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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Faculdade de Ciências Sociais


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais

Rafael Balseiro Zin

Maria Firmina dos Reis:


a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista

Mestrado em Ciências Sociais

São Paulo
2016
Rafael Balseiro Zin

Maria Firmina dos Reis:


a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista

Dissertação apresentada à banca examinadora


como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Ciências Sociais, pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Orientador: Prof. Dr. Miguel Wady Chaia

São Paulo
2016

2
Banca examinadora:

_____________________________________
Prof. Dr. Miguel Wady Chaia (PUC-SP)

_____________________________________
Profa. Dra. Rosemary Segurado (PUC-SP)

_____________________________________
Profa. Dra. Ligia Fonseca Ferreira (Unifesp)

3
(...) à Cristiane Laudemar Rodrigues,
musa de ébano do século XXI,
em continuação.

4
AGRADECIMENTOS

Todo e qualquer trabalho de natureza intelectual não é possível de ser realizado sem
que, nele, haja a contribuição e o envolvimento de uma dada coletividade. Em meio ao longo
caminho que uma empreitada como essa sugere, no entanto, os desafios e conquistas
oriundos da atividade de pesquisa devem ser encarados, sem alardes, como pressupostos do
fazer científico. Por tal motivo, nas linhas a seguir, reservo apenas algumas breves palavras
e os meus mais sinceros agradecimentos a todos aqueles que, de perto ou de longe, me
acompanharam e me incentivaram durante esse percurso.
Ao meu querido orientador, professor Miguel Wady Chaia, companheiro de reflexões
e de estudos, pela confiança depositada, por todo carinho e dedicação que teve comigo e por
ter me aberto caminhos teóricos e metodológicos que fizeram com que a realização dessa
dissertação se tornasse mais leve e mais prazerosa. Tenho por você, Miguel, profundo
respeito e admiração.
À professora Norma Abreu Telles (PUC-SP), pioneira nas ciências sociais nos
estudos acerca das escritoras brasileiras oitocentistas, cuja atenção e cuidado me fizeram ter
mais segurança e determinação, além de ter me agraciado com um raro exemplar, em livro,
sobre a vida e a obra de Maria Firmina dos Reis, sem o qual, a condução dessa pesquisa teria
sido bastante dificultada.
À professora Ligia Fonseca Ferreira (Unifesp), intelectual engajada, atenta e
precursora, em muitos aspectos, das reflexões que ora apresento. A cada novo encontro que
a vida nos oferecia, minhas indagações com relação a esse e outros assuntos aumentavam, o
que me fez ter mais fôlego e força de vontade para a realização desse trabalho.
À professora Rosemary Segurado (PUC-SP), que vem me acompanhando desde o
primeiro ano de graduação na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, por estar sempre
presente e disposta a compartilhar saberes, afetos e sorrisos. Se galguei degraus mais altos
na escalada da vida, Rose, boa parte é porque me espelho em você e na sua maneira de lidar
com as pessoas e com o mundo ao seu redor.
Ao professor Eduardo de Assis Duarte (UFMG), a quem devo meus primeiros
contatos com a produção literária de Maria Firmina dos Reis, pela forma solidária com que
transmite o conhecimento às novas gerações e por ser um pensador, para além da academia,
preocupado com os processos de transformação social através da literatura.

5
Aos professores Mário Augusto Medeiros da Silva (Unicamp), Cláudio Costa
Pinheiro (UFRJ), Bernardo Buarque de Hollanda (FGV-SP), João Marcelo Ehlert Maia
(FGV-Rio), Vinícius Mariano de Carvalho (King's College London) e Wander Melo
Miranda (UFMG), pelas leituras críticas e pelos ricos e frutíferos apontamentos direcionados
ao projeto inicial dessa pesquisa, que foi apresentado e debatido na 4ª e na 5ª edição do Ateliê
do Pensamento Social, evento de fundamental importância para jovens pesquisadores, como
eu, organizado pelo Laboratório de Pensamento Social da Fundação Getúlio Vargas, nos
anos de 2014 e 2015, respectivamente, nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, e que
muito contribuíram para o aprimoramento de minhas inquietações iniciais e para o
aperfeiçoamento desse trabalho.
Às professoras Isabela Oliveira e Sonia Nussenzweig Hotimsky, pelas sugestões de
leitura, proposições de abordagem teórico-metodológicas e demais contribuições críticas
feitas ao pré-projeto dessa pesquisa, que foi apresentado e debatido durante as atividades do
seminário em comemoração aos oitenta anos de criação da então Escola Livre de Sociologia
e Política de São Paulo, ocorrido, em 2013, na cidade de São Paulo.
Aos demais professores e professoras da Fundação Escola de Sociologia e Política
de São Paulo, de ontem e de hoje, pelos quais nutro um permanente carinho e admiração e
por terem sido os responsáveis diretos pela minha formação primeira em ciências sociais:
Adalton José Marques, Aldo Fornazieri, Carla Diéguez, Caroline Freitas, Daniela Vieira dos
Santos, Eliana Asche, Flávio Rocha, Gabriel Pugliese, Irene Maria Barbosa, Ivan Russeff,
José Paulo Guedes Pinto, José Paulo Martins Junior, Luiz Augusto Contador Borges, Marcos
Tarcisio Florindo, Maria Cecília Turatti, Maria Palmira da Silva, Marta de Aguiar Bergamin,
Moisés Marques, Paulo Silvino Ribeiro, Sergio Luís Braghini, Rafael Araújo, Rogério
Baptistini, Roseli Coelho, Rui Tavares Maluf, Stella Christina Schrijnemaekers e Suhayla
Khalil.
Aos professores e professoras do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais (PEPGCSO) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pelos
momentos de troca e pela calorosa acolhida que tiveram comigo ao longo do curso: Ana
Amélia da Silva, Carmen Junqueira, Guilherme Simões Gomes Júnior, Maura Pardini
Bicudo Véras, Teresinha Bernardo, Vera Lúcia Michalany Chaia e, especialmente, à Carla
Cristina Garcia, que me despertou constantes questionamentos e por ter me ensinado que
determinados problemas podem ser solucionados de melhor maneira a partir do momento
em que nos permitimos trocar as lentes de observação das várias realidades sociais.

6
Aos pesquisadores e pesquisadoras do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política
(Neamp), do qual faço parte, por me servirem como fonte de inspiração e como referência
intelectual, em particular, aos meus queridos Rodrigo Estramanho de Almeida, Tathiana
Senne Chicarino e Cristina Maranhão, que acompanharam, de perto, a realização desse e de
outros trabalhos e por estarem sempre dispostos e a postos para reflexões em conjunto e bons
momentos de conversa.
Aos funcionários da secretaria acadêmica do PEPGCSO da PUC-SP, Rafael Diego
Garcia e Katia Cristina da Silva, por todo o apoio que me deram ao longo do curso, por todas
as dúvidas esclarecidas, pelo comprometimento com a administração burocrática de nossas
demandas cotidianas e por terem me recebido de braços abertos e com o sorriso no rosto,
todas as vezes que precisei de seus cuidados.
Aos alunos e alunas ingressantes, em 2014, nas turmas de mestrado e de doutorado
em ciências sociais do PEPGCSO da PUC-SP, pelo estímulo, companheirismo e paciência.
Em especial, agradeço à Alessandra Félix de Almeida, Toni D'Agostinho, Natalia Semino,
Patrícia Cucio Guisordi, Felipe de Queiroz Braga, Krisna Batista Ribeiro, Thiago Tifaldi,
Cristiana Felippe, Paulo Cadette Junior, Adriana Bibini e Rodrigo Dionisi Capelli, por
dividirem comigo os momentos mais divertidos dessa caminhada.
Aos amigos Daniel de Lucca, Natalia Negretti, Renato Canova, Juliana Lorencini,
Filipe Cordeiro, Aline Rocha de Souza, Bruno Teixeira Martins, Bruno Barros Rocha, Terine
Husek Coelho, Nathalia Oliveira, Karina Lima, Marcos Paulo Amorim, Carlos Rogério
Duarte Barreiros, Cidinha da Silva, Rafael Galante, Dulci Lima, Silvane Aparecida da Silva,
Sérgio Roberto Cardoso e Renato Botão, que, durante o mestrado e em diversas outras
oportunidades, sempre me estimularam, apresentando sugestões de leitura, novas formas de
abordagem epistemológica e instigantes possibilidades de interpretação da obra literária,
sempre em diálogo com as ciências sociais. A vocês eu ofereço todo o meu carinho.
Aos meus mais novos parceiros, com quem trabalho no Centro de Memória e Acervo
Histórico da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, por terem me recebido com
atenção e cuidado e por terem, sem saber, tornado essa dupla jornada, já na fase final de
escrita da dissertação, muito mais agradável e divertida. São eles: Diógenes Nicolau Lawand,
Elis Rabelo dos Santos, Felipe de Andrade Sanches, Mariana Costa Chazanas, Maristela
Cabral de Lira, Marlucia Naves Lemos, Mirela Geiger de Mello, Sidnei Sauerbronn e
Thayne Nicolau dos Santos. Particularmente, agradeço à Maria Cristina Noguerol Catalan,
nossa diretora, pela sensibilidade e pela generosidade que acompanham cada passo seu.

7
À Renata Tomasi, companheira de aventuras, por ter me permitido compreender que
o verdadeiro afeto é capaz de superar quaisquer adversidades e por estar sempre pronta para
me ouvir e para me aconselhar, sobretudo, nos momentos de maior confusão e de incertezas,
que não costumam ser poucos. Sem o seu carinho e sem a sua ternura, meu amor, a vida não
teria a mesma graça.
Quanto à família, agradeço à minha mãe, Leonie Isildinha Balseiro, que, até hoje,
mesmo sem entender ao certo as razões que movem as minhas escolhas, jamais colocou
empecilhos para que eu as realizasse. Todas as palavras do mundo seriam poucas para
expressar a minha admiração e a minha gratidão por você, mãe.
Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes), pela concessão da bolsa de estudos e pelos demais auxílios financeiros, sem os
quais, a minha permanência no curso de mestrado e a realização dessa pesquisa teriam sido,
praticamente, impossíveis.
Com vocês, queridos, compartilho a alegria dessa experiência e um retrato da
trajetória intelectual de Maria Firmina dos Reis, a mais ilustre das maranhenses!

8
“A recuperação da história da participação política das mulheres não
é um exercício cujo objetivo seja, apenas, o de documentar ou de
comprovar uma participação feminina, isolada, separada dos
homens, ou de cultuar alguma heroína até então desconhecida. É,
antes, o de fazer entender a participação de homens e mulheres
[brancos e negros]1 num processo comum”.

Maria Lucia de Barros Mott (1988)

1
Grifo meu.

9
RESUMO

O presente estudo tem por objetivo realizar uma investigação acerca da trajetória
intelectual da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a partir da análise
de registros biobibliográficos e de fragmentos literários extraídos do romance Úrsula,
publicado em 1859; do conto Gupeva, de 1861-2; e do conto A escrava, de 1887, com o
intuito de alcançar, criticamente, os sentidos que a autora atribuiu à causa abolicionista em
vigência naquele momento. Uma empreitada como essa, logo, permite o deslocamento da
obra literária para uma pesquisa em ciências sociais, mais especificamente, numa perspectiva
interdisciplinar, que dialoga os estudos literários com os estudos de pensamento social
brasileiro. Nessa direção, a literatura assume relevância como um objeto privilegiado de
investigação, capaz de atravessar o tempo e de oferecer ao pesquisador pistas significativas
sobre o pensamento político da escritora, as formas como aqueles sujeitos viviam em
sociedade e, não menos importante, a maneira como lidavam com as questões mais latentes
de sua geração.

Palavras-chave: Maria Firmina dos Reis; trajetória intelectual; Brasil; século XIX.

10
ABSTRACT

The present study aims to carry out an investigation about the intellectual trajectory
of Maranhão’s writer Maria Firmina dos Reis (1825-1917), from the analysis of bio-
bibliographical records and literary fragments taken from the novel Úrsula, published in
1859; Gupeva tale, 1861-2; and the tell A escrava, 1887, with the purpose of achieving,
critically, the senses that the author has assigned to the abolitionist cause in effect at that
time. A venture like this, soon, allows the offset of the literary work for a social science
research, more specifically, in an interdisciplinary perspective, who converses the literary
studies with studies of brazilian social thought. In this direction, the literature assumes
significance as a privileged object of investigation, able to cross time and offer the researcher
significant clues about the political thought of the writer, the ways that group of people lived
in society and not least, the way they dealt with the underlying issues of its generation.

Keywords: Maria Firmina dos Reis; intellectual trajectory; Brazil; 19th century.

11
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 14

1. FRAGMENTOS DE UMA VIDA, 23

1.1. A imprensa literária no Maranhão oitocentista, 29


1.2. Trilhando caminhos, 41

2. COM A PALAVRA, “UMA MARANHENSE...”, 48

2.1. Úrsula, “romance original brasileiro”, 50


2.2. Uma breve digressão indianista, 61
2.3. A consolidação de uma literatura abolicionista, 67

3. A MENTE NINGUÉM PODE ESCRAVIZAR, 75

3.1. O Maranhão na segunda metade do século XIX, 77


3.2. Maria Firmina dos Reis e as ideias de sua geração, 81

CONSIDERAÇÕES FINAIS, 88

REFERÊNCIAS, 90

Obras de Maria Firmina dos Reis


Obras sobre Maria Firmina dos Reis
Teses e dissertações sobre Maria Firmina dos Reis
Bibliografia

12
Maria Firmina dos Reis2
(São Luís, 1825 – Guimarães, 1917)

2
Essa imagem, disponibilizada no livro Maria Firmina, fragmentos de uma vida, de José Nascimento Morais
Filho (1975), é a reprodução do carimbo comemorativo criado em homenagem ao sesquicentenário de
nascimento da escritora e que foi lançado, solenemente, em 11 de outubro de 1975, na cidade de São Luís, no
jardim do Museu Histórico e Artístico do Maranhão. Trata-se de uma marca filatélica, produzida pela Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos, com tempo determinado de utilização e que se destina a difundir o trabalho
de relevantes personalidades e instituições, bem como assinalar um dado acontecimento, destacando,
comumente, o motivo, a legenda, a data e o local de sua emissão. O detalhe da parte inferior, que representa
um grilhão de ferro sendo rompido, é marca significativa da campanha abolicionista que Maria Firmina dos
Reis empreendeu através de sua literatura.

13
INTRODUÇÃO

Em 13 de maio de 1861, exatos vinte e sete anos antes da escravidão ter sido
formalmente abolida no Brasil, o jornal maranhense A verdadeira marmota (apud MORAIS
FILHO, 1975, s/p), periódico recreativo e de cunho literário, em plena circulação na cidade
de São Luís, capital da então província do Maranhão, trazia a público a seguinte nota:

Raro é ver o belo sexo entregar-se a trabalhos do espírito, e deixando os


prazeres fáceis do salão propor-se aos afãs das lides literárias.
Quando, porém, esse ente, que forma o encanto da nossa peregrinação na
vida, se dedica às contemplações do espírito, surge uma Roland 3 , uma
Staël4, uma Sand5, uma H. Stowe6, que vale cada uma delas mais do que
bons escritores; porque reúne à graça do estilo, vivas e animadas imagens,
deliciosos quadros, e esse sentimento delicado que só o sexo amável sabe
exprimir.
Se é, pois, cousa peregrina ver na Europa, ou na América do Norte, uma
mulher, que, rompendo o círculo de ferro traçado pela educação acanhada
que lhe damos, nós os homens, e indo por diante de preconceitos,
apresentar-se no mundo, servindo-se da pena e tomar assento nos lugares
mais proeminentes do banquete da inteligência, mais grato e singular é
ainda ter de apreciar um talento formoso, e dotado de muitas imaginações,
despontando no nosso céu do Brasil, onde a mulher não tem quase
educação literária, onde a sociedade dos homens de letras é quase nula.
O aparecimento do romance “ÚRSULA” na literatura pátria foi um
acontecimento festejado por todo o jornalismo, e pelos nossos homens de
letras, não como por indulgência, mas como homenagem rendida a uma
obra de mérito.
Em verdade que o é esse livro, que se apresentou sem nome de autora,
modestamente e ainda sem apregoadores.

3
Marie-Jeanne Roland de la Platiere (Paris, 1754 – Paris, 1793), mais conhecida como Madame Roland, foi
partícipe da Revolução Francesa e membro influente do grupo girondino. Escreveu diversos textos de cunho
político, que refletiam sobre o papel das mulheres naquela sociedade, com base nos valores de liberdade,
igualdade e fraternidade.
4
Anne-Louise Germaine Necker (Paris, 1766 – Paris, 1817), baronesa de Staël-Holstein, mais conhecida como
Madame de Staël, foi uma romancista e ensaísta francesa, que, assim como Madame Roland, incorporou o
espírito do Iluminismo francês em seus escritos.
5
George Sand, pseudônimo masculino de Amandine Aurore Lucile Dupin (Paris, 1804 – Nohant, 1876),
conhecida, também, como baronesa Dudevant, foi uma aclamada romancista e memorialista francesa,
considerada pela crítica como uma das precursoras do movimento feminista no século XIX.
6
Harriet Elizabeth Beecher Stowe, nascida Harriet Elizabeth Beecher (Litchfield, 1811 – Hartford, 1896), foi
uma abolicionista e escritora estadunidense, autora do famoso romance A Cabana do Pai Tomás, publicado,
em fascículos, entre 1851 e 1852, no jornal antiescravista The National Era (GUIMARÃES, 2013, p. 422).
Por ter sido um dos grandes fenômenos literários do século XIX, acabou servindo como fonte de inspiração
para que muitas mulheres, em várias partes do mundo, se lançassem nas aventuras da escrita.

14
As suas descrições são tão naturais e poéticas, que arrebatam; o enredo tão
intrincado que se prende a atenção e os sentidos do leitor; o diálogo é
animado e fácil; os caracteres estão bem desenhados – como o de Túlio, do
Comendador, de Tancredo e Úrsula.
Sua autora, D. Maria Firmina dos Reis, professora de português na vila
Guimarães, revelou um grande talento literário, porquanto com poucos e
acanhadíssimos estudos, ainda menos leitura do que há de bom e grandioso
na literatura francesa e inglesa, o que fez, deve-o a si, a seu fértil e
prodigioso engenho, e a mais ninguém.
A nossa comprovinciana não é só romancista, também conversa com as
musas.
Oferecemos hoje aos nossos leitores algumas de suas produções, que vêm
dar todo o brilho e realce à nossa “Marmota”, que ufana-se de poder contar
doravante com tão distinta colaboradora, que servirá por certo de incentivo
às nossas belas, que talvez com o exemplo, cobrem ânimo, e se atrevam a
cultivar tanto talento, que anda acaso por aí oculto.
A poesia é dom do céu, e a ninguém dotou mais largamente a divindade do
que ao ente delicado, caprichoso e sentimental – a mulher.
O belo sexo não deve viver segredado de tão sublime arte – os encantos e
ornatos do espírito são sua partilha; – toma a senda que lhe abre com tão
bons auspícios, rodeada de aplausos merecidos, D. Maria Firmina dos Reis,
e siga-lhe aos brilhantes voos.7

Bastante sintomática no que diz respeito às reflexões que serão apresentadas ao longo
dessa dissertação, essa nota, reproduzida, aqui, em sua íntegra, para além de trazer elementos
que nos ajudam a compreender alguns dos aspectos que circundam a trajetória intelectual8
de nossa protagonista, diz muito sobre a realidade das mulheres escritoras no Brasil
oitocentista. As dificuldades de inserção no meio literário, seja pela baixa escolaridade, seja
pelos estigmas a elas atribuídos; o lugar social destinado ao sexo feminino, que era impedido
de transitar em determinados espaços de fala e de poder; além do analfabetismo crônico9,

7
Dessa transcrição em diante, todos os textos e excertos extraídos de periódicos e demais documentos de época
serão reproduzidos em conformidade com as regras estabelecidas pelo novo Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa, sobretudo, no que diz respeito à ortografia e acentuação.
8
Por intelectual, seguindo as linhas de interpretação de Antonio Gramsci (1968) e de Edward Said (2005),
refiro-me àquela pessoa pública, formadora de opinião e que participa dos debates caros aos problemas de sua
cidade, estado ou país, tanto pela via acadêmica quanto pela literária, ou mesmo na imprensa, tendo, como uma
de suas prerrogativas, o questionamento do status quo, dos estereótipos e das categorias redutoras, que tanto
limitam a capacidade de pensar e a comunicação humanas. Por trajetória intelectual, ainda, compreende-se o
estudo do pensamento de um dado intelectual, em relação aos movimentos políticos, culturais, estéticos e
científicos de sua geração, levando-se em consideração a dimensão histórico-social que suas ideias atingem e
em que estão inseridas.
9
Embora a legislação do Império, a partir da promulgação da Lei de Instrução Pública, de 15 de outubro de
1827, assegurasse o acesso à escolarização, com a criação de cursos primários nas localidades mais populosas
– e que eram voltados, inclusive, às meninas –, a taxa de analfabetismo no Brasil atingia, já na segunda metade

15
que assolava boa da população brasileira, por si, somente, já evidenciam o árido terreno em
que as autoras estavam inseridas. A criação artística, de acordo com os valores estabelecidos
na época, era atividade predominantemente masculina, cabendo ao “belo sexo”, ao “sexo
amável”, confinar-se no interior da família e ocupar-se do matrimônio, da maternidade e das
tarefas domésticas, aos quais havia sido destinado “pela própria natureza e pela autoridade
divina” (RAGO, 2012, p. 15). As mulheres eram ensinadas, desde cedo, a respeitar suas
“limitações” e a não se meter em certas atividades, fazendo com que muitas delas deixassem
de se enveredar pelo universo da escrita ou mesmo da política. O imaginário sobre o corpo,
a sexualidade e a identidade femininas, por sua vez, cuja base de significação era e continua
sendo profundamente essencialista, operava como um impeditivo simbólico bastante eficaz.
Ainda hoje, apesar de todos os avanços e conquistas oriundos das reivindicações
históricas dos movimentos feministas no Brasil e no mundo, bem como o significativo
aumento de mulheres intelectuais em todas as áreas do saber e nas artes ocorrido nas últimas
décadas, o acesso a um conhecimento mais arraigado acerca da produção literária
empreendida por nossas antepassadas continua sendo bastante complicado (RAGO, 2012, p.
14-15). Mesmo considerando o importante trabalho de pesquisadoras brasileiras que, a partir
dos anos 1980, se debruçaram sobre o tema com dedicação e afinco, como Norma Telles
(1987, 1989, 1997 e 2012), Luiza Lobo (1993, 2006 e 2011) e Zahidé Muzart (1999, 2004 e
2009), para ficarmos nas mais representativas, vinculadas à linha de pesquisa comumente
denominada como resgate, nem sempre é possível encontrar disponíveis suas obras, uma
vez que o mercado editorial voltado para a publicação de estudos científicos no país ainda
se depara com grandes dificuldades de se estabelecer e de espraiar esse conhecimento para
o conjunto da sociedade. De todo o modo, a despeito desse cenário, atualmente sabemos que,
em meio ao turbilhão da dominação masculina10, não foram poucas as escritoras que lutaram
para ver em circulação seus contos, artigos e demais textos. E é justamente sobre a trajetória
intelectual de uma dessas mulheres que o presente estudo se inclinará.

do século XIX, mais de 80% da população. Constância Lima Duarte (2016, p. 39), ao aprofundar essas
informações, constata que: “O Censo de 1872, o primeiro a ser realizado no Império, oferece dados
interessantes para se conhecer melhor o país. O analfabetismo, por exemplo, era regra. O Brasil tinha 81,43%
da sua população livre analfabeta (...). Dentre os escravos, apenas 1.403 sabiam ler e escrever, sendo que 329
estavam na Corte, e os demais em São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro. Mas em percentuais, ficava abaixo do
1%. Ao todo, o país, tinha 9.930.478 habitantes, sendo 5.123.869 homens e 4.806.609 mulheres”.
10
De acordo com Pierre Bourdieu (2003), trata-se de um tipo de dominação exercida pelos homens sobre as
mulheres e que se estabelece, se “naturaliza” e se seculariza, fazendo com que os atores sociais envolvidos no
processo percam de vista a sua constituição proveniente de um processo histórico específico, que, enquanto
tal, é passível de mudanças.

16
Úrsula, que pode ser considerado o primeiro romance de autoria negra e feminina do
Brasil11, além de ser o primeiro de cunho abolicionista, foi publicado, originalmente, em
1859, na cidade de São Luís. É, também, o romance inaugural da chamada literatura afro-
brasileira12. Possivelmente, por conta de seus ineditismos e pelo prestígio alcançado pela
autora no Maranhão, logo se transformou em “um acontecimento festejado por todo o
jornalismo, e pelos nossos homens de letras, não como por indulgência, mas como
homenagem rendida a uma obra de mérito”, como anuncia a nota publicada, dois anos depois
de seu lançamento, pelo jornal A verdadeira marmota (apud MORAIS FILHO, 1975, s/p).
A partir de então, Maria Firmina dos Reis passa a colaborar sistematicamente na imprensa
local com suas criações, tendo maior destaque, entre outros textos, os contos Gupeva, de
1861-2, e A escrava, de 1887, além de um livro de poesias intitulado Cantos à beira-mar,
de 1871. Proveniente das massas, mas não se dirigindo necessariamente para elas, a escritora
encontrou na literatura uma forma de expressão estética, mas, sobretudo, política. Até
porque, mesmo não tendo vivido sob a condição de cativa, assistiu de perto as mazelas da
escravidão, o que fica evidente em boa parte de seus trabalhos.
Firmina, que aparece ao lado da famosa plêiade de autores maranhenses oitocentistas,
como Gonçalves Dias (1823-1864); os irmãos Artur de Azevedo (1855-1908) e Aluísio
Azevedo (1857-1913); Joaquim de Sousa Andrade (1833-1902), o Sousândrade; além de seu
primo materno, o gramático Sotero dos Reis (1800-1871); e do tradutor de Homero, Odorico
Mendes (1799-1864), com o passar do tempo, supera a exclusão a que foram relegados tanto

11
Os marcos que caracterizam o pioneirismo e a originalidade das escritoras brasileiras permeiam um campo
em permanente disputa e que ainda não dispõe de uma solução definitiva. Todavia, a título de esclarecimento,
de acordo com Luiza Lobo (2006, p. 193-196), devemos excluir como primeira romancista brasileira a gaúcha
Ana Eurídice Eufrosina de Barandas, uma vez que O ramalhete; ou flores escolhidas no jardim, publicado em
1845, é um livro de conto e de poesia. Já a catarinense Luísa de Azevedo Castro, seria autora de uma novela,
Dona Narcisa de Villar, publicada em 1859, ainda que seu livro seja classificado como romance por outros
pesquisadores, como Marisa Lajolo (2004, p. 55). A inclusão do nome de Teresa Margarida da Silva e Orta
(ou Horta) na historiografia literária brasileira, autora de As aventuras de Diófanes, de 1752, para Luiza Lobo,
é o fato mais inaceitável, visto que, apesar de ter nascido em São Paulo, a escritora era filha de portugueses e
partiu do Brasil com a família, aos cinco anos de idade, sem jamais ter voltado. Finalmente, no caso da potiguar
Nísia Floresta, não se pode considerar como um romance a tradução de um ensaio, alguns artigos de jornal ou
seus dois livros, classificados pela crítica como literatura de viagem.
12
Luiza Lobo (1993, p. 222) afirma que um dos aspectos primordiais que caracteriza essa vertente literária é o
fato dela ter surgido no momento em que o negro passa de objeto a sujeito da criação, deixando de ser tema
para autores brancos e registrando a sua própria visão de mundo. Eduardo de Assis Duarte (2014, p. 41), por
sua vez, esclarece que a literatura afro-brasileira é “um conceito em construção, processo e devir. Além de
segmento e linhagem, é componente de amplo encadeamento discursivo. Ao mesmo tempo, dentro e fora da
literatura brasileira. Constitui-se a partir de textos que apresentam temas, autores, linguagens, mas, sobretudo,
um ponto de vista culturalmente identificado à afrodescendência, com fim e começo”.

17
seus irmãos de cor quanto as mulheres, para cumprir “uma função distinta e outra na arena
discursiva em que literatura, cultura e política se mesclam, em meio às tensões que vão
construindo os vários rostos do país recém-saído da independência” (DUARTE, 2009, p.
277). É interessante observar, no entanto, que, mesmo tendo se mantido ativa na produção
literária durante toda a vida, o conjunto de sua obra ficou esquecido por quase um século,
tendo sido devidamente recuperado por pesquisadores brasileiros somente a partir da década
de 196013.
As ideias de Maria Firmina dos Reis abrem possibilidades para diferentes tipos de
abordagem e de interpretação, seja no campo das ciências sociais, seja no campo dos estudos
literários ou mesmo na hibridização entre ambos. Tomar contato com seus textos e com o
conjunto de seu pensamento, enquanto cidadã do Império e participante ativa da vida cultural
maranhense oitocentista, logo, é surpreender-se com a determinação e o espírito aguerrido
de uma mulher que, em pleno século XIX, revela sua sensibilidade artística através da força
das palavras. Denunciando as injustiças enraizadas por pouco mais de três séculos na
sociedade escravagista brasileira, que fazia dos africanos e dos afrodescendentes
escravizados suas principais vítimas, a autora lança um olhar para a questão da abolição, não
sob um prisma universalista, europeizado e distante do cotidiano, mas, justamente, pela
perspectiva dos próprios “vencidos” (LOBO, 2011, p. 119), ao mesmo tempo em que deixa
explícita sua perturbação com relação à questão racial no Brasil e ao lugar social destinado
às mulheres, ambos presentes nas arestas e nas aberturas interpretativas proporcionadas por
sua obra.
Levando em consideração esses breves apontamentos, essa pesquisa tem o objetivo
de desenvolver uma investigação acerca da trajetória intelectual de Maria Firmina dos Reis,
a partir da análise de registros biobibliográficos e de fragmentos extraídos do romance
Úrsula e dos contos Gupeva e A escrava 14 . Importa, aqui, recuperar o empreendimento
literário realizado pela autora, buscando alcançar, criticamente, os sentidos que ela atribuiu
à causa abolicionista em vigência naqueles tempos. A proposta, consequentemente, é
delimitar o âmbito das aproximações entre literatura e sociedade, tecendo a apreciação dos
conceitos e das classificações presentes nos textos e que podem ser entendidos como

13
Os detalhes acerca da redescoberta dos escritos de Maria Firmina dos Reis e de como eles vieram a público
estão descritos, com mais cuidado, no primeiro capítulo dessa dissertação.
14
No que diz respeito ao recorte da pesquisa, esclareço que serão analisados somente os textos de ficção da
escritora, com vistas a melhor compreender seu posicionamento e suas ideias acerca da escravidão e da luta
abolicionista.

18
elementos fundamentais para o acompanhamento de todo um percurso de mudanças
históricas. Com isso, a literatura assume importância como um objeto privilegiado de
problematização, capaz de atravessar o tempo e de oferecer ao pesquisador pistas
significativas sobre o pensamento político da maranhense, as formas como aqueles sujeitos
viviam em conjunto e, não menos importante, a maneira como lidavam com as questões mais
latentes de sua geração.
Para alcançar os objetivos pretendidos, no entanto, alguns caminhos se mostraram
mais producentes. O primeiro deles está na tentativa de aprofundar a análise interna dos
textos literários de Maria Firmina dos Reis, por meio de uma leitura sincrônica e de imersão,
ou seja, uma leitura que permita a autora falar através de suas narrativas. Tal procedimento
consiste em ler cuidadosamente sua obra, com a finalidade de reconstruir as relações entre
os demais documentos e autores trabalhados ao longo da pesquisa; a cronologia apropriada
dos eventos referidos, o que não significa obedecer a uma linearidade histórica,
propriamente; e a relação entre os conteúdos e a forma dos textos da escritora. Em um
segundo momento, distante da realidade e da forma, é possível trabalhar com o dispositivo
literário de Firmina, que aparece embebido na conjuntura brasileira da segunda metade do
século XIX. Seguindo esses procedimentos sugeridos por Antonio Candido (2010, p. 83-98),
portanto, o que se pretende é retirar das aberturas interpretativas presentes em seus escritos
determinadas representações em que as realidades tanto de Úrsula, Gupeva e A escrava,
quanto do Brasil finissecular dos oitocentos, se fundem, tornando-se apenas uma, o que
possibilita uma melhor compreensão dos aspectos sociais e artísticos que se refletem,
sobretudo, na relação estabelecida entre autor, público e obra.
Em seguida, para empreender uma análise interna dos textos, para compreender a
obra em si mesma, bem como sua estrutura, para depois fazê-la emergir à ambiência do
período, perseguindo uma caracterização da trajetória intelectual e da profundidade da crítica
social de Maria Firmina dos Reis, é possível localizar os marcadores do texto, tais como as
noções de abolicionismo, preconceito étnico, discriminação racial e de gênero, ou mesmo a
proposição de uma identidade cultural nem branca e nem negra, mas, sim, afro-brasileira,
que, nessa perspectiva metodológica, permitem reforçar certas impressões sobre a escritora
e sobre suas ideias. Não obstante, seguindo o raciocínio de Lilia Schwarcz e de André
Botelho (2009, p. 13), essa proposta se transforma em procedimento de pesquisa necessário
“para evitar os males do anacronismo, esse problema incontornável, mas que aflige todo
aquele que quer se debruçar sobre o passado, com lentes mais adaptadas”. Alfim, a partir do

19
que é “ficcional” e intrínseco à obra, é preciso externalizar a discussão, percorrendo os
rompimentos com o real e, aí sim, partir para a sociologia própria do texto.
Desse modo, em suma, para efeitos de pesquisa, foram adotados os seguintes
procedimentos: separar trechos substanciais e analisar, em profundidade, a partir da obra e
somente pela obra, os fragmentos selecionados para depois fazer emergir o conteúdo
histórico presente em seus escritos, sintetizando a discussão com a pesquisa bibliográfica
durante todo o percurso. Com relação a esse quesito, particularmente, tornou-se necessário
realizar uma revisão sobre os apontamentos, críticas e análises referentes à bibliografia que
aborda a vida e a obra de Maria Firmina dos Reis, bem como a conjuntura social do Brasil
na segunda metade do século XIX. Assim, foi indispensável visitar algumas das principais
bibliotecas paulistas de ciências sociais, como as da USP, Unicamp, Unesp, Unifesp, PUC-
SP e FESPSP; os sítios eletrônicos que contêm pesquisas acadêmicas especializadas no
assunto; além da busca por informações em arquivos públicos e o resgate de periódicos
maranhenses dos anos de 1860 a 1917, tais como o Jornal do Comércio, A Moderação, A
Verdadeira Marmota, O Jardim das Maranhenses, A Imprensa, Eco da Juventude, O
Domingo, O País, A Revista Maranhense, entre outros, que podem ser facilmente
consultados tanto no acervo físico quanto no digital da Biblioteca Pública Benedito Leite,
sediada na cidade de São Luís, na tentativa de localizar novos materiais que contribuíssem
para elucidar o problema colocado para estudo.
Isto posto, com o intuito de melhor situar os motivos que me levaram a seguir nesta
empreitada, resta-me tecer um último comentário. Durante a graduação em Sociologia e
Política, diversos temas, assuntos e debates despertaram meu interesse. Como não poderia
deixar de ser, aproveitei esse período de efervescência mental e criativa para dar vazão a
uma espécie de laboratório de experimentações. Entre as idas e vindas e os inúmeros
exercícios de iniciação intelectual que um curso como esse sugere, aos poucos, fui
assentando minha curiosidade e orientando os meus esforços de pesquisa para tentar
compreender um fenômeno bastante singular e que, comumente, é pouco observado pelas
ciências sociais: as condições e possibilidades de emergência de escritores negros no Brasil
oitocentista, bem como a fruição, a receptividade crítica e o estabelecimento de suas ideias
e de seus respectivos textos literários. Refletir acerca das contradições existentes na relação
entre ser negro e escritor em uma conjuntura social e econômica de ordem escravagista;
composta por uma elite intelectual, política e cultural de maioria branca; e em que boa parte
da população era, praticamente, analfabeta, se tornou, para além de uma filiação acadêmica

20
a uma determinada linha de investigação, um objetivo a ser perseguido. Foi assim que, nos
dois anos finais do curso, iniciei todo um processo de pesquisa, ainda embrionário, que
culminou, algum tempo depois, em minha monografia de conclusão, voltada para a
compreensão dos aspectos políticos e sociais contidos na vida e obra de Luiz Gonzaga Pinto
da Gama (1830-1882), mais conhecido como Luiz Gama, o negro-autor das Primeiras trovas
burlescas de Getulino, publicadas, em 1859, na cidade de São Paulo, e que, a despeito de ter
sido escritor e de ser considerado, hoje, um dos precursores do abolicionismo no Brasil, por
muito tempo ficou ausente da historiografia literária e da História nacional, tendo sido
resgatado, com mais cuidado, somente nos últimos vinte anos, a partir de importantes
trabalhos e estudos de pesquisadoras como Elciene de Azevedo (1999) e, principalmente,
Ligia Fonseca Ferreira (2000, 2011 e 2015).
Ao longo daquela pesquisa, curiosamente, em meio a algumas leituras direcionadas
para o aprofundamento da análise acerca da atuação política e da trajetória intelectual do
advogado dos escravos, eis que me deparei com o seguinte excerto de um artigo escrito por
Eduardo de Assis Duarte (2002, p. 59), intitulado Notas sobre a literatura brasileira
afrodescendente:

(...) no mesmo ano em que Luiz Gama publicava suas Primeiras trovas
burlescas, Maria Firmina dos Reis trazia a público Úrsula. Deste modo, se
a literatura afro-brasileira tinha, em 1859, um de seus marcos fundadores,
após a redescoberta de Úrsula, passa a ter dois, o que induz a pensar na
existência não apenas de um Pai, mas também de uma Mãe.

Admito que, até então, jamais ouvira falar sobre essa escritora. Contudo, ao tomar
conhecimento dessa informação, mesmo que de modo abreviado, fiquei ainda mais
intrigado: se a intenção de refletir acerca das contradições existentes na relação entre ser
negro e escritor em uma conjuntura política e econômica como a do Brasil dos oitocentos
havia se tornado um objetivo a ser perseguido, considerando o fato de ter sido Maria Firmina
dos Reis uma escritora afrodescendente, com atuação no mesmo período de Luiz Gama e
com sua obra inaugural publicada no mesmo ano em que a dele, minhas inquietações
somente fizeram aguçar minha curiosidade e o meu interesse em estudá-la. Até porque, para
além da questão racial, a novidade que se me apresentava residia em novas contradições.
Dessa maneira, iniciei todo um processo de busca por referenciais teóricos e demais
informações que pudessem balizar o meu percurso, criando uma base de sustentação para

21
reflexões mais substantivas. O resultado desse esforço, consequentemente, pode ser
verificado nos capítulos subsequentes, que, cada uma a sua maneira, mostram uma forma de
se trabalhar com essas questões.

22
1. FRAGMENTOS DE UMA VIDA

A trajetória intelectual de Maria Firmina dos Reis, bem como o conjunto de sua
biografia, pode ser considerada bastante incomum, se a compararmos com a dos demais
escritores e personalidades de seu tempo. Nascida em 11 de outubro de 1825, na ilha de São
Luís, capital da então província do Maranhão, a jovem foi registrada como filha de João
Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis15, ainda que jamais tenha conhecido o pai. Menina
bastarda, proveniente de uma família de pequenas posses, mas vivendo sob condições de
segregação racial e social latentes, aos cinco anos, teve que se mudar para a vila de São José
de Guimarães, ligada ao antigo município de Viamão, localizado no continente e separado
da capital pela baía de São Marcos (LOBO, 2006, p. 193; DUARTE, 2009, p. 263).
Distanciada das efemérides políticas típicas de uma capital do Império, a acolhida que teve
na casa de uma tia materna, melhor situada economicamente, foi fundamental para a sua
primeira formação (MOTT, 1988), além do apoio que teve de um primo, também por parte
de mãe, o jornalista, escritor e gramático Francisco Sotero dos Reis, “a quem deve sua
cultura, como afirma em diversos poemas” (LOBO, 1993, p. 224). Por lá, cresceu em “uma
casa de mulheres” (TELLES, 1997, p. 410), em meio a uma família extensiva 16 , em
companhia da avó, da mãe e de suas duas únicas amigas, a prima Balduína e a irmã Amália
Augusta dos Reis. Já adulta, em 1847, aos vinte e dois anos, Firmina é aprovada em um
concurso público para a Cadeira de Instrução Primária em Guimarães, tornando-se, assim,
a primeira professora efetiva a integrar, oficialmente, os quadros do magistério maranhense,
função que ocuparia até o início de 1881, ano em que se aposenta e em que funda, aos
cinquenta e cinco anos, no vilarejo de Maçaricó, a primeira escola mista e gratuita do país,
dessa vez, dedicando-se aos filhos de lavradores e de donos de terras da região (MORAIS
FILHO, 1975). De acordo com Norma Telles (1997, p. 411-2), inclusive:

15
Sobre essa informação, José Nascimento Morais Filho (1975, s/p) esclarece que “o livro do ‘Cartório’ de
Sacramento Blake”, referindo-se ao Dicionário bibliográfico brasileiro escrito pelo autor, “e o livro do
Cartório de Registro Civil, de Guimarães, registram com pequena diferença, sem importância, no caso, os
nomes dos pais de Maria Firmina dos Reis: João Pedro Esteves, o primeiro, João Pedro Estevão, o segundo;
Leonor Felipe dos Reis, o primeiro, Leonor Reis, o segundo. Erro do declarante, ou por lapso de memória ou
por não saber o nome certo dos pais de Maria Firmina dos Reis, cujo nome também diverge na própria certidão
de óbito do nome de sua mãe”.
16
Entende-se por família extensiva, extensa ou ampliada aquela que se alarga para além da unidade do casal
ou da unidade pais e filhos. Em outras palavras, trata-se da família que é formada por parentes próximos e/ou
agregados, com os quais a criança ou o adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e de afeto.

23
Toda manhã, [a professora] subia em um carro de bois para dirigir-se a um
barracão de propriedade de um senhor de engenho, onde lecionava para as
filhas do proprietário. Levava consigo alguns alunos, outros se juntavam.
Um empreendimento ousado para a época. Uma antiga aluna, em
depoimento de 1978, conta que a mestra era enérgica, falava baixo, não
aplicava castigos corporais nem ralhava, aconselhava. Era estimada pelos
alunos e pela população da vila. Reservada, mas acessível, toda passeata
dos moradores de Guimarães parava em sua porta. Davam vivas, e ela
agradecia com um discurso improvisado.

Raimundo de Menezes (1978, p. 570), no entanto, nos conta que essa aula mista
“escandalizou os círculos locais em Maçaricó (...) e, por isso, foi a professora obrigada a
suspendê-la depois de dois anos e meio”. Nascimento Morais Filho (1975, s/p), por sua vez,
entende que essa proposta era “uma revolução social pela educação e uma revolução
educacional pelo ensino, o seu pioneirismo subversivo de 1880”. Seja como for, o fato da
maranhense ter fundado a primeira escola mista do país evidencia o fato de ter sido ela uma
mulher consciente do papel de transformação que poderia exercer naquela sociedade, ainda
mais se considerarmos o tipo de educação que recebiam as meninas no século XIX: leitura,
com o objetivo religioso; bordado, para as tarefas domésticas; piano, como passatempo; e,
para bem poucas, o ensino do francês como segunda língua.
Do ponto de vista da produção intelectual, Maria Firmina dos Reis não deixa a
desejar. A primeira obra sua de que se tem notícia, Úrsula, foi publicada em 1859, na cidade
de São Luís, pela Tipografia do Progresso. Sob o pseudônimo “Uma Maranhense...”, de
forma inédita, a autora aborda a questão da servidão a partir do entendimento do negro,
perspectiva essa que nortearia outros trabalhos (DUARTE, 2005). É interessante observar
que, num momento em que as mulheres viviam submetidas a um sem-número de limitações
e de preconceitos, a ausência do nome, somada à indicação da autoria feminina, aliam-se ao
tratamento “absolutamente inovador dado ao tema da escravidão no contexto do patriarcado
brasileiro” (DUARTE, 2009, p. 265). Além disso, em seu romance inaugural, Firmina já
expunha as duras condições do cativeiro, revelando, ao mesmo tempo, as contradições
existentes entre a fé cristã, mantida e professada pela sociedade brasileira, e as crueldades
do regime escravagista, com seus castigos, torturas e humilhações. No prefácio da obra,
porém, consciente das eventuais críticas que poderia receber por conta de sua “ousadia”, a
maranhense se utilizou de uma estratégia bastante comum entre as escritoras do período, que
era registrar, logo no início do texto, um pedido de desculpas:

24
Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará
entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda
assim o dou a lume.
Não é vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor próprio de autor.
Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher
brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens
ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma
instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco
lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo. (REIS, 2009, p.13)

No ano seguinte à publicação de Úrsula, Maria Firmina dos Reis passa a colaborar
em jornais locais com textos poéticos, divulgando, n´A Imprensa, um primeiro poema
utilizando, ainda sob o manto protetor, as iniciais M.F.R. Em 1861, é convidada para
participar da antologia poética Parnaso Maranhense, organizada por Gentil Homem de
Almeida Braga 17 , e o jornal O Jardim das Maranhenses dá início à publicação de seu
segundo trabalho, o conto Gupeva, de temática indianista e que fora veiculado em forma de
folhetim, prática recorrente no período (HALLEWELL, 1985). Tendo em vista a boa
aceitação da obra, em 1863, o jornal Porto Livre republica Gupeva. Em 1865, Firmina brinda
o seu público leitor, em momentos diversos, com o lançamento de novos poemas e, uma vez
mais, Gupeva é reimpresso, agora, pelo jornal Eco da Juventude, contendo ligeiras
modificações de estilo, mas sem alterações significativas no conteúdo. Suas publicações
chamam a atenção de leitores e repercutem nos meios intelectuais, o que nos leva a crer que
a autora já era reconhecida, admirada e apreciada por seus escritos e pela ousadia de pensar
e realizar coisas, considerando o contexto, não muito comuns a uma mulher afrodescendente
e que vivia distante dos perímetros da Corte: a publicação de um romance inaugural em
formato de livro; três publicações de uma mesma obra em periódicos distintos; além da
veiculação de diversos outros textos, em curto espaço de tempo e em diferentes canais.
Rompendo com as barreiras impostas pelo patriarcado e manifestando o exemplo de
sabedoria e determinação, Maria Firmina dos Reis continua fértil em sua produção literária,
trazendo a lume, em 1871, os poemas de Cantos à beira-mar, publicados pela Tipografia do
País, também em São Luís. Anos mais tarde, em 1887, num período em que a instituição da
escravidão passava de “mal necessário” a um “problema que exigia solução” (CHALHOUB,

17
Gentil Homem de Almeida Braga (1835-1876), ou Flávio Reimar, seu pseudônimo, foi um jurista, poeta e
escritor brasileiro. Trabalhou com a publicação de folhetins durante toda a vida, o que o tornou bastante popular
em São Luís e nos arredores. É, também, um dos patronos da Academia Maranhense de Letras.

25
2012), no auge das campanhas abolicionista e republicana, a escritora lança, n’A Revista
Maranhense, nº 3, além de novos poemas, o conto A escrava, obra em que descreve o
funcionamento de uma rede antiescravista, articulada de São Luís ao Rio de Janeiro, cujos
membros escondiam cativos fugidos e, rápida e legalmente, lhes compravam a liberdade
(TELLES, 1997, p. 414-5). A autora também contribuiu de maneira significativa na
imprensa local com ficções, crônicas e até enigmas e charadas18, do mesmo modo em que
atuou, de acordo com os que a conheceram, na recolha e na preservação de textos da
literatura oral19, além de ter realizado trabalhos como compositora, sendo responsável pela
elaboração, com letra e música, do Hino da libertação dos escravos, de 1888 (MORAIS
FILHO, 1975; DUARTE, 2009; SANTOS NETO, 2004). Para completar sua trajetória, a
maranhense contribuiu com a criação de algumas canções de caráter folclórico para
folguedos populares, tais como a pastoral e o bumba meu boi. Segundo a tradição oral
vimarense, inclusive, ela teria musicado os famosos Versos da garrafa, atribuídos pelos
antigos a Gonçalves Dias20.
De modo sucinto, essa breve cronografia serve para mostrar que Maria Firmina dos
Reis teve participação relevante como cidadã e intelectual no Império, “ao longo dos noventa
e dois anos de uma vida dedicada a ler, escrever e ensinar” (DUARTE, 2009, p. 264). No
Maranhão de seu tempo, foi considerada pelos seus pares como um exemplo de erudição.
Sua popularidade deve ter sido tão grande em Guimarães que, até hoje naquela cidade, “a

18
De acordo com Zahidé Muzart (1999, p. 264), Maria Firmina dos Reis colaborou assiduamente com vários
jornais literários, além dos já mencionados, como Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense, O Domingo,
O País, Pacotilha, Federalista e outros, publicando seus enigmas e charadas, um passatempo bastante
apreciado pelos leitores desses periódicos.
19
Criada por Mário de Andrade em 1936, enquanto atuava como diretor do Departamento de Cultura da cidade
de São Paulo, a Sociedade de Etnografia e Folclore foi uma entidade que, de acordo com seus estatutos, tinha
por objetivo “promover e divulgar estudos etnográficos, antropológicos e folclóricos”, tendo, como membros-
fundadores, pesquisadores das primeiras turmas de cientistas sociais dos cursos universitários paulistas. Em
1938, Mário de Andrade reuniu uma equipe de entusiastas com o intuito de catalogar as músicas tradicionais
do Norte e Nordeste brasileiros e instituiu a Missão de Pesquisas Folclóricas, que tinha como objetivo
declarado, como consta na ata da sua fundação, “conquistar e divulgar a todo país, a cultura brasileira”
(CAVALCANTI, 2004). Note-se que, antes de Mário de Andrade, Maria Firmina já trazia consigo essa
preocupação.
20
Sobre esta informação, Norma Telles (1997, p. 412-3) explica que Gonçalves Dias era, desde 1847, com a
publicação de Primeiros cantos, um “poeta de projeção nacional muito justamente aclamado. Em 1859, por
motivos de saúde, foi à Europa; na volta, o navio em que viajava, o Ville Boulogne, naufragou. Todos se
salvaram menos o poeta, que morreu afogado ao largo das praias de sua província natal. Para a tradição popular,
ele teria colocado seus últimos versos numa garrafa que viera dar nas praias de Guimarães. Esses versos teriam
sido os musicados por Maria Firmina dos Reis. A tradição popular junta, na lenda, dois escritores da província,
dois escritores de vida e obra muito diferentes, que nada indica terem se conhecido pessoalmente”.

26
uma mulher inteligente e instruída chamam-na Maria Firmina” (MOTT, 1988, p. 62).
Acontece, contudo, que os anos se passaram e, mesmo tendo ocupado um lugar proeminente
no cenário cultural maranhense oitocentista, tomando com as mãos a aspiração de, através
do magistério e da literatura, contribuir para a construção de um país mais justo e sem
opressão, a escritora ficou por décadas esquecida, provavelmente, por conta de um possível
silenciamento ideológico vindo das elites condutoras da vida intelectual brasileira. Faleceu,
em 11 de novembro de 1917, cega, pobre e sem nenhuma honraria, na casa de uma amiga
que vivera como escrava e em companhia de Leude Guimarães, um de seus filhos de
criação21. O resultado disso é que “uma espessa cortina de silêncio envolveu a autora ao
longo de mais de um século” (DUARTE, 2009, p. 265).
De maneira um tanto peculiar, os escritos de Maria Firmina vêm à tona outra vez. O
romance Úrsula, em sua versão original, foi “descoberto”, em 1962, em um sebo na cidade
do Rio de Janeiro, pelo historiador e bibliófilo paraibano Horácio de Almeida (MUZART,
1999), que, ao garimpar a identidade do pseudônimo “Uma Maranhense...” no Dicionário
por Estados da Federação, de Otávio Torres, além de realizar consultas em outras
referências, conseguiu identificar a procedência da autora (LOBO, 1993, p. 224). Tendo
compreendido a importância histórica e literária da obra, depois de ter preparado, em 1975,
uma edição fac-similar do texto, Almeida doou seu achado a Nunes Freire, governador do
Maranhão na época. Desde então, foram publicadas mais duas edições do livro, nos anos de
1988, idealizada pela Editora Presença, de Luiza Lobo, em parceria com o Instituto Nacional
do Livro, por ocasião do centenário da abolição da escravatura; e de 2004, em decorrência
de um projeto de reedição das obras literárias de escritoras do século XIX, que, inclusive,
deu origem à Editora Mulheres22, criada pelas pesquisadoras Zahidé Muzart, Susana Funck
e Elvira Sponholz. Em 2009, finalmente, essa mesma editora, em parceria com a Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, publicou uma reimpressão de Úrsula, em
comemoração aos cento e cinquenta anos da primeira edição do livro, que vem acompanhada
de um rico posfácio elaborado por Eduardo de Assis Duarte, intitulado Maria Firmina dos
Reis e os primórdios da ficção afro-brasileira.

21
Mesmo tendo permanecido solteira a vida toda, a escritora se encarregou da criação de alguns filhos adotivos,
cerca de dez, oriundos das fazendas onde lecionava (LOBO, 2006, p. 19).
22
Entre coletâneas de artigos, ensaios, trabalhos acadêmicos e algumas traduções, todos relacionados à mulher
e/ou ao feminismo, o catálogo da Editora Mulheres conta, hoje, com cerca de noventa livros, que contribuem
significativamente com os pesquisadores de todo o país que se interessam pelo tema e para a preservação e
divulgação da literatura nacional, ao resgatar da invisibilidade as autoras que foram excluídas ou mesmo
silenciadas ao longo da história.

27
No prólogo à sua edição de 1975, porém, Horácio de Almeida salienta a ausência de
registros sobre a escritora nos estudos dedicados à produção literária maranhense.
Possivelmente, por ter sido redescoberta tardiamente, Firmina ficou esquecida, também,
entre os principais estudiosos da literatura brasileira. Sílvio Romero (1943 [1888]), José
Veríssimo (1981 [1916]), Ronald de Carvalho (1920), Nelson Werneck Sodré (1985 [1938]),
Afrânio Coutinho (1986 [1959]), Antonio Candido (2000 [1959]) e Alfredo Bosi (1970), por
exemplo, ignoram-na completamente. E mesmo um intelectual afrodescendente como
Oswaldo de Camargo (1987), em sua coletânea O negro escrito, de suma importância para
o resgate de escritores afro-brasileiros, não faz referência alguma a ela 23 . Dentre outros
expoentes da historiografia literária nacional, muitos fizeram o mesmo, à exceção de
Sacramento Blake24 (1970 [1883-1902]), que foi contemporâneo da autora; Raimundo de
Menezes (1978 [1969]), que soube da existência de Úrsula logo após seu ressurgimento e
que acabou incluindo um verbete sobre a escritora na segunda edição de seu Dicionário
Literário Brasileiro; e Wilson Martins (2010b [1979]), que, no terceiro volume de sua
monumental História da Inteligência Brasileira, apenas cita seu nome em uma linha.
Os demais documentos de e sobre Maria Firmina dos Reis foram recuperados, a partir
de 1973, pelo professor, poeta e jornalista maranhense José Nascimento Morais Filho, que
realizou uma intensa pesquisa nos jornais locais do século XIX e início do XX alocados nos
porões da Biblioteca Pública Benedito Leite, em São Luís (LOBO, 1993, p. 225;
CARVALHO, 2006, p. 62-3), e que entrevistou, entre outras personalidades, dois filhos de
criação da escritora, Leude Guimarães e Nhazinha Goulart. É dele, inclusive, o primeiro
esboço de uma biografia da maranhense, intitulada Maria Firmina, fragmentos de uma vida,
obra de difícil acesso25 e que foi publicada em 1975, mesmo ano em que veio a público a

23
Em 2015, durante a realização do curso intitulado O negro escrito, ministrado por Oswaldo de Camargo na
cidade de São Paulo e que foi oferecido pela Ciclo Contínuo Editorial, editora independente voltada para a
difusão e valorização das artes e das literaturas negras e periféricas, tive a oportunidade de indagar o escritor
sobre as razões que o levaram a não incluir Maria Firmina dos Reis em sua coletânea. De modo sucinto, fui
informado por ele que o único motivo da ausência foi o total desconhecimento da existência da autora na época
em que o livro foi escrito, o que, segundo Camargo, poderá ser revisto, caso ele consiga publicar uma segunda
edição da obra.
24
Estimulado por D. Pedro II e Rui Barbosa, Sacramento Blake escreveu seu famoso Dicionário bibliográfico
brasileiro, que traz, em sete volumes, a biografia de centenas de personalidades da época. O volume foi
publicado no Rio de Janeiro pela Tipografia Nacional, entre 1883 e 1902, e, anos mais tarde, pela Imprensa
Nacional, tendo sido reimpresso em 1970, nessa mesma cidade, pelo Conselho Federal de Cultura.
25
De acordo com Luiza Lobo (2006, p. 196), a dificuldade de se encontrar algum exemplar disponível do livro
organizado por Nascimento Morais Filho reside no fato dele não ter se atentado em fazer o respectivo depósito
legal da obra na Biblioteca Nacional, no ano de sua publicação.

28
edição fac-similar de Horácio de Almeida e o artigo A primeira romancista do Brasil, de
Josué Montello (1975), também conterrâneo da autora, no Jornal do Brasil, tendo sido
divulgado em língua espanhola, no ano seguinte, na Revista de Cultura Brasileña
(DUARTE, 2009, p. 265). O livro de Morais Filho reúne charadas, enigmas e poemas
divulgados na imprensa, além dos contos Gupeva e A escrava. Entretanto, o achado de maior
importância e que revela alguns traços da personalidade da escritora é aquele que deve ser,
provavelmente, o primeiro diário íntimo redigido por uma mulher já publicado no Brasil: o
Álbum, de Maria Firmina dos Reis (LOBO, 1993, p. 225). Somado a isso, o prefácio de
Charles Martin (1988) à terceira edição de Úrsula; as reflexões de Norma Telles (1987, 1989,
1997 e 2012) e de Luiza Lobo (1993, 2006, e 2011) disponibilizadas em livros e periódicos
especializados; o estudo assinado por Zahidé Muzart (1999) sobre as escritoras brasileiras
oitocentistas; os apontamentos de Eduardo de Assis Duarte (2009) acerca da maranhense,
além de alguns verbetes que podem ser consultados em dicionários ou enciclopédias
literárias voltados para essa temática (SABINO, 1996 [1899]; SCHUMAHER e VITAL
BRAZIL, 2000 e 2007; e LOPES, 2007), completam os trabalhos mais relevantes sobre
Maria Firmina dos Reis, evidenciando, assim, a escassa recepção crítica obtida pela autora,
em pouco mais de um século26.

1.1. A imprensa literária no Maranhão oitocentista

As condições e possibilidades de emergência de um determinado escritor, bem como


de seus respectivos textos literários, pressupõem o encaixe, nem sempre perfeito, de uma
série de variáveis, que podem ser interpretadas como resultado de sua genialidade, mera
sorte, fruto do acaso ou, de modo mais abrangente, sob uma perspectiva que, além de
considerar os aspectos sociais envolvidos no processo, se atenta para algumas questões
relativas aos momentos e movimentos históricos que antecedem a criação e a publicação da
obra, os temas que ela aborda, a forma como estes são concebidos, os impactos que geram

26
Muito recentemente, no entanto, novos estudos sobre a vida e obra da escritora têm sido realizados em
programas de pós-graduação nas áreas de Letras (MENDES, 2006; OLIVEIRA, 2007; NASCIMENTO, 2009;
ABREU, 2013; RIO, 2015) e, com menor frequência, de História (SILVA, 2013; CORREIA, 2013; MENDES,
2013) e de Estudos Brasileiros (DIOGO, 2016), tanto em nível de mestrado quanto de doutorado. Ainda que
boa parte desses trabalhos se concentre em analisar especificamente o romance Úrsula, desconsiderando, por
vezes, os demais textos de Maria Firmina dos Reis, é inegável sua relevância para a construção e para a
consolidação de toda uma fortuna crítica dedicada à autora. Ao longo dessa pesquisa, esses referenciais foram
apreciados, no sentido de aprofundar e de aperfeiçoar as reflexões aqui apresentadas.

29
entre os leitores, sua apreciação crítica e eventual consagração. Frequentemente, no entanto,
e de modo equivocado,

(...) tendemos a considerar a obra literária como algo incondicionado, que


existe em si e por si, agindo sobre nós graças a uma força própria que
dispensa explicações. Esta ideia elementar repousa na hipótese de uma
virtude criadora do escritor, misteriosamente pessoal; e mesmo quando
desfeita pela análise, permanece um pouco em todos nós, leitores, na
medida em que significa repugnância do afeto às tentativas de definir os
seus fatores, isto é, traçar de algum modo os seus limites (CANDIDO,
2010, p. 83).

Se quisermos melhor compreender os caminhos e as condições que possibilitaram


Maria Firmina dos Reis trazer a público seus escritos, logo, essa premissa assume
fundamental importância. Isso porque, quando investigamos tais fatores e buscamos
diferenciá-los uns dos outros, além de nos distanciarmos de uma perspectiva que culminaria
em uma leitura mitificante da trajetória da autora, torna-se possível apreender certas
contradições e especificidades que, num primeiro momento, inadvertidamente, poderiam
soar como imperceptíveis. Vale lembrar que qualquer escritor, localizado em uma
determinada sociedade, não deve ser considerado apenas como um indivíduo capaz de
exprimir sua originalidade e seu intelecto, mas, sobretudo, como alguém que desempenha
um papel social específico, ocupando uma posição relativa em meio aos demais membros
de seu grupo e correspondendo a certas expectativas de seu público leitor. Para que ele se
estabeleça enquanto tal, para que possa ser reconhecido como escritor, consequentemente,
existe uma série de elementos que fogem de seu domínio e poder de intervenção e que
precisam ser apurados na análise.
Com base nisso, quais teriam sido as vias encontradas por Maria Firmina dos Reis
para publicar seus textos? Teria ela custeado sozinha a veiculação de sua obra? Ou será que
recebeu o apoio de amigos próximos ou mesmo de seu primo, o jornalista Francisco Sotero
dos Reis, que exercia forte influência nos meios intelectuais maranhenses? Sua literatura foi
produzida como mero passatempo ou com o intuito de disseminar ideias e ideais políticos?
Para refletir essas questões, tomemos como ponto de partida o surgimento da imprensa no
Maranhão oitocentista, uma vez que, um dos fatores decisivos para a concretização da
atividade letrada e para o estabelecimento de um círculo de leitores na província se deu,
precisamente, pela criação do jornalismo político e literário, especialmente em São Luís,

30
decorrente da intensa atividade tipográfica que ali se instalou no início do século XIX,
quando o Brasil ainda se mantinha sob o domínio português.
De acordo com o pesquisador Ricardo Martins (2010a, p. 108), em seu artigo Breve
panorama histórico da imprensa literária no Maranhão oitocentista:

O governador Marechal Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca, em 9 de


novembro de 1821, informou a Lisboa que os maranhenses desejavam
instituir a primeira imprensa da província, assim que a primeira
constituição portuguesa foi jurada no Maranhão. O desejo, ao que parece,
era tanto que, antes mesmo de chegar a primeira prensa tipográfica,
começou-se a publicar um periódico manuscrito, considerado o primeiro
jornal maranhense, cujo título era O Conciliador do Maranhão.

A partir desse momento, iniciou-se todo um processo de proliferação dos órgãos de


notícias, em paralelo ao significativo aumento no número de tipografias na região. Os
periódicos maranhenses, representados por jornais e revistas de temas diversos, passaram a
desempenhar um importante papel no desenvolvimento político e cultural da província,
principalmente na capital, uma vez que exerciam acentuada influência sobre a opinião
pública e a intelectualidade locais. O Maranhão conhecerá, assim, uma fase agitada e
próspera de seu jornalismo, já que foram muitos os periódicos colocados em circulação. Uma
parte deles, no entanto, teve curta duração, ainda mais na fase inicial de implementação.
Eram jornais com baixa repercussão, que mantinham linhas editoriais desorientadas e que
eram utilizados por determinados agentes e grupos políticos unicamente para hostilizar a
administração de Dom Pedro I. Mesmo assim, com o passar dos anos, considerando o
acúmulo de experiência editorial obtido pelos jornalistas, a imprensa maranhense conseguiu
atingir certo grau de maturidade, instalando-se, definitivamente, como instituição de
prestígio na sociedade local (LOPES, 1959). Àquela altura, inclusive, ela já contava com um
parque tipográfico próprio, considerado um dos mais ativos e avançados do país; algumas
tipografias particulares de propriedade dos próprios articulistas; além de um público leitor
assíduo, o que possibilitou o exercício jornalístico constante e, consequentemente, a
consolidação de um grupo considerável de homens de letras, que abasteciam os periódicos
de textos e matérias sobre os mais variados assuntos (MARTINS, 2010a, p. 109). Em
paralelo às folhas de cunho partidário, havia em circulação, também, uma quantidade
razoável de revistas literárias e científicas, cujo foco era a difusão e a disseminação de
conhecimentos sobre agricultura e abastecimento, saúde e bem-estar, costumes e tendências,

31
filosofia e religião, indústria e comércio, mas, sobretudo, literatura. Possivelmente, esse fato
se explique pela necessidade encontrada pelas autoridades públicas do Império recém-
constituído de dar início a um movimento de construção de uma identidade nacional própria
aos brasileiros, no sentido de marcar posição contrária aos anos de dominação portuguesa
na América27.
É interessante observar que as linhas editoriais desses periódicos iniciais, tomadas
por um forte viés político, acabaram influenciando e sendo reproduzidas nos demais órgãos
da imprensa literária maranhense, principalmente no que diz respeito ao orgulho patriótico
e ao objetivo de se transmitir educação e cultura aos cidadãos, através de um conjunto
abundante de artigos que difundiam informações acerca do cultivo das belas-letras e das
artes em geral, dedicando-se, ao mesmo tempo, às novidades tecnológicas e científicas, em
âmbito nacional e internacional, sempre com a preocupação de estimular o debate intelectual
acerca das realidades política, econômica e cultural do Maranhão e do Império, como um
todo. Além disso, nesses periódicos, havia uma proposta de se estabelecer uma escrita que
fosse feita de forma simples, acessível e envolvente, mas sem banalizar os conteúdos
apresentados, com o intuito de angariar cada vez mais novos leitores. Outro aspecto
interessante é que foram muitos os jornais de conteúdo recreativo publicados ao longo
daquele século na província, todos de curta ou curtíssima duração, mas que criavam espaços
voltados para dar vazão à produção literária tanto de homens quanto de mulheres. Através
desses periódicos e revistas, portanto, os maranhenses puderam conhecer uma profusão
incontável de versejadores, ficcionistas, articulistas e biógrafos de personalidades ligadas às
letras e ao fazer científico. A maior parte desses intelectuais e literatos, posteriormente,
acabou sendo reunida na antologia Parnaso Maranhense, publicada, em 1861, na cidade de
São Luís, onde se pode ter uma ideia da quantidade considerável de cultuadores da arte
poética surgida por lá.

27
No processo de edificação da nacionalidade, a literatura exerce um papel fundamental (RICUPERO, 2004).
E os autores do romantismo brasileiro estiveram na linha de frente desse movimento, especialmente José de
Alencar (1829-1877). Entre suas obras de maior destaque, a mais significativa para determinar esse patrimônio
identitário nacional é, sem dúvida, O guarani, publicada em formato de folhetim no Diário do Rio de Janeiro,
durante o ano de 1857. Nela, Alencar estabelece a paisagem típica do Brasil, a singularidade linguística de
nossa gente, mas, especialmente, o mito fundador que constituiria a nação: a união do casal ancestral formado
por Peri e Cecília, um índio que se renderia aos valores cristãos e uma portuguesa que acolhera os costumes
naturais do novo mundo. Evidentemente, essa autodescrição da cultura brasileira é um tanto parcial, uma vez
que exclui do processo de criação da identidade nacional uma parcela significativa da população, como os
negros, durante o Império, e, anos mais tarde, os europeus e demais povos, que viriam para o país substituir a
mão de obra escrava, após a promulgação da Lei Áurea, de 1888.

32
Dentre as personalidades históricas que mais se sobressaíram na atividade jornalística
da província nesse período, encontra-se a figura emblemática de João Francisco Lisboa28,
um de seus pais fundadores, e de Francisco Sotero dos Reis29, primo de Maria Firmina dos
Reis por parte de mãe, ambos de suma importância para a consolidação da opinião pública,
para o alargamento da atividade letrada e para o fortalecimento de um pensamento político
mais afinado com os valores e costumes da região. Juntos, eles foram responsáveis pela
criação de um número razoável de periódicos, que contribuíram para dar vida a todo um
processo de agitação e de efervescência cultural e intelectual na cidade de São Luís e em
seus arredores. Com relação ao parente de Firmina, especificamente, Ricardo Martins
(2010a, p. 116) esclarece que:

(...) a importância de Sotero dos Reis junto à opinião pública maranhense


deve-se ao fato de sua inegável contribuição para a formação do gosto
literário da época, com seus artigos de crítica literária e a divulgação e
estímulo dos talentos locais e nacionais. Ao lado de sua intensa e destacada
atividade como latinista, filólogo e historiador da literatura, a sua atuação
como jornalista exerceu grande influência sobre os fatos públicos da
província, ajudando a consolidar a fama do Maranhão como um celeiro de
intelectuais e de homens [e mulheres] 30 de letras, com repercussão
nacional, sem jamais ter saído de sua terra natal.

Apesar dos laços de sangue, não se sabe ao certo se, de fato, a escritora maranhense
teve algum contato com seu primo influente. Mesmo considerando os fragmentos
biográficos levantados e divulgados por Nascimento Morais Filho, não há quaisquer
registros ou mesmo indícios que comprovem uma eventual aproximação entre os dois.
Embora não seja possível confirmar essa informação, Luiza Lobo (2011, p. 112) acredita
que o parentesco de Maria Firmina com Francisco Sotero dos Reis de pouco lhe serviu para
uma apresentação na vida cultural da província, ainda que ela tenha lhe dedicado ao menos

28
Nascido na cidade maranhense de Pirapemas, em 1812, e falecido em Lisboa, em 1863, João Francisco
Lisboa foi um autodidata que atuou como político, historiador, jornalista e escritor, a quem a Academia
Brasileira de Letras conferiu o patronato da cadeira de número 18. Fundou e dirigiu, no Maranhão, vários
periódicos, dentre os quais o famoso Jornal de Timon, dedicado aos estudos políticos, à história do Brasil e à
história de sua terra natal, tão apreciada por ele.
29
Assim como João Francisco Lisboa, Sotero dos Reis foi autodidata, tendo estudado e adquirido vasto
conhecimento de literatura, latim e língua portuguesa, sem nunca ter frequentado cursos superiores. Naqueles
tempos, as noções básicas de humanidades eram aprendidas durante as escassas e desorganizadas aulas públicas
de instrução primária, oferecida a poucos meninos que tinham condições e recursos para se manter nesses
espaços.
30
Grifo meu.

33
um poema. Seja como for, se o jornalista maranhense não possibilitou o ingresso da escritora
nos periódicos dos quais fazia parte, ao menos, por ter fundado uma série de jornais e revistas
de ampla circulação, criou as condições para que não somente ela, mas muitas outras
mulheres, pudessem se enveredar pelo universo da escrita e da literatura.
Em meio aos periódicos literários de maior importância para o estabelecimento da
atividade letrada no Maranhão oitocentista, destaca-se o jornal Eco da Juventude, que
circulou nos anos de 1864 e 1865, contando, ao todo, com vinte e quatro números, sempre
dispostos em oito laudas semanais, que abordavam temas relacionados à literatura, à
filosofia, à religião, à geografia, à história e à necessidade de se promover o acesso à
instrução pública para todos os cidadãos da província. Em suas páginas, também, se fez
ardente defesa da memória do escritor Gonçalves Dias, o que deu início a uma campanha
pela construção de um monumento em homenagem póstuma ao vate maranhense que,
segundo um de seus redatores, “não era somente desta abençoada parte do Império, era do
Brasil” (MARTINS, 2010a, p. 121). Por se tratar de uma “publicação dedicada à literatura”,
como anuncia seu frontispício, esse jornal conseguiu reunir um conjunto expressivo de novos
literatos que almejavam ocupar o cenário das belas-letras, dentre os quais, Maria Firmina
dos Reis. Foi nesse periódico, inclusive, que a ficcionista encontrou espaço para publicar
alguns de seus poemas e a versão final de seu conto Gupeva, impresso nos números 14 a 17.
Além do Eco da Juventude, a jovem escritora se fez conhecer, entre outros jornais, através
das páginas do Semanário Maranhense, que também mantinha uma linha editorial
acentuadamente voltada para o cultivo da literatura e da cultura locais, dando ênfase a temas
como o patriotismo e o orgulho nacional, mas sem perder de vista a valorização das
“tradições provinciais”, colocando à disposição de seus leitores um conjunto de artigos e
peças literárias bastante diversificado, que variava entre poemas, contos, crônicas, novelas,
artigos de interesse historiográfico e econômico e, por vezes, preleções de autoridades
públicas. Tais periódicos, desse modo, evidenciam a marcante abertura que a imprensa
maranhense mantinha com intelectuais do sexo feminino, desfazendo o mito de que somente
homens escreviam e contribuíam para a materialização de toda uma cultura letrada em
constituição no Maranhão, no momento posterior à sua fase de formação.
A preocupação das autoridades públicas do Império de estabelecer no Brasil o acesso
da população à educação escolar formal, por conseguinte, ainda que essa iniciativa não
tivesse beneficiado a todos os cidadãos da mesma maneira, pode ser considerada,
igualmente, como um dos fatores determinantes para a consolidação da atividade literária e

34
do alargamento do periodismo na região, abrindo espaço para que a participação feminina
se fizesse presente na esfera pública e nos meios de comunicação. Como explica a
pesquisadora Maria Lucia de Barros Mott (1988, p. 62), a partir da segunda metade do século
XIX, a quantidade de mulheres educadas cresceu significativamente no país, a ponto de
começar a circular jornais não apenas direcionados para o público feminino, mas
organizados, editados e escritos por elas próprias31. Nesse momento, inclusive, de acordo
com Norma Telles (1997, p. 426):

(...) várias mulheres fundaram jornais visando esclarecer as leitoras, dar


informações, chegando, no final do período, a fazer reivindicações
objetivas. Muitas vezes esses jornais pertenciam a mulheres de classe
média, algumas das quais investiram todos os seus recursos nele. Eram
tantos que chegaram a formar uma rede, de norte a sul, atentos às
publicações e ações das mulheres.

Com o tempo, além do número desses periódicos ter aumentado, as suas


colaboradoras deixaram de se esconder por detrás de pseudônimos e das iniciais de seus
nomes, passando a escrevê-los por extenso e a publicar seus textos em veículos de maior
circulação. A presença feminina na grande imprensa, assim, serviu de argumento para a
introdução de temas e pautas que, até então, não eram observados com mais atenção pelos
redatores do sexo masculino. Desde seu surgimento na França, em 1852, a questão da
educação formal para as mulheres foi uma das principais batalhas desses jornais. Se,
inicialmente, ela era vista como necessária porque a mulher, enquanto mãe, era responsável
pela formação dos filhos e, por consequência, dos homens, num segundo momento, ela
passou a ser defendida com mais força, uma vez que, educadas, as mulheres teriam
conhecimento não apenas de seus deveres, mas, também, de seus direitos. Seguindo o
raciocínio de Norma Telles (1997, p. 427), ainda:

31
O Jornal das Senhoras, como esclarece Constância Lima Duarte (2016, p. 117), é considerado o primeiro
periódico criado por uma mulher no Brasil. Sob a direção da romancista e jornalista Joana Paulo Manso de
Noronha (1819-1875), natural da Argentina, circulou aos domingos na cidade do Rio de Janeiro, entre os anos
de 1852 e 1855. Com a promessa de levar às leitoras “Moda, Literatura, Belas-Artes, Teatro e Crítica”, ao
contrário de outras publicações de autoria feminina que surgiriam logo na sequência, de norte a sul do país,
esse periódico, desde o início, assumiu um discurso emancipacionista. A primeira mulher de que se tem notícia
a trabalhar em uma redação de jornal no Maranhão, no entanto, de acordo com Sebastião Jorge (2008), ainda
que o pesquisador não tenha precisado o ano e nem o título do periódico, foi Eponina de Oliveira Condurú
Serra (1842-1931), uma educadora da antiga vila de São Bento dos Peris, que, assim como Maria Firmina dos
Reis, exerceu o magistério por décadas.

35
Esses periódicos, como outros da época, fizeram campanhas pela educação
da mulher. Muitas vezes essas campanhas apareceram ligadas ao reforço
do papel de mãe, de boa esposa, de dona de casa. No contexto, no entanto,
a contribuição é valiosa e era importante enaltecer a mulher tanto dentro
quanto fora de casa. Havia, evidentemente, diferenças de opiniões entre as
articulistas, umas mais radicais, outras menos. A questão do voto feminino
ainda não era tratada diretamente, mas os jornais contornavam noticiando
amplamente lutas e conquistas em outros países.

A publicação de artigos que tratavam da relação entre educação, profissionalização e


emancipação feminina foi o passo seguinte. E, aos poucos, novas questões foram sendo
abordadas nesses jornais, tais como a crítica ao casamento dado por interesse; a rejeição ao
papel de submissão e de propriedade do homem destinado às mulheres; a defesa do divórcio
e do sufrágio universal, entre outras reivindicações. Os periódicos femininos, do mesmo
modo, manifestaram-se em diversos momentos sobre questões políticas dos mais variados
vieses, até mesmo tomando partido favorável na luta em prol da abolição da escravatura32.
Com o intuito de estimular a escrita, de fomentar a leitura e o debate em torno dos
textos, bem como de propagandear o nome das autoras, muitos jornais da época traziam em
suas edições anúncios que ofereciam ao público as respectivas obras produzidas por elas,
além de algumas críticas voltadas para um melhor entendimento desse novo universo
literário, ainda que a maioria das publicações fosse bastante enxuta e sem um maior
aprofundamento na análise. E foi justamente nesses periódicos que o nome da escritora
maranhense passou a ser visto com maior frequência pelo conjunto da população. Em 11 de
agosto de 1860, por exemplo, o jornal A Moderação (apud MORAIS FILHO, 1975, s/p)
registrava a seguinte passagem:

32
Vale notar, também, que, ao longo do século XIX, além do surgimento de periódicos organizados
exclusivamente por mulheres, indivíduos e grupos negros letrados criaram espaços na imprensa para tratar dos
assuntos que consideravam mais importantes para o debate sobre a condição dos afrodescendentes no país e
para expor suas ideias acerca dos rumos do Império. Experiências cotidianas e variadas de enfrentamento do
racismo e da escravidão, a criação de redes de sociabilidade e o uso de instrumentos legais para promover a
cidadania foram registrados nas páginas de diversos jornais assinados por “homens de cor” e que eram dirigidos
por eles próprios. Sobre essa faceta da história do periodismo oitocentista, recomendo a leitura do livro
Imprensa negra no Brasil do século XIX, da pesquisadora Ana Flávia Magalhães Pinto (2010).

36
ÚRSULA – Acha-se à venda na Tipografia do Progresso, este romance
original brasileiro, produção da Exma. Sra. D. Maria Firmina dos Reis,
professora pública em Guimarães. Saudamos a nossa comprovinciana pelo
seu ensaio que revela de sua parte bastante ilustração; e, com mais vagar,
emitiremos a nossa opinião, que desde já afiançamos não será desfavorável
à nossa distinta comprovinciana.

O jornal A imprensa (apud MORAIS FILHO, 1975, s/p), por sua vez, em duas
edições distintas, apregoou comentários favoráveis ao romance inaugural de Firmina e,
posteriormente, aos poemas da escritora que comporiam a coletânea Parnaso Maranhense.
Na primeira delas, veiculada em 18 de fevereiro de 1860, o periódico informava o seguinte:

ÚRSULA – Romance brasileiro por uma maranhense. Um volume em


preço de 2$000 33 . Esta obra, digna de ser lida não só pela singeleza e
elegância com que é escrita, como por ser a estreia de uma talentosa
maranhense, merece toda a proteção pública para animar a sua modesta
autora a fim de continuar a dar-nos provas do seu belo talento.

Na segunda, publicada em 19 de outubro de 1861, trazia esta mensagem:

Os versos de Maria Firmina dos Reis indicam uma imaginação cheia de


vivacidade da parte da autora; muita leitura e gosto, e do doce perfume dos
sentimentos saídos do coração sem ensaio nem afetação. De há muito que
todos conhecem os talentos e habilidade da autora de Úrsula, assim não
causou estranheza as poesias que mandou para o Parnaso.

Embora, no início, muitas das publicações fossem um tanto condescendentes com as


escritoras, não devemos menosprezar sua relevância histórica. Isso porque, os “critérios de
avaliação” acima apontados podem até parecer superficiais e anteriores ao próprio conteúdo
das obras, já que partem de uma premissa com viés muito mais político do que literário, ou
seja, sem se preocupar em tecer uma avaliação mais contundente acerca da representação
textual, da enunciação discursiva ou mesmo de sua qualidade estética. Nesse momento,

33
Para se ter uma ideia do que essa quantia representava para os padrões da época, de acordo com pesquisador
Rodrigo Estramanho de Almeida (2012, p. 164), a renda média anual para um indivíduo do sexo masculino ser
considerado votante nas eleições do Império, em conformidade com as prerrogativas legais da Constituição de
1824, era de cem mil réis. Esse valor não significava nenhuma fortuna, mas também não era algo desprezível,
levando-se em consideração que aproximadamente 12% da população brasileira constituía o eleitorado no
período. Logo, o que se constata é que a aquisição de um exemplar do romance Úrsula era possível de ser
realizada, mesmo sabendo que uma gama significativa de pessoas não tivesse essa oportunidade, seja por
questões de cunho econômico, seja pelo analfabetismo crônico, já observado.

37
porém, o que se buscava privilegiar era muito mais a oportunidade de se promover as autoras
do que a qualidade de seus textos, justamente por se tratar do prenúncio de uma “literatura
emergente” (LOBO, 1993, p. 223). A escrita feita por autores negros no Brasil, que tem
muito em comum com a produção literária empreendida pelas mulheres, inclusive, pode ser
compreendida nesse mesmo enfoque. Quando ela congrega as duas características, negra e
feminina, como no caso de Maria Firmina dos Reis, o caráter político do fato se sobressai
ainda mais. O que se percebe, com isso, é que o julgamento do valor estético, nessa fase de
necessária afirmação, precisava ser posterior à própria designação dessa recém-inaugurada
vertente literária, um fenômeno que, apesar de ter se iniciado em meados do século XIX no
Maranhão, e com alguma frequência no Rio de Janeiro e em São Paulo, se mostrou mais
efetivo e numericamente simbólico somente a partir da década de 197034, quando militantes
do movimento negro paulista, contando com a participação de algumas feministas negras,
decidiu romper com a exclusão propiciada pela crítica acadêmica especializada e pela não
aceitação de seus escritos pelo mercado editorial brasileiro, ambos dominados
hegemonicamente pelas elites brancas e masculinas, criando, assim, uma maneira própria de
se pensar, produzir e veicular sua literatura.
Além dos anúncios com tons elogiosos, adiante, outros jornais buscavam glorificar
as autoras, focando diretamente na elevação de sua autoestima e estimulando-as a seguir em
frente com suas criações. É o caso d´O Jardim das maranhenses (apud MORAIS FILHO,
1975, s/p), que, em sua edição de 30 de setembro de 1861, publicava a seguinte nota:

34
Em 1978, na cidade de São Paulo, surgiu o primeiro volume da série Cadernos negros, uma publicação de
cunho independente e que reuniu os trabalhos de oito poetas afro-brasileiros que, sozinhos, dividiram os custos
da edição. Desde então, ininterruptamente, já foram lançados, ao todo, trinta e oito números, sendo um por ano,
que alternam poemas e contos de estilos diversos, sempre produzidos por autores negros. Vale dizer que não
há qualquer registro de outras antologias publicadas com essa regularidade no Brasil e que contenham textos
de escritores afro-brasileiros, o que mostra a importância desse veículo para dar visibilidade à literatura negra
feita no país. Em 1980, dois anos depois da primeira edição dos Cadernos, este grupo de autores decidiu fundar
o coletivo paulistano Quilombhoje Literatura, cuja finalidade é promover discussões e aprofundar a
experiência afro na literatura brasileira. Dentre seus criadores, destacam-se os nomes dos escritores Cuti,
pseudônimo de Luiz Silva, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina e Abelardo Rodrigues. O grupo, que se mantém
em atividade até hoje, tem como proposta estimular o hábito da leitura, promovendo a difusão de
conhecimentos e informações e desenvolvendo e incentivando estudos, pesquisas e diagnósticos sobre a
literatura e a cultura negras no país. Atualmente, o Quilombhoje é coordenado pela jornalista e escritora
Esmeralda Ribeiro e pelo escritor Márcio Barbosa.

38
Com o presente número finaliza-se o terceiro bimestre deste jornal que,
graças a Deus e à boa vontade dos Srs. assinantes, – conta com oito meses
de existência!
Seríamos apelidados de indiferentes, e com muita razão, se, dando esta
notícia, não consignássemos aqui o nosso voto de eterna gratidão àqueles
que, não só concorreram com as suas assinaturas, como também aos que
honraram as páginas do JARDIM com suas produções literárias.
A todos em geral novamente suplicamos continuem a prestar sua valiosa
proteção a prol deste jornal, que em nada tem desmentido o seu programa;
e cujas páginas, como dantes, continuam à disposição daqueles que
quiserem honrá-las com seus escritos.
Um motivo mui poderoso obriga-nos ainda a fazer esta súplica, digna por
certo de ser atendida.
Existe em nosso poder, com destino a ser publicado no nosso jornal um
belíssimo e interessante ROMANCE 35 , primoroso trabalho da nossa
distinta comprovinciana, a Exma. Sra. D. Maria Firmina dos Reis,
professora pública da Vila de Guimarães; cuja publicidade tencionaremos
dar princípio do nº 25 em diante.
Garantimos ao público a beleza da obra; e pedimos-lhe a sua benévola
atenção. A pena da Exma. Sra. D. Maria Firmina dos Reis já é entre nós
conhecida; e convém muito animá-la, a não desistir da empresa encetada.
Esperamos, pois, à vista das razões expendidas, que as nossas súplicas
sejam atendidas; afiançando que continuaremos defendendo o belo e
amável sexo – quando injustamente for agredido.
Salus et pax.

Outros periódicos se enveredaram pelo mesmo caminho, mas nem todos eram
demasiado complacentes com as autoras. O Jornal do Comércio (apud MORAIS FILHO,
1975, s/p), por exemplo, em 4 de agosto de 1860, trouxe a público a seguinte crítica:

OBRA NOVA – Com o título ÚRSULA publicou a Sra. Maria Firmina dos
Reis um romance nitidamente impresso que se acha à venda na Tipografia
do Progresso.
Convidamos aos nossos leitores a apreciarem essa obra original
maranhense, que, conquanto não seja perfeita, revela muito talento da
autora, e mostra que se não lhe faltar animação poderá produzir trabalhos
de maior mérito. O estilo fácil e agradável, a sustentação do enredo e o
desfecho natural e impressionador põem patentes neste belo ensaio dotes
que devem ser cuidadosamente cultivados.
É pena que o acanhamento mui desculpável da novela escrita não desse
todo o desenvolvimento a algumas cenas tocantes, como as da escravidão,
que tanto pecam pelo modo abreviado com que são escritas.

35
Na verdade, o texto de Maria Firmina dos Reis a ser publicado era a primeira edição de seu conto indianista
Gupeva, e não um romance, como o fora Úrsula.

39
A não desanimar a autora na carreira que tão brilhantemente ensaiou,
poderá para o futuro, dar-nos belos volumes.

Vale observar que, no Brasil, a literatura de autoria feminina começa a ter maior
reconhecimento, ou obter um pouco mais de consideração por parte dos homens, somente
no início do século XX. Ainda assim, embora colocadas à margem ou mesmo tendo sido
silenciadas pelos críticos e historiadores da literatura brasileira, que contribuíram e que
contribuem para a formação do cânone nacional, a produção literária empreendida por nossas
antepassadas foi presença constante nos jornais e revistas do século XIX, tanto nos dirigidos
pelo sexo masculino quanto nos inúmeros criados e mantidos por elas próprias, seja no
Maranhão ou em demais províncias. Não obstante, de acordo com Zahidé Muzart (2003, p.
225-6), é quase impossível avaliar e desfrutar da literatura feita pelas mulheres naquele
século sem que nos debrucemos no levantamento e no estudo do que foi publicado nos
periódicos postos em circulação no período36. Finalmente, é preciso lembrar que, além da
produção em jornais e revistas, muitas delas publicaram livros de poesia, contos e até
romances que, apesar do difícil acesso, não podem e nem devem ser desprezados.
Infelizmente, boa parte desse legado deixado pelas escritoras oitocentistas foi sendo
colocado de escanteio, fazendo com que, somente a partir dos trabalhos divulgados por
algumas pioneiras que obtiveram algum prestígio em vida 37 , as mulheres conseguissem
firmar pé, definitivamente, ainda que debaixo de uma série de preconceitos, no cenário
literário nacional.

36
Com relação a essa questão, destaco o estudo recém-lançado pela pesquisadora Constância Lima Duarte
(2016) sobre a imprensa feminina e feminista no Brasil do século XIX, que reuniu um conjunto significativo
de cento e quarenta e três jornais e revistas que foram editados no país nesse período e que tinham, como
público-alvo, justamente as mulheres. Apesar de sua relevância histórica e de seu ineditismo, infelizmente, o
levantamento de Duarte faz menção somente a dois periódicos maranhenses, ainda que houvesse muitos mais.
O primeiro deles é O Jardim das Maranhenses, em que Maria Firmina dos Reis publicou a primeira versão de
Gupeva, em 1861-2; o segundo é o Chrysalida, jornal voltado para o incentivo à educação feminina e que
circulou na cidade de Caxias, situada no interior da província, entre os anos de 1883 e 1884.
37
Dentre as escritoras pioneiras que obtiveram reconhecimento em vida, Zahidé Muzart (2003, p. 226) destaca
os nomes das jornalistas Josefina Álvares de Azevedo (1851-?) e Corina Coaracy (1858-1892); da contista e
romancista Carmem Dolores (1852-1910); e, principalmente, já no século XX, da poetisa Gilka Machado
(1893-1980) e da anarquista Maria Lacerda de Moura (1887-1945).

40
1.2. Trilhando caminhos

Para se realizar uma pesquisa de caráter interdisciplinar, que dialoga os estudos


literários com os estudos de pensamento social brasileiro, a integridade de uma determinada
obra não pode ficar restrita a concepções que ora a explicam pelos fatores externos, ora se
norteiam pela convicção de que sua estrutura é virtualmente independente. Tais formas de
abordagem, se encaradas isoladamente, enquanto processos distintos e com finalidades
desencontradas, fazem com que o sentido da crítica se perca. Evidentemente, não se trata,
aqui, de privilegiar um ou outro enfoque, pois “a disjuntiva interno-externo é completo
equívoco e não se sustenta”, como afirma Maria Arminda do Nascimento Arruda (apud
SCHWARCZ e BOTELHO, 2011, p. 157). Assim, tais percepções podem ser trabalhadas de
modo mais adequado quando são combinadas como momentos necessários ao processo
interpretativo. Ou seja, uma melhor saída para um estudo dessa natureza é quando tanto a
primeira quanto a segunda forma estão associadas e quando, em ambos os casos, se leva em
consideração a predominância do aspecto sincrônico sobre o diacrônico da obra. Seguindo
por esse caminho, Antonio Candido (2010) nos ensina que o elemento externo de uma
determinada obra literária – nesse caso, o social – é um tanto relevante. Todavia, não como
causa ou consequência, tampouco como significado, mas como um componente que
desempenha certo papel na constituição da estrutura da obra, tornando-se, de tal maneira,
interno.
Acontece que, comumente, esse desencontro de abordagem se dá em razão de uma
antiga, porém não resolvida, distinção entre duas vertentes disciplinares: a sociologia da
literatura e o terreno da crítica literária. Em síntese, pode-se dizer que a primeira trata
externamente os fatores externos da obra, o que não pressupõe, essencialmente, a questão do
valor da obra, interessando-se, portanto, por tudo que é condicionamento. A ela se designa,
por exemplo, estudos quantitativos que observam o consumo de literatura mediante o gênero
literário; questões de cunho estritamente social levantadas pelos autores, como as noções de
raça, gênero, classe e condição social; a relação entre a obra e as ideias de seu tempo; como
determinada criação impacta na sociabilidade de um determinado grupo; entre outras
possibilidades de estudo (BOURDIEU, 1996, 2007a, 2007b). Trata-se, assim, de “uma
disciplina de caráter científico, sem a orientação estética necessariamente assumida pela
crítica” (CANDIDO, 2010, p. 14). A crítica literária, por sua vez, sugere a análise da
intimidade das obras, interessando-se por averiguar quais fatores atuam na organização

41
interna, de modo que se constitua uma estrutura alegórica. Tendo por base também o fator
social, o que essa disciplina visa é determinar se este fornece somente matéria – ambiente,
costumes, traços grupais, ideias –, que servem de veículo para conduzir a corrente criadora,
ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que existe de essencial na obra
literária.
Unindo a sociologia da literatura com as possibilidades da crítica literária, o que se
tem, consequentemente, são os estudos literários (LIMA, 1966), que se pautam, de forma
mais apropriada, pela análise crítica, incluindo-se, aí, os domínios da produção, da teoria e
da historiografia literária. Desse modo, é possível embrenhar-se ainda mais na reflexão, em
busca dos elementos responsáveis pela aparência e pelo significado da obra, que, uma vez
associados, dão vazão a um “todo indissolúvel”. Tal procedimento visa compreender a
singularidade e a autonomia relativa do texto literário, a partir do conceito de organicidade
da obra (CANDIDO, 2010). Trata-se de uma solução que enquadra os escritores na
perspectiva histórica e sociológica, sem negligenciar a intenção propriamente crítica de
julgar os textos e os autores de maneira individualizada (JACKSON, 2009, p. 273). Ao
contrário do que pode parecer à primeira vista, é justamente esta concepção da obra como
organismo vivo que admite, em sua análise, considerar e variar o vaivém dos fatores que a
condicionam e a motivam. Quando são interpretados como parte constitutiva da estrutura,
segundo Candido (2010, p. 25), cada elemento se transforma em componente fundamental
do caso em questão, fazendo com que a sua legitimidade não possa ser contestada nem
glorificada a priori. Para uma abordagem literária que se queira crítica e que dialogue
diretamente com as ciências sociais, portanto, é necessário levar em consideração o fator da
própria construção artística, “estudada no nível explicativo e não ilustrativo” (CANDIDO,
2010, p. 17).
Tomando esses registros como ponto de partida, e pensando nos aspectos internos do
romance Úrsula, pode-se dizer que, em termos de forma, a obra é marcada pela linearidade
narrativa, que se dá em terceira pessoa, embora se utilize da técnica de encaixes de
historietas, em que as personagens, “desprovidas de maior complexidade psicológica”
(DUARTE, 2009, 267), aparecem contando as reminiscências de suas vidas. O enredo
contém elementos românticos, como o amor de dois jovens, a dor e a separação, cenas no
cemitério e de morte. “Mas poderia bem ser um conto gótico”, como observa Norma Telles
(1989, p. 76), o que nos faz lembrar das antigas histórias de tempos medievais, à moda
europeia. As categorias espaço e tempo, por conseguinte, não podem ser identificadas com

42
maior precisão. Contudo, percebe-se que a narrativa é contextualizada em um período
próximo ao da publicação do livro, 1859, cerca de trinta anos antes da promulgação da Lei
Áurea, de 1888. O texto, que é organizado em vinte capítulos, pode ser dividido em quatro
momentos distintos. Mas é na quarta parte, a mais interessante da obra, que se nota a riqueza
do romance de cunho abolicionista, através de uma solidariedade particular de Maria Firmina
para com os oprimidos, em especial as mulheres e os africanos e afrodescendentes
escravizados. É nesta altura da trama, repleta de depoimentos narrados pela velha Mãe
Susana, que a escritora descreve como era a vida em África entre seus pares; como se deu a
captura pelos “caçadores de almas”; e como sobreviveu à viagem nos porões do navio, que
se pode encontrar, logo na sequência, os dramas vividos pelos cativos no Brasil.
Funcionando como uma espécie de alter ego da autora, como explica Eduardo de Assis
Duarte (2009, p. 276), a velha africana se configura como uma voz feminina que carrega,
em si mesma, uma verdade histórica, impregnada de comentários e intervenções
moralizantes e que preparam o espírito do leitor, convidando-o à reflexão.
Considerando essa perspectiva, inclusive, o romance Úrsula pode ser enquadrado na
situação de arte crítica38, proposta por Miguel Chaia (2007), uma vez que sua narrativa faz
transparecer os aspectos filosófico, intelectual e analítico da obra, remetendo-se diretamente
à pessoa de Maria Firmina dos Reis e desempenhando, igualmente, um papel que a aproxima
do estudioso social e, não menos importante, do cidadão combativo39. Perfilhando-se aos
escravizados e a seus descendentes, portanto, a maranhense acaba manifestando, pela via

38
Miguel Chaia, em seu artigo Arte e política: situações, articula determinadas linhas teóricas e filosóficas
com o intuito de refletir acerca dos domínios da arte e da política, propondo quatro eixos de análise que servem
como base para tipificar aquilo que ele entende como “distanciamentos e aproximações” entre as duas esferas.
São eles: a arte crítica, a politização da arte, a estetização da política e a presença política da obra. Se
analisarmos com cuidado, tanto o romance Úrsula quanto os demais textos literários de Maria Firmina dos
Reis podem ser enquadrados na primeira situação. Isso porque, a arte crítica é constituída por “uma relação
básica entre a arte e a política, que se estabelece a partir de uma aguçada consciência crítica do artista,
propiciando a um indivíduo ou a um pequeno grupo criar obras baseadas na sensibilidade social, no gozo da
liberdade e nos esforços e pesquisas para o avanço ou revolução da linguagem. Estão reunidos, neste caso,
aspectos formais e questões sociais. Nesta situação, a arte aparece como uma forma de conhecimento e
investigação, constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a realidade”
(CHAIA, 2007, p. 22).
39
Sobre essa característica inerente ao papel social que os escritores ocupam enquanto intelectuais em uma
dada sociedade, Adriana Facina (2004, p. 9) complementa que o trabalho por eles realizado “envolve
necessariamente a preocupação estética com a linguagem. Seja um defensor da ‘arte pela arte’, mais
preocupado com a experimentação formal do que com a transformação da sociedade, seja um autor engajado,
que vê na sua obra um instrumento para mudar o mundo, ambos veiculam ideias, valores e opiniões através de
um tipo de escrita em que forma e conteúdo são indissociáveis”.

43
literária, seu pertencimento a este estrato da sociedade. Em uma reflexão inédita na escrita
de seu tempo, ela associa gênero e etnia, evidenciando que a ausência de liberdade do negro
emana do mesmo sistema que subordina a mulher (DUARTE, 2005, p. 443). Se comparada
aos demais escritores brasileiros do XIX, antecipando Castro Alves, que escreveu Navio
negreiro (1869) e Os escravos (1883); Joaquim Manoel de Macedo, de As vítimas-algozes
(1869); Bernardo Guimarães, de A escrava Isaura (1875); e Aluísio Azevedo, de O mulato
(1881), ao estabelecer uma diferença discursiva com relação a esses autores, Firmina acaba
reivindicando, para si, ainda que não intencionalmente, um novo lugar: o da literatura de
autoria feminina, abolicionista e afro-brasileira.
É interessante observar, porém, que o conto Gupeva, escrito pouco tempo depois,
segue um caminho diametralmente oposto ao de Úrsula, uma vez que se destaca muito mais
pelo diálogo que estabelece com a tradição indianista brasileira40, bastante em voga entre os
escritores do período, do que pelo acento abolicionista, característica presente nas obras
autora e que surgiria como tema na literatura e na política brasileiras, com mais força,
somente a partir da década de 1870 (ALONSO, 2002). O conto, que se divide em cinco
capítulos publicados em formato de folhetim, apresenta um complexo e imbricado enredo,
cuja tônica trata da saga de um índio, Gupeva, pai de Épica, que se apaixona pelo marinheiro
francês Gastão. O nome da personagem, inclusive, tem como origem o poema Caramuru,
escrito, em 1781, por Frei José de Santa Rita Durão (1945). O texto de Maria Firmina dos
Reis veio a público pela primeira vez no jornal O Jardim das Maranhenses, entre outubro
de 1861 e janeiro de 1862, e, nos anos seguintes, em 1863 e em 1865, o folhetim completo
é publicado duas vezes mais: uma no jornal Porto Livre, outra no jornal Eco da Juventude,
contendo ligeiras modificações. Depois disso, foi reeditado somente a partir da transcrição,

40
Para o aprofundamento dessa discussão, recomendo a leitura do livro O percurso da indianidade na
literatura brasileira: matizes da figuração, da pesquisadora Luzia Aparecida Oliva dos Santos (2009),
considerando que, em seu estudo, a autora percorre as etapas de criação da literatura brasileira em busca da
representação do índio em suas diferentes nuances. Ao todo, dezoito obras são analisadas pela perspectiva da
figuração, que define a presença do nativo brasileiro pela linguagem e a colore de acordo com a época e com
as estratégias de cada autor. O percurso se estende da Carta de Achamento, de Pero Vaz de Caminha, no
período do “descobrimento”, até a publicação de Maíra, de Darcy Ribeiro, em 1976. As análises contidas em
sua pesquisa consideram as diferentes convenções ideológicas e de estilo dos vários movimentos culturais que
promovem o diálogo entre o indianismo e o indigenismo literário brasileiro. O propósito didático presente no
livro consiste em subsidiar os leitores por meio de um roteiro de leitura, que abriga o pensamento científico
conjugado com a presença de trechos das obras, elementos de fundamental importância para a compreensão
desse universo literário.

44
na íntegra, que José Nascimento Morais Filho fez dele, em seu Maria Firmina, fragmentos
de uma vida, de 1975, mais de cem anos após a primeira publicação.
Feita essa breve “digressão literária”, a autora retoma a temática da condição do
negro na sociedade escravagista e redige o conto A escrava, divulgado pela Revista
Maranhense, em 1887, também em forma de folhetim, no auge das campanhas abolicionista
e republicana. Nessa obra, elaborada em um período de acentuada maturidade intelectual da
escritora, em meio à trama, Firmina se reapropria de seu discurso combativo e de sua postura
antiescravista, já evidenciados em Úrsula, mas, dessa vez, com uma tonalidade militante
fortemente impregnada por justiça social. Constam, no enredo, informações sobre os
preceitos legais que regiam a vida dos cativos; aspectos da economia brasileira; e discussões
sobre a civilização e o progresso do país. Desse modo, articulando na trama uma acalorada
discussão em que um dos convivas, enfaticamente, critica a lógica da escravidão por suas
características anti-humanista e degradante, Firmina deixa explícita sua posição política,
uma vez que a sujeição dos escravizados é apresentada como uma vergonha nacional, ou
seja, uma questão moral que atenta à dignidade do Brasil frente às demais nações livres41.
Outro aspecto importante a ser considerado é que a sorte dos negros passou a ter
maior receptividade de escritores brasileiros somente a partir da segunda metade do XIX,
mais precisamente, a partir da década de 1870. Mas isso não foi por acaso. Agudas
influências das ideias iluministas, que culminaram com a Revolução Francesa, de 1789, e do
embrionário romantismo vindo da Europa, alcançariam a nossa intelectualidade (ALONSO,
2002). Além destas, um “bando de ideias novas”42, como argumentou Silvio Romero (apud
BARRETO, 1926, p. XXIII-XXIV), oriundas de novas escolas europeias de pensamento, às
voltas com autores como Spencer, Comte e Darwin, impactaram significativamente na
mentalidade brasileira da época, abrindo espaço para o estabelecimento de uma nova
doutrina, que, se não era inexistente anteriormente no Brasil, pelo menos, nesse momento,
mostraria definitivamente a sua força: o abolicionismo. Foi esse novo discurso, inclusive,

41
Vale lembrar que o último país das Américas a abolir a escravidão em seu território, ao menos por força da
Lei, foi o Brasil. Em seu mais recente estudo, intitulado Flores, votos e balas, a socióloga Angela Alonso
(2015) descreve, em detalhes, a forma como se deu esse processo, apresentando um diferencial com relação
aos demais trabalhos realizados até então sobre esse capítulo da história brasileira: a importância do movimento
abolicionista e da rede de ativistas, associações e manifestações públicas antiescravistas que emergiram no
país, principalmente entre os anos de 1868 e 1888, e que, diferentemente do que se pensava até então, tiveram
um papel crucial no que diz respeito à libertação dos escravizados, para além da resistência dos próprios cativos
ou mesmo das graças da princesa.
42
Entre elas, destacam-se: o positivismo, o evolucionismo, o republicanismo, o abolicionismo, a crítica
religiosa anticlericalista, as transformações no âmbito jurídico e da política, o realismo e o naturalismo.

45
que contribuiu para que os negros obtivessem maior relevância nas matérias jornalísticas,
nas conferências jurídicas, nas crônicas de jornais, na poesia e na prosa de ficção
(CARVALHO, 2006, p. 54), muito embora esse fenômeno não tenha significado o fim dos
preconceitos e da discriminação, nem a ascensão da figura do negro à igualdade com a do
branco, uma vez que a hierarquia social continuou existindo, tendo, além do mais, amplo
apoio das ciências, sobretudo da biologia.
Dentro desse quadro referencial, em termos conceituais, é preciso considerar,
também, que determinadas classificações como gênero, raça, etnia, identidade e condição
social tornam-se fundamentais para o acompanhamento de todo um percurso de mudanças
históricas. Ter em mente essas dimensões nos auxilia a compreender, com maior
propriedade, alguns dos sentidos e significados presentes na trajetória intelectual de Maria
Firmina dos Reis e que aparecem embebidas em sua obra, além de buscar compreender como
estes influíram no contexto social daquele Brasil em vias de transição. Esses elementos,
ainda, quando analisados sob um mesmo prisma, não devem ser encarados como um
conjunto de “sujeições combinadas” (STOLCKE, 1991). A melhor saída para essa questão,
consequentemente, pode ser trabalhar com a noção de “interseccionalidade43”, uma vez que,
com ela, torna-se possível explicar como normas, valores, ideologias e discursos, assim
como estruturas sociais e identidades, influenciam-se reciprocamente (MATTOS, 2011).
Finalmente, devido ao fato de os escritos de Firmina portarem, entre outros
elementos, ataques àquela sociedade escravagista; os modos de ser e estar da autora; sua
percepção da realidade; bem como seus ideais e anseios mais íntimos, ao aferir o olhar para
os possíveis sentidos implícitos em cada fragmento dos textos, o que se percebe, para além
das manifestações contrárias ao sistema vigente, é a existência de um fio condutor que
permeia boa parte de sua produção. Trata-se de um conjunto de ideias que pode ser entendido

43
De acordo com Patrícia Mattos (2011), a noção de interseccionalidade (Intersektionalität) foi cunhada pelas
autoras alemãs Nina Degele e Gabriele Winker, no início dos anos 2000, ainda que o debate em torno dela
tenha se iniciado na década de 1980, a partir das discussões de feministas negras norte-americanas e brasileiras.
Na tentativa de rever criticamente a formulação teórico-metodológica da proposta, porém, a advogada e ativista
estadunidense Kimberlé Williams Crenshaw (2002, p. 177) a definiu da seguinte maneira: “A
interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e
dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual
o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas
que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras”. Tal abordagem, portanto,
permite articular a relação entre agência e estrutura, contemplando o nível das estruturas sociais, das
representações simbólicas e da identidade, o que permite compreender, de modo mais adequado, a dinâmica
da dominação social e das categorias de diferenciação que naturalizam, produzem e reproduzem as
desigualdades sociais.

46
como o pensamento político da maranhense. E esse fenômeno pode ser observado, de forma
tácita, quando examinamos a obra na íntegra, fazendo com que os textos da escritora estejam
sempre correntes e fazendo com que eles adquiram a condição de sujeito relativo. É em
busca desse fio condutor, que marca a trajetória intelectual de Maria Firmina dos Reis,
portanto, que a continuação dessa pesquisa se dará.

47
2. COM A PALAVRA, “UMA MARANHENSE...”

Nos primeiros séculos da história brasileira, as manifestações literárias em defesa da


liberdade e dos africanos e afrodescendentes escravizados foram, praticamente, inexistentes.
Somente no final da década de 1840 é que a temática do cativeiro passa a ocupar algum
espaço em nossa literatura, sendo o poeta maranhense Gonçalves Dias o seu responsável
direto. Ao negro, ele dedicou especial atenção em Meditação e A escrava, ambos publicados
em 1846. No Maranhão, nesse período, constam também as presenças de escritores que
trataram dessas questões em suas respectivas narrativas, sob diferentes vieses e com
perspectivas variadas, tendo maior destaque os nomes de Trajano Galvão de Carvalho (1830-
1864), autor de Calhambola, a criola, de 1854; Celso Magalhães (1849-1879), que escreveu
O escravo, de 1867; Sousândrade (1833-1902), autor de O guesa, redigido ao longo de trinta
anos, entre 1854 e 1884; e Aluísio Azevedo (1857-1913), criador de O mulato, publicado
em 1881 (MENDES, 2011, p.23-4). Uma das primeiras vozes femininas no Brasil a registrar
as temáticas afro-brasileira e da escravidão na literatura, portanto, é a de Maria Firmina dos
Reis, com a publicação de Úrsula, em 1859.
Embora a maranhense possa ser inserida entre os precursores do romantismo de
cunho abolicionista44, a sua entrada no mundo das letras não deve ter sido tarefa fácil. Ao
menos no que diz respeito a uma possível aceitação de sua obra inaugural pelos seus pares e
ao próprio sentimento de pertencimento da jovem escritora, ainda bastante hesitante, a esse
estrato recém-inaugurado da cultura local. E isso fica evidente logo na abertura do romance,
quando Firmina, antes de qualquer coisa, registra que: “Mesquinho e humilde livro é este
vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador
de outros, e ainda assim o dou a lume” (REIS, 2009, p. 13). Por trás dessa declaração de

44
Conforme o exposto, o romance Úrsula foi publicado já no final da década de 1850, na cidade de São Luís.
Naquele momento, as ideias que influenciariam o aproveitamento do negro enquanto um tema a ser trabalhado
na literatura brasileira tiveram como referência imediata a Lei Eusébio de Queirós, promulgada em 4 de
setembro de 1850. A nova legislação, no entanto, não surtiu os efeitos esperados, uma vez que a extinção do
tráfico negreiro para o Brasil não aconteceu de fato e que as negociatas que passaram a ocorrer de modo ilegal
fizeram com que a população de cativos aumentasse vertiginosamente no país. Essa nova realidade,
possivelmente, serviu como embrião para a introdução das primeiras personagens negras em nossa literatura e,
algum tempo depois, já na década de 1870, a partir da promulgação da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro
de 1871, para o surgimento de um movimento estético que faria da palavra escrita arma de resistência contra a
ordem escravagista: o romantismo de cunho abolicionista. Para melhor compreender como se deu esse
processo, ainda que o autor não se refira necessariamente à figura de Maria Firmina dos Reis, recomendo a
leitura do artigo: A trajetória do negro na literatura brasileira, de Domício Proença Filho (2004, p. 161-193).

48
modéstia, consequentemente, a escritora revela os primeiros sinais de sua preocupação. Mas
é na passagem seguinte, a mais sintomática de seu Prólogo, que os motivos de sua súplica
se tornam ainda mais evidentes: o fato do livro ter sido “escrito por uma mulher, e mulher
brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados” (REIS,
2009, p. 13). Como alguém que pede a autorização dos demais antes de seguir viagem, a
autora se arrisca na empreitada e, buscando a compaixão de seus leitores, deixa explícita a
sua intenção de continuar escrevendo e de mostrar a todos e todas que suas criações poderiam
servir de inspiração para que outras mulheres, assim como ela o fizera, se aventurassem pelo
universo da escrita:

Deixai pois que minha ÚRSULA, tímida e acanhada, sem dote da natureza,
nem enfeites e louçanias d´arte, caminhe entre vós.
Não a desprezeis, antes amparai-a nos seus incertos e titubeantes passos
para assim dar alento à autora de seus dias, que talvez com essa proteção
cultive mais o engenho, e venha a produzir cousa melhor, ou quando
menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras, que com
imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrução
mais vasta e liberal, tenham mais timidez do que nós. (REIS, 2009, p. 14)

Impossibilitadas de exercer efetiva participação na sociedade brasileira oitocentista


e de outrora, de ocupar funções e cargos públicos, de garantir com dignidade sua própria
sobrevivência e de galgar níveis mais elevados de ensino e instrução, as mulheres, como
pôde ser observado no capítulo anterior, por muito tempo, ficaram restritas aos ambientes
privados e aos desígnios e mandos de seus pais, tios, irmãos, maridos e até mesmo senhores.
No que diz respeito à criação artística, também, muitas delas se tornaram reféns das
construções textuais e imagéticas e das demais representações e significações oriundas da
imaginação e da criatividade masculinas (TELLES, 1997, p. 408). Daí, provavelmente, as
razões que levaram Maria Firmina dos Reis a se justificar. Para além da questão feminina,
contudo, o que se percebe em Úrsula é uma preocupação inerente da autora em tratar do
lugar ao qual os africanos e afrodescendentes escravizados foram destinados naquela
sociedade, bem como da instituição da escravidão enquanto um mal a ser combatido. Essa
solidariedade para com os oprimidos, presente ao mesmo tempo em seu conto A escrava e,
em alguma medida, em Gupeva, é marca significativa de sua escrita e da maneira como
expõe suas ideias. Percorrer esses textos em busca de pistas que possibilitem uma melhor

49
compreensão de sua visão de mundo, de seus valores e de seus ideais, logo, é o intuito desta
seção.

2.1. Úrsula, “romance original brasileiro”

A partir da segunda metade do século XIX, os primeiros registros da prosa de ficção


à brasileira começaram a ser esboçados e apresentados aos parcos leitores do Império como
possibilidade de entretenimento, de distração, mas, sobretudo, como uma maneira de os
autores retratarem as especificidades de uma sociedade que, apesar de ainda se manter na
condição de estamento, sob a autoridade de um governo monárquico e de estar baseada em
uma economia extrativista de ordem escravagista, passaria a sofrer transformações
profundas em sua estrutura e em seu modo de organização. O movimento abolicionista, que
inspiraria uma parcela considerável dessa produção letrada, no entanto, demorou certo tempo
para se configurar no país. Desde o início de nossa história, sempre houve quem se
posicionasse contrariamente ao cativeiro e às implicações dele decorrentes. Mas há que se
considerar que pensamento é diferente de ação. E é neste ínterim, em meio a uma conjuntura
política e econômica em vias de ebulição, que surge, em pleno Maranhão oitocentista, a
figura de Maria Firmina dos Reis, com a publicação de Úrsula, um “romance original
brasileiro”.
A obra de estreia da escritora, sob determinados aspectos, pode ser considerada como
algo novo nas letras nacionais. Isso porque, além de ter sido escrita por uma mulher
afrodescendente e de ser uma das primeiras do gênero no país, sua narrativa aponta o
caminho do romance romântico como atitude política de denúncia das injustiças enraizadas
há séculos naquela sociedade, que fazia dos cativos e das mulheres as suas principais vítimas.
Ao descrever os dramas vividos pela jovem Úrsula e por sua desafortunada mãe, bem como
as infelicidades de Tancredo, um estudante da Faculdade de Direito de São Paulo que fora
traído pelo próprio pai, Firmina redobra sua percepção acerca dos valores patriarcais,
construindo um universo ficcional em que a donzela frágil e desvalida é disputada, ao mesmo
tempo, pelo mocinho e pelo vilão. Soma-se a trama a tragédia dos escravos Túlio, Susana e
Antero, que recebem no texto um tratamento diferenciado, marcado pelo ponto de vista
interno e pautado por uma acentuada fidelidade à história até então oculta da diáspora
africana no Brasil.

50
Se observarmos atentamente o surgimento das primeiras personagens negras na
literatura brasileira, especialmente a partir da década de 1850, veremos que o discurso de
Maria Firmina dos Reis presente em Úrsula, no que diz respeito à forma, não se distingue
muito do que dizem os demais autores brancos que estão olhando para as dinâmicas do
cativeiro e para as condições dos africanos e afrodescendentes escravizados. Mas o fato da
escritora se irmanar aos cativos e a seus descendentes faz com que suas palavras assumam
uma perspectiva outra45, revelando, dessa maneira, a qual segmento daquela estrutura social
ela se filia. Túlio, Susana e Antero são personagens cujas identidades se destacam no plano
constitutivo do romance, uma vez que suas vozes aparecem em dissonância com os discursos
histórico e literário tradicionais, ou seja, não apenas como vozes de escravizados que aceitam
a subordinação ao poder estabelecido, mas, pelo contrário, fazendo a crítica do processo
escravagista. E é justamente aí que a novidade reside.
“São vastos e belos os nossos campos; porque inundados pelas torrentes do inverno
semelham o oceano em bonança calma (...) os campos são qual vasto deserto, majestoso e
grande como o espaço, sublime como o infinito” (REIS, 2009, p. 15). Assim se inicia o
primeiro capítulo do livro. Essa exaltação à natureza, característica típica da ficção de cunho
romântico, demonstra, para além da interação da maranhense com a paisagem, a sua
necessidade de descrever e de exaltar as qualidades e a imensidão das terras brasileiras.
Mostrar a potência natural do país para, posteriormente, contrastá-la com sua postura frente
à exploração do trabalho servil, é uma das táticas empreendidas pela escritora para
estabelecer o ambiente de sua crítica social. O universo ficcional de Úrsula, por sua vez, é
permeado por momentos de desencontro, ilusões e decepções. E o texto é marcado pela
linearidade narrativa e pela construção de personagens desprovidas de maior complexidade
psicológica, que vivem, quase sempre, situações extremas, reguladas pelo acaso e por
mudanças drásticas de destino. Vale lembrar que o romance está situado no contexto da
literatura folhetinesca, o que demonstra o quanto a autora se apropria das técnicas textuais
de fácil aceitação popular, com o intuito de utilizá-las como instrumento a favor da
consagração e da valorização dos oprimidos.

45
De acordo com a pesquisadora Algemira de Macedo Mendes (2011, p. 25), “Úrsula ultrapassa esse usual
ponto de vista, porque adota posicionamento explicitamente antiescravagista, diferentemente de Joaquim
Manuel de Macedo, em As vítimas algozes; Bernardo Guimarães, em A escrava Isaura; Pinheiro Magalhães,
em O comendador; e Francisco Gil Castelo Branco, em Ataliba, o vaqueiro”.

51
O triângulo amoroso formado pela jovem Úrsula, Tancredo e por seu tio, o
Comendador Fernando P., que aparece no enredo como a encarnação de todo o mal sobre a
terra, ocupa o plano central das ações. Não bastando ter assassinado o pai e abandonado a
mãe da protagonista, que ficara por um longo período prostrada em uma cama, essa
personagem é descrita por Firmina como uma figura sádica e cruel, qualidades atribuídas
aos senhores de escravos que exploravam até o limite da exaustão a mão de obra forçada.
Ao final da trama, tomado por ciúmes, o vilão mata Tancredo, na mesma noite em que ele e
Úrsula se casariam, o que leva a heroína à loucura e, por conseguinte, ao túmulo. O
Comendador acaba sendo acometido por sentimentos de remorso e de culpa, que também o
levam à morte, não sem antes passar pela libertação de seus escravos e por um período de
reclusão em um convento. A despeito do desfecho fatídico e infeliz e dos desgostos vividos
pelas personagens principais ao longo da trama, o livro cresce na medida em que surgem os
episódios narrados em primeira pessoa pelos próprios cativos. Antes de analisarmos tais
fragmentos, porém, vejamos como a autora estrutura suas ideias.
A primeira ação de Úrsula está contida no instante em que o jovem Túlio salva a vida
de Tancredo, após este sofrer a queda de um cavalo. A amizade que se estabelece a partir de
então constitui a diferença basilar entre um romance açucarado qualquer do período e um
livro que busca romper com o status quo. Ao propor tal cena, Maria Firmina dos Reis coloca
o elemento servil em pé de igualdade com o homem branco, situando ambos em um mesmo
estatuto discursivo. Além disso, percebe-se que não há a utilização de sotaques, acentos,
gírias ou mesmo trejeitos que subjuguem uma personagem em detrimento de outra. Não por
acaso, o primeiro capítulo do livro, destinado à apresentação do cenário e da afetividade que
se forma entre Túlio e Tancredo, foi denominado Duas almas generosas. Acontece, no
entanto, que o sentimento de satisfação vivido por essa primeira personagem negra, cujo
perfil dramático e existencial vai além da mera força de trabalho, acaba sendo freado pelo
descontentamento e pela tristeza que sua condição de escravizado lhe impunha:

– Que ventura! – então disse ele, erguendo as mãos aos céus – que ventura
podê-lo salvar.
O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar
vinte e cinco anos, e que na franca expressão de sua fisionomia deixava
adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano
refervia-lhe nas veias: o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e
embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e

52
a servidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava;
porque se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra o fraco!...
Ele entanto resignava-se; e se uma lágrima a desesperação lhe arrancava,
escondia-a no fundo de sua miséria. (REIS, 2009, p. 22)

Nas considerações que o narrador faz a respeito de Túlio, logo na sequência,


evidencia-se o primeiro discurso do livro contrário à escravidão e que é propositalmente
empregado pela autora ao definir seu caráter. Mesmo sofrendo as agruras do cativeiro, o
jovem é descrito como um homem “virtuoso”, de “alma pura” e portador de “sentimentos
generosos”:

Coitado do escravo! nem o direito de arrancar do imo peito um queixume


de amargura dor!!...
Senhor Deus! quando calará no peito do homem a tua sublime máxima –
ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão
repreensível injustiça ao seu semelhante!... a aquele que também era livre
no seu país... aquele que é seu irmão?!
E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera
a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no
coração, permaneciam intactos, e puros como a sua alma. Era infeliz; mas
era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa
cena, que se lhe ofereceu à vista. (REIS, 2009, p. 22-3)

Contrapondo-se aos estereótipos associados ao elemento servil e que estão presentes


nos demais romances publicados no período, Maria Firmina dos Reis, portanto, com base
em preceitos éticos e morais do cristianismo, institui a imagem do escravo bom e fiel que,
apesar de viver sob a égide do cativeiro, não se permite embrutecer. Vale notar que o artifício
utilizado pela autora é bastante parecido com o comportamento atribuído à personagem
principal de A cabana do pai Tomás, da escritora estadunidense Harriet Beecher Stowe,
publicado em terra estrangeira alguns anos antes de Úrsula, entre 1851 e 1852. E mesmo
não havendo registros que possam comprovar o contato da maranhense com as ideias ali
expostas, é de se supor que ela tenha lido o livro, já que, por ter sido um dos grandes
fenômenos literários do século XIX, acabou sendo fortemente difundido entre os membros
da intelectualidade brasileira46.

46
Como explica o pesquisador Hélio de Seixas Guimarães (2013, p. 424): “a repercussão do Pai Tomás no
Brasil foi intensa. Isso tanto no sentido de fornecer aos escritores daqui um estoque de imagens literárias do
escravo e de situações relacionadas à escravidão, que passariam a integrar o imaginário dos escritores
brasileiros (quantas das tragédias de ser vendido, dos sofrimentos da senzala, dos dramas familiares, das cenas
de fuga e suicídio têm inspiração no livro de Beecher Stowe, que lhes deu figuração e ampla circulação

53
O encontro dessas “duas almas generosas”, de volta ao texto, também não é feito por
acaso. A intenção de Maria Firmina dos Reis ao conceber tal cena, baseada na gratidão mútua
e no sentimento de amizade que se assenta entre Túlio e Tancredo, é a de mostrar que, apesar
das adversidades oriundas do sistema escravagista, ambas as raças poderiam viver em
concordância e harmonia, o que remete suas ideias aos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade, defendidos com entusiasmo pelos adeptos do Iluminismo:

– Homem generoso! único que soubeste compreender a amargura do


escravo!... Tu que não esmagaste com desprezo a quem traz na fronte
estampado o ferrete da infâmia! Porque ao africano seu semelhante disse:
– és meu! – ele curvou a fronte, e humilde, e rastejando qual erva, que se
calcou aos pés, o vai seguindo? Porque o que é senhor, o que é livre, tem
segura em suas mãos ambas a cadeia, que lhe oprime os pulsos. Cadeia
infame e rigorosa, a que chamam: – escravidão?!... E entretanto este
também era livre, livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não
se é escravo. Ele escuta a nênia plangente47 de seu pai, escuta a canção
sentida que cai dos lábios de sua mãe, e sente como eles, que é livre; porque
a razão lho diz, e a alma o compreende. Oh! a mente! isso sim ninguém a
pode escravizar! 48 Nas asas do pensamento o homem remonta-se aos
ardentes sertões da África, vê os areais sem fim da pátria e procura abrigar-
se debaixo daquelas árvores sombrias do oásis, quando o sol requeima e o
vento sopra quente e abrasador: vê a tamareira benéfica junto à fonte, que
lhe amacia a garganta ressequida: vê a cabana onde nascera, e onde livre
vivera! Desperta porém em breve dessa doce ilusão, ou antes sonho em que
se engolfara, e a realidade opressora lhe aparece – é escravo e escravo em
terra estranha! Fogem-lhe os areais ardentes, as sombras projetadas pelas
árvores, o oásis no deserto, a fonte e a tamareira – foge a tranquilidade da
choupana, foge a doce ilusão de um momento, como ilha movediça; porque
a alma está encerrada nas prisões do corpo! Ela chama-o para a realidade,
chorando, e seu choro, só Deus compreende! Ela, não se pode dobrar, nem
lhe pesam as cadeias da escravidão; porque é sempre livre, mas o corpo
geme, e ela sofre, e chora; porque está ligada a ele na vida por laços
estreitos e misteriosos. (REIS, 2009, p. 38-9)

internacional?), como nas reações de acolhimento e recusa que o livro provocou entre intelectuais e literatos
brasileiros, que reagiram em suas obras às estratégias e procedimentos adotados por Beecher Stowe para
defender a abolição da escravidão nos Estados Unidos. A presença do Pai Tomás se multiplicou em traduções
e adaptações da história que se sucederam, no Brasil e no mundo, não só na forma de livro, mas também em
numerosas e célebres representações teatrais, que caprichavam na encenação dos suplícios dos escravos e
viraram uma espécie de febre em todo o mundo”.
47
Lamento fúnebre; canção de despedida.
48
Grifo meu.

54
Mais adiante, no capítulo denominado A preta Susana49, o posicionamento de Maria
Firmina dos Reis contrário às dinâmicas do cativeiro se torna ainda mais inflamado.
Operando como uma espécie de alter ego da escritora, nessa altura do romance, já não é
mais do narrador a voz que enuncia os acontecimentos pretéritos, mas é a própria
personagem escravizada quem toma para si o discurso, ao descrever, em primeira pessoa, os
detalhes de sua captura em África; a conturbada viagem ao Brasil ocorrida nos porões do
navio negreiro; e as condições desumanas às quais fora submetida, junto aos seus, além-mar.
E é por intermédio das memórias narradas por essa segunda personagem negra que Firmina
chama a atenção de seus leitores para a brutalidade que envolvia as dinâmicas da servidão.
Outro aspecto que merece destaque é a caracterização física atribuída à preta Susana, uma
vez que tal imagem remete o leitor às sensações de sofrimento, angústia, amargura e dor.
Afastando-se de eventuais concepções erotizantes, bastante comuns em figuras femininas
negras criadas no período, a escritora a apresenta como uma senhora idosa, desprovida de
atributos físicos e de maiores qualidades estéticas:

Susana chamava-se ela; trajava uma saia de grosseiro tecido de algodão


preto, cuja orla chegava-lhe ao meio das pernas magras e descarnadas
como todo o seu corpo: na cabeça tinha cingido um lenço encarnado e
amarelo, que mal lhe ocultava as alvíssimas cãs. (REIS, 2009, p. 112)

Ainda que tenha sido feita de modo superficial, a composição singela dessa
personagem é proposital e plenamente aceitável. Isso porque, a intenção da autora é fazer
valer o depoimento de preta Susana, ao invés de meramente descrevê-la como alguém digna
de piedade, o que desviaria a atenção do leitor e enfraqueceria seu argumento. É preciso
notar, também, que tal descrição foi inserida no romance justamente no momento em que é
narrada a alforria de Túlio dada por Tancredo, no sentido de relativizá-la enquanto conquista
da liberdade. Comparando-a à vida que levava em África, a velha escravizada, inclusive,
ironiza a “liberdade” recebida pelo jovem recém-alforriado, acreditando que esta, por não
ser autêntica, acabaria o levando à morte:

49
A título de esclarecimento, entre o primeiro e o nono capítulos, o movimento empreendido pela autora se
volta para a descrição das demais personagens e para a ambientação da trama, com o intuito de abrir caminho
para o que pode ser considerado como o clímax do romance: as narrativas em primeira pessoa apresentadas
pelas personagens escravizadas. Por tal motivo, e considerando o recorte da pesquisa, tomo a liberdade de
estabelecer um salto e direcionar a análise especificamente para as ideias de Maria Firmina dos Reis acerca da
escravidão.

55
– Tu! tu livre? ah não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns
grandes olhos. Meu filho, tu és já livre?...
– Iludi-la! – respondeu ele, rindo-se de felicidade – e para quê? Mãe
Susana, graças à generosa alma deste mancebo sou hoje livre, livre como
o pássaro, como as águas; livre como o éreis na vossa pátria.
Estas últimas palavras despertaram no coração da velha escrava uma
recordação dolorosa; soltou um gemido magoado, curvou o fronte para a
terra, e com ambas as mãos cobriu os olhos.
Túlio olhou-a com interesse; e começava a compreender-lhe os
pensamentos.
– Não se aflija – disse – Para que essas lágrimas? Ah! perdoe-me, eu
despertei-lhe uma ideia bem triste!
A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois exclamou:
– Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus;
mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto
me foi caro! Liberdade! liberdade... ah! eu a gozei na minha mocidade! –
continuou Susana com amargura – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais
ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio
da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente de meu país, e louca
de prazer a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria às
descarnadas e arenosas praias, e aí com minhas jovens companheiras,
brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração, divagávamos
em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daquelas
vastas praias. Ah! meu filho! mais tarde deram-me em matrimônio a um
homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união
veio uma filha querida, em que me revia, em que tinha depositado todo o
amor de minha alma: – uma filha que era minha vida, as minhas ambições,
a minha suprema ventura, veio selar tão santa união. E esse país de minhas
afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah
Túlio! tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! tudo, tudo até a própria
liberdade! (REIS, 2009, p. 114-5)

Mesmo sabendo que Maria Firmina dos Reis jamais saíra do Maranhão, tendo seu
conhecimento acerca do continente africano baseado apenas no que havia lido e/ou ouvido
falar pelos cativos com os quais convivera, ela usa sua capacidade inventiva para transportar
o leitor àquele território, contrapondo-se ao discurso hegemônico acerca do paraíso tropical
à brasileira e apresentando uma perspectiva outra, que busca estabelecer um sentido novo,
agora mais positivado, a respeito de África e das populações trazidas de lá. Note-se, também,
nesse mesmo fragmento, a inversão de valores sugerida pela autora: “bárbaros” são os
homens brancos caçadores de almas, e não os africanos, que foram arrancados à força de sua
terra natal. Dessa maneira, consequentemente, buscando consagrar seu ponto de vista,
Firmina atinge o ponto alto de Úrsula, o mais impactante de toda a sua produção literária:

56
Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando um assobio, que
repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente, que aí
me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com
cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei
em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros
sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei
enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... a sorte me
reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles
lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! meu
Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes
avaliar!...
Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de
cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis
tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida
passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para
caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados50 em pé e para que
não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das
nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-
nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda
mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar,
de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a
seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à
sepultura asfixiados e famintos!
Muito não deixavam chegar esse último extremo – davam-se à morte.
Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos
entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e
breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do motim.
A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foram sufocadas
nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades 51 . (REIS,
2009, p. 116-7)

50
Grifos da autora.
51
A perspectiva utilizada por Maria Firmina dos Reis para descrever as cenas do aprisionamento de da travessia
nos porões do navio impressionam, justamente, por sua proximidade com os raros depoimentos de escravizados
que conseguiram se libertar e, consequentemente, registrar suas memórias. A narrativa autobiográfica de
Mahommah Gardo Baquaqua, por exemplo, a única publicada por um africano tornado cativo no Brasil,
antecede em cinco anos a publicação de Úrsula e confirma, em muitos aspectos, os detalhes apresentados pela
maranhense em seu romance. Veiculado em formato de livro, em 1854, na cidade norte-americana de Detroit,
de acordo com a pesquisadora Algemira de Macedo Mendes (2011, p. 38), ao descrever como se deu a triste
viagem, Baquaqua afirma: “Quando estávamos prontos para desembarcar, fomos acorrentados uns aos outros
e amarrados com cordas pelo pescoço e assim arrastados para a beira-mar. (...) O primeiro barco alcançou o
navio com segurança, apesar dos fortes ventos e do mar agitado; o próximo a se aventurar, porém, emborcou
e todos se afogaram. Fui colocado no próximo que seguiu rumo ao navio. Deus houve por bem me poupar,
talvez por alguma razão. Fui então colocado no mais horrível de todos os lugares. Seus horrores, ah! Quem
pode descrever? Ninguém pode retratar seus horrores tão fielmente como o pobre desventurado, o miserável
desgraçado que tenha confinado em seus portais. Oh! amigos da humanidade, tenham piedade do pobre
africano, alijado e afastado de seus amigos e de seu lar, ao ser vendido e depositado no porão de um navio
negreiro entre religiosos e benevolentes. (...) Chegando em Pernambuco, América do Sul (...)”.

57
Ao reavivar suas memórias e todo o sofrimento por elas causado, preta Susana
assume uma postura política que denuncia as mazelas da escravidão e que, concomitante e
metonimicamente, acaba fazendo com que o seu eu individual desemboque em um nós
coletivo, uma vez que ela reúne em seu depoimento as angústias vividas por todos aqueles
que foram escravizados e trazidos à revelia para o Brasil. A amargura e o desespero gerados
pela captura e pelos demais infortúnios vividos por essa personagem no porão do navio,
apesar disso, aos poucos vão sendo sobrepujados, ou melhor, “sufocados” pelas situações
cada vez mais degradantes às quais aquela gente havia sido submetida. Explicitando os
maus-tratos vividos por Susana em sua travessia transatlântica, Maria Firmina dos Reis, por
consequência, deixa explícita a impossibilidade de se reverter tal situação, não lhe restando
outra alternativa a não ser aceitar calada a sua mais nova condição de cativa. Eis a chave
para compreender a estratégia utilizada pela autora para atacar as dinâmicas do cativeiro,
sem agredir diretamente as convicções de seus leitores brancos.
Além dessas lembranças narradas em primeira pessoa pela velha africana e da
liberdade relativa que preside a atual situação de Túlio, Úrsula trata ainda de um tipo
diferente de escravo: aquele que perde sua autoestima e que, apesar de ser descrito como
alguém que tem um bom coração, se deixa levar pelo alcoolismo. Representado pela figura
decrépita de pai Antero, o enfoque que a maranhense dá à essa terceira personagem negra
também é engenhosa, pois, para além de cumprir na trama um contraponto dramático ao
caráter elevado do jovem recém-alforriado, escapa de um argumento equivocado, segundo
o qual todo negro seria moralmente superior e todo branco inescrupuloso. Seguindo nessa
direção, logo, a maranhense estabelece os limites de sua crítica, no sentido de se proteger de
eventuais julgamentos por parte do público. Vale observar, não obstante, que essa tríade de
personagens escravizadas é arquitetada a partir de concepções éticas, estéticas e psicológicas
que as distancia dos demais estereótipos associados às personagens negras da literatura
brasileira oitocentista, o que confere à narrativa fiminiana determinados acontecimentos que
não seriam possíveis de acontecer caso fossem apresentados nos mesmos moldes.
Outro aspecto a ser considerado é a passividade e a conivência da Igreja católica com
relação às dinâmicas cativeiro, o que reforça o discurso anticlerical defendido e articulado
por Maria Firmina dos Reis em alguns momentos de sua obra. As relações íntimas que se
constituíam no século XIX entre padres e senhores de escravos, por exemplo, são
apresentadas em Úrsula de um modo peculiar, sugerindo que os membros do clero, ao se
calarem perante os ditames da escravidão, acabavam se beneficiando dos favores que lhes

58
eram oferecidos por representantes da elite econômica. A título de ilustração, destaca-se a
passagem em que o narrador descreve a amizade entre o Comendador, um “homem estúpido
e orgulhoso”, e o Capelão da sacristia, “um santo homem que se submetia aos mandos e
caprichos e era cúmplice do senhor”:

O comendador, talvez mais por ostentação que por sentimentos religiosos,


tinha em sua casa um capelão, que era voz pública ser-lhe muito dedicado
em consequência de altos favores feitos pelos pais de Fernando à sua
família. Fosse pelo que fosse, o capelão de Fernando P... dizia-se amigo
deste, e isso causava a todos admiração; porque o comendador era um
homem detestável e rancoroso, e o sacerdote parecia ser um santo varão.
Por singular anomalia estes dois homens pareciam querer-se, ou suportar-
se reciprocamente, e essa união dava-lhes a reputação de íntimos amigos.
(REIS, 2009, p. 177-8)

Mais à frente, quando a autora organiza a cena da captura de preta Susana comandada
pelo Comendador, que estava completamente tomado por de ciúmes e desejoso de vingança,
não à toa o padre acaba fazendo parte da comitiva que sai à procura da velha cativa, acusada
de tentar proteger os noivos foragidos, Tancredo e Úrsula. A intenção de Maria Firmina dos
Reis, aqui, não é a de demonizar a figura do sacristão, mas, pelo contrário, mostrar que nem
mesmo o poder da Igreja católica escapava dos caprichos e das vontades dos senhores de
escravos. Esse comportamento, inclusive, pode ser atestado no momento em que o padre,
atônito, se defronta com a conduta colérica e inflamada de seu “amigo”, logo após defender
a negra e relembrar ao Comendador que quem condena um inocente ao inferno a ele será
condenado:

– Mentes, padre maldito! A vossa doutrina não a escutarei nunca. A


vingança, desejo-a com ardor, afaga-o. Não sabes que é a única esperança
que me resta? Amor! ventura!... tudo, tudo caiu no abismo... Eles o
quiseram... oh! não os hei de poupar.
O inferno? Haverá pior de que o que trago no coração?! O inferno?! O
inferno me restituirá Úrsula pura da nódoa do amor de outrem, porque será
lavado no sangue do homem por quem desprezou-me.
Sabes acaso o que é ser desdenhado pela mulher que amamos? Sabes o que
é ser iludido, aviltado por aquela a quem déramos a vida, a honra, a alma
se no-la pedisse!?...
– Filho, – arriscou ainda o velho sacerdote – não desafieis a cólera do
Senhor. O sangue de vosso irmão vos queimará a alma; e o amor, de que
vos servirá então? Julgais que vos poderá ele afagar quando ante vós se

59
erguer mudo e impassível o espectro ensanguentado de vossa vítima,
clamando: – és o meu assassino!!!...
Então embalde suplicareis o meigo auxílio do sono, que vossos olhos
pasmados e fitos no medonho fantasma não poderão cerrar.
Então ele erguerá a voz, e exclamará com horrífico acento, que vos
resfriará os membros: – Maldição do Senhor sobre aquele que assassinou
o homem, que era seu irmão!
– Cala-te... cala-te, estúpido que és – rugiu o comendador – Que me
importa a mim a vingança dos mortos! Tancredo, Úrsula não se hão de rir
do homem a quem ludibriaram. (REIS, 2009, p. 194-5)

Diferentemente dos desenlaces presentes nos demais romances publicados em


período próximo ao surgimento de Úrsula, a perspectiva à qual a autora se filia para encerrar
sua narrativa não prevê para as personagens um final feliz, mas, sim, um desfecho fúnebre e
sem quaisquer expectativas de melhora. Preta Susana, por exemplo, tendo plena consciência
da opressão a que fora submetida em terras brasileiras, encontra na morte a única saída para
reconquistar aquilo que somente em juventude pudera gozar: a verdadeira liberdade. E essa
imagem da morte como sendo a redenção de todo o sofrimento vivido por ela remete o leitor
diretamente à ideia de “salvação”, difundida à exaustão e perpetuada pela Igreja católica até
hoje. E mesmo tendo a oportunidade de escapar do cativeiro antes de receber sua sentença,
a velha escravizada, alegando ser inocente, recusa essa opção, o que sugere que ela, assim
como as demais personagens negras, possui um código de conduta próprio, agindo sempre
em conformidade com os seus próprios valores.
Finalmente, é preciso dizer que Úrsula não tem a pretensão de ser uma bula
abolicionista ou mesmo um panfleto para tratar de questões sociais, embora as críticas nessa
direção estejam sempre recorrentes no livro. Até porque, ao redigi-lo, a intenção de Maria
Firmina dos Reis foi justamente a de tratar de questões fundamentais, como a problemática
da escravidão negra no Brasil, mas sem se comprometer diretamente com elas. Ao menos
nesse primeiro momento, ainda bastante embrionário. Do mesmo modo, ao conferir aos
africanos e afrodescendentes escravizados uma nova conformação, uma configuração outra,
que até então lhes era negada, a autora os apresenta como seres distintos, detentores de
sentimentos, memória e alma; e não como simples objeto, como a ideologia dos
escravocratas fazia acreditar, sempre subestimando a sua capacidade de ação e de
intervenção no mundo. É em decorrência desse feito, consequentemente, que o romance
inaugural da maranhense assume relevância e reconhecimento, podendo ser recebido com
bons olhos pela crítica.

60
2.2. Uma breve digressão indianista

Se o tratamento que Maria Firmina dos Reis atribui às personagens negras e à questão
da escravidão em Úrsula é um tanto particular para a literatura brasileira produzida até
aquele momento, em outro tema bastante em voga no período, o encontro da cultura europeia
com a cultura indígena autóctone, ela também vai apresentar ideias distintas. A primeira
versão de Gupeva, romance brasiliense, conforme o exposto, foi publicada entre os meses
de outubro de 1861 e janeiro de 1862, em São Luís, no periódico semanal O Jardim das
Maranhenses. Nos anos seguintes, em 1863 e em 1865, respectivamente, o folhetim
completo foi divulgado duas vezes mais: uma no jornal Porto Livre, outra no jornal Eco da
Juventude, contendo ligeiras modificações na forma, mas sem apresentar alterações
significativas no que diz respeito ao conteúdo. Depois disso, somente em 1975, a partir da
transcrição que José Nascimento Morais Filho fez da última versão publicada, em seu Maria
Firmina, fragmentos de uma vida, é que o século XX passou a ter acesso ao único conto de
cunho indianista redigido pela maranhense. Enquanto uma escritora romântica de seu tempo,
portanto, Firmina também se dedicou a pensar o lugar destinado ao índio naquela sociedade,
no sentido de registrar a sua contribuição e de marcar o seu ideário acerca da questão
nacional.
Aliando a temática da indianidade ao tabu do incesto, assuntos caros aos enredos
oitocentistas, Gupeva recebe da autora uma abordagem estilística tipicamente folhetinesca,
com trama de capa e espada e uma série de coincidências que perpassam acontecimentos
complexos e improváveis. O refúgio no passado, o nativismo e a reinvenção do bom
selvagem, fundamentos presentes na narrativa, assim, centram suas atenções no elemento
indígena. Mesmo não havendo registros que comprovem essa afirmação, é possível dizer
que o texto revela por parte da escritora a leitura de determinadas obras do primeiro
romantismo de influência cristã, especificamente em sua abordagem com relação ao índio,
como as novelas Atala (1801) e René (1802), de François-René de Chateaubriand52. No que
diz respeito à produção local, certamente ela teve contato com o poema indianista de seu
conterrâneo Gonçalves Dias, I-Juca Pirama, publicado em 1851. Além disso, vale lembrar

52
François-René de Chateaubriand (Saint-Malo, 4 de setembro de 1768 – Paris, 4 de julho de 1848), também
conhecido como visconde de Chateaubriand, foi um escritor, ensaísta, diplomata e político francês que se
notabilizou por sua obra literária, exercendo uma forte influência na literatura romântica de raiz europeia,
incluindo a lusófona.

61
que, um pouco antes do surgimento de Gupeva, José de Alencar já havia lançado suas obras-
primas do indianismo, O Guarani (1857) e Iracema (1860), que, até onde se pode supor,
devem ter lhe servido como inspiração.
O conto de Firmina trata da história de um índio tupinambá, de nome Gupeva, pai de
criação da jovem Épica, que se apaixona por Gastão, um marinheiro francês de origem nobre
e que aportara em solo brasileiro com seu navio, “O Infante de Portugal 53 ”. Os
acontecimentos se passam na “Baía de Todos os Santos, a cuja frente eleva-se hoje a bela
cidade de S. Salvador” (REIS, 1865 apud MORAIS FILHO, 1975, s/p), ou seja, no mesmo
ambiente onde Frei José de Santa Rita Durão (1945) delimitou a história original de
Caramuru, publicada em 1781. O texto da maranhense, porém, discorre sobre os infortúnios
de uma índia, também chamada Épica, que teria viajado anos antes com Caramuru e
Paraguaçu para a França e que, ao retornar para casa, após se casar com Gupeva, acabou
revelando a ele que já não era mais “uma virgem da floresta”, uma vez que fora seduzida em
terras estrangeiras pelo pai do próprio Gastão, um tal “Conde de...”. Como agravante, ela
trazia em seu ventre o fruto da relação com o nobre europeu. A vergonha e a dor que sentira,
entretanto, “bem depressa levaram ao sepulcro a desgraçada Épica” (REIS, 1865 apud
MORAIS FILHO, 1975, s/p). Embora constrangido e tomado por um “tormento
inqualificável”, Gupeva decide cuidar da criança de sua falecida esposa, colocando na
menina o mesmo nome da mãe. Entre outras passagens, sempre apresentadas em meio a
mudanças no plano temporal, Gastão descobre que sua amada, a jovem Épica, na verdade,
era filha de seu pai, o “Conde de...”, e que, por serem meios-irmãos, o amor que nutria por
ela não poderia ser consumado, já que a relação incestuosa entre os dois seria considerada
um pecado frente aos valores cristãos.
O emprego da narrativa épica, assim, é a estratégia utilizada por Maria Firmina dos
Reis para dar vida às personagens de Gupeva, conto em que a autora busca arquitetar, ao
longo da trama, a sua versão acerca do mito fundador da nação brasileira. Para tanto, logo
no início do texto, assim como acontece em Úrsula, a construção do cenário é feita com
vivacidade e exuberância, tendo maior destaque as qualidades naturais do país:

53
No enredo, “O Infante de Portugal” é apresentado como um navio de guerra, “que havia trazido à Bahia
Francisco Pereira Coutinho, donatário daquela capitania, depois que a célebre Paraguaçu, princesa do Brasil,
cedera seus direitos [aos franceses] em favor da coroa de Portugal” (REIS, 1865 apud MORAIS FILHO, 1975,
s/p). Percebe-se, com isso, que Firmina se preocupou em inserir em Gupeva o nome de personalidades
históricas, como é o caso do fidalgo Coutinho, que participou de fato do processo de expansão dos domínios
portugueses, tendo recebido de D. João III, como recompensa pelos serviços prestados à Coroa, a Capitania da
Baía de Todos os Santos, em 1534.

62
Uma tarde de agosto nas nossas terras do norte, tem um encanto particular;
quem ainda as não gozou, não conhece na vida o que há de mais belo, mais
poético, não conhece a hora do dia que o Criador nos deu para esquecermos
todas as ambições da vida, para folhearmos o livro do nosso passado,
buscarmos nela a melhor página, a única dourada que nela existe, e aí nos
deleitarmos na recordação saudável da hora feliz da nossa existência:
aquele que ainda a não gozou é como se seus olhos vivessem cerrados à
luz; é como se seu coração empedernido nunca houvera sentido uma doce
emoção, é como se a voz da sua alma nunca uma voz amiga houvera
respondido.
O que a gozou, sim; o que a goza, esse advinha os prazeres do paraíso,
sonha as poesias do céu, escuta a voz dos anjos na morada celeste; esquece
as dores da existência, e embala-se na esperança duma eternidade risonha,
ama o seu Deus, e lhe dispensa afetos; porque nessa hora como que a face
do Senhor se nos patenteia nos desmaiados raios do sol, no manso gemer
da brisa, o saudoso murmúrio das matas, na vasta superfície das águas, na
ondulação mimosa dos palmares, no perfume odorífero das flores, no canto
suavíssimo das aves, na voz reconhecida da nossa alma! (REIS, 1865 apud
MORAIS FILHO, 1975, s/p)

Seria nessas “nossas terras do norte”, portanto, o local onde tudo começou. À sua
maneira, Firmina cria um lugar de procedência, um ambiente onde a nação brasileira teria
iniciado a sua trajetória, estabelecendo, a princípio, um perfil identitário que constituiria a
nossa gente, fruto da união entre uma índia tupinambá e um nobre europeu. O contato entre
os dois, todavia, carrega um mal de origem54, um desvio de percurso, uma vez que, no conto,
Épica é apresentada como uma mulher “impura” e “maculada” e o “Conde de...” como um
“filho da Igreja” que “abandona seus filhos”. Esse mal de origem, no que lhe concerne,
estaria contido não no caráter da personagem indígena, que é tida como uma vítima das
circunstâncias, mas no comportamento perverso e imoral do próprio pai de Gastão. Gupeva,
nesse sentido, não se trata de um canto lírico comemorativo, mas da narrativa de um embate
violento entre as raças, sugerindo a impossibilidade de um encontro harmonioso entre elas.

54
Com relação a esse ponto, vale lembrar que, em 1905, Manoel Bomfim (1993) havia publicado na cidade do
Rio de Janeiro o seu livro A América Latina: males de origem, obra em que contesta a tese bastante em voga
naquele período de que o clima tropical, a miscigenação e as chamadas “raças inferiores” seriam as causas do
“atraso” dos países latino-americanos, como vários ensaístas, até então, insistiam em afirmar. Explicando o
fenômeno por meio da noção de “parasitismo”, que fora emprestada da biologia, Bomfim, que era médico de
formação, responsabilizou pelos males causados àquelas sociedades os governos locais, as elites política e
econômica, mas, sobretudo, a exploração das colônias pelas metrópoles e a exploração dos trabalhadores –
livres e escravizados – pelos patrões ou senhores. Embora Maria Firmina dos Reis não tenha se filiado à tese
da inferioridade racial e da influência climática para construir as personagens de Gupeva, tampouco tenha tido
contato com as ideias de Manoel Bomfim, publicadas mais de quarenta anos depois da primeira edição de seu
conto indianista, percebe-se que sua narrativa está situada em meio a esse debate.

63
Buscando estabelecer uma diferença cultural entre as duas nacionalidades europeias,
porém, a portuguesa e a francesa, ambas presentes no processo de formação histórica do
Maranhão, Maria Firmina dos Reis acaba privilegiando a primeira em detrimento da
segunda, mostrando, através de um diálogo entre os dois amigos, como a aspereza, a glória,
o espírito de conquista e a belicosidade lusitanas se sobressaíam na constituição da própria
identidade brasileira:

– O meu futuro é ela... replicou Gastão, interrompendo seu jovem amigo.


– Primeiro-tenente de marinha hoje, meu querido Gastão, breve terás uma
patente superior que...
– Que me importa a mim tudo isso, Alberto, acaso isso pode indenizar-me
da dor de perdê-la? Alberto, tu não és francês, o teu clima cria almas
intrépidas, corações fortes, os rudes ardendo sempre mais em fogo
belicoso: o sangue que herdaste de teus avós gira em teu peito com ambição
de glória, de renome; são nobres as tuas ambições, eu as respeito; porém
as minhas são destruídas de toda a vaidade... As minhas ambições, o meu
querer, meu desejo resume-se todo nela. Para que me falas das grandezas
deste mundo? Alberto, eu as desprezo, se não forem para repartir com ela.
– Todos nós, lhe disse Alberto, temos a nossa hora de loucura; também o
português, meu caro, a experimenta às vezes, não obstante como dizes, o
nosso clima gera corações mais rudes; mas, Gastão, teus pais! Queres
afrontar a maldição paterna? (REIS, 1865 apud MORAIS FILHO, 1975,
s/p)

Além disso, em Gupeva, o jovem Gastão, ao contrário de Alberto, é apresentado


como um ser frágil e que se deixa levar pelas emoções, abrindo mão de seu destino promissor
em nome de uma paixão súbita e funesta por uma “indígena qualquer”, que somente poderia
levá-lo à desonra e à infâmia, como pode ser observado na seguinte passagem:

Gastão, disse procurando tomar-lhe entre as suas mãos, que loucura meu
amigo – que loucura a tua apaixonares-te por uma indígena do Brasil; por
uma mulher selvagem, por uma mulher sem nascimento, sem prestígio:
ora, Gastão, seja mais prudente; esquece-a.
– Esquecê-la! Exclamou o moço apaixonado, nunca!
– Tanto pior, lhe tornou o outro, será para ti um constante martírio.
– E por quê?
– E por quê?! Porque ela não pode ser tua mulher, visto que é muito inferior
a ti; porque tu não poderás viver junto dela a menos que intentasses cortar
a tua carreira na marinha, a menos que desprezando a sociedade te
quisesses concentrar com ela nestas matas. Gastão, em nome da nossa
amizade, esquece-a. (REIS, 1865 apud MORAIS FILHO, 1975, s/p)

64
Ainda que seja vista com inferioridade por Alberto, a jovem Épica, filha natural das
terras brasileiras, é caracterizada por Maria Firmina dos Reis com todos os atributos e
qualidades possíveis. Será na construção da principal personagem feminina que alimenta o
enredo, consequentemente, que a autora centrará todas as suas atenções, com o intuito de
dignificar, mesmo que indiretamente, aquelas que sofrem com as opressões e imposições de
toda uma sociedade: as mulheres. E ela o faz, não à toa, através da exposição dos sentimentos
do próprio Gastão:

– É impossível, Alberto. Impossível, meu amigo. Oh! se soubesses...


Alberto, eu a tenho aqui no coração. É ela a mulher dos meus sonhos de
adolescência, é a visão celeste, e arrebatadora da minha infância, é o anjo
que presidiu o meu nascimento. Alberto, quem a poderá resistir? Louco o
que a vendo possa deixar de amá-la; louco o que a conhecendo não lhe
render eterna vassalagem. Anjo na beleza, e na inocência, anjo na voz, nas
maneiras, é ela superior às filhas vaporosas da nossa velha Europa. Épica
é seu nome. No seu rosto, Alberto, se revela toda a candura da sua alma, e
toda a singeleza dos costumes inda tão virgens de inculta América. Onde
está, pois, o meu crime em adorá-la? Seus grandes olhos negros de doçura
inexprimível falam à alma com suavíssima poesia: são harpejos da lira
harmoniosa, ou notas de anjos em torno do Senhor. E esse olhar seu
exprime um quê de indizível pureza que obriga a adorá-la, como se adora
a Deus. Alberto, de joelhos suplicarias a essa mulher angélica, se a visses,
perdão de a não teres amado mesmo sem conhecê-la, desde o dia em que
começou a tua existência. (REIS, 1865 apud MORAIS FILHO, 1975, s/p)

Vale ressaltar que a jovem Épica, na trama, é fruto da vilania de um nobre francês, e não de
um português. E é precisamente o resultado da subjugação atribuída pela escritora aos
franceses que impedirá a união entre Gastão e sua amada. “Conde de...”, inclusive, ao
macular a mãe de Épica, acaba desonrando também a vida do filho, que cai em desgraça e,
assim como as demais personagens, termina morto ao final da história. Nessa perspectiva,
logo, a maranhense evidencia que a união entre franceses e indígenas era, além de ilegítima,
infrutífera.
Diferentemente de outras imagens que Maria Firmina dos Reis criou para o elemento
indígena presentes em sua coletânea de poemas Cantos à beira mar, de 1871, em que este
aparece como um indivíduo forte, bravo e guerreiro, Épica mãe é aqui descrita como uma
vítima infeliz de uma união sem honra. Gupeva, ao contrário, é apresentado como um
homem virtuoso e honesto, afinal, além de perdoar a esposa que caíra em tentação, resolve
cuidar da jovem Épica como se sua filha fosse. Provavelmente, a intenção da autora, ao

65
elaborar esse “romance brasiliense”, tenha sido a de criar um laço de legitimidade identitária
entre portugueses e indígenas, afastando, de tal modo, a imagem do estrangeiro, o elemento
francês, aquele que ocupara as “nossas terras do norte” apenas para maculá-las com sua
paixão abrasadora, sua luxúria e sua falta de caráter. Ao mesmo tempo, ao redigir Gupeva,
Firmina propõe a seus leitores uma perspectiva inédita acerca da questão nacional, baseada
não em um mito fundador que estabeleceria a origem da nação brasileira, mas, justamente,
na impossibilidade de sua fundação. Demonstrando na trama que “Conde de...” não servia
como pai, ou seja, como alicerce afetivo e moral indispensável à edificação da pátria, a
maranhense se associa ao elemento português para estabelecer uma identidade própria ao
país, que, até aquele momento, segundo a sua proposta, ainda não teria se constituído.
É interessante observar que as alusões feitas à contribuição francesa para a formação
política e cultural de São Luís são interpretadas, hoje, como um diferencial da capital
maranhense em relação às demais metrópoles brasileiras55. Na segunda metade do século
XIX, contudo, época em que Firmina viveu, essa valorização era algo incompatível com a
percepção de seus contemporâneos. Isso porque, do século XVII até o início do XX, a
historiografia local sempre considerou os franceses como invasores daquelas terras, e não
seus fundadores. Nesse sentido, em linhas gerais, seria somente o brio dos portugueses e as
qualidades naturais e morais dos indígenas que poderiam dar vida ao “verdadeiro brasileiro”.
Assim como os demais escritores românticos de sua geração, portanto, a escritora também
construiu sua narrativa épica buscando oferecer aos leitores a sua interpretação sobre o
processo de formação da nossa identidade. Mas, em seu conto, os franceses não são bem-
vindos.

55
De acordo com a pesquisadora Maria de Lourdes Lacroix (2008), em seu estudo intitulado A fundação
francesa de São Luís e seus mitos, o discurso de uma fundação francesa da capital maranhense esteve mais
pautado numa construção das elites locais durante o período de decadência econômica do Maranhão, em
meados dos oitocentos, e de como elas foram buscar em um passado “glorioso e vindouro” a identidade da
cidade, que se singularizaria a partir de uma instituição diferenciada, de base francesa e não portuguesa. Ao
analisar os documentos históricos da época, a autora defende a tese de que essa “singularidade” seria nada mais
do que a “invenção de uma tradição”, nos termos de Eric Hobsbawm (1984, p. 9-23), assim como acontece
com o mito ainda bastante presente na mentalidade ludovicense acerca da “Atenas brasileira”.

66
2.3. A consolidação de uma literatura abolicionista

A publicação de A Escrava, obra que representa o auge da maturidade intelectual de


Maria Firmina dos Reis, ocorreu em 1887, poucos meses antes da promulgação da Lei Áurea.
Diferentemente da tessitura social em que a autora estava inserida quando escreveu seu
romance Úrsula, a essa altura dos acontecimentos, os ventos já sopravam com maior
intensidade a favor da libertação dos africanos e dos afrodescendentes escravizados, o que
influenciaria significativamente os rumos de sua literatura56. Veiculado no terceiro número
da Revista Maranhense, em São Luís, o conto denuncia as injustiças oriundas do sistema
escravagista brasileiro e chama a atenção para as condições subumanas às quais os cativos
haviam sido relegados, do mesmo modo em que aponta para o lugar obscuro que cercava as
mulheres naquele contexto político-cultural de final de século. Pautadas em um ponto de
vista outro, o mesmo que aparece nos demais trabalhos da escritora, as experiências
narrativas de A escrava se alternam entre o sentimento de compaixão para com os oprimidos
e a denúncia direta das instâncias e das autoridades legitimadoras da servidão. Tendo como
epicentro os dramas vividos pela escrava fugida Joana, descritos ao longo da trama por “uma
senhora57”, o invento final de Firmina, logo, se põe a debater as questões políticas mais
latentes daquele momento, mas, sobretudo, a abolição da escravatura.
A história tem início “em um salão onde se achavam reunidas muitas pessoas
distintas, e bem colocadas na sociedade” (REIS, 2009, p. 241), que, depois de discorrerem
sobre assuntos diversos, passaram a tratar do “elemento servil”. A conversação era geral; as
opiniões, porém, divergiam. E começou a discussão:

56
Vale notar que a publicação de A escrava se deu já no ocaso do Império, em meio às turbulências que
dividiam, entre outros temas, aqueles que eram a favor e os que eram contrários à manutenção do trabalho
forçado. Úrsula, primeira obra da escritora, havia sido publicada logo após a promulgação da Lei Eusébio de
Queirós, de1850, e, como não poderia deixar de ser, carregava em sua narrativa as preocupações de quem havia
observado, de perto, os resultados não muito positivos dessa medida restritiva. A escrava, contudo, sofreu os
impactos diretos de dispositivos jurídicos criados posteriormente, como a Lei do Ventre Livre, de 1871, e a
Lei dos Sexagenários, de 1885. É em meio a essa conjuntura política de transição, portanto, que o último
trabalho de Maria Firmina dos Reis vem à tona.
57
É interessante observar que o anonimato atribuído à narradora faz referência direta ao silenciamento das
demais mulheres que se aventuraram no mundo das letras e que se utilizaram de pseudônimos para se proteger
da dominação masculina. Assim como em Úrsula Firmina subscreve o texto como “uma maranhense”, em A
escrava, a narradora será apresentada apenas como “uma senhora”, anônima, incógnita, o que não é feito por
acaso.

67
– Admira-me, disse uma senhora, de sentimentos sinceramente
abolicionistas; faz-me até pasmar como se possa sentir, e expressar
sentimentos escravocratas, no presente século, no século dezenove! A
moral religiosa, e a moral cívica aí se erguem, e falam bem alto esmagando
a hidra que envenena a família no mais sagrado santuário seu, e
desmoraliza, e avilta a nação inteira!
Levantai os olhos ao Gólgota58, ou percorrei-os em torno da sociedade e
dizei-me:
Para que se deu em sacrifício, o Homem Deus, que ali exalou seu
derradeiro alento? Ah! Então não é verdade que seu sangue era o resgate
do homem! É então uma mentira abominável ter esse sangue comprado a
liberdade!? E depois, olhai a sociedade... Não vedes o abutre que a corrói
constantemente!... Não sentis a desmoralização que a enerva, o cancro que
a destrói? (REIS, 2009. p.241-2)

O primeiro movimento do texto, assim, é a aparição da tal senhora, de “sentimentos


sinceramente abolicionistas” e que professa um discurso desfavorável às dinâmicas do
cativeiro, direcionando seu apelo moral cívico e religioso aos presentes no salão. Num
período em que a Igreja católica apoiava a utilização de mão da obra escrava, Maria Firmina
dos Reis acaba incorporando à narrativa determinadas representações da religiosidade cristã
como recurso argumentativo na busca da compreensão e da adesão de seus leitores às suas
ideias. Os valores de igualdade e de fraternidade, por sua vez, bastante consagrados entre os
adeptos do catolicismo, são utilizados pela autora para mostrar que a opressão vivida pelos
escravos no Brasil representava um conflito gritante entre a teoria e a prática religiosas. Com
isso, logo na sequência, mirando com precisão no “cancro que era a servidão”, a tal senhora
continua sua premissa, no sentido de despertar a atenção daquelas “pessoas distintas, e bem
colocadas” para os problemas causados por esse “abutre que corrói constantemente a
sociedade”:

Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela é, e será sempre um


grande mal. Dela a decadência do comércio; porque o comércio, e a lavoura
caminham de mãos dadas, e o escravo não pode fazer florescer a lavoura;
porque o seu trabalho é forçado. Ele não tem futuro; o seu trabalho não é
indenizado; ainda dela nos vem o opróbrio, a vergonha; porque de fronte
altiva e desassombrada não podemos encarar as nações livres; por isso que
o estigma da escravidão, pelo cruzamento das raças, estampa-se na fronte
de todos nós. Embalde procurará um dentre nós, convencer ao estrangeiro
que em suas veias não gira uma só gota de sangue escravo...

58
Gólgota, ou Calvário, de acordo com a liturgia cristã, é o nome dado à colina na qual Jesus de Nazaré teria
sido crucificado.

68
E depois, o caráter que nos imprime, e nos envergonha!
O escravo é olhado por todos como vítima – e o é.
O senhor, que papel representa na opinião social?
O senhor é verdugo59 – e esta qualificação é hedionda. (REIS, 2009, p. 242)

A miscigenação e o hibridismo étnico-racial do brasileiro, acompanhados do papel


de dominação praticado pelos donos de escravos, portanto, são os destaques feitos pela
senhora para embasar seu discurso. Para provar que o que acabara de dizer sobre as vítimas
e os algozes fazia sentido, contudo, entre “uma infinitude de casos concretos”, ela escolhe
“um fato que ultimamente se deu”. Nesse momento, Firmina encaixa a segunda narrativa de
seu conto, que principia em “uma tarde de agosto, bela como um ideal de mulher, poética
como um suspiro de virgem, melancólica, e suave como sons longínquos de um alaúde
misterioso” (REIS, 2009, p. 243). A calmaria e o tom contemplativo logo são entrecortados
por gritos lastimosos e soluços angustiados de uma mulher trêmula e espavorida que corria,
sem rumo, para esconder-se de um homem que a perseguia, “de cor parda, de estatura
elevada, longas espáduas, cabelos negros, e anelados” e que “brandia, brutalmente, na mão
direita um azorrague repugnante; e da esquerda deixava pender uma delgada corda de linho”
(REIS, 2009, p. 244). Vale notar que as características físicas atribuídas a essa personagem
masculina não são mera casualidade. Nessa passagem, a autora faz uso da ironia, ainda que
de modo sutil, para representar a posição de algoz que determinados homens negros de pele
mais clara cumpriam naquela sociedade maculada pela servidão.
Adiante, transtornado pela fúria que sentia por não ter conseguido capturar a escrava
fugitiva, o feitor acaba se deparando com a tal senhora e a indaga: “– não viu passar por aqui
uma negra, que me fugiu das mãos ainda há pouco? Uma negra que se finge de douda...”
(REIS, 2009, p. 244). Mesmo ciente do paradeiro da “desditosa”, que se escondera em “uma
grande mouta de murta”, a narradora, aparentando profunda indiferença, o leva à direção
contrária. Franzindo as sobrancelhas e mordendo os beiços, no entanto, eis que ele ruge: “–
Maldita negra! Esbaforido, consumido, a meter-me por estes caminhos, pelos matos em
procura da preguiçosa... Ora! Hei de encontrar-te; mas, deixa estar, eu te juro, será esta
derradeira vez que me incomodas. No tronco... no tronco: e de lá foge!” (REIS, 2009, p.
245). O contorno que Maria Firmina dos Reis dá à “loucura” é um tanto curioso, já que a
fuga de Joana representa justamente a tentativa da personagem de romper com o cativeiro.
A metáfora da “negra que se finge de douda...”, inclusive, pode ser associada, para além da

59
Tirano, déspota.

69
opressão vivida pelos escravos, ao lugar que as mulheres escritoras ocupavam naquela
sociedade. Através de uma ação que desestabiliza a ordem cultural patriarcal e escravagista,
consequentemente, a autora coloca seus personagens a serviço da liberdade, com o intuito
de formar e transformar consciências.
No decorrer da trama, com o cair da noite e considerando a dificuldade que seria
encontrá-la, o feitor é convencido pela tal senhora a adiar sua procura e decide partir. Nesse
instante, surge na cena Gabriel, filho da escrava Joana, que, ao sair à procura da mãe, também
acaba se tornando um foragido. É interessante perceber o modo como Maria Firmina dos
Reis apresenta essa personagem, uma figura de expressão “franca e agradável”, mas que,
além do cansaço, trazia em seu corpo as marcas da escravidão:

Era quase uma ofensa ao pudor fixar a vista sobre aquele infeliz, cujo corpo
seminu mostrava-se coberto de recentes cicatrizes; entretanto sua
fisionomia era franca, e agradável. O rosto negro, e descarnado; suposto
seu juvenil aspecto aljofarado 60 de copioso suor, seus membros
alquebrados de cansaço, seus olhos rasgados, ora lânguidos pela comoção
da angústia que se lhe pintava na fronte, ora deferindo luz errante, e
trêmula, agitada, e incerta traduzindo a excitação, e o terror, tinham um
quê de altamente interessante. (REIS, 2009, p. 247)

Essa descrição do jovem escravizado, logo, é uma novidade para a literatura brasileira
produzida até aquele momento, uma vez que está pautada por um olhar que humaniza o
oprimido e animaliza o opressor. Gabriel, o filho da escrava fugitiva, carrega consigo os
traços do amor filial: mesmo correndo o risco de sofrer represálias e demais castigos físicos,
é ele quem se arrisca para salvar a mãe das mãos do feitor. A imagem que Firmina constrói,
portanto, distancia-se e muito da figura grosseira e reificada atribuídas aos cativos até então.
A história prossegue e a tal senhora, que relata ter se constituído como membro da
sociedade abolicionista de sua província61, decide proteger os escravos fugidos, abrigando-

60
Salpicado por pequenas gotas de orvalho, orvalhado; suado.
61
De acordo com Norma Telles (1997, p. 415): “Vinte e oito anos depois de Úrsula, Maria Firmina dos Reis,
que sempre havia sido abolicionista, pôde explicar, um ano antes da Abolição, as redes abolicionistas para a
libertação dos escravos que então haviam se generalizado pelo território do Império. A liga de mulheres para
libertar escravos surgiu primeiramente em São Paulo, mas outras logo apareceram na cidade do Rio de Janeiro
e nas províncias, por volta de 1870. Envolviam-se com esses clubes mulheres da classe alta, mulheres negras
e das camadas inferiores da sociedade. O surgimento de sociedades e clubes femininos abolicionistas
demonstra um tipo de iniciativa pública organizada que substituía, para algumas mulheres das classes altas, as
anteriores atividades filantrópicas. Eles tinham o apoio de homens engajados na mesma vertente política. Na

70
os em sua própria casa. Mesmo sabendo-se à margem da lei e correndo o risco de sofrer
represálias, ela impõe para si o que denomina de “santo dever”:

Eu bem conhecia a gravidade do meu ato: recebia em meu lar dois escravos
foragidos, e escravos talvez de algum poderoso senhor; era expor-me à
vindita62 da lei; mas em primeiro lugar o meu dever, e o meu dever era
socorrer aqueles infelizes.
Sim, a vindita lei; lei que infelizmente ainda perdura, lei que garante ao
forte o direito abusivo, e execrando de oprimir o fraco.
Mas, deixar de prestar auxílio àqueles desgraçados, tão abandonados, tão
perseguidos, que nem para a agonia derradeira, nem para transpor esse
tremendo portal da Eternidade, tinham sossego, ou tranquilidade! Não.
Tomei como coragem a responsabilidade do meu ato: a humanidade me
impunha esse santo dever. (REIS, 2009, p. 250-1)

Agradecida pelo gesto de compaixão oferecido a ela e a seu filho pela tal senhora,
Joana sorriu-se e indagou com espanto: “– Inda há nesse mundo quem se compadeça de um
escravo?” (REIS, 2009, p. 252). E é justamente nessa altura do texto, que Maria Firmina dos
Reis confere às personagens negras o direito à voz, considerando que elas passam a falar de
si mesmas e de seus infortúnios, dando início à terceira narrativa que compõe o drama. A
escrava conta a história de seus pais, um “índio livre de cor fusca”, que passara os seus dias
ajudando a pobre esposa, “uma africana que vivera na condição de cativa” e que era forçada
a se dedicar às “desmedidas tarefas” que seu senhor constantemente lhe infligia. Dessa união,
nasceria Joana. Vale notar que o perfil do brasileiro idealizado por Firmina em A escrava já
não é mais fruto da união entre uma índia tupinambá e um bravo português, como acontece
em Gupeva, mas, sim, da união de um indígena nascido livre e uma africana que fora
capturada e escravizada por um homem branco.
Após o nascimento da filha, o índio decide juntar recursos para comprar a liberdade
da esposa. Sem saber ler, no entanto, ele acaba sendo ludibriado pelo senhor e recebe, ao
invés de uma carta de alforria, um papel sem qualquer valor, contendo “umas quatro palavras
sem nexo, sem assinatura, sem data”. Não percebendo a cilada em que se metera,
“agradecido beijou as mãos daquela fera” (REIS, 2009, p. 254). Dois anos depois,
repentinamente, ele acaba morrendo e, de imediato, o tal senhor diz à mãe: “– Joana que vá

imprensa, na década de 1870, vão se tornando comuns libelos e comentários de mulheres. Algumas
discursavam em praça pública e outras artistas davam espetáculos visando à emancipação dos escravos”.
62
Castigo, represália, vingança.

71
para o serviço, tem já sete anos, e eu não admito escrava vadia” (REIS, 2009, p. 255).
“Surpresa, e confundida”, ela cumpre a ordem sem pestanejar. Com o tempo, conta a escrava,
percebendo a trapaça que envolvera o marido, sua “pobre mãe deu um grito, e caiu
estrebuchando. Sobreveio-lhe febre ardente, delírios, e três dias depois estava com Deus.
Fiquei só no mundo, entregue ao rigor do cativeiro” (REIS, 2009, p. 255).
De volta ao presente, em meio a delírios, a escrava encerra seu depoimento e passa a
relembrar da dor que sentira ao ter seus outros dois filhos, os gêmeos de oito anos Carlos e
Urbano, sequestrados por um “traficante de carne humana” para serem vendidos como
cativos no Rio de Janeiro. Nesse momento, Gabriel surge em cena pedindo à mãe que
descansasse. E é aí que Maria Firmina dos Reis insere na história a quarta e última narrativa
de seu conto, denunciando, através das palavras de Joana, o triste legado da escravidão:

– Deixa concluir, meu filho, antes que a morte me cerre os lábios para
sempre... deixa-me morrer amaldiçoando os meus carrascos.
– Por Deus, por Deus, gritei eu, tornando a mim, por Deus, levem-me com
meus filhos!
– Cala-te! gritou meu feroz senhor. – Cala-te ou te farei calar.
– Por Deus, tornei eu de joelhos, e tomando as mãos do cruel traficante: –
meus filhos!... meus filhos!
Mas ele dando um mais forte empuxão, e ameaçando-os com o chicote,
que empunhava, entregou-os a alguém que os devia levar...
Aqui a mísera calou-se; eu respeitei o seu silêncio que era doloroso, quando
lhe ouvi um arranco profundo, e magoado:
Curvei-me sobre ela. Gabriel ajoelhou-se, e juntos exclamamos:
– Morta! (REIS, 2009, p. 257-8).

O embate de Joana com as lembranças que trazia à tona acabou sendo forte demais
para as suas débeis forças: “(...) tinha cessado de sofrer”, disse a tal senhora, que ouvira
atentamente todo o testemunho da escrava. Nesse instante, chega à porta de sua casa um
rapaz. “Era o homem do azorrague que eles intitulavam feitor; era aquele homem de
fisionomia sinistra, e terrível, que me interpelara algumas horas antes, acerca da infeliz
foragida; e este homem aparecia agora mais hediondo ainda” (REIS, 2009, p. 258).
Acompanhado por “dois negros, que, como ele, pararam à porta”, a senhora convida o feitor
para entrar. Gabriel, trêmulo, busca o canto mais escuro da casa para se esconder, quando,
perplexo, ouve de sua protetora:

72
– Anda, Gabriel, disse-lhe com voz segura, continua a tua obra, e voltando-
me para o feitor, acrescentei:
Eu, e este desolado filho, ocupamo-nos em cerrar os olhos à infeliz, a quem
o cativeiro, e o martírio despenharam tão depressa na sepultura. (REIS,
2009, p. 258)

Comovidos com a aquela situação, ao verem o corpo de Joana estendido no chão, os


dois escravos “deixaram pender a fronte no peito”. O feitor, por sua vez, ao primeiro ímpeto,
“teve um impulso de homem”, mas, recompondo-se em sua “rude, e feroz fisionomia”,
redarguiu:

– É hoje a segunda vez que a encontro, minha senhora, entretanto, não sei
ainda a quem falo. Peço-lhe que me diga o seu nome, para que eu conheça
o patrão, o senhor Tavares. É escandalosa, minha senhora, a proteção que
dá a estes escravos fugidos. (REIS, 2009, p. 258-9)

Essas palavras inconvenientes, relata a senhora, “mereceram o meu desdém”. E ela


decidiu não responder aos questionamentos do feitor. O silêncio que se instalara no
ambiente, por conseguinte, incomodou tanto aquele homem, que ele ordenou aos dois
escravos que o acompanhavam que prendessem Gabriel.

– Detém-te! Lhe gritei eu. Estás sob a minha imediata proteção; e voltando-
me para o homem do azorrague, disse-lhe:
Insolente! Nem mais uma palavra. Vai-te, diz a teu amo, – miserável
instrumento de um escravocrata; diz a ele que uma senhora recebeu em sua
casa, uma mísera escrava, louca porque lhe arrancaram dos braços dois
filhos; menores, e os venderam para o Sul; uma escrava moribunda; mas
ainda assim perseguida por seus implacáveis algozes.
Vai-te, e entrega-lhe este cartão; aí achará o meu nome.
Vai, e que nunca mais nos tornemos a ver. (REIS, 2009, p. 259-60)

No dia seguinte, já ao final da tarde, a tal senhora recebe em sua casa a visita de um
homem, de nome Tavares, reivindicando a propriedade e a devolução dos escravos fugidos.
Após cumprimentá-la, “com maneira da alta sociedade” e pedindo desculpas pelo incômodo,
ao deparar-se com o corpo de Joana retesado e sem aparentar qualquer remorso, eis que ele
dispara:

73
Sei que esta negra está morta, exclamou ele, e o filho acha-se aqui: tudo
isso teve a bondade de comunicar-me ontem. Esta negra, continuou,
olhando fixamente para o cadáver – esta negra era alguma coisa de
monomaníaca, de tudo tinha medo, andava sempre foragida, nisto
consumiu a sua existência. Morreu, não lamento esta perda; já para nada
prestava. O Antônio, meu feitor, que é um excelente e zeloso servidor, é
que se cansava em procurá-la. Porém, minha senhora, este negro! –
designava o pobre Gabriel, com este negro a coisa muda de figura: minha
querida senhora, este negro está fugido: espero, mo entregará, pois sou o
seu legítimo senhor, e quero corrigi-lo. (REIS, 2009, p. 260-1).

Nessa passagem do texto, consequentemente, Maria Firmina dos Reis evidencia a


insensibilidade e o caráter violento do senhor de escravos que, ao se referir ao elemento
servil com frieza e vilania, o reduz imediatamente à materialidade de seu cruel interesse. E
é nesse momento final do conto que a maranhense insere em sua narrativa uma virada
surpreendente. A senhora que abrigava Gabriel, de posse de “um volume de papéis
subscritados e competentemente selados” (REIS, 2009, p. 261), apresenta-os a Tavares.
Acontece que a documentação conferia justamente o direito à liberdade ao jovem cativo, que
continuava apavorado com a situação. Contrariado, mas sem alternativas, o senhor exclama:
“A lei retrogradou. Hoje protege-se escandalosamente o escravo, contra o seu senhor; hoje
qualquer indivíduo diz a um juiz de órfãos” (REIS, 2009, p. 261). Alfim, a tal senhora lhe
apresenta “um cadáver e um homem livre”, voltando-se para o rapaz com os seguintes
dizeres: “Gabriel ergue a fronte, Gabriel és livre!” (REIS, 2009, p. 262).
A dignidade dos vencidos, a liberdade entendida enquanto um valor universal da
humanidade e a exaltação de uma postura antiescravista, portanto, são os elementos que se
entrelaçam no desfecho da obra. Nesse sentido, não somente o filho de Joana encontra-se
liberto, mas também o leitor, que, em tese, ao ser sensibilizado pelas ideias da maranhense,
passaria a compreender e a propagar os ideais abolicionistas. Vale dizer, ainda, que a noção
de alteridade presente em A escrava consolida o encontro da angústia vivida pelos oprimidos
e a eliminação dessas sensações, seja o negro escravizado, seja a mulher silenciada,
movimento esse que rompe com as velhas formulações, abrindo caminhos para o
estabelecimento de uma nova realidade política, econômica e cultural que modificaria
inevitavelmente aquele cenário escravagista e patriarcal de fins do século XIX.

74
3. A MENTE NINGUÉM PODE ESCRAVIZAR

Em 15 de junho de 1873, aos quarenta e sete anos, Maria Firmina dos Reis (apud
MORAIS FILHO, 1975, s/p) registrou em seu Álbum63 de memórias a seguinte passagem:

O que é a vida? Será acaso a vida o respirar, o sorrir no trocar de


cumprimentos banais e quantas vezes frívolos... o banquetear com
aparatosa regularidade, com suntuoso luxo dos amigos, algumas vozes tão
indiferentes, e alheios aos sentimentos de afeto, e de amizade que lhe
voltamos, e até estranhos à gratidão; por que, depois de termos colhido os
nossos sinceros afagos vão cuspir sobre eles, seu sorriso de escárnio?...
Será isto a vida? Não. Ou será então o deslumbrante, e sedutor aspecto de
um salão dourado, cujo ambiente perfumoso pode encher o coração de
mágicos transportes...? (...)
A vida para mim está nas lágrimas. Amo as que verto na amargura
pungente de minhas ternas desventuras; com elas alimenta-se minha alma,
elas acalmam o rigor do meu destino.
Lágrimas! lágrimas... Elas despontam cristalinas, e brancas no berço do
recém-nascido, elas nos seguem amargas e pungentes no caminhar da vida
ao túmulo; e ainda na derradeira agonia, nem uma lágrima silenciosa, como
um adeus à vida serena a ardência das faces requeimadas pela febre da
gangrena.
Eu amo as lágrimas...
Elas têm sido as companheiras da minha árdua e penosa existência; é nelas
que tenho achado meu conforto, nelas é que me hei estribado para chegar
ao breve terno da minha longa peregrinação... (...)
Triste do homem que não as tem...

Publicado pela primeira e única vez em 1975, por José Nascimento Morais Filho, e
escrito, ao que tudo indica, a partir de 9 de janeiro de 185364 – levando em consideração ser
essa a data do texto que principia o volume –, essa espécie de diário íntimo é um raro
documento que revela uma faceta pouco conhecida da autora: sua trajetória em fragmentos

63
Durante o século XIX, era bastante comum esse tipo de “caderno de recordações” acompanhar os artistas
em suas deambulações, refletindo suas vivências e adquirindo um caráter autobiográfico. Esses álbuns,
inclusive, eram tidos como objetos de socialização, já que eram deixados sobre uma mesa na sala de estar ou
enviados para a casa de um conhecido, para que este pudesse inscrever a sua mensagem de afeto.
64
Infelizmente, a publicação do Álbum de Maria Firmina dos Reis contém apenas uma pequena parte de seus
manuscritos. Ao colher o depoimento de Leude Guimarães, filho de criação da escritora que ficou responsável
pela guarda de seus objetos pessoais após seu falecimento, Nascimento Morais Filho (1975, s/p) registrou o
seguinte: “Quando vim para São Luís, depois de sua morte, trouxe muitos manuscritos seus. Eram cadernos
com romances e poesias e um álbum onde havia muita coisa de sua vida e da nossa família. Mas os ladrões,
um dia, entraram no quarto do hotel onde estava hospedado, arrombaram o baú, e levaram tudo o que nele
havia. Só me deixaram, de recordação, os restos desse álbum, que encontrei pelo chão!”.

75
redigida em primeira pessoa. Constituído por registros breves e carregados de sentimentos
dos mais variados, entre outras curiosidades, o conteúdo ali exposto traz a percepção
existencial de uma intelectual cuja vida é descrita de forma dura e solitária (MUZART, 2013,
p. 251). Uma vida que se verte em lágrimas. Em meio às demais lembranças de Firmina, no
entanto, há outra ainda mais interessante e que merece especial atenção. Datada de junho de
1863, quando a escritora contava com trinta e sete anos, e intitulada Resumo da minha vida,
essa passagem, além de revelar informações acerca de sua personalidade, de sua
configuração familiar e de sua juventude em Guimarães, apresenta determinados aspectos
que nos possibilitam melhor compreender as maneiras de ser e estar da maranhense (apud
MORAIS FILHO, 1975, s/p):

De uma compleição débil, e acanhada, eu não podia deixar de ser uma


criatura frágil, tímida, e por consequência melancólica: uma espécie de
educação freirática, veio dar remate a estas disposições naturais. Encerrada
na casa materna, eu só conhecia o céu, as estrelas, e as flores, que minha
avó cultivava com esmero; talvez por isso eu tanto amei as flores; foram
elas o meu primeiro amor. Minha irmã... minha terna irmã, e uma prima
querida, foram as minhas únicas amigas de infância; e nos seus seios eu
derramava meus melancólicos, e infantis queixumes; porventura sem
causa, mas já bem profundos. (...)
Vida!... Vida, bem penosa me tens sido tu! Há um desejo, há muito
alimentado em minha alma, após o qual minha alma tem voado infinitos
espaços, e este desejo insondável, e jamais insatisfeito, afagado, e jamais
saciado, indefinível, quase que misterioso, é pois sem dúvida o objeto
único de meus pesares infantis e de minhas mágoas. Eu não aborreço os
homens, nem o mundo, mas há horas, e dias inteiros, que aborreço a mim
própria.

Quais teriam sido, portanto, os motivos que levaram Maria Firmina dos Reis a
expressar no papel sensações tão dolorosas? Que desventuras teria ela vivido a ponto de
considerar sua existência tão sofrida? E que “desejo insondável” é esse ao qual ela se refere?
O fato de ter sido ela uma mulher afrodescendente e escritora, tendo vivido em pleno
Maranhão oitocentista, em parte, responde a essas perguntas. Contudo, a impressão que fica,
para além dos aspectos individuais que compõem sua trajetória, é que o ambiente em que a
ela esteve inserida deve ter sido bastante hostil. Tentar reconstruir, através dos registros
históricos disponíveis, a conjuntura social que colaborou para a consolidação de sua visão
de mundo, bem como avaliar o conjunto de novas ideias que estavam circulação no país
naquele período, logo, é o objetivo desse terceiro capítulo.

76
3.1. O Maranhão na segunda metade do século XIX

Nascida no mar, constituída como porto fluvial e marítimo, à semelhança de outras


cidades fundadas durante os anos de dominação portuguesa na América 65 , São Luís
desempenhou um importante papel na produção econômica, política e cultural da colônia e
das primeiras décadas do século XIX. Após 1755, com a criação da Companhia Geral de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão 66 pelo Marquês de Pombal, a capital maranhense
experimentou um acentuado período de enriquecimento e de sofisticada urbanização,
tornando-se, ainda na primeira metade dos oitocentos, a quarta cidade mais importante de
todo o Império, perdendo posição apenas para o Rio de Janeiro, Salvador e Recife – como
atestam os depoimentos de viajantes estrangeiros que percorreram diversos pontos do país
na época (SPIX e MARTIUS, 1981 [1824-32]). Grande centro polarizador do comércio
local, a Praia Grande foi, entre os séculos XVII e XIX, a sede das primeiras atividades
econômicas de médio e grande porte da província, fazendo com que se instalassem por ali
grandes firmas comerciais que abasteciam São Luís e as demais cidades do interior
(MEIRELES, 1960). Era, também, um dos mais movimentados pontos de recepção de
escravos trazidos para trabalhar nas lavouras ou mesmo em benefício da aristocracia rural,
que passou a habitar os suntuosos sobrados daquele espaço de opulência e de riqueza.

65
Com a chegada dos colonizadores portugueses na América, diversas vilas – que, anos mais tarde, atingiriam
a condição de cidade – foram fundadas por aqui: Igaraçu e Olinda, em Pernambuco; Vila do Pereira, Ilhéus,
Santa Cruz e Porto Seguro, na Bahia; São Vicente, Cananéia e Santos, em São Paulo. A primeira cidade de
fato do país, Salvador, foi fundada em 1549, e seria a sua capital até 1763, quando essa função foi transferida
para o Rio de Janeiro. Vale notar que a construção das cidades portuguesas levava sempre em consideração a
sua localização estratégica, que dependia, essencialmente, das incumbências que elas deveriam exercer: porto
comercial, administrativa, militar, religiosa, entre outras (AZEVEDO, 1956; REIS FILHO, 1968).
66
A Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão foi uma empresa de carácter monopolista criada
pelo Marquês de Pombal na segunda metade do século XVIII, em Portugal. Diante da proibição da escravidão
indígena no estado do Grão-Pará e Maranhão, a Companhia teve a sua origem numa petição encaminhada, em
1752, pela Câmara Municipal de São Luís ao então governador e capitão-general Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, para que fosse criada uma sociedade autorizada a explorar o comércio de importação de
escravizados africanos. O governador acolheu de bom grado a ideia e, após ter conseguido o apoio dos cidadãos
mais influentes de Belém do Pará, encaminhou-a com sua aprovação ao seu meio-irmão, o Marquês de Pombal,
que ficou incumbido de seu planejamento e execução (CARREIRA, 1988). O crescente fluxo imigratório de
cativos para o Brasil, por sua vez, fez com que milhares de almas desembarcassem no Maranhão para trabalhar
nas lavouras de algodão e arroz e, posteriormente, nas de cana-de-açúcar. Dessa maneira, ainda no início do
século XIX, metade da população maranhense era formada por cativos e a outra metade era constituída de
homens e mulheres pobres e livres, mestiços, indígenas e migrantes cearenses vindos para a província por causa
das secas que assolavam sua região (SILVA, 2013, p. 25).

77
Nesse período, também, a província desfrutou de grande afluência populacional,
graças ao plantio bem-sucedido do arroz, da cana-de-açúcar, mas, especialmente do algodão,
principal produto de exportação para a Inglaterra, que vivia o auge da indústria têxtil, em
substituição à escassez da produção norte-americana durante a Guerra de Independência,
ocorrida entre os anos de 1776 e 1783, e a Guerra de Secessão, travada entre 1861 e 1865
(MEIRELES, 1960; LOBO, 2011, p. 111). Esse progresso, no entanto, com o término dos
conflitos nos Estados Unidos, acabou fazendo com que com o cultivo do algodão nas
colônias britânicas prosperasse novamente, levando a economia maranhense a um processo
de acentuada estagnação, o que provocou várias desordens sociais e revoltas populares,
como a Balaiada (1838-1841), uma das mais violentas do período imperial. Os que mais
sofreram com essa situação, consequentemente, foram os trabalhadores livres, os
trabalhadores do campo e os próprios cativos. A miséria e a fome, inclusive, constituíram os
principais fatores de descontentamento, motivando a população mais pobre a se mobilizar
contrariamente às injustiças sociais (SANTOS, 1983). Impossível falar do Maranhão do
século XIX, portanto, sem levar em consideração esse conflito, o mais conhecido e de maior
tempo de duração, que reestruturou a configuração política e econômica da região.
A ideia de uma decadência econômica, por sua vez, tornou-se assunto nevrálgico
para os que viveram o período e para geração posterior, já no início do século XX. A título
de ilustração, é interessante resgatar, aqui, a percepção de Manuel Fran Paxeco (1923, p.
222), que foi cônsul de Portugal na província no início da década de 1920, em seu livro A
Geografia do Maranhão, por conta da relação que ele estabelece entre o declínio da
produção econômica e os impactos que esta gerou no cenário cultural maranhense:

As tradições agrícolas do Maranhão chegaram a emparelhar-se às tradições


literárias. Eram dois predomínios que nenhuma zona brasileira lhe
requestava, porque se criara um tom uníssono em torno dessas verdades
axiomáticas. Mas os anos correram e os iconoclastas deitaram abaixo
aqueles quase exclusivos. Surgiram competições – e, tanto nos arrozais
como nas letras, escancarou-se o declínio. Passou a viver-se da fama. Os
tribunos e os jornalistas, porém, persistiram em se boquiabrir, diante das
glórias pretéritas. Não se renovaram os instrumentos aratórios67, nem se
expandiram as inteligências. A terra continuou a trabalhar-se pelos

67
Agrícolas.

78
ronceiros68 processos de há séculos e as casas de ensino conservaram-se as
mesmas, usando os mesmíssimos métodos69. Parou-se. Retrocedeu-se.

Por outro lado, adotando uma perspectiva mais otimista, a pesquisadora Regina
Helena Martins Faria (1998, p. 79) entende que “a crise do sistema agroexportador não
representou o engessamento da vida material no Maranhão”. Isso porque, mesmo com a
desaceleração da economia, grande parte das riquezas oriundas das extensões pastoris dos
sertões continuava escoando pelo porto, fazendo com que uma elite de comerciantes se
estabelecesse na província em função das rendosas atividades de comércio de exportação, o
que gerou a necessidade de se construir, na capital, um ambiente urbano capaz de reproduzir
os padrões de conforto aos quais seus proprietários estavam acostumados nas cidades
europeias. Além disso, as famílias mais abastadas acabavam enviando seus filhos para
estudar nas melhores universidades de Portugal ou da França, sendo que, ao retornarem, logo
se destacavam no cenário nacional como políticos, advogados, jornalistas, escritores e
poetas. Em meados do século XIX, vale lembrar, devido à efervescência cultural que se
instalou por lá, São Luís recebeu a famosa alcunha de “Atenas brasileira70” (MEIRELES,
1960).
A despeito desse cenário, fato é que, com o passar do tempo, novas oportunidades de
investimentos surgiam aos capitais não mais interessados no negócio da agroexportação ou
mesmo da importação de escravos. Bancos, companhias de água, de iluminação e de
transporte fluvial foram criadas no Maranhão entre o final da década de 1840 e os anos de
1860, atraindo muitos recursos públicos, diante da incapacidade financeira dos investidores
internos, mas também privados. Infelizmente, a maioria dos empreendimentos dessa época
fracassou. Outros, porém, na tentativa de se modernizar a província, reconfiguraram a

68
Lentos, vagarosos.
69
No que diz respeito ao contexto educacional maranhense do período, mais especificamente, Norma Telles
(1997, p. 410) nos diz que: “São Luís, em meados do século XIX, era culturalmente dominada por latinistas e
helenistas de valor, mas a situação do ensino era precária, como aliás em todo o Império. Em 1857, entre os
alunos de aulas públicas e particulares na província, havia 1.849 meninos e 347 meninas cursando o primário
e uns 200 alunos no secundário. As oportunidades de estudo para as moças eram mínimas”. Para se ter uma
noção do que esses números representavam, de acordo com o primeiro Censo Demográfico do Brasil, de 1872,
a população do Maranhão na época somava 359.040 habitantes.
70
De acordo com Maria de Lourdes Lacroix (2008, p. 77), “entre 1830 e 1870, uma plêiade de intelectuais
[maranhenses] se destacou no cenário nacional, chegando a dar à província o cognome de ‘Atenas brasileira’,
título conservado por bastante tempo no Brasil republicano”. Ideia que, segundo Frederico José Correa (1878),
advogado que chegou a presidir o Maranhão na época, contrasta com seu quase um quarto de população
analfabeta.

79
dinâmica local. No início do século XIX, por exemplo, São Luís possuía um sistema de
iluminação pública precário, que se utilizava de lampiões à base de óleo combustível. Em
1863, contudo, em parceria com um grupo americano, foi criada a Companhia de Iluminação
a Gás do Maranhão, que instalou novo sistema e passou a utilizar o gás hidrogênio por
tubulação subterrânea em cobre. Em 1868, a cidade passou a contar com um aparelho de
transporte urbano formado por bondes, que eram inicialmente movidos por “tração a
sangue”, devido ao uso de animais como cavalos e burros, mas que foi substituído, algum
tempo depois, por veículos à base de energia elétrica. Ao final dos oitocentos, inclusive, foi
instalado um sistema de telefonia na cidade 71 , além de um cabo telegráfico submarino,
operado por uma empresa inglesa, a Western, ligando a capital da província diretamente à
Inglaterra (SILVA, 2013).
Entre os momentos de crises e a nova onda investimentos, ganhava espaço entre
políticos e intelectuais maranhenses a discussão acerca da substituição da mão de obra
escravizada por trabalhadores estrangeiros assalariados. E esse debate não estava deslocado
do que se assistia nas demais capitais do Império. O trabalhador estrangeiro, de acordo com
seus defensores, contribuiria significativamente para a transformação da província, pois teria
um papel determinante não somente como trabalhador e civilizador, mas, também, como
exemplo de moralidade a ser seguido. O trabalhador nacional, por sua vez, associado à
preguiçosa e à indolência, além de ser taxado de perigoso, deveria ser deixado de lado72. Boa
parte desse contingente pobre e livre foi aproveitado nas lavouras canavieiras, uma vez que,
dos anos 1850 em diante, em decorrência da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, houve
um declínio significativo na quantidade de cativos da região (MEIRELES, 1960). Assim
como nas demais províncias do Norte, a proibição do tráfico negreiro fez com que boa parte
da escravaria maranhense, que compunha metade da população e que havia sido o
sustentáculo da imponência e da riqueza das famílias mais abastadas, fosse vendida para o
Sudeste do país, reconfigurando, dessa maneira, as dinâmicas sociais locais, ainda que as
marcas do cativeiro, até hoje, não tenham sido apagadas.

71
A inovação tecnológica criada por Alexander Graham Bell, apenas uma década após o seu lançamento
mundial, ocorrido na Exposição Internacional da Filadélfia, em 1876, foi inaugurada no Rio de Janeiro e, logo
depois, em Belém do Pará e São Luís do Maranhão, graças a Dom Pedro II, que, estando presente na mostra,
gostou do invento e o adquiriu (SCHWARCZ, 1998, p. 556).
72
De acordo com a pesquisadora Regina Helena Martins Faria. (2001), houve uma mudança de mentalidade
lenta em relação ao trabalhador local, iniciada na década de 1840 e que, algum tempo depois, ganharia espaço
nos discursos e nas práticas dos maranhenses.

80
Sobre as várias facetas da sociedade maranhense oitocentista e os inescapáveis
impactos gerados pela escravidão na população, não obstante, Matthias Röhrig Assunção
(1999, p. 34) esclarece que:

A estrutura social não era um sistema hierárquico monolítico e bem


definido, mas sim a expressão de subsistemas de classificação
parcialmente conflitantes, permitindo diferentes formas de percepção da
sociedade. A ideologia racial da superioridade branca não estava ausente
nas classes baixas, especialmente nos grupos intermediários, os quais
podiam aspirar a transcender o limite de cor, mas este não era o único
possível de interpretação das diferenças sociais.

Considerando os apontamentos feitos até aqui e que refletem a “ideia do atraso”


maranhense em relação aos “ideais modernos de civilização”, portanto, o problema da
servidão se apresentava como um dos mais significativos (SILVA, 2013, p. 17). Os discursos
abolicionistas, no entanto, começaram a aparecer na província com mais força somente na
década de 1860, momento em que, no restante do país, também se fariam presentes. A
extinção do tráfico internacional de escravos; o aumento da concorrência estrangeira seguida
da retração do preço do algodão e do açúcar no mercado externo; o agravamento da situação
financeira dos proprietários rurais locais; além das constantes insurreições e da influência
dos movimentos antiescravistas desencadeados, principalmente, no Rio de Janeiro e em São
Paulo: tudo contribuiria para o abalo e para o desmoronamento das velhas estruturas. No
âmbito das artes, especificamente, tal posicionamento se fará presente, entre outras
linguagens, através da literatura de cunho romântico, à qual Maria Firmina dos Reis, ao
publicar Úrsula, em 1859, estava inserida. Uma literatura que pretendia formar um ideário
de nação, de pátria e de civilização, mas que, sob o olhar da maranhense, evidenciava a
experiência dos oprimidos em seu aspecto real, denunciando diretamente a violência e o jugo
dos senhores que agiam em conformidade com as leis.

3.2. Maria Firmina dos Reis e as ideias de sua geração

Uma vez expostas essas breves considerações acerca da conjuntura social em que
nossa protagonista esteve inserida, resta-nos buscar compreender, finalmente, o conjunto de
novas ideias que norteou a intelectualidade brasileira oitocentista e que acabou contribuindo
para a intensa agitação política que alteraria, definitivamente, os rumos do país. Para tanto,

81
tomemos como ponto de partida os registros feitos por Silvio Romero (apud BARRETO,
1926, p. XXIII-XXIV) acerca desse importante período de efervescência na história do
Brasil:

O decênio que vai de 1868 a 1878 é o mais notável de quantos no século


XIX constituíram a nossa vida espiritual. Quem não viveu nesse tempo não
conhece por não ter sentido diretamente em si as mais fundas comoções da
alma nacional. Até 1868 o catolicismo reinante não tinha sofrido nessas
plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e eclética, a mais
insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas o menor
ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição servil e os direitos
tradicionais do feudalismo prático dos grandes proprietários a mais indireta
opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores
cismares, a mais apagada desavença reatora. Tudo tinha adormecido à
sombra do príncipe feliz que havia acabado com o caudilhismo nas
províncias da América do Sul e preparado a engrenagem da peça política
de centralização mais coesa que já uma vez houve na história de um grande
país. De repente, por um movimento subterrâneo que vinha de longe, a
instabilidade de todas as coisas se mostrou e o sofisma do império apareceu
em toda a sua nudez. A Guerra do Paraguai estava a mostrar a todas as
vistas os imensos defeitos de nossa organização militar e o acanhado de
nossos progressos sociais, desvendando repugnantemente a chaga da
escravidão; e então a questão dos cativos se agita e logo após é seguida a
questão religiosa; tudo se põe em discussão: o aparelho sofístico das
eleições, o sistema de arrocho das instituições policiais e da magistratura e
inúmeros problemas econômicos; o partido liberal, expelido
grosseiramente do poder, comove-se desusadamente e lança aos quatro
ventos um programa de extrema democracia, quase um verdadeiro
socialismo; o partido republicano se organiza e inicia uma propaganda
tenaz que nada faria parar. Na política é um mundo inteiro que vacila. Nas
regiões do pensamento teórico, o travamento da peleja foi ainda mais
formidável, porque o atraso era horroroso. Um bando de ideias novas73
esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte. Hoje, depois de mais
de 30 anos, hoje que são ela correntes e andam por todas as cabeças, não
têm mais o sabor de novidade, nem lembram mais as feridas que, para se
espalhar, sofremos os combatentes do grande decênio: positivismo,
evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na
poesia e no romance, folclore, novos processos de crítica e de história
literária, transformação da intuição do direito e da política, tudo então se
agitou (...).

73
Grifo meu.

82
Tendo como referência esse quadro geral traçado pelo historiador, diversas
interpretações acerca desse período foram realizadas nos últimos anos, no sentido de avaliar
os impactos que essas transformações tiveram na condução do país. Até porque, “a chegada
da década de 1870 significou uma guinada radical na até então pacata política do Segundo
Reinado” (SCHWARCZ e STARLING, 2015, p. 291). Alguns autores, por exemplo, tratam
essas correntes como um campo autônomo de análise, buscando os indícios da formação de
um pensamento brasileiro original. Outros, utilizando-se de uma vertente mais sociológica,
vinculam esse “bando de ideias novas” às classes e grupos sociais emergentes ou mesmo ao
surgimento de novas instituições, como as academias civis e militares. Perpassando essas
abordagens, há o debate sempre recorrente a respeito da natureza da importação das ideias
europeias, que se divide entre os estudos que procuram saber se elas foram adequadas à
realidade nacional ou se elas eram concepções distanciadas daquele momento político da
nação. Para melhor avaliar essa conjuntura, vejamos algumas dessas interpretações.
A socióloga Angela Alonso (2002), em seu livro Ideias em movimento, dialogando
com a produção acadêmica acerca do pensamento brasileiro oitocentista e problematizando
o lugar da chamada “geração de 1870” na crise do Brasil-Império, mostra que, a partir dessa
década do século XIX, em função das ações de liberais radicais, positivistas, darwinistas
sociais, evolucionistas e outros “istas” que não separavam o pensar do agir político, a
monarquia acabou perdendo a batalha ideológica para os intelectuais e movimentos
contrários ao regime. Em sua linha argumentativa, essas novas correntes de pensamento
podem ser compreendidas como peças produzidas pela absorção política de ideias europeias,
ou seja, como acepções que visariam atacar, antes de tudo, os fundamentos da ordem
imperial, ao invés de avançar com a discussão no campo da teoria política, propriamente.
Seguindo esse raciocínio, inclusive, a autora se afasta de abordagens tradicionais que
enxergam os membros da geração de 1870 como intelectuais envolvidos em polêmicas
meramente doutrinárias. Ao mesmo tempo, ao rejeitar as análises mais próximas do universo
da história das ideias, Alonso dedica-se a um tratamento sociológico de toda uma geração,
ressaltando o contexto político das últimas décadas do Império, que ficou marcado por uma
crescente insatisfação em relação aos assuntos caros para a época, como a escravidão, a
união da Igreja com o Estado, a centralização do poder na figura do imperador e a própria
forma monárquica de governo.

83
José Murilo de Carvalho (2012, p. 32-4), por sua vez, teorizando acerca dessas
questões e se atentando ao tema da identidade nacional brasileira, afirma que:

(...) a presença europeia fazia-se sentir no mundo das ideias filosóficas e


políticas. Quanto às primeiras, até a década de 1860, sobressaiu o ecletismo
de Victor Cousin (1792-1867). Quanto às segundas, predominaram, até a
mesma década, autores como François Guizot, Benjamin Constant, Alexis
de Tocqueville (1805-1859), John Stuart Mill (1806-1873). A partir dos
anos 1870, invadiram o país as grandes filosofias deterministas da história,
típicas do século. Destacaram-se o positivismo de Auguste Comte (1798-
1857), o evolucionismo de Herbert Spencer (1820-1903), o biologismo de
Ernest Haeckel (1834-1919), a antropogeografia de Friedrich Ratzel
(1844-1904), o racismo de Arthur de Gobineau (1816-1882). Este último
foi representante diplomático da França no Brasil, onde fez grande amizade
com o imperador, apesar de detestar e desprezar a população mestiça do
país. O único determinismo oitocentista que não chegou ao Brasil na época
foi o econômico de Karl Marx (1818-1883).

Esse conjunto de novas ideias, logo, acabou influenciando a maneira de pensar da


nossa gente, especialmente das elites condutoras da vida política e intelectual. E esse
movimento foi se tornando cada vez mais perceptível por valorizar, entre outros pontos, o
nacionalismo e a liberdade, sentimentos que se ajustavam perfeitamente ao espírito de um
país que acabara de se transformar em uma nação livre. Sobre esse aspecto, ainda, José
Murilo de Carvalho (2012, p. 34) esclarece que:

Na literatura, nas artes plásticas, na música, se o modo de dizer e fazer


seguia padrões europeus, os temas e as propostas eram brasileiros.
Românticos, realistas, neoclássicos, naturalistas, todos tinham o Brasil
como tema. No romantismo de José de Alencar e Gonçalves Dias, no
condoreirismo abolicionista de Castro Alves, na pintura histórica de Victor
Meirelles e Pedro Américo, no paisagismo de Giovanni Castagneto e
Antônio Parreiras, as obras não só tratavam do Brasil como tinham
propostas de criação de uma identidade e de uma memória brasileiras, por
mais restritas que fossem.

Além das artes, no campo das ideias verificou-se o mesmo fenômeno. A farta citação
de autores estrangeiros, muito comum no período, não significava necessariamente adesão
ao seu modo de pensar. E nem mesmo os adeptos de sistemas de pensamento mais fechados
como o positivismo e o determininsmo biológico deixaram de ser originais. Os positivistas,
por exemplo, reconfiguraram o pensamento de Comte para defender um papel político para

84
as classes médias ou mesmo uma ação revolucionária para a derrubada da monarquia. Os
racialistas encontraram uma maneira de combinar o conceito de evolução com a
naturalização das diferenças biológicas. Os liberais conseguiam conviver sem maiores
problemas com a escravidão. É dentro dessa complexa dialética entre o nacional e o
universal, portanto, que se deve interpretar esse conjunto de ideias que marcou o Segundo
Reinado. Isto posto, observemos com mais atenção como se deu essa relação aparentemente
paradoxal entre liberalismo e escravidão, num contexto mais amplo, e como essas correntes
de pensamento se imbricavam no Brasil oitocentista. Até porque, entre todos os aspectos
apontados acima, este é o que assume maior importância para compreendermos como Maria
Firmina dos Reis se inseria naquela constelação de ideias e como sua luta abolicionista
através da literatura, aliada às demais ações práticas empreendidas no período, foi ganhando
cada vez mais apelo popular, além do tom de revolta.
Em tese, pode-se afirmar que o liberalismo europeu defendia o trabalho livre, mais
especificamente, o mercado de trabalhadores assalariados e juridicamente livres, mas não
era contrário à escravidão nas colônias. Isso significa que o próprio liberalismo europeu já
nasceu sob esta contradição. A Revolução Francesa, por exemplo, decretou a libertação dos
cativos nas colônias, em 1794, mas Napoleão restabeleceu a escravidão oito anos depois. O
próprio liberalismo, inglês ou francês, padeceu desse contrassenso, que, talvez, não seja uma
contradição entre o liberalismo e o escravismo, mas somente uma incorporação desse
modelo econômico como integrante de um sistema colonial. Trabalho livre na Europa,
escravidão nas colônias americanas, tal a ordenação segmentada, estabelecida pela teoria
liberal (GORENDER, 2002, p. 211). A exclusão política das classes pobres foi, então, a
regra em boa parte do Ocidente. A Inglaterra manteve a escravidão em suas colônias até
1838; a França, até 1848; e os Estados Unidos, até 1861.
No Brasil, particularmente, o advento do liberalismo decorreu antes de tendências
intelectuais do que de qualquer transformação econômica mais profunda (SKIDMORE,
2012, p. 67), uma vez que o maior entrave para a difusão das ideias liberais por aqui era
justamente a sua incompatibilidade com a realidade do país. Para a burguesia europeia, o
Estado liberal, nacional e laico era necessário, contudo, as ideias vindas da Europa não
encontravam em solo brasileiro uma estrutura socioeconômica correspondente. Enquanto no
velho continente elas serviam a uma burguesia atuante, interessada no desenvolvimento das
manufaturas e indústrias e em luta contra a aristocracia que estava em crise, no Brasil elas
iriam ser definidas pela aristocracia rural e por uma elite pouco expressiva, dependente quase

85
que totalmente do Estado ou das camadas populares. Ao mesmo tempo, a economia
essencialmente agrária e escravista não possibilitava o desenvolvimento de uma burguesia
semelhante à europeia. As camadas senhoriais, que mantinham a base de seu poder na
manutenção do trabalho forçado, por sua vez, queriam conservar a liberdade comercial
adquirida desde o rompimento do Pacto Colonial, mas não abriam mão do elemento servil.
Dessa maneira, pode-se dizer que a escravidão se constituía como o limite do liberalismo no
Brasil, revelando, assim, uma trama complexa de contradições. Assim, o que se percebe é
que “a coabitação de liberalismo e escravidão em colônias e ex-colônias não foi triste ou
farsesco apanágio do Brasil-Império, sendo equivocada a tese de que aqui, e somente aqui,
as ideias liberais estavam fora de lugar” (BOSI, 2012, p. 226).
Pensando nas questões das liberdades individuais, da igualdade perante a lei, do
direito à propriedade e dos direitos naturais, por conseguinte, muito caras aos pensadores
liberais clássicos 74 e que dividiam as opiniões no século XIX, em oposição ao modo de
produção assentado na exploração do elemento servil, fato é que o debate acaba se
desvirtuando sempre que um determinado pesquisador confunde o seu mundo, onde a
escravidão é condenada sob um ponto de vista moral, com o mundo do escravo, onde a
instituição fazia parte da ordem natural das coisas (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009). Em
decorrência disso, vale lembrar que a escravidão somente começou a ser uma “vergonha da
humanidade” ao final do século XVIII, “seja com os filósofos da Ilustração, como Diderot e
Holbach, seja com os economistas primitivos, que acabam por descobrir a ‘irracionalidade’
do trabalho escravo, com seus altos custos vis-à-vis ao trabalho livre” (SILVA, 1989, p. 71).
Além do mais,

(...) no Brasil, a condenação moral dos filósofos, tanto quanto a


condenação “técnica” de economistas como John Millar, Benjamin
Franklin ou Adam Smith, só ganhariam força na segunda metade do século,
quando o país independente, fortemente penetrado por ideias e práticas
liberais, se integra ao mercado internacional capitalista. A campanha
abolicionista, a partir de 1870, materializa as ideias do tempo (SILVA,
1989, p. 71).

74
Como pode ser verificado nas obras de John Locke, Adam Smith, David Ricardo, Voltaire, Montesquieu e
outros.

86
O combate à escravidão, portanto, demorou algum tempo para se tornar uma questão
relevante nos debates políticos do país (SKIDMORE, 2012, p. 49). Todavia, é a partir dessa
constelação de ideias permeadas pelos dilemas deterministas, que a campanha abolicionista
passa a assumir cada vez mais força, conquistando, a cada dia, novos adeptos75. Desde 1870,
mas, principalmente depois de 1886, muitos militantes contrários à servidão se empenharam
em “mal aconselhar” escravos e promover fugas coletivas, algumas delas em massa. A
propaganda abolicionista, a extinção progressiva do tráfico negreiro, o fundo de
emancipação, a liga de mulheres para a libertação de escravos, a imigração estrangeira: tudo
concorria para tornar o cativeiro insuportável. Durante o Segundo Reinado, inclusive,
“houve aquilombados e rebeldes em pelo menos metade do Império, em Pernambuco, Mato
Grosso, Maranhão, Rio Grande do Sul, Pará, Espírito Santo, São Paulo, Minas Gerais e no
interior do Rio de Janeiro” (ALONSO, 2015, p. 304-5). Além disso, querendo ou não, “a
experiência escrava marcou em profundidade o africano, modificou sua forma de ver o
mundo e a si mesmo” (REIS, 1989, p. 109). E é precisamente aqui que a figura de Maria
Firmina dos Reis, propondo através de sua literatura a libertação dos cativos, assume
relevância.

75
Com relação a esse aspecto, Angela Alonso (2015, p. 17-8), em seu mais recente estudo, explica que: “O
movimento abolicionista demorou a se configurar no Brasil (...). Para existir, um movimento social precisa
organizar associações e eventos públicos, materializar-se como mobilização coletiva, o que só ocorre em
conjunturas políticas que facilitam o uso do espaço público para exprimir reinvindicações. Tal situação se
configurou no Brasil no fim dos anos 1860, graças a três mudanças. Uma foi de cena internacional. Um clico
de abolições se iniciou no século XVIII e, nos anos 1860, atingiu os dois outros grandes escravismos do
continente, Estados Unidos e Cuba. Ao se mirarem nesse espelho, os brasileiros se viram prestes a restar como
último escravismo do Ocidente. A experiência estrangeira funcionou como um repertório político que orientou
ações acerca da escravidão no Brasil, com modelos a seguir e exemplos a evitar. Outra transformação produziu-
se com a aceleração da urbanização, que propiciou um incipiente espaço público no qual se discutiram assuntos
de interesse coletivo, como a modernização do país, e se disseminou um novo padrão de sensibilidade, que
redefiniu a escravidão de natural em abominável. A terceira mudança foi de conjuntura política. Em 1868, o
Partido Liberal usou o espaço público para contestar a supremacia adversária no sistema político. O governo
do Partido Conservador respondeu com modernização: ampliou o acesso ao ensino superior, reduziu os custos
da imprensa e propôs uma Lei do Ventre Livre. Tais iniciativas produziram uma crise política intraelite e o
ingresso de novos atores no debate político. Essa mudança de oportunidades políticas propiciou as condições
para o primeiro ciclo de mobilização abolicionista”.

87
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Discorrendo acerca do resgate de textos literários de autoria feminina escritos


sobretudo durante o século XIX na Europa e que passaram a ser estudados por pesquisadores
de várias partes do mundo, já na segunda metade do século XX, Sigrid Weigel (1986, p. 71)
registrou em um breve artigo a seguinte passagem:

Um texto descoberto em um arquivo empoeirado não será bom e


interessante somente porque foi escrito por uma mulher. É bom e
interessante porque nos permite chegar a novas conclusões sobre a tradição
literária das mulheres, saber mais sobre como as mulheres desde sempre
enfrentaram seus temores, desejos e fantasias e, também, as estratégias que
adotaram para se expressar publicamente, apesar de seu confinamento ao
pessoal e ao privado.76

No Brasil, do mesmo modo, pesquisadores dos quatro cantos do país, investigando


os porões de bibliotecas públicas e coleções privadas, vasculhando as seções de obras raras
e tendo que lidar com o pó amontoado nas estantes de nossa tão maltratada memória cultural,
aos poucos, também fizeram com que inúmeros textos literários de autoria feminina
esquecidos no XIX emergissem em plenos séculos XX e XXI, abrindo, assim, novos
caminhos para que essas obras pudessem ser reeditadas, lidas, analisadas e colocadas
novamente em circulação. Ao contrário do que por muito tempo se imaginou, as mulheres
brasileiras não apenas escreveram e publicaram uma grande quantidade de materiais, como
constituíram um legado de boa qualidade literária e de valor histórico ímpar para o deleite
das futuras gerações.
O nome de Maria Firmina dos Reis, como foi possível observar no primeiro capítulo
dessa dissertação, veio à tona a partir da redescoberta de seu romance Úrsula, em 1962, em
um sebo na cidade do Rio de Janeiro, pelo historiador e bibliófilo paraibano Horácio de
Almeida, que, em 1975, após preparar uma edição fac-similar do livro, acabou doando o
original a Nunes Freire, governador do Maranhão na época. Em decorrência desse fenômeno,
atualmente, os estudos que tratam de sua produção literária e dos aspectos que compõem sua
trajetória vêm aumentando em todo o país, ainda que timidamente, contribuindo para a
consolidação de toda uma fortuna crítica dedicada a autora.

76
Tradução minha.

88
Vale lembrar que Firmina participou ativamente da vida intelectual maranhense,
colaborando na imprensa local, publicando livros e fazendo parte de antologias, além de ter
sido professora, música e compositora (TELLES, 1997, p. 412). No âmbito das letras
nacionais, particularmente, ela inaugurou a construção de identidades culturais que levam
em consideração uma perspectiva outra, a perspectiva dos próprios vencidos, algo inédito
para a literatura produzida até então. Como bem observou Eduardo de Assis Duarte (2009,
p. 277), inclusive, “ao estabelecer uma diferença discursiva que contrasta em profundidade
com o abolicionismo hegemônico na literatura brasileira de seu tempo, a autora constrói para
si mesma um outro lugar: o da literatura afro-brasileira77”. Suas narrativas, não obstante,
mesmo tendo como fundamento a estética de cunho romântico, se utilizam da principal
manifestação do Romantismo, que é a idealização amorosa, como desvio de atenção, com o
intuito de ludibriar o patriarcalismo escravagista em vigência no Império, em torno das
questões levantadas por ela sobre a condição das mulheres e dos africanos e
afrodescendentes escravizados (NASCIMENTO, 2009, p. 97).
Finalmente, embora a atuação política de Maria Firmina dos Reis tenha se dado de
modo indireto e através das letras, ela não pode e nem deve ser subestimada. Até porque,
como sugere a pesquisadora Maria Lúcia de Barros Mott (1988, p. 17): “a resistência e a luta
da mulher contra a escravidão resgata uma forma de participação informal exercida, quase
sempre, fora das esferas de poder e dos quadros político-partidários, mas nem por isso menos
importante e eficiente”. Daí, então, a necessidade de se recuperar a produção literária e as
ideias dessa escritora, uma das poucas intelectuais afrodescendentes do século XIX de que
se tem notícia, cuja trajetória de vida, desde muito cedo, a faria compreender a importância
de se propagar e de se estabelecer naquela decadente sociedade brasileira oitocentista os
ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, contribuindo, assim, para a construção de um
país mais justo e sem opressão.

77
Grifo do autor.

89
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