O(s) Espaço(s) Público(s) Numa Cidade Desigual e Segregada

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas


Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais

RAFAEL DE AGUIAR ARANTES

O(s) ESPAO(s) PBLICO(s) NUMA CIDADE DESIGUAL E SEGREGADA

SALVADOR
2016
RAFAEL DE AGUIAR ARANTES

O(s) ESPAO(s) PBLICO(s) NUMA CIDADE DESIGUAL E SEGREGADA

Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao


em Cincias Sociais da Universidade Federal da
Bahia, como requisito parcial para a obteno do
grau de doutor em Cincias Sociais.

Orientadora: Prof. Dra. Inai Maria Moreira de


Carvalho

SALVADOR
2016
_____________________________________________________________________________

Arantes, Rafael de Aguiar


A662 O(s) espao(s) pblico(s) numa cidade desigual e segregada / Rafael de Aguiar
Arantes. Salvador, 2016.
247 f. il.

Orientadora: Prof Dr Inai Maria Moreira de Carvalho


Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Cincias Humanas. Salvador, 2016.

1. Espaos pblicos. 2. Sociologia urbana. 3. Privatizao. 4. Segregao Salvador. I.


Carvalho, Inai Maria Moreira de. II. Universidade Federal da Bahia.
III. Ttulo.

CDD 307.7640981
____________________________________________________________________________
A Luquinhas (Lucas Ferreira Galvo, in
memoriam), meu compadre, que foi levado de
maneira trgica e repentina mas que
permanece vivo em nossos coraes e mentes.
AGRADECIMENTOS

H cinco anos, quando da defesa da minha dissertao de mestrado, eu comecei os


agradecimentos afirmando que um trabalho como aquele no poderia ser resultado de um
processo individual. Isso ainda mais verdadeiro para esta tese que, mais do que eu imaginava
inicialmente, envolveu bastante trabalho, muitas verses, apresentaes, debates com variados
professores e colegas e diversas horas de orientao, alm de leituras, reflexo e, claro, escrita.
Tanto trabalho no chegaria a este momento se no fosse pelo apoio de diversas instituies e
pessoas especiais.

Quero agradecer ao Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais que acolheu o meu projeto
de doutorado e, atravs de competentes professores, contribuiu para a minha formao e
amadurecimento intelectual. Ao professor Clvis Zimmerman e a Dra Alencar que, na
condio de coordenador e secretria administrativa, sempre se esforaram para facilitar nossa
vida e dar encaminhamento a nossas demandas. A todos os meus colegas de doutorado, pelos
debates, contribuies acadmicas e acolhimento pessoal diante das dvidas e angstias, em
especial aos queridos amigos Waneska Cunha dos Anjos e Cludio Andr de Sousa.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPQ) pela concesso


da bolsa que permitiu que eu me dedicasse quatro anos a essa pesquisa. Coordenao de
Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) que me contemplou com uma bolsa
de doutorado sanduche no exterior.

Ao Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales da Pontificia Universidad Catlica do Chile


que acolheu meu projeto de pasanta, me propiciando excelentes condies de trabalho e
produzindo importantes marcas nessa tese, especialmente aos professores Carlos de Mattos e
Felipe Link, a sempre prestativa Elizabeth Lizama e aos amigos Mario Fuenzalida e Javier
Gmez, este tambm companheiro de publicaes.

Quero agradecer aos diversos amigos que, para alm da importncia na minha vida,
contriburam para este trabalho de diversas maneiras, especialmente na pesquisa de campo:
Lucas Galvo, Itain Batista, Christiane Aquery, Valdir Dantas, Mrcia Galvo, Fernanda
Furtado e Soraia Brito. Agradeo a todos os amigos que tambm contriburam de maneira mais
ou menos direta.
A Eduarda Conceio, aluna inteligente, interessada e comprometida (daquelas que estimulam
um professor a continuar na sua batalha cotidiana), que neste trabalho me ajudou enormemente
na transcrio das entrevistas e tabulao dos dados, assim como na indicao de entrevistados
e nos debates que estabelecemos sobre o tema da tese.

Aos professores Pedro Vasconcelos, Anete Ivo e Iracema Brando Guimares por aceitarem
participar da minha banca, desde a qualificao, e pelas valiosas colaboraes dadas nesse
processo. Sem dvida, o trabalho seria bastante diferente sem as suas contribuies e sugestes
de literatura, que o ajudaram a ganhar mais corpo e maior clareza terico-metodolgica.

Aos professores Maria do Livramento Clementino e Milton Jlio de Carvalho Filho que
estabeleceram um dilogo de excelente nvel na defesa da tese e que contriburam para a sua
melhoria em diversos aspectos, chamando a ateno para novas questes e elementos
importantes.

Ao longo desses pouco mais de quatro anos, trs pessoas foram fundamentais para que este
processo se iniciasse e estivesse agora mais prximo do fim. E por isso quero agradecer a elas
de maneira especial.

professora Inai Carvalho, pela excelente orientao, ateno, apoio e estmulo no apenas
durante o doutorado, mas ao longo dos onze anos em que trabalhamos juntos que, no por acaso,
coincidem com minha formao como socilogo e professor. Eu iniciei minha participao no
seu grupo de pesquisa aos 20 anos, como bolsista de iniciao cientfica. Hoje, aos 31, concluo
uma fase importante de formao me dando conta de que passei 1/3 da minha vida, perodo
fundamental de construo profissional e humana, aprendendo e sendo orientado por uma
professora que no mede esforos para estimular seus alunos a aprofundar seus conhecimentos,
abrir seus horizontes e produzir cincia de boa qualidade. Eu sou muito grato a voc, Inai, por
toda essa convivncia e aprendizado.

A minha me, Valdete Aguiar, pela vida, confiana, apoio constante, carinho e pacincia. Aos
valores que me ensinou, trabalho, responsabilidade, solidariedade, igualdade e justia, e a todas
as condies e facilidades a mim propiciadas para que eu pudesse estudar, trabalhar e viver da
maneira mais plena possvel. Alcanar o ttulo de doutor no nos muda como seres humanos,
mas uma conquista difcil e, se isso representar para voc alguma realizao diante de todas
as batalhas vencidas, do trabalho quando pequena na lavoura construo de uma vida melhor
para ns, eu j estarei bastante satisfeito. Esta tese tambm dedicada a voc, me, como forma,
ainda que singela, de agradecimento.

Ao meu amor, Carla Galvo, quero agradecer pelo companheirismo de vida, de ideais,
princpios e projetos; o carinho, o amor, os estmulos e a pacincia. No meio disso tudo, o
doutorado fica pequeno, mas s quem viveu esses quatro anos (como ns, lado a lado) sabe a
batalha envolvida nisso, as dvidas, angstias, a saturao, o cansao e mesmo a exausto.
Nesta batalha, como em todas as outras, voc esteve ao meu lado, no plano afetivo e prtico-
concreto, debatendo o objeto, refletindo sobre o recorte terico-metodolgico, visitando e
observando a dinmica de espaos pblicos em Salvador mas tambm em Santiago do Chile,
selecionando a amostra e mesmo fazendo entrevistas, alm da leitura mais do que atenta de
todas as verses desse trabalho. Por isso, embora pouco diante de tudo, quero dizer que esta
tese tambm sua, lembrando, como disse Hegel em algum ponto do livro a Razo na Histria,
que nada de grande nesta vida foi feito sem paixo.
Aquilo que precisamente se perde com essa celebrao [do gueto] a ideia de que as
pessoas s podem crescer atravs de processos de encontro com o desconhecido.
Coisas e pessoas que so estranhas podem perturbar ideias familiares e verdades
estabelecidas; o terreno no familiar tem uma funo positiva na vida de um ser
humano. Essa funo a de acostumar o ser humano a correr riscos [...] e de aprender
a mais valiosa de todas as lies humanas: a habilidade para colocar em questo as
condies j estabelecidas de sua vida.
[...]
Mas pode-se argumentar que se est sendo muito idealista [...] Se as pessoas no
podem, razoavelmente, fazer mais do que defender suas comunidades locais, ento
por que criticar isso especialmente se o mundo pblico daquela cidade maior to
vazio e inabitvel? O que pretendo fazer nas pginas que se seguem mostrar que no
temos outra escolha seno tornarmos aquele mundo maior habitvel. [...] A destruio
de uma cidade feita de guetos uma necessidade tanto poltica quanto psicolgica.

(Richard Sennett em O Declnio do Homem Pblico, 1988, p. 359-360)


RESUMO

Esta tese analisa os usos do(s) espao(s) pblico(s) na vida urbana contempornea, discutindo
sua relevncia atual e sua capacidade de expressar diversidade e engendrar intersubjetividades.
Para tanto, buscou analisar sua dinmica na cidade do Salvador, considerando as
transformaes urbanas das ltimas dcadas do sculo XX e das primeiras desse novo sculo,
atravs de reviso da literatura, coleta de dados secundrios e da realizao de entrevistas com
moradores que viveram nela entre os anos de 1950 e 1970 e no presente momento. A tese
buscou dialogar com as perspectivas crticas que surgiram desde meados do sculo XX,
ampliando-se na passagem para o sculo XXI, sobre a vida pblica contempornea, tentando
discutir a validade das teses que indicam a existncia de um processo de diluio/restrio dos
espaos pblicos. Nesse sentido, concluiu-se que at a dcada de 1970, quando se operou a
metropolizao industrial em Salvador, o modelo de cidade existente propiciava certa expresso
da heterogeneidade social urbana e permitia maiores oportunidades de usos dos espaos
pblicos e de produo de encontros e relaes interclassistas. No entanto, no se pode falar de
usos mais plurais dos espaos pblicos e da conformao de amplas relaes de sociabilidade
interclassistas nessa cidade por conta de suas caractersticas derivadas das desigualdades scio-
espaciais existentes, de modo que no se pode voltar a esse perodo simplesmente com um olhar
crtico sobre os dias atuais sob a pena de mitificar o passado a partir de tons nostlgicos. De
todo modo, as transformaes contemporneas operaram transformaes importantes sobre
esse modelo de cidade, favorecendo o avanos de formas de privatizao e autossegregao.
Nesse novo contexto urbano, no se pode falar da morte dos espaos pblicos em Salvador,
porque seus usos sobrevivem, ainda que premidos por fatores diversos, como sua
heterogeneidade e desigualdade, seu carter segregado e fragmentado, mas tambm por
processos de privatizao e mercantilizao, violncia e medo, formas de disputas, distines e
competies. Nesses espaos, a intersubjetividade engendrada construda em torno de grupos
intraclassistas, pautadas em relaes que envolvem intolerncia e preconceito, o que produz
processos de autossegregao e isolamento, impedindo que os espaos pblicos em Salvador
cumpram o papel assignado teoricamente como lugar integrador e gerador de prticas
democrticas. Por isso, conclui-se que nesta cidade os espaos pblicos so desiguais,
segregados e fragmentados, caractersticas que devem se repetir em outras cidades brasileiras
e latino-americanas.

PALAVRAS-CHAVE: espao pblico; sociabilidade urbana; privatizao; segregao;


Salvador
ABSTRACT

This thesis analyzes the uses of the public spaces in the contemporary urban life, discussing his
current relevance and its ability to express diversity and produce subjectivities between the
urbanites. Therefore, it sought to analyze its dynamics in the city of Salvador, considering the
urban transformations of the last decades of the twentieth century and the first decades of this
new century, through literature review, collection of secondary data and interviews with
residents who lived in this city between the years 1950 and 1970 and now. The thesis sought to
debate with the critical perspectives on contemporary public life, that have emerged since the
mid-twentieth century expanding in the transition to the twenty-first century, trying to discuss
the validity of the thesis that indicate the existence of a process of dilution / restriction of the
public spaces. In this sense, the thesis has concluded that until the 1970s, when has operated
the industrial metropolization in Salvador , the existing city model has produced certain
expressions of urban social heterogeneity and has allowed greater opportunities for use of the
public spaces, creating meetings and relations between the social classes. However, its not
possible to speak of plural uses of the public spaces and of the formation of sociability relations
between the social classes in this city because of its characteristics derived from the existing
socio-spatial inequalities. So that the reflection cannot return to this period simply with a critical
look at the present day, under the penalty to mystify the past through nostalgic tones.
Nevertheless, the contemporary transformations has operated major changes on this model of
city, favoring the progress of forms of privatization and self-segregation. In this new urban
context, its not possible to speak of the death of the public spaces in Salvador, because its uses
survives, although pressed by several factors, such as their heterogeneity and inequality, their
segregated and fragmented character, but also by processes of privatization and
commodification, violence and fear, forms of disputes, distinctions and competitions. In these
spaces, the subjectivity engendered between the urbanites is built around similar groups, based
in relations involving intolerance and prejudice, which produces processes of self-segregation
and isolation, preventing the public spaces in Salvador fulfill the role theoretically assigned as
an integrator place and generator of democratic practices. Therefore, the thesis concludes that
in this city the public spaces are unequal, segregated and fragmented, characteristics that should
be similar in other Brazilian and Latin American cities.

KEYWORDS: public space; urban sociability; privatization; segregation; Salvador


SUMRIO

INTRODUO ..................................................................................................................... 16

Dimenses metodolgicas e estratgias de pesquisa ........................................................... 33

A estrutura da tese ................................................................................................................ 40

CAPTULO 1 PBLICO E ESPAO PBLICO NA CIDADE CAPITALISTA: DA


CIDADE QUE LIBERTA AO DECLNIO DO HOMEM PBLICO? ............................... 42

1.1 A cidade que liberta emergncia da esfera pblica e sociabilidade urbana ............... 44

1.2 A cidade industrial fragmentao, consumo e diluio do comportamento pblico .. 53

1.3 A cidade do sculo XX, as transformaes do fim do sculo e as caractersticas da


cidade contempornea: fortificao, medo e restrio do espao pblico .......................... 63

1.4 Uma discusso contrafactual: o espao pblico est morto? ........................................ 74

CAPTULO 2 ESPAO PBLICO E SEGREGAO: ESPECIFICIDADES DA


URBANIZAO CAPITALISTA PERIFRICA ............................................................... 79

2.1 Principais caractersticas da urbanizao capitalista perifrica .................................. 80

2.2 Transformaes contemporneas, privatizao urbana e declnio do homem pblico . 88

CAPTULO 3 SEGREGAO E USOS DOS ESPAOS PBLICOS EM SALVADOR:

DA CIDADE TRADICIONAL METROPOLIZAO INDUSTRIAL ........................ 104

3.1 A vida urbana em Salvador entre as dcadas de 1950 e 1970: espaos pblicos e
formas de encontro ............................................................................................................. 111

3.2 A metropolizao industrial: periferizao, segregao e os dilemas do viver junto.. 130

CAPTULO 4 TRANSFORMAES CONTEMPORNEAS, ABANDONO DOS


ESPAOS PBLICOS E PRIVATIZAO URBANA ................................................... 142

4.1 Abandono e evitao dos espaos pblicos e festas populares .................................... 144

4.2 Tendncias de privatizao e autossegregao: condomnios fechados e shopping


centers ................................................................................................................................. 158

CAPTULO 5 USOS DOS ESPAOS PBLICOS E SOCIABILIDADE URBANA EM


SALVADOR: ATORES, PROCESSOS E LIMITES ........................................................ 178
5.1 Apropriaes cotidianas e comunitrias dos espaos pblicos ................................... 182

5.2 Diversidade social, fragmentao e autossegregao nos usos dos espaos pblicos 192

5.3 Um resgate privado dos espaos pblicos .................................................................... 202

5.4 Usos rituais, festivos e polticos dos espaos pblicos ................................................. 208

CONSIDERAES FINAIS: ESPAO(S) PBLICO(S) QUE SOBREVIVEM;


DESIGUAIS, SEGREGADOS E FRAGMENTADOS...................................................... 215

REFERNCIAS.................................................................................................................. 226
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Taxas de homicdio e meta de diminuio at 2030 - Brasil .................................... 94


Figura 2: Evoluo urbana de Salvador, 1600-1900 .............................................................. 105
Figura 3: Ocupao urbana de Salvador, 1940 ....................................................................... 112
Figura 4: Vetores de expanso urbana de Salvador - Anos 1970 ........................................... 136
Figura 5: Evoluo da ocupao urbana de Salvador, 1976-1998 ......................................... 139
Figura 6: Publicidade da festa "Bomfim Light" de 2011 ....................................................... 156
Figura 7: Condomnios e vilas horizontais na RMS, 2010 ..................................................... 159
Figura 8: Publicidade do Empreendimento Green Ville ........................................................ 160
Figura 9: Publicidade do Residencial Vila das Flores, subsidiado pelo PMCMV, ................ 162
Figura 10: Jogo de Domin no Largo da Cruz da Redeno em Brotas ................................ 187
Figura 11: Encontros no Largo da Madragoa na Pennsula de Itapagipe ............................... 187
Figura 12: Entrada do Parque So Bartolomeu - Plataforma/Avenida Suburbana ................ 188
Figura 13: Usurios que foram visitar o parque aps a reforma - Parque So Bartolomeu ... 188
Figura 14: Crianas moradoras do entorno - Parque So Bartolomeu ................................... 188
Figura 15: Oferendas ligadas a cultos afro-brasileiros - Parque de So Bartolomeu ............. 188
Figura 16: Placa da Adoo da Praa Ana Lcia Magalhes ................................................. 189
Figura 17: Famlias e grupos de amigos sentados no gramado .............................................. 189
Figura 18: Crianas numa tarde de domingo - Largo do Campo Grande............................... 194
Figura 19: Jovens, praticantes de atividades fsicas - Largo do Campo Grande .................... 194
Figura 20: Feira de Artesanato - Largo do Campo Grande .................................................... 194
Figura 21: Publicidade exposta dentro da lgica do Projeto Verde Perto Largo do Campo
Grande .................................................................................................................................... 194
Figura 22: Passeio com a famlia aos domingos - Dique do Toror ...................................... 195
Figura 23: Passeio com os cachorros - Dique do Toror ....................................................... 195
Figura 24: Brincadeiras no pula-pula - Dique do Toror ....................................................... 195
Figura 25: Teatro de fantoches, reunio de crianas, adultos e idosos - Dique do Toror .... 195
Figura 26: Passeio com o cachorro e jovens reunidos ao som do violo - Orla da Barra ...... 197
Figura 27: Caminhada e Passeio com as crianas - Orla da Barra ......................................... 197
Figura 28: Encontro Aproveita e Me Beija durante tarde/noite de domingo - Farol da Barra
................................................................................................................................................ 197
Figura 29: Festival de cerveja artesanal - Porto da Barra ....................................................... 197
Figura 30: Projeto Boa Praa e patrocinadores ...................................................................... 204
Figura 31: Apresentaes musicais ........................................................................................ 204
Figura 32: "Food Truck" - Comida servida em caminhes - nova moda da comida de rua
gourmet ................................................................................................................................... 204
Figura 33: Publicidade da Feira da Cidade. Realizao Agosto Agncia com apoio da
Prefeitura Municipal e outros parceiros ................................................................................. 206
Figura 34: Entrada da Feira da Cidade - Jardim dos Namorados ........................................... 206
Figura 35: Preos das garrafas de 600 ml das cervejas artesanais.......................................... 206
Figura 36: Grupo de adolescentes reunidos no Jardim dos Namorados no dia da Feira da
Cidade ..................................................................................................................................... 206
Figura 37: Prtica de variados esportes no Jardim dos Namorados no dia da Feira da Cidade
................................................................................................................................................ 206
Figura 38: Manifestao contra a intolerncia religiosa - Lavagem do Bomfim, 2012 ......... 209
Figura 39: Manifestaes Culturais - Lavagem do Bomfim, 2012 ........................................ 209
Figura 40: Manifestao poltica na Festa do Dois de Julho, 2015 ........................................ 209
Figura 41: Presena do Movimento dos Sem Teto de Salvador no Dois de Julho, 2015 ....... 209
Figura 42: Jornadas de Junho de 2013.................................................................................... 212
Figura 43: Jornadas de Junho de 2013.................................................................................... 212
Figura 44 Manifestao a favor do impeachment da presidente Dilma Roussef - 13/03/2016 -
Farol da Barra ......................................................................................................................... 212
Figura 45: Manifestao contra o impeachment dapresidente Dilma Roussef e contra o
chamado "golpe" - 18/03/2016 - Avenida Sete de Setembro ................................................. 212

LISTA DE MAPAS

Mapa 1: Shopping Centers e Centros Comerciais de Salvador .............................................. 164


Mapa 2: Parques e Jardins de Salvador, 2015 ........................................................................ 180
Mapa 3: Praas e Largos de Salvador, 2012 ........................................................................... 180
Mapa 4: Manifestaes em Salvador, 2013-2014 .................................................................. 210
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INTRODUO
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Esta tese analisa os usos do(s) espao(s) pblico(s) na vida urbana contempornea, discutindo
sua relevncia atual e sua capacidade de expressar diversidade e engendrar intersubjetividades.

Mais especificamente, o trabalho busca analisar tais processos atravs do estudo emprico da
cidade do Salvador, considerando as transformaes urbanas das ltimas dcadas do sculo XX
e das primeiras desse novo sculo.

Tal objeto reflete o aprofundamento das questes de pesquisa que o autor tem desenvolvido ao
longo de uma trajetria acadmica que se iniciou em 2005, ainda na iniciao cientfica.
Mantendo como foco de preocupao a anlise das desigualdades sociais em uma perspectiva
territorializada, tal trajetria tem estudado o processo de segregao urbana1 na cidade do
Salvador, inicialmente atravs da elaborao de um trabalho acerca das suas consequncias
sobre as condies de vida de um bairro pobre e perifrico da cidade, Cajazeiras XI.
Posteriormente, observando como o processo de autossegregao se aprofundava entre as
camadas de mdia e alta renda, o autor estudou os condomnios horizontais fechados na Regio
Metropolitana de Salvador como objeto da dissertao do mestrado em Cincias Sociais,
concluindo que sua proliferao representa uma fuga dos males da cidade, uma espcie de
negao da vida urbana, dos seus espaos pblicos e da sua diversidade, conformando um
modelo de cidade e sociabilidade oposto ao que a literatura clssica definiu como as
caractersticas tradicionais (ou ideais) da cidade moderna.

Assim, observando como a segregao, o isolamento e a constituio de espaos de


homogeneidade social se opem s caractersticas associadas ao espao pblico, diversidade,

1
Alguns autores, como Pedro Vasconcelos (2004, 2013 e 2015), questionam a aplicao do conceito de segregao
ao contexto urbano brasileiro, pois essa noo, alm de se referir a fenmenos muito especficos, teria sido
transplantada de outros contextos de forma inadequada, sem rigor e preciso heurstica. Para o autor, uma
populao ou rea segregada devido s coaes externas, as quais no devem ser confundidas com outros
processos (VASCONCELOS, 2013, p. 34). No entanto, segundo Eduardo Marques (2005), a segregao em
termos scio-espaciais envolve pelo menos trs processos a partir dos quais pode ser abordada, tendo o primeiro
uma expresso direta, a saber, a apartao e isolamento de determinado grupo, cujo gueto negro norte-americano
uma expresso ilustrativa, e os dois ltimos uma expresso indireta, desigualdades de acesso e separao. O
segundo processo se refere aos diferenciais de acesso existentes entre os distintos espaos da cidade, especialmente
no que tange a infraestrutura, bens e oportunidades. O terceiro, por sua vez, se refere separao dos diferentes
grupos sociais no espao da cidade, conformando subreas de relativa homogeneidade social, onde a vida se
desenrola fundamentalmente em torno de grupos semelhantes. A perspectiva qual este trabalho est relacionado
tem se focado basicamente nessas ltimas expresses da segregao e, mais detidamente, sobre a ideia de
separao, que permite analisar as relaes sociais travadas pelos diversos grupos no espao urbano, suas
localizaes espaciais, suas caractersticas, seus encontros nos espaos pblicos, suas interaes e relaes de
sociabilidade. nesse sentido, portanto, que a ideia de segregao aparecer neste trabalho.
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ao compartilhamento de um mundo comum e civilidade, e como tal realidade se ampliava na


cidade do Salvador, o autor passou a desenvolver no doutorado uma pesquisa que permitisse
aprofundar a compreenso desses processos e seus impactos sobre os espaos pblicos dessa
cidade. Tal preocupao reflete, em ltima instncia, um dos elementos centrais da cidade, as
utopias do viver juntos, conforme sintetizou Anete Ivo (2010, p. 17) sobre os laos que unem
a questo urbana questo social.

Essa discusso se assenta no quadro de transformaes sociais e econmicas do ltimo sculo,


quando mudanas nos espaos pblicos fizeram surgir reflexes crticas sobre as suas
caractersticas atuais. Boa parte dessas perspectivas apareceu na segunda metade do sculo XX,
tendo como referncias principais Hannah Arendt, Jrgen Habermas e Richard Sennett, mas
adquiriram maior centralidade nos anos que marcaram a passagem para o sculo XXI, com os
trabalhos de uma srie de autores, entre eles Mike Davis e Tereza Caldeira (RAMREZ KURI,
2008).

Como assinalaram um conjunto de tericos (WEBER, 1979, WIRTH, 1979, SENNETT, 1988,
etc.), as cidades se constituram tradicionalmente como espaos da liberdade frente s
hierarquias e imobilidades do mundo feudal. Na medida em que cresciam e ganhavam
importncia poltica, cultural e econmica, em determinado momento se constituram tambm
como um espao onde surgiu uma esfera pblica burguesa (HABERMAS, 2003) e uma
cultura (assim como uma geografia) pblica (SENNETT, 1988). Parte da literatura afirma
como a cidade, o seu espao pblico e a vivncia da heterogeneidade e da diversidade urbana
estiveram associados ao surgimento do cosmopolitismo, da civilidade, da tolerncia s
diferenas e at mesmo da cidadania, da democracia e de ideais modernos como o de res pblica
(WIRTH, 1979, SENNETT, 1988, DUHAU, 2001, MONGIN, 2009, NETTO, 2012).

Nas ltimas dcadas, porm, tem se observado uma srie de transformaes como a proliferao
de enclaves fortificados (CALDEIRA, 2000) que ofertam em um espao fechado, privado,
homogneo e controlado, diversas funes urbanas como moradia, trabalho, consumo e lazer,
assim como a tendncia de fuga dos males da cidade (ARANTES, 2011), um abandono cada
vez maior dos espaos pblicos e uma recusa da convivncia interclassista e da constituio de
laos de sociabilidade baseados na alteridade. Diversas pesquisas apontam como os processos
de privatizao urbana vm se acentuando ao mesmo tempo em que os citadinos, amedrontados
com o crescimento da violncia e da repercusso miditica incentivada pelo capital do medo
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(BAUMAN, 2009), cada vez mais se autossegregam, em busca de proteo, privilgios e


distino.

Esses elementos se associam ainda a um conjunto de transformaes na escala e na forma


urbana das cidades contemporneas (privilgio aos veculos em detrimento dos pedestres,
reduo da diversidade de usos em muitos espaos, suburbanizao e primazia da arquitetura
defensiva), assim como prpria incapacidade e omisso do Estado no que se refere a uma
poltica voltada aos espaos pblicos, em geral degradados e abandonados, especialmente nos
pases da periferia do sistema capitalista. Por isso, para uma srie de autores tem havido uma
restrio dos espaos pblicos e da vida pblica nas cidades contemporneas tal como se
constituram em outros perodos histricos, isto , uma dissoluo do espao pblico tradicional
(SENNETT, 1988, CALDEIRA, 2000, DUHAU, 2001, DAVIS, 2009, DAMMERT, 2013).

Boa parte da literatura, portanto, tem sido bastante crtica ao tipo de esfera ou espao pblico
que caracteriza as grandes cidades contemporneas, em especial aquelas onde o processo de
urbanizao produziu cidades desiguais e segregadas, como na Amrica Latina e no Brasil.
Outra parte dela, no entanto, tm se posicionado de uma forma diferente, como Rodrigo Salcedo
(2002) e Luciana Andrade e Luiz Baptista (2013), que discordam da tese da morte ou do fim
dos espaos pblicos.

Para esses autores, em primeiro lugar, importante questionar a existncia real daquele espao
pblico descrito como um lugar onde os diferentes grupos conviviam em torno a cdigos de
tolerncia e civilidade. Segundo Salcedo, no apenas se trata de uma idealizao do passado,
como o espao pblico contemporneo tende a ser mais diverso, pois mais aberto a espectros
mais amplos de lutas e prticas. Para Andrade e Baptista, as anlises sobre o fim do espao
pblico alm de serem focadas somente nos grupos de alta renda ignoram a complexidade e a
diversidade existentes dentro do rtulo espaos pblicos, reduzindo-os a perspectivas
homogneas. Para eles, a diversidade de experincias que podem ser identificadas nos espaos
pblicos to ampla que exige do pesquisador um cuidado no seu entendimento e distino, de
modo que os prprios conflitos que engendram restries sociais ao uso de determinados
lugares seria uma prova da vida desses espaos.

Em uma perspectiva intermediria, Patrcia Ramrez Kuri (2008), a partir de pesquisas na


Cidade do Mxico, salienta que atualmente a construo do pblico nessa cidade mostra
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tendncias contrapostas: de um lado, sua diluio, fragmentao e excluso e, de outro, o


ressurgimento de novas formas de relao, comunicao e participao. Para ela, h uma
diversidade de espaos pblicos que exibem fenmenos discrepantes de sociabilidade e
conflito, modernizao e massificao, mercantilizao e informalidade, inovao, segregao
e desigualdade, assim como insegurana, violncia e medo. Conforme salienta a autora, o
espao pblico vivido pelos diferentes grupos no cumpre o seu papel assignado teoricamente
como lugar integrador e gerador de prticas democrticas, mas ele permanece como um espao
marcado por disputas e competies, que cruza sociabilidades e formas distintas de
comunicao, apresentando como pano de fundo as condies gerais da segregao urbana e da
desigualdade social da cidade.

Considerando tal problemtica, esta pesquisa buscou analisar em que aspectos ou at que ponto
o fenmeno da restrio dos espaos pblicos se aplica cidade do Salvador. O trabalho procura
contribuir para essa discusso atravs de uma anlise sobre os usos dos espaos pblicos de
Salvador e dos padres de sociabilidade urbana presentes na cidade, tomando como referncia
central as ltimas dcadas do sculo XX e as primeiras desse novo sculo.

Mais especificamente, a presente pesquisa estudou as transformaes na utilizao dos espaos


pblicos e nas relaes de sociabilidade a partir de dois perodos do desenvolvimento urbano
de Salvador. Segundo Turra Neto (2008), em cada contexto a cidade se oferece de modo
diferente para a realizao da vida de cada gerao. No caso da cidade do Salvador, a anlise
das transformaes das ltimas dcadas teve como recorte dois momentos especficos: o
perodo entre as dcadas de 1950-1970 e a fase contempornea, que vem sendo forjada neste
novo sculo. Tal recorte se baseou em alguns critrios importantes.

At a dcada de 70, quando se aprofundou o processo de metropolizao industrial em Salvador


que desencadeou a configurao de um novo centro formado ao redor do primeiro shopping
center da cidade e um crescimento urbano dentro de um padro perifrico baseado em trs
vetores bem delineados de expanso, a capital da Bahia era uma cidade menor em termos
populacionais e mais contgua em termos espaciais, pois se concentrava basicamente em torno
ao centro histrico, tendo como limites reas atualmente bem distantes das bordas da cidade
construda. Desde a dcada de 40 a cidade passava por um perodo de crescimento, mas ainda
se vivia uma fase de pr-metropolizao (VASCONCELOS, 2002).
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Nesse perodo o centro da cidade era utilizado para vrias atividades, desde residenciais e
comerciais at aquelas voltadas sociabilidade e ao lazer, como os cinemas, teatros e bares. A
insegurana no era uma questo relevante e as pessoas no tinham tanto receio em utilizar os
espaos pblicos, de modo que as praas e largos eram bastante frequentados por grupos sociais
relativamente diversos (SANTOS NETO, 2012). No entanto, com o crescimento econmico e
populacional, alm das reformas urbanas implantadas em 1968 que estimularam a construo
de um conjunto de novos empreendimentos pblicos e privados, as feies da cidade mudaram,
o que culminou com o esvaziamento do centro antigo e a criao de uma nova centralidade.
Pode-se dizer que a partir de final dos anos 70 a cidade j possua novas caractersticas,
produzidas pelo seu processo de metropolizao industrial.

A anlise dos usos dos espaos pblicos e da sociabilidade urbana em Salvador a partir dos
relatos das pessoas que vivenciaram essa cidade entre os anos 50 e 70 levou em considerao,
portanto, o fato de que esse perodo foi aquele que se despediu, por assim dizer, de um modelo
de cidade de tipo europeu (VASCONCELOS, 2002), porque o tecido urbano era mais
concentrado, voltado para o pedestre e polarizado por espaos pblicos, j que no existiam
ainda shopping centers, condomnios fechados, entre outros enclaves fortificados.

Essa remisso ao passado e a utilizao de uma metodologia que levou em considerao os


aspectos histricos foi importante para alcanar os objetivos deste trabalho, mesmo que no
tenha sido o foco central da presente tese que tem na vida da cidade contempornea seu objeto
especfico. Mas, o recorte temporal permitiu analisar as transformaes da cidade ao longo dos
anos, tomando como referncia os relatos orais dos entrevistados, a reviso da literatura e outros
dados relevantes. Dessa forma, foi possvel analisar a problemtica dos espaos pblicos como
um processo, contribuindo para as discusses acerca das suas transformaes contemporneas.

No segundo momento, foi analisada a cidade do Salvador como vem sendo construda nesse
novo sculo, a partir da experincia das pessoas que vivem essa cidade que tem sido impactada
por um conjunto de processos, conforme identificados por Carvalho e Pereira (2006, 2008 e
2014), como a ampliao dos negcios imobilirios, o crescimento da violncia e do medo, o
aumento do nmero de shopping centers, entre outros enclaves fortificados, como os
condomnios fechados, o crescimento da cidade para as bordas metropolitanas, o incio de
processos de gentrificao em reas centrais, a privatizao do carnaval e a desvalorizao,
principalmente pelas camadas mdias e altas, das festas populares, entre outros fenmenos que
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contribuem para que a experincia urbana seja diferente daquela engendrada nas dcadas
anteriores. Nesse sentido, as transformaes nos usos dos espaos pblicos da cidade e as
relaes de sociabilidade engendradas nesse novo momento se constituram como foco de
anlise deste trabalho.

A partir da triangulao de um conjunto de mtodos-fontes-tcnicas (PEREIRA, 1991),


conforme se ver mais adiante, buscou-se analisar os processos de transformao urbana
ocorridos e seus impactos sobre as prticas dos citadinos soteropolitanos e seus imaginrios
urbanos, especialmente no que se refere sociabilidade e aos uso dos espaos pblicos. Tal
objetivo foi alcanado atravs da reviso da literatura sobre o processo de desenvolvimento
urbano da cidade, do depoimento de diferentes grupos de citadinos sobre suas experincias e
da anlise de dados secundrios sobre os espaos pblicos existentes, crescimento populacional
e urbano, entre outros aspectos.

Segundo Ramrez Kuri (2008), o espao pblico o lugar onde melhor se pode compreender
as relaes estabelecidas entre as pessoas e a cidade, assim como as formas de organizao ou
desintegrao da vida comum. Por isso, para a autora, a sua anlise permite compreender as
interaes urbanas e os padres de sociabilidade, na medida em que o espao pblico
condensaria a crise da cidade e da cidadania.

No obstante, a prpria ideia de pblico adquire significados mltiplos. O conceito de


espao/esfera pblica tem uma longa tradio na filosofia e nas cincias sociais, sendo utilizado
pelos tericos muitas vezes de forma distinta. Tambm tem diferentes acepes na linguagem
corrente, sendo referido a eventos e locais abertos em contraposio queles fechados, s
opinies chamadas de pblicas ou ao prprio Estado entendido como Poder Pblico
(HABERMAS, 2003). Isto complexifica a sua utilizao, pois a ideia de pblico pode se
remeter aos espaos fsicos de uso coletivo, a determinados padres de convivncia social e sua
relao com a diversidade ou mesmo a relaes que envolvem um discurso poltico, relativas
participao e s disputas polticas.

Segundo Isaac Joseph (2002), a palavra espao pblico designa fenmenos que no so
exatamente iguais, a esfera pblica e o espao pblico urbano. De acordo com ele existem duas
tradies para se pensar os espaos pblicos, a tradio europeia, voltada para uma
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compreenso associada urbanidade e democracia, e a tradio norte-americana, ligada aos


estudos urbanos da Escola de Chicago.

A tradio europeia, fortemente influenciada pelas formulaes de Jrgen Habermas


inicialmente apresentadas em Mudana Estrutural da Esfera Pblica [1962] conforme se ver
mais detalhadamente no primeiro captulo, remete a uma esfera pblica que comeou a tomar
forma no sculo XVIII, quando a constituio de uma cultura urbana se ops aos espaos de
poder da corte e da igreja. Tal cultura se constituiu nos sales e cafs e, posteriormente, tomou
como meio os jornais e revistas, ou seja, as publicaes. O uso livre e pblico da razo,
expresso tomada de Kant por Habermas, seria a regra constitutiva desse espao pblico que se
conforma como um espao abstrato de debates. A razo livre e pblica garantia a autorregulao
dessa sociedade nascente heterognea e densa que se assentava na pressuposio de igualdade
entre os participantes da esfera pblica (HABERMAS, 2003; JOSEPH, 2002).

Essa tradio de interpretao do espao pblico, entendido como esfera ou cultura pblica, o
compreende, portanto, como um espao onde se pode expressar e confessar as coisas, lcus de
discusso e visibilidade. Um lugar de disputa, controvrsia e debate, onde a conversao est
no corao do dispositivo de civilizao. Essa sociedade, que se fundamenta na urbanidade,
possui caractersticas opostas ao modelo da sociedade monrquica, pautado na mstica e na
experincia fechada e interior (JOSEPH, 2002).

J a tradio norte-americana, segundo Joseph (2002), sai dessa compreenso abstrata do


espao de debate e desce ao nvel da rua e do espao concreto para interrogar sobre a sua
natureza, sobre sua relao com as atividades cotidianas e ordinrias. A nfase se volta ao
espao material, o que no quer dizer simplesmente espao fsico, mas um espao visual e
sonoro, cheio de agentes e objetos. No se trata de um espao de visibilidades mtuas erigidas
em torno de julgamentos, mas um espao de encontros e de deslocamentos, um lugar com
nichos e fronteiras.

Para Joseph, a abordagem americana pragmatista obriga a pensar sobre a coabitao e a


copresena de populaes diferentes, mas tambm sobre sua competio por espao e a
socializao que est em jogo no meio urbano. Na dinmica desse espao urbano a mobilidade
dos sujeitos se torna um fenmeno central, pois ela cria misturas e espaos de coabitao, ou
seja, um espao pblico. Nessa lgica a urbanidade muda de natureza e passa a supor a
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capacidade de administrar e gerenciar conflitos de classe, intertnicos e culturais, ou seja,


conflitos entre diferentes grupos sociais sobre um mesmo territrio. Esta tradio, portanto,
foca na interao entre grupos sociais nos seus usos cotidianos do espao urbano.

Thierry Paquot (2009) coloca questes semelhantes s de Joseph (2002) no que tange s
diferenas entre a esfera pblica e o espao pblico urbano. Segundo suas consideraes,
espao pblico um singular cujo plural espaos pblicos no o corresponde. O primeiro,
conforme visto, evoca o lugar do debate poltico, da confrontao de opinies, uma forma de
comunicao, de circulao de ideias e, em ltima instncia, uma prtica democrtica. A
formao no plural, por sua vez, designa locais abertos ao(s) pblico(s), de acordo com as
condies da acessibilidade e gratuidade, independentemente do seu estatuto jurdico.

Para o autor, indispensvel dar uma nfase diferena entre as expresses pois elas designam
realidades distintas e muitas vezes inconciliveis. O espao pblico no geogrfico ou
territorial enquanto os espaos pblicos so em sua maioria fsicos, localizados e delimitados
geograficamente. Os espaos pblicos colocam as pessoas em relao, ao menos
potencialmente, uma vez que nesses espaos as pessoas se cruzam, se encostam, se
cumprimentam, conversam, se conhecem ou se evitam, se ignoram, se agridem, etc. (PAQUOT,
2009, p. 7).

Apesar da diferena entre os termos, Paquot chama a ateno para o fato de que as duas
formaes tm em comum a ideia de partilha, colaborao, relao, troca e circulao. No so
fenmenos iguais e, portanto, no podem ser assimilados um ao outro, mas tambm possuem
profunda relao, o que justifica uma anlise que leve os dois fenmenos a um bom termo.

Tentando superar as dificuldades de conceituao com vistas elaborao de uma pesquisa


emprica, o presente trabalho, ao considerar contribuies de alguns autores sobre os conceitos
de esfera pblica, espao pblico e urbanidade2, tem como objeto de anlise o(s) espao(s)
pblico(s) urbano(s).

Assim, esta tese analisa o espao pblico urbano ou os usos dos espaos pblicos a partir de
quatro dimenses analticas, ainda que as trs primeiras adquiram maior centralidade neste

2
Ver Sennett (1988), Habermas (2003), Arendt (2008), Joseph (1999 e 2002), Bordreuil (2002), Paquot (2008),
Gomes (2008), Netto (2012).
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trabalho por estarem mais relacionadas aos seus objetivos. As quatro dimenses a serem
analisadas so:

a) A geografia pblica (tomada a partir do espao fsico propriamente dito, isto , os espaos
de uso coletivo disponveis na cidade) lcus de acessibilidade ampla, onde a heterogeneidade
social pode, em teoria, se expressar;

Segundo Andrade e Baptista (2013), existem pelo menos trs tipos de espaos que podem ter
um uso pblico: a) espaos urbanos programados para uso pblico destinados ao usufruto
ldico como as praas e parques; b) novos espaos de consumo de acesso pblico, os chamados
espaos semi-pblicos ou pseudo-pblicos (SALCEDO, 2002), como os shoppings centers,
parques temticos e estdios desportivos; e c) espaos informais de origem privada integrados
ao circuito metropolitano como cafs, cinemas, lojas, sedes associativas, casas-museu, que
deixam de ser apropriados somente por grupos especficos e se tornam parte do cotidiano das
cidades como lugares de visita, de estadia e de encontro (ANDRADE E BAPTISTA, 2013).

Considerando os limites de tempo e recursos, este tese analisa a geografia pblica da cidade do
Salvador a partir dos espaos programados para uso pblico, mais especificamente praas,
largos, parques e jardins, ainda que de maneira geral as discusses tangenciem o caso desses
outros tipos de espaos que podem ter usos pblicos.

b) A vitalidade e/ou vivncia dos espaos pblicos (tomada a partir da utilizao


concreta/frequncia aos espaos coletivos e do grau de diversidade social que efetivamente se
expressa nesses espaos) Avaliao sobre a utilizao dos espaos pblicos da cidade, se so
espaos de estagem (de permanncia) ou apenas de passagem (SERPA, 2003), e o perfil
dos usurios, ou seja, se esses espaos produzem encontros e contatos heterogneos.

Seguindo as consideraes de Angelo Serpa (2007 e 2008), no se pode analisar os espaos


pblicos apenas a partir da sua dimenso material ou da geografia pblica, pois relevante
tambm considerar a utilizao desses espaos e, ainda mais, o contedo das interaes
vivenciadas nesses espaos. Segundo este autor, imensa a dificuldade dos pesquisadores do
campo das cincias humanas e sociais quando se trata de relacionar as dimenses polticas e
sociais de uma esfera pblica urbana e os aspectos formais e estruturais dos espaos pblicos
concretos (SERPA, 2008, p.175). Para ele, na anlise do espao pblico urbano forma e
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contedo so indissociveis e uma discusso sobre esta temtica passa necessariamente pela
difcil articulao entre os aspectos que do concretude esfera pblica urbana e aqueles de
cunho mais abstrato, que denunciam seu carter intersubjetivo (SERPA, 2008, p.175).

Assim, como destacado anteriormente, este trabalho no se prope a analisar o espao pblico
compreendido como uma esfera pblica, tal como definiu Habermas, por considerar que se
trataria de outro objeto, melhor analisado atravs de dimenses e de uma problemtica terica
diferentes. Em geral, os estudos sobre esfera pblica no quadro da Cincia Poltica ou da
Sociologia Poltica, por exemplo, envolvem uma anlise da Poltica em torno do Estado, ou
seja, do vnculo estabelecido entre a sociedade civil e a sociedade poltica. Esta interpretao
poltico-estatal no se remete propriamente aos elementos fundamentais deste trabalho as
relaes de sociabilidade e os usos dos espaos da cidade uma vez que no mundo moderno o
Estado suplantou a dimenso da polis, criando instituies especficas de participao poltica,
como o parlamento e os sufrgios por exemplo, sem contar as organizaes da sociedade. Sabe-
se, evidentemente, que no se pode analisar os processos aqui focalizados sem a intermediao
dos fenmenos de ordem poltica, a ao do Estado, do planejamento urbano, dos grupos
polticos organizados, entre outros. No entanto, a ressalva se remete apenas ao fato de que esses
elementos, apesar da sua relevncia, no constituem o objeto central da presente tese.

Por isso, as dimenses da intersubjetividade, que escapam a uma anlise simplesmente


materiais dos espaos pblicos, esto aqui representadas atravs das prticas desenvolvidas nos
espaos pblicos, especialmente as relaes de sociabilidade, uma terceira dimenso de anlise:

c) A sociabilidade urbana produzida nos espaos pblicos (tomada a partir de uma anlise das
caractersticas e contedos das relaes sociais engendradas na geografia pblica e propiciada
pela sua vivncia) Uma anlise mais complexa da experincia social, de como as pessoas se
comportam nos espaos pblicos, e das caractersticas das relaes a desenvolvidas, das suas
prticas e significados;

A sociabilidade a expresso concreta da realizao dos espao pblicos, no sentido dos rituais
e prticas que do sentido aos seus usos, conforme compreenso de Bordreuil (2002). A
publicizao da vida um processo que envolve socializao e o pblico tanto a esfera pblica
quanto os espaos pblicos urbanos um lugar de comunicao e tambm de ao. Conforme
destacou Paquot (2009), os espaos pblicos colocam as pessoas em relao, ou seja, em
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relaes de sociabilidade. Segundo Joseph (1999, p. 22), com a sociabilidade, a esttica da


conversao e do consenso concertado [associados esfera pblica] se transfere para o sistema
da rua de modo que o espao pblico se torna um instrumento de dramatizao da
intersubjetividade prtica.

A sociabilidade como prtica realiza os ideais de civilidade e urbanidade. Para Joseph (1999,
p. 22), as palavras da sociabilidade (condescendncia, tranquilidade, tolerncia) convivem
com as do combate e da obra (beneficncia, compromisso). Essa perspectiva de anlise rompe
com uma viso contemplativa do espao urbano identificando o seu ballet interacional
(Bordreuil, 2002, p. 52). Para este autor, a publicidade ou o carter pblico de um espao no
depende somente do espao propriamente mas dos tipos de prticas que prevalecem e se
mantm nele. Trata-se, portanto, de uma dimenso de anlise que leva em conta o campo amplo
das chamadas prticas sociais, analisadas aqui a partir do conceito de sociabilidade.

De acordo com a definio clssica de Simmel (2002), sociabilidade a forma ldica da


socializao, um tipo puro de relao sem quaisquer propsitos, interesses ou objetivos alm
da interao em si mesma (SIMMEL, 2002, FRGOLI JR., 2007). Para ele, a sociabilidade no
tem contedos materiais e no espera resultados, [...] no se busca nada mais do que estar
satisfeito naquele momento (SIMMEL, 2002, p. 84, livre traduo). Nessa relao, para o
autor, so fundamentais as qualidades pessoais de amabilidade, cordialidade, cultura e
capacidade de atrao dos indivduos, mas ela se fundamenta principalmente na excluso das
dimenses pessoais da interao, tais como riqueza, posio social, erudio e fama. Trata-se
de um jogo da sociedade que se baseia no ato de participar, de modo que a satisfao do ego
participante seja compatvel com a das demais pessoas. Por isso, em sua interpretao, a
sociabilidade tem um princpio democrtico, pois est baseado num jogo de criao de
igualdade: o jogo em que se faz como se todos fossem iguais e ao mesmo tempo como se
fizessem honrarias a cada um em particular (SIMMEL, 2002, p. 90, livre traduo, grifos
originais).

Segundo Carvalho Filho e Uriarte (2014a), depois de Simmel somente na dcada de 1980
alguns antroplogos retomaram o tema da sociabilidade urbana, definindo diferentes domnios
ou situaes envolvendo as relaes dos citadinos com a cidade: as relaes domsticas, de
vizinhana, de lazer e trnsito ou as situaes ordinrias, as ocasionais, as rituais e as de
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passagem, etc. Para esses autores, que estudaram os transeuntes, apesar do seu comportamento
de reserva, suas prticas tambm se conformam como mais uma forma de sociabilidade.

Este trabalho, portanto, esteve atento para analisar os tipos de sociabilidade engendrados nos
espaos programados para uso pblico, assim como para compreender em que espaos se
desenvolvem as relaes de sociabilidade dos citadinos, quando no estiverem associadas aos
espaos pblicos. Isto significa que ele buscou evitar juzos de valor em torno da (aparente)
contradio entre vnculos e contatos, ou entre relaes que envolvem maior intersubjetividade,
uma relao classificada como propriamente poltica, pautada na comunicao, conforme
definies clssicas de Habermas (2003), ou maior distanciamento, uma atitude blas,
conforme definiu Simmel (1979). Assim como Carvalho Filho e Uriarte (2014), tambm
autores como Andrade e Baptista (2013) e Sabatini et al (2013) reconhecem a importncia
desses outros tipos de interaes, aparentemente mais superficiais3.

Sobre esse aspecto, alguns estudos buscaram refletir sobre as caractersticas da sociabilidade
erigida nos espaos pblicos. Segundo Joseph (2000), a sociabilidade que emerge do encontro
pblico no a de um ns j constitudo4. Retomando Simmel (1979), conforme se ver mais
detalhadamente no captulo 1, o autor destaca como os modos de vida urbanos so marcados
pela tenso entre distncia e proximidade, socializao e dessocializao, apego e desapego, de
modo que o universo dos encontros um universo de vnculos fracos. As associaes
construdas se caracterizam pela vulnerabilidade dos compromissos (JOSEPH, 1999, p. 36),
o que no significa uma limitao mas uma caracterstica que opera na construo das relaes
a baseadas.

3
O mero contato, apesar de no ser uma relao social mais duradoura, pode ter importantes efeitos simblicos
e sobre a forma como se compreende o outro, transformando imaginrios e ajudando a derrubar preconceitos e
esteretipos; [...] (Sabatini et al, 2013, p. 272, livre traduo)
4
Ora, de Simmel a Goffman, a linha de pensamento que incorporou a questo do estrangeiro construiu-se sobre
outra experincia: a dos vnculos fracos, a do mal-entendido e do retraimento, da inevitvel superficialidade das
trocas. [...] O que interessa tradio sociolgica que tem origem em Chicago no a sociabilidade de um ns
j constitudo. O interessante o que emerge de um encontro pblico [...] o mais sociedade, para falar como
Simmel, que se pode esperar de uma reunio feliz, pertinente. , a meu ver, o principal interesse da figura do
estrangeiro: como ele v a capacidade de determinada sociedade fazer com que o vnculo social tome consistncia;
que ele, estrangeiro, seja transportado, no cotidiano de sua experincia mundana e urbana, para o corao da
esfera pblica (JOSEPH, 2000, p. 5).
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Bordreuil (2002) se posiciona de maneira semelhante ao afirmar que o espao pblico possui
um tipo de hospitalidade paradoxal porque a sensao de acolhimento advm do fato das
pessoas no serem acolhidas como estranhas, um visitante ou turista, mas sim como um
passante. Isso traz a sensao para os citadinos de no estarem descolados. A interao nos
espaos pblicos, segundo o autor, respeita o rito da desateno polida retomando termo de
Erving Goffman - um ritual de respeito e distncia, que garante a liberdade de movimentos.
Essa a base da hospitalidade do espao pblico. Bordreuil reafirma a perspectiva de Simmel
(1979) segundo a qual a indiferena urbana garante a liberdade individual e a existncia das
diferenas.

Isso se contrape a uma ideia de sociabilidade pautada em vnculos slidos, construdos


lentamente em funo da socializao em determinados grupos e contextos. Pierre Bourdieu
(1980 e 1986), por exemplo, analisa a sociabilidade como um trabalho vinculado reproduo
do capital social - conjunto de recursos atuais ou potenciais que so ligados posse de uma rede
durvel de relaes mais ou menos institucionalizadas de conhecimento e de
interreconhecimento. A sociabilidade, para ele, uma srie contnua de trocas onde se reafirma
constantemente o reconhecimento e que exige competncias especficas e investimento de
tempo e capital econmico. Nesse caso, a sociabilidade no se coloca apenas como interaes
fugidias ou formada somente por relaes interpessoais uma vez que se relaciona s formas
associativas mais amplas, aos capitais econmico e cultural e, portanto, ao espao social.

importante considerar que, fragmentrias ou no, geradoras de vnculos ou de contatos, as


interaes sociais que do forma sociabilidade expressam e reconstroem elementos
fundamentais da formao de uma dada sociedade, as hierarquias e privilgios sociais, as
formas de apreciao da igualdade e da diferena, as prticas culturais e sociais, alm dos
elementos associados aos diversos conflitos e s formas de distino.

Com essas breves consideraes sobre a sociabilidade, esta dimenso de anlise buscou
investigar as interaes desenvolvidas nos espaos pblicos urbanos de Salvador e o tipo de
sociabilidade que engendram. Como se caracterizam as relaes desenvolvidas nos espaos
pblicos? Elas se pautam sobre um terreno de reconhecimento das igualdades ou esto presentes
formas de no-reconhecimento ligadas s posies no espao social, s classes sociais e,
portanto, aos processos de distino? Os usurios dos espaos pblicos manifestam prazer no
compartilhamento do espao e na participao em jogos de sociabilidade ou os distintos grupos
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se autossegregam, engendrando fragmentaes nos usos desses espaos, conforme descreveu


Serpa (2013)? As relaes so distantes, blas ou determinados grupos se socializam
engendrando vnculos mais duradouros?

Tendo tais preocupaes como pano de fundo, este estudo considerou que os elementos da vida
cotidiana mais adequados heuristicamente para se observar a dinmica relativa a essas questes,
levando em considerao os limites desta tese, eram aqueles dedicados ao lazer e ao ldico5 -
quando as interaes se baseiam no prazer do estar junto, nos encontros e em jogos de
sociabilidade, especialmente quando esto associados aos usos de determinados espaos - em
detrimento das atividades funcionais de trabalho, consumo, obteno de servios, etc.

Tentando responder as inquietaes acerca das relaes de sociabilidade desenvolvidas na


cidade e, especialmente, nos seus espaos pblicos, o autor buscou interrogar os citadinos sobre
as suas relaes de sociabilidade vinculadas ao ldico e ao lazer, analisando os locais onde essas
atividades se desenvolvem, as companhias mobilizadas na sua realizao, as relaes e contatos
desenvolvidos com outros grupos sociais, os conflitos e a evitao da interao com outros
sujeitos urbanos diferentes, etc. Esses indicadores no definem sociabilidade em si, uma
dimenso extremamente abstrata, mas contriburam para definir algumas caractersticas e
mesmo para identificar tipos diferentes de sociabilidades ligadas ao tempo livre. Da mesma
forma, a anlise dos usos dos espaos pblicos no se resumiu a tais atributos, uma vez que o
trabalho tambm considerou outras dimenses como a mobilidade e a circulao pela cidade,
as atividades de trabalho e consumo, entre outros elementos, ainda que de maneira tangencial.

Ainda no que tange s anlises sobre os usos dos espaos pblicos, define-se ainda uma quarta
dimenso do conceito, relativa a usos mais especficos:

d) Os espaos pblicos como palco e cena da poltica. Essa dimenso se refere ao uso da
geografia pblica da cidade para fins de mobilizao, participao e discusso poltica. Embora
este trabalho no se proponha a analisar a esfera pblica em si, ele se interessou em identificar

5
Em O Direito Cidade [1968], Henri Lefebvre discute a necessidade de realizao da sociedade urbana, que
teria como eixo uma nfase na cidade como valor de uso e como um espao de direitos. Nesse aspecto, o valor dos
encontros aparece como extremamente relevante, assim como de outros aspectos associados aos usos dos espaos
pblicos, como as trocas em sentido amplo, a sociabilidade, a comunicao, o imprevisvel, alm das dimenses
relativas ao prazer e ao ldico (LEFEBVRE, 2008a).
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como os espaos da cidade so utilizados para fins polticos, particularmente atravs de uma
anlise das manifestaes realizadas nas ruas da cidade de Salvador.

Segundo David Harvey (2014), resgatando a perspectiva de Lefebvre sobre o Direito Cidade,
o espao urbano, e mais especificamente suas centralidades, o lcus de reunio para a
articulao de queixas e exigncias coletivas. Para ele, o urbano a fonte dos movimentos e,
ao mesmo tempo, seu lugar de expresso e reivindicao. Nesse sentido, importante analisar
se e como a cidade se expressa como palco e cena de movimentos polticos.

claro que estas quatro dimenses se influenciam e s fazem sentido articuladas entre si, de
modo que esse recorte teve ao longo do trabalho uma funo analtico-comparativa, buscando
guiar o desenvolvimento da pesquisa emprica, a elaborao dos instrumentos de pesquisa, as
observaes, as anlises e a composio final do texto.

Em termos terico-metodolgicos, as quatro dimenses do espao pblico foram analisadas


levando em considerao dois elementos centrais da vida social, os constructos simblicos,
analisados aqui atravs da noo de imaginrio urbano, e as prticas, num sentido de ao, ou
melhor, interao e comportamento.

Segundo Hiernaux (2007), imaginrio a capacidade de simbolizao humana que, sobre uma
base de representaes sociais, engendra imagens mentais, traduz uma realidade material e/ou
consolida uma concepo. Nesse processo a imaginao joga um papel relevante, pois contribui
para que a representao sofra uma transformao simblica. Para o autor, o espao urbano,
pelos estmulos mentais que proporciona, tem um papel importante na ativao da capacidade
de imaginao, criando uma cidade imaginada, a viso de cidade que impregna a mente dos
seus habitantes. Dessa forma, mostrou-se relevante, desde o planejamento do trabalho, estudar
os imaginrios existentes sobre os espaos da cidade, seus atores, processos e conflitos.

No obstante, o estudo dos imaginrios urbanos no suficiente para compreender a


problemtica aqui colocada. Ainda segundo Hiernaux (2007), mesmo que o imaginrio urbano
produza um dilogo com o mundo vivido, material e concreto, ele no o expressa
objetivamente, uma vez que a realidade percebida e reconstruda simbolicamente. Por isto,
este trabalho buscou analisar outros elementos, especialmente as prticas sociais e os
comportamentos dos citadinos soteropolitanos. Analisam-se aqui prticas sociais em conjuno
P g i n a | 32

ao conceito de habitus de Bourdieu (1996 e 2000), sistemas de disposies durveis adquiridas


e incorporadas pelos agentes sociais, que possuem um princpio gerador, criativo e estruturador
das prticas, mas que se remetem s caractersticas e disputas presentes no espao social. Assim,
este trabalho se esforou para analisar as prticas os padres de sociabilidade e os usos dos
espaos pblicos a partir do seu vnculo com a estrutura social, remetendo-as a classes e
estratos de classe, mas tambm a partir de sua dimenso menos estruturada, mais livre,
contextualizada e fortuita por assim dizer.

Uma anlise das prticas permite superar algumas limitaes da perspectiva dos imaginrios
urbanos: propicia uma anlise dos comportamentos, para alm dos discursos e elementos
simblicos, e cria a possibilidade de desenvolver vnculos mais concretos com dimenses mais
estruturais da realidade e com o espao social.

A partir desse arcabouo terico-metodolgico foi possvel desenvolver um caminho para


analisar as transformaes nos usos dos espaos pblicos de Salvador e das relaes de
sociabilidade urbana desenvolvidas nas ltimas dcadas, de modo a discutir as teses que
apontam para a dissoluo do espao pblico tradicional, debatendo sua validade e aplicao
emprica.

Nesse sentido, questiona-se:

Por quais transformaes vem passando a cidade do Salvador desde as ltimas dcadas do
sculo XX e que impactos elas causaram nos usos dos espaos pblicos e na sociabilidade
urbana?

Teria havido em Salvador uma restrio dos espaos pblicos e da sociabilidade pautada na
heterogeneidade, ampliando os processos de segregao?

Teria havido, ao contrrio, uma ampliao do acesso de determinados grupos a espaos antes
restritos, ampliando ainda que forosamente os encontros entre distintos grupos sociais?

Ou, ainda, as mudanas que ocorreram nos ltimos anos no teriam produzido maiores
impactos sobre os padres de sociabilidade e sobre o uso e significado dos referidos espaos,
P g i n a | 33

pois, em uma cidade marcada por desigualdades histricas, a segregao e o classismo sempre
foram marcas de seu desenvolvimento urbano?

Considerando essas questes, a hiptese inicial da pesquisa sustentava a ideia de que em


Salvador, em funo de um processo de desenvolvimento marcado por desigualdades,
segregao e diversas formas de preconceito baseados na cultura poltica autoritria e
hierrquica da sociedade brasileira, sempre houve limitaes ao viver juntos de modo que os
usos dos espaos pblicos e a sociabilidade vinculada a eles nunca se aproximaram daqueles
que teriam existido (de acordo com a literatura) no contexto das cidades europeias.

A despeito dessa constatao, as transformaes das ltimas dcadas teriam, supunha a


hiptese, aprofundado as caractersticas desses processos que hoje ganhariam novas formas,
atravs da proliferao de enclaves fortificados, do esvaziamento das festas populares, da
privatizao do carnaval, e do crescimento da violncia que contribuiriam para o abandono dos
espaos da geografia pblica e para a configurao de um modelo de sociabilidade pautada no
medo, na evitao e em diversas formas de preconceitos.

Dimenses metodolgicas e estratgias de pesquisa

Ao se observar o objetivo desta pesquisa mais atentamente, percebe-se evidentemente que ele
articula duas preocupaes, uma de carter mais terico e uma segunda mais emprica.
Reconhecendo a importncia da teoria e dos paradigmas dos estudos urbanos sobre as recentes
transformaes nas grandes cidades e as caractersticas da vida pblica contempornea, este
trabalho se conforma a princpio em um nvel hipottico-dedutivo, pois pretende analisar uma
realidade emprica testando uma hiptese analtica mais geral, construda a partir de uma
articulao terica (KUHN, 2000, BOURDIEU, CHAMBOREDON, PASSERON, 2007;
QUIVY; CAMPENHOUDT, 2008). No entanto, pretende-se construir uma relao dialtica
entre teoria e empiria, pois o campo ilumina, rejeita e/ou atualiza as hipteses de pesquisa da
mesma forma que a teoria condio indispensvel para que o objeto seja conquistado,
construdo e constatado (BOURDIEU, CHAMBOREDON, PASSERON, 2007). Voltando a
uma perspectiva metodolgica clssica, importante que os conceitos sejam categorias de ser,
isto , que se remetam a determinadas realidades empricas, o que no significa que a
concretude da realidade se expresse mecanicamente nos conceitos mentalmente construdos,
da a necessidade de processos metodolgicos que envolvam construes tericas (MARX,
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1978). o que sintetiza Lefebvre (2008b) ao descrever os procedimentos do seu trabalho em A


Revoluo Urbana:
Trata-se de uma hiptese terica que o pensamento cientfico tem o direito de
formular e de tomar como ponto de partida. Tal procedimento no s corrente nas
cincias, como necessrio. No h cincia sem hipteses tericas. Destaquemos
desde logo que nossa hiptese, que concerne s cincias ditas sociais, est vinculada
a uma concepo epistemolgica e metodolgica. O conhecimento no
necessariamente cpia ou reflexo, simulacro ou simulao, de um objeto j real. Em
contrapartida, ele no constri necessariamente seu objeto em nome de uma teoria
prvia do conhecimento, de uma teoria do objeto ou de modelos. Para ns, aqui, o
objeto se inclui na hiptese, ao mesmo tempo em que a hiptese refere-se ao objeto.
(LEFEBVRE, 2008b, p. 14)

Em uma separao meramente procedimental, portanto, possvel dizer que o objeto terico
deste trabalho aponta para o estudo da relevncia dos espaos pblicos urbanos nas grandes
cidades frente a processos de privatizao e segregao. Em termos empricos, o trabalho busca
estudar tal temtica atravs de uma pesquisa em Salvador, centrando sua discusso nos aspectos
contemporneas desta cidade, recorrendo a sua trajetria histrica como um caminho para
analisar as caractersticas da apropriao dos espaos pblicos.

Buscando garantir certa comparabilidade nos relatos sobre as transformaes urbanas ocorridas
no perodo histrico estudado, este trabalho buscou entrevistar moradores de diversas geraes
que vivenciaram os referidos contextos, entre as dcadas de 1950 e 1970, e o presente momento.
Em geral, foram entrevistados jovens ou pessoas que, nos seus relatos, se referiram a sua a este
perodo de sua vida, ainda que o foco do trabalho no tenha se concentrado nos aspectos ligados
a essa dimenso em especfico. No entanto, partiu-se da ideia de que o grupo social considerado
como jovem est entre aqueles que mais utilizam os espaos da cidade, pelas prprias
caractersticas socioculturais vinculadas juventude, tais como liberdade, experimentao,
crescimento, etc.

Considerando as caractersticas do presente trabalho, foi fundamental desenvolver uma


metodologia que englobasse uma triangulao entre diferentes mtodos-fontes-tcnicas
(PEREIRA, 1991). Nesse aspecto, conforme dito anteriormente, parte dos objetivos e das
dimenses analticas desse trabalho foi estudada atravs de entrevistas qualitativas baseadas em
relatos orais. Segundo Pereira (1991), os relatos orais estudam a realidade social luz dos
depoimentos das pessoas que participaram ou testemunharam os processos analisados. Esse
mtodo-fonte-tcnica tem um conjunto de vantagens, como a incluso da subjetividade da vida
social na anlise, a possibilidade de estudar processos, mobilidades e tempos histricos. Tem
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ainda grande utilidade no registro do que ainda no foi cristalizado em documentos escritos ou
mesmo por sua capacidade de analisar dimenses sutis da realidade como os imaginrios sociais
e a sociabilidade.

Os relatos orais, mesmo que individuais, foram utilizados neste trabalho como um caminho
para se analisar dimenses coletivas. Atravs da comparao de relatos, da identificao das
recorrncias, das interpretaes e constrangimentos comuns, ou seja, da lgica social subjacente
s prticas e interpretaes descritas, foi possvel alcanar estruturas e processos objetivos,
depreendendo o comum do individual, o geral do particular (PEREIRA, 1991). Da mesma
forma, este trabalho esteve atento ao risco de reificar as narrativas tratando os discursos como
fatos. Para incorporar contrapontos parcialidade dos relatos orais, o trabalho incorporou
tambm um conjunto de outros mtodos-tcnicas-fontes, como a reviso da literatura histrica
sobre a cidade de Salvador, anlise de documentos, observao direta e participante nos
principais espaos pblicos da cidade, pesquisas em arquivos de jornais e entrevistas com
informantes qualificados, pesquisadores, historiadores entre outros atores-chave.

Mais especificamente, a estratgia de pesquisa levada a cabo envolveu algumas etapas e


procedimentos:

Etapa I: Pesquisa bibliogrfica sobre as transformaes na vida urbana das grandes cidades,
espao pblico e sociabilidade urbana6.

Esta etapa teve como objetivo geral construir a problemtica que orienta esta tese, ou seja, as
perguntas de pesquisa, a hiptese de trabalho, assim como a abordagem emprica proposta. Em
geral, ela se pautou na anlise dos seguintes eixos temticos:

a) Caractersticas da vida pblica nas cidades modernas, segregao e formas de sociabilidade;


b) Caractersticas do processo de urbanizao e da vida pblica construda nos contextos
urbanos perifricos, como no Brasil;

6
Esta etapa contou com um perodo de seis meses de estgio de doutorado no Instituto de Estudios Urbanos y
Territoriales (IEUT) da Pontificia Universidad Catlica de Chile. O IEUT uma referncia nos estudos
interdisciplinares sobre a questo urbana, especialmente na Amrica Latina, sendo responsvel desde a dcada de
1970 pela publicao da Revista EURE Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos y Regionales. Durante
este perodo, alm de aprofundar a reviso da literatura, buscou-se fazer tambm um exerccio analtico sobre os
usos dos espaos pblicos e sobre a sociabilidade urbana em Santiago do Chile, atravs de observaes diretas e
participantes dos espaos pblicos e conversas informais com citadinos e informantes qualificados.
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c) Transformaes contemporneas na vida pblica e debate das teses sobre o declnio do


homem pblico.

Etapa II: Pesquisa de campo sobre a cidade do Salvador

Esta etapa da pesquisa visou aprofundar os conhecimentos sobre a cidade do Salvador e se


baseou em alguns procedimentos:
a) Reviso da literatura sobre Salvador;

Inicialmente foram revisados diversos trabalhos sobre as transformaes contemporneas nessa


cidade, assim como trabalhos que versavam sobre outros perodos histricos, seja atravs de
pesquisas ou de relatos de memrias. Alm disso, foram consultados materiais sobre a dinmica
de determinados espaos da cidade. Buscou-se revisar trabalhos de autores importantes que
vm refletindo h algum tempo sobre a cidade do Salvador e sua dinmica urbana.

b) Realizao de entrevistas com informantes qualificados;

Considerando as entrevistas com informantes qualificados realizadas para outro trabalho


(ARANTES, 2011), que embora tivesse um foco diferente tambm versaram sobre a vida na
cidade e apresentaram resultados interessantes para os objetivos desta tese tambm, foram
realizadas sete entrevistas aprofundadas com moradores da cidade, especialmente de pessoas
que vivenciaram a cidade dos anos de 1950 a 1970. Para este trabalho, em termos especficos,
foram feitas duas entrevistas com moradores considerados informantes qualificados. Alm
disso, foi realizada tambm uma entrevista com a Coordenadora de implantao e preservao
de reas verdes e unidades de conservao, da Diretoria de Parques e Jardins, da Secretaria
Cidade Sustentvel de Salvador, na condio de responsvel pela gesto dos espaos
programados para uso pblico na cidade. Nessa entrevista, buscou-se informaes sobre as
reas pblicas da cidade, suas caractersticas, localizaes, disponibilidade, etc.

c) Coleta de dados secundrios e elaborao de mapas;

Foram coletados dados secundrios sobre aspectos considerados relevantes, como a evoluo
populacional, o crescimento urbano, a expanso da violncia, entre outras dimenses.
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A anlise da geografia pblica da cidade tambm foi realizada atravs da coleta de dados
secundrios. A despeito das dificuldades nessa coleta, conseguiu-se levantar o nmero de
praas, largos, parques e jardins de Salvador, assim como os espaos oferecidos pela Prefeitura
Municipal para adoo dentro do Programa Verde Perto, parceria pblico-privada para
manuteno de reas pblicas em Salvador, assim as reas efetivamente adotadas e seus
adotantes7.

Considerando a relevncia dos shoppings centers nas cidades contemporneas, tambm buscou-
se mape-los em Salvador. Diante da negativa da SUCOM em disponibilizar os
empreendimentos licenciados como shopping centers e centros comerciais, foi realizado um
levantamento dos empreendimentos existentes na cidade atravs do cruzamento de informaes
disponveis em listas telefnicas online (Lista Online e Tele Lista) e em programas de
mapeamento disponveis na internet. A existncia dos empreendimentos encontrados foi
confirmada atravs da utilizao de fotos de satlite, a partir do aplicativo Google Earth. Alm
disso, para os shopping centers de maior relevncia, foi consultado o banco de dados da
ABRASCE Associao Brasileira de Shopping Centers.

Alm desses dados, foram coletadas informaes sobre as manifestaes de rua ocorridas na
cidade nos anos de 2013 e 2014, atravs de pesquisas no arquivo do Jornal A Tarde. A pesquisa
buscou fazer um inventrio de todas as manifestaes ocorridas nos espaos pblicos da cidade
(ruas, praas, largos, etc.), identificando os grupos responsveis pela sua organizao, os seus
motivos e mtodos utilizados (protestos, fechamento de ruas e piquetes, etc.).

Todos os dados sobre a geografia pblica da cidade, assim como sobre as manifestaes de rua,
foram georreferenciados e apresentados em mapas.

7
Os dados sobre os espaos pblicos disponveis em Salvador foram buscados na Fundao Mrio Leal Ferreira
(FMLF), na SECIS - Secretaria Cidade Sustentvel, assim como na Diretoria de Parques e Jardins, e na SUCOM
Secretaria Municipal de Urbanismo. Mesmo diante das negativas da SECIS e da SUCOM em disponibilizar os
dados, ainda que tenham sido feitas diversas tentativas, como o envio de ofcios recebidos, mas no respondidos
-, foi possvel obter os dados sobre Praas e Largos de Salvador atravs de um inventrio realizado pela FMLF em
2005, este disponibilizado por um funcionrio, e dos nomes dos logradouros conforme disponvel nos arquivos em
cd room da Lei Orgnica de Ordenamento e Uso do Solo de 2012. Os demais dados foram conseguidos atravs de
consultas ao site do Programa Verde Perto, que lamentavelmente no est atualizado, assim como levantamento
de campo e consulta a referncias tericas, como as publicaes da prpria SECIS, assim como os relatrios de
gesto da Prefeitura nos anos de 2006, 2007, 2009 e 2014, disponveis na biblioteca da FMLF. Os demais relatrios
no foram encontrados pois no estavam disponveis nem no Arquivo Municipal, situado na Fundao Gregrio
de Mattos.
P g i n a | 38

d) Observao direta e participante nos espaos programados para uso pblico da cidade8;

O trabalho tambm envolveu a observao da utilizao das praas, parques, largos e jardins de
Salvador de modo a caracterizar a sua vitalidade/vivncia, assim como para identificar o perfil
dos frequentadores e os tipos de interaes que a se desenvolvem. Alm da observao,
conversas informais foram realizadas com funcionrios, vendedores e frequentadores desses
espaos.

Tais observaes se centraram em espaos referenciais da cidade do Salvador e se basearam


num esforo de garantir certa representatividade qualitativa das reas da cidade, levando em
considerao a diviso esquemtica definida por Carvalho e Pereira (2008), apresentada no
Quadro I. Os espaos observados representam dinmicas tanto do centro da cidade, da Cidade
Tradicional, como dos principais vetores de expanso, a Orla Atlntica Norte, a rea
moderna, e o Subrbio Ferrovirio e o Miolo, as reas mais precrias, onde se tem uma
disponibilidade menor desses espaos conforme se ver ao longo do trabalho.

Quadro I Espaos programados para uso pblico visitados


Largo do Campo Grande Campo Grande
Dique do Toror - Toror
Terreiro de Jesus - Pelourinho
Cidade Tradicional Largo da Ribeira - Ribeira
Largo da Madragoa Pennsula de Itapagipe
Praa da Inglaterra e Praa Marechal Deodoro - Comrcio
Largo da Cruz da Redeno Brotas
Praa Ana Lcia Magalhes - Pituba
Jardim dos Namorados Pituba
Farol da Barra - Barra
Cidade Moderna Canteiro da Avenida Centenrio - Barra
Parques da Cidade Itaigra
Parque de Pituau - Patamares
Parque das Lagoas e Dunas do Abaet Itapu
Parque So Bartolomeu - Plataforma
Praa da Repblica - Tancredo Neves
Cidade Precria Praa da Mangabeira - Cajazeiras 8,
Praa de So Marcos
Praa de San Martin.

8
Pelos limites do trabalho, as observaes foram concentradas nesses espaos. Os relatos dos entrevistados, no
entanto, versaram sobre muitos outros, como praias, shopping centers, espaos de festa, etc.
P g i n a | 39

e) Entrevistas com diferentes moradores da cidade.

Foram realizadas ainda entrevistas semiestruturadas com moradores de Salvador de modo a


colher suas experincias sobre a cidade. O instrumento de pesquisa se dividiu em alguns eixos
como o perfil socioeconmico, a relao geral com a cidade, as atividades de lazer, espaos
frequentados e pessoas com quem geralmente se encontra no tempo livre, pontos de encontro,
conflitos e evitaes de espaos e as impresses dos entrevistados sobre a vida pblica da
cidade.

Foram realizadas 10 entrevistas aprofundadas com pessoas que viveram a cidade dos anos 50,
60 e 70, e 20 com jovens que vivenciam a cidade contempornea. Trata-se de uma seleo
qualitativa intencional, no-probabilstica, obtida atravs da tcnica da bola de neve e que
cresceu at alcanar certo nvel de saturao. Por ser qualitativa, tal amostra no permite
inferncias estatsticas, mas, dado inclusive o nvel de saturao, ela disponibilizou informaes
fecundas, o que permitiu identificar tendncias e caractersticas dos usos dos espaos pblicos
de Salvador e sua sociabilidade urbana. De modo a garantir a maior riqueza dessa amostra
em termos de experincia de vida na cidade, o trabalho buscou entrevistar pessoas diversas em
termos de suas caractersticas sociais, principalmente no que concerne dimenso de classe,
escolaridade e local de moradia.

Assim, os entrevistados foram escolhidos em funo de alguns atributos sociais relevantes:


foram ouvidas pessoas de gnero masculino e feminino, moradores de bairros perifricos,
modernos e tradicionais, com renda familiar inferior a dois salrios e de at mais que vinte
salrios mnimos, negros, pardos e brancos e com perfil de escolaridade que variou entre nvel
fundamental e superior incompleto, entre os entrevistados mais jovens, e fundamental
incompleto a ps-graduao, entre aqueles da gerao mais velha.

As entrevistas foram transcritas e analisadas atravs da tcnica de codificao, criando


categorias e conceitos abstratos obtidos pelo agrupamento de ideias, eventos, acontecimentos,
aes e interaes (STRAUSS; CORBIN, 2008, p. 104). Para tanto, foi utilizado como apoio o
software de anlise qualitativa Atlas TI, que mediou a construo de categorias dedutivas,
derivadas das discusses tericas e pressupostas na construo do instrumento, e indutivas,
provenientes e captadas das experincias dos entrevistados.
P g i n a | 40

A estrutura da tese

A tese est estruturada em cinco captulos, para alm desta introduo e das consideraes
finais. Nesta parte inicial, foi apresentado o tema, justificando sua escolha atravs da
problemtica de pesquisa, e os conceitos terico-metodolgicos centrais do trabalho, assim
como suas questes, hiptese, metodologia e procedimentos de pesquisa.

O Captulo 1, intitulado de Pblico e Espao Pblico na Cidade Capitalista: da cidade que


liberta ao declnio do homem pblico?, discute as caractersticas das cidades modernas durante
o surgimento e consolidao do capitalismo, seus padres de sociabilidade, o uso dos espaos
pblicos e suas formas de segregao scio-espacial. Apresenta a interpretao de diversos
autores que enxergaram estas cidades como espaos da liberdade, discutindo o que alguns deles
chamaram de esfera pblica ou cultura pblica burguesa. Posteriormente, analisa tambm as
transformaes urbanas contemporneas, discutindo seus impactos sobre o espao pblico,
apresentando e debatendo as teses sobre o seu fim da vida pblica nas cidades atuais.

O Captulo 2, intitulado de Espao Pblico e Segregao: especificidades da urbanizao


capitalista perifrica, desloca o olhar aos pases da periferia do sistema, especialmente para o
contexto latino-americano, notadamente o brasileiro, para discutir as contradies e
desigualdades do seu processo de urbanizao, assim como as caractersticas do espao pblico
desenvolvido nesses contextos. Apresenta tambm os impactos das transformaes mais
recentes sobre essas cidades, a proliferao de enclaves fortificados, a ampliao da violncia,
o crescimento do medo e do abandono dos espaos pblicos, discutindo as caractersticas do
espao pblico contemporneo nessas cidades.

O Captulo 3, intitulado de Segregao e Usos dos Espaos Pblicos em Salvador: da cidade


tradicional ao processo de metropolizao industrial, apresenta o histrico da formao urbana
em Salvador, destacando as dimenses dos espaos pblicos e dos padres de sociabilidade.
Ele discute as transformaes urbanas no sculo XX, especialmente as caractersticas dos usos
dos espaos pblicos da cidade entre os anos de 1950 e 1970. Posteriormente, analisa os
processos de transformao urbana engendrados pela metropolizao industrial, o crescimento
perifrico, a ampliao da populao e da escala da cidade, assim como o surgimento do
primeiro shopping center e o progressivo crescimento da violncia e da segregao scio-
espacial.
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O Captulo 4, intitulado Transformaes contemporneas, abandono dos espaos pblicos e


privatizao urbana discute as condies atuais da cidade. Inicialmente, apresenta os processos
de abandono e evitao dos espaos pblicos de Salvador levados a cabo por diversos grupos
sociais (em especial as camadas mdias e altas) e por motivos como medo, desinteresse e
preferncia pela convivncia com pessoas do mesmo grupo social. Posteriormente discute as
tendncias atuais de privatizao urbana da habitao, dos servios e do lazer que se
desenvolvem principalmente nos condomnios fechados, shopping centers e outros espaos
privados, construindo uma antinomia frente aos espaos pblicos da cidade.

O captulo 5, intitulado Usos dos espaos pblicos e sociabilidade urbana em Salvador: atores,
processos e limites, comea caracterizando a disponibilidade de espaos programados para uso
pblico em Salvador. Em seguida, busca analisar os usos desses espaos na cidade, incluindo
a tambm as praias e os usos festivos, rituais e polticos, descrevendo os perfis dos usurios,
as formas de encontros e as relaes de sociabilidade construdas. Enfatiza, dessa forma, as
caractersticas mais gerais dos usos dos espaos pblico existentes frente ao contexto de seu
abandono e da competio da geografia privada, destacando o usos que sobrevivem, os diversos
atores existentes, assim como suas prticas e formas de interao, mas tambm os limites e
contradies desses processos.

Finalmente, as consideraes finais, intituladas de Espao(s) pblico(s) que sobrevivem;


desiguais, segregados e fragmentados, apresentam as concluses da pesquisa no que tange aos
usos dos espaos pblicos na Salvador contempornea, discutindo a validade das hipteses
colocadas pela literatura e as caractersticas mais amplas desses processos nesta cidade.
P g i n a | 42

CAPTULO 1

PBLICO E ESPAO PBLICO NA CIDADE CAPITALISTA:


DA CIDADE QUE LIBERTA AO DECLNIO DO HOMEM
PBLICO?
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Conforme visto ao longo da Introduo, desde meados do sculo XX um conjunto de


publicaes vem discutindo as caractersticas e as dimenses da vida pblica na modernidade.
Trs grandes obras se tornaram fundamentais nessa discusso, A Condio Humana [1958]9 de
Hannah Arendt, Mudana Estrutural da Esfera Pblica [1962] de Jrgen Habermas e O
Declnio do Homem Pblico [1974] de Richard Sennett. Em todas elas, de maneira mais ou
menos direta, a condio urbana aparece como um fenmeno atrelado dimenso pblica da
vida social, de modo que a cidade aparece como um lugar onde, em algum perodo histrico,
na antiguidade ou nos primeiros sculos da modernidade, se constituiu determinada esfera ou
cultura pblica. Essa compreenso se associa a de outros autores que, tendo escrito
anteriormente sobre as cidades modernas como Max Weber [1921] e Louis Wirth [1938],
identificaram caractersticas que foram apropriadas pelos debates sobre o pblico e o espao
pblico.

Tais discusses sobre a vida pblica das cidades se aprofundam com as transformaes
ocorridas na passagem para o sculo XXI. Ainda que relativamente recentes duas obras j se
tornaram clssicas sobre essas questes, Cidade de Quartzo [1991] de Mike Davis e Cidade
de Muros [2000] de Tereza Caldeira. Alm delas, outros tantos trabalhos vm debatendo essas
questes (DUHAU, 2001, MONGIN, 2009, NETTO, 2012). Em conjunto, eles apontam para o
desaparecimento ou restrio do espao pblico clssico. Tal literatura tem afirmado que uma
das caractersticas fundamentais das cidades contemporneas o seu processo de privatizao
e segregao, o que impacta diretamente sobre vida pblica e o uso dos espaos pblicos.

Muitas vezes os trabalhos contemporneos se apoiam na ideia de que a cidade moderna em seus
primrdios se configurou como o lcus por excelncia da constituio do espao pblico pois
se baseava na vivncia da heterogeneidade e da diversidade urbana. Por isso, a cidade
associada ao surgimento do cosmopolitismo, da civilidade, da tolerncia s diferenas e de
ideias importantes como as de urbanidade e civitas, cidadania e at de democracia, elementos
associados aos ideais modernos sobre a Res Pblica (DUHAU, 2001, MONT-MR, 2006,
GOMES, 2008, MONGIN, 2009, NETTO, 2012). Reconhecendo essas caractersticas como

9
Quando usados, os colchetes apresentam os anos da publicao original das obras consideradas clssicas.
Enquanto isso, os parntesis apresentam a publicao consultada. Esse recurso ser utilizado sempre que parecer
relevante informar ao leitor o perodo de surgimento de certas ideias.
P g i n a | 44

tpicas da cidade moderna, a literatura contempornea, em geral, identificam tendncias


conflitantes e opostas nas dimenses da vida urbana atual.

Considerando essas questes, o presente captulo busca apresent-las brevemente dando uma
nfase s transformaes sofridas pelas cidades modernas desde o perodo em que a literatura
aponta ter se desenvolvido uma esfera pblica alcanando as transformaes contemporneas
que subsidiam as interpretaes sobre o fim do espao pblico10.

1.1 A cidade que liberta emergncia da esfera pblica e sociabilidade urbana

A cidade moderna emerge da cidade comercial, artesanal e bancria caracterstica do mundo


medieval. Antes mesmo da industrializao processo que impulsionou o seu crescimento , a
cidade j era uma poderosa realidade, centro da vida social e poltica. Suporte das comunidades
e da libertao dos camponeses, como diz o conhecido ditado medieval alemo os ares da
cidade libertam; elas representavam uma obra humana, uma festa, ou seja, um espao de
sociabilidade (LEFEBVRE, 2008a). Nesse contexto,

A prpria cidade uma obra, e esta caracterstica contrasta com a orientao


irreversvel na direo do dinheiro, na direo do comrcio, na direo das trocas, na
direo dos produtos. Com efeito, a obra valor de uso e o produto valor de troca.
O uso principal da cidade, isto , das ruas e das praas, dos edifcios e dos
monumentos, a Festa (que consome improdutivamente, sem nenhuma outra
vantagem alm do prazer e do prestgio, enormes riquezas em objetos e dinheiro).
(LEFEBVREa, 2008a, p. 12)

Para o referido autor, este sistema urbano, que existiu na Europa ocidental at o sculo XVI,
ainda era relativamente fechado e conservava um carter orgnico de comunidade, um certo
tom corporativo que se baseada em assembleias gerais ou parciais. Isso no anulava a existncia
de lutas de classes e de conflitos, mas tambm no impedia o apego dos distintos grupos
cidade e o sentimento de pertencimento a ela.

10
Este captulo no se prope a fazer uma historiografia da literatura, organizando os autores pelos contextos da
publicao ou partindo das contribuies clssicas para depois alcanar as contemporneas. Compreendendo que
os diversos autores, clssicos ou contemporneos, escrevem sobre distintos perodos, relativos ao presente ou ao
passado, a organizao do captulo tem uma lgica temtica, relativa a determinados perodos do desenvolvimento
urbano. Na maior parte das vezes interessa mais compreender os contextos histricos sobre os quais os autores
escreveram do que aqueles em que estavam inseridos. Por isso, algumas vezes autores contemporneos aparecem
antes de autores clssicos, sejam porque se remetem ao perodo histrico de interesse seja porque sua contribuio
tem um papel importante na introduo e contextualizao do tema. O objetivo geral do captulo apresentar a
discusso que subsidiou a construo da problemtica geral da tese.
P g i n a | 45

Segundo Max Weber [1921], a cidade se conforma como uma centralidade que pode ser
definida de acordo com diversos atributos; a cidade econmica, espao do mercado e das trocas,
formada pelos produtores, consumidores ou comerciantes e a cidade poltico-administrativa,
uma categoria especial de fortaleza e guarnio. No entanto, nem todas essas categorias de
cidade constituem uma comunidade urbana, fenmeno extenso existente unicamente no
ocidente moderno. A comunidade urbana surge apenas em centralidades econmicas que
agregam os seguintes elementos: a) fortaleza; b) mercado; c) tribunal prprio e direito ao menos
parcialmente prprio; d) carter de associao e, unido a isso; e) uma autonomia relativa e uma
administrao escolhida em alguma medida pela participao (WEBER, 1979, p. 82). Nesta
nfase da experincia poltica, Weber define a comunidade urbana a partir da associao entre
seus membros e sua participao na vida pblica.

A cidade, portanto, definida pelo autor atravs da sua organizao do poder e, por isso,
apresentada dentro da sua sociologia da dominao (FREITAG, 2010). Curiosamente, Weber
apresenta a sua tipologia das cidades em um subtpico caracterizado como dominao no
legtima. A cidade moderna subverte a economia do poder ao retir-lo exclusivamente dos
seus detentores oficiais (senhores feudais) trasladando-o para as confrarias e grupos associados
que se comprometem a defender os interesses coletivos, mas que tambm se vinculam s novas
foras econmicas vigentes (FREITAG, 2010).

Estas associaes autnomas e livres de concidados (guildas e corporaes) que exercem tal
dominao ilegtima regulam a propriedade do solo, instauram um sistema de impostos,
organizam a defesa, incentivam os processos de produo e comercializao e elaboram suas
prprias leis que regulam a vida econmica, poltica, social e cultural. A nova cidade ocidental
supera a cidade medieval por ser ao mesmo tempo a sede econmica do comrcio, da
manufatura, fortaleza poltica e sede da jurisprudncia. o ncleo que permite sediar o novo
modo de produo capitalista.

na cidade que se ascende da falta de liberdade a liberdade. Da a expresso usada


por Simmel e Weber, de que o ar da cidade libera (Stadtluft macht frei!). Essa
combinatria constitui sua singularidade e especificidade. As diferenas estamentais
ditadas pela hereditariedade e baseadas na grande propriedade rural (feudal) so
superadas pela fora do dinheiro (FREITAG, 2010, p. 27).

Este tipo de dominao s foi possvel graas ao que Jrgen Habermas [1962] chamou de
gnese da esfera pblica burguesa, ou seja, em funo do surgimento de uma ampla rede
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horizontal de dependncias econmicas que no se deixavam mais ordenar pelas relaes


verticais do sistema feudal. A cidade se converteu no centro vital da sociedade burguesa, palco
de conversaes sociais e crticas polticas. Segundo o autor, neste perodo a poltica medieval
concentrada exclusivamente na corte do prncipe perde fora e tem origem um movimento de
separao do Estado da sociedade, com a institucionalizao daquele ente atravs da criao da
burocracia, do Direito Pblico, do exrcito, dentre outras instituies, culminando com uma
separao liberal entre a esfera pblica e a esfera privada11. A esfera do Poder pblico se
constitui e tem funcionamento regular na forma de aparelho (HABERMAS, 2003). Nesse
contexto, surge a sociedade civil burguesa como contrapeso a esta autoridade, que se afirmava
na poltica mercantilista principalmente atravs dos impostos:

A esfera pblica burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas
privadas reunidas em um pblico; elas reivindicam esta esfera regulamentada pela
autoridade, mas diretamente contra a autoridade, a fim de discutir com ela as leis
gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as
leis de intercmbio de mercadorias e do trabalho social (HABERMAS, 2003, p. 42).

Na esfera pblica burguesa, as atividades e relaes de dependncia saem do limiar do mundo


privado tradicional, a vida domstica, se configurando num espao intermedirio entre esse
terreno e a esfera propriamente pblica do Estado. Para Habermas, no pleno desenvolvimento
dessa esfera, por volta do sculo XVIII, o pblico burgus se configura como aquele frum
para onde se dirigiam as pessoas privadas a fim de obrigar o poder pblico a se legitimar perante
a opinio pblica (HABERMAS, 2003, p. 40). Surge da esfera pblica burguesa a exigncia
de criao de leis genricas que afirmem a prpria opinio pblica como sua fonte.

Os papis privados (de donos de mercadorias e chefes de famlia), assim como ocorrera na
Grcia Antiga, eram o fundamento desta esfera pblica. No entanto, distintamente da esfera

11
Segundo Hannah Arendt [1959], a oposio entre pblico e privado tem sua origem na Grcia antiga. Para a
cultura helnica, o privado era o espao da casa (oikia) e da famlia; reino da necessidade, onde os homens viviam
juntos para satisfazer suas necessidades vitais atravs do labor conjunto de atividades bsicas para manuteno
da vida. Nesse espao, o homem era um animal social, detentor de propriedade e de vidas (da famlia e de escravos)
e que exercia o poder de violncia engendrando relaes de desigualdade. A esfera privada era entendida como
uma privao; a limitao de ser ouvido e visto por outros homens e tentar realizar algo mais permanente, ou seja,
que ganhasse publicidade. A esfera pblica, por sua vez, era o espao da polis, da cidade e da poltica. Nela, tem
origem a segunda vida do homem, a vida poltica (Bio Politikos), considerada a vida boa, de modo que este supera
o reino da necessidade e se torna um animal poltico (o Zoon Politikon de Aristteles). A esfera da polis constitua
o espao dos negcios humanos por excelncia, a busca da virtude (Arete), atravs da ao (prxis) e do discurso
(lexis). Nela, os homens superam a violncia e a dominao, conquistando igualdade e liberdade. Na modernidade,
a relao entre estas duas esferas se reconfigura, assumindo novas conotaes e consequncias distintas. Para esta
autora, como se ver melhor mais adiante, na modernidade nunca houve uma real separao entre esfera privada
e esfera pblica, que se desenvolveu colonizada pelas caractersticas dos negcios privados (ARENDT, 2008).
Habermas (2003), por sua vez, tem uma interpretao distinta, como se poder ver ao longo desta exposio.
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pblica dos antigos, a moderna se deslocou das atividades polticas para as tarefas civis de uma
sociedade que debate publicamente (para garantir a troca de mercadorias). Esta esfera um
espao da regulamentao da sociedade civil, por oposio res publica. Diferentemente de
Hannah Arendt, para quem a esfera pblica por excelncia o espao onde a condio humana
da pluralidade se expressa sem vnculos com outras atividades como o labor e o trabalho, que
deveriam ficar na esfera da vida privada, Habermas v o tipo de esfera pblica moderna como
intrinsecamente vinculada burguesia e aos seus interesses privados. Segundo ele, ao contrrio
da esfera pblica grega, a esfera pblica burguesa tem desde o comeo um carter privado e
polmico (HABERMAS, 2003, p. 69).

Isto, no entanto, no anula o fato de que, para Habermas, a esfera pblica burguesa por
excelncia um espao do discurso e da opinio, ou seja, do uso pblico da razo. Nessa esfera,
formada pelos burgueses cultos, desenvolve-se um pblico consumidor de informaes, que
tm na imprensa um elemento fundamental. Aquilo que se submete ao pblico publicizado,
de modo que o pblico leitor se converte em um pblico que julga as produes literrias e
artsticas e a prpria poltica.

Nesse contexto, duas instituies se configuram como estruturas sociais centrais da esfera
pblica burguesa, a cidade e a corte. nos cafs (que tiveram seu perodo ureo entre os anos
de 1680 e 1730) e nos sales que se desenvolve por excelncia o uso pblico da razo. Nesses
lugares havia alguma paridade entre a aristocracia e a intelectualidade burguesa, pois no mesmo
espao circulavam filhos de prncipes, condes, marceneiros e relojoeiros, por exemplo.
Ademais, nesses contextos a opinio se emancipa dos liames da dependncia econmica. A
sociabilidade da esfera pblica burguesa pressupunha igualdade de status e polidez, pois o
argumento poderia afirmar-se contra a hierarquia social. As leis do mercado e do Estado
ficavam suspensas de modo que, embora esses fundamentos de igualdade no tenham se
concretizado plenamente, funcionaram com certa eficcia, pelo menos como uma tica deste
padro de interao (HABERMAS, 2003).

Habermas narra um perodo em que o capitalismo revolucionava as bases do sistema feudal e


do Antigo Regime. A cidade era o espao onde isso ocorria, especialmente atravs da criao
de esferas de compartilhamento de opinies, debates, crticas e julgamentos. Claro est que,
como o prprio autor enfatiza, esse pblico que engendrou um processo vivo de iluminismo era
ainda bastante restrito, pois se conformava basicamente de burgueses citadinos cultos. Segundo
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o autor, esse modelo de esfera pblica burguesa tem sua hegemonia por volta de 1750. Depois
disso, o pblico se emancipa dos espaos dos cafs e sales, sendo mantido pela imprensa e
pela crtica profissional at o final do sculo XIX, quando se opera uma transformao profunda
nessas relaes, conforme se ver mais adiante.

Atravs de uma anlise sobre a sociabilidade urbana, Richard Sennett [1974] chega a
observaes semelhantes no que concerne relevncia do pblico nas cidades capitalistas do
sculo XVIII. De acordo com o autor, foi durante este sculo (especialmente nas capitais
mundiais, Londres e Paris) que surgiu uma cultura pblica burguesa, durante a fase de declnio
do Antigo Regime e desenvolvimento comercial do capitalismo sob influncia dos ideais
iluministas. O prprio conceito de pblico, em termos lingusticos, tem a o seu pleno
desenvolvimento. Em ingls a ideia de pblico associava uma compreenso de bem comum
atrelada perspectiva de abertura observao geral; em francs esteve vinculada aos ideais
do corpo poltico com uma nfase na sociabilidade (SENNETT, 1988). Tambm em alemo o
termo pblico formado neste perodo por analogia aos termos publicit em francs e publicity
em ingls (HABERMAS, 2003).

Segundo Sennett (1988), nesse momento do Antigo Regime, embora permanecessem alguns
privilgios feudais, as sociedades francesas e inglesas j eram marcadas por uma burguesia de
tipo comercial, alm de todo o aparato burocrtico e administrativo. As capitais eram o lcus
da burguesia, que se converteu nos seus governantes e administradores, no seu apoio financeiro
e em boa parte da sua populao. A vida pblica do sculo XVIII, portanto, se construiu em
torno dessa classe que se ampliava rompendo os limites estreitos impostos pelos estamentos
feudais. Sendo cada vez mais formada por estranhos, a burguesia no se reconhecia pelas suas
origens, seus ttulos e/ou profisses tradicionais. Para Sennett, esse foi um primeiro elemento
central que contribuiu para a conformao do que chamou de vida pblica do Antigo Regime,
a heterogeneidade social das cidades modernas. Abrigando muitos estranhos mantendo
contatos, as cidades do sculo XVIII criaram regras de conduta e novos padres de interao
que embasaram esse novo modelo de sociabilidade, fazendo surgir uma vida pblica.

Dessa maneira, pblico veio a significar uma vida que se passa fora da vida da
famlia e dos amigos ntimos; na regio pblica, grupos sociais complexos e dspares
teriam que entrar em contato inelutavelmente. E o centro da vida pblica era a capital.
[...] Foi a poca da construo de grandes parques urbanos, das primeiras tentativas
de se abrir ruas adequadas finalidade precpua de passeio de pedestres, como uma
forma de lazer. Foi a poca em que cafs (coffehouses) e mais tarde bares (cafs) e
estalagens para parada de diligncias tornaram-se centros sociais; poca em que o
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teatro e a pera se abriram para um grande pblico [...] at mesmo as classes laboriosas
comearam a adotar alguns hbitos de sociabilidade, como passeios em parque, antes
terrenos exclusivos da elite, caminhando por seus jardins privativos ou promovendo
uma noite no teatro. (SENNETT, 1988, p. 32)

O novo modelo de sociabilidade desta vida pblica possua padres de interao muito
especficos. Os citadinos iam pblico para se apresentar, expondo seus corpos, suas roupas,
produzindo discursos e engendrando tipos diversos de tagarelices (SENNETT, 1998, p. 83). A
vida pblica passou a ser baseada em cortesias, que pela sua prpria condio eliminavam as
menes vida pessoal como um primeiro meio de contato entre estranhos. Os cdigos de
credibilidade se baseavam na premissa de que em pblico deveria ser apresentado um ser social,
sua fundamentao como parte de um grupo.

Neste domnio, o corpo era um veculo das convenes sociais e a sociedade era um theatrum
mundi. As interaes operavam atravs de disfarces e mscaras, expresses teatrais que
colocavam no centro a experincia pblica compartilhada naquele momento. As mscaras
permitiam a sociabilidade pura, separada das circunstncias do poder, do mal-estar e do
sentimento privado daqueles que a usam (SENNETT, 1988, p. 323). Os discursos pblicos
tambm eram autorreferentes, isto , eram contextualizados ao momento do debate, mantendo
distncia das circunstncias pessoais, configurando-se basicamente pelo prprio desejo de
participar de uma discusso pblica. Estava em pauta, como mediao das interaes, uma
tentativa de suscitar confiana nos estranhos a partir da utilizao de cdigos comuns, da busca
de continuidade dos contedos e da lealdade, elementos do que Sennett chamou de publicismo.

Neste aspecto, durante um perodo os cafs foram os lcus centrais desse processo. Segundo
Sennett (1988, p. 109), assim como tambm havia destacado Habermas, nos cafs suspendiam-
se temporariamente as distines de estratos sociais: todos tinham o direito de conversar com
todos, abordar qualquer assunto, tendo sido ou no convidado a participar. Era
desaconselhvel fazer referncias s origens sociais das pessoas com quem se falava no caf,
porque isso poderia ser obstculo ao livre fluxo da conversa. Os cafs pareciam se configurar
como lugares da sociabilidade pura. O prprio domnio pblico parecia ser elemento central
daquela experincia citadina pois, mesmo os clubes privados j existindo como espaos de
sociabilidade ntima entre iguais, no despertavam tanto interesse quanto os cafs, pois nesse
perodo de sociabilidade intensa, as limitaes dos clubes logo provocaram tdio (SENNETT,
1988, p. 112).
P g i n a | 50

Para Sennett, este perodo marcou o incio da demarcao entre pblico e privado. O privado
era o reino da natureza, da famlia, do cuidado com as crianas, onde se podia utilizar roupas
vontade, sem a nfase na apresentao de qualquer conveno pblica. O pblico, por sua vez,
era o espao da vida social, da cultura, da formao do prprio homem enquanto um ser de tipo
diferente. O pblico era o lcus da expresso do homem enquanto um ator que necessita de uma
sociabilidade compartilhada: diverso, tolerncia cnica, prazer na companhia de outros
amigos (SENNETT, 1988, p. 142). Para o autor, o domnio pblico, porque pautado na
impessoalidade, conformou a civilidade: atividade que protege as pessoas uma das outras e
ainda assim permite que elas tirem proveito da companhia uma das outras (SENNETT, 1988,
p. 323). A res publica, portanto, [...] representa, em geral, aqueles vnculos de associao e de
compromisso mtuo que existem entre pessoas que no esto unidas por laos de famlia ou de
associaes ntimas (ibid., p.16)12.

A cultura pblica do sculo XVIII construiu para Sennett um equilbrio entre os domnios
pblicos e privados, na medida em que ambos se colocavam prova. Do terreno privado
emergiam os chamados direitos naturais que as convenes no podiam anular; o pblico, por
sua vez, tirava os homens da rudeza de sua vida natural, colocando-os numa vida civil e
cosmopolita, ou seja, como aquele que vive bem na diversidade, longe do que lhe familiar.

Considerando estes elementos, pode-se compreender que Sennett fala tanto de uma
sociabilidade pblica quanto de uma geografia pblica, pautada em espaos fsicos concretos
onde as interaes puderam ocorrer. Neste sentido, o autor interpreta a cidade como o lcus
central dessa vida pblica do sculo XVIII:

Cidade e civilidade tm uma raiz etimolgica comum. Civilidade tratar os


outros como se fossem estranhos que forjam um lao social sobre essa distncia. A
cidade este estabelecimento humano no qual os estranhos devem provavelmente se
encontrar. A geografia pblica de uma cidade a institucionalizao da civilidade.
(SENNETT, 1988, p. 323-324)

Mesmo definindo os elementos pblico e privado de maneiras distintas (esferas pblica e


privada para Arendt e domnios pblico e privado para Sennett), esta ideia de civilidade se
assemelha ao que Hannah Arendt (2008) definiu como esfera pblica, ainda que esta autora
provavelmente no tivesse concordncia sobre a sua efetivao em qualquer perodo moderno,

12
Neste caso, a res publica no tem a conotao institucional que assume em Habermas.
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conforme se ver mais adiante13. De todo modo, Arendt considera que a esfera pblica o lcus
por excelncia da prpria condio humana; onde o ser humano pode se revelar por meio da
ao e do discurso. Atravs da revelao das suas singularidades, os homens realizam a
dimenso humana da pluralidade e do entendimento, dimenses que s podem ocorrer no gozo
da prpria convivncia com outros homens. Para que isto ocorra, necessrio que os homens
compartilhem um mundo que comum a todos ns (ARENDT, 2008, p. 62). No espao
pblico, portanto, as pessoas ocupam espaos diferentes, veem e ouvem de ngulos distintos,
mas compartilham o interesse por um mesmo objeto, um mundo que comum.

Conforme salienta a autora, a esfera pblica, enquanto mundo comum, rene-nos na


companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer
(ARENDT, 2008, p. 62). Ao permitir compartilhamento, o espao pblico subjaz a emergncia
da poltica, que para Arendt est ligada no a vnculos privados (satisfao de necessidades,
trabalho e produo), mas realizao da liberdade e da igualdade enquanto virtudes da prpria
humanidade.

Um suas anlises sobre as cidades modernas, Louis Wirth [1938] tambm destacou o que
considerou seus elementos principais, a heterogeneidade social, o cosmopolitismo e o senso de
tolerncia para com os diferentes, dimenses centrais do prprio conceito de espao pblico.
Segundo Wirth (1979, p. 90), uma das caractersticas mais marcantes da experincia social
moderna a concentrao [do homem] em aglomerados gigantescos [...] de onde irradiam as
ideias e prticas que chamamos de civilizao. O fenmeno urbano e a cidade conformam
uma determinada forma de associao humana e promovem transformaes no modo de vida
tpico das sociedades rurais, reconstruindo solidariedades, formas de controle e engendrando
novos tipos de relacionamentos sociais.

A densidade urbana e social desta nova realidade, afirma Wirth, amplia a diferenciao e a
especializao. Amplia-se a complexidade da estrutura social. O reconhecimento visual das
diversidades traz para a cena pblica os contrastes entre o esplendor e misria, entre riqueza e

13
A definio de Hannah Arendt de espao pblico, pela profunda influncia das categorias gregas, foi bastante
criticada pela sua normatividade, conforme salienta Habermas: Esse modelo de esfera pblica helnica, tal como
ele nos foi estilizadamente transmitido pela interpretao que os gregos deram de si mesmos, partilha, desde a
Renascena, como todo o assim chamado clssico, de autntica fora normativa at nossos dias. [...] Por ltimo
em H. Arendt (HABERMAS, 2003, p. 62 [...] Ibid, p. 291 Notas ao texto)
P g i n a | 52

pobreza, inteligncia e ignorncia, ordem e caos. A cidade se conforma enquanto um mosaico


de mundos sociais (WIRTH, 1979, p. 103) e tende a produzir perspectivas relativistas e um
senso de tolerncia das diferenas, ou seja, certos padres de civilidade e convvio nos espaos
pblicos. Neste aspecto, a heterogeneidade social um dos elementos centrais da vida urbana,
contribuindo para a sofisticao e o cosmopolitismo:

A cidade tem sido, dessa forma, o cadinho das raas, dos povos e das culturas e o mais
favorvel campo de criao de novos hbridos biolgicos e culturais. Ela no s
tolerou como recompensou diferenas individuais. Reuniu povos dos confins da terra
porque eles so diferentes e, por isso, teis uns aos outros e no porque sejam
homogneos e de mesma utilidade. (WIRTH, 1979, p. 98).

Essa construo societal tambm impactou sobre o espao urbano construdo. Segundo Guido
Zucconi (2009) entre os sculo XVIII e XIX cidade se tornou o lcus de construo de uma
nova sociedade, como um ideal poltico. Com o esprito de uma guerra contra o absolutismo, a
racionalizao e a interveno humana no espao urbano se pautaram numa verdadeira luta
contra os smbolos do Antigo Regime, tornando obsoletos os elementos do passado como as
muralhas, os aparatos de defesa, as grandes propriedades religiosas, etc. Em termos
urbansticos, os programas de reformas buscaram produzir um espao sobre a gide do ideal de
liberdade dos homens e da circulao dos produtos. A construo de uma nova sociedade
perpassava, naquele momento, tambm pela construo de novas cidades ou de novos espaos
urbanos. Alguns espaos de carter coletivo se transformaram e adquiriram novas valncias: o
teatro, o museu, a biblioteca, a universidade. Ao se abrir ao pblico burgus, o teatro se torna
parte essencial da nova cidade. Assim tambm surgem novos edifcios da cultura como smbolo
da cidade liberal (ZUCCONI, 2009). Da mesma forma, a igreja metropolitana, o Palcio da
Prefeitura e a praa central se tornaram os espaos representativos da cidade. A igreja perde seu
carter de palco da instruo e da assistncia, dando lugar a edifcios pblicos como a escola, a
biblioteca, o centro cvico ou comercial, etc. Surgem tambm novos edifcios de governo,
Parlamento, liceus, correios, administrao fiscal e judiciria. Para Zucconi (2009, p. 129), [...]
tantos pequenos Partenons surgem nos ns principais da cidade para afirmar o primado do
pblico em uma cultura dominada por motivos exclusivamente individuais.

Ainda que a partir de perspectiva bastante distintas, os autores at agora analisados confluem
para a ideia de que em determinado perodo histrico a cidade moderna foi marcada por um
sistema urbano que abrigava uma comunidade orgnica (LEFBVRE, 2001), uma associao
poltica (WEBER, 1979) que se constituiu numa esfera pblica burguesa (HABERMAS, 2003)
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e/ou teve como fundamento uma cultura pblica (SENNETT, 1988) e cosmopolita (WIRTH,
1979)14. Segundo estes mesmos autores, no entanto, isto comea a desmoronar com a
industrializao, talvez um perodo em que a prpria burguesia consolida o seu poder e o
capitalismo deixa de ser um sistema propriamente transformador, como tinha sido em sua luta
contra o feudalismo e o absolutismo.

1.2 A cidade industrial fragmentao, consumo e diluio do comportamento pblico

Segundo Lefebvre [1968], que refletiu profundamente sobre a relao da cidade com o processo
de industrializao, ainda que inicialmente as indstrias nascentes tenham se implantado fora
dos centros urbanos, perto das fontes de energia e matrias primas, as cidades se converteram
em mercados, fontes de capitais, residncia dos dirigentes, lcus de reserva de mo de obra, ou
seja, um espao de concentrao dos meios de produo. Elas foram, assim, reconfiguradas pela
industrializao, mas ao mesmo tempo desempenharam um papel de arrancada da indstria,
propiciando todo o processo de transformao social. Segundo ele (2005, p. 16), a indstria se
apodera das cidades, assalta-a, toma-a, assola-a, produzindo um choque violento entre a
realidade urbana e a realidade industrial.

A cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a


generalizao da mercadoria pela industrializao tendem a destruir, ao subordin-las
a si, a cidade e a realidade urbana, refgios do valor de uso, embries de uma virtual
predominncia e de uma revalorizao do uso (LEFEBVRE, 2008a, p. 14).

A lgica mercantil do valor de troca suplanta antigas lgicas urbanas, aquelas da obra, da festa,
ou seja, do valor de uso, rompendo com a vida urbana [que] pressupe encontros, confrontos
das diferenas, conhecimentos e reconhecimentos recprocos (inclusive no confronto
ideolgico e poltico) dos modos de viver, dos padres que coexistem na Cidade
(LEFEBVE, 2008a, p. 22).

As cidades, assim, especialmente no sculo XIX, se tornam o lcus central desse modo
especificamente capitalista de produo, conforme salienta Marx, baseado na industrializao.

14
Em uma interpretao contempornea de corte arendtiano sobre as cidades, Olivier Mongin [2005] considera o
espao pblico como o elemento central da experincia urbana moderna. Para ele a cena urbana tece um vnculo
entre o pblico e o privado, um emaranhado que se fez por muito tempo em benefcio do pblico. Segundo o autor,
a cidade como exteriorizao pblica, espao da ao coletiva e da poltica, se conforma no como uma
idealizao, uma idade do ouro da cidade (MONGIN, 2009, p. 38), mas como um tipo-ideal que faz sentido no
quadro da histria das cidades.
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O confronto entre diversas caractersticas (que pode ser resumido na ideia de Lefebvre (2008a)
sobre as contradies entre o valor de uso e o valor de troca) se aprofundam de modo que a
cidade moderna passa a ser interpretada tambm a partir de vises mais pessimistas ou crticas,
ou seja, como espaos da explorao de classe, da segregao, do pauperismo, da questo social
e, fundamental na problemtica aqui construda, da invaso da esfera pblica pela esfera privada
(ENGELS [1845], ARENDT [1958], HABERMAS [1962], LEFEBVRE [1968], SENNETT
[1974]).

De fato, as transformaes associadas a este novo momento histrico marcaram profundamente


o esprito desta poca. Segundo Zucconi (2009), entre o sculo XVIII e XIX inicia-se um
perodo de expanso das cidades ocidentais. Durante este sculo, amplia-se consideravelmente
o nmero de centros urbanos com mais de um milho de habitantes, de modo que para design-
las ressurge um termo antes associados a cidades do mundo antigo: metrpoles. O termo passou
a definir um espao que unia uma dimenso quantitativa (a condio de ultra milionria em
termos populacionais) e dados qualitativos (a presena de um intenso dinamismo). Segundo o
autor,
Junto dimenso milionria, o retomar do termo no sculo XIX evoca a presena
simultnea de diversas atividades e tipologias humanas: da rea dos trabalhos manuais
tradicionais s novas funes de natureza intelectual, desde as profisses mais
satisfatrias s mais degradantes. [...] A prpria ideia de metrpole est baseada na
ideia do contraponto entre cenrios contrastantes e situaes extremas que passam do
extremo da excepcionalidade aos abismos do vcio. [...] A metrpole o lugar das
grandes oportunidades, de encontros decisivos, de rpidas fortunas e quedas
desastrosas. [...]. (ZUCCONI, 2009, p. 58)

A cidade deste perodo esteve inicialmente associada a diversas interpretaes negativas de


quem considerou perverso o processo de industrializao, como Charles Dickens em Tempos
Difceis (1853) e Friedrich Engels em A situao da classe trabalhadora na Inglaterra [1845]
(ZUCCONI, 2009, p. 20). Em efeito, desde o seu ressurgimento como lcus central das relaes
econmicas e de poder, as cidades se caracterizaram tambm por certos padres de segregao
social e espacial. No livro citado anteriormente, Friedrich Engels destacou as precrias
condies de vida dos operrios nas grandes cidades do Reino Unido, no que concerne ao
salrio, habitao, vesturio e alimentao, associando o problema da moradia e do crescimento
dos bairros operrios degradados s caractersticas da formao social capitalista. Ele descreve
a indigna condio das moradias como parte do que posteriormente se passou a chamar questo
social. Assim, apresenta as grandes cidades como lcus da produo (e por corolrio da
explorao) capitalista:
P g i n a | 55

Disto resulta tambm que a guerra social, a guerra de todos contra todos, aqui [nas
grandes cidades] declarada abertamente. [...] cada um explora o prximo, e o resultado
que o forte pisa o fraco e que o pequeno nmero de fortes, quer dizer, os capitalistas,
se apropriam de tudo, enquanto que ao grande nmero de fracos, aos pobres, no lhes
resta seno a prpria vida, e nada mais. [...] (ENGELS, 1985, p. 36-37, grifo original)

Em uma perspectiva diferente, baseando-se principalmente nas experincias de Berlim e Viena,


Georg Simmel [1902] tambm construiu uma viso pessimista (ou pelo menos ambgua) sobre
as grandes metrpoles. Segundo Fortuna (2011), a questo central de Simmel a discusso
sobre o que a cidade, que constitui uma forma alegrica da sociedade mais ampla, faz com o
esprito humano ou com a vida mental (SIMMEL, 1979).

Segundo o autor, a metrpole moderna produz impactos profundos sobre a vida mental e o
esprito dos seres humanos, pois as subjetividades humanas, j impactadas pelos princpios
ordenadores da racionalidade capitalista e sua materialidade, ficam mediatizadas por tipos,
funes e papis sociais. Como a metrpole marcada por uma grande heterogeneidade de
pessoas, situaes e vivncias, por diversos tipos sociais, incluindo os estrangeiros, os
diferentes, isto faz com que os contatos sociais tendam a ser mais secundrios do que primrios
e, em geral, se constituam como superficiais, transitrios e segmentrios, fazendo surgir o que
o autor denominou de atitude blas, uma atitude de indiferena gerada pela diversidade de
estmulos mentais trazidos pela vivncia em um espao plural.

Para Simmel, o comportamento do citadino se reveste de uma reserva quantos aos outros, no
apenas uma indiferena, [...] uma leve averso, uma estranheza e repulso mtuas, que
redundaro em dio e luta no momento de um contato mais prximo [...] (SIMMEL, id., p.
17). A proximidade fsica das grandes cidades esbarra na distncia mental, pois uma pessoa
em nenhum lugar se sente to solitria e perdida quanto na multido metropolitana (SIMMEL,
1979, p. 20). A vida nas grandes cidades criou uma relao ambgua entre proximidade corporal
e distncia espiritual, marcada, de um lado, por um contexto potencialmente libertador dos laos
e controles tradicionais, mas ao mesmo tempo castrador da subjetividade. Simmel sintetiza essa
relao atravs da alegoria do estrangeiro ou do estranho, que engendra relaes calcadas entre
a proximidade e a distncia. Nesse aspecto, a sociabilidade entre os diversos grupos sociais
pode ser interpretada pela dade que representa a construo de pontes e/ou fronteiras, que
aproximam e que separam15.

15
Conforme se viu na introduo, alguns autores contemporneos, como Samuel Bordreuil (2002) e Francisco
Sabatini et al (2013) por exemplo, tm discutido como esse tipo de comportamento parece ser caracterstico dos
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As formas de sociabilidade em Simmel, segundo Frgoli Jr. (2007), podem representar as


possibilidades de construo temporria de relaes entre estranhos e indivduos de condies
distintas, na qual a interao em si constituiria o elemento mais importante, marcada pela
suspenso momentnea de posies sociais, isto , interclassista; como podem tambm
representar a formao apenas em crculos intraclassistas, no interior de segmentos
homogneos, na medida em que seria insuportvel quando vivida com membros de classes
distintas, pois necessitaria do compartilhamento de significados, valores, prticas e estilos de
vida.

Segundo Fortuna (2011), Simmel produz seu texto sobre a metrpole moderna entre seus
escritos sobre as cidades histricas italianas, Roma [1898], Florena [1906] e Veneza [1907],
de modo que contraps a modernidade das metrpoles ao carter histrico destas outras cidades.
Para Simmel (2011a, b e c), as cidades histricas, especialmente Roma, eram capazes de
reconciliar as tenses (inclusive as de classe) que dilaceravam o mundo moderno, as oposies
entre o mundo concreto e as subjetividades. Ao contrrio das fragmentadas metrpoles, Roma,
por exemplo, teria uma espantosa unidade do multiforme, que no destruda pelo vasto
espectro dos seus elementos, mas se serve justamente deste para desenvolver o incomparvel
da sua fora (SIMMEL, 2011, p. 27).

Para o autor, diferentemente dos seus contemporneos que se renderam chocante beleza das
metrpoles modernas, Simmel se mostrava cauteloso e ambguo, acreditando que a esttica da
metrpole moderna resultaria da capacidade dos sujeitos reagirem lgica individualista,
calculista, annima e perturbadora que dominava as interaes na grande cidade. Neste sentido,
de uma perspectiva esttica e subjetivista, Simmel considera as metrpoles modernas espaos
fragmentrios e do controle externo, concreto/material, sobre as dimenses da individualidade
humana, que culminam com a prpria atitude blas, que expressa uma espcie de defesa frente
ao excesso de estmulos mentais produzidos pelos novos ritmos e grupos sociais.

Refletindo sobre as transformaes ocorridas nesse perodo, Jrgen Habermas (2003) localiza
no sculo XIX o que chamou de mudana estrutural da esfera pblica burguesa, alterada
principalmente pela interpenetrao progressiva da esfera pblica e do setor privado. Com uma

espaos pblicos, de modo que, ao contrrio de serem somente limitadores, possuem tambm o potencial de
engendrar a liberdade de movimentos e garantir a existncia das diferenas, produzindo determinado tipo de
hospitalidade.
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leitura mais em torno da poltica, Habermas observa como nesse perodo se originou uma
tendncia de ampliao das funes do Estado e uma transferncia das competncias desse ente
para entidades privadas, destruindo a separao liberal clara entre esfera pblica e esfera
privada, o que chamou de socializao do Estado e estatizao da sociedade, dando origem
a uma esfera social repolitizada que foge desta distino tradicional.

Para Habermas, o Estado adquire novas funes e as instituies estatais e sociais (criadas pelas
famlias e pela sociedade civil burguesa) no se encontram mais restritas apenas esfera privada
ou pblica. Nesse contexto a prpria esfera pblica burguesa impactada pela massificao
da sociedade e pela penetrao das leis de mercado. O uso pblico da razo cede lugar s
atividades de consumo. As instituies que se constituam como estruturas sociais daquele
modelo de esfera pblica so abaladas, de modo que a famlia perde seu papel como espao
privado de circulao de informaes, o salo burgus se torna dmod, o convvio social se
realiza de maneira massificada, sem intermediao do raciocnio literrio e poltico. As leis de
mercado se tornam imanentes s obras literrias e de arte em geral, fazendo surgir a indstria
cultural e a cultura de massa. O mercado artstico se volta para produtos que promovem
distrao e diverso, perdendo seu carter poltico, conforme levado a cabo no sculo XVIII.
Para Habermas, o pblico no final do sculo XIX sai de uma condio de pblico pensador de
cultura para uma condio de pblico consumidor de cultura.

Hannah Arendt (2008) tem uma compreenso semelhante no que tange diluio entre as
esferas pblica e privada. No entanto, em seu pensamento isto uma caracterstica da prpria
modernidade, uma vez que o mundo moderno deu uma dimenso econmica e no poltica
liberdade. Para ela, a poltica e o pblico se resumiram satisfao de necessidades (elemento
fundante do mundo privado para a autora) e o Estado assumiu o uso da fora e da violncia,
diferentemente da esfera pblica grega onde a persuaso era o elemento central das prticas.
Isso culminou com desenvolvimento de uma nova esfera, chamada de o social, baseada no
conformismo, na massificao e na normalizao do comportamento. Em sua anlise, a
sociedade moderna se constituiu em torno do labor (da satisfao das necessidades vitais) e das
posies sociais derivadas deste processo (as classes sociais), perdendo as virtudes da ao e
do discurso e a capacidade de expresso da singularidade que d origem pluralidade humana,
ou seja, suprimindo o espao pblico. Assim, a riqueza privada se tornou condio para alcanar
o pblico e a vida privada se tornou a nica preocupao que sobrou para os homens, que
descobriram na intimidade o elemento central de definio da prpria humanidade.
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Richard Sennett (1988) tambm chega a concluses semelhantes sobre a sociabilidade urbana
do sculo XIX, localizando neste perodo o incio do declnio do homem pblico. Esse processo
esteve associado aos impactos do capitalismo industrial sobre Paris e Londres e ao surgimento
de novos cdigos culturais que se desenvolveram em torno a uma subjetividade radical,
impactando sobre a vida pblica urbana.

Segundo Sennett (1988), a cultura pblica erigida um sculo antes foi se restringindo em funo
das transformaes do capitalismo industrial: a privatizao e o fetiche da mercadoria associado
produo de massa. Utilizando as consideraes de Marx sobre o hierglifo social que se
tornara a mercadoria ao adotar uma condio psicomorfa, mistificando a realidade social,
Sennett considera que o mundo da mercadoria engendrou novos cdigos de credibilidade no
domnio pblico. O consumo de massa aboliu a teatralidade, a utilizao formal das mscaras
nas interaes sociais, transformando o pblico em uma experincia pessoal, psicolgica e
passiva, na medida em que ir pblico se tornava cada vez mais uma experincia de consumo
de mercadorias.

Do ponto de vista cultural, emergiu uma nfase nas aparncias como sinais do carter pessoal,
dos sentimentos privados e da individualidade, surgindo uma nova categoria cultural, a ideia de
personalidade. A sua valorizao e a crena cada vez maior de que o mundo privado deveria
ser protegido, pois seria o mundo onde as pessoas poderiam ser autnticas e expressar-se
livremente, levou ao recuo da expressividade e busca do resguardo da personalidade em
pblico. Alm disso, destaca Sennett, o surgimento de um novo secularismo pautado na nfase
da experincia contribuiu para aprofundar esse processo. A personalidade individual e as
impresses que se provocava no outro se tornaram a condio central de como pensar a vida
humana.

Esta nova cultura produziu impactos sobre os domnios pblico e privado. A sociedade passou
a ser vista como uma coleo de personalidades ou como uma personalidade coletiva. Em
pblico as pessoas se esforavam para descobrir quem eram as outras por trs de suas
aparncias, praticando o processo que Sennett chama de descodificao. Por isso, cada vez mais
os citadinos do sculo XIX buscavam controlar sua aparncia, ao mesmo tempo que buscavam
devassar a personalidade do outro, impondo intimidades compulsrias. Mesmo aqueles que no
desertaram da vida pblica, como afirma o autor, se colocaram nela como espectadores. Mesmo
valorizando a vida cosmopolita, a compreendiam como um ganho de experincia individual, ou
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seja, pautando-a atravs de critrios baseados na personalidade individual. Ampliou-se o


nmero de voyeurs urbanos, que se isolavam na sua interao com a multido, observando as
pessoas sem desenvolver sociabilidade. Mesmo os cafs comearam a operar atravs de regras
de silncio, de ausncia de interao. A expressividade no espao pblico passou a ser
terceirizada aos artistas, que se transformaram em estrelas, e aos polticos, pessoas que se
tornaram autoridades pblicas, enquanto os demais citadinos se escondiam sobre o vis da
passividade e do isolamento, que se configurou como uma verdade da cultura moderna
(SENNETT, 1988, p. 263).

O silncio em pblico se tornou o nico modo pelo qual se poderia experimentar a


vida pblica, especialmente a vida nas ruas, sem se sentir esmagado. Em meados do
sculo XIX, cresceu em Paris e Londres, e depois em outras capitais ocidentais, um
padro de comportamento diverso daquele conhecido em Londres e Paris um sculo
antes, ou que atualmente conhecido na maior parte do mundo no ocidental. Cresceu
a noo de que estranhos no tinham o direito de se falar, de que todo homem possua
como um direito pblico um escudo invisvel, um direito de ser deixado em paz. O
comportamento pblico era um problema de observao e de participao passiva, um
certo tipo de voyerismo. [...] O conhecimento no seria mais produzido pelo trato
social (SENNETT, 1988, p. 43)16.

No sculo XIX se encontra o incio do processo de desequilbrio entre pblico e privado para
Sennett, que passam a no ter mais grandes distines, vez que os espaos pblicos eram cada
vez mais utilizados para se estar s, isolado, em privacidade, inclusive em oposio s
interaes familiares. O domnio pblico ficou esvaziado de sentido, pois passou a ser
interpretado como experincia social. Alguns elementos marcaram o esfacelamento da cultura
pblica, como a perda de sentido da impessoalidade, a heterogeneidade social vista como
ameaa e a nfase psicomorfa dada aos laos e ao engajamento social (SENNETT, 1988, p.
270).
Essa cultura e outros processos sociais derivados das desigualdades e da explorao capitalista
impactaram fortemente sobre a vida urbana. Segundo Sennett, no sculo XIX, Paris e Londres
sofreram profundas transformaes. O crescimento populacional impactou sobre um tecido
urbano compacto, adensado e cercado pelas antigas muralhas (caso especfico de Paris). Se,
ainda no sculo XIX, havia certa mescla social nos quartiers e edifcios parisienses, as reformas
do Baro de Haussmam contriburam para que o espao da cidade se tornasse cada vez mais
homogneo. A ideia de transformar a vizinhana numa unidade econmica homognea
terminou por engendrar uma cidade marcada por uma ecologia de quartiers e de classes. Em

16
Essa compreenso bastante similar s consideraes de Simmel sobre a atitude blas, conforme visto
anteriormente.
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Londres, a segregao scio-espacial j se consolidava pela extenso da cidade e pelos


interesses econmicos em criar produtos homogneos para nichos especficos dos estratos de
classe. A prpria geografia pblica da cidade se alterou, de modo que a experincia cosmopolita
passou a se resumir aos burgueses estrito senso, pois a experincia dos pobres de sair cidade
cada vez mais se convertia em uma experincia de consumo. O direito cidade, afirma Sennett
utilizando a expresso de Lefebvre, se transformou numa prerrogativa burguesa. Para Sennett,
no Antigo Regime os grilhes dos trabalhadores eram outros; no a experincia de
confinamento dos seus movimentos.

Este processo de declnio do homem pblico, para Sennett, comea com a queda do Antigo
Regime, tem prosseguimento com o surgimento de uma cultura urbana secular e capitalista no
sculo XIX, mas somente se expressa plenamente no ps-II Guerra Mundial, quando se d a
maior parte da destruio fsica do domnio pblico. No sculo XIX, a cultura da personalidade
emerge em um ambiente ainda influenciado pela lgica anteriormente existente. A expanso da
cultura pblica permanece atravs da geografia pblica, que ainda foi aperfeioada, alm da
valorizao do cosmopolitismo, mesmo que j marcados por esse processo de declnio.

Segundo Zucconi (2009), a cidade do sculo XIX ainda viu surgir diversos equipamentos
urbanos, muitos deles vinculados a um uso coletivo, demonstrando o primado e uma
valorizao daquilo que era considerado pblico, ainda que no alheios s contradies de uma
sociedade capitalista. Os parques pblicos, por exemplo, foram utilizados no sculo XIX para
resolver os chamados problemas da civilizao industrial. Desde os primrdios, estiveram
associados a certos discursos polticos e aos desejos do Poder de intervir na cidade
demonstrando sua capacidade de transformao do espao e da sociedade. Alm disso, claro,
estiveram tambm no cerne de operaes imobilirias, como aquelas colocadas em prtica em
Paris pelo Baro de Haussmam. No que tange aos parques, os discursos polticos o vincularam
originalmente a virtudes urbanas, como sade, bem-estar e diverso. O mvel original da sua
criao e incorporao esteve atrelado a funes estticas e hedonistas, mas principalmente s
doutrinas higienistas, uma vez que os parques tinham uma funo sanitria de promover o
contato com a natureza e possibilitar que as pessoas pudessem respirar bons ares (SERPA,
2007). Alm disso, segundo este autor, os parques estiveram associados a um objetivo de
pacificao e controle social, j que interessava s elites impor um modelo de sociabilidade,
ensinando certos modos de conduta aos pobres. Nesse sentido, Foucault (1993) j demonstrara
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como os espaos estiveram vinculados historicamente a distintos tipos de poder e, na


modernidade, mais especificamente disciplina e ao controle dos corpos.

Alm dos parques, foram ainda criao da cidade do sculo XIX as estaes ferrovirias, as
orlas martimas, os restaurantes, os equipamentos esportivos e lugares de prticas de lazer. At
mesmo os templos da mercadoria, as galerias comerciais, as passages de Paris, e as lojas de
departamento localizavam-se em reas onde havia certo vnculo, uma passagem aos espaos
pblicos. De certa forma, mesmo com a subverso da cultura pblica do sculo XVIII,
conforme apontado por Sennett (1988), certa geografia pblica manteve-se pelo menos
parcialmente viva.

No que tange cidade moderna neste perodo, Walter Benjamin [1938] possui uma
interpretao sobre o flneur que permite compreender estas contradies entre o domnio
pblico e as tendncias de privatizao do capitalismo. Em suas andanas por Paris e por
Berlim, cidades que conhecia bastante, Benjamin (1989) refletiu sobre a penetrao do
capitalismo em todas as esferas da vida, compreendendo o flneur descrito por Baudelaire como
um heri sem carter que se converteu no verdadeiro descobridor da cidade do sculo XIX
(FREITAG, 2010).

possvel dizer que a leitura de Benjamin traz a sensao de que o flneur possui uma dimenso
dupla, ou melhor, dialtica. De um lado, seu texto enfatiza a dimenso desse personagem como
um andarilho que perambula pela cidade, pelos cafs, tavernas, galerias e ruas, observando os
tipos sociais citadinos e se perdendo entre as figuras folhetinescas. Pari passu, estes
personagens urbanos e estes espaos so como que mercadorias expostas nas vitrines. Assim,
o flneur se isola nesta multido e a cidade se apresenta a ele como uma fantasmagoria, ou seja,
como um fetiche da mercadoria, que o aliena e o domina. O flneur um admirador da
sociedade do consumo; ftil e inebriado pela mistificao das mercadorias expostas nas
galerias. Ao mesmo tempo, e no entanto, a flnerie representa certa vivncia do espao pblico
com seus diversos tipos sociais, como a prostituta, o catador de papis, o jogador, o
colecionador, os revolucionrios da taverna, entre outros (BENJAMIN, 1989; ROUANET,
1992).

Em um texto que retoma As Passagens de Paris de Benjamin, Rouanet (1992) conclui que a
cidade do sculo XIX criou a flnerie, pois ela era o templo e o local de culto do flneur. A
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cidade para o flneur sua casa, seu quarto, mas ao mesmo tempo ele se torna alheio a ela, pois
capaz de contempl-la como um estrangeiro, de longe, como uma cidade extica. Em verdade,
ele anda pela cidade com uma embriaguez anestsica, passeando por espaos como o mercado,
as ruas, labirintos, bulevares, galerias, cafs, etc. Esta embriaguez transforma a cidade em uma
fantasmagoria, uma iluso para o flneur, pois ela esconde que, em essncia, por trs das
imagens amistosas produzidas pela literatura dedicada s temticas dos sujeitos urbanos, as
pessoas eram devedores e credores, vendedores e fregueses, patres e empregados, ou seja,
estavam vinculadas lgica da sociedade produtora de mercadorias (BENJAMIN, 1989).

Sob influncia da filosofia de Simmel, Benjamin destaca como a vida na grande cidade
estranha e nada acolhedora. O flneur, portanto, no necessariamente criava relaes de
sociabilidade significativas na grande cidade, pois:

O flneur um abandonado na multido. Com isso, partilha a situao da mercadoria.


No est consciente desse particular, mas nem por isso ela age menos sobre ele.
Penetra-o como um narctico que o indeniza por muitas humilhaes. A ebriedade a
que se entrega o flneur a da mercadoria em torno da qual brame a corrente de
fregueses (BENJAMIN, 1989, p. 51-52).

Como se pode observar, a discusso sobre as cidades modernas se remetem ao debate sobre as
prprias dimenses do processo de modernizao, em termos de sua caracterizao, mas
tambm em torno das suas consequncias sociais e polticas. No que se refere constituio de
uma esfera pblica nas cidades modernas, especialmente entre os sculos XVIII e XIX, a
literatura aponta como em vrios momentos ela parecia caminhar em direo a esse ideal. Em
outros, no entanto, como nas reformas de Paris levadas a cabo pelo Baro de Haussmam, foi
afirmada uma lgica de apropriao desigual do espao ao subjugar o valor de uso da cidade
festa, como definiu Lefebvre (2008a), ao valor de troca da cidade mercadoria.

Claro est, portanto, que difcil pensar que em uma sociedade eivada de contradies e
desigualdades sociais a vivncia da heterogeneidade e da sociabilidade interclassista
(elementos centrais do conceito de espao pblico) fosse desenvolvida de maneira plena e sem
limitaes. Da mesma forma, fundamental considerar que nas sociedades capitalistas a
vivncia do espao pblico e as possibilidades da urbanidade permanecero limitadas pela
prpria natureza ontolgica da expropriao e da alienao. No entanto, frente hierarquizao
das sociedades feudais e mesmo do perodo absolutista, a luta pelos ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade que se desenvolveu principalmente nas grandes cidades representaram
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a busca de padres de interao e sociabilidade mais horizontais, alm da constituio de um


Estado de Direito calcado nas dimenses do interesse pblico.

Por isso, ainda hoje ainda que muitas vezes em tons nostlgicos a cidade interpretada por
muitos intelectuais como a consumao do ideal moderno, como espao onde se engendrou
uma vida pautada na abertura dos espaos e em uma cultura cvica da qual derivaram conceitos
centrais da sociedade moderna.

1.3 A cidade do sculo XX, as transformaes do fim do sculo e as caractersticas da cidade


contempornea: fortificao, medo e restrio do espao pblico

Segundo o urbanista Bernardo Secchi (2009), a histria das grandes cidades no sculo XX
marcada pelo aprofundamento de algumas tendncias esboadas j no sculo XIX e, ao mesmo
tempo, pelo desenvolvimento de caractersticas distintivas relevantes.

Como continuidades, Secchi destaca o processo de concentrao urbana (da populao, dos
meios de produo, do poder, etc.) e a tendncia de expanso, permitida inicialmente pelos
transportes de massa e depois pelos transportes individuais. Esta condio assumiu contornos
aprofundados nas cidades dos Estados Unidos com a suburbanizao, conhecida como sprawl.
Ainda no final sculo XIX, as cidades americanas se tornaram referncias como um novo tipo
caracterizado pelo desenvolvimento vertical e por seus arranha-cus, primeiro em Manhatan e
depois em Chicago. Ampliando-se as tendncias de urbanizao, no sculo XX algumas das
principais concentraes urbanas em termos populacionais passaram se localizar em outros
pases, com o surgimento de megalpoles na periferia global, como na Amrica Latina. Apesar
dos ideais da grande gerao de intelectuais do incio do sculo, composta por Le Corbusier
e outros, por exemplo, de que as cidades deveriam ser espaos racionalizados, equilibrados, que
produzissem encontros e algum tipo democracia, aprofundaram-se as diversas formas de
segregao, excluso e fragmentao urbanas (SECCHI, 2009).

A despeito desse processo, mantendo uma referncia principalmente europeia, Secchi aponta
como algumas das marcas distintivas nas cidades do sculo XX foram produzidas pelas aes
do Welfare State. Segundo o autor, [...] a cidade se torna o lugar onde, durante toda a primeira
metade do sculo, so testados alguns aspectos do Welfare State (SECCHI, 2009, p. 52), como
a construo de conjuntos habitacionais, equipamentos urbanos, creches, escolas, hospitais,
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parques, jardins, equipamentos de esportes, entre outros. Apesar das diversas contradies
desse processo como a segregao gerada pela construo de habitaes populares nas
periferias, o controle racional sobre a vida cotidiana, a elitizao dos parques, entre outros
elementos Secchi destaca como o modelo do Estado de Bem-Estar buscou construir uma
cidade pblica em oposio cidade privada produzindo uma nova geografia urbana.

A cidade do sculo XX manteve-se atrelada aos princpios ordenadores do processo de


industrializao fordista que chegou ao seu pice ao longo dos trinta anos do ps-segunda
guerra mundial. Como consequncias desse processo, Lefebvre [1968] apontou a tendncia de
conformao de uma sociedade urbana, no qual toda a vida social seria impactada pela expanso
fsica e cultural da sua lgica. No obstante, e sem que isso tenha freado o processo de imploso-
exploso que caracteriza tal revoluo, conforme indicou Lefebvre, o compromisso fordista
(BIHR, 1999) e toda a organizao da sociedade salarial (CASTEL, 2005) que associava um
sistema de acumulao de produo rgida e de massa, uma articulao dos salrios aos ganhos
de produtividade, consumo de massa, barganha entre capital e trabalho e conflito polarizado
pelas lutas pelo salrio na arena da poltica do Estado de Bem-Estar comearam a dar mostras
de seu esgotamento em finais da dcada de 1960. Desde ento, um novo arranjo produtivo e de
regulao do capitalismo comeou a ser gestado, com a reestruturao produtiva, a globalizao
e os ajustes neoliberais. a partir dessas transformaes que se aprofundam as discusses e
crticas sobre as caractersticas da vida pblica contempornea, especialmente na passagem para
o sculo XXI (RAMREZ-KURI, 2008).

Sem discutir em detalhes as caractersticas dessa nova fase de modernizao capitalista (DE
MATTOS, 2004), vale salientar como boa parte da literatura destaca que uma das suas
consequncias foram mudanas nas arenas de gesto do Estado e na liberdade de atuao dos
mercados, fato que teve impactos considerveis sobre um grande nmero de cidades. Segundo
Harvey (2007), o Estado passou a cumprir um papel subsidirio na vida social em sentido amplo
(como na oferta de servios pblicos e/ou na busca de bem-estar, por exemplo), enquanto o
mercado tomou o papel central na regulao da vida econmica e social.

Para De Mattos (2014), como resultado dessas transformaes se configurou um espao


mundial de acumulao que consolidou um novo padro sistmico financeirizado, no qual se
ampliou consideravelmente a autonomia relativa do capital para escolher seu destino, setorial e
territorial. Para manter a atratividade/competitividade dos espaos frente aos capitais em
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movimento, surgiu um novo enfoque de governana urbana, estruturado em torno do princpio


da construo de um papel subsidirio ao Estado e focado em estratgias de parcerias pblico-
privadas. Para o autor, os experimentos da governana neoliberal se desenvolveram com o
objetivo bsico de avanar em direo maior mercantilizao possvel da vida econmica e
social. Segundo Carvalho e Pereira (2011), esse empreendedorismo urbano pode ser
compreendido como:
[uma] governana [que] se inspira em conceitos e tcnicas oriundas do planejamento
empresarial, compreende a cidade principalmente como um sujeito/ator econmico e
v como eixo central da questo urbana a busca de uma competitividade orientada
para atrair os capitais que circulam no espao sem fronteiras do mundo globalizado,
de forma a ampliar os investimentos e as fontes geradores de empregos
(CARVALHO; PEREIRA, 2011, p. 4).

Essa nova fase de desenvolvimento capitalista trouxe inmeras consequncias para as cidades,
principalmente para as grandes metrpoles, impactando sobre sua estrutura econmica, social
e poltica, aprofundando tendncias antes esboadas e produzindo rupturas quanto ao seu papel
no novo arranjo produtivo e na prpria vida urbana cotidiana. Conforme observado
anteriormente, boa parte da literatura tem apontado como na passagem para o sculo XXI tm
se ampliando as tendncias de fortificao e segregao nas cidades contemporneas,
engendrando processos de privatizao urbana e restrio da vida pblica.

Segundo Richard Sennett (1988), se a tendncia ao declnio do homem pblico se iniciou no


sculo XIX com as transformaes do capitalismo industrial e dos valores e formas culturais,
esse processo tem seu apogeu no ps-II Guerra Mundial, quando se configurou o que chamou
de sociedade ntima, um tipo de cultura que est na base dos processos contemporneos de
privatizao da vida urbana, levados a cabo pelas estratgias de fortificao.

De acordo com o referido autor, a centralizao da cultura moderna ocidental em torno da ideia
de personalidade tem como uma de suas consequncias mais visveis a busca de constituio
de comunidades de vizinhana17. Estas comunidades surgem com um ethos de oposio
cidade, como um espao onde possvel ter uma experincia humana ntima e local em
detrimento da sociabilidade impessoal da cidade ampla, ou seja, torna-se o territrio local
moralmente sagrado. a celebrao do gueto (SENNETT, 1988, p. 359). Essas comunidades,
propaladas por diversos planejadores urbanos e pelo mercado imobilirio, se fundamentam em

17
Sennett (1988) utiliza o termo em alemo Gemeinschaft, fazendo aluso ao trabalho clssico de Ferdinand
Tnnies sobre a relao comunidade/sociedade Gemeischaft/Gesellschaft.
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valores psicolgicos, em certa intimidade, numa tentativa de produzir reconhecimento e


interao entre vizinhos. No entanto, para o autor, elas so contraditrias, pois ao mesmo tempo
em que pretendem estar abertas aos seus membros, baseiam-se em prticas de vigilncia, numa
busca constante de que todos os membros compartilhem do mesmo sentimento quanto prpria
comunidade, isto , em ltima instncia, de que sejam autnticos e confiveis. Emerge o que
Sennett chama de experincia de fratricdio, pois a comunidade se torna destrutiva, seja por
produzir controles e dissensos internos, seja produzindo uma mentalidade contra o mundo mais
amplo, colocando nele as prprias explicaes do insucesso da comunidade. Conforme destaca:

A comunidade se tornou ao mesmo tempo um retraimento emocional com relao


sociedade, e uma barricada territorial no interior da cidade. A guerra entre psique e
sociedade adquiriu assim um foco verdadeiramente geogrfico, que veio a substituir
o antigo foco de equilbrio comportamental entre pblico e privado. Esta nova
geografia a do comunal versus o urbano; o territrio dos clidos sentimentos e o
territrio da indiferena pessoal (SENNETT, 1988, p. 366).

Em uma perspectiva semelhante, Bauman no considera que seja possvel produzir


artificialmente uma comunidade nos termos de Tnnies, como um espao que se fundamenta
em um entendimento tcito. Este entendimento s pode se dar por uma via artificial e
fantasiosa pois
De agora em diante, toda homogeneidade deve ser pinada de uma massa confusa
e variada por via de seleo, separao e excluso; toda unidade precisa ser
construda; o acordo artificialmente produzido a nica forma disponvel de
unidade. O entendimento comum s pode ser uma realizao, alcanada (se for) ao
fim de longa e tortuosa argumentao e persuaso, e em competio com um nmero
indefinido de outras potencialidades [...] E, se alcanado, o acordo comum nunca
estar livre da memria dessas lutas passadas e das escolhas feitas no curso delas. [...]
a comunidade realmente existente se parece com uma fortaleza sitiada, continuamente
bombardeada por inimigos (muitas vezes invisveis) de fora e frequentemente
assolada pela discrdia interna [...] (BAUMAN, 2003, p. 19)

As tendncias de privatizao da vida urbana, facilitadas pelo contexto de desregulao do


Estado e maior autonomia do capital, podem ser compreendidas como a expresso no territrio
da cidade daquilo que Sennett chamou de declnio do homem pblico, que culminou no que
chamou de tiranias da intimidade: um abandono da vida pblica, impessoal, marcada por
cdigos de interao compartilhados, pautada em certas formalidades tpicas do que chamou de
civilidade em funo da valorizao de certa vida psquica, da vigilncia, da anulao dos
contatos sociais, da homogeneidade, desrespeito e devassamento das privacidades, ou seja, de
uma invaso da personalidade sobre o domnio pblico. Se este processo se desenvolve
plenamente desde a segunda metade do sculo XX, ele tem ficado cada vez mais radicalizado
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com as transformaes contemporneas e seus impactos sobre as cidades, especialmente atravs


da difuso dos enclaves fortificados.

Conforme definiu Tereza Caldeira (2000, p. 211) em seu livro Cidade de Muros, enclaves
fortificados so empreendimentos imobilirios que se conformam como espaos privatizados,
fechados e monitorados para residncia, consumo, lazer e trabalho. Tendo como uma de suas
principais caractersticas a fortificao, esses enclaves constituem uma das mais recentes (e
extremadas) estratgias de segregao, na medida em que valorizam o que privado e restrito;
so demarcados e isolados fisicamente por muros e grades; so controlados muitas vezes por
guardas armados e avanados sistemas de segurana, que definem as regras de incluso e
excluso; embora possam se situar em qualquer lugar, impem uma barreira fsica e simblica
de apartao em relao ao seu entorno; e, ademais, incentivam a homogeneidade social,
valorizando a vivncia entre iguais e pessoas seletas (CALDEIRA, 2000).

A proliferao de enclaves fortificados uma das transformaes mais relevantes e visveis de


diversas cidades em uma escala mundial, ainda que cada uma delas tenha sua histria e suas
caractersticas. Segundo boa parte da literatura (BLAKELY e SNIDER, 1997; WEBSTER,
GLASZE E FRANTZ, 2002, RAPOSO, 2008), a emergncia contempornea dos condomnios
fechados, verso residencial dos enclaves fortificados, se deu nos Estados Unidos. As gated
communities, como so conhecidas nesse pas, so herdeiras diretas dos subrbios, ainda que
acrescentem a eles os elementos da fortificao.

Dos EUA, os enclaves fortificados residenciais se espraiaram para as principais cidades


mundiais a partir de uma intensa ao do mercado imobilirio. possvel dizer que no apenas
os condomnios fechados, mas outros enclaves fortificados difundiram-se mundialmente por
influncia de um tipo de urbanismo de modelo estadunidense, baseado na periurbanizao e
suburbanizao, segregao scio-espacial bastante marcante, valorizao dos espaos
privativos e seletivos, como os shopping centers e a centralidade do transporte individual, entre
outros elementos. Esse modelo cria cidades difusas e policntricas, assentadas em pequenos
ns de uma ampla rede, que agrega condomnios fechados, conjuntos de escritrios, shopping
centers e, cada vez mais, espaos adaptados para se conformarem ao modelo de enclaves
fortificados, como escolas, parques temticos, etc., contribuindo para a constituio de uma
rede scio-espacial de segregao (SVAMPA, 2001) que ignora os espaos pblicos.
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No que se refere aos enclaves residenciais, que muitas vezes esto atrelados aos de servio,
lazer e trabalho, as anlises de Blandy et al. (2003) demonstraram o crescimento da sua
incorporao em diversos lugares, como na frica do Sul, no Oriente Mdio, em partes da sia
e na Amrica do Sul, embora em outras regies, como a Europa, Canad, Austrlia e Nova
Zelndia, a sua difuso venha se dando em ritmos mais lentos. Na Europa, por exemplo, os
enclaves fortificados residenciais esto presentes em menor quantidade. Nesse continente, eles
comearam a surgir nos anos de 1980 na costa mediterrnea de pases como Frana e Espanha,
principalmente como locais de segunda residncia. Tambm nessa dcada alguns complexos
comearam a surgir em cidades como Madri, Lisboa, Londres, Viena e Berlim, alm de haver
algumas evidncias de que tambm se espraiam para pases do leste europeu (WEBSTER,
GLASZE E FRANTZ, 2002).

Todos estes processos esto profundamente associados s transformaes mais amplas no


capitalismo mundial, na esfera produtiva, na organizao do trabalho, nas esferas de atuao do
Estado e na lgica da territorialidade. No entanto, do ponto de vista das campanhas
publicitrias, assim como dos imaginrios urbanos engendrados nesse processo, a justificativa
mais difundida para a autossegregao das camadas de mdia e alta renda consumidores
principais desses empreendimentos tem sido o crescimento da violncia em escala mundial e
a sua amplificao atravs da mdia. Segundo Amendola (2000), a violncia contribui para
explicar o crescimento de cidades blindadas, bolhas protegidas criadas pelos cidados no
apenas nas suas casas, mas na sua vida em geral. No entanto, conforme este autor, mais do que
a violncia, um dos principais elementos organizadores da cidade dita ps-moderna o medo
da violncia, elemento central na constituio desse novo panorama scio-espacial
fundamentado na arquitetura do medo (ELLIN, 2003), que mescla violncia real com o
imaginrio social e a construo miditica.

Em livro denominado Confiana e Medo na Cidade, Bauman (2009) analisa como as cidades
contemporneas se tornaram espaos do medo e da insegurana. Para este autor, as cidades, que
paradoxalmente surgiram para dar segurana a seus habitantes, so atualmente associadas ao
perigo. Essas reais ou supostas ameaas integridade engendram estratgias de marketing que
se constroem em funo do que chamou de capital do medo. Por isso, assim, cada vez mais
se amplia a demanda pela vida fortificada, por zonas de segurana ou vales do medo, como
destacaram Blakely e Snider (1997), ou seja, uma busca por segurana e proteo, seja dos
crimes, dos pobres, dos indesejveis ou mesmo uma busca de proteo de privilgios e de
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propriedades, conforme salientou Caldeira (2000). Analisando a cidade de Los Angeles, Mike
Davis (2009, p. 236) critica a fuso do urbanismo, da arquitetura e do aparato policial num
nico esforo abrangente de segurana e adverte para o efeito fortaleza que emerge no
como uma inadvertida falha do planejamento, mas como uma estratgia scio-espacial
deliberada (Ibid., p. 241).

Para alm da segurana e do medo, no que se refere moradia mais especificamente, est
presente tambm na valorizao dos enclaves fortificados e na sua busca por privatizao a
oferta de um estilo de vida diferenciado, conformado por elementos como um maior contato
com a natureza e/ou a vivncia em um grupo seleto e elitista. Segundo Svampa (2001 e 2004),
os condomnios fechados, por exemplo, so tambm associados busca por um estilo de vida
verde e s estratgias de distino.

A ideia de um estilo de vida verde est relacionada emergncia de novos valores considerados
como ps-materialistas, principalmente nas camadas mais escolarizadas e de maior poder
aquisitivo, que passam a buscar qualidade de vida, bem-estar e tranquilidade, associando-os a
um contato mais prximo com a natureza. A famlia desempenha um papel central nesse
sentido, na medida em que essa condio desejada principalmente em prol das crianas, para
que elas possam viver ao ar livre, com maior autonomia e liberdade, mantendo a sensao de
estar sempre de frias.

As estratgias de distino, por sua vez, esto relacionadas ao prestgio que a vivncia em
determinados espaos pode trazer em termos de capital simblico e social. Segundo Blakely e
Snider (1997), nos EUA, os condomnios de elite so os enclaves dos ricos e famosos, alm das
camadas mdias ascendentes, notoriamente alguns executivos. O elemento central a vivncia
em um local homogneo, em meio a pessoas consideradas como desejveis mas tambm onde
os servios so privativos, o que garante o valor das propriedades.

Para Caldeira (2000, p. 267), relacionar os enclaves fortificados apenas violncia ignorar
todos os seus outros significados, na medida em que a segurana total tambm assegura o
direito de no ser incomodado. A proteo, portanto, no apenas contra o crime, mas contra
pessoas e grupos sociais indesejveis. Davis (2009) tambm salienta que a arquitetura
contempornea e os espaos defensveis tm como objetivo o controle da multido atravs da
construo de barreiras arquitetnicas e semiticas.
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A arquitetura do medo, como destaca Ellin (2003), utiliza uma srie de elementos que vo desde
a escala da residncia escala da cidade. Na escala citadina, se destacam mecanismos de
esvaziamento dos espaos pblicos e controle dos grupos sociais menos desejveis. Em Los
Angeles, Davis (2009, p. 244-245) descreve a existncia cada vez maior de ambientes de ruas
sdicos, o endurecimento consciente da superfcie da cidade contra o pobre. Entre esses
mecanismos, ele cita a construo de bancos de pontos de nibus em forma de barril, que
impede os sem-teto de dormir sobre sua superfcie, ou seja, bancos prova de vagabundos; a
proliferao de sprinklers (regadores automticos) adotados para que essas pessoas no
durmam nos parques e jardins; a construo de reas cercadas em mercados e restaurantes para
proteger seus lixos dos sem-teto; e uma prtica deliberada de manter menos banheiros pblicos.

O efeito fortificao (DAVIS, 2009) parece ser, portanto, uma das mais relevantes
caractersticas de importantes cidades atualmente, especialmente nos EUA e na Amrica Latina.
Esse fenmeno, segundo esses autores, tem impactado diretamente sobre o espao pblico
urbano. Sobre esse processo, Bauman (2009) adverte que se originalmente os muros e fossos
da cidade construam uma fronteira entre os cidados e os estrangeiros, atualmente toda a
tecnologia da arquitetura do medo produz uma apartao tambm entre membros de uma
mesma sociedade. O isolamento nos enclaves fortificados tambm a expresso de uma
mixofobia (medo de misturar-se), ou seja, uma negao da heterogeneidade e da diversidade
que caracterizam as cidades e, portanto, do espao pblico e da sociabilidade interclassista.

Segundo o autor (2009, p. 45), a vivncia em uma comunidade de semelhantes mixofbica, que
busca proteo em um espao privado em detrimento do pblico, no capaz de diminuir os
riscos e menos ainda de evit-los. Seu carter paliativo implica em uma primeira consequncia
insidiosa e deletria: quanto mais ineficaz a estratgia, mais ela se refora e perdura.
Ademais, quanto mais se vive num ambiente homogneo e uniforme, a socializao tende a se
tornar superficial, pois sendo os significados os mesmos, se diminui o risco de haver mal-
entendidos e torna-se desnecessrio o processo de dilogo e traduo de significados em outros.
Para ele, provvel que as pessoas desaprendam a arte de negociar significados e mesmo um
modus convivendi (BAUMAN, 2009, p. 46). A vivncia nesses espaos no apenas reflexo da
busca da homogeneidade social e da sua consequente (presumida) proteo, como tambm a
reafirma:
Como as pessoas esqueceram ou negligenciaram o aprendizado das capacidades
necessrias para conviver com a diferena, no surpreendente que elas
experimentem uma crescente sensao de horror diante da ideia de se encontrar frente
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a frente com estrangeiros. Estes tendem a parecer cada vez mais assustadores, porque
cada vez mais alheios, estranhos e incompreensveis. E tambm uma tendncia para
que desapaream se que j existiram o dilogo e a interao que poderiam
assimilar a alteridade deles em nossa vida. possvel dizer que o impulso para um
ambiente homogneo, territorialmente isolado, tenha origem na mixofobia: no
entanto, colocar em prtica a separao territorial s far alimentar e proteger a
mixofobia [...] (BAUMAN, 2009, p. 46)

A rejeio do outro parece se tornar uma das consequncias centrais dessa cultura da
personalidade e dessas prticas de autossegregao:

Uma sociedade que teme a impessoalidade encoraja as fantasias de vida coletiva


paroquial. Quem somos ns se torna um ato altamente seletivo de imaginao: os
nossos vizinhos mais prximos, os companheiros de trabalho, a famlia. Identificar-
se com pessoas que no se conhece, pessoas estranhas, mas que podem compartilhar
dos interesses tnicos, dos problemas familiares, ou da religio, torna-se algo penoso.
[...] O sentimento de comunidade formado pelo compartilhar de impulsos tem o papel
especial de reforar o medo diante do desconhecido, convertendo a claustrofobia num
princpio tico. (SENNETT, 1988, p. 378)

A perda do modus convivendi identificado por Bauman (2009) como resultado da mixofobia
parece ter efeitos insidiosos sobre a socializao de crianas e jovens. Em pesquisas sobre
enclaves fortificados, Svampa (2001) identificou que a socializao das crianas e jovens dentro
de espaos homogneos e protegidos produz uma autonomia portas adentro e uma
dependncia portas afora. Muitos dos moradores dos condomnios fechados estudados pela
autora tiveram como especial interesse nesses empreendimentos oferecer uma autonomia
protegida a seus filhos. No entanto, no raro, esse excesso de liberdade, associado ao dficit de
controle familiar, geraram casos de vandalismo e delinquncia juvenil. Ao mesmo tempo,
muitas crianas e jovens se mostraram dependentes fora dos seus condomnios, pois estavam
acostumados com a proteo e os controles ali estabelecidos e no conheciam as prticas, por
assim dizer, da cidade aberta. Muitas vezes, sentiam-se inseguros do lado de fora e tinham fobia
da cidade, evitando o mundo real e os grupos sociais diferentes. A vivncia desde cedo em
espaos homogneos e privatizados como escolas, shoppings, entre outros equipamentos,
produz um medo da cidade e a mixofobia, alm da convivncia com grupos sociais diferentes
apenas na condio de subalternos, o que pode implicar na construo de representaes e
prticas elitistas e intolerantes.

Em termos propriamente espaciais, Davis (2009) considera que essa cruzada por segurana na
cidade (alm dos outros elementos associados a esta nova condio citadina) tem como
consequncia tambm a desvalorizao e a destruio do espao pblico acessvel, o que se
torna visvel atravs do prprio termo pejorativo morador de rua. A reconstruo urbana
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converteu as ruas em canais de trfego, eliminando o pedestre, e transformou os parques


pblicos em receptculos dos sem-teto e miserveis. Segundo De Mattos (1999), a valorizao
crescente do automvel e da mobilidade por ele propiciada transforma as ruas e outros espaos
pblicos em espcies de tneis, nos quais as camadas de mdia e alta renda tendem a circular
nos seus carros cpsulas (DUHAU, 2001), transformando os espaos da cidade no que Aug
(2004) chamou de no lugares: espaos no relacionais, a-histricos e sem identidade, onde
a suspeio e o medo do outro centralizam as experincias de interao social e a vivncia da
heterogeneidade. Para Davis (2009), isso contribui para a destruio da prpria ideia de
liberdade associada cidade.

Qualquer um que tenha tentado dar uma voltinha ao anoitecer por um bairro estranho,
patrulhado por guardas de segurana armados e sinalizado com ameaas de morte
[referncia s placas que advertem para uma possvel reao armada em Los
Angeles], compreende imediatamente quo meramente abstrata, se no
completamente obsoleta, a antiga ideia da liberdade da cidade (DAVIS, 2009, p.
258).

Para Netto (2012), a cidade tem falhado no seu ideal de produzir urbanidade. Aguiar (2012)
salienta como grades nas fachadas de prdios, muros contornando condomnios, shopping
centers, estacionamentos e autopistas so espaos inspitos. Segundo Souza e Silva (2004), os
enclaves produzem impactos sobre a paisagem e a morfologia urbana. Esses processos tm
produzido consequncias perversas:

Quando cidades ou reas da cidade falham nesse papel de exposio mtua, temos a
diluio da presena dos socialmente diferentes em nossos campos de percepo, um
afastamento que os invisibiliza e que pode constituir um progressivo alheamento entre
sujeitos um alheamento que os definem como Outro. Quando diferenas se
acirram, temos uma coexistncia no mais pautada pelo convvio, mas relaes
restritas entre grupos que se parecem estranhos; relaes que passam facilmente a
serem interpretadas como potencialmente hostis e a demandarem mecanismos de
ateno e controle: os sistemas e aparatos de vigias em exerccios fortemente
assimtricos de poder (NETTO, 2012, p. 54).

Segundo Sennett (1988, p. 314), a fuga das interaes e dos espaos heterogneos (ou seja, da
prpria cidade em direo s comunidades) destri a prpria essncia da urbanidade, qual seja,
que os homens podem agir juntos sem a compulso de serem os mesmos. Caldeira (2000)
tambm considera que vem ocorrendo um esvaziamento da esfera pblica tradicional da cidade
modernista em favor de um novo modelo assentado na tenso, separao, discriminao e
suspeio, no qual so reafirmados hierarquias e privilgios sociais. Segundo sua interpretao,
a experincia moderna de vida pblica se fundamentou em alguns elementos bsicos, que tm
sido subvertidos pelo referido modelo, tais como:
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[...] a primazia e a abertura de ruas; a circulao livre; os encontros impessoais e


annimos de pedestres; o uso pblico e espontneo de ruas e praas; e a presena de
pessoas de diferentes grupos sociais passeando e observando os outros que passam,
olhando vitrines, fazendo comprar, sentando nos cafs, participando de manifestaes
polticas, apropriando as ruas para seus festivais e comemoraes, ou usando os
espaos especialmente designados para o lazer das massas (parques, estdios, locais
de exposies) (CALDEIRA, 2000, p. 303).

Segundo Serpa (2007), at os espaos de uso coletivo incorporados nos ltimos anos em
diversas cidades no tm uma dimenso amplamente pblica, na medida em que sua
acessibilidade, espacial e social, bastante restrita. Na maior parte das vezes, se localizam em
lugares de grande visibilidade na cidade, em reas valorizadas em termos imobilirios e
tursticos, o que contribui para ampliao do valor fundirio de certos bairros e regies. Alm
disso, tm se localizado prximos a outros equipamentos valorizados, como shopping centers,
e esto voltados para a lgica do consumo, de mercadorias e bens culturais, como festas,
exposies, etc.

Em geral, eles tm se colocado numa condio de espetacularizao do espao, sob a


hegemonia do paradigma de Barcelona, em um contexto no qual a cidade se constri enquanto
espao do consumo e espao a ser consumido, dentro da lgica do city marketing. So criadas
imagens publicitrias desses espaos pblicos como lugares de espetculos de uma cidade que
se configura como uma festa-mercadoria, guiada pelo ideal do desenvolvimento urbano como
consumo cultural. Nesta lgica, vrias reas foram revitalizadas, alterando seus significados e
pblicos originais, e o patrimnio histrico se converteu em espaos de exibicionismo cada vez
mais homogneos em mbito internacional, j que orientaes da UNESCO so semelhantes
para distintos contextos, de modo que os centros tradicionais geralmente se convertem em
centros histricos voltados para atividades de consumo e para a lgica do espetculo, conforme
tambm adverte Amendola (2000). Invade esses espaos a lgica do consumo de massa,
planejado, com cdigos pr-determinados, onde sociabilidades temticas (como as voltadas
para o esporte e os shows por exemplo) exercem o papel de centralidade. Essa
instrumentalizao cultural da cidade contempornea destri qualquer possibilidade de
construo de uma esfera pblica, plural e pautada na espontaneidade e no entre ver-se, segundo
as interpretaes de Serpa (2007 e 2008).

Alm desses elementos, muitos desses novos espaos pblicos esto alheios s camadas
populares, seja por sua inacessibilidade fsica (distncia dos bairros perifricos) ou simblica,
j que foram planejados pensando em cdigos de conduta e/ou prticas culturais das camadas
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mdias, de maior capital escolar. Para Serpa (2007 e 2008), ainda que se configurem como
espaos de uso coletivo, no podem ser qualificados como pblicos, pois a sua acessibilidade
limitada e seletiva simbolicamente, de modo que a distncia mais social do que propriamente
fsica. Ainda que possa haver um compartilhamento destes espaos, a distncia social impede
que eles se convertam em palco da cena e do discurso poltico. Ao analisar a apropriao de um
dos Parques de Paris, por exemplo, o autor observa que:

O grande gramado transforma-se em teatro de uma vida privada que se desnuda ao


olhar de todos. O espao pblico transmutado em espao domstico. As prticas
espaciais engendradas pelos novos parques se inscrevem num contexto de
territorializao. Atravs de suas condutas, os usurios privatizam o espao pblico
atravs da ereo de barreiras simblicas, s vezes invisveis ao olhar desatento. O
espao pblico transforma-se numa justaposio de espaos privatizados, ele no
compartilhado, mas dividido e retalhado entre os diferentes grupos de usurios. Mas
a soma de apropriaes de um coletivo de indivduos no suficiente para legitimar
a noo de espao pblico. [...] o parque urbano um espao aberto ao pblico,
acessvel a todos, colocado disposio dos usurios, mas todas essas caractersticas
no so o bastante para defini-lo como espao pblico. (SERPA, 2007, p. 87)

Esse processo amplo vem sendo compreendido como um declnio do homem pblico
(SENNETT, 1988), um esvaziamento da esfera pblica tradicional (CALDEIRA, 2000;
DAVIS, 2009), uma condominizao da cidade (DUHAU, 2001) ou mesmo uma
desurbanizao da cidade contempornea (NETO, 2012).

De mosaico de mundos sociais, que produziam um senso de tolerncia das diferenas e um


cosmopolitismo (WIRTH, 1979, p. 103) as cidades parecem caminhar hoje, de acordo com essa
literatura, para um processo marcado pela dessolidarizao dos seus destinos comuns, um
individualismo anmico (GIROLA, 2001 apud DUHAU, 2001, p. 62) indiferente ao bem
comum, e prpria democracia, ou seja, uma sociedade incivilizada (SENNETT, 1988).

1.4 Uma discusso contrafactual: o espao pblico est morto?

Conforme se observa, muitos autores, provenientes de diferentes disciplinas, convergem em


interpretaes que apontam para a desapario ou restrio dos espaos pblicos tal como
construdos no mundo moderno. Outros, no entanto, tm produzido questionamentos e crticas
a essa viso, que se tornou bastante influente nos estudos urbanos. Rodrigo Salcedo (2002), por
exemplo, revisa os principais questionamentos e crticas a essa viso, sugerindo outras formas
de anlise dos espaos pblicos.
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Numa primeira indagao, Salcedo (2002) questiona: o espao pblico conforme descrevem
os autores que classificou de urbanistas ps-modernos, fazendo referncia entre eles a
Richard Sennett, Tereza Caldeira e Mike Davis j existiu em algum perodo histrico? Sua
resposta acompanha os trabalhos de Susan Fainstein, que afirma que nunca as cidades aceitaram
a diversidade e a interao social mais do que fazem agora, e que a cidade contempornea no
menos autntica ou menos desejvel do que modelos de cidade de outros perodos,
conforme afirma ser a interpretao desses autores ps-modernos.

Para Salcedo, a considerao de que algum momento houve um espao pblico aberto, plural e
heterogneo uma mitificao e idealizao do passado, desmentidas por diversas verdades
histricas, como a segregao scio-espacial, a excluso racial das cidades norte-americanas,
etc. Para ele, no apenas no existia um espao pblico amplo e livre como o espao existente
atualmente mais diverso que no passado, pois mais aberto a espectros mais plurais de lutas
e prticas, como a sua apropriao por minorias raciais e sexuais ou a sua utilizao por grupos
polticos como os ecolgicos, etc. Alm dessa questo, salienta tambm que os espaos
engendrados pelo capitalismo contemporneo, como os shopping centers por exemplo, no so
por si s menos autnticos do que os espaos pblicos porque essa avaliao envolveria uma
forte influncia ideolgica do que seria algo autntico e, portanto, se trataria de ideal
normativo sem vnculo com a realidade social. Em sntese, para Salcedo:

[] Os hipercrticos urbanistas ps-modernos, como uma forma de questionar a


cidade e a individualista vida contempornea, caem na idealizao conservadora e na
mitificao do passado. Renunciando a suas premissas tericas de corte materialista,
os urbanistas ps-modernos acolhem o idealismo habermasiano convertendo o espao
pblico da modernidade como um ideal normativo [...] que deve ser adotado
acriticamente em qualquer circunstncia histrica. (SALCEDO, 2002, s.p., livre
traduo)

Para o autor, o espao pblico um ideal, uma promessa, que no foi cumprida pela
modernidade. A esfera pblica tal como a definiu Habermas seria uma utopia, pois o espao
pblico, desde a Grcia, passando pelo feudalismo e por diversos momentos do capitalismo,
sempre se converteu em uma expresso das relaes de poder. Influenciado por Foucault,
Salcedo argumenta que o espao um lugar onde o poder se expressa e se exerce e, por isso,
no faria sentido distinguir entre espaos pblicos e espaos semi ou pseudo-pblicos, como os
shopping centers, pois, de alguma forma, todos eles esto marcadas por tipos de controle, seja
do soberano, do Estado ou dos administradores. Em verdade, para o autor, o que importa
compreender como essas relaes de poder e, mais, as resistncias impostas a ele pelos usurios
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e consumidores, se expressam em momentos histricos distintos, ou seja, uma anlise sobre a


dialtica que ocorre nos espaos entre os controles hegemnicos e as resistncias engendradas.

Andrade e Baptista (2013) tambm tecem um conjunto de crticas s consideraes sobre o fim
do espao pblico. Inicialmente, afirmam que dois ingredientes definem o espao pblico, a
sua abertura e as interaes com estranhos. Mas, pela prpria imprevisibilidade gerada, no raro
ocorrem conflitos que engendram espcies de restries sociais aos processos de interao que
fazem com que os diferentes grupos sociais no frequentem todo e qualquer espao pblico de
uma mesma maneira. Para eles, os conflitos existentes so uma prova de vida dos espaos
pblicos. Alm disso, continuam os autores, as anlises sobre o fim do espao pblico so
geralmente focadas em um nico estrato social, os grupos de alta renda. Ainda que esses grupos
tenham tido o poder de definir as mudanas que atingiram as cidades nas ltimas dcadas, no
se pode generalizar suas prticas para os demais grupos pois tais mudanas no obtiveram
supremacia a ponto de impor uma nica forma de uso dos espaos pblicos presentes nas
distintas partes da cidade. Com essa crtica, eles insistem em resgatar a complexidade e a
diversidade existente dentro do rtulo espaos pblicos, que so caracterizados por distintos
tipos de espao e de interaes e, portanto, no podem ser reduzidos e representados de forma
to homognea como tem sido feito por algumas anlises.

Andrade e Baptista (2013) fazem ainda consideraes sobre os tipos de interaes que
caracterizam esse espao e que, mesmo que no gerem vnculos ou sejam mais formais e
distanciadas, no devem ser desvalorizadas, pois os contatos e interaes superficiais so
importantes porque podem contribuir para que as pessoas que compartilham os espaos, ainda
que no interajam de maneira mais prxima, se tornem menos estranhas. Sabatini et al (2013),
embora reconheam que os contatos parecem estar crescendo em detrimento da constituio de
vnculos em contextos de alteridade, tambm apontam para sua relevncia para a vida urbana:

O contato pode ser o primeiro passo para o vnculo. Devemos ter em conta que a
cidade, e os espaos pblicos que imprimem sua essncia como comunidade diversa,
no esto feitos s de contatos. Os vnculos sociais fundam a vida de uma cidade, lhe
conferindo estabilidade no tempo, mas os contatos do forma, em grau importante,
dimenso agitada e arriscada da cidade, onde radica sua permanente transformao e
suas possibilidades criativas. No devemos ento pensar a relao entre contato e
vnculo como uma dualidade; o contato pode ser veculo de coeso social, ainda que
por certo no o nico. (Sabatini et al, 2013, p. 273, livre traduo nossa)

Em funo de todas essas consideraes, Andrade e Baptista (2013) concluem que na atual
conjuntura de lazeres globalizados a diversidade de experincias que podem ser identificadas
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nos espaos pblicos to ampla que exige do pesquisador um cuidado no seu entendimento e
distino. Assim, aps exame de suas pesquisas empricas, afirmam que:

Feitas essas reflexes terico-empricas, parece-nos decisivo que, para analisar os


espaos pblicos como domnio central da transformao urbana das nossas
sociedades, tenhamos que recorrer a uma viso abrangente destes e que, assim
olhados, contrariam claramente a tese do fim do espao pblico (ANDRADE E
BAPTISTA, 2013, p. 10).

Considerando dimenses polticas da condio urbana, David Harvey (2014) tem trazido
discusses importantes que podem ajudar a problematizar as teses sobre o fim do espao
pblico, pelo menos no tange utilizao dos espaos das cidades por movimentos sociais como
forma de resistncia. Segundo este autor, vrias cidades ao redor do mundo atualmente vivem
uma crise porque tem se aprofundado e se globalizado uma ligao ntima entre o
desenvolvimento capitalista e a urbanizao, uma vez que esse sistema econmico precisa do
processo urbano para absorver o excedente que nunca deixa de produzir. Conforme visto
anteriormente, a vida na cidade est cada vez mais submetida lgica da mercantilizao.

Para o autor, portanto, nesse contexto de crise, em que a tica neoliberal do intenso
individualismo transforma-se em um modelo de socializao da personalidade humana, h cada
vez mais uma polarizao na distribuio da riqueza e do poder, o que tem engendrado cidades
divididas, fragmentadas e propensas ao conflito. Isso se expressa espacialmente em cidades
formadas por fragmentos fortificados, comunidades muradas e espaos pblicos mantidos sob
vigilncia (HARVEY, 2014), argumento que reforaria as interpretaes acerca do
esvaziamento da capacidade dos espaos urbanos se transformarem em espaos pblicos.

Nesse contexto, Harvey v ameaados os ideais da construo de uma identidade urbana


pautada no pertencimento e at mesmo a ideia de que a cidade poderia funcionar como um
corpo poltico coletivo. No entanto, ao contrrio do que poderia se supor, ressalta o autor, tem
surgido no horizonte das cidades todos os tipos de movimentos sociais urbanos numa busca de
superar o isolamento e reconfigurar o espao urbano. O autor destaca, entre outros, os protestos
de massa ocorridos nos ltimos anos na Praa Tahir no Cairo, na Plaza Puerta del Sol em Madri,
na Praa da Catalunha em Barcelona, na Praa Sintagma em Atenas, em El Alto na Bolvia,
alm de outros no Mxico, Argentina, Chile e, mais recentemente tambm no Brasil.
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Para Harvey, o urbano tem funcionado como um espao importante de ao poltica no apenas
em resposta aos processos de mercantilizao do espao e destruio criativa (transformao
dos espaos urbanos como meio de inverso de excedentes de capital), mas tambm devido s
suas caractersticas ambientais, como a existncia de importantes centralidades18 ou a sua
importncia na organizao territorial da economia, entre outros aspectos. Por isso:

A onda atual de movimentos liderados por jovens de todo o mundo, do Cairo a Madri
ou Santiago para no mencionar uma rebelio de rua em Londres, seguida pelo
movimento Ocuppy Wall Street, que comeou em Nova York, e que logo se
espalhou por inmeras cidades norte-americanas e que hoje acontece em cidades do
mundo inteiro sugere que h algo de poltico no ar das cidades lutando para se
expressar. (HARVEY, 2014, p. 211)

Considerando esses argumentos contrafactuais ou mesmo as resistncias aos processos de


privatizao e dessocializao, conforme descreveu Harvey, percebe-se a complexidade do
tema aqui em questo. Por isso, parece ainda mais relevante um estudo emprico sobre esses
processos, principalmente tendo uma cidade latino-americana como estudo de caso, posto que
em geral as teses sobre o declnio do homem pblico, a desapario do pblico tradicional e/ou
mesmo da conformao de um modelo de cidade diferente foram construdas tendo como
referncias contextos urbanos europeus e, principalmente, norte-americanos e, no raro, faziam
comparaes com contextos pblicos modernos que no tiveram vigncia nas cidades de
urbanizao perifrica.

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De que outra maneira e em que outros lugares podemos nos reunir para articular nossas queixas e exigncias
coletivas? (HARVEY, 2014, p. 23)
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CAPTULO 2

ESPAO PBLICO E SEGREGAO: ESPECIFICIDADES


DA URBANIZAO CAPITALISTA PERIFRICA
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As principais discusses sobre o processo de declnio do homem pblico, conforme visto


anteriormente, tiveram como objeto de anlise contextos urbanos muito diferentes daqueles
existentes nas periferias do sistema capitalista, como nas cidades latino-americanas e
brasileiras. Por isso, se faz fundamental contextualizar os parmetros analticos, conceitos e
resultados principais dessas construes tericas, discutindo as caractersticas que marcaram a
formao das cidades brasileiras e suas transformaes contemporneas, dialogando com a
realidade de outras grandes metrpoles da regio, sobre as quais a literatura tem produzido
bastante no que tange aos processos de privatizao urbana e restrio do espao pblico.

2.1 Principais caractersticas da urbanizao capitalista perifrica

A urbanizao dos pases latino-americanos foi acompanhada e influenciada pelo processo de


industrializao que ocorreu, de maneira geral, entre as dcadas de 1930 e 1970 do sculo XX.
A estratgia de substituio das importaes adotada pelos governos favoreceu diversas
transformaes na estrutura produtiva e demogrfica no campo e nas cidades. Durante muito
tempo, a urbanizao foi alimentada em termos demogrficos por altas taxas de crescimento
vegetativo e durante todo o processo por grandes fluxos de migrao rural-urbana. Por isso,
uma primeira caracterstica relevante desse modelo de urbanizao foi a sua velocidade e
profundidade. A populao cresceu rapidamente e hoje a sua maior parte vive nos centros
urbanos, o que impactou sobre a incorporao da populao ao mercado de trabalho e no seu
acesso a bens de consumo coletivo.

As grandes cidades latino-americanas, especialmente no ps-segunda guerra, se converteram


nos principais espaos de trabalho e consumo dos diversos setores e grupos sociais, se
conformando como centros geradores de oportunidades, onde uma significativa parcela da
populao teve possibilidade de trabalhar, consumir e almejar melhores condies de vida
atravs da existncia de oportunidades reais de ascenso social. Segundo Anbal Quijano (1968,
p. 108), durante um bom tempo [...] a expanso industrial urbana constitua um canal bastante
efetivo de integrao da sociedade, no sentido de que tinha capacidade de incorporar maior
quantidade de populao aos padres dominantes do sistema. No entanto, esse processo foi
limitado e bastante desigual.

No Brasil, por exemplo, se houve, de fato, uma dinmica integradora fundamentada na


esperana e na crena no trabalho como forma de mobilidade social e no consumo como
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integrao simblica e participao nos circuitos e cdigos da modernidade, o processo de


desenvolvimento gerou tambm uma grande segmentao do mercado de trabalho, ocasionando
uma ampla desigualdade de distribuio de renda. Enquanto se conformava um padro de
emprego assalariado e protegido, principalmente na indstria, se expandiam tambm mltiplas
formas de trabalhos instveis e precrios, nos quais a remunerao era baixssima. A
urbanizao brasileira produziu, portanto, uma sociedade urbano-industrial complexa, de
consumo, pobre, heterognea e desigual (FARIA, 1991), empurrando uma parcela relevante da
populao [...] s incertezas de um mercado de trabalho dinmico e instvel, cujo
funcionamento alimentou e se alimentou da existncia desse exrcito ativo de reserva
(FARIA, 1991, p. 105, grifos originais).

Em toda a Amrica Latina, conforme salienta Laura Motta Daz (2005), as oportunidades
oferecidas foram parciais e seletivas e estiveram associadas desde os primrdios a altos ndices
de vulnerabilidade social, conformando uma urbanizao da pobreza. Segundo Lcio
Kowarick (2002, p. 14), marcaram esse processo uma insero diferenciada da mo de obra no
sistema produtivo e modalidades de rebaixamento da fora de trabalho (trabalho autnomo e
informal, baixo patamar de assalariados permanentes e regulares, ampla frao estagnada no
exrcito de reserva, atividades irregulares e ilegais, miserabilidade do lumpen, etc.). De acordo
com o autor, a urbanizao foi acompanhada de um processo de superexplorao que pode ser
caracterizado como um apartheid social de nossas cidades.

A concentrao macia e rpida da populao nos grandes centros urbanos fez aumentar
tambm a presso sobre os bens e equipamentos pblicos de uso coletivo, aprofundando o
referido apartheid. Para Kowarick (1979), essa problemtica, pelo menos no Brasil, deve ser
analisada a partir de duas dimenses. De um lado, as relaes de trabalho na medida em que a
superoferta de mo de obra e a possibilidade da sua rotatividade conformaram condies de
trabalho que geraram uma pauperizao absoluta ou relativa (KOWARICK, 1979, p. 59) dos
trabalhadores brasileiros, uma vez que os salrios pagos no eram suficientes para a reproduo
global da sua fora de trabalho. De outro lado, a chamada espoliao urbana:

[...] somatrios de extorses que se opera atravs da inexistncia ou precariedade dos


servios de consumo coletivo que se apresentam socialmente necessrios em relao
aos nveis de subsistncia e que agudizam ainda mais a dilapidao que se realiza no
mbito das relaes de trabalho. (KOWARICK, 1979, p. 59)
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Durante o processo de urbanizao, o Estado aumentou a oferta de servios e bens coletivos,


ainda que, muitas vezes, sem garantir a sua qualidade, o seu funcionamento regular e guiando-
se pelos interesses do mercado urbano-construtor (KOWARICK, 1979). Segundo Pedro Prez
(2009), as cidades latino-americanas se produziram sob lgicas privadas, pois se desenvolveram
em funo da articulao entre interesses capitalistas especficos nas operaes urbanas
(produo do solo, de habitao, infraestrutura e equipamentos, etc.) e interesses capitalistas
gerais (garantias das atividades econmicas e condies de reproduo da fora de trabalho).

Para Lessa e Dain (1983), a penetrao de filiais de empresas estrangeiras na Amrica Latina,
que teve incio antes mesmo da primeira guerra e se aprofundou ao longo do processo de
industrializao, deu origem a uma relao simbitica entre esses capitais e a massa de capitais
nacionais que se constituram ao longo do desenvolvimento capitalista anterior, notadamente
do complexo mercantil. Segundo os autores, essa sagrada aliana se conformou como um
pacto baseado numa convergncia de interesses que teve no Estado o seu principal fiador,
guardio e administrador. Duas clusulas bsicas constituram essa aliana: a impossibilidade
das filiais estrangeiras diversificar seus investimentos para rbitas no-industriais, que ficaram
reservadas ao capital nacional; e uma concertao no que tange uma partio horizontal da
massa de lucros, garantindo aos setores nacionais uma rentabilidade semelhante ao setor
industrial.

Esse capitalismo associado estaria no cerne do surgimento de padres pervertidos de


acumulao, pautados em movimentos especulativos, patrimonialismo, hipervalorizao de
ativos e inflao, de modo que, com a crescente hegemonia do capital industrial a partir da
dcada de 1950, especialmente no Brasil, os capitais nacionais passaram a obter massas de
lucros artificiais que ultrapassavam as oportunidades de valorizao das suas rbitas. Esse o
caso do circuito imobilirio que se se converteu numa frente de operaes de transmutao e
valorizao de lucros dos capitais nacionais atravs de uma ntima e profunda relao com o
Estado. Sobre essa questo, resumem os autores:

H um mistrio nos processos de desenvolvimento urbano latino-americanos que


talvez seja parcialmente esclarecido se encararmos a cidade como o lcus de
operaes de lucros hipertrofiados dos capitais no-industriais e examinarmos a
localizao estratgica que ocupa o circuito imobilirio para a administrao da
segunda clusula do pacto bsico [partio horizontal da rentabilidade entre os setores
nacional e internacional]. Finalmente, cabe sublinhar a posio do Estado, que tem de
sancionar a hipertrofia dos lucros do capital imobilirio e liberar o caminho para a sua
sistemtica operao especulativa. Esse capital tem, nos pases latino-americanos, um
estatuto privilegiado. Funciona como um ajustador do pacto, ocupando funes que,
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em uma monopolizao avanada, so preenchidas pelo circuito financeiro. (LESSA


E DAIN, 1983, p. 227)

As caractersticas dessa sagrada aliana repercutiram de maneira profunda sobre a dinmica


urbana no Brasil. Nas grandes cidades a expanso dos equipamentos pblicos se pautou em
desigualdades regionais e locais. Em geral, os melhores servios se concentraram nas suas reas
centrais, geralmente habitadas pelas camadas mdias e altas. O incremento da populao urbana
ocorrido entre as dcadas de 1940 e 1970 impactou sobre um tecido urbano no qual a diviso
entre ricos e pobres no seio da cidade era marcada pelo tipo de habitao e no necessariamente
por uma grande separao espacial entre as classes, como salienta Caldeira (2000) sobre a
realidade de So Paulo. Mas, com a ampliao da populao urbana, a questo da habitao se
tornou um problema social. Desprovido de um salrio que pudesse suprir as necessidades de
reproduo da sua fora de trabalho (KOWARICK, 1979), incluindo-se entre elas a questo da
habitao, um grande contingente populacional passou a se deslocar cada vez mais para as
longnquas periferias desprovidas de infraestrutura e servios, onde foi obrigado a autoconstruir
suas casas.

Os grupos populares no se constituam como uma demanda solvvel do mercado formal de


habitao (GORDILHO-SOUZA, 2008) e em sua grande parte tambm no tinha condies de
pagar aluguel. Ao mesmo tempo, as legislaes urbansticas proibiam a autoconstruo de
moradias nas reas mais valorizadas das cidades e as polticas pblicas existentes eram
insuficientes. Essas dificuldades culminaram com a fixao de muitas dessas pessoas em
espaos perifricos atravs de loteamentos informais ou clandestinos, ou de invases coletivas
de terras.

Nesse sentido, a espoliao urbana (a inexistncia de uma srie de servios de consumo coletivo
e de elementos fundamentais da reproduo da fora de trabalho, como a questo da moradia)
fez com a maior parte da classe trabalhadora brasileira tivesse que suprir por conta prpria suas
necessidades. A autoconstruo da moradia um desses exemplos paradigmticos. O
suprimento dessa necessidade bsica ficou a cargo dos trabalhadores, contribuindo, assim, para
a diminuio ainda maior dos salrios, visto que essa necessidade ao ser provida por outros
meios desonerava os salrios. A construo da casa prpria demorava anos e a maior parte das
famlias que enveredou por essa soluo tinha seus oramentos comprimidos para que uma
sobra pudesse ser direcionada a este empreendimento. Dessa forma, muitos trabalhadores
tiveram que aumentar a sua jornada de trabalho ou incorporar outros membros da famlia nas
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relaes de trabalho, em especial os filhos mais jovens. A espoliao urbana, portanto, est
estreitamente relacionada explorao do trabalho, s orientaes do Estado que, fiador da
sagrada aliana, incorpora infraestrutura urbana para os interesses do mercado e da minoria
da populao, reproduzindo ainda mais espoliao e do desenvolvimento do capitalismo
brasileiro.

Considerando essa realidade, alguns autores definem o crescimento das cidades brasileiras por
um modelo denominado de padro perifrico (CALDEIRA, 2000) ou o caracterizam como uma
urbanizao por expanso de periferias (TELLES; CABANES, 2006). Esse modelo terico
caracteriza a diviso social do espao de uma cidade onde a populao de mais alta renda tendia
a se agregar no centro ou em um vetor especfico e valorizado da cidade, enquanto que a
populao de mais baixa renda tendia a se concentrar nas bordas da cidade construda, nas suas
periferias.

Esses processos no se manifestaram somente no Brasil, de modo que em vrios pases latino-
americanos surgiram expresses da espoliao urbana e da segregao scio-espacial. Atravs
de distintos nomes, cada pas nomeou seus bairros populares, marcados por dficits de
infraestrutura e servios pblicos: favelas, invases e mocambos em diferentes cidades no
Brasil, villas miserias em Buenos Aires, quebradas em Caracas, barreadas em Lima, barrios
clandestinos em Bogot, callampas e tomas em Santiago do Chile, jacales no Mxico de
maneira geral, etc. (SANTOS, 2010).

Esse padro de segregao scio-espacial pode ser atrelado aos elementos mais estruturais,
como as relaes de trabalho, mas tambm s atividades regulatrias e de atribuio espacial
do Estado, alm das aes especficas do mercado de terras. no jogo dessas relaes, que
envolvem diversos atores, por vezes com interesses divergentes, e uma relao complexa com
o Estado, que se constroem os espaos valorizados e desvalorizados da cidade, atravs da ao
do mercado que especula e se revaloriza atravs da mais-valia urbana (RIBEIRO, 1997).

Assim, a urbanizao capitalista perifrica foi marcada por muitas caractersticas que destacam
sua singularidade: as desigualdades sociais, a concentrao dos servios pblicos, a
marginalidade e vulnerabilidade social, a segregao scio-espacial e a espoliao urbana, entre
outras. Tal realidade construiu cidades desiguais, segregadas e fragmentadas.
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Sobre esses aspectos, Milton Santos [1982] resume um conjunto de aspectos da chamada crise
urbana na Amrica Latina, entre eles a questo da insegurana e do isolamento. Essas
caractersticas interessam de modo especial a este trabalho, pois sugerem que, dadas as
dimenses gerais do processo de urbanizao dessas sociedades, no parece ser possvel falar
da existncia de um espao pblico urbano que tenha sido plural, diverso, onde houvesse
padres de sociabilidade e relaes de civilidade, conforme definiu Sennett (1988). O autor
resume de maneira unvoca essas dimenses nas cidades latino-americanas:

O sentimento de insegurana agravado pelo isolamento em que se encontram as


pessoas. A especializao das tarefas, assim como as dificuldades de habitao, separa
as pessoas. Dada a dimenso das cidades, que aumentam sem cessar, as dificuldades
de transporte, as relaes de famlia e de amizade se encontram reduzidas,
consideravelmente. Doxiades (1966) observou uma frase banal, mas por isso mesmo
lapidar: na medida em que nossas cidades aumentam, aumenta tambm a distncia
entre os homens. Isto no , seguramente, um resultado exclusivo do crescimento
fsico das cidades e dos problemas materiais recorrentes. Sob o peso de novas relaes
econmicas, as relaes sociais so igualmente modificadas e o mesmo acontece com
a estrutura familiar e as relaes de vizinhana. [...] Os contatos tm a tendncia de se
tornarem impessoais, superficiais, transitrios e fragmentrios (Wirth). A cidade,
sobretudo a grande cidade, uma mquina trituradora, na qual o indivduo, imerso e
perdido na massa, aliena-se. (SANTOS, 2010, p. 172-173).

Segundo Emlio Duhau (2001), os primeiros processos de modernizao das cidades latino-
americanas, ao longo do sculo XIX e incio do XX, basearam-se num imaginrio das classes
dominantes que se inspirou nos modelos citadinos europeus, buscando produzir espaos
pblicos que hoje poderiam ser chamados de clssicos. Grandes projetos urbanos foram
implantados, como avenidas, passeios, monumentos, entre outros, que buscavam representar o
progresso nas naes que queriam ser modernas, tais como o Paseo de La Reforma na Cidade
do Mxico, as Avenidas Nueve de Julio e de Mayo em Buenos Aires, a Avenida Paulista e
Higienpolis em So Paulo (DUHAU, 2001). No entanto, prossegue o autor, o processo de
industrializao e de crescimento urbano latino-americano se configurou de maneira
completamente diferente dos pases europeus e pouco conseguiu em termos de cidadania
poltica e social, conforme tambm salientou Kowarick (2002).

As caractersticas das cidades dos pases perifricos do sistema capitalista, portanto, estiveram
fundamentadas em uma realidade especfica no que concerne relao entre segregao e
espao pblico. Outras dimenses de anlise podem levar, inclusive, a um questionamento
sobre a vigncia da separao entre pblico e privado, pelo menos na sociedade brasileira, alm
de uma discusso sobre as caractersticas dos padres de sociabilidade aqui desenvolvidos.
Vrios autores clssicos, em geral analistas da cultura brasileira, do pistas de como a lgica
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privada sempre permeou a vida pblica, o que inviabilizaria uma discusso sobre declnio do
pblico, uma vez que ele jamais existira isolado das influncias privadas.

Sem aprofundar essa discusso, vale ressaltar como a sociedade brasileira se constituiu sob a
lgica do patriarcalismo e do compadrio (FREYRE, 2005), formando homens cordiais
balizados por uma cultura de tipo patrimonialista, que desconhece a separao entre pblico e
privado, e valoriza os vnculos pessoais em detrimento de lgicas abstratas e impessoais, que
imperariam no espao pblico (HOLANDA, 1995); ou mesmo como a cultura nacional transita
pelos espaos externos, como a rua, os espaos pblicos e as instituies, a partir de lgicas
personalistas, privadas e hierrquicas, negando dimenses mais generalizantes e igualitrias
(DA MATTA, 2003), fazendo surgir expresses autoritrias como o voc sabe com quem est
falando? (DA MATTA, 1979) e hierrquicas como o famoso jeitinho brasileiro (BARBOSA,
1992).

Segundo Vera Telles (1999), a construo de espaos pblicos nos quais circulam valores,
argumentos e opinies que subsidiam uma convivncia democrtica com as diferenas e os
conflitos foi um processo bastante limitado no Brasil. Para ela, aqui se configurou uma
gramtica social muito excludente e repleta de ambivalncias no que tange aos Direitos por
conta do cotidiano de incivilidade e violncia, dos preconceitos e discriminaes existentes e
do autoritarismo que caracteriza a formao social brasileira.

Parte dessas questes reside na cultura poltica brasileira marcada por uma tradio
conservadora, hierrquica e autoritria que tem suas regras [...] plasmadas em um padro de
sociabilidade que obsta a construo de um princpio de reciprocidade que confira ao outro o
estatuto de sujeito de interesses vlidos. (TELLES, 1999, p. 86-87). Esse padro de
sociabilidade se fixa numa incivilidade que se fundamenta num imaginrio que posiciona a
pobreza e os grupos populares num patamar e com uma marca de inferioridade. Para ela, a
excluso do outro enquanto diferena significa uma sociedade sem alteridade que bloqueia a
noo de bem pblico, de modo que se constitui, pelo menos enquanto imaginrio dos grupos
dominantes, em [...] uma sociedade na qual a realidade vira o espelho de uma projeo
narcsica das elites (TELLES, 1999, p. 121).

A questo da segregao scio-espacial, dos espaos pblicos e da sociabilidade urbana, no


entanto, contraditria. No Brasil, por exemplo, a estrutura social se complexificou ao longo
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do processo de urbanizao e industrializao, trazendo para as cidades diversos grupos sociais


e estratos de classe. O trabalho se constituiu como uma forma de integrao, ainda que no para
todos, produzindo mobilidade social e sociabilidade entre as classes. A escola pblica, durante
um certo perodo, se configurou como um espao marcado pela heterogeneidade, contribuindo
para a constituio de vnculos e capital social. Tambm os espaos da cidade, seus cinemas de
rua, teatros, festas populares, entre outros, conformaram um espao pblico urbano onde havia
certo grau de mistura social.

Ainda que as ditaduras militares que existiram na Amrica Latina ao longo deste perodo
tenham impactado negativamente sobre os espaos pblicos e a sociabilidade urbana,
especialmente a partir da censura, do controle social e da represso, ao mesmo tempo as grandes
cidades viram surgir grupos de resistncia, movimentos sociais e partidos polticos, a partir do
final da dcada de 1970, que fizeram da dcada de 1980, pelo menos no Brasil, um momento
mpar da emergncia da cidadania e democracia. Os movimentos sociais operrios, de direitos
urbanos, de reforma sanitria, entre outros, esto completamente vinculados histria urbana
brasileira. Segundo Vera Telles (1999), a experincia dos movimentos sociais, das lutas
operrias e dos embates polticos que afirmavam frente ao Estado a autonomia dos sujeitos
construiu um espao pblico informal, descontnuo e plural, por onde circularam reivindicaes
diversas. Tal construo, indita no Brasil, no entanto, tem sido bastante penosa, pois a
dinmica igualitria vem esbarrando nas discriminaes repostas pela lgica das hierarquias
enraizadas na cultura poltica da sociedade (TELLES, 1999).

Segundo Anete Ivo (2010), no processo histrico de pases com altos ndices de desigualdade
as tenses oriundas da dissociao entre o econmico, o poltico e o social tm efeito sobre as
possibilidades de representaes polticas e sociais da prpria democracia, ou seja, das
possibilidades reais de construo do compartilhamento da vida social (IVO, 2010, p. 29),
dimenso fundamental da ideia de espao pblico.

Considerando esses processos, fundamental portanto ter clareza sobre as limitaes da


experincia pblica e das utopias do viver junto que esse modelo de cidade conseguiu
produzir, seguramente um tipo de espao pblico bastante diferente daquele configurado em
Paris e Londres no sculo XVIII, conforme descrito por Richard Sennett (1988), e que, de
alguma forma, serve de parmetro para suas reflexes sobre o seu processo de declnio. No
obstante, para Duhau (2001), assim como para outros autores, as transformaes econmicas,
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polticas e sociais das cidades desde as dcadas finais do sculo XX parecem potencializar as
contradies, as desigualdades e limitaes que herdou desse processo de modernizao e
urbanizao.

2.2 Transformaes contemporneas, privatizao urbana e declnio do homem pblico

Conforme observado anteriormente, as mudanas na economia mundial e o advento de uma


nova ordem mundial impactaram sobre as cidades. Ainda que esses processos sejam gerais e a
globalizao e os novos processos macroestruturais possuam uma influncia sobre a maioria
das cidades, elas no deixam de ser resultado da sua histria particular, com sua dinmica, seus
atores, conflitos e solidariedades que construram e conformaram o seu espao.

Nesse sentido, inmeras pesquisas vm discutindo os impactos desses processos nas cidades
latino-americanas (DE MATTOS, 1999, JANOSCHKA, 2002, DE MATTOS ET AL, 2005;
CARVALHO; GORDILHO-SOUZA; PEREIRA, 2004, VEIGA, 2005, DUHAU, 2005,
CARVALHO; PEREIRA, 2014, entre outros). Em geral, elas indicam que, embora tenha
havido uma ampliao na segregao scio-espacial, as grandes cidades mantm as
caractersticas gerais da estrutura urbana e social herdada do perodo anterior, com algumas
alteraes qualitativas relevantes, como o crescimento dos processos de autossegregao dos
grupos de mdia e alta renda.

Segundo Axel Borsdorf (2002), a globalizao tem produzido profundos impactos sobre a
estrutura scio-espacial, hierarquizando as cidades em funo da sua incorporao diferenciada
ao novo arranjo produtivo, contribuindo para a desregulamentao social e estatal do territrio,
alm de contribuir para a difuso de uma cultura globalizada, que valoriza os padres universais
de consumo e lazer que tem impactado sobre a importao de modalidades e padres de
sociabilidade.

Refletindo sobre essas transformaes nas metrpoles latino-americanas, como efeitos dessa
nova fase de modernizao capitalista, De Mattos (2010a; 2010b) identifica o surgimento de
um novo padro de urbanizao, uma mutao de estado que configura uma nova cidade
qualitativamente distinta da cidade industrial, uma aglomerao expandida, difusa,
descontnua, policntrica e de dimenso regional (DE MATTOS, 2010a, p. 22).
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Alm da difuso de novos padres habitacionais e investimentos imobilirios destinados s


camadas mdias e altas, observa-se entre as principais transformaes o esvaziamento das
antigas reas centrais, com o deslocamento de reas tradicionais de negcios e constituio de
novas centralidades, localizadas em um periurbano difuso e de baixa densidade. Destacam-se
tambm a proliferao de novos artefatos da globalizao de grande impacto na estruturao do
espao metropolitano, como complexos empresariais, grandes centros de comrcio e servios,
shopping centers, resorts, hipermercados, centros de convenes e espaos de lazer associados
a uma disneylandizao do tempo livre (DE MATTOS, 2010b). Ademais, perpetua-se a
segregao scio-espacial com o crescimento da heterogeneidade das reas populares e uma
acentuao da sua tendncia ocupao das bordas metropolitanas, contribuindo para a
pauperizao e degradao das condies de sobrevivncia dos moradores (CARVALHO;
PEREIRA, 2008).

Tais transformaes tiveram impactos distintos nas variadas cidades da regio. No que se refere
a Buenos Aires, por exemplo, que mais se aproximou do padro europeu, segundo Pablo
Cicolella (2001) esse modelo est cedendo espao ao padro da cidade americana (mais
dispersa e formada por ilhas conectadas atravs de autopistas). Como salienta Svampa (2004,
p. 16, livre traduo) sobre essa cidade:

Em termos mais esquemticos, o atual processo urbano tem sido descrito como um
deslocamento de um modelo de cidade aberta, basicamente europeu, centrado na
noo de espao pblico e em valores como a cidadania poltica e a integrao social,
em direo a um regime de cidade fechada mais associado ao tipo norte-americano,
marcado pela afirmao de uma cidadania patrimonialista centrada na figura do
contribuinte.

Para Cicolella (2001), essa transio do processo de urbanizao tem como uma de suas
consequncias o fato de que a cidade como mbito de sociabilidade cede espao lgica
territorial da economia global: a base econmica do territrio e as instituies polticas se
distanciam cada vez mais das pessoas, se dessocializam, desumanizam e despersonalizam
(CICCOLELLA, 2011, p. 94, livre traduo). Para este autor, as cidades se tornam
ininteligveis, desconhecidas e instveis, na medida em que ficam dependentes de fluxos
tridimensionais, de redes empresariais transfronteirias que tomam suas decises fora dos
territrios latino-americanos.

Como efeitos desse processo, Cicolella (2011) identifica um conjunto de transformaes


comuns nas cidades da Amrica Latina. Para ele, embora a abertura econmica tenha
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contribudo para a consolidao das grandes cidades latinoamericanas como pequenos ns


das redes globais, produzindo uma expanso da base econmica, o setor que mais cresce o de
servios banais, ligados ao consumo (shoppings, hipermercados, hotis, restaurantes, casas
de espetculo, etc.), diferentemente dos servios que se concentram nas cidades globais do
topo da hierarquia, ligados diretamente produo. A despeito de certo crescimento econmico,
o conjunto de processos associados abertura econmica contribuiu, em sua interpretao, para
o crescimento da polarizao social e mesmo de uma tendncia dualizao, especialmente em
Buenos Aires:
Poderia se dizer que hoje Buenos Aires mostra claramente uma organizao fraturada
e dual de seu espao urbano. De um lado, os restos do espao forjado sob uma lgica
taylorista-fordista, declinante, degradada e em vias de desestruturao socioterritorial
e, de outro, os novos espaos centrais e perifricos que respondem lgica e forma
ps-fordista, ps-moderna e ps-industrial. (CICCOLELLA, 2011, p. 150)

As anlises sobre Santiago do Chile, assim como algumas realizadas no Brasil (CARVALHO;
PEREIRA, 2006, 2008, 2014), no entanto, salientam que os ajustes neoliberais e a abertura do
pas globalizao contriburam no para uma polarizao/dualizao, mas para uma
tendncia fragmentao urbana, que se materializa na constituio de um conjunto de ilhas
que funcionam com crescente independncia uma das outras (DE MATTOS, 2010a, p. 325).
Essas ilhas em geral so formadas principalmente por enclaves fortificados. Segundo Hidalgo
e Borsdorf (2011), essas estruturas fragmentadas se produzem onde as foras do mercado atuam
com mais liberdade enquanto as estruturas tradicionais do modelo centro-periferia se
conservam onde o Estado mantm maior influncia. De acordo com Borsdorf (2002), nos pases
onde a influncia da globalizao mais forte, como no caso do Chile, h uma maior
fragmentao da estrutura scio-espacial, enquanto que naqueles menos globalizados, como
Equador e Peru, aquela estrutura ainda mais rgida, demonstrando como as transformaes
atuais ocorrem em diferentes ritmos.

A despeito das diferenas entre os diversos contextos, a literatura parece confluir para a tese de
que essa nova fase de modernizao capitalista produziu efeitos sobre a estrutura social e sobre
a ordem espacial, de modo que impactou sobre as dimenses sociais, polticas, culturais e
espaciais engendradas em outros contextos. Na atual situao, dois fenmenos so
extremamente importantes para a compreenso desse conjunto de transformaes: a ampliao
do papel do mercado imobilirio como ordenador do espao e o recuo das funes de
planejamento e gesto do Estado, ou seja, sua governana corporativa e subsidiria. Ainda que
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esses processos tenham uma dimenso geral, conforme indicou De Mattos (2014), na Amrica
Latina eles tm se manifestado de maneira bastante destacada.

Como visto, essa nova realidade surge, segundo De Mattos (2010b, p. 203), na esteira de um
amplo processo de mercantilizao do desenvolvimento urbano. O novo enfoque da gesto
urbana, fundamentado na competio e no chamado city marketing, ou seja, na busca de atrao
de capitais externos, amplia a importncia (e a liberdade) do investimento imobilirio privado
nas transformaes metropolitanas. Para o autor, o protagonismo das foras de mercado tem
reforado a vigncia de uma lgica estritamente capitalista no desenvolvimento urbano. Ao
descrever a proliferao de condomnios fechados em Buenos Aires, por exemplo, Torres
(2009) fala de um laissez-faire territorial, analogia bastante adequada para o atual momento
das cidades latino-americanas.

Essa nova dinmica, que engendra a metropolizao expandida, segundo De Mattos (2010a),
pode ser observada em diversas cidades; no apenas nas metrpoles de maior dimenso (So
Paulo, Cidade do Mxico, Buenos Aires, Lima, Rio de Janeiro, Bogot ou Santiago do Chile),
como tambm em algumas de menor tamanho relativo como Belo Horizonte, Cali, Cidade do
Panam, Concepcin, Crdoba, Guadalajara, Medelln, Monterrey, Montevidu, San Jos de
Costa Rica, Porto Alegre, Quito, Salvador, Recife, Natal, entre outras (DE MATTOS, 2010a,
p. 22; CARVALHO, 2013).

Em relao dialtica com este processo, o Estado cada vez mais abandona as suas funes de
planejamento e gesto urbana e as transfere para os atores privados, relao que tem sido
justificada atravs do discurso neoliberal do empreendedorismo urbano. Sobre esta questo,
Prez (2009) salienta que preciso recordar que as cidades latino-americanas se produziram
sobre a lgica privada, a partir de interesses capitalistas particulares do mercado imobilirio e
por interesses gerais de classe. Para o autor, durante a fase desenvolvimentista o Estado buscava
produzir determinados limites orientao privada, subordinando os interesses particulares da
produo urbana aos interesses capitalistas gerais e limitando suas atividades em prol das
garantias de reproduo da fora de trabalho, acesso a moradia e a bens. Atualmente, no entanto,
a cidade como objeto de negcio suplantou a cidade como mbito de negcios, ficando o
lucro em primeiro lugar e em segundo plano os interesses gerais de outras unidades econmicas,
da fora de trabalho e da populao em geral. Para o autor, emerge nesse novo contexto um
desequilbrio na relao Mercado-Estado pela transformao dos atores capitalistas, em funo
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do processo de internacionalizao que altera seu peso relativo frente ao Estado e aos outros
atores sociais.

A transformao no patamar da relao desses dois elementos estruturantes da realidade social


engendrou um processo de privatizao bastante acentuado, do solo urbano, da produo da
cidade e da prpria infraestrutura urbana, j que diversos servios foram privatizados ao longo
do perodo neoliberal (PREZ, 2009).

Segundo Dagnino (2004), um dos impactos perversos do neoliberalismo na sociedade civil


latino-americana que a noo de cidadania, que envolvia uma dimenso participativa coletiva
que era tratada nos espaos pblicos de modo democrtico, passa a ser entendida de forma
individualista. A nfase na responsabilidade social e na transferncia das funes estatais para
a sociedade acaba contribuindo para uma perspectiva privatista e individualista de participao
social, despida de significado poltico e coletivo. Dessa forma, perde-se a referncia a direitos
universais e emerge uma busca pelos direitos privados, que seriam garantidos pela nova
instituio capaz de ofertar cidadania, o Mercado.

Para Ivo (2010), houve uma ruptura entre os planos social, econmico e poltico com a
hegemonia liberal que, num quadro de fraturas sociais, torna difcil dar um sentido efetivo de
responsabilidades mais amplas e compartilhadas cidade.

Essas dificuldades geram fraturas no pacto civil e desengajamentos morais, com efeito
sobre as representaes que os atores individuais fazem da democracia, da
solidariedade, da cooperao, alm de reforo anomia, com o crescimento da
violncia (IVO, 2010, p. 29).

O crescimento da criminalidade violenta e a ampliao da sensao de medo nas cidades latino-


americanas so fenmenos, que associados a esse processo de privatizao, tm impactado no
padro de utilizao dos espaos pblicos e na sociabilidade urbana. Segundo Roberto Briceo-
Leon (2007), a Amrica Latina tem uma das mais altas taxas de homicdio no mundo, ainda que
os nveis variem entre os diversos pases, que se dividem entre aqueles com taxas baixas (Chile,
Argentina, Uruguai, Costa Rica e Paraguai), mdias (Peru, Equador, Nicargua e Repblica
Dominicana), altas (Brasil, Mxico e Venezuela) e muito altas (Colmbia e El Salvador).
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De acordo com Briceo-Leon (2007), as cidades na Amrica Latina que entre os anos de 1940-
1970 representavam um lugar de esperana, de busca de segurana e direitos, tm visto as taxas
de violncia aumentarem e quase dobrarem desde os anos 80. Isso gerou o crescimento dos
sentimentos de medo e insegurana que se distribuem mais igualitariamente do que a
insegurana real da populao, em funo da agncia dos meios de comunicao e dos rumores
sobre casos reais de violncia que faz com que subjetivamente a sensao se manifeste de
maneira similar entre grupos vitimizados e no vitimizados. Esses processos tm impactado
bastante sobre as cidades da regio, conforme sintetiza o autor:

O medo de ser vtima da violncia produz diversos tipos de resposta na sociedade, por
uma parte h um incremento da defesa privada e por outro uma exigncia de maior
ofensiva pblica frente ao delito. O incremento da busca de defesa procura diminuir
a exposio ao risco dos indivduos, quer dizer, de criar condies para no ser vtima,
e isso se alcana inibindo as sadas ou restringindo os movimentos em certas reas da
cidade ou a certas horas, incrementando a segurana nas prprias casas, construindo
espaos pblicos privatizados, ampliando a proteo privada. A demanda de maior
ofensiva contra os atores violentos (guerra ao crime como foi chamada em muitos
lugares) pede maior presena policial nas ruas e espaos pblicos, maior represso por
parte da polcia dos delinquentes, inclusive com apoio a aes extrajudiciais (prises
sem ordem judicial, torturas ou grupos de extermnio), e um incremento em
severidade s penas [...] (BRICEO-LEON, 2007, p. 570, livre traduo).

Segundo Luca Dammert (2013), que utilizou dados da ONU de 2010, a Amrica Latina e o
Caribe concentram a segunda maior taxa de homicdios do mundo, mas em muitos pases as
taxas das principais cidades so menores que as taxas nacionais. A despeito dessa realidade,
afirma a autora, o temor dos delitos e a fragmentao urbana so fenmenos que se reforam
mutuamente e tem contribudo para conformar um modelo de separao em que os espaos de
anonimato e temor se tornam mais frequentes que aqueles dedicados s trocas e s diferenas.
Para a autora, as cidades latino-americanas se converteram em espaos simblicos da
insegurana. Assim, afirma que a cidade como espao de interao e celebrao das diferenas
est sendo premida por ameaas que desconstroem essa ideia. Tais ameaas tm diversas
intensidades e origens e, entre elas, destacam-se problemas urbansticos, de habitao,
qualidade dos espaos pblicos, presenas de mendigos, criminosos, alm das tendncias de
fuga dos espaos pblicos que classifica como uma agorafobia, adotando a expresso de Jordi
Borja, de modo que:

Fortalece-se assim um processo de reconfigurao do espao pblico, entendido como


o lugar de reunio dos cidados, em direo aos espaos privados (centros comerciais
e a prpria casa), abandonando-se as ruas e praas da cidade. Ainda mais, o medo
impacta sobre a utilizao da cidade, o que aumenta os abismos socioterritoriais, a
segregao e a fragmentao urbana (DAMMERT, 2013, p. 391, livre traduo).
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No Brasil, especificamente, de fato, a nova fase de modernizao capitalista teve impactos


considerveis sobre a vulnerabilidade social urbana. O trfico territorializado de drogas vem
avanando, criando espaos praticamente fora do controle do Estado. O aumento das
desigualdades sociais configurou uma crise social de grande envergadura que contribuiu para a
deteriorizao das relaes de sociabilidade e de confiana, ampliando as desigualdades e a
segregao. A figura 1, que se segue, do Anurio Brasileiro de Segurana Pblica, apresenta a
evoluo das Taxas de Homicdio Doloso no Brasil desde os anos 80 e a meta definida pelo
Frum Brasileiro de Segurana para alcanar o valor considerado aceitvel de 10 homicdios
por um grupo de 100 mil habitantes at 2030.

Figura 1: Taxas de homicdio e meta de diminuio at 2030 - Brasil

Fonte: SIM/DASIS/SVS/MS. Elaborao IPEA/DIEST. * Refere-se media da variao das taxas de homicdio
naquelas UFs que tiveram reduo nos anos 2000. **Baseado em Cerqueira et al (2014) apud Anurio Brasileiro
de Segurana Pblica 2014.

Conforme se pode observar, ao longo dos ltimos 30 anos as taxas de homicdios se ampliaram
consideravelmente no pas, ainda que este no seja o nico indicador ou a nica expresso da
violncia que marca as cidades brasileiras. Como assinala Lus Antnio Machado da Silva
(2009), a percepo das transformaes ocorridas na sociedade brasileira deu origem a uma
representao coletiva sobre a violncia urbana que se fundamenta em um ncleo bsico: um
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sentimento de insegurana existencial ocasionado pela quebra das prticas e rotinas


cotidianas motivado pelas aes criminosas que ameaam a integridade fsica e a garantia
patrimonial. Para ele, a atual realidade no simplesmente um desvio da ordem institucional-
legal, o que representaria suas dificuldades de legitimidade, mas produzida por uma nova
forma de sociabilidade, a sociabilidade violenta, um modelo de relaes sociais no qual a fora
deixa de ser um meio de obteno de interesses e passa a ser o princpio coordenador das
prprias aes.

Desse modo, essa relao de sociabilidade se configura em situaes nas quais um grupo social
assume a condio de dominante impondo a fora sobre aqueles que, dominados, ficam numa
posio de subordinao naquele momento. No entanto, para o autor, h uma imensa nebulosa
de situaes intermedirias entre esses dois polos. Percorrendo essa brecha analtica, embora
seu texto no discuta tais relaes, possvel dizer que todos os mecanismos colocados em
prticas pela sociedade para lidar com a sociabilidade violenta se configuram como espcies de
estratgias de sobrevivncia nessa nova realidade social; formas de superar em alguma
medida a posio de subordinao. A nfase atual na segurana privada, a proliferao de
enclaves fortificados e a evitao dos espaos pblicos e da sociabilidade urbana so algumas
das representaes mais visveis desse processo. interessante notar, no entanto, que a
estratgia de autossegregao e de esvaziamento dos espaos pblicos, assim como a
sociabilidade violenta, tambm se fundamenta em um ncleo de fora como coordenador das
relaes sociais e se conforma to individualista quanto a outra, na medida em que lida com os
problemas coletivos e pblicos dentro de uma perspectiva privada, no sendo legitimada por
nenhuma referncia coletiva, reafirmando o tipo de cultura poltica autoritria brasileira
(TELLES, 1999). Os valores pblicos e citadinos, como a diversidade e a heterogeneidade, so
esfacelados na busca pela satisfao dos desejos pessoais de segurana, de integridade fsica e
patrimonial.

Seguindo essa trilha a partir de outras categorias, Souza (2008) considera que, embora venha
ocorrendo um aumento da criminalidade violenta no Brasil urbano, esta tambm se d de forma
segmentada no tecido metropolitano, conformando uma geografia do crime. Segundo o autor,
os crimes de homicdio, por exemplo, ainda ocorrem fundamentalmente nos bairros populares,
enquanto os bairros mais elitizados lideram principalmente os ndices de furtos e roubos.
Contudo, o que mais interfere na organizao do tecido scio-espacial nas cidades brasileiras
hoje a geografia do medo, que no exatamente igual geografia do crime. O medo
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generalizado, por vezes descolado de experincias reais, estimulados pela abordagem


sensacionalista e policialesca dos grandes meios de comunicao (certamente desejado pela
recente indstria da segurana, o capital do medo (BAUMAN, 2009), passou a influenciar
decisivamente a vida diria, os padres de circulao no espao, o habitat e as formas espaciais.
Est em curso nas cidades brasileiras o que ele chamou de militarizao do quotidiano ou,
mais precisamente, uma militarizao da questo urbana, conformando o que denominou de
fobpole (ttulo do seu livro), a cidade do medo.

Tais prticas no so to diferentes em outros contextos onde a violncia apresenta ndices


menores, como no caso do Chile. Segundo Dammert (2013), ainda que Santiago seja uma das
cidades mais seguras da Amrica Latina, sua populao vive temerosa. Em suas pesquisas, ela
identificou que os santiaguinos se sentem estranhos aos demais moradores da cidade,
especialmente devido fragmentao territorial que quebra os vnculos e o sentimento de
pertencimento; tambm se sentem estranhos aos espaos pblicos da cidade, que passam a ser
temidos, abandonados e privatizados. Isso tem gerado mudanas nas suas prticas. Segundo a
autora, duas tendncias so transversais aos diversos grupos socioeconmicos, de gerao e de
gnero: o reconhecimento dos espaos pblicos como perigosos e a preferncia pela utilizao
dos espaos privados. No entanto, os espaos vistos como perigosos variam em termos de
classe. Enquanto os grupos superiores criam estigmas sobre determinadas reas da cidade, como
o centro de Santiago, o bairro Bellavista (um dos bairros bomios e de encontro de tribos
urbanas da cidade) e mesmo sobre bairros de grupos mdios e altos, as camadas mdias receiam
os nibus e evitam transitar noite pelos espaos pblicos, frequentando-os somente em outros
horrios e com mais cuidado. Enquanto isso, as camadas populares veem seus prprios bairros
como perigosos.

Segundo Felipe Link (2013), em bairros populares de Santiago os espaos pblicos so cada
vez mais determinados pela violncia, pela desafeio dos moradores e pelo vazio de
identidade. Perdem, assim, a sua atratividade de modo que, conclui o autor, est se diluindo na
cidade contempornea a esperana da integrao social conforme simbolicamente oferecido
pelo contrato social da primeira modernidade.

No demais lembrar, como salientou Caldeira (2000), que esse processo de privatizao da
vida urbana e restrio do espao pblico no pode ser associado apenas questo da segurana,
pois est vinculado tambm a outros significados, como o direito de no ser incomodado, ou
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seja, a uma proteo contra as pessoas e grupos sociais considerados indesejveis. Ainda que a
violncia e o medo exeram um papel relevante, importante considerar os desejos de
segregao, as estratgias de distino, entre outras dimenses da vida social, como a prpria
caracterstica da cultura poltica que, no caso do Brasil, construiu relaes de sociabilidade que
negavam a reciprocidade e a igualdade no trato com grupos de outros estratos sociais (TELLES,
1999). Como destacou IVO (2010, p. 18), a relao entre cidade e espao pblico constitui uma
dimenso importante de uma sociedade fundada no contrato social.

Assim, o processo de privatizao atinge profundamente tanto a vida social, como a prpria
construo de solidariedades. Nesses contextos marcados pelos impactos das transformaes
contemporneas, a ampliao do papel do mercado na vida social e no desenvolvimento urbano
e a gesto corporativa do Estado contriburam para o surgimento e proliferao de um dos
principais vetores do processo de privatizao da vida urbana e esvaziamento do espao pblico
contemporneo, os enclaves fortificados, conforme definidos anteriormente.

Desde pelo menos a dcada de 80, mas com maior intensidade a partir dos anos 90, tais
empreendimentos vm se configurando como um um novo e sedutor produto imobilirio nas
cidades latino-americanas (CALDEIRA, 2000). Eles so oferecidos como um simulacro de
comunidade onde alguns se refugiam da insegurana e procuram pacificao em busca do
mito da felicidade controlada; e que se encontra venda (IVO, 2012, p. 137; ARANTES,
2011).

Embora tenha se espraiado para diversas partes do mundo, a literatura sugere que os enclaves
fortificados tm se difundido de maneira mais contundente nas Amricas e em especial nos
pases da Amrica Latina, onde, segundo De Mattos (2010a, p. 20), a oferta imobiliria desses
empreendimentos destinados aos setores de mdia e alta renda tm se transformado em um
destino de alta rentabilidade para capitais mveis em busca de novos negcios. Nessa regio,
os shoppings centers j existem desde pelo menos a dcada de 1960 e atualmente j possvel
encontrar condomnios fechados nas cidades com mais de 100 mil habitantes (BORSDORF,
2002). Mais recentemente, tem-se ampliado a incorporao tambm de megaempreendimentos
que ofertam moradia, trabalho, lazer e consumo em um mesmo espao fechado.

Como visto, a proliferao de enclaves fortificados est associada dinmica do mercado


imobilirio e a questes como qualidade de vida, distino, proteo e segurana. No que se
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refere aos condomnios fechados enclaves residenciais por exemplo, nas cidades brasileiras
eles despontaram principalmente nas suas grandes metrpoles. Em pesquisas sobre a cidade do
Rio de Janeiro, Luiz Csar Ribeiro (1997) localiza nas contradies do mercado urbano-
construtor o surgimento desse novo produto. Nessa cidade, uma crise desse mercado ocorrida
entre final da dcada de 70 e incio dos anos 80 o obrigou a transformar seus padres de
incorporao e alterar a dimenso da diferenciao do espao, gerando novas bases materiais e
simblicas para o sobrelucro de localizao. Como eixo desse processo,

Um novo produto colocado no mercado: o condomnio fechado que pretende


reeditar um modo de vida campestre, associativo, protegido, entre iguais, etc. Trata-
se de inventar uma nova diferenciao scio-espacial que, produzindo uma
obsolescncia simblica, fundamenta uma nova frente de gerao de sobrelucros de
localizao, resolvendo assim as dificuldades de expanso criadas no perodo anterior.
(RIBEIRO, 1997, p. 314)

Descrevendo o processo em So Paulo, Caldeira (2000) tambm identifica a gnese desse novo
conceito de moradia como uma resposta da indstria imobiliria necessidade de se construir
prdios longe do centro e em grandes lotes devido aos cdigos de zoneamento e o aumento do
preo da terra. No entanto, como parte fundamental dessa nova inveno estava o marketing e
a publicidade que anunciava essa necessidade transfigurada na escolha de um estilo de vida.

Esse novo padro de segregao residencial proliferou por vrias cidades brasileiras, desde
grandes metrpoles at cidades mdias, de modo que tem sido objeto de diversos estudos no
pas, a exemplo dos trabalhos sobre So Paulo (CALDEIRA, 2000; DOTTAVIANO, 2008),
Rio de Janeiro (RIBEIRO, 1997), Porto Alegre (MAMMARELLA e BARCELOS, 2008),
Goinia (MOYSES, 2008), Natal (SOUZA e SILVA, 2004) e Salvador (ARANTES, 2011),
entre outras cidades.

No Brasil, em geral, os tipos de condomnios fechados so bastante diversificados, em funo


do nicho de mercado a que atende, a estrutura de segurana, lazer e equipamentos, o tipo de
enquadramento legal encontrado para sua execuo, entre outros elementos. Isso significa que,
embora tenha surgido orientado principalmente aos grupos de mais alta renda, o processo de
fortificao que marca as cidades brasileiras tm se difundido tambm para outros grupos
sociais. Os elementos da arquitetura do medo (ELLIN, 2003) esto presentes de maneira
unvoca nesses contextos urbanos, muros, grades, cercas, ruas fechadas, guaritas de segurana,
entre outros elementos cada vez mais sofisticados. Atualmente, at empreendimentos populares
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subsidiados pela poltica estatal de habitao podem ser encontrados como condomnios
fechados que prometem segurana e acesso a equipamentos (ARANTES, 2011).

Esse processo tambm tem impactado nas cidades dos demais pases latino-americanos, como
Chile, Argentina, Uruguai, Equador, Colmbia e Mxico, entre outros (BORSDORF, 2002;
SABATINI, CRCEREZ E CERDA, 2004, SVAMPA, 2001 e 2004, PREZ, 2009; TORRES,
2009, HIDALGO E BORSDORF, 2011, CICOLELLA, 2011).

Segundo Sabatini, Crceres e Cerda (2004), a construo de condomnios cerrados para as


classes mdias e altas fora das reas tradicionais de concentrao dessas classes a mais notria
e extensa alterao na estrutura interna das cidades chilenas nos ltimos anos. Em Santiago do
Chile, uma tipologia de enclaves fortificados tm se destacado como expresso desse processo
de fortificao e privatizao urbana, as chamadas ciudades valladas, megaempreendimentos
que concentram de 50 a 100 mil habitantes, possuem diversos itens de segurana, servios e
lazer e so destinados a diferentes estratos de classe (HIDALGO e BORSDORF, 2011).
Segundo Rodrigo Hidalgo (2004, s.p., livre traduo), a ciudad vallada a expresso chilena
dos grandes projetos que se criaram na Argentina e no Brasil [...] situao que mostra a
proximidade que existe nos desenhos destas intervenes e a nova forma em que constroem os
espaos urbanos nas cidades do Cone Sul.

Na Argentina, esse processo tambm tem ocorrido de maneira aprofundada (CICOLELLA,


2011; SVAMPA, 2001 e 2004; PREZ, 2009; TORRES, 2009). A proliferao dos chamados
barrios privados se tornou um processo de grande impacto na Regio Metropolitana de Buenos
Aires pela magnitude, velocidade e localizao suburbana dos empreendimentos. Segundo
Cicolella (2011), durante os anos noventa, investimentos da ordem de 4,5 milhes de dlares
foram responsveis pela construo de cerca de 300 urbanizaes privadas, cada uma com uma
mdia de 100 hectares, somando cerca de cinco milhes de m construdos e uma superfcie
total urbanizada de 300 km, uma vez e meia a superfcie total da cidade de Buenos Aires. Essa
tipologia expandiu em dez anos a superfcie total urbanizada da RMBA em 10%, um fenmeno
que Torres (2009) denominou de suburbanizao das elites.

Para Svampa (2004, p. 12, livre traduo), num contexto de fortes impactos do neoliberalismo,
e contrariando a histria urbana argentina inspirada em um modelo de cidade europeu (onde a
cidade local de encontro entre categoriais sociais diferentes, suporte a um modelo misto de
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socializao), [...] comearam a se levantar, para a surpresa de muitos, os muros da cidade


privatizada, rapidamente convertida no refgio das classes altas, mdia-altas e dos setores
mdios em ascenso, fazendo surgir o que interpretou como la brecha urbana, uma fratura
social expressa no tecido da cidade.

Conforme assinalado, esses empreendimentos proliferam tambm por outras cidades latino-
americanas. Na Cidade do Mxico, Duhau (2005) identifica o surgimento de tipologias
territoriais marcadas pela fragmentao e privatizao (condomnios fechados, espaos de
consumo e lazer, novas centralidades, etc.) que

Quando correspondem a grupos de renda mdia alta e alta [...] implicam uma
organizao da vida cotidiana baseada na automobilizao, na privatizao sob a
forma de propriedade coletiva de espaos e bens associados funo residencial, e o
espao de proximidade (reas de acesso moradia, reas verdes e recreativas,
equipamentos sociais, e desportivo-recreativos); o efeito tnel, produzido por
traslados em automvel de porta a porta; mecanismos de segurana auto-instalados
na residncia e no espao de proximidade, mediante dispositivos de cerrada vigilncia
e controle; e, em geral, uma relao com a cidade que se reduz e, de fato, a constri
praticamente como conjunto de localizaes pontuais e de artefatos especializados
(clnica ou hospital privado, centro comercial, conjunto de cinemas multiplex, reas
de concentrao de restaurantes que dispem de valet parking, etc., etc.). (DUHAU,
2005, p. 373)

O processo de fortificao comeou nas cidades latino-americanas com a expanso dos


shoppings centers e seguiu com a incorporao de variados enclaves fortificados, condomnios
fechados, empreendimentos multifuncionais, edifcios comerciais e de servios, entre outras
expresses urbanas de um processo que contribui para a restrio do uso dos espaos pblicos.
Esses empreendimentos marcam um modelo de cidade em que as relaes se transplantaram
para espaos privatizados nos quais as pessoas se convertem em usurios (pautados em
trajetrias e interesses individuais) mais do que cidados, com objetivos e propsitos em
comum (DAMMERT, 2013).

Em sntese, refletindo de maneira mais ampla esses processos, conforme observado


anteriormente, Duhau (2001) acredita que tem havido nos pases da Amrica Latina uma crise
do espao pblico. Como evidncia disso, ele identifica o enclausuramento dos setores mdios
e altos, a construo de barreiras fsicas, eletrnicas e simblicas e a proliferao de formas de
vigilncia e controle dos grupos sociais considerados perigosos. Para ele, essas prticas so
respostas crise ao mesmo tempo em que contribuem para ela seja enfrentada a partir do que
chama de balcanizao ou feudalizao da gesto urbana (DUHAU, 2001, p. 57-58, livre
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traduo), isto , a partir de um pseudo comunitarismo defensivo (s vezes, muito agressivo)


que busca proteger o valor das propriedades, controlando as externalidades urbanas e mantendo
o exclusivismo dos espaos residenciais. Emerge para o autor uma forma diferenciada de se
relacionar com o pblico (ou de neg-lo), uma condominizao da cidade, fundamentada em
interesses privados que no ultrapassam a escala condominial. Ao se segregarem em enclaves
homogneos, as camadas de mdia e alta renda adotam uma atitude de indiferena frente ao
espao pblico clssico, reduzindo suas responsabilidades ao mbito da sua moradia.

Por outro lado, segundo o autor, tomando como referncia a realidade da Cidade do Mxico, as
camadas populares,
usam intensivamente o espao pblico tradicional colonizando-o atravs de suas
prticas econmicas, de mobilidade, de consumo e recreao [e] impe sobre ele sua
prpria esttica, marcada pela ausncia de uma cultura cvica que permita assumir o
pblico como prprio e ao mesmo tempo de todos e, por conseguinte, como algo que
deve ser respeitado e cuidado (DUHAU, 2001, p. 62, livre traduo).

Para Duhau (2001), a proliferao desses comportamentos ao mesmo tempo expresso e causa
da crise do espao pblico e da crise de regulao do Estado.

J segundo Patrcia Ramrez-Kuri (2008 e 2009), que realizou pesquisas na mesma cidade,
atualmente a construo do pblico mostra tendncias contrapostas: de um lado, sua diluio,
fragmentao e excluso e, de outro, o ressurgimento de novas formas de relao, comunicao
e participao. Segundo a autora, a utilizao dos espaos pblicos em cidades segregadas,
marcadas por processos de modernizao onde a desigualdade e a pobreza tiveram dimenses
relevantes, caracterizada por uma diversidade de atores, usos, interesses e demandas que tm
gerado conflitos, de modo que [...] o espao pblico vivido por grupos diferentes no cumpre
o papel assignado teoricamente como lugar predominantemente integrador, protetor dos direitos
cidados, provedor de bem-estar e gerador de prticas democrticas (RAMREZ KURI, 2008,
p. 124, livre traduo).

Nas cidades latino-americanas, continua a autora, existem mltiplos lugares pblicos e


semipblicos dispersos e segmentados, de distinta qualidade fsica e relacional. A interconexo
entre eles depende de elementos como as escalas em que se desenvolve a vida cotidiana das
pessoas, o espao que as classes ocupam na estrutura social urbana, as condies mais amplas
de oportunidades de acesso a servios e trabalho, alm dos gostos, hbitos, preferncias e
prticas sociais e de consumo dos distintos grupos. Sobre a cidade do Mxico, Ramrez Kuri
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(2008) salienta a existncia de uma diversidade de espaos pblicos que exibem fenmenos
discrepantes de sociabilidade e conflito, modernizao e massificao, mercantilizao e
informalidade, inovao, segregao e desigualdade, assim como insegurana, violncia e
medo. Nesse sentido, em meio a fenmenos como o abandono dos espaos pelas elites e a sua
privatizao, o espao pblico da Cidade do Mxico caracterizado por ela como um lugar de
disputas e competies, que cruza sociabilidades e formas distintas de comunicao e ao, mas
que reflete nos seus usos as condies gerais da segregao urbana e da desigualdade social da
cidade. Dessa forma, conclui: Na Cidade do Mxico, falar de espao pblico como o referente
do mundo urbano comum a todos os habitantes na atualidade mais uma ideia necessria do
que uma realidade explcita (RAMREZ KURI, 2008, p. 131, livre traduo). Essas
caractersticas, segundo a autora, so comuns s cidades marcadas pelo tipo de urbanizao
capitalista perifrica, tal qual discutida anteriormente.

A despeito dessas limitaes, boa parte da literatura tem indicado como as transformaes
metropolitanas da atualidade vm aprofundando as tendncias de privatizao e restrio do
espao pblico, impactando sobre a urbanidade, os padres de sociabilidade entre as classes e
os direitos de cidadania.

Se a emergncia dessas tendncias de fuga dos males da cidade (ARANTES, 2011) foi uma
resposta que a crise dos espaos pblicos explica, as diversas estratgias de privatizao e
retraimento, por sua vez, contribuem para que ela seja enfrentada a partir de mecanismos
privados, desconstruindo, portanto, a ideia clssica de espao pblico. O mesmo acontece com
o abandono das camadas mdias e altas dos espaos de uso coletivo, dos estabelecimentos
comerciais de rua e mesmo dos servios pblicos, fazendo surgir sistemas apartados de ensino
e sade, por exemplo, o pblico e o privado. Se a queda da qualidade desses servios explica a
migrao para os servios privados daqueles detentores de capital econmico suficiente, o
problema deixa de ser compartilhado por todos, engendrando solues individualistas,
impactando negativamente sobre a solidariedade social. Associa-se a isso a incapacidade e as
limitaes do Estado nas suas formas de gesto e sua omisso no que concerne a uma poltica
voltada para os espaos pblicos das cidades (RAMREZ KURI, 2008).

Considerando estes elementos, autores como Figueiredo (2012) tm falado de uma tendncia
de desurbanizao das metrpoles latino-americanas. Essas tendncias associam-se ao que o
autor ironicamente chamou de manual rpido de destruio de cidades, ou seja, o incentivo
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ao automvel particular, os dficits do transporte pblico, a construo de muros altos, torres


de edifcios e condomnios fechados pautados em uma arquitetura desurbana, a reduo da
diversidade de usos que culmina na homogeneizao das reas da cidade, a segregao e a
priorizao dos investimentos privados em detrimento do pblico. Segundo suas consideraes,
est em curso um processo de desurbanidade que acontece quando o ambiente construdo e
suas estruturas auxiliares [...] impedem ou pelo menos restringem encontros e a copresena
entre pessoas de classes ou estilos de vida distintos, separando-as em espaos privados ou
semipblicos [...] (FIGUEIREDO, 2012, p. 217).

Para alm do ambiente construdo, as prticas e imaginrios sociais parecem caminhar numa
direo que privilegia os espaos privados, a sociabilidade homognea, a intimidade, a vida
comunitria em detrimento da vida pblica, compartilhada com os desconhecidos, mais
aberta, imprevisvel e incontrolvel, fazendo surgir assim a necessidade de estudos sistemticos
sobre esse processo.
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CAPTULO 3

SEGREGAO E USOS DOS ESPAOS PBLICOS EM


SALVADOR:
DA CIDADE TRADICIONAL METROPOLIZAO
INDUSTRIAL
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A cidade do Salvador foi fundada em 29 de maro de 1549 com o claro objetivo de se constituir
como uma cidade fortaleza onde se concentraria a administrao portuguesa do territrio
brasileiro. Com o desenvolvimento progressivo da agricultura nas cercanias da cidade, em
especial na regio do Recncavo, Salvador se tornou tambm um dos principais portos e um
centro comercial importante. Nesse ambiente urbano, inicialmente planejado e edificado
intramuros, comearam a se desenvolver complexas tramas sociais que articulavam o Estado
portugus, a Igreja Catlica e os grandes agentes privados ligados produo agrcola, alm
dos escravos e dos poucos homens livres (GORDILHO-SOUZA, 2008).

A ocupao da cidade colonial manteve suas principais caractersticas at o final do sculo XIX,
quando tem incio um longo perodo de modernizao do espao, que impulsionado e
consolidado em meados do sculo XX. At basicamente o sculo XIX, Salvador permaneceu
praticamente restrita s zonas contguas ao centro histrico e alguns povoados mais distantes,
conforme descrio abaixo, que ilustrada pela Figura 2, que se segue.

Segundo descrio do final do sculo XVIII, contida nas cartas de Vilhena, Salvador
era constituda do corpo da cidade, abrigando muitos edifcios pblicos e casas de
trs a quatro andares, no qual estavam contidas trs grandes praas Piedade, Palcio
e Terreiro de Jesus , completado por mais seis bairros que o circundavam no limite
sul, o bairro de So Bento; ao poente da cidade, o Bairro da Praia; ao norte, Santo
Antnio alm do Carmo; na parte do nordeste, os bairros de Palmo, Desterro e Sade.
Alm dos pontos mencionados, havia acessos aos povoamentos localizados na
extremidade sul, em Vitria, Graa, Barra e Rio Vermelho. (GORDILHO-SOUZA,
2008, p. 85)

Figura 2: Evoluo urbana de Salvador, 1600-190019

Fonte: Adaptao do Atlas Escolar Bahia: espao geo-histrico e cultural. 2 Ed. Joo Pessoa: Grafset, 2004 apud
CARVALHO e PEREIRA, 2008.

19
Os mapas oficiais do municpio nesse perodo no incluam povoados mais distantes, que j existiam nos
arrabaldes da cidade, como Barra e Rio Vermelho, entre outros. Para alm disso, os mapas apresentam uma viso
geral da concentrao da ocupao at o final do sculo XIX.
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De acordo com Gordilho-Souza (2008), nesse momento ainda no existia uma separao dos
diversos grupos sociais no espao, uma vez que a moradia se concentrava fundamentalmente
no centro histrico e a segregao se dava no interior da prpria habitao. Em geral, havia
superposio de funes (moradia, comrcio e produo) num mesmo sobrado, tpica residncia
da poca, de modo que os escravos habitavam a mesma residncia dos senhores, nos pores,
locais de produo e cozinhas enquanto esses habitavam os locais privilegiados da edificao,
em especial os andares superiores. No que tange ao uso dos espaos,

At finais do sculo XIX, a populao vive misturada. Ao lado de um sobrado, pode


estar uma casa trrea, com uma porta e uma janela. Um sobrado pode abrigar uma
nica famlia ou muitas. Os bairros abrigam escravos e libertos, mestres, artesos e
funcionrios, burgueses e nobres. Podem ser residenciais e comerciais ao mesmo
tempo. Numa mesma rea, podem realizar-se vrios tipos de atividades (PINHEIRO,
2011, p. 185).

No obstante, conforme destaca Ferreira Filho (1999), constituda por uma sociedade colonial
e patriarcal, Salvador teve um projeto urbanstico que no contemplou maior dedicao e zelo
pelo espao pblico, pois eram os espaos privados os lugares centrais da vida comunitria,
especialmente dos grupos dominantes. Dessa forma, a rua [...], constantemente desprestigiada
por encarnar a metfora de todos os vcios, transformou-se num lugar dos excludos. Escravos
de ganho, libertos, pobres, mendigos, prostitutas, ladres e vagabundos [...] (FERREIRA
FILHO, 1999, p. 239).

Ainda que a cidade fosse pequena e sua formao concentrasse as principais funes urbanas
nos distritos centrais, aproximando distintos grupos e diversas atividades, no havia relaes
igualitrias e amplas entre eles em funo da estratificao colonial da sociedade, da dominao
senhorial e masculina, alm da escravido. Diferentemente das cidades europeias, que se
constituram num contexto de emancipao do sistema feudal e da formao de modelos de
sociedade inspirados nos ideais iluministas, liberais e democrticos, Salvador, assim como as
demais cidades coloniais brasileiras, serviram durante muito tempo aos objetivos de
organizao e controle do territrio nacional e das estratgias da colonizao sob um regime
escravocrata.

Esse modelo de sociedade e de cidade comeou a se alterar com a emergncia dos primeiros
impulsos modernizadores, que emergiram a partir do sculo XIX. Nesse contexto, algumas
transformaes se produziram. Em termos espaciais, se ampliou e se adensou a rea construda
do ncleo original, elevando-se o permetro da rea urbanizada, principalmente em direo
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pennsula de Itapagipe que, desde j, comeou a se configurar como uma rea que agregava
setores populares e a primeira camada operria da cidade. Segundo Gordilho-Souza (2008, p.
88), nessa fase comeou a emergir um outro processo de separao espacial da habitao,
diferenciada daquela que caracterizou a cidade colonial nos seus primrdios. [...] esboada na
separao de classes de renda na escala da cidade. Nesse momento, segundo Milton Santos
[1950], enquanto as camadas populares adensavam o centro histrico e tendiam para
localidades situadas ao norte, Liberdade e So Caetano, as camadas altas comearam a se
direcionar para o sul, s localidades do Garcia, Canela, Vitria, Graa e Barra.

Para o sul surge o bairro da Vitria, constitudo por grandes e belos palacetes,
rodeados de jardins, residncias de uma burguesia enobrecida pela explorao da
terra. Para o norte formam-se bairros habitados pela classe mdia e pobre. Essa
extenso da cidade tornou-se possvel pela instalao das novas vias de comunicao
e meios de transporte [...] (SANTOS, 2008, p. 52)

Sob o impacto de obras pblicas e privadas, a cidade do Salvador comeou a se modernizar e


transformou-se tambm em um importante centro bancrio em meados do sculo XIX. Em
1869, implantado o Sistema Ferrovirio na Bahia, tendo Salvador como ponto central, que
passou a ter ligao com o recncavo no mais apenas a partir do transporte martimo. O
primeiro trecho implantado saa do bairro da Calada para Alagoinhas, ampliado
posteriormente para um trecho ao longo da borda da Baa de Todos os Santos, interligando
ncleos de ocupao que posteriormente constituram os subrbios ferrovirios. Segundo
Fernandes e Gomes (1992), o advento dos transportes pblicos desempenhou um papel
fundamental na configurao da segregao scio-espacial em Salvador, pois rompeu com a
necessidade de superposio espacial entre moradia e local de trabalho e facilitou uma fuga das
reas mais congestionadas e insalubres da cidade para os grupos de maior renda.

Data tambm desta poca o incio de um processo de segmentao na cidade na perspectiva


higienista e funcional. Com o surgimento de diversas epidemias causadas pelo movimento
constante do porto e pela deficincia de estrutura urbana, a prefeitura passou a estabelecer
normas e controles sobre os procedimentos de higiene na cidade e, a partir de 1893, adotou as
primeiras medidas que proibiam as construes de cortios e edificaes insalubres
(GORDILHO-SOUZA, 2008). Por outro lado, para a classe operria emergente foram
idealizados modelos de habitao proletria, representadas pelas chamadas evneas que se
constituram posteriormente como vilas operrias. Nesse sentido, as habitaes para as diversas
classes se tornaram cada vez mais diferentes, em termos de infraestrutura e de localizao no
P g i n a | 108

tecido urbano da cidade, fazendo emergir um sistema de excluses com a perda gradual das
superposies e misturas sociais no espao (FERNANDES E GOMES, 1992).

Teve incio, portanto, um processo de segregao scio-espacial que distanciou as diversas


classes dentro do tecido urbano, direcionando grupos distintos para reas de inseres
diferenciadas, com caractersticas e estruturas tambm desiguais, uma condio diferente do
modelo de segregao que marcou a cidade at o final do sculo XIX. Essas primeiras
transformaes ocorridas em uma cidade que permaneceu praticamente estvel durante 300
anos se configurou como um perodo de gestao de um longo processo de modernizao
urbana e de construo idealizada da cidade (FERNANDES e GOMES, 1992) que apenas
atingiu seu auge na conformao da metrpole industrial, a partir da segunda metade do sculo
XX.

No incio do sculo XX a modernizao de Salvador se baseou bastante na ampliao dos


investimentos governamentais. Nesse aspecto, paradigmtico o primeiro governo de J.J.
Seabra, governador da Bahia entre 1912-1916, que concentrou um surto de modernizao
pautado por diversas demolies para alargamento e criao de vias como a Av. Sete de
Setembro, a Rua Chile, a Misericrdia, a Ajuda e a Praa da S, alm do crescimento do antigo
bairro da Praia, o Comrcio, que ganhou terreno ao mar em sucessivos aterramentos
(GORDILHO-SOUZA, 2008; PINHEIRO, 2011).

As reformas urbanas do governo de J. J. Seabra so ilustrativamente relevantes no que tange ao


uso dos espaos pblicos e sociabilidade urbana em Salvador no incio do sculo XX. De
maneira geral, as justificativas para as reformas se referiram aos dficits da estrutura da cidade
que, ainda eminentemente colonial, dificultava a circulao de pessoas e mercadorias, alm de
produzir insalubridade urbana e epidemias. No obstante, segundo Elosa Pinheiro (2011), elas
estiveram atreladas a uma idealizao da burguesia emergente e das autoridades pblicas que
sonhavam com uma cidade regular, higinica, funcional, fluda, homognea, equilibrada,
sincronizada e bem administrada, ou seja, uma cidade mais prxima quela idealizada como
civilizada. Assim, as reformas buscaram intervir no espao pblico da cidade, mas tambm
no espao privado, na tentativa de tambm transformar os hbitos de vida da populao.
Segundo Pedro Vasconcelos (2002), ao longo desse perodo ocorreu um processo de
europeizao da cidade do Salvador.
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Nesse aspecto, alguns elementos, entre eles a dimenso da esttica urbana, foram utilizados
para dar um novo sentido pblico cidade, associado aos iderios modernos, na perspectiva de
criao de uma nova cidade e de uma nova sociabilidade. Segundo Pinheiro (2011, p. 215), os
espaos pblicos, as ruas e praas, foram embelezados com a colocao de esculturas e
mendigos foram retirados e internados em albergues. Os novos espaos criados, como a Rua
Chile, no Distrito da S, tiveram seus usos alterados e se transformaram em ambientes chic,
onde as pessoas dos grupos superiores, elegantemente vestidas, passaram a circular pelas
confeitarias e lojas que se inauguraram. Conforme sintetiza Pinheiro (2011, p. 215):

A elite idealiza uma cidade europeizada e branca, mas encontra limites para sua
materializao, por ser Salvador uma cidade composta por aproximadamente 75% de
negros e mestios. Como alternativa, a burguesia cria espaos onde possa fabricar essa
cidade idealizada, europeizada Barra e Ondina, alm de Vitria e Graa. [...] A nova
distribuio da populao na cidade um projeto da burguesia, que at pouco tempo
atrs tinha interesse em conviver com as classes de baixa renda e os escravos, pois
esses lhe prestavam servios fundamentais, como jogar fora os dejetos ou transport-
la de um lado ao outro.

Segundo Ferreira Filho (1999), o que ocorreu nesse perodo foi um processo de higienizao
dos espaos pblicos da cidade que teve como resultado uma desafricanizao das ruas.
Segundo o autor, esse processo foi muito alm das reformas implementadas nos governos de
J.J Seabra (1912-1916) e Gos Calmon (1924-1928), pois envolveu tambm a gesto municipal.
Fazendo coro s reformas estaduais, a comisso de posturas do Conselho Municipal logo em
1912 dedicou especial ateno ao pequeno comrcio de alimentos, principalmente de rua,
realizados geralmente por mulheres descendentes de escravos. Alm disso, desde a segunda
metade do sculo XIX as autoridades pblicas j vinham investindo contra as festas populares,
ao proibir o entrudo20 e instalar o carnaval, festa considerada mais familiar e ordeira.
Posteriormente o prprio carnaval sofreu intervenes como o controle sobre os temas das
sociedades carnavalescas e a proibio dos clubes africanos que faziam batuques (FERREIRA
FILHO, 1999).

Para Ferreira Filho (1999), as reformas na cidade tiveram o objetivo de preparar o espao
pblico para o trnsito das ditas famlias (mais abastadas). Nesse novo contexto, as mulheres

20
Segundo Paulo Miguez (2014), os registros dos entrudos no Brasil datam do sculo XVII. Eram um conjunto de
brincadeiras que se realizavam nos quarenta dias que antecediam quaresma, espcies de guerras em que os
contendores utilizavam como armas limes ou laranjinhas de cheiro. Nas ruas, as brincadeiras populares eram
consideradas violentas e grosseiras, pois contavam com o lanamento mtuo de lquidos, muitas vezes urina ou
smen que, no raro, descambavam para a violncia. Havia uma presena marcante da populao negra que
ocupava as ruas com suas msicas e danas (MIGUEZ, 2014).
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foram chamadas ao espao pblico, como parte do novo cdigo das obrigaes domsticas,
fazendo romper a clausura do perodo colonial. No obstante, o contraponto principal a essas
mulheres eram as prostitutas e as trabalhadoras de rua, que demarcavam um limite entre o
projeto de civilizao das elites letradas e a considerada barbrie dos povos pobres e pretos. As
mulheres pobres e trabalhadoras no cabiam no postal belle poque de cidade desenhado pelos
governantes e pelos grupos dirigentes.

Para alm dos projetos e desejos, as reformas urbanas idealizadas no chegaram a ser
completamente implementadas principalmente em funo de limitaes oramentrias. A partir
da dcada de 1920, Salvador e o Recncavo enfrentaram um perodo de forte estagnao
econmica, configurando o que ficou conhecido como o enigma baiano. Esse processo apenas
foi superado em meados do sculo XX, com os investimentos estatais, inicialmente a partir da
implantao da CHESF Companhia Hidreltrica do So Francisco na Bahia e das atividades
da Petrobrs na regio. Entre 1890 e 1940, a populao de Salvador cresceu apenas 66,53%,
uma taxa insignificante comparada a Rio e So Paulo, perdendo o posto at de terceira maior
cidade do pas para Recife (PINHEIRO, 2011).

Por isso, at os anos 1940 a cidade se transformou com mais evidncia na rea edificada, no
demonstrando uma ampliao considervel dos limites urbanizados. At esse perodo a
habitao ainda no era uma questo social em Salvador pois a ocupao espontnea em
diversas reas perifricas, fundos de vale, antigos stios e chcaras ou prximas s vilas de
pescadores, no era considerada um problema. Essas reas, em geral, eram pouco valorizadas,
pois eram inacessveis e desprovidas de infraestrutura. Contudo, ainda nessa dcada, o
crescimento da migrao rural-urbana em direo a Salvador, causada pela decadncia da
agroindstria aucareira e fumageira, impactou sobre a estrutura social e urbana da cidade.

Segundo Carvalho e Alves de Souza (1980), at a dcada de 1940 a organizao capitalista da


produo em Salvador se estendia quase que exclusivamente aos setores ligados s atividades
agroexportadoras, que empregavam principalmente indivduos dos estratos mdios e altos. O
fraco desenvolvimento das foras produtivas e a penetrao lenta e restrita do capitalismo
impediam a absoro de segmentos numerosos que trabalhavam em atividades no-capitalistas,
de baixa remunerao, instveis e precrias (como artesanato, pequeno comrcio, servios
informais e pessoais, como trabalhos domsticos, etc.) engendrando uma estrutura social
heterognea, marcada por desigualdades sociais e tnicas, associadas a altos ndices de pobreza.
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O crescimento da imigrao associado concentrao fundiria da cidade, a emergncia de


procedimentos tpicos de um moderno mercado capitalista de terras (como o controle de glebas
espera de sua valorizao) e os elevados ndices de pobreza geraram na dcada de 40 uma
primeira crise habitacional. Com o aumento dos e a impossibilidade de uma grande parte da
populao ter acesso ao solo urbano formal e legalizado, despontaram movimentos coletivos
de ocupao de terras que passaram a ser conhecidos como invases e ampliou-se o nmero
de loteamentos clandestinos (BRANDO, 1981). Essas formas de habitao foram a alternativa
para um grande contingente populacional de prover as suas necessidades de habitao, visto
que as polticas pblicas habitacionais eram insuficientes e o mercado formal era acessvel
apenas s classes altas (BRANDO, 1981; GORDILHO-SOUZA, 2008). Segundo Pedro
Vasconcelos (2002 e 2011), o primeiro plano urbanstico de Salvador elaborado pelo EPUCS
(Escritrio do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador) entre 1943-1947 avaliou que 75%
da populao vivia em favelas ou cortios.

Essa realidade complexifica a problemtica urbana da cidade na medida em que a segregao


social e espacial aprofunda ainda mais o afastamento das pessoas no espao urbano e impacta
sobre as possibilidades de constituio de um espao pblico mais amplo e mais afeito, por
assim dizer, s relaes de sociabilidade entre diferentes grupos sociais.

3.1 A vida urbana em Salvador entre as dcadas de 1950 e 1970: espaos pblicos e formas
de encontro

Segundo Vasconcelos (2002 e 2011), o perodo entre 1945 e 1969 pode ser compreendido como
um momento de pr-metropolizao de Salvador, quando houve grande expanso urbana
influenciada por nveis considerveis de migrao e estavam sendo construdas as bases
econmicas e territoriais do processo de metropolizao que viria a se configurar somente na
dcada de 70.

No entanto, como destaca Santos Neto (2012), a urbanizao de Salvador ainda se dava
fundamentalmente em torno do centro histrico, mesmo que nesse perodo j houvesse alguns
bairros desgarrados, realidade que se manteve pelo menos at as reformas urbanas ocorridas
no final da dcada de 60. De maneira geral, os limites da cidade eram a regio da pennsula de
Itapagipe e o bairro de Amaralina. Segundo Vasconcelos (2002), um mapa de Salvador
elaborado por Aroldo de Azevedo em 1951 representava a cidade cobrindo uma rea que ia de
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Itapagipe ao Rio Vermelho com trs concentraes principais: a rea central, a pennsula de
Itapagipe e a rea da Barra. A mancha da ocupao urbana em 1940 pode ser observada na
Figura 3, que se segue:

Figura 3: Ocupao urbana de Salvador, 1940

Fonte: PDDU Salvador 2000. / PLANDURB. Evoluo Demogrfica (1940-2000), 1976. Imagem Fundo:
Fotografias areas CONDER, 1998. E= 1:40.000/ Fotomontagem: Fernando Teixeira Apud PMS, 2009.

De acordo com a descrio de Santos Neto (2012) presente em seu livro de memrias, a cidade
ainda tinha uma certa influncia rural, principalmente para aqueles que viviam nos bairros mais
distantes, em stios e chcaras. Sua estrutura era precria, especialmente na oferta de servios,
como energia eltrica. O sistema de bondes era o principal meio de transporte.

[...] se est falando de uma cidade onde no havia nibus e na qual os automveis
eram raridades, visto que no circulavam por todos os lugares. Naquele momento, a
cidade estava preparada para ser servida por um eficiente sistema de transporte
coletivo que tinha, entre outras vantagens (como, por exemplo, a pontualidade), o fato
de ser mais republicano, ou seja, por no fazer distines de classe, etnia ou renda
como hoje. [...] O bonde era mesmo contraditrio: integrava as pessoas sem distino
de classes, mas oferecia caminhos nicos sem opcionais. (SANTOS NETO, 2012, p.
36-37)

A cidade era pequena e, segundo o autor, muitos caminhos se cruzavam. Era comum dizer que
todos se conheciam (o que no era exatamente preciso), porque os rostos se tornavam familiares
numa cidade em que diversos grupos, especialmente as camadas mdias, utilizavam
basicamente o mesmo espao, a regio entre a Praa da S e o bairro de So Pedro. Pelo menos
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at a dcada de 1970, a imaginao conseguia definir claramente os limites urbanos da cidade


formal, conforme define o referido autor: [...] Cidade-Baixa, Cidade-Alta, comrcio de luxo
na Rua Chile e redondezas e comrcio de varejo pobre na Baixa dos Sapateiros (SANTOS
NETO, 2012, p. 75).

Segundo suas memrias, a elite da cidade circulava em automveis americanos e morava em


bairros como Graa, Vitria, Barra e Barra Avenida. Em geral, divertia-se em clubes sociais
fechados e no participava da vida mundana da cidade como o carnaval de rua e as festas de
largo. As camadas mdias viviam em bairros como Nazar, Brotas, Santo Antnio, Lapinha,
Rio Vermelho e Itapagipe. Os grupos populares, por sua vez, viviam em bairros como
Liberdade, So Caetano, nos fundos de vale e em ncleos suburbanos mais distantes21. O centro
da cidade exercia um importante efeito polarizador. Dessa forma, a cidade mesmo possuindo
traos que a identificavam como uma sociedade heterognea e com uma cidade onde a excluso
no era disfarada, a regio central parecia ser um lugar de todos (SANTOS NETO, 2012,
p. 393).
Tudo acontecia no centro da cidade, nico espao onde as pessoas se reuniam como
lugar de todos, ou seja, a cidade daquela poca dava a impresso de serem os bairros
setores privados ou particulares, territrios exclusivos de seus moradores. Assim,
somente no centro da cidade as pessoas poderiam se sentir vontade, e no por outra
razo que era ali que surgiam os tipos populares, bbados famosos, os malucos com
suas manias (SANTOS NETO, 2012, p. 394).

Segundo os relatos colhidos os bairros no possuam infraestrutura de comrcio e servios, de


modo que a cidade como um todo era dependente da centralidade exercida pela Avenida Sete
de Setembro, a regio do chamado Comrcio, a Baixa dos Sapateiros e a Rua Chile, conforme
destaca Pedro Vasconcelos (2002, p. 315, grifo original):

O comrcio, nesse perodo de pr-metropolizao, no tinha ainda mudado para


formas mais modernas e descentralizadas. At o final do perodo, o comrcio de nvel
mais elevado ainda estava concentrado ao longo da rua Chile e da avenida Sete de
Setembro, nas quais se destacavam as lojas de departamento, com mais de um piso, e
as primeiras galerias.

21
Para o Congresso Internacional de Geografia, de 1956, foi preparado um guia de viagem sobre a Bahia, por
Domingos e Keller. [...] Destaca-se a diviso efetuada pelos autores, da localizao das classes em Salvador. A
classe mais abastada estava localizada na Vitria, Graa, Barra, Barra Avenida e em casas ao longo das praias
Atlnticas. As classes mdias residiam em Nazar, Barbalho, Santo Antnio e Soledade. Finalmente, a
populao pobre se concentrava na Liberdade, So Caetano, Uruguai, Massaranduba e Penha, distribuio que
lembra a efetuada por Pierson no perodo anterior. (VASCONCELOS, 2002, p. 321).
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O centro era frequentado por todos os grupos sociais sempre que se precisava ter acesso a
bancos, lojas de roupas e calados, servios mdicos e mesmo para flanar, paquerar e encontrar
os amigos. O bairro do Comrcio, espao preponderantemente masculino, ainda era o centro
dos negcios da cidade, povoado de bancos, lojas de moda masculina, bares e cafs, lojas de
material de desenho e de fotografia, joalherias, estabelecimentos que no eram vistos em lugar
nenhum (SANTOS NETO, 2012, p. 273-274). A rea central da cidade possua grande
relevncia como espao de consumo, trabalho e lazer, como ilustram depoimentos de alguns
entrevistados sobre a sua frequncia ao centro:

[Ia] Sempre. Tudo praticamente [resolvia no centro]. L [Brotas] s tinha mais


residncia... um armarinho, uma loja pra comprar um sapato no tinha, voc ia na
Avenida Sete22, Baixa dos Sapateiros, era o caminho da gente. (M., cuidadora de
idosos, 59 anos, moradora de Brotas, bairro de perfil mdio, na poca)

Tudo era na Cidade. Cinema, por exemplo, era na Cidade... No Politeama tinha dois,
na Rua Carlos Gomes tinha, tinha um ali junto do prdio do A Tarde. Tinha, mais
decadente, n, no Liceu. No tendo shopping, ir para o centro era o lugar de
divertimento. O Teatro Castro Alves j tinha tambm, no central, mas por ali.
Voc ia trabalhar tambm no Centro. (V., professor universitrio, 60 anos, morador
da Pituba, bairro de perfil mdio-alto, na poca).

O centro era tambm o espao da diverso e da boemia. Segundo Santos Neto (2012), apenas
trs boates se localizavam em bairros residenciais, o XK Bar (Corredor da Vitria), a Cloc
(Largo Dois de Julho) e o Anjo Azul (Rua do Cabea, Dois de Julho) frequentado por artistas
e pela intelectualidade bomia da dcada de 50, como Mario Cravo, Caryb e outros. No
Pelourinho funcionava o chamado baixo meretrcio. Os bregas chiques ficavam espalhados
por vrias ruas do centro: Buraco Doce, Rumba Dancing e Tabaris. Dos bordis ganharam fama
o 63 na Ladeira da Montanha, o Gameleira, o Monte Carlo, a Churrascaria Ide (Lder) e o Metr.
Depois do fechamento dos bares e bordis o ponto de encontro passou a ser o abrigo dos bondes,
onde se podia encontrar bebida e comida durante a noite (SANTOS NETO, 2012).

A Rua Chile era o centro chique da cidade, onde a elite desfilava e jornalistas, professores,
homens de letra e de negcios em geral se encontravam. A tambm se localizava o maior
nmero de consultrios mdicos alm de comrcio de tecidos e alguns cafs. Na poca de Natal,
tudo acontecia entre So Pedro e a Rua Chile, com o domnio dos magazines Duas Amricas e
Florensilva, precursores das atuais lojas de departamento, alm de outras lojas como a Sloper,

22
A avenida Sete de Setembro consolidou-se como a principal rua comercial da cidade, sobretudo em 1968, com
a construo do centro comercial Fundao Politcnica (VASCONCELOS, 2002, p. 328).
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Sapatos Clark, etc. (SANTOS NETO, 2012, p. 272). Essa regio da cidade se configurava como
um importante espao de encontros, notadamente de grupos mdios e altos, conforme se
observa nos relatos abaixo:

Eu trabalhei na Rua Chile tambm, numa butique dos franceses, era Madame
Madeleine Chap, tinha uma butique francesa. As pessoas mais chiques que iam
passear, n. Era um lazer passear na Rua Chile. Era comrcio, mas um comrcio mais
chique. A Baixa do Sapateiro era mais povo (A., vendedora aposentada, 82 anos,
moradora da Cidade Nova, bairro de perfil popular, na poca).

[Preferia ir] Na Rua Chile porque alm das compras tinha a paquera. (T., professora
de ingls, 63 anos, moradora da Barra, bairro de perfil elevado, na poca)

A preferncia da gente era a Rua Chile, era a rua chique... A gente comprava roupa,
comprava sapato, tinha facilidade... Voc quer saber mesmo, de verdade [por que
gostava]? ... Era o desfile das meninas... Ns tnhamos l a primeira loja, que era a
Florensilva, que tinha escada rolante, ento era como se fosse um shopping, n. Eu
dava a preferncia pra ir pra Rua Chile por causa disso. [...] Rapaz, a Rua Chile era o
Iguatemi. Todas as lojas de primeira eram l, era a Florensilva, a Duas Amricas,
Sloper, o Adamastor, s tinha loja de primeira... Foi quando fizeram o Palace Hotel 23.
Quer dizer, quem tinha dinheiro naquela poca, pra ir pra carnaval, s ficava no Palace
Hotel. [Frequentavam a Rua Chile] A juventude e os velhos. Olhe, meu pai era
funcionrio pblico e todo dia s 16h ele estava na porta do Caf Chile, em p l, ele
e outros colegas pra ver o pessoal passar, bater papo, entendeu, conversava com os
amigos, e isso e aquilo, batia papo, tomava um cafezinho, e a ficava at oito da noite
conversando [...] Ia classe mdia, classe pobre no ia no, ficava na Ribeira,
Plataforma [...] (Z., eletricista aposentado da Coelba, 62 anos, morador da Ribeira,
bairro de perfil mdio, na poca)

Os cinemas de rua tambm eram bastante frequentados pelos jovens como distrao para as
tardes de sbado e domingo, e tambm pelos adultos noite. Segundo Vasconcelos (2002, p.
274), na dcada de 40 o cinema surgiu como [...] um novo tipo de lazer e de sociabilidade.
Destacavam-se o Cine-Teatro Guarani, os Cine Glria, Excelsior e Liceu, na regio central, os
Cines Pax, Jandaia e Aliana na Baixa dos Sapateiros, alm dos cinemas de bairros como os de
Roma, Rio Vermelho e Plataforma, em torno dos anos 60 e 70 (SANTOS NETO, 2012).

Do ponto de vista urbano, o cinema daquele tempo era consumido em longas filas que
cresciam pelas ruas, em ambiente muito diferente do que se v hoje nos complexos
internos aos shoppings. [...] As filas nos fins de semana nas portas do Guarani, do
Excelsior e depois no Tamoio, Tupi ou Bahia apareciam como um grande salo onde
todos se viam. Vale lembrar que ainda eram poucos os automveis e que ir ao cinema
de nibus era parte da paquera e do prazer continuado de se viver o ambiente urbano,
do qual fazia parte passar na Cubana, para comer o bolinho de chocolate ou para
tomar Coco Espumante (SANTOS NETO, 2012, p. 278-279).

Ia muito ao cinema em Plataforma, na Baixa dos Sapateiros, Aquidab. (W., operrio


industrial aposentado, 61 anos, morador de Plataforma, bairro de perfil popular, na
poca)

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Mais precisamente, o Palace Hotel foi inaugurado em 1934 (VASCONCELOS, 2002).
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Uma vez ou outra ia ao Cinema Jandaia, Aliana e o Pax; na Ajuda tinha o Arte; na
Praa Castro Alves tinha o Guarani e o Tupi no Largo Dois de Julho (A., vendedora
aposentada, 82 anos, moradora da Cidade Nova, bairro de perfil popular, na poca)

Tinha matin naquele tempo, que era o cinema de tarde, os adultos iam ao suar
(cinema noite). (Z., motorista aposentado, 87 anos, morador da Liberdade, bairro de
perfil popular, na poca).

Segundo as memrias de Santos Neto (2012), importantes espaos de sociabilidade tambm


estavam circunscritos s ruas e praas. De acordo com o autor, o Bairro de Nazar tinha a maior
concentrao de escolas por metro quadrado da cidade e, por isso, se tornou um dos pontos de
encontros juvenis da cidade. No obstante, de maneira geral,

A cidade no era dotada de grandes reas pblicas, como o Parque da Cidade ou o


Parque do Pituau. As pessoas usavam intensamente as praas, principalmente
Piedade e Campo Grande, no centro da cidade, e o Jardim de Nazar ou Largo do
Papagaio ou Madragoa, em Itapagipe. Por conta disso, a feio da cidade era mesmo
diferente. Nem melhor, nem pior, mas diferente porque a vida era mais exterior, as
pessoas se encontravam mais vezes, at pareciam dispor do tempo em escala diferente
dos valores de hoje (SANTOS NETO, 2012, p. 255).

Segundo os relatos colhidos, de fato, algumas praas tinham bastante importncia,


especialmente aquelas mais centrais, como o Campo Grande, a Praa da Piedade, o Campo da
Plvora, etc. Alm disso, alguns dos entrevistados relataram utilizar bastante tambm as praas
dos seus bairros, como a Praa So Braz em Plataforma, por exemplo.

[Costumava frequentar praa] Sempre, Campo Grande, Pelourinho. Encontrava os


amigos, cada um levava uma coisa, ficava tudo na pracinha ali comendo, se
divertindo, dando risada das pessoas que passavam... o dia todo batendo papo, a tal
horrio vumbora que deu 17 horas vamos embora, s vezes uns pais iam buscar as
outras amigas [...] (M., cuidadora de idosos, 59 anos, moradora de Brotas, bairro de
perfil mdio, na poca)

Quando eu passei a morar na Federao, o Campo Grande era um ponto de distrao,


as crianas gostavam de brincar ali, tomar sorvete... [Frequentava esta praa] Porque
era prximo e porque gostava; e at hoje eu adoro praas onde tem banquinhos para
se sentar... adoro sentar em banquinhos de praa, eu acho romntico. (A., vendedora
aposentada, 82 anos, moradora do Alto das Pombas, bairro de perfil popular, na poca
do relato)

interessante notar o vnculo existente entre alguns espaos de sociabilidade e encontro dos
jovens desta poca. Conforme se pode notar no depoimento que se segue, havia uma relao
entre os usos de determinados espaos abertos da cidade, como as praas e largos, com os
cinemas, por exemplo. Como todos os cinemas existentes eram de rua (expresso que passou
a ser utilizada somente depois que os shopping centers passaram a concentr-los em seus
espaos) havia uma relao clara entre eles e os usos dos espaos pblicos do seu entorno. Isso
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se dava tanto no que tange s praas e largos quanto em relao s ruas, pois nesta poca havia
uma dependncia maior do uso dos transportes pblicos, o que impunha a necessidade de
percorrer determinados percursos p para se alcanar o destino desejado. Como salientou
Santos Neto (2012), ir ao cinema comeava no prprio transporte pblico, onde a paquera
tinha incio, continuava durante as filas e terminava muitas vezes nas lanchonetes, praas e
largos da regio. De certa forma, esses espaos cinemas e praas se convertiam em lugares
de encontros e interao entre distintos grupos. Ainda que esses jovens utilizassem tais espaos
com seus grupos especficos pelo relatos obtidos geralmente compostos por amigos do bairro
ou da escola havia alguma interao entre eles.

[Costumava frequentar] A praa municipal onde ficava a Cubana... pelo menos


semanalmente porque a gente ia a cinema, eu sempre fui viciada em cinema e minha
turma tambm. Eu frequentei muito, pode se chamar de praa, o Largo da Graa e, se
considerar o Farol como praa, no sei... Ah sim, tem a Praa Castro Alves, n, que
eu esqueci de falar... Ali tem o Cine Glauber Rocha que na poca era o Guarani. Tudo
era em funo... porque o que a gente tinha para se divertir era o cinema. Show na
cidade era uma coisa rarssima, clube eu no era muito de turma de clube, de
frequentar Iacht, essas coisas no, s no carnaval. Ento era cinema e lanches e
sorveteria Cubana, que era famosa. [Frequentava essas praas] Porque ficavam perto
dos cinemas... [Frequentavam] Pessoas que trabalhavam, que estudavam, eram
jovens, pessoas de meia idade. Pessoas da classe B e C. [As pessoas] Interagiam,
procuravam se conhecer... A gente conhecia muita gente porque grupos... se unia,
daqui a pouco tava um falando com o outro... conhecia muita gente assim. (Y.,
funcionria pblica, 59 anos, moradora da Barra, bairro de perfil elevado, na poca)

No que tange aos parques, nesse perodo j existia o Parque Zoobotnico Getlio Vargas
inaugurado na dcada de 1950 no bairro de Ondina. Alguns entrevistados destacaram os usos
desse espao, principalmente na companhia dos filhos. Outros, por outro lado, j frequentavam
reas verdes e atrativos naturais de territrios que posteriormente foram objetos de proteo na
forma de parques, como a regio do atual Parque de So Bartolomeu e do Abaet.

Um dos entrevistados, morador de Plataforma, descreveu como ele e seus amigos, em geral
membros de um grupo de samba, marcavam uma espcie de excurso para passar os domingos
na Lagoa do Abaet, que tinha se tornado uma regio famosa por conta das msicas de Dorival
Caymmi, segundo suas informaes. Em geral, alugava-se um carro e fazia-se piquenique, pois
era comum passar o dia inteiro no Abaet, uma vez que o trajeto era longo e o acesso difcil.
Entre os moradores do subrbio ferrovirio, destacou-se tambm a utilizao da regio do
Parque de So Bartolomeu, especialmente por grupos religiosos ligados ao candombl, que
consideram a rea sagrada, mas tambm por moradores que se reuniam ao redor das cacheiras
para tomar cerveja, fazer sambo e fazer farra, como descreveu um dos entrevistados.
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Quando eu tinha os meus meninos pequenos s tinha o Zoolgico. Fazia piquenique,


passava o dia todo, era legal, as crianas se divertiam. (A., vendedora aposentada, 82
anos, moradora do Alto das Pombas, bairro de perfil popular, no perodo ao qual a
memria se refere).

[No Parque de So Bartolomeu ia para] Bater macumba, tocar samba de roda, festa de
Labatut24... de l subia pra Piraj e o bicho pegava l por cima... naquele tempo...
porque hoje no d mais... hoje s de carro e olhe l, porque perigoso [...] [Quem
frequentava era o] Pessoal do Ax, pessoal da regio, hoje tem turista indo pra l,
naquele tempo no tinha no. Era o pessoal do ritual, dando festa de caboclo. (L.,
Pintor industrial aposentado, 66 anos, morador de Fazenda Coutos, bairro de perfil
popular, na poca)

Para alm das praas e parques, importante destacar tambm o uso das ruas como espao de
lazer e de sociabilidade entre vizinhos, como lembrou uma das entrevistadas, mas tambm entre
pessoas de distintos grupos sociais, muitas vezes mediadas por brincadeiras e jogos, como o
futebol:
A gente no era muito de praa no, era mais de brincar na nossa rua mesmo, baleado,
marmanteiga... paquera tambm era na rua. (T., professora de ingls, 63 anos,
moradora de Nazar, bairro de perfil mdio, no perodo da infncia/adolescncia,
poca qual ela remete essa lembrana)

As ruas eram bastante utilizadas tambm em momentos festivos e em usos rituais, como as
festas populares e o carnaval. Segundo Ordep Serra (2009), as festas de largo so celebraes
em que o sagrado e o profano se encontram e dialogam. Elas compreendem sempre um rito ou
um conjunto de ritos sacros, cujo foco espacial o templo, mas incluem tambm a realizao
de outras atividades que tm lugar nas imediaes do tempo, geralmente um largo, da seu
nome. Essas atividades envolvem principalmente folguedos populares, feiras, montagem de
barracas, ou seja, atividades que associam comrcio com diverso pblica. Tipologicamente,
tais festas correspondem ao [...] modelo de velhas celebraes catlicas populares europeias,
realizadas em dias santos, em centros urbanos, com grande concentrao de povo, intensa
movimentao comercial e ldica (SERRA, 2009, p. 95). No Brasil, especialmente em
Salvador e no Recncavo baiano, tais festividades ganharam novos significados pela inspirao
religiosa de fonte afro-brasileira, promovendo um verdadeiro sincretismo entre tal fonte, a
origem catlica e as criaes ldicas populares.

Salvador tem (ainda hoje) um extenso calendrio de festas de largo, que desde esse perodo
cumprem um papel importante na religiosidade, na sociabilidade e nos usos dos espaos

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Referncia festa realizada no bairro de Piraj em homenagem ao General Pierre Labatut que combateu nas
guerras de independncia da Bahia. Tal festa celebrada uma semana depois do Dois de Julho desde 1853, quatro
anos depois da morte do general, segundo informaes do Jornal Tribuna da Bahia (TRIBUNA DA BAHIA, 2014,
disponvel em <http://www.tribunadabahia.com.br/2014/07/21/festa-de-labatut-faz-mais-de-160-anos>).
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pblicos da cidade. Em geral, elas se desenvolvem no vero, tendo incio no ms de dezembro


e culminam no carnaval, que finaliza este perodo marcando o incio da quaresma e inaugurando
um momento em que as celebraes ganham um tom mais religioso em detrimento do profano.
Segundo o referido autor, essa diviso ritual do ano teve maior vigncia quando os sacramentos
religiosos catlicos e o seu calendrio influenciava de maneira mais marcante os tempos da vida
pblica do pas, embora seus arranjos gerais permaneam vivos at os dias atuais.

Segundo os depoimentos coletados, diversas festas de largo eram frequentadas pela populao
nesse perodo, como a festa de Santa Brbara (Ians no sincretismo religioso do Candombl),
realizada no dia 4 de Dezembro no Pelourinho; a festa de Nossa Senhora da Conceio (Oxum
no sincretismo religioso), realizada no dia 08 de dezembro no bairro do Comrcio; a Procisso
do Senhor dos Navegantes, conhecida como Festa da Boa Viagem devido ao bairro onde se
realiza, no primeiro dia do ano; a festa da Lapinha, realizada no dia dos Reis Magos, 6 de
janeiro; a Festa do Nosso Senhor (Lavagem) do Bomfim (Oxal no sincretismo), realizada na
segunda quinta-feira do ano com um cortejo que sai do bairro do Comrcio em direo ao
Bomfim; a Segunda Feira Gorda da Ribeira, extenso profana da Festa do Bomfim, realizada
no bairro adjacente da Ribeira na segunda-feira seguinte referida festa; e a Festa (Lavagem)
de Iemanj (nica divindade africana a possuir uma festa pblica como parte desse calendrio),
realizada no dia 02 de fevereiro no bairro do Rio Vermelho, entre outras de menor relevncia.

Todas essas festas faziam parte da vida da cidade e tinham uma certa influncia no cotidiano
das pessoas no que tange s formas de sociabilidade e aos usos dos espaos pblicos. Ordep
Serra (2009, p. 77, grifos originais) descreve o tipo de relao entre esses dois elementos que
se desenvolve geralmente nessas festas:

J no largo das festas, o espao que normalmente rua tem alguns usos domsticos:
a se come e bebe geralmente em grupos de pessoas amigas, que se tratam sem
cerimnia, mas sempre na proximidade de pessoas estranhas, de modo que entre
elas podem vir a estabelecer-se relaes prximas, at ntimas (em todo o caso sem
muita cerimnia, tambm). Nessa rua simbolicamente alterada podem at acontecer
desempenhos que no cotidiano requerem muita privacidade.

Como se pode notar, com exceo da festa no bairro do Rio Vermelho, todas as demais se
desenvolviam no centro da cidade e na pennsula de Itapagipe, nos largos, ruas e praas,
configurando um uso ldico desses espaos e marcando sua importncia como as regies mais
importantes da cidade. Segundo os depoimentos, tais festas eram frequentadas por diversos
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grupos sociais. importante observar esse padro de sociabilidade. Em relao a essas festas
havia certa mistura social e os diversos grupos compartilhavam o uso desses espaos, seja de
uma maneira mais formal e distante ou de maneira mais ntima, sem cerimnia, como
descreveu Ordep Serra. Tais festas, portanto, produziam enlaces sociais, sensos de
pertencimento, reconhecimento de outros grupos, suspenso, ainda que temporria, de barreiras
sociais, o que legitima o seu entendimento como um verdadeiro espao de sociabilidade, nos
termos mais tradicionais do conceito de Simmel (2002), como ilustra o relato que se segue:

[Quanto ao convvio de pessoas diferentes nas festas de largo] Claro, claro... t


dizendo que a gente foi pra l depois de sair desse casamento [o entrevistado relata
uma festa de casamento realizada no rveillon para o qual o seu grupo de samba foi
contratado para tocar], samos desse casamento e fomos pra Boa Viagem... E nesse
casamento s tinha pessoas ricas... todos foram em grupo, todos foram pra l e foram
junto com a gente... a gente no tinha carro ento colocamos todos os instrumentos
dentro do carro deles e a a gente cada um num carro e fomos embora... e era um grupo
que, um grupo que... praticamente de elite... e a gente... na verdade a gente n ficava
at, numa linguagem popular, ficava escabreado porque o meio no era nosso, mas a
gente ia pra tocar, ento a gente era praticamente levado. Em festa de largo, essas
coisas, no tem muita diferena. Naquela poca no tinha muita diferena no,
voc no sabia quem era rico, quem era pobre. Era uma mistura. A gente se
misturava muito nas festas, n. E a quando tomava uma cerveja ento a que piorou...
a que a distncia diminua n... A depois, mesmo que depois voltasse tudo ao
normal, no outro dia, mas naquele momento era o momento que no tinha essa
discriminao toda... Aquela poca era uma poca boa... (W., Operrio industrial
aposentado, 61 anos, morador de Plataforma, bairro de perfil popular, na poca)

Alm das festas de largo, o carnaval tambm passou a ser um momento importante dos usos
dos espaos pblicos da cidade. Conforme visto anteriormente, at o final do sculo XIX eram
celebrados no Brasil os entrudos, jogos festivos considerados pelas elites como grosseiros e
violentos, alm de terem como participantes principais a populao negra que ocupava as ruas
com suas msicas e danas. Com a substituio forada do entrudo pelo carnaval europeizado,
conformado pelos bailes de mscaras, desfiles de prstitos e corsos em seus carros alegricos,
a elite do pas buscava abolir a considerada barbrie a fim de colocar o Brasil no hall das
naes civilizadas (MIGUEZ, 2014).

Em Salvador, at a primeira metade do sculo XX o carnaval seguia a lgica mais ampla da


cidade, hierarquizado e profundamente estratificado. Segundo Paulo Miguez (2014), ele se
dividia em dois: o carnaval oficial, organizado e patrocinado pela elite aristocrtica (que
consistia em suntuosos desfiles pelas avenidas centrais da cidade e bailes realizados nos clubes
fechados), e o carnaval popular, de origem negro-mestia, composto pelos afoxs, batucadas,
patuscadas e blocos que, impedidos de ocupar as avenidas nobres do centro da cidade,
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transitavam to somente pelos bairros populares, fundos dos vales ou pelas ruas prximas ao
centro, como na Baixa dos Sapateiros e a Barroquinha (MOURA, 2003).

No entanto, ainda segundo Miguez (2014), em 1950 uma inveno mudou as bases do carnaval
baiano: o trio eltrico. Ele permitiu que as pessoas sassem do lugar de expectadoras e se
tornassem participantes do carnaval. Com essa inveno, o som eletrificado em cima de uma
fbica, um velho Ford bigode, em 1950 Dod e Osmar enveredaram pelo meio do corso, por
onde desfilavam apenas os grupos mais elitizados, arrastando atrs de seu (ainda) pequeno trio
eltrico 200 metros de povo que pulava e se divertia como nunca antes ocorrera na Bahia
(GES, 1982 apud MIGUEZ, 2014, p. 82), promovendo a [...] desierarquizao do espao
social da festa (MIGUEZ, 2014, p. 82). Segundo este autor, esse foi um elemento
extremamente importante na utilizao dos espaos da cidade, conforme destaca:

O trio eltrico promove, com seu carter inovador e renovador, uma profunda e
definitiva transformao do carnaval da Bahia. Redefine e torna comum a todos, sem
divises de qualquer natureza, o espao da rua como lugar privilegiado da festa
que numa festa historicamente segmentada, do ponto de vista scio-racial o trio
eltrico surge inaugurando um espao absolutamente igualitrio, fazendo valer, por
onde passa, uma espcie de democracia do ldico. (MIGUEZ, 2014, p. 82)

Com o surgimento do trio eltrico, no centro da cidade, principalmente entre os chamados


folies pipocas que no participavam de nenhum bloco e brincavam o carnaval nas ruas
houve durante algum tempo certa convivncia e sociabilidade interclassista. Nesse sentido, o
carnaval enquanto festa de rua inaugurou um perodo em que alguns espaos da cidade eram
utilizados como lcus de sociabilidade e de encontro, literalmente o que Henri Lefebvre (2008a)
chamou de cidade festa, como obra humana. Apesar disso, muitos blocos foram sendo
formados ao longo desse perodo com uma composio que expressava as diferenas e
hierarquias existentes na cidade do Salvador. As classes mdias, por exemplo, passaram a
organizar blocos mais seletivos, como os Internacionais e os Corujas, plasmando um modelo
masculino de beleza baseado na cor clara e na aparncia garbosa (MOURA, 2003, p. 99).

Apesar da existncia de espaos de convvio mais interclassista, como o centro da cidade e as


ruas durante as festas, outros j expressavam de maneira direta as desigualdades sociais
existentes. Segundo os relatos colhidos, as praias tambm conformavam importantes espaos
de lazer e encontro em Salvador. Algumas regies se destacavam como lugares propcios ao
banho de mar, a pennsula de Itapagipe, mais especificamente a Ribeira, rea importante na
cidade naquele momento e reduto de grupos mdios, a Barra, que j se configurava como um
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bairro de grupos maior renda, o Subrbio Ferrovirio, rea de agrupamento de grupos


populares, e as praias da Ortla Atlntica de Salvador, como Jardim de Alah/Armao, Boca do
Rio, Piat e Itapu que, at esse perodo, eram tidas como lugares de veraneio dada a distncia
do centro da cidade. Essas praias possuam perfis especficos de frequentadores, o que
demonstra a existncia de formas de segregao dos usos dos espaos. Alguns depoimentos
ilustram essa diferenciao dos usurios e a relativa homogeneidade que havia em determinadas
praias, o que limitava seu potencial de se configurar como um espao de encontro interclassista:

No saa [da praia]... Era no meu quintal... [A Barra...] Sim, porque eu moro na Barra,
aprendi a nadar nessa praia e porque essa praia, essa praia aqui assim do Farol, do
Barravento, a coisa mais gostosa do mundo, principalmente pra criana quando t
com mar baixa. Ento eu aprendi a nadar, fiz tudo nessa praia, paquerava, namorava.
[Quem frequentava] Eram os moradores mais... moradores, estudantes. Ns no
tnhamos assim, nem em dia de domingo, no tinha aquela farofada de gente que vinha
de no sei da onde, entendeu? [...]A gente nem marcava mais um ponto, j sabia que
a turma tava ali. E ns tambm quando saamos para ir a uma praia tipo Jaguaribe,
Itapu, era um evento, no era uma coisa cotidiana. (Y., funcionria pblica, 59 anos,
moradora da Barra, bairro de perfil elevado, na poca)

[Frequentava a] Ribeira. [Iam] Pessoas pobres, classe mdia baixa, porque naquele
tempo quando se dizia fulano mora na Barra era considerado rico, a Barra sempre foi
bairro considerado aristocrtico, ningum frequentava a praia da Barra, s a classe
mdia pra cima... o pobre frequentava Ribeira, Praia de So Joaquim. (Z., motorista
aposentado, 87 anos, morador da Liberdade, bairro de perfil popular, na poca).

Sempre ia ao Farol da Barra, Porto da Barra, Ondina, porque era perto de casa e era
uma possibilidade de se divertir sem gastar. [As pessoas] Eram grupos mais da elite,
nesse tempo no tinha essa misturada no. Era mais selecionada as pessoas. (A.,
vendedora aposentada, 82 anos, moradora do Alto das Pombas, bairro de perfil
popular, na poca)

Conforme se observa, j estava presente na cidade uma desigualdade na apropriao dos


espaos, no s no que tange habitao e ao local de moradia, mas tambm aos lugares
frequentados e aos tipos de prticas. Alm disso, a distino motivada pelos diferentes estilos
dos grupos seus habitus de classe tambm marcavam o modo de apreciao dos outros
sujeitos urbanos, deslegitimando e desprestigiando determinados comportamentos como
inferiores e no-aceitveis. Esse o caso do termo farofada, que uma entrevistada utilizou
para descrever um fenmeno que no existia na praia onde ela frequentava e que, portanto, a
tornava um lugar melhor e mais agradvel.

Assim como as praias, tambm os clubes (importantes espaos da sociabilidade juvenil desta
poca, onde os scios praticavam esportes, frequentavam festas e desenvolviam atividades de
lazer) reafirmavam a lgica da segregao, notadamente os mais restritivos e elitizados. Em
geral, nesses espaos a sociabilidade se construa dentro de crculos estreitos de estratos de
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classe, ainda que clubes menos elitizados atrassem tambm um pblico mais diversificado. A
Associao Atltica da Bahia, o Clube Bahiano de Tnis e o Yacht Clube, por exemplo, eram
clubes frequentados pela elite poltica e econmica da cidade (VASCONCELOS, 2002,
SANTOS NETO, 2012). O depoimento que se segue retrata bem a que ponto a seletividade
desses clubes chegava:

Eu cheguei a ser associado uma vez Associao Atltica. Uma vez minha mulher
quis levar a empregada e no deixaram entrar. Minha mulher que estrangeira, no
conhece as regras, n? Ela disse: minha amiga, imagine? No adiantou nada. (V.,
professor universitrio, 60 anos, morador da Pituba na poca)

Outros clubes, no entanto, possuam fronteiras menos rgidas, por assim dizer. Segundo os
relatos colhidos, mesmo moradores de grupos populares conseguiam frequentar determinados
clubes como o Cruz Vermelha (que havia sido no passado um espao das elites), localizado na
Barroquinha, Palmeiras, localizado na Barra ou o Clube Itapagipe, localizado na Cidade Baixa.
Alm desses clubes os depoimentos colhidos registraram a importncia do Esporte Clube
Periperi, localizado no bairro de mesmo nome na regio do Subrbio Ferrovirio, pelo menos
entre os moradores da regio. De acordo com os relatos que se seguem sobre os clubes, pode-
se dizer que, pelo menos no que tange aos imaginrios e memrias dos entrevistados, havia uma
relativa homogeneidade social no uso desses espaos. Os grupos frequentadores de cada clube
eram conhecidos e reconhecidos, o que indica esse perfil.

Os jovens... o que que os jovens faziam [para se divertir]... naquela poca existia
uma coisa muito boa que hoje no existe mais: clube. O jovem ia nadar, jogar
basquete, jogar voleibol, quando ele no estava na escola, s vezes tinha festa no
clube, entendeu... remar... era a diverso. Eu fui um jovem que pratiquei todo o tipo
de esporte e agradeo. [Frequentava o Clube] Itapagipe. Eu tenho trs ttulos de
campeo em Itapagipe, de basquete, voleibol e futebol de salo. Naquele tempo quem
era campeo trs vezes ganhava o ttulo de scio remido. [Frequentavam pessoas] Da
pennsula, da pennsula de Itapagipe]. Meu pai foi fundador... Todo mundo era amigo,
era como se fosse cidade do interior, todo mundo conhecia todo mundo. [Para ser
scio do clube] No... no era caro no, mas s era interessante para quem morava em
Itapagipe, n, pra quem morava perto. [...] Ia o pessoal do Bomfim, Boa viagem,
aquelas famlias que iam todas pra l, mas Plataforma [bairro popular prximo] era
uma rixa danada. [...] Rapaz, jovem s ia pra clube... Quem era pobre era chamado,
n, de scio penetra... (Z., eletricista da Coelba aposentado, 59 anos, morador da
Ribeira, bairro de perfil mdio, na poca)

[Ia ao Clube] Periperi, Esporte Clube Periperi. A sempre eu ia, era ter festa eu ia.
Toda festa no Periperi. Era um clube bom, n. Frequentava tambm o Clube Seixo,
Palmeiras da Barra, Itapagipe tambm eu ia, era ter festa eu ia, Palestra em Plataforma,
Recreativo. Ia pra festa, tinha bandas boas. Onde tinha banda boa a gente se
encontrava. Vinha cantor de fora, cantor do Rio. [...] A gente ia pra festa pra danar,
pra se distrair. [...] Vinha gente do bairro, gente da cidade, da Liberdade, So Caetano,
Uruguai, vinha de Plataforma, de Paripe. (L., pintor industrial aposentado, 66 anos,
morador de Fazenda Coutos, bairro de perfil popular, na poca)
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Em busca de uma reflexo sinttica sobre os usos dos espaos pblicos de Salvador nesse
perodo, pode-se dizer que os espaos programados para uso pblico possuam certa
importncia, como as praas e largos, mas tambm as praias e as ruas, tanto nos seus usos
cotidianos, especialmente nos bairros centrais, quanto nos perodos festivos, no carnaval e nas
festas de largo. No obstante, determinados espaos privados possuam grande relevncia
tambm. De um lado, pode-se destacar os cinemas, cafs e lojas que, de certa forma,
engendravam um vnculo geral com as ruas e propiciavam formas de contato e sociabilidade
mais amplas, e de outro os clubes, bares e boates que propiciavam uma restrio maior ao acesso
de grupos diferentes, conformando uma experincia de sociabilidade mais homognea.

Nesse sentido, importante considerar como em Salvador j havia se inaugurado h algum


tempo os procedimentos de um mercado capitalista de terras que, associado a aes do Estado
em relao s polticas urbanas de alocao espacial, contriburam para o desenvolvimento de
uma cidade segregada, onde os diferentes grupos habitavam e viviam em cidades diferentes.
Soma-se a isso o carter autoritrio e excludente da cultura poltica nacional que naturaliza as
desigualdades e reproduz as distines de classe (TELLES, 1999). De alguma forma, portanto,
conforme ilustrado pelo depoimento que se segue, as desigualdades scio-espaciais, assim
como em outros perodos histricos, impactavam sobre as possibilidades de apropriao do
espao pblico e de constituio de relaes heterogneas de sociabilidade ligadas a esses
espaos.
[Sobre a frequncia dos grupos populares aos espaos centrais e a bairros valorizados]
No, eu acho que os grupos populares no frequentavam nem a praia, porque no tinha
linhas de nibus. Foi muito interessante quando comearam a abrir as linhas de nibus
para o Porto da Barra, a a classe mdia comeou a fugir... A classe mdia diz que
quando a pobreza chega a praia t muito cheia. A comearam, quando chegava final
de semana, a no frequentar a praia. Porque os nibus chegavam trazendo o povo.
(V., professor universitrio, 60 anos, morador da Pituba, bairro de perfil mdio-alto,
na poca).

Existiam nesse perodo importantes desigualdades nos usos dos espaos e nas prprias relaes
de sociabilidade. Muitos elementos encontrados nos depoimentos dos entrevistados chamam a
ateno para esta realidade, como questes ligadas necessidades materiais dos grupos
populares que os impingiam ao trabalho em detrimento da fruio do lazer e dos usos dos
espaos da cidade; questes associadas s evitaes, preconceitos e distines entre estratos de
classe, que interferiam bastante na apropriao social dos espaos; e questes vinculadas s
desigualdades de gnero e aos papis socialmente estabelecidos para as mulheres.
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Alguns entrevistados, especialmente aqueles mais velhos e provenientes de grupos populares,


que viveram sua juventude nos anos 50, destacaram como no costumavam frequentar os
espaos da cidade porque no possuam tempo, j que precisavam trabalhar, e nem mesmo
condies financeiras para ir a esses espaos, inclusive as praas, cujo uso estava associado de
alguma forma compra de algum alimento ou a um determinado tipo de capital cultural e/ou
prticas especficas, conforme frisou Angelo Serpa (2008). Devido a essa condio de classe,
pelas desigualdades no acesso aos capitais econmicos e culturais, alguns entrevistados
descreveram que muitas vezes viviam presos ao bairro ou que no conheciam a cidade muito
bem. Havia, portanto, limitaes no acesso a certos espaos o que implica em diminuio da
heterogeneidade social que se expressa no uso dos espaos pblicos. Isso fica visvel nos
depoimentos que se seguem:

No [frequentava praa], primeiro seguinte, com 18 anos comecei a trabalhar...


comecei a trabalhar, comecei namorar, ento o negcio era o seguinte, trabalhando e
namorando... eu no tinha tempo pra fazer mais nada... No tinha dinheiro pra isso,
no frequentava... tinha cinema, cinema naquele tempo era o que tinha. Shopping no
tinha... [Os amigos tambm no frequentavam] porque meus amigos todos eram
inferiores a mim financeiramente, t entendendo? Aquele tempo era diferente rapaz,
o rapaz estudava e se no tirasse nota boa o pai dizia no vai pra matin, tinha matin
naquele tempo... Aquele tempo era assim. [...] eu sempre fiquei muito preso ao bairro.
O ponto [de encontro], a gente ficava geralmente embaixo do prdio do Colgio
Duque de Caxias. Ali geralmente era o ponto que reunia aquele grupo de jovens
daquela poca, n... o pessoal de 18, 19, 20 anos, vivia ali n. (Z., motorista
aposentado, 87 anos, morador da Liberdade25 na poca)

[Sobre diferentes grupos de jovens da cidade] Em Salvador mesmo pra a gente, porque
a gente no tinha muito assim, n... Primeiro que a gente no conhecia, n, no
conhecia muito Salvador, mas dentro do prprio bairro tinha uma diferena enorme
de um grupo para o outro, no era pequena no, era enorme, entendeu? No era
diferena da gente t se misturando no, era de no se misturar mesmo. Era de no
misturar um grupo com o outro, era complicado. Era uma viso... s vezes voc at
conhecia a pessoa, mas tinha aquela discriminao, era um problema, mas fora assim,
a gente no [conhecia outros grupos]. (W., Operrio industrial aposentado, 61 anos,
morador de Plataforma, bairro de perfil popular, na poca).

Todas essas questes engendravam uma segregao nos usos dos espaos pblicos, que se
diferenciava em funo dos grupos, dos seus capitais econmicos e culturais. Embora houvesse
lugares e situaes marcados por um uso mais plural e heterogneo, onde se desenvolviam
relaes de sociabilidade pautada em encontros entre distintos grupos, como as festas de largo
ou mesmo o uso cotidiano no centro da cidade, de maneira geral os circuitos das distintas classes
no territrio da cidade j eram relativamente diferentes. Isso ficava bastante visvel no uso dos
espaos e os prprios entrevistados reconheciam essas questes, principalmente no que tange

25
Nos mapas de 1956, a rea da Liberdade j aparece bastante densa, com poucos espaos livres, como a Praa
Raimundo Teixeira e as reas e torno da Escola Duque de Caxias. (VASCONCELOS, 2002, p. 334).
P g i n a | 126

autossegregao dos grupos de mais alta renda em lugares especficos, ainda que as camadas
mdias compartilhassem mais os seus espaos. Conforme um dos entrevistados:

Agora aquela poca existia muito de, , como que eu posso dizer, por exemplo,
quando tinhas festas, tinha baile de rico e baile de pobre, era bem marcante esse tipo
de coisa, n. O pessoal da Suburbana no vinha aqui no Portugus, no Piat... a gente
considerava lugares de baro, n, aquela poca... Yacht Clube, Bahiano de Tnis...
quem sonhava em entrar no Bahiano de Tnis aquela poca? Ningum sonhava... Era
uma distncia muito enorme pra gente, n. At pouco tempo era assim. Associao
Atltica, n, a gente s ouvia falar o nome, mas era uma distncia enorme. Era uma
coisa pra gente, jamais a gente ia poder frequentar um lugar desse. Ento a gente
no tinha essa... piscina? Antes era praia mesmo, entendeu, a gente no tinha, hoje, eu
acho at que melhorou um pouco, que a gente v nibus vindo pra c ... nem sonho
quando fui tomar um banho de piscina depois dessa poca, e olhe que meu pai era
Petroleiro, naquela poca era considerado diferenciado, pessoa que trabalhava na
Petrobrs, na Rede Ferroviria, era bem diferenciado, mas mesmo assim a gente no
tinha essa liberdade de t indo pro centro pra um clube de primeira que a gente
considerava, n... O pessoal da suburbana era da suburbana mesmo... E pior
quando no tinha suburbana, depois da Suburbana melhorou, facilitou, mas quando
s tinha trem e lancha, a gente ia pra onde? No ia pra lugar nenhum... Nosso caminho
era esse Ribeira, Periperi, vai de trem, s. No tinha meio de transporte que facilitasse,
n... Futebol era ali mesmo, final de semana era ali, a gente vinha pro centro pouco,
entendeu? Uma vez na vida, o Abaet era festa, uma vez no ano, era uma coisa que
marcava a gente... p conheci o Abaet. A distncia era muito grande. (W., Operrio
industrial aposentado, 61 anos, morador de Plataforma, bairro de perfil popular, na
poca).

A realidade dos moradores da Suburbana era bastante diferente daqueles estratos de camadas
superiores que viviam na Barra, por exemplo, o que implicava muitas vezes na construo de
comportamentos preconceituosos e elitistas:

[O ponto de encontro era] Todo domingo Farol da Barra. [Costumava] Passear de


carro, de um lado pro outro, do Farol at o Cristo, do Cristo pro Farol, do Farol pro
Cristo, e os rapazes ficavam parados, encostados nos carros, ou ento a gente, e da
rolava uma paquera, n? Pessoas bacanas, uma gerao bacana, animada. [Um perfil
social] Era mais acho que classe mdia alta... classe mdia. (T., professora de ingls,
63 anos, moradora da Barra, bairro de perfil elevado, na poca).

[Sobre o fato dos pobres no frequentarem boates e sim praias, segundo a entrevistada]
Sim, muita gente [pobre] tomava um nibus e vinha pro Porto da Barra, o Farol nem
tanto, mas o Porto da Barra enchia, tanto que eu me recusava a ir, at hoje eu no vou
ao Porto da Barra domingo e feriado. O bom o Porto dia de semana porque a voc
no encontra aquele piquenique na praia, farofa, galinha. Outro dia teve um tiroteio
na Praia do Porto. Eu nunca vi isso na minha vida, eu vou fazer 60 anos e nunca vi.
[...]
[Sobre grupos diferentes de jovens na cidade, eram do] Subrbio, voc identificava
na hora, pela roupa, maneira de vestir, pelos gestos, pela educao. Voc percebia
logo. E tambm, por exemplo, a gente percebia grupos que tavam na droga, apesar de
no t cado, mas a gente sabia que cheirava, fumava maconha. Esses eram os grupos
que a gente se afastava. (Y, funcionria pblica, 59 anos, moradora da Barra, bairro
de perfil elevado, na poca).
P g i n a | 127

Tal compreenso preconceituosa e que deslegitima a pluralidade da condio humana caminha


na direo contrria de diversos aspectos associados aos espaos pblicos, a sociabilidade
compreendida como um satisfao na participao de jogos sociais baseados na igualdade e os
ideais da urbanidade e da civilidade, pautados na tolerncia e no prazer e interesse mtuos.
Esses depoimentos retratam as distncias sociais existentes e sua materializao no espao da
cidade, que se conforma no como um promotor de encontros e relaes plurais, mas como um
reprodutor das desigualdades, conforme se pode observar nas consideraes de uma informante
qualificada, moradora de um bairro popular de Salvador:

Eu acho que a organizao do espao muito definida por classe social e cruza-se
muito com raa. [...] E as Praas de convergncia mais geral, como o Campo Grande,
voc v que o entorno do Campo Grande o entorno de uma elite branca que
historicamente est ali. [...] No sentido de uma convivncia, de uma troca, eu no vejo
isso historicamente assim, no ... [...] O Pelourinho mesmo um espao to de
mistura das classes e das raas? Mais ou menos, n? [...] Ali as classes se misturam
relativamente, mas as posies continuam... cada um vai para seu lugar e no
necessariamente voc senta no bar... voc senta no bar com seus pares, no
Pelourinho... muito de acordo com sua classe, suas relaes (T., professora
universitria, 65 anos, moradora de Plataforma, bairro de perfil popular, na poca).

As evitaes da interao e do compartilhamento dos espaos com outros grupos sociais, no


entanto, no eram apenas movidas por questes de classe mas tambm por elementos de ordem
moral. Isso apareceu de maneira bastante relevante entre os entrevistados no que tange ao
Pelourinho, j que essa regio da cidade era conhecida como aquela onde se situava o baixo
meretrcio. Segundo os relatos, os mais velhos orientavam aos jovens que evitassem frequentar
ou passar por l por ser um lugar perigoso. Os depoimentos abaixo so ilustrativos dessa
imagem do Pelourinho que perdurou bastante tempo, j que, como se pode observar abaixo,
marcou o discurso de pessoas de diferentes idades:

Minha tia sempre dizia: Evite passar que perigoso. Que ali em cima no Pelourinho
tinha ruas condenadas de mulheres. (A., vendedora aposentada, 82 anos, moradora da
Cidade Nova, bairro de perfil popular, na poca)

A gente andava to livre naquela poca, amos em todos os cantos, mas no Pelourinho
no amos no... o Pelourinho era meio apavorante, porque diziam que eram as ruas
dos prostbulos, tinha muitas prostitutas e quando tinha que passar era com o irmo
mais velho. (T., professora de ingls, 63 anos, moradora da Barra, bairro de perfil
elevado, na poca)

[Evitava o Pelourinho] Porque diziam que era perigoso... mas a gente ia procurar
mulher, custava 5 mil rs uma mulher, a gente chamava mangue, a Rua das Laranjeiras
Rua Francisco Lus Barreto. (Z., motorista aposentado, 87 anos, morador da
Liberdade, bairro de perfil popular, na poca).
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Outro aspecto relevante no que tange aos usos dos espaos pblicos da cidade se associava s
questes de gnero. A experincia de vida feminina na cidade era limitada em diversificados
aspectos, em funo dos controles masculinos dos pais e maridos, da diviso sexual do trabalho
e dos papis de gnero socialmente construdos. A referncia ao casamento, aos filhos e vida
familiar como um impeditivo ao uso dos espaos da cidade para fins de lazer apareceu somente
nos relatos femininos, especialmente de integrantes de grupos populares e de estratos mais
baixos das classes mdias, o que demonstra a limitao causada por essas questes. Essa
realidade apareceu tanto em depoimentos de mulheres mais velhas, que vivenciaram sua
juventude nos anos 50, quanto em relatos daquelas um pouco mais jovens, que se referiram ao
perodo em torno dos anos 70:

Eu no saa, era s de casa para o colgio, do colgio para o trabalho. Diverso nada...
nada... Passei a ser me, fui me cedo, que a primeira gravidez minha cortou minha
carreira, que eu estava fazendo um curso de Portugus, Matemtica, Datilografia ali
no Palcio do Governo, n, no Rio Branco. [Quando engravidei] Acabou minha vida,
s filho e trabalho e casa, a nica diverso era uma praia levando todo mundo e uma
missa que eu vinha sempre. [...] A minha vida foi mais trabalho e responsabilidade.
Depois que as crianas cresceram, se tornaram adultos, a que eu comecei a ter uma
vida melhor, inclusive fui trabalhar... A que eu fui trabalhar, depois que ficaram
adultos responsveis. (A., vendedora aposentada, 82 anos, moradora da Cidade Nova
na, bairro de perfil popular, poca).

No colgio pblico a gente tinha que fazer amizade de acordo com a educao familiar
que a gente tinha, que a gente se identificava... por isso que tinha grupos que iniciavam
bebida, iniciavam outros comportamentos, a a gente j diferenciava isso a,
principalmente sendo mulher, a gente tinha amizade mais amizade com mulher. (M.,
tcnica de enfermagem aposentada, 56 anos, moradora de Brotas, bairro de perfil
mdio, na poca)

Conforme se observa, havia um conjunto de contradies na construo de um espao pblico


ou nos usos dos espaos pblicos numa sociedade desigual e segregada como aquela existente
em Salvador. Duas outras dimenses se associam a isso, um certo isolamento entre os grupos e
os conflitos existentes entre eles na apropriao dos espaos. O depoimento que se segue
demonstra uma pulverizao e individualizao das experincias nos usos de alguns espaos
pblicos:
Praa praa mesmo, a gente tinha aquela praa de l, que era a So Braz. Agora eu
gostava muito de vir s vezes, mais na poca que j namorava, gostava de vir aqui pro
centro, ia na Praa da Piedade e aquela praa, que t at meio acabada hoje, que em
frente ao quartel dos Aflitos. Eu ia muito ali. s vezes ficava ali com a namorada, a
gente sentava ali de tarde, batia um papo. [...] praticamente no Centro a gente no
conhecia ningum, na praa do centro a gente no conhecia ningum, ia e ficava
isolado. No tinha problema porque naquela poca a gente no se preocupava muito
com segurana, ento a gente podia ficar ali mesmo sendo assim um pouco deserta,
no tinha essa preocupao. (W., Operrio industrial aposentado, 61 anos, morador de
Plataforma, bairro de perfil popular, na poca).
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importante notar que, mesmo havendo a utilizao de determinados espaos pblicos,


geralmente no centro, e a presena de grupos heterogneos, isso no se convertia em um tipo
de interao mais prxima e interessada. Parecia desde j se conformar um tipo de sociabilidade
tal qual definida por Simmel (1979), pautada no distanciamento e numa atitude blas, o que, de
certa forma, no inviabiliza a importncia da existncia desses contatos, conforme analisado
por diversos autores (JOSEPH, 1999 e 2000, BORDREUIL, 2002, SABATINI ET AL, 2013).
Frente s atitudes de negao da existncia da alteridade, baseadas em estratgias de distino
e afastamento, o compartilhamento de um mesmo espao fsico se torna um aspecto relevante
das condies de sociabilidade e coeso social, ainda que limitados, por assim dizer.

Esse compartilhamento, no entanto, muitas vezes engendrava conflitos entre os diferentes


grupos. Segundo os relatos colhidos, era muito comum haver brigas e violncias ocasionada
por disputas entre grupos de diferentes bairros. Esses conflitos aconteciam tanto no uso
cotidiano das ruas quanto nos clubes e nas festas de largo. Diversos entrevistados descreveram
as rixas que existiam entre os moradores de distintos bairros (Plataforma x Itacaranha, Ribeira
x Plataforma, Nazar x Barra, etc.), embora destacassem que no se tratava (ainda) de guerras
por disputas de territrios vinculado ao trfico de drogas, mas sim uma demarcao, por assim
dizer, moral do territrio, de origem bastante machista, j que muitas vezes as brigas eram
motivadas pelo controle sobre as mulheres, de modo que era comum tais grupos tentarem
impedir os homens de outros bairros namorarem com as mulheres dos seus bairros. Segundo
um dos entrevistados durante alguns anos no carnaval houve uma certa institucionalizao
dessas brigas entre bairros quando se conformou um bloco chamado de Os miserveis, onde
cada bairro saa com uma cor de camisa e na avenida brigavam muito, tanto que foi proibido,
saiu dois anos e depois no saiu mais.

Pelo que se pde observar ao longo dessas anlises, entre as dcadas de 1950 e 1970 a cidade
do Salvador era ainda relativamente pequena, possuindo limites urbanos claros e uma
concentrao dos servios e opes de lazer no centro da cidade. Nessa cidade, marcada por
desigualdades sociais originrias do perodo escravocrata em associao s fraturas de classe
que se aprofundavam com a expanso do capitalismo, as utopias do viver junto, j possuam
uma dinmica bastante complexa.

De um lado, o centro da cidade atraa os mais diversificados grupos, ainda que houvesse
segmentaes, como entre a Rua Chile e a Baixa dos Sapateiros, por exemplo. No obstante,
P g i n a | 130

algumas praas como a Piedade e o Campo Grande eram frequentadas por grupos relativamente
heterogneos e promoviam determinados encontros, mesmo que o padro de sociabilidade se
baseasse desde j em grupos relativamente homogneos de amigos, em geral do mesmo bairro
e escola. Alm disso, as festas populares de largo e o carnaval propiciavam um uso mais
democrtico, por assim dizer, dos espaos pblicos possuindo um papel relevante nas formas
de sociabilidade e encontros promovidos pela cidade.

De outro lado, existiam formas importantes de autossegregao das elites, tanto no seus espaos
de moradia quanto nos de lazer e sociabilidade, caso dos cafs na Rua Chile e principalmente
dos clubes restritivos. Associado a isso, grupos mdio-altos, por assim dizer, tinham seu circuito
em boa parte baseados nos seus bairros de moradia, mais valorizados, como Graa e Barra,
ainda que, nessa poca, frequentassem tambm o centro da cidade, que propiciava uma
expresso mais plural do conjunto da sociedade soteropolitana. Havia formas diversas de
restrio dos usos e circuitos dos distintos grupos na escala da cidade, em geral movidos pela
questo de classe, limitaes monetrias mas tambm simblicas, assim como tambm por
outros aspectos como as questes de gnero.

No se pode, portanto, resgatar esse perodo simplesmente com um olhar crtico sobre os dias
atuais sob a pena de mitificar o passado a partir de tons nostlgicos. Apesar disso, pode-se dizer
que esse modelo de cidade, mesmo com suas contradies, propiciava certa expresso da
heterogeneidade social existente e, por um conjunto de questes que sero analisadas ao longo
deste trabalho, permitia maiores oportunidades de usos dos espaos pblicos e de produo de
encontros e relaes interclassistas. Essa realidade comea a mudar j na dcada de 1970 com
o aprofundamento da metropolizao industrial em Salvador e se avana da dcada de 1990 em
diante.

3.2 A metropolizao industrial: periferizao, segregao e os dilemas do viver junto

Depois de estagnada por vrias dcadas, a partir anos 50 um conjunto de transformaes


comeou a se desenvolver em Salvador com os investimentos do governo federal e estadual em
obras de infraestrutura e principalmente com o incio da explorao e refino do petrleo pela
Petrobrs com a implantao da refinaria Landulpho Alves RLAM no municpio de So
Francisco do Conde. Nos anos seguintes, com a poltica federal de desenvolvimento regional,
continuou o incremento industrial com a implantao do Centro Industrial de Aratu CIA
P g i n a | 131

(1966), do Polo Petroqumico de Camaari COPEC (1972) e a implantao do Complexo do


Cobre e a ampliao do Porto de Aratu, j na dcada de 1980 (CARVALHO e ALVES DE
SOUZA, 1980; GORDILHO-SOUZA, 2008).

O parque industrial instalado na regio produziu um crescimento da renda dos estratos mdios
e altos, mas a dinmica gerada no conseguiu superar a heterogeneidade da estrutura social
existente em Salvador, ainda caracterizada por numerosos setores vivendo de atividades no-
capitalistas, precrias e de baixa remunerao, que passaram a exercer a funo de exrcito de
reserva. Ao se configurar como uma espcie de enclave, com pouca articulao com os
demais setores da economia, o desenvolvimento industrial agravou essa situao reativando
mecanismos demogrficos e socioeconmicos de aumento da oferta urbana de trabalho em
Salvador (como a atrao de imigrantes e o ingresso no mercado de trabalho de outros membros
do ncleo familiar para alm do chefe de famlia) (CARVALHO e ALVES DE SOUZA, 1980).

Ainda que esse processo tenha engendrado as condies para a coexistncia de formas
avanadas e atrasadas de capitalismo com formas no-capitalistas de produo, a
industrializao favoreceu o crescimento da cidade em termos econmicos, demogrficos e
urbanos, conformando a Regio Metropolitana de Salvador26. Em termos urbanos, ocorreram
grandes transformaes, resultado tanto da ao do Estado, que estava comprometido com uma
modernizao conservadora (CARVALHO, PEREIRA, GORDILHO SOUZA, 2004),
quanto de investimentos do setor privado, entre eles os do setor imobilirio que adquiriu maior
autonomia com o descongelamento da velha estrutura fundiria (BRANDO, 1981), at
1968 regida pelo regime jurdico da enfiteuse.

Configurando o que Maria Brando (1981) chamou de o ltimo dia da criao, em 1968 foi
aprovada a Lei da Reforma Urbana, Lei 2.181/1968, na gesto no ento prefeito Antnio Carlos
Magalhes, que transferiu para as mos do mercado imobilirio boa parte das terras pblicas a
partir da supresso da proibio da sua inalienabilidade. Segundo Vasconcelos (2011, p. 361),
foram alienados 4.680 hectares de terras pblicas, fato que permitiu a expanso (e
especulao) imobiliria da cidade das dcadas seguintes. Desbloqueou-se a ltima barreira
para a constituio plena de um mercado imobilirio capitalista moderno na cidade do Salvador.

26
A RMS foi instituda, juntamente com mais oito, pelo governo militar em 1973, passando a ser considerada uma
rea de interesse nacional, estratgica em termos polticos e econmicos.
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Nesse contexto, as transformaes no tecido urbano de Salvador se desenvolveram de maneira


rpida e profunda. Em geral, o prprio Estado antecipou os vetores de crescimento da cidade.
Nos anos 70, o sistema virio foi ampliado com a construo das Avenidas Paralela, Antnio
Carlos Magalhes, Suburbana, Juracy Magalhes, Magalhes Neto e Vale do Bonoc.
Implantou-se tambm as estradas CIA-Aeroporto, Via Parafuso em Camaari, Acesso Norte e
foi duplicada a BR-324 at o CIA, alm da implantao do sistema de Ferry Boat, que passou
a ligar Salvador Ilha de Itaparica (GORDILHO-SOUZA, 2008). Segundo Vasconcelos
(2002), a primeira avenida de vale de Salvador data de 1949, sendo seguida por diversas outras
que foram construdas ao longo das dcadas seguintes, mas a implantao de um sistema
articulado s foi realizado na dcada de 70.

Sendo uma cidade conformada por diversos morros, a ocupao de Salvador tinha se dado at
ento pela expanso nas cumeadas, com a instalao de viadutos e outras obras, obedecendo ao
que Santos Neto (2012) considerou uma estratgia equilibrada pois baseada em caminhos de
integrao ao centro. As vias de cumeada eram mais estreitas e lentas e, embora fossem vias de
passagem, ofereciam maior hospitalidade (SANTOS NETO, 2012). Em sua interpretao, as
vias de vale construdas nesse perodo ampliaram a separao e desintegraram a acessibilidade,
pois eram dedicadas ao trnsito rpido de veculos automotores, especialmente particulares, no
oferecendo sombras e possibilidade de trnsito aos pedestres.

De acordo com Vasconcelos (2002), os servios de bondes em Salvador, que funcionavam com
bastante eficincia, foram extintos em 1961 sendo substitudos pelos nibus coletivos que, mais
flexveis, permitiam o atendimento dos bairros perifricos. No entanto, com a queda na
qualidade dos servios os grupos de maior poder aquisitivo passaram a utilizar os veculos
particulares como meio de transporte principal.

No que tange ao crescimento da cidade, de acordo com Santos Neto (2012), a construo do
Centro Administrativo da Bahia, na recm implantada Avenida Lus Viana Filho, conhecida
como Paralela, teve um papel fundamental nesse processo por conta do seu poder de atrao,
conforme destacado pela reportagem da Revista Veja de 5 de Setembro de 1973:

Aqui est nascendo uma nova cidade. O centro Administrativo da Bahia: um arrojado
projeto de desenvolvimento urbano. Obedecendo a um risco original de Lcio Costa,
o governo Antnio Carlos Magalhes desenvolve na Bahia um dos mais arrojados
projetos de desenvolvimento urbano j realizados no Brasil. O projeto, cuja
implantao teve incio em 1972 e estar inteiramente concludo em 1974, consiste
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em fixar um novo polo urbano para Salvador fora e ao Norte do ncleo atual da cidade.
O projeto visa descentralizao do processo de desenvolvimento urbano e utilizar
para tanto um poderoso instrumento: a transferncia para a nova rea de todos os
rgos de administrao estadual e (numa segunda etapa) municipal e federal. O
centro administrativo da Bahia localiza-se, estrategicamente, na confluncia de
modernas vias de trfego expresso que do acesso rpido e direto ao aeroporto, ao
Centro Industrial de Aratu, ao Porto de Salvador, BR-324 e a qualquer ponto da
atual e da futura cidade [...] Era necessrio o surgimento de um polo urbano com a
fora de atrao suficiente para descentralizar e disciplinar a expanso da cidade. Este
novo polo urbano o Centro Administrativo da Bahia. (Revista Veja de 5 de Setembro
de 1973, apud SANTOS NETO, 2012, p. 327)

Como resultados desse processo, conforme salientaram Carvalho, Gordilho-Souza e Pereira


(2004, p.284),
No tecido urbano houve mudanas radicais. Nos anos de 1980, consolidou-se um novo
centro urbano, impulsionado por grandes empreendimentos pblicos e privados
realizados na dcada anterior, destacando-se a construo da Av. Paralela, do Centro
Administrativo da Bahia, da nova Estao Rodoviria e do Shopping Iguatemi. Essa
nova centralidade no apenas direcionou a expanso da cidade no sentido da orla
norte, como afetou a dinmica do centro tradicional na rea antiga da cidade,
contribuindo para o seu gradativo esvaziamento. (CARVALHO; GORDILHO-
SOUZA; PEREIRA, 2004, p. 284)

Essas transformaes estiveram ancoradas numa intensa propaganda que se baseava na ideia
desenvolvimentista da modernidade, do progresso e do futuro reduzindo o centro antigo, na
prtica, a um retrato de uma Bahia ultrapassada e sem perspectiva (SANTOS NETO, 2012).
Nesse contexto, um novo centro urbano se configurou no vale do Rio Camurujipe em torno ao
primeiro shopping center de Salvador, o Iguatemi, implantado em 197527, e da nova estao
rodoviria. Nessa regio passou a se concentrar uma intensa atividade de escritrios, lojas e
supermercados, associados ao novo ideal de modernidade de uma cidade que se inspirava nos
modelos da cidade americana caracterizada pelo sprawl, policentrismo e pelo uso massivo dos
transportes individuais. Para Vasconcelos (2002 e 2011), o processo de metropolizao de
Salvador engendrou um processo de americanizao da cidade.

Segundo Gordilho-Souza (2009), na dcada de 1970 o Centro Antigo de Salvador atingiu o


auge da concentrao das atividades econmicas de servios e comrcio, passando desde ento
a sofrer um processo de esvaziamento e decadncia, perdendo populao e se degradando
fisicamente com a sada das atividades mais dinmicas e as camadas de mdia e alta renda. O

27
O Iguatemi foi inaugurado em 5 de dezembro 1975 pelo empresrio Newton Rique - nome da praa pblica localizada
em frente ao empreendimento. Ele teve a ideia depois do amigo Alfredo Mathias ter lanado, em 1966, o shopping na
Rua Iguatemi, a atual Faria Lima, em So Paulo, o que inspirou o nome da marca. Alfredo Mathias se tornou scio de
Rique para fundar a sede na capital baiana. (PORTAL G1, 2016. Disponvel em <
http://g1.globo.com/bahia/noticia/2015/01/apos-40-anos-iguatemi-muda-nome-para-shopping-da-bahia.html>).
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seu parque imobilirio tambm passou a dar sinais de desgaste, com o fechamento e
arruinamento de imveis, principalmente aqueles ocupados por famlias pobres, especialmente
nas encostas da escarpa entre a Cidade Alta e Cidade Baixa. Os imveis e reas restantes
passaram a ser progressivamente ocupadas informalmente, acumulando-se assim condies
habitacionais precrias s j vulnerveis dos cortios e vilas a existentes (GORDILHO-
SOUZA, 2009).

A instalao de novos centros de servios, shopping centers e supermercados, contriburam


significativamente para a alterao dos padres de circulao das pessoas na cidade e, portanto,
para a apropriao dos espaos pblicos. Segundo os relatos colhidos, neste perodo a escolha
por esses espaos no estava relacionada aos imperativos da segurana, mas principalmente
comodidade do estacionamento e mesmo ao signo da modernidade que representavam,
especialmente para as camadas mdias, ainda que eles fossem frequentados tambm por grupos
populares, muitas vezes os prprios trabalhadores do comrcio. Os depoimentos que seguem
ilustram as transformaes urbanas operadas por esses empreendimentos e os elementos de sua
valorizao:
[Antes do shopping] No comrcio havia alguma centralidade. [...] Tinha alguma coisa
na Barra, na Barra tinham algumas lojas. Mas digamos, o normal era ir para a Sete de
Setembro, e a dependendo do qu, sabe? Por exemplo, Lojas Americanas, lojas de
departamento, sabe, era o padro europeu, rea central, ruas de comerciantes e no
centro, prdios com escadas rolantes, etc. O shopping um padro americano, que
veio depois, e se imps, destruiu o comrcio... No matou, mas houve uma mudana
de classe social, n... quer dizer, a classe mdia optou a ir para o shopping, a comear
pelo Iguatemi, e esvaziou ou deteriorou bastante a Sete de Setembro e a Chile. Para
voc ter uma ideia, as agncias de aviao so bem simblicas... as agncias de
aviao eram todas... a Varig ficava ali na Carlos Gomes junto com... ali no Sulacap,
n? A Vasp era na Rua Chile. Sabe era um lugar elegante, com moas bonitas,
funcionrias... A gente fazia lanche na Mesbla, tinha galerias, cheias de lojinhas, que
voc podia comprar canetas, essas coisas. Na minha especialidade, eu ia na Livraria.
[...] O comrcio era muito animado. [...] [As pessoas passaram a ir ao shopping
porque...] Comea pela novidade, pelo estacionamento, pela presena do ar
condicionado... No incio eles colocavam placas com nomes de rua e nomes de praa.
Era como se fosse uma cidade artificial concorrendo com a cidade real. Tinha a Praa
Jorge Amado, tinha banquinho para sentar. E a, pouco a pouco, esses espaos maiores
foram ocupados com lojas, ficou uma coisa mais densa. Mas inicialmente era quase
uma pracinha, que a gente ia, tinha cadeiras, tinha banquinho, sabe, [...] A segurana
no era fundamental, hoje . Antigamente era uma coisa a mais. A gente na rua tinha
medo de ter batedor de carteira, essas coisas, no era violncia, tinha essa coisa de
multido, medo desses contatos fsicos... tinha pivete que empurrava os velhos, mas
eu acho que atraiu mais a classe mdia a possibilidade de estacionar, n... E outra
coisa, uma certa modernidade, entendeu, vou lhe dar um exemplo, batata frita... no
tinha batata frita em Salvador. A gente comia batata em rodelas. Primeira vez que eu
vi aqui foi num supermercado na Unimar, ali no Rio Vermelho, abriu um cantinho
para vender batata frita. A voc v no shopping tem praa de alimentao... isso
uma novidade... Essas coisas de fast food no tinham em Salvador. (V., 60 anos,
professor universitrio, morador da Pituba, bairro de perfil mdio-alto, na poca).
P g i n a | 135

Quando comeou o Iguatemi, eu frequentava mais para cinema. Era novidade e coisa
e tal... Eu continuava preferindo os lugares mais perto. Agora, o Shopping Barra 28, a
sim. [...] Foi quando realmente eu passei a frequentar shopping, pra compra, pra
lanche, pra cinema. Tudo... At hoje eu fao tudo a. [Os lugares de antes] parei de ir.
Porque tambm eu j tava trabalhando, a minha disponibilidade era menor e a era
perto de minha casa, eu no precisava me preocupar com nada. Era s dar uma
andadinha. Ento eu dava preferncia ao Barra que perto de minha casa e era
gostoso... e o Barra foi uma grande novidade pra gente porque at ento a gente dizia
assim: O nico defeito da Barra que no tem cinema. E a quando o Barra surgiu
com duas salas de cinema aquilo foi um espetculo para os moradores. Ns ramos
muito bairristas viu, minha tchurma. At hoje... (Y., funcionria pblica, 59 anos,
moradora da Barra, bairro de perfil elevado, na poca).

Os shoppings tambm se destacavam por elementos associados ao lazer. Segundo Gottschall


(2003), provvel que o componente festivo da cultura brasileira tenha contribudo para que
no Brasil, ao contrrio do que ocorreu em outros pases, os shoppings centers tenham sempre
valorizado mais as reas destinadas a essas prticas, especialmente como uma estratgia para
ampliar o tempo de permanncia do visitante. Isso aconteceu com o Shopping Iguatemi que,
desde a sua fundao, se apresentou como uma alternativa de lazer, diverso e sociabilidade,
elementos estimulados por suas peas publicitrias, conforme se observa numa pea veiculada
no Jornal A Tarde de 05 de Dezembro de 1975. De fato, ele se tornou ponto de encontro para
alguns grupos, especialmente os jovens, como ilustrado pelo relato que se segue:

No Iguatemi Bahia voc passeia, olha vitrinas, encontra amigos e compra livre do
calor e da poeira. Aqui voc pode desenvolver o prazer de comprar, aliado rea de
lazer que dispe de cinemas, restaurantes, jardins e cascata, um verdadeiro complexo
de comrcio, servios e cultura [...]. No shopping center se encontra o moderno
conceito de compras associado a lazer. Um novo estilo de vida. (Jornal A Tarde de
05/12/1975 apud GOTTSCHALL, 2003, p. 85).

[Ia com] a minha turma do colgio, n. A gente marcava na sexta-feira, combinava


todo mundo, pra ir no shopping no sbado e no domingo, mas pelo colgio ali. [...]
Tinha vrios grupos, me lembro que tinha um pessoal que vestia roupa preta, esqueci
o nome daqueles meninos, mas a gente tinha esse pessoal, naquela poca. Tinha grupo
que a gente fazia amizade, reunia uma mesa com a outra [...] Era comum [juntar as
mesas], naquela poca era comum, porque ficava paquerando um ao outro, a chamava
pra mesa de c, a depois reunia todo mundo e juntava pra ajudar a pagar a conta. Era
mais assim naquela poca. (M., cuidadora de idosos, 59 anos, moradora de Brotas,
bairro de perfil mdio, na poca).

Em funo de todas essas mudanas, o crescimento urbano de Salvador deu as costas ao seu
centro histrico e se direcionou a novas reas de expanso. Nos anos 1980, como consequncia
das transformaes econmicas, sociais, demogrficas e do tecido urbano, se configurou um

28
Depois do Shopping Iguatemi, foram implantados o Itaigara em 1980, o Piedade em 1985 e o Shopping Barra
em 1987. Em 1980 foi inaugurado o primeiro hipermercado de Salvador, ao lado do Iguatemi. (VASCONCELOS,
2002). A implantao de tais empreendimentos demonstra a continuidade e o aprofundando dos processos de
mudanas urbanas ocorridas na cidade.
P g i n a | 136

padro de segregao scio-espacial muito bem delineado em Salvador, pautado em trs vetores
de expanso urbana a partir do centro tradicional, a Orla Atlntica Norte, o Miolo e o
Subrbio Ferrovirio, conforme se pode observar na Figura 4, que se segue:

Figura 4: Vetores de expanso urbana de Salvador - Anos 1970

Fonte: PMS, 1972. Elaborao de PEREIRA, 2014, p. 147 apud CARVALHO e PEREIRA (2014).

Considerada a rea nobre de Salvador, a Orla Norte a regio mais dinmica da cidade,
valorizada econmica e simbolicamente e reduto das camadas mdias e altas com exceo de
alguns interstcios populacionais de camadas de baixa renda. Neste vetor passaram a se
concentrar os investimentos pblicos e privados, assim como servios, equipamentos e
empreendimentos urbanos de melhor padro, entre eles loteamentos e conjuntos habitacionais
do INOCOOP (Instituto Nacional de Orientao s Cooperativas Habitacionais, parte integrante
do Banco Nacional de Habitao destinada aos setores mdios) que na dcada de 80 se
converteram nos primeiros condomnios fechados de Salvador (ARANTES, 2011).

Esses empreendimentos, originalmente direcionados s camadas mdias, contriburam para a


consolidao da ocupao do vetor de expanso da Orla Atlntica Norte. Necessitando de
terrenos mais amplos e a preos compatveis com a renda e aspiraes de cooperativados das
camadas mdias (como a moradia na orla martima de Salvador) e aos interesses do capital de
incorporao, esses conjuntos foram implantados principalmente na dcada de 70 entre as
praias de Jaguaribe e Piat, em antigas fazendas e chcaras, reas ento relativamente distantes
do centro da cidade. Ainda na primeira metade dos anos 1980, em fazendas prximas ao centro
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urbano de Lauro de Freitas, surgiu o Loteamento Vilas do Atlntico, inspirado nos subrbios
estadunidenses. Com um grande porte, esse loteamento teve um papel importante na
consolidao do vetor de crescimento da orla norte, atraindo diversos outros empreendimentos
residenciais e comerciais que, por sua vez, levaram conurbao dessa cidade ao polo
metropolitano e a um intenso crescimento da populao ali residente. Vilas do Atlntico foi
objeto de uma intensa publicidade, o que contribuiu decisivamente para a construo de um
imaginrio social que exaltava a tranquilidade, a vida mais prxima ao mar e natureza, a
homogeneidade social e a segurana proveniente do isolamento.

No momento de sua implantao, tais empreendimentos no possuam ainda o carter de


enclaves fortificados. Residentes mais antigos relataram que a violncia e a busca de segurana
no constituam os principais motivos para se morar nesses lugares, mas principalmente a
oportunidade de acesso casa prpria em condies mais favorveis e a busca de uma melhor
qualidade de vida. Nesse sentido, ainda que tenham contribudo para o processo de segregao
scio-espacial e para certo esvaziamento do padro tradicional de usos dos espaos da cidade
do Salvador, em funo tanto da distncia para o centro da cidade quanto da construo do
imaginrio de uma vida buclica pouco afeita heterogeneidade social e s funes tpicas de
reas mais centrais, no perodo de implantao as representaes dos moradores desses
empreendimentos se associavam busca de um padro de moradia que Blakely e Snider (1997)
chamaram de condomnios de estilo de vida, ou seja, um local que representava as portas do
paraso em direo a um estilo de vida verde (SVAMPA, 2001).

No entanto, a busca de segurana e isolamento foi se tornando gradativamente mais relevante,


a ponto de uma grande parte desses conjuntos e loteamentos ter implantado formas de controle
do acesso desde a dcada de 1980, muitas vezes motivadas por experincias de violncia, como
roubos e assaltos. Assim, os condomnios foram agregando mais estrutura de segurana e de
lazer e se valorizaram bastante nesse perodo, passando a atrair estratos de classes superiores,
contribuindo para a valorizao do vetor da Orla Atlntica Norte.

Outro vetor de expanso da cidade foi o do chamado Miolo, que teve sua ocupao induzida
pelo Estado, entre o final da dcada de 1970 e incio de 1980, atravs de projetos de habitaes
populares financiados pelo SFH (Sistema Financeiro de Habitao). Aps a implantao dos
conjuntos, um grande contingente populacional se deslocou para esta rea, se apropriando do
espao atravs de processos informais, em invases e loteamentos clandestinos, localizando-se
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nas reas de declividade acentuada, consideradas como no-edificveis pelo projeto de


habitao formal, e desprovidas de infraestrutura. Em geral, ainda hoje, essa rea apresenta
dficits de equipamentos urbanos e dificuldades de acessibilidade e mobilidade urbana
(ARANTES, 2007).

Por fim, o vetor de crescimento do subrbio ferrovirio foi constitudo com o adensamento dos
antigos ncleos existentes ao longo da vinha frrea que ligava Salvador ao interior do estado.
Esse vetor de expanso historicamente vem recebendo boa parte dos fluxos das camadas
populares, que a se fixaram basicamente atravs de loteamentos clandestinos e de invases,
conformando uma situao bastante marcante de precariedade urbanstica e vulnerabilidade
social (CARVALHO; GORDILHO-SOUZA; PEREIRA, 2004; CARVALHO; PEREIRA,
2006 e 2008).

Esse crescimento perifrico alterou as feies da cidade do Salvador. Nesse perodo, de uma
cidade com 635.917 residentes em 1960 na qual apesar das desigualdades histricas, da
segregao espacial j existente e da hierarquizao das relaes sociais os distintos grupos
sociais conviviam ou se encontravam eventualmente num espao urbano mais contguo, onde
se reconheciam determinados rostos e se deslocava em bondes ou transportes rodovirios que
circulavam em avenidas de cumeadas, estreitas e mais afeitas ao pedestre, Salvador se
transformou numa grande metrpole, em termos espaciais e populacionais, j na dcada de
1980, alcanando uma populao de 1.493.688 residentes neste ano.

Conforme se pode observar na Tabela I, que se segue, entre as dcadas de 1960 e 1970 a capital
baiana se transforma de uma cidade com pouco mais de meio milho de habitantes em um
espao urbano com uma populao j em torno de um milho. Segundo Vasconcelos (2011),
no referido perodo, 70% do contingente populacional que se agregou populao existente em
1960 era de origem migrante e, considerando a populao total, 59% dela vivia nos distritos do
norte (em relao ao centro histrico) e nos subrbios ferrovirios, reas de perfil popular. Nas
dcadas seguintes o crescimento seguiu bastante elevado, com uma taxa geomtrica de 4,02%
e 3,03% ao ano respectivamente entre 1970 e 1980 e entre esse ano e 1991, de modo que j
neste ltimo ano Salvador alcana o contingente de mais de dois milhes de habitantes. Com
grandes avenidas e extensas zonas perifricas, a cidade se transformou tambm em escala.
Segundo estudos da CONDER (2009), em meados da dcada de setenta (1976), a rea
efetivamente ocupada pela cidade de Salvador abrangia aproximadamente 75 km, equivalentes
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a cerca de 25% da atual rea continental do municpio (CONDER, 2009). Desde ento a
ocupao do espao da cidade vem crescendo com bastante intensidade, conforme se pode
observar na Figura 5 que se segue e apresenta a evoluo da ocupao urbana entre os anos de
1976 e 1998.

Tabela I Evoluo da Populao Residente Salvador, 1960-2010


Populao residente (hab.)
Municpio
1960 1970 1980 1991 2000 2010

Salvador 635.917 1.007.195 1.493.688 2.075.273 2.443.107 2.675.656

Taxa geomtrica de crescimento (% a.a.)

1960/70 1970/80 1980/91 1991/2000 2000/10 -

Salvador 4,71 4,02 3,03 1,83 0,91 -

Fonte: IBGE. Censos Demogrficos 1960, 1970, 1980, 1991, 2000, 2010. apud CONDER, 2015.

Figura 5: Evoluo da ocupao urbana de Salvador, 1976-1998

Fonte: PDDU Salvador 2000. / PLANDURB. Evoluo Demogrfica (1940-2000), 1976. Imagem Fundo:
Fotografias areas CONDER, 1998. E= 1:40.000/ Fotomontagem: Fernando Teixeira. IN PMS, 2009.

Concomitantemente a esse processo, se aprofunda a complexidade da estrutura social e urbana,


que agora abriga situaes extremamente dspares em termos de acesso a equipamentos urbanos
e servios sociais. A segregao se aprofundou bastante nesse perodo em termos da estrutura
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e legalidade da moradia, da sua localizao no tecido da cidade, da mobilidade urbana e do


acesso a servios, como escolas e estabelecimentos de sade, entre outros aspectos, como a
distino de classe baseada em prticas e o prprio habitus das diversas classes.

Esse aumento da populao e da heterogeneidade das condies de vida na cidade contriburam


tambm para a transformao das relaes de sociabilidade pois, conforme salientaram Simmel
(1979) e Wirth (1979), em contextos de ampliao e adensamento do aglomerado urbano, com
a consequente ampliao da heterogeneidade social, as pessoas tendem a se tornar estranhas
umas para as outras, o que impacta no tipo de relao social, agora mais superficial, pautada
em relaes secundrias mediadas por tipos e funes sociais, em detrimento de relaes
primrias e personalizadas. O tipo de sociabilidade tende a ser aquela que Simmel classificou
como uma atitude blas, uma indiferena frente aos outros, uma espcie de estratgia de reserva
e proteo frente ao excesso de estmulos causados pela grande cidade. De alguma forma, esse
padro de crescimento tambm impactou sobre a confiana e coeso social, fato tambm
associado ampliao da violncia. Segundo Paim (2006), constatou-se em Salvador na
passagem da dcada de 80 para a dcada de 90 um crescimento acelerado dos casos de
homicdios (ainda que com taxas inferiores a Rio de Janeiro, So Paulo e Recife), que se
tornaram a principal causa de morte violenta em Salvador.

Considerando todos essas alteraes na ordem urbana, Salvador chega ao sculo XXI mantendo
o macro padro de apropriao do solo forjado ao longo do processo de metropolizao
industrial. De maneira geral, portanto, segundo a leitura sinttica de Carvalho e Pereira (2008,
p. 101), Salvador pode ser caracterizada como uma metrpole que comporta uma cidade
tradicional, uma cidade moderna e uma cidade precria29.

Na cidade tradicional o tecido urbano compacto, relativamente homogneo, e no


h um crescimento expressivo da populao, que composta predominantemente
pelos setores mdios. a cidade que se constituiu a partir do centro antigo e de seu
entorno. J na cidade moderna o tecido urbano est se modificando com a produo
de novas habitaes e centros de consumo e servios, construdas dentro de padres
arquitetnicos e urbansticos elevados, com avano do processo de verticalizao nas
reas mais densas e/ou prximas ao centro. Ocupando, a partir do centro, as reas mais
prximas orla atlntica e crescendo em direo ao litoral norte, ela habitada
basicamente pelas camadas mais altas da pirmide social. Finalmente, na cidade

29
Pedro Vasconcelos (2002, p. 423-424) apresenta uma sntese semelhante apresentando a formao de quase
quatro cidades em Salvador: a) a primeira, a cidade original que corresponde ao centro histrico; b) A segunda,
composta pela pennsula sul e orla atlntica; c) a terceira, formada pela parte do norte do centro e pelos subrbios
ferrovirios; e d) a quarta, de iniciativa do Estado, no interior da pennsula, no seu miolo, entre a BR-324 e a
Paralela.
P g i n a | 141

precria, ocupada predominantemente pelos setores populares, o tecido urbano se


caracteriza pela disperso e pela contnua expanso com o acrscimo de habitaes
precrias, em grande parte auto-construdas sem obedecer a padres arquitetnicos e
urbansticos, com ocupao horizontal, excetuando as reas prximas s vias de maior
circulao e as reas mais consolidadas em termos de ocupao do solo, onde esto
em curso processos de verticalizao, com grande adensamento, de padro um pouco
melhor.

Assim, conforme se pode observar das discusses engendradas nesse captulo, Salvador uma
cidade marcada por um histrico de segregao, desigualdades e hierarquizao das relaes
sociais. No obstante, em alguns momentos do seu desenvolvimento e em determinados
contextos e situaes parece ter se constitudo, dentro dos limites dados por essas caractersticas
mais gerais, um espao onde os diferentes grupos circulavam e se encontravam com maior
facilidade, onde as pessoas pareciam desenvolviam relaes de sociabilidade de modo menos
restritivo, inclusive por no haver altos ndices de criminalidade e/ou medo, o que contribua
para a constituio de um padro mais amplo de utilizao dos espaos pblicos e de maior
proximidade no que concerne constituio de relaes pautadas na diversidade, como no
perodo entre as dcadas de 1950 e 1970. Esses processos foram se alterando em funo das
transformaes urbanas da cidade o que implica nas mltiplas tendncias existentes na dinmica
da vida da cidade contempornea, conforme ser analisado nos prximos captulos.
P g i n a | 142

CAPTULO 4

TRANSFORMAES CONTEMPORNEAS,
ABANDONO DOS ESPAOS PBLICOS
E PRIVATIZAO URBANA
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Salvador chegou ao novo sculo mantendo as principais tendncias de apropriao social do


espao engendradas ao longo da sua metropolizao industrial. No entanto, desde a dcada de
1990 vm emergindo transformaes importantes na sua dinmica scio-espacial.

Em termos sociais, a referida dcada interrompeu o ciclo desenvolvimentista de ampliao de


emprego e renda, produzindo uma crise social vinculada a uma precarizao das relaes de
trabalho, ao crescimento dos trabalhadores de sobrevivncia e do desemprego, acentuando um
dos traos mais caractersticos da cidade. Somente a partir de 2004, assim como em outras
metrpoles brasileiras, comeou a haver certa recuperao econmica que, no entanto, no
conseguiu recompor as perdas ocorridas ao longo do perodo de crise. A economia segue
concentrada em poucas atividades, essencialmente do setor tercirio, e a maioria dos novos
empregos gerados so de qualidade inferior aos criados no ciclo anterior, caracterizando-se
pelos baixos rendimentos, elevada rotatividade e baixa exigncia de qualificao (CARVALHO
e BORGES, 2014; CARVALHO e PEREIRA, 2014).

A estrutura social de Salvador conformada atualmente por um pequeno grupo de maior nvel
de renda, composto pelos empregadores, dirigentes do setor pblico e privado, assim como
profissionais de nvel superior; uma proporo relevante, ainda que inferior a outras metrpoles
brasileiras, de setores mdios e pequenos empregadores; um proletariado industrial com
participao restrita e um contingente expressivo de trabalhadores em atividades tercirias. De
maneira geral, continua se destacando o peso do subproletariado e da reserva de mo de obra,
evidenciados pela frequncia de prestadores de servios no especializados, trabalhadores
domsticos, ambulantes, biscateiros e desempregados (CARVALHO e PEREIRA, 2014, p.
116).

Em termos urbanos, algumas transformaes similares s constatadas em outras metrpoles


brasileiras e latino-americanas vm se esboando em Salvador como

[...] a sua expanso para as bordas e para o periurbano; o esvaziamento, a deteriorao


ou a gentrificacao de antigas reas centrais e a edificao de equipamentos de grande
impacto na estruturao do espao urbano, como shoppings centers, complexos
empresariais e centros de convenes; a difuso de novos padres habitacionais e
inverses imobilirias destinadas aos grupos de alta e mdia renda, com a proliferao
de condomnios verticais e horizontais fechados, que vem mudando os padres de
segregao e ampliando a autossegregao dos ricos, a fragmentao e as
desigualdades urbanas; e, finalmente, a expanso da orbita do mercado e uma
afirmao crescente da lgica do capital na produo e reproduo da cidade, com o
abandono por parte do Estado de boa parte de suas funes tradicionais de
P g i n a | 144

planejamento e gesto urbana e metropolitana e a sua transferncia para atores


privados, com impactos decisivos sobre a estrutura urbana e a vida de sua populao
(CARVALHO E PEREIRA, 2014, p. 125).

De maneira geral, pode-se dizer que contemporaneamente o processo de expanso da metrpole


tem dois movimentos distintos, uma disputa pelas reas centrais que esto cada vez mais
saturadas e que, por isso, crescem a partir de processos de verticalizao, e uma expanso
horizontal para as bordas. Boa parte dessa expanso vem se dando a partir de enclaves
fortificados, da privatizao da vida e da evitao do uso dos espaos pblicos especialmente
no que tange s camadas de mdia e alta renda. Esses processos esto relacionados a um
conjunto de elementos, como se ver ao longo deste captulo.

4.1 Abandono e evitao dos espaos pblicos e festas populares

Atualmente na cidade do Salvador existe um contingente considervel de citadinos que no


frequenta ou mesmo que evita frequentar os espaos pblicos. Isto se associa a elementos mais
amplos relativos ao uso do tempo livre e a dimenses mais especficas dos prprios espaos
pblicos. O ato de frequentar determinados espaos, sejam eles pblicos ou privados, est
relacionado a fatores de ordem estrutural, como as relaes de trabalho, as condies de vida,
prticas culturais, as caractersticas da dinmica urbana, entre outros elementos.

No que tange aos elementos mais gerais, as entrevistas realizadas demonstraram que um
conjunto significativo de pessoas tem como prtica permanecer a maior parte do seu tempo
livre em suas residncias, em detrimento de utiliz-lo para realizar atividades diversas nos
espaos (pblicos ou privados) da cidade, como ir praia, aos shoppings, aos parques, shows e
festas, entre outros lazeres. Isto se deve a elementos como a insegurana, as dificuldades de
acessibilidade, a necessidade de realizao de afazeres domsticos e/ou o desejo de descansar
e o custo derivado do consumo associado a certos espaos, mesmo queles de acesso pblico.

Quanto aos espaos programados para uso pblico, uma primeira questo relevante o
desinteresse ou a falta de prtica (no sentido de hbito) de alguns grupos em frequentar tais
espaos, especialmente parques e praas. Como se ver melhor no prximo captulo, os usos
dos espaos pblicos em Salvador so segmentados, em termos de classe mas tambm em
funo de prticas e perfis de usurios, que so bastante especficos. Embora alguns grupos
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faam uso desses espaos, outros, como certos jovens, o recusam, conforme fica ilustrado nos
depoimentos que se seguem:

No, no costumo [frequentar], j fui, mas no uma coisa comum. Tipo Parque da
Cidade, Pituau? No. Primeiro que eu tenho medo... eu podia falar que longe, mas
isso no uma boa desculpa porque eu vou muito pra Barra, que longe, mas eu acho
que, sei l, no um programa... eu no acho to chato, sabe, mas se eu chamasse
meus amigos pra ir pro parque eles iam ficar meio que, tipo, a gente vai fazer que
merda l, vai sentar e...? Segundo, sei l, tipo, no tem tanta coisa assim pra fazer
num parque e tambm eu acho perigoso, eu teria medo de ir. Dique nem tanto, mas o
parque da Cidade eu teria bastante medo porque se voc vai ali pra dentro, n? [E
praa?] E praa? Acho que no... Acho que a mesma coisa... No tem tanta utilidade
assim pra mim... (Q., 18 anos, estudante de cursinho, moradora do Costa Azul, bairro
de perfil mdio-alto)

[...] difcil eu ir num parque. Porque falta em mim, como que eu posso dizer, falta
em mim esse processo de adquirir novos espaos, sempre se acostumar no mesmo.
At mesmo cinema recente eu t participando do cinema. No uma prtica minha.
A minha rotina sempre foi um barzinho com a galera, alguns colegas tm um carro, a
gente sai pra tomar uma cerveja fora. (A., 24 anos, representante
comercial/universitrio, morador do bairro de Plataforma, bairro de perfil popular)

Nunca [fui em parque]. Fui umas duas vezes quando era menino, mas no vou
atualmente. Porque um lazer que no me apetece, eu no acho interessante.
(R., 22 anos, estudante universitrio, morador de Nazar)

Nunca fui no. Rapaz, na verdade, nunca ningum me chamou, nunca pensei em ir
assim. Na verdade eu acho a praia mais interessante, algo desse tipo, praia, clube, no
tenho muito interesse em parque no, nem Parque de Pituau, Parque da Cidade. (P.,
23 anos, vendedor, morador de Tancredo Neves)

Tal desafeio, por assim dizer, foi explicada por muitos jovens pelo fato de considerarem os
parques e praas espaos voltados principalmente para o pblico infantil. De fato, as
observaes diretas demonstraram claramente como as famlias acompanhadas de crianas
compunham o principal grupo de frequentadores desses lugares. Tais espaos no atendem a
certas exigncias destes jovens, como ilustram alguns relatos que associaram esse
desinteresse ausncia de maiores atrativos, como a realizao de shows e feiras
gastronmicas, ou mesmo precariedade das estruturas e do seu estado de conservao:

Eu ia no Parque da Cidade at os 11 anos, a depois minha famlia perdeu o hbito. Ia


para brincar, andar de patins e bicicleta. Era o parque que minha famlia j frequentava
antes de eu nascer. Minha v levava meu pai e isso perpassou.... (I., 20 anos, estudante
universitria, moradora de Plataforma, bairro de perfil popular).

Tem o Parque da Cidade, o Parque de Pituau, mas falta atrativos como teatro na
praa, festas, espao de cultura, cinema na praa, msica ao vivo, porque nem sempre
se tem dinheiro para ir numa festa, num cinema... tem espaos, mas faltam atrativos.
(P., 23 anos, vendedor, morador de Tancredo Neves, bairro de perfil popular)

[A situao dos espaos pblicos de Salvador] Eu diria que ruim porque no tem
muitos, n, e os que tm, alguns que tm no esto muito conservados, no faz voc
querer ir neles... outros voc s vai quando voc sabe o que vai ter l, a feira de
gastronomia. L vai ter uma feira e tal, a eu vou l... Quando voc no t sabendo,
P g i n a | 146

voc no quer muito ir. (B., 19 anos, universitria, moradora de Piat, bairro de perfil
mdio-alto).

Conforme destacou Serpa (2007 e 2008), os espaos so apropriados de maneira seletiva e isso
depende das identidades e das prticas dos grupos sociais. Neste aspecto, a disposio
utilizao dos espaos programados para uso pblico em Salvador parece estar distante do
universo simblico e de prticas de alguns jovens. Segundo o referido autor, alguns desses
espaos esto alheios a diversos grupos sociais, especialmente s camadas populares, pela sua
inacessibilidade fsica e principalmente simblica, j que foram planejados pensando em
cdigos de condutas e/ou prticas culturais de camadas mdias, de maior capital cultural30. No
obstante, de acordo com os relatos, so os jovens de grupos mdios e altos os menos afeitos
utilizao desses espaos, uma vez que suas atividades de lazer so realizadas e suas relaes
de sociabilidade se expressam principalmente em espaos privados, como ser demonstrado no
decorrer desta discusso.

Mais do que no frequentar os espaos pblicos, uma parcela significativa dos moradores os
evita. A sensao de insegurana e medo tem sido um dos principais motivos associados a isto,
especialmente entre grupos de camadas mdias e altas, mas no apenas. Entre as transformaes
ocorridas nas ltimas dcadas em Salvador est o crescimento da criminalidade violenta.
Atualmente a cidade convive com nveis altos de crimes violentos letais intencionais
(homicdios dolosos, leso corporal seguida de morte e latrocnio) e tem tambm taxas de
homicdio superiores mdia nacional e estadual31.

A violncia, no entanto, est presente no territrio da cidade de maneira desigual e com uma
vitimilogia bastante especfica, pelo menos no que tange aos homicdios. Os bairros populares
concentram a maior parte desses casos, que tm como vtimas principalmente jovens, homens

30
[...] a acessibilidade deve ser discutida em suas dimenses materiais e imateriais, j que a garantia do acesso
fsico a determinados espaos urbanos no garante a sua apropriao simblica, que depende, em grande parte, do
domnio de um repertrio (Certeau, 1994) ou da disponibilidade de um capital escolar ou cultural (Bourdieu,
2007), o que, em ltima instncia, acaba por inviabilizar a apropriao, em toda sua potencialidade, destes espaos
por determinados grupos/classes sociais. (SERPA, 2013, p. 171)

31
Enquanto o Brasil teve em 2013, segundo o 8 Anurio Brasileiro de Segurana Pblica, uma taxa de 25,2
homicdios dolosos por 100 mil habitantes e a Bahia uma de 36,1, Salvador teve uma taxa de 50 homicdios por
100 mil habitantes, valor cinco vezes maior do que o considerado aceitvel pela Organizao das Naes Unidas.
Apesar da magnitude deste dado, tal taxa vem caindo nos ltimos anos, passando de 61 em 2010 para 44 em 2015,
considerando os dados fornecidos pela Secretaria de Segurana Pblica da Bahia e as estimativas populacionais
do IBGE.
P g i n a | 147

e negros (CALAZANS, 2014). Apesar disso, e mesmo com a diminuio de alguns crimes
contra a vida nos ltimos cinco anos, a sensao de insegurana e o imaginrio do medo tm
crescido de uma forma difusa em toda a populao. Nesse aspecto a imprensa tem uma papel
relevante na medida em que tem repercutido a insegurana, ampliando a sensao de medo
que invade a vida social, permeando as estratgias de circulao das pessoas na cidade
(PEREIRA, 2013). Alguns relatos ilustram a evitao dos espaos pblicos por conta do medo
da violncia:
Esses espaos pblicos que so literalmente abertos, que no tem uma coordenao
direta, eles tambm no tem uma estrutura decente oferecer... nem estrutura, nem
segurana, ou esto danificados ou so muito perigosos [...] No frequento muito
porque as pessoas que eu ando no frequentam e quando eu penso em ir eu penso
muito na segurana, fico preocupado. No Parque da Cidade mesmo, a vez que eu fui
eu achei muito pouca a segurana, no lugar tem uma mata muito aberta e qualquer
vacilo ali j foi. (J., 22 anos, fotgrafo/atendente de telemarketing, morador do
Pelourinho, bairro histrico e atualmente de perfil popular)

[...] Deve ter muitos anos que eu no vou a um parque aqui. por questo de segurana
mesmo porque quando eu vou a outro lugar, outra cidade, eu costumo ir aos parques.
Quando eu viajo... (F., 28 anos, estudante universitria, moradora da Paralela, rea de
expanso de perfil mdio-alto)

Nunca fui no Parque da Cidade. Eu ia em Pituau quando era pequena, mas tambm
parei de frequentar. [...] Deixei de frequentar por questes de segurana mesmo. Os
dois, infelizmente, no so muito seguros. O parque da cidade eu nunca fui porque eu
cresci com meu pai falando pra eu no ir porque tinha estupro, tinha isso, tinha
aquilo... De uns anos pra c eu tenho visto que a prefeitura tem feito eventos e coisa
e tal e pelo que eu escuto nesses eventos no to perigoso, mas ainda assim, como
eu nunca fui e eu cresci com essa imagem do parque, nunca tive vontade de ir. (D., 23
anos, estudante universitria, moradora da Pituba, bairro de perfil mdio-alto).

O medo, algumas vezes, resultado de casos concretos de violncia sofridos pelas pessoas ou
ocorridos em espaos antes frequentados. Outros, no entanto, se baseiam em imaginrios que
representam os espaos pblicos como lugares violentos e como espaos frequentados por
agentes portadores, por assim dizer, da violncia, os grupos perigosos (MACHADO DA
SILVA, 2002). Tanto a violncia quanto o medo construdo pelos estigmas interferem nos usos
dos espaos pblicos e tambm nas interaes desenvolvidas neles, conforme ilustram os
relatos que se seguem:

Eu fui com um amigo meu pra uma praa [do bairro], a gente ficou l conversando,
resenhando, tomando uma cervejinha, a na hora de ir embora veio um cara e falou
voc mora na faixa do Boiadeiro ali, n, que a parte de baixo de Plataforma, a eu
falei moro, a ele disse: os caras to querendo me pegar l e voc vem pra aqui, no
venha mais no vu, vou contar at dez pra voc ir embora. A eu peguei tive que ir
embora, n, e mesmo no envolvido em nada, mas s pelo fato de eu morar numa rua,
no nem um bairro, uma rua diferente da outra, a acabou sobrando pra mim. (A.,
24 anos, representante comercial/universitrio, morador de Plataforma, bairro de
perfil popular)
P g i n a | 148

Por aqui tambm frequentava uma praa que tinha ali no largo, perto da delegacia,
tinha quadra, tinha pista de skate, s que tambm no frequento mais, coisa de trs
anos atrs. [...] Na Praa do centro tinha mais estudante, adolescente, a galera ia mais
pra se divertir, paquerar... Aqui a galera tambm vai nesse sentido, mas
frequentemente tinha assassinato, uma pessoa que s vezes devia alguma coisa, tava
ali e neguinho matava, s vezes tambm tinha briga, no era to sadio quanto a do
centro no. Outro motivo tambm que eu tambm parei de ir. (P., 23 anos, vendedor,
morador de Tancredo Neves, bairro de perfil popular)

[Nas praas do Pelourinho e Santo Antnio Alm do Carmo] [...] t cheio daqueles
menininhos que esto sempre prontos pra poder... se a gente der mole no celular, leva,
se a gente no for da rea, eles procuram briga, so uns encrenqueirozinhos. As Praas
do Pelourinho raramente so frequentadas por famlias pra curtir um domingo ou um
sbado... como a gente diria, so uns aprendiz de delinquente. (J., 22 anos,
fotgrafo/atendente de telemarketing, morador do Pelourinho, bairro histrico e
atualmente de perfil popular).

[A praa So Brs, Plataforma] [...] na adolescncia parei de frequentar porque meu


pai e minha v no deixavam porque eles diziam que s tinha bebida e pessoal que
no tinha nada na cabea e no queria nada com a vida. (I., 20 anos, estudante
universitria, moradora de Plataforma, bairro de perfil popular).

[Na praa em Santa Mnica] Final de semana e tarde da noite as pessoas evitam usar
por conta dessas ms influncias [porque] as pessoas envolvidas com a criminalidade
ficam bebendo, vendendo coisas ilcitas. [...] s vezes algumas pessoas costumam
interagir na praa, mas entre pessoas desconhecidas no tem [interao]... no tem at
porque um bairro que a populao diz ser perigoso, ento a, as pessoas
desconhecidas no vo. (C., 18 anos, atendente de telemarketing, moradora de Santa
Mnica, bairro de perfil popular)

Esses imaginrios engendram uma experincia cotidiana do temor, do cuidado, do olhar para
os lados, do desconfiar dos outros e, principalmente, de evitar determinados espaos, em alguns
dias ou em horas especficas. Certa percepo de que a cidade mudou e que a violncia
contribuiu fortemente para isso est bastante presente nos relatos de pessoas mais velhas que
viveram em Salvador em dcadas anteriores. Marluze Pereira (2013), por exemplo, identificou
entre pais e mes moradores de condomnios verticais de perfil mdio e alto um sentimento de
perda do prazer de viver a cidade, de andar nas ruas, que existia antigamente e hoje no existe
mais. Uma das entrevistadas ao dizer que o filho vive mais enclausurado, dentro de casa,
construindo relaes com seus amigos atravs de jogos eletrnicos e da internet, chegou a
afirmar: [...] A gente vivia mais com o povo, assim n? Eles no. Eles no tm esse contato.
(PEREIRA, 2013, p. 115). Outro entrevistado da autora ainda mais incisivo no que se refere
a essas transformaes, assim como algumas pessoas entrevistas pelo autor para este trabalho:

Meus filhos tm medo. Antnio tem 15 anos e, apesar dos 15 anos, Antnio ainda tem
medo de andar sozinho, de andar solto na rua. , quando a gente fala que, naquele
tempo, com a idade que ele tem, 14, 15 anos, a gente voltava do colgio, ia pro colgio
de nibus, terminava a prova, no precisava que ningum fosse pegar, porque a gente
ia andando pro Campo Grande pegava o nibus e voltava pra casa, parece absurdo,
mas hoje invivel (F.,41 anos, mdico apud PEREIRA, 2013, p. 93-94).
P g i n a | 149

Meus filhos tm uma qualidade de vida que eu tinha quando era pequeno. O
condomnio [fechado] resgata isso, lazer agregado a moradia e segurana. Uma
infncia sadia para meus filhos. S que eu fazia na rua... Dar a eles uma autonomia
maior, embora controlada pelos seguranas. uma integrao maior frente ao prdio.
(N., corretor, 45 anos, morador de Patamares, bairro de perfil mdio-alto)

[A cidade] Mudou. Mudou o estilo de vida, o custo de vida em primeiro lugar, as


pessoas no se entendem mais como antigamente, um mundo totalmente diferente
hoje... Voc vai a algum lugar [hoje em dia] e assaltado, assaltaram ali... voc j
anda todo assustado, antigamente no existia isso, n? Voc ia na cidade de trem, ia e
voltava meia noite... hoje voc j anda no trem com medo. (L., 66 anos, pintor
industrial aposentado, morador de Fazenda Coutos, bairro de perfil popular)

E como mudou [a cidade]... hoje est uma barbaridade, no , voc tem medo de sair.
Eu mesma s saa sozinha, quando constru famlia saa com meus filhos. (A.,
vendedora aposentada, 84 anos, moradora do Alto das Pombas, bairro de perfil
popular).

[Mudou a] Violncia, hoje eu no me atrevo a sair sozinha de noite, eu ia pra festa em


Itapu voltava sozinha de carro, dirigindo sozinha, hoje eu no me atrevo jamais a
fazer isso; alis nem andando aqui pela Barra, a gente sai de noite de carro trancado
e todo mundo apavorado. (Y., funcionria pblica, 59 anos, moradora da Barra, bairro
de perfil elevado)

Mudou completamente tudo... [...] A cidade cresceu demais de 70 pra c... muito,
muito mesmo. [...] A violncia cresceu tambm, txico aumentou tambm, as drogas,
as brigas de bairro que ns chamvamos de coisa de bairro e aquilo virou faces.
Antigamente, na Salvador antiga, a gente chegava seis, sete horas da noite em casa
aqui, podia pegar a cadeira e ficar na porta conversando, hoje voc no pode mais...
[...], as casas todas gradeadas. (J., 62 anos, eletricista aposentado, morador de Brotas,
bairro de perfil mdio)

Os conflitos existentes nos espaos pblicos tambm so evocados pelos entrevistados como
justificativas para a sua evitao, complexificando as possibilidades do viver juntos. A maior
parte deles est associada a desentendimentos, que muitas vezes se convertem em contendas
fsicas entre os usurios geralmente motivados pelo consumo em excesso de bebida alcolica.
Muitas vezes as contendas culminam em aes mais peremptrias, como agresses e mesmo
troca de tiros. Isso acontece principalmente em bairros populares, onde a presena do trfico
territorializado de drogas maior e as aes policiais so mais truculentas. A possibilidade
desses conflitos engendra, como j observado, uma restrio dos circuitos e dos usos dos
espaos pblicos como demonstra o depoimento abaixo:

[Evita ir] S mesmo a festas em bairros que eu no conheo, fora isso eu vou em
qualquer lugar. Festas em bairros que eu no conheo eu evito ir. Em Piraj a festa de
Labatut eu evito ir, essas festas de Varela nos bairros, que tem festa de largo, trio, eu
evito de ir... ou arrasto da liberdade, essas coisas assim, essas festas de largo no
bairros dos outros eu evito ir. [Isto ocorre pela] Violncia... Segurana. Infelizmente
a gente tem que ser sincero, atualmente Salvador t tomada por bandido, trfico de
drogas, essas coisas, n, e agora tem esse negcio de faco a que se voc for pro
bairro dos outros a galera pergunta logo voc mora aonde?, se for um bairro da
faco rival voc pode ser quem for, voc vai morrer... A se eu vou, vo me perguntar
voc mora aonde e eu no vou saber o que falar, se eu falar que moro em Tancredo
P g i n a | 150

Neves e se Tancredo Neves for faco rival deles l, sei l... bom evitar porque, hoje
em dia at nos nibus tm isso, a galera diz quem no for de no aonde vai ter que
descer... eu no sei tambm pra onde correr se rolar alguma coisa, eu no conheo o
outro bairro, no sei pra onde correr vou acabar correndo pra um lugar pior, a eu evito
de ir. (P., 23 anos, vendedor, morador de Tancredo Neves, bairro de perfil popular)

Para alm do temor da violncia, que impacta diretamente nos usos dos espaos e nas relaes
de sociabilidade construdas, esses conflitos esto associados tambm ao individualismo,
autoritarismo e o machismo arraigados na cultura nacional, na medida em que as pessoas tm
dificuldades em compartilhar um espao e querem impor sua vontade individual sobre as outras.
Essa uma realidade muito comum no uso dos espaos pblicos de Salvador, o que desvirtuam
a ideia de espao pblico enquanto lugar de compartilhamento, de expresso da pluralidade, do
interesse pelo comum (ARENDT, 2008) quanto o prprio conceito ideal tpico de sociabilidade,
como algo que se baseia na compatibilidade entre a satisfao das pessoas que esto
participando da interao (SIMMEL, 2002).

Todas essas questes ligadas violncia tm interferido sobre o padro de apropriao dos
espaos pblicos da cidade, que tm os seus usos reduzidos consideravelmente durante noite,
quando Salvador se torna uma cidade quase inspita ao pedestre, os parques, praas e largos
que possuem gradis fecham e poucos se arriscam neles depois de determinada hora, com
algumas excees. O mesmo acontece com as praias. As principais alternativas de lazer noturno
na cidade acabam sendo os shoppings centers e os bares e restaurantes. Alguns espaos ainda
so frequentados por algumas (poucas) pessoas at s 22h, como o Campo Grande, a Barra, o
Dique do Toror, a Praa Ana Lcia Magalhes na Pituba, a Praa da Piedade, a Praa da S e
o Terreiro de Jesus, por exemplo, espaos localizados em reas centrais e valorizadas. Aps
esse horrio, no entanto, o medo e a insegurana reinam na cidade, que fica quase desrtica32.

Devido a episdios de violncia, as Praas e Parques de Salvador tm adotado um conjunto de


dispositivos de segurana. Em algumas delas, especialmente as mais centrais ou localizadas em

32
interessante notar como essa situao diferente de outras cidades em que os ndices de violncia e o medo
so menores, ainda que presentes no cotidiano dos moradores. Em 2014 o autor teve a oportunidade de observar
os usos dos espaos pblicos e as relaes de sociabilidade em Santiago do Chile e se surpreendeu com o padro
de utilizao desses espaos, especialmente noite, pelo menos nas reas mais centrais. Isso se deve a variados
motivos e, sem entrar por ora nessa discusso, pode-se dizer que os parques cumprem uma funo relevante nas
atividades de lazer e sociabilidade dos santiaguinos, sendo palco para encontros de jovens, comemoraes de
aniversrios, minifestas, diverses infantis, prtica de esportes individuais e coletivos, como Tai Chi Chuan e
futebol, danas como o Candombe (ritmo africano particularmente relevante no Uruguai e, de l, exportado para
outros pases da Amrica Latina), entre outras atividades.
P g i n a | 151

bairros valorizados, como o Campo Grande, o largo do Farol da Barra e a Ana Lcia Magalhes,
por exemplo, existem postos itinerantes e fixos da Guarda Municipal e viaturas da Polcia
Militar. O Largo do Campo Grande, mesmo com a presena constante de policiais, em 2013
passou a ser fechado entre as 22:00h e s 6:00h depois que um estudante foi encontrado morto
submerso numa fonte, vtima de latrocnio33. Os Parques, por sua vez, tambm fecham durante
a noite e so cercados quando possvel por muros e grades. Mas, como assinalou Serpa (2003,
p. 125), cercar praas decretar definitivamente a morte destes espaos pblicos de uso
coletivo. No podemos pensar num Campo Grande com gradil, como se aquela praa
pertencesse apenas aos moradores do entorno.

Para alm do medo da violncia, os parques e praas de Salvador so tambm evitados por
motivos associados ao perfil social, s prticas e padro moral dos seus frequentadores.
Conforme salientou Tereza Caldeira (2000), a proteo buscada nos enclaves fortificados ou na
evitao dos espaos pblicos, principalmente pelas camadas mais altas, no apenas da
violncia, mas tambm reflete o desejo de no ser incomodado, de manter-se longe dos
considerados indesejveis, da under class, dos prias urbanos. Essa uma caracterstica
marcante em Salvador. O primeiro relato que se segue demonstra, de maneira geral, o
pensamento de grupos mdios e altos (muitas vezes construdo sem base em experincias
pessoais) sobre os espaos pblicos como lugares frequentados basicamente por camadas
populares. Embora isso acontea em vrias situaes, como se ver no prximo captulo, tal
imaginrio sugere a existncia de formas de distino, apreciaes de comportamentos de
outros grupos sociais como absolutamente diferentes do grupo ao qual se pertence. Evitar certos
espaos, portanto, envolve prticas sociais marcadas por tenses e preconceitos, conforme
ficam ilustradas nos demais depoimentos apresentados em seguida:

[Os frequentadores do Parque da Cidade] Imagino que sejam pessoas que se divertem
com atividades relacionadas caminhada, andar de bicicleta, jogar bola, levar crianas
para passear, a maioria que frequenta deve ter uma renda inferior das pessoas que
frequentam os shoppings, por que um lazer gratuito, voc est l e pode usufruir do
espao no parque se divertir l e gastar nada ou pouco, e no shopping pra voc ter
qualquer tipo de lazer voc tem que gastar alguma coisa, voc no vai ao shopping
por ir ao shopping, voc vai ao shopping consumir. No parque voc pode estar l
desfrutar o que ele tem a oferecer sem precisar gastar com isso. (R., 22 anos, estudante
universitrio, morador da Sade, bairro de perfil mdio)

33
Disponvel em < http://g1.globo.com/bahia/noticia/2013/04/corpo-de-estudante-de-federal-da-ba-e-achado-na-
praca-do-campo-grande.html> e < http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/materias/1498147-campo-grande-sera-
fechado-durante-as-madrugadas >.
P g i n a | 152

Hoje eu no gosto [das festas populares] por causa do acesso, da segurana e uma
questo esttica. So muitas pessoas feias, independente da cor. uma questo
esttica. (F., corretor, 42 anos, morador de Piat, bairro de perfil mdio-alto)

Nunca fui muito f [das festas de largo]. Vou raramente. Acho que tem muita gente.
No tenho vontade de ir. como um carnaval, uma baguna, uma bebedeira. Acaba
sendo um lugar que mistura muitos segmentos da sociedade e acaba dando muita gente
feia. (B., estudante, 25 anos, morador de Stella Mares, bairro de perfil mdio-alto)

No tem mais o cunho religioso. Hoje bebedeira, prostituio e comrcio. Voc no


vai comparar uma festa da Boa Viagem [festa popular de largo] com um Saupe Fest
[festa fechada realizada num resort de luxo]. No levamos mais os filhos. No tem
segurana e no vai somar nada. (P., advogado, 45 anos, morador de Patamares, bairro
de perfil mdio-alto)

[A opinio sobre o Pelourinho ] A pior possvel. Aquilo ali um antro de marginais,


infelizmente... Todo tipo de coisa ruim tem ali: prostituio, trfico, gente pedindo
esmola, viadagem... Uma doena mental dentro de Salvador. Deveria ter um choque
de revoluo: derrubar e fazer um novo. H 40 anos era Pelourinho. Hoje
degradao. (E., corretor de imveis, 65 anos, morador de Piat, bairro de perfil
mdio-alto)

Tais imaginrios, no entanto, no esto restritos aos grupos mdios e altos. Diversas expresses
depreciativas foram utilizadas pelos entrevistados de grupos populares para qualificar os
espaos pblicos e seus frequentadores, como baixo astral, lugar que no de famlia, onde
se concentram maloqueiros, pessoal com cara de ladro, pessoas que no tm muita
cultura e danam at o cho. Muitos deles se referiram constantemente ideia de que em
alguns espaos as pessoas fazem baguna/baderna em contraposio a ambientes mais
familiares. A falta de educao existente nesses lugares foi constantemente associada a
pessoas de baixa renda, mesmo entre aqueles que auferiam rendimentos baixos e eram
moradores de bairros perifricos. Isso indica a existncia de estratgias de distino
engendradas no apenas entre diferentes classes, mas tambm entre estratos de classes ou no
interior de uma mesma classe, como, de um lado, uma introjeo da violncia simblica imposta
pelos grupos hegemnicos e, de outro, como uma estratgia de fuga desses preconceitos. Isso,
por vezes, constri formas de segmentao interna, conforme se pode observar no depoimento
abaixo:
[As pessoas que frequentam a praa do bairro] J bastante diferente do Parque da
Cidade, de Pituau. O pessoal mais agitado... [Agitado como?] O comportamento
diferente do pessoal que frequenta o parque. Praticamente no tem educao, quebra
tudo, joga lixo no cho, no conserva o que tem. (J., 20 anos, estudante universitrio,
morador de So Rafael, bairro de perfil mdio-popular)

As formas de distino so complexas e englobam diversos grupos e questes, como aquelas


associadas orientao sexual, estilo/ grupos considerados alternativos, preferncia musical,
etc., como ilustram os seguintes relatos:
P g i n a | 153

[Evito] Hoje em dia ir na Barra, no Farol, nos dias de domingo. Virou um ponto de
encontro de gays. Respeito, mas no me sinto vontade. Tem muitos homossexuais e
um no respeita o espao do outro. [...]Fazem muito barulho, falam palavres, falam
alto. O jeito de se vestir, falta de respeito. Por exemplo, um casal t vendo o pr do
sol e eles xingam, procuram palhaada. (G., 18 anos, estudante universitrio, morador
de Santo Incio, bairro de perfil popular).

[Sobre os diferentes grupos de jovens existentes na cidade] Acho que no tem pessoas
to diferentes. Meu grupo igual a todo jovem, quer se divertir, beber, danar. Talvez
o pessoal da suburbana [rea de perfil popular] seja diferente, vo para o show de
pagofunk baixaria. As meninas se vestem com roupas curtas e decotadas... No meu
grupo ns temos um discernimento maior da forma de se vestir. (I., 20 anos, negra,
estudante universitria, moradora de Plataforma, bairro de perfil popular, com
histrico de ascenso social).

[Sobre os diferentes grupos de jovens existentes na cidade] Aquela galera metaleira,


mas que tem no Rio Vermelho e na Barra, aquele pessoal de preto... esse pessoal em
si eu no acho muito legal no; e tambm o pessoal da putaria, o pessoal do pagodo,
que fica com som ligado no carro, que fica mais em praa (L., 20 anos, estudante de
cursinho, morador do Toror, bairro de perfil mdio-popular).

Esse pessoal que gosta de vestir esse tipo de roupa, que sabe que... a roupa no diz o
que a pessoa , mas a gente sabe que certo tipo de roupa diz que a pessoa no certa,
bon, roupa esporte, coloca o bon no rosto para ningum saber quem , pratica assalto
em nibus, faz baguna... Fazem baderna na cidade. [Essas pessoas] Esto mais no
subrbio, nos bairros mais carentes. (J., 20 anos, estudante universitrio, morador de
So Rafael, bairro de perfil mdio-popular).

Como se v, esto presentes nessas imagens uma srie de preconceitos, sociais, tnicos,
culturais e estticos que se expressa no apenas na evitao dos espaos pblicos mas tambm
em formas de autossegregao34, especialmente entre grupos mdios e altos, alm de tentativas
de controle social dos grupos considerados como indesejveis. Essa estratificao impacta
fortemente sobre as relaes de sociabilidade e inclusive sobre a autoestima de diversos jovens,
em geral negros e de origem popular, que muitas vezes introjetam os preconceitos vigentes,
assim como a dimenso simblica da segregao (SERPA, 2013)35. Essas prticas e
consequncias so ilustradas pelos depoimentos que se seguem:

34
O depoimento de uma entrevistada claro a esse respeito. Ela descreve os motivos porque parou de frequentar
uma boate no Rio Vermelho, bairro bomio da Orla Atlntica que costuma atrair diversos perfis de pessoas:
Inicialmente tinha um pessoal mais educado, depois foi misturando... caiu o nvel do lugar e por isso eu parei de
frequentar. (F., 28 anos, estudante universitria, moradora da Paralela, regio de perfil mdio-alto)

35
Ao analisar os usos do Parque La Villete em Paris, que teria sido concebido para se tornar um espao no
segregador das classes populares, Angelo Serpa destaca questo semelhante encontrada aqui: Mas, ao que
parece, no se conseguiu evitar uma estratgia de subordinao objetiva que coloca as classes populares em
situao de inferioridade cultural [no Parque La Villete] e no considera em geral a existncia de um capital
cultural popular. Como consequncia, pode-se afirmar a introjeo de um sentimento de inferioridade cultural
entre as classes populares, que se esforam para se proteger do sentimento de autodesvalorizao, rejeitando (ou
evitando) determinados espaos e prticas e assumindo, ainda que muitas vezes de modo involuntrio, os estigmas
e esteretipos a elas impingidos pelas classes ditas cultivadas [...] (SERPA, 2013, p. 175)
P g i n a | 154

[Sobre a abertura das pessoas a conhecer outras diferentes] Eu acho que depende do
ambiente, depende do lugar. [...] se voc for em alguma balada em alguma boate tipo
essa Pink Elephant as pessoas so padronizadas... se voc fugir do padro vai ser
olhado assim meio que torto. No sei se voc est familiarizado com o termo, mas
o que a gente chama de miti. aquele grupo de pessoas que ... que so em sua
maioria a elite financeira, financeiramente falando, e so rodeados por pessoas que
acham que por essas pessoas serem elite financeira, elas so tambm elite social,
enfim, e tem muita gente que quer ser assim, ento fica assim fingindo que tem, mas
no tem... Ou as pessoas no tm e fingem que tm muito ou, se as pessoas realmente
tm muito, ostentam o que tm, que acham que o que importa mostrar o que tem. E
a quando voc vai numa festa dessa todo mundo com a mesma roupa, o mesmo
comportamento, as pessoas no danam porque no podem se passar, tipo, fica cada
um ostentando seu dinheiro, sua roupa de marca, seu sapato de marca, sua bolsa de
marca, um meio de ostentao, que todo quer passar a imagem disso... Isso que
miti mais ou menos. (D., 23 anos, estudante universitria, moradora da Pituba,
bairro de perfil mdio-alto)

[Evita ir a] essas partes das reas nobres, da orla em si, eu acho que eu no sou muito
de frequentar porque eu vejo assim muita discriminao em si, geralmente com a
galera negra; voc chega num lugar desses, num espao desse, e nego comea a te
olhar com mal visto, acha que voc marginal, at pelas suas vestes, se voc botar
uma roupa mais simples, a nego acha que voc se envolve [com crimes]; ento eu
evito. J [aconteceu comigo], j, a gente uma vez foi, eu e meu primo, a gente foi ali
na parte do Imbu tomar um banho de mar, a a gente comeou a andar e a mulher
simplesmente comeou a olhar pra gente e ficou assustada dizendo que a gente tava
seguindo, a chamou o policial e ele veio chamar a gente pra conversar. A gente [disse]
no, a gente veio tomar um banho de mar. Simplesmente a gente tava andando atrs
dela porque a gente tava andando num processo rpido ela achou que a gente tava
seguindo; a gente no tava seguindo. Mas simplesmente a gente tava indo tomar um
banho de mar em Armao ali. A a gente comeou a evitar certos lugares de certa
comunicao com esse pessoal at porque eles acreditam que s porque negro... [...]
Se for pra escolher entre frequentar os espaos l [da Orla] e os espaos da minha
periferia eu prefiro os da periferia at porque eu me sinto mais a vontade de ficar l
[na periferia], at pelas minhas amizades, os espaos voc acaba tendo contato com o
prprio dono do bar, s vezes at colega seu o dono do bar, a voc fica mais
vontade. (A, 24 anos, representante comercial/universitrio, morador de Plataforma,
bairro de perfil popular)

[Evita ir] A festas em boates, casas de show fechadas. Por exemplo, Tarantino.
Quando fui no me senti vontade porque eu achava as pessoas to superiores a mim,
aparentavam ser mais bonitas, serem mais ricas, sociveis. Pessoas com condio
superior minha. (I., 20 anos, negra, estudante universitria, moradora de Plataforma,
bairro de perfil popular, com histrico de ascenso social).

Os estigmas e preconceitos, assim como a afirmao da lgica da segregao, so uma recusa


das caractersticas da cidade, do inesperado, dos encontros fortuitos com o desconhecido, da
heterogeneidade, da diversidade, e do prprio espao pblico. Essa uma questo que interfere
diretamente na vivncia mais profunda do espao pblico, conforme definido tradicionalmente.
Esses comportamentos esto longe do que Sennett (1988), por exemplo, chamou da
sociabilidade tpica vida pblica clssica, um prazer na companhia dos outros diferentes; esto
muito longe tambm dos ideais de civilidade, como aquilo que protege os homens uns dos
outros mas permitindo que se tenha prazer nessa companhia (SENNETT, 1988). A cultura
poltica autoritria da sociedade brasileira (TELLES, 1999) est claramente presente nos relatos
P g i n a | 155

anteriores e na prtica de diversos grupos, inviabilizando a constituio de um espao pblico


que se assemelhe ao que Hannah Arendt (2008) definiu como um lugar onde se expressa a
pluralidade da condio humana, onde as pessoas interagem e se colocam atravs da ao e do
discurso.

Esse processo de esvaziamento dos espaos pblicos tambm se expressa na dinmica atual das
festas populares e do carnaval em Salvador. Algumas dessas festas deixaram de existir ou
perderam em importncia, em funo de variados motivos, de base social, religiosa, urbana e
mesmo por conta de intervenes descabidas do Poder Pblico, no entender de Ordep Serra
(2009). Para o este autor, como resultado desses processos as festas de largo se carnavalizaram,
perdendo muitas vezes sua matriz religiosa, e ao mesmo tempo se massificaram no sentido de
que j no ocorrem em um contexto predominantemente comunitrio. As festas no
necessariamente se esvaziaram mas so percorridas por uma multido em grande medida
amorfa que consome a diverses produzidas de acordo aos cdigos do consumo de massa, o
que tem contribudo para aprofundar a sua fragmentao. A despeito da sua massificao, as
festas populares foram gradativamente abandonadas pelas camadas mdias e altas, de modo
que os jovens desses grupos sequer as conhecem.

Nas entrevistas, pais de camadas mdias moradores de condomnios fechados lembraram do


passado para criticar a atual situao dos espaos pblicos da cidade, legitimando, de alguma
forma, o fato de no mais os frequentarem e justificando o desinteresse das atuais geraes
seus filhos por esses locais. Isso foi particularmente visvel em relao s festas populares.

Eu no frequento h tantos anos. Fui perdendo o interesse, vai mudando o foco.


Mudou o esprito. Antigamente era mais tranquilo, de paz, a gente encontrava todo
mundo, menos gente. Hoje gente demais bebendo, insegurana. Hoje para os
jovens, turistas, bandas comerciais. Quando vejo a multido, no tenho nem vontade.
(E., 62 anos, servidora pblica, moradora de Jaguaribe, bairro de perfil mdio-alto)

J foi da minha poca, mas no dou mais valor. Perdeu a beleza. Antes era mais
seguro. Hoje tem muita violncia. Chegou a esse ponto, tanto que meus filhos nunca
foram. Antes no tinha baguna e violncia. Hoje tem muita briga; perdeu a conotao
da diverso. (R., advogado, 55 anos, morador de Patamares, bairro de perfil mdio-
alto)

Essas perspectivas so bastante importantes na medida em que subjetivamente fazem aluso s


transformaes por que passou a cidade, na sua dimenso urbana, social e poltica. Em alguma
medida a percepo de um passado diferente contribui para a legitimao da importncia da
autossegregao, da evitao de certos espaos e da diminuio da frequncia a lugares antes
P g i n a | 156

considerados to importantes. Muitos pais que viveram naquele outro contexto histrico, por
exemplo, no incentivam seus filhos a frequentar os mesmos lugares em funo da sensao
negativa dessas transformaes.

Essas transformaes, associadas mercantilizao do desenvolvimento urbano, incentivaram


o surgimento de enclaves fortificados de entretenimento que utilizam a tradio da festa original
para a criao de um novo produto, festas realizadas em espaos fechados no mesmo dia das
festas de largo e que, diferentemente da festa popular, atraem principalmente jovens de camadas
mdias e altas que querem curtir sem precisar conviver com pessoas feias (sic) e/ou mesmo
socializar com as camadas populares, evitando as festas tradicionais e se autossegregando
nesses enclaves. Essas festas ganharam o adjetivo de light, como o Bomfim Light, realizada
no dia da Lavagem da Igreja do Bomfim, a Conceio Light, durante muito tempo realizada no
dia da festa de Nossa Senhora da Conceio, entre outras, que so vendidas como um
privilgio, conforme se pode observar na pea publicitria apresentada mais adiante, ou seja,
uma clara oferta de segregao e apartao pautada numa espcie de limpeza social
fundamentada nos altos preos cobrados pelos ingressos.

Figura 6: Publicidade da festa "Bomfim Light" de 2011

Embora as festas continuem existindo, a sociabilidade produzida de alguma forma tem sido
limitada pelos processos de privatizao, abandono e evitao36. Conforme destaca Serra (2009,
p. 106, grifo original):

36
Em matria do dia 10 de Dezembro de 2015 o Jornal Metrpole destaca: Festas de largo, que antes atraam um
grande nmero de baianos e turistas, hoje se restringe a cada vez menos fiis. Na percepo dos entrevistados do
jornal: Na Festa do Bonfim, o viaduto engarrafa. Dali em diante, comea a ter arrasto. H oito anos j era assim.
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[...] Esses festeiros que se deslocam rumo a Itapagipe com o prstito [cujo vnculo
entre sagrado e profano tm ainda significado em suas prticas] so em regra mais
velhos, e mais pobres (de classe mdia baixa para baixo). Os jovens (de classe mdia
e alta) concentram-se no espao alternativo de festejo carnavalesco concomitante. A
festa dividiu-se...

O auge desses processos de privatizao das festas de rua de Salvador ocorre no carnaval, que
no demorou em deixar de se configurar como uma democracia do ldico, tal qual construdo
nos anos 50. Segundo Miguez (2003 e 2014), o trio eltrico, ao mesmo tempo em que promoveu
uma maior democratizao da festa, tambm ampliou sua mercantilizao, de modo que o
carnaval se converteu num grande negcio cada vez mais gerido por grandes corporaes. Na
passagem dos anos 80 para os 90 uma inveno consolidou essa tendncia, o aparecimento dos
blocos de trio que:
Com suas cordas, privatizam o trio eltrico e reintroduzem uma hierarquia social na
ocupao do espao pblico da festa. Dessa forma, realizam um movimento inverso
ao registrado em 1950, quando essa mesma hierarquia foi desarticulada pela apario
do trio eltrico. (MIGUEZ, 2014, p. 85)

Segundo Milton Moura (2003), embora as cordas no sejam novidade, com o surgimento dos
blocos de trio, elas avanam contra a multido, operada por um gigantesco aparato paramilitar,
na busca pela conquista de mais espao para seus folies. Nesse novo contexto, alm dos blocos
de trio, os camarotes tambm cumprem um processo importante na privatizao da festa pois,
cada dia maiores, tambm tomam espao das ruas, espremendo os folies pipocas (aqueles
que no esto nem em bloco e nem em camarotes) entre esses espaos e as cordas. Para Ordep
Serra (2014), uma espcie de ressurgimento dos bailes das antigas elites, uma vez que

Os camarotes37 constituem a grande novidade. [...] Compreendem espaos,


equipamentos e servios mltiplos: mirante, lounge, salas de massagem, salo de
beleza, posto mdico, webzone, lanchonetes, bares, restaurantes, palco para
apresentaes e espaos reservados dana, televisores, teles, etc. Podem ser
descritos, peu prs, como pequenos clubes provisrios, voltados para a rua,
oferecendo a viso do cortejo gaiato em ambiente de refinado conforto e com
ineludveis marcas de alto status. Assim viabilizam ostentao de prestgio, fruio
consumerista e o precioso sentimento de uma seletividade que distingue seus
ocupantes da massa contemplada, alm de oportunizar a aproximao efmera com
estrelas e celebridades miditicas. (SERRA, 2014, p. 281)

Nenhum turista ter uma boa recordao, s se tiver sorte de no ser assaltado [...] As pessoas que vo so
corajosas. Tem pouco policiamento (P., representante de vendas, 40 anos). (JORNAL DA METRPOLE, 2015).
37
Em 2012, a construo do Camarote Salvador, um dos mais luxuosos do carnaval, gerou polmica pois foi
realizada, para reafirmar a vitria da primazia do privado sobre o pblico, em uma praa no bairro de Ondina.
Segundo Reportagem do Jornal A Tarde de 13/01/2012, a Praa foi concedida Premium Produes, responsvel
pela construo do camarote, pela Superintendncia de Controle e Ordenamento de Uso do Solo do Municpio
com a contrapartida de sua reforma e pagamento de 1 milho de reais prefeitura. Essa cesso comeou trs meses
antes do carnaval, quando a praa j estava cercada por tapumes impedindo o acesso dos usurios.
P g i n a | 158

Essa lgica da privatizao, segregao e apartao tem impactos sobre o tipo de sociabilidade
que se desenvolve. Nesse carnaval, onde o espao segmentado e h uma extrema
hierarquizao das relaes sociais, segundo Milton Moura (2003), h uma liminaridade na
utilizao do espao pblico balizada por uma corrida pela legitimao esttica, conforme ele
especifica no longo mas preciso trecho abaixo:

Dentro das cordas, os indivduos, quase sempre de pele mais clara, no precisam se
destacar tanto. [...] na calada, no passeio, que se pode observar a configurao da
hierarquia da beleza, da legitimidade esttica, do direito de existir bem na
microgeografia carnavalesca de Salvador. Quem se especializou no apuro de seu tipo,
seja mais claro, seja mais escuro, ocupa o meio fio, zona de liminaridade em que o
personagem destacado se encontra frente de seus pares e em frente dos outros
concorrentes. Este o centro do Carnaval de Salvador, hoje. O lugar de onde os
exitosos podem olhar de cima do pdio, com um sorriso de vitria, os no vencedores
ou derrotados. Os outros, aqueles que no tm lugar nem nos blocos de trio nem nos
blocos afro e que no se distinguem na multido dos que se aproximam das cordas
desses blocos, espremem-se pelas caladas e pelas transversais, ocupam os fundos e
os interstcios, comprimem-se entre a muralha de cordeiros e os notveis no meio fio.
Alguns deles ensaiam desempenhos coreogrficos como as brigas de malhados,
praticam pequenas subtraes do patrimnio alheio para custear o consumo mnimo
de bebidas e aguardam os momentos perifricos como a madrugada, e os lugares
perifricos, como as transversais e recantos mal iluminados, para realizar suas
fantasias. (MOURA, 2003, p. 105)

Esses processos de segregao, abandono e evitao dos espaos pblicos se associam tambm
ao crescimento e valorizao dos espaos privados, tanto de habitao, como os condomnios
fechados, quanto os de consumo, como os shopping centers.

4.2 Tendncias de privatizao e autossegregao: condomnios fechados e shopping centers

Conforme discutido em detalhes em estudo anterior (ARANTES, 2011), desde a dcada de


1990 tem havido uma proliferao de enclaves fortificados em Salvador. No que tange
habitao, a partir desse perodo houve uma expanso e diversificao significativas da
incorporao de condomnios horizontais fechados em Salvador.

Proliferaram condomnios fechados de todos os tipos, inicialmente horizontais, como os


villages (corredores de casas geminadas), loteamentos fechados (mais elitizados pois possuem
mais reas verdes e casas mais luxuosas por deter maior liberdade de alterao arquitetnica),
condomnios horizontais (onde casas padronizadas ocupam fraes ideais de uma rea comum,
mas nos quais, muitas vezes, h equipamentos e servios diversificados) e at condomnios
fechados dentro de condomnios fechados (pequenos condomnios construdos em loteamentos
que j so fechados). Alm disso, inmeras ruas da cidade foram fechadas com a instalao de
P g i n a | 159

guaritas de controle de acesso e os condomnios verticais ganharam contornos de enclaves


fortificados com a instalao de aparatos de segurana e itens de lazer.

Esse processo se iniciou com a incorporao de condminos que passaram a marcar a paisagem
da Orla Atlntica Norte, pois, alm de se diversificarem nos bairros de Patamares, Jaguaribe e
Piat, conforme visto no captulo anterior, tambm se espraiaram para Itapu, Stella Mares,
Praia do Flamengo, assim como para o municpio vizinho de Lauro de Freitas, muito
influenciado tambm pela consolidao de Vilas do Atlntico, que se conformou como uma
espcie de nova cidade dentro desse municpio. A Figura 7, que se segue, ilustra a difuso
desses empreendimentos pela Orla Atlntica da cidade.

Figura 7: Condomnios e vilas horizontais na RMS, 2010

Fonte: IBGE Censo Demogrfico 2010. Elaborao de PEREIRA, 2014


IN: CARVALHO e PEREIRA, 2014

Os novos condomnios passaram a incorporar diversificados itens de segurana e lazer e o que


se observa na lgica da vida buscada e propiciada por esses empreendimentos o desejo de
autonomia cada vez maior em relao cidade, ampliando, assim, a constituio de isolados
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microcosmos sociais dessas cidades blindadas dentro da cidade (AMENDOLA, 2000). Essa
lgica fica visvel tambm na publicidade dos empreendimentos, que tenta marcar a sua
diferena para a vida urbana, assim como nos seus nomes que exaltam essa distino em termos
de segurana e qualidade de vida. A oferta de uma vida diferenciada fica bastante explcita na
publicidade de um desses empreendimentos, apresentada a seguir, que enfatiza a possibilidade
de viver em um mundo individual e nico, ou seja, em um espao que uma antpoda do que
Hannah Arendt (2008) considerou uma das dimenses mais bsicas da esfera pblica, o
compartilhamento do interesse por um mundo comum, capaz de reunir os homens na companhia
uns dos outros ao mesmo tempo evitando que eles colidam entre si.

Figura 8: Publicidade do Empreendimento Green Ville

A valorizao dos condomnios fechados atualmente ainda se relaciona a uma busca pelos
portes do paraso (BLAKELY; SNIDER, 1997), na medida em que tais empreendimentos
so percebidos como um local onde possvel obter um novo estilo de vida, como na dcada
de 70, mas os apelos do mercado se voltam para a nfase na segurana, de modo que a
constituio de vales do medo (BLAKELY; SNIDER, 1997) atualmente a razo mais
importante na busca pela moradia nesses espaos (ARANTES, 2011). O depoimento de um dos
entrevistados do referido trabalho particularmente representativo (ARANTES, 2011):

[Foi morar num condomnio fechado] Porque... Isso a no era nem uma opo de
morar fora de um condomnio fechado. A gente sabe que a segurana t em
condomnio fechado, t entendendo? No que seja 100% seguro, mas a mentalidade
P g i n a | 161

de um condomnio fechado j gera segurana, t entendendo, na cabea de todo


mundo. Inclusive, se voc for aqui fora comprar uma casa igual a casa aqui de dentro,
ela vai custar 1/3 ou metade do valor da mesma casa aqui dentro s porque um
condomnio fechado. [...] L fora uma outra vida, uma outra coisa. uma
realidade, aqui dentro voc tem mais segurana. [...] Mas isso importante. Se voc
no consegue a segurana l fora, voc tem que criar a sua, n? (G., 50 anos, corretor,
morador de Piat, bairro de perfil mdio-alto)

Ao longo dos ltimos anos, a moradia fortificada em Salvador obteve uma grande valorizao
comercial. Uma casa em condomnios horizontais pode custar entre 50% e 100% a mais do que
uma do mesmo padro do lado de fora (MUITO, 2010). Isso faz com que a sua expanso
continue acelerada. Nos ltimos anos, ouros tipos de enclaves tm surgido, ganhando novas
dimenses e maior heterogeneidade de formas. Empreendimentos com conjuntos de torres,
alguns deles com mais de mil unidades, e aqueles que poderiam ser denominados de
minicidades impactam no espao da cidade ampliando a fragmentao scio-espacial. So
em geral empreendimentos multifuncionais, que pretendem centralizar moradia, trabalho, lazer
e servios, com o objetivo manifesto de se criar um novo bairro fechado e seleto, uma cidade
blindada dentro da cidade, oferecendo alm da segurana, divertimento, qualidade de vida,
felicidade da famlia e facilidades diversas (IVO, 2012). Parte desses empreendimentos ocupou
alguns vazios urbanos remanescentes, reas que estavam anteriormente em engorda ou que
eram protegidas pelas legislaes municipais, como a Avenida Paralela.

Para alm dos empreendimentos voltados para as camadas de mdia e alta renda, curiosamente,
com o estmulo governamental edificao de conjuntos habitacionais populares nos ltimos
anos a frmula de condomnios fechados tem alcanado tambm empreendimentos
direcionados a outras camadas sociais, especialmente em conjuntos e edifcios subsidiados pelo
Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV). a lgica da fortificao e da privatizao
urbana que de maneira transversal est presente nas prticas, desejos e imaginrios de diversos
grupos da estrutura social, ainda que alguns consigam colocar suas estratgias em prtica de
maneira mais eficiente do que outros.

Isso se expressa claramente nas publicidades dos empreendimentos. A propaganda do Horto


Bela Vista, destinado a setores de mdia e alta renda se apresentando como residencial,
shopping e corporate, por exemplo, afirma:

Apartamentos de 98 a 340m, como elevadores privativos, colgio Anchieta para seus


filhos, a poucos passos do Shopping Bela Vista, o mais completo, e do centro
empresarial mais avanado de Salvador. Isso nico.
P g i n a | 162

Por sua vez, a publicidade do Villa das Flores, residencial subsidiado pelo PMCMV,
contextualiza os apelos ao seu pblico alvo (destacando o valor da entrada, das parcelas e do
subsdio), mas enfatiza o fato do condomnio ser fechado, como se observa na Figura 9 que se
segue:

Figura 9: Publicidade do Residencial Vila das Flores, subsidiado pelo PMCMV,


localizado na Estrada Velha do Aeroporto, regio de perfil mdio-popular
Foto: Rafael Arantes

Para alm da habitao, a privatizao urbana em Salvador tem se expressado tambm em


outras dimenses, principalmente nos circuitos percorridos pelas pessoas no territrio da
cidade. O novo centro esboado com a implantao do shopping Iguatemi e da nova estao
rodoviria nos anos 70 se consolidou na dcada de 1990 e continua a se desenvolver em torno
do eixo das Avenidas Tancredo Neves e Paralela, com a multiplicao de modernos e luxuosos
shoppings, centros de negcios e servios, centros mdicos, edifcios de alta tecnologia e outros
equipamentos que, em geral, obedecem lgica do enclausuramento e da fortificao.

No se pode dizer que o centro tradicional de Salvador se tornou um espao sem importncia
na cidade. Segundo pesquisas de Carvalho Filho e Uriarte (2014a e 2014b) sobre a Avenida
Sete, tomando como informaes os dados da Associao de Comerciantes da Cidade Alta, na
regio da referida avenida existem 1.400 estabelecimentos comerciais onde trabalham cerca de
15 mil comercirios. Soma-se a isso seis mil trabalhores informais e um fluxo de passantes em
torno de 350 mil pessoas por dia, chegando at 1 milho em pocas festivas como o natal. No
entanto, a transformao propiciada pela criao de outro centro urbano contribuiu para que o
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centro tradicional se tornasse um espao basicamente frequentado por grupos populares,


segundo a etnografia realizada pelos autores:

[...] a Avenida Sete um espao eminentemente popular. No h quase pessoas


chiques no local, no se veem saltos altos ou roupas de grife e pouqussimos so os
palets. H uma homogeneidade muito grande no que diz respeito aparncia, cor,
condio social. So mulheres, acima dos 40 anos, pardas e negras os transeuntes mais
recorrentes. [...] Trata-se de um centro para o povo. Numa sociedade hierarquizada,
onde as classes mdias e altas no gostam dos pobres e querem distncia deles, no
de estranhar que haja um centro para os pobres e outro(s) para os ricos (ou quase
ricos). [...] A classe mdia ou alta no vai ao centro, pelo menos no em perodos
normais*, preferindo os espaos mais exclusivos (como os shopping centers)
(CARVALHO FILHO e URIARTE, 2014b, p. 86-87).
*Na poca natalina, o centro frequentado por um pblico mais diversificado em
termos de classe (CARVALHO FILHO e URIARTEb, 2014, p. 86-87).

A despeito de tal sobrevivncia do centro tradicional, a maior parte dos entrevistados, de


todos os grupos sociais, mantm uma frequncia muito mais constante aos shopping centers,
tanto no que tange busca de produtos e servios quanto ao lazer. Tais empreendimentos
cumprem uma importante funo na estruturao e na experincia da vida urbana da cidade.
Em Salvador, conforme se pode observar no Mapa 1, que se segue, existem cerca de 60 centros
comerciais que se denominam shoppings ou que exibem nomes correlatos como center e mall
por exemplo. No entanto, nem todos so considerados shoppings centers pela Abrasce
Associao Brasileira de Shoppings Centers, que tem uma definio mais especfica 38. De
acordo com esse critrio, Salvador possui atualmente 14 empreendimentos classificados nesta
categoria.

O mais recente desses empreendimentos foi inaugurado no final de 2015 no bairro de


Cajazeiras. Esse foi o sexto shopping construdo em Salvador nos ltimos 9 anos, o que indica
o crescimento desse tipo de negcios e a sua valorizao pelos usurios nessa cidade.
Atualmente Salvador a stima capital com o maior nmero de shoppings, mas a quarta em

38
A Abrasce considera shopping center os empreendimentos com rea Bruta Locvel (ABL), normalmente,
superior a 5 mil m, formados por diversas unidades comerciais, com administrao nica e centralizada, que
pratica aluguel fixo e percentual. Na maioria das vezes, dispe de lojas ncoras e vagas de estacionamento
compatvel com a legislao da regio onde est instalado (ABRASCE, 2015. Disponvel em
<http://www.portaldoshopping.com.br/site/monitoramento/definicoes-e-convencoes>). O shopping Itaigara
possui 13.094 m de ABL, mas no includo nessa lista pela Abrasce por motivos desconhecidos. A despeito
disso, ele foi classificado no mapa com um dos grandes shoppings da cidade. Por outro lado, seguiu-se a
classificao da ABRASCE quanto ao Outlet Premium Salvador que, embora se localize no municpio de
Camaari, Regio Metropolitana, est completamente vinculado lgica da metrpole, uma vez que ancorado
por lojas de marcas que praticam preos inferiores aos demais shoppings, e por isso aparece como parte de
Salvador.
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rea bruta locvel disponvel, 424.194 m, ficando somente atrs de So Paulo, Rio de Janeiro
e Belo Horizonte.

Mapa 1: Shopping Centers e Centros Comerciais de Salvador

Conforme se pode observar, os pequenos shoppings e centros comerciais se localizam


basicamente na regio da Orla Atlntica, do Centro da Cidade e em bairros de camadas mdias
como Brotas, Cabula e Imbu por exemplo. Os empreendimentos maiores obedeceram a duas
lgicas locacionais. Inicialmente, depois do Shopping Iguatemi (que recentemente mudou seu
nome para Shopping da Bahia39) eles se expandiram para bairros mais prximos ao centro
tradicional. Depois do referido empreendimento foram inaugurados os Shoppings Itaigara
(1980), Piedade (1985), Brotas Center (1986), Barra (1987), Center Lapa (1996), alm dos
Shoppings Liberdade e Outlet Center, localizados em bairros mais populares Liberdade e
Uruguai, inaugurados entre as dcadas de 90 e 2000. Os novos empreendimentos, por sua vez,
aprofundam a ocupao da regio do Shopping da Bahia e avanam pela Avenida Paralela,

39
Em 2015 foi anunciada a mudana do nome desse shopping uma vez que a marca Iguatemi foi vendida e o
empreendimento em Salvador pagava aproximadamente R$ 20 mil por ano pelo seu uso (PORTAL G1, 2016.
Disponvel em < http://g1.globo.com/bahia/noticia/2015/01/apos-40-anos-iguatemi-muda-nome-para-shopping-
da-bahia.html>).
P g i n a | 165

acompanhando a zona de expanso norte da cidade, ultrapassando muitas vezes os limites


municipais como visto no caso do Outlet Premium.

Entre os mais novos, o Shopping Cajazeiras o primeiro grande shopping a se localizar num
bairro perifrico e distante do centro. Essa tendncia tem sido observada tambm em outras
cidades brasileiras e est vinculada melhoria de renda e a ascenso da chamada classe c nos
ltimos anos, ainda que observaes diretas realizadas neste ano tenham demonstrado uma
lentido no funcionamento completo do Shopping, que ainda tem muitas lojas fechadas e pouco
movimento, talvez devido ao horizonte nebuloso da economia nacional em 2016, contexto
diferente daquele no qual o shopping foi planejado e construdo40.

Considerando o crescimento da oferta deste tipo de empreendimento, relevante questionar


sobre o seu papel na vida cotidiana da cidade do Salvador e sua relao com a (possvel)
restrio dos usos de alguns espaos pblicos. H uma discusso na literatura sobre o
significado e a real consequncia dos shoppings para a segregao e o processo de privatizao
da cidade. Enquanto alguns autores consideram tais empreendimentos como enclaves
fortificados, ambientes controlados, homogneos, voltados a uma lgica assptica do consumo
e at da alienao, outros tm uma leitura menos estrutural e pessimista, considerando as
microestratgias e os contrapoderes dos usurios e compreendendo que os shoppings no so
to apartados da lgica da cidade, pois seriam tambm utilizados para fins no apenas
mercadolgicos, como por exemplo encontros, relaes afetivas, jogos, ou seja, como mais um
importante espao de sociabilidade e encontros (STILLERMAN E SALCEDO, 2010). Nessa
linha, por exemplo, Andrade e Baptista (2013) consideram os shoppings como espaos de
consumo que podem ter um uso pblico.

Em um texto sobre o antigo Shopping Iguatemi, Carlota Gottschall (2003) apresenta algumas
consideraes a esse respeito. Em sua interpretao, a experincia urbana engendrada por este
shopping mesclou elementos da cultura local difuso dos valores da cultura do consumo,
construindo um espao onde a vivncia urbana tem como marca a presena no mesmo espao
de mltiplos atores, se constituindo assim como um dos poucos lugares de convergncia de
diversidade existente em Salvador, especialmente para os jovens, seu pblico majoritrio.

40
Notcias recentes tm repercutido os efeitos da crise econmica sobre os shopping centers, que tm renegociado
algumas das obrigaes dos lojistas nos custos de ocupao dos pontos de venda por causa da deteriorao da
situao financeira desses empresrios. Ver < http://atarde.uol.com.br/noticias/1757649>.
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Tendo acesso a pesquisas internas do referido Shopping, Gosttschall (2003) identificou dois
tipos clssicos de frequentadores, os consumidores to-somente simblicos e os
consumidores reais. Os primeiros, estimados em um tero dos frequentadores, vo ao
shopping motivados por questes que a autora classificou de psicolgicas status social, fuga
do cotidiano, identidade com signos do consumo, busca de sociabilidade e/ou econmicas
opes de lazer gratuitas em um ambiente seguro e moderno. J os consumidores reais, que
efetivamente mantm a lucratividade do empreendimento, tambm escolhem o respectivo
shopping pelos mesmos motivos, porm aliados ao consumo. Nessas pesquisas ficou
evidenciada a proporo elevada de usurios que procuram nos shoppings um ambiente de
diverso, sendo que deles mais de 80% eram jovens (GOTTSCHALL, 2003).

Os entrevistados deste trabalho, por sua vez, procuram os shoppings para vrias atividades,
especialmente para a realizao de compras e para obteno de servios, alguns deles de lazer,
principalmente cinemas, restaurantes e parques eletrnicos, notadamente entre os que possuem
filhos. Muitos deles salientaram a praticidade do shopping, por ser um centro comercial que
agrega vrios tipos de lojas, diversidade de opes e que se localiza em pontos centrais das
principais vias da cidade. A acessibilidade apareceu como um elemento relevante na preferncia
pelo uso dos shoppings, e de alguns deles frente a outros. Para muitos, tais empreendimentos
oferecem a comodidade e o conforto que no encontram no comrcio de rua. Por outro
lado, os shoppings passaram a concentrar diversos servios que anteriormente existiam no
centro ou em ruas comerciais da cidade, como os cinemas41. Os relatos que se seguem ilustram
essas questes:

41
Atualmente existem poucos cinemas em Salvador fora de centros comerciais. De conhecimento do autor e com
programao fixa disponvel em sites especializados existem apenas quatro em funcionamento: as Salas de Arte
da UFBA e do Museu Geolgico da Bahia, o Cine Glauber Rocha, antigo Cine-Teatro Guarani, e o cinema
localizado na Biblioteca Pblica do Estado da Bahia, que congrega as Salas Walter da Silveira e Alexandre
Robatto. Recentemente, no incio de 2015, o Circuito Sala de Arte, iniciativa que chegou a manter oito salas
localizadas em museus, na universidade, teatros e cursos de lnguas, ou seja, fora de centros comerciais, com
exceo de uma de suas salas, e apresentava filmes considerados alternativos, de pouco apelo comercial e com
menor poder de circulao, anunciou a possibilidade de fechamento por conta de dvidas, j que seu nico apoiador
naquele momento havia encerrado o patrocnio (UOL ENTRETENIMENTO, 2015, disponvel em <
http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2015/03/04/crise-da-saladearte-abre-debate-sobre-espacos-culturais-
em-salvador.htm>).

Em contraposio a isso, novas multinacionais do cinema tm chegado cidade e implantado seus multiplex nos
referidos shoppings centers, como a Cinemark e a Cinpolis, alm da UCI Orient, mais antiga na cidade. Essa
realidade urbana bastante diferente daquela vivida entre os anos de 1950 e 1970, quando o cinema de rua era
bastante frequentado e construa um vnculo com os espaos pblicos ao seu redor, como as praas e largos.
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[As pessoas frequentam mais os shoppings porque] Primeiro comodidade, aqui [no
bairro] voc t debaixo do sol quente, gente como o qu, voc tem que ir pra pista...
Tem uns trs anos uma moa saiu do mercado, os carros ali na frente do mercado
tomando todo o passeio, um carro deu r, tomou r e ela foi atropelada... a vizinha
aqui... Ento no shopping no acontece isso. Talvez voc pague at por esse servio
mas voc t ali no ar condicionado, um espao melhor pra voc transitar, pra voc
procurar o que voc quer... e aqui no bairro, uma correria, uma agonia, no tem espao
onde voc transitar, tem que ir pelo meio da rua, sol quente na cabea. E ainda tem
outra coisa, no shopping voc tem comodidade, espao... e segurana, n? (P., 23 anos,
vendedor, morador de Tancredo Neves, bairro de perfil popular)

Shopping mais seguro. Tem ar condicionado... [...] tem mais opes de coisas. No
shopping a gente encontra tudo ou quase tudo [...] a gente encontra pessoas, encontra
comida, encontra bebida, encontra talvez as coisas que a gente t procurando... (J., 22
anos, fotgrafo/atendente de telemarketing, morador do Pelourinho, bairro de
tradicional atualmente de perfil popular).

Eu s vou ao shopping em duas ocasies: quando eu realmente preciso almoar porque


no tem comida em casa, ou quando eu preciso comprar alguma coisa; e a outra opo
pelo fato de s ter cinema no shopping e eu ter que ir pra o shopping para ir ao
cinema.... quando eu quero ir assistir algum filme que me interessa muito porque eu
assisto muito mais no computador. (R., 22 anos, estudante universitrio, morador do
bairro da Sade, bairro de perfil mdio)

Para alm dessas facilidades, que se associam at mesmo com a oferta de internet gratuita, um
elemento se tornou central na valorizao dos shoppings como espao de compras e lazer: a
segurana. Eles so controlados por guardas, cmeras e modernos sistemas de segurana. Esse
elemento to relevante que no site da Abrasce, na sesso de publicaes, alm de temas como
gesto e merchandising, a segurana ocupa uma posio central, com a oferta de livros e DVD
sobre preveno a crimes. Em Salvador, a associao de tais empreendimentos com a oferta de
segurana foi notada pelo jornalista Gonalo Jnior que, num editorial sobre o carnaval em
2007, quando Salvador possua um nmero ainda menor de shopping centers, desenvolveu uma
reflexo sobre o medo na dinmica da cidade:

Assim que o comrcio baixa suas portas na regio central, a Salvador de 2007 mais
parece que est sob toque de recolher. Importantes vias como a avenida Sete de
Setembro e a rua Carlos Gomes so rapidamente esvaziadas, enquanto os gargalos
prximos s reas de concentrao de shoppings na regio da avenida Paralela ganham
um fluxo intenso e transformam o trnsito num caos parecido com os
congestionamentos de So Paulo. Todos parecem ter pressa para chegar em casa.
Enquanto as obras do metr so finalmente retomadas, seus moradores passam a
impresso de que vivem inquietos, acuados e aflitos. O maior motivo, aparentemente,
a violncia do dia-a-dia, que encurrala moradores de todas as idades e classes em
suas casas e limita sua diverso aos shoppings que brotam como caa-nqueis por
toda a cidade. No ltimo sbado de maio, por exemplo, enquanto a orla estava
semideserta por volta das 21 horas, no Shopping Iguatemi, o maior da cidade, era
quase impossvel comprar um ingresso para ver algum filme ou conseguir uma mesa
vazia em suas dezenas de lanchonetes e restaurantes fast-foods. H quem diga que a
violncia se tornou um problema de calamidade pblica na cidade, embora os
latrocnios sejam em nmero menores que em So Paulo e Rio de Janeiro. No por
acaso, a enquete de uma emissora de TV local, no mesmo dia, perguntava quantas
vezes cada transeunte tinha sido assaltado (GONALO JNIOR, 2009, p. 1).
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A segurana tambm se torna importante para os usurios, conforme fica claro em diversos
depoimentos:

[...] no shopping voc tem aquela ideia de que voc est protegido ali, com os
seguranas do shopping, ento, a gente sempre pensa na nossa segurana... Voc sabe
que vai poder tirar seu iphone do bolso... E l voc tem essa ideia de que voc est
seguro ali, naquele espao ali, que voc vai poder encontrar seu amigo ali de boa, em
segurana (B., 19 anos, estudante universitria, moradora de Piat, bairro de perfil
mdio-alto)

Estou mais l [no shopping] do que no meu bairro, porque eu no posso circular em
vrios lugares no bairro que eu moro, pois l feito e comandado por gangues. (C.,
18 anos, atendente de telemarketing, moradora de Santa Mnica, bairro de perfil
popular)

[Prefere os shoppings] Pelo fato da criminalidade; o shopping no o melhor lugar


do mundo mas a pessoa tem uma certa segurana. (G., 18 anos, estudante
universitrio, morador de Santo Incio, bairro de perfil popular).

Voc num shopping, numa boate, est bem mais seguro do que em local aberto[...] eu
prefiro frequentar lugares fechados que tenham segurana. (J., 20 anos, estudante
universitrio, morador de So Rafael, bairro de perfil mdio-popular).

Por outro lado, outros depoimentos associam a preferncia pelo shopping a outros elementos,
como o maior acesso ao (e desejo de, segundo imaginrio dos entrevistados) consumo que os
grupos populares tiveram nos ltimos anos, por conta do crescimento econmico e das polticas
sociais redistributivas.
[As pessoas frequentam mais os shoppings] Porque hoje h mais incluso social e as
pessoas querem gastar dinheiro no shopping porque tem acesso. Praas e parques so
programas mais baratos (I., 20 anos, estudante universitria, moradora de Plataforma,
bairro de perfil popular).

Eu acho que o Shopping, ele agrega muitas coisas, principalmente... O que voc
percebe hoje na sociedade... A sociedade comeou a consumir [...] As mercadorias
que antigamente s tinha fora agora t tendo aqui... As pessoas comearam a ter acesso
e a correm pro meio... Qual esse meio que ocorre essas mercadorias? o
Shopping... E a Praa acabou ficando de lado. Principalmente essa galera que gostava
muito de conversar, a voc tem um celular que pega internet, com programas sociais
que o whatsapp que voc tem meio de comunicao, voc no se v mais sentar
numa praa para dialogar com um amigo, desabafar com um amigo, voc usa o meio
social, o meio das redes sociais, a o celular como ele pega internet e o shopping tem
a internet, a galera corre pro shopping pra ter esse acesso grtis pela internet. Conheo
vrias amigas minhas... saem at do trabalho e vai direto pro shopping e tal e fica l
usando o acesso internet, e ficam dialogando, conversando (A., 24 anos,
representante comercial/universitrio, morador do bairro de Plataforma).

Os shoppings, portanto, se relacionam a muito mais do que comprar, como destacaram no


ttulo de seu artigo Stillerman e Salcedo (2010), na medida em que se convertem tambm em
espaos de lazer. Apesar disso, sobre a prtica das pessoas nesses espaos os depoimentos
obtidos afirmam que as pessoas no os frequentam com o objetivo principal de se encontrar
com os amigos ou de conhecer novas pessoas. Com exceo de adolescentes que costumam
P g i n a | 169

fazer dos shoppings espaos de encontro e sociabilidade, entre os demais grupos no se


desenvolvem muitas formas de interao. De acordo com os relatos, a maior parte dos usurios
tm por prtica um tipo de sociabilidade mais pautada nos seus prprios ncleos, amigos,
namorada(o), de modo que as pessoas ficam mais isoladas, cada uma no seu quadrado ou
cada um na sua, cada um com o seu grupinho. Os depoimentos que se seguem ilustram essas
questes:
No shopping eu acho que... o esquema, o povo vai l pra fazer alguma coisa
entendeu? A no ser, tipo, aqueles meninos que gostam de dar rolezinho, a marcam
de se encontrar, mas eu, particularmente, no vou pra encontrar ningum em
shopping, nem pra conhecer ningum no... eu. Agora adolescentes talvez, n?
Jovenzinho assim... marca de ir com os amigos, a de repente tem umas meninas e a
comea a conhecer... Eu no uso o shopping com essa necessidade. [Mas] Quando eu
era adolescente eu marcava de dar um rol com os meninos mesmo, eu fazia ali do
shopping o meu lazer, s que hoje eu cresci e no tenho mais isso, que coisa de
adolescente... (R., 22 anos, estudante universitrio, morador da Sade, bairro de perfil
mdio).

[No shopping] No acho que tem interao no. O que eu vejo que mais tem interao,
e a independe do shopping, eu acho que da idade, e no do ambiente, so pr-
adolescentes. Porque na minha poca tambm de pr-adolescente tambm tinha isso
de ir pro shopping paquerar, a os grupinhos se encontravam e tal, mas da idade e
no do ambiente. Isso a acontece tanto no Iguatemi quanto no Salvador, no Shopping
Paralela, qualquer lugar. [Quando era pr-adolescente] Ali no Iguatemi mesmo,
naquela rea ali do cinema, era tipo um evento de ir pro shopping. Tinha muito de ir
no Barra tambm. Eu vejo os jovens tipo de 13 anos, 12, e vejo eles interagindo e
imagino que seja igual a minha poca. (D., 23 anos, estudante universitria, moradora
da Pituba, bairro de perfil mdio-alto)

A despeito desse padro de interao, que se assemelha atitude blas descrita por Simmel
(1979) e ao modo de comportamento tpico dos espaos pblicos (BORDREUIL, 2002,
JOSEPH, 2005 e SABATINI ET AL, 2013), a frequncia aos shoppings est eivada de
estratgias de distino e evitao, assim como ocorre nos espaos programados para uso
pblico, uma vez que a concentrao de determinados servios e a confluncia de variadas
pessoas42 permitem em alguma medida a expresso da heterogeneidade urbana43 e engendram
encontros fortuitos.

42
O atual Shopping da Bahia, segundo informaes do Portal G1, recebe aproximadamente 120 mil pessoas por
dia (PORTAL G1, 2016. Disponvel em < http://g1.globo.com/bahia/noticia/2015/01/apos-40-anos-iguatemi-
muda-nome-para-shopping-da-bahia.html>).

43
Sobre a frequncia ao complexo de cinemas de um dos shoppings da cidade, um entrevistado destacou: Eu vejo
particularmente variaes; voc v uma galera da favela, at pelas vestes, voc reconhece, acaba reconhecendo
essa galera. [...] As vestes tipo roupa de marca e tal, entendeu? Marcas tipo Ciclone, Mahalo, apesar de que muitos
jovens de classe mdia alta acabam vestindo essas roupas mas a galera do gueto, ela associou muito essas roupas
de marca como se fosse algo que te deixasse no patamar tambm da classe mdia, da classe rica... Ento isso te d
uma nsia de, como eu posso dizer, superioridade. [...] A voc acaba morando no bairro e voc reconhece, at
pelo modo de falar tambm, as grias. [...] Eu percebo essa galera de classe mdia tambm, n, uma galera branca,
de corrente de ouro, as meninas so umas bonecas, de cabelo liso; ento a galera de classe mdia alta tambm
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Buscando evitar encontros considerados desagradveis, um conjunto de estratgias so


colocadas em prtica pelos usurios (a preferncia por certos shoppings e por espaos, pisos,
restaurantes, etc., dentro deles) e tambm pelos administradores (formas de controle social de
determinados grupos).

Embora expressem alguma diversidade de usurios, os shopping centers de Salvador possuem


diferentes perfis sociais. Alguns deles so mais elitizados, como o Shopping Barra, que se
localiza num bairro de alta renda, e outros so mais populares, como o Shopping Liberdade e o
Bahia Outlet Center, que se localizam em bairros de renda mdia e baixa. O Shopping da Bahia,
por exemplo, vem sendo reconhecido pelas pessoas como um shopping que tem concentrado
grupos de perfil mais popular desde a inaugurao do Shopping Salvador (reconhecido por
muitos entrevistados como um shopping que passou a atender os estratos de classe mais
elevados). Os relatos abaixo ilustram os imaginrios sobre a estratificao dos shoppings:

O shopping Barra seria... essas expresses tem que ter um pouco de cuidado quando
a gente usa elas para no parecer que a gente quer dizer outra coisa... mas se eu falar
simples, que dizer, bem frequentados... no quer dizer que pessoas que no tm
dinheiro tornem o shopping mal frequentados, mas so as pessoas com mais poder
aquisitivo at por conta da localizao ali do Shopping Barra... ento voc v, tem
muita madame, pessoal que tem dinheiro... O shopping Salvador eu acho que ele
atende assim, digamos, todas as diferenas possveis, povo pobre, questo de... ....
questo de classe social mesmo. O Shopping Salvador eu creio que seja um pouco
mais misturado. (R., 22 anos, estudante universitrio, morador da Sade, bairro de
perfil mdio).

Iguatemi mais povo, Iguatemi mais a galera da classe baixa, classe mdia. O
shopping Barra mais o povo, a galera que mora l mesmo, galera de classe alta,
bairro nobre. (P., 23 anos, vendedor, morador de Tancredo Neves, bairro de perfil
popular).

O Shopping da Bahia, exemplo, um shopping frequentado pelas classes mdias,


baixas; Shopping Salvador um shopping frequentando pelas classes mdias, altas,
mesma coisa do Shopping da Barra que bem frequentado pelas pessoas da classe
alta. (C., 18 anos, atendente de telemarketing, moradora de Santa Mnica, bairro de
perfil popular).

Claro est que essas percepes compem os imaginrios sociais construdos e que essas
imagens variam tambm em funo da posio que os entrevistados ocupam no espao social.
Para jovens de camadas populares, o Salvador Shopping, por exemplo, parece ser frequentado
por grupos superiores, enquanto as pessoas desses grupos imaginam e representam os usurios
como diversificados, onde esto presentes grupos mdios e populares, por exemplo. O

frequenta o shopping. Uma galera que vai do trabalho voc v bastante ali, at com farda do trabalho [...] (A., 24
anos, representante comercial/universitrio, morador de Plataforma, bairro de perfil popular).
P g i n a | 171

imaginrio social sobre as classes e a estratificao dos shoppings orientam o perfil dos usurios
e apresentam as formas como a sociabilidade construda, a partir de processos de
reconhecimento de semelhanas e diferenas, a partir de comportamentos considerados
adequados e no-adequados, desejados ou evitados. Isto ocorre tanto com grupos mdios e altos,
que evitam espaos considerados exageradamente populares, quanto com camadas de mais
baixa renda que utilizam expresses estigmatizantes para classificar certos frequentadores,
como se pode observar nos depoimentos que se seguem:

[Os frequentadores do shopping da Bahia so] Nvel baixo em termos de educao e


mais popular, mais povo. Por um lado bom porque resolvo tudo l, grande,
prximo de tudo. Ruim so as pessoas muito mal educadas. (T., 23 anos, promotora
de vendas, moradora de Cajazeiras, bairro de perfil popular)

[Sobre o shopping Salvador] Acho que em comparao com o Iguatemi, j se criou


popularmente essa ideia, no que eu concorde, mas enfim o que as pessoas
costumam falar, o estigma; o estigma que o Salvador shopping mais classe mdia
rica e que depois que o Salvador shopping foi construdo o Iguatemi ficou, entre aspas,
pra galera ral, pobre, etc. Tanto que tem gente que no vai l porque fica: ah, vou
ser assaltada; no vai, faz uma ideia muito maior do que . bvio que t mais
perigoso, isso verdade, mas tambm no chega a ser esse negcio de voc no poder
frequentar. [...] j teve alguns casos de assalto mesmo l dentro. Mas assim tambm
deve ter no Paralela e eu tambm ouvi em outros, mas se voc frequentador, voc
realmente v que em termos de classes sociais o Iguatemi mudou bastante mesmo
depois que o Salvador shopping foi aberto. Mudou, mas tambm... porque as pessoas
criam um estigma e a um exagero, fica parecendo que o Iguatemi s tem pobre e o
Salvador Shopping s tem rico... no, misturado. Agora se voc for comparar com
antes, realmente mudou, mas eu no tenho essa imagem exagerada de p, no
Iguatemi s vai pobre. Eu acho que uma generalizao, tambm no chega a ser
isso tudo no. Mas obviamente que mudou. [...] muita gente que eu falo que vou,
falam: oxe, voc louca?. Muita gente fica discutindo, ah, no gosto mais do
Iguatemi, sabe? S d gentinha... Essas coisas... (D., 23 anos, estudante universitria,
moradora da Pituba, bairro de perfil mdio-alto)

Para alm da estratificao entre os shoppings e dos imaginrios construdos em torno do perfil
de seus usurios, determinadas segmentaes ocorrem ainda no interior dos mesmos, em funo
dos pisos e/ou espaos especficos, como ocorre no Shopping da Bahia, onde o terceiro piso
diferente dos demais em quase todos os aspectos, perfil das lojas, estrutura dos banheiros,
potncia do ar condicionado, material da construo, etc. No Shopping Salvador, a lgica
prevalece, pois, se h uma praa de alimentao onde existem lanchonetes e restaurantes de
todos os tipos, em outra parte h uma ala gourmet, conformada por restaurantes de perfil social
bem mais elevado. Essa segmentao interna existe desde a implantao do shopping Iguatemi
em Salvador, conforme descreve um dos entrevistados:

O Iguatemi no era s pra classe mdia, no . O trreo sempre foi bem popular,
porque o Iguatemi sempre esteve articulado rodoviria. Ai a diferena por andar.
O trreo sempre foi bem popular, voc via muita gente chegando com coisa na cabea,
P g i n a | 172

n, tem supermercado popular e a voc tem os andares com lojas mais chiques.... O
piso diferente, o ar condicionado... (V., 60 anos, professor universitrio, morador do
Rio Vermelho, bairro de perfil mdio-alto).

Em funo dessas segmentaes e estratgias de distino, outro entrevistado relata que prefere
no frequentar a praa de alimentao do Shopping Salvador por se sentir discriminado:

Na praa de alimentao eu no vou porque fica todo mundo me olhando. So todos


de classe alta e ficam olhando minhas roupas. Eu acho que as pessoas julgam muito
os outros por causa das roupas. (L., 18 anos, atendente de telemarketing, morador do
Pernambus, bairro de perfil popular).

Uma terceira informante, de perfil econmico elevado, reconhece a existncia das prticas de
preconceito nesses espaos e deixa patente a segregao existente entre os grupos ao comentar
a maior frequncia de moradores de Salvador aos shoppings, reportando-se ao grupo da gente
e ao grupo eles:
T falando de uma maneira geral da cidade? No. Bairros mais perifricos no...
porque a gente t acostumado a pessoas que a gente convive que sei l realmente to
frequentando mais do que antigamente, mas quando a gente vai pra... nem todo bairro
tem um shopping to perto, e as pessoas geralmente no vo ou as lojas que tem no
shopping so muito mais caras, a gente no sabe o poder aquisitivo deles, eles se
sentem olhados diferente quando esto no shopping com a gente. Ento tudo isso...
acho que de maneira geral no. (Q., 18 anos, estudante de cursinho, moradora do Costa
Azul, bairro de perfil mdio-alto)

Conforme se percebe, as interaes nesses ambientes esto eivadas por estratgias de distino
e formas de evitao. Reconhecendo que nos shoppings podem estar presentes pessoas de
distintos grupos, estilos e perfis sociais, os usurios colocam em prticas estratgias para evitar
aqueles considerados indesejveis. De certa forma, assim como j haviam salientado Stillerman
e Salcedo (2010), essas prticas de construo de grupos, de reconhecimento e evitao, se
expressam nesses lugares da mesma forma que nos espaos da cidade aberta, demonstrando
que, muitas vezes, eles podem ser mais uma continuao da mesma do que propriamente uma
quebra.

No obstante, um elemento importante existente nos shoppings centers a presena de formas


de controles que, no raro, se conformam como estratgias de segregao. Isso se d pela sua
condio de enclave fortificado, espaos privados, de uso pseudo-pblicos (SALCEDO, 2002),
geridos por administradores que centralizam o poder sobre os tipos de usos, determinando
aqueles que so considerados aceitveis e aqueles que devem ser reprimidos.
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Uma das entrevistadas nota como esto presentes nesses empreendimentos um conjunto de
regras de controle muitas vezes indesejveis: Antes costumava ir umas tribos interessantes l
no shopping, mas eles proibiram, deu umas tretas... A galera com uns casaces tal, umas coisas
assim, mas eles proibiram de entrar. No se pde identificar o que de fato aconteceu ou a que
tribo o relato se referia, mas os jovens que frequentam os shoppings sabem que ali existem
regras de condutas e um monitoramento frequente, especialmente sobre grupos populares e/ou
marginalizados.

Essa realidade ficou patente tambm em Salvador com o fenmeno dos chamados
rolezinhos44. Em 2014, este autor teve a oportunidade de observar diretamente um desses
encontros em Salvador. Um grupo de 30 jovens, entre homens e mulheres, caminhava na
vspera do dia das mes pelo terceiro piso do Shopping da Bahia, onde se concentram lojas de
grife e um pblico mais elitizado. Esses jovens, de maioria negra, possuam um estilo
notoriamente diferente dos demais frequentadores: os meninos calavam sandlias, vestiam
bermudas abaixo do joelho, camisas, algumas simulando marcas famosas, bons de aba reta,
grandes correntes nos pescoos, chamadas de batido possivelmente em referncia ao som
do funk, e culos escuros; as meninas usavam minissaias ou calas jeans justas e camisas curtas,
deixando mostra os piercings nos umbigos, alm de bons e culos.

Este rolezinho pareceu ser um ato, esttico e social, talvez uma ao de protesto contra a
invisibilidade e preconceito sofrido por jovens da periferia. Tendo conquistado alguma
mobilidade social nos ltimos anos, estes jovens passaram a reivindicar a utilizao de espaos
de consumo antes restritos s camadas mdias e altas, apresentando ao restante da sociedade
seu estilo e suas prticas, ou seja, seu habitus. Este ato no deixou tambm de representar um
conflito, pois esses jovens se colocavam claramente numa posio de enfrentamento, olhando
nos olhos das pessoas, burlando a segurana imposta pelo shopping e mobilizando a sensao
de medo a seu favor, como uma espcie de provocao queles que, de fato, se amedrontam
com a presena desses outros to diferentes.

A presena desse grupo no passou despercebida pela segurana do shopping, que o monitorou
durante todo o tempo, solicitando que se deslocasse quando os jovens insistiam em ficar

44
Encontros organizados pelas redes sociais promovidos por grupos de jovens, geralmente das periferias urbanas,
que chegaram a concentrar centenas deles em shoppings de diversas cidades do Brasil ao longo dos anos de 2013
e 2014.
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agrupados, culminando com a chegada da polcia judiciria. Pela sua prpria natureza de
enclave fortificado voltado para o consumo, a lgica mercantil dos shoppings estranha
expresso social da diversidade, principalmente quando se trata da agrupao de jovens negros,
de camadas populares vinculados a uma esttica perifrica, associada geralmente s classes
perigosas.

Isso se expressa tambm em outros casos de racismo, discriminao e homofobia praticados


por seguranas de shopping centers de Salvador. Alguns desses casos so paradigmticos. Em
2009, um casal homossexual foi repreendido por seguranas de um shopping por estarem se
beijando em pblico, o que gerou revolta na comunidade LGBTTT que, atravs do Grupo Gay
da Bahia, organizou um beijao coletivo como ato de repdio ao incidente45. Em agosto de
2014, em outro shopping, ao sair de uma loja de departamentos um homem negro passou a ser
seguido por um segurana. Irritado, ele tirou a roupa para provar que no havia roubado nada e
discursou contra o racismo. As cenas foram filmadas por vrios clientes e depois repercutidas
nas redes sociais e em telejornais e peridicos46. No presente ano, novos casos ocorreram: em
um deles, cinco jovens negros vestidos com roupas simples foram repreendidos por seguranas
e depois expulsos sob a acusao de que estavam com uma postura inadequada na praa de
alimentao47; no outro, um homem levou um soco de um segurana aps ser acusado de tentar
furtar uma cliente48.

Claro est que formas de controle social e discriminao esto presentes de maneira transversal
em todos os espaos de uma sociedade que desigual, autoritria e hierrquica. No obstante,
importante observar que, nos shoppings centers, esses controles so exercidos por um poder
discricionrio privado, de modo que, ainda que esses espaos possam ser ressignificados como
lugares propcios sociabilidade, eles mantm sua lgica de enclave, privado e seletivo, que
tem um objetivo claro, que resguardado sempre que os administradores consideram
necessrio.

45
Disponvel em < http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1001472-5598,00-
HOMOSSEXUAIS+SE+REUNEM+PARA+BEIJO+COLETIVO+EM+SALVADOR.html>
46
Disponvel em < http://extra.globo.com/noticias/brasil/homem-reclama-de-racismo-em-shopping-abaixa-calca-
para-provar-que-nao-roubou-13766252.html>.
47
Disponvel em <http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1765058-mae-denuncia-agressao-de-
seguranca-contra-filho-em-shopping>.
48
Disponvel em <http://metro1.com.br/noticias/cidade/15753,seguranca-da-soco-em-homem-apos-suspeita-de-
furto-no-salvador-shopping.html>.
P g i n a | 175

Em suma, os shoppings centers so empreendimentos que possuem mltiplos significados para


seus usurios e esto associados a diversos tipos de usos e a uma diversidade de perfis sociais,
no sem formas de controle, evitao e autossegregao. Eles possuem uma forte valncia na
vida urbana de cidade Salvador atualmente, devido a uma srie de motivos, como a segurana,
a comodidade e a praticidade, o conforto e mesmo pelo fato de vrios tipos de lazer e servios
que antes existiam em reas abertas ou nas ruas cidades estarem hoje concentradas nos seus
espaos. Nesse sentido, cabe perguntar: os shopping centers tm rivalizado diretamente com os
espaos pblicos da cidade ou, nos termos de Andrade e Baptista (2013), com os espaos
urbanos programados para uso pblico? Eles representam mais uma forma de evitao e
abandono dos espaos pblicos?

Segundo Maluze Pereira (2013), no que se refere aos grupos de mdia e alta renda, est presente
em seus imaginrios a sensao da cidade como um lugar de perigo, como uma experincia
aversiva, em funo de diversos elementos como a violncia e o trnsito, por exemplo. Isso tem
impactado na sua relao com os filhos, que marcada pelo clima de tenso e estresse no que
se refere aos cuidados com eles, o que tm gerado inclusive com que as crianas tenham cada
vez mais receio de andar pelas ruas. Em depoimento ilustrativo desses sentimentos, uma de
suas entrevistas afirmou:

O mundo l fora um mundo co, n? um mundo cozao, ento ... infelizmente


a gente no pode se entocar aqui, e tem que viver mesmo a vida. (M., 40 anos, mdica
apud PEREIRA, 2013, p. 98)

Principalmente nesse grupo social se observa uma retrao em relao cidade, sobretudo no
que tange s condies de lazer. Nas palavras da autora, na ausncia de condies de circulao
na cidade, o lazer se torna uma experincia vivenciada cada vez mais em locais privados
(PEREIRA, 2013, p. 99). Tal realidade fica tambm bastante evidente no depoimento de outro
dos seus entrevistados:

Olha, apesar da gente gostar de praia, no muito o forte da gente pela dificuldade de
estacionamento, principalmente. [...] No vamos com quase frequncia nenhuma. A
gente vai ao clube, na Associao Atltica que tenha essas facilidades todas tambm
e tenho muitos amigos associados. A gente gosta muito de ir pro shopping, a gente vai
muito ao shopping, principalmente o Shopping Salvador agora. (F., 41 anos, mdico
apud PEREIRA, 2013, p. 100)

Para a autora, o shopping identificado como a nica alternativa disponvel frente insegurana
dos espaos pblicos da cidade, mesmo que muitos pais reconheam no serem os ambientes
em que gostariam que seus filhos estivessem convivendo (PEREIRA, 2013).
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Os entrevistados do presente trabalho, que compunham diversos grupos, de perfil popular,


mdio e de padro mais elevado, tiveram opinies distintas no que se refere a questo, ora
frisando a prevalncia dos shoppings centers frente aos espaos programados para usos pblicos
ora salientando que tem havido nos ltimos anos uma reconfigurao no padro de uso esses
espaos, com o ressurgimento do interesse pelos lugares pblicos:

Eu tenho percebido que as pessoas tem voltado a frequentar mais [os espaos
pblicos], na Barra mesmo depois que houve a reforma e tudo mais, tenho visto muita
gente at sair de bairros mais longes que moram pra ir l andar de patins; a eu tenho
visto o pessoal recorrendo mais a esse tipo de atividade. [...] Acho que o pessoal meio
que cansou mesmo de frequentar sempre o shopping, sempre aquela mesma coisa.
(F., 28 anos, estudante universitria, moradora da Paralela, bairro de perfil mdio-
alto)

Shopping foi uma coisa nova, Smartphone uma coisa nova, ento o pessoal fica
mais... agora j passou isso a, essa febre, essa loucura por shopping. At cinema o
pessoal frequenta mais o Glauber Rocha, alguns cinemas que tem fora... O pessoal
[do meu grupo] evita bem shopping mesmo, at eu evito shopping porque eu, mesmo
tendo que ir sempre porque tudo tem no shopping n, mas pra passeio assim, pra
diverso... (L., 20 anos, estudante de cursinho, morador do Toror, bairro de perfil
mdio-popular)
Para os entrevistados mais velhos, que viveram em perodos que no existiam ainda shoppings
centers na cidade, esses empreendimentos tm atualmente mais valncia urbana do que os
espaos pblicos:
Hoje em dia tudo shopping, no sei o que eles veem no shopping. Voc chega no
shopping t entupido, chega na Praa da S d pra voc jogar um baba
[futebol/pelada]... minha gerao era muito diferente, pois no tinha shopping. (L.,
Pintor industrial aposentado, 66 anos, morador de Fazenda Coutos, bairro de perfil
popular)

Para alm dos shoppings, outros espaos privados tm concentrado prticas que anteriormente
eram desenvolvidas nos espaos pblicos (ou em espaos que produziam um maior vnculo
com eles), como os bares, restaurantes, os espaos dos condomnios (que cada vez mais ofertam
itens de lazer e servios), clubes privativos, que ainda compem a vida da cidade, ou mesmo a
prpria casa que, com a internet, tem um potencial cada vez maior de concentrar diversas
prticas. Conforme destacaram alguns informantes mais velhos, a geografia de espaos
privados da cidade se ampliou consideravelmente ofertando mais alternativas a esta nova
gerao.

Nesse sentido, os processos de privatizao tm exercido uma forte influncia na conformao


urbana da cidade, assumindo uma grande valncia urbana construda em torno do abandono e
da evitao dos espaos pblicos e a preferncia pelos espaos privados. Isso realidade no
P g i n a | 177

s para as camadas de mais alta renda, que tm um circuito de deslocamento pelo territrio da
cidade bastante restrito, mas tambm para os grupos populares que tambm evitam em diversas
situaes a utilizao dos espaos programados para uso pblico, ainda que no tenham o
mesmo acesso a servios privatizados. Para Dammert (2013), a reconfigurao dos espaos
pblicos com a ampliao da preferncia pelos espaos privados constri um modelo de cidade
em que as pessoas se convertem mais em usurios que se pautam em trajetrias e interesses
individuais do que cidados que tm objetivos e propsitos em comum.

Apesar disso, mesmo com tendncias avanadas de privatizao, no pode dizer que tais
processos anularam os usos dos espaos pblicos, j que essa prtica continua existindo entre
diversos grupos. Nesse aspecto, torna-se relevante analisar a disponibilidade de espaos
programados para uso pblico em Salvador, ou seja, sua geografia pblica, numa comparao
com essa geografia de importantes espaos privados, assim como os usos, perfis e relaes
de sociabilidade desenvolvidas pelos frequentadores dos espaos pblicos da cidade, conforme
se apresenta no prximo captulo.
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CAPTULO 5

USOS DOS ESPAOS PBLICOS


E SOCIABILIDADE URBANA EM SALVADOR:
ATORES, PROCESSOS E LIMITES
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A Salvador contempornea se oferece aos seus habitantes de maneira desigual e fragmentada,


numa espcie de disputa entre a sua geografia de espaos privados e a sua geografia pblica,
que formada por um conjunto de espaos programados para uso pblico, como praas, largos
e parques, alm das ruas e espaos naturais que se convertem em lugares pblicos, como as
praias por exemplo. Nesse sentido, a geografia de usos e prticas desses espaos possui
mltiplas expresses, uma vez que bastante distinta entre os diversos grupos sociais e est
associada a um conjunto de limitaes e especificidades. Uma primeira dimenso relevante a
distribuio desses espaos no territrio da cidade.

Como se viu no captulo 3, at a dcada de 1970 Salvador no possua grandes parques ou reas
pblicas, com exceo do Parque Zoobotnico. Ainda na referida dcada foram criados quatro
parques no municpio: Pituau (1973), Da Cidade (1974), Abaet (1978) e So Bartolomeu/
Metropolitano de Piraj (1978). Na dcada de 90, os trs primeiros passaram por requalificaes
e foram incorporados os parques Costa Azul (1997) e Das Esculturas (1998), o novo Dique do
Toror (1998), que foi reformado com a implantao de reas pavimentadas e equipamentos ao
redor da lagoa homnima, e o Jardim dos Namorados (1999) (SERPA, 2007 e 2008). Em 2002,
o Horto da Mata dos Oitis foi transformado em Jardim Botnico e em 2014 o Parque So
Bartolomeu passou por requalificao, alm do Parque da Cidade que passou por obras entre
os anos de 2015 e 2016 e foi entregue recentemente. Tal incorporao de reas pblicas de lazer
na dcada de 1990, segundo Angelo Serpa (2007 e 2008), atendeu aos imperativos das
atividades econmicas vinculadas ao turismo e ao consumo e, por isso, se deu prximos a
equipamentos como shoppings centers e o centro de convenes e em lugares com grande
visibilidade na cidade, ampliando a valorizao dessas reas.

Conforme se pode observar nos Mapa 2, a presena de Parques e Jardins em Salvador obedece
lgica desigual do privilegio s localizaes dos grupos de maior renda e dos turistas, assim
como tambm a localizao das praas e largos, como se pode observar no Mapa 3, que esto
em maior nmero no centro histrico da cidade e na pennsula de Itapagipe, reas onde a
urbanizao se deu dentro de outra lgica social e produtiva, e nos bairros da Orla Atlntica,
Barra, Ondina, Rio Vermelho, Pituba, seguindo em menor escala a mancha de expanso mais
valorizada da cidade. Em algumas reas relativamente centrais, porm mais densas, como a
Federao e o Engelho Velho de Brotas, praticamente no existem praas ou largos, assim como
em extensas zonas do Miolo da cidade, do Subrbio Ferrovirio e das franjas urbanas
perifricas.
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Mapa 2: Parques e Jardins de Salvador, 2015

Mapa 3: Praas e Largos de Salvador, 201249

49
Em 2005, a Fundao Mrio Leal Ferreira da Prefeitura Municipal de Salvador levantou um total de 263 praas
e 81 largos na cidade. Os arquivos da Lei Orgnica de Uso e Ordenamento do Solo (LOUOS) de 2012, atravs do
cdigo de logradouros, apresentam, por sua vez, 273 logradouros descritos como praas e 84 descritos como largos,
conforme apresentado no Mapa 8.
P g i n a | 181

Essa desigualdade no acesso aos espaos pblicos se deve tanto a um planejamento urbano que
vem historicamente privilegiando determinados reas da cidade quanto a sua incapacidade de
diminuir as iniquidades geradas pelo processo de urbanizao de Salvador, que foi conformada
em boa parte por ocupaes informais e espontneas que, produzidas sem planejamento no
processo de luta pela conquista do territrio, no incorporaram espaos pblicos coletivos e/ou
no foram contemplados com polticas governamentais capazes de suprir a sua demanda de
acesso a esses espaos de lazer e sociabilidade.

Ainda que se possa ter o quantitativo desses espaos de uso coletivo, difcil saber sua real
situao, at mesmo pela prpria classificao formal de praas e largos dada a eles. Como
salientou Serpa (2003), muitos acabam sendo espaos ociosos, ornamentos casusticos do
planejamento urbano, sobras de loteamentos que, sem equipamentos, usos ou identidades,
podem ser desfeitos em outras obras ou nas prximas divises da gleba. Nesse sentido, embora
a cidade dispusesse em 2012, a rigor, de mais de 300 espaos programados para uso pblico,
se desconhece exatamente suas condies urbansticas, a presena de equipamentos e at
mesmo a sua existncia. A prpria Prefeitura Municipal de Salvador (PMS) no possui um
levantamento atualizado da situao desses espaos, conforme entrevistas realizadas com
funcionrios da Diretoria de Parques e Jardins da Secretaria Cidade Sustentvel, responsvel
por esses equipamentos. O que se pode dizer, a ttulo de aproximao, que, na busca atravs
de imagens de satlites do Google Earth de praas e largos para serem observados diretamente,
percebeu-se que boa parte deles, em especial os localizados no Miolo da cidade, eram
extremamente diminutos e se compunham basicamente de um pequeno espao no meio das
vias, em geral com alguma arborizao, mas com poucos ou nenhum equipamento.

Reconhecendo ou at justificando sua incapacidade de gesto das reas pblica da cidade, numa
lgica de empreendedorismo urbano e gesto corporativa da Cidade (CARVALHO e
PEREIRA, 2013), desde a dcada de 90 a PMS coloca em prtica um Programa Municipal de
Adoo de Praas, Largos, Monumentos, Avenidas e reas Verdes, numa lgica de
privatizao do espao pblico. Atualmente, o programa ganha o nome de Verde Perto e
implantado pela SECIS Secretaria Cidade Sustentvel que o define como uma parceria
pblico-privada que tem por objetivo recuperar e manter as reas adotadas em perfeitas
condies de uso para a comunidade, permitindo-se em troca a colocao de placa de
divulgao da empresa parceira, valorizando a sua marca e contribuindo para o
embelezamento da cidade e o incremento da qualidade de vida (SECIS, s.d, p. 2).
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Segundo a coordenadora de implantao e preservao de reas verdes e unidades de


conservao da Diretoria de Parques e Jardins da SECIS, no incio da atual gesto municipal
em 2013 foi feito um levantamento de 150 praas, reas verdes e equipamentos que poderiam
ser objeto de adoo. Segundo suas prprias informaes, todos eles ficavam no centro ou em
reas potencialmente tursticas. Os espaos adotados se localizam em reas de grande
visibilidade ou de interesse dos seus adotantes (academias de ginstica, supermercados,
hotis, colgios, bares, etc.), geralmente prximo a eles.

A localizao dos espaos programados para uso pblico interfere diretamente sobre a sua
utilizao, o perfil dos seus usurios e as relaes de sociabilidade construdas, principalmente
por conta dos problemas de mobilidade existentes na cidade. Mas, interferem tambm nos usos
desses espaos e na sua atratividade elementos que superam sua geografia e caractersticas
fsicas (localizao, acessibilidade, visibilidade, disponibilidade de equipamentos, arborizao,
entre outros elementos): o conjunto de disposies ao, ou habitus, dos usurios, suas
identidades e relaes grupais, suas prticas em relao ao uso do tempo livre, etc. Esses
elementos so explorados nas sees seguintes.

5.1 Apropriaes cotidianas e comunitrias dos espaos pblicos

Conforme observado no captulo anterior, existe um contingente significativo de moradores que


no tm como prtica (ou mesmo evitam) frequentar os espaos pblicos da cidade. No
obstante, para diversas pessoas e certos grupos sociais existe um conjunto de prticas e motivos
associados frequncia a esses lugares, como atividades fsicas, passeios e brincadeiras com as
crianas, encontros com os amigos, consumo de bebidas e comidas, frequncia a eventos, feiras
e apresentaes musicais, entre outros. A frequncia e as prticas em apreo so ilustradas pelos
depoimentos que se seguem:

[Frequenta] A Praa de Periperi, a praa de Plataforma. So os espaos de diversidade,


ento eu acho show de bola, uma galera que t ali pra se divertir. [...] Uma galera bem
jovem de menor idade t l tambm se divertindo. As crianas acabam se divertindo
porque tem parque de diverso. Tem o pessoal que vem do trabalho, tem umas
meninas que danam muito bem, liga o carro de som l. Tem pai, filho, me, variaes
de pessoas. A galera gay tambm frequenta, o grupo que faz suas apresentaes
danando. Uma galera que curte rap, que bota seu carro pra tocar, toma sua cervejinha.
Tem a galera do rock, que vem com vinho na mo, e toca seu som pesado nas caixinhas
de som que vendem em lojas populares. (A, 24 anos, representante
comercial/universitrio, morador de Plataforma, bairro de perfil popular)
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[Frequenta] No meu bairro mesmo. Aquela praa perto do Barrado [So Marcos] que
inaugurou h pouco tempo. T bastante cheia, nova. Os amigos vo. [...] Vou comer
alguma coisa, beber, passar o tempo. Vou duas vezes no ms. Os amigos s vezes nem
marca, chega l e se encontra. (J., 20 anos, estudante universitrio, morador de So
Rafael, bairro de perfil mdio-popular).

[Frequenta] Praa da S, aquela Cruz Cada ali, a Barra [...] Porque como se fosse
um local de encontro do pessoal que mora aqui no Centro e tambm do pessoal que
mora perto do Centro [...] Rapaz, domingo, todo mundo vai pra Barra domingo. Na
Praa da S mais passear com algum, alguma namoradinha, nada de demais... Na
Barra a galera vai mais pra passear, se encontrar, o pessoal fica l tocando violo,
conversando, andando de skate as vezes naquela rea ali. (L., 20 anos, estudante de
cursinho, morador do Toror, bairro de perfil mdio-popular)

Ah, praa sim, aqui na frente do meu prdio tem uma praa [Anbal Jorge, Pituba]
[Vai] Quase todo dia, ou eu vou com meu cachorro, fico conversando com os vizinhos,
o pessoal aqui bem unido... Gosto porque todos os vizinhos costumam frequentar e
acabou se tornando algo cultural, desde pequena, j tive vrias fases n, antes era com
as crianas, depois com os adolescentes, agora cada um com seu cachorro, pra e fica
conversando um tempo, acabou sendo algo social daqui, dessa regio, tanto que vem
gente de outros prdios que no ficam de frente pra praa que vem pra essa praa aqui
porque tem evento, tem festa, tem aniversrio de cachorro, tem natal, enfim, um
lugar bem ativo socialmente... (D., 23 anos, estudante universitria, moradora da
Pituba, bairro de perfil mdio-alto)

Como se v, as praas utilizadas com mais frequncia pelos entrevistados so aquelas mais
prximas de suas casas. Em geral, esses equipamentos no possuem grandes atrativos e seus
usos esto associadas a uma dinmica mais concentrada no bairro ou em bairros circunvizinhos.
As praas parecem ter um uso mais cotidiano e mais homogneo, por assim dizer, uma vez que
agregam mais os vizinhos, como destacaram alguns entrevistados reportando-se ao perfil dos
frequentadores:
[Na Praa Anbal Jorge, Pituba, os frequentadores so] Pessoas da redondeza, no
chega a ter ningum de fora no. (D., 23 anos, estudante universitria, moradora da
Pituba, bairro de perfil mdio-alto)

[Na Praa Ana Lcia Magalhes, Pituba, regio de alto padro, os frequentadores so]
Geralmente os moradores do bairro mesmo, do Itaigara e regio, o pessoal de classe
econmica mais elevada. (F., 28 anos, estudante universitria, moradora da Paralela,
bairro de perfil mdio-alto)

[Na Praa So Braz, Plataforma, os frequentadores so] Em sua maioria moradores,


vizinhos, pessoas parecidas comigo, jovens, colegas. (S., 20 anos, estudante
universitria, moradora de Plataforma, bairro de perfil popular)

[No largo prximo Academia de Letras da Bahia, Nazar, os frequentadores so]


Pessoas que moram na redondeza... uma galera que no tem besteira, no t
preocupada com requinte. (R., 22 anos, estudante universitrio, morador da Sade,
bairro de perfil mdio)

Apesar da homogeneidade social, alguns destacam a existncia de certa diversidade geracional:

[Na Praa Aqurios, Pituba, regio de padro mdio-alto, os frequentadores so]


P g i n a | 184

Ah, pessoas de um nvel... de poder aquisitivo alto, sei l, acho que faixa etria era
muito variado porque voc via criana brincando, velhinho andando e jovens
malhando, sacou, fazendo uma corridinha e tal. Ento faixa etria no d pra ter muita
noo, mas eram todos moradores que moravam nos prdios dos arredores. (Q., 18
anos, estudante de cursinho, moradora do Costa Azul, bairro de perfil mdio-alto)

Fenmeno semelhante ocorre nos parques de Salvador, ainda que eles no possuam uma
vinculao mais ampla com o cotidiano da cidade, j que se situam em regies distantes do
centro da cidade ou de reas de maior afluncia de pessoas. Nesse sentido, os parques em geral
so usados como um fim nele mesmo, por assim dizer, sem maiores vnculos com outras
atividades, j que os seus frequentadores geralmente se dirigem a ele com certo objetivo
especfico. Os entrevistados que frequentam parques, ou que no tendo esta prtica j foram
algumas vezes, destacam que as pessoas so principalmente moradores do entorno50,
geralmente de grupos populares, ou pessoas que tm interesses especficos, famlias que levam
seus filhos para se divertir e praticantes de esportes, por exemplo. Alguns relatos dos
entrevistados sobre esse perfil ilustram isso:

[No Parque de Pituau, bairro homnimo, de perfil mdio] Atualmente a galera bem
diferente da minha, eu acho, mais a galera dali de Pituau mesmo... diferente em classe
social e idade.... ou so pais com suas crianas ou so pessoas mais idosas. (A., 19
anos, estudante universitria, moradora de Piat, bairro de perfil mdio-alto)

[No Parque da Cidade, Itaigara, bairro de perfil alto cercado de ocupaes informais]
Eu vejo muita famlia, tinha muita famlia, amigos e vendedor pra caramba... [...] Era
uma galera humilde, a galera bacana no tava ali no, pelo menos no naquele dia.
Acho que a galera que tem grana mesmo no frequenta muito esses espaos pblicos
no, s quando t a fim mesmo (J., 22 anos, fotgrafo/atendente de telemarketing,
morador do Pelourinho, bairro tradicional atualmente de perfil popular).

[No Parque da Cidade, Itaigara, os frequentadores so] Geralmente pessoas parecidas,


frequentam em grupo, fazendo piquenique, conversando, alguma coisa do tipo.
Pessoas mais calmas tambm... (J., 20 anos, estudante universitrio, morador de So
Rafael, bairro de perfil mdio-popular)

[No Parque So Bartolomeu, Plataforma/Piraj, bairros populares] Hoje a frequncia


est relativa porque a violncia est um pouquinho complicada ento t afastando
algumas pessoas l, mas como teve a revitalizao do parque o movimento no final
de semana aumentou um pouco. So pessoas do bairro. De fora, no vejo gente de
fora, mas a violncia est afastando as pessoas (A., 24 anos, representante
comercial/universitrio, morador do bairro de Plataforma).

50
Num trabalho tcnico de 2012, o autor teve a oportunidade de estudar a relao das comunidades do entorno do
Parque de Pituau, na sua maioria ocupaes informais. A maior parte dos moradores afirmou que os membros da
sua famlia utilizavam o parque com bastante frequncia, sendo ele o principal lugar de diverso de cerca de 1/3
dos 135 entrevistados, alm de ser fonte de renda e complementao alimentar por causa da coleta de frutas, caa
e pesca realizadas, ainda que tais atividades sejam proibidas (FOZ DO BRASIL; HYDROS, 2012).
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Considerando esses relatos e as observaes realizadas, pode-se dizer que, frente diversidade
da cidade, as praas e parques de menor visibilidade e de uso mais cotidiano so o territrio de
um reconhecimento que se baseia nas semelhanas existentes entre os usurios (vizinhos,
conhecidos, amigos de amigos, etc.). Por isso, as interaes a desenvolvidas podem ser
associadas a relaes sociais de tipo comunitrio, adotando a definio clssica de Max Weber
(1994, p. 25, grifos originais), ou seja, um tipo de relao que repousa no sentimento subjetivo
dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo. Nesses espaos,
se desenvolve um tipo de sociabilidade pautada nas similitudes, conforme os depoimentos que
se seguem:
As pessoas interagem [nessa praa], tanto que quando chega algum vizinho novo, que
no interage, j tido no meio como estranho. O normal todo mundo socializar. (D.,
23 anos, estudante universitria, moradora da Pituba, bairro de perfil mdio-alto)

[Frequenta mais as praas do bairro] Porque l, por eu estar no meu bairro, mais
minha galera, tudo famlia, mais unido. Se junta todo mundo, faz uma festinha
num canto, se junta, lancha todo mundo. Eu acho que mais por causa disso, a unio.
[As pessoas] Costumam interagir, interagem bem umas com as outras, pode at se
conhecer no mesmo dia e interagem como se j se conhecessem h muito tempo. (P.,
18 anos, estudante/atleta amadora de boxe, moradora de Periperi, bairro de perfil
popular)

interessante analisar as caractersticas desse padro de sociabilidade. No primeiro relato se


observa claramente as expectativas existentes sobre o comportamento das pessoas que
compartilham aquele espao. Espera-se que sejam sociveis, amigveis, que participem do
jogo interacional ali j estabelecido. Quando isso no acontece, formas de controle social e
coero so colocadas em prtica. Essa prtica se contrape ao que Geog Simmel (1979),
retomado posteriormente por Louis Wirth (1979) e Samuel Bordreuil (2002), definiu como as
caractersticas da sociabilidade das grandes cidades modernas. Diferentemente das sociedades
rurais, devido ao tamanho do agregado populacional e da diversidade existente, nas grandes
cidades as identidades ficariam mais fluidas, diminuindo os controles personalizados fazendo
com que as relaes se tornassem mais impessoais, pautadas em tipos sociais, papis e funes.

No o que se deduz de tal relato na medida em que as expectativas e formas de controle


parecem se constituir em torno a padres de sociabilidade mais personalizados, justamente
porque pautados em um grau elevado de similitudes, diferentemente do que acontece em
espaos onde h uma maior heterogeneidade social, conforme se ver mais adiante.

O segundo relato tambm ilustra uma dimenso interessante, o interreconhecimento e o


entendimento tcito existentes entre os (pelo menos entre alguns) frequentadores desses
P g i n a | 186

espaos. Esse comportamento se assemelha a certas caractersticas que Ferdinand Tnnies


(1973) identificou na comunidade antiga, em contraposio sociedade moderna, a existncia
de um acordo tcito compartilhado pelos membros, que se torna ponto de partida da unio e
gera reciprocidade e vnculos. Para Tnnies, em contraposio sociedade, que seria
conformada por um mundo que amplo, pblico, configurado em torno de convenes e
pactos construdos, a comunidade pautada na concrdia e na compreenso (consensus),
sentimentos recprocos comuns e associados que nascem de relaes familiares e
frequentemente entre amigos e vizinhos.

Isso no significa que existam nesses bairros ou nesses espaos pblicos uma vida comunitria,
harmnica e sem conflitos ou pautada numa homogeneidade absoluta, mas apenas que em
termos ideais-tpicos os padres de sociabilidade a desenvolvidos se assemelham as tais
caractersticas. Tambm no significa que entre muitos frequentadores desses espaos possa se
constituir um tipo de prtica pautada no compartilhamento do espao vinculado a uma distncia
espiritual, como descreveu Simmel (1979).

Esses padres de usos dos espaos pblicos e de relaes de sociabilidade podem ser
observados nas mais diversas praas e largos da cidade como, por exemplo, no Largo da Cruz
da Redeno no Bairro de Brotas, um bairro de grupos mdios circundado por diversas
ocupaes populares. O pequenino e urbanisticamente inadequado largo palco para mltiplas
relaes. Enquanto espao de passagem, v por ali circular estudantes, trabalhadores de
distintos tipos, donas e donos de casa que vo comprar frutas e verduras nas pequenas bancas,
carnes nos aougues e todos os tipos de necessidades domsticas nos mercadinhos prximos.
Enquanto espao de sociabilidade e estagem (permanncia) (SERPA, 2003), ponto certo de
encontro de senhores que fazem das quatro mesas um lugar para o seu jogo de domin
praticamente todos os dias da semana; ou mesmo para o encontro de jovens, amigos, que
aproveitam o pouco espao disponvel para conversar, resenhar, paquerar e desfrutar da
companhia uns dos outros. Nos finais de semana, o largo cercado por vendedores ambulantes
de churrasquinho, cerveja e de cachorro-quente e acaba se tornando um palco para pequenas
confraternizaes e encontros. Mais recentemente esse largo tem sido ocupado tambm por
pessoas em situao de rua e catadores de materiais reciclados, o que tem provocado alguns
conflitos de uso, j que se trata de um espao fsico bastante reduzido.
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Prticas semelhantes, no que se refere a uma sociabilidade de bairro, parece ocorrer na


Pennsula de Itapagipe (regio de grupos mdios tambm cercada de ocupaes populares),
como na orla e no largo defronte famosa sorveteria do bairro da Ribeira, onde jovens
caminham e as pessoas param e sentam nos banquinhos, seja para tomar um picol, uma cerveja
ou para conversar com os amigos, escorados nos carros. Tais prticas tambm ocorrem no Largo
da Madragoa onde, de acordo com relatos dos frequentadores, todos os domingos, das 11h s
16h, o grupo musical Amigos da Madragoa apresenta o Espetculo Bahiano de Chorinho que
compe o Projeto Cultural Madragoa de Todos os Ritmos. Nesse dia, o largo fica repleto de
mesas e cadeiras onde as pessoas consomem bebidas e comidas e assistem a apresentao
enquanto, do outro lado, as crianas jogam futebol e brincam no parque.

Figura 10: Jogo de Domin no Largo da Cruz da Figura 11: Encontros no Largo da Madragoa na
Redeno em Brotas Pennsula de Itapagipe

Fotos: Rafael Arantes

Isso parece acontecer tambm no Parque So Bartolomeu e no Parque das Lagoas e Dunas do
Abaet. O primeiro, at pouco tempo era utilizado, pelos moradores da regio do subrbio
ferrovirio nos finais de semana para fazer churrascos na beira das cachoeiras existentes, mas
essa prtica foi proibida depois da sua requalificao. No entanto, a quadra de esportes e o
parque infantil continuam sendo bastante utilizados pela populao local. O segundo, por sua
vez, mesmo sendo ainda frequentado por turistas, tem nos moradores da regio, Itapu, Nova
Braslia, Alto do Coqueirinho, seus principais usurios. Tal parque mais utilizado durante
noite, quando bares localizados nele oferecem msica ao vivo e atraem frequentadores
interessados em atividades ldicas, especialmente de grupos populares.
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Ainda que os grupos populares e mdios de bairros mais tradicionais sejam os principais
frequentadores desses espaos de uso cotidiano, mais recentemente as camadas de mdia e alta
renda tambm tm passado a utilizar alguns deles, principalmente certas praas reformadas
recentemente pela PMS ou adotadas por grandes empresas. Esse o caso da Praa Ana Lcia
Magalhes.

Figura 12: Entrada do Parque So Bartolomeu


- Plataforma/Avenida Suburbana
Figura 13: Usurios que foram visitar o parque
aps a reforma - Parque So Bartolomeu

Figura 14: Crianas moradoras do entorno - Figura 15: Oferendas ligadas a cultos afro-
Parque So Bartolomeu brasileiros - Parque de So Bartolomeu
Fotos: Rafael Arantes

A referida praa se tornou um lugar bastante utilizado, especialmente por jovens casais e seus
filhos. Por ser localizada em uma rea elitizada e distante de concentraes populares, alm de
possuir certa infraestrutura e equipamentos para uso infantil (como pula-pula, piscina de bola,
minikart, entre outros todos privatizados, diga-se de passagem e espaos para que as
crianas andem de bicicleta, patins, skates, patinetes, miniveculos motorizados, etc.), a praa
se tornou um lugar onde as famlias com filhos, e tambm pessoas com seus cachorros muito
frequentes passam boa parte do seu domingo, estendendo toalhas e cangas ao cho e levando
seus lanches. A realizao de shows e atividades infantis contribuem ainda mais para a sua
atratividade. Assim como em espaos populares, percebe-se claramente a homogeneidade
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social dos frequentadores, amplamente brancos e de camadas de mdia e alta renda. Um


conjunto de indicadores sugere o perfil de classe, como o padro de consumo, o preo dos
produtos, os brinquedos das crianas, a raa dos animais de estimao e mesmo o perfil tnico
majoritrio.

Figura 17: Famlias e grupos de amigos sentados no


gramado
Figura 16: Placa da Adoo da Praa Ana
Lcia Magalhes
Fotos: Rafael Arantes

Essa apropriao relativamente homognea (que demonstra o carter segregado da cidade)


tambm se expressa em outros espaos que, embora no sejam classificados como programados
para uso pblico, podem ser considerados lugares de acesso pblico como as praias. Em
Salvador, conforme assinalado por Angelo Serpa (2007), elas desempenham uma espcie de
concorrncia aos espaos programados para uso pblico, uma vez que a cidade rodeada por
50 km de praias. Pode-se dizer elas cumprem um papel mais relevante na cultura soteropolitana
como espao de lazer do que os parques e as praas. Nelas se expressam os corpos, os modos
de ser da cultura baiana, a desenvoltura dos vendedores ambulantes com suas estratgias
comerciais, o futebol (conhecido como baba), o acaraj, entre outros elementos importantes
da identidade local.

A praia um dos espaos frequentados por todos os grupos sociais da cidade, mas assim como
os bairros adjacentes a elas tm um perfil especfico de usurios, definidos basicamente em
funo das linhas gerais de apropriao do espao da cidade. Os seus frequentadores em termos
de estratificao de classe so diferentes, desde as praias do subrbio ferrovirio mais
populares , s praias do Porto da Barra, Jaguaribe, Piat e Itapu onde ainda se v certa
heterogeneidade social, com exceo do domingo quando se expressa um perfil mais popular
at nas praias de Stella Mares, Praia do Flamengo e Aleluia, reconhecidamente mais elitizadas.
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As praias do Subrbio Ferrovirio de Salvador se tornaram basicamente redutos de grupos


populares. Depois do crescimento da cidade em direo sua Orla Atlntica Norte, conforme
visto no captulo 3, o desenvolvimento mais valorizado deu s costas Baa de Todos os
Santos, relegando essa parte histrica da cidade. Nesse sentido, raro que grupos mdios e altos
se desloquem para as praias a localizadas. O depoimento abaixo, por exemplo, reconhece a
diferena do perfil das pessoas entre o Porto da Barra e a Praia da Ribeira, por exemplo,
localizada na pennsula de Itapagipe e considerada por muitos como uma praia mais popular:

A gente busca muito a praia da Barra, do Porto da Barra. A gente busca o Porto porque
assim um lugar histrico, que a voc v muita coisa na televiso que diz que uma
das melhores praias ento voc acaba se deslocando pra l. Mas tem uma praia
tambm que prxima da gente que a Praia da Ribeira. Ento assim uma praia que
tem mais frequncia da galera da periferia, da galera do gueto, que frequenta essa
praia. Eles denominam no Praia da Ribeira mas praia do Oi; tudo mundo se
reconhece e diz a, oi, oi,oi. E agora com Casas de show que to tendo l, ou seja,
teve muito uma movimentao de pessoas. A gente vai porque perto, prximo. A
galera de Plataforma atravessa a lancha pra chegar l e quem vai de nibus questo
de dez minutos chega l na Ribeira. A voc v l pizzaria, voc v sorveteria, a casa
de show, vrios bares, a galera que leva o carro de som, uma praia realmente bem
frequentada pela galera. [...] a galera que frequenta a praia da Ribeira geralmente a
galera do gueto, a galera da periferia, por ser prximo, a galera frequenta l; e tem
tambm, a galera frequenta o Porto da Barra porque t sempre mostrando na televiso
que uma das praias que concentram turistas e tal, e a a galera quer conhecer, ter o
contato com esse pessoal tambm, s que a galera que frequenta a praia da Barra, que
mora pela Barra l, at mesmo os turistas, dificilmente - pode at frequentar -, mas
dificilmente se deslocam pra praia da Ribeira. Eu no vejo muito essa galera
frequentando a Praia da Ribeira. [...] (A. 24 anos, morador de Plataforma, bairro de
perfil popular).

Outros depoimentos, muitas vezes eivados de estigmas e preconceitos de classe (em alguns
momentos reverberando preconceitos contra o prprio grupo social do entrevistado), ilustram
uma apropriao mais homognea de certas praias, como, respectivamente, a de So Tom de
Paripe no Subrbio Ferrovirio e a famosa praia de Itapu, especialmente nos finais de semana.
Quanto a frequncia s praias:

Tinha muita gente que aparenta no ter muita cultura e no ter condio financeira...
danam at o cho. Tem famlia tambm, mas vo embora mais cedo. (P., 18 anos,
estudante/atleta amadora de boxe, moradora de Periperi, bairro de perfil popular)

Gente de todo tipo, classe mdia, alta e baixa, mas tem mais classe baixa, por exemplo,
como eu, que sento na praia e peo um peixe... praia de farofa. (M., 26 anos, manicure,
moradora de Cajazeiras, bairro de perfil popular)

A homogeneidade no somente construda pelas desigualdades scio-espaciais, mas tambm


por estratgias de localizao e circulao, conforme j visto em relao evitao dos espaos
pblicos. Os esteretipos e os imaginrios construdos sobre o perfil dos usurios interferem na
P g i n a | 191

disposio a frequentar determinadas praias. Isso est presente de maneira transversal nos
imaginrios e prticas dos diversos grupos sociais. Uma entrevistada, promotora de vendas,
moradora de Cajazeiras (bairro de perfil popular), por exemplo, afirmou que frequenta a praia
da Rua K em Itapu por ser um ambiente familiar e tranquilo, onde as pessoas tm um
comportamento bom. Essa prtica parece ser parte de uma estratgia de distino, no entre
grupos localizados em posies distintas do espao social, como salientado por Bourdieu
(1996), mas tambm entre pessoas do mesmo grupo.

Embora isso exista em outros grupos, nas camadas mdias e altas que se isso aparece de
maneira mais relevante j que possuem maior capacidade de transformar esses esteretipos em
prticas atravs de estratgias de autossegregao. Nesse aspecto, notrio em Salvador como
os grupos de mdia e alta renda evitam frequentar praias populares ou muito cheias,
principalmente aos domingos, como ilustram os depoimentos abaixo

[A praia] Ah... sei l... tem todo tipo de gente. De domingo farofo... Eu vou quando
est vazia, de manh cedo. A tem famlias com crianas. (B., 19 anos, moradora de
Piat, bairro de perfil mdio-alto).

[Frequenta a praia de] Vilas do Atlntico, e entre Itapu e Stella Mares, porque so
menos cheias, mais tranquilas. [...] [Os frequentadores so] Geralmente as pessoas do
bairro mesmo... so pessoas mais educadas nessas praias, no vejo jogando lixo no
cho, no vejo a galera fazendo farofada, nada disso. Acho que so os moradores de
l mesmo, acho que as pessoas so mais educadas nessas duas praias que eu frequento
assim, porque eu j frequentei praias pra mais perto ali da Sereia [outra rea de Itapu]
e muito cheio e um pessoal meio mal educado. (F., 28 anos, estudante universitria,
moradora da Paralela, bairro de perfil mdio-alto)

Ainda sobre essa relativa homogeneidade, o depoimento de um jovem de camada mdia-alta


ilustra a diferena entre o perfil dos usurios do Porto da Barra e das Praias da Orla Atlntica
Norte:
O Porto da Barra uma praia mais popular, frequentada por classe mdia em geral,
pessoas que no tem tanta condio de, por exemplo, ir para uma barraca que seja
mais cara, uma praia popular e nem por isso deixa de perder o seu valor, entendeu?
Infelizmente de vez em quando tem assalto, tem arrasto, j ouvi no noticirio duas
vezes que teve arrasto no Porto da Barra... e assim, mais quando eu t com pouco
dinheiro, a voc vai pega um isoporzinho, enche de cerveja e vai ficar com os amigos,
mas ao meu ver eu diria que uma praia mais popular e frequentada por pessoas que
tem uma renda inferior comparada com outras praias... diferente de Pipa 51... a

51
Referncia a uma barraca localizada entre a Praia do Flamengo e Ipitanga, que se converteram em praias
frequentadas por grupos de mdia e alta renda. Ela se tornou um point de encontro desses grupos. Em geral, os
preos so bastante elevados e o padro do espao considerado sofisticado. A avaliao de um usurio do site
TripAdvisor, que concentra avaliaes sobre lugares, restaurantes, bares e meios de hospedagens na internet,
ilustrativa do imaginrio construdo em torno a esta barraca: Excelente estabelecimento localizado muito prximo
praia. O ambiente muito bem frequentado por pessoas bonitas. H uma variedade interessante de comidas e
bebidas. O preo bem "salgado" e nos momentos de "alta" a espera no atendimento uma constante. No geral,
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galera que voc olha para as pessoas e percebe que elas tm dinheiro, pelo que elas
esto consumindo, voc v a mesa, l tudo caro, pelo jeito do corpo mesmo, se uma
pessoa t bem cuidada voc sabe que ela faz academia e tal, voc v que o pessoal
tem uma condio financeira melhor, d pra perceber... pelos culos de sol, pelas
roupas de banho, pelas tatuagens bem feitas, a gente sabe que isso caro, ento voc
percebe isso claramente. (R., 22 anos, estudante universitrio, morador da Sade,
bairro de perfil mdio).

Conforme se observa, ainda permanecem usos diversos dos espaos pblicos em Salvador,
ainda que fortemente influenciados pela segregao scio-espacial e pelas estratgias de
circulao na cidade. Isso contribui para que os largos, parques, praas e praias sejam, em geral,
apropriados por grupos sociais semelhantes o que limita a capacidade desses espaos pblicos
de expressar diversidade social e engendrar vnculos que construam relaes de civilidade,
interesse no outro ou mesmo em determinadas formas de consenso entre diferentes classes
sociais e estratos de classe (SENNETT, 1988, HABERMAS, 2003, ARENDT, 2008).

Apesar dessa caracterstica geral da apropriao dos espaos pblicos, existem algumas
excees relevantes.

5.2 Diversidade social, fragmentao e autossegregao nos usos dos espaos pblicos

A despeito dessa relativa homogeneidade social presente nos mais diferentes largos, parques,
praas e praias, alguns deles conseguem agregar usurios de perfis mais diversificados,
especialmente aqueles localizados em regies mais centrais e mais valorizadas simbolicamente.

A Praa da Piedade, situada no centro da cidade, um exemplo desses espaos. A partir de uma
etnografia Uriarte (2014) destaca como seus frequentadores so muitos e diversos: variados
vendedores ambulantes (de cafezinho, picol, pipoca, cachorro quente, gua de coco, mingau
etc.), a populao de rua que costuma se reunir do lado Igreja de So Pedro, os estudantes dos
colgios da regio e cursos preparatrios para o vestibular que cruzam ou atravessam a Praa,
os trabalhadores, a mulher que varre diariamente a Praa, o rapaz que limpa a grama, as tcnicas
de enfermagem que aferem a presso dos idosos, os moradores da regio que cruzam o espao
da praa com sacolas de supermercado, os idosos aposentados de vrias classes sociais que se
renem para conversar ou para ouvir os boleros colocados por um vendedor de discos e poeta.

para aqueles que desejam um bar junto praia e sofisticado, esse um lugar bacana para ser conhecido
(Depoimento de _Tonhomax , disponvel em < https://www.tripadvisor.com.br/Restaurant_Review-g303272-
d3602307-Reviews-Barraca_Pipa_Praia_do_Flamengo_Salvador_Bahia-
Salvador_State_of_Bahia.html#review_358716924>).
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Esse grupo, um dos pblicos mais relevantes da Praa, se rene para conversar e ouvir msicas,
lembrando do seu tempo, de galanteios, de elegncia e do danar junto, conforme destaca a
autora. No seu entender, para a maioria dos idosos, que utilizam a Praa como lugar de
estagem, a Piedade remete-os aos anos 60, tempos de sua mocidade, quando o centro de
Salvador que eles frequentam hoje era o local por todos frequentado. Alm dessa
heterogeneidade, o perfil dos frequentadores e suas histrias variam entre os dias da semana e
os turnos do dia, o que levou Uriarte (2014, p. 17, grifos originais) a concluir:

Jamais vira uma concentrao tamanha de pessoas to dspares interagindo em um


lapso to pequeno de tempo: o promotor, o rapaz bbado, a ndia, a rainha, o alinhado
que no era alinhado, o homem de meias, porm descalo, o esprito musical fugindo
do bafo de lcool, o senhor de luto por ACM com uma folha na orelha, Lzaro, o
assessor. Definitivamente, percebida de outra forma e em outro horrio de
tarde , a Praa da Piedade rene personagens/espritos diversos.

Outros dois espaos relativamente utilizados na cidade so o Largo do Campo Grande e o Dique
do Toror, tambm localizados em reas prximas ao centro da cidade. Durante os dias de
semana (especialmente no incio da manh e no final da tarde) ambos so utilizados por pessoas
que praticam todos os tipos de atividade fsica. O Campo Grande, localizado em uma rea
valorizada da cidade, tem uma frequncia grande de moradores da regio que o utilizam como
espao para passeios com as crianas e animais domsticos, mas tambm de diversos
transeuntes, jovens de perfis sociais heterogneos que andam de skate e bicicleta, estudantes
dos colgios pblicos prximos que cruzam seu espao e o utilizam para namorar, conversar e
descansar embaixo das rvores, entre outras prticas. Essa vitalidade se refere principalmente
esse largo como um espao de passagem daqueles que circulam pelo centro de Salvador, ainda
que diversos grupos durante a semana e os horrios comerciais tambm o utilizem como
espaos de estagem.

A estagem nesse largo aumenta principalmente aos domingos, especialmente quando pais
levam seus filhos para brincar nos equipamentos privados, alguns grupos se renem para a
prtica de esportes e outros utilizam a chamada academia de ginstica52. Alm disso costuma
ocorrer tambm nesse espao uma srie de eventos, feiras de artesanato, mostra de carros
antigos, entre outras atividades, que ampliam a sua atratividade. O depoimento que se segue
ilustra a relevncia da sua localizao central e as fotos ilustram alguns usos identificados:

52
Equipamentos para a realizao de atividades fsicas implantados pelo grupo de sade Sabin, uma OSCIP
Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico, em parceria com a prefeitura municipal dentro da lgica do
Projeto Verde Perto, que tambm esto disponveis em outras praas e largos, como no Dique do Toror.
P g i n a | 194

Quando eu estudava, eu ia na Praa do Campo Grande, Praa da Piedade, quando eu


estudava no Centro, coisa de quatro anos atrs. [Ia] Dia de quinta e sexta sempre.
Tambm marcava [com os amigos do colgio] no sbado quando no tinha aula assim,
a gente ia s pra l mesmo, ficava conversando e tal. [...] Hoje em dia eu no frequento
praa assim mais no... [...] Por aqui tambm frequentava uma praa que tinha ali no
largo, perto da delegacia, tinha quadra, tinha pista de skate, s que tambm no
frequento mais, coisa de trs anos atrs. [...] Na Praa do centro tinha mais estudante,
adolescente, a galera ia mais pra se divertir, paquerar... [Ficava] mais no meu
grupinho, s vezes conhecia uma garota e tal, se apresentava num sei qu, mas era
mais na minha galera mesmo... No centro a gente conhecia mais gente nova do que
aqui, aqui no, mas no centro ainda rolava de conhecer gente de outros colgios e tal.
(P., 23 anos, vendedor, morador de Tancredo Neves, bairro de perfil popular)

Figura 18: Crianas numa tarde de domingo -


Largo do Campo Grande Figura 19: Jovens, praticantes de atividades
fsicas - Largo do Campo Grande

Figura 20: Feira de Artesanato - Largo do Campo Figura 21: Publicidade exposta dentro da lgica
Grande do Projeto Verde Perto Largo do Campo
Grande
Fotos: Rafael Arantes

No Dique do Toror acontece coisa semelhante aos domingos quando um grupo grande de
frequentadores ocupa os espaos disponveis, para praticar exerccios, caminhadas, corridas e
ginstica nos equipamentos disponveis, mas tambm para pescar, andar de pedalinho, jogar
futebol, ou mesmo ficar embaixo da sombra das rvores. Nas observaes realizadas percebeu-
se uma relativa heterogeneidade social dos frequentadores. perceptvel a presena marcante
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de grupos populares, mas tambm de pessoas de maior poder aquisitivo, especialmente pais e
filhos. Alguns demarcadores permitem identificar esse perfil (ainda que de maneira relativa)
como a questo tnica que transversal questo de classe em Salvador, os estilos e prticas,
os tipos de brinquedos que algumas crianas possuem, como miniveculos motorizados, e os
perfis dos carros estacionados. Nos domingos pela manh a avenida ao lado do Dique do Toror
fechada de modo que as crianas brincam no apenas no calado que circunda a lagoa mas
tambm na rua. Nesse espao ficou evidenciada a presena de jovens que se encontravam para
a prtica de esportes, como andar de skate e patins. Mais do que prticas solitrias, focadas no
esporte em si, esse usos conformavam um verdadeiro ritual social de encontro, inclusive com
interaes entre os distintos grupos.

Figura 22: Passeio com a famlia aos domingos -


Dique do Toror Figura 23: Passeio com os cachorros - Dique do
Toror

Figura 24: Brincadeiras no pula-pula - Dique do


Toror Figura 25: Teatro de fantoches, reunio de
crianas, adultos e idosos - Dique do Toror
Fotos: Rafael Arantes

Outro espao relevante no que tange a sua apropriao por diversos grupos a nova orla da
Barra. Alguns entrevistados destacaram como o Farol da Barra, especialmente aos domingos,
tm se tornado um local de encontro de jovens na cidade, inclusive de moradores de bairros
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perifricos. Segundo os relatos, isso vem se consolidando depois das reformas realizadas entre
os anos de 2014 e 2015. Tal reforma ainda gera muita polmica pelos efeitos que tm causado
no bairro53. Apesar disso, em todos os momentos em que realizou observaes diretas e
participantes, pde-se observar muitas pessoas utilizando esse espao, com um perfil variado
de usurios em termos geracionais, especialmente jovens e crianas, praticando esportes,
adultos e idosos fazendo caminhadas e corridas, alm do uso da Praia.

Em observaes durante o dia, na rea em frente da Farol da Barra, notou-se a concentrao de


muitas crianas, nos seus carrinhos motorizados, patinetes, patins e skates, e pessoas com
animais domsticos, no raro de raas bastante valorizadas. Muitos jovens tm utilizado esse
espao tambm para a prtica de esportes. De maneira geral, na regio da Avenida Ocenica, o
perfil mais homogneo em termos tnicos e de classe. Na medida em que se aproxima do
Porto da Barra, o perfil se diversifica mais. Aos domingos, como destacado, tem havido
encontro de diversos grupos de jovens. Num deles, por exemplo, pde-se observar um encontro
organizado pelas redes sociais com o nome Aproveita e me beija quando uma pluralidade
deles se fazia presente: diversas orientaes sexuais, estilos, perfis de roupas (dos roqueiros
queles que utilizam bons de aba reta, com um perfil semelhante aos que realizaram o
rolezinho no Shopping da Bahia, como descrito anteriormente) e prticas esportivas,
bicicletas, skates e patins. Muitos desses jovens eram de bairros populares de Salvador, pois,
por volta das 21h, nibus com destinos a esses bairros, como So Caetano e Marechal Rondon,
saam lotados da regio. Alguns relatos ilustram essa configurao do Farol da Barra como um
ponto de encontro juvenil e as fotos que seguem evidenciam os usos identificados:

[...] Rapaz, domingo, todo mundo vai pra Barra domingo. [...] Mais de manh, de
tarde... Na Barra a galera vai mais pra passear, se encontrar, o pessoal fica l tocando
violo, conversando, andando de skate s vezes naquela rea ali onde a galera anda de
skate. [Tinha] Adolescentes entre 16 e 20 anos. E turistas tambm, muito turista... Um
perfil social alternativo, aquela galerinha alternativa, da maconha, do rock, do reggae,
da cachaa que voc v muita gente bebendo ali, virou point de cachaa na verdade
aquilo ali. [As pessoas] Interagem, a sim interagem. Tem at eventos ali, alguma
coisa do abrao e do beijo, a fica um grupinho l se abraando, se beijando. [...] tem
muita gente dos outros bairros mesmo, no geral, no s o pessoal do centro no. (L.,
20 anos, estudante de cursinho, morador do Toror, bairro de perfil mdio-popular)

[...] Querendo ou no se tornou meio que um evento voc ir na Barra domingo, mesmo
voc no morando na Barra. Antes s ia na Barra domingo, a maioria das pessoas, so
as pessoas que moram l. Eu vejo muita gente indo, eu mesmo passei uns dois meses

53
De acordo com a Associao de Moradores e Amigos da Barra AMA Barra, as consequncias das reformas
foram negativas, como a falncia de 106 estabelecimentos comerciais, a mudana do trnsito, a falta de vagas de
estacionamento, entre outros aspectos, como a perda da vivacidade da orla que, segundo os moradores, se tornou
um espao espetacular, praticamente utilizado somente nos finais de semana .
P g i n a | 197

indo todo domingo l, final de tarde. (D., 23 anos, estudante universitria, moradora
da Pituba, bairro de perfil mdio-alto)

Figura 26: Passeio com o cachorro e jovens Figura 27: Caminhada e Passeio com as crianas -
reunidos ao som do violo - Orla da Barra Orla da Barra

Figura 29: Festival de cerveja artesanal - Porto da


Figura 28: Encontro Aproveita e Me Beija Barra
durante tarde/noite de domingo - Farol da
Barra
Fotos: Rafael Arantes

Algumas praias tambm se configuram como excees tendncia mais geral de reafirmao
do padro de apropriao social do espao da cidade sobre os usos dos espaos pblicos. O
exemplo mais paradigmtico o Porto da Barra que frequentada por diversos grupos de
usurios, tanto jovens de bairros populares quanto aqueles de perfil mais elevado, alm de
grupos distintos em termos de orientao sexual, estilos, prticas culturais, etc. Alguns
depoimentos ilustram isso:

[Ao Porto da Barra] Vai todo tipo de pessoa, todo tipo de pessoa sem exceo. Gays,
lsbicas, prostitutas, bissexual... vo muito atleta tambm, surfista, namoradores,
namorador, crianas... idosos... (P., 18 anos, estudante/atleta amadora de boxe,
moradora de Periperi, bairro de perfil popular)
P g i n a | 198

Depende da hora que voc vai eu acho... Tipo, de manh mais famlia. Na hora que
eu vou [de tarde] a mais jovem, muitos jovens, adultos, uma galera mais
alternativazinha... meus pais quando iam me deixar comentavam, menina com o
cabelo pintado de uma cor diferente, de piercing, de tatuagem, cara com cabelo... sei
l, eu acho que muito variado no Porto... (Q., 18 anos, estudante de cursinho,
moradora do Costa Azul, bairro de perfil mdio-alto)

Apesar dessa relativa heterogeneidade, existem um conjunto de estratgias de segmentao e


autossegregao nesse espao. Existem diferenas marcantes no perfil dos usurios entre os
dias da semana, entre os variados horrios e entre territrios simblicos construdos na estreita
faixa de 600 metros de praia. Embora diverso socialmente, o uso do Porto da Barra
segmentado, conforme ilustra o depoimento de uma entrevistada:

O Porto, desde que eu me entendo por gente, muito bem dividido socialmente, quem
costuma frequentar sabe... Usando as palavras da gente, nas pedras geralmente quem
fica so as pessoas fumando maconha, enfim... a nas cadeiras ficam os gringos e
senhoras e senhores, assim um pessoal mais velho... e nas toalhas e nas cangas a galera
ficam mais os jovens. E ainda assim eu acho que mistura bastante, [essa parte] da
gente, tipo, essa parte bem misturada, tipo esse miolo da praia, mas as pontas so
bem, bem determinadas. (D., 23 anos, estudante universitria, moradora da Pituba,
bairro de perfil mdio-alto)

Conforme se observa, existem ainda alguns espaos pblicos em Salvador que agregam perfis
mais diversos de usurios, em termos sociais, culturais e geracionais. Diferentemente do que
acontece nos espaos de usos e perfis mais homogneos, os padres de sociabilidade
construdos nesses contextos se baseiam em outros fundamentos. Em geral, as observaes
realizadas e os relatos colhidos indicam que, com raras excees, os padres de interao
desenvolvidos se constroem em torno do que Simmel chamou de atitude blas, uma espcie de
indiferena e proteo frente aos outros. Dificilmente h interaes mais duradouras e/ou
profundas entre as pessoas, para alm de um contato visual ou um rpido comentrio sobre algo
corriqueiro. Como Sennett (1988) descreveu no processo que chamou de diluio do
comportamento pblico em Londres e Paris, prevalece muitas vezes a tica do silncio na
utilizao dos espaos. Isso muito comum a certos tipos de usurios, principalmente aqueles
que tm nos espaos pblicos um lugar de prticas individuais, como os esportistas. Em tempos
de aparato eletrnico, isso fica muito visvel na utilizao dos fones de ouvido que,
simbolicamente, representa o recado de que no se est disposto a dialogar. Os relatos que se
seguem ilustram esse padro de silncio e indiferena:

Hum... nunca parei pra fazer amizade no. Agora, tipo assim, observo que como toda
praia, eu acho que a interao que tem da galera que joga salozinho, voc quer
entrosar, a voc encosta e conversa com o pessoal e acaba fazendo uma amizade ali.
Se voc est sozinho voc pede pra algum olhar suas coisas e acaba gerando uma
relao interpessoal ali, mas, de maneira geral, eu acho que o que comum em praia
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a galera se ater mais com a galera que j t, n, no ficar fazendo muita amizade,
pelo menos eu nunca fiz amizade em praia assim [...] De maneira geral, acho que praia
no o ambiente mais propcio pra isso. (R., 22 anos, estudante universitrio,
morador da Sade, bairro de perfil mdio)

[No Dique do Toror as pessoas] Ficam mais no prprio grupo, vo fazer um exerccio
mesmo. No um lugar de encontro. (L., 20 anos, estudante de cursinho, morador do
Toror, bairro de perfil mdio-popular)

As demais entrevistas realizadas confirmam essa tendncia. Os relatos do conta de que


dificilmente as pessoas constroem novas relaes frequentando espaos pblicos,
principalmente porque, quando o utilizam, j esto acompanhados dos prprios amigos,
namorados (as) ou familiares e, quando muito, conhecem amigos de amigos. Nesse aspecto,
os entrevistados foram muito diretos, destacando que tanto nos parques e praas quanto nas
praias dificilmente h formas de interao entre os distintos grupos de usurios, com exceo
dos momentos de paquera, quando as interaes intergrupais se ampliam. Porm, isso ocorre
mais nos espaos festivos, boates e lugares para shows, geralmente privados que so em geral
bastante homogneos, tanto em termos de classe, dos seus habitus e estilos musicais. Na prtica,
portanto, as interaes acabam tendo um perfil intraclassista. A bem da verdade, tambm nos
espaos pblicos as interaes acabam sendo intraclasse, no apenas por uma questo de
acessibilidade e localizao dos espaos, mas tambm por conta dos habitus, estilos e interesses
dos diversos grupos conforme o depoimento de uma entrevistada que, refletindo sobre os tipos
de pessoas que encontra quando sai de casa, percebe que elas so no fundo muito parecidas a
ela:
Apesar de eu achar que tem muita gente diferente no Rio Vermelho [bairro bomio],
mas as que a gente encontra de diferente, que chega a ter uma conversa, so parecidos
com a gente. Ento, quando a gente conversa com algum alm do nosso grupo l so
ainda assim similares gente. Sempre encontro as mesmas pessoas. Eu no sou uma
pessoa que... eu at falo com as pessoas, mas depois eu nunca continuo a conversar.
(B., 19 anos, universitria, moradora de Piat, bairro de perfil mdio-alto)

interessante notar como os entrevistados relatam um tipo de interao pautada numa


autossegregao dos grupos, conforme salientado por Angelo Serpa (2013)54. Isso fica bem
visvel na apropriao de alguns espaos, como por exemplo os parques. Alguns deles possuem
frequentadores com perfis heterogneos, mas que se segmentam bastante em funo das
atividades alvo, por assim dizer, e dos horrios. Observaes no Parque de Pituau, por

54
Em verdade, os usurios privatizam o espao pblico atravs da ereo de limites e/ou barreiras de cunho
simblicos, por vezes invisveis. desse modo que o espao pblico se transforma em uma justaposio de
espaos privatizados; ele no compartilhado, mas, sobretudo, dividido entre os diferentes grupos e agentes.
Consequentemente, a acessibilidade no mais generalizada, mas limitada e controlada simbolicamente. Falta
interao entre esses territrios, percebidos (e utilizados) como uma maneira de neutralizar o outro em um espao
que acessvel fisicamente a todos. (SERPA, 2013, p. 176)
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exemplo, demonstraram a sua utilizao por diferentes pessoas e grupos sociais: frequentadores
de camadas de mdia e alta renda, que praticam principalmente atividades fsicas, grupos mais
populares que se renem para fazer piqueniques ou que ficam boa parte do dia nos bares e
restaurantes, e at mesmo grupos religiosos que participam s vezes de pregaes, alm de
famlias com seus filhos andando nos pedalinhos, casais de namorados (em momentos
romnticos ou at brigando), etc. No entanto, tais grupos realizavam o espao, por assim dizer,
acompanhando Bordreuil (2002), com prticas diferentes, no se misturando e no o
compartilhando de fato. Como destacou Serpa, em vez de comparti-lo, os grupos se
autossegregam, construindo um tipo de espao fragmentado.

A exceo a essa prtica dada pelo comportamento das crianas, alguns grupos de jovens
(como aqueles do Farol da Barra) e idosos que, sendo aposentados e possuindo mais tempo
livre, renem-se muitas vezes nos espaos pblicos. Esses grupos desenvolvem alguns jogos de
sociabilidade baseados na vontade de participar, ou seja, uma forma de socializao sem
quaisquer propsitos, interesses ou objetivos alm da interao nela mesma (SIMMEL, 2002).
Mas, o padro mais frequente de sociabilidade se aproxima das compreenses de Simmel (1979,
p. 20) sobre a vida nas grandes metrpoles: a constituio de contatos superficiais, transitrios
e segmentados derivada da heterogeneidade de pessoas, situaes e vivncias existentes. Os
comportamentos dos citadinos nesses espaos se revestiria no apenas de reserva e indiferena
mas uma averso, estranheza e repulso mtuas. A proximidade fsica esbarraria, portanto,
numa distncia mental. Segundo Fortuna (2011), Simmel possua uma viso pessimista ou pelo
menos ambgua sobre as grandes metrpoles.

No que tange aos usos dos espaos pblicos e essa fragmentao das interaes, em uma
perspectiva contempornea Angelo Serpa (2013) tambm constri uma viso bastante crtica,
afirmando que a cidade contempornea o lugar por excelncia da manifestao dos aspectos
simblicos da segregao. Os usos dos espaos, quando ocorrem, se do para ele como uma
justaposio de territrios diferentes, juntos, mas na prtica separados. Isso ocorreria
basicamente porque os espaos pblicos so apropriados atravs do autoisolamento de grupos
e indivduos que negam o outro atravs da indiferena, fazendo do pblico um territrio
privado, onde a vida domstica se desnuda ao olhar de todos, o que esvazia a sua dimenso
poltica. Esse um ponto fundamental, no sentido de que, a diluio e/ou restrio dos espaos
pblicos pode ocorrer no apenas atravs do seu abandono e evitao, mas justamente por conta
dos tipos de usos e prticas que se do nesses espaos.
P g i n a | 201

Sobre essa perspectiva, alguns autores possuem uma viso mais otimista sobre esse tipo de
interao, como visto na introduo (BORDREUIL, 2002, SABATINI ET AL, 2013,
ANDRADE E BAPTISTA, 2013 e CARVALHO FILHO E URIARTE, 2014). O prprio
Simmel (e por isso Fortuna o coloca numa posio ambgua) considerou a vida nas grandes
cidades como castradora de subjetividades, mas ao mesmo tempo potencialmente libertadora
de controles personalizados tpicos do mundo rural e das comunidades (SIMMEL, 1979). Os
referidos autores, por sua vez, reconhecem que esses comportamentos, baseados na
vulnerabilidade dos compromissos (JOSEPH, 1999, p. 36), parecem ser caractersticos dos
espaos pblicos de sociedades complexas e, ao contrrio de serem somente limitadores,
possuem tambm o potencial de engendrar a liberdade de movimentos e garantir a existncia
das diferenas, produzindo determinado tipo de hospitalidade baseada no acolhimento e na
ausncia de controles, o que garantiria a liberdade individual e a existncia das diferenas
(BORDREUIL, 2002). Nesse sentido, mesmo no produzindo vnculos ou pautados em
momentos fugidios e segmentados, a copresena nesses espaos poderia significar a produo
de contatos, tambm importantes para a coeso social na medida em que do forma dimenso
fortuita da vida de uma cidade e [...] podem ter importantes efeitos simblicos e sobre a forma
como se compreende o outro, transformando imaginrios e ajudando a derrubar ou construir
preconceitos e esteretipos (SABATINI ET AL, 2013, p. 272-273, livre traduo).

Nesse sentido, os resultados de pesquisa anterior podem contribuir para essa discusso na
medida em muitos jovens moradores de condomnios fechados no frequentavam espaos
pblicos ou reas tradicionais da cidade pela sua viso negativa baseada em estigmas e
esteretipos. Dessa forma, um dos relatos de uma entrevistada foi ilustrativo pois, ao mesmo
tempo que confirmou a existncia desses estigmas, narrou o modo como sua percepo mudou.
Quando perguntada sua opinio sobre o Bairro da Paz (rea popular vizinha ao seu condomnio
fechado), relatou que achava um lugar perigoso, mas que ao conhecer uma moradora de l
descobriu (sic) que tambm havia nele pessoas boas, honestas, trabalhadoras (sic),
pessoas normais, de famlia (sic). Essa descoberta teria acontecido quando ela passou a ter
contatos com uma moradora do bairro que trabalhava no mesmo lugar.

Ainda que este exemplo se refira ao compartilhamento de um espao e de um mundo especfico


(o do trabalho), a aproximao entre as pessoas pode contribuir para desconstruir alguns
estigmas e esteretipos. Os contatos, propiciados pelos encontros nos espaos pblicos, at
P g i n a | 202

pelos mesmo na condio de transeuntes (como estudaram Carvalho Filho e Uriarte (2014)),
tm certo potencial interativo, ainda que claramente possuam suas limitaes.

Frente a um contextos em que as formas de segregao e autossegregao so cada vez mais


extremas, e o abandono e evitao dos espaos pblicos se torna uma tendncia (como visto
anteriormente), tais contatos ganham ainda mais importncia porque permite que a diversidade
se expresse. Dessa forma, ainda que de modo fragmentado, a cidade pode expressar sua
realidade e contradies [...] entre esplendor e misria, entre riqueza e pobreza, inteligncia e
ignorncia, ordem e caos (WIRTH, 1979, p. 103). De todo modo, para alm das distintas
interpretaes possveis, o padro de sociabilidade desenvolvido nesses espaos pblicos pode
ser descrito, seguindo as palavras de Simmel e Wirth, como segmentrios, superficiais e
transitrios.

5.3 Um resgate privado dos espaos pblicos

Conforme se observa, a dinmica mais ampla das desigualdades e da segregao urbana em


Salvador impacta sobre a apropriao dos espaos pblicos, ainda que haja excees relevantes.
Considerando os usos dos espaos, dois projetos atualmente se destacam com resultados
importantes mas contraditrios: o Projeto Boa Praa, com uma abrangncia reduzida Praa
Ana Lcia Magalhes na Pituba, e a Feira da Cidade, que tem migrado por alguns espaos. O
Projeto Boa Praa, como o prprio site da web apresenta, :

Inspirado na ideia de sucesso do POP UP SHOP, o SALVADOR BOA PRAA surge


para atestar que a populao de Salvador j pode buscar a rua como opo de lazer na
cidade, na garantia de encontrar produtos diferenciados e ao mesmo tempo que se
divertir com o conforto e a segurana que precisam. [...] O PROJETO BOA PRAA
se instala neste local todos os sbados do vero de Salvador, das 09h s 19h a partir
do primeiro final de semana de Dezembro. O evento ser inspirado nas feiras de Rua
de NY, onde teremos dentro do mix, roupas, acessrios, itens de gastronomia,
apresentaes musicais com artistas consagrados e iniciantes. [...] A proposta do
SALVADOR BOA PRAA antes de tudo ser um espao de convivncia para a
populao de Salvador que carente de opes de lazer nos espaos pblicos.
(SALVADOR BOA PRAA, 2015, Disponvel em <
http://salvadorboapraca.com.br/o-evento/>)

Levando em considerao a descrio das atividades, sua inspirao em Nova York, e sua
localizao na Praa Ana Lcia Magalhes, entre outros elementos, nota-se, de uma primeira
mirada, o carter segmentado que essa iniciativa adquire no que se refere dinmica mais ampla
da segregao e do uso dos espaos pblicos em Salvador. Ele realizado numa das praas
mais elitizadas e homogneas da cidade, como destacado anteriormente, ainda que tal projeto
P g i n a | 203

consiga atrair um pblico maior e um pouco mais heterogneo em termos sociais, tnicos e de
gerao. Apesar disso, o perfil social dos frequentadores permanece num patamar relativamente
alto em termos de estratificao de classe, em funo dos preos e tambm das prticas sociais
envolvidas, como o padro gastronmico risotos, hambrgueres artesanais, massas frescas,
entre acompanhados de espumantes e cervejas artesanais , que indica o habitus de classe dos
frequentadores.

importante notar tambm a lgica privada (garantida pela Prefeitura Municipal) que invade a
Praa nos dias de evento. Foi possvel observar como nos dias do Projeto servidores municipais
da Secretaria da Ordem Pblica monitoravam e controlavam o espao. Esse controle ficou
extremamente visvel quando um pedinte alcoolizado se aproximou das reas onde as pessoas
estavam sentadas degustando as comidas gourmet e, diante da reao de medo e ojeriza dos
frequentadores, esses agentes da Ordem trataram de retir-lo. O controle social tambm opera
sobre trabalhadores informais, j que a ordem garantir que sejam vendidos somente as
comidas das barracas e food trucks participantes do evento. Tal situao foi notada quando um
vendedor de picol irregular vendia seus produtos na Praa de forma cuidadosa e discreta,
como se estivesse vendendo um produto ilcito.

Tal controle, de alguma forma, se assemelha aos existentes nos shopping centers e leva a
questionar em que medida esse espao consegue ter, de fato, uma dimenso pblica. Seriam
permitidas livres expresses culturais ou polticas? Outros grupos sociais, considerados
indesejveis ou suspeitos, poderiam estar livremente presentes nesse espao, conforme se
define a dimenso mais bsica do espao pblico, o livre acesso a todos? Pelo que se observou,
todas essas questes teriam uma resposta negativa, na medida em que a lgica privada com
apoio da Prefeitura Municipal que define e gerencia a lgica do espao durante a realizao do
projeto. A seguir so apresentadas algumas fotos referido Projeto.
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Figura 30: Projeto Boa Praa e patrocinadores

Figura 31: Apresentaes musicais Figura 32: "Food Truck" - Comida servida em
caminhes - nova moda da comida de rua gourmet
Fotos: Rafael Arantes

A Feira da Cidade, por sua vez, um evento que rene atividades gastronmicas, de lazer e de
artesanato em espaos pblicos da cidade. Ela vem ocorrendo desde agosto de 2014 e j chegou
a receber at 120 mil pessoas num nico final de semana, segundo reportagem do Jornal A
Tarde (09/11/2014) destacando como as pessoas ocupam espaos pblicos de Salvador, o que
exemplifica a raridade da iniciativa e da prtica de utilizao dos espaos pblicos nesta cidade.
J houve mais cem edies da feira55 em lugares como a prpria Praa Ana Lcia Magalhes,

55
A centsima edio foi realizada entre os dias 2 e 3 de Abril em comemorao ao aniversrio de Salvador com
a seguinte publicidade 100 dias de feira, 100 dias de ruas vivas. Ela foi realizada dentro do evento que a prefeitura
municipal chamou de Festival da Cidade, assim oficialmente descrito: O Festival tomar conta dos espaos
pblicos nos quatro cantos da cidade, levando ao soteropolitano e turista o melhor da msica, teatro, dana, poesia,
fotografia, gastronomia, feiras, artesanatos, esportes e muito mais. (PREFEITURA MUNICIPAL DE
SALVADOR, 2016, disponvel em < http://www.festivaldacidade.salvador.ba.gov.br/index.php/o-festival>).
Conforme se observa, h uma preocupao com a realizao de atividades culturais nos espaos pblicos da cidade.
P g i n a | 205

o Parque da Cidade, a Praa Aquarius na Pituba, o Jardim dos Namorados, a Barra e o Farol da
Barra, a Avenida Centenrio, o Campo Grande, o Imbu, o Santo Antnio Alm do Carmo, a
Feira de So Joaquim, a Ribeira e a Ponta de Humait, no bairro da Boa Viagem.

Essa uma iniciativa nova que, como observado pela reportagem citada, tem tido efeitos sobre
a dinmica de apropriao da geografia pblica, multiplicando os seus usos porque, em dias de
feiras, as pessoas aproveitam os espaos para outros fins, como se encontrar com os amigos ou
mesmo para a prtica das mais diversas atividades esportivas, como skates, patins, etc. Mas, ela
esbarra em algumas questes que so relativas s desigualdades mais profundas associadas
segregao scio-espacial que caracteriza a cidade e, mais ainda, s distines de classe. Em
geral as feiras so realizadas em reas mais centrais e valorizadas. Ademais, a sua proposta
oferecer comidas de chefs de cousine por preos mais acessveis que, na prtica, no so to
acessveis a boa parte da populao da capital. Assim como o Projeto Boa Praa, a
acessibilidade a essa iniciativa esbarra no apenas no espao fsico, mas sim nas distncias do
espao social, nas desigualdades existentes entre os habitus e nas prticas dos distintos grupos.

Soma-se a isso uma questo relevante, que a organizao privada dos eventos. Ainda que a
sociedade civil possa ter um papel relevante na vida da cidade e mesmo na utilizao dos
espaos, sintomtico que as mais importantes iniciativas atuais de utilizao dos espaos
pblicos da cidade sejam originrias de empresas privadas, mesmo que apoiadas pela Prefeitura
Municipal. Alm dessas questes, conforme observado na nota anterior, esses usos dos espaos
pblicos, por mais que sejam ressignificados, se pautam numa espetacularizao e numa nfase
ao consumo cultural, shows, apresentaes, etc., e tambm de produtos diversos. A imagem
abaixo, da publicidade do evento, deixa essa questo bastante visvel, assim como as demais
que se seguem:

Mas se de um lado elas tm contribudo para a ampliao da atratividade dos espaos pblicos, por outro, isso vem
se dando a partir de uma lgica pautada na espetacularizao dos usos e na centralidade do consumo, cultural e de
produtos, como roupas, artesanatos, comidas e bebidas, entre outros, conforme destacado por Serpa (2007 e 2008)
sobre os espaos pblicos incorporados em Salvador nos anos 90, no por acaso pelo mesmo grupo poltico do
atual prefeito da cidade.
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Figura 33:
Publicidade da Feira
da Cidade. Realizao
Agosto Agncia com
apoio da Prefeitura
Municipal e outros
parceiros

Figura 35: Preos das garrafas de 600 ml das


Figura 34: Entrada da Feira da Cidade - Jardim cervejas artesanais
dos Namorados

Figura 36: Grupo de adolescentes reunidos no Figura 37: Prtica de variados esportes no Jardim
Jardim dos Namorados no dia da Feira da Cidade dos Namorados no dia da Feira da Cidade

Fotos: Rafael Arantes

Esses eventos, assim como as recentes reformas realizadas em praas e parques e nas orlas de
alguns bairros, tm produzido alguma repercusso. Para muitos, inclusive boa parte dos
P g i n a | 207

entrevistados, eles tm contribudo para a ampliao da frequncia aos espaos pblicos da


cidade. Essa percepo pode ser vista no depoimento abaixo:

[Sobre os espaos pblicos da cidade] Tem ocorrido algumas reformas e eu acho que
tem melhorado sim, a Barra t mais legal de frequentar, tem a Orla... acho que tem
melhorado bastante, tem ocorrido um investimento a, mas assim nada que seja muito
efetivo, nada que d pra perceber muito, mas eu t percebendo que o pessoal j t indo
mais pra esses lugares e os lugares esto sendo mais convidativos para as pessoas,
para as pessoas comearem a mudar os hbitos... (F., 28 anos, estudante universitria,
moradora da Paralela, regio de perfil mdio-alto)

Reportagem j citada do Jornal A Tarde afirma que, embora no haja um levantamento sobre o
tema, a Prefeitura e especialistas concordam que tem havido um aumento da ocupao das
praas, parques e ruas de Salvador depois das aes de requalificao desses locais e dos
eventos. Para confirmar, a reportagem percorreu lugares alguns desses espaos e encontrou
pessoas praticando corridas, caminhadas, esportes, andando de bicicletas ou simplesmente
relaxando, conforme afirmou um dos entrevistados. De fato, as observaes realizadas para este
trabalho confirmam certa utilizao dos espaos pblicos da cidade, com as caractersticas
anteriormente analisadas, mas o dito aumento questionvel, j que no h pesquisas anteriores
sobre os usos dos espaos pblicos da cidade em termos de frequncia e, como mesmo aponta
a reportagem, no h levantamentos atuais precisos nesse aspecto.

As aes de requalificao podem at contribuir para relativo aumento da frequncia uma vez
que h uma desigualdade grande no s na localizao dos espaos pblicos na cidade mas
tambm na sua infraestrutura. Os eventos, por outro lado, ocorrem em espaos especficos da
cidade e esto associados a lgicas privadas de consumo e de habitus bastante especficos, o
que exclui um grupo considervel de possveis usurios.

Outras formas de privatizao tambm acontecem nos espaos pblicos de Salvador, algumas
delas operadas por grupos populares como estratgias de sobrevivncia, notadamente a
ocupao de praas e largos por trabalhadores informais. Ainda que esses grupos componham
a realidade local e expressar-se no espao faa parte do que se caracteriza, por excelncia, como
espao pblico, essas transformaes nos usos impactam sobre a presena de outros usurios.

Nesse aspecto, em uma anlise sobre a Cidade do Mxico, Emlio Duhau (2001) afirma que
tem havido uma crise do espao pblico baseada numa crise da relao cidad com a coisa
pblica, tanto das camadas de mdia e alta renda que se autossegregam em enclaves fortificados
P g i n a | 208

quanto dos grupos populares que, para o autor, numa anlise dura, colonizam os espaos
pblicos da cidade, alterando suas formas e contedo. Pode-se dizer que os dois fenmenos
ocorrem tambm em Salvador, por motivos distintos, estratgias de dominao e segregao,
de um lado, estratgias de sobrevivncia, omisso do Estado e falta de oportunidades, de outro,
alm do dficit de formao cidad e poltica, que uma realidade transversal s classes na
sociedade brasileira. Para alm das causas, o resultado para a cidade tanto quanto pernicioso
porque, de acordo com o autor, so prticas predatrias e formas de uso e apropriao do espao
pblico indiferentes ao bem comum.

Alm dos usos dos espaos pblicos referidos at agora, outros dois assumem tambm um papel
relevante: os usos rituais, festivos e os usos polticos.

5.4 Usos rituais, festivos e polticos dos espaos pblicos

Assim como ocorria em Salvador entre os anos de 1950 e 1970, vrias festas populares de largo
e o carnaval continuam tendo alguma relevncia no usos dos espaos da cidade, como a festa
do Dois de Julho (em comemorao Independncia da Bahia) alm das j citadas festas de
Santa Brbara, Nossa Senhora da Conceio, Senhor dos Navegantes, do Bomfim, Itapu e
Iemanj. De alguma forma, as festas populares so um espao de expresso da sociabilidade
urbana56, no ausente de conflitos, e de reivindicaes e discursos polticos, pois ao mesmo
tempo em que so festas, no sentido mais literal do termo, se constituem tambm numa
ocupao poltica dos espaos da cidade, conforme se pode observar nas fotos que se seguem:
A despeito das tendncia de privatizao, permanece em Salvador uma tradio de mistura de
uma apropriao festiva e poltica dos espaos pblicos, que tem se manifestado inclusive no
carnaval, quando aquelas tendncias so ainda mais aprofundadas. Grupos polticos como o

56
Sobre essas festividades descreveu Ordep Serra (2009, p. 75): No largo, ao vozerio contnuo somam-se as
msicas em alto volume msicas populares, de forte apelo sensual e marcada acentuao rtmica, nos padres
da moda ou de uma tradio jocosa, em sequncia no previsvel, brotando de distintas fontes. Os risos e
exclamaes se cruzam, os dilogos se entrecortam e superpem; pessoas desconhecidas conversam entre si e
tratam-se com expansiva familiaridade. Os gestos so espontneos, adequando-se, consciente ou
inconscientemente, ginga imposta pela onipresena da msica (de alto-falantes, trios eltricos, conjuntos de
batuqueiros, bandas, coros improvisados etc.); ou seguem o esquema de danas lascivas; ou ganham uma nfase
prxima do exagero, por conta da euforia geral... e dos efeitos da bebida. As moas que passeiam sem boa escolta
de rapazes de confiana sabem muito bem que se sujeitam a todo tipo de galanteios: frases picantes, convites
amorosos muito explcitos, carcias ousadas feitas de passagem e sugestivos belisces na bunda. Brigas, xingas
e tumultos no so incomuns. Diversas dramatizaes podem ocorrer ao mesmo tempo, no espao aberto da rua,
e o improviso prevalece nas trocas comunicativas. A linguagem empregada no largo, seja nos dilogos, seja nas
letras das cantigas entoadas, coloquial e muitas vezes chula.
P g i n a | 209

Movimento Desocupa (criado para protestar contra a concesso de uma praa para a
implantao de um camarote) e blocos como a Mudana do Garcia (que desde pelo menos a
dcada de 50 desfila na segunda-feira de carnaval se conformando como um importante espao
de protestos polticos) e os Blocos Afros (que ressaltam a importncia cultural e esttica do
povo negro da cidade) representam sobrevivncias dessa utilizao mais tradicional dos espaos
pblicos e contratendncias ao esvaziamento desses espaos e momentos.

Figura 38: Manifestao contra a intolerncia Figura 39: Manifestaes Culturais - Lavagem do
religiosa - Lavagem do Bomfim, 2012 Bomfim, 2012

Figura 41: Presena do Movimento dos Sem Teto


Figura 40: Manifestao poltica na Festa do Dois de Salvador no Dois de Julho, 2015
de Julho, 2015
Fotos: Rafael Arantes

Como assinala David Harvey (2014), a cidade o lcus de reunio para a articulao de queixas
e exigncias coletivas. Para ele, o urbano a fonte dos movimentos e, ao mesmo tempo, seu
lugar de expresso e reivindicao. Como visto no captulo 1, nos ltimos anos diversos
movimentos tm ocupado as ruas de vrias cidades do mundo. Tal qual em outras cidades, os
espaos pblicos tambm tm sido ocupado por protestos e manifestaes em Salvador.
Somente entre os anos de 2013 e 2014, o Jornal A Tarde registrou 183 manifestaes realizadas
nas ruas da cidade, nos mais diversos bairros e pelos mais distintos motivos. Alm de formas
mais tradicionais, como protestos e atos pblicos, destacam-se cada vez mais os piquetes e
P g i n a | 210

fechamento de ruas e avenidas muitas vezes com queima de pneus e outros materiais,
especialmente em casos mais sensveis, geralmente ligados violncia. O Mapa 4, que se segue,
apresenta a distribuio dessas manifestaes no territrio da cidade.

Mapa 4: Manifestaes em Salvador, 2013-2014

Como se pode observar, elas ocorreram em regies diversas, mas principalmente em reas de
maior centralidade e visibilidade: espaos tradicionais de manifestao (prximos ao centro
antigo), em frente aos Poderes Constitudos (Praa Municipal e Centro Administrativo da
Bahia) e reas de importncia simblica e econmica (Farol da Barra e arredores do Shopping
da Bahia). Assim como os espaos, tambm os motivos so bastante diversificados: questes
trabalhistas, problemas relativos a infraestrutura urbana e servios pblicos e, de maneira
relevante, a violncia, com um nmero considervel associada a violncia policial contra grupos
populares.

Em geral, enquanto as manifestaes relacionadas a questes trabalhistas e outras pautas mais


gerais foram realizadas naqueles espaos mais centrais e de visibilidade, as que protestavam
contra a violncia e/ou problemas urbanos possua uma maior disperso, alcanando reas do
subrbio ferrovirio e do miolo, pois muitas vezes era nesses bairros onde ocorriam
incidentes ou se localizavam os problemas que engendravam os protestos. Muitas vezes, a
P g i n a | 211

utilizao dos espaos pblicos pelos grupos populares de Salvador se fundamenta na sua
ocupao como uma espcie de grito de socorro para manuteno da sua prpria vida e da sua
forma de existir.

Entre as manifestaes mais relevantes realizadas em Salvador nesse perodo esto aquelas
realizadas em 2013, pois tiveram uma abrangncia nacional, agruparam muitas demandas e
acabaram por se transformar nas maiores manifestaes de rua ocorridas no Brasil, passando a
ser conhecidos como as jornadas de junho. Segundo Rolnik (2013), foi um conjunto
heterogneo que ocupou as ruas, em uma voz que no era unssona, da qual participaram grupos
em uma guerra de interpretaes das vozes rebeldes, com elementos progressistas e de
liberdade, mas tambm com expresses conservadoras e autoritrias.

Essas manifestaes expressaram uma infinidade de agendas mal resolvidas, contradies e


paradoxos (ROLNIK, 2013, p. 8) ainda que tenham tido incio com os protestos do Movimento
Passe Livre em So Paulo contra o aumento da tarifa de nibus 57. Segundo Maricato (2013), a
questo urbana est na raiz central desses movimentos uma vez que, mesmo com a melhoria da
distribuio de renda, crescimento econmico, ampliao do crdito, entre outras
transformaes ocorridas no Brasil entre 2004 e 2012, as condies de vida nas cidades
pioraram em diversos aspectos, principalmente por conta dos dficits de polticas pblicas, com
destaque para a mobilidade urbana.

Em 2015 e no presente ano diversos protestos e manifestaes continuaram ocorrendo nas ruas
de Salvador, especialmente temas relacionados poltica federal, com manifestaes pedindo
o impeachment ou fazendo a defesa da presidente Dilma Roussef, com destaque para a
quantidade de pessoas que tm agrupado. Uma passeata em prol do impeachment ocorrida no
dia 13/03/2015, por exemplo, atraiu 20 mil pessoas segundo os clculos da Polcia Militar. J a
passeata organizada pelos apoiadores do governo e pessoas que criticavam o impeachment
como uma espcie de golpe, realizada no dia 18/03/2016, concentrou 60 mil pessoas, segundo
clculos oficiais.

57
Em 2003 Salvador j tinha assistido a grandes mobilizaes estudantis contra o aumento da tarifa de nibus, a
implantao de meia passagem aos finais de semana e a criao do Conselho de Transportes na cidade. Conhecidos
como Revolta do Buz, esses protestos influenciaram manifestaes em Florianpolis em 2004 e a prpria criao
do Movimento Passe Livre em 2005.
P g i n a | 212

Tais manifestaes reuniram pessoas com perfis poltico-ideolgicos distintos e, tambm por
isso, se realizaram em lugares diferentes no espao da cidade. Enquanto a maior parte das
passeatas e protestos pelo impeachment ocorreram no Farol da Barra, rea valorizada da cidade,
as que criticavam esse pedido foram realizadas do Largo do Campo Grande Praa Castro
Alves, lugares tradicionais de manifestaes em Salvador. As fotos que se seguem ilustram as
manifestaes de 2013 em Salvador e a ocupao de espaos simblicos da cidade nas
manifestaes do presente ano:

Figura 42: Jornadas de Junho de 2013 Figura 43: Jornadas de Junho de 2013
Foto: Silvia Resende/Arquivo Pessoal Foto: Egi Santana/G1
Publicado originalmente em < Publicada originalmente em <
http://g1.globo.com/bahia/noticia/2013/06/salvad http://g1.globo.com/bahia/noticia/2013/06/em
or-amanhece-com-marcas-de-vandalismo-apos- -3-dia-de-protestos-salvador-tem-passeatas-
protestos-nas-ruas.html>. confrontos-e-cinco-presos.html>

Figura 44 Manifestao a favor do impeachment


da presidente Dilma Roussef - 13/03/2016 - Farol Figura 45: Manifestao contra o impeachment
da Barra dapresidente Dilma Roussef e contra o chamado
Foto: Henrique Mendes/G1 "golpe" - 18/03/2016 - Avenida Sete de Setembro
Publicada originalmente em Foto: Reproduo/TV Bahia
< http://g1.globo.com/bahia/noticia/2016/03/na- Publicada originalmente em
bahia-grupo-protesta-favor-de-impeachment-da- < http://g1.globo.com/bahia/noticia/2016/03/em-
presidente-dilma.html>. salvador-grupo-faz-caminhada-em-favor-do-
governo-dilma.html>
P g i n a | 213

Como se observa, os espaos pblicos de Salvador tm sido apropriados para usos polticos,
tomados aqui pelas manifestaes e sem a ambio de falar da esfera pblica propriamente.
No obstante, assim como os demais usos, eles tambm so bastante fragmentados, uma vez
que so realizados geralmente por grupos especficos e expressam os conflitos de uma cidade
desigual e segregada. Eles no se assemelham ao ideal pblico definido por Hannah Arendt
(2008) como o interesse pela construo de um mundo comum ou por Jrgen Habermas (2003)
como o uso pblico da razo na construo de consensos. Ao contrrio, se associam mais
interpretao de Henri Lefebvre (2008a) e David Harvey (2014) sobre os conflitos existentes
no espao urbano e a luta poltica pelo direito cidade.

Considerando os elementos esboados nesse captulo, existem um conjunto de atores, processos


e contextos associados aos usos dos espaos pblicos de Salvador. Persistem um conjunto de
atividades ainda praticadas nesses espaos que, ideal-tipicamente, do origem a alguns
frequentadores costumeiros: praticantes de atividades fsicas e desportistas, crianas e seus
acompanhantes, pessoas que passeiam com seus animais domsticos, jogadores de domin e
baralho, famlias que realizam piqueniques, estudantes de nvel mdio, geralmente de escolas
pblicas, jovens que frequentam praas e largos para beber e paquerar, trabalhadores informais
dos mais diversos tipos, pessoas que geralmente s frequentam os espaos para ir a eventos e
mesmo aqueles grupos considerados outsiders, como pessoas em situao de rua e
dependentes qumicos.

Apesar da relativa heterogeneidade de prticas e usurios, o padro de frequncia a esses


espaos reafirma a lgica da segregao mais ampla da cidade, construindo relaes
comunitrias pautadas no interreconhecimento das similitudes desses sujeitos. Por outro lado,
existem excees importantes que demarcam espaos onde h encontros de distintos grupos.
Nesse sentido, os grupos populares parecem estar quebrando determinadas barreiras impostas
pela segregao scio-espacial, especialmente em seus circuitos de uso. Eles tm ampliado a
sua visibilidade em diversos espaos antes no acessveis, tanto nos semi-pblicos, como os
Shoppings, quanto tambm nos pblicos; no sem reaes, como visto. Nesses espaos, as
relaes so mais distanciadas, segmentrias, transitrias e superficiais, pautadas em formas de
indiferena e centradas em estratgias de territorializao e autossegregao, no sem que se
desenvolvam contatos, ainda que meramente visuais.
P g i n a | 214

De todo modo, surpreendentemente, os resultados do trabalho sugerem que os circuitos dos


grupos populares parece ser mais amplos (no sentido geral da cidade) do que os dos grupos
mdios e altos, pois eles frequentam espaos tanto de bairros populares quanto espaos centrais.
Esses grupos utilizam de maneira mais frequente os espaos pblicos da cidade. Enquanto isso,
os de mdia e alta renda vivenciam basicamente suas reas formais que so uma ilha de
afluncia em um mar de pobreza (CARVALHO; GORDILHO-SOUZA, PEREIRA, 2004).
Nesse sentido, os grupos mdios e altos se autossegregam de maneira que seus circuitos so
relativamente restritos a espaos privados, shopping centers, boates, restaurantes e bares e,
eventualmente, determinadas praas bastante homogneas e em horrios especficos. A
autossegregao cumpre um papel extremamente relevante nesse processo, impactando sobre a
constituio de um espao pblico mais plural.

Pelo que se pde observar neste captulo, os usos dos espaos pblicos e as relaes nele
desenvolvidas so bastante complexos, como no poderia deixar der ser em uma sociedade
diversa e fragmentada como Salvador. Eles apresentam mltiplas marcas de mercantilizao e
privatizao, segregao e excluso, mas tambm contratendncias e resistncias, ou seja,
foras que esto continuamente em conflito construindo essa histria.
P g i n a | 215

CONSIDERAES FINAIS:

ESPAO(S) PBLICO(S) QUE SOBREVIVEM;


DESIGUAIS, SEGREGADOS E FRAGMENTADOS
P g i n a | 216

Esta tese teve por objetivo estudar os usos do(s) espao(s) pblico(s) na vida urbana
contempornea, discutindo sua relevncia atual e sua capacidade de expressar diversidade e
engendrar intersubjetividades. Para tanto, buscou analisar sua dinmica na cidade do Salvador,
considerando as transformaes urbanas das ltimas dcadas do sculo XX e das primeiras
desse novo sculo.

Tal preocupao reflete um dos elementos mais centrais da vida urbana, as utopias do viver
juntos (IVO, 2010), pois como salientou Ramrez Kuri (2008) o espao pblico o lugar onde
melhor se pode compreender as relaes estabelecidas entre as pessoas e a cidade, assim como
as formas de organizao ou desintegrao da vida comum.

Como visto, a ideia de pblico adquire significados mltiplos e tem sido abordada
principalmente a partir de duas perspectivas (JOSEPH, 2002). De um lado, a tradio europeia
remete ao conceito de esfera pblica, compreendida como um espao heterogneo de debates
baseado no uso pblico e livre da razo e conformado por relaes de igualdade entre os
participantes. Tal esfera fundamentaria o surgimento de uma cultura pblica e de uma
urbanidade que tem na conversao seu dispositivo central de civilidade (HABERMAS, 2003).
Do outro lado, a tradio norte-americana da Escola de Chicago, segundo Joseph (2002), d
mais nfase ao espao concreto, aos encontros, deslocamentos, nichos, fronteiras e conflitos
engendrados pela utilizao cotidiana e ordinria dos espaos pblicos urbanos.

Sintetizando tal diferena, Thierry Paquot (2009) afirma que o espao pblico um singular
cujo plural no o corresponde, uma vez que o primeiro se refere ao lugar do debate poltico, da
confrontao de opinies, circulao de ideias e de uma prtica democrtica e o segundo a
espaos geogrficos concretos abertos ao(s) pblico(s). As duas expresses no designam os
mesmos fenmenos, mas tm em comum a ideia de partilha, colaborao, relao, troca e
circulao.

Nesse sentido, embora o presente trabalho tivesse como objeto central o(s) espao(s) pblico(s)
urbano(s), buscou-se analisa-los a partir de elementos que levassem a relao entre esses dois
aspectos a um bom termo: a utilizao de um espao pblico concreto e as dimenses
intersubjetivas associadas a isto, como destacaram diversos autores.
P g i n a | 217

No que se refere a este carter intersubjetivo, Hannah Arendt, por exemplo, considera a esfera
pblica como o lugar onde o ser humano pode se revelar por meio da ao e do discurso e,
atravs da sua singularidade e da convivncia com outros homens, realizar a condio humana
da pluralidade e do entendimento. O compartilhamento de um mundo comum a todos ns
est no fundamento dessa esfera pblica que [...] enquanto mundo comum, rene-nos na
companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros[...] (ARENDT,
2008, p. 62).

Sennett, por sua vez, entende o pblico como uma vida que se passa fora da famlia e dos amigos
ntimos, em espaos urbanos como parques e cafs, construindo um vnculo entre os referidos
aspectos. Baseada em cortesias, a convivncia com pessoas diferentes permitiria a constituio
de uma sociabilidade pura, separada das circunstncia do poder [...] (SENNETT, 1988, p.
323) e produziria diverso, tolerncia cnica, prazer na companhia de outros amigos
(SENNETT, 1988, p. 142). Nesse sentido, a vida urbana, porque pautada nessa regio pblica,
conformaria a civilidade, entendida como uma condio que protege as pessoas umas das
outras, permitindo que elas tirem proveito dessa companhia.

Como discutido ao longo da tese, a literatura associa a constituio dessas relaes e uma
utilizao mais ampla dos espaos pblicos a perodos histricos e contextos urbanos
especficos, em geral destacando como tal construo societria no perdurou por muito tempo
em funo de variados aspectos.

O processo de diluio da esfera pblica iniciado, segundo Habermas (2003), j no sculo


XIX, quando passou a ocorrer uma interpenetrao progressiva desta esfera com o setor privado
e aquele pblico que se baseava no uso livre da razo se converteu em consumidor, e no mais
pensador, de cultura. Para Arendt (2008), esse progresso constitutivo da prpria modernidade
que deu uma dimenso econmica e poltica liberdade, conformando uma sociedade baseada
em comportamentos massificados e normalizados incapazes de expressar a pluralidade da
condio humana. Por isso, a vida privada se tornou a nica preocupao que sobrou para os
homens, que descobriram na intimidade o elemento central de definio da prpria humanidade.

Sennett (1988), por sua vez, identifica a debacle da vida pblica principalmente no surgimento
de uma cultura da personalidade que valorizou os sentimentos ntimos e a individualidade,
amplificando o domnio privado e engendrando comportamentos de autoisolamento em
P g i n a | 218

pblico, a perda da impessoalidade como norma das interaes nesse espao, a nfase nos laos
construdos entre iguais e a evitao da heterogeneidade. Com seu aprofundamento aps a II-
guerra mundial, o declnio do homem pblico seria evidenciado pelo abandono dos espaos de
convivncia heterognea em direo a comunidades exclusivas pautadas na vigilncia e no
controle social destruindo a urbanidade baseada na ideia de que os homens podem agir juntos
sem a compulso de serem os mesmos (SENNETT, 1988, p. 314).

Essa discusso se assenta no quadro de transformaes sociais e econmicas do ltimo sculo,


quando mudanas nos espaos pblicos fizeram surgir reflexes crticas sobre as suas
caractersticas atuais. Boa parte dessas perspectivas apareceu na segunda metade do sculo XX
(Arendt, Habermas e Sennett), mas adquiriram maior centralidade nos anos que marcaram a
passagem para o sculo XXI, com os trabalhos de autores como Mike Davis e Tereza Caldeira
(RAMREZ KURI, 2008), entre outros. Segundo Davis (2009), o efeito fortificao uma das
principais caractersticas das cidades contemporneas e o controle social das diferenas,
associado ao enclausuramento de diversos setores sociais, termina por destruir a antiga ideia de
liberdade associada cidade. Nesse sentido, de acordo com Caldeira (2000), principalmente
por conta da proliferao de enclaves fortificados, estaria ocorrendo um esvaziamento da esfera
pblica tradicional da cidade modernista em favor de um novo modelo assentado na tenso,
separao, discriminao e suspeio, no qual so reafirmados privilgios e hierarquias sociais.

Os espaos pblicos tal qual se constituram tradicionalmente estariam desaparecendo,


passando por processos de esvaziamento e restrio.

Apesar dessas teses, outros autores (SALCEDO, 2002; ANDRADE E BAPTISTA, 2013) tm
se posicionado de uma forma diferente, questionando a existncia real daquele espao pblico
tal qual descrito anteriormente, problematizando a escala e os atores que levariam a cabo esse
processo de restrio, alm de alertar para a homogeneizao da diversidade existente dentro
do rtulo espaos pblicos. Nesse sentido, o fortalecimento atual das grandes cidades como
espaos importantes da ao poltica, como destacou David Harvey (2014), tambm colocaria
um contraponto chamada tese do fim ou morte dos espaos pblicos.

No que tange a essa discusso, a presente pesquisa fornece elementos para o debate.
P g i n a | 219

Em primeiro lugar, importante considerar que em Salvador nunca existiu um padro de


apropriao dos espaos pblicos completamente aberto e plural, associado a prticas de
tolerncia, civilidade e urbanidade. Durante a sua formao colonial, ela se converteu em
importante cidade brasileira e seu desenho urbano permitiu certa concentrao de funes nos
distritos centrais, aproximando distintos grupos e diversas atividades. No entanto, no havia
relaes igualitrias e amplas entre esses grupos sociais em funo da estratificao da
sociedade, da escravido e da dominao senhorial e masculina. Diferentemente das cidades
europeias, que se constituram num contexto de emancipao do sistema feudal e da formao
de modelos de sociedade inspirados nos ideais iluministas, liberais e democrticos, Salvador,
assim como as demais cidades coloniais brasileiras, serviu durante muito tempo aos objetivos
de organizao e controle do territrio nacional e das estratgias da colonizao. Desde o
princpio, importante salientar, a formao desse espao urbano esteve comprometida com os
objetivos de dominao e explorao, que engendraram marcas profundas em termos de
desigualdades sociais e raciais. Esse sentido de cidade, parafraseando Caio Prado Jnior
quando se refere ao sentido da colonizao brasileira, continua influenciando a vida social e
urbana da capital da Bahia.

Os usos dos espaos pblicos e as relaes intersubjetivas engendradas na sua apropriao


sempre foram marcados por dilemas complexos que, no obstante, se expressaram de maneiras
diferentes em contextos distintos. At a dcada de 70 o tamanho reduzido da cidade e a
concentrao das principais atividades no seu centro atraam grupos sociais diversificados,
produzindo certos encontros e relaes de sociabilidade. Alguns espaos como determinadas
praas e momentos rituais e festivos, como as festas populares de largo e o carnaval,
propiciavam formas mais plurais de apropriao, construindo vnculos sociais, sensos de
pertencimento e suspenso, ainda que temporria, de determinadas barreiras sociais. Apesar
disso, havia formas diversas de restrio dos usos e circuitos dos distintos grupos na escala da
cidade, em geral movidos por questes de classe, tnicas, simblicas, culturais e de gnero.

No se pode, portanto, voltar a esse perodo simplesmente com um olhar crtico sobre os dias
atuais sob a pena de mitificar o passado a partir de tons nostlgicos. Sempre houve contradies
na construo de um espao pblico ou nos usos dos espaos pblicos numa sociedade desigual
e segregada como aquela existente em Salvador. Apesar disso, o modelo de cidade tradicional
propiciava certa expresso da heterogeneidade social e permitia algumas oportunidades de usos
dos espaos pblicos e de produo de encontros e relaes interclassistas.
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Com a metropolizao industrial e as transformaes dos ltimos anos essa realidade mudou
bastante, com a proliferao de enclaves fortificados de residncia, lazer e consumo e com o
crescimento da violncia e/ou do medo e da insegurana, que passou a se constituir como uma
justificativa para uma fuga dos males da cidade, como sintetizado pelo autor em outro
trabalho (ARANTES, 2011).

As evidncias coletadas sobre a dinmica da vida urbana na Salvador contempornea


demonstram claramente uma tendncia de esvaziamento e restrio dos espaos pblicos. Isso
expresso principalmente pelo abandono e evitao cada vez mais comum desses espaos. Tal
processo se associa intimamente crescente valorizao dos espaos privados, que centralizam
a experincia urbana de boa parte dos citadinos.

O abandono e a evitao dos espaos pblicos ocorre por uma srie de fatores. Uma primeira
questo relevante o desinteresse ou a falta de prtica, no sentido de hbito, de vrios
moradores em frequentar esses espaos. Como destacado por Serpa (2007, 2008, 2013), os
espaos pblicos podem ser alheios e at mesmo excluir diversos grupos sociais por questes
de identidade, habitus de classe e posse de capital cultural. Mas, em Salvador, a desafeio por
esses espaos se concentra principalmente nas camadas mdias e altas que tm seus circuitos
urbanos pautados em espaos privados e exclusivos.

Outro fator que tem interferido fortemente no padro de apropriao dos espaos pblicos da
cidade a violncia e a sensao de medo e insegurana que se encontram bastante difundidos
entre os diversos grupos sociais. Associado a isso, e cumprindo um papel relevante, esto certas
estratgias de distino e autossegregao, uma vez que tais espaos so tambm evitados por
motivos associados ao perfil social, s prticas, estilos e at mesmo ao padro moral dos seus
usurios. Como salientou Tereza Caldeira (2000), a proteo buscada nos enclaves fortificados
ou no abandono dos espaos pblicos no apenas da violncia, mas tambm reflete o desejo
de no ser incomodado, de manter-se longe dos considerados indesejveis, da under class, dos
prias urbanos. Tais estratgias de distino existem no apenas entre diferentes classes, mas
tambm entre estratos de classes ou no interior de uma mesma classe, como, de um lado, uma
introjeo da violncia simblica imposta pelos grupos hegemnicos e, de outro, como uma
estratgia de fuga dos preconceitos vigentes.
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Os estigmas e preconceitos e a desafeio pelos espaos pblicos, assim como a afirmao da


lgica da segregao, so uma recusa das caractersticas da cidade, do inesperado, dos encontros
fortuitos com o desconhecido, da heterogeneidade e da diversidade. Essa uma questo que
interfere diretamente na vivncia mais profunda do espao pblico, conforme definido
tradicionalmente. Esses comportamentos se contrapem sociabilidade tpica vida pblica
clssica, um prazer na companhia de outros diferentes, assim como dos ideais de civilidade,
como aquilo que protege os homens uns dos outros mas permitindo que se tenha prazer nessa
companhia (SENNETT, 1988). A cultura poltica autoritria e hierrquica da sociedade
brasileira (TELLES, 1999), que no reconhece a legitimidade das diferenas, inviabiliza a
constituio de um espao pblico que se assemelhe ao que Hannah Arendt (2008) definiu como
um lugar onde se expressa a pluralidade da condio humana, onde as pessoas interagem e se
colocam atravs da ao e do discurso.

Esse processo de restrio dos espaos pblicos se relaciona tambm com a expanso e
crescente valorizao dos espaos privados e exclusivos de moradia, servios, lazer e trabalho,
entre eles os condomnios fechados, os shopping centers e os enclaves festivos que contribuem
para esvaziar o sentido pblico das festas populares e do carnaval. A preferncia por tais
espaos constri um modelo de cidade em que as pessoas se convertem mais em usurios,
pautados em trajetrias e interesses individuais, do que em cidados, que tm objetivos e
propsitos em comum (DAMMERT, 2013). Isso se expressa claramente na recusa de certos
grupos em compartilhar as ruas de comrcio tradicional, as escolas pblicas, as festas populares,
ou seja, os espaos pblicos interclassistas, conformando uma dessolidarizao frente aos
problemas coletivos e aos destinos comuns da cidade, como destacado pelo autor em outro
trabalho (ARANTES, 2011).

Apesar desses processos de restrio, os usos dos espaos pblicos conservam certa vitalidade
e fazem parte das prticas de diversos grupos. Alguns usurios se destacam nesse aspecto, como
praticantes de atividades fsicas, crianas e seus acompanhantes, idosos que se renem para
conversar ou jogar domin e baralho, jovens que consomem bebidas e comidas ou que se
encontram para paquerar e ouvir msicas do momento, entre outros. Alguns lugares tambm se
destacam, como as praias que engendram uma espcie de competio com os espaos
programados para uso pblico, como parques e praas. Em geral, em Salvador, cidade litornea
com 50 km de praia, esses espaos naturais tm uma utilizao bastante difundida e relevante.
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Os espaos pblicos disponveis em Salvador so heterogneos entre si e por isso bastante


desiguais, em termos de condies, usos e localizao. Eles se concentram principalmente em
bairros centrais e reas valorizadas em termos imobilirios e tursticos e isso interfere sobre
seus usos e nos perfis dos usurios. Em geral, os espaos utilizados com mais frequncia so
aqueles mais prximos das residncias dos frequentadores, que apresentam um uso mais
cotidiano e homogneo. Eles concentram vizinhos, conhecidos e grupos relativamente
semelhantes, se convertendo em territrios do reconhecimento. Por isso, as interaes a
desenvolvidas se associam a relaes sociais de tipo comunitrio, ou seja, um tipo de
sociabilidade pautada nas similitudes e mais personalizada (WEBER, 1994). Tais usos so,
portanto, segregados pois no logram produzir convivncia entre diferentes grupos. Isso ocorre
tanto em espaos pblicos de bairros populares quanto em algumas praas que tm sido
recentemente apropriadas por grupos de maior poder aquisitivo, se convertendo em espaos
bastante elitizados. Situao semelhante ocorre nas praias, que tambm so segregadas em
funo da sua localizao e do perfil de classe predominante entre os usurios.

Apesar dessa caracterstica mais geral, alguns espaos agregam usurios de perfis mais
diversificados, em termos de classe, tnicos e de prticas culturais. Em geral, so lugares
simbolicamente relevantes e/ou se localizam em regies mais centrais. Nesses espaos, com
exceo de alguns grupos de jovens, os padres de sociabilidade so mais derpersonalizados e
se constroem em torno do que Simmel chamou de atitude blas, uma espcie de indiferena e
proteo frente aos outros. Dificilmente h interaes mais duradouras e/ou profundas entre as
pessoas, para alm de um contato visual ou um rpido comentrio sobre algo corriqueiro. Como
Sennett (1988) descreveu no processo que chamou de diluio do comportamento pblico em
Londres e Paris, prevalece muitas vezes a tica do silncio na utilizao desses espaos.

Os contatos so, de fato, superficiais, transitrios e segmentrios. Isso se expressa muitas vezes
tambm em formas de autossegregao dos grupos de usurios, que conformam um espao que
se constitui como uma justaposio de territrios diferentes, juntos, mas na prtica separados.
Isso se d basicamente porque muitas vezes esses espaos pblicos so apropriados atravs do
autoisolamento de grupos e indivduos que negam o outro atravs da indiferena, fazendo do
pblico um territrio privado, onde a vida domstica se desnuda ao olhar de todos (SERPA,
2013).
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Na prtica, portanto, as interaes acabam tendo um perfil intraclassista, no apenas por uma
questo de acessibilidade e localizao dos espaos, mas tambm por conta dos habitus, estilos
e interesses dos diversos grupos. A negao da diferena, condio fundamental do espao
pblico, indica que a vida dos citadinos em Salvador, de maneira geral, construda em torno
a crculos e circuitos bastante especficos. E isso interfere na apreciao do outro, na disposio
ao encontro e nos usos dos espaos pblicos, assim como na existncia de diversificadas formas
de conflito, disputas por espao, formao de territrios morais e simblicos, entre outras
dimenses.

Mesmo com existncia dessas prticas de autoisolamento, relevante destacar que, frente a um
contexto urbano em que formas cada vez mais extremadas de segregao se ampliam, o simples
contato entre as pessoas produzido pelos espaos pblicos pode ajudar a desconstruir alguns
estigmas e esteretipos. Para alguns autores, a vulnerabilidade dos compromissos (JOSEPH,
1999, p. 36) engendrada nos espaos pblicos ao contrrio de ser somente limitadora possui
tambm o potencial de garantir a liberdade de movimentos e a existncia das diferenas
(BORDREUIL, 2002, SABATINI ET AL, 2013, CARVALHO FILHO E URIARTE, 2014).
Nesse aspecto, a copresena de indivduos diferentes em um mesmo espao faz com que pelo
menos eles saibam da existncia e reconheam a diferena, permitindo assim que, ainda que de
modo fragmentado, a cidade possa expressar sua realidade e contradies [...] entre esplendor
e misria, entre riqueza e pobreza, inteligncia e ignorncia, ordem e caos (WIRTH, 1979, p.
103).

Apesar da reafirmao da lgica mais ampla da segregao e das desigualdades nos usos dos
espaos pblicos de Salvador (reafirmada pela ao do Estado, que abandona os espaos
pblicos, no investe em mobilidade urbana e concentra suas aes em bairros valorizados e
tursticos), os grupos populares parecem estar quebrando determinadas barreiras, especialmente
em seus circuitos de uso. Eles tm ampliado a sua visibilidade em diversos espaos antes no
acessveis, tanto nos semi-pblicos, como os Shoppings, quanto tambm nos pblicos; no sem
reaes, como visto ao longo do trabalho. Nesse sentido, os resultados sugerem que os circuitos
dos grupos populares parece ser mais amplos (no sentido geral da cidade) do que os dos grupos
mdios e altos, pois estes basicamente vivenciam suas reas formais que so uma ilha de
afluncia em um mar de pobreza (CARVALHO; GORDILHO-SOUZA, PEREIRA, 2004).
Nesse sentido, os grupos mdios e altos se autossegregam de maneira que seus circuitos so
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relativamente restritos a espaos privados, praias segregadas e, eventualmente, determinadas


praas bastante homogneas.

Alm dos usos dedicados s atividades ldicas, assim como vm ocorrendo em outras cidades,
tambm em Salvador os espaos pblicos so apropriados para fins de mobilizao e
participao poltica. Isso representa, de certa forma, uma vitalidade desses espaos, sem a
ambio de falar da esfera pblica propriamente. No obstante, assim como os demais usos,
eles tambm so bastante fragmentados, uma vez que so realizados geralmente por grupos
especficos e expressam os conflitos de uma cidade desigual e uma luta pelo direito cidade
(LEFEBVRE, 2008a, HARVEY, 2014).

Como se observa, muitos so os dilemas associados aos usos dos espaos pblicos e analis-
los, como advertido por Andrade e Baptista (2013), exige do pesquisador um cuidado muito
grande no seu entendimento e distino, pois eles expressam uma diversidade de experincias
e apresentam tendncias mltiplas, muitas vezes contraditrias. Em Salvador, eles apresentam
marcas diversas de mercantilizao e privatizao, segregao e excluso, mas tambm
contratendncias e resistncias, ou seja, foras que esto continuamente em conflito construindo
essa histria.

Em sntese, ficou patente como tambm em Salvador se desenvolvem processos de


esvaziamento e restrio dos espaos pblicos, principalmente no comportamento das camadas
mdias e altas que se autossegregam em enclaves fortificados e espaos exclusivos, onde a
sociabilidade homognea. Enquanto isso, as camadas populares utilizam os espaos pblicos
de maneira mais ampla, porm concentradas em seus prprios bairros e em reas de perfil
semelhante, mesmo que sua circulao pela cidade tenha aumentado nos ltimos anos,
especialmente entre os jovens que tm cruzado fronteiras e rompido com algumas barreiras
produzidas pela segregao territorial. Todavia, sua presena nos espaos ainda alvo de
preconceitos e mltiplos estigmas, por vezes introjetados e reproduzidos por eles mesmos.

Nesse sentido, persistem as distncias entre os referidos grupos e uma estratificao social dos
circuitos urbanos. So poucos os espaos de convivncia interclassista e eles servem como
palco para a construo de padres de sociabilidade relativamente restritivos, uma vez que no
h interaes mais profundas entre os distintos grupos, para alm de contatos visuais. Nesta
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cidade, os espaos pblicos no cumprem o papel assignado teoricamente como lugar


integrador e gerador de prticas democrticas (RAMREZ KURI, 2008).

Assim, o espao pblico no est morto, conserva certa vitalidade, mas se caracteriza, como
seria de se esperar pelas condies da prpria cidade, por seu carter extremamente desigual,
segregado e fragmentado. Nesse aspecto, o caso de Salvador, mesmo com suas especificidades,
no parece ser diferente de outras cidades brasileiras e latino-americanas e provvel que tais
caractersticas se repitam tambm nesses contextos.
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