Querida Konbini
Querida Konbini
Querida Konbini
Se você for a quase qualquer cidade grande do mundo, em quase qualquer país
ocidental ou oriental, verá uma certa rede de restaurantes vermelho-amarela vendendo
produtos oriundos de tubérculos que têm precisamente o mesmo gosto do que aqueles
vendidos do outro lado do globo. Se você observar um casal médio na Europa e sua
contrapartida no México, verá que seus planos, desejos, ambições e objetivos são, em sua
maioria, similares: um emprego, companheirismo, uma prole, a morte. Se você observar
um adolescente na Turquia, cantando suas músicas em turco e também em inglês, e
compará-lo com um jovem brasileiro da mesma faixa etária, verá que, em grande parte,
as músicas serão similares, os trajes parecidos, os trejeitos semelhante, e as ambições
também.
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Keiko respira, acorda, esforça-se, cuida-se, come e dorme em função da konbini.
A loja, porque definidora de sua existência, torna-se parte de seu corpo de maneira literal,
a ponto de ela não saber ou decidir fazer qualquer coisa que não seja em função da
“caixa”, como ela chama a konbini: “Sabendo que quase todo o meu corpo é composto
por comidas e bebidas da konbini, sinto que também sou parte dela, como os produtos da
papelaria dispostos nas prateleiras ou a máquina de café” (p. 30); ou “Depois de desligar
o telefone, vi por acaso minha imagem no espelho. Eu tinha envelhecido desde que
nascera como funcionária” (p. 76; apesar de nesse caso não ocorrer, por vezes a narradora
utiliza “funcionária” com letra maiúscula).
Keiko enfrenta outra batalha social, ainda que seu embotamento mental não lha
permita tomar conta disso completamente. A posição de Keiko junto à família é de
dubiedade: a família, ainda que simpatize superficialmente com ela e sua condição,
condena-a por continuar a ser “estranha” (termo utilizado no romance), ou seja, virgem
aos trinta e seis anos, sem nunca ter tido um relacionamento amoroso, em um emprego
temporário destinado ao estrato social mais inferior, sem qualquer ambição de mudança
e deixando os familiares perplexos por não ter qualquer consciência disso. Ela é a imagem
daqueles que estão fora dos padrões, que ou não têm ambições ou têm propostas de vida
diferentes da maciça maioria que compõe a engrenagem japonesa. Quando ela conta para
a família que mora com um homem, ela entende que é aceita pelo círculo familiar por
causa dessa aparência de normalidade, esse servir ao comum e ao esperado pela sociedade
que a envolve.
A certo ponto, Keiko resolve, após pressões que ela não aguenta, tentar um
emprego em outro lugar que não seja em konbinis. No meio tempo, Keiko se vê liberta
da vida programada que levava na loja, e não consegue fruir da “liberdade” de não estar
presa às rotinas cotidianas de funcionária. Descuida-se da aparência, pois somente no se
apresentar aos clientes ela vê sentido em se embelezar, seu ciclo de sono se altera, seus
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pensamentos escapam à mente e, no lugar, adentra um vazio perturbador, como se
houvesse morrido para o mundo ao sair do emprego. Nesse ponto, e somente nesse ponto,
ela toma uma pequena consciência do parasitismo de Shiraha e das amarras que a família
e a sociedade lhe impõem. No entanto, preenchida totalmente pela aura da konbini, ela
nega as pressões e se propõe a retornar a esse mundo do qual brevemente se afastara.
Querida konbini pode ser compreendido como um romance que retrata a vida
social japonesa e suas prisões, tais como emprego, sucesso, aparências, máscaras e as
pressões familiares exercidas desde a infância até a morte, conforme a narradora atesta
diversas vezes ao longo de todo romance. Trata-se de um retrato de um problema social
atual que, em última análise, levará à ascensão geométrica do hikikomori, essa figura
reclusa que já atinge um estado de preocupação alarmante não somente na sociedade
japonesa, mas também em alguns pontos do Ocidente.