturas arquetípicas, responsáveis por produzir
certa estabilidade na psique, funcionando como compensação da oposição da dualidade. Podendo
ser considerados como categorias da imaginação, “no domínio da mente o instinto (arquétipo) é
percebido como imagem, no domínio do comportamento, as imagens são desempenhadas como
instintos, sendo o comportamento sempre uma encenação de uma fantasia”(HILLMAN apud
SERBENA, 2010, p. 79).
Neste sentido, os mitos apresentam-se como as primeiras tentativas de organização de uma
narrativa para explicar esses fenômenos que essencialmente tratam-se de manifestações da dinâmica
psíquica interior, “de manifestações da essência da alma”. Todos os acontecimentos mitologizados
da natureza são como expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a
consciência só consegue apreender através de projeções – espelhadas nos fenômenos da natureza.
(JUNG, 2002, p. 17)
O homem primitivo como realidade psicológica então se refere a uma instância do
inconsciente “cujo poder decisivo sobre o destino ainda está vivo no âmago da psique do homem
moderno” (NEUMANN, 1996, p. 28). O arquétipo psicóide como vivencia da “participation
mystique” trata-se da experimentação e observação dos fenômenos da natureza como manifestações
da realidade intrapsíquica, vendo refletido, projetado, o movimento da dinâmica da alma. Dada a
importância da compreensão da dinâmica dessa realidade psíquica, o uso dos mitos como categoria
de observação torna-se uma ferramenta de grande potencial de comunicação da consciência com
essa camada simbólica, mitopoética, do inconsciente, produzindo estabilidade e harmonia entre
estas dualidades fundamentais da psique.
O objetivo aqui é o de apresentar o Mito de Gaia como representação de símbolos do
inconsciente do momento que ocorre a diferenciação do Ego do seio do caos disforme do
inconsciente, do ventre da Grande Mãe; este que apresenta-se como o caráter masculino que luta
contra as forças telúricas instintivas, afim de assumir sua posição de centro organizador da
consciência. Assim, através da análise desse movimento no mundo das imagens da linguagem
mitopoética do inconsciente, pretendo elucidar um pouco mais sobre esse processo de suma
importância para o desenvolvimento e fortalecimento do Ego como início do trilhar pelo caminho
da individuação – encontro do Si-Mesmo.
O MITO DE GAIA
Partindo da Teogonia e Trabalhos e Dias escrita por Hesíodo e apresentado por Junito
Brandão no volume um da obra “Mitologia Grega” (1986, p. 185), Gaia aparece como princípio
criador que surge do Caos absoluto, a matéria disforme ou abismo insondável, vazio primordial,
quando os elementos do mundo não foram ainda impostos a qualquer tipo de ordenação. Na
cosmogonia egípcia, trata-se de uma energia poderosa existente antes da criação do mundo e
conjuntamente com o mundo formal, como uma força circundante da terra, fonte de energia
inesgotável, ao qual todas as formas retornaram depois de fenecerem. Para os chineses, o Caos
representa a unidade, anterior a divisão das quatro direções, que equivale a criação do mundo.
Do Caos grego, dotado de grande energia criadora, surgem Gaia, Tártaro e Eros. Gaia como
representante da Grande Mãe refere-se ao Planeta Terra, diferenciando-se de Deméter, que é a terra
cultivada. Simbolicamente, entre inúmeras possibilidades de significado, se refere ao princípio do
feminino passivo Yin, acolhedor, fértil, a que contém, cultiva e nutre, em contraposição ao princípio
masculino Yang, ativo, volátil, assertivo e viril.
De acordo com a Teogania, a própria Gaia gera a Urano, o céu que a cobre e fecunda,
enquanto ela suporta e gera. A união de Urano e Gaia é concebido como “hieros gamos”, um
casamento sagrado, cujo objetivo é a fertilidade da mulher, dos animais e da terra. Desta união
sagrada são gerados os Titãs, Titânidas, Ciclopes e Hecantoquiros.
Suas proles são reprentações das “forças telúricas, manifestações elementares das forças
selvagens da insubmissão da natureza em oposição a espiritualização harmonizante”, caracterizando
a primeira etapa da gestação evolutiva. São “as forças brutas da terra e, por conseguinte, os desejos
terrestres em atitude de revolta contra o espírito” cujo objetivo é a dominação - espírito aqui têm o
significado do princípio luminoso, consciente, representado na teogonia grega por Zeus
(BRANDÃO, 1986, p. 196).
Urano, como princípio masculino fecundador, por medo de ser destronado pelos próprios
filhos, os devolvia ao seio materno à medida que nasciam, jogando-os ao Tártaro, enfurecendo a
Gaia. Esta, não mais suportando tamanha tristeza de ver seus filhos relegados ao exílio, em um ato
de revolta ao marido, liberta-os, suplicando-lhes que a vingassem e libertassem de Urano. Todos
recusam ajudá-la, menos Crono, que odiava o pai. Gaia então lhe entrega uma foice, e quando
Urano retorna, ávido de amor, à noite, para deitar com sua esposa, Crono corta-lhe os testículos. O
sangue do ferimento de Urano, tocando a terra, dá origem às Erínias, os Gigantes e as Ninfas. Seus
testículos, jogados ao mar, formaram com a espuma a deusa Afrodite. Com isso, Crono vinga a mãe
e liberta os irmãos.
Assim, Urano (Céu) separa-se de Gaia (Terra), com a interposição entre ambos do Éter e do
Ar, pondo fim a uma longa e ininterrupta procriação inútil, já que Urano devolvia os filhos à terra.
Castrado e impotente, Urano perde seu poder e Crono assume seu lugar, casando-se com Réia.
Crono, como governante, se mostra tão tirano quanto seu pai. Temendo os irmãos, relega os
Ciclopes e Hecatonquiros de volta ao Tártaro e apreensivo com a premonição feita pelos pais,
Urano e Gaia, que possuiam o dom de prever o futuro, de que ele seria destronado por um de seus
filhos, Crono os engulia, um a um, assim que nasciam: Héstia, Deméter, Hera, Hades e Posidon. O
único que consegue escapar, por intermédio da mãe, foi Zeus. Réia foge para a ilha de Creta para
dar luz ao caçula e quando Crono requer que ela entregue o menino, ela o engana, entregando-lhe
uma pedra no lugar do filho que o deus engole de imediato.
A criança é então escondida por Gaia nos flancos do monte Egéon e lá ele fica entregue aos
cuidados dos Curetes e das Ninfas. Zeus passa por um período iniciático de preparação para as
batalhas que travaria com o pai, Crono. Com a ajuda de Métis (a prudência) que lhe fornece uma
substância, Zeus faz com que Crono vomite os filhos que havia engolido. Com seus irmãos como
aliados, Zeus inicia um duro combate contra o pai e os tios, os Titãs, que dura cerca de dez anos.
Zeus, a conselho de Gaia, liberta os Ciclopes e Hecatonquiros do Tártaro, os quais,
agradecidos, presenteia-o com o raio e o trovão, a Hades ofereceram um capacete mágico, que
tornava invisível a quem usasse e a Posídon presenteiam com o tridente, capaz de abalar terra e mar.
Juntos, os irmãos conseguem derrotar Crono e os Titãs, sendo estes relegados ao Tártaro. Gaia,
furiosa com os Olímpicos por jogarem seus filhos ao Tártaro, reuniu contra os vencedores os
terríveis Gigantes, nascidos do sangue de Urano. Derrotado os Gigantes, aumentando ainda mais a
fúria de Gaia, esta em seu derradeiro esforço, se junta a Tártaro, dando origem o mais horrível e
terrível dos monstros, o Tifão.
Tifão era um meio termo entre um ser humano e uma fera terrível e medonha. Era mais alto
que as montanhas e sua cabeça tocava as estrelas. Quando abria os braços, uma das mãos tocava o
Ocidente e a outra o Oriente e em lugar dos dedos possuia cem cabeças de dragões. Quando os
deuses viram tão horrenda criatura encaminhar-se para o Olimpo, fugiram apavorados para o Egito,
restando apenas Zeus e sua filha Atená para lutar contra o monstro. O Tifão consegue desarmar
Zeus e com sua foice corta-lhe os tendões dos braços e dos pés, largando-o em uma gruta indefeso.
Com o auxílo de Hermes e do deus Pã, Zeus consegue recuperar seus tendões recuperando
suas forças. Ele escala os céus em um carro movido por cavalos alados e recomeça a luta contra o
monstro Tifão, lançando contra o inimigo, uma chuva de raios, até que por fim consegue derrotá-lo
esmagando-o com o monte Etna.
A ninfa Amaltéia é simbolizada como uma cabra que amamenta Zeus, experiência que é
considerada a maior e mais significativa pela riqueza do simbolismo do animal. Entre os gregos, a
cabra simboliza o raio, a que anuncia a tempestade e a chuva, associada com a hierofania, como a
manifestação de um deus, conta-se entre os mitos gregos, que foram as cabras quem descobriram os
vapores que as puseram em estado de vertigem e que posterioramente foi instalado o Oráculo de
Delfos. Nessa e em outros culturas, este animal sempre foi associado a qualidades divinas e
espirituais (BRANDÃO, 1986, p. 333-334).
No decorrer do Mito apresenta-se a conquista de Zeus, como manifestação do Ego
desenvolvido, luminoso, que além de passar por um processo iniciático após seu nascimento,
quando é entregue pela mãe às Ninfas que o mantinham escondido em uma caverna (símbolo do
útero, portanto novamente representação da Grande Mãe), recebe treinamento apropriado para
derrotar seu pai, Crono, o que apenas consegue unindo-se às forças instintivas telúricas
representado pelos seus irmãos mais velhos, os Ciclopes e Hecatonquiros.
Salientando mais uma vez a realidade dual dos arquétipos, Gaia, como símbolo do arquétipo
da Grande Mãe, gera tanto os Titãs, que podem ser vistos aqui como aspecto negativo produzido
pelo Grande Feminino, já que Crono, como o mais novo deles, demonstra-se um governante tirano,
à imagem do pai, Urano, também gerado por Gaia, como Grande Mãe Urobórica, e que também se
apresenta como aspecto negativo do masculino, como Ego infantil, que sem a maturidade
necessária, enxerga seus filhos como ameaça ao seu poder, relegando-os às profundezas do Tártaro,
enquanto Crono devorava seus filhos, um a um, numa tentativa de controle dos instintos.
Gaia também gera os Ciclopes e Hecatonquiros, que se apresentam no mito como forças
primordiais para ascensão de Zeus ao poder, auxiliando-o a derrotar Crono e os demais Titãs. Os
Ciclopes, libertados do Tártato por Zeus que fora aconselhado para tal pelo oráculo de Gaia, como
agradecimento, presenteiam o Deus com o trovão, o relâmpago e o raio. Como criaturas de um olho
só no meio da fronte, simbolicamente, utilizando a tradição hinduísta para a compreensão de um
dos significados possíveis, pode estar ligado a capacidade intuitiva e percepção sutil, abordado por
Jung como uma das funções psíquicas que vai além do espaço-tempo e que pode ser um dos
motivos dos Ciclopes serem apresentados no mito como filhos da terra, por representarem essa
função mais inconsciente, já que apresenta apenas esse olho no centro do que seria a testa, ao invés
dos dois olhos que estão ligados aos sentidos e portanto a função sensação.
Além de também apresentarem outra possível suposição sobre os presentes dados a Zeus – o
trovão, o relâmpago e o raio – que simbolicamente pode significar a manipulação consciente dos
instintos violentos advindos da parte mais primitiva da psique, representado pelos Ciclopes, sendo a
descarga elétrica dos trovões de Zeus a capacidade do discernimento do masculino de atuação
focalizada, representando um nivel do desenvolvimento do Ego em que é possível a canalização da
ira em situações e com certos aspectos da psique, que demandam uma delimitação mais consistente
ou até mesmo a destruição pelo fogo, que também pode simbolizar uma possibilidade de
transmutação de algo que não serve mais para o bom desenvolvimento da dinâmica psíquica em
algo novo, que auxilie no movimento prospectivo, rumo a individuação.
Juntos aos irmãos, Hades e Posidon, Zeus consegue derrotar Crono e os Titãs. Gaia, não
satisfeita com os Olimpicos por terem relegado seus filhos ao Tártaro após os derrotarem, faz mais
duas tentativas de retirar Zeus do poder, libertando os Gigantes e um pouco depois, gerando Tifão, o
mais horrendo e terrível dos monstros.
Zeus, como princípio masculino mais desenvolvido e luminoso, precisa se juntar com
aspectos desse masculino, representado por Hades, com o simbolismo do inferno invisível, que
pode ser compreendido como a sombra; e com Posidon, o deus das águas subterrâneas, fazendo
menção aos sentimentos e ao inconsciente. Gaia, que se recusa a abrir mão da liberdade de qualquer
um de seus filhos, gera com Tártaro, os Gigantes e o Tifão, seres imensos e assustadores,
representando a tentativa derradeira dos instintos negativos mais poderosos, em busca de impedir o
alcance da “espiritualidade harmonizante”, da ascensão do espírito, representado por Zeus, ao
poder, ao consciente.
Gaia, em sua aparente relutância e luta contra a chegada de Zeus ao poder, apresenta o
caráter elementar do feminino, que segundo Neumann (1996) é designado como:
o aspecto do Feminino, que como o “Grande Círculo” e o “Grande Continente”, demonstra
a tendência de conservar para si aquilo a que deu origem e envolvê-lo como uma substância
eterna. Tudo o que dele nasceu lhe pertence, continua sujeito a ele e, mesmo quando o
indivíduo se torna independente, o Grande Feminino relativiza essa autonomia, tornando-a
uma variante secundária de seu existir, enquanto Grande Feminino. (…). O caráter
elementar do feminino estará sempre em evidência quando o ego e a consciência forem
infantis e não-desenvolvidos, e o inconsciente for dominante. Em relação a ele, o ego, a
consciência e o indivíduo, quer sejam masculinos ou femininos, são infantis, dependentes e
submissos. A característica marcante do caráter elementar é a sua função de “conter”.
Outrossim, ele se manifesta de forma positiva como provedor de alimento, de proteção e de
calor e, de forma negativa, como repúdio e privação.(NEUMANN, 1996, p. 36)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS