Educacao de Surdos Efeitos de Modalidade e Pratica
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Resumo
Ao longo dos anos do meu trabalho, tenho percebido que os insights teóricos nas áreas
da educação e da lingüística em relação à educação de surdos se traduzem em práticas
de ensino nas conversas que tenho com os professores e instrutores de língua de
sinais. Assim, este texto apresenta uma característica diferenciada das demais
produções que tenho feito, ele enfatizará exatamente estas práticas que temos pensado
a partir das reflexões sobre a educação de surdos dentro e fora da sala de aula numa
perspectiva bilíngüe.
Palavras-chaves
Educação de surdos – práticas pedagógicas visuais – efeitos de modalidade
Breve histórico
1
Esta pesquisa está sendo financiada pela CAPES/PROESP e pelo FUNCITEC.
2
Educação bilíngüe implica na utilização de duas línguas em espaços diferentes dentro da escola. Há
vários tipos de bilingüismo que não serão considerados aqui em função da presente proposta limitar-se
às implicações de forma geral. Cabe ressaltar que todas as discussões sobre educação bilíngüe no
mundo estão impregnadas de questões políticas, sociais e culturais (ver Skliar, 1997a, b,c).
forma o ensino da escrita utilizando todas as propostas de ensino do português da
educação regular, obviamente o fracasso também é observado. Agrava-se o fracasso
dos alunos surdos, tendo em vista que essa escrita nem sequer relaciona-se com a
língua de sinais, mas sim com uma língua que a ele é estranha (situação comumente
observada especialmente em classes regulares de ensino).
Ao longo da história da educação de surdos no Brasil sempre houve uma
preocupação exacerbada com o desenvolvimento da linguagem. Essa preocupação,
não menos importante que quaisquer outras na área da educação, tornou-se quase que
exclusiva, perdendo-se de vista o processo educacional integral da criança surda. Há
várias razões para tal fato, dentre elas, o fato das crianças serem surdas tornava
fundamental a discussão sobre o processo de aquisição da linguagem, tendo em vista
que tal processo era traduzido por línguas orais-auditivas. As crianças surdas dotadas
das capacidades mentais precisavam recuperar o desenvolvimento da linguagem e por
essa razão, até os dias de hoje, há pesquisas que procuram um meio de garantir o
desenvolvimento da linguagem em crianças surdas através de métodos de oralização.
“Fazer o surdo falar e ler os lábios permitirá o acesso à linguagem”, frase repetida
ao longo da história e que tem garantido o desenvolvimento de técnicas e metodologia
altamente especializadas 3 .
Entretanto, apesar de todo esse empenho, os resultados que advém de tal esforço
foram drásticos. A maior parte dos adultos surdos brasileiros demonstram o fracasso
das inúmeras tentativas de se garantir linguagem através da língua oral-auditiva do
país, a língua portuguesa. Todos os profissionais envolvidos na educação de surdos
que conhecem surdos adultos admitem o fracasso do ensino da língua portuguesa, não
somente enquanto língua usada para a expressão escrita, mas, principalmente,
enquanto língua que permite o desenvolvimento da linguagem.
Muitos desses adultos surdos buscam inconscientemente “salvar/resgatar” o seu
processo de aquisição da linguagem através da língua brasileira de sinais - língua de
sinais brasileira. A raça humana privilegia tanto a questão da linguagem, isto é, a
linguagem é tão essencial ao ser humano que, apesar de todos os empecilhos que
possam surgir para o estabelecimento de relações através dela, os seres humanos
buscam formas de satisfazer tal natureza. Os adolescentes, os adultos surdos, logo
quando se tornam mais independentes da escola e da família, buscam relações com
outros surdos através da língua de sinais. No Brasil, as associações de surdos
brasileiras foram sendo criadas e tornando-se espaço de “bate-papo” e lazer em sinais
para os surdos, enquanto as escolas especiais “oralizavam” ou as escolas
“integravam” crianças surdas nas escolas regulares de ensino. Percebe-se, aqui, um
movimento de resistência por parte dos surdos a um processo social, político e
lingüístico que privilegiou o parâmetro do normal. Os surdos buscam através da
língua a constituição da subjetividade com identidade surda em que o reconhecimento
da própria imagem acontece através das relações sociais entre surdos determinando a
significação do próprio eu. Portanto, a aquisição da linguagem é fundamental para que
o sujeito surdo possa reescrever-se através da interação social, cultural política e
científica.
3
Note que aqui se percebe claramente o caráter clínico-terapêutico de tais propostas.
as crianças ouvintes têm a uma língua oral-auditiva 4 . No Brasil, a língua de sinais
brasileira começou a ser investigada na década de 80 (Ferreira-Brito, 1986) e a
aquisição da língua de sinais brasileira nos anos 90 (Karnopp, 1994; Quadros, 1995)5 .
Todos esses estudos concluíram que o processo das crianças surdas adquirindo
língua de sinais ocorre em período análogo à aquisição da linguagem em crianças
adquirindo uma língua oral-auditiva. Assim sendo, mais uma vez, os estudos de
aquisição da linguagem indicam universais lingüísticos. O fato do processo ser
concretizado através de línguas visuais-espaciais, garantindo que a faculdade da
linguagem se desenvolva em crianças surdas, exige uma mudança nas formas como
esse processo vem sendo tratado na educação de surdos.
A aquisição da linguagem em crianças surdas deve acontecer através de uma
língua visual-espacial. No caso do Brasil, através da língua de sinais brasileira. Isso
independe de propostas pedagógicas (desenvolvimento da cidadania, alfabetização,
aquisição do português, aquisiç ão de conhecimentos, etc.), pois é algo que deve ser
pressuposto. Diante do fato das crianças surdas virem para a escola sem uma língua
adquirida, a escola precisa estar atenta a programas que garantam o acesso à língua de
sinais brasileira mediante a interação social e cultural com pessoas surdas. O processo
educacional ocorre mediante interação lingüística e deve ocorrer, portanto, na língua
de sinais brasileira. Se a criança chega na escola sem linguagem, é fundamental que o
trabalho seja direcionado para a retomada do processo de aquisição da linguagem
através de uma língua visual-espacial6 . Digo que a aquisição da linguagem é
essencial, pois através dela, mediante as relações sociais, se constituirá os modos de
ser e de agir, ou seja, a constituição do sujeito. Como mencionado por Góes
(2000:31), a produção de significados em relação ao mundo da cultura e a si próprio
é um processo necessariamente mediado pelo outro, é efeito das relações sociais
vivenciadas (...) através da linguagem.
Nesse sentido, o currículo deveria estar organizado partindo de uma perspectiva
visual-espacial para garantir o acesso a todos os conteúdos escolares na própria língua
4
Privilégio porque representam apenas 5% das crianças surdas, ou seja, 95% das crianças surdas são
filhas de pais ouvintes e que, portanto, na maioria dos casos, não dominam uma língua de sinais.
5
Para mais detalhes sobre a aquisição da linguagem por crianças surdas através da ASL e da língua de
sinais brasileira ver Quadros (1997).
6
Neste caso, poder-se-ia redefinir o papel do fonoaudiólogo nas instituições que atendem surdos. Não
mais como àquele que tem a função de trabalhar com a oralização, mas como àquele que trabalhará
com a linguagem e seus distúrbios gerados pelo fato das crianças terem acesso a língua de sinais
brasileira tardiamente e , também, com os distúrbios de linguagem comuns às crianças que adquirem
da criança, pois a língua oficial da escola precisaria ser, desde o princípio, a língua de
sinais brasileira. É a proposição da inversão, assim está-se reconhecendo a diferença.
A base de todo processo educacional é consolidada através das interações sociais. A
língua passa a ser, então, o instrumento que traduz todas as relações e intenções do
processo. Os discursos em uma determinada língua serão organizados e, também,
determinados pela língua utilizada como a língua de instrução. Ao expressar um
pensamento em língua de sinais, o discurso utilizado na língua de sinais utiliza uma
dimensão visual que não é captada por uma língua oral-auditiva, e, da mesma forma, o
oposto é verdadeiro. Além desse nível de representação lingüística, os discursos vão
expressar relações de poder. Ao optar-se em manter a língua portuguesa como a
língua referencial da educação de surdos, já se tem indício das intenções perpassadas
em função dos efeitos sociais que se observam. Assim, prestar atenção nos
interlocutores dos alunos surdos, também passa a apresentar papel crucial, pois os
discursos reproduzidos nas línguas utilizadas representam as relações existentes na
escola.
Na linha de análise da Góes (2000), é interessante mencionar a problematização
a respeito da constituição da subjetividade/identidade surda ao analisar os casos de
alunos surdos adquirindo a língua de sinais com pessoas ouvintes (casos típicos em
escolas especiais e escolas regulares onde há uma preocupação com a língua de
sinais). A autora aponta que esse processo é constituído de forma cruzada, híbrida, em
que a língua de sinais é misturada com o português.
(Góes, 2000:41-42)
uma língua falada só que em sinais (na linha da lingüística clínica, mas com uma língua visual-
espacial).
Assim sendo, a atenção ao processo de aquisição da linguagem requer também a
observância dos interlocutores que a criança surda terá ao interagir na língua de sinais.
Letramento
Quando se reflete sobre a língua que a cria nça surda usa, a língua de sinais
brasileira, e o contexto escolar, também se pensa em letramento 7 . As crianças surdas
têm sido alfabetizadas através de um processo similar às crianças ouvintes que
dispõem do português como língua materna. Os professores desconhecem a
experiência visual surda e suas formas de pensamento que são expressas através de
uma língua visual-espacial: a língua de sinais. Vimos até aqui que as crianças surdas
adquirem a linguagem passando pelos mesmos processos observados na aquisição de
crianças ouvintes adquirindo uma língua falada. Em relação à aquisição da leitura e
escrita, as crianças passam pelos diferentes níveis desse processo mediante interação
com a escrita construindo hipóteses e estabelecendo relações de significação que
parecem ser comuns a todas as crianças (Ferreiro e Teberosky, 1985). Esse mesmo
processo deve acontecer com as crianças surdas. Entretanto, as crianças surdas devem
estabelecer visualmente relações de significação com a escrita.
Considerando a escrita de sinais, forma escrita que é formada por unidades que
correspondem às configurações de mão, os movimentos e as expressões faciais
gramaticais em diferentes pontos de articulação que formam palavras mediante
algumas combinações, o processo de letramento vai se desenvolver em crianças
surdas mediante a interação com a escrita da língua de sinais, ou seja, com grafemas,
com sílabas e com palavras que representam diretamente a língua de sinais brasileira.
No entanto, essa escrita não é alfabética, mas ideográfica. Assim, a criança surda não
precisará chegar no nível alfabético para ser considerada alfabetizada. Pesquisas que
analisam a aquisição de uma segunda língua escrita alfabética em alunos alfabetizados
em uma escrita ideográfica teriam que ser consideradas em estudos futuros em relação
ao processo de alfabetização de surdos no português.
7
Usamos letramento na concepção utilizada por Soares (2001:18): letramento é o resultado da ação de
ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um
indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita. O termo letramento está relacionado,
então, a habilidade em usar diferentes tipos de textos escritos, compreende-los, interpreta-los e extrair
informações deles. Por outro lado, o termo clássico “alfabetização” limita-se ao domínio da leitura e
escrita e é o termo utilizado para referir à aprendizagem da leitura e escrita na série inicial.
A partir dos vários estudos sobre o estatuto de diferentes línguas de sinais e seu
processo de aquisição, muitos autores passaram a investigar o processo de aquisição
por alunos surdos de uma língua escrita que representa a modalidade oral-auditiva
(Andersson, 1994; Ahlgren, 1994; Ferreira-Brito, 1993; Berent, 1996; Quadros, 1997;
entre outros). A aquisição do sueco, do inglês, do espanhol, do português por alunos
surdos é analisada como a aquisição de uma segunda língua. Esses educadores e
pesquisadores pressupõem a aquisição da língua de sinais como aquisição da primeira
língua e propõem a aquisição da escrita da língua oral-auditiva como aquisição de
uma segunda língua. O impacto disso é muito mais significativo do que se imagina. O
fato de a língua falada passar a ter uma representação secundária representa também
uma inversão. Nesse sentido, capta-se uma das diferença essenciais do ser surdo.
Uma proposta educacional para surdos deve considerar, entre outras questões
fundamentais, essas implicações lingüísticas. Considerando o contexto de inclusão em
escolas regulares de ensino, surge uma série de problemas na educação de surdos. O
primeiro grande entrave é a questão da linguagem: como a escola regular vai garantir
o processo de aquisição da linguagem através da língua de sinais brasileira? A partir
dessa questão surgem tantas outras... Quem serão os interlocutores das crianças surdas
na escola comum? Como a escola vai garantir o acesso aos conhecimentos escolares
na língua de sinais brasileira em escolas que utilizam o português como língua oficial?
Como a escola regular de ensino vai garantir ao aluno surdo o seu processo de
alfabetização na escrita da língua de sinais brasileira? Como será a ele garantido o
acesso ao português com estratégias de ensino baseadas na aquisição de segunda
língua?
Os estudos sobre as línguas de sinais trazem a inauguração de um novo olhar
sobre o estatuto destas línguas a partir dos efeitos de modalidade: a língua é visual-
espacial diferentemente de uma língua oral-auditiva. Pensar sobre todos esses
aspectos e as suas conseqüências dentro da sala de aula implicam em reestruturação
curricular. Depois de discutir tais aspectos com os professores de surdos e instrutores
de língua de sinais começamos a pensar nas práticas educativas. Assim, a seguir,
vamos estar listando algumas das nossas incursões.
8
Entende-se “identidade” no sentido explicitado por Silva (2000:69): como o conjunto de
características que distinguem os diferentes grupos sociais e culturais entre si. No campo dos estudos
culturais, a identidade cultural só pose ser entendida como um processo social discursivo. No caso
específico dos surdos, entende-se cultura surda como a identidade cultural de um grupo de surdos que
se define enquanto grupo diferente de outros grupos. Como diz Perlin (1998:54), os surdos são surdos
em relação à experiência visual e longe da experiência auditiva.
- atividades de rotina em sinais
- brincadeiras e jogos em sinais
- realização de experiências em sinais
- hora do conto em sinais
- passeios
- atividades diversas com as comunidades surdas locais
- mini-palestras dadas por outras pessoas surdas das comunidades locais ou de
outras comunidades nacionais e internacionais
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