DUARTE Patrimônio Musical Religioso

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VESTÍGIOS DAS PRÁTICAS MUSICAIS RELIGIOSAS CATÓLICAS DO PASSADO

EM VINTE E CINCO CIDADES DO PARÁ: ESTUDO DAS VERTENTES


DOCUMENTAL, ORGANOLÓGICA E ESPACIAL DO PATRIMÔNIO MUSICAL

Fernando Lacerda Simões Duarte


PPG-Artes/UFPA

Introdução

Desde inícios do processo de dominação europeia no atual território brasileiro, a Igreja


Católica se fez presente. Nas atividades eclesiásticas católicas o uso da música – fosse
de maneira ritual nos bispados, fosse ainda como instrumento de missionação – foi uma
constante, tendo se estendido de maneira ininterrupta até o presente. Tal continuidade
não significa, entretanto, que não tenham existido rupturas internas, a exemplo da
expulsão da Companhia de Jesus, em 1759, ou a proibição ao recebimento de noviços
em ordens religiosas, em 1855, fatos que possivelmente resultaram no perecimento de
acervos de documentos musicográficos.

Ao se pensar o Grão-Pará e Maranhão, merece destaque o fato de, até princípios do


século XIX, suas dioceses – sediadas em Belém e São Luís, respectivamente – não
terem sido sufragâneas da Bahia, mas diretamente do Patriarcado de Lisboa, o que
pressupõe uma vinculação e circulação de documentos mais direta com o reino de
Portugal. Ademais, a presença de ordens e congregações religiosas na região teve
também suas peculiaridades, tais como a presença dos religiosos mercedários ou dos
capuchinhos da Bretanha, que desembarcaram no Maranhão quando da tentativa de
dominação pelos franceses.

Semelhantemente aos demais estados brasileiros, as memórias das práticas de música


católica relativas aos séculos XVII e primeira metade do XVIII parecem se concentrar
em relatos de viajantes e não na existência de documentação musicográfica. Restava,
desta maneira, a busca por partituras e outras fontes referentes aos séculos
posteriores. Embora uma tese voltada à música católica no Brasil já tenha sido
realizada, com investigação documental in loco em setenta cidades (DUARTE, 2016),
ainda não existem no país os necessários instrumentos de pesquisa – catálogos,
inventários e guias – acerca do patrimônio musical católico, e mesmo das bandas de
música e outras agremiações em que o repertório é executado (CASTAGNA, 2016).

Considerando tal necessidade no país como um todo, incluindo-se o extenso território


do estado do Pará, deram origem a esta investigação os seguintes problemas: quais
instituições católicas ainda preservam acervos musicais ou patrimônio organológico –
referente às fontes produtoras de som, ou seja, os instrumentos musicais – no estado
do Pará? Com quais grandes movimentos do catolicismo estas memórias preservadas
em vestígios materiais dialogam? E qual a situação de preservação e eventual uso
deste patrimônio musical no presente? Assim, nesta pesquisa exploratória, buscou-se
analisar a existência de um patrimônio musical em ambiente católico em vinte e cinco
cidades paraenses, bem como eventuais relações que a instituição mantém com este
patrimônio.

Metodologia

Com vistas a responder as questões formuladas, foi empregado o trabalho de campo,


com pesquisa documental in loco nas cidades paraenses de Acará, Abaetetuba,
Barcarena, Belém, Bragança, Breves, Cametá, Capanema, Castanhal, Conceição do
Araguaia, Colares, Concórdia do Pará, Curralinho, Igarapé-Miri, Igarapé-Açu, Moju,
Óbidos, Oeiras do Pará, Oriximiná, Ponta de Pedras, Santarém, Santo Antônio do Tauá,
Tomé-Açu, Vigia e Viseu.

Empreendeu-se também pesquisa bibliográfica acerca da história da Igreja Católica e


de suas práticas musicais, especialmente no Pará, bem como em referenciais acerca
da Arquivologia Musical. Na obra El Archivo de los sonidos (GÓMEZ GONZÁLEZ et al.,
2008) foram apresentadas distintas categorias de fontes para o estudo da musicologia,
para muito além dos documentos musicográficos e de audiovisuais. No extenso rol
elaborado pelos autores encontram-se os tratados sobre música, escritos pessoais de
compositores, documentação administrativa pública e de entidades responsáveis pela
execução de música, documentos eclesiásticos, instrumentos musicais, cartazes de
concertos, libretos, críticas em periódicos de circulação, entrevistas, dentre outros.

Ainda sobre o patrimônio musical, recorre-se ao trabalho de António Ezquerro Esteban


(2016). Segundo este autor, seria possível agrupar o patrimônio em quatro vertentes,
que se entrecruzam. A primeira delas é a do patrimônio musical espacial, contemplando
os espaços onde se pratica música, como os teatros, as igrejas, dentre outros. Já o
patrimônio musical organológico seria constituído pelas fontes emissoras de som,
especialmente os instrumentos musicais. Neste trabalho, órgãos tubulares e harmônios
tiveram lugar de destaque. Documentos musicográficos – partituras, tablaturas e outros
–, audiovisuais em diversos suportes, dentre outras tipologias se encontram na
categoria do patrimônio musical documental. Finalmente, o patrimônio propriamente
musical é aquele sonoro, que se inscreve nas práticas musicais. Com base neste rol, a
pesquisa de campo teve um olhar orientado para uma gama maior de possíveis fontes
para a compreensão das práticas musicais do passado no catolicismo romano,
incluindo-se desde o patrimônio edificado até a documentação musicográfica.

Finalmente, a realização desta pesquisa se baseia na compreensão de que a história


da música é, nos termos de Carl Dahlhaus (2003), memória cientificamente formulada,
e que esta memória se inscreve em documentos recolhidos aos arquivos (SANTOS et
al., 2011), mas também no patrimônio cultural preservados em bibliotecas (MOUREN,
2007). Tal memória reflete identidades construídas no passado, mas também pode
servir à compreensão daquelas que também se estabelecem no presente, uma vez que
as identidades se fundam em memórias (CANDAU, 2011).

Resultados e discussão

Foi possível listar uma razoável quantidade de harmônios em igrejas: na Sé (Catedral),


na capela do Hospital Dom Luiz I (Sociedade Beneficente Portuguesa), na Igreja de
Santo Antônio, todos em Belém, bem como nas matrizes de Abaetetuba e Igarapé-Miri.
Órgãos tubulares foram localizados em Belém, sendo um instrumento francês, de fatura
Cavaillé-Coll, na Sé; dois instrumentos de fatura Bohn, empresa que funcionou por
algumas décadas no Rio Grande do Sul, sendo que um deles – na Basílica de Nazaré
passou – segundo relatos – por uma intervenção, tornando-o um híbrido entre tubular e
eletrônico, e hoje tem tido pouco uso; e uma caixa de órgão do século XVIII na Igreja do
Carmo, praticamente sem tubos e com o estado do móvel bastante degradado.
Também foi localizado um órgão positivo na Matriz de Santana, na cidade de Óbidos,
que foi trazido para a cidade de Juruti na primeira década do século XXI por um
missionário alemão, encontrando-se hoje na sede da diocese. Ademais, foram
localizados diversos órgãos eletrônicos, dos quais se destaca com particular interesse
os instrumentos recolhidos ao museu da Catedral de Santarém.

A Sé de Belém possui um acervo musical em fase corrente, de seu Schola cantorum.


Há informações de que também estariam recolhidos à mesma catedral fontes mais
antigas, contudo, não foram obtidos dados consistentes até o momento, especialmente
pelo fato de inexistir, ao menos aparentemente, uma identificação do patrimônio
documental de caráter musicográfico como parte do acervo artístico das igrejas. Na
capela do Hospital Dom Luiz I existe um acervo de aproximadamente meio metro linear
de documentos musicográficos, já tendo sido realizado seu tratamento. A Basílica de
Nazaré também possui uma biblioteca com documentos musicográficos utilizados pelos
religiosos barnabitas que a administram, bem como um arquivo. O acesso a tais
acervos se encontra restrito, entretanto, até o momento, uma vez que passam por
processos de reorganização. Quanto ao acervo do antigo seminário, sediado por algum
tempo no conjunto arquitetônico jesuítico, há informações de que tenha sido levado
para o antigo Centro de Cultura e Formação Cristão, hoje, Universidade Católica, na
cidade de Ananindeua. Apesar de a bibliotecária ter apontado a existência de caixas de
livros mais antigos no acervo da biblioteca, não soube dizer de seu conteúdo, tampouco
autorizou o acesso a esta parte do acervo, pelo fato de ainda não ter sido catalogado.

Nas igrejas matrizes, arquivos diocesanos e em algumas paróquias nas cidades de


Acará, Abaetetuba, Barcarena, Bragança, Breves, Cametá, Capanema, Castanhal,
Conceição do Araguaia, Colares, Concórdia do Pará, Curralinho, Igarapé-Miri, Igarapé-
Açu, Moju, Oeiras do Pará, Oriximiná, Ponta de Pedras, Santarém, Santo Antônio do
Tauá, Tomé-Açu, Vigia e Viseu não foram apontadas as existências de acervos
musicais históricos recolhidos às secretarias ou arquivos. O fato não implica
necessariamente, contudo, a inexistência de tais acervos, mas pode representar um
desconhecimento por parte dos atendentes ou até mesmo a deliberada intenção de não
apresentar o acervo. Na cidade de Óbidos foi localizado um acervo de documentação
musicográfica de abrangência temporal considerável, de mais de sete décadas, relativo
ao coral da Igreja Matriz de Santana. A localização deste acervo exemplifica a ressalva
apresentada: após um primeiro contato com a secretaria da igreja, quando houve uma
negativa da existência de qualquer acervo, foi possível realizar um contato –
intermediado pelo museu municipal – com a antiga regente do coro, e somente então
foi obtida a autorização do pároco para o acesso à documentação e a efetiva pesquisa,
realizada nas dependências da secretaria da igreja.

No Pará, existe ainda considerável documentação musicográfica relativa às práticas


musicais no catolicismo romano, porém em outras instituições que não as igrejas, tais
como as bandas de música e as bibliotecas. Por não se encontrarem sob a custódia da
instituição religiosa, estes acervos não serão aqui abordados. Há de se destacar ainda
a presença de diversas ordens e congregações religiosas no estado, ainda hoje,
devendo ser aprofundada a pesquisa em várias delas, instaladas, sobretudo, a partir de
fins do século XIX – período conhecido como Romanização (DUARTE, 2016) – tais
como as religiosas Filhas de Santana, os religiosos maristas e os salesianos, que hoje
administram, por exemplo, o conjunto edificado do Carmo, na cidade de Belém.
Ademais, a pesquisa de campo deverá ser repetida nas diversas cidades visitadas, a
fim de afastar ou certificar as informações acerca da inexistência de acervos musicais.

Conclusões

A pesquisa revela a existência de acervos musicais documentais em distintas cidades


paraenses no âmbito do catolicismo romano. Para além das fontes musicográficas em
suporte de papel, instrumentos musicais, tais como órgãos e harmônios localizados
apontam para a necessidade de projetos de salvaguarda, que devem passar, em
muitos casos, pela busca por uma função social para tais instrumentos. Observa-se,
finalmente, a necessidade de um reconhecimento como uma expressão de seu
patrimônio, dos documentos musicográficos, de instrumentos musicais e de outros
vestígios materiais ligados às práticas musicais católicas por parte da instituição, bem
como de recursos humanos devidamente capacitados para sua salvaguarda.

Palavras-Chave: Música religiosa – Igreja Católica; Atividade musical nas igrejas do


Pará; Romanização e Restauração musical católica; Partituras de música sacra.

Agradecimentos

A realização desta pesquisa não teria sido possível sem o financiamento da


Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, por meio da bolsa do
Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES). Registre-se ainda o
agradecimento a todas as pessoas e entidades custodiadoras de acervos que se
dispuseram a colaborar com esta investigação.

Referências Bibliográficas

CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011.


CASTAGNA, Paulo. Desenvolver a arquivologia musical para aumentar a eficiência da
Musicologia. In: ROCHA, Edite e ZILLE, José Antônio Baêta (orgs.). Musicologia[s].
Barbacena: EdUEMG, 2016. p. 191-243.
DAHLHAUS, Carl. Fundamentos de la Historia de la Música. Barcelona: Gedisa, 2003.
DUARTE, Fernando Lacerda Simões. Resgates e Abandonos do Passado na Prática
Musical Litúrgica Católica no Brasil entre os Pontificados de Pio X e Bento XVI (1903-
2013). São Paulo, 2016. 495 f. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes, UNESP,
São Paulo, 2016.
EZQUERRO ESTEBAN, Antonio. Desafios da Musicologia Panhispanica na atualidade:
uma reflexão. In: ROCHA, Edite; ZILLE, José Antonio B. (org.). Musicologia[s]. Belo
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GÓMEZ GONZÁLEZ, P. J. et al. El Archivo de los Sonidos: la gestión de fondos
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MOUREN, Raphaële (org.). Manuel du Patrimoine en Bibliothèque. Paris: Electre –
Éditions du Cercle de la Librairie, 2007.
SANTOS, Tânia Cristina Franco et al. A Memória, o Controle das Lembranças e a
Pesquisa em História da Enfermagem. Escola Anna Nery: Revista de Enfermagem, Rio
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