Felipe Moralles - A Teoria Crítica de Alexis de Tocqueville

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A teoria crítica de

Alexis de Tocqueville
Direção Editorial
Lucas Fontella Margoni

Comitê Científico

Prof. Dr. Denilson Luís Werle


Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

Prof. Dr. Delamar José Volpato Dutra


Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

Prof. Dr. Rúrion Soares Melo


Universidade de São Paulo - USP
A teoria crítica de
Alexis de Tocqueville

Felipe Moralles e Moraes


Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.behance.net/CaroleKummecke

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são


prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de
inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

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estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


MORAES, Felipe Moralles e

A teoria crítica de Alexis de Tocqueville [recurso eletrônico] / Felipe Moralles e Moraes -- Porto Alegre, RS:
Editora Fi, 2019.

288 p.

ISBN - 978-85-5696-595-0

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Filosofia; 2. Alexis de Tocqueville; 3. Teoria Crítica; 4. Liberdade; I. Título

CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Nota do autor

Este livro é o resultado da dissertação apresentada junto ao


Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Santa Catarina, como requisito para obtenção do grau de Mestre
em Filosofia. A dissertação foi aprovada em sua forma final pela
banca examinadora composta pelo Profs. Drs. Denilson Luís Werle
(UFSC), Delamar José Volpato Dutra (UFSC) e Rúrion Soares Melo
(USP).
Agradeço ao Prof. Dr. Denilson Luís Werle, pela orientação
filosófica. Aos demais Profs. da banca examinadora e ao Prof. Dr.
Alessandro Pinzani, que integrou a banca de qualificação, pela
leitura atenta, elogios e críticas, as quais oportunizaram a
discussão sobre temas da dissertação, como convém ao processo
vivo do eslcarecimento.
Agradeço aos meus colegas do Grupo de Teoria Crítica do
Capitalismo: Thor Veras, Ivan Rodrigues, Eduardo Borba, Raquel
Cipriani, Bárbara Buril, Tiago Mendonça, Bruna Ávila, pelas
discussões sobre teoria crítica. Ao meu pai Aldovan de Oliveira
Moraes e ao amigo Lucas do Nascimento, pelas revisões e
apreciação crítica do texto.
Não há aí, no fundo, senão coisas de nosso tempo que interessam
ao público e a mim mesmo. A grandeza e a singularidade do
espetáculo que apresenta o mundo de nossos dias absorvem
atenção demais para que se possa dar muito apreço às curiosidades
históricas que bastam às sociedades ociosas e eruditas.

(Alexis de Tocqueville, 15 de dezembro de 1850)


Sumário

Introdução ................................................................................................... 13

1. A tese da liberdade negativa .................................................................... 21


1.1 Mundo dividido.................................................................................................. 27
1.1.1 Dilemas éticos ............................................................................................. 28
1.1.2 Dilema metateórico .................................................................................... 46
1.2 Democracia ........................................................................................................ 61
1.2.1 Estrutura ..................................................................................................... 62
1.2.2 Princípio ......................................................................................................65
1.2.3 Objeto........................................................................................................... 71
1.3 Nova aristocracia?............................................................................................ 86
1.3.1 Aristocracia, nobreza e casta ..................................................................... 90
1.3.2 Obstáculos aristocráticos .......................................................................... 94
1.3.3 Argumentos democráticos ....................................................................... 104

2. A tese da liberdade republicana.............................................................. 111


2.1 Dominação moderna ...................................................................................... 116
2.2 Interesses bem compreendidos ..................................................................... 135
2.2.1 O problema filosófico do autointeresse .................................................. 143
2.2.2 A doutrina dos interesses bem compreendidos .................................... 153
2.3 Poderes intermediários .................................................................................. 161

3. A tese da liberdade social ....................................................................... 185


3.1 Religião ........................................................................................................... 206
3.2 Classes sociais ................................................................................................ 220
3.2.1 Perspectivas emancipatórias em França e nos EUA ............................. 223
3.2.2 Perspectivas emancipatórias no Brasil .................................................. 240
3.3 Associações ..................................................................................................... 247

Conclusão .................................................................................................. 263

Referências ............................................................................................... 273


Introdução

As democracias que têm hoje poder sobre os seres humanos


são estáveis ou instáveis. Umas mantêm e avançam a igualdade
entre cidadãos acostumados a ser livres, outras tendem a recair em
regimes autoritários. A estabilidade democrática é o tema de Alexis
de Tocqueville. Seu país, a França, foi presa de ciclos
revolucionários desde 1789 até a sua morte em 1859. Uma
monarquia constitucional havia sucedido o antigo regime; a
república, a monarquia constitucional; o império de Napoleão, a
república. Depois veio a restauração; em seguida, a monarquia de
julho; a monarquia foi sucedida pela república; e a república pelo
império de Napoleão III. O processo de democratização despontava
de forma extremamente instável e violenta para os franceses. A
preocupação de Tocqueville era com uma jovem democracia que
ainda estava dissociada de práticas democráticas, quer dizer, com
uma igualdade que surgia no seio da sociedade, mas que não se
traduzia em leis, ideias e costumes livres.1 Ele reflete
sociologicamente, então, acerca da estabilidade das modernas
democracias de massa. Toda sua obra se debruça sobre esse
problema. A primeira, De la Démocratie en Amérique, interroga por
que a democracia permanecia próspera, estável e liberal nos
Estados Unidos. A última, L’Ancien Régime et la Révolution, por
que a França encontrava tantas revoluções, regressões e fracassos,
no curso de sua democratização, na manutenção de um regime
político de liberdade.2

1
TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique, I (1835). In: ______________. Œuvres,
II, André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 1992, introduction, p. 9.
2
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico (1967). Trad. Sérgio Bath. São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 202.
14 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

A liberdade ocupa no mundo político – escreve ele – lugar


análogo à atmosfera no mundo físico.3 Apesar de ser o valor
central de suas reflexões, não se encontra, em sua obra, uma ideia
acabada de liberdade.4 Conquanto os intérpretes estejam de acordo
que seu objetivo prático era a estabilização do processo de
democratização em França, divergem teoricamente sobre o
significado do conceito de liberdade que está por trás das
instituições por ele defendidas: direitos individuais, assembleias
municipais, júri, divisão das grandes propriedades. Não se pode
contentar, por isso, com a primeira aparência que os textos
oferecem quando empregam o termo “liberdade”, nem com a
segunda ou a terceira; uma interpretação vigorosa exige que
perpassemos todas as possibilidades.
Esta dissertação apresenta a obra de Tocqueville sob o
prisma de três diferentes concepções da liberdade moderna: (1)
liberdade negativa, (2) liberdade republicana e (3) liberdade social.
As interpretações centradas em cada uma dessas concepções serão
abordadas nos capítulos respectivos e trazem à tona diversas
camadas nos textos, os múltiplos temas e diferentes sentidos que
deles podem ser ressaltados. Dessa forma são introduzidos os
conceitos-chave com os quais ele realiza sua análise social, como os
conceitos de democracia, aristocracia, dominação, interesse bem
compreendido, religião, individualismo, etc. – os quais o autor

3
TOCQUEVILLE, Alexis de. Voyages en Angleterre et en Irlande (1833/35). In: ___________.
Œuvres, I, André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 1991, 7 juillet, p. 514.
4
Em carta endereçada ao tradutor Henry Reeve, escreve: “não tenho mais do que uma paixão, o
amor à liberdade a à dignidade humana” (TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre à Henry Reeve, 22 mars
1837. In: TOCQUEVILLE, Alexis de. Œuvres complètes d’Alexis de Tocqueville. Marie de
Tocqueville e Gustave de Beaumont (Ed.). Tome VI. Paris: Michel Lévy Frères, 1860, p. 67). Na já
citada carta a Louis Kergorlay enfatiza: “não tenho tradição alguma, não tenho partido algum, não
tenho causa alguma, senão a da liberdade e da dignidade humana; disso estou seguro”
(TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre au Comte Louis de Kergorlay, 15 décembre 1850. In: BEAUMONT
(Ed.). op. cit., VII, p. 264). Volta a se autodescrever anos mais tarde, em outros termos: "considero e
sempre considerei a liberdade como o primeiro dos bens; eu vejo nela uma das fontes mais fecundas
de virtudes viris e de grandes ações” (TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre à Madame Swetchine, 7
janvier 1856. In: BEAUMONT (Ed.), op. cit., VI, p. 307).
Felipe Moralles e Moraes | 15

denomina idées mère.5 Em cada uma dessas ideias-mãe,


concretizam-se as concepções de liberdade moderna e, com elas, as
objeções que lhes podem ser opostas. As perspectivas a respeito da
obra do liberal francês conduzem, dessarte, a uma discussão sobre
essas diferentes correntes do liberalismo. O fio condutor desta
dissertação será a crítica às duas primeiras interpretações e
concepções de liberdade, como visões parciais de uma
interpretação e concepção democrática.6
De fato, os liberais têm sido acusados, por toda parte, de
estreiteza de vista e demasiado conservadorismo. Especialmente
em nosso país, a liberdade tem servido como prefácio à
manutenção de desigualdades arraigadas. Sua invocação, como um
prenúncio à perpetração de injustiças. A objeção a todos que se
denominam liberais, já muito claramente levantada por Hegel, é
que se deve, quando se fala da liberdade, observar se não são de
interesses privados e privilégios de que se fala.7 Ninguém menos
do que Hayek repete: “a essência da posição liberal... é a negação de
todo privilégio, se o privilégio é compreendido em seu significado
próprio e original do Estado garantindo e protegendo direitos a
alguns que não estão disponíveis aos outros, em termos iguais”.8
As diferentes interpretações do conceito de liberdade em
Tocqueville, e as temáticas e objeções daí decorrentes, são o fio
condutor da presente dissertação, que não se confunde com o
conteúdo da pesquisa desenvolvida. O objetivo deste estudo é
esclarecer se e como o pensamento de Tocqueville pode ser

5
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 17
6
A interpretação de uma concepção de liberdade comum às obras de Hegel e Tocqueville foi sugerida
no seio da teoria crítica, embora pouco desenvolvida. A dissertação dedica-se a levar adiante essa
sugestão, cf. WELLMER, Albrecht. Freiheitsmodelle in der modernen Welt (1989). In:_______.
Endspiele: die unversöhnliche Moderne: Essays und Vorträge. 1. Aufl. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1999, p. 26.
7
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte (1837).
Stuttgart: Reclam, 1961, IV, 3, 2, p. 574.
8
HAYEK, Friedrich August von. The road to serfdom (1944). Bruce Caldwell (Ed.). Chicago:
University of Chicago Press, 2007, foreword to the 1956 american paperback edition, p. 46.
16 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

inserido dentro de um modo específico de fazer filosofia, que é a


teoria crítica. Pergunta-se: (i) é possível um liberalismo crítico? Se
o leitor não for seduzido por tal pergunta, não conseguir
acompanhá-la sem bocejos ou rastrear-lhe o sentido, os três
capítulos da dissertação podem ser lidos como se interrogassem:
(ii) qual é o liberalismo de Tocqueville e (iii) qual a relação desse
liberalismo com a vedação aos privilégios?
No entanto, como se ia dizendo, esses não são os únicos,
nem os principais objetivos desta dissertação. Não é possível
acreditar, com efeito, que a atividade filosófica já fez tudo quando
explicou corretamente determinado pensador e colocou cada tema
abordado em seu devido lugar. Mostrou quão sólidas são suas
conclusões, segundo as leis da lógica e do raciocínio. Preencheu
com detalhes biográficos suas inclinações, tendo o cuidado de lhe
deixar um lado humano e empático. À primeira vista, parece um
trabalho admirável, mas logo se percebe que se ficou preso no
texto filosófico e que não foram pensadas as relações da filosofia
com a realidade social efetiva. Apesar dos louváveis esforços, nunca
diríamos que a interpretação está animada por uma preocupação
política. Se uma parte palpita, outra permanece imóvel. A
intepretação fica incompleta.
A teoria crítica é um modo de fazer filosofia que articula
juízos teóricos com a prática dos membros da sociedade de um
modo específico. Ela rejeita apreender as relações sociais sob duas
perspectivas, para as apreender de outra. Tanto se contrapõe à
ação “cega” que ignora como a sociedade realmente é, quanto ao
conhecimento “vazio” que ignora que a sociedade pode ser
diferente.9 Tanto se diferencia de uma crítica irreal e idealista,
quanto de um realismo cínico e conservador.10 Fazer teoria crítica
significa negar modelos neutros de análise social, a partir dos quais

9
NOBRE, Marcos. Teoria crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 9
10
WERLE, Denilson Luís. Introdução. In: _____. Justiça e democracia: ensaios sobre John Rawls e
Jürgen Habermas. São Paulo: Esfera Pública, 2008, p. 21 e 82.
Felipe Moralles e Moraes | 17

a realidade poderia ser supostamente conhecida sem valorações,


assim como imagens de sociedades perfeitas, a partir dos quais a
realidade seria valorada, para fazer diagnóstico das sociedades
reais desde a perspectiva das possibilidades e obstáculos à sua
transformação. Em uma frase: dizer o que é em vista do que pode
ser, mas ainda não é.11 A dissertação objetiva mostrar que
Tocqueville faz, como teórico crítico, um diagnóstico das
democracias de massa modernas da perspectiva de um potencial
de liberdade que lhes é imanente, mas que é obstaculizado por
dinâmicas sociais contraditórias, de origem aristocrática ou
autoritária.
Aquele que introduz um grande filósofo como mero objeto
de interpretação filosófica, para utilizar expressão hegeliana, “pinta
cinza no cinza” – apresenta um pensamento envelhecido, que com
cinza no cinza não se deixa rejuvenescer.12 A proposta desta
dissertação é, muito mais, revigorar as cores da obra de
Tocqueville; ler seus textos, parafraseando sua orientação, com
pensamentos virados “para nosso hemisfério”13, para observar não
os Estados Unidos, França, Argélia, mas o Brasil. Isso é possível
porque o segundo volume do Démocratie foi orientado às
democracias modernas em geral. Tanto é assim que Tocqueville
desejava adotar o título de L’influence de l’égalité sur les idées et les
sentiments des hommes14, tendo sido dissuadido provavelmente
por razões editoriais.15 Mesmo em relação ao primeiro volume do

11
NOBRE, op. cit., 2004, p. 9-10.
12
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und
Staatswissenschaft im Grundrisse (1821). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, Vorrede, p. 28.
13
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 3.
14
TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre à John Stuart Mill, 15 novembre 1839. In: BEAUMONT (Ed.), op.
cit., VI, p. 94; novamente se dirigindo ao amigo inglês, explicita: “partindo de noções que me
forneciam a sociedade americana e francesa, quis pintar os traços gerais das sociedades
democráticas, dos quais não existe ainda nenhum modelo completo” (TOCQUEVILLE, Alexis de.
Lettre à John Stuart Mill, 18 décembre 1840. In: BEAUMONT (Ed.), op. cit., VI, p. 108).
15
MÉLONIO, Françoise. Tocqueville and the french. Trans. Beth G. Raps. Charlottesville:
University Press of Virginia, 1998, p. 65.
18 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Démocratie, admite ele que procurava nos Estados Unidos “uma


imagem da democracia ela mesma”16, de modo que aquele país era
o “quadro; a democracia, o tema”.17 As condições de instabilidade
em França é que determinavam os objetos das análises
comparativas.18 Não acreditava que os estadunidenses tivessem
instituições dignas de cópia servil ou tivessem realizado por
completo a democracia na modernidade, senão que seus princípios
políticos e condições sociais se aproximavam, naquela época, mais
desse ideal do que as de qualquer outro povo.19 Tais considerações
afastam algumas questões prejudiciais. Permanecem, não obstante,
muito aquém de justificar positivamente o objetivo buscado de um
modelo de teoria crítica capaz de avaliar os potenciais e obstáculos
da democracia no Brasil.
Por que o pensamento político de Tocqueville é relevante?
Por que lida com problemas que dizem respeito ao contexto
brasileiro contemporâneo? A justificação não pode ser localizada ao
nível de uma mera alternativa ou ideal filosófico, como um autor
clássico que, recolhido aleatoriamente da estante, passa
subitamente a querer domesticar a realidade. Esqueça! Precisa
estar, sim, ao nível dos elementos transformadores que um
pensamento crítico pode identificar na realidade, das possibilidades
utópicas que a sociedade brasileira contém, sem apelar às que
ainda estão, ou às que já foram, cerradas.

16
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 15.
17
TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre à John Stuart Mill, 10 novembre 1836. In: BEAUMONT (Ed.), op.
cit., VI, p. 65.
18
TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre au Comte Louis de Kergorlay, 18 octobre 1847. In: BEAUMONT
(Ed.), op. cit., V, p. 376-7; cf. DRESCHER, Seymour. Tocqueville’s comparative perspectives. In:
WELCH, Cheryl B. (Ed.). The cambridge companion to Tocqueville. Cambridge: Cambridge
University Press, 2006, p. 31.
19
TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracy in America: historical-critical edition. Eduardo Nolla (Ed.).
Transl. James T. Schleifer. Indianapolis: Liberty Fund, 2010, foreword to the twelfth edition, p. 1374-
5; cf. ZETTERBAUM, Marvin. Alexis de Tocqueville (1963). In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph
(Org.). História da filosofia política. Trad. Heloísa Gonçalves Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universtária, 2013, p. 683.
Felipe Moralles e Moraes | 19

Para tratar da questão da relevância, dedica-se uma parte do


último capítulo a justificar mais direta e positivamente, a partir dos
conceitos-chave desenvolvidos nos três capítulos, o recurso à obra
de Tocqueville, a fim de decifrar as transformações políticas e
sociais latentes e com as quais se pode contar em nosso país. A
dissertação pretende responder, como um todo, portanto, ao
seguinte questionamento: (iv) o liberalismo tocquevilleano é capaz
de oferecer um modelo de teoria crítica da democracia brasileira?
As referências às obras de Tocqueville utilizam a edição da
coleção La Pléiade. Ao longo da dissertação recorre-se, quando
necessário, a correspondências e anotações pessoais constantes em
outras edições e publicações, oportunamente indicadas nas notas
de rodapé. Além disso, o leitor perceberá que a argumentação
invoca vários outros filósofos da tradição liberal ou da tradição
crítica que mereceriam, por um lado, perquirições mais
detalhadas; por outro lado, não poderiam ser negligenciados – seja
porque tiveram influência direta ou indireta sobre o pensamento
de Tocqueville, seja porque sustentaram interpretações
contemporâneas de sua obra, seja porque apresentaram outros
modelos de teoria crítica com os quais mostra afinidades. Por isso,
deve-se ao leitor o esclarecimento de que a referência a outros
filósofos dentro dos capítulos não quer fazer supor seu
enquadramento na ideia de liberdade ali discutida. É para
orientação acerca das concepções de liberdade e de crítica na obra
de Tocqueville que se buscam semelhanças e dissemelhanças com
o que se poderia ler também como diferentes “liberalismos” de
Montesquieu, Mill, etc., e diferentes “teorias críticas” de Marx,
Honneth, etc. A proposta da dissertação é tomar, de saída, esses
conceitos de “liberalismo” e “teoria crítica” de maneira
indeterminada, para aproximar essas tradições do pensamento.
1

A tese da liberdade negativa

Em famoso discurso proferido em meio à guerra fria, em


1958, Isaiah Berlin distingue dois tipos de liberdade, negativa e
positiva, e defende a existência de uma antítese conceitual entre
elas. Esses tipos corresponderiam a duas respostas, a dois valores
mobilizados para justificação do dever de obediência e,
consequentemente, de sistemas políticos cogentes e conflitantes. A
liberdade sempre se perde quando se é coagido. Mas liberdade do
quê?1 Qual liberdade está sendo cerceada? Berlin pretende mostrar
que os dois sentidos do conceito de liberdade respondem a
perguntas diferentes, ainda que igualmente importantes.
Conquanto não pretenda uma avaliação histórica desses tipos,
apresenta uma tese acerca do liberalismo de Tocqueville, o qual
estaria associado a uma concepção negativa da liberdade.2 A
maioria das interpretações existentes sobre a obra do liberal
francês endossou essa tese.3

1
BERLIN, Isaiah. Two concepts of liberty (1958). In: ______. Liberty: incorporating four essays on
liberty. Henry Hardy (Ed.). Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 168-9.
2
Ibid., p. 171.
3
Entre outros: LAMBERTI, Jean-Claude. La libertad y las ilusiones individualistas según Tocqueville
(1986). In: ROLDÁN, Darío (Ed.) Lecturas de Tocqueville. Madrid: Siglo XXI, 2007, p. 187;
LOSURDO, Domenico. A fenomenologia do poder: Marx, Engels, Tocqueville. Lua Nova, São Paulo,
n. 38, p. 43, dez. 1996; QUIRINO, Célia N. Galvão. Dos infortúnios da igualdade ao gozo da
liberdade: uma análise do pensamento político de Alexis de Tocqueville. São Paulo: Discurso
Editorial, 2001, p. 46 e 136; BROGAN, Hugh. Alexis de Tocqueville: o profeta da democracia
(2006). Trad. Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 344, 489 e 502; DIJN, Annelien de.
French political thought from Montesquieu to Tocqueville: liberty in a levelled society?
Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 139; FRANCO, Lívia. Pensar a democracia com
Tocqueville (2012). São Paulo: Loyola, 2014, p. 183-5.
22 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Em seu sentido negativo, o conceito de liberdade procura


responder à questão de qual ou quais áreas deveriam ser deixadas
a uma pessoa ou a um grupo de pessoas para fazer ou ser sem a
interferência de outra pessoa, grupo de pessoas ou Estado.4 E não
importa que esses limites ao poder sejam legais, morais ou
políticos, desde que sejam efetivos.5 A perda da liberdade ocorre
quando se é impedido por outros.6 Exemplifica Berlin: se alguém é
muito pobre para arcar com um pedaço de pão, uma viagem ao
redor do mundo ou um recurso ao tribunal, a crença de carência
de liberdade negativa está associada à crença de que arranjos
políticos feitos por outros funcionam como se estivessem proibindo
esses desejos. Nesse caso, pela associação de outros, surge uma
coerção, ao contrário de quando a carência é atribuída a certa
incapacidade mental ou física do interessado. A fonte da
interferência contrária à liberdade são sempre os outros,
independentemente se ela decorre de ações ou relações humanas.
O critério da opressão é a parcela, pois, que se considera “ser jogo
de outros seres humanos, direta ou indiretamente, com ou sem
intenção de o fazer, na frustração de meus desejos”. Quanto maior
essa área de não interferência, maior será a liberdade.7
Há três corolários dessa concepção. O primeiro é que, para
cada necessidade concreta do sujeito, é preciso negociar a liberdade
com outros valores – justiça, felicidade, segurança, igualdade, etc.,
afinal “os propósitos e as atividades humanas não se harmonizam
automaticamente umas com as outras”.8 Sem dúvida, há
necessidades básicas antes da liberdade: “um camponês egípcio
precisa de roupas e medicamentos antes e mais do que liberdade
pessoal”. Não deixa de ser uma preocupação para Berlin que

4
BERLIN, op. cit., 1958, p. 168-9.
5
Ibid., p. 212.
6
Ibid., p. 169.
7
Ibid., p. 170.
8
Ibid., p. 171.
Felipe Moralles e Moraes | 23

determinada área de não-intervenção seja adquirida por uma


minoria por meio da exploração ou com descuido da maioria que
não a possui. Se a liberdade é um dos fins últimos dos seres
humanos, ninguém deveria ser privado dela pelos outros, menos
ainda, gozar dela a expensas de outros.9
Todavia, continua ele, se estamos dispostos a sacrificar a
liberdade em nome da igualdade, justiça e solidariedade, não deixa
de ser a liberdade que estamos sacrificando: “liberdade é liberdade,
não igualdade ou reciprocidade ou justiça ou cultura, ou felicidade
humana ou uma consciência quieta”.10 Não há relação entre um e
outro valor; não há um critério de comparação racional. Há opção
por um ou outro. As pessoas discordam sobre os fins últimos da
vida, como inicia seu discurso, e a teoria política deriva desse
caráter eminentemente conflitivo da vida. Seria um erro apostar
em um ideal de vida racional, por exemplo, como se fosse possível
submeter questões políticas e valorativas a uma discussão técnica.11
O segundo corolário é que, conquanto se imponham
interferências – pela constatação de que a liberdade não pode ser
absoluta e precisa ceder em favor da segurança, igualdade, justiça
ou mesmo da liberdade dos outros –, a marca da tradição liberal
seria não ceder determinada área mínima de não-violação pessoal.
Uma fronteira objetiva seria desenhada entre uma área da vida
privada e uma área da autoridade pública, independentemente se a
primeira continuasse, na prática, interferindo na vida de outros.12
É uma noção de privacidade sagrada, uma não-interferência como
valor em si próprio, ainda que não seja o único valor.13 A liberdade
conserva-se, portanto, como “liberdade de”, como uma “abstenção

9
Ibid., p. 172.
10
Ibid.
11
Ibid., p. 166.
12
Ibid., p. 171.
13
Ibid., p. 175-6.
24 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

de interferência para além de uma cambiante, mas sempre


reconhecível, fronteira”.14
O terceiro corolário é que a liberdade negativa não se mostra
incompatível com certa autocracia, ou ausência de autogoverno,
por meio de um déspota liberal.15 Ao contrário, ainda que houvesse
uma decisão democrática ou consentimento para a interferência
não se estaria sendo menos oprimido.16 Na avaliação de Berlin, “ao
longo do século dezenove, pensadores liberais mantiveram que, se a
liberdade envolvia um limite aos poderes de qualquer homem de
forçar-me a fazer o que não quero, nem poderia querer, então, não
importa o ideal em nome do qual eu fosse coagido, não seria
livre”.17 Ele identifica, então, dois princípios dessa tradição liberal
oitocentista: (i) apenas direitos podem ser considerados absolutos,
não poderes; (ii) há limites invioláveis dos indivíduos, ligados à
noção de humanidade.18
Em seu sentido positivo, diferentemente, o conceito de
liberdade procura responder à questão de quem interfere no fazer
ou ser de alguém.19 É uma “liberdade para”, ou seja, para escolher
determinada forma de vida. Ela está associada ao desejo de ser seu
próprio senhor, de que as decisões dependam de si mesmo, da
própria razão, ideias e propósitos, não de forças externas de
qualquer tipo.20 A liberdade passa a contrastar com o “impulso
irracional, desejos incontrolados, minha ‘natureza’ inferior, a
perseguição de prazeres imediatos, minha identidade ‘empírica’ ou
‘heterônoma’...” Assim, uma coação pode ser realizada em benefício
dos reais desejos do indivíduo, como ocorre no sistema

14
Ibid., p. 174.
15
Ibid., p. 176.
16
Ibid., p. 209.
17
Ibid., p. 210.
18
Ibid., p. 211.
19
Ibid., p. 168.
20
Ibid., p. 178.
Felipe Moralles e Moraes | 25

educacional, por exemplo, porque não haveria resistência se a


criança fosse racional e compreendesse adequadamente seus
próprios interesses. “A liberdade não é liberdade para fazer o que é
irracional, estúpido ou errado”. A coação pelo padrão correto é a
própria libertação.21 A concepção de liberdade torna-se capaz de
ignorar os desejos atuais das pessoas, de as intimidar, oprimir,
torturar em benefício de sua “real” identidade.22 É por meio dessa
divisão entre “eu” racional e irracional que “a identidade real pode
ser concebida como algo mais amplo que o indivíduo..., como um
‘todo’ social ao qual o indivíduo é elemento ou aspecto”.23 Por meio
dessa divisão, entende Berlin, a liberdade positiva acabou sendo
posicionada histórica e efetivamente “no coração de muitas das
crenças nacionalistas, comunista, autoritárias e totalitárias de
nossos dias”.24
Não nega o neoidealista britânico que a liberdade positiva
adentra profundamente o liberalismo. Os indivíduos são
autônomos, constituintes dos valores e última autoridade no
estabelecimento dos fins.25 De um ponto de vista lógico, ambas
liberdades partem da escolha individual. O desejo de não
interferência decorre do desejo de fazer algo. A liberdade negativa
da positiva. Ambas liberdades compartilham, portanto,
logicamente, a mesma resistência contra intrusos ou déspotas que
transpassam certo campo privado dos demais.26 Ainda assim,
Berlin quer ressaltar a passagem de uma liberdade positiva
individual para uma com caráter coletivo. Em razão dessa
passagem, a liberdade positiva desenvolveu-se historicamente ao
ponto de se opor à liberdade negativa, criando dois sistemas

21
Ibid., p. 194.
22
Ibid., p. 180.
23
Ibid., p. 179.
24
Ibid., p. 191.
25
Ibid., p. 184-5.
26
Ibid., p. 204.
26 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

opostos.27 A “liberdade para” torna-se “coação para”, promovida


pela sociedade para autocontrole ou autorrealização do indivíduo.
Abre-se espaço para um domínio público de técnicos: se a lei que o
governante impõe é racional, deverá ser aprovada por todos
membros da sociedade, como seres racionais; se desaprovam, são
irracionais e necessitam ser reprimidos. Assim, se os indivíduos
falham em disciplinar a si mesmos, não podem reclamar de falta
de liberdade na imposição de uma direção racional.28
A divisão entre liberdade negativa e positiva faz sentido
somente com a distinção entre os âmbitos individual e coletivo,
pela apropriação da liberdade positiva por sistemas autoritários.
Deixaram historicamente de ser simples interpretações de um
único conceito, para se tornarem “atitudes inconciliáveis para com
os fins da vida”, ou seja, valores últimos que “tem um direito igual
de ser classificadas entre os maiores interesses da humanidade”. Ao
menos no âmbito político, são exigências absolutas, que dependem
de compromissos práticos.29 A agonia da escolha entre fins
igualmente últimos é, para Berlin, uma característica inescapável
da condição humana, cuja realização de alguns inevitavelmente
envolve o sacrifício de outros. A concepção negativa deve ser
observada (ainda que não de modo único, nem sequer dominante,
concede ele), em razão desse reconhecimento de que as escolhas
individuais são inconciliáveis. Não há solução final que harmonize
anseios conflitantes sobre fins últimos da humanidade.30
Em suma, segundo Isaiah Berlin, a tradição liberal
oitocentista defendia uma esfera de independência individual sem
a interferência de outros, cuja violação jamais poderia ser aceita
em nome de qualquer outra finalidade, porque escorada em uma

27
Ibid., p. 179.
28
Ibid., p. 199
29
Ibid., p. 212.
30
Ibid., p. 214.
Felipe Moralles e Moraes | 27

concepção individualista e inviolável do ser humano. Eis a tese de


não-interferência (TN):

TN: a liberdade consiste na possibilidade (por meio de garantias


efetivas) de perseguir interesses sem a interferência de outras
pessoas.

Nas seções seguintes, explora-se essa interpretação da


liberdade na obra de Tocqueville, em seus aspectos mais
marcantes: (1.1) o agonismo entre os valores aristocráticos e
modernos; (1.2) a democracia como processo ameaçador da
liberdade negativa; (1.3) a profunda injustiça dessa concepção de
liberdade.

1.1 Mundo dividido

O homem encontra-se “no limite entre dois abismos”31,


enquanto membro da ordem social e enquanto indivíduo reflexivo
e crítico. Os intérpretes gostam de destacar o caráter agonístico da
obra de Tocqueville na avaliação da democracia. Uma dualidade
entre autoconsciência histórica e riscos sociais. Se, por um lado, a
igualização advinda com a revolução francesa era uma condição
sem volta; por outro, trazia muitos perigos. A saída interpretativa
geralmente é apresentar essa ambivalência do processo de
igualização como um dilema ético entre valores opostos,
teoricamente irreconciliáveis. A proposta dessa seção é (1.1.1)
apresentar essas interpretações e (1.1.2) contrapô-las à leitura de
um dilema senão preponderante, ao menos, concomitantemente
metateórico – entre dois modos de relacionar teoria política e
prática social, cujos expoentes em França eram o radical Jean-
Jacques Rousseau e o conservador François Guizot.

31
TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique, II (1840). In: ______________. Œuvres,
II, André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 1992, I, 17, p. 589.
28 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

1.1.1 Dilemas éticos

A família de Alexis de Tocqueville tem raízes na península do


Cotentin, no noroeste da França, na conhecida bocage francesa.32
As características da região explicam por que a população foi
avessa ao jacobinismo e ao aprofundamento da revolução
francesa.33 Fazendas dispersas, separadas por altas sebes;
pequenas vilas; pobre comunicação com o exterior; um misto de
agricultura de subsistência e atividade pecuária. As cobranças
feitas por nobres e pelas ordens religiosas em troca do
arrendamento das terras para fazendeiros burgueses eram
relativamente baixas, o que lhes permitia alcançar certa
prosperidade. O clero desempenhava um papel social central na
reunião e na comunicação social. A revolução francesa trouxe
impostos mais elevados; não enfrentou os arrendamentos de longo
prazo, aumentando a vulnerabilidade da classe média rural; impôs
a constituição civil do clero, contrária à subordinação ao Vaticano;
ordenou o fechamento de várias igrejas, agora subordinadas à
ordem civil, as quais representavam o coração da identidade social
do bocage. Não por menos irrompeu na região, mais precisamente,
em Vendée, uma guerra civil sangrenta entre camponeses e
republicanos, em 1793, que se supõe ter matado cerca de 400 mil
pessoas. A intervenção na organização interna da igreja católica e a
guerra civil ficaram entre as principais imagens negativas do
período. Embora não fossem contrarrevolucionários, os habitantes
do bocage opunham-se frontalmente aos radicalismos jacobinos.
Eram a favor de 1789 e contra 1793.34
Às tendências regionais, somam-se as de classe e pessoais do
visconde Alexis-Charles-Henri Clérel. Pertencia a linhagens nobres
traumatizadas pela revolução. Nasceu da confluência da noblesse

32
Bocage refere-se à paisagem típica do noroeste da França de pradarias onduladas e arborizadas.
33
MCPHEE, Peter. The french revolution: 1789-1799. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 110.
34
Ibid., p. 112 e 181.
Felipe Moralles e Moraes | 29

de race normanda de Hervé de Tocqueville com a noblesse de robe


de Louise de Rosanbo, cujos pais e irmãos foram sumariamente
executados em 1794, depois de participarem da administração real
e da defesa de Luís XVI em seu julgamento pela comissão
revolucionária. Os irmãos seguiram a carreira militar, como parte
da antiga noblesse d’épee. Todos receberam educação católica.
Quarteis, tribunais e igrejas: a frente unida dos reacionários. Não
se surpreende que Tocqueville experimentasse a melancolia de
uma residência silenciada depois de tanto poder, a fugacidade da
dinastia dos Bourbons, a miséria das instituições humanas e um
“terror religioso”35 diante do advento da democracia.
A narrativa do biógrafo Hugh Brogan é, por isso, de um
dilema pessoal. O descendente de conquistadores normandos era
surpreendido “entre dois mundos, incapaz de penetrar
confiantemente naquele que via se avultar inexoravelmente diante
de si”. Poderia ter resolvido o dilema “se fosse de ordem
simplesmente intelectual, mas era também, talvez mais do que
tudo, uma questão de emoções, do seu âmago mais profundo”.36
Democrata por razão, aristocrata por paixão.37 Ao acreditar
racionalmente no advento da igualdade no mundo, mas conservar
instintos aristocráticos, seu problema “era psicológico tanto
quanto, ou mais do que filosófico”.38 A liberdade seria um traço de
caráter aristocrático da qual estaria orgulhoso de possuir, mas que
contrastava com as instituições e costumes emergentes no mundo
moderno.
35
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 7.
36
BROGAN, op. cit., 2006, p. 61.
37
Em anotação descartada de 1841, escreve: “tenho pelas instituições democráticas um gosto intelectual,
mas sou aristocrata por instinto, quer dizer, desprezo e temo a multidão” (REDIER, Antoine. Comme
disait Monsieur de Tocqueville... Paris: Librarie Académique Perrin, 1925, p. 28). Na época, expressava
Stendhal o mesmo dilema: “amo o povo, odeio seus opressores, mas seria uma tortura perpétua para mim
viver com o povo. Eu tinha, e ainda tenho, os gostos mais aristocráticos; faria tudo pela felicidade do povo,
mas creio que preferiria passar duas semanas na cadeia todo mês a conviver com quitandeiros” (apud
SANTARRITA, Marcos. Stendhal, o primeiro engajado. In: STENDHAL. Lucien Leuwen (1834). Trad.
Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, viii).
38
BROGAN, op. cit., 2006, p. 338.
30 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

A maioria dos intérpretes ressalta essas tensões de ordem


pessoal na sua obra, muito difíceis de negar.39 Mas quem, sob a
vista dos châteaux abandonados em França, dos modelos heroicos
do medievo, não é motivado a observações sobre a fugacidade dos
reinos e das pessoas, à admiração de uma antiga e poderosa forma
de vida que não mais existe? Uma tristeza assim não vem à tona
necessariamente por perdas familiares ou pela evanescência de
objetivos personalíssimos. Também pode ser motivada pela queda
de uma forma de vida brilhante, excitante e erudita existente nas
antigas aristocracias e por uma rebelião contra uma forma de vida
burguesa, ordinária e sufocante. Assim, pode-se entender com
Charles Taylor que existe nos teóricos da liberdade moderna uma
autêntica tensão de valores, ainda que se projetem em
sentimentos, emoções, etc. A tensão entre o fato de que os sujeitos
modernos não podem e não querem abandonar totalmente a
tendência racional e tecnológica da sociedade, embora sintam o
apelo constante por uma noção romântica dos seres humanos, de
que cada um é único e não pode ser previsto, nem prescrito por
ninguém. Segundo ele, liberais como Tocqueville tentavam
resguardar o caráter romântico e imaginativo da vida privada
contra o crescente domínio utilitarista e instrumentalista da vida
pública.40 Nesse sentido, escreve o nobre francês que seus
“contemporâneos estão constantemente divididos por duas paixões
inimigas: eles sentem a necessidade de serem guiados e a vontade

39
Entre outros: FURET, François. El nacimento de um paradigma: Tocqueville y el viaje a América
(1825-1831) (1984). In: ROLDÁN, Darío (Ed.) Lecturas de Tocqueville. Madrid: Siglo XXI, 2007, p.
54; LAMBERTI, in Lecturas, p. 173; KELLY, George Armstrong. The humane comedy: Constant,
Tocqueville and french liberalism. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 62, 79 e 231;
FRANCO, op. cit., 2012, p. 26-7.
40
TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna (1979). Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 93-5.
Felipe Moralles e Moraes | 31

de permanecerem livres”.41 Era-lhe conhecida a passagem de


Montaigne: “somos, não sei como, duplos em nós mesmos...”42
A liberdade é definida por Tocqueville como um “prazer de
poder falar, agir e respirar sem restrições, sob o único governo de
Deus e das leis”. Ela é esse “gosto sublime” pela independência, que
impede a conformidade aos padrões modernos e deve direcionar
pensamento e ação política.43 O progresso das forças de produção
introduzia valores de utilidade, bem-estar, igualdade que ameaçam
a individualidade aristocrática. A independência opõe-se aos
padrões modernos. O desejo de igualdade e bem-estar seria
destruidor da liberdade, que deveria ser resguardada de todas
esses novos padrões sociais, continua Célia Galvão Quirino: “a
proteção do indivíduo é, pois, não apenas contra o Estado, mas
também contra a sociedade, em suas mais variadas
manifestações”.44 A confrontação do progresso apelaria ao
romantismo, à crítica da modernidade pelo recurso aos valores
antigos: “são os valores do Antigo Regime, aliados a um temor ao
desenvolvimento industrial, que irão se opor à destruição das
pequenas comunidades e à sua transformação em grandes
concentrações urbanas e massificantes”.45 A força da liberdade
como não interferência estaria nesse “gosto instintivo”46 pela
especificidade, irrenunciável à autocompreensão dos sujeitos
modernos. O sujeito deixa de ser atraído instintivamente por uma

41
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 6, p. 838.
42
MONTAIGNE, Michel de. Essais, Livre II (1582/88). Pierre Michel (Ed.). Paris: Gallimard, 1965, 16,
p. 372. O Démocratie faz expressa referência a esse capítulo dos ensaios (TOCQUEVILLE, op. cit.,
1840, II, 8, p. 636).
43
TOCQUEVILLE, Alexis de. L’ancien régime et la revolution (1856). In :___________. Œuvres, III,
André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 2004, III, 3, p. 195.
44
QUIRINO, op. cit., 2001, p. 46.
45
Ibid., p. 48, 52 e 127.
46
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 3, p. 59; id., op. cit., 1840, II, 1, p. 611.
32 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

autoridade legal ou moral, para se lhes dedicar só em função do


próprio entendimento, convencimento e opinião.47
Em sua dissecação das modalidades de enredos históricos,
Hayden White enquadra o gentilhomme na categoria dos
historiadores trágicos. A sua obra estaria marcada pelo agon das
divisões e possibilidades parciais e contingentes de liberação da
queda. A possível reconciliação com o desenvolvimento histórico
teria o caráter de resignação com as condições em que o indivíduo
deve labutar no mundo. As condições dentro das quais o homem
deve agir são inalteráveis; elas “impõem limites quanto ao que se
pode aspirar e ao que se pode legitimamente visar na busca por
segurança e equilíbrio no mundo”.48 O liberalismo de Tocqueville
poderia ser compreendido, então, como uma crença da natureza
dúplice, ambígua, misteriosa dos seres humanos. É um ser capaz
de mediar as novas forças que despontavam no horizonte histórico
e os antigos ideais ameaçados: a rebelião democrática radical de
um lado, a aristocracia reacionária de outro. O papel do indivíduo
seria remendar as rachaduras de um mundo dividido.49 Seria
preciso salvar um ponto de vista aristocrático, a independência de
espírito da velha ordem, da inundação democrática de uma nova
organização social.50 Eis a tragédia! E o drama aumentava na
Europa, onde havia ideias políticas altamente conflitantes, um
poder estatal que se tornara centralizador e uma tradição
revolucionária que periodicamente o dissolvia a serviço do ideal de
liberdade. “Isto é, o drama europeu, em contraste com o norte-
americano, tinha todos os ingredientes de uma tragédia real”.51

47
HEGEL, op. cit., § 124 Anm.; id., op. cit., 1837, Einleitung, II, p. 66; WELLMER, op. cit., 1989, p.
39; HONNETH, Axel. Das Recht der Freiheit: Grundriß einer demokratischen Sittlichkeit.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2011, p. 58.
48
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX (1973). Trad. José Laurênio
de Melo. São Paulo: EDUSP, 1992, p. 221, p. 25.
49
Ibid., p. 206-8.
50
Ibid., p. 216.
51
Ibid., p. 222.
Felipe Moralles e Moraes | 33

Nisso o enredo histórico poderia fornecer apenas um “alívio


provisório do estado dividido em que os homens se acham neste
mundo”.52 Essa seria sua “nova ciência política”53, pois serviria
como ponto privilegiado do qual conciliaria os princípios de uma
sociedade aristocrática que desaparecia sob seus olhos com os da
sociedade moderna que se afirmava, acrescenta Luiz Werneck
Vianna: “o conservador Tocqueville foi movido pelo objetivo de
moderar a democracia com instituições e valores das sociedades
aristocráticas, ou algo que viesse a exercer papel funcionalmente
semelhante a eles”.54 Seu pensamento seria marcado pela mediação
social, que nunca deixaria de ser uma mediação provisória, como
um pequeno equilibrar no caminho estreito que divide dois
abismos.
A origem da liberdade europeia poderia ser traçada, segundo
Montesquieu, aos povos germânicos. Selvagens, errantes e sem
cultivar a terra, não se submetiam facilmente a chefes e lhes
conferiam poderes limitados.55 O principal teórico conservador
francês oitocentista e, por muitos anos, ministro de Estado,
François Guizot populariza esse “gosto de independência”
originário dos povos germânicos e da relação que mantinham
entre chefes e companheiros de guerra. “Foi pelos bárbaros
alemães que esse sentimento foi introduzido na civilização
europeia: ele era desconhecido entre os romanos, desconhecido da
igreja católica, desconhecido de quase todas as civilizações da
antiguidade”.56 Ambos autores eram familiares para Tocqueville.

52
Ibid., p. 24.
53
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 8.
54
VIANNA, Luiz Werneck. Lições da América: o problema do americanismo em Tocqueville. Lua
Nova, São Paulo, n. 30, p. 160, ago. 1993.
55
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. De l’esprit des lois, I (1748). Paris: Garnier-
Flammarion, 1979, XVIII, 14 e 30.
56
GUIZOT, François. Histoire de la civilisation en Europe, depuis la chute de l'Empire romain
jusqu'à la Révolution française (1828/30). 18ème edition. Paris: Didier, 1881, p. 61-2. Esse foi o único
livro requisitado por Tocqueville durante a viagem aos Estados Unidos, em carta a Ernest de Chabrol
de 18 de maio de 1831 (NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, p. 18a).
34 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Para ele também, a liberdade europeia não nasceu com a revolução


de 1789, nem com a democracia, mas nos instintos feudais.57 Um
espírito guerreiro de independência parece animar sua concepção
de liberdade: “para ser livre, é necessário saber conceber um
empreendimento difícil e nele perseverar, ter o costume de agir por
si mesmo; para viver livre, é necessário habituar-se a uma
existência plena de agitação e perigo; vigiar sem cessar e lançar a
cada instante um olho inquieto ao redor de si”.58 A liberdade seria
filha das tradições – quer da nobreza dos feudos na Europa, quer
do puritanismo das townships nos Estados Unidos.59 Por isso, fala
de uma “liberdade aristocrática”, com origem na barreira que os
nobres levantavam à tirania dos príncipes e dos costumes que
impunham limites à sua própria tirania contra as classes
inferiores, ao lado de uma “liberdade democrática”, com origem na
prestação de conta do indivíduo por suas ações apenas a Deus,
sendo ele o único e melhor juiz de seus interesses, nos quais a
sociedade estaria legitimada a intervir apenas quando malferisse a
liberdade dos demais.60 Mesmo no Novo Mundo, a liberdade já era
antiga – uma herança dos direitos individuais assegurados pelas
instituições inglesas.61 Depois de ter envelhecido é que se poderia
conhecer seu verdadeiro significado.62 Em ambas as formas sociais,
aristocrática ou democrática, a liberdade teria o mesmo sentido de
independência individual contra interferências externas.
Para o liberal Benjamin Constant, o objetivo principal, “o
objetivo sagrado de toda instituição política” é a liberdade do

57
TOCQUEVILLE, Alexis de. État social et politique de la France avant et depuis 1789 (1836). In:
______________. Œuvres, III, André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 2004, II, p. 34.
58
Id., op. cit., 1833/35, 7 juillet, p. 514.
59
Id., op. cit., 1835, II, 5, p. 226.
60
Ibid., I, 2, p. 32-3 e 46; I, 5, p. 70.
61
Id., op. cit., 1840, IV, 4, 815-6.
62
Id., op. cit., 1835, II, 6, p. 274-5.
Felipe Moralles e Moraes | 35

indivíduo.63 A concessão de direitos políticos à maioria seria uma


fonte de corrupção e desordens e serviria “infalivelmente para
invadir a propriedade”!64 Menos estridente, através da “realidade
providencial”65 da igualdade, Tocqueville abre caminho a uma
política de artifício construído para a garantia da não-intervenção.
Os povos democráticos “mostram um amor mais ardente e mais
durável pela igualdade que pela liberdade”. Ele teme que isso
desperte gostos depravados, leve os fracos a desejarem atrair os
fortes para seu nível e a preferirem a igualdade na servidão à
desigualdade na liberdade.66 Se o mundo político se tornava mais
igual, era preciso “conservar o pouco de independência, de força, da
originalidade, que lhe restam... tal me parece ser o principal objeto
do legislador na época em que estamos entrando”.67 E finaliza sua
obra-prima: “as nações de hoje em dia não poderiam impedir que
as condições fossem iguais em seu seio; mas depende delas que a
igualdade as conduza à servidão ou à liberdade, às luzes ou à
barbárie, à prosperidade ou às misérias.”68
À primeira vista, a solução para o conflito entre os valores
democráticos da liberdade e da igualdade é a mesma para esses
liberais. A oposição é solucionada alterando o plano de realização
dos ideais, ensina Quirino: “o novo liberalismo se volta contra
aqueles que haviam estabelecido que a liberdade e a igualdade
deveriam caminhar juntas”.69 A igualdade é protelada. É uma meta
a ser atingida progressivamente, no futuro, como um programa
para quando o desenvolvimento moral, educacional e tecnológico

63
CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos representativos e em
particular à Constituição atual da França (1815). In: QUIRINO, Célia N. Galvão (Ed.). Escritos de
política. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 74.
64
Ibid., p. 57.
65
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 7.
66
Id., op. cit., 1840, II, 1, 607 e 611.
67
Ibid., IV, 7, p. 848.
68
Ibid., IV, 8, p. 854.
69
QUIRINO, op. cit., 2001, p. 45.
36 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

tivesse transformado os indivíduos pacificamente em homens


iguais, sem sacrifício da liberdade.70 A oposição é resolvida
definindo que a liberdade seria construída pelo engenho
institucional, enquanto que a igualdade seria uma conquista
natural e gradual. Aquela nos remete ao polo do sujeito, vontade e
ação; esta, ao polo da natureza. Porque há um problema de tempo
na relação da liberdade com a igualdade, aquela deve proceder e
incorporar esta seletivamente. A igualdade é retirada da política.71
Criticamente, pode-se perguntar com Claude Lefort se a
igualdade de condições não seria também uma conquista para a
humanidade? Ela não é somente uma gradual redução das
diferenciações, mas também uma destruição de posições de
dominação.72 A “tirania da maioria” foi uma expressão cunhada
por Tocqueville e imediatamente adotada pelos partidos
conservadores da época, que a utilizavam para justificar os abusos
preponderantes das minorias.73 Na época, já se enxergava com
ceticismo a alegada tendência à igualização das condições no
mundo – que parecia antes uma emergência e aumento de poder
da classe média, do que um desaparecimento da distinção de

70
Ibid., p. 47.
71
LEFORT, Claude. From equality to freedom: fragments of an interpretation of Democracy in
America (1986). In: _______. Democracy and political theory. Transl. David Macey. Cambridge:
Polity Press, 1988, p. 195; MANENT, Pierre. Guizot y Tocqueville frente a lo antiguo y lo nuevo
(1991). In: ROLDÁN, Darío (Ed.) Lecturas de Tocqueville. Madrid: Siglo XXI, 2007, p. 73; VIANNA,
op. cit., 1993, p. 174.
72
LEFORT, op. cit., 1986, p. 196.
73
Cf. MILL, John Stuart. De Tocqueville on Democracy in America, II (1840). In: ____. The collected
works of John Stuart Mill. John M. Robson (Ed.). Vol. XVIII. Toronto: University of Toronto Press,
1977, p. 156. Para ser mais preciso, a expressão teve origem na tradução para o francês como
“tyrannie des majorités” da passagem “oppressions of factious majorities” (HAMILTON, Alexander;
JAY, John; MADISON, James. The federalist: a commentary on the Constitution of the United States.
Robert Scigliano (Ed.). New York: Random House, 2000, No. 51, p. 335) citada e reproduzida no
Démocratie (TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 7, p. 299). Note-se que a tradução era do próprio
Tocqueville, pois a edição francesa dos artigos federalistas, que também foi utilizada por ele na época
(NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, p. 1384), traduzia a expressão como “majorité factieuse” (HAMILTON,
Alexander; JAY, John; MADISON, James. Le fédéralist, ou collection de quelques écrits en faveur de
la Constitution proposée aux États-Unis de l’Amérique, par la Convention convoquée en 1787.
Buisson: Paris, 1792, p. 167).
Felipe Moralles e Moraes | 37

classes ou mesmo das classes muito ricas e muito pobres, às quais


eram transportadas várias das opiniões, hábitos e sentimentos
dessas classes médias.74 A crítica merece ressoar diante de mais
um destino providencial que não se concretizou. “Ora, a
Providência!” – reclamava Balzac –, não se conhece nada no
mundo mais elástico e incerto.75
Surpreende, nesse sentido, que Tocqueville, confrontado
com a revolução de 1848, encare os operários parisienses como
verdadeiros estrangeiros, inimigos do povo francês, comparando-
os aos vândalos e godos invadindo a civilização romana.76 Acusa
Gauchet: “frente a eles não pareceu conceber outra saída que não
fosse contê-los ou esmagá-los, sem que a questão da necessária
integração desses excluídos – aquela que o avanço da história, tal
como ele mesmo descreveu, deverá conduzir fatalmente... – pareça
roçá-lo nem por um só segundo”.77 Também surpreende que,
testemunhando o massacre étnico dos índios e a exclusão dos
negros da igualdade política, pelas leis ou pelo terror, em uma
“aristocracia da pele”, considere que essas seriam questões da
América, não da democracia – quando espoliação, deportação,
extermínio e genocídio foram iniciados pelos europeus.78 E que
possa chamar de sociedade plenamente democrática uma baseada
na “aristocracia do sexo... a mais natural, mais completa e mais
universal que se conhece”,79 atribuindo às mulheres a preservação
dos bons costumes privados.80 Ele não se opõe à tradicional divisão
74
MILL, op. cit., 1840, p. 163 e 196; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 10, p. 643; III, 5, p. 694; III,
8, p. 708 ; III, 21, p. 769; TOCQUEVILLE, Alexis de. Souvenirs (1850/51). In: ______________.
Œuvres, III, André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 2004, I, 1, p. 728.
75
BALZAC, Honoré de. A pele de onagro (1831). Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 73.
76
TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, II, 2, p. 786; II, 5, p. 816-7 e II, 7, p. 823.
77
GAUCHET, Marcel. Tocqueville, América y nosotros: sobre la génesis de las sociedades democráticas
(1980). In: ROLDÁN, Darío (Ed.) Lecturas de Tocqueville. Madrid: Siglo XXI, 2007, p. 97.
78
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 10, p. 367.
79
NOLLA (Ed.), op. cit., p. 728b; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, II, 2, p. 787.
80
TOCQUEVILLE, op. cit., 1833/35, 3 septembre, p. 444-5 e 8 août, p. 593; id., op. cit., 1835, II, 9, p.
336 ; id., op. cit., 1840, III, 9, p. 712.
38 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

do trabalho entre gêneros.81 A democracia parece poder ser


celebrada e a liberdade definida independentemente da exclusão de
mais da metade dos seres humanos da igualdade social e política.82
Mais paradoxal soa a defesa do imperialismo: traria
grandeur à França; atenuaria seus conflitos partidários internos;
criaria um monumento à glória dos europeus ao colonizarem
culturas menos civilizadas.83 Escreve para Arthur de Gobineau:

Você diz que pareceremos um dia à ralé que tem sobre seus olhos
[na Ásia]: é possível. Mas, antes que isso aconteça, seremos seus
mestres. Alguns milhões de homens que, há poucos séculos,
viviam quase sem abrigo dentro de florestas e pântanos serão,
antes de cem anos, os transformadores do globo em que habitam
e os dominadores de toda sua espécie. Não há anúncio mais
claramente antecipado nas visões da Providência.84

Sugeria, então, como Ministro do Exterior, a criação de uma


sociedade segregacionista no norte africano, por meio da
expropriação de terras e uso do trabalho dos árabes, sem lhes dar
formação escolar ou participação política. O apelo aristocrático por
grandes ambições, sem consideração para com seu conteúdo,
conflitava abertamente com o direito de autogoverno dos outros
povos. A aventura colonialista terminou como havia começado,
como símbolo da injustiça, em meio a torturas e atrocidades
praticadas pelos franceses.85 A democracia dava lugar ao
81
MILL, John Stuart. De Tocqueville on Democracy in America, I (1835). In: ____. The collected
works of John Stuart Mill. John M. Robson (Ed.). Vol. XVIII. Toronto/London: University of
Toronto Press/Routledge and Kegan Paul, 1977, p. 55 note; AMIEL, Anne. Le vocabulaire de
Tocqueville. Paris: Ellipses, 2002, p. 28.
82
LOSURDO, op. cit., 1996, p. 44.
83
WELCH, Cheryl B. Out of Africa: Tocqueville's imperial voyages. In: HENDERSON, Christine Dunn
(Ed.) Tocqueville’s voyages: the evolution of his ideas and their journey beyond his time. Indianapolis:
Liberty Fund, 2014, p. 312-21; BOESCHE, Roger. The dark side of Tocqueville: on war and empire (2005).
In: _______. Tocqueville’s road map: methodology, liberalism, revolution and despotism. Lanham:
Lexington Books, 2008, p. 109-16; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, III, 22, p. 787.
84
TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre à Arthur de Gobineau, 13 novembre 1855. Revue des Deux
Mondes, 5e période, tome 40, 1907, p. 80.
85
WELCH, op. cit., 2014, p. 325-34.
Felipe Moralles e Moraes | 39

despotismo, enquanto a humanidade permanece incapaz “de


aperfeiçoamento pela discussão livre e igual”, como também
defendia John Stuart Mill.86 Usando o mesmo recurso à imagem
dos povos germânicos, o liberal inglês vangloria-se que os
orientais, antes as mais poderosas sociedades do mundo, seriam
“súditas ou dependentes de tribos cujos antepassados vagueavam
pelas florestas”.87
Em imagens ainda mais rápidas que essas palavras, todas as
desconfianças para com o liberalismo assaltam a mente do
pensador honesto. Enxameiam as suspeitas de uma ideologia. As
acusações podem ser direcionadas contra a alta sociedade como
um todo, da qual os liberais em geral fazem parte. Ela tem a
tendência de expulsar de seu seio os infelizes, abominar suas dores.
Por mais evidente que seja uma injustiça, sabe diminuí-la ou
ridicularizá-la. A morte aos fracos é a sentença de uma aristocracia
que persiste no mundo. Quem sofre e não tem dinheiro ou poder é
um pária. E se o excluído transpõe os limites imaginados pela alta
sociedade e faz reivindicações políticas, encontra frieza de olhar e
palavras – quando não colhe insultos de onde esperava
compreensão.
A denúncia contra os liberais oitocentistas é que o point de
départ da igualdade de condições deveria ser tomado hoje como
point d’arrivée. Nas atuais circunstâncias, deveríamos inverter os
termos de Tocqueville.88 A avaliação serve especialmente para
nosso país em que podemos ter uma estrutura democrática
instalada e sérias dúvidas sobre sua suficiência para a produção de
uma sociedade de iguais.89 Em vez de interpretar a democracia,
86
MILL, John Stuart. On liberty (1859). In: ____. The collected works of John Stuart Mill. John M.
Robson (Ed.). Vol. XVIII. Toronto: University of Toronto Press, 1977, p. 224.
87
Ibid., p. 272-3 ; MILL, John Stuart. Considerations on representative government (1861). In: ____.
The collected works of John Stuart Mill. John M. Robson (Ed.). Vol. XIX. Toronto: University of
Toronto Press, 1977, p. 376.
88
GAUCHET, in Lecturas, p. 97.
89
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 4-5. Em relação à França pós-revolucionária, há estimativa de
40 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

seria agora preciso conquistá-la, botando Tocqueville de ponta


cabeça!
Esses liberais não eram sujeitos desonestos, contudo. Eles
combatiam os reacionários com tanta força quanto os jacobinos.
Constant gostava de sublinhar que as observações contra os
revolucionários “não tendem absolutamente a diminuir a
importância da liberdade política. Não extraio dos fatos que vos
expus as consequências que certos homens deles extraem”,
referindo-se aos monarquistas.90 Em resenha ao livro de um
monarquista, lança Guizot pela primeira vez a tese de que não
poderia mais haver uma aristocracia de direito.91 A revolução

que as famílias nobres tenham sofrido uma redução de aproximadamente um terço de sua renda
média. Não puderam, também, evitar de pagar os impostos, que mais que triplicaram sobre suas
rendas em comparação com o período pré-revolucionário (MCPHEE, op. cit., 2002, p. 197). Isso não
impedia Tocqueville, por exemplo, de manter, na metade do século XIX, um empregado com a
função exclusiva de limpar suas botas e escovar suas roupas, embora já percebesse a sociedade
francesa como a mais democrática da Europa (Op. cit., 1850/51, II, 10, p. 861). As principais perdas
não foram no campo das desigualdades de renda e riquezas, que continuaram muito elevadas, mas
sim nos direitos judiciais e poderes políticos – das cortes senhoriais até aos parlaments –, bem como
no prestígio e deferência pela prática da igualdade legal. Uma erosão da “mística da nobreza...
mesmo quando os nobres sobreviveram à Revolução com as propriedades fundiárias intactas, suas
relações sociais com os demais submeteram-se a uma enorme mudança” (MCPHEE, op. cit., 2002, p.
198). Há estimativa de economistas de que, na segunda metade do século XIX, a concentração de
renda em França tenha variado entre 0,66 e 0,55 do índice Gini, semelhante aos piores índices
brasileiros, sob a ditadura militar. Depois da redemocratização, esse índice passou a variar, na
primeira metade do século XXI, entre 0,59 e 0,51, ainda muito superior aos dos países mais
democráticos do mundo contemporâneo (cf. MORRISSON, Christian; SNYDER, Wayne. The income
inequality of France in historical perspective. European Review of Economic History, Cambridge,
v. 4, p. 70, april 2000; BRASIL. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Renda -
desigualdade - coeficiente de Gini (1976-2014). Disponível em: <http://www.ipeadata.gov.br>.
Acesso em 04/01/2019). Quanto à desigualdade de riquezas, estima-se que os franceses 10% mais
ricos concentravam mais de 80% das riquezas nacionais durante o século XIX, em contraste com
pouco mais de 40% concentrados pelos brasileiros 10% mais ricos, em níveis semelhantes aos dos
países mais democráticos da contemporaneidade (cf. GARBINTI, Bertrand; GROUPILLE-LEBRET,
Jonathan; PIKETTY, Thomas. Accounting for wealth inequality dynamics: methods, estimates and
simulations for France (1800-2014). World Inequality Database, p. 25-6, dez. 2016. Disponível em:
<https://wid.world/>. Acesso em 05/01/2019; BENEDICTO, Marcelo; MARLI, Mônica. 10% da
população concentram quase metade da renda do país. Agência IBGE Notícias, 11/04/2018.
Disponível: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br>. Acesso em 05/09/2019).
90
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos (1818). Trad. Loura
Silveira. Filosofia Política, Porto Alegre, n. 2, p. 21, 1985.
91
GUIZOT, François. Politique spéciale: de la monarchie française depuis la seconde restauration
jusqu’à la fin de la session de 1816, avec un supplément sur la session actuelle, par M. le comte de
Felipe Moralles e Moraes | 41

francesa havia feito muito mais do que substituir uma aristocracia


desgastada por uma nova, mais numerosa, mais extensa, com
outro ânimo, como se bastasse uma classe tomar o lugar da
anterior e encenar uma atuação pelos menos favorecidos.92 A
revolução havia sido movida por um só princípio: “a aplicação de
todas as leis de justiça a todos indivíduos..., de uma justiça
universal em suas aplicações”.93 Um retorno à França antiga não
seria possível, nem bom, nem justo. A tese é repetida nos livros
seguintes e associada a uma lei providencial de aumento da
igualdade e liberdade.94 Tocqueville foi aluno atento de suas
conferências.95
A imagem tocquevilleana do rumo sagrado à igualdade de
condições não tinha uma única, mas duas funções retóricas.96 A
generalização da história da igualdade garantia-lhe a sanção de que
a igualdade se encaminhava a despeito da discussão sobre a
legitimidade da revolução francesa.97 A aura providencial da
transformação servia contra os ultrarrealistas e reacionários que
sonhavam com uma restauração da aristocracia. Ora, lutar contra
a igualização era lutar “contra Deus mesmo”!98 Uma dúvida ateísta
para com a democracia estaria contradizendo a omnisciente
Providência. Na verdade, aqueles que pensavam reviver os regimes

Montlosier. Archives philosophiques, politiques et littéraires. 3ème Tome. Paris: Jeunehomme-


Crémière, 1818, p. 407.
92
Ibid., p. 404.
93
Ibid., p. 405-6.
94
Cf. GUIZOT, François. Du governement de la France depuis la restauration et du ministère
actuel. 3ème edition. Paris: Fastes de la gloire, 1820, p. 139 e 168.
95
BROGAN, op. cit., 2006, p. 102-3.
96
COHN, Gabriel. Tocqueville e a paixão bem compreendida. In: BORON, Atilio A. (Org.) Filosofia
política moderna: de Hobbes a Marx. Buenos Aires/São Paulo: CLACSO/USP, 2006, p. 249-51;
MANSFIELD JR., Harvey C.; WINTHROP, Delba. Tocqueville’s new political science. In: WELCH,
Cheryl B. (Ed.). The cambridge companion to Tocqueville. Cambridge: Cambridge University
Press, 2006, p. 102.
97
JASMIN, Marcelo Gantus. Tocqueville, a providência e a história. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 2,
p. 15, 1997; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1836, II, p. 39; id., op. cit., 1840, IV, 5, p. 832-3.
98
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 7.
42 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

monárquicos estavam mesmo cegos.99 Uma paixão animava a


França: o ódio ao antigo regime e às antigas classes
privilegiadas.100 Assim como Guizot, estava convencido que
fracassariam todos que, nos séculos seguintes, tentassem apoiar a
autoridade sobre o privilégio e princípios aristocráticos.101 Não
havia mais alternativa entre democracia ou aristocracia, só entre
democracia livre ou despotismo.102 O antigo edifício ruía.103 “A
aristocracia já estava morta...”104 O dilema ético, decidido.105
De certo modo, a “imagem da democracia ela mesma”
funciona para Tocqueville como um “tipo-ideal”, como são o
capitalismo, feudalismo, cristandade. Esses são tipos não
encontráveis na realidade, mas indispensáveis à investigação da
conexão causal e significado dos fenômenos sociais.106 Entretanto,
os tipos-ideais serão concebidos por Max Weber como
instrumentos de medição, comparação e verificação de conexões
entre o empírico e os valores históricos, não como ideais para
julgamento da realidade.107 A dimensão cognitiva dos tipos-ideais
distanciaria, segundo as regras do positivismo sociológico, a ciência
das crenças.108 Ao contrário, Tocqueville não esconde seu objetivo
crítico. Esses tipos puros servem ao esclarecimento à ação política
sobre uma forma de governo e sociedade. Pergunta ele: queres dar
ao espírito humano certa altura, certo desprezo pelos bens
99
Ibid., II, 9, p. 365.
100
Id., op. cit., 1850/51, III, 2, p. 898.
101
Id., op. cit., 1840, IV, 7, p. 840.
102
Ibid., IV, 8, p. 854
103
Id., op. cit., 1835, introduction, p. 12.
104
NOLLA (Ed.), op. cit., editor’s introduction, lvii.
105
MILL, op. cit., 1835, p. 50. A resenha de Mill foi avalizada pelo autor (TOCQUEVILLE, Alexis de.
Lettre à John Stuart Mill, 3 décembre 1835. In: BEAUMONT (Ed.), op. cit., VI, p. 52).
106
WEBER, Max. Die “Objektivität” sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer Erkenntnis (1904).
In: ______. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Johannes Winckelmann (Hrsg.). 4.
Aufl. Tübingen: J.C.B.Mohr (Paul Siebeck), 1973, p. 190-3 e 213.
107
Ibid., p. 194 e 199.
108
Ibid., p. 212.
Felipe Moralles e Moraes | 43

materiais, polir os costumes, fazer brilhar as artes, poesia, fama e


glória? Então, não opte pela democracia. Preferes o bem-estar das
gentes à glória, a razão à genialidade, a paz às virtudes heroicas,
uma sociedade prospera a uma brilhante? Então, defenda a
democracia. Agora, se a escolha já foi feita, sem consultar teus
desejos pessoais, em favor de uma dessas formas, “então procure
ao menos retirar dela todo o bem que ela pode oferecer, conhecendo
seus bons instintos, assim como suas tendências ruins, esforçando-
se para reduzir o efeito das últimas e desenvolver as primeiras”.109
Em vez de mergulhar em dilemas éticos, reconhece ele que passou
o tempo de escolher entre uma dessas formas; só restava agir com
conhecimento de causa sobre a democracia.
Voltando ao tema dos excluídos, a formação humanista
havia-lhe ensinado que cada pessoa “traz a forma inteira da
condição humana”.110 Tocqueville tinha consciência que as
mulheres não eram naturalmente inferiores, mas subjugadas pelos
homens, apontando que a ideia de civilização na Europa não
significava ainda que a relação de gênero houvesse se tornado
democrática.111 Defende o acesso das mulheres à educação.112 Ainda
que não questione a divisão sexual do trabalho, considera que
deveriam ter igual valor e estima social; e a mulher, a mesma
independência do homem; afinal, a igualdade de condições deveria
derrubar “todas as barreiras imaginárias ou reais que separam o
homem da mulher”.113 Embora não hesite em qualificar certos
costumes como atrasados, bárbaros e incivilizados, jamais os
associa à origem geográfica, cor ou etnia, como faziam as teorias
baseadas no binômio clima e raça. Fornece o exemplo da fundação
da Libéria, na costa da Guiné, onde os negros libertos estabeleciam

109
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 7, p. 281-2.
110
MONTAIGNE, op. cit., 1582/88, III, 2, p. 45.
111
NOLLA (Ed.), op. cit., p. 727-8b.
112
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, III, 9, p. 714.
113
Ibid., III, 11, p. 719 e III, 12, p. 728-9.
44 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

uma colônia semelhante a dos brancos, fundando igrejas, jornais,


escolas, criando um governo representativo com eleições, júri,
etc.114 Declara sua hostilidade contra os europeus que haviam
reintroduzido a escravidão do mundo e contra o racismo, por
remeter a uma distinção entre seres humanos.115 Era urgente
conceder não só liberdade, mas também direitos civis aos negros
americanos.116 Como humanista, denuncia o lento extermínio dos
índios, provocado pela violação do direito de propriedade sobre
suas terras e pela devastação de seus meios de subsistência.117
Critica os crimes que os colonizadores brancos perpetravam contra
a humanidade, embora o admirado espírito aristocrático dos índios
sinalizasse o mesmo destino da nobreza europeia.118 Apesar de
achar pretextos para o imperialismo francês, opunha-se aos
métodos sanguinários de dominação na Argélia, que tornavam a
sociedade muçulmana mais miserável, desordenada, ignorante e
bárbara. Acusa que inviabilizariam a convivência entre os povos no
longo prazo e como que prediz o que ocorreria mais de um século
depois: a expulsão violenta dos franceses de seu département
africano.119
A todo sentir, os liberais oitocentistas não se contentavam
em reproduzir, de maneira acrítica, preconceitos de classe, gênero
ou etnia; embora defendessem a igualdade como meio para a
liberdade. O problema para os liberais franceses era que a
igualdade democrática não deveria significar ausência de direitos,
ignorância e pobreza, embora essas fossem e continuem sendo as

114
Id., op. cit., 1835, II, 10, p. 416.
115
QUIRINO, op. cit., 2001, p. 103; AMIEL, op. cit., 2002, p. 47.
116
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 10, p. 418.
117
Ibid., p. 389-90, 393 e 450-1.
118
Ibid., I, 1, p. 28 e II, 10, p. 381-2; cf. GUIZOT, op. cit., 1828/30, p. 60; BENOÎT, Jean-Louis.
Tocqueville’s reflections on a democratic paradox. In: HENDERSON, Christine Dunn (Ed.)
Tocqueville’s voyages: the evolution of his ideas and their journey beyond his time. Indianapolis:
Liberty Fund, 2014, p. 286 e 296.
119
BOESCHE, op. cit., 2005, p. 114; BENOÎT, op. cit., 2014, p. 300-1.
Felipe Moralles e Moraes | 45

formas mais rápidas de igualização social.120 Seu impulso imediato


foi a experiência traumática da queda das instituições de liberdade
durante os espasmos revolucionários – o que não significa
necessariamente ideais reacionários, mas possivelmente uma
preocupação com a estabilidade institucional. O liberalismo francês
surgiu num contexto de intenso conflito entre a defesa de direitos
individuais e as lutas de igualização. Há certos momentos na
história da filosofia em que toda vírgula parece ser um golpe de
sabre e todo o ponto, uma cabeça decepada.121 Neles cada opinião é
empurrada para além de seus limites pelos excessos dos
adversários e todos parecem perder de vista seus reais objetivos.122
A ideia matriz era induzir, em sentido contrário, a moderação dos
contendores, os partidários da democracia e da aristocracia. A
esperança era responder às inquietações compartilhadas, de um
lado, por legitimistas e republicanos e, de outro, por socialistas e
comunistas. “[U]ns pensarão que no fundo eu não amo a
democracia e que sou severo para com ela, ao passo que outros
pensarão que favoreço imprudentemente seu desenvolvimento”.123
No parlamento, Tocqueville posicionava-se à centro-esquerda e
havia, sem sucesso, tentado fundar o partido Jeune Gauche.124
Ainda que o mundo não seja mais o mesmo, nem o trauma liberal
tão profundo, o drama intelectual tem alguma analogia com o dos

120
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 2, p. 58.
121
Cf. BÜCHNER, Georg. A morte de Danton (1834/35). Rio de Janeiro: Ediouro, 1985, p. 84.
122
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 12.
123
NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, editor’s introduction, xlviii; na já citada carta a Henry Reeve de 22
março de 1837, reforça: “as pessoas me atribuem alternativamente preconceitos democráticos ou
aristocráticos. Talvez eu tivesse esses ou aqueles, se eu tivesse nascido em outro século ou em outro
país. Mas o acaso de meu nascimento fez muito fácil defender-me de uns e outros. Eu vim ao mundo
ao fim de uma grande revolução que, depois de haver destruído o antigo estado, nada criou de
durável. A aristocracia já não existia mais e a democracia não existia ainda... Em uma palavra, eu
estava tão bem em equilíbrio entre o passado e o futuro que não me sentia natural e instintivamente
atraído nem em direção a um, nem a outro, e não precisei de grandes esforços para olhar
tranquilamente para os dois lados” (In: BEAUMONT (Ed.), op. cit., VI, p. 68-9).
124
TOCQUEVILLE, Alexis de. De la classe moyenne et du peuple (1847). In :___________. Œuvres, I,
André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 1991, p. 1121 note; id., op. cit., 1850/51, I, 5, p. 765;
46 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

progressistas brasileiros – como pregam fraternidade aos


conservadores e legalidade aos socialistas, uns lhes querem dar
tiros, outros lhes teriam levado à guilhotina.
O que confundem os intérpretes são os dilemas, ao mesmo
tempo, pessoais, éticos e filosóficos que se mesclam na oposição
entre mundos pré e pós-revolucionário. Para além do dilema ético,
havia um metateórico, sobre a relação entre teoria política e prática
social, entre normativismo irrealista e realismo derrotista.
Desprendendo-se dos conflitos partidários, assim justifica
Tocqueville sua obra: “eu quis pensar sobre o futuro”.125

1.1.2 Dilema metateórico

O primeiro a enunciar uma antítese entre a liberdade dos


modernos e a liberdade dos antigos foi Constant, em célebre
discurso pronunciado no Ateneu Real de Paris em 1818. A distinção
tinha, porém, um objetivo muito mais prático do que esclarecer o
pensamento dos antigos: esse era chamar atenção ao estado social
dos modernos e criticar as representações abstratas da política,
como as de Jean-Jacques Rousseau. Por isso, Constant é
reconhecido como um dos tradutores da realidade social moderna:
a sociedade burguesa.126 A esperança de rebater a herança
revolucionária rousseaunista motivava o nascimento de uma
ciência social:

Vimos em nossa Revolução literatos, matemáticos, químicos,


entregarem-se às opiniões mais exageradas [...] tinham chegado
por caminhos diferentes ao mesmo resultado, o de desdenhar as
considerações tiradas dos fatos, de desprezar o mundo real e
sensível e de raciocinar sobre o estado social como entusiastas,

125
Id., op. cit., 1835, introduction, p. 18.
126
MARX, Karl. Die Klassekämpfe in Frankreich 1848 bis 1850 (1850). In: ______; ENGELS,
Friedrich. Werke. Band 7. Berlin: Dietz Verlag, 1960, p. 10.
Felipe Moralles e Moraes | 47

sobre as paixões como geômetras, sobre as dores humanas como


médicos.127

Para o constitucionalista francês, os revolucionários no


período do terror tentaram forçar a França “a usufruir de um bem
que ela não desejava e contestaram-lhe o bem que ela queria”.128
Zelavam por uma noção de vida boa que não mais interessava aos
seus contemporâneos. Embora bem-intencionados e inspirados na
beleza, energia e dignidade dos antigos, opondo-se aos abusos e
humilhações dos governos absolutistas, não souberam
compreender os bens fundamentais da sociedade moderna. A
filosofia de Rousseau, em especial, desejando reanimar o sentido de
república e levada “pelo mais puro amor à liberdade, forneceu
desastrosos pretextos a mais de um tipo de tirania”.129
A liberdade dos modernos – extrai Constant da linguagem
ordinária de franceses, ingleses e estadunidenses – consiste na
segurança ou independência individual: o direito de não se
submeter senão às leis; de não poder ser preso, detido, condenado
ou maltratado por efeito da vontade arbitrária de um ou vários
indivíduos; de dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de
exercê-lo; de dispor e abusar de sua propriedade; de ir e vir sem
necessidade de autorização; de reunir-se com outros indivíduos
para discutir sobre seus interesse ou para professar algum culto de
sua preferência; de preencher, enfim, “seus dias e suas horas de
maneira mais condizente com suas inclinações, com suas
fantasias”.130 A filosofia política moderna teria que partir desses
dois princípios da modernidade: (i) que a independência individual
é a primeira das necessidades e (ii) que as instituições antigas que
a sacrificavam em favor da liberdade política não são mais

127
CONSTANT, op. cit., 1815, VI, p. 63.
128
Id., op. cit., 1818, p. 9.
129
Ibid., p. 16.
130
Ibid., p. 10.
48 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

aceitáveis.131 A história efetiva da filosofia de Rousseau derivava da


incapacidade de observar o estado social e os interesses
fundamentais dos indivíduos modernos.
No mesmo sentido, Tocqueville corresponsabiliza as teorias
abstratas e literárias do séc. XVIII, entre elas, a de Rousseau, pela
perda da liberdade durante o período revolucionário. Impedidos
pelos governos absolutistas de criticarem medidas e agentes
concretos, ocupavam-se os teóricos em atacar os princípios
fundamentais da sociedade.132 Jamais teriam tido repercussão
semelhante em um governo livre, no qual os cidadãos refletem e
lidam cotidianamente com questões políticas práticas. “Os
americanos formam um povo democrático que sempre dirigiu, por
si mesmo, os assuntos públicos, e nós somos um povo democrático
que, por um longo período, só pode pensar sobre o melhor meio de
os conduzir”.133 Não se critica, por óbvio, o exercício filosófico per
se – o que seria ignorar a importância das ideias, doutrinas e
teorias políticas que “movimentam o mundo”134, as quais
raramente podem se emaranhar em detalhes práticos –, mas sim a
exasperação dos planos extraídos da pura razão ou do direito
natural e a cegueira para com a base pragmática dos assuntos
políticos. As ideias devem sempre ser retificáveis pela experiência.
A abordagem teórica da política não poderia ser tal que nenhuma
realidade servisse de obstáculo, mesmo que as reformas propostas
fossem as mais desejáveis.135 “O que chamo de espírito literário na
política consiste em... se mostrar muito sensível à boa interpretação
e dicção dos atores, independentemente das consequências da
peça...”136 A teoria rousseaunista da democracia pertencia ao

131
Ibid., p. 19.
132
TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, II, 6, p. 105-6.
133
Id., op. cit., 1840, I, 4, p. 529.
134
Id., op. cit., 1833/35, 7 septembre, p. 456.
135
Id., op. cit., 1840, p. 529-30; id., op. cit., 1856, III, 1, p. 171.
136
Id., op. cit., 1850/51, II, 1, p. 780.
Felipe Moralles e Moraes | 49

tempo, nas palavras de Mill, em que o governo popular não


passava de um sonho ou uma menção sobre um passado remoto
nos livros de história.137
A intenção desses liberais era juntar as propostas de
transformação social a uma análise da realidade social. É já sob o
princípio da pesquisa sistemática e sociológica que Tocqueville e
Beaumont são enviados pelo governo francês à América do Norte
para lá estudar o sistema penitenciário. Uma consciência mais
realista da situação e das consequências sociais de certas medidas
era necessária para agir corretamente.138 O valor do seu trabalho
estava antes no modo de chegar a conclusões, do que propriamente
no conteúdo específico dessas conclusões, ao tratar a democracia
como uma realidade, em suas múltiplas tendências, em vez de um
ideal a priori e metafísico.139 Novos princípios eram necessários
para que se soubesse que tipo de liberdade poderia se ansiar e que
tipo de igualdade poderia se almejar. Precisamos de uma nova
ciência política, defendia Tocqueville, porque se deparava com um
“mundo inteiramente novo”.140 A questão levantada pelos liberais
oitocentistas era sobre sentido dos ideais democráticos de
liberdade e igualdade. Quais transformações podem ser
propugnadas dentro das sociedades modernas? Quais as
transformações podem ser taxadas de fantasiosas? Não é de se
concordar que existem pessoas, sejam leigos, filósofos ou literatos,

137
MILL, op. cit., 1859, p. 219.
138
SIEDENTOP, Larry. Two liberal traditions. In: RYAN, Alan (Ed.). The idea of freedom: essays in
honour of Isaiah Berlin. Oxford: Oxford University Press, 1979, p. 156; GOYARD-FABRE, Simone. El
pensamiento político de Alexis de Tocqueville (1991). In: ROLDÁN, Darío (Ed.). Lecturas de
Tocqueville. Madrid: Siglo XXI, 2007, p. 32; QUIRINO, op. cit., 2001, p. 43-4; GUELLEC, Laurence.
The writer engagé: Tocqueville and political rhetoric. Transl. Arthur Goldhammer. In: WELCH,
Cheryl B. (Ed.). The cambridge companion to Tocqueville. Cambridge: Cambridge University
Press, 2006, p. 169; FRANCO, op. cit., 2012, p. 33.
139
MILL, op. cit., 1840, p. 156 .
140
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 8.
50 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

com pouca atenção, para utilizar a expressão de Constant, aos


“interesses ativos da vida”?141
Certamente, responderia Berlin. Ele também estava
preocupado com a recepção de certas teorias nas universidades
britânicas na segunda metade do séc. XX, com o ímpeto dos
estudantes de melhorar o mundo a partir de ideais. É
surpreendente, exclama, que persista esse pensamento ante
regimes totalitários que se intensificam! É também perigoso,
porque os intelectuais ignoram a força dos ideais. Inflamam os
fanáticos. À filosofia compete a crítica racional, a reflexão sobre as
consequências dos ideais. O que acontece se interpretamos
liberdade ou igualdade de uma ou outra maneira?142 Nisso se pode
incluir, mesmo contra Berlin, a consequência de conservação do
status quo.
Assim se posicionavam esses liberais contra a doutrina de
Rousseau, sustentando que as transformações sociais não
poderiam partir de um ideal normativo, mas de uma compreensão
acerca do estado social dos povos, assim compreendida como “a
condição material e intelectual na qual se encontra um povo em
uma dada época”.143 O referencial teórico de Tocqueville era o
principal intelectual conservador francês da época e seu admirado
professor, com o qual vai estabelecer outro polo de interlocução.144
Se a influência do “espírito do mundo” de Hegel foi-lhe, no
máximo, indireta; a “marcha da Providência” de Guizot tinha a
mesma pretensão de revelar uma história e destino universal da
humanidade, abrangendo todos povos particulares.145 Ambos são
leitores assíduos de Montesquieu e tematizam a modernidade
extrapolando seus limites de uma unidade dada pelo “espírito das

141
CONSTANT, op. cit., 1815, VI, p. 64.
142
BERLIN, op. cit., 1958, p. 166-7.
143
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 3, p. 50 manuscrit; cf. GUIZOT, op. cit., 1828/30, p. 13-4.
144
Cf. FURET, in Lecturas, p. 52; MANENT, in Lecturas, p. 65.
145
GUIZOT, op. cit., 1828/30, p. 8-9 e 24-5.
Felipe Moralles e Moraes | 51

leis” ou “espírito geral de uma nação” – que consistia na


conformação da razão às particularidades de cada povo, incluindo
governo, geografia, riquezas, tamanho, religião, hábitos e toda
sorte de detalhes relacionadas às leis do país.146 Extrapolando esses
limites, o “fato da civilização” une, segundo Guizot, todos grandes
acontecimentos; serve como medida decisiva de seu valor; expressa
a convicção de um aperfeiçoamento humano concomitante ao
advento de instituições mais justas; representa o fato mesmo do
progresso.147 A civilização equivale, em sua metáfora, a um oceano
onde desaguam e reúnem todos os elementos da vida de um povo,
todas as forças de sua existência, todas suas riquezas, e onde são
dissolvidas todas suas impurezas.148 A ideia de civilização é o ponto
central para onde convergem as pretensões modernas de
distribuição de bens e desenvolvimento pessoal.149 “Se nos
voltarmos à história do mundo, ...encontraremos que todos os
grandes desenvolvimentos do homem interior funcionaram em
benefício da sociedade; todos os grandes desenvolvimentos do
estado social, ao benefício da humanidade”.150 Ele investiga, então,
as configurações que essa ideia assumiu em diferentes povos e
épocas “determinando as instituições, costumes, crenças, em uma
palavra, todos os desenvolvimentos”.151
Para Tocqueville, a realidade providencial da democracia
tem uma função semelhante à de civilização, como um “movimento
geral impresso ao espírito humano em todo o mundo atual”.152 Ele
parte da influência determinante que a igualização moderna das
condições dava à história geral, pois “para além dos costumes

146
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, I, 3 e XIX, 4-5.
147
GUIZOT, op. cit., 1828/30, p. 11, 15 e 23.
148
Ibid., p. 10.
149
Ibid., p. 16-8.
150
Ibid., p. 22.
151
Ibid., p. 34.
152
TOCQUEVILLE, op. cit., 1833/35, 7 septembre, p. 450.
52 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

políticos e das leis... cria opiniões, faz nascer sentimentos, sugere


hábitos e modifica tudo o que não produz”.153 E investiga, então, as
variações desse processo nos diferentes povos. França, Estados
Unidos da América e mesmo nos países despóticos. Em França, a
igualização ainda estava restrita aos costumes, em contraste com o
âmbito político; em um ponto extremo, como no Egito da época,
estava restrita à ignorância, imobilidade e “fragilidade
democrática” dos súditos do paxá.154 A concentração de poder em
um só e submissão dos demais não era incompatível com a ideia de
igualdade de condições.
Todos esses teóricos que falaram de Providência,
perfectibilidade ou progresso compreenderam algo do “espírito do
mundo”, dizia Hegel.155 É dizer: essas noções aludem a uma
realidade distinta do estado de natureza, qualquer que seja sua
concepção, o qual pressupõe um princípio separado do estado civil.
Da tematização filosófica da modernidade, esses teóricos
compreenderam que uma crítica da sociedade moderna deve ser
extraída de uma racionalidade imanente. Na famosa frase da
Rechtsphilosophie: “o que é racional, isso é real; e o que é real, isso
é racional”.156 A realidade social efetiva, a também denominada
atualidade ou efetividade (Wirklichkeit), possui uma estrutura
racional que precisa ser reconstruída, a fim de que se apreenda
corretamente o significado da liberdade.157 Do contrário, se essa
estrutura é mal compreendida, em conceitos falsos ou
insuficientes, surgem lesões na existência social, ou externalidade
(Realität). Um Estado considerado ruim por seus cidadãos
simplesmente existe, não tem autêntica realidade, exemplifica
Hegel.158 E explica: “o povo deve ter em favor de sua Constituição o
153
Id., op. cit., 1835, introduction, p. 3.
154
Id., op. cit., 1840, II, 1, p. 608 e IV, 4, p. 818.
155
HEGEL, op. cit., 1821, § 343.
156
Ibid., Vorrede, p. 24.
157
Ibid., § 1.
158
Ibid., § 270 Zus.
Felipe Moralles e Moraes | 53

sentimento de seu direito e de sua condição, senão pode ela, é certo,


estar presente externamente, mas ela não tem nenhum significado e
valor”.159 As instituições políticas tornam-se efetivas quando
progridem em consonância com as potencialidades,
autoconsciência e conhecimento dos cidadãos.160 Noutro exemplo,
uma mão decepada parece ainda uma mão e existe, mas sem ser
efetiva161, porque o membro deve captar e exprimir as
potencialidades da pessoa. As contrações de dor, rusgas, desordens
emocionais e sociais abrem fendas na efetividade; elas revelam as
contradições no conceito de liberdade, as quais precisam ser
esclarecidas e reparadas conceitualmente pelo filósofo. “É esse o
posicionamento da filosofia em relação à efetividade, que as
incompreensões afetam... a filosofia, porque ela é a descoberta do
racional, é a apreensão do atual e do efetivo, não a construção do
mundo do além...”162
A Providência é o conceito adotado por Tocqueville para
expressar essa razão imanente ao mundo moderno. Ela
compartilha três das qualidades do análogo hegeliano. (i) Em
primeiro lugar, não se confunde com uma crença religiosa no além
ou plano divino oculto, porque tem um sentido empiricamente
determinado, em paixões e instituições mundanos.163 Como coloca
Tocqueville: “não é necessário que Deus fale, ele mesmo, para que
descubramos sinais certos de sua vontade; basta examinar qual é...
a tendência contínua dos eventos”.164 (ii) E essa tendência está
associada, em segundo lugar, a conquistas evidentes de justiça em
comparação com o momento histórico anterior, como foram a
abolição da escravidão, a destruição do sistema feudal, a
159
Ibid., § 274 Zus.
160
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução (1941). Trad. Marília Barroso. Rio de Janeiro: Saga, 1969,
p. 22 e 146.
161
HEGEL, op. cit., 1821, § 270 Zus.
162
Ibid., Vorrede, p. 24.
163
Id., op. cit., 1837, Einleitung, I, p. 54
164
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 7.
54 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

organização de governos constitucionais.165 Sem dúvida, esses


pensadores antebellum não contavam com recuos tão violentos
como os presenciados no século XX. Em retrospectiva, sabe-se que
confiaram demasiadamente em uma “astúcia da razão”166; ou em
uma “grande floresta onde todos os caminhos terminam no mesmo
ponto” 167; ou ainda em uma marcha histórica “a contrapelo dos
desejos de todos que a produzem, tal como uma pipa que voa pela
ação oposta do vento e da corda”168 – isto é, em algumas conquistas
modernas, que acreditavam que receberiam suporte mais enérgico,
na medida em que eram reivindicadas e reproduzidas por milhões
de pessoas, a despeito de seus desígnios particulares.169 É provável
que Tocqueville se surpreendesse com a perpetuação da
desigualdade entre brancos e negros ou com uma desigualdade
econômica crescente nos dias de hoje.170
(iii) Apesar de tudo, esses teóricos jamais deixaram de tomar
a razão imanente da modernidade, por força própria, apenas como
uma possibilidade, tendência ou escopo indefinido temporalmente,
porque a atualidade da razão depende sempre, em terceiro lugar,
da efetivação social, “cujo princípio é a vontade, a atividade mesma
dos seres humanos”.171 Não especulavam automatismos históricos.
Seria um sentimentalismo vazio supor que a razão humana, como
pura racionalidade, tivesse algum poder, negado à irracionalidade,
de prevalecer contra máquinas de guerra, manipulação e
propaganda.172 Não se obscurece que as pessoas, principalmente se
reunidas em corpo social, agem voluntária e independentemente
165
Cf. Ibid., introduction, p. 6; HEGEL, op. cit., 1837, Einleitung, II, p. 60
166
HEGEL, op. cit., 1837, Einleitung, II, p. 78.
167
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, III, 17, p. 744.
168
Id., op. cit., 1850/51, I, 2, p. 746-7.
169
HONNETH, op. cit., 2011, p. 112.
170
Cf. ELSTER, Jon. Alexis de Tocqueville: the first social scientist. Cambridge: Cambridge
University Press, 2009, p. 112.
171
HEGEL, op. cit., 1837, Einleitung, II, p. 65.
172
Cf. MILL, op. cit., 1859, p. 238.
Felipe Moralles e Moraes | 55

sobre o movimento histórico e modificam seu destino.173 Nada há


na Providência divina, censura Tocqueville, das teorias covardes
que pensam que os povos obedecem a uma força invencível e
independente da inteligência humana.174
De uma parte, portanto, o liberal francês está em sintonia
com essa filosofia política que recusa imaginar contratos
hipotéticos, para extrair sua crítica social dos prospectos de
mudança existentes em determinada situação histórica. De outra
parte, há uma dissonância com a ideia onipresente de civilização e
de espírito do mundo.
Ao lado da razão imanente, há uma irrazão imanente na
história. A igualdade que edifica ameaça a liberdade individual. O
liberalismo tocquevilleano compartilha com o pensamento de
Berlin a percepção de que os valores últimos podem ser objetivos,
cognoscíveis e perpassados por uma ideia comum e fundamental
de humanidade; porém múltiplos. Que eles frequentemente
entram em conflito e que não possuem um critério mais geral
capaz de conciliação.175 As virtudes do medievo cristão não
coexistem harmoniosamente, em uma pessoa ou sociedade, com o
bem-estar perseguido nas democracias modernas, assim como não
coexistem liberdade e igualdade ou mesmo distintas concepções de
liberdade. Entre liberdades, assim como entre igualdades, há
escolhas, negociações, acordos práticos a serem feitos; ganhos em
um espectro a expensas de outro; e não há teoria ou princípios
mais gerais capazes de afastar ou facilitar essas escolhas
implacáveis.176 Em comparação com a imagem do oceano
civilizatório, a democracia parece antes um grande rio, que se
duplica, reencontra e choca violentamente com outras correntes

173
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, I, 20, p. 600-1.
174
Ibid., IV, 8, p. 853.
175
GRAY, John. Berlin’s agonistic liberalism. In: ____. Post-liberalism: studies in political thought.
London: Routledge, 1993, p. 65
176
Ibid., p. 67
56 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

circundantes do fluxo histórico.177 A concepção de uma liberdade


defendida dentro desse pluralismo de valores últimos é o que
permite ver o significado da defesa da liberdade negativa contra os
demais ideais da modernidade. É um liberalismo agonístico e sem
conciliações teóricas possíveis.178
Ao contrário do que se acusa o liberal francês, portanto, não
estava simplesmente atando uma ideia abstrata à totalidade das
tendências da sociedade moderna e lhes dando um nome.179 Nem
tudo são momentos da mesma ideia, racionalidade ou sistema; há
fenômenos humanos, puritanos, britânicos, que mantém
tendências próprias e que apenas assumem formas específicas na
democracia.180 No prefácio ao segundo volume do Démocratie,
alerta Tocqueville que não se deveria confundir democracia com
sociedade moderna tout court e reforça: “eu não propus mostrar a
razão para todas nossas inclinações e ideias; somente quis mostrar
a medida que a igualdades as modificou”.181
A recusa à razão totalizante representada, para Guizot, pela
ideia de civilização, estende-se à premissa de Hegel de que haveria
uma “única coisa verdadeira do espírito”.182 Não é preciso supor
metafisicamente, como ainda é comum entre os teóricos críticos,
que todos os valores das sociedades modernas estejam fundidos
em uma ideia, no caso dos hegelianos, à ideia de liberdade – como
se a bandeira da revolução francesa fosse de uma só cor; como se a
justiça dependesse exclusivamente de qual o sentido conferido à
liberdade; como se todos outros valores não passassem de

177
Cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 1, p. 608.
178
GRAY, op. cit., 1993, p. 67.
179
MILL, op. cit., 1840, p. 191; sem o mesmo teor crítico cf. REIS, Helena Esser dos. Virtudes e vícios
da democracia. Philosophos, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 118, jan./jun. 2006; BOESCHE, Roger. Preface.
In: _______. Tocqueville’s road map: methodology, liberalism, revolution and despotism. Lanham:
Lexington Books, 2008, p. 2-5.
180
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 2, p. 48.
181
Id., op. cit., 1840, avertissement, p. 510.
182
HEGEL, op. cit., 1837, Einleitung, II, p. 58.
Felipe Moralles e Moraes | 57

esclarecimentos dessa ideia unificadora, da qual bastariam ser


decifrados os múltiplos significados.183 Em seu sentido negativo, a
liberdade delimita as áreas em que não poderia haver coação sobre
alguma pessoa ou grupo de pessoas – não poderia haver ordem,
nem dever de obediência. Se ordem e obediência são necessárias à
sociedade, isso permanece, critica Hegel, algo “externo e contrário
à liberdade”.184 A “necessidade da coisa” fica de lado.185 Cultura,
práticas e instituições são vistas, repete Axel Honneth, “como algo
meramente externo” à liberdade.186 Mas por que haveria
incompletude no conceito por não apreender a totalidade da
sociedade moderna? Essa incompletude surge apenas quando se
pressupõe um valor único (seja civilização, democracia ou
liberdade) capaz de centralizar a totalidade das condições de
reprodução e transformação social, o que é uma premissa que
Tocqueville, Berlin e o pensamento pós-metafísico em geral não
estão dispostos a aceitar.
Nesse quadro metateórico, nem o normativismo idealizante
de Rousseau, nem a historiografia totalizante de Guizot satisfazem.
Se não é possível pensar a sociedade sob um valor único, de que
modo relacionar o conhecimento sobre ela com uma crítica
imanente? Trata-se do problema metateórico central da filosofia
moderna, no contexto de justificação pós-metafísico: como
articular tendências concretas atuantes na sociedade com uma
avaliação crítica, normativa e, até certo ponto, ideal da
realidade?187
A sociologia que Tocqueville desenvolve está baseada em
efeitos de repetição, compensação e saturação das ideias e hábitos
de uma esfera da vida (religiosa, artística, política, militar,
183
Cf. HONNETH, op. cit., 2011, p. 9, 35-40.
184
HEGEL, op. cit., 1837, Einleitung, II, p. 93.
185
Id., op. cit., 1821, § 2, Anm.
186
HONNETH, op. cit., 2011, p. 104.
187
WERLE, Denilson Luís. Rawls, razão pública e os limites da democracia liberal. In: _____. Justiça
e democracia: ensaios sobre John Rawls e Jürgen Habermas. São Paulo: Esfera Pública, 2008, p. 36.
58 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

econômica ou familiar) em relação a outra e vice-versa. Busca


descrever fenômenos, respectivamente, de repetição de certo
padrão de comportamento de uma esfera social em outra; de
compensação em uma esfera de certa necessidade não suprida em
outra; ou de esgotamento de uma necessidade em uma esfera
social, razão pela qual estaria ausente em outra.188 Por exemplo, os
estadunidenses “transportavam” os hábitos parlamentares e do
júri da vida pública à vida privada, enquanto os europeus o faziam
em sentido contrário, os hábitos da conversação tranquila e
privada eram “introduzidos” na vida pública.189 Noutros casos, os
hábitos comerciais de frugalidade anglo-americana é que “se
prolongam dentro da vida pública”.190 Trata-se de uma sociologia
sem leis causais ou tendências uniformes, em que a corrente causal
dos fenômenos pode correr em um sentido ou outro, conforme o
contexto, influenciando capacidades, oportunidades e desejos dos
indivíduos e, logo, seus comportamentos.191 Por um lado, essa
sociologia gera assistematicidade e inclinação a inferências
especulativas, nem sempre acompanhadas de suficientes
evidências empíricas – o que se soma ao caráter agonístico ante o
processo de igualização, em uma “retórica de copo meio-cheio e
meio-vazio”, para dar a aparência de contradição à obra.192 Por
outro lado, tem a vantagem de não pressupor serem sempre os
mesmos padrões a operar em diferentes esferas da vida social.193 A
sociologia de Tocqueville abre mão de uma apreensão totalizante
da realidade, na qual as consequências positivas ou negativas dos
acontecimentos e padrões históricos abstraem das ideias e desejos
dos próprios concernidos. Não adota, em geral, explicações
188
ELSTER, op. cit., 2009, p. 13-4
189
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 9, p. 353.
190
Ibid., II, 5, p. 244.
191
ELSTER, op. cit., 2009, p. 16. Deixa-se para detalhar outros casos desses mecanismos mais
adiante, quando for abordada a forma de dominação moderna.
192
Ibid., p. 3, 78 e 147.
193
Ibid., p. 13 e 44.
Felipe Moralles e Moraes | 59

funcionalistas, mas mecanismos que pretendem revelar o que


conduz os envolvidos a acreditar em certas normas e as seguirem –
pela repetição, compensação ou saturação de ideias e hábitos.
Esses mecanismos funcionam, esclarece Jon Elster, dentro de
uma teoria circular de causalidade social, na qual as principais
variáveis suportam-se mutuamente. A falta de leis causais ou
tendenciais uniformes não gera contradição, porque a perspectiva
sociológica de Tocqueville procura revelar que, em equilíbrio,
costumes em diferentes esferas da vida se retroalimentam.194
Quando ele menciona que as leis fazem mais para manter uma
democracia do que a geografia, e os costumes mais do que as
leis195, não está dizendo que os costumes sejam as causas das leis,
nem que os costumes expliquem mais fenômenos do que as leis,
nem mesmo que eles expliquem mais um fenômeno no somar de
todas as causas.196 Há inúmeras passagens em que afirma
precisamente o contrário, de que há prioridade do estado social
sobre as leis e costumes197, ou prioridade das leis sobre o estado
social198, ou mesmo a prioridade das leis sobre os costumes199.
Esse último é o caso, num exemplo muito significativo para
os brasileiros, da instituição da escravidão, que “explica os
costumes e o estado social do Sul”.200 A escravidão “modificou o
caráter dos habitantes do Sul e deu-lhes hábitos diferentes”, causa
por que não lhes era aplicável “a imagem integral de uma sociedade

194
Ibid., p. 96-8.
195
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 9, p. 358.
196
ELSTER, op. cit., 2009, p. 97.
197
Por exemplo, quando menciona o estado social democrático nos EUA (TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I,
3, p. 50; id., op. cit., 1840, avertissement, p. 509) ou quando fala da semelhança entre o estado social dos
índios americanos com o dos antigos povos germânicos (id., op. cit., 1835, II, 10, p. 381).
198
Por exemplo, quando menciona a influência determinante das leis de sucessão na diferenciação
entre os Estados do Sul e do Norte dos EUA (ibid., I, 3, p. 52).
199
Por exemplo, quando reflete que, se costumes livre nos EUA fizeram livres as instituições políticas,
“em França, cabe às instituições políticas livres fazer os costumes” (TOCQUEVILLE, Alexis de. Cahier
portatif 3. In: ___________. Œuvres, I, André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 1991, p. 167).
200
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 2, p. 34.
60 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

democrática”.201 Essa instituição criou ideias e costumes de


opressão, porque as leis fazem os escravos encontrar “alegria e
prazer na imitação de seus opressores”.202 Ao mesmo tempo, em
contraste com o orgulho indígena, que o leva a lutar com o branco,
“a servidão do negro entrega-o à escravidão”.203 Não há
contradição entre causas institucionais e culturais, insiste Elster, na
medida em que se observe que a socialização opressora submetia
os negros desde a mais tenra infância, por exemplo, proibindo que
fossem ensinados a ler e escrever. As leis escravocratas limitavam
capacidades e oportunidades e criavam ideias e sentimentos nos
negros que estabilizavam e reforçavam essas mesmas leis.204 Os
contatos entre as várias esferas da vida aumentam ou reduzem
oportunidades, capacidades e desejos nos indivíduos e, logo, criam
uma maior ou menor probabilidade de ação.205 A dificuldade de
abolir as marcas da escravidão entre as civilizações modernas está
precisamente na estabilização dessa instituição, que não somente
fazia com que a mão de obra custasse mais e fosse menos
produtiva, mas também penetrava “até a alma no senhor,
imprimindo uma direção particular às suas ideias e seus gostos ...O
americano da margem esquerda [do rio Ohio] não somente
despreza o trabalho, mas todos empreendimentos que o trabalho
faz bem suceder... A escravidão não impede somente os brancos de
fazer fortuna, ela os desvia de a querer”.206 A escravidão retirava
tanto a oportunidade do senhor de enriquecer pelo próprio
trabalho, quanto seu desejo, criando uma classe privilegiada, ociosa
e quase feudal.

201
Ibid., II, 10, p. 435; id., op. cit., 1840, III, 18, p. 750 note.
202
Ibid., p. 369.
203
Ibid., p. 371.
204
ELSTER, op. cit., 2009, p. 98; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 10, p. 370 e 419-20.
205
Ibid., p. 79-80.
206
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 10, p. 402-3.
Felipe Moralles e Moraes | 61

A perspectiva crítica começa para Tocqueville ao descobrir


que nem sempre esses mecanismos de repetição, compensação e
saturação se suportam mutuamente. Eles podem provocar tensões
sociais.207 As sombras da escravidão presentes à época eram o
prenúncio de sombras mais profundas por vir.208 No caso, o
prenúncio de uma guerra civil, que se concretizou trinta anos mais
tarde, entre os estados do Norte e do Sul.209 De maneira análoga ao
risco da “aristocracia da pele” para a democracia, descobre o risco
de surgimento de novas espécies de aristocracias e, com elas, a
possibilidade de crises políticas, sociais e emocionais. Assim como
os mecanismos de repetição, compensação ou saturação de ideias e
hábitos funcionavam em favor da democracia, podiam se reforçar
para a obstaculizar e destruir. Era o caso, aliás, das ideias
demasiado conservadoras de Guizot ou abstratas de Rousseau,
distanciadas da dinâmica social, e que, como “doença geral dos
espíritos”, conduziam a revoluções.210 Eis as contradições práticas,
aí compreendidas as más compreensões e confusões acerca de
conceitos políticos fundamentais, que ameaçam o processo de
democratização e que interessam à filosofia crítica de Tocqueville.

1.2 Democracia

É inevitável abordar, sem mais demora, o conceito capital da


obra de Tocqueville. Nessa seção, apresenta-se sua ideia de
democracia dentro de uma tradição que a compreende não em um,
nem dois, mas em três sentidos diferentes e complementares.

207
Cf. ELSTER, op. cit., 2009, p. 98.
208
Cf. MELVILLE, Herman. Benito Cereno (1856). In: ________. Contos de Herman Melville. Trad.
Olívia Krähenbühl. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 86
209
Cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 10, p. 418.
210
Id., op. cit., 1850/51, I, 3, p. 753 e II, 9, p. 851; cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. Discours prononcé le
27 janvier 1848 (1848). In :___________. Œuvres, I, André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 1991, p.
1126.
62 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

1.2.1 Estrutura

Decorre do aparato conceitual de Montesquieu analisar as


formas de governo pelas estruturas de como e quem governa e, ao
mesmo tempo, pelas paixões que as animam. O filósofo de La
Brède assim escreve: “existe essa diferença entre a natureza do
governo e seu princípio... Uma é a estrutura particular, a outra as
paixões humanas que fazem-no mover. Ora, as leis não devem ser
menos relativas ao princípio de cada governo do que à sua
natureza”.211 As ações estatais e dos cidadãos sob as diferentes
formas de governo não poderiam ser explicadas somente com a
distinção entre quem governa e quem é governado, isto é, pelas leis
e instituições, enquanto fatores estáticos de poder político. A
legalidade impõe limites às ações políticas, mas não as inspira.
Entre as leis e sua efetivação, pode surgir um abismo de
mentalidades e hábitos que impede sua aplicação imparcial e
igualitária. Os órgãos de aplicação do direito – polícia, justiça,
burocracia e militares – podem sempre exercer o poder que lhes foi
concedido pela soberania popular de maneira arbitrária, o que
torna necessário um componente não-jurídico na democracia.212
Na expressão célebre de Montesquieu, os aparatos institucionais
dependem necessariamente da “mola” (ressort) das paixões
humanas.213
Por isso, o termo “democracia” é usado por Montesquieu de
modo intercambiável, para se referir ora à estrutura de governo –
onde o povo em conjunto possui o poder soberano214 –, ora ao
princípio democrático da igualdade – conforme o mote de que “o
amor pela democracia é o amor pela igualdade”.215 À maneira de

211
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, III, 1.
212
Cf. HONNETH, op. cit., 2011, p. 585.
213
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, III, 3.
214
Ibid., II, 1.
215
Ibid., V, 3.
Felipe Moralles e Moraes | 63

Platão, as formas de governo estão associadas ao caráter dos


cidadãos, sendo o cidadão democrático o “amante da igualdade”.216
A diferença para com os filósofos políticos modernos é que o
ateniense toma a igualdade ainda como uma consequência do
regime democrático, ao invés de seu pressuposto. Sem uma paixão
prévia, passa a entender Montesquieu, a democracia ficaria
estagnada, emperrada e morreria. Uma forma de governo
democratiza-se na medida em que as pessoas se enxergam como
iguais e exigem tratamento igual. Ela depende de disposições e
sentimentos igualitários para adquirir um impulso coletivo.
Seguindo essa filiação teórica, a qual nunca deixou de ser
ressaltada217, Tocqueville vê afirmar-se uma democracia não só
porque, “rigorosamente, nos Estados Unidos, é o povo quem
governa”218; mas, principalmente, porque o processo de igualização
fazia nascer a paixão principal que agita as pessoas nesses tempos:
o “amor à igualdade”.219 É menos o mecanismo das leis, do que “a
força dos seus motores” que produz a democracia.220
Não se tome isso como uma oposição entre política e
sociedade – como se, extraídas as entranhas das paixões sociais, se
jogasse fora o corpo político. Mesmo uma carcaça de soberania
popular pode servir de instrumento à regeneração dos
movimentos populares pela igualdade. Tocqueville traz o exemplo
dos direitos eleitorais, acesso a cargos públicos, associação e
imprensa que haviam sido preservados aos irlandeses pelos
conquistadores ingleses. Embora poder, terras e riquezas dos
protestantes tivessem servido, durante dois séculos, para controlar
votos, juris, publicações e reuniões dos católicos, haviam deixado
abertos os caminhos: chegou um momento em que o povo se
216
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 4 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1949, 561e.
217
Cf. MILL, op. cit., 1835, p. 57; BROGAN, op. cit., 2006, p. 280.
218
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 1, p. 193.
219
Id., op. cit., 1840, II, 1, p. 607.
220
Id., op. cit., 1856, III, 4, p. 201.
64 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

tornou menos miserável e mais numeroso, quando ousou votar


contra os proprietários, denunciar o despotismo na imprensa,
inflamar-se em seus meetings. “A tirania foi vencida pelas mesmas
formas à sombra das quais sempre acreditara viver e que, durante
duzentos anos, lhe haviam servido de instrumentos”.221 A estrutura
democrática pode sempre dar lugar ao seu princípio, porque
possibilita que os oprimidos se organizem contra os opressores.222
As estruturas não somente são úteis, como também são
indispensáveis ao princípio, pois conferem resistência,
durabilidade e continuidade às democracias. “As formas permitem
aos homens desgostar passageiramente da liberdade sem a
perder”.223 Um povo que não pudesse parar seus opressores senão
nas ruas, como num campo de batalha, seria subjugado com
facilidade. Ao se desfazer de seus direitos de soberania, percebe
Tocqueville, seria rapidamente reduzido a gritos de estertor.224
Apesar de a cisão entre sociedades democráticas e
aristocráticas ser um artifício sociológico que ressalta o estado
social dos povos em vez de sua estrutura de governo, é também a
linguagem mais politizada possível, que articulou os conflitos pelo
poder desde a antiguidade, nas guerras entre Esparta e Atenas:
“quase todas as revoluções que mudaram a face dos povos foram
feitas para consagrar ou destruir a igualdade. Se se descarta as
causas secundárias que produziram as grandes agitações da
humanidade, chega-se quase sempre à desigualdade”.225
Tocqueville espelha os conflitos sociais e os conflitos pelo poder
político. Sua teoria da sociedade é um decalque da sua teoria das
formas de governo: uma luta entre classes aristocráticas e

221
Id., op. cit., 1833/35, 2 août, p. 583
222
Id., op. cit., 1835, I, 8, p. 187-8.
223
Id., op. cit., 1836, II, p. 38.
224
Id., op. cit., 1835, II, 8, p. 313.
225
Id., op. cit., 1840, III, 21, p. 769.
Felipe Moralles e Moraes | 65

democráticas.226 Ele pode ser considerado, por isso, o mais político


dos sociólogos.227

1.2.2 Princípio

Na Europa continental, a revolução francesa fez rejuvenescer


a paixão pela igualdade, à qual os liberais vão associar a noção de
progresso. Deflagrada a revolução, escrevia Condorcet que as
esperanças sobre o futuro da humanidade poderiam ser reduzidas
a isso: “a destruição da desigualdade entre as nações; o progresso
da igualdade dentro de um mesmo povo; enfim, o aperfeiçoamento
real do homem”.228 Aponta franceses e anglo-americanos como os
representantes da vanguarda desse progresso em direção à
igualdade (de riquezas, entre os sexos, de instrução), como
exemplos a serem seguidos pelos outros povos. Anos antes do
Démocratie, Constant repete que a perfectibilidade da espécie
humana inclui a tendência à igualdade. Elenca quatro grandes
avanços em direção ao “reestabelecimento da igualdade natural”: a
destruição da escravidão teocrática, da escravidão civil, do
feudalismo e da nobreza privilegiada. “A perfectibilidade da espécie
humana não é outra coisa que a tendência à igualdade”.229

226
Esse embate marcou os acontecimentos em França de 1789 até ao menos 1830, bem como os debates
nos EUA sobre a Constituição de 1787, que era acusada de dar demasiado poder político a classes
aristocráticas – seja pelo número reduzido de representantes na House of Representatives, seja pela
existência, composição e duração dos mandatos do Senate, diminuindo o poder político das assembleias
estaduais e classes populares, cf. FEDERAL FARMER, I e III; BRUTUS, I e III; CATO, V. In: BAILYN,
Bernard (Ed.). The debate on the constitution: federalist and antifederalist speeches, articles, and letters
during the struggle over ratification. Part One. New York: The Library of America, 1993, p. 164, 249-50,
259-61, 321 e 400; DEWITT, John. III. In: KETCHAM, Ralph (Ed.). The anti-federalist papers and the
conventional debates. New York: Signet Classics, 2003, p. 330-3.
227
MANENT, Pierre. Tocqueville, political philosopher. Transl. Arthur Goldhammer. In: WELCH,
Cheryl B. (Ed.). The cambridge companion to Tocqueville. Cambridge: Cambridge University
Press, 2006, p. 111.
228
CONDORCET, Marquis de Jean-Antoine-Nicolas de Caritat. Esquisse d’un tableau historique
des progrès de l’esprit humain (1793/94). Paris: J. Vrin, 1970, p. 194.
229
CONSTANT, Benjamin. De la perfectibilité de l’espèce humaine (1829). In: _______. Mélanges de
littérature et de politique, II. Louvain: F. Michel, 1830, p. 116.
66 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Tocqueville associa essa tendência à tipologia das formas de


governo. É tão hiperbólico como Condorcet: “não seria possível
conceber os homens eternamente desiguais entre si num único
ponto, iguais nos outros; por isso, dentro de determinado tempo,
chegarão a ser iguais em todos”.230 A democracia, tendo destruído
o feudalismo e vencido os reis, não poderia recuar diante dos
ricos.231
“A Europa moderna nasceu da luta das diversas classes da
sociedade”, ensinava Guizot no início do século XIX, fazendo
escola.232 Nas sociedades antigas e noutras partes do mundo, essa
luta resultou o triunfo de uma classe e imposição de uma casta,
provocando a imobilidade social. A preponderância de uma só
forma de civilização, ou um só elemento de organização social
(aristocrático, democrático, monárquico, etc.), gerava tiranias. Na
moderna sociedade europeia, a liberdade havia resultado da
variedade desses elementos da civilização e do estado de luta no
qual eles viveram. O governo misto era um plano da Providência
que determinava às nações europeias “o princípio racional de sua
superioridade”.233 Assim, no entendimento de Guizot, a luta de
classes havia se tornado a principal causa da mobilidade e do
progresso social dos europeus.
As classes, “só elas devem ocupar a história”, aprendeu
Tocqueville.234 Em 1789, havia prevalecido o terceiro estado.235 Em
1830, o triunfo da burguesia já era completo – concentrando todo
poder político, com a aristocracia vencida de fato e o povo excluído
de direito.236 Mas ser proletário já era a profissão de trinta milhões

230
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 3, p. 49.
231
Ibid., introduction, p. 7.
232
GUIZOT, op. cit., 1828/30, p. 209.
233
Ibid., p. 40-1.
234
TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, II, 12, p. 155.
235
Cf. GUIZOT, op. cit., 1820, p. 138; TOCQUEVILLE, op. cit., 1836, I, p. 15.
236
TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, I, 1, p. 728 e 732.
Felipe Moralles e Moraes | 67

de franceses, dizia Louis-Auguste Blanqui ao ser julgado por suas


atividades revolucionárias, e foi admirado por tê-lo expresso em
primeira mão.237 Ainda naquela década, nos primeiros passos do
livre mercado de trabalho238, Tocqueville precisou atravessar o
canal para enxergar, na Inglaterra, as manchas que surgiam “no
maior rio da indústria humana”. É nesse rio contaminado da
indústria “que o espírito humano se aperfeiçoa e se embrutece, que
a civilização produz suas maravilhas e que o homem civilizado
volta a ser quase selvagem”.239 A obra da indústria progride, o
operário retroage.240 Em 1848, foi a vez do proletariado abrir os
olhos do mundo. Ao encarar Blanqui na cena política francesa,
Tocqueville evoca a mesma imagem de alguém vindo dos
subterrâneos da sociedade moderna: “parecia ter vivido em um
esgoto de onde acabava de sair”.241 O esgoto é essa mistura de
miséria com invisibilidade, como se as pessoas vivessem mesmo
nas profundezas da terra, de onde ameaçam irromper. Na
revolução de 1848, descreve as reivindicações operárias por uma
divisão mais justa da propriedade: “nós estamos sobre um
vulcão”.242 Narra, em suas memórias, a impressão causada pelo
caráter eminentemente popular da revolução, a onipotência que
havia dado “às classes que trabalham com as mãos sobre todas as
outras”.243 As necessidades materiais e a violência faziam parecer
irresistível essa puissance de la terre.244
237
BLANQUI, Auguste. Os inimigos da liberdade e da felicidade do povo (1832). In: BABEUF,
François-Noël [et. al.]. O socialismo pré-marxista. Trad. Olinto Beckerman. São Paulo: Global,
1980, p. 41.
238
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época (1944). Trad. Fanny Wrobel.
2. ed. São Paulo: Campus, 2000, p. 106 e 124.
239
TOCQUEVILLE, op. cit., 1833/35, 2 juillet, p. 503.
240
Id., op. cit., 1840, II, 20, p. 673-4.
241
id. op. cit., 1850/51, II, 7, p. 827.
242
Ibid., I, 1, p. 736.
243
Ibid., II, 2, p. 783 e II, 9, p. 842.
244
ARENDT, Hannah. Da revolução (1963). Trad. Fernando Dídimo Vieira. Brasília: Universidade de
Brasília, 1988, p. 91.
68 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

A teoria crítica encontra seu critério em uma razão imanente


à sociedade moderna. E a tradição marxista não diferencia a
sociedade moderna da economia capitalista.245 Ela encontra seu
critério na promessa de liberdade oferecida pelo capitalismo, que
criou forças de produção, circulação e propriedade tão
espetaculares, em contraste com o feudalismo, que “se equipara ao
feiticeiro que não consegue controlar os poderes subterrâneos que
ele invocou”.246 Fora a burguesia e o proletariado, todas as classes
“se arruinaram e desapareceram com a grande indústria”.247 A
aristocracia sucumbiu diante da burguesia em forte ascensão. E
um avanço mais profundo se anunciava. O subterrâneo: o

245
A tese materialista da tradição marxista não se reduz à trivialidade de que as pessoas agem
frequentemente orientadas por interesses mundanos, nem à teorização sobre a conexão entre as
condições materiais e imateriais da existência (nesses sentidos, Tocqueville era certamente
materialista). A tese materialista da tradição marxista é que há uma relação necessária entre o modo
de produção capitalista e as múltiplas dimensões da sociedade moderna (Cf. MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. Die deutsche Ideologie: Kritik der neuesten deutschen Philosophie in ihren
Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des deutschen Sozialismus in seinen
verschiedenen Propheten (1845/46). In: ______; ______. Werke. Band 3. Berlin: Dietz Verlag, 1958,
p. 37-8; MARX, Karl. Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte (1852). In: ______; ENGELS,
Friedrich. Werke. Band 8. Berlin: Dietz Verlag, 1960, p. 139; MARX, Karl. Das Kapital: Kritik der
politischen Ökonomie, Erster Band (1867). In: ______; ENGELS, Friedrich. Werke. Band 23. Berlin:
Dietz Verlag, 1962, p. 94). Todas relações sociais são momentos do processo de produção social,
porque emergem do modo de produção, nas palavras de Horkheimer: “a vida da sociedade é um
resultado da totalidade do trabalho nos diferentes ramos de profissão... os seus ramos, dentre eles a
ciência, não podem ser vistos como autônomos e independentes” (HORKHEIMER, Max. Teoria
tradicional e teoria crítica (1937). In: ___________ [et. al]. Textos escolhidos. Željko Lopaić e Otília
B. Fiori Arantes (Sel.). Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 131). As críticas
mais recentes ao capitalismo como “modelo de subjetivação”, “way of life”, “forma de vida” ou
“forma da razão” (respectivamente, DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo:
ensaio sobre a sociedade neoliberal (2009). Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17;
STREECK, Wolfgang. How to study contemporary capitalism? (2011) In: ______. How will
capitalismo end? Essays on a failing system. London: Verso, 2017, p. 204; JAEGGI, Rahel. O que há
(se de fato há algo) de errado com o capitalismo? Três vias de crítica do capitalismo (2013).
Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 34, jul./dez. 2015; BROWN, Wendy. Undoing
the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone Books, 2015, p. 17), seguem essa
tradição, ao pressuporem um vínculo necessário entre o sistema econômico e todas dimensões
técnicas, culturais e políticas da sociedade moderna (DARDOT/LAVAL, op. cit., 2009, p. 31 e 384;
STREECK, op. cit., 2011, p. 203 ss.; JAEGGI, op. cit., 2013, p. 15; BROWN, op. cit., 2015, p. 30).
246
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifest der Kommunistischen Partei (1848). In: ______.
Werke. Band 4. Berlin: Dietz Verlag, 1959, p. 467.
247
Ibid., p. 472.
Felipe Moralles e Moraes | 69

trabalhador moderno que, observam Marx e Engels, “ao invés de


ascender com o progresso da indústria, afunda-se cada vez mais
abaixo das condições de sua própria classe. O trabalhador se torna
um pobre, e a pobreza se expande ainda mais rapidamente que a
população e a riqueza”.248 A democracia era, também para eles, um
processo de igualização das condições sociais, mais
especificamente, entre as forças e as relações de produção: “o
primeiro passo da revolução dos trabalhadores é a ascensão do
proletariado à classe dominante, ou seja, a conquista da
democracia”.249 A promessa de liberdade e igualdade democrática
parecia exigir a superação do capitalismo.
A crítica de Tocqueville aos socialistas vai tocar, para utilizar
terminologia en vedette, a gramática adequada das lutas sociais –
se a igualização visa à transformação da estrutura econômica ou ao
reconhecimento moral dos indivíduos. Há dois modos de abolir os
privilégios e fazer reinar a igualdade, diz o liberal francês: “deve-se
dar direitos a cada cidadão, ou não os dar a ninguém”, ou a
soberania de todos, ou o poder absoluto do Estado.250 Após a
eclosão da revolução proletária de 1848, o conflito político
concentrou-se na instituição dos ateliês nacionais, nos quais se
visualizava a primeira efetivação do socialismo.251 Na assembleia
constitucional do mesmo ano, discutia-se se os pobres deveriam ter
um direito ao auxílio estatal (por meio de trabalho ou seguro
social), como contido na redação original do projeto constitucional,
ou um direito subjetivo ao trabalho (por meio dos ateliês),
proposto por meio de emenda. Tocqueville discursou contra a
emenda invocando a metáfora das linhas que, partindo de pontos
vizinhos, mas em inclinações levemente diferentes, divergem
indefinidamente à medida que se prolongam. Se as duas redações

248
Ibid., p. 473.
249
Ibid., p. 481.
250
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 3, p. 58.
251
Cf. MARX, op. cit., 1850, p. 27; TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, II, 8, p. 838-9.
70 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

constitucionais pareciam se tocar em uma primeira abordagem,


alcançavam, ao final, resultados muito diferentes: “são como duas
rotas que, partindo inicialmente do mesmo ponto, acabam por ser
separadas por um imenso espaço”. Em vez de agonisticamente
contrapor os ideais da sociedade democrática moderna, importa-
lhe sobretudo a questão do sentido exato da ideia de igualdade, a
qual será decisiva para o desenrolar histórico em direção à
liberdade ou à servidão.252
É preciso suspender a discussão nesse ponto, contudo. Basta
destacar a confluência desses pensadores acerca do princípio da
igualdade. As inclinações desse ideal, como defendidas por
Tocqueville e Marx, serão desenvolvidas oportunamente, depois de
introduzidas a tese da liberdade social, o conceito de classes sociais
e as críticas ao individualismo. O fato é que a crença na imposição
da igualdade no mundo não era compreendida como uma
imposição natural e pré-determinada. Ao insistir que os povos são
poderosos e livres, Tocqueville sinaliza que lhes cabe também o
avanço da democracia, contra princípios aristocráticos.253 Não
recusa a urgência da igualização para os cidadãos nas democracias,
afinal “ela escapa sem cessar de seus braços. Eles a veem bastante
de perto para conhecer seus encantos, não se aproximam o bastante
para desfrutar dela e morrem antes de terem saboreado
plenamente suas doçuras”.254 A igualdade é um objetivo tão fugidio
252
TOCQUEVILLE, Alexis de. Discours prononcé le 12 septembre 1848 (1848). In: ___________.
Œuvres, I, André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 1991, p. 1140-1; a metáfora aparece, pela primeira
vez, em anotação ao segundo volume do Démocratie: “eu vejo duas rotas distintas que se abrem ao
mesmo tempo aos homens de hoje. Elas se tocam de início, mas, à medida que avançam desde um
ponto comum de partida, movem-se para longe uma da outra e um espaço imenso entre elas se
encontra no final. Uma conduz à liberdade, outra à servidão. E enquanto você caminha ao longo de
uma ou outra, a liberdade torna-se maior e a servidão mais pesada. A cada dia o espaço entre elas
aumenta, é mais difícil atravessá-lo para encontra a boa rota novamente” (NOLLA (Ed.), op. cit.,
2010, p. 1284j). Ela volta a ser empregada na comparação dos processos democráticos em Inglaterra
e França (TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, II, 10, p. 136). Nessa metáfora vão se basear pensadores
neoliberais como Friedrich A. von Hayek (Op. cit., 1944, foreword to the 1956 american paperback
edition, p. 49 n. 22).
253
FRANCO, op. cit., 2012, p. 32; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 8, p. 853.
254
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 13, p. 651.
Felipe Moralles e Moraes | 71

quanto a liberdade; uma tendência histórica sempre carente de


aceleração, atenuação e direcionamento pela ação humana.255 Ao
contrário do que sugere a interpretação de Quirino, Lefort e
outros, não se trata de posição político-estratégica em favor da
liberdade, contra a igualdade; mas de uma crítica a certo sentido
do ideal de igualdade.

1.2.3 Objeto

A ambiguidade do termo “democracia” não se restringe à


estrutura de quem e como governa (natureza de governo) e à
paixão que move o governo (princípio de governo). Ele incorpora
um terceiro sentido. Aquele que Montesquieu denominou de objeto
de governo, como, por exemplo, a liberdade política era o objeto de
governo da Inglaterra; o comércio, o de Marselha; a expansão, o de
Roma; a tranquilidade pública, o da China.256 A diferença para com
os liberais modernos é que o filósofo de La Brède toma o objeto de
governo ainda sob uma forma estática. O objeto de governo era
visto como uma finalidade tradicionalmente compartilhada pelo
público, passando, com as revoluções estadunidense e francesa, a
ser uma finalidade refletida e debatida em público. O “senso
deliberado da comunidade” é que passou a governar os assuntos
públicos, observava Hamilton.257 O caráter do governo
representativo “é ser dirigido pela opinião”, repetia Constant.258
Acima do rei da França e do presidente dos EUA, certificava
Tocqueville, “erige-se um poder dirigente – o da opinião pública”.
Apesar da diversidade da sua estrutura política ambos têm “este
ponto em comum: em ambos, a opinião pública é... o poder

255
NICOLETE, Roberta K. Soromenho. Quando a política caminha na escuridão: um estudo sobre
interesse e virtude n’A Democracia na América de Tocqueville. Dissertação de Mestrado.
Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, São Paulo, 2012, p. 27.
256
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, XI, 5.
257
HAMILTON, No. 71, in The federalist, p. 458.
258
CONSTANT, op. cit., 1815, VIII, p. 70.
72 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

dominante”.259 Depois da metade do século XIX, dizer que ela


governava o mundo já havia se tornado “uma trivialidade”, atesta
Mill.260 A democracia moderna conotava esse novo reino da
opinião pública.261
A noção clássica de opinião pública ainda pode ser
encontrada caracteristicamente em Montaigne, que a define como
a incapacidade de “julgar livremente as coisas”.262 Assim, julgar
pela “voz do povo”, ao lado do julgar “pela raça, riquezas,
doutrina”, opõe-se a “julgar pela justiça e... pela razão”.263 A
separação entre razão e opinião impede que se cogite de uma
consciência positiva do público, uma avaliação sobre os temas da
vida comum, um espaço de argumentação. A voz comum não se
diferencia da voz vulgar. A opinion commune pode ser, no máximo,
útil à razão e à justiça, se “serve ao público para conter os homens
em seu dever”. Ela dificilmente se deixa distinguir, portanto, do que
“jamais teve nascimento”264, isto é, da própria noção de costume,
tradição, como também a entendia Montesquieu. O espaço público
era ainda visto como um espaço de passividade e controle que
servia como substituto à censura oficial e institucionalizada.265
Na modernidade, a opinião pública deixa de reproduzir o
tradicional e sagrado em favor do conjunto de exames livres
individuais, adquirindo novos contornos em decorrência do
princípio da reflexividade moderna, diagnostica Hegel.266 O
princípio de que “somente como inteligência pensante a vontade é
verdadeiramente uma vontade livre”.267 Tudo o que o indivíduo faz
259
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 8, p. 138
260
MILL, op. cit., 1859, p. 268.
261
AMIEL, op. cit., 2002, p. 46.
262
MONTAIGNE, op. cit., 1582/88, I, 23, p. 187.
263
Ibid., III, 8, p. 198.
264
Ibid., II, 12, p. 348-9.
265
Ibid., I, 23, p. 187-8.
266
HEGEL, op. cit., 1821, § 21.
267
Ibid., § 21 Anm.
Felipe Moralles e Moraes | 73

deve ser intermediado por seus próprios pensamento e reflexão,


afinal, o “que agora deve valer não mais vale pela violência, menos
ainda pelo hábito e costume, mas pela inteligência e pelas
razões”.268 O conjunto das opiniões sobre os assuntos públicos que
os indivíduos têm e externam – “a chamada opinião pública”269 – é
um fenômeno da subjetividade moderna. Mesmo na Prússia
aristocrática, bastante aquém das sociedades anglo-americana e
francesa, de onde o filósofo alemão escrevia e onde a opinião
pública não passava de uma “forma inorgânica”, sem sedimentação
institucional, ela diminuía o peso dos vínculos familiares e privados
e produzia “o hábito dos interesses, visões e assuntos gerais”.270
A opinião pública moderna distingue-se de uma paixão ou
senso comum, opinion commune, esclarece Jürgen Habermas, na
medida em que se forma em meio à reflexão e apresentação de
razões.271 Desde sua formação, a subjetividade moderna está
relacionada a um espaço de esclarecimento, por meio de cartas,
romances, música. Já na esfera da intimidade e da pequena família
burguesa surge o ideal da esfera pública moderna: uma sociedade
que reflete e argumenta, em contraste com a antiga, que se afirma
no contraste e combate a um inimigo comum.272 A sociedade
burguesa permite a largos contingentes populacionais, por volta do
final do sec. XVIII, dissociar suas relações pessoais da busca por
alianças e vantagens econômicas e as abrir para experiências
emocionais e artísticas, constituindo um espaço livre para
articulação das sensibilidades.273 No início do séc. XIX, vivenciava-
se, com o regime de Luís Filipe de Orléans em França, a
transferência da residência da realeza de Versailles para Paris, a
268
Ibid., § 136 Zus.
269
Ibid.
270
Ibid., § 296.
271
HABERMAS, Jürgen. Strukturwandel der Öffentlichkeit: Untersuchungen zu einer Kategorie
der bürgerlichen Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1962, p. 132.
272
Ibid., p. 116.
273
HONNETH, op. cit., 2011, p. 235-6.
74 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

formação de uma esfera pública urbana, a substituição da corte


pelos salões como lugar das discussões culturais. Nos salões, as
antigas conversações privadas podem se transformar em crítica; as
boas palavras, em argumentos.274 Todos que enriqueciam,
aspiravam organizar reuniões com pessoas proeminentes para
discussões dos casos do dia, políticas, artísticas.275 Fala-se em 1830
que excluir uma mulher burguesa dos salões é o mesmo que a
matar.276
Os centros de crítica literária assumem logo a função de
centros de crítica econômica e política, expandindo-se para os cafés
e jantares das classes médias.277 A esfera pública burguesa substitui
os conselhos secretos do príncipe e as comunidades monásticas,
que a submetiam à autoridade regulamentada e à irmandade
cerimonial.278 É a revolução de 1830 que institucionaliza a
liberdade de imprensa e partidária, junto com o direito de voto.279
A razão se efetiva na comunicação pública, no uso de
argumentação e entendimento possibilitada por esses novos
espaços públicos. Em seus testemunhos do processo eleitoral
inglês, Tocqueville conta o calor de pensamento, energia de
expressão e elocução de um orador que o havia “subjugado pela
palavra”.280 Nada é mais admirável, confessará anos mais tarde, do
que um grande orador discursando em uma democracia, pois ela
arrasta as menores assembleias a falar em nome da nação inteira
ou mesmo da humanidade inteira, engrandecendo o pensamento e

274
HABERMAS, op. cit., 1962, p. 91.
275
Cf. FLAUBERT, Gustave. A educação sentimental (1869). Trad. Adolfo Casais Monteiro. São
Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 50, 170, 274 e 401.
276
STENDHAL. O vermelho e o negro (1830). Trad. Souza Júnior e Casemiro Fernandes. São Paulo:
Abril Cultural, 1981, p. 136.
277
HABERMAS, op. cit., 1962, p. 92-3.
278
Ibid., p. 96.
279
Ibid., p. 138-9.
280
TOCQUEVILLE, op. cit., 1833/35, 19 août, p. 425.
Felipe Moralles e Moraes | 75

elevando a linguagem.281 Nas associações políticas, descreve como


os anglo-americanos “se veem em grande número, conversam, se
entendem e animam”.282 E comicamente traça seu perfil:

Envolver-se no governo da sociedade e falar dele é o maior


assunto e, por assim dizer, o único prazer que um americano
conhece. Percebe-se isso até nos menores hábitos de sua vida
[...]. Um americano não sabe conversar, ele discute; não discorre,
disserta. Fala sempre a você como a uma assembleia; e se
acontece, por acaso, de se entusiasmar, dirá ele: “Senhores”,
dirigindo-se ao seu interlocutor.283

As características institucionais dessa esfera pública nascente


são elencadas por Habermas: (i) tráfego e paridade social,
permitindo a prevalência da autoridade do argumento em
detrimento das hierarquias estabelecidas; (ii) ausência de limitação
de áreas questionáveis e liberadas da crítica; (iii) público aberto, já
que, mesmo quando o grupo se fixa entre parceiros de conversa,
ele não equivale ao todo do público, pretende ser seu interlocutor
ou representante, dirigindo-se potencialmente a um público
maior.284 O público deixa de contrapor-se ao privado, para se
tornar sua outra parte, sua expansão e complementação.285 A
opinião pública passa ser vista como o princípio racional de
organização da política, mediador entre a sociedade civil e
Estado.286 Explica Habermas:

Segundo sua própria ideia, a esfera pública era um princípio da


democracia não apenas porque, segundo seus princípios, cada um
podia apresentar, com iguais oportunidades, suas inclinações,
desejos e sentimentos pessoais – suas opinions; ela só podia se

281
Id., op. cit., 1840, I, 21, p. 605-6.
282
Ibid., II, 7, p. 633.
283
Id., op. cit., 1835, II, 6, p. 279.
284
HABERMAS, op. cit., 1962, p. 97-9.
285
Ibid., p. 115-6.
286
Ibid., p. 142.
76 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

realizar na medida em que essas opiniões pessoais podiam se


transformar em uma opinião pública na discussão mediante
razões empreendida por um público – em opinion publique.287

Seguindo Montesquieu, os três sentidos das formas de


governo (natureza, princípio e objeto) devem ser analisados
conjuntamente para avaliação da legitimidade política. Inserida
nessa tradição, a obra de Tocqueville define a democracia como a
estrutura institucional na qual o povo governa soberanamente,
segundo um princípio motivacional de igualdade e segundo leis
cujo objeto é refletido e debatido publicamente.
Desde as revoluções francesa e estadunidense, a nova
“soberania” da opinião pública avançara sobre o mundo. Assim
como é verdade, pondera Madison, que “todos governos se baseiam
na opinião, não é menos verdade que a força da opinião em cada
indivíduo, e sua influência prática na sua conduta, depende muito
do número que ele supõe entreter a mesma opinião”. A razão
individual “é tímida e cautelosa quando deixada sozinha, e adquire
firmeza e confiança na proporção do número com a qual está
associada”.288 As sociedades modernas passam a estar sujeitas a
duas condições subjetivas de poder, sintetiza Constant: os
interesses individuais e a opinião pública. E essa geralmente
prevalece.289 Seu poder decorre da subjetividade, mas não menos
da igualização das condições e da fragilização do indivíduo, o que
implica uma confiança na maioria em detrimento de um juízo
crítico.290 Em um conto da primeira metade do séc. XIX, Edgar
Allan Poe descreve um homem que vivia caminhando em meio a
grandes concentrações de pessoas. Quando os mares de gente

287
Ibid., p. 323 [tradução de HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública:
investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. Trad. Denilson Luís Werle. São Paulo:
UNESP, 2011, p. 460].
288
MADISON, No. 49, in The federalist, p. 323.
289
CONSTANT, op. cit., 1815, XVII, p. 143.
290
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, I, 1, p. 514.
Felipe Moralles e Moraes | 77

começavam a se dispersar, o homem inquietava-se, e seu passo


hesitava. Então saía ele rapidamente atrás de nova multidão, com a
qual poderia andar com firmeza.291 É uma crônica da opinião
pública em vias da massificação, como também a descreve
Tocqueville, referindo-se a um parlamentar: “uma vez, deu-se
conta no meio do caminho que se enganara e que a maioria não
caminhava no sentido que imaginara; imediatamente, com rápido e
ágil esforço de inteligência, deteve-se, voltou-se e retornou, sempre
correndo para a opinião da qual se afastara”.292 A maioria
compensa, explica ele, a descrença na capacidade racional e
argumentativa individual:

À medida que os cidadãos se tornam mais iguais e semelhantes,


diminui a tendência de cada um a crer cegamente em certo
homem ou classe [...]. Nas épocas de igualdade, os homens não
têm fé alguma uns nos outros, por causa da sua similitude; mas
essa mesma similitude lhes dá uma confiança quase ilimitada no
julgamento do público, pois não lhe parece verossímil que, tendo
todos conhecimentos parecidos, a verdade não se encontre ao
lado do maior número.293

A essa causa de massificação das opiniões por compensação


epistemológica do “espírito”, acrescenta uma causa do “coração”,
por repetição de sensibilidades: “os homens parecem uns com os
outros e, além disso, eles sofrem, de certo modo, ao não se
parecerem com o outro”.294 A multiplicidade de indivíduos
equalizados e fragilizados conduzia a uma identificação deles com
os julgamentos da multidão.
Logo, a igualdade ameaça a formação reflexiva e racional da
opinião pública – o princípio ameaça estrutura e objeto

291
POE, Edgar A. O homem das multidões (1840). In: ______. Ficção completa, poesia e ensaios.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
292
TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, II, 11, p. 877.
293
Id., op. cit., 1840, I, 2, p. 521; cf. ibid., IV, 2, p. 809.
294
Ibid., III, 26, p. 801 n.; cf. ibid. IV, 3, p. 814.
78 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

democrático. O liberal não diagnostica somente um governo


anárquico e sem freios, como os clássicos, mas um cidadão perdido
na multidão, confrontado com a grande imagem do povo que
ameaça sua individualidade:

O mestre não diz mais: “Você pensará como eu, ou morrerá”; ele
diz “Você é livre de não pensar como eu; pode conservar sua vida,
seus bens; mas a partir de hoje você é um estrangeiro entre nós.
Você pode manter seus direitos civis, mas eles se lhe tornarão
inúteis; porque, se você concorre à escolha de seus cidadãos, eles
não a concederão, e, se você demandar sua estima, eles a
recusarão. Você permanecerá entre os homens, mas perderá seus
direitos de humanidade”.295

O público nas sociedades democráticas não tem necessidade


de empregar leis e tribunais para dobrar os que pensam
diferente.296 O público “não persuade por suas crenças, ele impõe
suas crenças e as faz penetrar nas almas por uma espécie de imensa
pressão do espírito de todos sobre a inteligência de cada um”.297
Em linguagem bíblica: a maioria, eis o “profeta”.298 Só um Deus
poderia revestir sem inconvenientes tal onipotência. A opinião
todo-poderosa penetra na mente, modifica o juízo e subjuga a
vontade individual.299 A emancipação da liberdade subjetiva
mostrava sua face contraditória nas emergentes democracias: a
sujeição do exame individual às opiniões massificadas, da reflexão
à imposição dogmática de crenças religiosas ou autoritárias da
maioria. O risco das democracias já não era de uma tirania sobre o
corpo. O corpo é deixado livre para se ir direto à mente. Os
grilhões não são de ferro, mas imaginários.300

295
Id., op. cit., 1835, II, 7, p. 293-4.
296
Id., op. cit., 1840, III, 21, p. 779.
297
Ibid., I, 2, p. 521.
298
Ibid., p. 522.
299
Ibid., III, 5, p. 695.
300
Id., op. cit., 1835, II, 7, p. 293.
Felipe Moralles e Moraes | 79

Esse novo perigo existente nas sociedades moderna será


exposto de modo igualmente incisivo por Mill: “a tirania da opinião
e sentimento dominantes... a tendência da sociedade de impor suas
próprias ideias e práticas como regras de conduta... de tolher o
desenvolvimento e, se possível, de impedir a formação de qualquer
individualidade...”301 A gradual nivelação da posições sociais não
somente impedia que as classes mais altas desconsiderassem as
opiniões da multidão, ponto sem dúvida positivo, mas também
fazia desaparecer as bases sociais para as inconformidades, para as
divergências à superioridade do maior número. O público – essa
“coleção mesclada de poucos sábios e muitos tolos” – tendia à perda
de toda reflexividade: “a Europa... está avançando decididamente
em direção ao ideal chinês de igualar a todos”. 302
A resposta liberal clássica permanecerá concentrada, então,
na ampliação dos direitos individuais e políticos. As liberdades de
pensamento, expressão, imprensa, voto favoreceriam a subdivisão
dos grupos formadores de opinião. Eis o teorema de Madison:

Estenda a esfera e você inclui uma maior variedade de partidos e


interesses; você faz menos provável que a maioria do todo terá
uma motivação comum para invadir os direitos de outros
cidadãos; ou, se existe essa motivação comum para invadir os
direitos de outros cidadãos, será mais difícil para todos que a
sentem descobrir sua própria força e agir em uníssono com cada
um.303

Isto é, compreenda “na sociedade tantas descrições


separadas de cidadãos que tornem uma combinação injusta da
maioria do todo muito improvável, senão impraticável”.304 A
multiplicação das opiniões, interesses e visões de mundo tornaria
os grupos não tão numerosos e poderosos que estivessem prontos
301
MILL, op. cit., 1859, p. 220.
302
Ibid., p. 227, 232 e 274-5.
303
MADISON, No. 10, in The federalist, p. 60.
304
Id., No. 51, in The federalist, p. 333.
80 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

a se atacarem ao primeiro sinal, concorda Constant.305 É o único


meio de controlar o poder dos meios de imprensa, aponta
Tocqueville: a multiplicação de seu número.306 Um teorema óbvio,
mas que era tão desconhecido na Europa do séc. XIX quanto parece
ser no Brasil do séc. XXI. Assegure ainda o voto universal, completa
ele, e os diferentes grupos políticos já não poderão pretender
representar a maioria pela violência, pois, se a representassem,
não precisariam da violência para alterar as leis. Assim, esses
grupos percebem que não passam de minorias; eles se obrigam a
falar e reivindicar, em vez de comandar; passam a incorporar um
espírito persuasivo, porque têm sempre a esperança de atrair a
maioria para, só depois, em nome dela, dispor do poder.307
Igualmente, na visão de Mill, com base então em uma teoria
psicológica, os indivíduos tenderiam às atividades mais elevadas,
judiciosas e persuasivas na medida em que fossem expostos à
multilateralidade das questões políticas: “sempre há esperanças
quando as pessoas são obrigadas a ouvir os dois lados...”308
A analogia é com o mercado: os agentes econômicos sabem
melhor o que e como produzir, maximizando seus lucros, sob
condições de livre concorrência, na qual os preços locais contêm a
informação necessária para uma decisão eficiente. Os liberais
confiavam no fato de que uma competição de ideias garantida por
direitos individuais e políticos produziria as condições para o
aumento da reflexividade e argumentação na esfera pública, o que
está na base do significado de opinião pública. Mais do que isso,
alguns deles, como Constant, cuidavam para que a filosofia política
elaborasse princípios claros que, para além dos direitos individuais

305
CONSTANT, op. cit., 1815, XVII, p. 149.
306
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 3, p. 207.
307
Ibid., II, 4, p. 218.
308
MILL, op. cit., 1859, p. 254, 257 e 272; cf. RAWLS, John. Lectures on the history of political
philosophy (1994). Samuel Freeman (Ed.) Cambridge: Harvard University Press, 2007, p. 269 e
312-3.
Felipe Moralles e Moraes | 81

e políticos, servissem de garantia mesma a esses direitos.309 A


liberdade somente seria garantida pela opinião pública, porque as
próprias instituições “em sua origem não são mais que opiniões
postas em prática”.310 É preciso formar “com relação à evidência
uma opinião universal, que logo é vitoriosa”. E exemplifica seu
ponto com a opinião liberal vitoriosa de que ninguém mais
supunha que a soberania popular pudesse reclamar o poder de
vida e morte sem prévio julgamento.311 Da mesma forma, Mill não
só queria a garantia de um livre espaço de argumentação, mas
também princípios simples e gerais de razão pública capazes de
orientar as discussões e decisões políticas específicas.312 Os
princípios serviriam como “sólida barreira de convicção moral”,
evitando a invasão da liberdade individual, arrefecendo fanatismo
e a intolerância, garantindo, em suma, a “moralidade do debate
público”.313
Ao mesmo tempo, a opinião pública já era vista pelos liberais
oitocentistas “mais como uma coação à conformidade do que como
uma força da crítica”, observa Habermas.314 Vivenciava-se, com as
democracias de massa, uma transformação da esfera pública, do
seu modelo inicial de sociedades literárias e compostas por
indivíduos cultos e dotados de posses, para um público triplamente
massificado, isto é: (i) expandido pela imprensa, propaganda e
consumo; (ii) sem mais um padrão de formação culta; (iii) com
interesses que não mais podiam ser atendidos por um mercado
autorregulado, acirrando os conflitos.315 A universalização do
direito de voto é o tema do século XIX, porque ele abria a esfera

309
CONSTANT, op. cit., 1815, I, p. 13.
310
Id., op. cit., 1829, p. 118.
311
Id., op. cit., 1815, I, p. 16-7.
312
MILL, op. cit., 1859, p. 223 e 292; cf. RAWLS, op. cit., 1994, p. 286-7.
313
Ibid., p. 227 e 259.
314
HABERMAS, op. cit., 1962, p. 214.
315
Ibid., p. 211.
82 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

pública à imposição arbitrária da opinião da maioria.316 A medida


em que a opinião pública se ampliava, sua função política de
controle crítico definhava.317 Por isso, testemunhavam os liberais a
redução da opinião pública ao antagonismo de interesses
inconciliáveis, ao mecanismo de implementação ou limitação do
poder político, em vez de uma racionalização desse poder.318 O
público é pervertido em um instrumento de afirmação e
neutralização de interesses de grupos; os argumentos não são mais
respondidos com argumentos, mas com identificações.319 As
pessoas mantém suas opiniões antes por serem suas, atestava
Tocqueville, do que por serem verdadeiras; aprovam ou
desaprovam antes o proponente do que as propostas.320
A principal dessas identificações continuava tendo conteúdo
religioso, muito mais propensa à tirania do que ao argumento.
Tocqueville atribui à opinião pública nas democracias de massa a
principal causa de reprodução de crenças tradicionais e arraigadas,
pois ela é muito mais propensa a agitar o povo contra novas ideias
do que inovar ou permitir a inovação das opiniões individuais: “a
maioria não mais crê como antes; mas ela ainda tem o ar de crer, e
esse fantasma vazio da opinião pública basta para gelar os
inovadores e os manter em silêncio e respeito”.321 A opinião da
maioria não era fruto da reflexão, continua Mill, mas um efeito de
costumes e crenças religiosas, as mais poderosas entre as que
compõem a formação dos sentimentos éticos. Pensa-se ainda que
nenhuma razão é necessária para apoiar convicções éticas.322 Os
exemplos de tirania da maioria do liberal inglês são quase sempre

316
Ibid., p. 213.
317
Ibid., p. 223.
318
Ibid., p. 214-5.
319
Ibid., p. 297 e 307.
320
Cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 3, p. 210 ; id., op. cit., 1856, I, 3, p. 472 manuscrit.
321
Id., op. cit., 1840, III, 21, p. 780.
322
MILL, op. cit., 1859, p. 220 e 226.
Felipe Moralles e Moraes | 83

religiosos.323 Esse diagnóstico, ao lado de uma perspectiva mais


político-institucional do que filosófica, fez com que Tocqueville se
dedicasse ao estudo da configuração das religiões nas democracias
modernas, como se desenvolverá no último capítulo, em vez de
enunciar princípios gerais capazes de tomar o lugar dessas crenças
no âmbito da argumentação pública, como pretenderam Constant
e Mill.
É interessante notar, ainda, como convergem Marx e
Tocqueville na análise da massificação da opinião pública e na
denúncia de uma política do espetáculo.324 Ambos narram os
acontecimentos da revolução de 1848 como um roteiro
tragicômico, uma representação teatral grotesca da revolução
francesa.325 Foi a loucura, não a sabedoria ou o gênio de Luis
Bonaparte que constituiu sua força, pois o mundo havia se tornado
um ridículo teatro, lamenta Tocqueville.326 O aventureiro derrotou
a todos por “tomar a comédia grosseiramente como comédia”,
continua Marx.327 A longa comédia na qual a sociedade moderna
havia desembarcado, cujo ridículo misturava-se com o terrível,
tornava os homens políticos pouco capazes de medir o real e os
cidadãos completamente inaptos à vida argumentativa e
deliberativa. Tocqueville conta a anedota do bombeiro que, durante
a revolução, faz um enorme esforço para invadir o púlpito da
Assembleia Nacional para depois ficar lá quieto, sem saber o que
dizer.328 Marx retrata a soldadesca de miseráveis, disponível para
ser cooptada por Luis Bonaparte com cachaça e linguiça.329

323
Cf. Ibid., p. 236-7, 246, 248, 265, 283-4, 286.
324
RIBEIRO, Renato Janine. Introdução: a política teatral. In: TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranças
de 1848: as jornadas revolucionárias em Paris. Trad. Modesto Florenzano. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991, p. 10.
325
Cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, I, 1, p. 768-9; MARX, op. cit., 1850, p. 9.
326
Ibid., II, 7, p. 831 e III, 2, p. 901; cf. Id., op. cit., 1835, II, 10, p. 393 manuscrit.
327
MARX, op. cit., 1850, p. 70.
328
TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, II, 7, p. 829.
329
MARX, op. cit., 1852, p. 197
84 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Fundamentalmente, critica Habermas a solução liberal


clássica, o resultado de uma esfera pública argumentativa não
poderia mais ser pressuposta a partir de uma dispersão das
opiniões, interesses, associações e jornais, dependendo de uma
tarefa política e institucional.330 A simples liberdade de organização
de foros e associações civis diversificados, ou a enunciação de
princípios gerais de racionalização da opinião não têm a vitalidade
e força normativa da esfera pública, cuja pretensão é maior: a
formação deliberativa da vontade coletiva.331 Ao contrário do que
supuseram os pensadores oitocentistas, não seria mais possível
uma mediação direta entre indivíduos e esfera pública. O processo
de esclarecimento somente poderia ocorrer por meio de esferas
públicas internas às organizações que formam a opinião pública.
Seria o caso da criação, notadamente, de esferas deliberativas e
democráticas dentro de instituições privadas com funções públicas,
como são os partidos e as mídias de massa, possibilitando um
vínculo entre essas esferas públicas internas e mais restritas com a
esfera mais ampla – por exemplo, com a publicização de suas
relações, atividades, pressões dentro do aparato estatal e origem de
seus meios de funcionamento. É o que defende Habermas:

[A] racionalização da dominação no medium da discussão pública


mediante razões empreendida por pessoas privadas [...] só é
realizável agora como uma racionalização – certamente limitada
no contexto do pluralismo de interesses privados organizados –
que se volta para o exercício social e político do poder sob o
controle recíproco de organizações rivais atreladas à própria
esfera pública em sua estrutura interna, bem como no
intercâmbio com o Estado e entre si.332

330
HABERMAS, op. cit., 1962, p. 188-9.
331
HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998, p. 368; HONNETH, op. cit.,
2011, p. 549.
332
HABERMAS, op. cit., 1962. p. 310-1 [na tradução brasileira id., op. cit., 2011, p. 445].
Felipe Moralles e Moraes | 85

Os direitos fundamentais deveriam ser densificados para


assegurar a igual chance de participação no processo de formação
não só da riqueza cooperativamente produzida – como os
reinterpretam os direitos sociais –, mas também da opinião
pública.333 Essa poderia circular, assim, das associações e grupos
da sociedade civil para a imprensa e órgãos políticos, sem se
limitar à mera aclamação e manipulação de massas passivas, ou
seja, às opiniões manifestadas publicamente, sem argumentação.334
Desse modo, os inúmeros espaços públicos, espacialmente
diferenciados e tematicamente especificados, poderiam convergir
para um espaço mediado pelos meios de comunicação de massa,
que serviriam como “superfície de ressonância” para os problemas
da sociedade como um todo, em vez de funcionarem como meros
sistemas fechados e autorreferenciais.335 “Não há senão um jornal –
dizia Tocqueville a seu tempo – para poder recolher, ao mesmo
momento, em milhares de espíritos, um mesmo pensamento”. As
mídias de massa existem na medida em que refletem uma doutrina
ou sentimento comum de muitas pessoas. Elas formam e são
formadas por associações, cujos membros são os leitores ou
espectadores.336 Nas sociedades de massa, a avaliação do grau
público e democrático da opinião depende da medida em que ela
deriva de uma esfera pública interna a um público organizado, e da
medida em que essa esfera pública interna comunica-se com a
esfera pública externa, formada por mídias de massa, organizações
sociais e instituições estatais.337
Essa crítica de Habermas às instituições de formação da
opinião pública não deixa de estar alinhada ao que se pode chamar

333
Ibid., p. 327.
334
Ibid., p. 356.
335
HABERMAS, Jürgen. Noch einmal: Zum Verhältnis von Theorie und Praxis. In: ___________.
Wahrheit und Rechtfertigung: philosophische Aufsätze. Suhrkamp: Frankfurt am Main, 2004, p. 358.
336
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 6, p. 626-8.
337
HABERMAS, op. cit., 1962, p. 357.
86 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

“prioridade do político” da teoria da democracia de Tocqueville.338


A prioridade do político consiste não só em reputar (i) as
estruturas democráticas de governo necessárias à preservação e ao
avanço do princípio da igualdade; e (ii) as lutas pelo princípio da
igualdade como reflexo de lutas pelo poder político; mas também
em apreciar (iii) as articulações entre sociedade civil e Estado que
configuram o objeto democrático como instituições políticas –
como eram as “associações permanentes criadas pela lei sob o
nome de comunas, cidades e condados”.339 Para Tocqueville, a
relação entre interesses particulares e gerais não poderia ser
mediada exclusivamente pelo mercado, imprensa e associações
civis, dependendo sobretudo dessas “associações permanentes”,
desses espaços de deliberação organizados normativamente.

1.3 Nova aristocracia?

Para muitos intérpretes, como se viu, Tocqueville associa a


liberdade a um gosto pela independência pessoal em face das
tendências sociais igualitárias da modernidade, mesmo que
reservado aos melhores. Ao expor as ameaças do igualitarismo,
ter-se-ia agarrado, segundo Brogan, “ao estimado mito de que a
noblesse era e deveria ser a verdadeira fiadora da liberdade
francesa”.340 Era o mito do partido de l'ordre na época: a massa
aspirava apenas ao bem-estar material e faltavam homens novos
na política.341 O Démocratie seria um manifesto para obtenção de
um lugar na elite que guiaria a França nesses novos tempos.342
Uma elite devotada, inteligente e personalizadora da salvação
nacional, oposta à opinião pública massificada. O controle do
338
VILLA, Dana. Tocqueville and civil society. In: WELCH, Cheryl B. (Ed.). The cambridge
companion to Tocqueville. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 219.
339
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 4, p. 212 ; cf. id., op. cit., 1840, II, 4, p. 628 e II, 6, p. 627.
340
BROGAN, op. cit., 2006, p. 98 e 543.
341
Cf. FLAUBERT, op. cit., 1869, p. 380-1.
342
BROGAN, op. cit., 2006, p. 273 e 542.
Felipe Moralles e Moraes | 87

processo democrático pelas classes superiores teria por fundo o


receio de que as classes inferiores destruíssem as leis de proteção à
propriedade.343 A liberdade preconizada conteria uma “cláusula de
exclusão”, isto é, uma ausência constitutiva da liberdade de outros,
critica Losurdo, ao impedir a tematização política das formas de
produção e condições materiais de existência.344 A democracia
pararia na entrada das fábricas, latifundios e bairros nobres, que
predefiniriam os limites entre público e privado, entre questão
social e questão de polícia, entre deliberação e cassetete.
A semelhantes objeções, um liberal agonístico pode sempre
responder que não há “cláusulas de exclusão” ou vedação de temas,
porque está somente diferenciando liberdade de igualdade, em
lugar de definir uma como valor capaz de concatenar
harmoniosamente a outra. Não lhe atinge a acusação de que a
liberdade negativa produz desigualdade na realização da liberdade,
afinal, a compatibilização dos dois ideais dependeria de
ponderações práticas entre políticas liberais e igualitárias. Embora
escape, dessa forma, às críticas de incompletude do conceito, deve-
se insistir na crítica de contradição prática, que é o critério por
excelência da filosofia política de Tocqueville, quer dizer, de
obstaculização a um regime democrático estável na modernidade.
As antigas colônias inglesas desde o início despontavam no
desenvolvimento da liberdade, começa o Démocratie, “mas não da
liberdade aristocrática de sua pátria mãe, da liberdade burguesa e
democrática, de que a história do mundo não apresentava ainda um
modelo completo”.345 Depois de introduzir a ideia de liberdade
originária dos povos germânicos, como a haviam descrito
Montesquieu e Guizot, desmente que pudesse ser conservada em
tempos civilizados e democráticos.346 Negativamente entendida, a

343
Ibid., p. 270-1 e 426; ZETTERBAUM, op. cit., 1963, p. 691.
344
LOSURDO, op. cit., 1996, p. 38, 43 e 53; cf. MARX, op. cit., 1852, 153-4.
345
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 2, p. 32-3.
346
Ibid., II, 10, p. 382 ; id., op. cit., 1840, II, 1, p. 608.
88 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

liberdade poderia só ser realizada em uma sociedade onde não


existe para todos, como um privilégio e uma forma de dominação –
desenvolve Tocqueville em ensaio de 1836:

A liberdade pode, com efeito, produzir-se no espírito humano


sobre duas formas diferentes. Pode-se ver nela o hábito de um
direito comum ou o gozo de um privilégio. Querer ser livre em
suas ações ou em algumas de suas ações não porque todos os
homens têm um direito geral à independência, mas porque
possui para si um direito particular a permanecer independente,
tal era a maneira que se entendia a liberdade na Idade Média e tal
a que quase sempre se compreendeu dentro das sociedades
aristocráticas, onde as condições são muito desiguais e onde o
espírito humano, tendo contraído o hábito dos privilégios, acaba
por dispor como privilégio todos os bens desse mundo.347

Ao retomar a distinção entre as formas democrática e


aristocrática de liberdade no Ancien Régime, fará mais explícita a
contradição. Se no antigo regime havia reinado de modo grandioso
e fecundo, “era uma espécie de liberdade irregular e intermitente,
sempre contraída ao limite das classes, sempre ligada à ideia de
exceção e de privilégio, que permitia desafiar quase tanto a lei como
a arbitrariedade e quase nunca chegava a fornecer a todos os
cidadãos as garantias mais naturais e mais necessárias”. Ela era
incapaz de fundar “o império pacífico e livre das leis”.348 As formas
democrática e aristocrática da liberdade relacionam-se a modos
distintos de efetivação social: obediência e sujeição. A obediência é
devida a leis ou contratos escolhidos e temporariamente adotados
entre pessoas com direitos iguais. A sujeição é devida à
inferioridade naturalizada entre servidores e mestres, como se
fosse “um efeito necessário e inevitável de alguma lei escondida da
Providência”.349 Na França, o funcionário público ainda

347
Id., op. cit., 1836, II, p. 35.
348
Id., op. cit., 1856, II, 11, p. 153-4.
349
Id., op. cit., 1835, II, 6, p. 276; id., op. cit., 1840, III, 5, p. 697-8.
Felipe Moralles e Moraes | 89

representava a força; nos EUA, já representava a lei.350 Com um


jogo de palavras, continua: “o homem que obedece à violência se
dobra e rebaixa; mas quando ele se sujeita ao direito de comandar
que reconhece a seu semelhante, eleva-se, de certa forma, acima
mesmo daquele que o comanda”.351 Apenas um conceito de
liberdade pautado na obediência a leis, orientado a cidadãos com
direitos iguais e imanente à sociedade moderna seria capaz de
desvendar-lhe os reais potenciais.
A contradição da concepção de liberdade negativa surge
porque ela pressupõe, por definição, certas instituições e práticas
sociais que lhe servem de garantia efetiva. Ela já contém o esboço
de uma ordem justa. A efetivação social da liberdade negativa
dependeria da maximização das zonas de não-interferência
individual. Tanto menos cidadãos deveriam obedecer quanto
possível; e para os casos em que as interferências fossem
necessárias, tanto menos poder deveriam ter as autoridades; ao
mesmo tempo em que cada um deveria ter robustez para se opor
contra o Estado em caso de interferências indevidas. Nesses
termos, reafirma-se surpreendentemente uma ordem aristocrática.
A liberdade negativa abriga, assim, uma imagem anacrônica
e irrealista de sociedade, da qual alguns poucos se servem para
encobrir seus privilégios e a exploração de uma multidão. Embora
fosse capaz de produzir sentimentos exaltados de individualidade,
havia se tornado um obstáculo romântico à emancipação:

Não se deve esperar, nos países democráticos, que o círculo de


independência individual seja jamais tão largo quanto nos países
da aristocracia. Mas isso não é mesmo desejável; porque, nas
nações aristocráticas, a sociedade é frequentemente sacrificada ao
indivíduo e a prosperidade do maior número à grandeza de
poucos.352

350
Ibid., I, 5, p. 105.
351
Ibid., II, 6, p. 272.
352
Id., op. cit., 1840, IV, 7, p. 841.
90 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Alguns ainda a aprovam, como se fizessem parte da antiga


nobreza e pudessem sustentar hábitos e sentimentos feudais.
Ainda que considerem a compulsão externa como um mal que não
mais deva existir para que se realize a liberdade, essa ideia se
tornou impossível numa sociedade igualitária, massificada, plural e
complexa. Nestas os indivíduos são igualmente frágeis e
dependentes, de modo que suas obrigações para com os demais só
aumentam.353 Nas democracias modernas, a liberdade não pode
ser mais compreendida como independência, senão como uma
ideia baseada em instituições políticas e sociais: “é um erro
confundir independência com liberdade. Não há nada menos
independente do que um cidadão livre”!354
A tese da liberdade negativa não é compatível, em suma,
com o diagnóstico de época feito por Tocqueville e sua proposta de
crítica imanente. Para deixar marcada sua posição, depois de (1.3.1)
precisar sua terminologia concernente às aristocracias, passa-se a
(1.3.2) expor os novos obstáculos aristocráticos que ele enxergava à
realização da democracia e (1.3.3) seus argumentos em favor dessa
forma de governo.

1.3.1 Aristocracia, nobreza e casta

Embora sua terminologia não seja sempre consistente,


Tocqueville diferencia os conceitos de aristocracia, nobreza e casta.
A aristocracia tem um sentido menos carregado, como corpo ou
associação das pessoas mais influentes econômica ou politicamente
em determinada sociedade. Ela reenvia aos bens reais ou
convencionais aos quais um grande número de pessoas não tem
acesso (estirpe, riqueza, poder político, conhecimento), somados a
um princípio de distinção e desigualdade: um laço social que

353
Id., op. cit., 1835, I, 5, p. 78.
354
Id., op. cit., 1856, II, 11, p. 153, 1ère note.
Felipe Moralles e Moraes | 91

garante a colaboração, benevolência ou ação comum contra a


maior parte da população ou contra outras classes.355 A aristocracia
supõe, assim, o compartilhamento de costumes, ideias,
preconceitos, não importa de que origem. Nessa terminologia,
escravidão, família, colonização ou indústria podem dar origem a
aristocracias.356
A nobreza é a espécie de aristocracia associada ao regime
feudal. A reconstrução histórica que faz o liberal francês não é
original. Segue leituras já existente de uma monarquia que logrou
conceder o presente mais funesto à nobreza francesa: dar favores
para sua vaidade, em troca de seu poder civil e militar. A
monarquia logrou transformá-la em uma classe que “não sabia
mais persuadir, nem comandar”, apenas agir como uma facção,
dizia Prosper de Barante.357 A criação dos impostos nacionais
permitiu que os rei mantivesse soldados que dispensariam os
nobres e vassalos de prestar serviço militar.358 Os nobres foram
liberados da obrigação onerosa de fazer guerra, embora
aumentassem sua imunidade tributária.359 Os funcionários reais
assumiram as funções administrativas e de justiça dos senhores
feudais.360 Eis um dos testamentos políticos do Cardeal Richelieu, o

355
AMIEL, op. cit., 2002, p. 8; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1836, I, p. 16; id., op. cit., 1840, III, 18, p. 747;
essa definição aproxima a aristocracia do conceito de facção, enquanto grupo de cidadãos que atua por
um interesse ou impulso passional comum contrário ao direito dos outros cidadãos ou ao interesse
permanente e global da comunidade. A principal vantagem de uma estrutura de governo bem construída
é, escreve Madison, “quebrar e controlar a violência das facções”. Não é sem razão, porém, que Tocqueville
prefere o conceito de aristocracia ao de facção, porque essa pode ser compostas tanto por uma minoria,
quanto pela maioria (Cf. MADISON, No. 10, in The Federalist, p. 53-4).
356
AMIEL, op. cit., 2002, p. 9 e 23; ELSTER, op. cit., 2009, p. 132; diz-se que a terminologia nem
sempre é consistente, pois se refere, por exemplo, à aristocracia, quando fala em nobreza: “uma
nação pode apresentar fortunas imensas e grandes misérias; se, porém, essas fortunas não chegam a
ser territoriais, veem-se no seio dela pobres e ricos; não existe, a bem dizer, a aristocracia”
(TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 2, p. 32).
357
BARANTE, Prosper Brugière. Des communes et de l’aristocratie. Paris: Librairie Française de
L’Advocat, 1821, p. 38-40 e 48-9.
358
TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, II, 12, p. 160-1.
359
Ibid., II, 8, p. 119.
360
Ibid., II, 1, p. 78.
92 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

maior articulador da retirada do poder civil e militar da


aristocracia, de cujos efeitos tinha plena consciência: “é certo que a
nobreza que não serve à guerra não é somente inútil, mas uma
carga ao Estado, que pode ser comparado, nesse caso, a um corpo
que suporta um braço paralítico”.361 O que determinou uma
transformação política dessa aristocracia, que sempre gozou de
imunidades, foi ser eximida dos deveres que as justificavam
socialmente: o dever de levantar tropas e administrar as
localidades.362
A transformação da aristocracia rompia a clivagem
estamental do antigo regime entre bellatores e laboratores, entre
os que protegem e os que trabalham.363 Como seus antepassados,
que acompanhavam os reis na guerra, os nobres deviam, com o
alto orçamento consumido do Estado, pelo menos um regimento,
um pelotão, mesmo que fosse de cinquenta homens prontos para
combater e devotados até a morte. No século XIX, já não tinham
mais do que alguns poucos lacaios que, reunidos, a eles mesmos
amedrontavam.364 “Toda aristocracia que se aparta inteiramente
do povo torna-se impotente”, pois, ao romper a corrente de
responsabilidades com as demais classes, passa a ser contestada e
tirânica.365 Isso diferenciava ainda, na época, as aristocracias alemã
e inglesa da francesa.366 Essa última já havia se tornado um “corpo
democrático, apenas revestido, em comparação com as outras
classe, de direitos de uma aristocracia”.367 Ao longo do século XVIII,

361
RICHELIEU, D’Armand du Plessis. Testament politique. Amsterdam: Henry Desbordes, 1688, III,
1, p. 156. Assim, ao contrário do que sugere Jon Elster (op. cit., 2009, p. 153-4), não se tratava de um
efeito acidental, mas de uma política intencional dos reis absolutistas (cf. BARANTE, op. cit., 1821, p.
7, 28 e 40).
362
TOCQUEVILLE, op. cit., 1836, I, p. 9; id., op. cit., 1856, II, 9, p. 125-6.
363
Cf. DUBY, Georges. As três ordens: ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982, p. 44.
364
STENDHAL, op. cit., 1830, p. 364.
365
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 13, p. 569.
366
Id., op. cit., 1856, II, 1, p. 75-6.
367
Id., op. cit., 1836, I, p. 14.
Felipe Moralles e Moraes | 93

havia se aproximado da burguesia ao ponto de possuir as mesmas


ideias, hábitos e gostos. A única diferença que restava entre as duas
classes era em matéria de direitos, que dificilmente eram acessíveis
aos que enriqueciam.368 Isso diferenciava ainda mais a aristocracia
francesa da inglesa. “A causa que tornou a aristocracia em França o
objetivo de todos os ódios não provém tanto de os nobres serem os
únicos a ter direito a tudo, mas de que ninguém poderia se tornar
nobre”.369 Por manter prerrogativas exclusivas e não mais
justificadas pelo sistema de legitimação social, a aristocracia
francesa transformou-se em uma casta, distinta só pelo
nascimento e pelo sangue.370
A casta é uma aristocracia que se isola, ao deter direitos não
disponíveis aos demais em termos iguais, nem justificados por
funções que os demais lhes atribuem. A doença mortal de um povo
é que cada uma das pequenas sociedades que a compõem “não viva
que para si, não se ocupe que de si, não tenha assuntos mais que
aqueles que a tocam”.371 As classes sociais – assim compreendidas
as divisões sociais, independente do critério jurídico, econômico,
ético, étnico, etc. – tornam-se perigosas quando se colocam à parte
umas das outras, criando ódios sociais e instabilidades políticas.
A nobreza inglesa tinha, sem dúvida, inúmeras vantagens
em comparação com a francesa. Em uma passagem notável das
suas anotações de viagem, Tocqueville alça o modelo inglês ao
nível de um ideal, no qual as altas classes seriam “mais brilhantes,
esclarecidas e sábias; as classes médias mais ricas; o pobre melhor
de vida que em qualquer outro lugar”. A aristocracia feudal havia
dado aos ingleses um dos melhores governos existentes no mundo.
Todavia, completa ele, não seria honesto julgar essa forma de
governo teoricamente pelos resultados que ali obtivera ou poderia

368
Ibid., p. 7; id., op. cit., 1856, II, 8, p. 121.
369
Id., op. cit., 1833/35, 21 août, p. 441.
370
Id., op. cit., 1856, II, 9, p. 126.
371
Ibid., p. 134.
94 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

obter. Era uma exceção! A regra era, como em França, a


aristocracia fazer surgir uma casta.372

1.3.2 Obstáculos aristocráticos

Destruído o antigo regime, Tocqueville vê duas sombras de


ressurgimento da desigualdade permanente de classes na
modernidade: o dinheiro e os juristas.
O privilégio do dinheiro é o mais perigoso, porque são
poucos os que desejam honras da direção política, militar e
administrativa e muitos os que desejam ser ricos.373 A “aristocracia
do dinheiro”374 começa a lhe sobressair, precisamente, em sua
viagem à Inglaterra, enquanto compunha o segundo volume do
Démocratie. A revolução inglesa havia tornado o dinheiro “o único
elemento de poder, o que nunca se vira, ao que eu saiba, em
nenhuma outra nação e em nenhum outro século”. Não só poder,
também bem-estar, estima e prazer eram reservados aos ricos.
Toda felicidade estava associada à riqueza, e toda infelicidade à
pobreza.375 Nas fábricas de Manchester, vê o contraste entre uma
classe ainda mais rica do que a antiga nobreza e um proletariado
urbano em situação de miséria pior que a dos antigos servos:

Levantai a cabeça e [...] verás elevarem-se os imensos palácios da


indústria [...] aqui está o escravo, lá o mestre. Lá, as riquezas de
alguns; aqui a miséria do maior número. Lá, as forças
organizadas de uma multidão produzem, para lucro de um só
[...]; aqui, a fraqueza individual se mostra mais débil e mais
desprovida ainda que no meio dos desertos; aqui os efeitos, lá as
causas [...].376

372
Id., op. cit., 1833/35, 26 juillet, p. 554-6; cf. id., op. cit., 1856, II, 9, p. 122.
373
Id., op. cit., 1836, I, p. 11.
374
Id., op. cit., 1840, III, 2, p. 682.
375
Id., op. cit., 1833/35, 7 juillet, p. 512.
376
Ibid., 2 juillet, p. 503
Felipe Moralles e Moraes | 95

Por suas próprias características, a burguesia dificilmente


formaria uma casta, pondera Tocqueville, por não ser mais
esclarecida, nem unida para além dos interesses de momento, nem
seus costumes muitos distintos dos demais cidadãos. “A
aristocracia manufatureira que vemos se elevar sobre nossos olhos
é uma das mais duras que apareceram sobre a terra; mas ela é, ao
mesmo tempo, uma das mais restritas e menos perigosas”.377 Se as
sombras dessa aristocracia do dinheiro sob a democracia não eram
projetadas por uma burguesia com interesses permanentemente
contrários aos dos trabalhadores, eram lançadas pela crescente
separação entre ambas as classes, causada (i) por um sistema
produtivo anônimo e, principalmente, (ii) por um sistema
tributário injusto.
(i) No sistema capitalista, o empregador depende do trabalho
humano, não do trabalhador; e o trabalhador depende do salário,
não do empregador. Assim, a burguesia já não governa os
trabalhadores como as antigas aristocracias, apenas os usa. Depois
de empobrecer e embrutecer aqueles dos quais se serve, nos
tempos de crise, atira-os à caridade pública. O trabalhador torna-se
mais fraco, limitado e dependente. “[A]o mesmo tempo em que a
ciência industrial abaixa sem cessar a classe dos trabalhadores, ela
eleva aquela dos mestres”.378 No poder, a burguesia faz com que o
governo adquira também “um ar de indústria privada, cada um de
seus membros quase só cuidando dos assuntos públicos para os
virar em benefício de seus interesses privados e esquecendo
facilmente, em seu pequeno bem-estar, as pessoas do povo”.379 As
relações entre as classes burguesa e trabalhadora não criam
hábitos, nem deveres umas com as outras, porque se beseiam na
satisfação de interesses materiais imediatos. Isso distancia as
classes. “Se algum dia uma desigualdade permanente de condições

377
Id., op. cit., 1840, II, 20, p. 675.
378
Ibid., p. 673-4.
379
Id., op. cit., 1850/51, I, 1, p. 729.
96 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

e uma aristocracia penetrarem novamente no mundo, pode-se


predizer que esta será sua porta de entrada”.380
(ii) A porta de entrada da desigualdade não cria, ainda, uma
condição permanente de desigualdade. Mesmo que os pobres
tenham poucos meios de sair de sua condição, nem todos ramos da
economia tendem à concentração de renda e à perpetuação da
riqueza.381 Em especial, a classe média burguesa raramente chega a
formar um corpo compacto e distinto – sempre se mistura um
pouco com todas as outras classes e se confunde com elas em
vários terrenos. Não tem homogeneidade, nem limites precisos.382
Segundo Tocqueville, um fenômeno tipicamente democrático
soma-se à divisão de classes para extremar aqueles com muito e
nenhum patrimônio.
É fácil distinguir três classes num povo, escreve ele, as quais
dificilmente deixarão de existir, mesmo sendo mais ou menos
numerosas: a classe daqueles com muito, pouco ou nenhum
patrimônio. Na medida em que as democracias tendem a ser
compostas por uma maioria de pessoas com pouco patrimônio,
assumem elas instintos próprios dessa classe no que diz respeito
aos tributos. Nada é mais contraintuitivo para quem possui uma
pequena fortuna do que tributos elevados, mesmo que o aumento
deles não seja tão desastroso para os ricos, nem prejudique
diretamente os pobres. As democracias com maiorias de classe
média tendem a ser as mais contrárias à elevação de impostos, o
que perpetua e aprofunda as diferenças entre as classes com muito
ou nenhum patrimônio.383
De certo, uma casta somente se torna evidente nos
casamentos: se há classes que, mesmo que se confundam em todos

380
Id., op. cit., 1840, II, 20, p. 674-5; cf. AMIEL, op. cit., 2002, p. 39; OFFE, Claus. Alexis de Tocqueville or
the tyranny of the middle class. In: ____. Reflections on America: Tocqueville, Weber and Adorno in the
United States (2004). Transl. Patrick Camiller. Cambridge: Polity, 2005, p. 24.
381
Id., op. cit., 1840, II, 20, p. 674.
382
Id., op. cit., 1850/51, II, 2, p. 786.
383
Id., op. cit., 1835, II, 5, p. 237-9.
Felipe Moralles e Moraes | 97

aspectos, ainda evitam se misturar.384 O que determina seu


surgimento e a alimenta, no entanto, são os privilégios tributários:
“de todas as maneiras de distinguir os homens e marcar as classes,
a desigualdade de impostos é a mais perniciosa e a mais própria a
acrescentar isolamento à desigualdade, tornando ambas
incuráveis”.385 Isso porque, quando duas classes são submetidas a
um sistema tributário injusto, agrava-se anualmente sua distinção.
Ano após ano, os privilegiados sentem o interesse e a urgência de
não se deixar confundir com a massa e fazer novos esforços para
dela se apartar. As classes desiguais perdem rapidamente não só a
capacidade, mas também o desejo de agir por um bem que lhes
seja comum:

Como não há quase assunto público que não nasça de um


imposto ou não resulte em um, no momento em que duas classes
não estão sujeitas aos impostos de modo igualitário, elas não têm
quase mais razões para deliberar em conjunto, nem causas para
sentir necessidades e sentimentos comuns; não há mais
necessidade de as manter separadas: retirou-se-lhes a ocasião e o
desejo de agir juntas.

As desigualdades tributárias criam uma classe compacta, que


precisa se unir para resistir a qualquer reforma contrária aos seus
interesses.386 Uma casta do dinheiro pode surgir, portanto, de
acordo com Tocqueville, pela incapacidade de as democracias
corrigirem as desigualdades entre os muito ricos e os muito
pobres, principalmente através do sistema tributário. Essa
desigualdade se concretizou e agravou hodiernamente graças a
uma burguesia que se financeirizou e internacionalizou, cujos
rendimentos independem, portanto, do bom governo em favor das
classes médias e pobres, que são apenas usadas pelos muito ricos.
“Assim consolida-se uma elite que não mais espera pagar o preço
384
Id., op. cit., 1856, II, 9, p. 122-3.
385
Ibid., p. 127.
386
Ibid.
98 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

de maximizar o lucro às custas dos demais ou de perseguir seus


interesses às custas da economia como um todo”, diagnostica
Wolfgang Streeck.387
Um ranço de casta fareja Tocqueville também “na banca de
advogados e sobre o assento dos juízes”.388 Sob os hábitos de
ordem, percebe um instinto de privilegiados; sob os métodos de
argumentação e amor às formas, um desgosto pelas ações da
multidão e desprezo pelo governo popular: em suma, um espírito
conservador e antidemocrático. Os juristas formam uma classe
aristocrática, ainda que nem sempre tenham os mesmos
interesses, nem constituam um corpo fechado ou muito coeso – até
a nobreza, destaca ele, oferecia exemplos magníficos dos que se
opunham aos privilégios. Após seu desaparecimento, a formação e
o hábitos dos juristas fez deles os substitutos mais capazes de
ocupar funções públicas, influenciar formação e execução das leis,
constituindo o mais importante contrapeso à tirania da maioria.389
A tirania da maioria não se refere apenas à aquiescência ovina da
opinião da maioria, mas também aos linchamentos de cunho
racial, caça às bruxas, etc. – ao lado caótico, tanto quanto ao lado
passivo da democracia. Afinal, o terror jacobino não havia sido
outra coisa que “a justiça rápida, severa, inflexível”, na definição de
Robespierre.390 A participação dos juristas nas estruturas de
governo serve como contrapeso às noções tirânicas e irrefletidas da
justiça, não sendo isso o bastante para criar uma classe isolada do
povo; “mas é fácil de encontrar os indícios do que eles fariam se
estivessem livres”, complementa Tocqueville.391 Ao longo do

387
STREECK, Wolfgang. How will capitalismo end? (2014) In: ______. How will capitalismo end?
Essays on a failing system. London: Verso, 2017, p. 68-9.
388
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 8, p. 308.
389
Ibid., p. 303-9.
390
ROBESPIERRE, Maximilien. Sur les principes de morale politique qui doivent guider la
convention nationale dans l’administration intérieure de la republique (1793). In: VERMOREL, A.
(Ed.). Œuvres de Robespierre. Paris: F. Cournol, 1866, p. 301.
391
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 8, p. 310.
Felipe Moralles e Moraes | 99

Démocratie, elenca cinco causas para um sombrio aumento do


poder dessa classe na modernidade: (i) o desconhecimento das leis
pela população; (ii) o controle dos agentes políticos; (iii) o controle
do sistema federativo; (iv) o controle de constitucionalidade das
leis; (v) o sistema de precedentes.
(i) Em meio a costumes democráticos, nota o liberal francês
que os estadunidenses haviam importado a legislação inglesa. Os
processos judiciais tinham, em seu primeiro ato – exemplifica ele –
a fiança ou a prisão, o que era altamente lesivo ao pobre e benéfico
ao rico. Enquanto o pobre nem sempre pode pagar a fiança e
precisa esperar a justiça na prisão, onde depressa é reduzido à
miséria, o rico sempre consegue escapar dela pela fiança. “Que é
mais aristocrático do que semelhante legislação?” Todavia, os
efeitos dela só apareciam para o público em casos particulares, de
modo que dificilmente era tematizada e criticada. Embora os
pobres tivessem o poder de fazer as leis nos EUA, Tocqueville
denuncia que acabavam reféns dos juristas: “as leis civis são
conhecidas apenas pelos advogados, vale dizer, por aqueles que têm
direto interesse em mantê-las tais como são, boas ou más, pelo fato
de as saberem.”392 Os juristas eram, dessa forma, “entregues ao
próprio arbítrio” e trabalhavam para conservar as leis
aristocráticas.393
(ii) Os agentes públicos eleitos não podem ser destituídos ou
promovidos fora do processo eleitoral. Não há controle
administrativo hierárquico desses agentes. Assim, a introdução da
eleição nos círculos primário e secundário de governo exige um
uso contínuo de penas judiciárias como meio de administração. O
poder judiciário acaba ampliado, ao ser invocado como
intermediário entre povo e representante, ou entre poder central e
local, sob pena de deixar os agentes eleitos sem controle algum.

392
Ibid., I, 2, p. 49-50.
393
Ibid., II, 8, p. 310; cf. id., op. cit., 1833/35, 3 septembre, p. 432.
100 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Somente os juízes “podem forçar o funcionário eleito à obediência


sem violar o direito do eleitor”.394
(iii) Um sistema federativo demanda a criação de uma corte
constitucional quase inteiramente política, ainda que seus
procedimentos e constituição sejam inteiramente jurídicos. À corte
constitucional “apela o poder executivo para resistir às invasões do
corpo legislativo; a legislatura, para se defender das empreitadas
do poder executivo; a União, para fazer obedecer aos Estados, os
Estados, para repelir as pretensões exageradas da União...” Assim,
da prudência e da virtude de poucos julgadores (com instintos
aristocráticos, não eleitos, nem alteráveis pelo voto) acaba
dependendo a paz, prosperidade e a própria subsistência da União
federal.395
(iv) A declaração da inconstitucionalidade de leis serve,
admite Tocqueville, como “uma das mais poderosas barreiras...
contra a tirania das assembleias políticas”.396 Há situações, porém,
nas quais essa competência está fixada “por uma regra arbitrária”,
como a proibição de alterar direitos adquiridos. Isso ameaça
profundamente a soberania popular.397 O arbítrio só era contido
nos Estados Unidos porque os juízes e tribunais continuavam
submetidos ao princípio de vinculação ao caso concreto, ou seja,
não deixavam de representar apenas o poder judiciário.398 Eles
atacam as leis “em suas consequências, não em seu princípio”.399
Do contrário, alerta ele, “se o juiz tivesse podido atacar as leis de
uma maneira teórica e geral”, haveria o risco de ele entrar “com
estrondo sobre a cena política; virando o campeão ou adversário de
um partido...”400
394
Ibid., I, 5, p. 81-2.
395
Ibid., I, 8, p. 168-9.
396
Ibid., I, 6, p. 115.
397
Ibid., I, 8, p. 159 e 164.
398
Ibid., I, 6, p. 110.
399
Ibid., I, 8, p. 167.
400
Ibid., I, 6, p. 113.
Felipe Moralles e Moraes | 101

(v) Um sistema de precedentes tem como fonte de


autoridade as decisões passadas, não as razões, nem as decisões da
maioria. As leis escritas são complexas e difíceis de compreender,
mas cada cidadão as pode ler, se necessário; não há nada mais
obscuro que um sistema baseado em precedentes, o que separa
ainda mais os juristas dos demais cidadãos. “O jurista francês não é
mais que um sábio; mas o homem de leis inglês ou americano
parece, de certa forma, os sacerdotes do Egito; como eles, é o único
intérprete de uma ciência oculta”. Quando o conhecimento do
direito se torna propriedade de uma classe, os cidadãos passam a
viver sob um tipo de servidão. A justiça é encoberta por erudições,
estrangeirismos e formalismos como instrumentos de
dominação.401
Não há dúvida que a gramática dos direitos subjetivos é
central nas democracias modernas, onde jornais e partidos a
empregam cotidianamente. “A língua judiciária torna-se... de certa
forma, a língua vulgar”.402 As sombras sobre a democracia não
provêm da participação dos juristas nas estruturas de governo,
nem na linguagem pervasiva dos direitos subjetivos, mas em uma
classe capaz de dominar as demais e que historicamente foi capaz
de revestir, sob a forma da lei, medidas autoritárias. Sempre houve
juristas dispostos a criar teorias que justificassem tiranias pela
forma jurídica.403 Para enfrentar essa tendência, Tocqueville vai
resgatar a tradição republicana do júri.
Não é um acaso que os juristas brasileiros, em suas críticas
recorrentes à descrição do juiz como “la bouche que prononce les
paroles de la loi”,404 omitem que Montesquieu sempre se referiu a
um poder judiciário exercido diretamente pelo povo, por meio da
instituição do júri. Na divisão dos poderes defendida pelo barão

401
Ibid., II, 8, p. 306-7.
402
Ibid., p. 310.
403
Ibid., p. 305.
404
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, XI, 6.
102 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

francês, inspirado na Constituição inglesa da época, não haveria


magistratura permanente autorizada a julgar os casos, mas uma
seleção de cidadãos por pequeno lapso de tempo e não ligados a
nenhum estamento. Daí afirmar que era um poder, “por assim
dizer, invisível e nulo”, no qual os juízes apenas pronunciam a
decisão soberana do júri. Em um poder judiciário sob controle
popular, “teme-se a magistratura, não os magistrados”.405
Em muitos estados dos EUA, o júri era soberano no
julgamento dos fatos em todas as causas civis e penais.406 Na
confecção da Constituição, os federalistas sofreram grande pressão
para que a instituição fosse constitucionalizada de maneira ampla.
Simpatizantes do júri nas causas civis consideravam-no “o próprio
paladino do governo livre”; os adversários, “uma garantia valiosa à
liberdade”.407 Nas causas penais, explica Hamilton, o júri é uma
barreira do governo popular contra a tirania de magistrados,
mesmo quando esses eram eleitos. A relação com a liberdade não
era prontamente discernível, segundo ele, nas causas civis, em que
sua função como garantia contra a corrupção e possíveis
arbitrariedades dos magistrados deveria ser regulada pela
legislação estadual.408
Em todas as questões jurídicas “que têm uma parte moral e
que são de uma natureza complicada, o julgamento por um júri é
indispensável”, continua Constant. Os jurados são os
representantes públicos do bom senso e da razão comum.409 Eles
tendem a se afastar da letra da lei sempre que ela lhe parece
contrária ao sentimento de justiça e de humanidade. A participação
como jurado envolve, ademais, o “primeiro dos seus interesses: a
administração da justiça e a garantia a dar à inocência acusada”. O

405
Ibid.
406
HAMILTON, No. 81, in The Federalist, p. 524.
407
Id., No. 82, in The Federalist, p. 530-33.
408
Ibid., p. 534-5.
409
CONSTANT, op. cit., 1815, XI, p. 98.
Felipe Moralles e Moraes | 103

júri serve tanto como garantia contra uma aplicação opressora das
leis, quanto à educação moral do povo.410
Nessa tradição, Tocqueville destaca o caráter do júri como
fundamento das repúblicas democráticas, discernindo seu aspecto
político do judiciário. Não acredita que sua instituição seja uma
questão de boa ou má administração da justiça, de maior ou menor
capacidade de julgar, mas uma questão sobre quem possui o poder
político na sociedade: uma aristocracia ou o povo. Trata-se de uma
instituição de soberania, cujo aspecto judiciário não passa de
acessório. Mesmo que seja comum o jurado render-se às razões do
juiz, advogado ou promotor, é a autoridade da sociedade que ele
representa. “O homem que julga o criminoso é realmente o mestre
da sociedade. Porém, a instituição do júri coloca o povo ele
mesmo... sob o assento do juiz”.411 E os casos criminais não
encerram sua importância, pois neles os jurados ainda enxergam a
justiça longe de sua vida ordinária. Poucas pessoas conseguem se
ver como alvo de persecução criminal, mas todos sabem que
podem ter um processo civil. O júri civil expandia em muito os
hábitos de considerar as leis, direitos, justiça e equidade, pelo
contato com os argumentos dos advogados, inteligência e opiniões
dos juízes e mesmo paixões das partes; “e esses hábitos são
precisamente os que preparam melhor o povo para ser livre”. A
maior vantagem era servir como “escola gratuita e sempre aberta”,
na qual o povo adquire informação e conhecimento sobre assuntos
de governo, sem que a maioria transferisse, com isso, demasiado
poder para alguns poucos.412 É através do júri que a influência dos
juristas poderia servir como uma contrapeso ao governo popular,
sem colocar em perigo a própria estrutura democrática: “o júri,

410
Ibid., XIX, p. 163-5.
411
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 8, p. 311-3.
412
Ibid., p. 314-5; cf. FEDERAL FARMER, IV, in The debate, p. 279.
104 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

que é o meio mais enérgico de fazer reinar o povo, é também o mais


eficaz de ele aprender a reinar”.413

1.3.3 Argumentos democráticos

As contradições práticas do dinheiro e dos juristas jogavam


uma sombra de casta na democracia moderna, que precisava ser
iluminada pela radicalização das instituições democráticas.414 Além
de tratar desses obstáculos à efetivação democrática, Tocqueville
não deixa de defender essa forma de governo contra seus
adversários, invocando quatro tipos de argumentos: (i) epistêmico;
(ii) utilitarista; (iii) moral e (iv) republicano.
(i) Se um povo tem, como soberano, mais chances de se
equivocar que um corpo aristocrático, também tem mais chances
de voltar à verdade, desde que seja capaz de, não se desesperando,
aprender com suas experiências.415 Nos governos democráticos, os
agentes políticos erram muito, mas sofrem um controle de
qualidade que as demais formas de governo não oferecem – em
razão dos curtos mandatos, sujeição aos interesses da maioria e,
poderíamos acrescentar, com Mill, discussão sobre como
interpretar suas experiências. Eles cometem erros constantemente;
mas sempre têm a oportunidade de os corrigir.416 Assim,
Tocqueville distingue a estabilidade dos fundamentos e princípios
gerais de uma democracia, da inevitável instabilidade de suas leis
secundárias.417
(ii) As leis democráticas tendem ao bem do maior número.
Ainda que sejam feitas por representantes e buscadas de modo
defeituoso e extemporâneo, há uma tendência de as leis não

413
Ibid., p. 316-7.
414
Cf. Ibid., II, 4, p. 219.
415
Ibid., II, 5, p. 257-8.
416
Ibid., II, 6, p. 266-7; MILL, op. cit., 1859, p. 231.
417
Ibid., II, 10, p. 463.
Felipe Moralles e Moraes | 105

contrariarem o interesse da massa dos governados por muito


tempo. Embora os agentes políticos possam contrariar a maioria, a
curta duração dos mandatos impede de conservarem um interesse
que lhe seja sistematicamente hostil. Ao contrário, as classes
aristocráticas podem até ser bem-intencionadas, mas não visam à
felicidade do maior número no longo prazo.418 “É assim que pode
acontecer que, nos governos aristocráticos, os homens públicos
façam o mal sem o querer e que, nas democracias, eles produzam o
bem sem o ter em pensamento”.419
(iii) As condições de um alto conflito de classes permitem
duvidar, porém, da capacidade das maiorias de se opor às elites. A
argumentação de Tocqueville inclui, assim, uma linguagem moral,
que ultrapassa as preferências de maiorias ou minorias. Embora a
democracia, sendo compatível com formas tirânicas, não seja justa
em si mesma, ela é mais justa, porque se baseia na ideia de que
cada indivíduo e, por extensão, cada povo tem o direito de dirigir
seus próprios atos.420 Ela faz descer à ideia de direitos políticos ao
mais humilde dos cidadãos.421 Nada é mais fictício do que a
legislação que fixa desigualdades permanentes entre os seres
humanos.422 Nada repugna mais à justiça do que um aristocracia,
“que não se saberia obter dos homens senão pela coerção”. 423
Desde o primeiro capítulo do Démocratie, ficam claras as
razões morais de sua preferência pela democracia. Nela, as
condições para autorrealização das pessoas são mais bem
distribuídas, apontando para a baixeza à qual são arrastados os
pobres nos lugares em que há grandes desigualdades, como nas
cidades opulentas e aristocráticas: “nesses lugares onde se

418
Ibid., II, 6, p. 265.
419
Ibid., p. 269.
420
Id., op. cit., 1836, II, p. 36.
421
Id., op. cit., 1835, II, 6, p. 273.
422
Ibid., II, 10, p. 396-7.
423
Ibid., p. 465.
106 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

encontram homens tão fortes e tão ricos, os fracos e pobres se


sentem como esmagados por sua condição; não descobrindo um
ponto pelo qual possam readquirir a igualdade, eles perdem toda
esperança em si próprios e se deixam cair abaixo da dignidade
humana”.424 A justiça não se confunde com a felicidade ou
perfeição do maior número, como entendem alguns intérpretes.425
Ela é definida como uma lei geral aceitável por todos seres
humanos, que serve como “limite do direito de cada povo”. Quando
um indivíduo ou grupo se recusa a obedecer uma lei injusta, não
está negando o direito da maioria de comandar, fazer leis e as
aplicar, diz ele, apenas apelando ao direito da maioria do gênero
humano.426 Assim, a ideia de justiça confere o critério último para
julgamento sobre as ações de maiorias e minorias. A democracia é
preferível não somente por ser melhor para a maioria dos cidadãos
ou mais capaz de os conduzir à verdade, mas também por respeitar
os direitos iguais de cada ser humano: “a igualdade é menos
elevada, talvez, mas é mais justa, e sua justiça faz sua grandeza e
sua beleza”.427
Não se circunscreveram os liberais oitocentistas, portanto, a
denunciar os abusos do igualitarismo, nem intencionavam que a
liberdade passasse intocada à democratização, como se Estado e
sociedade devessem servir exclusivamente à garantia do indivíduo,
como os lê caricaturalmente Quirino.428 Não resguardavam o ideal
de liberdade cercando uma área contra a justiça e a igualdade,
como faz Berlin. À maneira das demais instituições, hábitos e
opiniões, a ideia de liberdade também era modificada em uma
democracia; ela não podia vir desacompanhada da igualdade, com
a qual a concepção negativa estava em profunda contradição.
424
Id., op. cit., 1835, I, 1, p. 26.
425
Cf. KAHAN, Alan S. Tocqueville, democracy and religion: checks and balances for democratic
souls. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 57-8.
426
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 7, p. 288.
427
Id., op. cit., 1840, IV, 8, 852.
428
QUIRINO, op. cit., 2001, p. 47.
Felipe Moralles e Moraes | 107

Ainda que se louvem os grandes gênios das sociedades antigas, eles


jamais haviam chegado a essa ideia “tão geral mas ao mesmo
tempo tão simples, da semelhança dos homens e do direito igual
que tem cada um deles, ao nascer, à liberdade”.429 Somente se
poderia falar modernamente em liberdade como um direito igual
para todos, quer dizer, desde uma perspectiva da justiça430:

De acordo com a noção moderna, a noção democrática e, ouso


dizer, a noção justa da liberdade, cada homem, sendo presumido
ter recebido da natureza as luzes necessárias para se conduzir,
traz de nascença um direito igual e imprescritível de viver
independentemente de seus semelhantes em tudo que se
relaciona consigo mesmo e a regular como ele entende seu
próprio destino.431

A concepção negativa da liberdade e as interpretações da


obra de Tocqueville nela inspiradas pecam ao fazer caricatura de
um valor estanque. Elas dependem de uma estilização dramática
que inexiste em sua crítica imanente da sociedade moderna. A
modalidade trágica não se instala, porque acredita na existência de
razões sociais suficientes para enfrentar as ameaças que emergem
nas democracias de massas. Não prefere o comodismo à luta. Não
encarna a maldição do romântico, para quem agir é tanto mais
impraticável quanto mais forte é o ideal.432 A vida política ainda
oferece muitos atrativos ao jovem liberal, na qual podem ser
compreendidas e corrigidas as tendências sociais. Se a aristocracia
tinha que perecer para a realização da democracia, a morte não
seria um termo, uma expiração, mas uma parte da Providência.
Dentro desse plano, sua fama e honra seria preservada, não por

429
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, I, 3, p. 526.
430
LAMBERTI, in Lecturas, p. 177; MANENT, in Lecturas, p. 72 ; id., in: The companion, p. 117;
REIS, Helena Esser dos. A verdade provisória da democracia: uma análise do pensamento ético-
político de Alexis de Tocqueville. Poliética, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 20, 2013.
431
TOCQUEVILLE, op. cit., 1836, II, p. 36.
432
Cf. FLAUBERT, op. cit., 1869, p. 184
108 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

tutelar os instintos e valores democráticos a partir de uma


perspectiva aristocrática, nem por uma “escatologia dualista”433,
mas por obter o reconhecimento de seus pares. É como se o
aristocrata francês estivesse “além da morte”434 – como que
incorporado na vida democrática, que permaneceria após o
desaparecimento da noblesse à qual pertencia.
(iv) A condição e as instituições democráticas são as únicas
capazes de instilar virtudes públicas nos indivíduos modernos. Se
as paixões igualitárias tendem, por um lado, à massificação e perda
de reflexão; por outro, elas estimulam a empatia. À medida que as
pessoas adquirem modos de pensar e sentir semelhantes, mais
instintiva e mais facilmente percebem as misérias alheias e se
imaginam no lugar do outro. A igualdade escancara a fragilidade
comum e a necessidade de ajuda mútua entre os seres humanos.
Não necessariamente altruísmo, mas um acordo tácito entre
pessoas sujeitas aos mesmos perigos, segundo o qual cada um deve
aos outros simpatia, apoio, assistência momentânea que também
pode reclamar para si. Assim, quando os cidadãos democráticos
podem, sem prejudicarem muito a si próprios, aliviar as dores dos
demais, eles sentem prazer em fazê-lo: “eles não são
desinteressados, mas são doces”. Ao se interrogar Tocqueville,
porém, como os anglo-americanos eram capazes, em meio à
prosperidade geral de sua nação, de perpetuar as misérias e
crueldades da escravidão, reconhece que “o mesmo homem que
está cheio de humanidade por seus semelhantes, quando esses são,
ao mesmo tempo, seus iguais, torna-se insensível a suas dores
assim que a igualdade cessa”.435 Ao se introduzir uma classe
aristocrática na sociedade – no caso, uma aristocracia de pele,
mesmo em um estado social democrático – as distinções logo se

433
ANTOINE, Agnès. Politique et religion chez Tocqueville. In: GUELLEC, Laurence (Org.).
Tocqueville et l’esprit de la démocratie. Paris: Sciences Po, 2005, p. 313.
434
Cf. TAYLOR, op. cit., 1979, p. 72.
435
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, III, 1, p. 680-1.
Felipe Moralles e Moraes | 109

tornam intensas ao ponto de seus membros não considerarem os


outros como seres humanos: “um princípio singular de justiça
relativa encontra-se profundamente arraigado no coração humano.
Os homens são muito mais golpeados pela desigualdade que existe
no interior de uma mesma classe do que de desigualdades que se
observam entre diferentes classes”.436 As virtudes cívicas da
empatia, humanidade e solidariedade resultam muito mais da
igualdade de condições do que da civilidade, educação ou
racionalidade.
As estruturas democráticas permitem, por sua vez, a
preservação das virtudes políticas de engajamento com o bem
comum. Elas são a condição necessária à grandeza individual e
humana na modernidade.437 “Não devemos procurar nos Estados
Unidos... o cuidado meticuloso com detalhes, a perfeição dos
procedimentos administrativos; o que ali se encontra é a imagem
da força, um pouco selvagem, é verdade, mas plena de poder...”438
Se a vontade de ascender politicamente pode, por um lado, levar
certas pessoas a guerrear, o mesmo desejo aproxima, por outro,
uma multidão de pessoas que teriam permanecido estranhas umas
às outras. Se ocorre que uma eleição divide acidentalmente dois
amigos, partidos ou classes, o embate político leva muitas outras
pessoas a se emprestarem apoio: “a liberdade cria ódios
particulares, mas o despotismo faz nascer a indiferença geral”.439
Não há como construir uma ordem política de liberdade com
sujeitos sem a capacidade e o hábito de agirem em comum.
Outros intérpretes enxergaram, por isso, antes um estilo
cômico do que trágico no autor francês, o que dava refúgio para
adotar valores republicanos.440 As consequências paradoxais do

436
Id., op. cit., 1835, II, 10, p. 412.
437
AMIEL, op. cit., 2002, p. 43.
438
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 5, p. 102-3.
439
Id., op. cit., 1840, II, 4, p. 616-7
440
GUELLEC, in The companion, p. 174; VILLA, in The companion, p. 223.
110 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

curso histórico ofereciam oportunidade de ironizar os que


desejavam manter o melhor de dois mundos.441 A concessão,
mesmo moderada, à liberdade negativa era um dos resquícios
desestabilizadores das democracias modernas. A ideia aristocrática
de independência faz com que o indivíduo se submeta “é verdade, à
vontade de uma autoridade; mas goste de desafiar a lei como a um
inimigo vencido tão logo a força se retire. Assim se o vê oscilar
entre a servidão e a licença”. Embora o sujeito sinta ódio do poder
político, mistura censuras justificadas com as mais tolas acusações.
A liberdade negativa faz, assim, pessoas viris na vida privada, mas
covardes na vida pública. Essas imagens díspares de desordens
sociais e emocionais chamavam atenção de Tocqueville para a
necessidade de modificar leis e hábitos de uma sociedade onde “a
fonte das virtudes públicas secou: ainda se encontram ali sujeitos,
mas não se veem mais cidadãos”.442

441
ELSTER, op. cit., 2009, p. 190
442
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 5, p. 103.
2

A tese da liberdade republicana

Pretendendo resgatar o programa clássico do


republicanismo, oferece Philip Pettit uma nova chave de leitura
para o liberalismo do século XIX. Ele sugere a existência de uma
tradição unida por certa concepção distinta da liberdade, que
contaria com grandes nomes como Harrington, Montesquieu e
“talvez Tocqueville”.1 Ainda que a leitura expressamente “não
provenha do interesse de recuperar uma visão perdida da vida
pública, mas do anseio de explorar uma nova visão do que a vida
pública pode ser”, ela encontra suporte em várias interpretações do
liberalismo tocquevilleano.2 A virtude do empreendimento é tentar
demonstrar por que autores presos a suposições já não mais
sustentáveis politicamente – como a de que a cidadania seria
exclusiva de homens brancos e proprietários, ou vinculada a
noções aristocráticas de honra e virtude – podem contribuir para a
construção de instituições republicanas modernas.3 O desafio de
Pettit é mostrar como a agenda desses “republicanos pré-

1
PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Claredon Press,
1997, p. 19.
2
Entre outros: ARENDT, op. cit., 1963, p. 100; BOESCHE, Roger. Tocqueville on the tension between
commerce and citizenship (1988). In: _______. Tocqueville’s road map: methodology, liberalism,
revolution and despotism. Lanham: Lexington Books, 2008, p. 66; RAWLS, John. Political liberalism.
Expanded edition (1993). New York: Columbia University Press, 2005, p. 205 n. 37; AMIEL, op. cit., 2002,
p. 43; COHN, in A filosofia, p. 255-6; VILLA, in The companion, p. 235-6; WHITE, Stuart. Property-
owning democracy and republican citizenship. In: O’NEILL, Martin; WILLIAMSON, Thad (Ed.). Property-
owning democracy: Rawls and beyond. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, p. 139; COSTA, Marta Nunes.
Transformando a natureza humana: igualdade e liberdade política em Tocqueville. Agora: papeles de
filosofía, Santiago de Compostela, v. 34, n. 2, 2015.
3
PETTIT, op. cit., 1997, p. 129.
112 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

modernos” e desses liberais clássicos pode ser um ponto de vista


atrativo na contemporaneidade.4
A liberdade é compreendida como não-dominação: a rejeição
de uma vida à mercê de outro, vulnerável ao mau que o outro pode
impor arbitrariamente. Ela representa uma expressão de queixa
contra imposições arbitrárias, a qual alcança todo tipo de relação –
doméstica, econômica, burocrática. E exemplifica Pettit com a
esposa que se acha na situação na qual o marido pode lhe bater
impunemente; o empregado que não pode reclamar contra abusos
do empregador; o devedor que depende das graças do credor para
evitar a ruína; o assistido socialmente que precisa se submeter aos
caprichos de um burocrata. A falta de liberdade independe, nesses
casos, de uma ameaça de violência ou interferência, explica o
filósofo irlandês. O que se dá é uma situação de vulnerabilidade
rebaixante, de uma impossibilidade de olhar o outro no olho, de
uma necessidade de bajulação. A coação surge pela sujeição “a uma
vontade potencialmente caprichosa ou a um julgamento
potencialmente idiossincrático de outro”.5
Nessa tradição, o regime democrático pode ser visto como
necessário – embora não em virtude da liberdade de escolha.6 Em
conformidade com a noção negativa da liberdade, a democracia não é
suficiente para definir o ideal republicano.7 Nem os “duros fatos da
vida” o comprometem, como deficiências físicas e outros fatores
condicionantes das escolhas individuais. Seu compromisso é com
uma igual não-dominação das escolhas, não com uma igual extensão
material das escolhas.8 Assim, a rejeição à dominação não garante os
ideais de liberdade positiva e autonomia, embora possa os
salvaguardar, pela proibição de interferências baseadas em interesses

4
Ibid., p. 130.
5
Ibid., p. 5.
6
Ibid., p. 8.
7
Ibid., p. 30.
8
Ibid., p. 75-6 e 119.
Felipe Moralles e Moraes | 113

ou opiniões arbitrários.9 A liberdade republicana tampouco se


identifica com a liberdade negativa, ante a existência de dominações
sem interferência atual, como nas situações de vulnerabilidade social,
e de interferências sem dominação, como em um sistema legal não-
arbitrário.10 Ambos ideais de liberdade positiva e negativa valorizam
a escolha (a ausência de interferência), enquanto o ideal de liberdade
republicana valoriza um modo de ser da escolha (a ausência de
interferência arbitrária): “o primeiro grupo foca na quantidade de
escolha disponível, não importa qual tipo de escolha está envolvida; o
segundo está interessado somente na escolha de qualidade correta,
não dominada”.11
Analisando o conceito de dominação, encontra Pettit três
pressupostos: a capacidade atual do dominador de interferir
intencional ou culposamente; a diminuição da gama de escolhas ou
dos resultados associados às escolhas do dominado; a base
arbitrária dessa diminuição.12 Não há arbítrio na simples
interferência de outrem em interesses e opiniões do indivíduo, sem
seu controle. O arbítrio surge na falta de controle do indivíduo na
interferência sobre seus interesses e opiniões “relevantes”, quer
dizer, compartilhados em comum com outros, não sobre aqueles
que tratam o indivíduo como exceção. O interesse em não ser
punido, por exemplo, para ser relevante, deve contemplar o
interesse em não punir qualquer ofensa semelhante. Assim, uma
interferência grave e considerada arbitrária pelo indivíduo, como
uma punição estatal, não necessariamente compromete a liberdade
republicana, apenas a condiciona.13 Ao mesmo tempo, uma
interferência grave e não reconhecida pelo sujeito, como uma
cometida contra crianças, pode ser arbitrária.14 Os interesses e
9
Ibid., p. 82.
10
Ibid., p. 22-3.
11
Ibid., p. 25.
12
Ibid., p. 52-3.
13
Ibid., p. 55-6.
14
Ibid., p. 60-1.
114 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

opiniões relevantes não são definidos pelos indivíduos diretamente


concernidos. Nenhum dos pressupostos da dominação depende da
subjetividade, ressalta Pettit. A definição de quais interferência
contam como arbitrárias vai depender de pontos de vista
discursivos e procedimentais compartilhados pela comunidade,
sendo excluídos aqueles interesses faccionais, seccionais,
unilaterais.15 A arbitrariedade é uma noção “aberta à possibilidade
de reconstrução discursiva, à medida que as pessoas descobrem
novas afiliações e estão aptas a defender a visão de formas
recebidas de tratamento em uma nova e crítica luz”.16
Há pelo menos três corolários dessa concepção. A liberdade era
equiparada tradicionalmente a ideais de cidadania pelos liberais e
republicanos clássicos e contrastada com a liberdade natural ou
licenciosidade, porque ela consiste em uma realidade institucional,
não a uma qualidade individual.17 O primeiro corolário é, por isso,
que a liberdade como não-dominação corresponde a um status das
pessoas sob um determinado regime político: conceitualmente não
há liberdade das leis, apenas liberdade pelas leis.18
Além disso, a liberdade não deixa de ser um ideal
comunitário que transparece nos temas, comuns a liberais e
republicanos clássicos, da virtude cívica e patriotismo. A
identificação com os compatriotas dá-se em função de uma
liberdade compartilhada e de uma internalização do ideal de não-
dominação.19 Nesse sentido, o segundo corolário é que a liberdade
republicana pode ser vista como um ideal agregador de pontos de
vista de diferentes classes na sociedade. Não sendo um bem
atomizado, só pode ser usufruído por diferentes grupos aos quais o
indivíduo pertença.20 A própria arbitrariedade é articulada e
15
Ibid., p. 56-57.
16
Ibid., p. 147.
17
Ibid., p. 43, 66 e 108.
18
Ibid., p. 36-9.
19
Ibid., p. 260.
20
Ibid., p. 124-5.
Felipe Moralles e Moraes | 115

denunciada “sempre em virtude de ser de um certo tipo ou classe;


as pessoas são vulneráveis na medida em que são pretas, ou
mulheres, ou velhas, ou pobre, etc.”21
Escravidão e dominação de uma minoria eram
tradicionalmente hostilizados pelos republicanos, a despeito de
pretextos contratuais ou majoritários. O terceiro corolário é que a
legitimidade da interferência nas decisões de outras pessoas não se
escora em um consentimento, seja expresso ou tácito. A
legitimidade da interferência está, infere Pettit, em sua
contestabilidade: na permanente possibilidade de contestar se os
interesses e ideias que guiam uma coerção são realmente
compartilhados.22 Assim, a efetivação da liberdade republicana
envolve a identificação das áreas relevantes de dominação
existentes, as quais podem ser reduzidas ou removidas por
mecanismos institucionais de contestação, ainda que permaneça
sempre no horizonte a preocupação republicana de um
crescimento ameaçador da burocracia.23 Esse temor traz à tona a
preferência por uma estratégia institucional específica: em vez de
contar só com ameaças e sanções para punir as interferências
arbitrárias praticadas por agentes poderosos, cuja eficácia tende a
ficar limitada às situações mais graves, prefere-se a utilização de
filtros que selecionem os cumpridores das regras ou forcem os
agentes públicos e privados a seguirem os interesses e opiniões dos
demais, como funciona, por exemplo, com a introdução de agentes
eletivos vinculados aos interesses das partes envolvidas.24
Em síntese, buscando atualizar o republicanismo, Philip
Pettit oferece uma releitura da tradição liberal oitocentista, baseada
no ideal de liberdade como não submissão à vontade caprichosa,

21
Ibid., p. 144.
22
Ibid., p. 62-3.
23
Ibid., p. 105.
24
Ibid., p. 58, 67-8 e 220.
116 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

seccional e facciosa de outrem. Para o autor, a tese republicana


(TR) pode ser condensada na seguinte ideia:

TR: a liberdade consiste na possibilidade (por meio de garantias


efetivas) de perseguir interesses sem interferências arbitrárias de
outras pessoas.

Nas seções seguintes, explora-se essa interpretação da


liberdade na obra de Tocqueville, em seus aspectos mais
marcantes: (2.1) a identificação da forma de dominação burocrática
moderna; (2.2) o esforço de conciliação entre valores cívicos e
autointeresse privado; (2.3) a indeterminação dessa ideia de
liberdade em relação à justiça.

2.1 Dominação moderna

A democracia ameaça a ideia de autoridade, segundo


Montesquieu, na medida em que se oriente à igualdade não no
exercício da cidadania, mas na representação política,
administrativa, judicial, educacional – isto é, na medida em que
cada um queira ser igual a toda e qualquer autoridade escolhida
para comandar.25 A igualização democrática extremada recai em
um despotismo no qual não se perde a ideia de legalidade, mas sim
a ideia de autoridade, da qual se pode exigir prestação de contas e
responsabilidade. “Em uma burocracia – comenta Arendt – há
muitas pessoas que podem exigir prestação de contas, mas não há
ninguém para fazê-lo, porque ‘ninguém’ não pode responsabilizar-
se”.26 Somente um governo anônimo seria capaz de reprimir um
povo sem punição.
A intuição de que os obstáculos às repúblicas modernas já
não eram os mesmos que os encontrados nas repúblicas antigas

25
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, VIII, 2-3.
26
ARENDT, Hannah. A promessa da política (1953). Jerome Kohn (Org.). Trad. Pedro Jorgensen Jr.
3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2010, p. 127.
Felipe Moralles e Moraes | 117

vai ser compartilhada por Constant, depois da experiência sob o


império de Napoleão. Ele busca dissociar o despotismo monárquico
de um novo tipo de dominação massificada e militarizada, que
denomina “usurpação”. “[O] déspota proíbe a discussão e não
exige outra coisa que a obediência; o usurpador prescreve um
exame irrisório... O despotismo... reina pelo silêncio e deixa ao
homem o direito de se ocultar; a usurpação condena-o a falar,
persegue-o no santuário íntimo do pensamento...”27 No entanto, o
constitucionalista recorre ainda ao modelo dos césares, à tomada
ilegal e violenta do poder com apoio das forças armadas, ao
prestígio das conquistas militares. Seu objetivo era menos
distinguir um novo tipo de dominação das antigas formas de
despotismo do que defender que o governo que imperara em
França era incompatível com a ideia moderna de liberdade.28 Sua
avaliação é que a confiança do poder nas mãos de um só, de vários
ou de todos resulta no mesmo mal da centralização: “vocês se
voltarão contra os depositários desse poder e... acusarão
sucessivamente a monarquia, a aristocracia, a democracia, os
governos mistos, o sistema representativo. Estarão errados: o que
se deve acusar é o grau de força, e não os depositários”.29
Tocqueville vai apropriar-se dessas ideias e debruçar-se mais
diretamente sobre a forma de dominação inaugurada pelo
bonapartismo. No primeiro volume do Démocratie, intuía que, se o
poder absoluto se restabelecesse na modernidade, como queria a
restauração francesa, tomaria uma forma nova; embora ainda a
equipare também à “tirania dos césares”.30 No segundo volume,
arrepende-se da analogia e assevera que “a espécie de opressão que
ameaça os povos democráticos não parecerá a nada do que a

27
CONSTANT, Benjamin. De l'esprit de conquête et de l'usurpation, dans leurs rapports avec la
civilisation européenne (1814). 3ème edition. Paris: Le Normant, 1814, II, 3, p. 87-8 e 90.
28
Ibid., II, 2-3, p. 76-9 e 91-2.
29
Id., op. cit., 1815, I, p. 8.
30
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 9, p. 365.
118 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

precedeu no mundo”, embora procure em vão um termo para a


traduzir, já que “as palavras antigas de despotismo e tirania não
convêm”.31 Após recusar essa nomenclatura, por falta de
alternativa, vacila ao se referir à nova forma de dominação como
despotismo democrático, militar ou administrativo.32 O que agrega
esse triplo aspecto da dominação moderna é novamente a ideia de
centralização: a concentração do poder burocrático justificada por
uma vontade da maioria manifestada por aclamação ou delegação
direta, cuja consequência é a perda dos direitos civis e políticos dos
cidadãos.33
A forma de dominação moderna vai ser escancarada com o
golpe de Luis Bonaparte. Nas memórias da revolução de 1848,
Tocqueville escreve que conservadores e socialistas coincidiam na
defesa da centralização. Bastava a atacar e “podia-se ter certeza de
se atirarem imediatamente uns nos braços de outros... Os inimigos
dos governos a amam, os governantes a cultivam”.34 Em um país
cujos hábitos e tradições davam ao poder executivo um lugar tão
amplo e acentuado, esse poder seria sempre causa de revoluções
ou grande mal-estar.35 “Os povos democráticos frequentemente
odeiam os depositários do poder central; mas eles sempre amam
esse poder em si mesmo”.36 Os franceses prosternavam-se
sucessivamente diante do cadafalso de Robespierre ou das botas de
Bonaparte, dedicados a vender sua liberdade política em troca de
um governo autoritário que satisfizesse seus interesses imediatos.37
Assim, o desejo dos insurgentes pela “derrubada definitiva e
completa da dominação burguesa”, foi falseado, descreve Marx, por
31
Id., op. cit., 1840, IV, 6, p. 834-6; cf. NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, p. 1247d.
32
Ibid., p. 838; cf. NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, p. 1247d.
33
RICHTER, Melvin. Tocqueville on threats to liberty in democracies. In: WELCH, Cheryl B. (Ed.). The
cambridge companion to Tocqueville. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 263-65.
34
TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, II, 11, p. 873.
35
Ibid., III, 2, p. 898.
36
Id., op. cit., 1840, IV, 3, p. 814.
37
Cf. FLAUBERT, op. cit., 1869, p. 380.
Felipe Moralles e Moraes | 119

um poder executivo que “fez ajoelhar todas as classes igualmente


sem poder e sem voz diante dos rifles”.38 Embora alçado como
único representante do povo, em meio a um sistema que expulsava
os representantes populares, o chefe do executivo não carecia mais
da autoridade da maioria, renome da burocracia, ou gênio militar
dos quais ainda gozara Napoleão; a máquina estatal se
autonomizara a tal ponto dos controles da sociedade civil
organizada que podia ser ocupada por um mero ator capaz de
atrair uma massa de trogloditas.39
A tendência centrípeto-burocrática moderna deve-se, analisa
Tocqueville, a três fenômenos associados à igualização das
condições: (i) a paixão pela uniformidade; (ii) a paixão pelo bem-
estar; e (iii) a paixão pela ordem.40 Os três impulsos
correspondem, expondo de maneira esquemática, às características
majoritária, burocrática e militar da nova forma de dominação que
lançava sombra sobre estruturas e objeto democráticos. Eles
preparam os indivíduos para sacrificar a liberdade política pelo
desejo de igualdade, bem-estar e ordem. Uma das singularidades
da sociologia de Tocqueville é partir dessas causas psicológicas
para explicar as tendências modernas ao autoritarismo.41 Não sem
razão, porque as patologias modernas são ao mesmo tempo
espirituais e sentimentais; sociais e individuais. Opiniões e
sentimentos em favor da uniformidade, bem-estar e riqueza não
são ilusões, distorções arbitrárias ou ideologias; elas têm certa
aderência à verdade; embora provoquem confusões acerca da ideia
de liberdade. A liberdade política precisa ser, em contrapartida, o
produto da reflexão e da arte humana, contra as tendências sociais
à centralização burocrática. “Um povo democrático se deixa levar

38
MARX, op. cit., 1850, p. 114-6; id., op. cit., 1852, p. 196.
39
Ibid. p. 118; id., op. cit., 1852, p. 146, 161 e 197.
40
Cf. ELSTER, op. cit., 2009, p. 147-9; BOESCHE, Roger. Tocqueville and Marx: not opposites. The
Tocqueville Review, Toronto, v. 35, n. 2, p. 181-2, 2014.
41
HAYEK, op. cit., 1944, foreword to the 1956 american paperback edition, p. 48-9.
120 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

em direção à centralização por instinto. Ele só chega às instituições


provinciais por reflexão”.42
(i) A avaliação de Tocqueville sobre a democracia é acusada,
como se viu no capítulo anterior, de contaminação com
preconceitos e fontes pouco isentas a respeito das reais ameaças
que pairavam na modernidade. As inquietações com a tirania da
maioria seriam retóricas e “panfletárias”, acusa Brogan.43 Quem
diz panfleto diz oposição. Ainda não se soube fazer panfletos em
favor do poder estabelecido. Eles são, ensina Balzac, “a razão com a
crítica fazendo fogo como um mosquete e matando ou ferindo um
abuso, uma questão política ou um governo”.44 O panfleto de
Tocqueville não se dirige contra as estruturas democráticas, mas
contra uma confusão na ideia de soberania popular. Na sua
incompreensão e caricatura da filosofia liberal, o biógrafo admite
seu espanto quando confrontado com a defesa explícita pelo
gentilhomme da universalidade do sufrágio.45
A “estranha descoberta” dos franceses durante o terror e o
regime napoleônico havia sido atribuir o poder político à maioria
que se forma não pelo sufrágio, por período limitado e por meio de
pessoas politicamente responsáveis, mas por pessoas que diziam
encarnar a maioria: “não é o povo que dirige nesses tipos de
governo, mas os que sabem o maior bem do povo: distinção feliz
que permite agir em nome das nações sem as consultar e de
reclamar seu reconhecimento pisando em seus pés”.46 A soberania
não era exercida dentro de uma estrutura de governo democrática.

42
TOCQUEVILLE, op. cit., 1836, II, p. 27.
43
BROGAN, op. cit., 2006, p. 194 e 257-9.
44
BALZAC, Honoré de. Os jornalistas (1843). Trad. João Domenech. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2015, p. 49.
45
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 3, p. 58; cf. BROGAN, op. cit., 2006, p. 484. Na Assembleia
Constitucional de 1848, o liberal francês sustentou novamente o sistema de eleição direta para o
chefe do Executivo, o que era uma precaução republicana contra os candidatos dos partidos
monárquicos (JAUME, Lucien. Tocqueville y el problema del poder ejecutivo em 1848 (1991). In:
ROLDÁN, Darío (Ed.) Lecturas de Tocqueville. Madrid: Siglo XXI, 2007, p. 204 n. 37).
46
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 10, p. 460; cf. id., op. cit., 1840, I, 2, p. 522-3.
Felipe Moralles e Moraes | 121

Os autoproclamados democratas franceses, que cuidavam do bem-


estar e da felicidade do povo, não deixavam de ser aristocratas, na
medida em que defendiam a liberdade política como um privilégio
de determinada minoria partidária ou burocrática.47 O desprezo
pelos direitos eleitorais, pelo igual acesso a cargos públicos, pela
livre associação política e imprensa deriva dos mesmos
mecanismos do princípio igualitário que afetam o objeto
democrático: uma compensação espiritual e uma repetição dos
corações.
Ao mesmo tempo em que a subjetividade moderna inclina o
indivíduo a evitar a dependência da família, partidos, tradições,
etc., ele é conduzido a aceitar um governo único, uniforme e todo
poderoso. “O homem dos séculos democráticos não obedece que
com uma repugnância extrema a seu vizinho, que é seu igual... ama
fazer com que ele sinta a cada instante a dependência comum que
submete ambos ao mesmo mestre”. Sua independência o enche de
confiança e orgulho no seio de seus iguais, mas sua debilidade faz
com que sinta a necessidade de socorro estrangeiro, o qual não
pode esperar de seus iguais, porque são todos impotentes. Por isso,
se veem sujeitos que tão dificilmente obedecem às autoridades que
lhes são próximas, mas aspiram frequentemente a servir a um só
representante do Estado.48 Outrossim, os menores privilégios de
famílias, classes, cidades repugnam a sensibilidade democrática, de
modo que a uniformidade das leis parece a primeira condição de
um bom governo. O indivíduo “tem prazer em imaginar uma
grande nação cujos cidadãos se parecem e são dirigidos por um só
poder”. Não por acaso uniformidade e onipotência do poder estão
no fundo de todas utopias modernas.49
Por essas causas psicológicas e sensíveis, todos olhares,
necessidades e animosidades acabam direcionados ao poder

47
ARENDT, op. cit., 1963, p. 215.
48
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 3, p. 812-4.
49
Ibid., IV, 2, p. 808-10.
122 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

central, cujo vínculo é direto com cada indivíduo – sem formas,


duração delimitada ou contrapesos. A igualdade dispõe as pessoas,
por um lado, a julgar por si mesmos; mas, por outro, dá-lhes a
ideia e o gosto de um poder único, simples e imediato. Um poder
que representa diretamente a massa. À medida que os indivíduos
perdem a capacidade de se associarem e de agirem em comum,
cresce a possibilidade de dominação por aclamação ou delegação
direta.50 A sociedade civil perde a capacidade de organizar a
argumentação pública e, com ela, seu poder político. As
democracias de massa tendem a desfazer as mediações políticas
entre indivíduo e Estado – mesmo as mediações temporais, porque
ali “a trama do tempo se rompe a todo momento...”51
(ii) A paixão pelo bem-estar abre caminho para a dominação
burocrática através de duas vias de reificação do mundo político.
Uma reificação por saturação e outra por repetição: ela desvia os
indivíduos de se misturarem à política, ao mesmo tempo que os
coloca em uma dependência cada vez maior do aparato
burocrático.52
A vida privada nas sociedades modernas é tão ativa, tão
cheia de desejos, afazeres e trabalhos que não resta quase energia,
nem lazer para a vida política. Nela cada classe teme perder ou ver
partilhar seus privilégios com outras classes. Nela cada satisfação
de uma necessidade inflama novas necessidades; e os membros das
classes mais baixas podem aspirar o gozo dos prazeres das mais
altas. Não há oportunidade e, rapidamente, falta o gosto de
ocupação com o público.53 A paixão pelo bem-estar pode ser dita a
“mãe da servidão” moderna, diz Tocqueville, porque vem
geralmente misturada com virtudes privadas como amor pela
família, hábitos regulares, ética do trabalho, respeito ou

50
Ibid., IV, 3, p. 812 e IV, 7, p. 844; id., op. cit., 1835, I, 5, p. 107.
51
Ibid., II, 2, p. 613; cf. AMIEL, op. cit., 2002, p. 23-4.
52
Id., op. cit., 1840, IV, 5, p. 826 note.
53
Ibid., IV, 3, p. 812.
Felipe Moralles e Moraes | 123

observância das práticas religiosas, as quais favorecem a criação de


sujeitos honestos, mas sobressaem na capacidade de tornar
covardes os cidadãos.54 Trata-se de um “materialismo honesto”,
que não corrompe a psique, mas relaxa seus princípios públicos de
ação.55
É certo que os indivíduos que desejam enriquecer estão
sempre tentando, inovando e aventurando empreendimentos
independentes, de modo que aceitam o princípio geral de que o
governo deve se abster de intervir em seus assuntos particulares.
No entanto, cada um deles deseja que o governo atue, de maneira
excepcional, para lhes dar suporte em áreas que lhes favorecem,
contra o mesmo desejo dos demais. Por exemplo, um banco
depende que todos lhe paguem com toda exatidão o que devem e
do esforço para pagar o mais tarde possível o que ele próprio deve,
razão por que se esforça para atrair a ação do Estado para seu lado
e em restringir sua ação para os outros lados. Desse modo, “tendo
uma multidão de pessoas essa visão particular, ao mesmo tempo,
sobre uma profusão de objetivos diferentes, a esfera do poder
central se estende imperceptivelmente em todas direções, mesmo
que cada um deles deseje restringi-la”.56
Além dessa curiosa capacidade de expandir a esfera do poder
central, o sistema capitalista concentra populações e as expõe a
diferenças abruptas entre abundância e miséria, obrigando o
Estado a dar pão aos que têm fome, tratamento aos doentes,
trabalho aos desempregados. Ele não pode deixar de crescer a fim
de atenuar os extremos que o capitalismo produz. Não só a
proteção social, mas também a formação dos trabalhadores; a
construção de estradas, portos e outras obras de caráter
“semipúblico”; a satisfação de necessidades públicas geradas por
inovações privadas; a garantia de economias e investimentos; a

54
Id., op. cit., 1856, Avant-propos, p. 50 e II, 11, p. 152.
55
Id., op. cit., 1840, II, 9, p. 645-6.
56
Ibid., IV, 3, p. 812-3 note.
124 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

criação de algumas indústrias; em uma palavra, suprir as


deficiências do mercado competitivo, cujos custos e
responsabilidades são atribuídas ao Estado, para permitir a
produção de riquezas e o bem-estar da população.57 Um número
prodigioso de serviços e funcionários públicos são requisitados. Na
medida em que o governo detém ou se apropria de largas fontes de
bem-estar, o gosto materialista mistura-se igualmente ao desejo de
viver dos impostos – “a grande e permanente enfermidade” dos
franceses, critica Tocqueville, de aspirar ocupar cargos ou virar
funcionários públicos.58
A dominação burocrática é o produto combinado do
esgotamento dos indivíduos na agitação e procura por bem-estar
na vida privada, que os afasta das atividades políticas, com o
transporte desse padrão para dentro dos aparatos estatais. Mesmo
as assembleias políticas, por menos seccional que seja sua
composição, têm a propensão a contrair um esprit de corps que as
isola dos representados. Situadas na capital, longe da porção do
povo que as nomeou, seus membros perdem de vista os usos,
necessidades, maneiras de viver daqueles que representam;
tornam-se desdenhosos e pródigos no uso da coisa pública.59 Se
assim se passa tão comumente com pessoas submetidas ao
escrutínio e controle público, o que dizer daquelas sem qualquer
responsabilidade política?
Por ser um sentimento tenaz, mas muito maleável, a paixão
pelo bem-estar acomoda-se facilmente a qualquer forma de
governo, desde que satisfeita.60 A burocracia é o aspecto central da
forma de dominação moderna porque reifica a coisa pública:

57
Ibid., IV, 5, p. 823-5 e 828-30; id., op. cit., 1835, II, 5, p. 240.
58
Ibid., III, 20, p. 766 e IV, 5, p. 830; id., op. cit., 1850/51, I, 3, p. 750; id., op. cit., 1856, II, 9, p. 130;
cf. MARX, op. cit., 1852, p. 150-1 e 202.
59
Cf. CONSTANT, op. cit., 1815, V, p. 46.
60
TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, II, 3, p. 790.
Felipe Moralles e Moraes | 125

Há certas nações na Europa onde o habitante se considera como


uma espécie de colono indiferente ao destino do lugar em que ele
vive [...] a fortuna de seu vilarejo, o policiamento de sua rua, o
destino de sua igreja e de seu presbitério não lhe tocam; ele pensa
que todas essas coisas não lhe dizem respeito de alguma forma e
que elas pertencem a um estrangeiro poderoso que se chama
governo.61

Daí dizer Tocqueville que se trata de um dominação suave e


bem aceita pelos indivíduos, reclusos em suas paixões por
uniformidade e bem-estar.62 A burocracia degrada sem
atormentar; amolece, dobra e dirige sem quebrar; incomoda,
comprime, enerva, apaga, desumaniza, sem tiranizar; porque cria
uma índole letárgica e sonambulística nos cidadãos,
frequentemente chamada de ordem ou tranquilidade pública. Por
menor que seja a necessidade do concurso dos administrados para
as medidas estatais tomadas em favor do bem comum,
surpreende-se que a imensa máquina administrativa fique
reduzida à quase impotência. Os administrados preferem manter
sua imobilidade a vir ao socorro daquilo que não mais lhes
pertence, sem liberdade.63
(iii) A expansão do Estado provocada pelo sistema capitalista
torna-se especialmente perigosa quando assume a forma de um
desejo de que o governo compense distúrbios sociais e revoltas
contra injustiças que afetam a acumulação de riquezas.
A agitação constante e o grande esforço em busca do bem-
estar material não se equipara a uma revolução democrática. Pelo
contrário, conduz à administração tranquila e servil da coisa
pública. Percebe-se que a democracia incomoda mais facilmente
que se percebe que ela é útil aos negócios. Um povo levado pela
paixão pelo bem-estar e riquezas tende a temer mais a agitação

61
Id., op. cit., 1835, I, 5, p. 103-4.
62
Id., op. cit., 1840, IV, 6, p. 835 e 837.
63
Id., op. cit., 1835, I, 5, p. 101.
126 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

popular do que o autoritarismo estatal. O apego aos prazeres da


vida privada pode ser tal que os cidadãos estarão prontos a
abandonar a liberdade política. “Não é necessário arrancar desses
cidadãos os direitos que possuem; eles os deixam voluntariamente
escapar”. Ao menor ruído das paixões públicas, inquietam-se e
receiam cair em anarquia. O medo extravasa e eles começam a
atacar todo pensamento crítico: jornais, manifestações populares,
doutrinas filosóficas, tudo que possa causar exasperação. O ódio
pulula e exigem uma autoridade, de onde quer que venha,
contanto que seja à força. Essas pessoas creem seguir seus
interesses, “mas não fazem deles mais que uma ideia grosseira...
eles negligenciam a principal que é continuar mestres de si
mesmos”. Embora Tocqueville reconheça a relação necessária entre
liberdade e instintos comerciais e industriais das sociedades
capitalistas, tem consciência de que foi graças ao desejo de
tranquilidade pública que todos os povos chegaram à tirania. “Uma
nação que só pede ao seu governo que mantenha a ordem já é
escrava no sentido mais profundo de sua alma; é escrava do seu
bem-estar, e o homem que a vai acorrentar pode aparecer”.64
Esse homem, completa mais adiante, tende a estar ligado às
forças armadas, geralmente ocupadas por indivíduos pouco
civilizados, senão boçais, que compensam o estreitamento das vias
para melhorar sua condição material – graças ao esquecimento,
desvalorização e falta de glória na sociedade moderna, onde as
guerras se tornam raras – com armas e ambições políticas, fazendo
das revoluções militares as mais temíveis nas democracias de
massa.65 Essa é a leitura tocquevilleana da ascensão do despotismo
militar que assombrou a França durante os impérios
napoleônicos.66

64
Id., op. cit., 1840, II, 14, p. 652-4; III, 19, p. 760-5 e III, 21, p. 781; cf. id., op. cit., 1856, III, 3, p. 195;
MARX, op. cit., 1852, p. 153-4 e 183.
65
Ibid., III, 22, p. 784-6.
66
VILLA, in The companion, p. 233
Felipe Moralles e Moraes | 127

A burocracia e os juristas somam-se ao militarismo.


Enquanto um usurpador tem o desejo geral e indefinido pelo
poder, capaz de constranger os demais momentaneamente a
obedecer; os burocratas possuem o método; os juristas, a ciência
de fazer curvar os cidadãos de maneira durável. Quando
dominação burocrática e militar se juntam, fixa-se uma dominação
que “deixa dificilmente respirar a humanidade”.67 Assim acontece,
diz Tocqueville, que “os mesmos que, de tempos em tempos,
derrubam um trono e pisam nos pés dos reis dobram-se cada vez
mais, sem resistência, às menores vontades de um funcionário”.68
Esses males ele encontra, novamente, na Argélia: governo militar
arbitrário, centralização administrativa caprichosa em Paris, perda
de todas liberdades civis.69
Note-se que liberais novecentistas, como Hayek, vão enfocar
suas críticas na tentativa de substituição da competição privada
pelo planejamento estatal centralizado – uma substituição que foi
promovida pela configuração preponderante dos ideais socialistas,
quando não explicitamente por ideais coletivistas. O método que
defendiam para igualização das condições criava classes
parasitárias do governo e submetiam os interesses dos cidadãos
aos da burocracia estatal.70 Entretanto, esses defensores do livre
mercado tomam a centralização estatal nos países liberais como
um produto de meras opiniões ou políticas específicas.71 Esquecem
de dizer que o capitalismo tem, por sua dinâmica interna, fortes
tendências à centralização estatal, como já havia sido identificado,
no século XIX, por liberais como Tocqueville, nos quais dizem se
inspirar.72 Paralelo ao “caminho... em direção à servidão”73 do
67
TOCQUEVILLE, op. cit., 1836, II, p. 36.
68
Id., op. cit., 1840, IV, 5, p. 832.
69
AMIEL, op. cit., 2002, p. 14-5.
70
HAYEK, op. cit., 1944, p. 83-4 e 159; cf. MILL, op. cit., 1859, p. 306-7.
71
Ibid., p. 91-2
72
Cf. Ibid., preface to the 1976 edition, p. 54.
73
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 1, p. 807.
128 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

socialismo, corre o do capitalismo, ambos asfaltados pela


impaciência com instituições democráticas em favor de
recompensas materiais imediatas. Isso é omitido por Hayek, o que
lhe permite confundir, de modo um tanto grosseiro, as críticas ao
capitalismo por ideais democráticos às políticas de centralização
econômica e, por consequência, aos movimentos totalitários.74
Tampouco resulta o despotismo moderno de uma coesão de
elites, como preferem analisar os teóricos marxistas, porque o
consórcio de setores militares, burocráticos e empresariais não
deixa de se escorar em uma maioria massificada, que inclui as
classes baixas.75 Não se pode pressupor que a centralização da
indústria cause, por si só, uma centralização política da burguesia,
em detrimento da proletária.76 Em muitos momentos históricos, os
operários não querem nada diferente do que os capitalistas: uns
querem proibir a entrada dos produtos estrangeiros; outros o
banimento dos operários estrangeiros. Acusa-se o espelho, quando
a dominação moderna reflete as paixões por uniformidade e bem-
estar material, que esses teóricos não poderiam negar
honestamente em si mesmos.
Ao contrário de ambas correntes críticas, Tocqueville nega
que a solução para as contradições práticas das democracias
modernas esteja nos sistemas econômico ou burocrático-militar,
tomados em si mesmos.77 “Para combater os males que a igualdade
pode produzir, há um só remédio eficaz: a liberdade política”.78 Há
duas formas de centralização, desenvolve ele: governamental e
administrativa. A primeira interessa comumente ao povo, como
interessam as leis. A segunda, ataca as associações civis e políticas

74
Cf. HAYEK, op. cit., 1944, p. 156 e 165.
75
Cf. POLLOCK, Friedrich. State capitalism: its possibilities and limitations (1941). In: ARATO,
Andrew; GEBHARDT, Eike (Ed.). The essential Frankfurt school reader. New York: Continuum,
1982, p. 73.
76
Cf. MARX/ENGELS, op. cit., 1848, p. 466-7.
77
Cf. BRUTUS, IX-X, in The debate, p. 40-5 e 86-91.
78
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 4, p. 620; III, 21, p. 789.
Felipe Moralles e Moraes | 129

dos cidadãos. E exemplifica: os municípios não podem impedir a


abertura de estradas, devem executar as regulações que dizem
respeito à ordem pública, abrir escolas conforme o plano
estabelecido nacionalmente, etc.79 Não há como um país prosperar
sem centralização governamental, aí compreendido o judiciário,
que interprete as leis federais de modo uniforme.80 Todavia, a
centralização administrativa tende à diminuição da liberdade do
povo.81 Nos países anglófonos, enxerga ele uma enorme
centralização governamental e judicial, ao lado de uma tremenda
descentralização administrativa.82
A uniformidade da administração e das leis secundárias são
sempre um mal, pois são poucos países cujas diferentes regiões
podem suportar a mesma legislação até seus detalhes. Na
Inglaterra, reconhece Tocqueville uma verdade com que se
familiarizara nos EUA – de que a aparente diversidade de leis em
cada Estado ou município, que torna o governo apropriado às
necessidades locais, esconde uma harmonia geral de princípios e
leis gerais.83 Ao mesmo tempo, enxergava na França uma
administração local que não mais representava sua comunidade,
apenas o poder central, e dependia de seus recursos e autorizações
para reparar até o teto ou muro danificado de uma igreja.84 A
situação era tão cotidiana que reaparece na obra de Stendhal,
quando o prefeito de Verrières precisa de três viagens a Paris em
visita ao Ministro do Interior, a fim de construir o parapeito de um
muro em sua cidade.85 Para Tocqueville, a sociedade moderna não
79
Id., op. cit., 1835, I, 5, p. 71-2.
80
Ibid., I, 8, p. 167; id., op. cit., 1833/35, 1er juin, p. 475; cf. HAMILTON, No. 80-81, in The
federalist, p. 508 e 519.
81
Ibid., I, 5, p. 96-7.
82
Ibid., p. 98-9; id., op. cit., 1833/35, 3 juillet, p. 505.
83
Id., op. cit., 1833/35, 3 septembre, p. 447.
84
Id., op. cit., 1856, II, 3, p. 94-5.
85
STENDHAL, op. cit., 1830, p. 13; em 1831, pela primeira vez desde 1792, à parcela dos municípios
franceses foi conferido o direito de eleger conselheiros municipais; mas ao rei competia ainda
escolher o prefeito e representantes dentre os conselheiros eleitos; e os cidadãos com direito à voto
130 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

poderia evitar de aumentar o poder da autoridade política central,


mas seria inadmissível manter um poder administrativo
centralizado e sem controles e responsabilidades locais. Atento a
essa distinção, Mill vai igualmente defender a combinação de
intervenção popular local com as vantagens da supervisão e da
experiência de um governo centralizado.86
Por aproximados que sejam os diagnósticos da dominação
moderna com os marxianos, no sentido de uma crescente
submissão aos órgãos estatais, motivada pelo conflito de classes,
desejo de asseguração da propriedade e obsessão pela acumulação
de riquezas, diferencia Tocqueville a descentralização política da
administrativa. Não propugna a destruição do Estado centralizado,
como sugere Roger Boesche – o que leva o intérprete a entender
contraditória sua defesa de um governo centralizado.87 Para Marx,
sim, a república estadunidense não é distinta da monarquia
prussiana: por natureza, são instrumentos de dominação de classe
e devem ser abolidos.88 Mesmo em seus rascunhos de uma
democracia eletiva com revogação de mandatos, a melhor forma de
governo continua sendo aquela que agiliza a extinção de toda
forma de governo.89 As revoluções oitocentistas haviam sido
derrotadas porque completavam a máquina de governo “em vez de

não chegavam a 15% dos habitantes do sexo masculino. Ademais, a coroa definia locais, momentos e
temas de discussão, resguardando a possibilidade de dissolução do conselho (GANNETT JR., Robert
T. Bowling ninepins in Tocqueville's township. The American Political Science Review,
Cambridge, v. 97, n. 1, p. 4 e 6, feb. 2003).
86
MILL, John Stuart. De Tocqueville on Democracy in America, II (1840). In: ____. The collected
works of John Stuart Mill. John M. Robson (Ed.). Vol. XVIII. Toronto: University of Toronto Press,
1977, p. 170.
87
BOESCHE, Roger. Le commerce: a newspaper expressing Tocqueville’s unusual liberalism (1983).
In: _______. Tocqueville’s road map: methodology, liberalism, revolution and despotism. Lanham:
Lexington Books, 2008, p. 208 n. 69; id., op. cit., 2014, p. 188.
88
MARX, Karl. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie (1843). In: ______; ENGELS, Friedrich.
Werke. Band 1. Berlin: Dietz Verlag, 1956, p. 232.
89
______. Zweiter Entwurf zum “Bürgerkrieg in Frankreich” (1871). In: ______; ENGELS, Friedrich.
Werke. Band 17. Berlin: Dietz Verlag, 1962, p. 595-7; cf. HABERMAS, op. cit., 1962, p. 222-3;
ARENDT, op. cit., 1963, p. 205; BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo (1976). Trad.
Sérgio Bath. 4. Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1985, p. 172.
Felipe Moralles e Moraes | 131

a quebrar”.90 Democracia ou ditadura são transições à eliminação


de toda ordem jurídica estatal: “na verdadeira democracia, o
Estado político perece”!91
A democracia substancial requer, para Marx, em lugar de
direitos assegurados e de uma distribuição justa da riqueza
cooperativamente produzida, a eliminação de todas mediações
políticas e econômicas entre o Estado e a sociedade civil. A oposição
entre interesses gerais e particulares exigiria a negação desses
extremos, que “não carecem de intermediação, porque são
essências opostas”.92 Ainda soa plausível para muitos, com efeito,
essa sugestão de formas comunitárias que realizam a democracia
sem mediações institucionais, por meio da multiplicação das
experiências humanas.93 Acontece que tal sugestão crê em uma
ordem natural da reprodução social capaz de se regular sem
amplas controvérsias e de neutralizar automaticamente todas
relações de poder.94 Os teóricos críticos não conseguem, com isso,
ultrapassar seu fundamentalismo de uma grande recusa à
sociedade moderna, isto é, ficam aquém do projeto democrático
vinculado a instituições estatais de proteção social, opõe Habermas.
O pluralismo de subculturas de desobediência espontânea e de
invenção de novas formas de subjetivação não se traduz em
normas jurídicas de igualização civil.95 “Não nascemos iguais –
sublinhava Arendt –, tornamo-nos iguais como membros de um
grupo por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos

90
Id., op. cit., 1852, p. 117; cf. MARX, Karl. Brief an Ludwig Kugelmann am 12. April 1871. In:
______; ENGELS, Friedrich. Werke. Band 33. Berlin: Dietz Verlag, 1966, p. 205.
91
Id., op. cit., 1843, p. 231-2.
92
Ibid., p. 292.
93
Cf. POGREBINSCHI, Thamy. O enigma da democracia em Marx. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, São Paulo, v. 22, n. 63, p. 66, fev. 2007.
94
HABERMAS, op. cit., 1962, p. 223.
95
HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência: a crise do Estado de Bem-Estar Social e o
esgotamento das energias utópicas (1985). Trad. Carlos Alberto Marques Novaes. Novos Estudos
CEBRAP, São Paulo, n. 18, p. 111, set. 1987.
132 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

reciprocamente iguais”.96 Em suma, arremata Bobbio: a tradição


marxista permanece comprometida com a rejeição ao projeto
social-democrático.97
Para Gérard Lebrun, o nobre francês estaria, da mesma
forma, confundindo poder estatal com opressão e deixando de
refletir sobre medidas políticas gerais e de longo prazo.98 No
contexto de novas funções do Estado, não mereceriam os mesmos
elogios as instituições voltadas à descentralização decisória,
esfarelamento do poder, prevalência dos interesses eleitorais
imediatos. A acefalia constituiria perigo pelo menos tão grande
quanto a tirania democrática.99 Outros filósofos e intérpretes
importantes ressaltam o que seria essa contingência histórica na
avaliação tocquevilleana das funções do governo nas sociedades
democráticas complexas.100 A crítica transparece uma leitura
desatenta.
É absolutamente equivocado supor que os liberais
republicanos associassem a emancipação humana a um governo
central fraco ou ao fim da burocracia. “O vigor do governo é
essencial à segurança da liberdade”, começava Hamilton os artigos
federalistas. O descuido com a firmeza e eficiência do governo
encontrou, historicamente, uma estrada certa para a introdução do
despotismo.101 Mais adiante, vai repetir que “a energia no Executivo
é o caráter principal na definição de bom governo”, especificando
ser essencial para a proteção contra estrangeiros, administração
estável das leis, proteção da justiça, segurança da liberdade contra

96
ARENDT, Hannah. O sistema totalitário (1951). Lisboa: Dom Quixote, 1978, p. 387.
97
BOBBIO, Norbert. Marx e o Estado (1983). In: _______. Nem com Marx, nem contra Marx. Carlo
Violi (Org.). Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 2006, p. 164.
98
LEBRUN, Gérard. Esquecer Tocqueville? In: ______. Passeios ao léu: ensaios. São Paulo:
Brasiliense, 1983, p. 276.
99
Ibid., p. 278.
100
Entre outros: HABERMAS, op. cit., 1962, p. 229; OFFE, op. cit., 2004, p. 40; BROGAN, op. cit.,
2006, p. 438 e 544-5.
101
HAMILTON, No. 1, in The federalist, p. 5-6.
Felipe Moralles e Moraes | 133

assaltos de ambições, facções ou anarquia.102 Muitos artigos são


gastos para defender a centralização do governo, com especial
atenção à segurança nacional.103 Ao mesmo tempo, precisa rebater
os adversários que criticavam ser o presidente dos EUA uma
progênie dos monarcas absolutos.104 Nesse sentido, repara
Tocqueville que, nos Estados Unidos, a centralização
governamental já era, em alguns aspectos, “mais concentrada do
que tem sido em qualquer das antigas monarquias da Europa”.105 E
aponta que não havia obstáculos, nem razões, para deixar de ser
ainda maior, pela falta ainda de suficiente força militar e de
coletores de impostos subordinados à autoridade federal.106 Na
Inglaterra, continua ele, “onde a centralização governamental
atingiu um tão alto grau: o Estado parece mover-se como um só
homem; conforme a sua vontade, ele levanta massas imensas, reúne
e carrega por toda parte, onde lhe apraz, todo o esforço da sua
potência”. No entanto, esse país “não possui uma centralização
administrativa”.107 Nações modernas não poderiam prescindir de
uma grande centralização governamental, o que não se confunde
com a centralização administrativa.108 O que os liberais
republicanos receavam não era a força do poder central, mas sua
impotência. Se há algo de criticável é seu apego, pelo contrário, à
ideia de grandeza nacional e expansão das fundações políticas, já
denunciada, seja durante elaboração da Constituição

102
Id., No. 70, in The federalist, p. 447-8.
103
Por exemplo, No. 3, 24, 41, 70, 74, in The federalist.
104
Id., No. 67 e 69, in The federalist, p. 430 e 439-447.
105
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 5, p. 98; I, 8, p. 129 e II, 7, p. 299.
106
Ibid., I, 5, p. 98-9 e I, 8, p. 139-40.
107
Ibid., p. 97.
108
Em carta endereçada a Eugène Stoffels, escreve: “o que eu quero é um governo central energético
dentro da esfera de sua ação. [...] Acredito que o poder central pode ser revestido de prerrogativas
muito grandes, ser energético e poderoso dentro de sua esfera e, ao mesmo tempo, as liberdades
provinciais serem bem-desenvolvidas” (TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre à Eugène Stoffels, 5 octobre
1836. In: BEAUMONT (Ed.), op. cit., V, p. 434).
134 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

estadunidense, seja durante a oposição ao rei Luís Filipe, como


uma ambição imperialista.109
Na lição dos clássicos, não existe nada mais pernicioso para
um regime de liberdade do que a apatia das pessoas, seja pela falta
de habilidade, seja pela falta de interesse em lidar com os assuntos
públicos. Segundo Aristóteles, a apatia é um vício típico do escravo,
porque consiste na insensibilidade e incapacidade de autodefesa.110
Mais convincentemente, diz ser difícil, senão impossível, tornar-se
um bom avaliador do desempenho de qualquer arte que não se
praticou.111 Ninguém melhor que Maquiavel expôs a fragilidade dos
que obtém poder político por interesses econômicos ou graças ao
favor de quem o concede. Esses indivíduos não têm habilidade
política, nem são capazes de congregar interesses: “não sabem
porque... não é razoável que, tendo vivido sempre no âmbito da
privacidade, saibam comandar; e não podem porque não dispõem
de forças que lhes sejam fiéis e amigas”.112 A modernidade agrava
essa fragilidade, percebe Montesquieu, ao trazer a apatia para o
seio da sociedade, onde, como nos Estados despóticos, “cada casa é
um império separado”.113 Daí o erro de se imaginar que pessoas
sem o hábito de se dirigirem politicamente possam escolher bem
os governantes, continua Tocqueville.114 Ele é um dos elos dessa
longa corrente do pensamento republicano que tematiza o
isolamento dos indivíduos e classes como a maior causa de
submissão à dominação: “em lugar de imaginar que os cidadãos

109
Cf. HENRY, Patrick. I; DEWITT, III, in The anti-federalist, p. 208 e 330; BRUTUS, VII, in The
debate, p. 691; MARX, op. cit., 1852, p. 124; ARENDT, op. cit., 1963, p. 123 e 161.
110
ARISTOTLE. Nicomachean ethics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The complete works of Aristotle,
II. Princeton: Princeton University Press, 1984, IV, 1126a7.
111
ARISTOTLE. Politics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The complete works of Aristotle, II.
Princeton: Princeton University Press, 1984, VIII, 1340b35-40.
112
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe (1513). Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010, p. 58.
113
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, IV, 3.
114
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 7, p. 839-40.
Felipe Moralles e Moraes | 135

das novas sociedades acabarão vivendo em comum, temo antes que


não cheguem a formar mais do que conchavos”.115
Em tintas clássicas, Tocqueville parece sustentar que as
pessoas devem ser senhoras de si, não sofrer dominação externa,
para ser livres. A proposta principal, seja do Démocratie, seja do
Ancien Régime, é anunciada como um combate aos vícios e
preconceitos materialistas das sociedades modernas, que
ameaçavam as liberdades políticas.116 Assim, a ideia de que o
indivíduo é o melhor juiz de seus interesses não se confunde com a
liberdade negativa, como entende Quirino.117 Ela é imediatamente
transplantada ao corpo coletivo. A comuna “nada mais é que um
indivíduo como outro”. Em tudo aquilo que só diz respeito a ela
mesma, permanece dona de si. Ela só se submete às instituições
estaduais e federais quando se trata de um interesse geral. Ainda
quando o governo estadual ou federal impõe um dever, a execução
compete à comuna, que percebe e reparte dos impostos, constrói,
custeia e dirige os empreendimentos.118 A liberdade está nos
governos locais, que a emprestam ao governo central. A concepção
de Tocqueville não se resumiria, portanto, à não-interferência
externa, mas significaria, no melhor espírito varonil, a capacidade
de se autogovernar. A democracia é a forma mesma da liberdade,
na medida em que contrasta com a submissão dos próprios
interesses ao arbítrio de outrem.119

2.2 Interesses bem compreendidos

Odisseu envolve os joelhos da rainha feácea. “O silêncio foi


geral. Havia um estranho no palácio...”120 O gesto revelava ser um
115
Ibid., III, 13, p. 730.
116
Ibid., IV, 3, p. 812 ; id., op. cit., 1856, Avant-propos, p. 48-50.
117
Cf. QUIRINO, op. cit., 2001, p. 142.
118
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 5, p. 71.
119
COHN, in A filosofia, p. 255-6.
120
HOMERO. Odisseia, II. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2011, VII, 142.
136 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

estrangeiro recém-chegado, carente de auxílio e hospedagem.


“Ninguém quebrou o silêncio. Depois de muito tempo, ouviu-se a
voz de Equeneu, avançado em anos, o mais antigo dos feáceos,
versado em mitos, o legado antigo lhe era familiar”. Ressoou a voz
dos bons costumes gregos: “não considero decente admitir que um
estrangeiro permaneça sentado no chão... oferece-lhe uma poltrona
de prata... É hora de libar ao Zeus fulminador, protetor de todos os
que respeitosos rogam abrigo. Por que a responsável não lhe
prepara já a mesa?” 121
A recepção de um estrangeiro no Grécia Arcaica não se
restringia a alcançar-lhe água e satisfazer-lhe as necessidades
básicas. Quanto mais incrível e exuberante, melhor. Um assento
próximo ao rei, no lugar do seu filho dileto; um ritual de
purificação; mesa polida com “o que havia de melhor”.122 Vinho
para todos, manda chamar o rei feáceo, em homenagem a Zeus,
“protetor dos que rogam abrigo”. Na manhã seguinte, convocava
para mais celebrações e sacrifícios. Um “leito sob o pórtico com os
melhores travesseiros, os de púrpura”.123 Até a mão da princesa,
sem nenhuma contraprestação aparente, oferece o rei! E os feáceos
não se importam sequer em saber o nome do hóspede!124 Esse
costume central na sociabilidade grega perpassa toda a obra
homérica. É denominado ξενία. A ausência dessa instituição marca
a vida bárbara dos ciclopes, que não são sociáveis, não dominam a
agricultura, nem sabem navegar. Eles tomam os estrangeiros por
comida, quando lhes eram solicitados proteção e presentes.125
A ξενία revela a centralidade do comércio na cultura grega.
Quanto mais mimado fosse o hóspede, como mostra o exemplo dos
feáceos, povo comerciante e riquíssimo, maiores as chances de

121
Ibid., 154-66.
122
Ibid., 169-76.
123
Ibid., 179-337.
124
Ibid., 310.
125
Ibid., IX.
Felipe Moralles e Moraes | 137

estabelecimento de relações vantajosas com os outros povos. O


ξεῖνος é o “estrangeiro” e o “hóspede”. A ξενία, um ritual que
demonstrava a amizade ao estrangeiro. Uma prática muito antiga,
simbolizada pelo discurso do ancião Equeneu, que parece ilustrar a
enorme força da noção de interesse bem compreendido.
A antiguidade da doutrina do interesse bem compreendido é
referida no Démocratie.126 Para demonstração, cita-se Montaigne:
“quando por sua retidão eu não seguiria o caminho reto, eu o
seguiria por ter encontrado pela experiência que, no final das
contas, é comumente o mais feliz e o mais útil”.127 O renascentista
escreve, porém, para recomendar a humildade, cortesia e erudição;
defende o ideal de honnête homme, que sabe dominar suas
emoções, recusa os excessos e se adapta ao círculo imediato; aquele
que se abre ao diferente, ao estrangeiro e ao espírito crítico. “Diz-
se bem verdadeiramente que um homem honesto é um que se
mistura”.128 Na passagem citada, Montaigne não está
absolutamente tratando de indivíduos que buscam o próprio
interesse, senão a virtude. A virtude não está na glória, no
julgamento alheio, mas na consciência; do contrário, somente seria
feita em público, como finalidade fortuita, “tão flutuante e
vagabunda”. Ao que pondera que, se é feita pela vaidade e, “não
obstante, seja de tal serviço ao público a conter os homens em seu
dever; se as pessoas estão com isso despertas à virtude... que ela
aumente então ousadamente e que se a alimente entre nós o mais
que se possa”.129 Se não se deseja a virtude por ela mesma, ela não
se torna menos desejável, como quando são interditas as ações pela
opinião ou reputação pública. O que percebe o magistrado de
Bordeaux é quão absurdo é condenar o autointeresse em nome da
virtude: “se cada um de nós se sondasse por dentro, encontraria

126
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 8, p. 636.
127
MONTAIGNE, op. cit., 1582/88, II, 16, p. 378.
128
Ibid., III, 9, p. 259.
129
Ibid., II, 16, p. 384.
138 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

que nossos desejos interiores, em grande parte, nascem e se


alimentam às custas de outros”.130 Os moralistas franceses já
sabiam muito bem que uma pesquisa motivacional das ações
humanas só poderia desembocar em uma ciência geral da
misantropia, ao se equiparar a virtude a certa qualidade do coração
e, assim, se ver hipocrisia e corrupção por toda parte.131 Contudo, o
preceito de que o autointeresse é ineliminável no ser humano não
traduz inteiramente a doutrina do interesse bem compreendido. O
renascentista está aquém do burguês.
Da mesma forma, a ξενία guardava um componente
claramente religioso e um caráter muitas vezes aristocrático, como
revela o episódio com a princesa feácea. Ela faz parte de um
mundo distante do moderno, onde é acentuada a necessidade de
costumes comuns, os “hábitos do coração”.132 Essa proximidade
com os modelos antigos, levou alguns a enquadrar Tocqueville
como um moralista preocupado com as almas, cuja doutrina do
interesse bem compreendido instilaria a grandeur aristocrática no
caráter, gostos e sentimentos dos indivíduos modernos.133 Sua
“nova ciência política” seria destinada a inspirar os atores políticos,
evitando que fossem espectadores passivos de uma ciência da
história de moldes hegelianos.134 Ele estaria, com isso, distante do
pluralismo moderno e da ideia de que instituições republicanas
poderiam existir pela ação autointeressada dos indivíduos e por
um equilíbrio de poder entre grupos de interesse, sem pressupor
as antigas virtudes.135 Evidentemente, mereceu ser criticado por

130
Ibid., I, 22, p. 174.
131
ARENDT, op. cit., 1963, p. 76.
132
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 9, p. 331.
133
Entre outros: BOESCHE, op. cit., 1988, p. 66 e 69; MANSFIELD JR./WINTHROP, in The
companion, p. 84 e 97.; GOLDHAMMER, Arthur. Translating Tocqueville: the constraints of
classicism. In: WELCH, Cheryl B. (Ed.). The cambridge companion to Tocqueville. Cambridge:
Cambridge University Press, 2006, p. 155 e 159; KAHAN, op. cit., 2015, p. 3, 10, 61 e 69.
134
ARENDT, op. cit., 1963, p. 42.
135
BOESCHE, op. cit., 2006, p. 65.
Felipe Moralles e Moraes | 139

isso, ao implicar uma tendência ética unificante, em vez dos


conflitos de sentido e impiedosos antagonismos de interesse e
ideológicos que marcam as democracias modernas.136
De acordo com a interpretação ética, o limite do pensamento
tocquevilleano estaria na pressuposição de uma coesão social e
obsessão pela unidade-identidade, como deixa transparecer em
várias passagens. Ressalta a fundação da Nova Inglaterra pelos
pioneiros como um elemento chave para o sucesso da democracia
estadunidense, pois formavam “uma sociedade homogênea em
todas suas partes”.137 À par das diferentes seitas, “a moral do
cristianismo é a mesma por toda parte”.138 Note-se quão enfático é
seu determinismo cultural: “não há sequer uma opinião, sequer um
hábito, sequer uma lei, poderia mesmo dizer sequer um
acontecimento, que não possa ser explicado sem dificuldade pela
origem do povo”.139 Os anglo-americanos fundavam uma república
de iguais como Eneias fundara Roma, imbuídos de pietas. Eles
podiam contar com o privilégio do começo, em que a sociedade
podia retornar a seus primeiros princípios, a partir dos quais podia
se tecer de modo integral e se recompor no absoluto.140 E encerra o
primeiro volume do Démocratie dizendo que, em breve, os EUA
teriam população proporcional à Europa, mas na qual “todos
pertencerão à mesma família, terão a mesma origem, a mesma
civilização, a mesma língua, a mesma religião, os mesmos hábitos,
os mesmos costumes, e através da qual o pensamento circulará
sobre a mesma forma e será pintado com as mesmas cores”.141 A
doutrina dos interesses bem compreendidos seria, por
consequência, uma regra de vida que remonta essa origem
136
FORST, Rainer. Kontexte der Gerechtigkeit: politische Philosophie jenseits von Liberalismus
und Kommunitarismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 183.
137
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 2, p. 38
138
Ibid., I, 9, p. 336.
139
Ibid., I, 2, p. 30-1.
140
ARENDT, op. cit., 1963, p. 170-1; GAUCHET, in Lecturas, p. 117.
141
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 10, p. 480.
140 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

comum: “os americanos... comprazem-se em explicar, com auxílio


do interesse bem compreendido, quase todos os atos da sua
vida”.142 É a descrição de uma espécie de Roma americana.143
A solução ética cai em uma esquizofrenia entre virtude da
participação nos assuntos políticos e autointeresse dos modernos:
“um americano se ocupa de seus interesses privados como se
estivesse sozinho no mundo e, no instante seguinte dedica-se à
coisa pública como se os estivesse esquecido”.144 Há um atoleiro
difícil de escapar entre o “espírito de associação” e o “espírito de
exclusão” – a capacidade de associação dos indivíduos
concomitante à fruição o máximo possível sozinhos de suas
vantagens.145 A ânsia em encontrar uma unidade ética em uma
sociedade plural provocava descrições contraditórias. Elster brinca
que só poderia estar observando grupos diversos para chegar a
semelhante descrição.146 A solução ética equivale à investigação
pela “quadratura do círculo”, critica Forst, em que a prevalência de
princípios liberais, tolerantes a múltiplas concepções de bem é
justificada com apelo a outra concepção de bem.147 Ela falha em
levar a sério a divisão entre a liberdade dos antigos e a dos
modernos, já explicitada por Constant: em uma sociedade plural, a
vida política não poderia assumir um local privilegiado nas
diferentes concepções de vida boa. O liberalismo ético não evita o
apelo ao idealismo de indivíduos que compartilham uma felicidade
pública, o qual a liberdade moderna não mais tolera.148 Uma
experiência democrática compreendida como “unidade da
coletividade” é inaceitável, reforça Gauchet: “a democracia não é o

142
Id., op. cit., 1840, II, 8, p. 636.
143
Cf. ARENDT, op. cit., 1963, p. 159 e 170.
144
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, III, 14, p. 655.
145
Ibid., III, 13, p. 730; id., op. cit., 1833/35, 26 mai, p. 474.
146
ELSTER, op. cit., 2009, p. 26
147
FORST, op. cit., 1994, p. 95.
148
RAWLS, op. cit., 1993, p. 37-9 e 206.
Felipe Moralles e Moraes | 141

acordo profundo dos espíritos; é o rasgo do sentido e o


antagonismo sem piedade dos pensamentos”.149 A “catástrofe da
filosofia ocidental” foi, reconhece Arendt, essa exigência de uma
comunidade política baseada na unidade ética, só possível sob uma
tirania.150 Assim conquistada, a liberdade faria do vitorioso um
cativo.
A pressuposição de uma coesão social de origem não é,
porém, idiossincrática a Tocqueville. Ela perpassa os artigos
federalistas. John Jay escreve que aquele país de imigrantes havia
sido formado com “descendentes dos mesmos ancestrais, falando a
mesma língua, professando a mesma religião, vinculada aos
mesmos princípios de governo, muito similar em suas maneiras e
costumes...”.151 Madison acrescenta que as repúblicas pressupõem
no povo qualidades republicanas em mais alto grau.152 Mesmo
teóricos críticos contemporâneos parecem recorrer, às vezes, à
unidade cultural de um povo liberal.153 A identidade do povo é um
desses conceitos extravagantes que aparecem e desaparecem como
num sopro e dos quais nem as mentes mais geniais estão livres.
As referências tocquevilleanas à unidade de corações e
mentes são antes reveladoras da autoridade dos antigos – e talvez
do descrédito daquele que havia elaborado a doutrina do interesse
bem compreendido, já no século XIX –, do que uma teoria coerente
da democracia.154 As referências são anacrônicas: “imagine... uma

149
GAUCHET, in Lecturas, p. 87, 91 e 98.
150
ARENDT, op. cit., 1951, p. 43.
151
JAY, No. 2, in The federalist, p. 9; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 10, p. 400 e 480
152
MADISON, No. 55, in The federalist, p. 359.
153
Cf. HABERMAS, op. cit., 1998, p. 165 e 395; HONNETH, op. cit., 2011, p. 544-5; WERLE, Denilson
Luís. Moral, política e direito: a concepção de política deliberativa em Jürgen Habermas. In: _____.
Justiça e democracia: ensaios sobre John Rawls e Jürgen Habermas. São Paulo: Esfera Pública,
2008, p. 124.
154
Sobre o enorme descrédito público de Constant, em razão do apoio oportunista ao governo de
cem dias de Napoleão, que provavelmente fez Tocqueville evitar referência a suas obras cf.
LAMBERTI, Jean-Claude. De Benjamin Constant a Alexis de Tocqueville. France forum, Paris, n.
203/4, p. 20, avril/mai 1983; KELLY, op. cit., 1992, p. 5 e 12-3.
142 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

sociedade composta por todas nações do mundo: ingleses,


franceses, alemães... todos tendo uma língua, crença, opiniões que
são diferentes; em uma palavra, uma sociedade sem preconceitos,
sentimentos, ideias comuns...” O que serve, pergunta Tocqueville,
de ligação para elementos tão diversos? O interesse, responde.155
De fato, o interesse só pode ser destacado como elemento
integrador onde há oposição, onde há conflito entre línguas,
crenças, sentimentos, opiniões, ideais. Esse anacronismo
deliberado sobre a unidade da coletividade permite-lhe recorrer às
obras clássicas como se fossem modernas. Ele tem consciência de
que o interesse, capaz de unir pacificamente pessoas de diferentes
origens e culturas, era um aspecto furtivo aos antigos: “duvido que
os homens fossem realmente mais virtuosos nos séculos
aristocráticos que nos outros, mas é certo que então se falava
constantemente das belezas da virtude; só se estudava em segredo
seu aspecto útil”.156 Faz, assim, um uso bastante parcial desses
modelos do passado.157 Ele não esconde sua tentação de, chegando
ao solo do Novo Mundo, “queimar meus livros, a fim de aplicar
somente ideias novas a um estado social tão novo”158 e seu desejo
que as pessoas “parassem de citar, em relação a tudo, o exemplo
das repúblicas democráticas da Grécia e Itália”.159 Isso que se
chamava de democracia na antiguidade não passava de repúblicas
aristocráticas, “não tinha nenhuma analogia real com o que vemos
em nossos dias”.160 A contribuição dos antigos poderia ser
reservada ao ensino especializado das belas-artes, para atenuar
uma tendência da estética de fazer predominar o gosto pelo útil ao

155
NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, editor’s introduction, lxvii.
156
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 8, p. 635.
157
SCHLEIFER, James T. Tocqueville’s Democracy in America reconsidered. In: WELCH, Cheryl B.
(Ed.). The cambridge companion to Tocqueville. Cambridge: Cambridge University Press, 2006,
p. 126.
158
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 9, p. 350.
159
NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, p. 1142n.
160
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, I, 15, p. 573-4 e III, 21, p. 775 manuscrit.
Felipe Moralles e Moraes | 143

belo, de negligenciar e desprezar as formas, de assombrar mais do


que agradar. Mas sequer deveriam ter espaço relevante no ensino
público.161 A séculos de distância de gregos e romanos, Tocqueville
deles conserva o caráter mais conflitivo, o rasgo entre princípios
aristocráticos e democráticos, pela distinção ou igualização
universal, que continuaria opondo partidos e movimentos
políticos. Nas sociedades modernas haveria sempre, pelo menos,
dois grandes movimentos antagônicos que trabalham, de um lado,
para estender o poder e, de outro, para o limitar.162
A doutrina do interesse bem compreendido surgiu como
solução a um problema da filosofia política moderna. Um problema
que parte da constatação de que o interesse individual se tornou
“mais do que nunca o principal, senão o único móvel das ações dos
homens”, pelo que restava apenas saber como se entenderá o
interesse individual.163 “Os povos democráticos temem
naturalmente a confusão e o despotismo. Trata-se somente de fazer
de seus instintos gostos refletidos, inteligentes e estáveis”.164 Um
problema que já havia sido colocado por Montesquieu, foi
radicalizado por Rousseau e recebeu sua melhor tradução em
Hegel, como apresentado a seguir (2.2.1), a fim de esclarecer,
depois, de que modo a doutrina dos interesses bem compreendidos
pretendeu solucioná-lo, obtendo efeitos que podiam ser
equiparados à unidade de corações e mentes (2.2.2).

2.2.1 O problema filosófico do autointeresse

Ao identificar o princípio democrático com o amor pela


igualdade, Montesquieu está ainda se referindo à igualdade de

161
Ibid., I, 11, p. 559 e I, 13, p. 571.
162
Id., op. cit., 1835, II, 2, p. 199.
163
Id., op. cit., 1840, II, 8, p. 638.
164
Ibid., III, 22, p. 789.
144 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

virtudes.165 As leis em uma democracia são confiadas unicamente à


virtude política dos cidadãos: “a virtude política é uma renúncia a
si mesmo... Pode-se definir essa virtude: o amor às leis e à
pátria”.166 O argumento do filósofo de La Brède é que o
autointeresse dos modernos é incompatível com a igualdade de
virtudes exigida em um governo republicano e democrático. Em
contraste com as sociedades antigas, nas sociedades modernas, “o
Estado subsiste independentemente do amor pela pátria, do desejo
de verdadeira glória, da renúncia a si mesmo... de todas essas
virtudes heroicas que encontramos nos antigos e das quais somente
ouvimos falar”.167 Apenas nas monarquias se pode perseguir
inconscientemente o bem comum acreditando visar vantagens
particulares. Nelas as ações políticas repousam sobre o princípio da
diferenciação: o desejo de indivíduos e classes de se destacarem dos
demais. Essas ambições dão vida às monarquias.168 Cada um tem
diante de si uma condição de vida melhor que a sua, a qual aspira,
tomando o desejo de distinção o lugar da virtude política.169 A
liberdade nas monarquias não dependeria das virtudes políticas, já
impossíveis de resgatar na modernidade a fim de sustentar uma
república livre. A monarquia seria a forma de governo adequada à
sociedade moderna.
A monarquia resultava, contudo, critica Rousseau, em uma
sociedade submetida ao arbítrio do monarca e da nobreza, na qual
o sujeito “em toda parte é posto a ferros”.170 Como conceber uma
ordem civil em que “a justiça e a utilidade não fiquem divididas”?
Pergunta o genebrino em um contexto de crise da modernidade,
mas que não mais comporta um retorno aos ideais antigos. Ele está
165
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, III, 3.
166
Ibid., IV, 5.
167
Ibid., III, 4.
168
Ibid., III, 7.
169
Ibid., III, 6.
170
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social (1762). Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM,
2015, I, 1.
Felipe Moralles e Moraes | 145

ciente do fato da modernidade: o sujeito autointeressado. A


primeira lei da liberdade do indivíduo “é zelar por sua própria
conservação... sendo ele o único juiz dos meios apropriados para
garantir sua sobrevivência”.171 Nenhuma convenção válida poderia
alienar sua liberdade de avaliar se vale a pena, ou não, contratar
com alguém.172 A linguagem de Rousseau é utilitarista. Um ponto
de partida pragmático, mas com vistas às potencialidades
imanentes da modernidade: “quero saber se na ordem civil pode
haver alguma regra de administração legítima e segura, tomando
os homens como são e as leis tais como podem ser”.173
A solução de Rousseau para conciliar justiça e utilidade é a
conhecida ideia de contrato social e de submissão à vontade geral.
A garantia de uma troca justa e vantajosa está no caráter universal
das leis, na primazia da vontade de uma lei universal. A justiça,
“para ser aceita entre nós, deve ser recíproca”.174 A vontade geral
não equivale à vontade de todos, nem ao compromisso entre
vontades individuais, mas sim à generalização da vontade.175
Somente uma vontade individual que sobrevive ao teste de
universalização prova-se útil para todos e justa, porque concebida
como o conteúdo de uma lei que todos poderiam aceitar. A
independência do indivíduo autocentrado é substituída, sem
perdas, em uma sociedade justa, por uma lei dada por ele mesmo.
“Nessas condições – comenta Lebrun – não é exagero dizer que esse
Soberano é inofensivo”.176
No entanto, a solução de Rousseau para conciliar justiça e
utilidade esbarra em contradições. Em famosa passagem,
reconhece que há sempre o risco de os indivíduos não cumprirem
171
Ibid., I, 2.
172
Ibid., I, 4.
173
Ibid., I.
174
Ibid., II, 6.
175
Ibid., II, 3.
176
LEBRUN, Gérard. Contrato social ou negócio de otário? (1980) In: MOURA, Carlos Alberto Ribeiro
de. [et. al.] (Org.). A filosofia e sua história. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 229.
146 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

sua palavra e terem uma vontade particular contrária à vontade


geral como cidadãos. Por isso, o pacto social conteria o
compromisso de que todo aquele que se recusar a obedecer à
vontade geral será forçado, “o que não significa outra coisa senão
que o forçarão a ser livre...”.177 Para garantir o contrato social,
confere amplos poderes ao soberano: “alienação total de cada
associado, com todos os seus bens, à comunidade inteira”.178 E
exemplifica: “suponhamos que o Estado seja composto de dez mil
cidadãos.... cada membro do Estado não possui senão a décima
milésima parte da autoridade soberana, embora esteja submetido
por inteiro”.179 É enfático que “a vontade particular ou individual
deve ser nula”.180 Não escapou, por isso, das críticas liberais, em
meio das quais surgirá a primeira formulação da doutrina do
interesse bem compreendido.
Rousseau e outros acreditavam que tudo deveria ceder à
vontade geral e que todas restrições aos direitos individuais seriam
compensadas pela participação na formação dessa vontade.181
Assim, todos os meios pareciam-lhes bons para estender a ação da
autoridade do corpo social sobre a parte recalcitrante da
humanidade. Acontece – pontua Constant – que era a organização
social dos povos antigos que os inclinava a uma concepção da
liberdade compatível com a submissão completa do indivíduo à
autoridade do todo.182 Os limites estreitos das repúblicas
colocavam os cidadãos em constante estado de guerra com os
vizinhos; a atividade econômica orbitava, então, a guerra e a
aquisição de escravos; permitiam uma influência pessoal e muito
concreta nas decisões políticas, por seu crédito, clientela ou glória.

177
Ibid., I, 7.
178
Ibid., I, 6.
179
Ibid., III, 1.
180
Ibid., III, 2.
181
CONSTANT, op. cit., 1818, p. 18.
182
Ibid., p. 11.
Felipe Moralles e Moraes | 147

Hoje, a vastidão dos Estados modernos faz-nos tender à paz e ao


comércio: “para os antigos, uma guerra feliz acrescentava escravos,
tributos, terras, à riqueza pública e particular. Para os modernos,
uma guerra feliz custa infalivelmente mais do que vale”.183 O
comércio tornou-se fonte muito mais fácil para se obter o que se
deseja e alimenta o amor do indivíduo pela independência,
atendendo seus desejos sem a intervenção da autoridade, que lhe
parece sempre incômoda. Nos Estados modernos, o indivíduo
perdido na multidão não possui mais que uma influência política
abstrata e imperceptível.184 Ao contrário do que defendeu o
genebrino, conclui Constant, os modernos não poderiam crer que,
como os antigos, ao sacrificarem a independência individual aos
direitos políticos, “sacrificariam menos para obter mais; ...fazendo
o mesmo sacrifício, nós daríamos mais para obter menos”.185
Jamais trocariam a independência individual por “uma parte ideal
em uma soberania abstrata”.186 Aos olhos dos modernos, a
independência individual é a primeira das necessidades e as
instituições antigas que a sacrificavam em favor da liberdade
política são inúteis e injustas.187
Obtempera-se que o filósofo genebrino rejeitava as teorias
políticas antigas, que chamavam de lei natural meras
conveniências arbitrárias. O núcleo individualista da sua filosofia
torna a acusação de defender os ideais antigos pouco convincente,
preferindo Constant desviar suas críticas aos seus sucessores.188
Ainda assim, a sobreposição da justiça à utilidade torna
insatisfatória a solução rousseaunista de contrato social. Ele passa
sem mediações de uma liberdade unária do indivíduo

183
Ibid., p. 13.
184
Ibid., p. 14-5.
185
Ibid., p. 15.
186
Ibid., p. 18.
187
Ibid., p. 19.
188
Ibid., p. 17.
148 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

independente em estado natural para uma liberdade relacional do


cidadão democrático, mudando “por assim dizer, a natureza
humana”.189 Imagina o contrato social como um ato existencial de
socialização, que metamorfoseia indivíduos isolados e
autointeressados em cidadãos orientados ao bem comum de um
república ética, comenta Habermas.190 Uma vez amarrado ao
contrato social, nada impede que a república tome “todas as
precauções para que o indivíduo não ceda à tentação de cair
novamente em sua deplorável particularidade”. Daí inferir Lebrun
que “essas precauções são tomadas com tanto zelo, que o contrato
assinado por esse indivíduo... corre sério risco de se transformar
num negócio de otário”!191
No fim, como já havia denunciado magistralmente Constant,
o ganho positivo para o indivíduo mostra-se muito pequeno, uma
simples fração ideal e quase irrelevante na soberania. Portanto,
pode-se ratificar a conclusão liberal de que o conceito de liberdade
negativa é irredutível à ideia de participação no poder soberano.
Diante das ameaças de submissão ao todo, qualquer burguês
prudente “dava no pé”!192
A obra de Rousseau já havia exposto, no século XVIII, de
modo distinto e dramático, o princípio de que a sociedade livre tem
que se basear na vontade dos indivíduos que a compõem e o
princípio antinômico de que a sociedade livre não pode depender
da vontade dos indivíduos que a compõem. Sem dar solução
satisfatória ao paradoxo. “O princípio dos Estados modernos –
sintetiza Hegel – tem essa monstruosa força e profundidade de
deixar o princípio da subjetividade se completar no extremo
autônomo da especificidade pessoal e, ao mesmo tempo, reconduzi-

189
ROUSSEAU, op. cit., 1762, I, 7.
190
HABERMAS, op. cit., 1998, p. 132.
191
LEBRUN, op. cit., 1980, p. 232.
192
Ibid., p. 234-6.
Felipe Moralles e Moraes | 149

lo à unidade substancial e, assim, manter essa nele mesmo”.193 A


monstruosa força e profundidade do Estado moderno é ser capaz
de conciliar uma sociedade fundada no autointeresse e que precisa,
ao mesmo tempo, levar a cabo medidas voltadas ao bem geral;
passar de uma sociedade profundamente dividida a uma sociedade
justa. Trata-se de duas exigências fundamentais dos Estados
modernos: de um lado, de limitar o poder e, de outro, de distribuí-
lo. E as exigências são contraditórias. Uma contradição das
exigências dos Estados modernos que, desde então, apenas se
agravou pela fragmentação das convicções éticas na sociedade e
pelo aumento da complexidade econômica e administrativa, o que
dificulta mais a identificação dos cidadãos com a comunidade
política e o autogoverno democrático. Os interesses se tornaram
conflitos de visão de mundo irreconciliáveis, em que não se
admitem renúncias.194
O que descobre Hegel nesse paradoxo moderno é que ele
resulta de uma concepção de liberdade como prevalência da
vontade, equivalente ao conceito de soberania. A liberdade “civil” –
consistente na “obediência à lei que nós mesmos nos
prescrevemos”, segundo Rousseau195 – é concebida dentro dos
moldes de uma liberdade “natural”, pela qual as pessoas “não
tendo entre si nenhuma espécie de relação moral nem deveres
conhecidos, não podiam ser nem bons nem maus e não tinham nem
vícios nem virtudes”.196 Ele não evitou as consequências extremas
dessa concepção, ao defender que, no Estado ideal, “cada cidadão
deve pensar somente os seus próprios pensamentos” e não têm
“nenhuma comunicação entre si”.197 Todos e cada um podem

193
HEGEL, op. cit., 1821, § 260.
194
FORST, op. cit., 1994, p. 143.
195
ROUSSEAU, op. cit., 1762, I, 8.
196
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre
os homens (1755). Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2014, p. 68.
197
ROUSSEAU, op. cit., 1762, II, 3.
150 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

revogar o pacto social.198 A ideia de contrato não é capaz de


conciliar consistentemente especificidade e unidade no Estado,
porque precisa pressupor sempre o arbítrio dos indivíduos de se
unirem ou se separarem dele.199 A reunião dos cidadãos no Estado
tomou a vontade individual como modelo, apenas de maneira
generalizada, fazendo do arbítrio, opinião e concordância
caprichosas seu fundamento. O contrato social ergueu, portanto,
“como princípio do Estado um princípio que é... o pensar em si, a
saber, a vontade”.200
A ideia moderna de liberdade – analisa Hegel – possui dois
momentos ou concepções que decorrem desse direito de
prevalência da vontade. O primeiro momento é o negativo: o
elemento de pura indeterminação, de se refletir e distanciar de
toda carência, demanda ou natureza percebida como limitadora da
independência individual. Tal vontade concretiza-se, quando se
torna a única ou a mais elevada, na forma de um fanatismo
político, de uma negação de toda ordem social positiva, de uma
fúria de destruição.201 Nisso tem em mente o andamento da
revolução francesa, na qual “o povo destruiu novamente na
revolução as instituições que ele mesmo havia feito, porque cada
instituição é contrária à consciência de si abstrata da igualdade”.202
O revolucionário moderno pensa querer alguma condição social
positiva, por exemplo, a condição de igualdade universal, “mas ele
não quer, de fato, a efetividade positiva das mesmas, porque essa
produz alguma ordem, uma particularização tanto de instituições,
quanto de indivíduos; é, porém, da aniquilação da particularização
e da determinação objetiva que a autoconsciência dessa liberdade
negativa sobrevém”.203 Qualquer política viável requer organização
198
Ibid., III, 18.
199
HEGEL, op. cit., 1821, § 75 Anm.
200
Ibid., § 258.
201
Ibid., § 5.
202
Ibid., § 5 Zus.
203
Ibid., § 5 Anm.
Felipe Moralles e Moraes | 151

e diferenciação de funções, o que o revolucionário é incapaz de


tolerar, pois isso exige uma restrição dessa liberdade negativa da
vontade.204
O segundo momento do direito de prevalência da vontade é
o positivo: o elemento da vontade que diferencia, determina,
especifica o conteúdo de seu querer, ao refletir e decidir-se entre as
pulsões, demandas, inclinações disponíveis.205 Ocorre que o
indivíduo que articula suas carências em termos de escolhas
percebe-se sempre determinado por elementos que lhe são
externos e contingentes: “uma vez que posso escolher, então
possuo arbítrio, o que se costuma chamar liberdade... no arbítrio
está contido que o conteúdo não é determinado pela natureza de
uma vontade, para ser o meu, mas sim pela contingência”.206 O
princípio de que tudo deve suceder pela concordância dos
indivíduos não permite uma organização estável às liberdades,
porque a sobreposição entre as múltiplas escolhas só pode ser uma
feliz contingência.207 É uma ilusão achar que a sociedade seja
modelada exclusivamente por escolhas individuais e que tudo, por
consequência, possa ser remodelado com base nessas escolhas. Se
cada indivíduo devesse escolher uma opção de justiça dentre as
existentes, resultaria necessariamente um conflito permanente do
encontro casual de seleções ocasionais e independentes. Do
encontro contingente entre posições de interesse não surge ainda
ordem política alguma.208
A filosofia contratualista traduz a ideia moderna de liberdade
como um poder da vontade do indivíduo, seja em sua dimensão
negativa ou positiva. A vontade não admite mediações, como existe
entre a troca de opiniões e o acordo de interesses. A liberdade

204
TAYLOR, op. cit., 1979, p. 131.
205
HEGEL, op. cit., 1821, §§ 6 e 11-12.
206
Ibid., § 15 Zus.
207
id., op. cit., 1837, IV, 3, 3, p. 599.
208
HABERMAS, op. cit., 1998, p. 91.
152 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

entendida como preponderância da vontade leva invariavelmente à


sua própria negação, pela percepção de que a vontade de uma
pessoa, grupo ou corpo político pode ser comprada somente ao
preço da vontade de todos os outros. Não é possível conservar,
portanto, a compreensão rousseaunista da liberdade como uma
prevalência da vontade, independentemente se em seu aspecto
individual ou coletivo, negativo ou positivo.209
Agora, a superação da liberdade como poder da vontade
implica, como infere Arendt, a renúncia à ideia de soberania popular
e o esgotamento de um modelo de relação entre sociedade e Estado
que parte dos interesses individuais, do direito à busca da própria
felicidade e do bem-estar material?210 Uma democracia que estivesse
aquém do indivíduo moderno já era impensável para Montesquieu. E
voltar a ela, alertava Constant, era uma grande ameaça à liberdade. A
democracia que quisesse se impor em contraposição aos interesses
individuais só poderia apelar para uma tirania, repete Tocqueville.211
Não há oposição entre pluralismo liberal e republicanismo, mas
desde que esse último não seja interpretado como uma determinada
concepção de felicidade e vida boa.212 Do contrário, falaríamos de um
modelo idealista, continua Habermas, porque identifica as discussões
políticas com a autocompreensão ética dos indivíduos. Ele anula a
distância entre interesse particular e poder estatal com apelo às
virtudes cívicas. Sob condições de pluralismo social e cultural, os
debates alcançam interesses, fins, valores que de modo algum são
constitutivos da vida coletiva mais ampla da sociedade e não tem a
menor perspectiva de consenso.213 Não é possível fugir desse estado
social conflituoso, de uma potência contra outra, de uma associação

209
ARENDT, Hannah. What is freedom? In: _______. Between past and future: six exercises in
political thought. New York: Viking Press, 1961, p. 164-5.
210
Id., op. cit., 1963, p. 101-2, 174 e 215.
211
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 7, p. 289.
212
RAWLS, op. cit., 1993, p. 205.
213
HABERMAS, Jürgen. Drei normative Modelle der Demokratie (1999). In: _________. Die Einbeziehung
des Anderen: Studien zur politischen Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p. 283-4.
Felipe Moralles e Moraes | 153

contra outra. Nas palavras de Tocqueville, “o amor desinteressado à


pátria saiu voando para não retornar... a época das devoções cegas e
das virtudes instintivas já vai longe de nós...”214

2.2.2 A doutrina dos interesses bem compreendidos

Quando Ulisses amarrou-se ao mastro de seu navio, não


abriu mão das sereias; gozou de seu canto, sem deixar de se
precaver contra seus efeitos práticos.215 Os riscos haviam sido
revelados pelos deuses a Circe, que contou para Ulisses, que
informou seus companheiros, numa cadeia discursiva que se
propagou até uma ação esclarecida. Não forçou ou ludibriou os
remadores que se fizeram surdos a semelhante deleite. Sem o uso
da palavra para evitar os efeitos das sereias, todos seriam
dominados.216 A solução liberal para o dilema entre a antiga
unidade da coletividade e a fragmentação de interesses da
sociedade moderna adota, em nível teórico, a mesma estratégia:
buscar os mesmos efeitos práticos dos ideais antigos, mas sem
dominar ou ser dominado.
Há dois cantos de sereia que servem como seduções do
passado para os problemas modernos, segundo Madison: destruir
a liberdade política ou “dar a cada cidadão as mesmas opiniões, as
mesmas paixões e os mesmos interesses”. O primeiro é pior que
tapar os ouvidos, pois não ser dominado é a essência da vida
política. E o segundo é impraticável, porque a diferença nas
opiniões tem origem na falibilidade da razão humana e na
liberdade de a exercer; e a diferença de interesses, na
multiplicidade e variação das capacidades. As paixões conectam-se
às opiniões e interesses, inflamam as animosidades e tornam as
214
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 6, p. 270 ; id., op. cit., 1840, II, 8, p. 638.
215
HOMERO, op. cit., XII, 160.
216
MAGALHÃES, Raul Francisco. Ulisses e seu barco: esboço para uma crítica microssociológica à
teoria crítica. In: SOUZA, Jessé; MATTOS, Patrícia (Org.). Teoria crítica no século XXI. São Paulo:
Annablume, 2007, p. 250-2.
154 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

pessoas “muito mais dispostas a vexar e oprimir umas às outras do


que cooperar para seu bem-comum”.217 Embora os federalistas
falem frequentemente de uma unidade de sentimentos, não se
jogam ingenuamente no mar da identidade nacional – esse
embuste dos saudosos. Tanto mais céticos antropologicamente
eram eles, tanto maior importância davam às instituições: “por que
o governo foi instituído afinal? Porque as paixões dos homens não
vão se conformar com os ditados da razão e da justiça sem
coação”.218 Na solução contra o facciosismo esboçada por Madison,
a unidade ainda era possível e não vai estar no controle político das
opiniões, interesses e paixões dos seres humanos, mas no controle
de seus efeitos práticos.219 A “suposição de venalidade universal na
natureza humana não é menos um erro no raciocínio político do
que da retidão universal”, pois a venalidade pode ser atenuada
pelas instituições políticas.220
Nesse sentido, nega Constant que “porque não podemos mais
ser livres como os antigos... estamos destinados a ser escravos”.221
Outra combinação é possível entre justiça e utilidade, distribuição e
limitação de poder, liberdade dos antigos e dos modernos. Num
primeiro momento, ele parece oferecer uma solução liberal estreita
e puramente instrumental da participação política em favor da
independência individual: “a liberdade política é a sua garantia e,
portanto, indispensável”. Ergue, então, dois pilares de contenção da
autoridade: torná-la dependente do comércio, da circulação do
dinheiro e dos favores da riqueza e criar um sistema político
representativo e responsável.222 A responsabilidade de ministros e
servidores públicos servia para manter “um espírito de exame, um

217
MADISON, No.10, in The federalist, p. 54-5.
218
HAMILTON, No. 15, in The federalist, p. 91.
219
MADISON, No.10, in The federalist, p. 57.
220
Id., No. 76, in The federalist, p. 487.
221
CONSTANT, op. cit., 1818, p. 21.
222
Ibid., p. 21-2.
Felipe Moralles e Moraes | 155

interesse habitual na manutenção da Constituição do Estado, uma


constante participação nos negócios, numa palavra, um sentimento
animando de vida pública”.223 Se os indivíduos compreenderem
bem seus interesses, vão se manter a par dos negócios cuja
administração confiaram a mandatários, constantemente os
vigiando e sempre reservando o direito de revogar os poderes
confiados.
Essa solução, contudo, apressa-se Constant em reconhecer,
faz subsistir o perigo de que “absorvidos pelo gozo da
independência provada e na busca de interesses particulares,
renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do
poder político”.224 Mais do que como um fardo de se obrigar a
manter constante vigilância sobre os representantes, a participação
no poder deveria ser compreendida como uma potencialização da
independência individual. A perseguição privada da felicidade não
pode ser o objetivo único dos indivíduos: “não é só à felicidade, é ao
aperfeiçoamento que nosso destino nos chama; e a liberdade
política é o mais poderoso, o mais enérgico modo de
aperfeiçoamento...” As instituições devem incentivar a participação
no poder político, porque assim fazem as pessoas “escolher com
discernimento, resistir com energia, confundir a astúcia, desafiar a
ameaça, resistir nobremente à sedução”.225 Enfim, a liberdade dos
antigos deve potencializar a dos modernos. “Longe... de renunciar a
alguma das duas espécies de liberdade”, encerra seu discurso de
1818 colocando a participação política não só como um
instrumento de proteção do indivíduo, mas como um componente
do aperfeiçoamento moral: “é preciso que as instituições terminem
a educação moral dos cidadãos... chamá-los a participar do
exercício do poder... preparando-os desse modo, pela prática, para

223
Id., op. cit., 1815, IX, p. 87.
224
Id., op. cit., 1818, p. 23.
225
Ibid., p. 24.
156 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

as funções elevadas, dar-lhes ao mesmo tempo o desejo e a


faculdade de executá-las”. 226
A relação entre a participação política e o aperfeiçoamento
moral dos indivíduos está mais bem esclarecida nos Principes de
politique. Nessa obra, o constitucionalista volta-se diretamente
contra a interpretação rousseaunista da soberania popular.227 Para
isso, traz um contraste entre fenômenos políticos em Inglaterra e
França. Naquele país, mesmo “os eleitores da classe inferior, pouco
antes obstinados e turbulentos... se dobravam tanto mais
facilmente às superioridades e às convenções sociais, quanto mais
tinham, assim agindo, a consciência de obedecer ao cálculo sensato
do seu interesse esclarecido”.228 Forçados a deliberar em público, os
membros das classes populares logo percebem que sacrifícios
mútuos são indispensáveis e se esforçam para diminuir a extensão
desses sacrifícios. De parte das classes poderosas, igualmente, a
eleição impõe “deferências continuadas para com as classes
inferiores. Ela força a riqueza a dissimular sua arrogância, o poder
a moderar sua ação, pondo no sufrágio da parte menos opulenta
dos proprietários uma recompensa para a justiça e a bondade...”. O
que “no começo pode não passar de um cálculo... logo se torna uma
virtude de hábito”.229 Nas sociedades aristocráticas, a submissão a
um pequeno número de pessoas exige prosternação à sombra,
tentativas enviesadas de cooptação. Nas sociedades democráticas,
pelo contrário, a obtenção de união numerosa requer que o
poderoso seja lançado à luz do dia, sob a qual o pudor modera as
ações públicas. As luzes da opinião pública “acalmam as paixões,
atenuam o egoísmo, tranquilizam a vaidade”.230

226
Ibid., p. 25.
227
Id., op. cit., 1815, I, p. 7-8.
228
Ibid., V, p. 43-4.
229
Ibid., p. 47.
230
Ibid., p. 48-9.
Felipe Moralles e Moraes | 157

Enquanto isso, em França, os pobres mostravam-se sempre


“furiosos e turbulentos como escravos que rompiam seus
grilhões”.231 E retorna à explicação anterior. Não se conjuram os
perigos dos embates políticos “furtando-os aos olhares. Eles, ao
contrário, só aumentam com a noite em que são envolvidos... tudo
na sombra parece hostil e gigantesco”.232 Em vez de conter os
interesses individuais à luz dos demais interesses, os franceses
precisavam atacar todas sombras que lhes apareciam. “Se muitos
temem o caráter francês, impetuoso e impaciente com o jugo da lei,
diria que somos assim unicamente porque não contraímos o hábito
de reprimir a nós mesmos”.233 Daí concluir acerca da soberania
popular: “o que é o interesse geral, senão a transação que se efetua
entre os interesses particulares? ...Sempre se fala como se um
ganhasse com o que os outros perdem, mas esse um não passa do
resultado desses interesses combinados”.234
A estrutura geral do argumento de Tocqueville em favor da
sociedade democrática adota a mesma estratégia de apresentar
seus fenômenos negativos (o canto das sereias), para, em seguida,
demonstrar que certas amarras institucionais podem compensar
ou neutralizar esses efeitos. Havia tendências para provocar
alarme, outras para o dissipar. “Na América não é a virtude que é
grande, mas as tentações são pequenas, o que resulta na mesma
coisa. Não é que o caráter desinteressado seja grande, mas o
interesse é esclarecido, o que também resulta quase na mesma
coisa”.235 Quando os interesses são esclarecidos, os indivíduos
percebem a liberdade política como “o melhor instrumento e a
maior garantia do seu bem-estar”.236 Não crê mais nas virtudes e

231
Ibid., IV, p. 77.
232
Ibid., p. 79.
233
Ibid., V, p. 42.
234
Ibid., p. 45-6.
235
NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, p. 509a.
236
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 14, p. 654.
158 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

na grandeur de uma elite de representantes, nem na existência


prolongada de um gosto pela liberdade em face de hábitos
servis.237 Em vez de agravar, as instituições democráticas
remediam os males que surgem com a massificação social.238 As
paixões por uniformidade, bem-estar e ordem são controlados pela
expansão e aprofundamento da democracia.
A confusão moderna acerca da soberania popular era
misturar o desejo de não ser dominado e, portanto, de não se
submeter à vontade arbitrária de outrem, com o desejo de uma
vontade única, por meio de um governo administrativamente
centralizado e que limitava as possibilidades de esclarecimento das
opiniões e interesses a poucas e esparsas ocasiões. Não basta, com
efeito, que “os cidadãos saiam um momento da dependência para
indicar seu mestre e a ela retornem”.239 Os anglo-americanos
combatiam os riscos de dominação multiplicando ao infinito as
ocasiões de agir em conjunto e contestar as posições vigentes: a
maior parte das funções públicas é eletiva, as questões nacionais
estão próximas de cada município e, assim, dos cidadãos. O
sucesso das instituições estadunidenses era terem trazido o poder
político o mais próximo possível do povo em todos níveis e funções
públicas. Tocqueville reconhece a dificuldade de tirar uma pessoa
ou classe de si mesma para interessá-la pelo destino dos demais,
porque ela compreende mal a influência que isso pode ter sobre
sua sorte. “É encarregando, portanto, os cidadãos da administração
dos pequenos negócios, muito mais do que lhes entregando o
governo dos grandes, que se pode levá-los a se interessarem pelo
bem público”.240 Não há como fazer sobreviver a liberdade nas
grandes coisas às multidões que não aprenderam a servir-se dela

237
MILL, op. cit., 1840, p. 168.
238
Ibid., p. 159.
239
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 6, p. 838-9.
240
Ibid., II, 4, p. 618.
Felipe Moralles e Moraes | 159

nas pequenas.241 A solução está no nível da expansão das


instituições democráticas na sociedade, porque, com elas, reproduz
o argumento de seu antecessor, “primeiro os indivíduos ocupam-se
do interesse geral por necessidade, depois por escolha; o que era
cálculo vira instinto; e, trabalhando pelo bem dos concidadãos,
adquire-se enfim o hábito e o gosto de os servir”.242 E endossa as
conclusões de Constant de que a doutrina do interesse bem
compreendido é, de todas as teorias morais, a mais apropriada ao
espírito do tempo, a mais poderosa garantia contra as propensões
da subjetividade moderna.243
A nova ciência política de Tocqueville inclui esse esforço de
formar cidadãos com desejo e capacidade de soberania, não somente
na esfera política, mas também das crenças e costumes: ao mesmo
tempo, participar por sua própria conta do governo, governar a si
próprio e conter-se em vista da convivência democrática.244 A ciência
não poderia ficar “longe das crenças”, nem o bem-estar “separado da
virtude”.245 Daí falar em uma unidade de corações e mentes, como
um efeito prático das instituições democráticas de internalização do
ideal republicano de não-dominação. A doutrina do interesse bem
compreendido é essa projeção individual de uma liberdade entendida
como não-dominação: um impulso voltado a si próprio, mas contido
em vista dos demais.246
Nesses termos, não se confunde a doutrina dos interesses bem
compreendidos, ao contrário do que defende Alan S. Kahan, com as
discussões dos moralistas medievais, com os quais Tocqueville por
vezes dialoga.247 O objeto da filosofia política não são as mentes ou
241
Id., op. cit., 1835, I, 5, p. 107.
242
Id., op. cit., 1840, II, 4, p. 620.
243
Ibid., II, 8, p. 637.
244
COHN, in A filosofia, p. 259; REIS, op. cit., 2006, p. 122-4; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II,
9, p. 639.
245
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, introduction, p. 14.
246
Cf. COHN, in A filosofia, p. 261.
247
KAHAN, op. cit., 2015, p. 31 e 64; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 17, p. 663 e III, 19, p. 765
160 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

paixões humanas, mas as instituições, já dizia Montesquieu. Enquanto


a ética visa à excelência dos indivíduos e suas regras são tiradas de
alguma compreensão a respeito da vida boa, a política visa ao bem
geral da sociedade e suas regras são tiradas das estruturas, princípios
e objetos de poder.248 Se não há grandes pessoas sem virtude, “sem
respeito aos direitos não há grande povo: pode-se quase dizer que não
há sociedade”.249 Se a democracia tende a tornar todos escravos ou
livres, iguais em direitos ou privados deles, não será por um gosto
sublime ou mente elevada que isso será evitado, mas sim por
instituições e hábitos de liberdade.250 A tarefa não é banir, enfim, o
arbítrio de identidades e escolhas pessoais, mas banir o arbítrio do
mundo político.251
Para a doutrina do interesse bem compreendido, a liberdade
consiste no exercício não arbitrário da busca dos próprios
interesses, pelo intermédio de instituições públicas participativas.
O teorema de Constant é que a sociedade moderna somente
conservará a liberdade na medida em que a participação política
for vista como parte integrante do interesse de cada indivíduo.
Assim, os liberais oitocentistas procuravam resolver o dilema entre
justiça e utilidade não só por meio de garantias às liberdades
individuais. Alargavam suas preocupações à justiça. Alimentavam
um espírito público que superasse os facciosismos. A liberdade é
moldada em meio à discussão e ao engajamento público.
Nessa teoria moral, a avaliação não é determinada de um
ponto de vista de bondade, nem de correção, mas de um processo
de esclarecimento. Ela opera dentro de uma categoria que se
distingue tanto da bondade da conduta (conforme um critério de
vida boa), quanto de sua correção moral (conforme um critério de
imparcialidade). Não mais uma função naturalmente elevada dos

248
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, XXVI, 9.
249
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 6, p. 272.
250
Cf. Ibid., II, 9, p. 365.
251
Id., op. cit., 1840, II, 17, p. 664.
Felipe Moralles e Moraes | 161

seres humanos, nem uma imediatamente universalizável, apenas


uma função com vista de interesses mais amplos e abrangentes.
Para usar termos habermasianos, toma-se um “caminho de
sucessivas abstrações” que vão “descascando” um núcleo de
interesses capazes de universalização.252 As visões de mundo,
concepções de vida boa e interesses particulares vão sendo
moldados para que possam ser aceitos por esferas públicas mais
amplas, mesmo que não sejam, em si mesmos, universais.253
Sob o crisol da pura moralidade, nada de muito puro. Para
sujeitos retangulares, um crime, como são os menores desvios da
linha reta. A doutrina dos interesses bem compreendidos propõe, em
seu lugar, um quadro de sinuosidades. Na multiplicação dos hábitos
de ação e deliberação públicas, não é a moral, mas a necessidade de
congregação e a palavra que forçam os indivíduos a esconderem seus
pensamentos mais ideais ou egoístas. O que os moralistas chamavam
de abismos do coração dificilmente se dissocia, na modernidade, de
peripécias para motivar discursos e de recuos calculados para melhor
proveito dos interesses. A virtude dos modernos consiste nessa prática
habitual de união e esclarecimento dos interesses. O interesse bem
compreendido pode ser definido como o bem ou utilidade do
indivíduo que resulta de sua participação ativa e argumentativa em
instituições igualitárias. Máximas burguesas, sem dúvida, mas
suficientemente convincentes para almejar uma reconciliação com os
princípios de justiça.

2.3 Poderes intermediários

Até aqui foram exploradas as semelhanças entre o


pensamento de Constant e Tocqueville. Levou-se a crer que a
concepção de liberdade para ambos seria a mesma, porque baseada

252
HABERMAS, Jürgen. Versöhnung durch öffentlichen Vernunftgebrauch. In: _________. Die
Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie. Suhrkamp: Frankfurt am Main, 1999, p. 76.
253
Ibid., p. 84-5.
162 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

na doutrina republicana dos interesses bem compreendidos. Há


elementos textuais, porém, que apontam em sentido contrário. As
diferenças surgem dentro da doutrina dos poderes intermediários,
que tem papel central no liberalismo francês e que se submetem a
concepções diferentes de justiça.
De Montesquieu a Tocqueville ocorre o deslocamento desde
o ideal de um governo misto, em que a nobreza ou a burguesia
servem como principal poder intermediário, para um governo
democrático, em que o povo ocupa os órgãos estatais e as
associações civis funcionam como o poder intermediário. Na sua
defesa do regime monárquico, Montesquieu pensa no modelo das
democracias antigas. Constant substitui a vontade geral pelo
compromisso de vontades. Se forem bem compreendidos, os
interesses serão contidos com vistas à sua realização social, antes
de tudo, como um bom negócio, depois como um hábito. A
originalidade de Tocqueville em relação aos seus antecessores é
dupla. A um, ele abandona o modelo voluntarista. A filosofia
política moderna precisa ir além de uma democracia
representativa e baseada em acordos de interesses. A outro, inverte
a doutrina dos poderes intermediários e a contenção da
democracia pela aristocracia ou pela alta burguesia. A função dos
poderes intermediários não será servir simplesmente como
bastiões contra a tirania do monarca (Montesquieu), ou da maioria
(Constant), mas, em uma repetida metáfora, como “escolas da
democracia” (Tocqueville).254 A doutrina do interesse bem
compreendido sofrerá essa transformação interna.
A tese principal em De l’esprit des lois é que os diferentes
poderes-função (pouvoirs) deveriam ser atribuídos a diferentes
potências sociais (puissances): “tudo estaria perdido se o mesmo
homem, ou o mesmo corpo de notáveis, ou de nobres, ou do povo
exercesse os três poderes: aquele de fazer as leis, aquele de executar
as resoluções públicas, e aquele de julgar os crimes e as querelas

254
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 5, p. 65; id., op. cit., 1840, II, 7.
Felipe Moralles e Moraes | 163

dos particulares”. Se os poderes executivo, legislativo e judiciário


fossem divididos entre conselhos compostos por nobres, como em
Veneza, exemplifica Montesquieu, mesmo uma multiplicação de
magistrados não deixaria de resultar uma concentração dos
poderes, pois eles pertencem todos à mesma potência.255 Em Roma
não foi diferente: “como o povo tinha a maior parte do poder
legislativo, uma parte do poder executivo e uma parte do poder de
julgar, era um grande poder que era preciso contrabalançar por
meio de outro”.256 O magistrado de La Brède sobrepõe, pois, os
governos moderados aos mistos, a separação vertical dos poderes à
horizontal; não se contenta com a distribuição do poder político
entre três funções típicas e distintas, sem considerar também sua
distribuição entre diferentes partes componentes da sociedade.
Ainda pensa em uma sociedade de estamentos.257
No modelo da Constituição da Inglaterra, um monarca dever
ter o poder de executar, os principaux citoyens de legislar, cabendo
ao povo participar do júri e, no máximo, eleger seus representantes
da câmara baixa entre a classe de nobres e proprietários.258 É
somente porque os antigos não conheciam a separação dos poderes
dentro do governo monárquico que “não podiam fazer uma ideia
justa da monarquia”.259 A separação dos poderes seria possível
porque as autoridades executiva, legislativa e judiciária são
exercidas por corpos sociologicamente diferentes: rei, aristocracia e
povo. A monarquia é onde a separação de poderes é possível,
porque é constituída por potências intermediárias. Várias ordens
podem existir abaixo do príncipe, como o clero na Espanha e em
Portugal, agindo como barreiras ao monarca e segurando a

255
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, XI, 6.
256
Ibid., XI, 18
257
VERNIÈRE, Paul. Dois planos e duas leituras (1977). In: QUIRINO, Célia Galvão; SOUZA, Maria
Teresa Sadek R. de. (Org.). O pensamento político clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke,
Montesquieu, Rousseau. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980, p. 337.
258
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, II, 2 e XI, 6.
259
Ibid., XI, 9.
164 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Constituição contra seus caprichos, mas a potência intermediária


mais natural é a da nobreza.260 Os nobres evitam as desordens da
igualdade extrema, afinal, “não querem que o povo tenha primazia
demais”.261 Se parece um exagero dizer que a doutrina de
Montesquieu da separação das potências seja uma crítica ao
governo republicano (afinal, as repúblicas podem ser
aristocráticas), sem dúvida ela atinge as propostas democráticas. A
democracia não é um Estado livre por natureza, entende
Montesquieu, porque não é um governo misto.262
Para o barão francês, portanto, ao lado de um plano
descritivo das diferentes formas de governo, coloca-se um plano
prescritivo, que funda a liberdade política.263 A nobreza serve como
o elemento político de liberdade por excelência nos regimes
monárquicos, que é a forma de governo mais compatível com os
Estados modernos.
Constant vai ficar ainda muito preso a esse
conservadorismo. Então defendendo a Constituição dos Cem Dias –
o ato que transformava o império francês em uma monarquia
constitucional –, escrevia: “para que o governo de um só subsista
sem classe hereditária, tem de ser um puro despotismo... para
proporcionar outros apoios à monarquia, é necessário um corpo
intermediário”. Lamenta a perda das funções públicas da nobreza
hereditária no período que antecedeu a revolução francesa. Daí a
necessidade de conceber o “pariato” ou Senado, como um
intermediário “entre o poder do rei e o poder do povo”. A
instituição não possuiria, segundo Constant, “a única característica
odiosa da hereditariedade: a exclusividade. No instante seguinte à
nomeação de um simples cidadão ao pariato, ele passa a desfrutar
dos mesmos privilégios legais do mais antigo dos pares”.

260
Ibid., II, 4.
261
Ibid., V, 11.
262
Ibid., XI, 4.
263
VERNIÈRE, in O pensamento, p. 308 e 311.
Felipe Moralles e Moraes | 165

Entretanto, o Senado é permeável somente pela alta burguesia,


pelos “cidadãos que se distinguem”. 264 Ele cuida de excluir os
direitos políticos de pobres e trabalhadores. “É desejável… que as
funções representativas sejam ocupadas, em geral, por homens, se
não da classe opulenta, pelo menos remediados”. Eles tinham
educação melhor e inteligência mais bem preparada para o
esclarecimento.265 Aqueles condenados a trabalhos cotidianos não
são mais esclarecidos que crianças “nem mais interessados que os
estrangeiros por uma prosperidade nacional”. E continua: “se à
liberdade de faculdades e de indústria a eles se somarem os direitos
políticos não devidos, esses direitos nas mãos do maior número
servirão infalivelmente para invadir a propriedade...” Era preciso
condicionantes de propriedade para eleger e ser eleitor.266 Ao
elencar as salvaguardas constitucionais da liberdade, fala ainda da
imprensa, júri e Câmara dos Comuns como poderes
intermediários.267 Não obstante, o júri, competente inclusive para
avaliação da imprensa, é composto por cidadãos e proprietários.268
As eleições diretas e regionalizadas, a imprensa e o júri, que eram
as garantias de imposição da opinião pública, de composição e
aprimoramento dos interesses individuais, tornam-se, em última
análise, uma negação de todas essas garantias aos despossuídos. Os
poderes intermediários eram concebidos por Constant de maneira
a assegurar que os poderes legislativo e judiciário não teriam
interesses contrários à conservação da propriedade.
Essa visão de uma democracia burguesa, ou ainda, de uma
“aristocracia burguesa”269, era preponderante entre os liberais
franceses oitocentistas. É o que encontramos, de modo original, no

264
CONSTANT, op. cit., 1815, IV, p. 36-8.
265
Ibid., V, p. 53.
266
Ibid., VI, p. 56-7.
267
Ibid., XVIII, p. 153.
268
Ibid., XIX, p. 164.
269
STENDHAL, op. cit., 1830, p. 477.
166 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

discurso proferido pelo presidente da Assembleia Nacional em


1795. Na tentativa de estabilizar a revolução e a república,
propugna Boissy D’Anglas a exclusão da participação política das
massas populares. Ele retoma o argumento de Montesquieu de que
a igualdade absoluta era uma quimera.270 A ignorância e a falta de
interesse na ordem pelos mais pobres impediriam, segundo ele, a
guarda e administração da Constituição: “estabelecerão ou deixarão
estabelecer impostos funestos ao comércio e à agricultura... nos
precipitarão, enfim, para dentro dessas convulsões violentas de que
saímos dificilmente e de cujas dores se farão sentir por longo-
tempo por toda superfície da França”. Pelo contrário, apenas um
governo regido por proprietários poderia alcançar uma ordem
social:

Nós devemos ser governados pelos melhores; os melhores são os


mais bem instruídos e os mais interessados em manter as leis:
ou, praticamente sem exceção, não encontramos semelhantes
homens senão entre os que possuem uma propriedade, são
ligados ao país que a contém, às leis que à protegem, à
tranquilidade que a conserva e que devem a essa propriedade a
facilidade que ela dá, a educação que os fez capaz de discutir com
sagacidade e justeza as vantagens e os inconvenientes das leis que
fixam a sorte da sua Pátria.271

A medida adotada pela Constituição do ano III abafou o


sufrágio universal previsto na Constituição do ano I e persistiu em
França até a revolução de 1848. Essa postura vai ser endossada por
quase toda intelectualidade da época272, aí incluída a grande figura
de Guizot, cuja vida política vai ser marcada pelo combate ao
sufrágio universal; pelas críticas à “idolatria democrática”, como
sinônimo de caos e desordem; e pela defesa ferrenha de uma

270
BOISSY D’ANGLAS, François-Antoine de. Discours préliminaire au projet de constitution, au
nom de la comission des onze dans la séance du 5 messidor, an 3. Leyde: Freres Murray, 1795, p. 31.
271
Ibid., p. 31-2.
272
Cf. DIJN, op. cit., 2008, p.132-5.
Felipe Moralles e Moraes | 167

monarquia constitucional, limitada por uma elite burguesa.273 Ele


rejeita a soberania popular contrastando-a com a “soberania da
razão” de um representação política e de um governo que
concentrariam a razão das pessoas mais capazes na sociedade, isto
é, mediados pela propriedade e pela alta cultura.274
A respeito do poder local, depois das iniciativas de Constant
e Guizot, as principais publicações da época deveram-se aos barões
de Barante e de Pansey.275 Em plena restauração do poder real,
escreve o primeiro uma breve história das comunas em França.
Após terem se aliado ao poder monárquico para combater os
senhores feudais, seus poderes e liberdades foram subtraídos.276
Ainda que derrubado o governo absolutista, os meios
administrativos centralizados outrora existentes foram
conservados. Não sem razão – reconhece ele –, pois a
administração provincial era negligente, gastava mal, criava
contribuições forçadas sobre os cidadãos sem representação, etc.
Todavia, os efeitos desse distanciamento dos cidadãos do governo
local não eram menos ameaçadores. O hábito de tratar e deliberar
independentemente sobre os interesses mais próximos, de se
reunir e organizar para fazer prevalecer uma convicção
esclarecida, de dar aos cidadãos o conhecimento e o amor pela
ordem pública, são necessários aos costumes de um país livre. Do
contrário, a menor alteração dos poderes políticos centrais, intrigas
e sucessos obtidos de surpresa, encontram um povo incapaz de
qualquer resistência, pois o território já está coberto de
subordinados e de meros executores das ordens centrais.277 “O
poder desce assim do soberano aos indivíduos sem outros

273
GUIZOT, François. De la démocratie en France. Paris: Victor Masson, 1849, p. 2, 9 e 65, 71-85.
274
GUIZOT, François. Histoire des origines du governement représentatif en Europe (1820/22).
Paris: Didier, 1851, p. 107-9; id., op. cit., 1820, p. 201.
275
DIJN, op. cit., 2008, p. 117-20; cf. CONSTANT, op. cit., 1814, I, 13, p. 47-9; GUIZOT, op. cit.,
1828/30, p. 55-6 e 193-4.
276
BARANTE, op. cit., 1821, p. 1-12.
277
Ibid., p. 13-20.
168 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

intermediários que seus servidores”.278 Prosper de Barante defende


a criação, ao lado da hierarquia social ao interesse geral, de um
espírito público de associação entre os cidadãos ao nível das
comunas.279 Por associação, no entanto, entende aquela liderada
por uma nova geração aristocrática, acessível a todos indivíduos
que enriquecem e capaz de “criar uma hierarquia livre e legítima
por sua utilidade”.280 Os fortes e ricos deveriam novamente fazer
sua proteção aos fracos e pobres; servir de barreira a abusos
ministeriais; garantir seu bem-estar; bem como debater
publicamente os assuntos e se submeter a eleições regulares, em
suma, se reconciliar com o interesse geral, como único meio de
unir a nação francesa.281 Essa seria a aristocracia “tal como ela nos
parece necessária e como ela se liga intimamente às liberdades
comunais”.282
Outro dos teóricos dos poderes locais, Henrion de Pansey
argumenta também que o desaparecimento da nobreza exigia a
reconstrução do poder municipal nas mãos de uma “aristocracia
democrática”, isto é, uma aristocracia não hereditária, constituída
“por proprietários, por capitalistas, pelos chefes de oficina mais
notáveis”. Esse poder municipal serviria de fiel entre a monarquia
recém restaurada em 1830 e o povo, como um freio tanto contra o
despotismo real, quanto contra a anarquia dos populares.283
O que se vê claramente nesses liberais é uma conjunção de
interesses realistas, aristocratas e burgueses para recriação dos
poderes intermediários. O que permitiu fazer do liberalismo uma
corrente influente na história das ideias foi essa congruência com
perspectivas diametralmente opostas. A liberdade almejada não era
278
Ibid., p. 20.
279
Ibid., p. 22.
280
Ibid., p. 58.
281
Ibid., p. 134-8, 151-2.
282
Ibid., p. 153.
283
PANSEY, Henrion de. Du pouvoir municipal et de la police intérieure des communes. 4. ed.
Paris: Benjamin Duprat/Videcoq, 1840, p. 9-20.
Felipe Moralles e Moraes | 169

nada mais do que um compromisso entre capitalistas, nobres e


monarquistas, para que grande parte dos civis continuasse
reduzida à exclusão política e econômica. Os republicanos queriam
evitar que a liberdade se rendesse ou abdicasse em face dos
ditames da necessidade, como se a libertação da pobreza pudesse
prescindir de políticas públicas e de rearranjos institucionais. A
nova aristocracia do mundo posiciona-se contra ambos, governo
central e indivíduos, na medida em que contrariam ricos e
proprietários.
Acompanhando, ao seu modo, as lições tocquevilleanas da
América do Norte, Stuart Mill porá em primeiro plano a prática
política universal em nível local.284 Não há como os interesses das
classes mais baixas serem objeto de leis, sem que elas tenham a
condição de eleger, supervisionar e demitir os governantes e
funcionários que lhes contrariam, o que cabe ao povo de cada
localidade. Ainda assim, pondera: “essa é a única finalidade para a
qual é bom confiar o poder ao povo. Uma vez que as boas intenções
possam ser garantidas, o melhor governo... é necessariamente o
governo dos mais sábios e esses necessariamente são poucos”. A
racionalidade da democracia seria “não que o povo governa por si
mesmo, mas que tenha segurança de um bom governo”, o que seria
assegurado pelo controle popular das classes governantes.285
Defende, como os liberais franceses em geral, a solução de uma
estrutura representativa conduzida por poucos representantes
altamente dotados e instruídos.286 Enquanto isso, Tocqueville
enxergava, nas democracias de massa, uma tendência contrária à
eleição dos mais aptos – menos pela incapacidade da população de
os identificar do que por sua desconfiança com os mais ricos e
instruídos: “aqueles que observam o voto universal como uma
garantia de boa escolha fazem-se uma ilusão completa. O voto

284
MILL, op. cit., 1835, p. 63; id., op. cit., 1859, p. 305; id., op. cit., 1861, p. 534.
285
Ibid., p. 71-2.
286
Ibid., p. 72; id., op. cit., 1859, p. 269.
170 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

universal tem outras vantagens, não essa”.287 Para sustentar a ideia


de uma democracia conduzida por uma elite, Mill precisa reafirmar
essa tendência.288 Atribui o fenômeno a uma peculiaridade dos
Estados Unidos, onde a sociedade era bem-ordenada e o governo
pouco exigido. Insiste na representação política por um minoria
independente e ilustrada: “na existência de uma classe
aristocrática, vemos o grande e salutar corretivo de todas as
inconveniências pelas quais a democracia é responsável”.289
Mesmo as funções do governo local seriam ocupadas pelas classes
mais baixas somente na medida em que não o fossem pelas classes
mais altas, cuja vantagem eleitoral seria garantida por mecanismos
como o voto plural e um peso proporcionalmente maior aos votos
dos mais ricos.290
Essa interpretação da esfera pública pelos liberais
oitocentistas é reacionária, critica Habermas, porque reagia à ideia
de autodeterminação de um público arguinte tão logo ele era
infiltrado pelas massas de despossuídos e incultos.291 Daí
atribuírem a decisão das questões políticas a um pequeno número
de pessoas educadas, isto é, a representantes, composto por
pessoas instruídas e materialmente independentes. Os cidadãos
cultos e poderosos poderiam formar, na falta de uma aristocracia
hereditária, um público de elite, cuja apresentação de razões em
público determinaria a opinião pública. O povo seria chamado mais
para julgar sobre o caráter e os talentos dos representantes do que
para decidir sobre as questões políticas. Isso tudo seria uma
tentativa de dar uma roupagem biográfica às relações objetivas de
poder, ao jogo de argumentos e contra-argumentos, de voltar à

287
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 5, p. 222-4.
288
MILL, op. cit., 1835, p. 74; id., op. cit., 1840, p. 173; cf. MONTESQUIEU, op. cit., 1748, II, 2 e
MADISON No. 10, in The Federalist, p. 58-60.
289
Ibid., p. 76 e 86; cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre au Comte Louis de Kergorlay, 29 juin 1831.
In: BEAUMONT (Ed.). op. cit., VII, p. 317.
290
Id., op. cit., 1861, p. 536.
291
HABERMAS, op. cit., 1962, p. 217.
Felipe Moralles e Moraes | 171

segurança das antigas liberdades estamentais, essencialmente


distintas das liberdades dos direitos humanos burgueses.292
Não há dúvida de que Tocqueville é herdeiro dessa tradição
liberal e das discussões acerca das “grandes inundações
democráticas” que destruíam os diques burgueses construídos
durante a primeira metade do séc. XIX.293 Outra coisa é confundir
a pauta pela descentralização administrativa e pelos poderes
intermediários com a de um reestabelecimento social da
aristocracia, como fazem Habermas e outros.294 Todo seu esforço
em favor do autogoverno comunal sempre despertou suspeitas de
nostalgia feudal. Se, em vez de escolas democráticas, os governos
comunais não serviriam como escolas de corrupção, explorando o
poder público para manter privilégios.295 Na medida em que as
classes baixas se aproximavam do poder central e percebiam que
nobres e ricos dirigiam os assuntos locais, atacava-se o governo
provincial, como se fosse aristocrático.
Desde o século XVIII, critica-se a degeneração dos poderes
locais em oligarquias, responde Tocqueville, mas o único remédio
que sempre se imaginou foi sujeitar cada vez mais os poderes
locais ao governo central.296 Ao contrário, investiga ele “a quem
dar esse poder local uma vez arrancado das mãos da
aristocracia”.297 O espanto tocquevilleano era que, embora
adotando a “alternativa temível” de uma sociedade plenamente
pautada pela soberania popular, haviam logrado as instituições dos
EUA preservar a liberdade.298 Admirava-se que, “na América, o

292
Ibid., p. 217-9.
293
Cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, II, 3, p. 789-90.
294
Entre eles: BROGAN, op. cit., 2006, p.270-1 e 347; DIJN, op. cit., 2008, 144 e 149; FRANCO, op.
cit., 2012, p. 184.
295
MÉLONIO, Françoise. Las tribulaciones del liberalismo em Francia (1996). In: ROLDÁN, Darío
(Ed.). Lecturas de Tocqueville. Madrid: Siglo XXI, 2007, p. 163-4.
296
TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, II, 3, p. 91.
297
Id., op. cit., 1836, II, p. 27.
298
Id., op. cit., 1835, I, 3, p. 59.
172 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

povo designa aquele que faz a lei e aquele que a executa; constitui
ele mesmo o júri que pune as infrações à lei. As instituições não são
democráticas apenas no seu princípio, mas em todos os seus
desenvolvimentos...”299 Não só a maioria forma, pela manhã, a
opinião pública e dá origem aos representantes e às leis; aplica-as
ao meio-dia como eleitor dos juízes e como jurado; fá-las cumprir à
tarde por um executor eleito; ao escurecer, a força pública não se
diferencia da maioria armada.300 Quando da sua viagem, os EUA
passavam ainda pela revolução jacksoniana, marcada pela
supressão de “todas as ficções” que condicionavam os direitos
políticos.301 É o que surpreende ainda, depois de derrubadas
também as ficções de gênero e etnia, a instituição de plebiscitos e
referendos a cada eleição a respeito do salário mínimo, legalização
de drogas, porte de armas, aborto, alimentos transgênicos,
impostos. A radicalização do governo popular não confirmara os
temores dos antigos liberais. Eles pensavam que a democracia era
um lobo, quando não passa ainda de uma sombra.
Antes do Démocratie, as instituições da Inglaterra eram o
grande exemplo a ser seguido pelos liberais franceses. Lá passavam
longas temporadas, estudando sua organização e sistema políticos.
A população ridicularizava essa simpatia com apelidos como “Lord
Guizot”.302 Mereciam-no Montesquieu, Constant, Barante. Sem
dúvida, a proximidade geográfica com o departamento da Mancha
e os vínculos afetivos com amigos e a esposa Mary Motley permitia
que Tocqueville considerasse a Inglaterra sua “segunda pátria
intelectual”.303 Não se pode dizer, porém, que tivesse a mesma
fixação pelas instituições daquele país, como sustentam muitos

299
Ibid., II, 1, p. 193-4.
300
Ibid., II, 7, p. 290.
301
Ibid., I, 4, p. 62.
302
FLAUBERT, op. cit., 1869, p. 71.
303
TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre à M. Senior, 17 juillet 1851. In: BEAUMONT (Ed.), op. cit., VII, p.
270.
Felipe Moralles e Moraes | 173

intérpretes.304 Ao contrário dos demais, ele sempre teve a


percepção de que a França já era o país mais igualitário da Europa,
o que impedia um retorno às soluções inglesas.305 No prefácio à
décima segunda edição da Démocratie, já escrito em sua
maturidade, repete o aforismo de que a Europa devia aprender
com os Estados Unidos.306 Em suas viagens à Inglaterra, não
esconde o desgosto em ver uma dominação aristocrática e
costumes que naturalizavam uma enorme desigualdade.307 Whigs e
torys não passavam de facções de um mesmo partido
aristocrático.308 Era preciso ser rico para ocupar cargos públicos,
eleger-se deputado, ser advogado, juiz, eclesiástico, ajuizar uma
ação: “toda a sociedade inglesa está construída sobre o privilégio
do dinheiro”.309 A paixão pela igualdade ainda era lá praticamente
desconhecida; a tendência democrática, bem menos clara; embora
ela fosse um caso evidente para os franceses, reconhece Mill. “A
Inglaterra é o mais completo contraste com os Estados Unidos”.310
Diferente do amigo inglês e dos demais liberais franceses,
Tocqueville recusa expressamente a solução de um governo misto.
O corpo de cidadãos deve ter o poder preponderante.311 Substitui a
admiração de uma combinação reformista entre aristocracia e
democracia, por um ideal de uma democracia substancial que
enxerga emergir no Novo Mundo: “onde a vi animada, ativa,

304
Entre outros: WELLMER, op. cit., 1989, p.31-2; QUIRINO, op. cit., 2001, p. 51-2; BROGAN, op.
cit., 2006, p. 571-4.; ELSTER, op. cit., 2009, p. 186.
305
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 5, p. 239; II, 6, p. 268 e 273; II, 8, p. 313; id., op. cit., 1836, I, p.
25; id., op. cit., 1840, I, 3, p. 527; III, 2, p. 682-4; IV, 2, p. 810; cf. SIEDENTOP, in The idea, p, 167;
MÉLONIO, in Lecturas, p. 158; DRESCHER, in The companion, p. 25; FRANCO, op. cit., 2012, p.
26; KAHAN, op. cit., 2015, p. 176-7.
306
NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, foreword to the twelfth edition, p. 1374.
307
Cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1833/35, 15 août, p. 422 ; 19 août, p. 428-9 ; 7 septembre, p. 456.
308
Ibid., 11 mai, p. 466.
309
Ibid., 8 juin, p. 478.
310
MILL, op. cit., 1840, p. 163 e 193.
311
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 7, p. 289; cf. MILL, op. cit., 1840, p. 189 e 196; FURET, in
Lecturas, p. 57.
174 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

triunfante no único país do mundo onde ela existe, onde ela pode
fundar até o presente, no mundo moderno, algo grande e
durável...”312 Alfineta Montesquieu, Guizot, Constant, Barante,
entre outros teóricos franceses que atiçavam a disposição
orgulhosa dos ingleses e eram cegos aos inúmeros preconceitos de
sua sociedade altamente hierarquizada.313 A democracia liberal era
o sucedâneo do transformismo inglês, ainda submetido à
preponderância da aristocracia.
Assim, mesmo no Ancien Régime, em que, por analisar
comparativamente a história do feudalismo europeu, o contraste é
feito majoritariamente entre França e Inglaterra, essa é elogiada
não por conservar costumes aristocráticos, mas por ser “o país da
descentralização.... Cada condado, cada cidade, cada comuna cuida
de seus próprios interesses”.314 Ela é colocada lado a lado dos
Estados Unidos, pois a township assemelhava-se à parish inglesa
medieval. Ambas contrastam com o centralismo administrativo
francês.315 A partir desses contrastes, pode-se montar um quadro
de soluções republicanas muito distintas sobre o que seria a
“educação” da democracia.
(i) Constant, Guizot, Barante, entre outros liberais
oitocentistas, queriam educar a democracia por meio de um
sistema político classista, em que a burguesia dominaria os poderes
intermediários existentes entre o monarca e a população. Sob o
reinado de Luís Filipe, lograram concentrar os três poderes nas
mãos de um número escasso de privilegiados, unidos em redor de
interesses semelhantes. Na própria definição desses apologistas do
governo misto, acabavam defendendo a tirania da burguesia.316

312
Id., op. cit., 1848, p. 1146.
313
Id., op. cit., 1833/35, 7 septembre, p. 452-4.
314
Ibid., p. 444.
315
DRESCHER, in The companion, p. 40-1; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, II, 3, p. 93 e II, 7, p.
113.
316
TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, I, 1, p. 730; cf. BLANQUI, op. cit., 1832, p. 47 ; MARX, op. cit.,
1852, p. 129-30.
Felipe Moralles e Moraes | 175

Assim, observa Tocqueville que, nos estertores da monarquia de


julho, já não se viam grandes partidos ou conflitos; a vida política
havia perdido toda mobilidade, paixão e efetividade: “sintomas
febris” para uma democracia. As peripécias dos discursos ficaram
em branco, tudo permanecia como antes da revolução de 1830,
talvez pior. A proibição das reuniões dos oposicionistas
proporcionou finalmente a tomada de armas contra o rei
burguês.317
(ii) Por sua vez, Mill utiliza a imagem de escola democrática
para defender que os membros das classes aristocráticas fossem os
professores daqueles das classes médias, comerciais ou proletárias,
mitigando o crescimento de seu poder econômico e político:

Uma escola supõe professores e alunos [...] a escola não terá


nenhum valor, e será nociva ao invés de boa, se, por carência de
supervisionamento adequado e de pessoas de caráter mais
elevado em seus quadros, a atuação do corpo degenerar em uma
igual busca estúpida e inescrupulosa do autointeresses de seus
membros.318

Tão ingênua era aquela crença dos liberais franceses de que


a burguesia atuaria em favor de valores republicanos, quanto é
essa de que a independência econômica e as atividades
intelectualizadas tornariam menos arbitrários os detentores do
poder político. A “instrução que esclarece o espírito” não se
confunde com a “educação que regula os costumes”. A instrução
fornece conhecimentos úteis ao trabalho e necessários à inserção
social; mas ensinar a ler, escrever, multiplicar ainda não educa
bons cidadãos. A preparação para vida pública exige mais do que
para a vida privada, critica Tocqueville.319 Ainda que os indivíduos
recebam formação profissional exemplar desde a juventude,

317
Ibid., p. 733 e 745-6.
318
MILL, op. cit., 1861, p. 539.
319
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 9, p. 352-3 ; cf. id., op. cit., 1856, III, 3, p. 188.
176 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

precisam estar habituados às práticas cívicas quando se tornam


adultos. O projeto implementado por Guizot para reforma da
educação elementar em França já havia lhe mostrado os limites de
um sistema educacional do ponto de vista da liberdade política.320
(iii) Tocqueville não vê fonte e segurança da liberdade na
eleição de cargos, em algumas ocasiões espaçadas, senão na
participação contínua do povo em todos os negócios de governo, o
que confere o hábito e a experiência do interesse público. Os
professores dessa “rude escola” são a noção de direitos subjetivos e
os princípios gerais da administração pública.321 Eis o modelo da
Nova Inglaterra:

[N]essa esfera restrita que lhe está acessível, o habitante da Nova


Inglaterra testa sua mão no governo da sociedade; ele se habitua
às formas sem as quais a liberdade só procede por revoluções,
infunde-se de seu espírito, toma gosto à ordem, compreende a
harmonia dos poderes e acumula enfim ideias claras e práticas
sobre a natureza de seus deveres, bem como sobre a extensão de
seus direitos.322

Uma arte como o governo da sociedade não se aprende de


modo ocasional. Sem poder e hábito da política, somente possível,
nas sociedades de massa, em âmbito local e municipal, não seria
possível preservar uma Constituição livre. Apenas a disseminação
dos direitos, princípios e assuntos de interesse geral o mais
amplamente, para todas as classes sociais, para múltiplas esferas
de decisão pública, poderia dar ao público não só a capacidade, mas
também o desejo de compartilhar o poder com o governo central.
Em vez de apostar que o interesse geral toque imediatamente a
todos, o teorema de Tocqueville é que a preservação da liberdade
nas democracias modernas carece de estruturas localizadas,
múltiplas e variadas de deliberação e autogoverno.
320
GUELLEC in The companion, p. 170.
321
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 2, p. 31.
322
Ibid., I, 5, p. 75.
Felipe Moralles e Moraes | 177

A democracia volta a ser de todos: uma vontade coletiva


depende da possibilidade de igual participação, como defendia
Rousseau.323 Enquanto muitos acreditavam que a liberdade seria
salvaguardada pelo enfraquecimento da soberania popular em seu
próprio princípio, a participação dos pobres, a fim de restringir a
esfera de interferência arbitrária, para Tocqueville ela carecia
simplesmente de uma rearticulação do exercício desse poder
político por diferentes instituições populares. A desaristocratização
da democracia:

Em lugar de entregar apenas ao soberano todos os poderes


administrativos que se tiram a corporações ou aos nobres, pode-
se confiar uma parte deles a corpos secundários,
temporariamente constituídos, de simples cidadãos: dessa
maneira, a liberdade dos particulares será mais segura, sem que
seja menor a sua igualdade.324

No nível abstrato, não há como fugir da ideia de que


liberdade e igualdade se confundem em seus extremos, concorda
Tocqueville. As pessoas não poderiam se tornar inteiramente livres
sem ser absolutamente iguais, como na imagem contratualista da
democracia:

Pode-se imaginar um ponto extremo onde a liberdade e a


igualdade se tocam e se confundem. Eu suponho que todos os
cidadãos concorram a governar e que cada um tenha um direito
igual a nele tomar parte. Em nada se diferenciando de seus
semelhantes, ninguém poderá exercer um poder tirânico; os
homens serão perfeitamente livres, porque todos inteiramente
iguais; e serão todos perfeitamente iguais, porque inteiramente
livres. É a esse ideal que tendem os povos democráticos.325

323
ROUSSSEAU, op. cit., 1762, III, 1.
324
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 7, p. 842.
325
Ibid., II, 1, p. 607-8.
178 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Assim, a democracia deixa a posição instrumental que ocupa


no republicanismo conservador, para assumir posição central na
socialização moderna. É a própria igualdade democrática, diz
Tocqueville, que pode inspirar “ao fundo do espírito e do coração
de cada homem essa noção obscura e essa propensão instintiva à
independência política, preparando assim o remédio ao mal que ela
faz nascer”.326 Muitos liberais republicanos colocavam um culotte
no governo democrático: confeccionavam-lhe uma roupa
aristocrática e desconfortável. Ao contrário, as vestes democráticas
é que devem amoldar-se perfeitamente ao corpo do povo: o retesar
de seus músculos, vibrar de seus nervos, pulsar de suas veias. A
democracia tem o direito de ser como é, sans-culotte.
Equivoca-se, pois, em primeiro lugar, a leitura difundida por
Quirino, Habermas e outros que enxerga na obra tocquevilleana a
mesma tentativa de alguns contemporâneos de ressuscitar
instituições pré-burguesas, liberdades estamentais, na forma de
corpos intermediários de cidadãos cultos e poderosos. Em relação
aos liberais da época, há o diferencial claro de considerar a
“aristocracia democrática” como um oxímoro. Os corpos
intermediários em França haviam sido fundados em privilégios;
mas nos Estados Unidos, baseavam-se em promessas mútuas de
direitos iguais.327 Os poderes intermediários não mais poderiam
fazer parte de uma classe social distinta da maioria, composta por
nobres, juristas ou pela burguesia. Tocqueville descobre as práticas
locais que substituíam os principaux citoyens na asseguração da
liberdade. As funções da antiga nobreza seriam cumpridas por
cidadãos com iguais direitos políticos, em meio a associações civis,
livre imprensa e corpos políticos locais. Na sua descrição do
governo democrático, sequer há espaço central para a noção de
representação política.328 Enquanto os founding fathers falhavam

326
Ibid., IV, 1, p. 807.
327
ARENDT, op. cit., 1963, p. 144-5.
328
MANENT, in Lecturas, p. 70 ; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, II, 3, p. 795.
Felipe Moralles e Moraes | 179

ao insistir na oposição entre governo republicano (conduzido por


representantes eleitos), e democrático (conduzido por assembleias
populares), deixando de incorporar as instituições locais e
municipais à Constituição, conseguia Tocqueville identificar nos
Estados Unidos a fonte efetiva de seu espírito público e de
liberdade política.329
Do modelo contratualista de Rousseau abandona, porém, a
estrutura linear entre os indivíduos (ainda que constituídos em
classe, como na ditadura da burguesia ou do proletariado) e a
república, em favor de uma estrutura plural e multifacetada de
espaços públicos em que os cidadãos aconselham problemas e
interesses e trazem pretensões para dentro dos processos
institucionalizados de decisão política. Não se recai na crítica ao
republicanismo prevalecente em França de uma unidade da
soberania, uma estrita igualdade na representação nacional e uma
separação rígida entre esferas pública e privada, as quais excluem
de antemão necessidades, interesses específicos e formas de
expressão – uma crítica que ganhará efetividade na segunda
metade do sec. XX com os movimentos contra a opressão racial,
sexual e de gênero. Influenciado pelo federalismo estadunidense,
Tocqueville abandona a noção de vontade geral como ponto de
partida para a teorização política: “a revolução americana eclodiu.
O dogma da soberania do povo emergiu da comuna e tomou conta
do governo...”330 Não supõe mais “o povo agindo por si mesmo”,
quer dizer, a imediatez e indivisibilidade de uma vontade nacional
e homogênea, em lugar das múltiplas vozes e mediações dentro do
corpo de cidadãos.331 Foram quatro os avanços descobertos nesse
sentido: a substituição dos antigos “condados”, concernentes aos
condes, por assembleias provinciais; dos funcionários públicos

329
Cf. MADISON, No. 10, 39 e 48, in The federalist, p. 58, 240 e 317; ARENDT, op. cit., 1963, p. 188 e 191.
330
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 4, p. 61.
331
Ibid., II, 9, p. 320; cf. ARENDT, op. cit., 1963, p. 74; JAUME, in Lecturas, p. 211; MÉLONIO, in
Lecturas, p. 166.
180 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

hereditários por funcionário eletivos; dos particulares ricos e


influentes por associações industriais, científicas, artísticas e
políticas tão influentes, opulentas ou fortes quanto à antiga
aristocracia; das relações de tutela e vassalagem pela livre
imprensa e pelos tribunais.332
Nesse contexto, não se reduz a esfera pública às vozes “dos
salões, dos centros de convívio, dos clubes e tertúlias, dos cafés,
numa palavra, ...dos privilegiados, porque nenhuma delas pertence
ao povo”, como criticava Blanqui ao abordar a formação da opinião
pública francesa no século XIX.333 Não se estiliza um tipo específico
de corporificação burguesa da esfera pública, sem dar espaço às
esferas públicas sub e contraculturais, proletárias, feministas, de
protesto contra exclusão, em suas mais variadas associações civis e
políticas – explicita Habermas.334 A democracia se
desrousseauniza. Ainda que os conflitos sejam intensificados, os
cidadãos são chamados por estruturas democráticas a expor seus
argumentos publicamente, são estrategicamente forçados a não
falar uma língua particular, mas uma que se direciona à toda
sociedade.335
Equivoca-se, portanto, em segundo lugar, a interpretação de
Cohn, Arendt e outros de uma defesa dos ideais antigos, os quais
exigiriam um modo de vida, uma forma de integração social capaz
de prevalecer ao interesse econômico e à burocracia estatal. O
processo político seria orientado a um consenso ético entre os
fundadores da república e seus continuadores. O cidadão
participaria de uma prática comum garantida pelos direitos
políticos. Nesse modelo, a democracia seria a própria forma da
liberdade, enquanto proteção, estabilização e perpetuação da

332
Id., op. cit., 1840, IV, 7, p. 842-3.
333
BLANQUI, op. cit., 1832, p. 46
334
HABERMAS, op. cit., 1962, Vorwort zur Neuauflage 1990, p. 20 e 34.
335
FORST, op. cit., 1994, p. 177.
Felipe Moralles e Moraes | 181

possibilidade de participação política.336 Ao contrário, mostrou-se


que o republicanismo moderno não estava, nem poderia estar
aquém do indivíduo moderno, como já atinavam Montesquieu,
Rousseau, Madison, embora as soluções de compatibilização entre
a liberdade dos antigos e a dos modernas alcancem soluções
filosóficas muito distantes, das mais conservadores às mais
radicais.
Nem por isso esses liberais republicanos podem ser
adequadamente enquadrados em um modelo no qual a política
serve como uma simples “dobradiça” para agrupamento dos
interesses privados da sociedade civil por intermédio do aparato
estatal.337 Nesse modelo democrático, como continua Habermas
sua categorização, o processo político orienta-se à luta pela
disposição do poder administrativo. A ação é estratégica. Os
direitos políticos conferem aos indivíduos a possibilidade de fazer
valer seus interesses privados politicamente ou, ao menos, de
controlarem os poderes estatais para que não os lesem. O cidadão é
visto como um portador de direitos subjetivos perante o Estado e
os demais. A democracia, compreendida como proteção e
institucionalização da liberdade negativa de perseguir os próprios
interesses e convicções éticas. Não se pode dizer que os
republicanos modernos reduzam, como visto, a deliberação a
acordos de interesses e às regras de mercado, como é próprio da
ideia de liberdade negativa, sem se preocuparem com um princípio
moral de não-dominação, que aspira à validade universal.338
Em verdade, cada um desses liberais pode ser
heuristicamente compreendido no modelo de democracia
deliberativa, que não depende necessariamente de uma ética
cidadã, nem só de ações estratégicas, mas de procedimentos de
universalização. A ação comunicativa desenvolve-se em espaços

336
HABERMAS, op. cit., 1999, p. 283; cf. ARENDT, op. cit., 1963, p. 175.
337
Ibid., p. 277.
338
Cf. Ibid., p. 284.
182 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

informais de construção da opinião e da vontade sobre os temas


socialmente relevantes, a qual desemboca em votações
institucionalizadas e decisões legislativas que, somente então, se
transformam em poder administrativo. A diferença entre Estado e
sociedade civil é respeitada, segundo o modelo liberal negativo,
embora a sociedade civil se diferencie do sistema econômico de
mercado como um espaço público autônomo, como no modelo
republicano antigo. A soberania popular não é exercida somente
por representantes, nem diretamente; “nem concentrada no povo,
nem banida no anonimato de competências jurídico-
constitucionais”. Ela é “interpretada intersubjetivamente”. A
soberania popular nasce, arremata Habermas, “das interações
entre a formação de vontade institucionalizada do Estado de
Direito e os espaços públicos mobilizados culturalmente, que da sua
parte encontram sua base nas associações de uma sociedade civil
igualmente afastada do Estado e da economia”.339
O que o republicanismo obscurece – mas nem Habermas,
nem Tocqueville desconhecem – é que os procedimentos de
formação da vontade coletiva pressupõem condições justas de
participação e deliberação. Embora os liberais republicanos partam
de uma rejeição universal à dominação, abrigam doutrinas
contraditórias acerca do que consiste um poder arbitrário. A
doutrina dos poderes intermediários enfoca, é certo, as mediações
entre Estado e economia e os espaços de formação deliberativa da
vontade coletiva, mas deixa em aberto a disputa primordial: sobre
os princípios de justiça que regulam essas mediações, isto é, sobre
o que significa ser dominado e estar sujeito à arbitrariedade.340 É
como se todos esses republicanos modernos pudessem se abrigar
confortavelmente à sombra da bandeira tricolor da revolução, mas
cada um visse, das três cores, a sua e contasse, logo que fosse o
339
Ibid., p. 291.
340
Cf. RAWLS, John. A theory of justice: revised edition. Cambridge: Harvard University Press,
1999, p. 5; WERLE, Denilson Luís. Reconhecimento e autonomia na teoria da justiça de Axel
Honneth. Síntese, Belo Horizonte, v. 43, n. 137, p. 403-4, set. 2016.
Felipe Moralles e Moraes | 183

mais forte, poder arrancar as outras duas. De um extremo puxam


com as cores da vontade geral do povo, de outro com as cores de
uma república classista. Uma concepção de liberdade imanente às
democracias modernas precisa ser coerente com os demais ideais
revolucionários e sua rejeição aos privilégios, mas sem apelar à
uniformidade da vontade como os contratualistas. A ideia
democrática da liberdade depende da deliberação entre iguais para
esclarecimento dos interesses, mas sem pressupor um local ou
público privilegiado para esse esclarecimento. A concepção
republicana de liberdade permanece indeterminada em relação à
ideia de justiça.
3

A tese da liberdade social

Uma terceira chave de leitura é oferecida pela filosofia


hegeliana. A mesma tentativa de unificação de valores iluministas
(individualismo, racionalismo, autonomia do mercado) com
valores românticos (naturalismo, comunitarismo, primazia da
política) encontraríamos nos dois pensadores oitocentistas,
entende Taylor.1 No cerne da filosofia de Tocqueville estaria o
mesmo esforço de Hegel de “recobrar um senso de diferenciação”,
para que as comunidades parciais (sejam elas geográficas, culturais
ou profissionais) pudessem se reconectar com o todo comum.2
Nela, a mesma crítica à atomização e dissolução do vínculo
solidário entre os indivíduos, assim como a mesma tentativa de
conciliar essa fragmentação e homogeneização da sociedade com a
vida pública.3 Uma mesma pergunta animaria a obra desses dois
filósofos, continua Wellmer: como levantar uma nova forma de
liberdade comunitária dentro da sociedade moderna? Uma tal
concepção de liberdade não seria possível sem o reconhecimento
de direitos negativos individuais como parte essencial do mundo
moderno.4 O impulso imediato de ambos foi a experiência
traumática da queda das instituições de liberdade na revolução
francesa. As alternativas institucionais ao problema, baseadas nas
experiências políticas da Prússia ou dos Estados Unidos, é que se
distanciaram largamente.5
1
TAYLOR, op. cit., 1979, p. 18.
2
Ibid., p. 149.
3
Ibid., p. 144-6.
4
WELLMER, op. cit., 1989, p. 40.
5
Ibid., p. 30-1.
186 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Daí a importância de comparar com mais detalhe o


pensamento de Hegel e Tocqueville. Esse trata das condições de
possibilidade de uma eticidade democrática, como sugere Wellmer:
“poder-se-ia ler a Democracia na América de Tocqueville muito
provavelmente como contraparte democrática da Filosofia do
Direito de Hegel”.6 O próprio Hegel havia dado sinais nesse
sentido, ao apontar os Estados Unidos como o país “no qual deve se
desvelar a importância da história universal nos tempos futuros”.7
Ainda que não se arrogue aqui uma interpretação definitiva da
ideia de liberdade em Hegel, ela pode servir como uma chave de
leitura decisiva na interpretação de Tocqueville.
A verdadeira liberdade, ou “universalidade determinante de
si mesma”8, está, defende Hegel, em uma unidade dos dois
momentos da especificidade moderna. É dizer, a unidade do
momento negativo (do indeterminado universal da vontade
natural) com o momento positivo (da determinação específica da
vontade racional) da liberdade.9 Em sua determinação, em sua
limitação em relação a outro sujeito, a vontade pode permanecer
consigo mesma nesse outro e conservar uma pura negatividade.
No instante em que o sujeito sente uma dependência externa, está
se referindo a um outro sujeito que não é ele próprio; mas não
pode ser si próprio sem um outro; é livre, então, se consegue
permanecer consigo mesmo nesse outro.10 É a formulação da
liberdade com que Hegel traduz os sentimentos de amizade e
amor: “aqui não se está unilateralmente em si, mas sim se limita
com prazer em relação a um outro e se sabe nessa limitação como
si próprio”. Nessas relações, a liberdade pode ser vista, ao mesmo
tempo, como uma determinação e uma indeterminação social,

6
Ibid., p. 29.
7
HEGEL, op. cit., 1837, Einleitung, III, p. 147.
8
Id., op. cit., 1821, § 21.
9
Ibid., § 128.
10
Id., op. cit., 1837, Einleitung, II, p. 59.
Felipe Moralles e Moraes | 187

quer dizer, como uma restrição dos sujeitos na qual eles não se
sentem restringidos pelos outros.11
O conceito de liberdade, explica Honneth, não poderia
enxergar nos outros indivíduos um obstáculo, mas sim uma pré-
condição para seus interesses e sua autodeterminação ética. Na
amizade, que é o paradigma da verdadeira liberdade, existe essa
clara complementaridade entre minha subjetividade e a do outro.12
A especificidade dessa forma de autorrestrição é que ela não
envolve um simples aperfeiçoamento moral dos interesses
individuais, já que experimenta os deveres como a própria
realização desses interesses. As limitações morais não são sentidas
como um obstáculo ou contrariedade às inclinações, carências e
finalidades pessoais, mas como seu próprio resultado e
incorporação social.13 O objeto de interesse tem a qualidade de ser
livre, porque a presença do outro permite essa experiência de
“estar consigo mesmo no outro”. Trata-se de um modelo
comunicativo identificável em padrões de interação livre.14
As concepções negativa e positiva da liberdade refletem em
dois momentos da realização do conceito. Os momentos são
denominados, por Hegel, de direito abstrato e moralidade. O
direito abstrato é o lugar inalienável de manifestação da
personalidade e do autointeresse do indivíduo enquanto
proprietário.15 Pode fazer ou não fazer, tomar ou não a posse,
fechar ou não o contrato, escolher pelo sim ou pelo não.16 A
indeterminação das permissões legais mantém em aberto um
movimento de negatividade, protesto, criatividade,
individualidade; um espaço que serve à emancipação individual,

11
Id., op. cit., 1821, § 7 Zus.
12
HONNETH, op. cit., 2011, p. 113.
13
Ibid., p. 227.
14
Id., op. cit., 2001, p. 27-8.
15
HEGEL, op. cit., 1821, § 66.
16
Ibid., § 119 Not.
188 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

científica, artística, profissional, enfim, de direitos universais


contra as limitações da sociedade pré-moderna.17 Por sua vez, a
moralidade garante que, na objetivação da vontade subjetiva,
estejam contidos ainda os propósitos e intenções do indivíduo.18
Nada precisa reconhecer senão aquilo que ele mesmo entende
como racional.19 Na esfera de autodeterminação moral, os fins
passam ser avaliados como bons ou ruins, conforme a convicção do
indivíduo.20 “Meu direito moral é que algo seja meu propósito, fim,
interesse – seja por mim reconhecido, considerado bom”.21
Entretanto, os momentos negativo e positivo são apenas
partes do conceito de liberdade, cuja unilateralização gera
contradições. Não se pode subsumir a liberdade ao direito abstrato,
reduzindo personalidade, família e Estado às noções de vontade,
propriedade e contrato.22 Se o indivíduo se enxerga como pura
indeterminação, não consegue se identificar e compartilhar valores
substantivos com os outros.23 Apelar para direitos subjetivos
sinaliza sempre a intenção de detonar a comunicação: quando não
se confia mais na discussão argumentativa de razões colidentes
para reparar certo dissenso ou interação malsucedida; quando não
mais se procuram bens e razões compartilhados; quando se deseja
interagir apenas estrategicamente, sem relações de cooperação e
projetos comuns com a outra parte. Apelar para o direito de livre
opinião, ilustrativamente, nada diz acerca do valor moral dessa
opinião e, portanto, nada contribui para efetivar o próprio
convencimento na esfera pública.24 “O mais elevado da

17
WELLMER, op. cit., 1989, 39-40; HONNETH, op. cit., 2001, p. 59.
18
HEGEL, op. cit., 1821, § 110 Zus.
19
Ibid., § 132.
20
Ibid., § 94 Zus.
21
Ibid., § 107 Not.
22
Ibid., § 75 Anm.
23
Ibid., § 35 Zus.
24
HONNETH, op. cit., 2011, p.154-5.
Felipe Moralles e Moraes | 189

humanidade é ser pessoa, mas apesar disso a pura abstração da


pessoa é, já na expressão, algo desprezível”.25
Tampouco se pode reduzir a liberdade à moralidade, porque
a vontade subjetiva pode se tornar objetiva socialmente somente
na liberdade.26 Se alguém se enxerga como pura reflexão moral,
jamais atinge um ponto de parada para testar a imparcialidade das
suas razões de agir. Não se consegue atingir a perspectiva moral
sem determinada pré-compreensão intersubjetivamente
27
compartilhada sobre fatos e normas sociais. A moralidade alça o
indivíduo ao papel de um legislador do mundo e da humanidade,
no qual perde os vínculos com o dado, que limitam
normativamente as considerações morais.28 Nesse papel, nenhuma
contradição pode existir no princípio, por exemplo, de que a
propriedade privada deva ser abolida, ou de que o próprio povo,
família, etc., não mais exista.29 Quando a deliberação moral
desprende-se do chão institucional da sociedade efetiva, por meio
de uma ficção de autolegislação, tornam-se moralmente
justificados todos os meios para atacar a ordem dominante.30 Uma
contradição no princípio moral pode resultar somente de um
conteúdo que já está histórica e socialmente dado, na base de um
princípio firme. Lá onde há somente uma vontade moral, sem
limites objetivos, “todo modo de ação ilícito e imoral pode ser
justificado”.31
A falha das concepções negativa e positiva está em seu
atomismo, em sua forma monológica de aplicação. No direito
abstrato, apenas o outro tem deveres, o indivíduo parece ter

25
HEGEL, op. cit., 1821, § 35 Zus.
26
Ibid., § 108.
27
HONNETH, op. cit., 2011, p. 196-7.
28
Ibid., p. 208.
29
HEGEL, op. cit., 1821, § 135 Anm.
30
HONNETH, op. cit., 2011, p. 215.
31
HEGEL, op. cit., 1821, § 135 Anm.
190 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

somente direitos; na moralidade, só a vontade do indivíduo parece


ter que se compatibilizar com deveres universais, sem atentar à
vontade dos demais.32
Os dois primeiros momentos da liberdade pressupõem um
terceiro: o momento do reconhecimento ético. No direito abstrato,
mesmo interesses individuais precisam ser reconhecidos pelos
outros: proprietários precisam respeitar o direito à propriedade
dos outros, contratantes precisam se sentir vinculados. Nele já vai
se formando uma esfera de comunicação, ainda que anônima,
porque abstraí dos motivos pessoais e valorativos, coordena apenas
interesses visíveis e se pauta pelo puro respeito à pessoa de
direito.33 A pessoa de direito, que constitui o fundamento do direito
abstrato, tem como mandamento “seja uma pessoa e respeite os
outros como pessoas”.34 Essa relação é “o chão próprio e
verdadeiro” da liberdade negativa.35 Apenas sob reciprocidade,
pode o direito ser e valer efetivamente, contra as vontades
individuais existentes somente para si mesmas.36 Os direitos
subjetivos fazem parte de instituições e práticas sociais nas quais
certos convencimentos normativos estão sedimentados e nas quais
o momento do reconhecimento está contido e pressuposto.37
Por sua vez, na moralidade, mesmo a autodeterminação
moral vai depender da vontade do outro, porque se trata da
reflexão moral sobre o outro.38 Nela se forma uma comunicação
vinculada à disposição dos indivíduos de justificarem
racionalmente suas decisões e agirem segundo orientações
abstraídas dos interesses, predisposições e vinculações

32
Ibid., § 155.
33
HONNETH, op. cit., 2011, p. 148-50.
34
HEGEL, op. cit., 1821, § 36.
35
Ibid., § 81 Zus.
36
Ibid., § 104.
37
Ibid., § 71.
38
Ibid., § 112.
Felipe Moralles e Moraes | 191

particulares, em um processo de busca de princípios de ação que


possam ser aceitos pelos demais.39 Para que esses princípios sejam
alcançados, porém, não se pode desprezar que “preexistem formas
elementares de reconhecimento recíproco as quais são tão
constitutivas da sociedade circundante que não podem mais ser
questionadas ou superadas por seus participantes”.40 A ação moral
não pode valer “somente como a minha, mas também como coisa
universal do chão espiritual”; não pode ser limitada a mim, “mas
sim também estabelecida objetivamente”.41 O momento ético serve
como fundamento para os outros dois momentos, porque somente
por meio dele ganham realidade social efetiva: “o jurídico e o moral
não podem existir por si, eles precisam ter o ético como suporte e
fundamento, porque ao direito falta o momento da subjetividade,
que a moral, por outro lado, tem só para si, e ambos momentos não
têm por si nenhuma efetividade”.42
A eticidade consiste na unidade dos indivíduos que se
consideram livres.43 Ela permite uma união conceitual das
concepções negativa e positiva na forma de esferas de realização da
liberdade, nas quais as pessoas têm seus direitos à medida que têm
deveres, e deveres à medida que têm direitos.44 Nesse sentido, fala-
se de uma teoria ética do direito e da moral: o direito abstrato e a
moralidade já são compreendidos como práticas intersubjetivas,
embora os sujeitos sejam aí incluídos ainda com um mínimo da
sua personalidade, em um espaço de distanciamento ou de tomada
de posição moral.45 O lar da normatividade moderna encontra-se,
em vez de em convencimentos subjetivos particulares e

39
HONNETH, op. cit., 2011, p. 193-4.
40
Ibid., p. 204.
41
HEGEL, op. cit., 1821, § 124 Not.
42
Ibid., § 141.
43
Ibid., § 72 Not.
44
Ibid., § 155.
45
HONNETH, op. cit., 2011, p. 223; id., op. cit., 2001, p. 57.
192 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

contingentes, nesses hábitos praticados intersubjetivamente.46 Essa


concepção comunicativa expressa mais completamente a ideia de
uma subjetividade não-dominada. À medida que inclinações e
finalidades dos outros são experimentados como avanços e
expansões das inclinações e finalidades do indivíduo, suas
interações sociais são vivenciadas como expressão de uma
subjetividade cada vez menos limitada. Quanto mais forte os
indivíduos podem sentir que seus fins são sustentados por aqueles
com os quais interagem, mais podem perceber o mundo que os
cerca como um espaço de expansão de sua própria personalidade.47
À medida que moralidade e direito abstrato não somente são
animadas por fins compartilhados, mas também são necessários à
estabilização, normatização e aplicação desses fins na sociedade,
passam a ser descritos como esferas ou degraus do “espírito
objetivo”.48 Porque os anseios de liberdade só podem ser
preenchidos por meio de instituições, amplia-se a
“intersubjetividade” do direito abstrato e da moralidade em um
conceito propriamente “social” de liberdade.49 Os dois momentos
se consubstanciam nas esferas sociais, respectivamente, da família
e da sociedade civil. Nelas os momentos negativo e positivo do
conceito tornam-se etapas de socialização do sujeito, que o
capacitam a compreender sua liberdade intersubjetivamente, e
meios de realização de fins, dando condições à realização do sujeito
livre nas sociedades modernas.50 Soma-se à eticidade (que denota
as condições intersubjetivas necessárias à liberdade) a juridicidade
da teoria hegeliana (que contempla a pretensão justificada e
jurídica de participação nessas esferas comunicativas).51 Introduz-

46
Ibid., p. 26.
47
Ibid., p. 113-5; id., op. cit., 2001, p. 45.
48
Ibid., p. 224; cf. HEGEL, op. cit., 1821, § 30.
49
Ibid., p. 86.
50
Ibid., p. 93.
51
Id., op. cit., 2001, p. 30-2.
Felipe Moralles e Moraes | 193

se aqui a ideia de justiça, segundo a qual os membros da sociedade


devem ter igual chance de participação nas instituições de
reconhecimento social.52 Desse modo, sintetiza Honneth: “‘livre’ é o
sujeito, em última instância, somente quando encontra, no quadro
de práticas institucionalizadas, uma contraparte à qual liga um
comportamento de reconhecimento recíproco, porque pode
enxergar nos fins dela uma condição para a realização dos próprios
fins”.53 O conceito de direito hegeliano contempla, então, todas as
práticas institucionalizadas que possibilitam a liberdade, a cujo
acesso se faz jus enquanto membro da sociedade.
A esfera da família cuida das necessidades e sentimentos
morais, representando um primeiro sentido, ainda bastante
incompleto, de individuação. A satisfação das carências naturais
ocorre na forma de amor e sentimentos mútuos.54 “O primeiro
momento no amor é que eu não quero ser uma pessoa autônoma
para mim e que, se o fosse, sentir-me-ia carente e incompleto. O
segundo momento é que eu me ganho em uma outra pessoa, que
valho nela o que ela em contrapartida em mim alcança”.55 A
normatividade interna da família é de amor, confiança e estímulo
mútuo entre os participantes. Nela o indivíduo não se concebe
ainda como pessoa para si, senão como membro da família. Mas
ela já contém, em si, o princípio de sua superação, que é a
educação da criança não somente para levar adiante a
determinação positiva de amor, confiança e obediência aos pais,
mas também na determinação negativa de erguer-se à
personalidade autônoma, livre e capaz de sair da unidade
familiar.56 A eticidade da família garante sua própria dissolução,
pelo reconhecimento da personalidade jurídica do filho, que se

52
Id., op. cit., 2011, p. 115.
53
Ibid., p. 86.
54
HEGEL, op. cit., 1821, § 33 Zus.
55
Ibid., § 158.
56
Ibid., § 175.
194 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

torna capaz de possuir propriedades e constituir uma família


própria.57
A dissolução ética da família inaugura a esfera da sociedade
civil, que é um espaço superior em que o indivíduo pode fazer o
que não pode na família. Ele não mais aparece como membro
dependente da família, mas como pessoa autônoma e
individualizada, cuja realização exterioriza-se em objetos,
propriedade, contratos.58 A sociedade civil se baseia tanto na
pessoa concreta, “como fim específico, como um todo de carências e
uma mistura de necessidades naturais e arbítrio”, quanto na
universalidade, “da pessoa específica essencialmente em relação
com outras especificidades, de tal modo cada uma por intermédio
da outra... se faz valer e satisfaz”.59 Ela satisfaz seus fins entrando
em relação com outros, no que satisfaz suas especificidades e
“também satisfaz com isso o bem-estar do outro”.60 Os indivíduos
são, então, pessoas privadas que têm interesses particulares, mas
que se determinam dentro de um sistema universal de satisfação
do bem-estar, carências e arbítrios dos demais, articulado em três
momentos. Primeiro, o “sistema de carências” do mercado
capitalista, pela intermediação da satisfação dos indivíduos por
meio de seu trabalho e, por meio dele, a satisfação de todos demais.
Segundo, a administração da justiça, para proteção da propriedade.
Terceiro, a polícia administrativa e a corporação, para precaução
contra as contingências possíveis dentro dos dois momentos
anteriores. A normatividade interna da sociedade civil, em todos
três momentos, é a satisfação das especificidades do indivíduo.61
O mercado capitalista constitui uma esfera de
reconhecimento, porque “à medida que cada um por si adquire,

57
Ibid., § 177.
58
Ibid., § 33 Zus.
59
Ibid., § 182.
60
Ibid., § 182 Zus.
61
Ibid., §§ 188-9.
Felipe Moralles e Moraes | 195

produz e goza, com isso, produz e adquire para o gozo dos


restantes”.62 A satisfação das próprias carências egocêntricas
aumenta com a oferta econômica de atividades e com o trabalho
dos outros. Os indivíduos que ofertam podem perseguir seus fins
particulares com vistas aos objetivos dos que demandam. Os
interesses de consumidores e produtores precisam se satisfazer
reciprocamente.63 Além disso, o entrelaçamento das dependências
individuais faz aumentar enormemente as habilidades e o
patrimônio geral da sociedade.64 Ambas razões fazem com que o
mercado capitalista encontre tão rápida aceitação moral na
população e com que seja considerado como uma esfera de
reconhecimento para todos aqueles nele inseridos.65 Ele confere
“através da concorrência econômica, a satisfação acelerada de
carências que cada vez mais se diferenciam entre si e há muito
ultrapassam as necessidades da vida, das pessoas particulares
individualizadas”.66
Contudo, a sociedade civil também já contém, em si, o
princípio de sua superação. Ela dispara “para todos os lados, a
satisfação das suas carências, arbítrios e prazeres subjetivos”,
destruindo-se “a si mesma em seus gozos e em seu conceito
substancial”.67 Um processo sem fim e sem volta de
desdobramento e refinamento das carências, em que “cada
conforto mostra novamente seu desconforto”, porque as carências
não são exigidas por aqueles que as têm, mas também criadas
pelos que buscam um lucro através do seu surgimento.68 As
carências e os meios de satisfação condicionam-se mútua e

62
Ibid., § 199.
63
Ibid., § 192.
64
Ibid., § 199.
65
HONNETH, op. cit., 2011, p. 88, 363, 380-1.
66
Ibid., p. 361.
67
HEGEL, op. cit., 1821, § 185.
68
Ibid., § 191 Zus.
196 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

socialmente, como nos modos de vestir, nas refeições, entre outras


maneiras e conveniências sociais que vão surgindo a cada instante
na sociedade.69 Ao lado da carência de igualdade e imitação, põe-se
uma carência de especificidade e ostentação, “tornando-se ela
própria uma fonte efetiva de multiplicação das carências e de seu
alastramento”.70 O sistema de carências cria necessidades artificiais
e de consumo ostentativo, que não buscam o conforto dos
participantes, mas diferenciações de status.71
Afora isso, embora o reconhecimento praticado no mercado
capitalista aumente o patrimônio geral da sociedade, faz aumentar
também a desigualdade de patrimônios dos indivíduos. A
sociedade civil não é capaz de superar as desigualdades naturais; as
produz e alimenta como desigualdades de habilidades, patrimônio
e de formação intelectual e moral.72 Mesmo que os indivíduos
tenham a possibilidade de participar do patrimônio comum
crescente, restam as contingências subjetivas de habilidade, saúde,
capital, etc. Todas as vantagens da sociedade civil são perdidas
pelos que não têm os meios de aquisição de bens básicos, como
comida, moradia, tratamento de saúde. Tamanho o desequilíbrio
social e o sentimento de injustiça que surgem vícios como a
indolência e a malícia.73 Uma grande massa de pessoas afunda-se
abaixo da medida da subsistência, o que conduz a uma perda do
sentimento de dignidade de existir através da própria atividade e
trabalho. A disposição dos pobres volta-se assim contra os ricos,
contra a sociedade e contra governo, dando origem ao que Hegel
chama de ralé (Pöbel): “...a pessoa que é orientada pelas
contingências torna-se leviana e indolente... Com isso surge na ralé
o mal de que ela não tem a honra de encontrar sua subsistência por

69
Ibid., § 192.
70
Ibid., § 193.
71
HONNETH, op. cit., 2011, p. 364-5.
72
HEGEL, op. cit., 1821, § 200.
73
Ibid., § 241.
Felipe Moralles e Moraes | 197

meio de seu trabalho, e encontrar sua subsistência responde como a


um direito seu”.74
A família era a primeira a fornecer meios e habilidades ao
indivíduo para obtenção de parte do patrimônio social geral e para
o proteger contra eventuais incapacidades naturais. No entanto, “a
sociedade civil arranca o indivíduo desse laço, aliena seus membros
um dos outros e os reconhece como pessoas autônomas”; mais que
isso, ela subordina “a própria subsistência da família toda”.75 Uma
solução interna ao sistema de carências e intermediada pelo
trabalho tampouco é promissora, porque logo esbarra nas crises
econômicas de superabundância de produção e falta de consumo
proporcional. A produção ultrapassa as carências de consumo.
Junto ao excesso de riquezas, o mercado capitalista nunca parece
ser rico o suficiente, possuir patrimônio suficiente para controlar o
excesso de pobreza e o surgimento da ralé.76 O poder público
precisa, então, assumir o lugar da família e da sociedade civil junto
aos pobres, impedindo a inanição e a miséria.77 Até então limitada
aos casos particulares dos processos judiciais e à proteção dos
direitos que os indivíduos já tinham, a sociedade civil vai se tornar
efetiva em toda extensão por meio das instituições da polícia
administrativa e da corporação.78 Essas servem tanto à segurança
geral das pessoas e propriedades, quanto à segurança da
subsistência e bem-estar dos indivíduos, o que não ocorria no
sistema de carências e na administração da justiça.79 As tarefas não
só de iluminação das ruas e construção de pontes, mas também de
subsistência alimentar e de saúde dos indivíduos.80 “Assim, o

74
Ibid., § 244.
75
Ibid., § 238.
76
Ibid., § 245.
77
Ibid., §§ 240-1.
78
Ibid., § 229.
79
Ibid., § 230.
80
Ibid., § 236.
198 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

indivíduo é tornado filho da sociedade civil, que tem na mesma


medida pretensões sobre ele, como ele direitos sobre ela”.81
Quanto mais cegos os fins particulares se tornam, maior a
necessidade de sua regulação, para que sejam compatibilizados
com os interesses gerais e para a diminuição dos espasmos e
demoras gerados pela colisão dos interesses particulares. Vai-se
delineando, gradualmente, a partir dos antagonismos emergentes
dentro da sociedade civil, um momento externo de superação: o
poder público estatal. A diferenciação crescente entre as classes,
ordens e grupos passam a depender de uma recomposição. Ao lado
do reconhecimento dos indivíduos como sujeitos de direitos livres e
iguais, que interagem estrategicamente como proprietários no
mercado capitalista, necessita-se de instituições políticas que não
operem pela mesma racionalidade estratégica.82 No início do século
XIX, já estavam na ordem do dia essas suspensões parciais dos
mecanismos de mercado para garantia de suprimentos básicos à
população, controle de qualidade e exclusão de certos bens do
mercado.83 O mercado capitalista depende da conservação dessas
regras não contratuais para poder integrar os interesses
econômicos individuais. A disposição dos indivíduos para aceitar as
determinações do mercado depende do constante fluxo e efetivação
de regras de reconhecimento.84 A normatividade interna da
sociedade civil é que permite que o sistema de carências continue
sendo considerado como uma esfera de satisfação mútua dos fins
individuais: “os atores econômicos precisam se reconhecer
antecipadamente como membros de uma sociedade cooperativa
antes de que se concedam reciprocamente o direito de maximização
da utilidade individual no mercado; e a extensão dessas liberdades

81
Ibid., § 238.
82
WELLMER, op. cit., 1989, p. 21-3.
83
HONNETH, op. cit., 2011, p. 367-8.
84
Ibid., p. 328-30.
Felipe Moralles e Moraes | 199

negativas tem que medir, então, até qual grau são compatíveis com
as exigências daquele prévio reconhecimento”.85
Nesses termos, pode-se entender, com Honneth, que a
sociedade civil não contém somente o rasgo de interesses
particulares, mas também modos de ampliação desses interesses:
melhorar a condição de vida no âmbito da polícia administrativa e
entrar em acordo no âmbito das corporações para uma prática
orientada aos fins gerais da sociedade.86 O Estado é o resultado
final de um processo de generalização das próprias orientações, de
um incremento gradual da própria personalidade.87 Exemplifica
Hegel: um inglês diz “nós somos aqueles que navegamos o oceano e
possuímos o comércio internacional, a quem pertence as Índias
Orientais e suas riquezas...”88 Não há puro interesse comum e
nacional, mas um interesse particular que se generaliza em meio a
outros e se ancora emocionalmente nas façanhas e bem-estar da
comunidade política. O indivíduo se apropria da classe dos
comerciantes e do destino geral da nação, no qual encontra algo
firme e no qual pode se incorporar. Nessa classe os indivíduos
podem reconhecer honra e fama.89 Essa confluência dos interesses
específicos do indivíduo com o geral que os contém e conserva
manifesta-se na disposição motivacional do patriotismo.90 No
cumprimento do dever patriótico, o indivíduo encontra “seu
próprio interesse, sua satisfação ou fatura, e para ele deve crescer
do seu comportamento no Estado um direito, por meio do qual a
coisa universal torna-se sua própria e específica coisa”.91 O
patriotismo consiste nessa afeição com o Estado, “porque ele

85
Ibid., p. 349.
86
Id., op. cit., 2001, p. 97-8.
87
Ibid., p. 99-100.
88
HEGEL, op. cit., 1837, Einleitung, III, p. 131.
89
Id., op. cit., 1821, § 124.
90
Ibid., § 268.
91
Ibid., § 261 Anm.
200 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

preserva suas esferas específicas, a legitimidade e a autoridade


assim como a prosperidade delas”.92
Daí a concepção dessa terceira esfera, mais alta, do Estado.
Ele é o momento máximo da efetivação da vontade livre, “de modo
que nem o universal vale e é consumado sem o interesse, saber e
querer específicos, nem os indivíduos vivem para o último
meramente como pessoas privadas...”93 E continua Hegel,
contrastando os antigos com os modernos: “o espírito do novo
Estado é que o universal seja vinculado à completa liberdade da
especificidade e ao bem-estar dos indivíduos, que, portanto, o
interesse da família e da sociedade civil devem reunir-se ao Estado,
que, porém, a universalidade do fim não pode avançar sem o
próprio saber e querer da especificidade, que deve conservar seu
direito”.94 O Estado é, por isso, chamado de substância ética, de
efetivação última da liberdade, porque nele o povo enxerga a
concretização de suas potencialidades. O princípio da subjetividade
e da especificidade não só se emancipou da unidade substancial
indivisa das comunidades pré-modernas, mas se tornou o
fundamento da Constituição moderna: uma nova unidade que deve
admitir as diferenças sociais, como unidade articulada em diversos
momentos e complexa.95 A esfera estatal permite que os cidadãos
tomem certos temas como de interesse nacional e considerem os
outros indivíduos como dignos de solidariedade, sem ignorar suas
diferenças pré-políticas.96 A noção de eticidade busca, dessa forma,
conciliar o comunitarismo do mundo antigo com a autonomia
racional do indivíduo moderno, finaliza Taylor: “em comum com
sua geração, Hegel reconhecia que esta Sittlichkeit estava perdida
para sempre em sua forma original, mas, em consonância com

92
Ibid., § 289 Anm.
93
Ibid., § 260.
94
Ibid., § 260 Zus.
95
BOBBIO, op. cit., 1976, p. 158.
96
HONNETH, op. cit., 2011, p. 488 e 619.
Felipe Moralles e Moraes | 201

muitos de seus contemporâneos, ele aspirava vê-la renascer sob


uma nova forma”.97
A dificuldade da teoria da liberdade hegeliana é que não há
somente essa linha horizontal e ascendente do Estado (como esfera
inclusiva e complementar da eticidade), mas também uma linha
vertical e descendente (como esfera dominante e prioritária da
eticidade). A sociedade burguesa representava, em suas
contradições e complexidades, dizia Hegel, um grande “espetáculo
igualmente de excessos, miséria e corrupção física e ética
coletiva”.98 O resultado disso é a autorreferência e a predominância
do Estado. “Na realidade social efetiva é por isso o Estado, afinal,
muito mais a primeira coisa, dentro da qual a família se converte
em sociedade civil, e é a ideia de Estado mesmo que se dirime em
ambos momentos”.99 Ele precisa penetrar em todas as relações
sociais.100 Os antagonismos gerados pela propriedade privada e
observados na sociedade civil exigiam um papel dominante para o
Estado, uma burocracia fixa, estável e o mais afastada possível da
esfera da competição econômica.101 Não contava mais com a
reciprocidade das relações entre indivíduos, ainda que dentro de
práticas institucionalizadas, priorizando a subordinação das
relações entre indivíduos e instituições. Assim, o Estado está
operando sempre de maneira subordinante, como uma “moldura
organizadora das outras esferas de interação”, o que traz
consequências fortemente antidemocráticas, alerta Honneth.102
Em primeiro lugar, torna-se o Estado “um absoluto e imóvel
fim em si mesmo... de modo que esse fim último tem o mais elevado
direito contra os indivíduos, cujo dever mais elevado é ser membro

97
TAYLOR, op. cit., 1979, p. 109.
98
HEGEL, op. cit., 1821, § 185.
99
Ibid., § 256.
100
Ibid., § 274 Zus.
101
MARCUSE, op. cit., 1941, p. 163 e 165.
102
HONNETH, op. cit., 2001, p. 11 e 111.
202 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

do Estado”.103 O indivíduo é transformado num “subordinado que


deve se devotar ao todo ético”104; num acidente dentro da
substância do Estado, cuja existência é “indiferente”105; num
momento de sua realização para o qual, “pode a pessoa saber ou
não, essa essência se realiza como violência autônoma”.106 O
individualismo moderno acaba interrompido, com isso, denuncia
Taylor, “mais por orgias de grotesca desumanidade que por
rupturas rumo a uma cultura nova e superior”. É uma violência
inaceitável contra a especificidade moderna. Os horrores e
pesadelos no desenvolvimento histórico moderno, as fúrias de
destruição e crueldade ocorridas durante a revolução francesa não
haviam ficado para trás, porque, “por uma cruel ironia, o próprio
protesto romântico teve sua parcela de responsabilidade nesses
interlúdios horrendos”.107
Em segundo lugar, Hegel carrega demasiadamente de
juridicidade e concretude as esferas sociais, fazendo-as depender
de sanções estatais. Isso o prende ao século XIX, à fórmula
institucional da época.108 Ele só consegue ver a pequena família
cristã e burguesa, por exemplo, fixando os indivíduos em papéis
tradicionais e estanques, demasiadamente carregados de premissas
naturalistas – lamenta Honneth.109 A excessiva institucionalização
torna-o extremamente conservador.110 A filosofia hegeliana não se
abre sistematicamente para incorporar outras instituições que
representem seus princípios de reconhecimento.111 A consequência

103
HEGEL, op. cit., 1821, § 258.
104
Ibid., § 70 Zus.
105
Ibid., § 145 Zus.
106
Ibid., § 258 Zus.
107
TAYLOR, op. cit., 1979, p. 173.
108
Cf. HEGEL, op. cit., 1821, § 163 Zus.
109
HONNETH, op. cit., 2011, p. 302-5; id., op. cit., 2001, p. 112-3.
110
Ibid., p. 287.
111
Ibid., p. 117.
Felipe Moralles e Moraes | 203

de um Estado racional, já por seus contemporâneos sentida como


uma provocação, foi expelir os movimentos políticos
transformadores das instituições como contrários à razão. A
filosofia recua, assim, de uma normatividade moderna ainda não
satisfeita.112 Enfim, arremata Taylor, trata-se de uma reação
obsoleta à modernidade: ele afirma nos oferecer uma razão
triunfante, mas “pertence acima de tudo a um estágio dessa
oposição que não parece mais viável”.113
Em terceiro lugar, Hegel toma a monarquia constitucional
como modelo acabado da modernidade: “a obra do Novo
Mundo”.114 Assim como para Montesquieu, o critério fundamental
para definição entre as Constituições é da complexidade da
sociedade.115 As formas republicanas e democráticas somente
seriam compatíveis com sociedades antigas e simples. A única
forma adaptada às sociedades modernas, cujos componentes
tendem a se autonomizar e dilacerar, seria a monarquia
constitucional. A votação pelo povo, a submissão do monarca à
opinião e ao arbítrio da maioria, porque fazem da vontade
particular a última decisão referente ao Estado, opõem-se a ideia
de eticidade.116 Eis a caracterização pejorativa do povo: a parte do
Estado que “não sabe o que quer... uma massa sem forma, cujo
movimento e ação seria com isso elementar, irracional, selvagem e
terrível”.117 O poder legislativo deve ser composto, segundo ele, por
uma aristocracia hereditária de proprietários de terra, sem
mandatários.118 A representação política, não é da sociedade civil,

112
HABERMAS, Jürgen. Der philosophische Diskurs der Moderne: zwölf Vorlesungen. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1988, p. 54.
113
TAYLOR, op. cit., 1979, p. 174.
114
HEGEL, op. cit., 1821, § 273.
115
BOBBIO, op. cit., 1976, p. 154.
116
HEGEL, op. cit., 1821, § 281 Anm.
117
Ibid., §§ 301-3 Anm.
118
Ibid., §§ 306-9.
204 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

mas contra a sociedade civil – ridiculariza Marx.119 Não há


tampouco mecanismos de fazer valer a opinião pública. Ela
somente é esclarecida, por meio da publicidade dos atos estatais,
“aos pensamentos verdadeiros e à visão da situação e do conceito
de Estado”, de modo que “aprende a conhecer e prestar atenção aos
negócios, talentos, virtudes e habilidades das autoridades e
funcionários do Estado”.120 A esfera pública é esclarecida pelas
instituições políticas, jamais as esclarece – funciona somente para
fazer a integração das opiniões subjetivas na objetividade do
Estado.121 Em suma, conclui Honneth: não há quaisquer esferas de
deliberação e de participação política.122
Ainda assim, atenua o intérprete, se levada adiante a ideia de
incorporação de hábitos impregnados de uma evolução histórica e
racional, não se poderia representar as esferas sociais nem como
totalmente fixas, sob pena de perder toda mutabilidade, nem como
simples massa disponível à positivação jurídica, senão seria
perdida toda qualidade ética e intersubjetiva.123 A dimensão
comunicativa extraída da filosofia hegeliana pode revelar
expectativas normativas não juridicizadas. Há três requisitos para
a identificação de uma esfera da liberdade, esquematiza Honneth:
(i) conter práticas institucionalizadas de “reconhecimento”, isto é,
nas quais os sujeitos cooperam e enxergam um ao outro como
condição para sua autorrealização; (ii) conter padrões de ação com
normatividade interna, em razão da expectativa dos participantes
de certo comportamento de todos os demais; (iii) conter uma
forma de socialização para competências e disposições de caráter
necessárias a essas práticas constitutivas.124 As esferas contêm

119
MARX, op. cit., 1843, p. 252.
120
HEGEL, op. cit., 1821, § 315.
121
HABERMAS, op. cit., 1962, p. 199.
122
HONNETH, op. cit., 2001, p. 122-3.
123
Ibid., p. 114-5.
124
Ibid., p. 80-5; id., op. cit., 2011, p. 147.
Felipe Moralles e Moraes | 205

expectativas de autorrealização pessoal nas interações sociais, nas


quais a liberdade não é extraída do indivíduo isolado, mas da
mediação com o outro.125 O direito abstrato e a moralidade são
traduzidos como momentos do conceito da liberdade que se
sedimentam em práticas sociais cada vez mais gerais, na forma das
esferas da família, sociedade civil e Estado. A tarefa do direito e do
Estado seria garantir a manutenção e a igual participação do
indivíduo nessas diferentes esferas de autorrealização.126

125
Ibid., p. 86-7.
126
Ibid., p. 46. É claro que a interpretação de Honneth está longe de ser consensual. Ele enfatiza as
condições para a autorrealização do espírito subjetivo, em vez da autorrealização do espírito absoluto
(Ibid., p. 16). Para as interpretações tradicionais, as esferas sociais não visariam à realização
individual. A subjetividade do absoluto seria um instrumento da filosofia do sujeito para superação
da razão centrada no indivíduo. A verdadeira identidade do indivíduo seria servir como veículo da
vontade divina (cf. MARX, op. cit., 1843, p. 224; BOBBIO, op. cit., 1976, p. 119 e 181; TAYLOR, op.
cit., 1979, p. 103; HABERMAS, op. cit., 1988, p. 42). Todavia, ao longo da obra hegeliana, as provas
empíricas do movimento de efetivação do espírito coexistem com as ontológicas. Ainda que Hegel
não tome o ponto de partida individual, isso não lhe é refratário: afinal, foi a cristandade que chegou
à consciência de que a pessoa é livre como pessoa (Op. cit., 1837, Einleitung, II, p. 60). A leitura de
Honneth tenta pensar a teoria da liberdade sem pressupor a lógica hegeliana: o diagnóstico das
patologias sociais deixa de recorrer a um padrão ontológico e necessário (Op. cit., 2001, p. 12). A
ressalva a essa interpretação diz respeito à ênfase ao momento psicológico para a autorrealização
individual. A liberdade deveria ser vista como um tipo de confiança interna, que dá aos indivíduos
segurança para articular suas necessidades e colocar em uso seus talentos e individualidades
(HONNETH, Axel. Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectivas na ordem moral
da sociedade. In: SOUZA, Jessé; MATTOS, Patrícia (Org.). Teoria crítica no século XXI. São Paulo:
Annablume, 2007, p. 88). Essa perspectiva é totalmente rejeitada por outros intérpretes (cf.
MARCUSE, op. cit., 1941, p. 30; TAYLOR, op. cit., 1979, p. 103). Do ponto de vista da teoria crítica,
Nancy Fraser fez uma objeção contundente contra essa perspectiva psicologizante, argumentando
que, quando a falta de liberdade é identificada com distorções internas na autoconsciência do
oprimido, fica-se a um pequeno passo de culpar a vítima e acrescentar insulto à opressão, por
exemplo, imputando um dano psíquico aos submetidos ao racismo, machismo, etc. Em sentido
inverso, quando a falta de liberdade equivale a preconceitos nas mentes dos opressores, superá-la
parece requerer policiar suas crenças, o que é antiliberal e autoritário. A falta de reconhecimento não
pode ser entendida como afetando, em primeiro plano, a identidade pessoal, que é um apelo sectário
(FRASER, Nancy. Social justice in the age of identity politics: redistribution, recognition, and
participation. In: ______.; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political-
philosophical exchange. London/New York: Verso, 2003, p. 31-2). Assim, como vai reconhecer
Honneth em obra posterior, as condições de autorrealização devem ser vistas como do espírito
subjetivo e objetivo simultaneamente, isto é, sempre vinculadas a instituições e práticas sociais (Op.
cit., 2011, p. 9 e 157). Por isso, prefere-se interpretar a ideia de liberdade hegeliana, com Honneth,
como uma autorrealização individual com os outros, mas sem recair em uma interpretação
psicologizante.
206 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Adotando essa leitura, portanto, Hegel oferece uma


concepção de liberdade dentro de uma tradição oitocentista crítica
à modernidade. A ampliação da liberdade é a ampliação das
possibilidades de participação dos indivíduos em instituições
sociais que lhe servem como condição social para sua
autorrealização, conforme a tese social (TS):

TS: A liberdade consiste na possibilidade (por meio de garantias


efetivas) de participar em esferas sociais de realização recíproca
de interesses.

A dificuldade da solução hegeliana está, como visto, que a


eticidade não toma forma democrática. Ele fica muito preso ao
modelo do Estado prussiano.127 A obra de Tocqueville seria uma
ponte, então, entre a teoria da eticidade e a teoria democrática, a
qual se tenta atravessar nas seções seguintes enfocando as esferas
sociais da (3.1) religião; (3.2) classes sociais; e (3.3) associações.

3.1 Religião

Um dos aspectos notáveis da filosofia de Hegel está na crítica


contra os que tomavam a religião como fundamento do Estado. “A
religião, define ele, “é a relação com o absoluto na forma de
sentimento, imaginação e crença e, em seu centro, que tudo contém,
tudo é contido somente como acidente e evanescente”.128 Se o
Estado está baseado na religião, sua constituição e leis são
abandonadas à certeza ou incerteza de uma crença. A religião que
busca se fazer valer pelo Estado, tanto quanto o Estado que se
impõe de maneira religiosa, ameaça a especificidade e tiraniza. “Ao
justo não é dada nenhuma lei”; basta-lhe a devoção para que possa
se deixar levar pelas paixões, apontando os que sofrem com
injustiças à consolação e esperança religiosas “ou, pior, acusando-

127
WELLMER, op. cit., 1989, p. 26.
128
Id., op. cit., 1821, § 270.
Felipe Moralles e Moraes | 207

os de irreligiosos e condenados”.129 O fundamentalismo religioso


quer o abstrato da crença e dos sentimentos, diante dos quais
propriedade, trabalho, instituições políticas não têm a mesma
dignidade. Um fenômeno análogo ao fundamentalismo religioso
enxerga Hegel no governo sob Robespierre, que se baseava no
princípio da suspeita e penalizava as disposições mentais como
tais.130 Nesse governo, prevalecia apenas o princípio abstrato da
liberdade como presente na vontade subjetiva: a virtude. A virtude
torna-se, na modernidade, o princípio firme que separa aqueles
que têm certa disposição mental daqueles que não a têm, o que só
pode ser reconhecido e julgado por aqueles que a têm, fazendo
dominar a suspeita geral. Ela traz consigo o mesmo governo sob
terror religioso, pois é governada por uma simples disposição
mental, pelo poder sem formas jurídicas.131
Da mesma forma, Tocqueville observa com olhar crítico as
leis penais votadas pelos puritanos e que reproduziam textos
sagrados.132 Não só blasfêmia, bruxaria e adultério eram
sancionados com a morte na Nova Inglaterra. Embriaguez, beijo na
boca e cabelos longos mereciam chicotadas, multas ou
reprimendas públicas. Espanta-se que uma legislação típica de
povos semicivilizados pudesse ser transportada ao seio de uma
sociedade altamente esclarecida e amplamente aplicada. Instila-se
nele o medo de que o fervor religiosos se aproprie do político e
tente invadir o âmbito da consciência: “os legisladores, nesse corpo
de leis penais, estão sobretudo preocupados em manter a ordem
moral e os bons costumes na sociedade; assim, penetram sem
cessar no domínio da consciência, e não há quase pecados que não

129
Ibid., § 270 Anm.
130
Id., op. cit., 1837, IV, 3, 1, p. 568-9. Nas palavras de Robespierre: “...a mola do governo popular na
revolução é, ao mesmo tempo, a virtude e o terror: a virtude sem a qual o terror é funesto; o terror,
sem o qual a virtude é impotente” (Op. cit., 1793, p. 301).
131
HEGEL, op. cit., 1837, IV, 3, 3, p. 597.
132
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 2, p. 41.
208 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

venham a submeter à censura do magistrado”.133 Assombra-se ao


perceber o ressurgimento, em pleno século das luzes, do
misticismo e extremismo em seitas protestantes.134 Ao se debruçar
sobre a revolução francesa, constata, da mesma forma, que os
revolucionários haviam tomado os concidadãos à maneira como as
revoluções religiosas haviam considerado o ser humano em geral –
abstratamente, fora do contexto e do tempo, em sua busca pela
regeneração do gênero humano. Por isso, rapidamente se
converteram em soldados, apóstolos e mártires, cuja fé na própria
virtude os fazia acreditar não só poder atacar as leis estabelecidas,
mas também e ao mesmo tempo todas as crenças que lhes eram
contrárias. A revolução francesa, como as revoluções religiosas,
apelou para a salvação do indivíduo, em lugar da sociedade
política. Quando a virtude se tornou a primeira distinção entre os
homens, distinguiram-se apenas os mais perseguidores e violentos,
o que resultou em tirania.135
O que há de comum no fundamentalismo religioso e
revolucionário é que eles decorrem, segundo Hegel, de uma
concepção de liberdade deduzida da consciência subjetiva, a qual
afunda o indivíduo na “mais profunda solidão interna... onde toda
externalidade e toda limitação desapareceu”.136 A harmonia perdida
com a realidade efetiva é forçada para dentro de uma interioridade
ideal, sem mais compromisso com o exterior e o dado.137 As
crenças, sentimentos e intenções nada mais expressam do que a
consciência subjetiva sobre o bem e o mal, que faz desaparecer,
enquanto fundamento da moralidade, todo dever: “basta a mais
diminuta imaginação para... descobrir para cada ação um lado
positivo e, com isso, uma boa razão e intenção... meramente querer

133
Ibid., p. 41-2.
134
Id., op. cit., 1840, II, 13, p. 648-9; cf. KAHAN, op. cit., 2015, p. 138-9.
135
Id., op. cit., 1856, I, 3, p. 62-3.
136
HEGEL, op. cit., 1821, § 136 Zus.
137
Ibid., § 138 Anm.
Felipe Moralles e Moraes | 209

o bem e ter uma boa intenção em uma ação é isso muito antes o
mal, na medida que o bem é somente desejado nessa abstração e,
com isso, a determinação dele é reservada ao arbítrio do sujeito”.138
A conquista dos menores inventos e dos mais simples princípios
políticos custaram o trabalho, quando não a vida, de milhares de
pessoas. Tudo isso esvanece na subjetividade, que se arroga a
tarefa de fundamentar séculos de operação da razão.139 É o que
Hegel denomina a doença da modernidade.140 Uma doença que faz
surgir, continua ele, “a saudade de uma objetividade, na qual o
homem se rebaixa a servo e à total dependência, para escapar da
tortura do vazio e da negatividade”. Os sujeitos modernos se
convertem a doutrinas autoritárias, porque acham sua
interioridade sem conteúdo e precisam agarrar algo firme – uma
raça, uma igreja, uma autoridade.141
Um diagnóstico semelhante oferece Tocqueville, associando
a subjetivação da ideia de liberdade às características da dominação
moderna. Para ele também não só a religião, mas toda forma de
pensar nas democracias de massa adquire um impulso ao
fundamentalismo.142 Esse fenômeno é explicado como resultado
das paixões por uniformidade, bem-estar e ordem. A paixão por
uniformidade favorece o método de procurar por verdades simples
e uniformes: “escapar ao espírito de sistema, ao jugo dos hábitos,
às máximas de família, às opiniões de classe e, até certo ponto, aos
preconceitos da nação... procurar sozinho e em si mesmo a razão
das coisas...” Ela dissolve as mediações do pensar, como as
mediações com o pensar dos predecessores: “cada um perde ali
facilmente o rastro das ideias de seus ancestrais, ou com elas não se
preocupa... cada um se fecha estreitamente em si mesmo e pretende
138
Ibid., § 140 Anm.
139
Ibid., § 138 Zus.
140
Ibid., § 138 Not.
141
Ibid., § 141 Zus.
142
MITCHELL, Joshua. Tocqueville on democratic religious experience. In: WELCH, Cheryl B. (Ed.).
The cambridge companion to Tocqueville. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 282.
210 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

dali julgar o mundo”.143 A paixão por bem-estar exige, pelo


esgotamento na corrida por bens materiais e, logo, pela falta de
tempo para complexidades e nuances teóricas, uma compensação
intelectual por meio de inferências simples e imediatas, do tipo que
uma crença dogmática ou uma interpretação literal das escrituras
oferece.144 Por sua vez, a paixão pela ordem compensa a falta de
doutrinas estáveis nos séculos de dúvida, nas quais todas são
contestadas, com apego a autoridades materiais. É que a tarefa de
tudo justificar fatiga. As pessoas defendem mal suas opiniões, não
se convencem e como que perdem a esperança de conseguir
resolver os desafios que os outros lhes colocam. Mesmo que
continuem céticas, preferem agarrar a opinião simples e estável de
uma autoridade. Assim, compensam sua anarquia intelectual com
apego a “simulacros de tradição” e “escombros de autoridade”,
conclui: “como tudo se remove no mundo das inteligências, eles
querem pelo menos que tudo seja firme e estável na ordem material
e, não podendo mais retomar suas antigas crenças, entregam-se a
um senhor”.145 Em conjunto, essas paixões favorecem crenças
uniformes, superficiais e autoritárias; elas inclinam a razão a
esvaziar distinções e particularidades; debilitam o exame crítico; e
preparam os cidadãos à servidão. Por serem tipicamente
modernas, detecta Tocqueville que o impulso ao fundamentalismo
não era efêmero ou isolado, mas se perpetuava e expandia: “nós o
encontramos no mundo nascente; ele está ainda sob nossos
olhos”.146

143
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, I, 1, p. 513-4 e III, 21, p. 777-8.
144
Ibid., I, 5, p. 531 e III, 21, p. 778.
145
Ibid., I, 5, p. 532 e III, 21, p. 778-9, cf. id., op. cit., 1835, II, 4, p. 211; id., op. cit., 1850/51, I, 5, p.
763. Não parece coincidência que, em um de seus famosos prognósticos, Tocqueville associe a paixão
dos alemães por ideais abstratos, sem ocupação com suas consequências práticas, com uma
tendência à agitação pública por teorias racistas (TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre à Arthur de
Gobineau, 30 juillet 1856. Revue des Deux Mondes, 5e période, tome 40, 1907, p. 527).
146
Id., op. cit., 1856, II, 2, p. 185.
Felipe Moralles e Moraes | 211

O que ambos filósofos oitocentistas revelam é que


instituições políticas fundadas em concepções subjetivas de
liberdade – baseadas na mera interioridade, crenças ou
convencimentos individuais –, tendem ao autoritarismo e à
frustração da ideia de liberdade. Eles criticam o caráter
fundamentalista do pensamento moderno: sua fuga da realidade
social efetiva e seu anseio por uma autoridade capaz de finalmente
construir, em linguagem bíblica, novum hominem. Tal sua
contradição: depois de se desvincularem da ampla sociedade
política, anseiam pelo advento de uma ordem material que
finalmente ofereça o que a subjetividade se vê incapaz. A
inabilidade para definir projetos institucionais factíveis arrasta a
tentação de uma solução política abrupta e violenta. Não resta ao
sujeito moderno senão a alternativa de permanecer fiel a um ideal
irrealista de liberdade, ou aceitar uma realidade cínica e antiliberal.
A primeira é a conclusão do revolucionário; a última, a do fascista.
“É claro que na raiz do dilema está o próprio significado da
liberdade”, arremata Karl Polanyi.147
Desse diagnóstico de época depreende Hegel que, assim
como a política não deve mais se basear na virtude, à maneira das
repúblicas antigas, a religião deve permanecer uma disposição
mental: a fé. A religião não pode se voltar contra a efetividade. Eis
a separação defendida entre Estado e Igreja, entre autoridade e
crença. Ao Estado cabe a autoridade sobre família, sociedade civil e
instituições políticas; cabe o impulso e a proteção aos fins
religiosos; cabe mesmo exigir um vínculo com certa congregação
religiosa – mas a qualquer uma, “porque no conteúdo, na medida
que ele se relaciona com o interno da representação, o Estado não
pode se intrometer”. E advoga pela tolerância para com quacres,
anabatistas e judeus.148 Na organização de um Estado segundo a
liberdade, as igrejas não se imiscuem nos assuntos políticos e

147
POLANYI, op. cit., 1944, p. 298.
148
HEGEL, op. cit., 1821, § 270 Anm.
212 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

externos às crenças; e só assim a religião pode se conservar como


alma e coração da liberdade. Na medida em que o Estado promove
a liberdade das diferentes religiões, dá-lhes assistência e proteção,
ainda que eles sejam “distintos conforme a doutrina”, podem
continuar “na raiz a mesma coisa”, e as leis terem “sua garantia
suprema na religião”.149
A mesma ideia encontra-se em Tocqueville, ao tensionar a
laicidade do âmbito político para garantir um vínculo entre religião
e liberdade. Também para ele, o espírito de religião não se vincula
automaticamente ao espírito de liberdade: esse vínculo depende de
uma separação rígida entre Igreja e Estado. A separação deve ser
completa para que a religião conserve sua pretensão universal, sem
ameaçar a liberdade. A religião precisa ser compreendida, pois, não
como um conjunto de dogmas que regulam a sociedade política,
mas como um sentimento íntimo e de caráter potencialmente
universal: a fé. Padres e pastores, continua Tocqueville, devem ser
proibidos de ocupar cargos públicos ou buscarem representação no
legislativo. As diferentes seitas devem evitar propor leis civis e
criminais, decisões judiciais ou teorias científicas, para falar da
relação direta dos indivíduos com o suprassensível. É que a religião
só pode se expandir e adquirir poder numa sociedade complexa,
sem o risco de se tornar tirânica e desacreditada em todas as
matérias, na medida em que se dissocia dos aspectos sensíveis e
passageiros desse mundo. Do contrário, quando se une a um
governo ou partido, suas máximas se tornam aplicáveis somente a
uma parte da população; torna-se frágil, efêmera e sujeita a
inúmeras hostilidades, como são os mandatos democráticos.150
Esse foi o erro do cristianismo francês: querer unir a fé com
opiniões partidárias; os representantes de Deus, com os amigos do
poder. Para que essas potências da terra fossem derrotadas, a

149
Id., op. cit., 1837, IV, 3, 3, p. 596.
150
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 9, p. 341-3; id., op. cit., 1840, I, 5, p. 533-4 e II, 12, p. 646-7.
Felipe Moralles e Moraes | 213

religião precisou ser derrotada, era um espírito vivo “que quiseram


amarrar a mortos”.151
De um lado, a obra tocquevilleana responde a Rousseau e
aos ataques iluministas à religião. A oposição entre democracia e
aristocracia não deveria reproduzir aquela entre incredulidade e
religião. No Ancien Regime apronfunda a investigação pelas razões
históricas e sociais que tornaram a religião tão odiosa em
França.152 De outro lado, boa parte do Démocratie é destinado a
demonstrar que, ao contrário do que supunham Guizot e outros
conservadores franceses, a democracia não ameaça as esferas da
família, religião ou Estado.153 Ela modificava essas relações no
sentido de as fortificar, porque as transforma em esferas sociais de
liberdade. A família passa a ser baseada no amor e ajuda mútua,
em vez de na autoridade e tradição; a fé torna-se mais fervorosa; e
as leis, mais respeitadas.154 Tudo que faz parte do ser humano pode
assumir diferentes modos de ser: a religião deveria abandonar os
antigos modos aristocráticos para se tornar democrática.155
Essa dupla oposição levou vários intérpretes a sustentar que
a religião cristã estaria completando a doutrina dos interesses bem
compreendidos e fundando a democracia liberal.156 Melhor do que
ninguém sabiam Hegel e Tocqueville que nem a religião cristã,
nem qualquer outra, por suas forças próprias, poderia fundar a
liberdade. Para os lembrar disso, o Papa Gregório XVI promulgava
em 1832 a encíclica Mirari Vos contra a liberdade de opinião e

151
Ibid., p. 348; id., op. cit., 1856, III, 3, p. 180.
152
ANTOINE, in L’esprit, p. 306-7; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, p. 341-8; id., op. cit., 1856, III,
2, p. 179.
153
SCHLEIFER, in The companion, p. 135.
154
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 2, p. 47-8 e II, 6, p. 276; id., op. cit., 1840, III, 8, p. 708-9.
155
Ibid., II, 9, p. 332.
156
Entre outros: ZETTERBAUM, op. cit., 1963, p. 697; BRIEY, Laurent de. Démocratie, religion et
pluralisme: de Tocqueville à Gauchet et retour. Revue Philosophique de Louvain, Louvain, 4ème
série, t. 104, n. 4, p. 744 e 754-5, 2006; FRANCO, op. cit., 2012, p. 77-81 e 84-5; KAHAN, op. cit.,
2015, p. 29, 72, 75 e 79-80 ; criticamente GAUCHET, in Lecturas, p. 95; GANNET JR., op. cit., 2003,
p. 8.
214 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

expressão e a favor da união entre Igreja e Estado.157 A religião é


mais uma esfera social na qual os anglo-americanos “aplicam a
doutrina do interesse bem entendido”, diz um título do
Démocratie.158 Embora não faltem passagens na obra abordando a
religião como uma questão de verdade natural ou revelada, a partir
de suas experiências pessoais e direcionadas a um público francês
majoritariamente católico, ela somente adquire seu sentido político
como uma questão de liberdade: “a religião, que entre os
americanos jamais se mistura diretamente com o governo da
sociedade, deve ser considerada como a primeira de suas
instituições políticas; pois, se ela não lhes dá o gosto da liberdade,
facilita-lhes singularmente o uso”.159 Ela é observada não da
perspectiva da verdade, mas de uma esfera social de liberdade: “se
serve muito ao homem como indivíduo que sua religião seja
verdadeira, não é assim para a sociedade. A sociedade não tem
nada a temer nem a esperar de outra vida; e o que mais lhe importa
não é tanto que todos cidadãos professem a religião verdadeira,
mas que eles professem uma religião”.160
As religiões permitem a realização recíproca dos indivíduos e
alimentam o espírito de liberdade na medida em que obstaculizam
as tendências individualistas e tirânicas de uma sociedade
massificada. Isso se dá de quatro formas, segundo Tocqueville: (i)
incentivando os indivíduos a ultrapassarem os interesses materiais
e mesquinhos; (ii) unindo os indivíduos para ação comum ao lhes
oferecer convicções éticas compartilhadas; (iii) impondo alguns

157
Cf. KAHAN, op. cit., 2015, p. 151.
158
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 9, p. 639
159
Id., op. cit., 1835, II, 9, p. 338; cf. id., op. cit., 1840, I, 5, p. 533; KELLY, op. cit., 1992, p. 83;
VILLA, in The companion, p. 238.
160
Ibid., p. 336.
Felipe Moralles e Moraes | 215

deveres gerais para com a humanidade e (iv) colocando limites ao


despotismo da maioria.161
(i) A religião contribui ao esclarecimento dos interesses pela
confiança em uma contraprestação divina, incluindo recompensas
em uma forma de vida futura: “se a doutrina do interesse bem
compreendido só tivesse em vista este mundo, estaria longe de
bastar, pois há grande número de sacrifícios que só no outro
podem achar a sua recompensa”.162 Ao fixar um objetivo na vida
após a morte, a religião ensina a reprimir desejos passageiros e
valorizar desejos de longo prazo, inculcando o hábito de agir com
os olhos no futuro.163 Isso pode ter, entretanto, efeitos negativos
para o princípio igualitário, se a infelicidade das pessoas é
naturalizada e dissociada desse mundo:

Nas nações onde a aristocracia domina a sociedade e a mantém


imóvel, o povo acaba por se habituar à pobreza, como os ricos à
opulência... a imaginação do pobre é desviada em direção ao
outro mundo; as misérias da vida real o constrangem; mas
aquela lhes escapa e vai procurar sua satisfação em outro lugar.164

A religião não poderia servir à liberdade prometendo


grandezas futuras, mas sim ensinando os indivíduos a fazer
pequenos sacrifícios em nome de um bem maior. Nesse sentido,
ela esclarece os interesses.
(ii) A política é uma forma de convivência: um exercício
conjunto do poder. Por isso, a religião reserva-se um lugar
importante nas sociedades democráticas, “pois sem ideias comuns,
não há ação comum, e sem ação comum existem homens, mas não

161
Cf. MIRANDA, Marcelo Sanches. A importância da religião para a democracia: um estudo a
partir da obra A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville. Dissertação (Mestrado em
Filosofia). UFSC, Florianópolis, 2016, p. 73-83.
162
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 9, p. 639.
163
Ibid., II, 17, p. 662-5.
164
Ibid., II, 18, p. 642.
216 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

um corpo social”.165 O noroeste da França, região de nascença de


Tocqueville, tinha na religião católica o coração da comunicação
pública. “Para a maioria das pessoas que viviam em fazendas
dispersas e aldeias – descreve um historiador – a missa de
domingo era a ocasião quando, vindo para o burgo, a comunidade
sentia sua identidade paroquial, tomava decisões e ouvia novidades
transmitidas pelo padre”.166 A religião contribui para a democracia,
nesse aspecto, por sua capacidade de formar um espaço de
vinculações, compartilhamento de vivências e de agregação de
interesses.167
(iii) Embora os estadunidenses tivessem um número
incontável de seitas, “todos concordam com os deveres dos homens
um perante o outro”.168 Elas dizem a todo momento que uma
pessoa deve preferir os outros a si mesmo, que deve fazer o bem
mesmo para pessoas estranhas, etc.169 Assim, o florescimento
religioso nas democracias não somente reúne solidariamente
indivíduos que compartilham certo número de verdades
dogmáticas, mas também fomenta algumas regras morais capazes
de universalização.
(iv) Por dogma Tocqueville denomina qualquer opinião de
senso comum que as pessoas “recebem por confiança e sem
discussão”.170 Há três grandes fontes de crenças dogmáticas nas
democracias de massa: a maioria, as mídias de massa e a
religião.171 Essas fontes servem de contrapeso uma para outra.
Quanto maior a liberdade política e, com isso, o poder da maioria
da população de fixar alguns dogmas, maior o contrapeso

165
Ibid., I, 2, p. 519.
166
MCPHEE, op. cit., 2002, p. 111.
167
COHN, in A filosofia, p. 259.
168
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 9, p. 336.
169
Id., op. cit., 1840, II, 9, p. 639-40.
170
Ibid., I, 2, p. 518.
171
Ibid., p. 521; id., op. cit., 1835, II, 3, p. 210-1.
Felipe Moralles e Moraes | 217

necessário da liberdade de imprensa e religiosa: “ao mesmo tempo


em que a lei permite ao povo americano tudo fazer, a religião os
previne de tudo conceber e os proíbe de tudo ousar”. A liberdade
religiosa e as crenças éticas dogmáticas (mesmo as “muito falsas e
muito absurdas”, escreve Tocqueville) são a contraparte da
liberdade política e das crenças dogmáticas que podem emergir
pela opinião pública e pelo voto da maioria.172
Do conjunto dessas reflexões, afastam-se as pegadas
platônicas, as quais, pela linguagem empregada por Tocqueville,
poderiam sugerir uma sociedade democrática baseada em crenças
religiosas cristãs. Ele dissocia conceitualmente a esfera interior dos
costumes (moeurs) da esfera exterior das convenções ou maneiras
sociais (manières). Por costumes, entende “o conjunto das
disposições intelectuais e morais que os homens trazem consigo em
estado social”.173 Por maneiras, “a forma exterior das ações
humanas”.174 Nisso segue a diferenciação de Platão entre maneiras
(por exemplo, do silêncio que os mais novos devem perante os
mais velhos, do corte de cabelo, do traje, da compostura) e caráter,
o qual deveria espelhar o da cidade (como a irascibilidade dos
trácios, o amor às riquezas dos fenícios e egípcios, a incerteza e
incoerência dos atenienses).175 Para Platão, os costumes
sobrepõem-se à constituição da urbe; aos processos e acusações; ao
mercado, impostos, portos e contratos. As formas de governo estão
baseadas no caráter dos cidadãos, no qual tem lugar inaugural e
derradeiro a religião. As leis da república platônica não tratam de
convenções sociais, regras civis, penais ou comerciais, mas dos
costumes mais arraigados, como a religião.176 Ao contrário do que
parece a alguns intérpretes, Tocqueville não está retornando à

172
Ibid., I, V, p. 532; id., op. cit., 1835, II, 3, p. 338-40.
173
Id., op. cit., 1835, II, 9, p. 354 note.
174
Id., op. cit., 1840, III, 13, p. 731.
175
PLATÃO, op. cit., 424e-425b, 435e e 561b-e.
176
Ibid., 427a-c.
218 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

visão estanque de uma cultura nacional e de um princípio religioso


fundacional, apenas destacando esferas sociais de liberdade com
normatividade própria em uma sociedade complexa. A religião só
pode florescer na modernidade se abandona esse posto da
república platônica e deixa de querer submeter as esferas política,
jurídica e econômica.
As religiões bem compreendidas são aquelas que se afastam
ao máximo da pretensão de influenciar nas estruturas de governo,
para poder adquirir maior influência no princípio e objeto de
governo, por meio de ideias e sentimentos. Ao se concentrarem no
círculo do imaterial, podem penetrar profundamente no mundo
político, sem tolher reflexão, inteligência e mudanças sociais.
Quanto menos falam do governo e menos se vinculam ao poder
estatal, mais podem participar da esfera pública sem ameaçar as
demais crenças, associações e comunidades.177 É isso que permitia
aos puritanos, dos quais se esperava uma obediência estrita e
passiva às regras de uma vida religiosa, preservar uma vida
política extremamente agitada, contestada e incerta, sem apego a
dogmas e autoridades. Le but de la vie religiosa e dogmática deve
ser distinto da manière de vivre democrática e reflexiva. Somente
se bem compreendida, a religião seria capaz de prescrever um fim
ético sem o impor como uma maneira de viver. Somente assim, a
religião funcionaria como salvaguarda dos costumes de liberdade
de um povo, fonte divina dos direitos conquistados e garantia das
leis e de sua duração.178 Para Tocqueville, a manutenção do vínculo
entre o espírito de religião e o espírito de liberdade era tão

177
OFFE, op. cit., 2004, p. 36; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 9, p. 333-5.
178
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, p. I, 2, p. 47-8. A distinção entre objetivo de vida e maneira de viver
aparece em outro contexto, quando Tocqueville diferencia a relação das sociedades aristocráticas e
democráticas com o bem-estar material. Naquelas se tratava de uma maneira de viver desfrutada
pelos nobres sem esforço ou receio, a qual podiam orgulhosamente desprezar (e com o qual os
pobres mal podiam sonhar); nessas se tornou um objetivo de vida generalizado, mesmo que não o
único, ao qual todos ambicionam, seja pela possibilidade de o obter, seja pelo medo de o perder. O
objetivo de vida é um dos fins últimos dos indivíduos; a maneira de viver, um estado social (Op. cit.,
1840, II, 10, p. 641-3).
Felipe Moralles e Moraes | 219

importante, em suma, que ele “preferiria acorrentar os padres na


sacristia a deixá-los sair de lá”.179
Sem a separação rígida das estruturas de governo,
dificilmente a revitalização religiosa não resultaria, em vez de em
costumes de liberdade, em enaltecimento de pensamentos
fanáticos. “A noção de que o dever de um homem é que o outro seja
religioso foi a fundação – continua Mill – de todas as perseguições
religiosas perpetradas no mundo e, se aceita, as justificaria
plenamente... É uma crença de que Deus não só abomina a ação do
descrente, mas não nos eximirá de culpa se o deixarmos em paz,
sem molestá-lo”. Em especial, onde existe um forte histórico de
intolerância em partes da população, “basta quase nada para as
provocar a perseguir ativamente aquelas que elas nunca deixaram
de considerar como objetos apropriados de perseguição”.180
Uma religião nada esclarece, enfim, como seus padrões de
bem ou justiça deveriam valer politicamente para pessoas que não
professam religião alguma, ou pertencem a comunidades religiosas
diferentes.181 A luta pela realização dos ideais democráticos não
poderia ser uma luta por objetivos de vida pessoais, como ocorre
nas igrejas e outras comunidades éticas fechadas, mas sim uma
luta política e social, pois “sua transferência ao santuário íntimo da
alma, da crença ou da moral, significa a regressão a um estágio há
muito superado”.182 Isso não quer dizer que a teoria crítica possa
encarar a religião como um resquício da minoridade humana ou
ignorar o papel social e político que ela continua desempenhando.
Nas democracias modernas, a religião mantém influência e
importância fundamentais, embora precise se submeter a

179
Id., op. cit., 1840, II, 15, p. 660.
180
MILL, op. cit., 1859, p. 240 e 289.
181
FORST, op. cit., 1994, p. 324.
182
MARCUSE, op. cit., 1941, p. 202.
220 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

restrições estruturais e filtros procedimentais, nos quais são


admitidas exclusivamente razões seculares.183

3.2 Classes sociais

Uma das esferas de eticidade da sociedade civil e uma das


raízes éticas do Estado é constituída, segundo Hegel, pelas
corporações.184 Trata-se da forma institucional que ele concebe aos
estamentos ou classes sociais (Stände) – e que associa às
comunidades religiosas e comunas municipais.185 As diferenças de
participação no patrimônio nacional dão origem às classes
campesina, comerciante e política.186 O pertencimento a essas
classes deve-se dar, porém, na sociedade moderna, segundo o
arbítrio de cada um, como uma das manifestações do momento da
especificidade subjetiva. Uma determinação pelo nascimento ou
outra circunstância aleatória abrigaria um potencial degenerativo
da ordem social.187 Assim, a especificidade do sujeito efetiva-se pela
limitação voluntária a um dos estamentos ou classes, o momento
ético da sociedade civil, no qual é reconhecido pelos demais.188 Por
meio da corporação, o indivíduo deixa de estar isolado e reduzido à
indústria egoísta, onde é reconhecido somente pela externalização
de seu sucesso, para ser reconhecido como pertencente a um todo
integrante da sociedade geral e como tendo fins voltados a esse
todo – “ele tem assim, em seu estamento, a sua honra”.189

183
HABERMAS, Jürgen. Religion in der Öffentlichkeit. Kognitive Voraussetzungen für den
„öffentlichen Vernunftgebrauch“ religiöser und säkularer Bürger. In: ___________. Zwischen
Naturalismus und Religion: philosophische Aufsätze. 2. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2013,
p. 136-7.
184
HEGEL, op. cit., 1821, §§ 249 e 255.
185
Ibid., §§ 251, 270 Anm., 288 e 290 Zus.
186
Ibid., § 201.
187
Ibid., § 206.
188
Ibid., § 207.
189
Ibid., § 253.
Felipe Moralles e Moraes | 221

Para Hegel, a intermediação dos conflitos da sociedade civil


com o Estado deve ser efetivada pela polícia administrativa e pelas
corporações – as “ramificações da sociedade civil em direção ao
Estado”.190 A primeira assegura a segurança da subsistência das
famílias e indivíduos não garantida pela intermediação do
trabalho.191 As segundas fazem com que a ajuda estatal que a
pobreza recepciona perca sua contingência e injusta humilhação e
com que a riqueza perca sua arrogância e injusta inveja, por meio
de direitos e deveres estamentais.192 A eticidade imanente da
sociedade civil unifica, por meio da polícia administrativa, “o bem-
estar específico como um direito e algo efetivo”; e garante, por meio
da corporação, “à pessoa ética uma atividade universal fora de seus
fins privados”.193 Essa confere um “negócio e atividade dirigido à
universalidade”.194
Contudo, complementa Hegel que as corporações devem
permanecer sempre “sob a fiscalização do poder público”, a quem
compete, por exemplo, chancelar as comunidades religiosas.195 A
administração dos assuntos corporativos por representantes
próprios seria inábil e insuficiente do ponto de vista universal,
motivo pelo qual deve competir à burocracia estatal.196 Diverte-se
Marx: o que era a tentativa da sociedade civil de se tornar Estado,
por meio das corporações, torna-se uma burocracia estatal que se
faz sociedade civil. A burocracia acaba valendo como a finalidade
última do Estado.197

190
Ibid., § 256.
191
Ibid., § 245.
192
Ibid., § 253 Anm.
193
Ibid., § 255.
194
Ibid., § 264.
195
Ibid., §§ 252 e 270 Anm.
196
Ibid., §§ 289 Anm. e 301 Anm.
197
MARX, op. cit., 1843, p. 248-9.
222 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Além disso, embora o pertencimento às classes sociais não


pudesse ser determinado por circunstâncias aleatórias, desmente-o
sua concepção de propriedade privada. Segundo Hegel, a
instituição da propriedade encontra fundamento racional não na
satisfação de fins, carências, talentos, mas na garantia externa da
especificidade de cada sujeito. A propriedade confere “uma esfera
externa de sua liberdade”: um conjunto de objetos por meio dos
quais ele poderia tomar distância de todas as determinações de
terceiros.198 A personalidade abstrata garantida pela propriedade é
considerada, assim, um chão ético para a desigualdade. As
exigências de igualdade da divisão do patrimônio da sociedade
ignorariam as diferenças naturais internas dos indivíduos, assim
como das contingências naturais externas a que estão
submetidos.199 A igualdade seria exclusivamente da personalidade,
isto é, do fundamento abstrato para a propriedade.200
Por falsear a normatividade interna à sociedade civil em uma
forma desigual e burocrática, merece Hegel a acusação de estar
aquém do pensamento crítico. A propriedade privada e as
corporações servem antes como tentativas de ressuscitar os
estamentos medievais do que como um diagnóstico da sociedade
moderna da perspectiva da liberdade. O impulso de crítica que
colocou em movimento sua dialética é por ela consumido.201
Autênticos diagnósticos sobre as classes sociais da
perspectiva emancipatória vão oferecer Marx e Tocqueville. Eles
têm visões bem distintas sobre os conflitos sociais inerentes à
sociedade moderna, o que lhes determinava ideais de igualdade
diferentes, como analiso a seguir (3.2.1), para depois avaliar quão
promissor é o diagnóstico tocquevilleano para analisar as classes
sociais no Brasil (3.2.2).

198
HEGEL, op. cit., 1821, § 41.
199
Ibid., § 49 Anm.
200
Ibid., § 49 Zus.
201
HABERMAS, op. cit., 1988, p. 49.
Felipe Moralles e Moraes | 223

3.2.1 Perspectivas emancipatórias em França e nos EUA

O diagnóstico de Marx sobre as classes sociais foi marcado


pelas mesmas fábricas de Manchester visitadas por Tocqueville:
“no lugar da manufatura entrou a grande indústria moderna, no
lugar das classes médias industriais entraram os industriais
milionários, os chefes de exércitos industriais inteiros, os burgueses
modernos”.202 Naquele sistema, parecia realmente que “os que
trabalham não lucram nada, e os que lucram não trabalham”.203
Para Marx, as classes médias – dos pequenos industriais,
comerciantes e camponeses – estavam em declínio. Pela
concentração de capital e concorrência, eram precipitadas à
condição de empregados ou prepostos da burguesia, tendendo na
modernidade à desaparição enquanto classe. A classe média
combatia a burguesia em um sentido conservador, porque queria
apenas garantir sua subsistência, ou mesmo reacionário, para
“tentar virar a roda da história para trás”.204 A perspectiva da
classe proletária revolucionária era a única realista e
emancipatória, porque mirava à extinção da propriedade dos
meios de produção e, com ela, da divisão de classes.205
Partindo de um diagnóstico diferente sobre as classes sociais,
em particular, sobre as classes médias, a perspectiva emancipatória
de Tocqueville também será diferente. A existência de autênticas
classes depende, para ele, assim como para o jovem Marx, da
consciência de sentimentos, objetivos ou tradições
compartilhadas.206 Todavia, entende que, nas democracias de
massa, as classes sociais até podem chegar a se extremar e formar

202
MARX/ENGELS, op. cit., 1848, p. 463.
203
Ibid., p. 477.
204
Ibid., p. 472, 484 e 487.
205
Ibid., p. 482.
206
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 20, p. 674 ; cf. MARX, op. cit., 1852, p. 198.
224 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

novas aristocracias, mas tendem antes a se tornarem movediças,


contingentes, pouco articuladas e, logo, incapazes de orientar os
conflitos políticos: “não há mais, por assim dizer, classes, e as que
existem ainda são compostas de elementos tão movediços que o
corpo jamais saberia exercer ali um verdadeiro poder sobre seus
membros”.207 Além da mobilidade econômica, o indivíduo é
desatado dos antigos constrangimentos jurídicos (ordens,
corporações, etc.), religiosos, geográficos e patriarcais. A
mobilidade afeta tanto as condições econômicas, quanto as
condições de status.208 Em meio a um estado social democrático,
apenas resquícios aristocráticos mantêm um senso de distinção
que garante a colaboração, benevolência ou ação comum – como os
juristas, por exemplo, têm o interesse de permanecer os únicos
intérpretes das leis; ou os industriais, o interesse de monopolizar o
poder econômico.209 No mais, as classes tendem a perder toda
lembrança estamental. Para Tocqueville, a igualdade dinâmica de
mistura, ascensão e queda entre classes é a mais importante
característica e o maior potencial moderno, em lugar da igualdade
estática de classes que se extremam e podem desaparecer.210
Quando Marx diagnostica que, nos Estados Unidos, embora
“as classes já existam, elas ainda não se fixaram, mas
continuamente mudam e trocam seus elementos em fluxo
constante”211 está repetindo que havia um obstáculo à consciência
de classe pela rápida alteração no pertencimento às diferentes
classes – o que possivelmente retirou do Démocratie, que se sabe
ter lido.212 Ele atribui esse forte dinamismo à circunstância de
aquele país dispor de um continente para se apropriar, o que fazia

207
Ibid., I, 1, p. 514.
208
Ibid., II, 2, p. 613-4; cf. AMIEL, op. cit., 2002, p. 23.
209
Ibid., II, 20, p. 674 e III, 18, p. 747; id., op. cit., 1836, I, p. 16.
210
ELSTER, op. cit., 2009, p. 114-5 e 127.
211
MARX, op. cit., 1852, p. 122-3.
212
ELSTER, op. cit., 2009, p. 126.
Felipe Moralles e Moraes | 225

desaparecer as grandes tensões, enquanto que legitimistas,


orleanistas e republicanos franceses uniam-se no partido de l'ordre
contra o proletariado revolucionário.213 Ambas, porém, eram
situações circunstanciais. Às vésperas da revolução proletária,
Tocqueville concorda que a luta política não era mais em França
entre classe média e aristocracia, mas entre proprietários e não
proprietários.214 O impasse entre os modelos críticos está nas
distintas perspectivas abertas pelos processos democráticos francês
e estadunidense. Inserido na tradição francesa revolucionária,
Marx acredita que a conquista da democracia dependia da
revolução do antigo mundo, representado pela propriedade,
família, religião.215 Opondo-se a essa tradição, Tocqueville rebate
que não se poderia confundir a igualdade com a revolução que a
havia feito irromper no estado social, ideias e leis.216 Era
certamente possível fazer um diagnóstico sobre o estado
revolucionário, mas não se poderia tomar isso como base de um
diagnóstico das democracias em estado pacífico e durável: “...se
uma grande revolução pode fundar a liberdade em um país, várias
revoluções que se sucedem tornam ali por muito tempo qualquer
liberdade regular impossível”.217 A teoria crítica de Tocqueville é
uma teoria de um estado democrático estável, não de um estado
democrático revolucionário.
Na compreensão do liberal francês, os governos
democráticos modernos não seriam capazes de eliminar a distinção
entre as classes ricas e pobres, mais ou menos educadas,
proprietárias ou não dos meios de produção. A igualdade pode
existir na modernidade, ainda assim, porque não são os mesmos

213
MARX, op. cit., 1852, p. 123 e 140; cf. TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 7, p. 284-5; HEGEL, op.
cit., 1837, Einleitung, III, p. 145-6.
214
TOCQUEVILLE, op. cit., 1847, p. 1124.
215
MARX, op. cit., 1852, p. 122-3.
216
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 5, p. 833.
217
Id., op. cit., 1850/51, II, 1, p. 779 ; cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport sur « La Démocratie en
Suisse ». In: ___________. Œuvres, I, André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 1991, p. 637.
226 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

indivíduos, nem as mesmas famílias a compor essas classes, isto é,


porque não há um espírito aristocrático e de exclusão. As classes de
ricos e pobres não são inflexíveis, nem duráveis como nas
sociedades aristocráticas. Elas não formam um povo à parte de
outro, uma hierarquia econômica ou política permanente. Em uma
palavra: não há diferenças hereditárias.218
Na medida em que são abolidos os antigos privilégios,
borradas as classes e divididos os patrimônios, o desejo de bem-
estar material vai se apresentando cada vez mais à imaginação do
pobre; o gosto e o desejo de o ampliar à imaginação do que possui
uma fortuna medíocre; o medo de o perder na imaginação do
rico.219 Ninguém adquire prazeres materiais sem esforço, nem
deixa de os satisfazer sem ansiedade; todos entram em uma vasta
arena competitiva e passam a acumular e dissipar riquezas em um
piscar de olhos. Uma sociedade com igualdade de condições não
significa que as diferenças econômicas, sociais e intelectuais sejam
eliminadas, mas que essas diferenças são circunstanciais e
passíveis de alteração. Mesmo quando os indivíduos mantêm
relações desiguais – como a relação de emprego – todos podem
nutrir a esperança ou o receio de modificar sua situação
particular.220
Por isso, Tocqueville destaca a instituição estadunidense que
havia permitido a divisão, partilha e disseminação dos bens: as leis
que regulavam as sucessões. “Em virtude da lei de sucessões –
escreve –, a morte de cada proprietário traz uma revolução à
propriedade; os bens não apenas mudam de donos, mas, por assim
dizer, mudam de natureza; fracionam-se continuadamente, em
porções cada vez menores”. Mais do que o efeito imediato da
igualdade das partilhas (que poderia ficar na mão de poucos filhos,
não mais pobres que os pais), “são os efeitos indiretos que

218
Id., op. cit., 1840, III, 5, p. 694-6; cf. NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, p. 700g.
219
Ibid., II, 10, p. 642-3.
220
REIS, op. cit., 2013, p. 6.
Felipe Moralles e Moraes | 227

destroem rapidamente as grandes fortunas e, principalmente, os


grandes domínios”. A partilha impede a conservação íntegra da
propriedade por mais que uma ou duas gerações, rompendo a
ligação íntima entre espírito de família e propriedade, que deixa de
representar a família, como ocorria quando ela se mantinha
indivisa nas mãos do primogênito. As leis de sucessão tiram dos
proprietários o interesse sentimental, suas recordações e orgulho
na conservação de uma propriedade. Uma vez que o “espírito de
família é frequentemente fundado sobre uma ilusão do egoísmo
individual”, por meio do qual seus membros buscam se perpetuar
e imortalizar, se partilhada a propriedade, cada um tende “a se
concentrar na comodidade do presente; cuida-se de beneficiar a
geração que vai seguir e nada mais”. Ainda que os filhos de um
grande proprietário sejam em pequeno número e possam ser tão
ricos quanto o genitor, a sua riqueza é composta por outros
elementos. Assim, por efeitos diretos (partilha entre filhos) e
indiretos (desvinculação de sentimentos familiares), as leis de
sucessão favorecem a divisão e a circulação da propriedade, que
cedo ou tarde será malbaratada ou vendida por algum
descendente. A riqueza pode circular, dessa forma, com tal rapidez
que se torna raro duas gerações recolherem seus favores.221

221
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 3, p. 52-6. A respeito, contesta Hugh Brogan que as leis de
sucessão francesas seriam, já na época, mais igualitárias do que as estadunidenses, porque não
somente aboliram a primogenitura, mas também limitaram a expressão de vontade testamentária e
garantiram os mesmos direitos a todos os herdeiros (Op. cit., 2006, p. 184). De fato, ensinava
Montesquieu que se nos fosse permitido doar a quem quiséssemos, cada vontade particular
atrapalharia a disposição da lei de divisão igualitária da propriedade (Op. cit., 1748, V, 5). Ao se
conferir a todos os filhos igual parte na herança, não importa qual seja a riqueza, eles sempre serão
menos ricos que os pais e são levados a trabalhar como ele trabalhou (Ibid., V, 6). Apenas nas
monarquias seria boa a permissão de deixar a maioria dos bens para um só filho (Ibid., V, 9). A
contestação não é precisa, contudo, porque, embora a Convenção Nacional tivesse abolido o direito
de primogenitura e estabelecido a igual partilha, Napoleão modificou as leis de sucessões para
reestabelecer a autoridade paterna e a conservação do tamanho das terras. Uma porção considerável
foi deixada à livre disposição, a qual poderia ser direcionada para um só filho (MCPHEE, op. cit.,
2002, p. 200-1). De qualquer forma, Tocqueville não deixa de reconhecer que seu país começava a
sentir na primeira metade do século XIX os efeitos de uma legislação de sucessões mais democrática,
rompendo o espírito aristocrático de família e permitindo a divisão das terras (Op. cit., 1835, I, 3, p.
55; cf. id., op. cit., 1833/35, 7 septembre, p. 455). Ao tempo da revolução de 1848, o gosto da
propriedade já havia tomado a maior parte da população rural, o que a levou a se opor fortemente ao
228 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

A dinâmica de alta mobilidade social é um dos fatos


explicativos mais poderosos da sociedade democrática descrita por
Tocqueville.222 A instabilidade patrimonial acostuma os indivíduos
a ganhos e perdas súbitas e com a “imagem da chance em todas
suas formas”. Essa imagem aparece constantemente aos
indivíduos, que acabam “amando todos empreendimentos em que a
chance tem algum papel”.223 A alta mobilidade social explica a
atitude mental de se assumir e amar riscos, a qual tem largas
consequências sociais e econômicas.224 Ela transforma a honra da
coragem guerreira em uma coragem estritamente comercial e
industrial de buscar lucros. A audácia dos empreendimentos
comerciais e industriais era a primeira das razões para o rápido
avanço econômico, força e grandeza dos EUA.225 A divisão
dinâmica de classes sociais faz com que as pessoas deixem de visar
produtos excelentes, embarquem em aventuras e abandonem
projetos precipitadamente; porém, “difunde através de toda a
sociedade uma atividade sem descanso, uma superabundância de
força e energia, a qual nunca existe onde não há democracia”.226
Uma sociedade na qual prevalece a imobilidade nas classes sociais
pode até não privar as pessoas dos resultados de sua produção,
mas as arruína por prevenir que produzam: essa sociedade
respeita a riqueza adquirida, mas seca suas fontes.227
Nesses termos, contudo, a igualdade de condições pensada
por Tocqueville não significaria mais do que a chance de cada

proletariado urbano. Ele inclusive ironiza que, porque os pequenos proprietários de terra franceses
viviam endividados, se os revolucionários tivessem prometido, em lugar da abolição da propriedade
dos meios de produção, a abolição das dívidas, não teriam atraído contra si a numerosa classe dos
camponeses (Op. cit., 1850/51, II, 4, p. 798-9 e II, 5, p. 809; cf. MARX, op. cit., 1852, p. 201).
222
ELSTER, op. cit., 2009, p. 185.
223
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 17, p. 663 e II, 19, p. 669-70.
224
ELSTER, op. cit., 2009, p. 15-6.
225
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, III, 18, p. 752-3; por honra entende a “regra particular fundada sobre
um estado particular com a qual um povo ou classe distribui elogios ou reprovações” (Ibid., p. 746).
226
Id., op. cit., 1835, II, 6, p. 281.
227
Ibid., II, 5, p. 237.
Felipe Moralles e Moraes | 229

indivíduo de ser tão rico ou tão pobre quanto os demais, o que


manteria um flanco enorme para desigualdades.228 A democracia
liberal criaria, com o tempo e com a já identificada tendência à
concentração de renda, uma igualdade meramente imaginária que
encobriria tremendas desigualdades reais: “em vão a riqueza e a
pobreza, autoridade e obediência põe acidentalmente grandes
distâncias entre dois homens, a opinião pública... aproxima-as ao
nível comum e cria entre elas uma forma de igualdade imaginária,
a despeito das desigualdades reais de suas condições”.229 Isso já
transparecia junto à atividade industrial, onde “os pobres têm
poucos modos de escapar de sua condição... os elementos da classe
pobre são quase sempre fixos...”230 O que caracteriza a sociedade
democrática pode ser atribuído simplesmente ao capitalismo, como
fez Marx: “a contínua transformação da produção, o incessante
abalo de todas condições sociais, a eterna insegurança e movimento
distinguem a época burguesa de todas as demais”.231 Logo, deixa de
fazer sentido um sacrifício da ideia de independência à igualdade,
se essa fica restrita ao sentido dinâmico de mobilidade social. Não
há igualdade real entre as pessoas, apenas semelhança, como nas
sociedades antigas. A grandeza imaginária incessantemente
colocada em meio à miséria real dos pobres faz com que passem a
amar as desigualdades reais como uma loteria:

É uma espécie de desigualdade que os homens odeiam, não a


desigualdade em geral [...]. Se cada um crê poder um dia entrar
em um corpo da elite, a extensão dos direitos desse corpo será o
que o tornará caro aos que dele ainda não fazem parte. De certa
maneira, os vícios mesmo da instituição farão sua força. O que
provoca o coração humano é bem menos a certeza de um
pequeno sucesso do que a possibilidade de uma grande fortuna.

228
OFFE, op. cit., 2004, p. 19.
229
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, III, 5, p. 691.
230
Ibid., II, 20, p. 674.
231
MARX, op. cit., 1848, p. 465.
230 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Aumente a grandeza do objeto a atingir e poderás, sem medo,


reduzir as chances de o obter.232

A chance de altas fortunas e o amor às atividades arriscadas


impedem a consciência de classe e reforçam-se na estabilização das
desigualdades. A mobilidade social é plenamente compatível com
novas formas de independência aristocrática e faz a igualdade
perder todo potencial de emancipação social.
Na época, os conflitos políticos sobre a divisão de classes
orbitavam o fenômeno da ralé, ou pauperismo, que é uma forma
crassa de pobreza que emerge com a modernidade. Ela se distingue
dos fenômenos anteriores de pobreza, porque os atingidos perdem
todos seus recursos e são arrastados a uma horrível miséria,
incivilidade, quando não à morte.233 As leis de sucessão destacadas
por Tocqueville regulavam a transmissão da riqueza, não da
pobreza. O pauperismo exigia a extinção da herança da pobreza.
Nos seus artigos acadêmicos sobre o pauperismo,
Tocqueville parece subordinar as medidas de combate à pobreza a
naturalismos e moralismos típicos de um ideólogo da sociedade
burguesa: acusa que enfraqueceriam a motivação para o trabalho;
criariam uma classe ociosa e preguiçosa sob dependência das
demais; aumentariam a distância entre ricos e pobres; legalizariam
a má-conduta dos pobres, colocando-os em posição mais
humilhante que a de pedintes; aumentariam a degradação ética
das classes inferiores, como as mulheres que engravidavam e
dissipavam o dinheiro público em bares em vez de trabalhar.234 E
confessa a influência de um testemunho sobre os efeitos da lei dos
pobres inglesa colhido de um grande proprietário de terras e juiz
de paz, Lord Radnor, em suas viagens à Inglaterra.235 É apressada,

232
TOCQUEVILLE, op. cit., 1836, I, p. 17; cf. MILL, op. cit., 1840, p. 176.
233
Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. Mémoirs sur le paupérisme (1835/37). In: ___________. Œuvres, I,
André Jardin (Org.). Paris: Gallimard, 1991, p. 1162-3; HONNETH, op. cit., 2011, p. 416-7
234
Ibid., p. 1168-73; cf. id., op. cit., 1833/35, 3 septembre, p. 433.
235
Ibid., p. 1174; cf. id., op. cit., 1833/35, 1er-4 septembre, p. 437-8.
Felipe Moralles e Moraes | 231

contudo, a leitura de Lívia Franco de que estaria fazendo uma


crítica aos direitos sociais de modo geral e identificando direitos
com privilégios.236 Nos escritos sobre a realidade inglesa, nunca
deixou de denunciar o caráter formal dos direitos e sua indevida
conversão em privilégios:

Os ingleses [...] parecem ainda convencidos de que a


desigualdade extrema das fortunas é a ordem natural das coisas.
Observai que não falo aqui dos ricos, mas da classe média e
mesmo, em grande parte, dos pobres. [...] Os ingleses deixaram
aos pobres somente dois direitos: o de se submeter à mesma
legislação dos ricos e o de se igualar a eles adquirindo igual
riqueza. E esses dois direitos são mais aparentes do que reais,
porque é o rico que faz a lei e cria, em benefício próprio ou de
seus filhos, os principais meios de adquirir a riqueza.237

Em verdade, as críticas de Tocqueville não tinham como alvo


os direitos sociais, mas os moldes paternalistas e pouco
republicanos da lei dos pobres inglesa, os quais – até para um
economista insuspeito e mais bem informado como Karl Polanyi –,
eram insustentáveis na modernidade. Em sua investigação
histórica, o economista atesta que o instituto inglês gerava enorme
declínio da produtividade nos campos, generalização das
assistências públicas, pauperização e degradação moral dos
trabalhadores rurais. Ele reconhece que a lei dos pobres foi
responsável por uma “catástrofe social” que só pode perdurar
porque a população ainda era marcada pelo pensamento
tradicional, pelo vínculo à terra, sem pautar seu comportamento
por motivações monetárias:

Seria impossível explicar a degradação humana e social do


capitalismo primitivo sem os prolongados efeitos do sistema de
abonos. [...] Speenhamland culminou no resultado irônico de
arruinar eventualmente as pessoas a que ela ostensivamente se

236
FRANCO, op. cit., 2012, p. 133-8.
237
TOCQUEVILLE, op. cit., 1833/35, 8 juin et 7 septembre, p. 457 e 479.
232 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

destinava socorrer através do "direito de viver" financeiramente


implementado. [...] A complicada economia da Speenhamland
transcendia a compreensão até mesmo dos observadores mais
atentos da época. A conclusão a que se chegou, porém, não
deixava margem de dúvidas: o abono salarial só podia ser
inerentemente falho, pois prejudicava miraculosamente até
mesmo aqueles que o recebiam.238

A conclusão de Tocqueville de que seria equivocado instituir


um sistema regular e permanente de alívio aos pobres estava
contaminada pelos resultados de um instituto com feições pré-
modernas e associado à prevalência da aristocracia rural na
disputa por mão de obra com a burguesia industrial ascendente
(como explica Polanyi, por meio da vinculação administrativa dos
trabalhadores às paróquias de origem; da obrigação de
trabalharem, sob pena de serem recolhidos como indigentes; da
proibição de se associarem para favorecerem seus interesses; do
cercamento dos campos e altos impostos, que arruinavam os
pequenos camponeses e a classe média rural).239 A lei dos pobres
inglesa permitia que os proprietários rurais contassem com a
paróquia para complementar a renda dos trabalhadores até o
mínimo para sobreviverem, sem que esses pudessem deixar de
trabalhar quando seus salários eram reduzidos, o que significava
uma perda para o trabalhador diligente que buscasse aumentar sua
renda e não recorresse à caridade pública. Não havia possibilidade
de um padrão salarial acima da subsistência.240 Por isso, a lei dos
pobres inglesa podia ser corretamente chamada de “paternalismo
reacionário” reconhece Polanyi241, ou, na expressão de Marx, de
um “socialismo feudal”.242

238
POLANYI, op. cit., 1944, p. 102-4 e 122-4.
239
Ibid., p. 103, 110-1 e 117-21.
240
Ibid., p. 149-50.
241
Ibid., p. 127.
242
MARX, op. cit., 1848, p. 482-3.
Felipe Moralles e Moraes | 233

Ainda assim, não confunde Tocqueville o auxílio geral aos


pobres com medidas políticas de solidariedade à infância, velhice,
doenças e calamidades públicas, ao contrário de boa parte da
intelectualidade da época.243 Além disso, como mostra Boesche,
intervinha frequentemente no jornal Le Commerce, entre 1844 e
1845, em favor de políticas de saúde, trabalho e bem-estar, contra
políticas de laissez-faire.244
A igualdade democrática exaltada por Tocqueville não se
limita à chance de cada indivíduo de ser muito rico ou muito
pobre. Ela é atravessada pela multiplicação dos escalões
intermediários e pela diminuição do número de pessoas muito
ricas e muito pobres. A igualdade requer a impossibilidade de
emergência de um corpo de pessoas mais influentes que se isole
econômica, social ou politicamente da maior parte da população e
de outras classes. A sociedade democrática implica a (i) divisão das
grandes propriedades; (ii) igualdade de oportunidades; (iii)
atenuação das desigualdades naturais.
(i) O direito social por excelência é a divisão das grandes
propriedades rurais. Não é a pobreza que torna as pessoas
incivilizadas – argumenta Tocqueville –, é sua completa sujeição ao
acaso, pela falta de propriedade.245 A miséria aumentava na
Inglaterra na proporção em que aumentava a concentração
fundiária. Ela era mais acentuada ainda na Irlanda, onde não havia
classe média, nem pequenos proprietários, apenas arrendatários
paupérrimos; as terras nunca se dividiam; e a legislação,
semelhante à inglesa, tornava muito difíceis e onerosas as
transferências. É preciso diminuir os custos da aquisição da
propriedade, do contrário “só se compram grandes extensões de
terra, e somente se compram quando já se é muito rico”.246 É

243
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835/37, p. 1178 ; cf. POLANYI, op. cit., p. 126-7.
244
BOESCHE, op. cit., 1983, p. 193 e 198.
245
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835/37, p. 1180-3.
246
Id., op. cit., 1833/35, 8 juin et 11 juillet, p. 480 e 521-2.
234 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

preciso, muito mais, dar terra aos pobres e elaborar políticas de


permanência da população no campo para que não se restrinjam a
compor exército de reserva para latifundiários e industriais e para
que possam desempenhar uma atividade livre e decente. O meio
mais poderoso de promover de evitar o pauperismo é a divisão das
propriedades, a qual não só evita que a concentração fundiária
atire na miséria uma grande porção dos trabalhadores rurais, mas
também que sejam abandonados pela população os hábitos de
ordem, atividade e economia. Um pequeno proprietário de terras
pode até ser pobre, mas dificilmente será miserável.247 A
propriedade imobiliária confere – explica ele – ideias e hábitos
diferentes da propriedade mobiliária. Essa depende muito mais da
associação com outros e das vicissitudes econômicas do país.
Aquela tende, pelo contrário, quando se concentra, a unir gerações
e facções. Portanto, “não há nada mais favorável ao reino da
democracia que a divisão da terra em pequenas propriedades
fundiárias”. A pequena propriedade rural cria paixões adequadas à
democracia: o gosto pelo trabalho, frugalidade e sobriedade, em
suma, um “espírito de independência mesmo em meio à
pobreza”.248
Diferentemente, continua Tocqueville, a atividade industrial
depende de grande mobilização de capital e não pode ser tão
facilmente dividida, conservando uma “forma aristocrática”.249
Embora guarde resquícios fisiocratas de preponderância da
agricultura, esboça medidas para instilar nos trabalhadores
industriais urbanos espírito e hábitos semelhantes aos dos
pequenos proprietários rurais: dar um interesse direto na fábrica,
estimular a formação de associações de produtores, facilitar a
poupança pessoal.250

247
Id., op. cit., 1835/37, p. 1184.
248
Id., op. cit., 1836, I, p. 24-5.
249
Id., op. cit., 1835/37, p. 1183-4.
250
Ibid., p. 1187-94.
Felipe Moralles e Moraes | 235

No século XIX, havia um duplo movimento: a ampliação da


organização do mercado era acompanhada pela sua restrição em
relação a certos bens. Enquanto, de um lado, os mercados se
difundiam sobre o globo e a quantidade de bens envolvidos assumia
proporções inacreditáveis, de outro, uma rede de medidas e políticas
eram destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho,
terra e dinheiro.251 Esse contramovimento à expansão dos mercados,
conquanto vital para a proteção da sociedade, era incompatível com a
ideia de autorregulação da economia.252 Embora Tocqueville fosse
um defensor do processo histórico contra os monopólios
aristocráticos sobre terra, trabalho e capital, o qual denominou
“privatização do mundo”253, não deixa de apontar suas ameaças à
liberdade. A terra, o trabalho e o capital não deveriam ser submetidos
exclusivamente à barganha, troca e permuta, mas também aos
termos de uma sociedade democrática. Assim como Polanyi, faz uma
crítica à sociedade burguesa que não resulta na ausência da economia
de mercado. Essa continua a garantir a liberdade do consumidor,
indicar mudanças da demanda, influenciar a renda dos produtores,
servir como medida, embora deixe de ser tomada como a única
esfera social de regulação da economia.254
(ii) Além da divisão das grandes propriedades rurais, a
igualdade de oportunidades como conteúdo da igualdade fica
evidente quando o liberal francês aborda o sistema educacional
estadunidense: “lá, a instrução primária acha-se ao alcance de
todos; lá, a instrução superior não se acha ao alcance quase de
ninguém”. Nas democracias, com efeito, os cidadãos “encontram à
sua disposição meios iguais”.255 As revoluções democráticas nos
EUA e em França não haviam eliminado as desigualdades

251
POLANYI, op. cit., 1944, p. 98.
252
Ibid., p. 161.
253
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, III, 21, p. 494.
254
POLANYI, op. cit., 1944, p. 94 e 291-3.
255
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 3, p. 56-7.
236 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

econômicas, mas despontavam na trajetória de conferir direito a


oportunidades iguais.256
(iii) A cada avanço da igualdade no sentido de diminuir as
classes muito ricas e muito pobres, tornam-se mais intoleráveis as
desigualdades aristocráticas; a cada recuo, mais toleráveis novas
desigualdades. A teoria da transformação social de Tocqueville está
relacionada com a ideia dos princípios de governo. Os princípios
que movimentam as estruturas políticas dependem de duas
condições sociais básicas. Em primeiro lugar, a superação da
reificação; porque a capacidade dos indivíduos de conceberem
relações sociais diferentes das existentes é o que os faz desejar
mudanças. “O mal que se sofre pacientemente como inevitável
começa a parecer insuportável no momento em que se torna
concebível a ideia de dele se subtrair”.257 Enquanto não imaginou,
por exemplo, “que pudesse se igualar aos seus chefes, o povo
recebia suas benfeitorias e não discutia seus direitos... submetia-
se... como a males inevitáveis que lhe enviava a mão de Deus...
como um efeito da ordem imutável da natureza”.258 Dessa forma,
esclarece Elster, “uma mudança cognitiva (o mal não é inevitável)
dispara uma mudança motivacional (ele é intolerável)”.259 Em
segundo lugar, a ampliação dos desejos; porque a capacidade de
remover um mal social torna visível que outros também podem ser
removidos. “Cada abuso que se elimina parece melhor revelar
aquele que ainda persiste e torna seu sentimento mais doloroso”. Se
o mal se torna menor, “a sensibilidade fica mais viva”.260 Em um
país, por exemplo, onde a maioria é malvestida, mal alojada, mal

256
QUIRINO, op. cit., 2001, p. 65. Na Assembleia Nacional de 1848, inseriu-se Tocqueville na articulação
política para garantir educação pública à disposição de todos (CHABOT, Sonia. Éducation civique,
instruction publique et liberté de l’enseignement dans l’œuvre d’Alexis de Tocqueville. In: GUELLEC,
Laurence (Org.). Tocqueville et l’esprit de la démocratie. Paris: Sciences Po, 2005, p. 244).
257
TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, III, 4, p. 202.
258
Id., op. cit., 1835, introduction, p. 9.
259
ELSTER, op. cit., 2009, p. 167.
260
TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, III, 4, p. 202.
Felipe Moralles e Moraes | 237

alimentada, quem pensaria no dever de dar aos pobres roupa


limpa, alimentação saudável, alojamento cômodo? Onde a maioria
possui esses bens, ela considera uma infelicidade terrível não
desfrutar deles e começa a acreditar no dever de curar males que
não perceberia em outros tempos e lugares.261 Portanto, o
descontentamento subjetivo (e, logo, a possibilidade de revolta e de
transformação das relações sociais) tem relação inversamente
proporcional às condições objetivas de descontentamento: “o
regime que a revolução destrói é quase sempre melhor do que
aquele que o imediatamente precedeu...”262 Toda mudança social
faz surgir desejos latentes no horizonte político. Mesmo pequenas
reformas motivadas por determinado princípio podem despertar
desejos dormentes de mais reformas.
Essas condições do movimento das instituições políticas
aplicam-se às sociedades hierarquizadas, não menos do que às
democráticas. Quanto mais democrática a sociedade, mais
obcecados os cidadãos contra desigualdades, pois não querem ter
menos do que os outros; quanto mais hierarquizada, mais
obcecados em manter desigualdades, pois querem ter mais do que
os outros.263 Assim acontece que, “nos tempos da aristocracia,
mesmo aqueles que são naturalmente parecidos aspiram a criar
entre si diferenças imaginárias; nos tempos da democracia, mesmo
aqueles que naturalmente não se assemelham buscam tornar-se
semelhantes e se copiam”. Quanto mais aristocrática a sociedade,
mais os cidadãos se prendem a separações naturais, como etnia,
sexo, inteligência; quanto mais democrática, mais abstraem dessas
separações. Daí dizer que o cidadão democrático é “conduzido em
um movimento geral da humanidade” e que estende o desejo de
abolir desigualdades mesmo em relação a outros povos.264

261
Id., op. cit., 1835/37, I, p. 1164; cf. id., op. cit., 1835, I, 2, p. 45.
262
Id., op. cit., 1856, III, 4, p. 202.
263
Id., op. cit., 1840, II, 13, p. 651; cf. ELSTER, op. cit., p. 118-20.
264
Ibid., III, 26, p. 801 note.
238 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Em uma sociedade marcada não só pela forte mobilidade


social, mas também pela diminuição das classes muito ricas e muito
pobres, as pessoas tendem a não se deixar condicionar por
desigualdades naturais. Ainda que não sejam iguais em todos
aspectos, afirmam a ideia de que ninguém é superior aos outros por
direito, de modo que as desigualdades existentes não podem resultar
em menores oportunidades, nem em isolamento dos demais. Uma
sociedade democrática cria tendências de igualização em relação às
desigualdades naturais.265 A igualdade que a democracia faz emergir
é, assim, uma “identidade abstrata” – como denominou Gauchet. A
igualdade adquire verdadeiro significado, para Tocqueville, quando
instaura a possibilidade de reconhecimento moral mesmo onde lhe
falta o suporte de uma igualdade sensível. Ela transforma os limites
do assinalável por natureza, retrocedendo seu alcance, quando não
pode os suprimir.266
A instituição política esboçada por Tocqueville no sentido de
ampliar as classes médias e impedir a concentração de riquezas era
uma espécie de imposto de renda progressivo. O sistema tributário
deveria basear-se em duas regras: “excepcionar os mais pobres dos
impostos”, aí compreendida a eliminação ou redução ao máximo
de tributos sobre bens necessários; e “quando ele for elevado,
torná-lo proporcional à fortuna do contribuinte”.267 A ideia não era
sem precedentes, descrevendo Montesquieu sobre as democracias:
“basta que se estabeleça um censo que reduza ou fixe as diferenças
até certo ponto; depois disso, cabe às leis particulares equalizar,
por assim dizer, as desigualdades, pelos encargos que imponham
aos ricos, e pelos alívios que concedam aos pobres”.268 Repare-se
que essas técnicas sugeridas por Tocqueville (de divisão das

265
FRANCO, op. cit., 2012, p. 30.
266
GAUCHET, in Lecturas, p. 133 e 137.
267
TOCQUEVILLE, Alexis de. Fragments pour une politique sociale. In: BENOÎT, Jean-Louis;
KESLASSY, Eric (Org.). Textes économiques: anthologie critique. Ville de Saguenay: Classiques des
sciences sociales, 2009, p. 163.
268
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, V, 5.
Felipe Moralles e Moraes | 239

grandes propriedades, igualização das oportunidades e de


progressividade dos impostos) não recaem nas críticas de Hayek de
que uma planificação econômica poderia servir a uma elite racial,
política, aristocrática enfim.269 As técnicas de igualização das
condições materiais visam justamente dispersar as riquezas e,
desse modo, evitar sua concentração em elites. Elas têm como
princípio evitar o surgimento de novas aristocracias.
Em uma sociedade cuja maioria aceita o princípio de rejeição
às distinções aristocráticas, as elites têm o cuidado de não se isolar
do povo. As elites são levadas a adotar a estratégia de se
misturarem aos demais cidadãos, precavendo-se contra invejas e
ódios. Há uma aversão geral à exibição pública de grandes riquezas
e distinções. Antes de se exigir dos ricos o sacrifício de dinheiro,
exige-se o sacrifício de seu orgulho.270 Também os agentes públicos
não usam sinais exteriores que os distingam e tomam cuidado de
mostrar que seu poder não os torna superiores.271 “O amor à
democracia é ainda o amor à frugalidade... quanto menos luxo
existe em uma república, tanto mais ela é perfeita”, dizia
Montesquieu.272 Ao contrário, a teoria da transformação social de
Tocqueville no máximo produz efeitos semelhantes à frugalidade
republicana. Em seu lugar, pressupõe mesmo paixões condenáveis
do ponto de vista do autogoverno, como a inveja contra os que
possuem mais bens e o ódio contra os que se consideram
estrangeiros em meio à sociedade: “não se deve esconder que as
instituições democráticas desenvolvem em um grau muito elevado
o sentimento de inveja no coração humano, não tanto porque
oferecem a cada um os meios de se igualar aos outros, mas porque
esses meios falham sem cessar aos que os empregam”.273 Não recai,

269
HAYEK, op. cit., 1944, p. 84.
270
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 2, p. 201; id., op. cit., 1840, II, 4, p. 619.
271
Ibid., II, 5, p. 230-1.
272
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, V, 3 e VII, 2.
273
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 5, p. 223; id., op. cit., 1840, II, 3, p. 615 e IV, 3, p. 813.
240 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

com isso, em dilemas éticos, pois inveja e ódio também estão


amplamente presentes nas sociedades aristocráticas – com a
diferença de que envolvem membros de uma mesma classe, não de
classes diferentes.274 Embora o gentilhomme use os termos de
maneira ambígua, a inveja quer destruir o objeto invejado; o ódio,
a pessoa que o possui.275 Uma teoria crítica de um estado
democrático estável coloca em perspectiva a destruição dos
privilégios, não dos privilegiados, como em um possível estado
democrático revolucionário.
Por um lado, assim como na filosofia de Hegel, há uma
oposição às expectativas socialistas de que uma redistribuição das
propriedades disponíveis pudesse garantir o bem-estar material
dos indivíduos. E, como ele, Tocqueville estava longe de acreditar
em um prognóstico de extinção das divisões de classe. Por outro
lado, suas reflexões acerca do sentido da igualdade deixam
evidente que sua preocupação não era defender a desigualdade da
riqueza com fundamento em desigualdades naturais. Trata-se de
uma teoria crítica que parte da perspectiva de uma forma de
governo animada pelo princípio da igualdade, assim compreendida
a possibilidade de ascensão e queda entre classes e a progressiva
extinção das classes muito ricas e muito pobres. A ênfase da
igualdade democrática para Tocqueville é propiciar uma esfera
econômica com meios viáveis e seguros para que os indivíduos
produzam por si e alcancem o bem-estar material.276

3.2.2 Perspectivas emancipatórias no Brasil

Todas essas reflexões não trazem ainda justificação


suficiente da aproximação do filósofo francês para com a praxis
possível dentro da realidade social brasileira. Sem falar do risco de

274
Id., op. cit., 1840, IV, 3, p. 813 manuscrit; cf. ELSTER, op. cit., 2009, p. 69.
275
ELSTER, op. cit., 2009, p. 3.
276
TOCQUEVILLE, op. cit., 1833/35, 29 juin, p. 492.
Felipe Moralles e Moraes | 241

terem servido somente como treinamento das mandíbulas do leitor


para um bocejo mais distinto. Falta analisar quão promissor é o
diagnóstico tocquevilleano para analisar as classes sociais no Brasil,
uma das sociedades mais desiguais do mundo.
Para isso, pode-se enfocar as pessoas mais mal situadas na
sociedade brasileira atual, sujeitas a três formas concomitantes de
sujeição aristocrática: da cor da pele, gênero e pobreza. As
mulheres moradoras de zonas rurais e subúrbios,
majoritariamente negras, são alvo do programa Bolsa Família, o
qual foi objeto da obra Vozes do Bolsa Família.277 Nesta, os teóricos
críticos Alessandro Pinzani e Walquiria Leão Rego mostram como
a naturalização de uma sociedade hierarquizada às quais essas
mulheres estão submetidas obstaculiza um processo de
transformação social. Um obstáculo cognitivo impede o
surgimento de uma motivação por mudanças mais profundas. Há
uma cultura muito forte de resignação: a associação do arranjo
social injusto a questões pontuais, de natureza ou de sorte, que
impede os pobres de almejarem mudanças mais gerais.278
Ainda assim, a pesquisa “tenta perceber nas falas das
beneficiárias as possibilidades de mudanças culturais (não apenas
subjetivas) contidas no programa BF, mesmo que em germe, mas
que ainda não se tornaram objeto de políticas culturais específicas
para elas”.279 A renda regular recebida pelas entrevistadas é vista
do ponto de vista das possibilidades e, logo, dos desejos que
desperta, ou seja, desde um ponto de vista de libertação.280 Essas
possibilidades têm a pretensão de representar um ganho de
liberdade dessas pessoas. Sem a ideia de liberdade, com efeito, não
poderiam os teóricos críticos detectar uma interiorização negativa

277
PINZANI, Alessandro; REGO, Walquiria Leão. Vozes do bolsa família: autonomia, dinheiro e
cidadania. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2014, p. 24-6.
278
Ibid., p. 194 e 236.
279
Ibid., p. 28.
280
Ibid., p. 27.
242 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

de valores, uma autocompreensão injusta e estigmatizante dos


pobres – por exemplo, pela diminuição das oportunidades de
construir um projeto de vida mais independente, pela imagem de
que sejam individualmente responsáveis por sua situação social,
quando essa situação é conjuntural.281
Antes de adiantar uma determinada concepção de liberdade,
porém, depreende-se das Vozes uma concepção com ancoramento
nas expectativas de libertação das próprias pessoas entrevistadas. A
negação de certas normas sociais leva os críticos a pensá-las de
maneira radicalmente diversa, mas não cabe a eles definir essas
normas sozinhos, sem a cooperação com os concernidos.282 Ao
acompanharem a tendência de as entrevistadas se verem elas
mesmas inseridas em uma rede de deveres ligados a seus papéis
privados de esposa, filha, mãe, detêm-se: “embora a aceitação desses
papeis possa ser vista como consequência de uma educação
opressora, essas pessoas consideram a capacidade de cumprir tais
deveres como uma faceta central de sua liberdade individual”.
Entendem que “criticar essas mulheres porque querem ser boas mães
ou boas esposas em vez de mulheres emancipadas significaria julgá-
las com base em valores que elas não poderiam ter desenvolvido
autonomamente e, por isso, representaria um ato de dominação
cultural”.283 Rejeitam, por isso, uma avaliação que ignore a vida
cotidiana dessas pessoas, seus sofrimentos específicos, suas visões de
mundo, seus modos de vida, sonhos e expectativas.284 Não se trata,
por isso, de uma ideia de liberdade simplesmente construída,
advogada ou correta na visão dos críticos, mas de uma que tenta
colocar, em termos hegelianos, “a especificidade em harmonia com a
unidade ética”285, isto é, justapor as expectativas dos indivíduos mais
281
Ibid., p. 43.
282
PINZANI, Alessandro. O valor da liberdade na sociedade contemporânea. Novos estudos
CEBRAP, São Paulo, n. 94, p. 95, nov. 2012.
283
PINZANI/LEÃO, op. cit., 2014, p. 15.
284
Ibid., p. 22.
285
HEGEL, op. cit., 1821, § 185 Zus.
Felipe Moralles e Moraes | 243

mal situados na sociedade brasileira com os potenciais inscritos na


sociedade moderna como um todo.
As beneficiárias do Bolsa Família compartilham a ideia
moderna de que possuem um direito subjetivo à especificidade.
“Cada um pensa diferente. Faz diferente”, como expressou uma das
entrevistadas as diferentes biografias e visões de bem.286 A epígrafe
do terceiro capítulo das Vozes é decorada com o dizer de uma
moradora de Piripiri no Estado do Piauí: “eu falo minha
verdade”.287 Os críticos não poderiam saber a “verdade” do outro a
não ser lhe perguntando e compreendendo sua opinião. A
liberdade, inferem eles “pressupõe um sujeito capaz de se afirmar
perante o outro como ator apto a fundamentar verbalmente suas
ações, intenções, desejos e necessidades”.288 Além disso, as
envolvidas diziam estar mais “à vontade” com o benefício, porque
se sentiam mais livres, menos angustiadas, com maior qualidade
de vida.289 Por que têm mais liberdade? “– Porque a gente pode
comprar mais o que a gente quer, né?”.290 Sentiam-se “mais livres”
principalmente por propiciarem aos filhos condições de maior
independência daquele ambiente. A quase única esperança na vida
dessas mulheres é fazer dos filhos pessoas capazes de buscar outro
destino.291 Disso concluem Pinzani e Leão “que a liberdade pessoal
é pensada como autonomia subjetiva individual e, ainda, como
posse de algumas capacidades para se tornar um agente autônomo,
inclusive para se efetivar como consumidor capaz de ir ao mercado
e decidir minimamente as compras a serem feitas”.292 O programa
Bolsa Família deveria ser visto como uma tentativa de ajudar as

286
PINZANI/LEÃO, op. cit., 2014, p. 130.
287
Ibid., p. 148.
288
Ibid., p. 41.
289
Ibid., p. 94.
290
Ibid., p. 128.
291
Ibid., p. 123.
292
Ibid., p. 202.
244 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

pessoas na obtenção das condições psicológicas e materiais de fazer


escolhas sobre planos de vida (escolhas éticas) e sobre princípios
universais (escolhas morais), quando não dispõem da possibilidade
de as obter individualmente.293
Entretanto, o recurso a uma definição de liberdade baseada
no poder da vontade individual de fazer escolhas não parece
traduzir bem a experiência de libertação dessas pessoas, em cujo
vocabulário estão ausentes princípios de justiça. Para elas, a
liberdade não tem relação imediata com o reconhecimento de
direitos e deveres universais. Ouvidas as mulheres nas zonas rurais
mais pobres do Brasil, constatam os teóricos críticos que elas
vacilam frequentemente em caracterizar o programa Bolsa Família
como uma obrigação do governo ou como um simples favor. A
pouca clareza notabiliza-se, entre outras, na seguinte fala: “eu
tenho duas opiniões. Às vezes, eu acho que é um favor, às vezes
acho que é uma obrigação deles”.294 O conceito de direito subjetivo
permanece praticamente ausente do vocabulário das
entrevistadas.295 Não deixam de ver com preocupação a descrição
do benefício, por cerca de 75% delas, como uma ajuda do governo,
sobretudo quando não fazem uma ligação com participarem das
eleições e terem elegido o governo responsável pelo programa
social.296 Essa ideia de dádiva, de favor do governo, está
intimamente conectada ao seu passado sem assistência alguma do
Estado, num país onde a pobreza “não é um fato contingente, mas
deita raízes profundas na nossa história e na forma de conduzir
politicamente as decisões estatais”.297
No entanto, Pinzani e Leão conseguem captar que uma
renda regular em dinheiro cria “condições para uma mudança

293
Ibid., p. 65 e 73.
294
Ibid., p. 102.
295
Ibid., p. 94-5.
296
Ibid., p. 95-6.
297
Ibid., p. 184 e 217.
Felipe Moralles e Moraes | 245

profunda na estrutura sentimental dos beneficiários”, pela


formação, ao menos, de “sentimentos de pertinência”. As
beneficiárias do Bolsa Família adquirem a sensação de serem
incluídas na sociedade, de estarem ligadas a uma comunidade mais
ampla do que a família.298 Ao longo das Vozes, pelas
transformações iniciadas pelo programa, são sinalizadas três
perspectivas de emancipação que podem ser interpretadas como
formas de participação em diferentes esferas de liberdade.
A primeira e mais próxima dessas perspectivas é a expectativa
das mulheres entrevistadas em relação ao valor da bolsa, o que os
pesquisadores refletem ser já a expressão de que tal valor não
constitui um reconhecimento suficiente das suas necessidades
básicas.299 A aprovação do programa é bastante grande entre as
beneficiárias que, diante da falta absoluta de chances de obtenção de
empregos regulares, “não deixam de ressaltar a insuficiência da
renda recebida para se obter outras melhorias na vida e ganhar mais
liberdade na escolha dos bens de consumo”.300 O rompimento inicial
do círculo vicioso da pobreza permite que os mais pobres passem a
manifestar seu desejo por maior qualidade de vida. Assim, um
pequeno incremento do bem-estar mínimo amplia o desejo por
maior bem-estar devido socialmente.
A segunda perspectiva consiste na efetiva qualificação
educacional das mulheres e de seus filhos. Os pesquisadores
reconhecem que “a cultura da sociedade salarial, assim como a
chamada ‘ética do trabalho’, agiu e age profundamente em sua
personalidade”, mesmo que essas mulheres tenham consciência de
que não foram educadas e capacitadas para tarefas mais qualificadas
e que um emprego regular não é fácil de ser encontrado por pessoas
como elas.301 Numa das vozes: “olha, o que nós queremos, a

298
Ibid., p. 215-7.
299
Ibid., p. 48.
300
Ibid., p. 201.
301
Ibid., p. 185.
246 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

mudança, é de uma vida melhor, eu queria mesmo ganhar é a suado


meu salário, que tivesse que trabalhar, toda mãe quer isso para seus
filhos, sua família, sua casa”.302 Citam os casos humilhantes em que
cartas de convocação para recadastramento eram escritas em
linguagem e estilo burocrático a pessoas analfabetas, o que as fazia
perder os prazos.303 O programa Bolsa Família representa um
primeiro passo para que os indivíduos mais afetados por uma
sociedade hierarquizada tenham condições de assegurar por si
próprios sua sobrevivência e da sua família e, consequentemente, se
percebam como sujeitos ativos economicamente. Ele põe movimento
a uma transformação democrática por oportunidades educacionais e
de trabalho mais equânimes.
A terceira e mais transformadora das perspectivas diz
respeito ao incentivo e auxílio para organização das bolsistas de
maneira a compartilhar suas experiências entre si e com as
instituições, “a articular suas exigências e a transmiti-las às
autoridades locais e federais, para sair finalmente do círculo vicioso
de mudez dos pobres e surdez das instituições, e para que as
bolsistas deixem de ser meros objetos de políticas para tornar-se
sujeitos da política”.304 A participação das beneficiárias no processo
de gestão do programa, em espaços específicos de encontro,
reuniões periódicas, organização em conselhos de
representantes.305 No entanto, a única contrapartida política que
intuem é votar nas eleições, sem se considerarem cidadãs fora do
período eleitoral: “na sua visão, para o Estado eram meras
votantes, e não sujeitos de direitos e necessidades a serem
satisfeitas por políticas públicas”.306 De modo análogo ao noroeste
da França oitocentista, nos rincões mais miseráveis do Brasil

302
Ibid., p. 141.
303
Ibid., p. 191.
304
Ibid., p. 17.
305
Ibid., p. 143 e 191.
306
Ibid., p. 224-5.
Felipe Moralles e Moraes | 247

contemporâneo, o único espaço de comunicação pública continuam


sendo as igrejas.307 O programa Bolsa Família tem esse potencial
de abrir um novo espaço intermediário de organização das
demandas e de atuação política das pessoas mais desfavorecidas
socialmente.
Assim delineadas as perspectivas emancipatórias abertas,
pode-se defender, com Pinzani e Leão, que esse programa possui,
em germe, condições de desencadear um movimento de
transformação democrática mais consistente e se inserir em um
“projeto democrático substantivo”.308 Não é “simplesmente uma
política de urgência moral que garante o direito à vida, mas
representa ainda o primeiro passo à substantivação da nossa
democracia”.309 No horizonte, contudo, nada desponta da ideia de
liberdade concebida como um poder de fazer escolhas morais sobre
princípios de justiça, muito menos na participação direta nas
estruturas de governo; e sim a ideia de liberdade baseada na
participação em esferas sociais de autorrealização de interesses –
por meio da família, mercado de trabalho e corpos intermediários
de ação política. Uma libertação dos indivíduos mais vulneráveis
consubstancia-se em maior bem-estar material; mais
oportunidades educacionais; associação e influência na gestão do
programa público. A concepção de liberdade preconizada por
Tocqueville traduz melhor o significado dessa política de renda
básica para os concernidos, ainda que muito incipiente.

3.3 Associações

É um pensamento bem característico do século XIX tomar as


associações como os centros estruturantes da democracia
moderna, nos termos de Tocqueville, como as “grandes escolas

307
Ibid., p. 153.
308
Ibid., p. 167 e 176.
309
Ibid., p. 221.
248 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

gratuitas” ou a “ciência mãe” da democracia.310 As associações


poderiam atenuar a desigualdade econômica, ao “fazer comércio
sem acumulação de tanto capital nas mesmas mãos”.311 Também
expressa a esperança de que os trabalhadores adquirissem a arte
da associação de produtores.312 Ao exigirem a ação das pessoas
umas sobre as outras, não menos nos negócios e na indústria do
que na política, “os sentimentos e as ideias se renovam, o coração
se abranda e a mente humana se desenvolve”.313 As associações
poderiam organizar a indústria e a filantropia, continua Mill na
mesma toada.314 A matriz democrática da economia moderna
deveria estar baseada na transformação das “massa sem forma”
descritas por Hegel em “associação de homens livres”, cujo
resultado produtivo seria seu objeto de uso, também defende
Marx.315
À medida que a consciência de classe perde força nas
democracias de massa, as associações adquirem papel
preponderante. A diferença entre classes sociais e associações é que
essas prescindem de um espírito comum dado pela condição
econômica ou de status dos indivíduos, dependendo somente da
liberdade de constituição: “uma associação consiste apenas na
adesão pública que certo número de indivíduos dá a estas ou
aquelas doutrinas e no engajamento que eles contraem de
contribuir, de certo modo, para que elas prevaleçam”.316 Há três
fases de desenvolvimento político de uma associação, analisa
Tocqueville: o puro vínculo intelectual entre pessoas que
expressam e defendem em comum uma mesma opinião; a reunião

310
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, II, 7, p. 631
311
NOLLA (Ed.), op. cit., 2010, p. 1026b.
312
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835/37, p. 1187-8.
313
Id., op. cit., 1840, II, 5, p 623.
314
MILL, op. cit., 1859, p. 305.
315
MARX, op. cit., 1867, p. 92-3; id., op. cit., 1894, p. 828.
316
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 4, p. 213.
Felipe Moralles e Moraes | 249

dessas pessoas em pequenas assembleias, em um partido ou em


um movimento mais vasto; a eleição de mandatários e
representantes, formando “como que uma nação à parte dentro da
nação, um governo dentro do governo”.317 Esses três modos de
associativismo são chamados de civil, político e permanente – os
quais se facilitam, reforçam e aperfeiçoam reciprocamente.318 A
capacidade e o hábito de participação dos indivíduos nessas esferas
de realização mútua dos interesses é constitutiva da liberdade, em
sua forma eminentemente democrática.
“Não é por acaso – explica Tocqueville – que examino de
início a comuna. Ela é a única associação que está tão bem
entranhada na natureza que se forma por si só onde houver
homens reunidos”. A comuna municipal é a primeira forma
permanente de associação. Assim como as associações menores,
trata-se ainda de “coisa rara e frágil” na qual “reside a força dos
povos livres”.319 Nesse “germe fecundo das instituições livres” está
contido o dogma da soberania do povo.320 Nos municípios dos
EUA, antes do que nos Estados ou na União, enxerga “reinar uma
vida política, real, ativa, totalmente democrática e republicana”.321
Sem fortes instituições municipais, até poderia haver um governo
livre, mas não um espírito de liberdade democrática.322
A crítica de Tocqueville à sociedade moderna mira a perda
da capacidade e hábito de associação graças ao individualismo, que
emerge “bem antes de um juízo errôneo do que de um sentimento
depravado. Ele tem sua fonte tanto nos defeitos do espírito quanto
nos vícios do coração”. Antes de tudo, o individualismo consiste em
uma forma de pensamento: a ilusão de “se considerar sempre

317
Ibid., p. 213-4.
318
Id., op. cit., 1840, II, 7, p. 629.
319
Id., op. cit., 1835, I, 5, p. 64-5.
320
Ibid., I, 2, p. 31.
321
Ibid., I, 2, p. 43-4.
322
Ibid., I, 5, p. 65.
250 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

isoladamente e imaginar prazerosamente que seu destino completo


está em suas mãos”. Além disso, consiste em uma afeição: um
sentimento “refletido e prazeroso” de apego à família, amigos e
pequenos grupos, o que leva o indivíduo a criar “uma pequena
sociedade para seu uso” e ao abandono voluntário da “grande
sociedade”. O individualismo é composto de um elemento cognitivo
(a disposição de pensar que existe isoladamente) e um afetivo (a
disposição de agir só com base em fins privados).
Note-se que esses elementos não se confundem com o
egoísmo, enquanto “amor apaixonado e exagerado de si mesmo”,
“instinto cego” ou “sentimento depravado”.323 Não se faz uma
crítica ética e moralista à modernidade. Só sujeitos muito obtusos
percebem o interesse de modo egoísta. O próprio conceito
tocquevilleano de interesse – chama atenção Arthur Goldhammer –
abrange impulsos familiares, religiosos, políticos, etc., não somente
impulsos materialistas e utilitaristas.324 Por definição, o interesse é
o que está entre os indivíduos e permite a fala e a ação comum:
inter est.325 Enquanto o egoísmo é um defeito nas virtudes
privadas, o individualismo é um defeito nas virtudes públicas.326
Por isso, o problema filosófico principal de Tocqueville não é
– diferentemente do que entenderam Larry Siedentop e Rainer
Forst – pensar a mediação entre indivíduos e associações, a partir
de uma imagem de sociedade composta por unidades
atomizadas.327 Faz questão de diferenciar individualismo de
egoísmo, porque aquele não corrói a sociabilidade humana, mas
sim a sociedade política.328 Não se sente atormentado pelo temor
de que a sociedade vá se desintegrar, ou que a democracia de

323
Id., op. cit., 1840, II, 2, p. 612.
324
GOLDHAMMER, in The companion, p. 148.
325
ARENDT, op. cit., 1963, p. 68.
326
FRANCO, op. cit., 2012, p. 48-9.
327
SIEDENTOP, in The idea, p. 166; FORST, op. cit., 1994, p. 176.
328
LAMBERTI, in Lecturas, p. 183.
Felipe Moralles e Moraes | 251

massas conduzirá à anarquia.329 O que questiona é menos a


capacidade de associação do que a extensão dessa associação, o
alcance possível da cooperação sobre valores e necessidades
comuns.
A denúncia de Tocqueville à perda da capacidade de ação
com vistas aos interesses mais gerais da sociedade abrange quatro
tipos de individualismo – (i) o metodológico (“rousseaunismo”): de
que a teorização política deveria partir de conceitos dados a priori
pelo indivíduo; (ii) o epistêmico (“fundamentalismo”): de que a
consciência individual seria o critério último para julgar o mundo;
(iii) o ontológico (“individualismo”): de que a existência individual
seria a unidade social primária, todas as outras meras unidades
secundárias; e (iv) o ético (“egoísmo”): de que a existência
individual seria o fim último da ação, todos os outros meios para
esse fim. Metodologicamente, a argumentação teórica deve partir
de uma análise histórica e sociológica a posteriori, não de conceitos
a-históricos. Epistemologicamente, o indivíduo não poderia adotar
só uma racionalidade instrumental, dependendo de uma razão
comunicativa. Ontologicamente, o indivíduo não poderia ser visto
como um portador de direitos pré-sociais, porque a individualidade
é um produto da socialização, não seu ponto de partida.
Eticamente, as outras pessoas não poderiam ser limites da
liberdade individual, senão as condições de realização dessa
liberdade.330 É uma crítica radical do mito do self-made man.331 O
que o liberal francês considera irrenunciável à autocompreensão
dos sujeitos modernos é um outro tipo de individualismo – (v) o
moral (“liberdade”): de que a consciência individual representa o
critério último para julgar sobre a participação nas esferas de
reconhecimento existentes. Moralmente, insiste, por isso, que a

329
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 1, p. 807 e IV, 6, p. 834.
330
Cf. WELLMER, op. cit., 1989, p. 15-9.
331
QUIRINO, op. cit., 2001, p. 75.
252 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

liberdade individual está conceitualmente ligada à liberdade de


associação.332
Embora Siedentop seja perspicaz ao diferenciar, do ponto de
vista metodológico, as tradições francesa e inglesa do liberalismo,
deixou de perceber que nem o individualismo metodológico, nem o
moral arrastam consigo o ontológico.333 É um erro tremendo, já
reprovava Constant entre seus contemporâneos, censurar
Rousseau simplesmente por partir de princípios abstratos, porque
ele fala claramente de uma sociedade cujos membros pensam
instrumentalmente e na qual o soberano é considerado não mais
um só, mas o povo: “abstrações” inevitáveis para qualquer análise
empírica da sociedade moderna.334 Não há por que censurar o
individualismo metodológico, desde que não recaia em um
individualismo ontológico. Em relação ao individualismo moral,
um direito de se distanciar da família, religião, casta ou outra
relação arbitrária não requer que o indivíduo seja imaginado de
maneira isolada. Nesse aspecto, o liberalismo pressupõe tão
somente que os limites da imaginação e criatividade humanas
tornam impossível montar uma escala de valores e necessidades
capaz de apreender a totalidade das especificidades existentes na
sociedade. As escalas concebíveis são sempre parciais,
inconsistentes e frequentemente conflitivas umas com as outras.
Assim, mesmo que os interesses se façam sempre representar
socialmente, isto é, que apareçam imersos em relações sociais, e
mesmo que coincidam com a maioria, eles preservam seu caráter
parcial.335
Embora o individualismo seja um fenômeno típico da
sociedade moderna, quando se tornou concebível “um indivíduo

332
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 4, p. 213 e 217; cf. MILL, op. cit., 1859, p. 226.
333
Cf. SIEDENTOP, in The idea, p. 154; SIEDENTOP, Larry. Inventing the individual: the origins of
western liberalism. Cambridge: Harvard University Press, 2014, p. 62-3 e 337-8.
334
CONSTANT, op. cit., 1814, II, 7, p. 110 note.
335
Cf. HAYEK, op. cit., 1944, p. 102; RAWLS, op. cit., 1993, introduction, xvi.
Felipe Moralles e Moraes | 253

que não pertença a um grupo e que se possa considerar


absolutamente só”, ele teve importantes antecedentes históricos. A
sociedade feudal, por exemplo, era composta de “mil pequenos
grupos... [que] cuidavam somente de si mesmos”, de modo que
havia “uma espécie de individualismo coletivo, que preparou as
almas ao verdadeiro individualismo que conhecemos”.336 A questão
filosófica adquire significado já com esses grupos que têm ilusão de
autossuficiência e sentem que podem se fechar em si mesmos. As
dificuldades crescem de acordo com a gradação das especificidades:
as associações segmentam a lealdade dos cidadãos entre suas
diferentes visões éticas, religiosas, econômicas, etc.; as
aristocracias podem agir não só contra outras classes, mas também
contra o direito da maioria de cidadãos; as castas se isolam dos
direitos e interesses dos demais cidadãos. É o dilema colocado já
por Montesquieu ainda no século XVIII a respeito da possibilidade
de uma “société de sociétés”: de uma forma de governo que possa
ser constituída pela associação de vários corpos políticos.337 À
medida que se complexifica a sociedade, crescem as aspirações,
exigências e conflitos, diminuem a confiança mútua e a
proximidade entre os cidadãos, o que favorece a emergência de
uma autoridade despótica.338
A participação dos indivíduos em associações civis e políticas
não necessariamente conduz, portanto, à participação em
associações mais gerais. Ela pode conduzir à fragmentação da
sociedade. No feudalismo, preponderava essa espécie de
individualismo coletivo. O que impede, questiona também Hegel,
que a comunidade política se dissolva num agregado de outras
comunidades, como um organismo cujo isolamento dos membros
significa a doença e a morte.339 Nessas divisões internas, como

336
TOCQUEVILLE, op. cit., 1856, II, 9, p. 134.
337
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, IX, 1.
338
Ibid., VIII, 16 e 19.
339
HEGEL, op. cit., 1821, § 278 Anm.
254 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

entre senhores feudais e vassalos, “cada parte preserva e leva


adiante, no que se preserva, somente a si e não, ao mesmo tempo,
as outras...”340 As associações podem conduzir a argumentos com
apelo à maioria, ou não! Grupos isolados e autocentrados, de
quaisquer tipos, sejam igrejas, categorias profissionais, etc., podem
ser muito piores do que indivíduos egoístas.
A conhecida solução institucional de Hegel para obtenção de
uma “unidade viva”, um “organismo” racional, um “momento de
decisão última como de autodeterminação” é o poder do monarca
constitucional. Ainda que submetido às leis, reconhece-lhe a
posição de começo e fim do Estado, a definição do governo, a
nomeação os magistrados, a sanção ou não das leis, o direito de
sucessão familiar. A soberania popular não dispensa o monarca,
sem o qual o povo não passaria de massa sem forma.341 Ele rejeita
que os poderes do Estado pudessem manter uma autonomia
absoluta um frente ao outro ou uma relação apenas negativa de
limitação recíproca.342 Assim concebidos, os poderes destroem a
unidade, que se produz novamente só pela violência. Os poderes do
Estado devem ser diferentes, “mas cada um deve em si mesmo
formar um todo e conter em si os outros momentos”.343 A
soberania do monarca é o que unifica todos esses momentos.344
A organização da massa desde o topo pelo príncipe não
poderia deixar o todo da massa desorganizado desde a base; “e isso
é mesmo altamente importante, que ele se torne orgânico, porque
somente assim ele é força, ele é um poder, senão é somente um
amontoado, uma grande quantidade de átomos fragmentados”. A
comuna municipal é reconhecida por esse papel e como “autêntica
potência dos Estados”. Pondera Hegel, porém, que ela não poderia

340
Ibid., § 286 Anm.
341
Ibid., § 279.
342
Ibid., § 272.
343
Ibid., § 272 Zus.
344
Ibid., § 275
Felipe Moralles e Moraes | 255

ganhar muita autonomia, nem poderia ser considerada como um


Estado dentro do Estado.345
Nisso o filósofo alemão cai em outro erro comum dos
leitores de Montesquieu: ler os pouvoirs exclusivamente como
puissances, como potências sociais independentes e não, ao mesmo
tempo, como poderes-função de uma soberania, às quais são
organicamente distribuídas funções diversas. Não se trata
simplesmente de repartir a soberania entre estamentos
contrapostos, para que “poder pare o poder”346; mas também de
uma divisão de funções materiais entre órgãos diversos e
interdependentes, cada qual com competências próprias. Não se
admite confusão de competências materiais, a única hipótese na
qual se poderia cogitar de contraposição e destruição da
organicidade.347
A descoberta dos founding fathers foi aplicar tal princípio à
federação, porque, na ideia originalmente concebida por
Montesquieu, havia relação só entre Estado federado e União, isto
é, uma autêntica sociedade de sociedades.348 Leitor atento dos
artigos federalistas, Tocqueville diferencia essa ideia antiga de
federação do novo sistema anglo-americano, que denomina
“governo nacional incompleto”, no qual há uma relação direta entre
cidadãos e governo nacional, embora restrita a competências
enumeradas.349 Não se trata, assim, de modo análogo aos poderes-
função, de simplesmente repartir a soberania entre governos
municipal, estadual e federal potencialmente contrapostos; mas
também de uma divisão de funções materiais entre esses governos.
Daí porque a divisão entre comunidades menores não é
trágica. Não somente pela perspectiva sociológica de que os

345
Ibid., § 290 Zus.
346
MONTESQUIEU, op. cit., 1748, XI, 4.
347
Ibid., XI, 6.
348
Ibid., IX, 1.
349
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 8, p. 177; cf. MADISON, No. 39, in The federalist, p. 243-5.
256 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

indivíduos participam simultaneamente de múltiplas associações,


sendo, ao mesmo tempo, religiosos, sindicalistas, membros de
partido, pagadores de impostos, beneficiários de políticas públicas,
sem linhas divisórias rigidamente dicotômicas, como ressalta
Forst.350 Mas principalmente pela perspectiva institucional de
associações permanentes com competências delimitadas. As
grandes riquezas, profundas misérias e complicação dos interesses
aumentam com a complexificação da sociedade. Em um sistema
nacional incompleto, os objetos da União são muito importantes,
mas sua competência é reduzida e inibida; seu uso não apresenta
tantos perigos de despotismo, porque “ele não excita esses desejos
imoderados de poder e reputação, tão funestos às grandes
repúblicas”.351 É dentro desse marco que Tocqueville pode
propugnar uma forte descentralização municipal, mesmo sem
entender que a descentralização estadual fosse uma solução
adequada para a França.352
A vantagem das instituições políticas locais é formar
capacidades e hábitos de associação civil e política, de quatro
modos, segundo Tocqueville: (i) interessando os indivíduos pela
política; (ii) ensinando o fundamento pragmático das questões
políticas; (iii) esclarecendo os interesses; (iv) garantindo o respeito
às diversidades regionais.353
(i) As comunas municipais escancaram a proximidade das
relações ordinárias da vida, onde se concentram os interesses reais
de indivíduo, famílias e associações, com o bem-estar de uma
comunidade mais geral. Das leis depende interessar as pessoas
pelo destino do lugar onde vivem. E dispersando o poder político
entre os municípios, é possível “interessar maior número de

350
FORST, op. cit., 1994, p. 1876
351
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 8, p. 180-3.
352
Ibid., I, 8, p. 192.
353
Cf. FRANCO, op. cit., 2012, p. 96-7.
Felipe Moralles e Moraes | 257

pessoas pela coisa pública”.354 Na medida em que a autoridade


administrativa é colocada ao lado dos administrados, em vez de
acima, passa a representá-los, sem excitar inveja nem ódios. Sendo
seus meios de ação limitados, cada cidadão percebe que não pode
repousar sobre um aparato burocrático.355
A autorrealização não é atraída por um vínculo sentimental
com a localidade de nascimento, mas antes pela independência e
pelo poder da localidade para a qual se pode contribuir ativamente.
“Basta que retirem a força e a independência da comuna para não
encontrar nela mais do que pessoas administradas, jamais
cidadãos”.356 A identificação do indivíduo é com a grandeza política
e econômica da comunidade política, que provoca sentimentos e
vaidades. A partir do município, pode ele se regozijar e vangloriar
da prosperidade da sociedade em geral como uma obra sua e
trabalhar conscientemente em favor do Estado como uma forma
de autorrealização: “por seu país, tem um sentimento análogo ao
que prova em sua família, sendo ainda uma espécie de egoísmo que
se interessa pelo Estado”.357 A ideia de autorrealização por meio da
esfera política local perpassa o Démocratie:

De certo modo, o espírito público da União é apenas uma síntese


do patriotismo provincial. Cada cidadão dos Estados Unidos
transporta, por assim dizer, o interesse que lhe inspira sua
pequena república para dentro do amor à pátria comum.
Defendendo a União, ele defende a prosperidade crescente de seu
cantão, o direito de dirigi-lhe os assuntos e a esperança de ali
fazer prevalecer planos de melhoramento que devem enriquecê-
lo: todas coisas que, ordinariamente, tocam mais os homens que
os interesses gerais do país e a glória da nação.358

354
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 5, p. 74.
355
Ibid., p. 105-6.
356
Ibid., p. 73-5.
357
Ibid., p. 105.
358
Ibid., I, 8, p. 183.
258 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

É crucial para o argumento de Tocqueville a diferenciação


entre um patriotismo instintivo, virtuoso e desinteressado, típico
das sociedades hierarquizadas ou autoritárias, de um patriotismo
autointeressado, esclarecido e estreitamente relacionado aos
direitos fundamentais. Esse patriotismo esclarecido é um produto
da efetivação dos direitos políticos de participação no governo: “é
um outro mais racional que aquele, menos generoso, possivelmente
menos ardente, porém mais fecundo e mais durável; esse nasce das
luzes; ele se desenvolve com ajuda das leis, cresce com o exercício
dos direitos e termina, de certo modo, por se confundir com o
interesse pessoal”.359 Assim como ao abordar a religião, não cuida
simplesmente de recobrar um senso de comunidade entre sujeitos
autocentrados, mas antes de esclarecer as esferas sociais de
autorrealização e de direcioná-las a um fim universalizável.360 O
patriotismo democrático é, fornece Françoise Mélonio a definição:
“uma lealdade que não nasce (não principalmente) de uma origem
comum, mas da adesão refletida a um pacto político ao qual todos
podem se associar”.361 Para Tocqueville, o povo não poderia ser
compreendido como uma cultura tradicional e enraizada, senão
como uma grande associação de indivíduos que participam como
iguais no governo em uma base física e material chamada pátria.362
A federação dos EUA havia sido criada por imigrantes e por uma
vontade comum dos Estados, em lugar de séculos de existência,
lembranças e esperança comuns.363 O patriotismo e a soberania
popular são os últimos elos da ideia de liberdade como participação
em esferas de reconhecimento com normatividade própria, que se

359
Ibid., II, 6, p. 269-71; cf. id., op. cit., 1840, III, 18, p. 749.
360
Ibid., I, 5, p. 105; cf. MILL, op. cit., 1840, p. 182.
361
MÉLONIO, Françoise. Nations et nationalismes. In: GUELLEC, Laurence (Org.). Tocqueville et
l’esprit de la démocratie. Paris: Sciences Po, 2005, p. 355.
362
TOCQUEVILLE, Alexis de. Lettre à Madame Swetchine, 20 octobre 1856. In: BEAUMONT (Ed.),
op. cit., VI, p. 347-8.
363
ARON, Raymond. Tocqueville retrouvé (1979). In: GUELLEC, Laurence (Org.). Tocqueville et
l’esprit de la démocratie. Paris: Sciences Po, 2005, p. 36.
Felipe Moralles e Moraes | 259

expande gradualmente para esferas mais universais: da família,


mercado, municípios até os Estados e a União.364
(ii) As comunas municipais mostram a base prática das
questões políticas, porque os assuntos locais são geralmente mais
fáceis de serem entendidos e solucionados pela população.365 Nos
países livres, descreve Tocqueville que igrejas, comunidades,
municípios cuidam de si mesmos; cada um conserva o que lhe é
próprio. Nelas, o interesse geral é algo muito concreto. Ele pode ser
facilmente conhecido e desejado pelos cidadãos. Em contraposição,
a centralização da administração em França impunha que até a
menor aldeia tivesse seus atos controlados e definidos pelo
ministério nacional.
Não se ensina a ler ou escrever, cavalgar ou nadar apenas
ouvindo como se fazer, mas fazendo: da mesma forma, somente
pela prática do governo popular em escala limitada que os
indivíduos podem aprender a exercitá-la em escala maior.366 A
participação política local faz com que indivíduos e associações
adquiram a experiência do compartilhamento de responsabilidades
na gestão dos assuntos comuns, bem como ensina a fazer escolhas
responsáveis, porque os envolvidos devem contas diretamente aos
eleitores.367
É certo que uma administração em nível local pode ser
afetada por clientelismos, incompetências e arbitrariedades, sendo
“composta de elementos mais rudes... Uma sociedade muito
civilizada só tolera com dificuldade as tentativas de liberdade
comunal; revolta-se ao ver os seus numerosos extravios...”368 De
fato, a liberdade comunal não é solução para todos os males,

364
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, II, 10, p. 462.
365
Id., op. cit., 1840, I, 5, p. 530.
366
Id., op. cit., 1835, I, 5, p. 107; cf. MILL, op. cit., 1835, p. 63.
367
BACOT, Guillaume. L’apport de Tocqueville aux idées décentralisatrices (1995). In: GUELLEC,
Laurence (Org.). Tocqueville et l’esprit de la démocratie. Paris: Sciences Po, 2005, p. 230-4;
FRANCO, op. cit., 2012, p. 157.
368
TOCQUEVILLE, op. cit., 1835, I, 5, p. 65.
260 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

podendo mesmo tornar mais perniciosos os efeitos da pobreza,


como observa Tocqueville os resultados da importação das
instituições inglesas na Irlanda.369 Normas relativas a medidas
sanitárias, proteções sociais, educação, etc., interessam a todo país
e só podem ser amplamente discutidas por um público numeroso,
envolvendo uma multiplicidade de interesses e a atenção dos meios
de comunicação de massa. Público e órgãos nacionais têm
conhecimento maior e legitimidade para discutir os princípios
gerais de governo, por exemplo, medidas contra visões
patrimonialistas da política. Entretanto, as mesmas normas só
podem ser dirigidas, de maneira adequadas aos fins que se
propõem, pelas próprias localidades, onde estão os interessados
diretos na sua aplicação. Público e órgãos locais têm muito mais
capacidade de fiscalização e interesse no resultado desses
princípios, porque só em casos extremos, público e autoridades
nacionais são levados a se preocupar com aperfeiçoamentos, erros
e corrupções locais. Os resultados desses princípios devem estar
sob controle, portanto, da população das comunidades locais.
(iii) As instituições políticas locais esclarecem os interesses
ao forçarem a participação em instituições igualitárias. Ao tratar de
assuntos práticos de seu interesse imediato, cada um percebe que
não é tão independente dos outros e que “para obter seu apoio,
muitas vezes é necessário emprestar-lhes o seu concurso”.370 Uma
centralização da vida pública no Congresso faz com que “à exceção
dos parlamentares, ninguém mais saiba o que é uma assembleia,
nem como nela deve agir ou falar”. As classes médias tendem, sem
municípios fortes, a perder a capacidade de organização política,
argumentação e deliberação.371
(iv) A estrutura de um governo nacional incompleto favorece
o respeito à diversidade regional e local, ao impedir a redução da

369
Id., op. cit., 1833/35, 11 juillet, p. 523.
370
Id., op. cit., 1840, II, 4, p. 620.
371
Id., op. cit., 1850/51, II, 5, p. 812
Felipe Moralles e Moraes | 261

democracia à corporação de uma capital.372 De certo, a


mentalidade das pequenas cidades nem sempre é consistente com
uma sociedade com alta mobilidade de classes. Nelas a tirania da
opinião pública pode ser muito mais estúpida. O inconveniente,
como escreve Stendhal, é que a opinião pública “imiscui-se naquilo
que não lhe compete; por exemplo: a vida privada. Daí a tristeza da
América e da Inglaterra”. E brinca que o único lugar onde existe
independência campestre em França é num andar aberto para a
Champs Élysées.373 Não se está supondo, contudo, que os
municípios sejam o centro estruturante das democracias
modernas, sem considerar as outras formas de associação civil,
política e permanente. A estrutura federalista como um todo é
voltada a garantir o respeito aos direitos básicos e convida à
participação em comunidades mais amplas e ao emprego de
conceitos gradualmente mais universais.
Na sociedade anglo-americana, encontra Tocqueville a
alternativa revolucionária existente em seu tempo: uma ideia de
liberdade incorporada a uma maneira de viver. A liberdade havia
se tornado – através de instituições e práticas, através do interesse
e da autocompreensão dos cidadãos – um estado social. O conceito
de liberdade, um conceito “comunal”, diz Wellmer: consistente nas
ideias de que os indivíduos negociam e decidem a respeito de
temas comuns; de direitos iguais de influenciar a formação de fins
da sua vida coletiva; de uma esfera pública como meio de
esclarecimento, transformação e crítica das opiniões, preferências e
interpretações individuais.374 A liberdade no mundo moderno
poderia ser pensada, com base no exemplo estadunidense, como
uma forma de eticidade democrática que penetra em todas
instituições sociais.375 Nisso a liberdade negativa é preservada,

372
Id., op. cit., 1835, II, 9, p. 320; cf. DEWITT, John, Essay II, in The anti-federalist, p. 197.
373
STENDHAL, op. cit., 1830, p. 221 e 488.
374
WELLMER, op. cit., 1989, p. 31.
375
Ibid., p. 34.
262 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

embora com outro caráter, sem a ontologia, ética e epistemologia


de um indivíduo isolado. A negatividade em face de relações sociais
arbitrárias é, ela mesma, um espaço institucionalizado de
autodeterminação e de formação de novas associações. Do
contrário, ela permaneceria sendo um resquício feudal e
aristocrático, uma ameaça de desintegração de relações
igualitárias.376 O que faltava à tradição revolucionária francesa era
o chão de uma eticidade democrática, no qual os princípios
modernos pudessem se vincular com as experiências, instituições e
práticas cotidianas. Essa ideia de liberdade “social”, “comunal” ou
“democrática” aponta o horizonte normativo do que pode ser dito
uma boa maneira de viver sob as condições modernas.377

376
Ibid., p. 50-2.
377
Ibid., p. 53.
Conclusão

Nesses dias que correm, numa tentativa de fazer uma crítica


da sociedade, não pode o filósofo, o sociólogo, o cientista político
deixar de ver que se processou um gradual e respingado
deslocamento do eixo revolucionário que alicerçou os movimentos
sociais nos séculos XIX e XX. Por mais enraciné, não pode deixar de
convir que o desejo de bem-estar material escavou sulcos extensos
e profundos nos ideais de liberdade, igualdade e solidariedade,
assenhoreando-se de enormes porções de seus terrenos. Nem de
reconhecer o surgimento de um pluralismo ético no seio social,
uma diversificação das formas de vida, das tradicionais às mais
liberais. Isso obriga à revisão de conceitos, à adaptação de métodos,
que tornem o pensamento crítico mais compatível com as
estruturas em que se incrusta. Na atual conjuntura da sociedade,
tornou-se, por que não dizer, incompreensível, indiscriminada e
arbitrária a canalização de qualquer injustiça aos domínios da
mercadoria e do capital, como se a derrubada da ordem econômica
vigente fosse a única e verdadeira emancipação humana, como se a
ordem social e as instituições que a cobrem estivessem
impregnadas de uma fraude geral.
Obtempera-se que um pensador honesto, em pleno século
XXI, não poderia deixar de criticar com veemência as injustiças
arraigadas no sistema capitalista e, em particular, no capitalismo
brasileiro. Ele não somente deve reconhecer a legitimidade dos
movimentos de revolta, mas também, como provoca um teórico
crítico contemporâneo, questionar se as relações sociais que
provocam somente sentimentos difusos de mal-estar ou vergonha,
não deveriam, de preferência, suscitar revolta.1 O pathos essencial
1
ISER, Mattias. Desrespeito e revolta. Sociologias, Porto Alegre, ano 15, n. 33, p. 84, maio/ago. 2013.
264 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

para a crítica é a indignação social, dizia Marx, e “seu trabalho


essencial a denúncia”.2 A crítica da sociedade precisa acertar essa
relação entre denúncia e indignação social, entre teoria e prática.
Uma relação que foi originalmente tematizada pelo conceito
marxiano de praxis, a atividade “prático-crítica” que visa à
transformação das relações sociais.3
Por certo, Marx entendia que uma autêntica crítica não
deveria desejar remediar os males sociais que garantiam a
subsistência da sociedade burguesa, afirmando que o que pode ser
útil aos indivíduos é somente uma mudança das condições
materiais, isto é, dos fundamentos econômicos na divisão entre
capital e trabalho assalariado.4 Em sua radicalidade, a crítica
deveria inverter a fórmula hegeliana. O que é real, isso passa a ser
o irracional: “que a racionalidade seja efetiva prova-se na
contradição da realidade irracional, que, em todas esquinas, é o
contrário do que afirma ser e afirma ser o contrário do que é”.5 A
meta da emancipação seria a transformação do todo, reforça
Horkheimer em seu artigo seminal sobre teoria crítica.6 Uma
“grande recusa” à modernidade, para utilizar a expressão de
Marcuse.7 A teoria crítica exigiria que não se mirasse a reconquista
dos potenciais socialmente dados, continua Jaeggi, mas a
transformação das normas ou valores cuja realização
necessariamente se dá de modo contraditório e deficitário.8
Quando se critica algo, seria preciso criticar “o próprio jogo”, como
o jogo capitalista em que a força de trabalho é comercializada e

2
MARX, Karl. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie: Einleitung. In: ______; ENGELS,
Friedrich. Werke. Band 1. Berlin: Dietz Verlag, 1956, p. 380.
3
Id., op. cit., 1845, Thesen 1, 11.
4
MARX/ENGELS, op. cit., 1848, p. 488-9 ; MARX, op. cit., 1852, p. 141.
5
MARX, op. cit., 1843, p. 266.
6
HORKHEIMER, op. cit., 1937, p. 139.
7
MARCUSE, Herbert. One-dimensional man: studies in the ideology of advanced industrial society
(1964). 2. ed. Routledge: London/New York, 1991, p. 261.
8
JAEGGI, Rahel. Repensando a ideologia. Civitas, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 156-7, jan./abril 2008.
Felipe Moralles e Moraes | 265

tratada como uma coisa.9 A teoria crítica herdeira de Marx mira,


em suma, as próprias bases normativas da sociedade moderna.
Invocando essa radicalidade da crítica, porém, podem os
teóricos confortar seu desejo heroico, na expressão de Hegel, de
“saltar o Rodes”, de pular ingenuamente o próprio tempo. “Hic
Rhodus, hic salta!”, desafia Marx.10 Aqui está o Rodes, aqui você
salta: como se uma sociedade justa impusesse a abolição da
compra e venda da força de trabalho, como se “as leis, a moral, a
religião” não fossem mais que “preconceitos burgueses, atrás dos
quais se escondem outros tantos interesses burgueses”.11 E passa,
então, a prescrever o lema que os trabalhadores deveriam
inscrever nos cartazes: em vez de “um salário justo para um justo
dia de trabalho”, deveriam por “abaixo o sistema salarial”!12 Do
mesmo modo, defendia Marcuse, caricaturalmente: “é
precisamente esta posição privilegiada dos intelectuais a que pode
se converter em origem de uma praxis radical”.13 Em vez de
reconhecer a racionalidade das instituições construídas histórica e
concretamente, entende que a emancipação somente seria possível
se a sociedade fosse transformada ao ponto de seus membros se
enxergarem de modo completamente diferente como hoje se
enxergam. Substitui o idealismo de discursos subjetivos descolados
das relações de produção por um materialismo que ignora os
desejos dos concernidos nas relações sociais. A denúncia contra a
sociedade burguesa existente passa a se alimentar da promessa de
uma maneira de viver sem compromisso com a autocompreensão
dos sujeitos reais.

9
Id., op. cit., 2013, p. 29.
10
MARX, op. cit., 1850, p. 14.
11
MARX/ENGELS, op. cit., 1848, p. 472.
12
MARX, Karl. Lohn, Preis und Profit (1865). In: ______; ENGELS, Friedrich. Werke. Band 16.
Berlin: Dietz Verlag, 1962, p. 152.
13
MARCUSE, Herbert. Teoría y praxis. In: _________. Calas en nuestro tiempo. Trad. Pedro
Madrigal. 2. ed. Barcelona: Icaria, 1983, p. 48.
266 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

Em verdade, sempre foi uma preocupação para Marx não


recair numa crítica utópica e fantasiosa, quer dizer, abstraída das
condições históricas e que deixasse de contar com um movimento
político próprio.14 Um teórico não poderia se comportar
criticamente contra algo e acriticamente em relação a si mesmo
sem dissolver o caráter especulativo da teoria por meio da praxis.
Ele precisa partir dos sujeitos reais como base de sua análise
crítica, em vez de subjetivar de modo místico ideias e sistemas
teóricos, transformando os sujeitos reais em seus acidentes.15 O
ponto de partida da relação entre teoria e prática precisa ser a
“atividade humana sensível”, quer dizer, as pessoas vivendo suas
vidas.16 Antes de fazer juízos sobre a sociedade, dizia também
Tocqueville, “é preciso se colocar no ponto de vista particular
daquele que age, e não no ponto de vista geral e absoluto da
verdade”.17 O impulso crítico é dado, concorda Habermas, pelos
“problemas que vêm à filosofia a partir da vida pessoal e social”.18
Ao lado da radicalidade, portanto, a teoria crítica possui uma
justificação fortemente pragmática, porque parte das condições
histórias e movimentos políticos concretos, o que lhe permite
colocar em questão seus diagnósticos e bases normativas. A
abordagem pragmática impõe-se, continua Habermas, pela própria
ideia de modernidade, a qual “desprovida de modelos tem de
construir, por força própria, uma autocompreensão normativa”.19 A
modernidade é essa atualidade que rompe recorrentemente com o
passado e se renova: um limiar de época entre o passado e o
presente, o qual se reitera a cada momento histórico e traz à luz
algo novo que lhe é próprio.20 A sociedade moderna vive a
14
MARX/ENGELS, op. cit., 1848, p. 490-1.
15
MARX, op. cit., 1843, p. 224.
16
Id., op. cit., 1845, Thesen 1, 5.
17
TOCQUEVILLE, op. cit., 1836, I, p. 13.
18
HABERMAS, op. cit., 2004, p. 353.
19
Ibid.
20
Id., op. cit., 1985, p. 103.
Felipe Moralles e Moraes | 267

revolução permanente das relações sociais, na célebre frase de


Marx: “tudo o que era estável e sólido desmancha no ar, tudo o que
era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente coagidas a
encarar com olhos sóbrios suas posições na vida e suas relações
recíprocas”.21 A observação de Tocqueville de que, “como o passado
não mais esclarece o futuro, o espírito do homem marcha em
trevas”22 expressa de modo igualmente dramático essa situação na
qual as categorias filosóficas do passado se tornam inadequadas à
compreensão do presente. Unanimidade da religião, sacralidade da
tradição e autoridade do bem comum foram condenadas pela
modernidade.23
Qual transformação é realista e radicalmente emancipatória
nas democracias de massa contemporâneas? Há dois tipos
diferentes de teoria política voltada à transformação radical da
sociedade, segundo Tocqueville. Uma toma a perspectiva de uma
revolução súbita e violenta que transforma, ao mesmo tempo,
Estado e sociedade. Outra, a perspectiva de uma revolução gradual
da sociedade, por meio das instituições estatais – como desenvolve
em suas impressões finais sobre a Inglaterra do início do século
XIX:

Se alguém chama revolução toda alteração fundamental trazida


nas leis, toda transformação social, toda substituição de um
princípio regulador por outro, a Inglaterra está certamente em
estado de revolução, pois o princípio aristocrático, que era o
princípio vital de sua constituição, perde cada dia sua força e é
provável que, em algum tempo, o democrático terá tomado seu
lugar. Mas se alguém entende por revolução uma alteração
violenta e brusca, a Inglaterra não me parece madura para
semelhante evento.24

21
MARX/ENGELS, op. cit., 1848, p. 465.
22
TOCQUEVILLE, op. cit., 1840, IV, 8, p. 850.
23
Id., op. cit., 1835, II, 6, p. 274; id., op. cit., 1840, I, 13, p. 570; id., op. cit., 1856, III, 2, p. 180.
24
Id., op. cit., 1833/35, 7 septembre, p. 449.
268 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

A “grande revolução democrática”25 com que introduz o


Démocratie não implicava necessariamente uma explosão das
instituições políticas, mas era um processo de alteração da
sociedade como um todo: religião, família, economia, mídias de
massa, etc. As convicções, paixões e sentimentos, enfim, o ethos de
uma sociedade liberal e igualitária é uma parte indispensável à
existência de uma democracia. A despeito do que pode ter sugerido
a abertura dessa dissertação, não se está defendendo uma
estabilidade conservadora da democracia liberal, mas uma
transformação radical da sociedade, mediada por instituições
políticas e por diferentes esferas de liberdade. Uma autêntica teoria
crítica herdeira de Tocqueville precisa fazer um diagnóstico de
época da perspectiva da liberdade democrática, contra as novas
castas e aristocracias. A concepção da liberdade social serve-lhe de
critério para uma crítica imanente da sociedade burguesa.
Ao longo da dissertação, as concepções de liberdade
defendidas por Isaiah Berlin, Philip Pettit e Axel Honneth
auxiliaram a ressaltar as nuances e complicações de uma obra
“brilhante, exuberante e confusa”.26 Por meio desses filósofos
contemporâneos, um pensamento ultrapassado em alguns
aspectos pode se abrir a uma nova realidade. Retomando os
objetivos listados na introdução, demonstrou-se que (ii) as
concepções negativa e republicana da liberdade não traduzem a
ideia de liberdade que permeia os conceitos fundamentais
utilizados por Tocqueville porque (iii) abrigam valores e privilégios
desestabilizadores da democracia. Essas concepções adquirem
caráter turbulento, patológico, contraditório porque são
insuficientes para que os indivíduos reconheçam as práticas sociais
e políticas nas democracias modernas como conteúdo da liberdade,
como frutos de sua ação e racionalidade. A democracia liberal
25
Id., op. cit., 1835, introduction, p. 4.
26
ELSTER, Jon. Tocqueville on 1789: preconditions, precipitants, and triggers. In: WELCH, Cheryl B.
(Ed.). The cambridge companion to Tocqueville. Cambridge: Cambridge University Press, 2006,
p. 59-60.
Felipe Moralles e Moraes | 269

precisa tomar a si mesma como luz guia e procurar suas fontes de


legitimidade na efetividade social, sob o risco de ser eclipsada por
uma depressão sinistra. Afinal, quem clama pela mudança de tudo
que está aí, não faz mais do que ansiar pela tirania. Essa é a tarefa
da filosofia política: um pensamento que é, ao mesmo tempo, uma
recepção conceitual da sociedade moderna e um esclarecimento
sobre suas razões e irrazões imanentes.
De acordo com o assentado, (i) o liberalismo de Tocqueville
pode ser enquadrado como um modelo de teoria crítica das
democracias de massa, segundo o qual as classes econômicas e de
status funcionam antes como tipos sociológicos do que como
esferas de liberdade – em razão seja da reificação das relações
sociais, seja do intercâmbio crescente entre as diferentes classes. A
luta por liberdade é uma reivindicação por garantias de
participação em esferas de mútua autorrealização dos interesses –
como são a família, religião, mercado, associações, instituições
políticas. A ligação entre esses distintos contextos de liberdade é
costurada pela ideia de interesse bem compreendido: a utilidade ou
bem que resulta da participação ativa e argumentativa em relações
igualitárias cada vez mais abrangentes. Nisso há uma clara
interpenetração entre economia, cultura e política. A ideia de
interesse bem compreendido conecta a liberdade social à forma de
governo democrática, compreendida em sua tripla dimensão. O
princípio democrático é uma reivindicação para que haja
mobilidade social, para que sejam eliminadas as classes muito ricas
e muito pobres, para que as classes econômicas e de status não se
isolem e atuem contra as demais. A transformação aí implicada
põe em movimento as estruturas políticas que permitem
mudanças cada vez maiores e substanciais. As políticas de
democratização estão sempre expandindo os objetos de discussão e
os desejos de futuras reformas. A teoria crítica de Tocqueville
fornece uma concepção de liberdade que acomoda clamores sociais
variados, pensa remédios institucionais à má-distribuição e à falta
de reconhecimento e pode promover engajamento integrado às
270 | A teoria crítica de Alexis de Tocqueville

lutas sociais. Depois de arranhar os ouvidos do leitor com alguns


preconceitos oitocentistas, se abafados alguns ruídos aristocráticos,
esse modelo crítico auxilia a fazer um diagnóstico da sociedade
brasileira contemporânea que acomoda divisões étnicas,
econômicas, de gênero, em mútua imbricação, apontando para as
expectativas inerentes ao projeto democrático moderno, sem
esconder seus enormes obstáculos: o surgimento de novas
aristocracias; a iminente dominação majoritária, burocrática e
militar; as concepções concorrentes dos ideais de liberdade e
igualdade que impedem a compreensão da estrutura, princípio e
objeto democráticos.
É certo que melodias oitocentistas e francesas que se tentam
encaixar em novos e diferentes ritmos podem provocar às vezes
um mau efeito no ouvinte. “Um tempo nunca se ajusta
perfeitamente a outro”, reconhece Tocqueville.27 A dissertação
pretendeu mostrar, não obstante, que (iv) o nada que as
tendências de alhures poderiam significar à teorização crítica da
sociedade brasileira contemporânea pode não passar de uma
síncope: uma respiração um tanto displicente, uma pequena
suspensão do ritmo, para que soem aqui e agora com mais
desenvoltura. Para isso, foi invocada a situação das mulheres
negras, pobres e que moram longe dos grandes centros urbanos no
Brasil. Quando elas tiverem seus clamores atendidos, ascendendo
econômica, social e politicamente, soaria como puro misticismo
entender que a sociedade brasileira não mudou radicalmente. Do
ponto de vista tocquevilleano, se alguém deseja que a democracia
se estenda a essas pessoas, deve não só editar novas leis, mas
principalmente ampliar sua oportunidade de participação política,
de emprego, modificar seus papeis dentro da família, as atitudes de
outros em relação a elas, o modo como são representadas nas
mídias de massa, etc., é preciso levar adiante uma modificação em
cada uma das esferas sociais de realização recíproca dos interesses.

27
TOCQUEVILLE, op. cit., 1850/51, I, 4, p. 754-5
Felipe Moralles e Moraes | 271

Embora não mereçam privilégio ontológico em relação a outros


grupos ou movimentos, têm sua situação social de tal forma
enraizada aos princípios aristocráticos ainda existentes em nosso
país que sua alteração dificilmente não arrebataria uma grande
parte deles. Na bela frase de Angela Davis: “quando a mulher negra
se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com
ela”.28
Nesses termos, la mise en place de uma crítica radical da
sociedade moderna fica aquém de uma transformação do sistema
capitalista, diferentemente do que anseia a tradição herdeira de
Marx, mas se aproxima de uma transformação da sociedade
burguesa, com base nos valores imanentes do bem-estar material,
da igualdade de oportunidades e de corpos intermediários de
participação política, como vislumbrada por Tocqueville.

28
DAVIS, Angela. Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo.
Palestra proferida aos alunos da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 25 jul. 2017. Disponível
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