SÓCRATES
SÓCRATES
SÓCRATES
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O pensamento do filósofo grego Sócrates (469-399 a.C.) marca uma reviravolta na história
humana. Até então, a filosofia procurava explicar o mundo baseada na observação das forças da
natureza. Com Sócrates, o ser humano voltou-se para si mesmo. Como diria mais tarde o
pensador romano Cícero, coube ao grego "trazer a filosofia do céu para a terra" e concentrá-la no
homem e em sua alma (em grego, a psique). A preocupação de Sócrates era levar as pessoas, por
meio do autoconhecimento, à sabedoria e à prática do bem.
Nessa empreitada de colocar a filosofia a serviço da formação do ser humano, Sócrates não
estava sozinho. Pensadores sofistas, os educadores profissionais da época, igualmente se
voltavam para o homem, mas com um objetivo mais imediato: formar as elites dirigentes. Isso
significava transmitir aos jovens não o valor e o método da investigação, mas um saber
enciclopédico, além de desenvolver sua eloqüência, que era a principal habilidade esperada de
um político.
Sócrates concebia o homem como um composto de dois princípios, alma (ou espírito) e corpo.
De seu pensamento surgiram duas vertentes da filosofia que, em linhas gerais, podem ser
consideradas como as grandes tendências do pensamento ocidental. Uma é a idealista, que
partiu de Platão (427-347 a.C.), seguidor de Sócrates. Ao distinguir o mundo concreto do mundo
das idéias, deu a estas status de realidade; e a outra é a realista, partindo de Aristóteles (384-322
a.C.), discípulo de Platão que submeteu as idéias, às quais se chega pelo espírito, ao mundo real.
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Nas palavras atribuídas a Sócrates por Platão na obra Apologia de Sócrates, o filósofo ateniense
considerava sua missão "andar por aí (nas ruas, praças e ginásios, que eram as escolas
atenienses de atletismo), persuadindo jovens e velhos a não se preocuparem tanto, nem em
primeiro lugar, com o corpo ou com a fortuna, mas antes com a perfeição da alma". Defensor do
diálogo como método de educação, Sócrates considerava muito importante o contato direto com
os interlocutores o que é uma das possíveis razões para o fato de não ter deixado nenhum
texto escrito. Suas idéias foram recolhidas principalmente por Platão, que as sistematizou, e por
outros filósofos que conviveram com ele. Sócrates se fazia acompanhar freqüentemente por
jovens, alguns pertencentes às mais ilustres e ricas famílias de Atenas. Para Sócrates, ninguém
adquire a capacidade de conduzir-se, e muito menos de conduzir os demais, se não possuir a
capacidade de autodomínio. Depois dele, a noção de controle pessoal se transformou em um
tema central da ética e da filosofia moral. Também se formou aí o conceito de liberdade interior:
livre é o homem que não se deixa escravizar pelos próprios apetites e segue os princípios que,
por intermédio da educação, afloram de seu interior.
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De todos os grandes pensadores da Grécia antiga, Aristóteles (384-322 a.C.) foi o que mais
influenciou a civilização ocidental. Até hoje o modo de pensar e produzir conhecimento deve
muito ao filósofo. Foi ele o fundador da ciência que ficaria conhecida como lógica e suas
conclusões nessa área não tiveram contestação alguma até o século 17. Sua importância no
campo da educação também é grande, mas de modo indireto. Poucos de seus textos específicos
sobre o assunto chegaram a nossos dias. A contribuição de Aristóteles para o ensino está
principalmente em escritos sobre outros temas.
As principais obras de onde se pode tirar informações pedagógicas são as que tratam de política
e ética. "Em ambos os casos o objetivo final era obter a virtude", diz Carlota Boto, professora da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. "Em suas reflexões sobre ética,
Aristóteles afirma que o propósito da vida humana é a obtenção do que ele chama de vida boa.
Isso significava ao mesmo tempo vida do bem e vida harmoniosa." Ou seja, para Aristóteles,
ser feliz e ser útil à comunidade eram dois objetivos sobrepostos, e ambos estavam presentes na
atividade pública. O melhor governo, dizia ele, seria "aquele em que cada um melhor encontra o
que necessita para ser feliz".
Um dos fundamentos do pensamento aristotélico é que todas as coisas têm uma finalidade. É
isso que, segundo o filósofo, leva todos os seres vivos a se desenvolver de um estado de
imperfeição (semente ou embrião) a outro de perfeição (correspondente ao estágio de
maturidade e reprodução). Nem todos os seres conseguem ou têm oportunidade de cumprir o
ciclo em sua plenitude, porém. Por ter potencialidades múltiplas, o ser humano só será feliz e
dará sua melhor contribuição ao mundo se desfrutar das condições necessárias para desenvolver
o talento. A organização social e política, em geral, e a educação, em particular, têm a
responsabilidade de fornecer essas condições.
A virtude, para Aristóteles, é uma prática e não um dado da natureza de cada um, tampouco o
mero conhecimento do que é virtuoso, como para Platão (427-347 a.C.). Para ser praticada
constantemente, a virtude precisa se tornar um hábito. Embora não se conheça nenhum estudo
de Aristóteles sobre o assunto, é possível concluir que o hábito da virtude deve ser adquirido na
escola.
Grande parte da obra que originou o legado aristotélico se desenvolveu em oposição à filosofia
de Platão, seu mestre e fundador da Academia ateniense, que Aristóteles freqüentou durante
duas décadas. Posteriormente, ele fundaria uma escola própria, o Liceu. Uma das duas grandes
inovações do filósofo em relação ao antecessor foi negar a existência de um mundo supra-real,
onde residiriam as idéias. Para Aristóteles, ao contrário, o mundo que percebemos é suficiente, e
nele a perfeição está ao alcance de todos os homens. A oposição entre os dois filósofos gregos
ou entre a supremacia das idéias (idealismo) ou das coisas (realismo) marcaria para sempre o
pensamento ocidental.
A segunda inovação de Aristóteles foi no campo da lógica. De acordo com o filósofo, determinar
uma verdade comum a todos os componentes de um grupo de coisas é a condição para conceber
um sistema teórico. Para a construção de tal conhecimento, Aristóteles não se satisfez com a
dialética de Platão, segundo a qual o caminho para chegar à verdade era a depuração dos
argumentos e pontos de vista por intermédio do diálogo.
Aristóteles quis criar um método mais seguro e desenvolveu o sistema que ficou conhecido como
silogismo. Ele consiste de três proposições duas premissas e uma conclusão que, para ser
válida, decorre das duas anteriores necessariamente, sem que haja outra opção. Exemplo
clássico de silogismo é o seguinte. Todos os homens são mortais. Sócrates é um homem.
Portanto, Sócrates é mortal. Isso não basta, porém, para que a lógica se torne ciência. Um
silogismo precisa partir de verdades, como as contidas nas duas proposições iniciais. Elas não se
sujeitam a um raciocínio que as demonstre. Demonstram-se a si mesmas na realidade e são
chamadas de axiomas. A observação empírica isto é, a experiência do real ganha, assim,
papel central na concepção de ciência de Aristóteles, em contraste com o pensamento de Platão.
Embora tenha vivido nos últimos anos da Idade Antiga que se encerrou com a queda do
Império Romano, no ano de 476 , Santo Agostinho (354-430) foi o mais influente pensador
ocidental dos primeiros séculos da Idade Média (476-1453). A ele se deveu a criação de uma
filosofia que, pela primeira vez, deu suporte racional ao cristianismo. Com o pensamento de
Santo Agostinho, a crença ganhou substância doutrinária para orientar a educação, numa época
em que a cultura helenística (baseada no pensamento grego) havia entrado em decadência e a
nova religião conquistava cada vez mais seguidores, mesmo se fundamentando quase que
exclusivamente na fé e na difusão espontânea.
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À medida que a Igreja se tornava a instituição mais poderosa do Ocidente, a filosofia de Santo
Agostinho definia a cultura de seu tempo. Educação e catequese praticamente se equivaliam
as escolas eram orientadas para a formação de membros do clero, ficando em segundo plano a
transmissão dos conteúdos tradicionais. O conhecimento tinha lugar central na filosofia de
Santo Agostinho, mas ele se confundia com a fé. Diante disso, a educação daquela época
conhecida como patrística, em referência aos padres que a ministravam estimulava acima de
tudo a obediência aos mestres, a resignação e a humildade diante do desconhecido. O objetivo
era treinar o controle das paixões para merecer a salvação numa suposta vida após a morte.
Não é por acaso que a obra principal de Santo Agostinho seja Confissões, em que narra a própria
conversão ao cristianismo depois de uma vida em pecado. Trata-se de uma trajetória de
redefinição de si mesmo à luz de Deus, culminando com a redenção. O livro descreve a busca da
salvação, ao mesmo tempo psicológica e filosófica. Tal procura se transformaria numa espécie
de paradigma da vida terrena para os cristãos e vigoraria durante séculos como princípio
confessional.
Toda a reflexão de Santo Agostinho parte da indagação sobre o conhecimento, introduzindo a
razão, o pensamento e os sentidos humanos no debate teológico. Segundo o filósofo, os sentidos
nunca se enganam e, portanto, o que eles captam é, para o ser humano, a verdade. Dizer que
essa verdade constitui a verdade do mundo, no entanto, pode ser um erro.
Se o bem vem de Deus, o mal se origina da ausência do bem e só pode ser atribuído ao homem,
por conduzir erroneamente as próprias vontades. Se o fizesse de modo correto, chegaria à
iluminação. A ausência do bem se deve também a uma quase irresistível inclinação do ser
humano para o pecado ao fazer prevalecer os impulsos do corpo, e não a alma.
Santo Agostinho tratou o tema da educação mais de perto em duas obras, De DoctrinaChristiana
e De Magistro, na qual apresenta a doutrina do mestre interior. A idéia é que o professor não
ensina sozinho, mas depende também do aluno e, sobretudo, de uma verdade comum aos dois.
Simplificando, o professor mostra o caminho e o aluno o adota; assim, o saber brota de seu
interior. "A pessoa que ensina não transmite, mas desperta", diz Eliane Marta Teixeira Lopes,
professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. "Para Santo
Agostinho, é desse modo que se conquista a paz da alma, e esse é o objetivo final da educação."
Depois de oito séculos marcados por uma filosofia voltada para a resignação, a intuição e a
revelação divina, a Idade Média cristã chegou a um ponto de tensão ideológica que levou à
inversão quase total desses princípios. O personagem-chave da reviravolta foi São Tomás de
Aquino (1224/5-1274), o grande nome da filosofia escolástica (leia quadro abaixo), cujo
pensamento privilegiou a atividade, a razão e a vontade humana.
Numa época em que a Igreja ainda buscava em Santo Agostinho (354-430) e seus seguidores
grande parte da sustentação doutrinária, Tomás de Aquino formulou um amplo sistema
filosófico que conciliava a fé cristã com o pensamento do grego Aristóteles (384-322 a. C.) ± algo
que parecia impossível, até herético, para boa parte dos teólogos da época. Não se tratava
apenas de adotar princípios opostos aos dos agostinianos ± que se inspiravam no idealismo de
Platão (427-347 a. C.) e não no realismo aristotélico ± mas de trazer para dentro da Igreja um
pensador que não concebia um Deus criador nem a vida após a morte.
A porção mais influente da obra de Aristóteles havia desaparecido das bibliotecas da Europa,
embora tivesse sido preservada no Oriente Médio. Ela só começou a reaparecer no século 12,
principalmente por meio de comentadores árabes, conquistando grande repercussão nos
círculos intelectuais. As idéias de Aristóteles respondiam melhor aos novos tempos do que o
neoplatonismo. Vivia-se o período final da Idade Média e a transição de uma sociedade agrária
para um modo de produção mais orientado para as cidades e a atividade comercial. Avanços
tecnológicos, principalmente relacionados aos instrumentos de trabalho, começavam a influir
na vida das pessoas comuns e os trabalhadores urbanos se organizavam em corporações
(guildas).
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Tomás de Aquino realizou um trabalho monumental numa vida relativamente curta. Sua obra
mais importante, apesar de não concluída, é a Suma Teológica, na qual revê a teologia cristã sob
a nova ótica, seguindo o princípio aristotélico de que cabe à razão ordenar e classificar o mundo
para entendê-lo. Eis o princípio operacional do tomismo, como é chamada a filosofia
inaugurada por Tomás de Aquino.
A relação entre razão e fé está no centro dos interesses do filósofo. Para ele, embora esteja
subordinada à fé, a razão funciona por si mesma, segundo as próprias leis. Ou seja, o
conhecimento não depende da fé nem da presença de uma verdade divina no interior do
indivíduo, mas é um instrumento para se aproximar de Deus. "Segundo Tomás, a inteligência é
uma potência espiritual", afirma Lauand.
De acordo com o filósofo, há dois tipos de conhecimento: o sensível, captado pelos sentidos, e o
intelectivo, que se alcança pela razão. Pelo primeiro tipo, só se pode conhecer a realidade com a
qual se tem contato direto. Pelo segundo, pode-se abstrair, agrupar, fazer relações e, finalmente,
alcançar a essência das coisas, que é o objeto da ciência. O processo de abstração que vai da
realidade concreta até a essência universal das coisas é um exemplo da dualidade entre ato e
potência, princípio fundamental tanto para Aristóteles quanto para a filosofia escolástica.
Para extrair das coisas sua essência, é necessário transformar em ato algo que elas têm em
potência. Disso se encarrega o que Tomás de Aquino chama de inteligência ativa ± em
complementação a uma inteligência passiva, com a qual cada um pode formar os próprios
conceitos. A idéia, transportada para a educação, introduz um princípio pedagógico moderno e
revolucionário para seu tempo: o de que o conhecimento é construído pelo estudante e não
simplesmente transmitido pelo professor. "Tomás nos lega uma filosofia cuja característica
principal é uma abertura para o conhecimento e para o aluno", diz Lauand.
Como o filósofo vê em todo ser a potência e o ato (apenas Deus está acima da dicotomia, sendo
"ato puro"), a noção de transformação por meio do conhecimento é fundamental em sua teoria.
Cada ser humano, segundo ele, tem uma essência particular, à espera de ser desenvolvida, e os
instrumentos fundamentais para isso são a razão e a prudência ± esse, para Tomás de Aquino,
era o caminho da felicidade e também da conduta eticamente correta.
"A direção da vida é competência da pessoa e Tomás mostra que não há receitas para agir bem,
porque a prudência versa sobre atos situados no aqui e agora", declara Lauand.
Embora fosse clérigo e profundamente cristão, o filósofo holandês Erasmo de Roterdã (1469-
1536) passou para a história por se opor ao domínio da Igreja sobre a educação, a cultura e a
ciência. A influência religiosa vigorou praticamente sem contestação durante toda a Idade
Média no Ocidente e ainda no tempo de Erasmo era preciso ousadia para ir contra ela. De
qualquer modo, ousadia individual fazia parte das atitudes que um número crescente de
intelectuais começava a enaltecer no período de transição para a Idade Moderna, entre eles o
filósofo holandês. O pensamento nascente defendia a liberação da criatividade e da vontade do
ser humano, em oposição ao pensamento escolástico, segundo o qual todas as questões terrenas
deviam subordinar-se à religião.
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A mais típica cultura humanista se desenvolveu nas cidades do norte da Itália, mas o mesmo
espírito irradiou-se por toda a Europa. Entre os não-italianos, Erasmo foi o representante mais
influente desssa corrente de pensamento. "Ele era o intelectual mais respeitado e prestigiado de
seu tempo e sempre esteve ligado aos círculos de poder europeus", diz Cézar de Alencar Arnaut
de Toledo, professor da Universidade Estadual de Maringá.
A fonte original de todo humanismo foi a literatura clássica. A época era de redescoberta e
reinterpretação da produção cultural da antigüidade greco-romana. O interesse por esse período
da história foi acompanhado por uma série de mudanças profundas na vida européia: a
revitalização das cidades, a formação de redes de comércio entre centros distantes, a
consolidação de uma classe mercantil muito abastada, a criação de bancos e a centralização do
poder político em torno de cidades ou de reinos. Tudo isso ocasionou a abertura de brechas na
autoridade da Igreja, antes onipresente. Por razões evidentes, esse período histórico de grandes
transições ficou conhecido como Renascimento, dando origem a uma produção cultural das
mais ricas e fecundas de todos os tempos (leia quadro abaixo).
Erasmo se inseria no panorama cultural como um símbolo da nova era. Num tempo em que os
papas insuflavam guerras e acumulavam fortunas e o clero dava fartas mostras de ostentação,
hipocrisia e arrogância, Erasmo pregou a volta aos valores cristãos originais, a começar pela paz.
Sua obra mais célebre, O Elogio da Loucura, é uma sátira à inversão de valores que detectava na
sociedade de seu tempo. A moralidade estava no centro das preocupações do filósofo e deveria,
de acordo com ele, ser a fonte e o objetivo final da educação.
As críticas de Erasmo ao clero, assim como seu interesse pelos estudos da linguagem, o
aproximaram de Martinho Lutero (1483-1546), o monge alemão que deu origem ao
protestantismo. Mas o filósofo holandês combatia a idéia de predestinação de Lutero por
acreditar firmemente no livre-arbítrio dos seres humanos ± todos são capazes de distinguir o
bem e o mal, segundo ele. Além disso, sempre pregou o diálogo entre as facções discordantes no
interior do cristianismo.
A então recente invenção da impressora de tipos móveis, pelo alemão Johannes Gutenberg,
entusiasmava Erasmo com a promessa de ampla circulação de textos da literatura clássica. Ele
via o conhecimento dos livros como alternativa saudável à educação religiosa que recebera.
Segundo Erasmo, o ensino que havia conhecido "tentava ensinar humildade destruindo o
espírito das crianças".
Outros valores renascentistas, como a exaltação da beleza e do prazer, se encontravam em
profusão nos clássicos greco-romanos. Para Erasmo, esses princípios eram mais interessantes
do que as abstrações da filosofia escolástica. Além disso, dizia ele, o prazer físico e o bom humor
não conflitam com o cristianismo.
Apesar da notoriedade de que desfrutou em vida, Erasmo foi desprezado pelas gerações
seguintes. Suas idéias seriam retomadas cerca de um século depois pelo educador tcheco João
Comênio (1592-1670), considerado o pai da didática moderna.
Movido pela indignação e pela discordância com os costumes da Igreja de seu tempo, o monge
alemão Martinho Lutero (1483-1546) foi o responsável pela reforma protestante, que originou
uma das três grandes vertentes do cristianismo (ao lado do catolicismo e da Igreja Ortodoxa). O
nascimento do protestantismo teve profundas implicações sociais, econômicas e políticas. Na
educação, o pensamento de Lutero produziu uma reforma global do sistema de ensino alemão,
que inaugurou a escola moderna. Seus reflexos se estenderam pelo Ocidente e chegam aos dias
de hoje.
A idéia da escola pública e para todos, organizada em três grandes ciclos (fundamental, médio e
superior) e voltada para o saber útil nasce do projeto educacional de Lutero. "A distinção clara
entre a esfera espiritual e as coisas do mundo propiciou um avanço para o conhecimento e o
exercício funcional das coisas práticas", diz o pastor Walter Altmann, presidente da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.
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Embora nunca tivesse planejado uma cisão na Igreja, Lutero dedicou a maior parte de sua vida à
polêmica doutrinária em torno da fé cristã. Sua produção intelectual foi intensa e erudita, e seus
atos, graças ao surgimento da imprensa e do clima de descontentamento social, ganharam vasta
repercussão. Apesar da complexidade do cenário, pode-se identificar dois fatores que
desencadearam a dissidência de Lutero.
O primeiro foi a venda de indulgências pela Igreja. Segundo esse costume, que se iniciou na
última fase da Idade Média, os fiéis podiam comprar, de um representante do clero, parte da
absolvição de seus pecados. A prática era oficial, aprovada pelo papa e vinha acompanhada de
um ritual solene. O comércio de indulgências representava uma espécie de resumo do que havia
de mais condenável no comportamento da Igreja daquele tempo: ganância, ostentação,
arbitrariedade e mundanismo. As deturpações do cristianismo incomodavam os poderes locais e
repugnavam os intelectuais.
Lutero sempre havia pregado contra as indulgências, mas o que o levou a realizar um protesto
público, em 1517, foi a venda de uma indulgência especial, que oferecia privilégios específicos,
lançada pelo Vaticano para financiar a reconstrução da Basílica de São Pedro. Contra ela, Lutero
elaborou 95 teses, criticando as práticas eclesiásticas, e afixou-as na porta da Igreja do Castelo
de Wittenberg. Foi o início do conflito entre o monge alemão e a autoridade papal.
A segunda grande inquietação de Lutero tinha origem doutrinária e o atormentou durante seus
anos de formação. Ele não aceitava o princípio, então dominante no cristianismo, de que a
justiça divina se manifestava, no plano terreno, como um julgamento dos atos dos homens. Para
Lutero, isso produzia medo e tornava praticamente impossível o sentimento espontâneo de
amor a Deus. A indignação de Lutero só se dissipou quando, ao interpretar os Evangelhos,
concluiu que os homens vivem por uma graça de Deus e que a justiça divina é revelada pela
leitura das escrituras, de modo passivo e independentemente dos méritos ou ações de cada um
durante a vida. Foi o que se tornou conhecido como doutrina da salvação pela fé.
O fato de Lutero não acreditar que a salvação da alma estivesse vinculada às ações durante a
vida não implicava descaso pelas coisas mundanas. Ao separar as esferas do poder espiritual e
do poder temporal, o líder religioso alemão atribuía ao último a responsabilidade de
administração da vontade de Deus ± por isso a obediência civil seria um dever moral e a rebelião
um pecado. "A ligação entre os dois mundos é a fé, porque os que crêem são também
vocacionados para servir o próximo na sociedade", afirma o pastor Walter Altmann.
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O período histórico da Renascença estava em sua última fase quando o escritor francês Michel
de Montaigne (1533-1592) chegou à vida adulta. O otimismo e a confiança nas possibilidades
humanas já não eram os mesmos e a Europa se desestabilizava em conseqüência dos conflitos
entre católicos e protestantes. Esse ambiente refletiu-se na produção do filósofo, marcada pela
dúvida e pelo ceticismo. Seus Ensaios são leitura de cabeceira de um grande número de
intelectuais contemporâneos, entre eles Claude Lévi-Strauss, Edgar Morin e Harold Bloom.
A obra, originalmente em três volumes, é, a rigor, a única de Montaigne ± mais alguns escritos
pessoais foram publicados depois de sua morte ± e inaugurou um gênero literário. A palavra
"ensaio" passou desde então a designar textos em torno de um assunto que vai sendo explorado
por meio de tentativas (esse é o significado da palavra essais em francês), mas sem rigores de
método. Muitas vezes, não chegam a nenhuma conclusão definitiva, mas convidam o leitor a
considerar alguns pontos de vista. No caso de Montaigne, o gênero serve à perfeição ao
propósito de contestar certezas absolutas.
Essas circunstâncias históricas não necessariamente limitam os argumentos do autor, que foi o
primeiro a falar numa "cabeça bem-feita" (expressão que Morin escolheu para título de um de
seus livros) como objetivo do ensino, em detrimento de uma "cabeça cheia". "Trabalhamos
apenas para encher a memória, deixando o entendimento e a consciência vazias", escreveu.
Saber articular conhecimentos, tirar conclusões, acostumar-se à aquisição e ao uso da
informação ± todas essas questões tão problematizadas pelos teóricos da educação de hoje em
dia estão no cerne das preocupações de Montaigne. "Para ele, a verdadeira formação residia em
saber procurar, duvidar, investigar e exercitar o que é inteiramente próprio de cada pessoa", diz
Maria Cristina Theobaldo, professora da Universidade Federal de Mato Grosso.
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O projeto intelectual do filósofo teve a finalidade de testar maneiras de pensar que escapassem
do caminho da erudição e da aplicação de idéias alheias. Quando se recolheu para escrever os
Ensaios, sua decisão era voltar-se para si mesmo e reconstruir a própria história por intermédio
de temas escolhidos ao acaso. "Em Montaigne, o processo formativo coincide com o
conhecimento de si, lançar-se nas experiências e tomar posição perante os acontecimentos da
vida", informa Maria Cristina.
Ao mergulhar em assuntos tão díspares quanto a perseverança e os odores, o autor realizou
investigações que misturam experiências de vida a conhecimentos adquiridos por todos os
meios, dos formais (tratados e clássicos literários) aos informais (conversas, leituras ligeiras,
lendas populares). A primeira pergunta é "que sei eu?", para começar com uma grande dúvida e
não com uma grande certeza ± nem mesmo a certeza de não saber nada. Como cronista,
Montaigne invariavelmente se declara ignorante e inculto, embora seus ensaios estejam
recheados de citações gregas e latinas ± uma das muitas contradições propositais que os tornam
tão ricos.
Leitor devoto da tradição filosófica cética, Montaigne foi partidário da idéia de que a razão por si
mesma não garante a existência de nada nem sustenta argumento algum. O homem, para ele,
não era o centro do universo, como queriam os renascentistas, mas um elemento ínfimo e
ignorante de um todo misterioso e muito mais próximo dos animais e das plantas do que de
Deus. A escrita amena e ponderada dos Ensaios muitas vezes impede que, numa primeira
leitura, se perceba seu potencial demolidor ± tanto que a obra só foi proibida pela Igreja mais de
80 anos após a morte do autor. Não que ele fosse ateu. Considerava-se cristão, mas não aceitava
dogmas nem, sobretudo, a lógica que a religião costuma imputar aos desígnios divinos. Daí que
só resta ao ser humano voltar-se para si, porque as únicas certezas que tem de antemão se
referem aos limites do corpo e à inevitabilidade da morte. Sobre o mundo exterior, a melhor
atitude é comportar-se sempre como um estrangeiro em seu primeiro dia numa terra estranha ±
pelo menos evitam-se as idéias preconcebidas e legitimadas apenas pela tradição.
Coerentemente com tais idéias, Montaigne chegou a uma concepção de ética que também difere
muito das idéias estabelecidas em sua época sob a influência do platonismo e do cristianismo.
Para o filósofo, os valores morais não podem ser objetivos e universais, mas dependem do
sujeito e da situação em que ele se encontra.
Quando se fala de uma escola em que as crianças são respeitadas como seres humanos dotados
de inteligência, aptidões, sentimentos e limites, logo pensamos em concepções modernas de
ensino. Também acreditamos que o direito de todas as pessoas absolutamente todas à
educação é um princípio que só surgiu há algumas dezenas de anos. De fato, essas idéias se
consagraram apenas no século 20, e assim mesmo não em todos os lugares do mundo. Mas elas
já eram defendidas em pleno século 17 por Comênio (1592-1670), o pensador tcheco que é
considerado o primeiro grande nome da moderna história da educação.
No livro, o pensador realiza uma racionalização de todas as ações educativas, indo da teoria
didática até as questões do cotidiano da sala de aula. A prática escolar, para ele, deveria imitar
os processos da natureza. Nas relações entre professor e aluno, seriam consideradas as
possibilidades e os interesses da criança. O professor passaria a ser visto como um profissional,
não um missionário, e seria bem remunerado por isso. E a organização do tempo e do currículo
levaria em conta os limites do corpo e a necessidade, tanto dos alunos quanto dos professores,
de ter outras atividades.
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Comênio era cristão protestante e pertencia ao grupo religioso Irmãos Boêmios, ao qual se
manteve vinculado por toda a vida, tornando-se, em 1648, bispo dos morávios. Embora
profundamente religioso, o pensador propôs uma ruptura radical com o modelo de escola até
então praticado pela Igreja Católica, aquele voltado apenas para a elite e dedicado
primordialmente aos estudos abstratos. Ainda vigoravam as doutrinas escolásticas da Idade
Média, pelas quais todas as questões teóricas se subordinavam à teologia cristã.
Comênio não foi o único pensador de seu tempo a combater o pedantismo literário e o sadismo
pedagógico, mas ousou ser o principal teórico de um modelo de escola que deveria ensinar "tudo
a todos", aí incluídos os portadores de deficiência mental e as meninas, na época alijados da
educação. "Ele defendia o acesso irrestrito à escrita, à leitura e ao cálculo, para que todos
pudessem ler a Bíblia e comerciar", diz Gasparin. Comênio respondia assim a duas urgências de
seu tempo: o aparecimento da burguesia mercantil nas cidades européias e o direito,
reivindicado pelos protestantes, à livre interpretação dos textos religiosos, proibida pela Igreja
Católica.
A obra de Comênio corresponde também a outras novidades, entre elas "o despertar de uma
nova concepção de criança", como diz Gasparin. "Ele a trata em seus livros com muita
delicadeza, num tempo em que a escola existia sob a égide da palmatória", continua o professor.
"A educação era vista e praticada como um castigo e não oferecia elementos para que depois as
pessoas se situassem de forma mais ampla na sociedade. Comênio reagiu a esse quadro com
uma pergunta: por que não se aprende brincando?"
Sob influência de seitas protestantes e do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), Comênio
acreditava que a salvação da alma poderia ser alcançada durante a vida terrena e que o caminho
para isso poderia ter a ajuda da ciência. Para ele, a criatura humana correspondia ao ideal de
perfeição. Comênio acreditava que, por ser dotado de razão, o homem pode entender a si e a
todas as coisas. Portanto, deve se dedicar a aprender e a ensinar. Seguindo esse pensamento,
Comênio conclui que o mais importante na vida não é a contemplação e sim a ação, o "fazer".
A influência do inglês È (1632-1704) costuma ser separada em três grandes áreas.
Na política, ele foi o pai do liberalismo como o conhecemos hoje: é o autor de dois tratados de
governo que sustentaram a implantação da monarquia parlamentarista na Inglaterra,
inspiraram a Constituição dos Estados Unidos e anteciparam as idéias dos iluministas franceses.
Na filosofia, construiu uma teoria do conhecimento inovadora, que investigou o modo como a
mente capta e traduz o mundo exterior. Na educação, compilou uma série de preceitos sobre
aprendizado e desenvolvimento, com base em sua experiência de médico e preceptor, que teve
grande repercussão nas classes emergentes de seu tempo.
Mas essas três vertentes não são estanques. A grande e duradoura importância de Locke para a
história do pensamento está no entrecruzamento de suas áreas de estudo. Assim, a defesa da
liberdade individual, que ocupa lugar central na doutrina política lockiana, encontra
correspondência na prioridade que ele confere, no campo da educação, ao desenvolvimento de
um pensamento próprio pela criança.
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É por isso que, para Locke, o aprendizado depende primordialmente das informações e
vivências às quais a criança é submetida e que ela absorve de modo relativamente previsível e
passivo. É, portanto, um aprendizado de fora para dentro, ao contrário do que defenderam
alguns pensadores de linha idealista, como o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Johann
Heinrich Pestalozzi (1746-1827), e a maioria dos teóricos da educação contemporâneos.
"A concepção construtivista, por exemplo, institui-se com base na relação entre sujeito e objeto,
enquanto a visão lockiana enfatiza apenas o objeto", explica Lago. Embora considerasse que a
origem de todas as idéias estava fora do indivíduo, Locke via a capacidade de entendimento
como inata e variável de pessoa para pessoa.
Os dois fundamentos iniciais de sua obra mais importante, Ensaio sobre o Entendimento
Humano, são a negação da existência de idéias inatas - o que contrariava o legado do filósofo
mais influente da época, o francês René Descartes (1596-1650) - e o princípio de que todas as
idéias nascem da experiência, refundando, na ciência moderna, o empirismo. Ao combater o
inatismo, Locke se opunha às correntes de pensamento que encontravam no ser humano a idéia
natural de Deus e noções de moral ou bondade intrínsecas. Tudo isso seria atingido apenas pela
razão. Os princípios morais derivariam de considerações a respeito do que é vantajoso para o
indivíduo e para a coletividade.
A educação ganhava, desse modo, importância incontornável na formação da criança, uma vez
que, sozinha, ela se encontra desprovida de matéria-prima para o raciocínio e sem orientação
para adquiri-lo, estando fadada ao egocentrismo e à ignorância moral.
Apesar do valor que dava à racionalidade, Locke era cético quanto ao alcance da compreensão
da mente. O objetivo de sua obra principal foi tentar determinar quais são os mecanismos e os
limites da capacidade de apreensão do mundo pelo homem. Segundo o filósofo, como todo
conhecimento advém, em última instância, dos sentidos, só se pode captar as coisas e os
fenômenos em sua superfície, sendo impossível chegar a suas causas primordiais. Do material
fornecido pelos sentidos nasceriam as idéias simples que, combinadas, formariam as mais
complexas. O conhecimento não passaria de "concordância ou discordância entre as idéias".
Para Locke, as crianças não são dotadas de motivação natural para o aprendizado. É necessário
oferecer o conhecimento a elas de modo convidativo - mediante jogos, por exemplo. E, embora
desse primazia teórica às sensações, não via nelas função didática: educar com prêmios e
punições (para provocar prazer e mal-estar) seria manter os pequenos no estágio mais primário
do entendimento humano. Levá-los a pensar faria com que rompessem a dependência dos
sentidos. Embora não descartasse a possibilidade de castigos, inclusive corporais, Locke
afirmava que seu uso poderia fazer com que as crianças se tornassem adultos frágeis e
medrosos.
O princípio fundamental de toda a obra de Rousseau, pelo qual ela é definida até os dias atuais,
é que o homem é bom por natureza, mas está submetido à influência corruptora da sociedade.
Um dos sintomas das falhas da civilização em atingir o bem comum, segundo o pensador, é a
desigualdade, que pode ser de dois tipos: a que se deve às características individuais de cada ser
humano e aquela causada por circunstâncias sociais. Entre essas causas, Rousseau inclui desde
o surgimento do ciúme nas relações amorosas até a institucionalização da propriedade privada
como pilar do funcionamento econômico.
O primeiro tipo de desigualdade, para o filósofo, é natural; o segundo deve ser combatido. A
desigualdade nociva teria suprimido gradativamente a liberdade dos indivíduos e em seu lugar
restaram artifícios como o culto das aparências e as regras de polidez.
Ao renunciar à liberdade, o homem, nas palavras de Rousseau, abre mão da própria qualidade
que o define como humano. Ele não está apenas impedido de agir, mas
privado do instrumento essencial para a realização do espírito. Para recobrar a liberdade
perdida nos descaminhos tomados pela sociedade, o filósofo preconiza um mergulho interior
por parte do indivíduo rumo ao autoconhecimento. Mas isso não se dá por meio da razão, e sim
da emoção, e traduz-se numa entrega sensorial à natureza.
Até aqui o pensamento de Rousseau pode ser tomado como uma doutrina individualista ou uma
denúncia da falência da civilização, mas não é bem isso. O mito criado pelo filósofo em torno da
figura do bom selvagem o ser humano em seu estado natural, não contaminado por
constrangimentos sociais deve ser entendido como uma idealização teórica. Além disso, a
obra de Rousseau não pretende negar os ganhos da civilização, mas sugerir caminhos para
reconduzir a espécie humana à felicidade.
Não basta a via individual. Como a vida em sociedade é inevitável, a melhor maneira de garantir
o máximo possível de liberdade para cada um é a democracia, concebida como um regime em
que todos se submetem à lei, porque ela foi elaborada de acordo com a vontade geral. Não foi
por acaso que Rousseau escolheu publicar simultaneamente, em 1762, suas duas obras
principais, Do Contrato Social em que expõe sua concepção de ordem política e Emílio
minucioso tratado sobre educação, no qual prescreve o passo-a-passo da formação de um jovem
fictício, do nascimento aos 25 anos. "O objetivo de Rousseau é tanto formar o homem como o
cidadão", diz Maria Constança Peres Pissarra, professora de filosofia da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. "A dimensão política é crucial em seus princípios de educação."
Não há escola em Emílio, mas a descrição, em forma vaga de romance, dos primeiros anos de
vida de um personagem fictício, filho de um homem rico, entregue a um preceptor para que
obtenha uma educação ideal. O jovem Emílio é educado no convívio com a natureza,
resguardado ao máximo das coerções sociais. O objetivo de Rousseau, revolucionário para seu
tempo, é não só planejar uma educação com vistas à formação futura, na idade adulta, mas
também com a intenção de propiciar felicidade à criança enquanto ela ainda é criança.
Rousseau via o jovem como um ser integral, e não uma pessoa incompleta, e intuiu na infância
várias fases de desenvolvimento, sobretudo cognitivo. Foi, portanto, um precursor da pedagogia
de Maria Montessori (1870-1952) e John Dewey (1859-1952). "Rousseau sistematizou toda uma
nova concepção de educação, depois chamada de escola nova e que reúne vários pedagogos
dos séculos 19 e 20", diz Maria Constança.
Para Rousseau, a criança devia ser educada sobretudo em liberdade e viver cada fase da infância
na plenitude de seus sentidos mesmo porque, segundo seu entendimento, até os 12 anos o ser
humano é praticamente só sentidos, emoções e corpo físico, enquanto a razão ainda se forma.
Liberdade não significa a realização de seus impulsos e desejos, mas uma dependência das
coisas (em oposição à dependência da vontade dos adultos). "Vosso filho nada deve obter
porque pede, mas porque precisa, nem fazer nada por obediência, mas por necessidade",
escreveu o filósofo em Emílio.
Um dos objetivos do livro era criticar a educação elitista de seu tempo, que tinha nos padres
jesuítas os expoentes. Rousseau condenava em bloco os métodos de ensino utilizados até ali, por
se escorarem basicamente na repetição e memorização de conteúdos, e pregava sua substituição
pela experiência direta por parte dos alunos, a quem caberia conduzir pelo próprio interesse o
aprendizado. Mais do que instruir, no entanto, a educação deveria, para Rousseau, se preocupar
com a formação moral e política.
Para a mentalidade contemporânea, amor talvez não seja a primeira palavra que venha à cabeça
quando se fala em ciência, método ou teoria. Mas o afeto teve papel central na obra de
pensadores que lançaram os fundamentos da pedagogia moderna. Nenhum deles deu mais
importância ao amor, em particular ao amor materno, do que o suíço Johann Heinrich
Pestalozzi (1746-1827).
A escola idealizada por Pestalozzi deveria ser não só uma extensão do lar como inspirar-se no
ambiente familiar, para oferecer uma atmosfera de segurança e afeto. Ao contrário de muitos de
seus contemporâneos, o pensador suíço não concordava totalmente com o elogio da razão
humana. Para ele, só o amor tinha força salvadora, capaz de levar o homem à plena realização
moral isto é, encontrar conscientemente, dentro de si, a essência divina que lhe dá liberdade.
"Pestalozzi chega ao ponto de afirmar que a religiosidade humana nasce da relação afetiva da
criança com a mãe, por meio da sensação de providência", diz Dora Incontri.
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A vida e obra de Pestalozzi estão intimamente ligadas à religião. Cristão devoto e seguidor do
protestantismo, ele se preparou para o sacerdócio, mas abandonou a idéia em favor da
necessidade de viver junto da natureza e de experimentar suas idéias a respeito da educação.
Seu pensamento permaneceu impregnado da crença na manifestação da divindade no ser
humano e na caridade, que ele praticou principalmente em favor dos pobres.
A criança, na visão de Pestalozzi, se desenvolve de dentro para fora idéia oposta à concepção
de que a função do ensino é preenchê-la de informação. Para o pensador suíço, um dos cuidados
principais do professor deveria ser respeitar os estágios de desenvolvimento pelos quais a
criança passa. Dar atenção à sua evolução, às suas aptidões e necessidades, de acordo com as
diferentes idades, era, para Pestalozzi, parte de uma missão maior do educador, a de saber ler e
imitar a natureza em que o método pedagógico deveria se inspirar.
Tanto a defesa de uma volta à natureza quanto a construção de novos conceitos de criança,
família e instrução a que Pestalozzi se dedicou devem muito a sua leitura do filósofo franco-
suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), nome central do pensamento iluminista. Ambos
consideravam o ser humano de seu tempo excessivamente cerceado por convenções sociais e
influências do meio, distanciado de sua índole original que seria essencialmente boa para
Rousseau e potencialmente fértil, mas egoísta e submissa aos sentidos, para Pestalozzi.
"A criança, na concepção de Pestalozzi, era um ser puro, bom em sua essência e possuidor de
uma natureza divina que deveria ser cultivada e descoberta para atingir a plenitude", diz
Alessandra Arce, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, em Ribeirão Preto. O pensador suíço costumava comparar o ofício do professor ao do
jardineiro, que devia providenciar as melhores condições externas para que as plantas
seguissem seu desenvolvimento natural. Ele gostava de lembrar que a semente traz em si o
"projeto" da árvore toda.
Desse modo, o aprendizado seria, em grande parte, conduzido pelo próprio aluno, com base na
experimentação prática e na vivência intelectual, sensorial e emocional do conhecimento. É a
idéia do "aprender fazendo", amplamente incorporada pela maioria das escolas pedagógicas
posteriores a Pestalozzi. O método deveria partir do conhecido para o novo e do concreto para o
abstrato, com ênfase na ação e na percepção dos objetos, mais do que nas palavras. O que
importava não era tanto o conteúdo, mas o desenvolvimento das habilidades e dos valores.
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Com o filósofo alemão È
(1776-1841), a pedagogia foi formulada
pela primeira vez como uma ciência, sobriamente organizada, abrangente e sistemática, com
fins claros e meios definidos. A estrutura teórica construída por Herbart se baseia numa filosofia
do funcionamento da mente, o que a torna duplamente pioneira: não só por seu caráter
científico mas também por adotar a psicologia aplicada como eixo central da educação. Desde
então, e até os dias de hoje, o pensamento pedagógico se vincula fortemente às teorias de
aprendizagem e à psicologia do desenvolvimento ± um exemplo é a obra do suíço Jean Piaget
(1896-1980).
Para Herbart, a mente funciona com base em representações ± que podem ser imagens, idéias
ou qualquer outro tipo de manifestação psíquica isolada. O filósofo negava a existência de
faculdades inatas. A dinâmica da mente estaria nas relações entre essas representações, que
nem sempre são conscientes. Elas podem se combinar e produzir resultados manifestos ou
entrar em conflito entre si e permanecer, em forma latente, numa espécie de domínio do
inconsciente. A descrição desse processo viria, muitos anos depois, a influenciar a teoria
psicanalítica de Sigmund Freud (1856-1939).
Uma das contribuições mais duradouras de Herbart para a educação é o princípio de que a
doutrina pedagógica, para ser realmente científica, precisa comprovar-se experimentalmente ±
uma idéia do filósofo Immanuel Kant (1724-1804) que ele desenvolveu. Surgiram daí as escolas
de aplicação, que conhecemos até hoje. Elas respondem à necessidade de alimentar a teoria com
a prática e vice-versa, num processo de atualização e aperfeiçoamento constantes. "Herbart fez
um trabalho de grande influência porque aprofundou suas concepções até as últimas
conseqüências", diz Maria Nazaré Amaral, professora da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo.
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Na teoria herbartiana, memória, sentimentos e desejos são apenas modificações das
representações mentais. Agir sobre elas, portanto, significa influenciar em todas as esferas da
vida de uma pessoa. Desse modo, Herbart criou uma teoria da educação que pretende interferir
diretamente nos processos mentais do estudante como meio de orientar sua formação.
Embora profundamente intelectualista, a pedagogia herbartiana tem como objetivo maior nem
tanto o acúmulo de informações, mas a formação moral do estudante. Por considerar a criança
um ser moldado intelectualmente e psiquicamente por forças externas, Herbart dá ênfase
primordial ao conceito de instrução. Ela é o instrumento pelo qual se alcançam os objetivos da
educação. "Para Herbart, só o ignorante comete erros", diz a pedagoga Maria Nazaré.
A instrução é o elemento central dos três procedimentos que, para Herbart, constituem a ação
pedagógica. O primeiro é o que chamou de governo, ou seja, a manutenção da ordem pelo
controle do comportamento da criança, uma atribuição inicialmente dos pais e depois dos
professores. Trata-se de um conjunto de regras imposto de fora, com o objetivo de manter a
criança ocupada. O segundo procedimento é a instrução educativa propriamente dita e seu
motor é o interesse, que deve ser múltiplo, variado e harmonicamente repartido. O terceiro é a
disciplina, que tem a função de preservar a vontade no caminho da virtude. Nessa etapa se
fortalece a autodeterminação como pré-requisito da formação do caráter. Ao contrário do
governo, consiste em um processo interno do aluno.
Muitas das contribuições de Herbart para a psicologia e a pedagogia continuam valiosas, mas
seu pensamento e a prática que dele se originou no século 19 se tornaram ultrapassados,
sobretudo com o aparecimento do movimento da escola ativa. Seu principal representante, o
norte-americano John Dewey (1859-1952), fez duras críticas à doutrina herbartiana. A
pedagogia contemporânea tornou o o aluno sujeito do ensino e substituiu o individualismo do
século 18 por uma visão mais complexa dos fatores envolvidos no trabalho de ensinar. "Hoje,
admite-se no plano teórico que a mente humana é originalmente ativa, enquanto na prática, no
Brasil, ainda se costuma despejar conhecimento sobre o aluno, como queria Herbart", critica
Maria Nazaré.
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O alemão Friedrich Froebel (1782-1852) foi um dos primeiros educadores a considerar o início
da infância como uma fase de importância decisiva na formação das pessoas ± idéia hoje
consagrada pela psicologia, ciência da qual foi precursor. Froebel viveu em uma época de
mudança de concepções sobre as crianças (leia quadro na página 49) e esteve à frente desse
processo na área pedagógica, como fundador dos jardins-de-infância, destinado aos menores de
8 anos. O nome reflete um princípio que Froebel compartilhava com outros pensadores de seu
tempo: o de que a criança é como uma planta em sua fase de formação, exigindo cuidados
periódicos para que cresça de maneira saudável. "Ele procurava na infância o elo que igualaria
todos os homens, sua essência boa e divina ainda não corrompida pelo convívio social", diz
Alessandra Arce, professora da Universidade Federal de São Carlos.
As técnicas utilizadas até hoje em Educação Infantil devem muito a Froebel. Para ele, as
brincadeiras são o primeiro recurso no caminho da aprendizagem. Não são apenas diversão,
mas um modo de criar representações do mundo concreto com a finalidade de entendê-lo. Com
base na observação das atividades dos pequenos com jogos e brinquedos, Froebel foi um dos
primeiros pedagogos a falar em auto-educação, um conceito que só se difundiria no início do
século 20, graças ao movimento da Escola Nova, de Maria Montessori (1870-1952) e
CélestinFreinet (1896-1966), entre outros.
Ao mesmo tempo que pensou sobre a prática escolar, ele se dedicou a criar um sistema filosófico
que lhe desse sustentação. Para Froebel, a natureza era a manifestação de Deus no mundo
terreno e expressava a unidade de todas as coisas. Da totalidade em Deus decorria uma lei da
convivência dos contrários. Isso tudo levava ao princípio de que a educação deveria trabalhar os
conceitos de unidade e harmonia, pelos quais as crianças alcançariam a própria identidade e sua
ligação com o eterno. A importância do autoconhecimento não se limitava à esfera individual,
mas seria ainda um meio de tornar melhor a vida em sociedade.
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O caminho para isso seria deixar a criança livre para expressar seu interior e perseguir seus
interesses. Froebel adotava, assim, a idéia contemporânea do "aprender a aprender". Para ele, a
educação se desenvolve espontaneamente. Quanto mais ativa é a mente da criança, mais ela é
receptiva a novos conhecimentos.
O ponto de partida do ensino seriam os sentidos e o contato que eles criam com o mundo.
Portanto, a educação teria como fundamento a percepção, da maneira como ela ocorre
naturalmente nos pequenos. Isso não quer dizer que ele descartasse totalmente o ensino
diretivo, visto como um recurso legítimo caso o aluno não apresentasse o desenvolvimento
esperado. De modo geral, no entanto, a pedagogia de Froebel pode ser considerada como
defensora da liberdade.
O educador acreditava que as crianças trazem consigo uma metodologia natural que as leva a
aprender de acordo com seus interesses e por meio de atividade prática. Ele combatia o excesso
de abstração da educação de seu tempo, argumentando que ele afastava os alunos do
aprendizado. Na primeira infância, dizia, o importante é trabalhar a percepção e a aquisição da
linguagem. No período propriamente escolar, seria a vez de trabalhar religião, ciências naturais,
matemática, linguagem e artes.
Froebel defendia a educação sem imposições às crianças porque, segundo sua teoria, elas
passam por diferentes estágios de capacidade de aprendizado, com características específicas,
antecipando as idéias do suíço Jean Piaget (1896-1980). Froebel detectou três estágios: primeira
infância, infância e idade escolar. "Em seus escritos, ele demonstra como a brincadeira e a fala,
observadas pelo adulto, permitem apreender o nível de desenvolvimento e a forma de
relacionamento infantil com o mundo exterior", diz Alessandra Arce.
Froebel não fez a separação entre religião e ensino, consagrada atualmente, mas via a educação
como uma atividade em que escola e família caminham juntas, outra característica que o
aproxima da prática contemporânea.
O filósofo viveu num período da história francesa em que se alternavam regimes despóticos e
revoluções. A turbulência levou não só a um descontentamento geral com a política como a uma
crise dos valores tradicionais. Comte procurou dar uma resposta a esse estado de ânimo pela
combinação de elementos da obra de pensadores anteriores a ele e também de alguns
contemporâneos, resultando num corpo teórico a que chamou de positivismo. "Ele reviu as
ciências para definir o que, nelas, decorria da realidade dos fatos e permitia a formulação de leis
naturais, que orientariam os homens a agir para modificar a natureza", diz Arthur Virmond de
Lacerda, professor da Faculdade Internacional de Curitiba.
Um dos fundamentos do positivismo é a idéia de que tudo o que se refere ao saber humano pode
ser sistematizado segundo os princípios adotados como critério de verdade para as ciências
exatas e biológicas. Isso se aplicaria também aos fenômenos sociais, que deveriam ser reduzidos
a leis gerais como as da física. Para Comte, a análise científica aplicada à sociedade é o cerne da
sociologia, cujo objetivo seria o planejamento da organização social e política.
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Comte formulou uma lei histórica de três estágios. Segundo essa lei, o pensamento humano
partiu de um estágio teológico, quando recorria às idéias de deuses e espíritos para explicar os
fenômenos naturais, e passou para um estágio metafísico, caracterizado por fundamentar o
conhecimento em abstrações - como essências, causas finais ou concepções idealizadas da
natureza. De acordo com Comte, a humanidade só alcançaria plenitude intelectual ao chegar ao
estágio positivo, que pressupõe a admissão das limitações do entendimento humano. Para ele, a
razão não é capaz de operar a não ser pela via da experiência concreta. Todo esforço da ciência e
da filosofia deveria se restringir, portanto, a encontrar as leis que regem os fenômenos
observáveis.
Antes de Comte, a sociologia já havia dado os primeiros passos, mas foi ele quem a organizou
como ciência. O pensador a dividiu em duas áreas: estática social e dinâmica social. A primeira
estuda as forças que mantêm a sociedade unida, enquanto a segunda se volta para as mudanças
sociais e suas causas. A estática social se fundamenta na ordem e a dinâmica no progresso - daí o
lema "ordem e progresso", que figura na bandeira brasileira por inspiração comtiana (leia
quadro acima). Conhecidos a estrutura e os processos de transformação da sociedade, seria
possível, para o pensador, reformar as instituições e aperfeiçoá-las. "As leis sociológicas
permitem planejar o futuro porque indicam critérios de atuação política", diz Virmond de
Lacerda.
A concepção planejada das reformas sociais que o filósofo julgava necessárias não era
compatível com a democracia, imprevisível por natureza, e por isso Comte a rejeitou. Ele
acreditava que a ciência positiva seria o fundamento da fraternidade entre os homens, mas a
responsabilidade por conduzir o aperfeiçoamento das instituições estaria restrita a uma elite de
cientistas.
O filósofo via todas as sociedades constituídas por núcleos permanentes, como a família e a
propriedade, que devem promover o progresso. O positivismo compara a sociedade a um
organismo biológico, no qual nenhuma parte tem existência independente. Num estágio
positivo, próximo da perfeição, não haveria lugar para o individualismo, apenas para o
desenvolvimento da solidariedade e do altruísmo (termo cunhado por Comte) de cada um em
favor da coletividade.
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Numa de suas frases mais famosas, escrita em 1845, o pensador alemão Karl Marx (1818-1883)
dizia que, até então, os filósofos haviam interpretado o mundo de várias maneiras. "Cabe agora
transformá-lo", concluía. Coerentemente com essa idéia, durante sua vida combinou o estudo
das ciências humanas com a militância revolucionária, criando um dos sistemas de idéias mais
influentes da história. Direta ou indiretamente, a obra do filósofo alemão originou várias
vertentes pedagógicas comprometidas com a mudança da sociedade (leia quadro na página 54).
"A educação, para Marx, participa do processo de transformação das condições sociais, mas, ao
mesmo tempo, é condicionada pelo processo", diz Leandro Konder, professor da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
No século 20, o pensamento de Marx foi submetido a numerosas interpretações, agrupadas sob
a classificação de "marxismo". Algumas sustentaram regimes políticos duradouros, como o
comunismo soviético (1917-1991) e o chinês (em vigor desde 1949). Muitos governos comunistas
entraram em colapso, por oposição popular, nas décadas de 1980 e 1990. Em recente pesquisa
da rádio BBC, que mobilizou grande parte da imprensa inglesa, Marx foi eleito o filósofo mais
importante de todos os tempos.
Em O Capital, Marx realiza uma investigação profunda sobre o modo de produção capitalista e
as condições de superá-lo, rumo a uma sociedade sem classes e na qual a propriedade privada
seja extinta. Para Marx, as estruturas sociais e a própria organização do Estado estão
diretamente ligadas ao funcionamento do capitalismo. Por isso, para o pensador, a idéia de
revolução deve implicar mudanças radicais e globais, que rompam com todos os instrumentos
de dominação da burguesia.
Além disso, o retorno da produção de cada homem é uma quantia de dinheiro, que, por sua vez,
será trocada por produtos. O comércio seria uma engrenagem de trocas em que tudo ± do
trabalho ao dinheiro, das máquinas ao salário ± tem valor de mercadoria, multiplicando o
aspecto alienante.
Por outro lado, esse processo se dá à custa da concentração da propriedade por aqueles que
empregam a mão-de-obra em troca de salário. As necessidades dos trabalhadores os levarão a
buscar produtos fora de seu alcance. Isso os pressiona a querer romper com a própria alienação.
Um dos objetivos da revolução prevista por Marx é recuperar em todos os homens o pleno
desenvolvimento intelectual, físico e técnico. É nesse sentido que a educação ganha ênfase no
pensamento marxista. "A superação da alienação e da expropriação intelectual já está sendo
feita, segundo Marx", diz Leandro Konder. "O processo atual se aceleraria com a revolução
proletária para alcançar, afinal, as metas maiores na sociedade comunista."
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Tendo vivido num tempo de grandes avanços científicos, o filósofo inglês Herbert Spencer
(1820-1903) foi o principal representante do evolucionismo nas ciências humanas. Ele intuiu a
existência de regras evolucionistas na natureza antes de seu compatriota, o naturalista Charles
Darwin (1809-1882), formular a revolucionária teoria da evolução das espécies. É ele o autor da
expressão "sobrevivência do mais apto", muitas vezes atribuída a Darwin.
O filósofo aplicou à sociologia idéias que retirou das ciências naturais, criando um sistema de
pensamento muito influente a seu tempo. Suas conclusões o levaram a defender a primazia do
indivíduo perante a sociedade e o Estado, e a natureza como fonte da verdade, incluindo a
verdade moral. No campo pedagógico, Spencer fez campanha pelo ensino da ciência, combateu
a interferência do Estado na educação e afirmou que o principal objetivo da escola era a
construção do caráter (leia quadro na página 58). "Ele dizia que os conhecimentos úteis, que
serviriam para formar os homens de negócios e produzir o bemestar pessoal, eram desprezados
em favor do ensino das humanidades, que davam mais prestígio", diz a professora Maria
Angélica Lucas, da Universidade Estadual de Maringá.
Para Spencer, havia uma lei fundamental da matéria, que ele chamou de lei da persistência da
força. Segundo ela, a tendência natural de todas as coisas é, desde a primeira interação com
forças externas, sair da homogeneidade rumo à heterogeneidade e à variedade. À medida que as
forças vindas de fora continuam a agir sobre o que antes era homogêneo, maior se torna o grau
de variedade.
Baseado nessa observação, Spencer deduziu um princípio para todo desenvolvimento, que é a lei
da multiplicação dos efeitos, causada por uma força absoluta que não pode ser conhecida pelo
entendimento humano. Tratase, para Spencer, de uma lei da natureza, uma vez que ele se
recusava a levar em conta, para efeito científico, a possibilidade de forças sobrenaturais. O
filósofo, herdeiro da linhagem empirista britânica e também influenciado pelo positivismo, era
agnóstico e combatia a influência religiosa no ensino e na ciência. O próprio termo
agnosticismo, para se referir a uma postura filosófica que só admite os conhecimentos
adquiridos pela razão, foi criado por um amigo e defensor de Spencer e Darwin, o naturalista
Thomas Huxley (1825-1895).
De acordo com Spencer, o processo de desenvolvimento segue a mesma lei em todos os campos,
da formação do universo à transformação das espécies. Seu entendimento inicial da evolução
biológica se baseava na concepção errônea de que as sucessivas gerações de uma mesma espécie
herdam das anteriores as características adquiridas do ambiente. Essa era a teoria do naturalista
francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), derrubada por Darwin. Ele mostrou que o
mecanismo da evolução é a seleção natural, pela qual sobrevivem as variedades animais e
vegetais mais adaptáveis às condições ambientais. Tão logo conheceu as conclusões de Darwin,
Spencer reformulou sua teoria.
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Em cada aluno há dois seres inseparáveis, porém distintos. Um deles seria o que o sociólogo
francês Émile Durkheim (1858-1917) chamou de individual. Tal porção do sujeito ± o jovem
bruto ±, segundo ele, é formada pelos estados mentais de cada pessoa. O desenvolvimento dessa
metade do homem foi a principal função da educação até o século 19. Principalmente por meio
da psicologia, entendida então como a ciência do indivíduo, os professores tentavam construir
nos estudantes os valores e a moral. A caracterização do segundo ser foi o que deu projeção a
Durkheim. "Ele ampliou o foco conhecido até então, considerando e estimulando também o que
concebeu como o outro lado dos alunos, algo formado por um sistema de idéias que exprimem,
dentro das pessoas, a sociedade de que fazem parte", explica Dermeval Saviani, professor
emérito da Universidade Estadual de Campinas.
Dessa forma, Durkheim acreditava que a sociedade seria mais beneficiada pelo processo
educativo. Para ele, "a educação é uma socialização da jovem geração pela geração adulta". E
quanto mais eficiente for o processo, melhor será o desenvolvimento da comunidade em que a
escola esteja inserida.
Essa teoria, além de caracterizar a educação como um bem social, a relacionou pela primeira vez
às normas sociais e à cultura local, diminuindo o valor que as capacidades individuais têm na
constituição de um desenvolvimento coletivo. "Todo o passado da humanidade contribuiu para
fazer o conjunto de máximas que dirigem os diferentes modelos de educação, cada uma com as
características que lhe são próprias. As sociedades cristãs da Idade Média, por exemplo, não
teriam sobrevivido se tivessem dado ao pensamento racional o lugar que lhe é dado
atualmente", exemplificou o pensador.
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Durkheim não desenvolveu métodos pedagógicos, mas suas idéias ajudaram a compreender o
significado social do trabalho do professor, tirando a educação escolar da perspectiva
individualista, sempre limitada pelo psicologismo idealista ± influenciado pelas escolas
filosóficas alemãs de Kant (1724-1804) e Hegel (1770-1831). "Segundo Durkheim, o papel da
ação educativa é formar um cidadão que tomará parte do espaço público, não somente o
desenvolvimento individual do aluno", explica José Sérgio Fonseca de Carvalho, da Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
Nas palavras de Durkheim, "a educação tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança
estados físicos e morais que são requeridos pela sociedade política no seu conjunto". Tais
exigências, com forte influência no processo de ensino, estão relacionadas à religião, às normas
e sanções, à ação política, ao grau de desenvolvimento das ciências e até mesmo ao estado de
progresso da indústria local.
Se a educação for desligada das causas históricas, ela se tornará apenas exercício da vontade e
do desenvolvimento individual, o que para ele era incompreensível: "Como é que o indivíduo
pode pretender reconstruir, por meio do único esforço da sua reflexão privada, o que não é obra
do pensamento individual?" E ele mesmo respondeu: "O indivíduo só poderá agir na medida em
que aprender a conhecer o contexto em que está inserido, a saber quais são suas origens e as
condições de que depende. E não poderá sabê-lo sem ir à escola, começando por observar a
matéria bruta que está lá representada". Por tudo isso, Durkheim é também considerado um dos
mentores dos ideais republicanos de uma educação pública, monopolizada pelo Estado e laica,
liberta da influência do clero romano.
Durkheim sugeria que a ação educativa funcionasse de forma normativa. A criança estaria
pronta para assimilar conhecimentos ± e o professor bem preparado, dominando as
circunstâncias. "A criança deve exercitar-se a reconhecer [a autoridade] na palavra do educador
e a submeter-se ao seu ascendente; é por meio dessa condição que saberá, mais tarde, encontrá-
la na sua consciência e aí se conformar a ela", propôs ele. "Em Durkheim, a autonomia da
vontade só existe como obediência consentida", diz Heloísa Fernandes, da Faculdade de
Ciências Sociais da USP. O sociólogo francês foi criticado por Jean Piaget (1896-1980) e Pierre
Bourdieu (1930-2002), defensores da idéia de que a criança determina seus juízos e relações
apenas com estímulos de seus educadores, sem que estes exerçam, necessariamente, força
autoritária sobre ela.
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Quantas vezes você já ouviu falar na necessidade de valorizar a capacidade de pensar dos
alunos? De prepará-los para questionar a realidade? De unir teoria e prática? De problema-ti-
zar? Se você se preocupa com essas questões, já esbarrou, mesmo sem saber, em algumas das
concepções de John Dewey (1859-1952), filósofo norte-americano que influenciou educadores
de várias partes do mundo. No Brasil inspirou o movimento da Escola Nova, liderado por Anísio
Teixeira, ao colocar a atividade prática e a democracia como importantes ingredientes da
educação.
Dewey é o nome mais célebre da corrente filosófica que ficou conhecida como pragmatismo,
embora ele preferisse o nome instrumentalismo ± uma vez que, para essa escola de pensamento,
as idéias só têm importância desde que sirvam de instrumento para a resolução de problemas
reais. No campo específico da pedagogia, a teoria de Dewey se inscreve na chamada educação
progressiva. Um de seus principais objetivos é educar a criança como um todo. O que importa é
o crescimento ± físico, emocional e intelectual.
O princípio é que os alunos aprendem melhor realizando tarefas associadas aos conteúdos
ensinados. Atividades manuais e criativas ganharam destaque no currículo e as crianças
passaram a ser estimuladas a experimentar e pensar por si mesmas. Nesse contexto, a
democracia ganha peso, por ser a ordem política que permite o maior desenvolvimento dos
indivíduos, no papel de decidir em conjunto o destino do grupo a que pertencem. Dewey
defendia a democracia não só no campo institucional mas também no interior das escolas.
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Influenciado pelo empirismo, Dewey criou uma escola-laboratório ligada à universidade onde
lecionava para testar métodos pedagógicos. Ele insistia na necessidade de estreitar a relação
entre teoria e prática, pois acreditava que as hipóteses teóricas só têm sentido no dia-a-dia.
Outro ponto-chave de sua teoria é a crença de que o conhecimento é construído de consensos,
que por sua vez resultam de discussões coletivas. "O aprendizado se dá quando compartilhamos
experiências, e isso só é possível num ambiente democrático, onde não haja barreiras ao
intercâmbio de pensamento", escreveu. Por isso, a escola deve proporcionar práticas conjuntas e
promover situações de cooperação, em vez de lidar com as crianças de forma isolada.
Seu grande mérito foi ter sido um dos primeiros a chamar a atenção para a capacidade de pensar
dos alunos. Dewey acreditava que, para o sucesso do processo educativo, bastava um grupo de
pessoas se comunicando e trocando idéias, sentimentos e experiências sobre as situações
práticas do dia-a-dia. Ao mesmo tempo, reconhecia que, à medida que as sociedades foram
ficando complexas, a distância entre adultos e crianças se ampliou demais. Daí a necessidade da
escola, um espaço onde as pessoas se encontram para educar e ser educadas. O papel dessa
instituição, segundo ele, é reproduzir a comunidade em miniatura, apresentar o mundo de um
modo simplificado e organizado e, aos poucos, conduzir as crianças ao sentido e à compreensão
das coisas mais complexas. Em outras palavras, o objetivo da escola deveria ser ensinar a
criança a viver no mundo.
"Afinal, as crianças não estão, num dado momento, sendo preparadas para a vida e, em outro,
vivendo", ensinou, argumentando que o aprendizado se dá justamente quando os alunos são
colocados diante de problemas reais. A educação, na visão deweyana, é "uma constante
reconstrução da experiência, de forma a dar-lhe cada vez mais sentido e a habilitar as novas
gerações a responder aos desafios da sociedade". Educar, portanto, é mais do que reproduzir
conhecimentos. É incentivar o desejo de desenvolvimento contínuo, preparar pessoas para
transformar algo.
Poucos nomes da história da educação são tão difundidos fora dos círculos de especialistas como
Montessori. Ele é associado, com razão, à Educação Infantil, ainda que não sejam muitos os que
conhecem profundamente esse método ou sua fundadora, a italiana Maria Montessori (1870-
1952). Primeira mulher a se formar em medicina em seu país, foi também pioneira no campo
pedagógico ao dar mais ênfase à auto-educação do aluno do que ao papel do professor como
fonte de conhecimento. "Ela acreditava que a educação é uma conquista da criança, pois
percebeu que já nascemos com a capacidade de ensinar a nós mesmos, se nos forem dadas as
condições", diz Talita de Oliveira Almeida, presidente da Associação Brasileira de Educação
Montessoriana.
Individualidade, atividade e liberdade do aluno são as bases da teoria, com ênfase para o
conceito de indivíduo como, simultaneamente, sujeito e objeto do ensino. Montessori defendia
uma concepção de educação que se estende além dos limites do acúmulo de informações. O
objetivo da escola é a formação integral do jovem, uma "educação para a vida". A filosofia e os
métodos elaborados pela médica italiana procuram desenvolver o potencial criativo desde a
primeira infância, associando-o à vontade de aprender ± conceito que ela considerava inerente a
todos os seres humanos.
Maria Montessori acreditava que nem a educação nem a vida deveriam se limitar às conquistas
materiais. Os objetivos individuais mais importantes seriam: encontrar um lugar no mundo,
desenvolver um trabalho gratificante e nutrir paz e densidade interiores para ter capacidade de
amar. A educadora acreditava que esses seriam os fundamentos de quaisquer comunidades
pacíficas, constituídas de indivíduos independentes e responsáveis. A meta coletiva é vista até
hoje por seus adeptos como a finalidade maior da educação montessoriana.
Por causa dessa perspectiva desenvolvimentista, Montessori elegeu como prioridade os anos
iniciais da vida. Para ela, a criança não é um pretendente a adulto e, como tal, um ser
incompleto. Desde seu nascimento, já é um ser humano integral, o que inverte o foco da sala de
aula tradicional, centrada no professor. Não foi por acaso que as escolas que fundou se
chamavam Casa dei Bambini (Casa das crianças), evidenciando a prevalência do aluno. Foi
nessas "casas" que ela explorou duas de suas idéias principais: a educação pelos sentidos e a
educação pelo movimento.
Nas escolas montessorianas, o espaço interno era (e é) cuidadosamente preparado para permitir
aos alunos movimentos livres, facilitando o desenvolvimento da independência e da iniciativa
pessoal. Assim como o ambiente, a atividade sensorial e motora desempenha função essencial ±
ou seja, dar vazão à tendência natural que a garotada tem de tocar e manipular tudo o que está
ao seu alcance.
Maria Montessori defendia que o caminho do intelecto passa pelas mãos, porque é por meio do
movimento e do toque que as crianças exploram e decodificam o mundo ao seu redor. "A criança
ama tocar os objetos para depois poder reconhecê-los", disse certa vez. Muitos dos exercícios
desenvolvidos pela educadora ± hoje utilizados largamente na Educação Infantil ± objetivam
chamar a atenção dos alunos para as propriedades dos objetos (tamanho, forma, cor, textura,
peso, cheiro, barulho).
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Entre os pensadores da educação que, na virada do século 19 para o 20, contestaram o modelo
de escola que existia até então e propuseram uma nova concepção de ensino, o belga
OvideDecroly (1871-1932) foi provavelmente o mais combativo. Por ter sido, na infância, um
estudante indisciplinado, que não se adaptava ao autoritarismo da sala de aula nem do próprio
pai, Decroly dedicou-se apaixonadamente a experimentar uma escola centrada no aluno, e não
no professor, e que preparasse as crianças para viver em sociedade, em vez de simplesmente
fornecer a elas conhecimentos destinados a sua formação profissional.
Decroly foi um dos precursores dos métodos ativos, fundamentados na possibilidade de o aluno
conduzir o próprio aprendizado e, assim, aprender a aprender. Alguns de seus pensamentos
estão bem vivos nas salas de aula e coincidem com propostas pedagógicas difundidas
atualmente. É o caso da idéia de globalização de conhecimentos ± que inclui o chamado método
global de alfabetização ± e dos centros de interesse.
Os centros de interesse são grupos de aprendizado organizados segundo faixas de idade dos
estudantes. Eles também foram concebidos com base nas etapas da evolução neurológica
infantil e na convicção de que as crianças entram na escola dotadas de condições biológicas
suficientes para procurar e desenvolver os conhecimentos de seu interesse. "A criança tem
espírito de observação; basta não matá-lo", escreveu Decroly.
Mas, ao contrário de Montessori, cujo método previa o atendimento individual na sala de aula,
Decroly preferia o trabalho em grupos, uma vez que a escola, para ele, deveria preparar para o
convívio em sociedade. Outra diferença é que a escola montessoriana recebe as crianças em
ambientes preparados para tornar produtivos os impulsos naturais dos alunos, enquanto a
escola-oficina de Decroly trabalha com elementos reais, saídos do dia-a-dia.
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No campo da expressão, Decroly dedicou cuidadosa atenção à questão da linguagem. Para ele,
não só a palavra é meio de expressão mas também, entre outros, o corpo, o desenho, a
construção e a arte.
Na introdução de seu livro Psicologia da Criança e Pedagogia Experimental, o psicólogo diz que
o ensino precisaria se basear no conhecimento das crianças tanto quanto a horticultura se baseia
no conhecimento das plantas. "Ele achava que a educação deveria passar por uma revolução
copernicana , deixando de ter o professor como centro para gravitar em torno do aluno", diz
Regina Helena de Freitas Campos, professora de psicologia da educação da Universidade
Federal de Minas Gerais.
Claparède defendia uma abordagem funcionalista da psicologia, pela qual o ser humano é,
acima de tudo, um organismo que "funciona". Os fenômenos psicológicos, para ele, deviam ser
abordados "do ponto de vista do papel que exercem na vida, do seu lugar no padrão geral de
comportamento num determinado momento". Com base nisso, o pensamento é tido como uma
atividade biológica a serviço do organismo humano, que é acionado diante de situações com as
quais não se pode lidar por meio de comportamento reflexo. "Claparède defendia o estudo dos
processos psicológicos como funções de adaptação ao ambiente", afirma Regina Campos.
Esse raciocínio levou Claparède a formular a lei da necessidade e do interesse, ou princípio
funcional, que o tornou conhecido. Segundo ela, toda atividade desenvolvida pela criança é
sempre suscitada por uma necessidade a ser satisfeita e pela qual ela está disposta a mobilizar
energias. "O interesse é considerado a tradução psicológica da necessidade do sujeito", explica
Regina Campos. Cabe então ao professor colocar o aluno na situação adequada para que seu
interesse seja despertado e permitir que ele adquira o conhecimento que vá ao encontro do que
procura.
"É a necessidade que põe em movimento os indivíduos animais e homens e que faz vibrar
os estímulos interiores para suas atividades", escreveu Claparède. "É isso que se pode notar em
todo lugar e sempre, exceto, é verdade, nas escolas, porque estas estão fora da vida."
Claparède criticava a escola de seu tempo com os mesmos argumentos do filósofo norte-
americano John Dewey (1859-1952) com quem compartilhava a pregação por uma escola que
chamavam de "ativa", na qual a aprendizagem se dá pela resolução de problemas e dos
pedagogos do movimento da Escola Nova. Todos eles condenavam a escola tradicional por
considerar o aluno como receptáculo de informações e defendiam a prioridade da educação
sobre a instrução. "O saber não tem nenhum valor funcional e não é um fim em si mesmo",
defendia Claparède.
Surge com esses pensadores a noção de que a atividade, e não a memorização, é o vetor do
aprendizado. Daí a importância que Claparède conferia à brincadeira e ao jogo. Eles seriam
recursos na estratégia de despertar, no ambiente da escola, as necessidades e os interesses do
aluno. "Seja qual for a atividade que se queira realizar na sala de aula, deve-se encontrar um
meio de apresentá-la como um jogo", sugeriu Claparède. "Ele sustentava a idéia, totalmente
nova para sua época, de que o sujeito psicológico é um sujeito ativo", diz Regina Campos.
Segundo o psicólogo, conforme a criança cresce, a idéia de jogo vai sendo substituída pela de
trabalho, seu complemento natural.
Como os demais defensores da escola ativa, Claparède condenava o ensino de seu tempo por não
dar suficiente infra-estrutura aos educadores para uma prática profissional metódica, amparada
pela ciência e que permitisse a atualização constante. Mas ele tinha uma visão bem mais
utilitária da escola do que seus pares. Em vez de dar à criança condições de viver da melhor
forma possível a infância, ele acreditava que a escola deveria priorizar o "rendimento" do aluno,
ou seja, justificar os recursos fartos que, naquela época, os governos europeus começavam a
canalizar para a educação. A escola, segundo Claparède, deveria formar bons quadros
profissionais para servir a uma sociedade que investia nessa formação. O cientista defendia até
uma atenção diferenciada para os estudantes que se revelassem mais aptos, de tal forma que
pudessem ser submetidos a exigências maiores em classes constituídas apenas de "bons alunos".
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Falar que a escola deve proporcionar formação integral (intelectual, afetiva e social) às crianças
é comum hoje em dia. No início do século passado, porém, essa idéia foi uma verdadeira
revolução no ensino. Uma revolução comandada por um médico, psicólogo e filósofo francês
chamado Henri Wallon (1879-1962). Sua teoria pedagógica, que diz que o desenvolvimento
intelectual envolve muito mais do que um simples cérebro, abalou as convicções numa época em
que memória e erudição eram o máximo em termos de construção do conhecimento.
Wallon foi o primeiro a levar não só o corpo da criança mas também suas emoções para dentro
da sala de aula. Fundamentou suas idéias em quatro elementos básicos que se comunicam o
tempo todo: a afetividade, o movimento, a inteligência e a formação do eu como pessoa.
Militante apaixonado (tanto na política como na educação), dizia que reprovar é sinônimo de
expulsar, negar, excluir. Ou seja, "a própria negação do ensino".
As emoções, para Wallon, têm papel preponderante no desenvolvimento da pessoa. É por meio
delas que o aluno exterioriza seus desejos e suas vontades. Em geral são manifestações que
expressam um universo importante e perceptível, mas pouco estimulado pelos modelos
tradicionais de ensino.
As transformações fisiológicas em uma criança (ou, nas palavras de Wallon, em seu sistema
neurovegetativo) revelam traços importantes de caráter e personalidade. "A emoção é altamente
orgânica, altera a respiração, os batimentos cardíacos e até o tônus muscular, tem momentos de
tensão e distensão que ajudam o ser humano a se conhecer", explica Heloysa Dantas, da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), estudiosa da obra de Wallon há 20
anos. Segundo ela, a raiva, a alegria, o medo, a tristeza e os sentimentos mais profundos ganham
função relevante na relação da criança com o meio. "A emoção causa impacto no outro e tende a
se propagar no meio social", completa a pedagoga Izabel Galvão, também da USP. Ela diz que a
afetividade é um dos principais elementos do desenvolvimento humano.
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Nesse conflito entre situações antagônicas ganha sempre a criança. É na solução dos confrontos
que a inteligência evolui. Wallon diz que o sincretismo (mistura de idéias num mesmo plano),
bastante comum nessa fase, é fator determinante para o desenvolvimento intelectual. Daí se
estabelece um ciclo constante de boas e novas descobertas.
V
Venerado pelos amantes da liberdade irrestrita, abominado pelos partidários de uma educação
tradicional e respeitado pelos que reconhecem a importância de flexibilizar a hierarquia escolar.
Assim o educador, escritor e jornalista Alexander Sutherland Neill (1883-1973) ± fundador da
SummerhillSchool, na Inglaterra ± viveu boa parte de seus 90 anos. Sua escola tornou-se ícone
das pedagogias alternativas ao concretizar um sistema educativo em que o importante é a
criança ter liberdade para escolher e decidir o que aprender e, com base nisso, desenvolver-se no
próprio ritmo.
A época em que ele viveu justifica grande parte de suas idéias. "Depois da Primeira Guerra
Mundial, a humanidade sentiu-se desapontada consigo mesma ao ver as grandes invenções
utilizadas para a destruição", conta Luiz Fernando Sangenis, professor de filosofia da educação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutrinas totalitárias como o fascismo, o nazismo e
o comunismo se estabeleceram, fazendo com que diversos pensadores começassem a clamar por
liberdade de pensamento e de ação.
"Nossa cultura não tem tido grande sucesso. Nossa educação, nossa política, nossa economia
levam à guerra. Nossa medicina não põe fim às moléstias. Nossa religião não aboliu a usura, o
roubo... Os progressos da época são progressos da mecânica em rádio e televisão, em eletrônica,
em aviões a jato. Ameaçam-nos novas guerras mundiais, pois a consciência social do mundo
ainda é primitiva", escreveu Neill no livro Liberdade sem Medo.
Disposto a construir um mundo melhor por meio da escola, Neill tornou-se um dos mais
importantes educadores das décadas de 1960 e 1970. Seu respeito pela infância e sua coragem
em manter uma posição de independência fazem com que até hoje ele mereça ser revisto e
estudado.
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Homem prático e pouco afeito a teorias, Neill desenvolveu suas idéias pedagógicas baseando-se
no filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que acreditava na bondade inata do
homem. As descobertas no campo da psicologia no início do século 20 também exerceram forte
influência sobre ele, com destaque para os estudos dos psicanalistas austríacos Sigmund Freud
(1856-1939) e Wilhelm Reich (1897-1957), com quem fazia terapia. De acordo com Neill, a
educação deveria trabalhar basicamente com a dimensão emocional do aluno, para que a
sensibilidade ultrapassasse sempre a racionalidade. Ele acreditava que a convivência com os
pais, com sua natural superproteção, impedia os filhos de desenvolver a segurança suficiente
para reconhecer o mundo, seja de forma intelectual, emocional ou artística. Por isso, os alunos
tinham de morar em Summerhill e recebiam a visita dos pais esporadicamente.
Neill queria que seu método fosse utilizado como remédio para a infelicidade causada pela
repressão e pelo sistema de modelos imposto pela sociedade de consumo, pela família e pela
educação tradicional. Ter sucesso era, em sua opinião, ser capaz de trabalhar com alegria e viver
positivamente. É célebre sua afirmação: "Gostaria antes de ver a escola produzir um varredor de
ruas feliz do que um erudito neurótico". Neill acreditava que as crianças eram naturalmente
sensatas, realistas, boas e criativas. Quando educadas sem interferências dos mais velhos,
seriam capazes de se desenvolver de acordo com sua capacidade, seus limites e seus interesses,
sem nenhum tipo de trauma. "Toda e qualquer interferência por parte dos adultos só as torna
robôs", afirmava. As intervenções, segundo ele, roubavam a alegria da descoberta e a
autoconfiança necessária para a superação de obstáculos, causando sentimentos de
inferioridade e dependência, duas fortes barreiras para a felicidade completa.
Imagine um educador que tem como missão dirigir um colégio interno (na zona rural) cheio de
crianças e jovens infratores, muitos órfãos, que mal sabiam ler e escrever, numa época em que o
modelo de escola e de sociedade estavam em xeque. Como educar? Por onde começar? Anton
SemionovichMakarenko, professor na Ucrânia, país do leste europeu que era parte da União
Soviética na época, foi um dos homens que ajudaram a responder a essas questões e a repensar
o papel da escola e da família na recém-criada sociedade comunista, no início do século 20. Sua
pedagogia tornou-se conhecida por transformar centenas de crianças e adolescentes
marginalizados em cidadãos.
O método criado por ele era uma novidade porque organizava a escola como coletividade e
levava em conta os sentimentos dos alunos na busca pela felicidade aliás, um conceito que só
teria sentido se fosse para todos. O que importava eram os interesses da comunidade e a criança
tinha privilégios impensáveis na época, como opinar e discutir suas necessidades no universo
escolar. "Foi a primeira vez que a infância foi encarada com respeito e direitos", diz Cecília da
Silveira Luedemann, educadora e autora do livro Anton Makarenko, Vida e Obra A Pedagogia na
Revolução.
Mais que educar, com rigidez e disciplina, ele quis formar personalidades, criar pessoas
conscientes de seu papel político, cultas, sadias e que se tornassem trabalhadores preocupados
com o bem-estar do grupo, ou seja, solidários. Na sociedade socialista de então, o trabalho era
considerado essencial para a formação do homem, não apenas um valor econômico. Makarenko
aprendeu tudo na prática, na base de acertos e erros, primeiro na escola da Colônia Gorki e, em
seguida, na Comuna Dzerjinski. Cada etapa de suas experiências foi registrada em relatórios,
textos e livros. As dificuldades e os desafios têm muitos paralelos com os dos professores de
hoje. A saída encontrada há quase um século correspondia às necessidades da época, mas
servem de reflexão para buscar soluções atuais e entender a educação no mundo.
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A idéia do coletivo surge como respeito a cada aluno, oposta à visão de massificação que
despersonaliza a criança. O grupo estimula o desenvolvimento individual. Como a instituição
familiar (e tudo o mais na então União Soviética) estava em crise, essa foi a alternativa
encontrada pelo educador para proteger a infância de seu país. O sentimento de grupo não era
uma idéia abstrata. Tinha raízes nos ideais revolucionários e Makarenko soube como
transformá-la em algo concreto. A colônia era auto-suficiente e a sobrevivência de cada um
dependia do trabalho de todos. Caso contrário, não haveria comida nem condições de habitação
aceitáveis.
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Para que a vida em comunidade desse certo, era essencial que cada aluno tivesse claras suas
responsabilidades. "Nunca mais ladrões nem mendigos: somos os dirigentes." Makarenko era
conhecido como um educador aberto, mas rígido e duro. Ele acreditava que o planejamento e o
cumprimento das metas estabelecidas por todos só se concretizariam com uma direção muito
firme. Por isso, os alunos tinham consciência de que a disciplina não era um fim, mas um meio
para o sucesso da vida na escola. O descumprimento de uma norma podia ser punido
severamente, desde que alunos e professores assim o desejassem, depois de muita discussão.
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Makarenko publicou em 1938, incompleto, o Livro dos Pais. O objetivo era mostrar a
importância da participação da família na escola e como educar as crianças em tempos difíceis.
Alguns estudantes moravam nas escolas dirigidas por ele. O educador ucraniano fazia questão
da presença dos pais, que eram estimulados a participar de atividades culturais e recreativas. A
escola tinha o papel de orientar a família, que deveria encará-la como um órgão normativo. Pais
muito "melosos" ou ausentes seriam incapazes de educar uma pessoa forte, madura e
inteligente. "O carinho, como o jogo e a comida, exige certa dosagem", dizia.
Makarenko queria formar crianças capazes de dirigir a própria vida no presente e a vida do país
no futuro. Exercícios físicos, trabalhos manuais, recreação, excursões, aulas de música e idas ao
teatro faziam parte da rotina. A escola tinha que permitir o contato com a sociedade e com a
natureza, ou seja, ser um lugar para o jovem viver a realidade concreta e participar das decisões
sociais. O estudo do meio já era comum na escola de Makarenko, ainda que sem esse nome. Na
Colônia Gorki, meninos e meninas eram divididos em grupos de dez, de diferentes faixas etárias.
Um representante de cada turma participava de assembléias e reuniões em que se discutiam as
situações da escola: um objeto roubado, a melhoria do prédio, a compra de materiais, a limpeza
dos banheiros, os problemas particulares. Sexo e namoro também tinham espaço nas reuniões.
Normas e decisões não podiam ser predeterminadas. O primeiro e o último voto eram sempre
dos alunos.
Co-fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci (1891-1937) foi uma das
referências essenciais do pensamento de esquerda no século 20. Embora comprometido com um
projeto político que deveria culminar com uma revolução proletária, Gramsci se distinguia de
seus pares por desacreditar de uma tomada do poder que não fosse precedida por mudanças de
mentalidade. Para ele, os agentes principais dessas mudanças seriam os intelectuais e um dos
seus instrumentos mais importantes, a escola.
Alguns conceitos criados ou valorizados por Gramsci hoje são de uso corrente em várias partes
do mundo. Um deles é o de cidadania. Foi ele quem trouxe à discussão pedagógica a conquista
da cidadania como um objetivo da escola. Ela deveria ser orientada para o que o pensador
chamou de elevação cultural das massas, ou seja, livrá-las de uma visão de mundo que, por se
assentar em preconceitos e tabus, predispõe à interiorização acrítica da ideologia das classes
dominantes.
Hegemonia significa, para Gramsci, a relação de domínio de uma classe social sobre o conjunto
da sociedade. O domínio se caracteriza por dois elementos: força e consenso. A força é exercida
pelas instituições políticas e jurídicas e pelo controle do aparato policial-militar. O consenso diz
respeito sobretudo à cultura: trata-se de uma liderança ideológica conquistada entre a maioria
da sociedade e formada por um conjunto de valores morais e regras de comportamento.
Segundo Gramsci, "toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica", isto
é, de aprendizado.
A hegemonia é obtida, segundo Gramsci, por meio de uma luta "de direções contrastantes,
primeiro no campo da ética, depois no da política". Ou seja, é necessário primeiro conquistar as
mentes, depois o poder. Isso nada tem a ver com propaganda ou manipulação ideológica. Para
Gramsci, a função do intelectual (e da escola) é mediar uma tomada de consciência (do aluno,
por exemplo) que passa pelo autoconhecimento individual e implica reconhecer, nas palavras do
pensador, "o próprio valor histórico". "Não se trata de um doutrinamento abstrato", diz Paolo
Nosella, professor de filosofia da educação da Universidade Federal de São Carlos.
Na escola prevista por Gramsci, as classes desfavorecidas poderiam se inteirar dos códigos
dominantes, a começar pela alfabetização. A construção de uma visão de mundo que desse
acesso à condição de cidadão teria a finalidade inicial de substituir o que Gramsci chama de
senso comum ± conceitos desagregados, vindos de fora e impregnados de equívocos decorrentes
da religião e do folclore. Com o termo folclore, o pensador designa tradições que perderam o
significado mas continuam se perpetuando. Para que o aluno adquira criticidade, Gramsci
defende para os primeiros anos de escola um currículo que lhe apresente noções instrumentais
(ler, escrever, fazer contas, conhecer os conceitos científicos) e seus direitos e deveres de
cidadão.
Muitos dos conceitos e atividades escolares idealizados pelo pedagogo francês CélestinFreinet
(1896-1966) se tornaram tão difundidos que há educadores que os utilizam sem nunca ter
ouvido falar no autor. É o caso das aulas-passeio (ou estudos de campo), dos cantinhos
pedagógicos e da troca de correspondência entre escolas. Não é necessário conhecer a fundo a
obra de Freinet para fazer bom uso desses recursos, mas entender a teoria que motivou sua
criação deverá possibilitar sua aplicação integrada e torná-los mais férteis.
Freinet se inscreve, historicamente, entre os educadores identificados com a corrente da Escola
Nova, que, nas primeiras décadas do século 20, se insurgiu contra o ensino
tradicionalista, centrado no professor e na cultura enciclopédica, propondo em seu lugar uma
educação ativa em torno do aluno. O pedagogo francês somou ao ideário dos escolanovistas uma
visão marxista e popular tanto da organização da rede de ensino como do aprendizado em si.
"Freinet sempre acreditou que é preciso transformar a escola por dentro, pois é exatamente ali
que se manifestam as contradições sociais", diz Rosa Maria Whitaker Sampaio, coordenadora do
pólo São Paulo da Federação Internacional dos Movimentos da Escola Moderna (Fimem), que
congrega seguidores de Freinet.
Na teoria do educador francês, o trabalho e a cooperação vêm em primeiro plano, a ponto de ele
defender, em contraste com outros pedagogos, incluindo os da Escola Nova, que "não é o jogo
que é natural da criança, mas sim o trabalho". Seu objetivo declarado é criar uma "escola do
povo".
Outra função primordial do professor, segundo Freinet, é colaborar ao máximo para o êxito de
todos os alunos. Diferentemente da maioria dos pedagogos modernos, o educador francês não
via valor didático no erro. Ele acreditava que o fracasso desequilibra e desmotiva o aluno, por
isso o professor deve ajudá-lo a superar o erro. "Freinet descobriu que a forma mais profunda de
aprendizado é o envolvimento afetivo", diz Rosa Sampaio.
Esse aspecto muito particular que atribuía ao aprendizado de cada criança é a razão de Freinet
não ter criado um método pedagógico rígido, nem uma teoria propriamente científica. Mesmo
assim, seu entendimento sobre os mecanismos do aprendizado mereceu elogios do biólogo suíço
Jean Piaget (1896-1980), cuja teoria do conhecimento se baseou em minuciosa observação
científica.
Freinet dedicou a vida a elaborar técnicas de ensino que funcionam como canais da livre
expressão e da atividade cooperativa, com o objetivo de criar uma nova educação. Lançou-se a
essa tarefa por considerar a escola de seu tempo uma instituição alienada da vida e da família,
feita de dogmas e de acumulação estéril de informação ± e, além disso, em geral a serviço
apenas das elites. "Freinet colocou professor e alunos no mesmo nível de igualdade e
camaradagem", diz Rosa Sampaio. O educador não se opunha, porém, às aulas teóricas.
A primeira das novas técnicas didáticas desenvolvidas por Freinet foi a aula-passeio, que nasceu
justamente da observação de que as crianças para quem lecionava, que se comportavam tão
vividamente quando ao ar livre, pareciam desinteressadas dentro da escola. Uma segunda
criação célebre, a imprensa na escola, respondeu à necessidade de eliminar a distância entre
alunos e professores e de trazer para a classe a vida "lá fora". "É necessário fazer nossos filhos
viver em república desde a escola", escreveu Freinet.
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Jean Piaget (1896-1980) foi o nome mais influente no campo da educação durante a segunda
metade do século 20, a ponto de quase se tornar sinônimo de pedagogia. Não existe, entretanto,
um método Piaget, como ele próprio gostava de frisar. Ele nunca atuou como pedagogo. Antes
de mais nada, Piaget foi biólogo e dedicou a vida a submeter à observação científica rigorosa o
processo de aquisição de conhecimento pelo ser humano, particularmente a criança.
"A grande contribuição de Piaget foi estudar o raciocínio lógico-matemático, que é fundamental
na escola mas não pode ser ensinado, dependendo de uma estrutura de conhecimento da
criança", diz Lino de Macedo, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
As descobertas de Piaget tiveram grande impacto na pedagogia, mas, de certa forma,
demonstraram que a transmissão de conhecimentos é uma possibilidade limitada. Por um lado,
não se pode fazer uma criança aprender o que ela ainda não tem condições de absorver. Por
outro, mesmo tendo essas condições, não vai se interessar a não ser por conteúdos que lhe
façam falta em termos cognitivos.
Isso porque, para o cientista suíço, o conhecimento se dá por descobertas que a própria criança
faz - um mecanismo que outros pensadores antes dele já haviam intuído, mas que ele submeteu
à comprovação na prática. Vem de Piaget a idéia de que o aprendizado é construído pelo aluno e
é sua teoria que inaugura a corrente construtivista.
Educar, para Piaget, é "provocar a atividade" - isto é, estimular a procura do conhecimento. "O
professor não deve pensar no que a criança é, mas no que ela pode se tornar", diz Lino de
Macedo.
Com Piaget, ficou claro que as crianças não raciocinam como os adultos e apenas gradualmente
se inserem nas regras, valores e símbolos da maturidade psicológica. Essa inserção se dá
mediante dois mecanismos: assimilação e acomodação.
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O estágio pré-operacional vai dos 2 aos 7 anos e se caracteriza pelo surgimento da capacidade de
dominar a linguagem e a representação do mundo por meio de símbolos. A criança continua
egocêntrica e ainda não é capaz, moralmente, de se colocar no lugar de outra pessoa.
O estágio das operações concretas, dos 7 aos 11 ou 12 anos, tem como marca a aquisição da
noção de reversibilidade das ações. Surge a lógica nos processos mentais e a
habilidade de discriminar os objetos por similaridades e diferenças. A criança já pode dominar
conceitos de tempo e número.
Por volta dos 12 anos começa o estágio das operações formais. Essa fase marca a entrada na
idade adulta, em termos cognitivos. O adolescente passa a ter o domínio do pensamento lógico e
dedutivo, o que o habilita à experimentação mental. Isso implica, entre outras coisas, relacionar
conceitos abstratos e raciocinar sobre hipóteses.
O psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934) morreu há 74 anos, mas sua obra ainda está
em pleno processo de descoberta e debate em vários pontos do mundo, incluindo o Brasil. "Ele
foi um pensador complexo e tocou em muitos pontos nevrálgicos da pedagogia contemporânea",
diz Teresa Rego, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Ela
ressalta, como exemplo, os pontos de contato entre os estudos de Vygotsky sobre a linguagem
escrita e o trabalho da argentina Emilia Ferreiro, a mais influente dos educadores vivos.
A parte mais conhecida da extensa obra produzida por Vygotsky em seu curto tempo de vida
converge para o tema da criação da cultura. Aos educadores interessa em particular
os estudos sobre desenvolvimento intelectual. Vygotsky atribuía um papel preponderante às
relações sociais nesse processo, tanto que a corrente pedagógica que se originou de seu
pensamento é chamada de socioconstrutivismo ou sociointeracionismo.
Surge da ênfase no social uma oposição teórica em relação ao biólogo suíço Jean Piaget (1896-
1980), que também se dedicou ao tema da evolução da capacidade de aquisição de
conhecimento pelo ser humano e chegou a conclusões que atribuem bem mais importância aos
processos internos do que aos interpessoais. Vygotsky, que, embora discordasse de Piaget,
admirava seu trabalho, publicou críticas ao suíço em 1932. Piaget só tomaria contato com elas
nos anos 1960 e lamentou não ter podido conhecer Vygotsky em vida. Muitos estudiosos
acreditam que é possível conciliar as obras dos dois.
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Considerado o principal idealizador das grandes mudanças que marcaram a educação brasileira
no século 20, Anísio Teixeira (1900-1971) foi pioneiro na implantação de escolas públicas de
todos os níveis, que refletiam seu objetivo de oferecer educação gratuita para todos. Como
teórico da educação, Anísio não se preocupava em defender apenas suas idéias. Muitas delas
eram inspiradas na filosofia de John Dewey (1852-1952), de quem foi aluno ao fazer um curso
de pós-graduação nos Estados Unidos.
As novas responsabilidades da escola eram, portanto, educar em vez de instruir; formar homens
livres em vez de homens dóceis; preparar para um futuro incerto em vez de transmitir um
passado claro; e ensinar a viver com mais inteligência, mais tolerância e mais felicidade. Para
isso, seria preciso reformar a escola, começando por dar a ela uma nova visão da psicologia
infantil.
O próprio ato de aprender, dizia Anísio, durante muito tempo significou simples memorização;
depois seu sentido passou a incluir a compreensão e a expressão do que fora ensinado; por
último, envolveu algo mais: ganhar um modo de agir. Só aprendemos quando assimilamos uma
coisa de tal jeito que, chegado o momento oportuno, sabemos agir de acordo com o aprendido.
Para o pensador, não se aprendem apenas idéias ou fatos mas também atitudes, ideais e senso
crítico ± desde que a escola disponha de condições para exercitá-los. Assim, uma
criança só pode praticar a bondade em uma escola onde haja condições reais para desenvolver o
sentimento. A nova psicologia da aprendizagem obriga a escola a se transformar num local onde
se vive e não em um centro preparatório para a vida. Como não aprendemos tudo o que
praticamos, e sim aquilo que nos dá satisfação, o interesse do aluno deve orientar o que ele vai
aprender. Portanto, é preciso que ele escolha suas atividades.
Por tudo isso, na escola progressiva as matérias escolares ± Matemática, Ciências, Artes etc. ±
são trabalhadas dentro de uma atividade escolhida e projetada pelos alunos, fornecendo a eles
formas de desenvolver sua personalidade no meio em que vivem. Nesse tipo de escola, estudo é
o esforço para resolver um problema ou executar um projeto, e ensinar é guiar o aluno em uma
atividade.
Quanto à disciplina, Anísio afirmava que o homem educado é aquele que sabe ir e vir com
segurança, pensar com clareza, querer com firmeza e agir com tenacidade. Numa escola
democrática, mestres e alunos devem trabalhar em liberdade, desenvolvendo a confiança
mútua, e o professor deve incentivar o aluno a pensar e julgar por si mesmo. "Estamos passando
de uma civilização baseada em uma autoridade externa para uma baseada na autoridade interna
de cada um de nós", diz ele em seu livro Pequena Introdução à Filosofia da Educação.
Como preparar o professor para essa tarefa hercúlea da escola de hoje, ocupada por tantos
alunos que não se contentam em aprender apenas as técnicas e conhecimentos mais simples
mas também as últimas conquistas da ciência e da cultura? O que fazer quando eles exigem
informações até mesmo sobre tendências indefinidas e problemas sem solução? Para responder
a tantas questões, os educadores do mundo todo precisarão de novos elementos de cultura, de
estudos e de recursos, propôs o pensador, que na prática instalou novos cursos para professores.
Só assim, dizia, os mestres tentarão renovar a humanidade para "a grande aventura de
democracia que ainda não foi tentada".
As idéias do norte-americano Carl Rogers (1902-1987) para a educação são uma extensão da
teoria que desenvolveu como psicólogo. Nos dois campos sua contribuição foi muito original,
opondo-se às concepções e práticas dominantes nos consultórios e nas escolas. A terapia
rogeriana se define como não-diretiva e centrada no cliente (palavra que Rogers preferia a
paciente), porque cabe a ele a responsabilidade pela condução e pelo sucesso do tratamento.
Para Rogers, o terapeuta apenas facilita o processo. Em seu ideal de ensino, o papel do professor
se assemelha ao do terapeuta e o do aluno ao do cliente. Isso quer dizer que a tarefa do professor
é facilitar o aprendizado, que o aluno conduz a seu modo.
A teoria rogeriana ± que tem como característica um extenso repertório de expressões próprias
± surgiu como uma terceira via entre os dois campos predominantes da psicologia em meados
do século 20. De um lado havia a psicanálise, criada por Sigmund Freud (1856-1939), com sua
prática balizada pela ortodoxia, e, de outro, o behaviorismo, que na época tinha B. F. Skinner
(1904-1990) como expoente e se caracteriza pela submissão à biologia. A corrente de Rogers
ficou conhecida como humanista, porque, em acentuado contraste com a teoria freudiana, ela se
baseia numa visão otimista do homem.
Para Rogers, a sanidade mental e o desenvolvimento pleno das potencialidades pessoais são
tendências naturais da evolução humana. Removidos eventuais obstáculos nesse processo, as
pessoas retomam a progressão construtiva. "Ele chamou a atenção para a formação da pessoa, a
importância de viver em busca de uma harmonia consigo mesma e com o entorno social", diz
Ana Gracinda Queluz, pró-reitora adjunta de pesquisa e pós-graduação da Universidade Cidade
de São Paulo.
Rogers sustentava que o organismo humano ± assim como todos os outros, incluindo o das
plantas ± possui uma tendência à atualização, que tem como fim a autonomia. Na teoria
rogeriana, essa é a única força motriz dos seres vivos. No caso particular dos seres humanos,
segundo Rogers, o processo constante de atualização gerou a sociedade e a cultura, que se
tornam forças independentes dos indivíduos e podem trabalhar contra o desenvolvimento de
suas potencialidades.
V
Uma crença básica de Rogers é que o organismo humano sabe o que é melhor para ele e para
isso conta com sentidos aprimorados ao longo da evolução da espécie. Tato, olfato e paladar
reconhecem como prazeroso (sabor e cheiro agradáveis, por exemplo) o que é saudável.
Igualmente, nossos instintos estão prontos a valorizar a "consideração positiva", conceito
rogeriano que engloba atitudes como cuidado, carinho, atenção etc.
Até aqui, tudo bem ± as pessoas sabem o que é bom para elas e podem encontrar aquilo de que
necessitam na natureza e na família. O problema, segundo Rogers, é que a sociedade e a cultura
desenvolvem mecanismos que contrariam essas relações potencialmente harmoniosas. Entre os
mais nocivos está a "valorização condicional", o hábito que a família, a escola e outras
instituições sociais têm de apenas atender às necessidades do indivíduo se ele se provar
merecedor. Decorrem disso a "consideração positiva condicional" ± cujo exemplo típico é o
carinho dos pais dado como recompensa por bom comportamento ± e a "autoconsideração
positiva condicional" ± originada pela tendência que as pessoas têm a absorver os valores
culturais e utilizá-los como parâmetro para a valorização de si mesmas.
Do conflito entre o indivíduo ("sou") e o que se exige dele ("devo ser") nasce o que Rogers chama
de incongruência, que gera sofrimento. Esse é o processo que, para ele, define neurose. Ao se ver
pressionada a corresponder às expectativas sociais, a pessoa se vê numa situação de ameaça, o
que a leva a desenvolver defesas psicológicas.
Diante disso, o objetivo do terapeuta e do professor é permitir que seus clientes e alunos se
tornem pessoas "plenamente funcionais", ou seja, saudáveis. As principais marcas desse estado
de funcionalidade são a abertura a novas experiências, capacidade de viver o aqui e o agora,
confiança nos próprios desejos e intuições, liberdade e responsabilidade de agir e
disponibilidade para criar.
Já que se tornar uma pessoa saudável é, basicamente, uma questão de ouvir a si mesma e
satisfazer os próprios desejos (ou interesses), as melhores qualidades de um terapeuta ou de um
professor são saber facilitar esses processos e interferir o menos possível. É esse o significado do
termo "não-diretivo", a marca registrada do rogerianismo. Para que o terapeuta ou o professor
seja capaz de exercer tal papel, três qualidades são requeridas: congruência ± ser autêntico com
o cliente/aluno; empatia ± compreender seus sentimentos; e respeito ± "consideração positiva
incondicional", no jargão rogeriano. "O difícil na teoria rogeriana é mudar a postura diante do
outro e não se surpreender com o que é humano", diz Ana Gracinda. Em grande parte, para
Rogers, a chave do ensino produtivo é uma questão de ética.
Nos usos que projetou para suas conclusões científicas ± em especial na educação ±, Skinner
pregou a eficiência do reforço positivo, sendo, em princípio, contrário a punições e esquemas
repressivos. Ele escreveu um romance, Walden II, que projeta uma sociedade considerada por
ele ideal, em que um amplo planejamento global, incumbido de aplicar os princípios do reforço
e do condicionamento, garantiria uma ordem harmônica, pacífica e igualitária. Num de seus
livros mais conhecidos, Além da Liberdade e da Dignidade, ele rejeitou noções como a do livre-
arbítrio e defendeu que todo comportamento é determinado pelo ambiente, embora a relação do
indivíduo com o meio seja de interação, e não passiva. Para Skinner, a cultura humana deveria
rever conceitos como os que ele enuncia no título da obra
Hannah Arendt (1906-1975) foi uma das principais pensadoras da política no século 20, mas sua
obra inspira estudos em outras áreas, entre elas a educação. Poucos intelectuais atuaram tão
diretamente em seu tempo como Arendt, que foi vítima, ainda jovem, da perseguição nazista em
sua Alemanha natal.
É no primeiro dos dois textos que Arendt apresenta, com a habitual veemência e coragem, uma
visão bastante crítica do tipo de educação considerada "moderna", naquela época e também
hoje. Em poucas páginas, ela questiona em profundidade alguns dos conceitos pedagógicos mais
difundidos desde fins do século 19, e que se originam do movimento da Escola Nova e da
concepção do trabalho educativo como um aprendizado "para a vida".
"A função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver",
escreve Arendt. Sua argumentação é a favor da autoridade na sala de aula e sua visão educativa é
assumidamente conservadora. "Isso não quer dizer que ela defenda um professor autoritário",
diz Maria de Fátima Simões Francisco, professora de filosofia da educação da Universidade de
São Paulo. Nem se trata de ser favorável à escola como um agente da manutenção da ordem
estabelecida. Ao contrário, Arendt acreditava que o aluno deve ser apresentado ao mundo e
estimulado a mudá-lo.
Y
Arendt defendia o conservadorismo na educação, mas não na política. Para ela, o campo político
deveria se renovar constantemente, movido pelos objetivos da igualdade e da liberdade civil. Ao
reivindicar a total separação entre política e educação, Arendt rejeita linhas de pensamento que
partem de filósofos como Platão (427-347 a.C.) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Segundo a pensadora, a política é uma área que pertence apenas aos adultos, agindo como
iguais ± igualdade que não poderia existir entre crianças e adultos. Ela critica a educação
moderna por ter posto em prática "o absurdo tratamento das crianças como uma minoria
oprimida carente de libertação". "Hannah Arendt defende que cabe aos adultos conduzir as
crianças", diz Maria de Fátima Simões Francisco.
A preocupação com a perda da "tradição", definida como "o fio que nos guia com segurança
através dos vastos domínios do passado", foi o que levou Arendt a escrever sobre educação. A
relação entre crianças e adultos não pode, segundo ela, ficar restrita "à ciência específica da
pedagogia", já que se trata de preservar o patrimônio global da humanidade. "Está presente a
idéia de que o planeta não pertence só a nós que vivemos nele agora, mas a todos que já
estiveram aqui", diz Maria de Fátima.
"A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a
responsabilidade por ele", escreve Arendt, acrescentando que "a educação é, também, onde
decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e
abandoná-las a seus próprios recursos".
A obra mais difundida de Hannah Arendt origina-se de uma reportagem que lhe foi
encomendada pela revista New Yorker. No ano de 1961, ela foi enviada a Israel para cobrir o
julgamento do alto burocrata nazista Adolf Eichmann. No livro Eichmann em Jerusalém, a
pensadora cunhou a expressão que a celebrizou: "a banalidade do mal", em referência aos
códigos aparentemente lógicos e até sensatos com que o totalitarismo se propaga e ganha poder.
Florestan Fernandes (1920-1995) foi um dos mais influentes sociólogos brasileiros, mas muitos
o chamavam de educador sem saber que isso o incomodava em sua modéstia. O equívoco tinha
razão de ser. Vários escritos de Florestan tiveram a educação como tema e sua atuação na
Câmara dos Deputados, já no fim da vida, se concentrou na área do ensino. Além disso, a
preocupação com a instrução era um desdobramento natural de sua obra de sociólogo. "Em
nossa época, o cientista precisa tomar consciência da utilidade social e do destino prático
reservado a suas descobertas", escreveu.
Como o italiano Antonio Gramsci (1891-1937), Florestan militava em favor do socialismo e não
separava o trabalho teórico de suas convicções ideológicas. Ainda que com abordagens
diferentes, ambos acreditavam que a educação e a ciência têm, potencialmente, uma grande
capacidade transformadora. Por isso, deveriam ser instrumentos de elevação cultural e
desenvolvimento social das camadas mais pobres da população. "Um povo educado não
aceitaria as condições de miséria e desemprego como as que temos", disse ele em entrevista a
NOVA ESCOLA em 1991. "A escola de qualidade, para Florestan, não era redentora da
humanidade, mas um instrumento fundamental para a emancipação dos trabalhadores", diz
Ana Heckert, docente da Universidade Federal do Espírito Santo.
Florestan tomou para si a tarefa de romper com a tradição de pseudoneutralidade das ciências
humanas e reconstruir uma análise do Brasil abertamente comprometida com a mudança social.
Segundo sua análise, uma classe burguesa controlava os mecanismos sociais no Brasil, como
acontecia em quase todos os países do Ocidente. No entanto ± por causa de fatores históricos
como a escravidão tardia, a herança colonial e a dependência em relação ao capital externo ±, a
burguesia brasileira era mais resistente às mudanças sociais do que as classes dominantes dos
países desenvolvidos.
Segundo Florestan, a revolução burguesa, cujo exemplo emblemático é a de 1789 na França, não
teria se completado no Brasil. Enquanto os revolucionários franceses do século 18 exigiam
ensino público e universal, as elites brasileiras do século 20 ainda queriam controlar a educação
para manter a maioria da população culturalmente alienada e afastada das decisões políticas.
Por isso, uma das principais lutas de Florestan foi pela manutenção e pela ampliação do ensino
público (leia quadro na página 109). "Ele acreditava que o sucateamento da escola, com
péssimas condições de trabalho e estudo, fazia parte das tentativas de sufocar a democratização
da sociedade por meio da restrição do acesso à cultura e à pesquisa", diz a pesquisadora Ana
Heckert.
O Brasil, dizia o sociólogo, era atrasado também em relação ao que ele chamava de cultura
cívica, ou seja, um compromisso em torno do mínimo interesse comum. Para Florestan, não
havia tal cultura no Brasil por dois motivos: ela estimularia as massas populares a participar
politicamente e ao mesmo tempo tiraria das classes dominantes a prerrogativa de fazer tudo o
que quisessem sem precisar dar satisfações ao conjunto da população.
Florestan bateu-se também pela democratização do ensino, entendendo a democracia como
liberdade de educar e direito irrestrito de estudar. Em seus dois mandatos de deputado federal,
nos anos 1980 e 1990, o sociólogo esteve envolvido em todos os debates mais importantes que
ocorreram no Congresso no campo da educação. Participou ativamente da discussão, elaboração
e tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que só seria aprovada em
1996, um ano depois de sua morte.
Florestan defendia propostas mais radicais do que as que acabaram incluídas na lei aprovada,
cujo mentor foi o antropólogo e senador Darcy Ribeiro (1922-1997). O sociólogo propunha que a
lei incluísse o princípio de escola única, que abrangesse Educação Infantil, Ensino Fundamental
e Ensino Médio, conjugada com educação profissional, e possibilitasse uma escolaridade maior
aos setores carentes da população. Florestan também pretendia, como meio de dar autonomia
às escolas, que os diretores fossem eleitos por professores, pais e alunos. Ele queria ainda incluir
na LDB um piso salarial para os professores.
Não eram só as condições estruturais do sistema educacional que atraíam a atenção rigorosa do
cientista social. No intervalo democrático entre 1945 e 1964 no Brasil, Florestan notou que a
educação havia ganho papel crucial na busca "do equilíbrio e da paz social", mas isso se devia a
conquistas sociais e não a políticas dos governos, que, segundo ele, continuavam não investindo
em educação pública. Além da destinação de verbas, o passo mais urgente então seria integrar as
escolas para que sua função progressista se multiplicasse e ganhasse solidez. Ao lado do
trabalho propriamente didático, as escolas deveriam formar "um sistema comunitário de
instituições sociais".
Florestan também se preocupou em criticar a prática em sala de aula, com ênfase em três
pontos: a concepção do professor como mero transmissor do saber, que, para ele, fragilizava o
profissional da educação; a idéia de que o aluno é apenas receptor do conhecimento, quando o
aprendizado deveria ser construído conjuntamente na escola; e o ensino discriminatório, que
trata o aluno pobre como cidadão de segunda classe. "Para Florestan Fernandes, a educação
transformadora se faz com uma escola capaz de se desfazer, por si mesma, do autoritarismo, da
hierarquização e das práticas de servidão", diz Ana Heckert.
Paulo Freire (1921-1997) foi o mais célebre educador brasileiro, com atuação e reconhecimento
internacionais. Conhecido principalmente pelo método de alfabetização de adultos que leva seu
nome, ele desenvolveu um pensamento pedagógico assumidamente político. Para Freire, o
objetivo maior da educação é conscientizar o aluno. Isso significa, em relação às parcelas
desfavorecidas da sociedade, levá-las a entender sua situação de oprimidas e agir em favor da
própria libertação. O principal livro de Freire se intitula justamente Pedagogia do Oprimido e os
conceitos nele contidos baseiam boa parte do conjunto de sua obra.
Ao propor uma prática de sala de aula que pudesse desenvolver a criticidade dos alunos, Freire
condenava o ensino oferecido pela ampla maioria das escolas (isto é, as "escolas burguesas"),
que ele qualificou de educação bancária. Nela, segundo Freire, o professor age como quem
deposita conhecimento num aluno apenas receptivo, dócil. Em outras palavras, o saber é visto
como uma doação dos que se julgam seus detentores. Trata-se, para Freire, de uma escola
alienante, mas não menos ideologizada do que a que ele propunha para despertar a consciência
dos oprimidos. "Sua tônica fundamentalmente reside em matar nos educandos a curiosidade, o
espírito investigador, a criatividade", escreveu o educador. Ele dizia que, enquanto a escola
conservadora procura acomodar os alunos ao mundo existente, a educação que defendia tinha a
intenção de inquietá-los.
Freire criticava a idéia de que ensinar é transmitir saber porque para ele a missão do professor
era possibilitar a criação ou a produção de conhecimentos. Mas ele não comungava da
concepção de que o aluno precisa apenas de que lhe sejam facilitadas as condições para o auto-
aprendizado. Freire previa para o professor um papel diretivo e informativo ± portanto, ele não
pode renunciar a exercer autoridade. Segundo o pensador pernambucano, o profissional de
educação deve levar os alunos a conhecer conteúdos, mas não como verdade absoluta. Freire
dizia que ninguém ensina nada a ninguém, mas as pessoas também não aprendem sozinhas. "Os
homens se educam entre si mediados pelo mundo", escreveu. Isso implica um princípio
fundamental para Freire: o de que o aluno, alfabetizado ou não, chega à escola levando uma
cultura que não é melhor nem pior do que a do professor. Em sala de aula, os dois lados
aprenderão juntos, um com o outro ± e para isso é necessário que as relações sejam afetivas e
democráticas, garantindo a todos a possibilidade de se expressar. "Uma das grandes inovações
da pedagogia freireana é considerar que o sujeito da criação cultural não é individual, mas
coletivo", diz José Eustáquio Romão, diretor do Instituto Paulo Freire, em São Paulo.
Diante dos alunos, o professor mostrará lado a lado a palavra e a representação visual do objeto
que ela designa. Os mecanismos de linguagem serão estudados depois do desdobramento em
sílabas das palavras geradoras. O conjunto das palavras geradoras deve conter as diferentes
possibilidades silábicas e permitir o estudo de todas as situações que possam ocorrer durante a
leitura e a escrita. "Isso faz com que a pessoa incorpore as estruturas lingüísticas do idioma
materno", diz Romão. Embora a técnica de silabação seja hoje vista como ultrapassada, o uso de
palavras geradoras continua sendo adotado com sucesso em programas de alfabetização em
diversos países do mundo.
O método Paulo Freire não visa apenas tornar mais rápido e acessível o aprendizado, mas
pretende habilitar o aluno a "ler o mundo", na expressão famosa do educador. "Trata-se de
aprender a ler a realidade (conhecê-la) para em seguida poder reescrever essa realidade
(transformá-la)", dizia Freire. A alfabetização é, para o educador, um modo de os desfavorecidos
romperem o que chamou de "cultura do silêncio" e transformar a realidade, "como sujeitos da
própria história".
Mudanças profundas ocorreram em escala mundial nas últimas décadas do século 20, entre elas
o avanço da tecnologia de informação, a globalização econômica e o fim da polarização
ideológica entre capitalismo e comunismo nas relações internacionais. Diante desse cenário, o
sociólogo francês Y
, hoje com 87 anos, percebeu que a maior urgência no campo
das idéias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova concepção do próprio
conhecimento. No lugar da especialização, da simplificação e da fragmentação de saberes, Morin
propõe o conceito de complexidade.
Ela é a idéia-chave de O Método, a obra principal do sociólogo, que se compõe de seis volumes,
publicados a partir de 1977. A palavra é tomada em seu sentido etimológico latino, "aquilo que é
tecido em conjunto". O pensamento complexo, segundo Morin, tem como fundamento
formulações surgidas no campo das ciências exatas e naturais, como as teorias da informação e
dos sistemas e a cibernética, que evidenciaram a necessidade de superar as fronteiras entre as
disciplinas. "Ele considera a incerteza e as contradições como parte da vida e da condição
humana e, ao mesmo tempo, sugere a solidariedade e a ética como caminho para a religação dos
seres e dos saberes", diz Izabel Cristina Petraglia, professora do Centro Universitário Nove de
Julho, em São Paulo.
È
Para recuperar a complexidade da vida nas ciências e nas atividades humanas, Morin
recomenda um pensamento crítico sobre o próprio pensar e seus métodos, o que implica sempre
voltar ao começo. Não se trata de círculo vicioso, mas de um procedimento em espiral, que
amplia o conhecimento a cada retorno e, assim, se coaduna com o fato de o homem ser sempre
incompleto ± o aprendizado é para toda a vida. "A reforma do pensamento pressupõe a
consciência de si e do mundo", diz Izabel Cristina. "Ela decorre da reforma das instituições e
vice-versa."
V
Não há espaço em que a fragmentação do conhecimento esteja tão explícita quanto na escola,
com sua estrutura tradicional de parcelamento do tempo em função de disciplinas estanques.
Por outro lado, a diversidade de sujeitos e objetos em busca de conexões fazem da sala de aula
um fenômeno complexo, ideal para iniciar o processo de mudança de mentalidades defendida
por Morin. A meta é a transdisciplinaridade. "Só convencido de que tudo se liga a tudo e de que
é urgente aprender a aprender, o educador adquirirá uma nova postura diante da realidade,
necessária para uma prática pedagógica libertadora", observa Izabel Cristina.
Poucos pensadores da segunda metade do século 20 alcançaram repercussão tão rápida e ampla
quanto o francês (1926-1984). Por ter proposto abordagens inovadoras para
entender as instituições e os sistemas de pensamento, a obra de Foucault tornou-se referência
em uma grande abrangência de campos do conhecimento. Em seus estudos de investigação
histórica, o filósofo tratou diretamente das escolas e das idéias pedagógicas na Idade Moderna.
Além disso, vem inspirando uma grande variedade de pesquisas sobre educação em diversos
países. "Foi Foucault quem pela primeira vez mostrou que, antes de reproduzir, a escola
moderna produziu, e continua produzindo, um determinado tipo de sociedade", diz Alfredo
Veiga-Neto, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Foucault concluiu, no entanto, que a concepção do homem como objeto foi necessária na
emergência e manutenção da Idade Moderna, porque dá às instituições a possibilidade de
modificar o corpo e a mente. Entre essas instituições se inclui a educação. O conceito definidor
da modernidade, segundo o francês, é a disciplina ± um instrumento de dominação e controle
destinado a suprimir ou domesticar os comportamentos divergentes. Portanto, ao mesmo tempo
que o iluminismo consolidou um grande número de instituições de assistência e proteção aos
cidadãos ± como família, hospitais, prisões e escolas ±, também inseriu nelas mecanismos que
os controlam e os mantêm na iminência da punição (leia o quadro acima). Esses mecanismos
formariam o que Focault chamou de tecnologia política, com poderes de manejar espaço, tempo
e registro de informações ± tendo como elemento unificador a hierarquia. "As sociedades
modernas não são disciplinadas, mas disciplinares: o que não significa que todos nós estejamos
igual e irremediavelmente presos às disciplinas", diz Veiga-Neto.
O filósofo não acreditava que a dominação e o poder sejam originários de uma única fonte ±
como o Estado ou as classes dominantes ±, mas que são exercidos em várias direções,
cotidianamente, em escala múltipla (um de seus livros se intitula Microfísica do Poder). Esse
exercício também não era necessariamente opressor, podendo estar a serviço, por exemplo, da
criação. Foucault via na dinâmica entre diversas instituições e idéias uma teia complexa, em que
não se pode falar do conhecimento como causa ou efeito de outros fenômenos. Para dar conta
dessa complexidade, o pensador criou o conceito de poder-conhecimento. Segundo ele, não há
relação de poder que não seja acompanhada da criação de saber e vice-versa. "Com base nesse
entendimento, podemos agir produtivamente contra aquilo que não queremos ser e ensaiar
novas maneiras de organizar o mundo em que vivemos", explica Veiga-Neto.
A contestação e a revisão de conceitos operadas por Foucault criaram a necessidade de refazer
percursos históricos. Não é sobre os governos e as nações que ele concentra seus estudos, mas
sobre os sistemas prisionais, a sexualidade, a loucura, a medicina etc.
Três fases se sucederam em sua obra. A da arqueologia do conhecimento é marcada pela análise
dos discursos ao longo do tempo, de acordo com as circunstâncias históricas, em busca de um
saber que não foi sistematizado. A genealógica corresponde a um conjunto de investigações das
correlações de forças que permitem a emergência de um discurso, com ênfase na passagem do
que é interditado para o que se torna legítimo ou tolerado. Finalmente, a fase ética centra o foco
nas práticas por meio das quais os seres humanos exercem a dominação e a subjetivação,
conceito que corresponde, aproximadamente, a assumir um papel histórico.
É impossível falar em professor-pesquisador sem citar o nome de Lawrence Stenhouse (1926-
1982). A necessidade de utilizar a investigação como recurso didático já era discutida desde a
década de 1930, mas foi esse inglês quem jogou luz sobre o tema, 30 anos mais tarde. "A técnica
e os conhecimentos profissionais podem ser objeto de dúvida, isto é, de saber, e,
conseqüentemente, de pesquisa", justificava. Assim, acreditava ele, todo educador tinha de
assumir seu lado experimentador no cotidiano e transformar a sala de aula em laboratório. E, tal
qual um artista, que trabalha com pincéis e tintas e escolhe texturas e cores, o profissional da
educação deveria lançar mão de estratégias variadas até obter as melhores soluções para
garantir a aprendizagem da turma. Em condições ideais, todos seriam capazes de criar o próprio
currículo, adequado à realidade e às necessidades da garotada.
"Suas idéias, que têm mais de 40 anos, estão na pauta da educação atual", diz a professora
Menga Lüdke, do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio
de Janeiro. De fato, os conceitos mais recentes sobre as competências para ensinar incluem a
postura reflexiva, a capacidade de analisar a própria prática e a partir dessa análise efetuar
ajustes e melhorias no trabalho de sala de aula.
Mas nem sempre foi assim. Muitas das propostas de Stenhouse foram desprezadas porque ele
procurava resolver problemas ± como o da autoridade do professor em sala de aula ± com
propostas educativas de efeitos de médio e longo prazo. E muita gente, dentro da própria escola,
prefere soluções instantâneas.
A eficácia das teorias pôde ser comprovada enquanto ele ainda estudava o tema. No final dos
anos 1960, trabalhando no SchoolsCouncil for Curriculum andExaminations (Conselho Escolar
de Currículo e Avaliação), de Londres, ele criou e pôs em prática um currículo específico para
atender jovens de classes populares ± com excelentes resultados. Entre outras coisas, porque
todos eram tratados com respeito, algo fundamental nas relações escolares para Stenhouse. "Os
estudantes rendem mais quando são recebidos e acolhidos com consideração", dizia sempre. E
isso, todo professor sabe, não é difícil. Basta estar aberto e ouvir a turma.
Lawrence Stenhouse dizia que todo professor deveria assumir o papel de aprendiz. Esse é um
tema recorrente no pensamento educacional. Muitos dos atuais programas e materiais de
educação continuada partem exatamente desta premissa: quem mais precisa aprender é aquele
que ensina. Quando o professor está aberto para aprender continuamente, deixa de se
comportar como dono do saber. "Creio que a maior parte do ensino que se oferece nas escolas e
universidades estimula esse erro", afirmou o pensador na aula inaugural que proferiu na
Universidade de EastAnglia, na Inglaterra, em 1979, intitulada Research as a Basis for Teaching
(A Pesquisa como Base para Ensinar). É por isso que muitas pessoas que passaram pela escola
têm com o saber uma relação de pouca autonomia, entendendo-o como reafirmação da certeza
autorizada. A elas foi negado o prazer de viver a aventura do conhecimento investigativo.
Stenhouse foi pioneiro em defender que o ensino mais eficaz é baseado em pesquisa e
descoberta. Mais uma vez se pode identificar o pensamento desse notável pedagogo inglês em
métodos muito atuais, como os projetos de trabalho. Para que eles funcionem, é preciso, como
recomendava Stenhouse, que o professor deixe de colocar-se como autoridade cujo
conhecimento não suporta contestação.
Na década de 1970, Stenhouse fundou, junto com um grupo de colegas, o Centre for
AppliedResearch in Education, Care (Centro para Pesquisa Aplicada em Educação), dentro da
Universidade de EastAnglia. Seu objetivo principal era elaborar um modelo de ensino no qual
todo professor fosse capaz de manter a autoridade, a liderança e a responsabilidade em sala de
aula sem transmitir a mensagem de que só o saber lhe confere esse poder.
Ele propôs, mais uma vez, um modelo de ensino baseado na pesquisa. Até hoje o Care tem como
foco a necessidade de desenvolver nos docentes da Educação Básica a consciência de que a
investigação ajuda ± e muito ± no dia-a-dia. Essa é a versão inglesa do professor reflexivo, idéia
cara a outros pensadores europeus.
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Embora a maioria dos grandes pensadores da educação tenha desenvolvido suas teorias com
base numa visão crítica da escola, somente na segunda metade do século 20 surgiram
questionamentos bem fundamentados sobre a neutralidade da instituição. Até ali a instrução
era vista como um meio de elevação cultural mais ou menos à parte das tensões sociais. O
francês Pierre Bourdieu (1930-2002) empreendeu uma investigação sociológica do
conhecimento que detectou um jogo de dominação e reprodução de valores.
Suas pesquisas exerceram forte influência nos ambientes pedagógicos nas décadas de 1970 e
1980. "Desde então, as teorias de reprodução foram criticadas por exagerar a visão pessimista
sobre a escola", diz Cláudio Martins Nogueira, professor da Universidade Federal de Minas
Gerais. "Vários autores passaram a mostrar que nem sempre as desigualdades sociais se
reproduzem completamente na sala de aula." Na essência, contudo, as conclusões de Bourdieu
não foram contestadas.
Na mesma época em que as restrições a sua obra acadêmica se tornaram mais freqüentes, a
figura pública do sociólogo ganhou notoriedade pelas críticas à mídia, aos governos de esquerda
da Europa e à globalização (leia o quadro na pág. 123). Ele costuma ser incluído na tradição
francesa do intelectual público e combativo, a exemplo do escritor Émile Zola (1840-1902) e do
filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980).
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Para construir sua teoria, Bourdieu criou uma série de conceitos, como habitus e capital
cultural. Todos partem de uma tentativa de superação da dicotomia entre subjetivismo e
objetivismo. "Ele acreditava que qualquer uma dessas tendências, tomada isoladamente, conduz
a uma interpretação restrita ou mesmo equivocada da realidade social", explica Nogueira. A
noção de habitus procura evitar esse risco. Ela se refere à incorporação de uma determinada
estrutura social pelos indivíduos, influindo em seu modo de sentir, pensar e agir, de tal forma
que se inclinam a confirmá-la e reproduzi-la, mesmo que nem sempre de modo consciente.
Outro conceito utilizado por Bourdieu é o de campo, para designar nichos da atividade humana
nos quais se desenrolam lutas pela detenção do poder simbólico, que produz e confirma
significados Esses conflitos consagram valores que se tornam aceitáveis pelo senso comum. No
campo da arte, a luta simbólica decide o que é erudito ou popular, de bom ou de mau gosto. Dos
elementos vitoriosos, formam-se o habitus e o código de aceitação social.
Os indivíduos, por sua vez, se posicionam nos campos de acordo com o capital acumulado ± que
pode ser social, cultural, econômico e simbólico. O capital social, por exemplo,
corresponde à rede de relações interpessoais que cada um constrói, com os benefícios ou
malefícios que ela pode gerar na competição entre os grupos humanos. Já na educação se
acumula sobretudo capital cultural, na forma de conhecimentos apreendidos, livros, diplomas
etc.
Com os instrumentos teóricos que criou, Bourdieu afastou de suas análises a ênfase central nos
fatores econômicos ± que caracteriza o marxismo ± e introduziu, para se referir ao controle de
um estrato social sobre outro, o conceito de violência simbólica, legitimadora da dominação e
posta em prática por meio de estilos de vida. Isso explicaria por que é tão difícil alterar certos
padrões sociais: o poder exercido em campos como a linguagem é mais eficiente e sutil do que o
uso da força propriamente dita.
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Nenhum nome teve mais influência sobre a educação brasileira nos últimos 20 anos do que o da
psicolinguista argentina Emilia Ferreiro. A divulgação de seus livros no Brasil, a partir de
meados dos anos 1980, causou um grande impacto sobre a concepção que se tinha do processo
de alfabetização, influenciando as próprias normas do governo para a área, expressas nos
Parâmetros Curriculares Nacionais. As obras de Emilia Psicogênese da Língua Escrita é a
mais importante não apresentam nenhum método pedagógico, mas revelam os processos de
aprendizado das crianças, levando a conclusões que puseram em questão os métodos
tradicionais de ensino da leitura e da escrita. "A história da alfabetização pode ser dividida em
antes e depois de Emilia Ferreiro", diz a educadora Telma Weisz, que foi aluna da psicolinguista.
Emilia Ferreiro se tornou uma espécie de referência para o ensino brasileiro e seu nome passou
a ser ligado ao construtivismo, campo de estudo inaugurado pelas descobertas a que chegou o
biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) na investigação dos processos de aquisição e elaboração
de conhecimento pela criança ou seja, de que modo ela aprende. As pesquisas de Emilia
Ferreiro, que estudou e trabalhou com Piaget, concentram o foco nos mecanismos cognitivos
relacionados à leitura e à escrita. De maneira equivocada, muitos consideram o construtivismo
um método.
Tanto as descobertas de Piaget como as de Emilia levam à conclusão de que as crianças têm um
papel ativo no aprendizado. Elas constroem o próprio conhecimento daí a palavra
construtivismo. A principal implicação dessa conclusão para a prática escolar é transferir o foco
da escola e da alfabetização em particular do conteúdo ensinado para o sujeito que
aprende, ou seja, o aluno. "Até então, os educadores só se preocupavam com a aprendizagem
quando a criança parecia não aprender", diz Telma Weisz. "Emilia Ferreiro inverteu essa ótica
com resultados surpreendentes."
O princípio de que o processo de conhecimento por parte da criança deve ser gradual
corresponde aos mecanismos deduzidos por Piaget, segundo os quais cada salto cognitivo
depende de uma assimilação e de uma reacomodação dos esquemas internos, que
necessariamente levam tempo. É por utilizar esses esquemas internos, e não simplesmente
repetir o que ouvem, que as crianças interpretam o ensino recebido. No caso da alfabetização
isso implica uma transformação da escrita convencional dos adultos (
). Para
o construtivismo, nada mais revelador do funcionamento da mente de um aluno do que seus
supostos erros, porque evidenciam como ele "releu" o conteúdo aprendido. O que as crianças
aprendem não coincide com aquilo que lhes foi ensinado.
É por não levar em conta o ponto mais importante da alfabetização que os métodos tradicionais
insistem em introduzir os alunos à leitura com palavras aparentemente simples e sonoras (como
babá, bebê, papa), mas que, do ponto de vista da assimilação das crianças, simplesmente não se
ligam a nada. Segundo o mesmo raciocínio equivocado, o contato da criança com a organização
da escrita é adiado para quando ela já for capaz de ler as palavras isoladas, embora as relações
que ela estabelece com os textos inteiros sejam enriquecedoras desde o início.
Segundo Emilia Ferreiro, a alfabetização também é uma forma de se apropriar das funções
sociais da escrita. De acordo com suas conclusões, desempenhos díspares apresentados por
crianças de classes sociais diferentes na alfabetização não revelam capacidades desiguais, mas o
acesso maior ou menor a textos lidos e escritos desde os primeiros anos de vida
Até ali, o padrão mais aceito para a avaliação de inteligência eram os testes de QI, criados nos
primeiros anos do século 20 pelo psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911) a pedido do
ministro da Educação de seu país. O QI (quociente de inteligência) media, basicamente, a
capacidade de dominar o raciocínio que hoje se conhece como lógico-matemático, mas durante
muito tempo foi tomado como padrão para aferir se as crianças correspondiam ao desempenho
escolar esperado para a idade delas. "Como o aprendizado dos símbolos e raciocínios
matemáticos envolve maior dificuldade do que o de palavras, Binet acreditou que seria um bom
parâmetro para destacar alunos mais e menos inteligentes", diz Celso Antunes, coordenador-
geral de ensino do Centro Universitário Sant¶ Anna, em São Paulo. "Mais tarde, Piaget também
destacou essa dificuldade e, dessa forma, cresceu exponencialmente a valorização da inteligência
lógico-matemática."
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Sob a influência do norte-americano Robert Sternberg, que estudou as variações dos conceitos
de inteligência em diferentes culturas, Gardner foi levado a conceituá-la como o potencial para
resolver problemas e para criar aquilo que é valorizado em determinado contexto social e
histórico. Na elaboração de sua teoria, ele partiu da observação do trabalho dos gênios. "Ficou
claro que a manifestação da genialidade humana é bem mais específica que generalista, uma vez
que bem poucos gênios o são em todas as áreas", afirma Antunes. Gardner foi buscar evidências
também no estudo de pessoas com lesões e disfunções cerebrais, que o ajudou a formular
hipóteses sobre a relação entre as habilidades individuais e determinadas regiões do órgão.
Finalmente, o psicólogo se valeu do mapeamento encefálico mediante técnicas surgidas nas
décadas recentes. Suas conclusões, como a maioria das que se referem ao funcionamento do
cérebro, são eminentemente empíricas. Ele concluiu, a princípio, que há sete tipos de
inteligência:
´ Lógico-matemática é a capacidade de realizar operações numéricas e de fazer deduções.
Lingüística é a habilidade de aprender idiomas e de usar a fala e a escrita para atingir
objetivos.
Espacial é a disposição para reconhecer e manipular situações que envolvam apreensões
visuais.
Físico-cinestésica é o potencial para usar o corpo com o fim de resolver problemas ou fabricar
produtos.
Interpessoal é a capacidade de entender as intenções e os desejos dos outros e
conseqüentemente de se relacionar bem em sociedade.
Intrapessoal é a inclinação para se conhecer e usar o entendimento de si mesmo para
alcançar certos fins.
Musical é a aptidão para tocar, apreciar e compor padrões musicais.
Mais tarde, Gardner acrescentou à lista as inteligências natural (reconhecer e classificar espécies
da natureza) e existencial (refletir sobre questões fundamentais da vida humana)
e sugeriu o agrupamento da interpessoal e da intrapessoal numa só.
A primeira implicação da teoria das múltiplas inteligências é que existem talentos diferenciados
para atividades específicas. O físico Albert Einstein tinha excepcional aptidão lógico-
matemática, mas provavelmente não dispunha do mesmo pendor para outros tipos de
habilidade. O mesmo pode ser dito da veia musical de Wolfgang Amadeus Mozart ou da
inteligência físico-cinestésica de Pelé. Por outro lado, embora essas capacidades sejam
independentes, raramente funcionam de forma isolada.
O que leva as pessoas a desenvolver capacidades inatas são a educação que recebem e as
oportunidades que encontram. Para Gardner, cada indivíduo nasce com um vasto potencial de
talentos ainda não moldado pela cultura, o que só começa a ocorrer por volta dos 5 anos.
Segundo ele, a educação costuma errar ao não levar em conta os vários potenciais de cada um.
Além disso, é comum que essas aptidões sejam sufocadas pelo hábito nivelador de grande parte
das escolas. Preservá-las já seria um grande serviço ao aluno. "O escritor imita a criança que
brinca: cria um mundo de fantasia que leva a sério, embora o separe da realidade", diz Gardner.