A Questão Da Educação de Surdos
A Questão Da Educação de Surdos
A Questão Da Educação de Surdos
Ora, quando se opta por interpretar a língua de sinais como primeira língua a ser
considerada no processo educativo dos surdos, tem-se que entender que tal proposição, como
decorrência, altera toda a organização escolar, os objetivos pedagógicos, a participação da
comunidade surda no processo escolar, bem como nega a necessidade da integração escolar.
No Brasil a integração escolar de surdos tem sido defendida pelo poder oficial que, com
um discurso que apela às emoções, tem tentado disseminar a idéia de que é um ato de
discriminação colocar os surdos, bem como qualquer outro tipo de “deficiente”, tristemente
isolados em escolas especiais – atribui-se que é um atentado à modernidade, ou ao avanço
tecnológico, ainda se desejar manter grupos “isolados”. Defende-se a idéia de que colocar os
“deficientes” junto às pessoas “normais” é um sinal de grande avanço impulsionado pela
solidariedade. O foco é colocado nas concessões e ajustes que as escolas e instituições devem
fazer para “receber” a estes. A idéia é manter “todos” juntos para assimilar a diversidade. O
que não fica muito explícito, no entanto, é que a separação do outro pode ser conseguida,
apesar da aproximação física, por restrição da comunicação; ou seja: “separação com o
propósito de criar uniformidade” (Wrigley, 1996, p. 52).
Incluir surdos em salas de aula regulares, invibializa o desejo dos surdos de construir
saberes, identidades e culturas a partir das duas línguas (a de sinais e a língua oficial do país)
e impossibilita a consolidação lingüística dos alunos surdos. Não se trata de apenas aceitar a
língua de sinais, mas de viabilizá-la, pois todo trabalho pedagógico que considere o
desenvolvimento cognitivo tem que considerar a aquisição de uma primeira língua natural
(este é o eixo fundamental do “bilingüismo”, tal como o defendemos). De outra forma, como
a criança estabelecerá contato com o mundo de representações que a cerca? Como tecerá suas
próprias significações? Ao contrário, caso a criança surda tenha uma língua natural, ela
contará com a base para a aquisição de uma segunda língua, pois terá as condições ótimas
para o desenvolvimento de sua cognição, de sua auto-estima e de sua identidade.
Quando se defende a língua de sinais como primeira língua não se está afirmando que o
desenvolvimento cognitivo depende exclusivamente do domínio de uma língua, mas se está
crendo que dominar uma língua garante melhores recursos para as cadeias neuronais
envolvidas no desenvolvimento dos processos cognitivos. Assim, objetivamente, o que
pretendem os defensores do “bilingüismo” é garantir o domínio de uma língua para dar bases
sólidas ao desenvolvimento cognitivo do indivíduo (Fernandez, 2000, p. 49). Destaco, com
Eulália Fernandez, que o uso do termo “bilingüismo”, no entanto, também exige o cuidado de
não se estar pretendendo uma exclusividade para a língua de sinais (como se o surdo não
fosse capaz de aprender a língua da comunidade majoritária), ou seja: “Defendemos um
bilingüismo, não um monolingüismo às avessas” (Fernandez, 2000, p. 50). No entanto, Owen
Wrigley adverte: “o acesso a ambas as modalidades parece inconveniente demais para ser
levado em consideração” (1996, p. 32).
O que se vê no cotidiano atual, ainda baseado no Oralismo ou na Comunicação Total, é
que geralmente a criança surda não tem acesso ao conhecimento comunitário e cultural
através de uma língua. Concordo com Luis Behares quando diz: “Ainda que a terapia de fala
comece precocemente, não é cientificamente possível esperar que a língua oral se constitua
imediatamente em um instrumento natural de interação e construção cognitiva” (2000?, p. 5).
Geralmente é a escola que atua como “doadora” ou “informante da linguagem, dada a
estatística de que 96% dos surdos nascem em famílias de ouvintes. A escola, portanto, se
reveste de uma importância crucial, pois é ela quem pode compensar os déficits sócio-
culturais aos quais a criança surda está exposta por estar numa comunidade majoritariamente
ouvinte.
Ora, uma educação bilíngüe é muito mais que o domínio ou uso, em algum nível, de
duas línguas. Neste texto procuro ultrapassar o campo restrito desta discussão pois este não
dá conta de abarcar todas as questões envolvidas. É necessário ver a educação de surdos
sendo caracterizada tanto como uma educação bilíngüe como também enquanto uma
educação multicultural. Esta não é uma mera decisão de natureza técnica, é uma decisão
politicamente construída e sociolingüisticamente justificada (Skliar, 1999a, p. 10). Uma
educação bilíngüe que não seja embasada em uma perspectiva multicultural corre o risco de
valorizar a questão lingüística e esquecer todo os demais aspectos interrelacionados.
3
Relatório Final do Encontro de Especialistas para Rever a Implementação do Programa Mundial de Ação em
Relação aos Deficientes – Estocolmo – 17 a 22/8/87, citado por Wrigley (1996, p. xiii).
ressignificações e novas interpretações sobre a surdez e sobre os surdos. As transformações
do cotidiano das escolas e das comunidades certamente virão como decorrência destas novas
visões.
Não se deve, nem se pode, delimitar as questões pertinentes à educação de surdos como
se se tratasse de modelos conceituais opostos. Qualquer questão pontuada na área da
educação em geral deve ser sempre estudada não como se estivesse em linhas opostas, mas,
em territórios irregulares, assimétricos, contestados, isto porque são enfrentadas relações de
poder/saber, também assimétricas e irregulares, que constantemente e dinamicamente
atravessam e delineiam os projetos pedagógicos e as políticas públicas.
Tais novas visões quanto à surdez e os surdos força a tomada de posição diante da
encruzilhada na qual a educação de surdos se encontra: ou continua sendo mantida dentro dos
paradigmas da “Educação Especial” ou aprofunda-se num novo campo conceitual - os
Estudos Surdos, aproximando-se de outras linhas de pesquisa e estudo em educação (Skliar,
1998b:11). Os estudos sobre a surdez e sobre a educação de surdos, feitos, inclusive, pelos
próprios, estão situando-se atualmente na direção de outras linhas de estudo como: os estudos
negros, os estudos de gênero, os estudos de classes populares, etc. Isto inclui a educação de
surdos num contexto discursivo mais apropriado à situação lingüística, social, comunitária,
cultural e identitária das pessoas surdas. Carlos Skliar adverte: “não se trata, então, de dizer
que os surdos padecem dos mesmos problemas que todos os demais grupos minoritários,
obscuros, colonizados, subalternos e dominados. Mas, trata-se de produzir uma política de
significações que gera um outro mecanismo de participação dos próprios surdos no processo
de transformação pedagógica (ibid, p. 14).
Convém fazer um parêntese para esclarecer que entendo que a chamada “Educação
Especial” tem o seu lugar quando se refere à abordagem de questões específicas de interesse
de grupos minoritários que têm como uma das características constitutivas de suas
identidades o fato de apresentarem (ou não) alguma considerável diferença em termos
sensoriais e/ou mentais. Entendo que as questões que estão sendo tratadas pelo referencial
dos Estudos Culturais podem oferecer subsídios para a compreensão de fenômenos como
discriminação, opressão, exclusão, etc., destes grupos, mas, penso que a plenitude das
discussões teóricas, que ocorrem na linha dos Estudos Culturais, não podem ser aplicadas a
estes grupos, pois que não se constituem em “grupo cultural” (o que não é o caso dos surdos
– que têm língua, cultura e comunidades constituídas por eles próprios, tendo a surdez como
eixo identitário). É desejável que no âmbito da chamada Educação Especial passem a ser
discutidos os estudos mais recentes sobre a constituição das identidades e das subjetividades
pela eficácia do poder das representações dominantes e hegemônicas sobre a
“deficiência/anormalidade”, o que certamente trará contribuições que poderão alterar muitos
dos quadros que hoje se delineiam, os quais condenam pessoas com alguma diferença
sensorial, motora ou mental, a serem tratadas no escopo do assistencialismo, da caridade
pública e da negação de suas vozes, sentimentos e identidades.
Com apoio em Carlos Skliar, podemos assim definir os Estudos Surdos no contexto da
educação:
Caminhando nesta direção, entendo que os surdos formam uma minoria cultural não
melhor nem pior que outras minorias, apenas diferente. As minorias culturais costumam ser
oprimidas e dominadas pelas culturas que exercem maior poder, no entanto, é importante que
se destaque que, uma minoria cultural nem sempre é uma minoria quantitativa, pois existem
minorias quantitativas que exercem maior poder sobre os sentidos e os significados, seja este
poder econômico, de decisão, de enunciação, etc. Os Estudos Culturais, então, inscrevem-se
na luta para que todas as culturas venham a ser consideradas na rede social. Para que isto seja
possível, uma das áreas de maior conflito/interesse é a área da educação, por seu poder
constituidor de subjetividades. Assim, os Estudos Culturais envolvem uma educação
multicultural.
Por estes mesmos Estudos, se vem a entender que toda educação está envolvida num
contexto de luta entre os grupos culturalmente dominantes e os culturalmente dominados. No
entanto, os grupos culturalmente dominados geralmente buscam modificar, por meio de suas
ações, de seus posicionamentos, de seus discursos, a lógica através da qual a sociedade
produz sentidos e significados sobre si mesma e sobre os grupos que a constituem – daí se
pode depreender o valor de se estudar os grupos culturalmente dominados e as propostas
educacionais a eles dirigidas.
Assim, os Estudos Surdos se incluem entre os temas multiculturalistas. Estes, por sua
vez, se incluem no debate sobre a democratização das relações de poder nas sociedades de
modo geral. As lutas políticas que estes conceitos demandam, contribuem para as tentativas
de negação dos preconceitos que se têm sobre os surdos, mas, estas lutas e estes novos
conceitos ainda não conseguiram quebrar as resistências no “sistema brasileiro de ensino”,
pois seus gestores se crêem conhecedores das melhores maneiras de se educar um surdo, no
entanto, estes mesmos – os surdos – geralmente não são chamados ao menos a expressar sua
opinião sobre o projeto educacional e sobre as políticas educativas mais adequadas para
atender à sua especificidade.