Filosofia Política (Kevin Daniel Dos Santos Leyser)

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GRUPO

Educao a Distncia

Caderno de Estudos

Filosofia Poltica

Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser


Prof. Gesiel Anacleto

UNIASSELVI
2015

NEAD
CENTRO UNIVERSITRIO
LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, n 1.040, Bairro Benedito
89130-000 - INDAIAL/SC
www.uniasselvi.com.br

Copyright UNIASSELVI 2015

Elaborao:
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser
Prof. Gesiel Anacleto

Reviso, Diagramao e Produo:


Centro Universitrio Leonardo da Vinci - UNIASSELVI

Ficha catalogrfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI Indaial.

100
L685f Leyser, Kevin Daniel dos Santos

Filosofia poltica / Kevin Daniel dos Santos Leyser, Gesiel


Anacleto. Indaial : UNIASSELVI, 2015.

340 p. : il.

ISBN 978-85-7830-881-0

1. Filosofia.
I. Centro Universitrio Leonardo Da Vinci.
APRESENTAO

Caro(a) acadmico(a)!
O presente Caderno de Estudos tem como objetivo sistematizar os elementos bsicos da
disciplina de Filosofia Poltica, o qual proporcionar um contato com os principais tpicos, autores e
obras da rea, alm dos instrumentos necessrios no apenas para acompanhar a disciplina ofertada,
mas tambm para os estudos autnomos posteriores.
Na primeira Unidade vamos nos concentrar em alguns autores e suas respectivas obras
fundamentais filosofia poltica. De Plato, analisaremos a Apologia de Scrates (2008a), Crton
(2008b) e A Repblica (2001), de Aristteles, A Poltica (1985, 2009) e de Maquiavel, O Prncipe
(2001b, 2009a).
No primeiro tpico desta Unidade, vamos introduzir as questes centrais que fundamentam a
filosofia poltica. Estas questes nortearo todo o desenvolvimento desta disciplina lanando problemas
perenes que perpassam desde a filosofia poltica clssica filosofia poltica contempornea. Assim,
em segundo lugar, vamos analisar a Apologia de Scrates (2008a), o contexto poltico da poca, as
acusaes contra Scrates e modelo de cidadania proposto por ele. Vamos estudar brevemente outro
dilogo platnico, uma obra intitulada Crton (2008b), veremos questes como: a desobedincia lei
justificada por princpios, a apologia de Crton e vamos aplicar as lies de Atenas ao nosso mundo
atual.
No segundo tpico, vamos estudar a famosa obra de Plato, A Repblica (2001), mais
especificamente, do Livro I ao V. Vamos introduzir, primeiramente, A Repblica de Plato e os
personagens centrais que compem o seu dilogo: Cfalo, Polemarco, Trismaco, Glucon e
Adimanto. Cada personagem com suas prprias caractersticas e argumentos sero centrais para a
compreenso da proposta da Repblica platnica, de seu pensamento poltico. A seguir, vamos nos
concentrar no papel da impetuosidade para o estabelecimento da cidade justa. Ento, j no Livro V
da Repblica, vamos analisar o controle das paixes, a proposta para a construo da cidade bela,
a questo da justia e do filsofo-rei. O que nos levar discusso do que Plato tem a dizer sobre
as democracias modernas.
No terceiro tpico vamos analisar a obra A Poltica (1985, 2009), vamos nos ater nos Livros
I-III, no conceito de Aristteles de que o homem naturalmente o animal poltico. Isso nos levar
a uma polmica tese aristotlica, aquela da naturalidade da escravatura. A seguir, vamos analisar,
no Livro IV da obra, questes sobre o regime poltico ou as formas de governo, assim como as suas
estruturas e instituies. Vamos nos ater um pouco sobre o regime democrtico e sobre questes
da lei, do conflito, do direito e da justia natural. Na discusso do Livro VII, veremos a proposta da
Politeia de Aristteles e as solues que ele prope para os problemas das faces. Vamos tambm
abordar a viso do filsofo sobre a propriedade e o comrcio, assim como, discutir sobre o seu modelo
para o melhor regime, a sua cincia poltica, sua percepo de um estadista e o seu mtodo para o
estudo da poltica.
No quarto tpico, nos concentraremos na anlise da obra O Prncipe (2001b, 2009a) de Nicolau
Maquiavel, vamos discutir a famosa distino que ele estabelece entre os profetas armados e os
profetas desarmados. Um tema central que tambm ser visto nesta parte a viso de Maquiavel

FILOSOFIA POLTICA iii


sobre o bem e o mal, a virtude e o vcio, e um problema central do pensamento de Maquiavel, o
problema das mos sujas, tal como seu papel na compreenso do envolvimento poltico.
Na segunda Unidade vamos analisar algumas obras fundamentais filosofia poltica
moderna. De Thomas Hobbes, analisaremos o Leviat (2003), de John Locke, o Segundo Tratado
sobre o Governo Civil (1994, 1998a) e de Jean-Jacques Rousseau, o Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens (1999b) e O Contrato Social (1996, 1999c).
No tpico sobre Thomas Hobbes, abordaremos temas como a arte, a cincia, a poltica, e a
legitimidade da autoridade no pensamento hobbesiano. Vamos focar na primeira parte, Do homem,
de sua obra o Leviat, aprofundando temas centrais como a individualidade, o conhecimento, o estado
de natureza, as paixes do orgulho e do medo e as leis da natureza. Ento, analisaremos a segunda
parte da obra, intitulada Da Repblica, discutindo temas como a doutrina do positivismo jurdico, o
liberalismo e o estado moderno hobbesiano.
No tpico sobre John Locke, veremos temas centrais do pensamento lockeano, como a teoria
da lei natural, o estado de natureza, a propriedade e o trabalho. Analisaremos tambm a relao
da perspectiva lockeana e o esprito do capitalismo, a ideia de um governo pelo consentimento, a
proposta de um governo limitado e o papel do poder executivo na teoria de Locke. Para finalizar o tpico
faremos uma comparao entre a teoria do liberalismo lockeano e a teoria da justia de John Rawls.
No tpico sobre Jean-Jacques Rousseau, vamos discutir sua concepo do Estado de
Natureza, e sua proposta da transio do homem deste estado sociedade. Veremos o papel do
conceito de amour-propre e sua relao com a desigualdade e o mal-estar na civilizao. A seguir,
vamos nos focar em sua obra O contrato Social, analisando tanto o papel deste contrato social e
o conceito de vontade geral. Finalizaremos nossa discusso das duas obras referidas com uma
considerao ao legado dos escritos rousseaunianos.
Na terceira Unidade faremos uma anlise sobre o totalitarismo a partir da obra de Hannah
Arendt. Nosso estudo levar em conta os aspectos principais dos regimes totalitrios que se
instalaram na Alemanha e na Rssia. O estado moderno ser assunto do segundo tpico tendo como
embasamento terico a obra de Eric Weil. O contedo desenvolvido a partir de Weil nos possibilita
compreender a maneira como o indivduo se relaciona com a comunidade da qual faz parte e qual a
importncia da sua participao poltica para o exerccio pleno da cidadania. No terceiro e ltimo tpico
faremos um estudo da justia, liberdade e igualdade a partir da magna obra Uma Teoria da Justia
de John Rawls. Esta obra consiste num clssico contemporneo sobre a justia como equidade.
apresentada como uma alternativa ao utilitarismo, pois a ideia principal visa concepo dos princpios
de justia que tenham como meta principal a liberdade e a igualdade de todos.
Lembre-se, sempre que necessrio realizar as leituras das obras e dos textos especficos
referidos neste caderno, assim como dos textos complementares, para que de fato o conhecimento
desta disciplina seja construdo.
Boa jornada a todos, rumo edificao da educao e sucesso frente aos desafios intelectuais,
ticos e pessoais proporcionados pelo estudo da filosofia poltica.

Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser e Prof. Gesiel Anacleto

FILOSOFIA POLTICA iv
UNI
Oi!! Eu sou o UNI, voc j me conhece das outras disciplinas.
Estarei com voc ao longo deste caderno. Acompanharei os seus
estudos e, sempre que precisar, farei algumas observaes.
Desejo a voc excelentes estudos!

UNI

FILOSOFIA POLTICA v
FILOSOFIA POLTICA vi
SUMRIO

UNIDADE 1 A FILOSOFIA POLTICA: PLATO, ARISTTELES E MAQUIAVEL ...... 1

TPICO 1 PLATO, A APOLOGIA DE SCRATES E CRTON ................................... 3


1 INTRODUO ................................................................................................................ 3
2 O QUE A FILOSOFIA POLTICA? .............................................................................. 4
2.1 O QUE UM REGIME POLTICO? ............................................................................. 6
2.2 QUEM UM ESTADISTA? O QUE UM ESTADISTA? ............................................. 9
2.3 QUAL O MELHOR REGIME? ................................................................................. 10
3 A CIDADANIA SOCRTICA: PLATO E A APOLOGIA ............................................. 12
3.1 O CONTEXTO POLTICO DO DILOGO .................................................................. 14
3.2 AS ACUSAES CONTRA SCRATES ................................................................... 16
3.3 AS NUVENS: SOLAPANDO O MODELO DE CIDADANIA DE SCRATES ............. 18
3.4 O GIRO SOCRTICO . ............................................................................................ 19
4 A CIDADANIA SOCRTICA: PLATO E CRTON . .................................................... 22
4.1 A DESOBEDINCIA LEI JUSTIFICADA POR PRINCPIOS . ................................. 24
4.2 A APOLOGIA DE CRTON ......................................................................................... 27
4.3 APLICANDO AS LIES SOCRTICAS AO NOSSO MUNDO CONTEMPORNEO ..... 31
RESUMO DO TPICO 1 ................................................................................................. 33
AUTOATIVIDADE ............................................................................................................ 34

TPICO 2 OS FILSOFOS E OS REIS: PLATO E A REPBLICA ......................... 35


1 INTRODUO .............................................................................................................. 35
2 PLATO E REPBLICA: LIVROS I-II . ........................................................................ 35
2.1 SOBRE O QUE A REPBLICA DE PLATO? . ...................................................... 36
2.3 FUI AT O PIREU .................................................................................................... 39
2.4 A CARTA STIMA . ..................................................................................................... 40
2.5 O INCIO DA REPBLICA E A HIERARQUIA DOS PERSONAGENS ...................... 42
2.6 CFALO ..................................................................................................................... 44
3 PLATO E A REPBLICA: LIVROS III-IV ................................................................... 46
3.1 POLEMARCO ............................................................................................................ 46
3.2 TRISMACO ............................................................................................................... 48
3.3 GLUCON . ................................................................................................................ 50
3.4 ADIMANTO . ............................................................................................................... 52
3.5 A IMPETUOSIDADE E O ESTABELECIMENTO DA CIDADE JUSTA ....................... 54
4 PLATO E A REPBLICA: LIVRO V . ......................................................................... 57
4.1 O CONTROLE DAS PAIXES . ................................................................................. 57
4.2 UMA PROPOSTA PARA A CONSTRUO DE KALLIPOLIS . .................................. 59
4.3 A JUSTIA . ................................................................................................................ 61
4.4 O FILSOFO-REI ...................................................................................................... 63
4.5 PLATO E AS DEMOCRACIAS MODERNAS ........................................................... 64
RESUMO DO TPICO 2 ................................................................................................. 68
AUTOATIVIDADE ............................................................................................................ 69

FILOSOFIA POLTICA vii


TPICO 3 O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTTELES E A POLTICA . 71
1 INTRODUO .............................................................................................................. 71
2 ARISTTELES E A POLTICA: LIVROS I-III ............................................................... 71
2.1 O HOMEM NATURALMENTE O ANIMAL POLTICO . ........................................... 74
2.2 A NATURALIDADE DA ESCRAVATURA .................................................................... 78
3 ARISTTELES E A POLTICA: LIVRO IV ................................................................... 81
3.1 O QUE UM REGIME POLTICO OU UMA FORMA DE GOVERNO? .................... 82
3.2 QUAIS SO AS ESTRUTURAS E INSTITUIES DO REGIME? ........................... 84
3.3 O REGIME DEMOCRTICO ..................................................................................... 86
3.4 A LEI, O CONFLITO E O REGIME . ........................................................................... 89
3.5 O PADRO ARISTOTLICO DE DIREITO NATURAL OU DE JUSTIA NATURAL ...... 91
4 ARISTTELES E A POLTICA: LIVRO VII .................................................................. 92
4.1 POLITEIA: O REGIME QUE CONTROLA AS FACES COM MAIOR SUCESSO . 92
4.2 A IMPORTNCIA DA PROPRIEDADE E DO COMRCIO PARA A REPBLICA
PRSPERA . .................................................................................................................... 94
4.3 A REPBLICA ARISTOCRTICA: UM MODELO PARA O MELHOR REGIME ........ 95
4.4 O QUE A CINCIA POLTICA DE ARISTTELES? ............................................... 99
4.5 QUEM UM ESTADISTA? ...................................................................................... 101
4.6 O MTODO DE CINCIA POLTICA DE ARISTTELES . ...................................... 102
RESUMO DO TPICO 3 ............................................................................................... 104
AUTOATIVIDADE .......................................................................................................... 106

TPICO 4 NOVOS MTODOS E SISTEMAS: Maquiavel E O prncipe ........... 107


1 INTRODUO ............................................................................................................ 107
2 Quem era Maquiavel? . ....................................................................................... 107
2.1 O Prncipe: O Ttulo e a Dedicao do Livro ............................................ 111
2.2 A distino entre profetas armados e desarmados ......................... 113
2.3 O BEM E O MAL, A VIRTUDE E O VCIO ................................................................ 114
3 NOVOS MTODOS E SISTEMAS .............................................................................. 116
3.1 COmentrios sobre Tito Lvio . ..................................................................... 118
3.2 O problema das mos sujas ........................................................................ 119
3.3 Maquiavel era um maquiavlico? ................................................................ 122
3.4 O que Maquiavel ALCANOU? ......................................................................... 125
LEITURA COMPLEMENTAR ........................................................................................ 127
RESUMO DO TPICO 4 ............................................................................................... 130
AUTOATIVIDADE .......................................................................................................... 133
AVALIAO . ................................................................................................................. 134

UNIDADE 2 FILOSOFIA POLTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE e ROUSSEAU . 135

TPICO 1 THOMAS HOBBES E O LEVIAT: O ESTADO SOBERANO . ............... 137


1 INTRODUO ............................................................................................................ 137
2 Quem foi Thomas Hobbes? ............................................................................... 137
2.1 Hobbes, Maquiavel e Aristteles ............................................................... 141
2.2 A Arte, A Cincia e A Poltica em Hobbes . .................................................. 144
2.3 O que torna a Autoridade legtima possvel? ....................................... 145

FILOSOFIA POLTICA viii


2.4 um relato plausvel do estado de natureza ...................................... 147
3 HOBBES E A INDIVIDUALIDADE: PARTE 1 DO HOMEM .................................... 148
3.1 Hobbes e A viso ctica do conhecimento ............................................. 150
3.2 O estado dE natureza ..................................................................................... 151
3.3 Orgulho e medo: As paixes que dominam a Natureza Humana ...... 153
3.4 As leis da Natureza .......................................................................................... 155
4 A Teoria da Soberania de Hobbes: Parte 2 da repblica . ............... 159
4.1 A Doutrina do Positivismo Jurdico: A Lei o que o Soberano Comanda .. 161
4.2 O liberalismo hobbesiano ............................................................................. 165
4.3 Hobbes e O Estado Moderno ........................................................................ 167
RESUMO DO TPICO 1 ............................................................................................... 170
AUTOATIVIDADE .......................................................................................................... 173

TPICO 2 JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO


CONSTITUCIONAL ....................................................................................................... 175
1 INTRODUO ............................................................................................................ 175
2 Quem John Locke? ........................................................................................... 175
2.1 John Locke e a Teoria da lei Natural ........................................................ 179
2.2 A LEI NATURAL E O ESTADO DE NATUREZA ....................................................... 181
2.3 A Propriedade, O Trabalho e A Teoria da lei Natural ......................... 187
3 Locke e o Esprito do Capitalismo ............................................................... 190
3.1 Governo pelo consentimento .................................................................... 192
3.2 O Governo limitado de Locke ...................................................................... 197
4 O Poder Executivo na teoria do governo de Locke ............................ 198
4.1 A teoria da justia de Rawls e a Teoria do liberalismo de Locke . 204
RESUMO DO TPICO 2 ............................................................................................... 209
AUTOATIVIDADE .......................................................................................................... 213

TPICO 3 Jean-Jacques Rousseau: o Discurso sobre a Desigualdade e


o Contrato Social ................................................................................................. 215
1 INTRODUO ............................................................................................................ 215
2 QUEM Jean-Jacques Rousseau? ................................................................. 215
2.1 O ESTADO DE NATUREZA DE ROUSSEAU .......................................................... 219
2.2 A transio do homem, da natureza sociedade: Civilizao e
propriedade ............................................................................................................. 224
3 o Discurso sobre a Desigualdade: A Participao e A democracia . 226
3.1 Amour-Propre: a causa mais durvel da Desigualdade .................... 227
3.2 O mal-estar na civilizao ............................................................................ 231
3.3 O Contrato Social . .......................................................................................... 235
4 O Contrato Social e a vontade geral ...................................................... 237
4.1 Aplicaes da vontade geral . .................................................................... 243
4.2 O Legado de Rousseau ................................................................................... 244
LEITURA COMPLEMENTAR......................................................................................... 247
RESUMO DO TPICO 3 ............................................................................................... 255
AUTOATIVIDADE .......................................................................................................... 259
AVALIAO . ................................................................................................................. 260

FILOSOFIA POLTICA ix
UNIDADE 3 FILOSOFIA POLTICA CONTEMPORNEA ......................................... 261

TPICO 1 O TOTALITARISMO .................................................................................. 263


1 INTRODUO ............................................................................................................ 263
2 HANNAH ARENDT ..................................................................................................... 264
3 ESTADO TOTALITRIO ............................................................................................. 265
3.1 A MENTIRA E O TERROR ....................................................................................... 265
3.2 A POLCIA SECRETA TOTALITRIA ....................................................................... 266
3.3 A PROPAGANDA ..................................................................................................... 269
3.4 AS MASSAS ............................................................................................................. 272
4 O ANTISSEMITISMO E OS APTRIDAS .................................................................. 275
5 TUDO POSSVEL ................................................................................................ 278
LEITURA COMPLEMENTAR ........................................................................................ 280
RESUMO DO TPICO 1 ............................................................................................... 282
AUTOATIVIDADE .......................................................................................................... 283

TPICO 2 A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVDUO ........................ 285


1 INTRODUO ............................................................................................................ 285
2 ERIC WEIL .................................................................................................................. 286
3 A DISCUSSO NA CONSTRUO SOCIAL ............................................................ 287
4 O ESTADO MODERNO .............................................................................................. 291
5 CIDADANIA ................................................................................................................ 297
6 A MORAL E A POLTICA . .......................................................................................... 297
7 O VALOR SOCIAL . .................................................................................................... 301
LEITURA COMPLEMENTAR ........................................................................................ 303
RESUMO DO TPICO 2 ............................................................................................... 304
AUTOATIVIDADE .......................................................................................................... 305

TPICO 3 JUSTIA, LIBERDADE E IGUALDADE .................................................. 307


1 INTRODUO ............................................................................................................ 307
2 JOHN RAWLS ............................................................................................................ 308
3 UMA ALTERNATIVA AO UTILITARISMO .................................................................. 309
5 A JUSTIA COMO EQUIDADE . ................................................................................ 311
5.1 O PRINCPIO DE DIFERENA . .............................................................................. 316
5.2 A ESTRUTURA BSICA DA SOCIEDADE . ............................................................. 317
5 O CONCEITO DE LIBERDADE E A LIBERDADE IGUAL ......................................... 320
5.1 TOLERNCIA . ......................................................................................................... 321
6 DEVER E OBRIGAO ............................................................................................. 323
7 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 324
LEITURA COMPLEMENTAR ........................................................................................ 325
RESUMO DO TPICO 3 ............................................................................................... 327
AUTOATIVIDADE .......................................................................................................... 328
AVALIAO . ................................................................................................................. 330
REFERNCIAS . ............................................................................................................ 331

FILOSOFIA POLTICA x
UNIDADE 1

A FILOSOFIA POLTICA: PLATO,


ARISTTELES E MAQUIAVEL

Objetivos de aprendizagem

Esta unidade tem por objetivos:

conceituar e delimitar o campo de investigao da Filosofia Poltica;


conhecer questes centrais Filosofia Poltica em Plato,
Aristteles e Maquiavel;
analisar as contribuies dos pensadores Filosofia Poltica a
partir de suas obras: Apologia de Scrates, Crton e A Repblica
(Plato); Poltica (Aristteles) e; O Prncipe (Maquiavel).
compreender o pensamento da Filosofia Poltica Clssica (Plato
e Aristteles) e a transio paradigmtica no pensamento poltico
de Maquiavel.

PLANO DE ESTUDOS

Esta unidade est dividida em quatro tpicos e no final de


cada um deles voc encontrar atividades que reforaro o seu
aprendizado.

TPICO 1 - PLATO, A APOLOGIA DE SCRATES


E CRTON

TPICO 2 - OS FILSOFOS E OS REIS: PLATO E


A REPBLICA F
I
TPICO 3 - A POLTICA DE ARISTTELES E O L
REGIME MISTO O
S
O
TPICO 4 - NOVOS MTODOS E SISTEMAS: F
MAQUIAVEL E O PRNCIPE I
A

P
O
L

T
I
C
A
F
I
L
O
S
O
F
I
A

P
O
L

T
I
C
A
UNIDADE 1

TPICO 1

PLATO, A APOLOGIA DE SCRATES E


CRTON

1 INTRODUO

Neste tpico, em primeiro lugar, vamos introduzir as questes centrais que fundamentam
a filosofia poltica. Questes como: O que a filosofia poltica? O que um regime poltico? O
que um estadista? Qual o melhor regime? Estas questes nortearo todo o desenvolvimento
desta disciplina, lanando problemas perenes que perpassam desde a filosofia poltica clssica
filosofia poltica contempornea. Por mais que os problemas permaneam, as respostas aos
mesmos so variadas e divergem entre os autores, constituindo assim um campo heterogneo
e rico, com propostas distintas para as questes centrais da filosofia poltica.

So estas respostas s questes centrais da filosofia poltica que constituem o material


analisado nesta disciplina. bvio que seria impossvel contemplar todos os autores, desde
os clssicos aos contemporneos. Por isso, optamos por alguns autores especficos do
perodo da filosofia poltica clssica: Scrates/Plato e Aristteles; da transio deste perodo
ao Moderno: Maquiavel os quais sero vistos nesta primeira unidade. Autores do perodo
da filosofia poltica moderna: Hobbes, Locke e Rousseau, que sero vistos na Unidade 2; e
autores do perodo da filosofia poltica contempornea: Hannah Arendt, Eric Weil e John Rawls,
que sero vistos na Unidade 3.

Optamos por analisar obras especficas de cada autor referido acima, consagradas F
I
como centrais para compreender seu pensamento poltico. A leitura dessas obras dever L
O
acompanhar a leitura deste Caderno de Estudos. Na medida em que voc avana nos tpicos S
O
das unidades, recomendamos sempre retornar leitura atenta das obras discutidas, pois assim F
I
poder compreender com mais profundidade cada tema abordado, ampliando sua capacidade A
de anlise e interpretao. P
O
L
Assim, em segundo lugar, vamos analisar neste tpico a obra de Plato (428/427 AEC
T
348/347 AEC) intitulada Apologia de Scrates (2008a), cuja leitura, como referido, obrigatria I
C
A
4 TPICO 1 UNIDADE 1

para esta disciplina. Neste dilogo de Plato vamos discutir o contexto poltico da poca, as
acusaes contra Scrates e o modelo de cidadania proposto por ele, quem consideramos ser
o fundador da filosofia poltica.

A seguir, em terceiro lugar, vamos analisar brevemente outro dilogo platnico, uma
obra intitulada Crton (2008b), que tambm de leitura obrigatria para esta disciplina. Aqui
veremos questes como: a desobedincia lei justificada por princpios, a apologia de Crton,
e vamos aplicar as lies de Atenas ao nosso mundo de hoje.

Por fim, voc poder ler o resumo deste tpico 1 e depois realizar a sua autoatividade.

2 O QUE A FILOSOFIA POLTICA?

Vamos comear levantando a seguinte questo: o que filosofia poltica? O costume


dita que de incio se diga algo sobre o assunto em questo. De algum modo isto ser pr a
carroa na frente dos bois, pois, como podemos dizer o que filosofia poltica antes de faz-
lo? De qualquer modo, vamos expor questes teis.

Em um sentido, podemos dizer que filosofia poltica simplesmente uma ramificao


ou o que chamamos de um subcampo do campo da cincia poltica. Sim, ela existe ao lado de
outras reas da investigao poltica, como, por exemplo, a poltica comparativa e as relaes
internacionais. Todavia, em outro sentido, a filosofia poltica algo muito diferente do que um
simples subcampo; parece ser a parte mais antiga e fundamental da cincia poltica. Seu
propsito desnudar, por assim dizer, os conceitos fundamentais e categorias que enquadram
o estudo da poltica. A este respeito aparenta menos como meramente uma ramificao da
cincia poltica e mais como a fundao da disciplina como tal.

O estudo da filosofia poltica frequentemente inicia, como tambm faremos neste


Caderno de Estudos, com o estudo dos grandes livros ou alguns dos grandes livros de nosso
campo. A filosofia poltica a mais antiga das cincias sociais, e pode ostentar uma riqueza de
F
I pesos pesados, desde Plato e Aristteles a Maquiavel, Hobbes, Hegel, Tocqueville, Nietzsche,
L
O e assim por diante. Poderamos dizer que a melhor maneira de aprender o que filosofia poltica
S
O seria simplesmente estudar e ler os trabalhos daqueles que moldaram o campo. Entretanto, para
F
I fazer isso, devemos reconhecer que um trabalho com riscos, com frequncia, riscos graves
A
por si ss. Por exemplo, por que estudar estes autores e no outros? Uma lista de supostos
P
O grandes pensadores ou grandes textos no , de algum modo, arbitrria, dizendo-nos mais
L
sobre o que tal lista exclui que o que ela inclui? Alm disso, poderia parecer que o estudo de
T
I grandes livros e grandes pensadores do passado pode facilmente degenerar em um tipo de
C
A antiquarismo, em um tipo de pedantismo. Ns nos encontramos facilmente intimidados por
UNIDADE 1 TPICO 1 5

uma lista de nomes famosos e acabamos no pensando em ns mesmos. Seguindo nessa


linha de pensar, ser que o estudo de livros antigos, com frequncia muito antigos, no pe
em risco passar despercebidas as questes que enfrentamos na atualidade? A cincia poltica
no faz nenhum progresso? Afinal, economistas no leem mais Adam Smith. No hesitaria em
afirmar que muitos no leriam Adam Smith em um curso de Economia, assim como provvel
que muitos no lessem Freud em um curso de Psicologia. Ento, por que a cincia poltica,
aparentemente singular entre as cincias sociais, continua a estudar Aristteles, Locke, e outros
autores e suas obras antigas?

Estas so todas questes reais, as levantamos agora para que possam pensar sobre
estas questes na medida em que fazem as suas leituras e trabalhos desta disciplina. Uma
razo pela qual sugerimos que continuemos a ler estes livros no porque a cincia poltica no
faz nenhum progresso, ou que de alguma forma est exclusivamente fixada em um passado
antigo, mas porque estas obras nos fornecem as perguntas mais bsicas que continuam a
orientar o nosso campo. Ns continuamos a fazer as mesmas perguntas que foram feitas por
Plato, Maquiavel, Hobbes e outros. Ns podemos no aceitar as suas respostas, e bem
provvel que ns no o faamos, mas suas perguntas so, muitas vezes, formuladas com
uma clareza e discernimento inigualvel. O fato que ainda existem pessoas no mundo,
muitas pessoas, que se consideram aristotlicos, tomistas, lockeanos, kantianos, at mesmo
marxistas podem ser encontrados nas vrias universidades nacionais e internacionais. Estas
doutrinas simplesmente no foram refutadas, ou substitudas, ou historicamente superadas;
elas permanecem, em muitos aspectos, constitutivas de nossas perspectivas e atitudes mais
bsicas. Assim, a filosofia poltica no apenas algum tipo de estranho apndice histrico
ligado ao tronco da cincia poltica; constitutiva de seus problemas mais profundos.

Se voc duvida da importncia do estudo das ideias polticas para a poltica, considere
as obras de um economista famoso, John Maynard Keynes. Keynes escreveu em 1935: as
ideias dos economistas e dos filsofos polticos, estejam elas certas ou erradas, tm mais
importncia do que geralmente se percebe [...]. Os homens objetivos, Keynes continua, que
se julgam livres de qualquer influncia intelectual so, em geral, escravos de algum economista
defunto. Os insensatos, que ocupam posies de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam
seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadmico de certos anos atrs (KEYNES,
1996, p. 349). Portanto, esta disciplina ser dedicada ao estudo dos "escribas acadmicos" que
F
escreveram livros que continuam a impressionar e criar as formas de autoridade com a qual I
L
estamos familiarizados. Mas uma coisa que no devemos fazer abordar estas obras como se O
S
elas fornecessem de alguma forma respostas prontas e acabadas para os problemas atuais. S O
F
ns podemos fornecer respostas para os nossos problemas. Pelo contrrio, as grandes obras I
A
nos fornecem, por assim dizer, um repositrio de questes fundamentais ou permanentes que
P
os cientistas polticos ainda continuam a confiar em seu trabalho. Os grandes pensadores so O
L
grandes no porque eles criaram um conjunto de peas de museu que podem ser catalogadas,
admiradas e depois ignoradas como uma espcie de galeria de antiguidades em um museu T
I
de arte, mas sim, porque eles definiram os problemas que todos os pensadores e estudiosos C
A
6 TPICO 1 UNIDADE 1

posteriores tiveram de usar, a fim de dar sentido ao seu mundo. Mais uma vez, ns ainda
pensamos em termos dos conceitos bsicos e categorias que foram criadas h muito tempo.

Ento, uma coisa que voc vai notar rapidamente que no h respostas permanentes
em um estudo da filosofia poltica. Um ditado corriqueiro no mundo acadmico que para
"cada questo deve ter uma resposta correta, para cada pergunta uma resposta". Isso em si
uma proposta eminentemente contestvel. Entre os grandes pensadores h uma profunda
divergncia sobre as respostas at para as questes mais fundamentais em relao justia,
aos direitos, liberdade. Em filosofia poltica, uma resposta nunca suficiente para responder
a uma pergunta com uma declarao "porque Plato diz isso", ou "porque Nietzsche diz
isso". No h autoridades finais a esse respeito na filosofia, porque at mesmo os maiores
pensadores discordam profundamente um com o outro sobre suas respostas, e precisamente
este desacordo um com o outro que torna possvel para ns, os leitores de hoje, entrar em sua
conversao. Somos chamados primeiro a ler e ouvir, e depois a avaliar "quem est certo?"
e "como sabemos isso?". A nica maneira de decidir no submeter-se autoridade, no
importa de quem for a autoridade, mas de confiar em nossos prprios poderes da razo e
do juzo; em outras palavras, a liberdade da mente humana para determinar para ns o que
parece certo ou melhor.

Mas o que so esses problemas a que estamos nos referindo? Quais so esses
problemas que constituem o objeto de estudo da poltica? Quais so as perguntas que os
cientistas polticos tentam responder? Essa lista pode ser longa, mas no infinita. Entre as
questes mais antigas e ainda mais fundamentais esto: O que a justia? Quais so os
objetivos de uma sociedade decente? Como deve ser educado um cidado? Por que eu
deveria obedecer lei, e quais so os limites, se houver, minha obrigao? O que constitui
o fundamento da dignidade humana? a liberdade? a virtude? o amor, a amizade? E,
claro, a questo da mais alta importncia, como diria Strauss (1978, p. 241), mesmo que os
filsofos polticos e cientistas polticos raramente a pronunciem, quid sit deus, o que Deus,
ser que ele existe? E o que isso implica para as nossas obrigaes como seres humanos e
cidados? Esses so alguns dos problemas mais bsicos e fundamentais do estudo da poltica.
Ainda assim poderamos perguntar: onde que se entra neste debate? Em quais perguntas
e pensadores devemos focar?
F
I
L
O
S
O
F 2.1 O QUE UM REGIME POLTICO?
I
A

P
O Talvez a pergunta mais antiga e mais fundamental que examinaremos, no decurso deste
L
Caderno de Estudos, esta: o que um regime poltico ou formas de governo? O que so os
T
I regimes polticos? O que so as polticas de regimes? O termo "regime" um termo familiar.
C
A Com frequncia ouvimos, hoje, sobre mudanas de regimes, mas o que isso? Quantos tipos
UNIDADE 1 TPICO 1 7

existem? Como eles so definidos? O que os mantm e o que os faz ruir? Existe uma forma
de governo nica e melhor? Essas so perguntas que consideraremos.

O conceito de regime talvez a mais antiga e fundamental das ideias polticas. Ela
remonta a Plato e mesmo antes dele. Na verdade, o livro que voc dever ler como parte
desta disciplina, a Repblica (2001) de Plato, , uma traduo da palavra grega politea,
que significa constituio ou regime. A Repblica um livro sobre o regime e toda a filosofia
poltica posterior consiste de uma srie de notas de rodap a Plato (WHITEHEAD, 2010,
p. 39), e isso significa que ela deve fornecer uma srie de variaes, por assim dizer, sobre
a concepo de Plato do melhor regime. Mas o que um regime? Em termos gerais, um
regime indica uma forma de governo, se governado por um, por alguns, por muitos ou, como
mais comum, uma mistura, uma combinao destas trs formas de governo dominantes. O
regime definido em primeira instncia pela forma como as pessoas so regidas e como os
cargos pblicos so distribudos, seja por eleio, por nascimento, por sorteio, por qualidades
e realizaes pessoais notveis, e o que constitui os direitos e responsabilidades de um povo.
Portanto, o regime refere-se, sobretudo, a uma forma de governo. O mundo poltico no se
apresenta simplesmente como uma variedade infinita de formas diferentes. Ele estruturado e
ordenado em alguns tipos bsicos de regimes. Consideramos ser esta questo uma das mais
importantes proposies e ideias da cincia poltica.

Mas h um corolrio dessa viso. Pois o regime sempre algo particular, est em
uma relao de oposio a outros tipos de regimes e, como consequncia, a possibilidade de
conflito, de tenso e guerra est embutida na prpria estrutura da poltica.

Regimes so necessariamente partidrios, isso quer dizer que incutem certas lealdades
e paixes da mesma forma que uma pessoa pode sentir partidarismo referente a um time de
futebol. Lealdade feroz e partidarismo so inseparveis do carter da poltica de regime. Estes
adendos passionais no so apenas algo que ocorre entre os diferentes regimes, mas mesmo
dentro de um mesmo regime, como entre diferentes partidos e grupos que lutam pelo poder, pela
honra, e por diversos interesses. Henry Adams uma vez refletiu cinicamente que a poltica, na
prtica, seja qual for a ideologia, sempre consistiu na organizao sistemtica do dio (1907,
p. 5, traduo nossa), e h mais do que uma pitada de verdade nisso, embora ele no tenha
dito que tambm uma tentativa de canalizar e redirecionar esses dios e animosidades em
F
direo a um bem comum. Isso levanta a questo de saber se possvel transformar a poltica, I
L
para substituir a inimizade e o conflito entre faces com a amizade, para substituir o conflito O
S
com a harmonia? Hoje, a esperana de muitas pessoas, tanto aqui como no exterior, de que O
F
possamos at mesmo superar, at mesmo transcender completamente a estrutura bsica da I
A
poltica de regime e organizar o nosso mundo em torno de normas globais de justia e do direito
P
internacional. possvel uma coisa dessas? Essa possibilidade no pode ser descartada, O
L
mas tal mundo um mundo administrado por tribunais de direito internacional, por juzes e
tribunais judiciais j no seria um mundo poltico. A poltica s tem lugar dentro do contexto T
I
do particular. S possvel dentro da estrutura do prprio regime. C
A
8 TPICO 1 UNIDADE 1

Mas um regime mais do que simplesmente um conjunto de estruturas e instituies


formais. constitudo pelo modo de vida, pelas prticas morais e religiosas, hbitos, costumes
e sentimentos que fazem um povo ser o que eles so. O regime constitui um ethos, ou seja, um
carter distintivo, que nutre tipos humanos especficos. Cada regime molda um carter comum,
um tipo de carter comum com traos e qualidades peculiares. Assim, o estudo da poltica
de regime , em parte, um estudo dos distintos tipos de caracteres nacionais que constituem
um corpo de cidados. Para dar um exemplo do que quero dizer, quando Tocqueville estudou
o regime americano ou o regime democrtico, propriamente falando, em A democracia na
Amrica (2000, 2005), ele comeou com as instituies polticas formais como enumeradas
na Constituio, coisas como a separao de poderes, a diviso entre o Estado e o governo
federal e assim por diante. Mas, depois passou a olhar para prticas informais, tais como os
costumes e a moral dos americanos, as suas tendncias em formar pequenas associaes
cvicas, o moralismo peculiar e a vida religiosa, a atitude defensiva sobre a democracia e assim
por diante. Todos estes costumes, hbitos morais e intelectuais ajudaram a constituir o regime
democrtico. Neste sentido, o regime descreve o carter ou a afinao de uma sociedade. O
que uma sociedade considera mais louvvel e o que almeja alcanar. Voc no pode entender
um regime a menos que entenda o que aquele povo representa, o que eles almejam, assim
como a estrutura das suas instituies, dos seus direitos e privilgios.

Isso levanta mais um conjunto de perguntas que iremos considerar ao longo desta
disciplina neste Caderno de Estudos. Como os regimes so fundados? O que os traz existncia
e os sustenta ao longo do tempo? Para pensadores como Tocqueville, por exemplo, os regimes
esto incorporados nas estruturas profundas da histria humana que tm determinado durante
longos sculos a forma das nossas instituies polticas e a maneira como pensamos sobre
elas. Outras vozes dentro da tradio, como Plato, Maquiavel e Rousseau, acreditavam que
os regimes podem ser fundados conscientemente por meio de atos deliberados de grandes
estadistas ou pais fundadores. Esses estadistas Maquiavel, por exemplo, refere-se a
Rmulo, Moiss e Ciro, como os fundadores exemplares; podemos pensar em homens como
Washington, Jefferson, Adams e similares so formadores de povos e instituies. O primeiro
captulo do livro O Federalista, por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, j comea
levantando esta questo em termos mais claros. Estava reservado Amrica resolver essa
F
importante questo, escreve Hamilton, se os homens so capazes de dar a si mesmos um
I
L
bom governo por prpria reflexo e escolha, ou se a Providncia os condenou a receberem
O
S
eternamente a sua Constituio poltica, da fora ou do acaso (2003, p. 13). Vemos Hamilton
O
F
fazendo a pergunta bsica sobre a fundao das instituies polticas: so elas criadas, como
I ele escreve, pela "reflexo e escolha", ou seja, por um ato deliberado de poltica e inteligncia
A
humana consciente, ou os regimes sempre so produtos do acidente, da circunstncia, do
P
O costume e da histria?
L

T
I
C
A
UNIDADE 1 TPICO 1 9

2.2 QUEM UM ESTADISTA? O QUE UM ESTADISTA?

A ideia de que os regimes podem ser criados ou fundados por um conjunto de atos
deliberados levanta outra questo que vamos estudar, e que inseparvel do estudo dos
regimes polticos. Quem um estadista? O que um estadista? Mais uma vez, uma das
questes mais antigas da cincia poltica, todavia raramente levantada pela cincia poltica
de hoje, que muito ctica em relao prtica de um estadista. Em seu sentido mais antigo,
cincia poltica era simplesmente uma cincia da arte de governar. Foi direcionada ao estadista
ou estadistas em potencial encarregados de conduzir o navio do Estado. Quais so as
qualidades necessrias para um governar sadio? Como a arte de governar difere de outros tipos
de atividades? Deve um bom estadista, como Plato acreditava, por exemplo, ser um filsofo
versado em poesia, matemtica e metafsica? Ou o governar, como acreditava Aristteles, uma
habilidade puramente prtica, exigindo julgamento baseado na deliberao e na experincia?
Um vestgio de crueldade e uma disposio para agir imoralmente so necessrios para a
arte de governar, como Maquiavel argumentou infamemente? Deve o estadista ser capaz de
literalmente transformar a natureza humana, como afirma Rousseau, ou o soberano mais ou
menos um burocrata sem rosto ao modo de um diretor executivo, um CEO (Chief Executive
Officer) moderno, como, por exemplo, algum como Hobbes parece ter acreditado? Todos os
textos que vamos abordar neste Caderno de Estudos e que recomendamos a leitura integral
a Apologia de Scrates, Crton e A Repblica (Plato); a Poltica (Aristteles); O Prncipe
(Maquiavel); Leviat (Hobbes); o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil (Locke); Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e O Contrato Social
(Rousseau); Origens do Totalitarismo (Arendt); Filosofia Poltica (Eric Weil); Uma Teoria
da Justia (Rawls) tm opinies diferentes sobre as qualidades de um estadista e quais so
as qualidades necessrias para fundar e manter Estados.

Tudo isso outra maneira de dizer, ou pelo menos implicar, que a filosofia poltica
uma disciplina eminentemente prtica, um campo prtico. Seu objetivo no simplesmente
a contemplao, o seu objetivo no meramente a reflexo, mas dar conselhos. Nenhum
dos autores que vamos abordar neste Caderno de Estudos foi um estudioso enclausurado
e desapegado do mundo, embora este seja um preconceito muito comum contra a filosofia F
I
poltica. Todavia, os grandes pensadores estavam muito longe de serem apenas intelectuais L
O
desapegados. Plato empreendeu trs viagens longas e perigosas para Siclia, a fim de S
O
aconselhar o rei Dionsio. Aristteles era um tutor de Alexandre, o Grande. Maquiavel passou F
grande parte de sua carreira no Servio Exterior, como assessor de sua Florena natal, I
A
e escreveu como um conselheiro dos Mdici. Hobbes foi o tutor de uma famlia real que
P
acompanhou o rei para o exlio durante a Guerra Civil Inglesa. Locke foi associado com o Crculo O
L
de Shaftesbury e tambm foi forado ao exlio depois de ser acusado de conspirar contra o rei
T
ingls. Rousseau no tinha conexes polticas oficiais, mas ele sempre assinou seu nome como I
C
A
10 TPICO 1 UNIDADE 1

Jean-Jacques Rousseau, "cidado de Genebra", e foi procurado para escrever constituies


para a Polnia e para a ilha de Crsega. Finalmente, Tocqueville foi membro da Assembleia
Nacional Francesa, cuja experincia da democracia americana afetou profundamente a forma
como ele via o futuro da Europa. Assim, os grandes pensadores polticos estiveram tipicamente
engajados na poltica de seu tempo e fornecem, desse modo, modelos de como pensaramos
sobre a nossa poltica.

2.3 QUAL O MELHOR REGIME?

O estudo dos regimes polticos, implcita ou explicitamente, levanta uma questo que vai
alm do limite de uma determinada sociedade. Um regime constitui o modo de vida de um povo,
o que eles acreditam que faz sua vida valer a pena, ou, para coloc-lo de forma ligeiramente
diferente, o que um povo representa. Embora estejamos mais familiarizados com o carter
de um regime democrtico moderno como o nosso, o estudo da filosofia poltica , em muitos
aspectos, uma espcie de imerso no que poderamos chamar de poltica comparada; quer
dizer que nos introduz as variedades de regimes, cada um com seu prprio conjunto distinto de
reivindicaes ou princpios, cada um disputando e em potencial conflito com todos os outros.
Subjacente a essa cacofonia de regimes jaz a pergunta perene: qual destes regimes o
melhor? O que uma reivindicao tem ou deveria ter sobre a nossa lealdade e consentimento
racional?

A filosofia poltica sempre guiada pela questo do melhor regime. Mas o que o
melhor regime? At mesmo levantar tal questo parece constituir obstculos insuperveis.
No seria isso um julgamento completamente subjetivo, o que pensamos ser o melhor
regime? Como poderamos comear esse tipo de estudo? O melhor regime , como os
antigos tendiam a acreditar Plato, Aristteles e outros , uma repblica aristocrtica em que
apenas os poucos virtuosos habitualmente governam; ou o melhor regime , como acreditam
os modernos, uma repblica democrtica em que, em princpio, o cargo poltico est aberto a
todos apenas em virtude de sua participao na sociedade? Ser que o melhor regime seria
uma pequena sociedade fechada que atravs de geraes faria um sacrifcio supremo para
F
I atingir a autoperfeio? Ou ser que o melhor regime seria uma grande ordem cosmopolita
L
O envolvendo todos os seres humanos, talvez at mesmo uma espcie de Liga Universal das
S
O Naes consistindo de todos os homens e mulheres livres e iguais?
F
I
A
Qualquer que seja a forma que o melhor regime assuma, ser sempre a favor de certo
P
O tipo de ser humano com certo conjunto de traos de carter. O tipo de homem comum, que
L
encontrado nas democracias; os que possuem gostos seletos e dinheiro, nas aristocracias;
T
I o guerreiro ou at mesmo o sacerdote, nas teocracias. Isto, finalmente, levanta a questo da
C
A
relao entre o melhor regime ou o bom regime, e o que podemos dizer que so os regimes
UNIDADE 1 TPICO 1 11

realmente existentes, regimes dos quais somos todos familiarizados. Qual a funo que o melhor
regime tem na cincia poltica? Como que pode conduzir nossas aes aqui e agora? Este
assunto recebeu um tipo de formulao clssica na distino aristotlica, do que ele chamou
de o bom ser humano (o homem de bem) e o bom cidado. Para o bom cidado iremos
discorrer detalhadamente sobre este assunto quando falarmos da Poltica de Aristteles voc
poderia dizer que o patriotismo o suficiente, sustentar e defender as leis de seu prprio pas,
simplesmente porque elas so as suas prprias leis tanto necessrio quanto suficiente. Tal
ponto de vista da virtude do cidado colide na objeo bvia de que o bom cidado de um regime
vai estar em desacordo com o bom cidado de outro: um bom cidado do Ir contemporneo
no ser o mesmo que um bom cidado do Brasil contemporneo.

Mas o bom cidado, Aristteles prossegue, no o mesmo que o bom ser humano. Onde
o bom cidado relativo ao regime, pode-se dizer especfico ao regime, o bom ser humano
bom em todos os lugares. O bom ser humano ama o que bom simplesmente, no porque
seu, mas porque bom. Algo semelhante a isso foi demonstrado no elogio de Abraham Lincoln
a Henry Clay. Lincoln (2009, p.133, traduo nossa) escreveu sobre Clay: ele amava o seu
pas, em parte porque era o seu prprio pas, mas principalmente porque era um pas livre".
Seu ponto que Clay exibiu, pelo menos no dizer de Lincoln, algo do filsofo, o que ele amava
era uma ideia, a ideia de liberdade. Essa ideia no era a propriedade de um pas em particular,
mas era constitutivo de qualquer boa sociedade. O bom ser humano, ao que parece, seria um
filsofo, ou pelo menos teria algo filosfico sobre ele, e que s poderia sentir-se totalmente
em casa no melhor regime. Todavia, bvio que o melhor regime carece de realidade. Ns
todos sabemos que ele nunca existiu. Aparentemente o melhor regime encarna um paradoxo
supremo. superior em algumas maneiras a todos os regimes reais, mas no possui nenhuma
existncia concreta em qualquer lugar. Isso torna difcil (e este o ponto de Aristteles) para o
filsofo ser um bom cidado de qualquer regime real. A filosofia nunca vai se sentir totalmente
ou verdadeiramente em casa em qualquer sociedade particular. O filsofo nunca pode ser
verdadeiramente fiel a algum ou alguma coisa, a no ser ao que o melhor. Pense nisso,
pois levanta uma questo sobre temas sobre o amor, a lealdade e amizade.

Esta tenso entre o melhor regime e qualquer regime real o espao que torna a
filosofia poltica possvel. Se pudssemos habitar no melhor regime, a filosofia poltica seria
desnecessria ou redundante, simplesmente esvaneceria. A filosofia poltica existe e s existe
F
na "zona de indeterminao" entre o "" e o "dever ser", entre o real e o ideal. por isso que a I
L
filosofia poltica sempre e necessariamente um empreendimento potencialmente perturbador. O
S
Aqueles que embarcam na busca pelo conhecimento do melhor regime podem retornar no O
F
sendo as mesmas pessoas que eram antes. Voc pode voltar com muitas lealdades e fidelidades I
A
diferentes do que as que voc tinha no incio. Mas h alguma compensao por isso. Os
P
gregos antigos tinham uma bela palavra para esta misso, para este desejo de conhecimento O
L
do melhor regime. Chamavam de Eros, ou amor. A busca de conhecimento do melhor regime
deve, necessariamente, ser acompanhada, sustentada e elevada pelo Eros. Voc pode no ter T
I
percebido no momento que iniciou a ler este Caderno de Estudos, desta disciplina especfica, C
A
12 TPICO 1 UNIDADE 1

mas o estudo da filosofia poltica pode ser o maior tributo que pagamos ao amor. Pense nisso,
e enquanto voc est pensando sobre o assunto, pode comear a ler a obra Apologia de
Scrates, de Plato, que vamos discutir logo a seguir.

3 A CIDADANIA SOCRTICA: PLATO E A APOLOGIA

Vamos iniciar esta parte com Plato, mais especificamente, com a Apologia de
Scrates (2008a), de Plato. Este o melhor texto de introduo ao estudo da filosofia
poltica. Por qu? Deixe-me dar-lhe duas razes. Primeiro, mostra Scrates, o renomado
fundador da nossa disciplina, o fundador da Filosofia Poltica, explicando-se e justificando-se,
justificando seu modo de vida perante um jri de seus pares. Mostra Scrates falando em um
frum pblico, defendendo a utilidade da filosofia para a vida poltica. E, em segundo lugar,
a Apologia demonstra tambm a vulnerabilidade da filosofia poltica em sua relao com a
cidade, em sua relao com o poder poltico. A Apologia coloca em julgamento no apenas
um indivduo em particular, Scrates, mas coloca em julgamento a prpria ideia de filosofia.
Desde o incio, a filosofia e a cidade, a filosofia e a vida poltica, estiveram em uma espcie
de tenso uma com a outra. Scrates acusado, como veremos, pela cidade por corromper
a juventude e por impiedade contra os deuses. Em outras palavras, ele acusado de traio,
um crime capital. Nenhuma outra obra de que temos conhecimento nos ajuda a pensar melhor
atravs do conflito, necessrio e inevitvel, entre a liberdade da mente e as exigncias da vida
poltica. Estas duas coisas, esses dois bens, por assim dizer, a liberdade de esprito e a vida
poltica, so compatveis ou esto necessariamente em conflito um com o outro? Isso parece
ser a questo fundamental que a Apologia nos pede para considerar.

H geraes, a Apologia tem se destacado como um smbolo contra a violao da


liberdade de expresso. Ela define o caso de um indivduo comprometido com a vida examinada
acima de, e contra uma multido intolerante e preconceituosa. A afirmao mais clara deste
ponto de vista do indivduo ajustado contra a multido encontrada em uma obra de um libertrio
civil muito famoso, do sculo XIX, um homem chamado John Stuart Mill. Em seu famoso tratado,
chamado simplesmente de Sobre a Liberdade, Mill escreveu: "No ser demais recordar
F
I humanidade que houve, uma vez, um homem chamado Scrates entre quem e as autoridades
L
O legais, e mais a opinio pblica do seu tempo, se verificou uma coliso memorvel." (2010, p.
S
O 55). Uma e outra vez Scrates tem sido descrito como um mrtir da liberdade de expresso e
F
I ele tem sido at mesmo comparado, em vrios momentos, a Jesus, a Galileu, a Sir Thomas
A
More, e tem sido usado como um modelo a seguir por pensadores e ativistas polticos desde
P
O Henry David Thoreau, a Gandhi e a Martin Luther King. Assim, Scrates se tornou um smbolo
L
central de resistncia poltica e de resistncia ao poder poltico.
T
I
C
A Essa leitura da Apologia, voc pode dizer, uma espcie de defesa da liberdade de
UNIDADE 1 TPICO 1 13

expresso e uma advertncia contra os perigos da censura e perseguio. Embora esta tenha
sido uma interpretao muito influente ao longo dos sculos, pelo menos no ltimo sculo
e meio, voc tem que se perguntar: esta a leitura que Plato pretendia? Ser que Plato
queria que lssemos o dilogo dessa maneira? Como alguns professores de filosofia clssica
costumam dizer: "Voc l Plato do seu jeito, eu o lerei do jeito dele." Mas, como que Plato
pretende que este dilogo seja entendido? Perceba que Scrates nunca se defende com base
na doutrina da liberdade de expresso ilimitada. Ele no faz essa afirmao. Ele no faz a
afirmao sobre a utilidade geral da liberdade ou da fala ilimitada. Ao contrrio, ele mantm
como ele expressa, perto do final do discurso de defesa, que somente a vida examinada vale
a pena ser vivida. Somente aqueles que se dedicam luta contnua para esclarecer seus
pensamentos, para remover as fontes de contradio e incoerncia, apenas essas pessoas
se pode dizer que vivem uma vida que vale a pena. "A vida no examinada no vale a pena
ser vivida" (PLATO, 2008a, p. 163, 38a), Scrates confiante, desafiadoramente afirma aos
seus ouvintes, sua audincia. Nada mais importa para ele.

A sua misso para a autoperfeio parece ser altamente individual, altamente pessoal,
em muitos aspectos, e no uma doutrina geral sobre o valor da liberdade de expresso. Todavia,
podes pensar, mesmo, que Scrates parea estar envolvido nessa busca altamente pessoal
para autoperfeio, h algo profundamente poltico sobre a Apologia e sobre o seu ensino
que no se pode evitar. No ncleo do dilogo ou no centro deste discurso h uma disputa, uma
discusso com seus acusadores sobre a questo, talvez nunca declarada explicitamente, de
quem tem o direito de educar os futuros cidados e estadistas da cidade de Atenas. O discurso
de defesa de Scrates, como qualquer dilogo platnico, , em ltima anlise, um dilogo sobre
a educao. Quem tem o direito de ensinar, quem tem o direito de educar? Esta , em muitos
aspectos, para Scrates, a questo poltica fundamental de todos os tempos. a questo de
quem realmente governa ou, talvez, por outras palavras, quem deve ou deveria governar.

Lembre-se tambm de que a cidade que levou Scrates a julgamento no era apenas
qualquer cidade, era um tipo peculiar de cidade, foi Atenas. Esta cidade-estado foi, at tempos
relativamente recentes na histria da humanidade, a mais famosa democracia que j existiu.
Isso perdurou provavelmente at a democracia americana. Foi, portanto, at ao sculo XVIII
ou XIX, a mais famosa democracia que j existiu. O discurso de Scrates perante o jri talvez
a tentativa mais famosa de colocar a prpria democracia em julgamento. No meramente
F
Scrates que est em julgamento. Scrates tem a inteno de colocar a democracia de Atenas I
L
em si em julgamento. A Apologia no fora somente Scrates a defender-se ante a cidade de O
S
Atenas, mas Scrates coloca a cidade de Atenas em julgamento e a faz defender-se perante O
F
o tribunal superior da filosofia. Assim, o debate que se seguiu no mbito do dilogo pode ser I
A
lido como uma disputa sobre quem tem ttulo de governar. o povo? o tribunal de Atenas,
P
o demos (usando a palavra grega para "o povo"), ou Scrates o filsofo-rei que deve ser O
L
investido de autoridade poltica suprema? Esta a busca. Ela retomada de uma forma muito
viva, muito mais explcita, na Repblica, mas percorre durante toda a Apologia e voc no T
I
pode realmente entender este dilogo a menos que perceba que aquela a pergunta que C
A
Scrates levanta do comeo ao fim.
14 TPICO 1 UNIDADE 1

3.1 O CONTEXTO POLTICO DO DILOGO

Vamos agora falar um pouco sobre o contexto poltico deste dilogo. No h nada de
errado com a leitura da Apologia como uma espcie de smbolo do indivduo justo confrontado
com uma multido injusta, ou com um governo poltico injusto. uma questo que Plato retoma
na Repblica quando um personagem no livro chamado Glucon, que consta como o irmo
de Plato, pergunta a Scrates se realmente melhor ser justo ou apenas ter a reputao de
justia? E Scrates diz que melhor ser justo, mesmo que isso resulte em perseguio e morte.
Entretanto, o julgamento no apenas um smbolo duradouro da justia contra a injustia,
um evento histrico real que ocorre em um determinado momento poltico e isso tem um peso
decisivo sobre como compreenderemos o processo, tanto a favor e contra Scrates.

Vamos discorrer um pouco sobre esse contexto. O julgamento de Scrates tem lugar no
ano de 399 antes da era comum (AEC). Alguns de vocs sabem que esse julgamento segue
muito rapidamente aps a famosa Guerra do Peloponeso. Esta foi a guerra narrada por um
contemporneo, de Scrates, um homem chamado Tucdides, que escreveu a histria da Guerra
do Peloponeso, uma guerra que ocorreu entre as duas grandes potncias do mundo grego,
entre os espartanos e seus aliados e Atenas e seus aliados. A Atenas que lutou nesta guerra
contra Esparta era uma Atenas no auge de seu poder poltico e prestgio sob a liderana de seu
primeiro cidado Pricles. Foi sob a sua liderana que Atenas construiu a famosa Acrpole. Ele
tinha estabelecido Atenas como uma potncia naval poderosa e temvel e criou um nvel sem
precedentes de vida artstica e cultural, ainda hoje conhecido simplesmente como o Sculo de
Pricles ou a Atenas de Pricles.

Mas Atenas tambm foi algo completamente sem precedentes no mundo, era uma
democracia. Ainda hoje, a expresso "democracia ateniense" conota um ideal da forma mais
completa de governo democrtico que j existiu. Nossa cidade, em seu conjunto, a escola de
toda a Hlade (TUCDIDES, 2001, p. 111), isto o que Pricles se vangloria aos seus ouvintes
na famosa orao fnebre contada por Tucdides. "Mantemos nossa cidade aberta a todo o
mundo e nunca, por atos discriminatrios, impedimos algum de conhecer e ver qualquer coisa
F que, no estando oculta, possa ser vista por um inimigo e ser-lhe til (2001, p. 110), Pricles
I
L se vangloria mais uma vez. A pergunta que talvez voc queira fazer sobre isso como poderia
O
S a primeira sociedade mais livre e mais aberta do mundo sentenciar morte um homem que
O
F falou abertamente sobre sua prpria ignorncia e professou cuidar de nada mais do que da
I
A virtude e da excelncia humana? Vejamos, pois, na ecloso da Guerra do Peloponeso, Scrates
P tinha um pouco menos de 40 anos de idade. E, ns aprendemos com o discurso que o prprio
O
L Scrates serviu no exrcito e na defesa de seu pas. A Guerra do Peloponeso foi travada ao

T longo de um perodo de tempo considervel, um perodo de quase 30 anos e foi concluda


I
C no ano 404 AEC com a derrota de Atenas, a instalao de uma oligarquia pr-espartana, um
A
UNIDADE 1 TPICO 1 15

regime pr-espartano conhecido simplesmente como os Trinta Tiranos, ou a Tirania dos Trinta,
que governaram Atenas por um ano. No ano seguinte, 403 AEC, os tiranos, os Trinta, como
eram chamados, foram expulsos e um governo democrtico foi restabelecido em Atenas.

Apenas trs anos depois, trs homens, chamados nito, Meleto e Lcon, os quais fizeram
parte do movimento de resistncia democrtica contra a oligarquia espartana, fizeram acusaes
contra Scrates. As acusaes contra ele foram: corromper a juventude e de descrena nos
deuses que a cidade acredita. Os nomes de nito e Meleto, como voc pode ler na Apologia,
aparecem no prprio discurso. Assim, as acusaes contra Scrates no brotaram do nada.
Talvez devssemos reformular a pergunta. No, por que os atenienses levaram Scrates a
julgamento? Mas, por que lhe permitiram exercer a sua prtica de desafiar a lei e a autoridade
da lei durante o tempo que ele assim o fez? Adicione a isso o fato de que quando Scrates foi
levado a julgamento, a democracia s recentemente tinha sido restabelecida, mas que muitos
amigos e ex-alunos de Scrates tinham eles prprios sido implicados no governo dos Trinta
Tiranos.

Entre os membros dos Trinta havia um homem chamado Crtias, e h, na verdade, um


dilogo platnico nomeado aps ele. Era um parente de Plato e de outro homem chamado
Crmides, tio de Plato, cujo nome tambm o ttulo de um dilogo platnico. O prprio
Plato nos diz muito sobre eles, mais tarde em sua vida, em sua famosa Carta VII. Plato foi
convidado por seus parentes para ajudar a formar uma parte do governo dos Trinta e relata:
Imaginei que iriam governar o Estado, tirando-o da vida injusta para coloc-lo na senda da
justia, de modo que passei a observ-los muito diligentemente, a fim de ver quais seriam as
suas aes, prossegue Plato; realmente vi aqueles homens, em pouco tempo, levarem as
pessoas a relembrar o governo anterior como uma idade de ouro (PLATO, 2011a, p. 61).
Ento, o ponto que estamos sugerindo que muitos dos estudantes e associados de Scrates,
incluindo o prprio Plato, tinham alguma ligao com aquele governo oligrquico que tinha
governado Atenas por um breve tempo. Portanto, Scrates no era ele mesmo acima de
qualquer suspeita. Muitas vezes, ainda hoje, julgamos os professores por seus alunos, pela
companhia que mantm, no ? Ningum est acima da suspeita. O prprio Scrates tinha
sido um colaborador prximo de um homem chamado Alcibades, provavelmente, o ateniense
mais proeminente da gerao aps Pricles. Alcibades foi o homem que projetou a desastrosa
expedio contra Siracusa, na Siclia, o que o levou a desertar e refugiar-se em Esparta. Sua
F
complexa relao com Scrates , alis, narrada em um discurso de Alcibades, que estando I
L
bbado, aparece em um dilogo de Plato, O Banquete (2011b), tambm chamada de o O
S
Simpsio. O
F
I
A

P
O
L

T
I
C
A
16 TPICO 1 UNIDADE 1

FIGURA 1 - O BANQUETE DE PLATO

FONTE: Pintura a leo na tela, de Anselm Feuerbach (1829-1880). Disponvel em: <http://commons.
wikimedia.org/wiki/File:Jahrhundertausstellung_1906_KatNr._0484.jpg>. Acesso em: 1 fev.
2015.

Voc pode, portanto, perceber que o julgamento de Scrates, o pequeno discurso


Apologia que deves ter lido, tem lugar sombra da derrota militar, da resistncia, da conspirao
e da traio. Scrates tinha 70 anos na poca do julgamento. Era um ambiente poltico altamente
carregado. Muito mais voltil do que, por exemplo, o tipo de querelas partidrias que vemos
hoje em nossa repblica.

3.2 AS ACUSAES CONTRA SCRATES

Agora, vamos passar do contexto poltico do discurso para as acusaes. Eu digo


acusaes porque, quando voc l atentamente a Apologia vai ver que havia, na verdade,
dois conjuntos de acusaes contra Scrates. Logo no incio do discurso, Scrates afirma
que seus acusadores atuais, nito e Meleto, fazem acusaes contra ele que na verdade so
elas prprias derivadas de uma gerao anterior de acusadores que foram responsveis por,
segundo ele, difam-lo e criar um preconceito desfavorvel contra ele. Meus acusadores so
de dois tipos: os que recentemente acusaram-me, e os que, como eu dizia, fizeram-no h
muito tempo. E considerai que devo defender-me primeiramente destes ltimos, prossegue
F
I Scrates, posto que os ouvistes fazerem suas acusaes antes e com muito maior intensidade
L
O (PLATO, 2008a, p. 139, 18e). Scrates deixa claro que compreende que muitos membros
S
O do jri tero formado um parecer desfavorvel sobre ele. Este discurso foi um dia antes de
F
I ocorrerem formas intensas de seleo do jri, onde se solicitava s pessoas: "Voc tem um
A
parecer do caso?". Muitos dos jurados teriam conhecido Scrates, ou certamente teriam ouvido
P
O
falar dele e, segundo ele, j teriam formado um parecer desfavorvel sobre ele por causa da
L gerao anterior de acusadores.

T
I
C Ele faz referncia a um poeta cmico, uma referncia inequvoca ao dramaturgo
A
UNIDADE 1 TPICO 1 17

Aristfanes. Este foi quem criou o preconceito inicial contra Scrates. Qual foi o preconceito
que Aristfanes tinha criado? A aluso a Scrates e o poeta cmico uma parte do que Plato
chama, no Livro X da Repblica (2001), de a velha querela entre a filosofia e a poesia. Esta
discusso uma parte importante dos dilogos de Plato, um tema central, no s do
Simpsio, em que Aristfanes e Scrates so mostrados juntos na mesma mesa de jantar.
Mas tambm uma caracterstica fundamental da Repblica, que abordaremos no prximo
tpico, onde Scrates oferece uma proposta elaborada para a censura e controle da poesia,
se para ser compatvel com as exigncias da justia poltica. Na verdade, voc no pode
entender a Repblica, a menos que entenda o contexto potico dela e o engajamento, de
longa data, de Scrates com a tradio potica, assim como a disputa entre ele e o homem
que ele chama de poeta cmico.

O ncleo dessa disputa entre o filsofo e o poeta, entre Scrates e Aristfanes no


apenas um juzo esttico ou no simplesmente uma discusso esttica, profundamente
poltico. Ele chega essncia da questo de quem est mais bem preparado para educar as
futuras geraes de cidados e lderes cvicos. So os filsofos ou so os poetas os verdadeiros
legisladores da humanidade? Usando a mxima de Shelley (2002, p. 195), os poetas so
os legisladores no reconhecidos do mundo, ser? Qual deles legisla para a humanidade
na poca de Scrates? Os gregos j tinham uma longa tradio de educao potica, que
remonta aos sculos dos tempos de Homero e Hesodo, que estabeleceram certos modelos
exemplares de virtude heroica e vida cvica. Os picos homricos foram para o mundo grego
o que a Bblia era ou para o nosso mundo, em alguns aspectos, a autoridade mxima em
relao maneira dos deuses, sua relao com o mundo e o tipo de virtudes apropriadas para
os seres humanos. As virtudes endossadas pela tradio potica, da qual Aristfanes o grande
herdeiro representante aqui, eram as virtudes de uma cultura guerreira, de povos guerreiros
e de homens em guerra. Foram estas qualidades que nortearam os gregos durante sculos e
que contriburam para a sua ascenso ao poder. Contribuiu para a ascenso tanto de Atenas
quanto a de Esparta para a grandeza, de um povo pequeno e disperso a uma grande potncia
mundial e lhes permitiu atingir um nvel de realizao artstica, intelectual e poltica semelhante
Florena renascentista, Inglaterra elisabetana e Cultura de Weimar.

Ento, o que est em jogo nesta querela entre Scrates e a tradio potica que ele
alude? Em primeiro lugar, a maneira de Scrates ensinar muito diferente daquela dos poetas.
F
Os poetas so oraculares, basta lembrar-se da primeira linha da Ilada de Homero: "Canta, I
L
Deusa, a clera de Aquiles" (HOMERO, 2013, p. 109). Os poetas so oraculares, eles clamam O
S
aos deuses e s deusas para inspir-los com msica, para ench-los com a inspirao para O
F
contar histrias de pessoas com fora, coragem e raiva sobre-humanas. Por outro lado, pode- I
A
se dizer que o mtodo de Scrates no oracular, no por contar histrias, mas pela
P
conversao, um mtodo argumentativo, usando o termo que ele mesmo aplica, dialtico. O
L
Scrates faz argumentos e ele quer que os outros se engajem com ele, para descobrir qual
argumento pode resistir melhor ao teste do escrutnio racional e do debate. No h argumentos T
I
na Ilada nem na Odisseia de Homero. Voc ouve histrias fortes e convincentes, mas nenhum C
A
18 TPICO 1 UNIDADE 1

argumento. Scrates faz, em outras palavras, a essncia desta nova educao poltica, um
contnuo questionamento e no a narrao de histrias e a recitao de versos. Ele questiona,
portanto, os mtodos de ensino dos poetas.

Mas, em segundo lugar, Homero e os poetas cantam as virtudes de homens em guerra.


Scrates quer substituir o cidado guerreiro e suas virtudes por um novo tipo de cidado e um
conjunto totalmente novo de virtudes. O novo cidado socrtico, vamos cham-lo assim neste
momento, pode ter algumas caractersticas em comum com o antigo guerreiro homrico. Mas,
em ltima anlise, Scrates quer substituir o combate militar com um novo tipo de habilidade
verbal, o combate verbal, no qual a pessoa com o melhor argumento declarada vitoriosa. O
melhor argumento prevalece. O famoso mtodo socrtico da argumentao basicamente
tudo o que resta da antiga cultura pr-socrtica de luta e combate. O novo cidado socrtico
para ser treinado na arte da argumentao e da dialtica. Falaremos um pouco mais adiante
sobre o que isso significa.

3.3 AS NUVENS: SOLAPANDO O MODELO DE


CIDADANIA DE SCRATES

FIGURA 2 REPRESENTAO DA PEA AS NUVENS, DE ARISTFANES

FONTE: Imagem de Steven S. Tigner. Disponvel em: <http://faculty.ccri.edu/paleclerc/intro/soc_trial.


shtml>. Acesso em: 25 jan. 2015

F
I como um desafiante dos poetas e de tudo o que eles representam (a tradio da
L
O educao potica de sculos) que Scrates se apresenta. A Apologia mostra Scrates
S
O oferecendo um novo modelo de cidadania, um novo tipo de cidado. Seu desafio aos poetas
F
I , de certa forma, a base para o ressentimento que construdo contra ele, presente nas
A
acusaes de Aristfanes e dos acusadores anteriores. Na verdade, Scrates foi tomado to
P
O a srio por Aristfanes e os poetas, que Aristfanes dedicou uma pea inteira a Scrates e a
L
chamou de As Nuvens (1987), dedicada a desbancar e ridicularizar a profisso de aprendizagem
T
I de Scrates. A pea de Aristfanes s vezes includa em certas edies do livro que voc
C
A est lendo, Apologia de Scrates (ou, em algumas verses, Defesa de Scrates), como
UNIDADE 1 TPICO 1 19

esta edio que estamos utilizando na elaborao deste Caderno de Estudos. A existncia
dessa pea mostra a todos ns o quo seriamente Scrates foi considerado pelo maior de
seus contemporneos. Pois Aristfanes foi, juntamente com Sfocles, Eurpides e outros, um
dos maiores dramaturgos gregos. A zombaria, a pardia de Scrates continua sendo uma das
mais sinceras formas de bajulao, uma declarao de que eles o levaram muito a srio.

Vamos apenas dizer algo sobre As Nuvens, esta pea cmica, esta stira sobre
Scrates, porque ela parte da acusao inicial da qual Scrates afirma ter sido levantada contra
ele. Na pea, Aristfanes apresenta Scrates como um investigador, e isso tambm faz parte
da primeira acusao, como podemos ver na exposio do filsofo na Apologia: declarando
que h um certo Scrates, homem sbio, um pensador que se ocupa das coisas do alto e que
sondou as coisas abaixo da terra, e que faz do argumento mais fraco o mais forte (2008a, p.
138). Esse , portanto, o argumento, de acordo com Scrates, que Aristfanes traz contra ele.
Em As Nuvens (1987), Scrates apresentado como o chefe, o lder, o diretor do Phrontisterion,
que pode ser traduzido como Pensatrio, um lugar onde os pais atenienses levam seus filhos
para serem doutrinados nos mistrios da sabedoria socrtica. Na pea Scrates mostrado
pairando, voando sobre o palco em uma cesta, a fim de ser capaz de melhor observar as
nuvens, as coisas no ar. Mas, tambm, em muitos aspectos, simbolizando Scrates, pelo
menos no relato de Aristfanes, em seu desprendimento das coisas aqui embaixo na terra, as
coisas que dizem respeito aos seus concidados. Scrates, neste relato, seria algum que o
povo alemo chamaria de Luftmensch. Ele um homem no ar, que caminha nas nuvens, ele
est to distante que no tem os ps no cho.

Scrates mostrado no s zombando dos deuses ao fazer isso, mas ele mostrado
por Aristfanes ensinando todas as coisas que violam toda a decncia, todos os tabus humanos
- o incesto, o espancamento de um dos pais, entre outras coisas tidas como abominveis.
Scrates apresentado exibindo uma espcie de ceticismo corrosivo, o que est no centro da
acusao de Aristfanes contra ele. Resumindo a histria, a pea termina com o Pensatrio
de Scrates sendo queimado at o cho por um discpulo descontente. Ento, quo precisa
essa imagem de Scrates, o homem que investiga as coisas do alto e as coisas abaixo da
terra? As Nuvens foi escrita em 423 AEC quando Scrates estava por volta de seus 40 anos.
O Scrates aristofnico , essencialmente, o que chamamos de um filsofo natural. Ele o
que chamaramos hoje de um cientista natural. Mas isso parece bastante distante do Scrates
F
que trazido sob a acusao de corromper os jovens e de impiedade na Apologia. I
L
O
S
O
F
I
3.4 O GIRO SOCRTICO A

P
O
L

Aqui onde Scrates realmente conta uma histria, muito importante no decorrer do T
I
seu discurso, ele fornece uma espcie de biografia intelectual de um incidente que ocorreu C
A
20 TPICO 1 UNIDADE 1

muito antes do julgamento e que o colocou em um caminho diferente. Ele relata a histria de
um homem chamado Querefonte (ou Carefon), um amigo dele, que tinha ido ao Orculo de
Delfos e perguntado se havia algum mais sbio do que Scrates, obtendo a resposta de que
no havia. Scrates afirma que quando lhe foi dito isto, expressou descrena no Orculo. Ele
no acreditou e, a fim de refutar a afirmao do Orculo, comeou uma busca ao longo de sua
vida para encontrar algum mais sbio do que ele prprio. Uma misso, no mbito da qual o
levou a interrogar os polticos, os poetas, os artesos, todas as pessoas com fama de serem
sbias, e suas conversas o levaram a fazer perguntas, no sobre fenmenos cientficos naturais,
mas questes sobre as virtudes de um ser humano e de um cidado, o que chamaramos hoje
talvez de questes morais e polticas.

Esse incidente que Scrates relata representa o que podemos chamar de o famoso giro
socrtico. Representa o momento na vida de Scrates em que ele se afasta da investigao
dos fenmenos naturais para o estudo das coisas humanas, morais e polticas. A histria de
Delfos possui seu valor essencial, pois marca um importante ponto de reviravolta na biografia
intelectual de Scrates. O movimento do jovem Scrates, o Scrates aristofnico, que investiga
as coisas do ar e debaixo da terra, ao posterior, o Scrates platnico. Este ltimo o fundador
da cincia poltica, da filosofia poltica, a nossa disciplina que pergunta sobre as virtudes da
vida moral e poltica. O relato de Scrates desta grande virada em sua vida e carreira deixa
muitas perguntas sem respostas, que talvez at mesmo lhe ocorreu na medida em que voc lia
o dilogo, este discurso da Apologia. Por que ele se afastou da investigao dos fenmenos
naturais para o estudo das coisas humanas e polticas? O Orculo de Delfos interpretado por
Scrates ordenando-o a envolver-se com outras pessoas na conversa filosfica. Por que ele
o interpreta dessa forma? Por que essa parece ser a interpretao adequada, a de participar
nestes tipos de conversas?

esse Scrates que trazido por acusaes de corrupo e de impiedade, mas nada
disto responde precisamente a pergunta sobre qual a natureza do crime de Scrates. O que
ele fez? O que essa corrupo e essa impiedade significam? Para tentar responder a essas
perguntas, teramos de olhar um pouco para o que se entende por este novo tipo de cidado
socrtico. Quem esse cidado? As acusaes que vemos contra Scrates por nito e Meleto
no so exatamente as mesmas como aquelas feitas contra ele por Aristfanes, o poeta
F
cmico. nito e Meleto falam sobre a impiedade e a corrupo, no sobre a investigao das
I
L
coisas do ar e tornar o argumento mais fraco no mais forte. O que esses termos significam?
O
S
Impiedade e corrupo, em que sentido delito civil? O que a impiedade poderia ter significado
O
F
para o pblico contemporneo de Scrates? No mnimo, poderamos pensar que a acusao
I de impiedade sugere desrespeito aos deuses. Impiedade no precisa ser a mesma coisa que
A
atesmo, embora Meleto confunda os dois (PLATO, 2008a, p. 148-149, 26c-e), mas sugere
P
O irreverncia, at mesmo blasfmia, para com as coisas que uma sociedade se importa mais
L
profundamente. Para ser mpio preciso desrespeitar essas coisas que uma pessoa ou uma
T
I sociedade considera de alta estima ou sagrado. Quando as pessoas, hoje em dia, por exemplo,
C
A referem-se queima da bandeira nacional como uma profanao, alm de ser considerado
UNIDADE 1 TPICO 1 21

um crime, profanar a bandeira refere-se a um ato de impiedade. A linguagem utilizada aqui


uma espcie de profanao religiosa ou quase religiosa. Meleto, cujo nome em grego significa
realmente cuidado, acusa Scrates de no se importar corretamente com as coisas com que
seus concidados se preocupam. Ento, a pergunta : Com o que Scrates se preocupa?

Considere o seguinte: todas as sociedades, das quais temos conhecimento, operam no


contexto ou atravs de algum tipo de crena ou f. Por exemplo, a Constituio da Repblica
Federativa do Brasil, Ttulo II, Captulo 1, artigo 5o declara que todos so iguais perante a
lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana
e propriedade (BRASIL, 2012). Essas crenas formam algo como uma espcie de credo
nacional. No entanto, quantas pessoas poderiam oferecer uma explicao racional do que
torna essas crenas verdadeiras, ou o que fundamenta essas crenas? A maioria de ns, a
maior parte do tempo, mantemos essas crenas como uma questo de f, como uma questo
de crena, porque aprendemos sobre isso desde a infncia. Questionar essas crenas seria
exibir uma espcie de falta de f cvica, a f nas opinies dominantes de nossa sociedade. Em
suma, voc pode dizer que haveria falta de piedade cvica ou de respeito cvico.

Scrates acredita claramente que a piedade ou a f a condio natural do cidado.


Toda sociedade, no importa o tipo, requer algo de f em seus princpios dominantes, nas suas
crenas fundamentais. Mas a crena parece ser ameaada a partir de pelo menos duas fontes.
Uma delas a descrena simples ou a incredulidade, uma espcie de rejeio da opinio
governante, simplesmente porque voc no gosta dela. Mas a outra fonte de conflito com a
opinio governante da filosofia. A filosofia no a mesma coisa que a descrena simples ou
a mera rejeio, mas as duas fontes podem ser facilmente confundidas. A filosofia nasce e se
desenvolve de um desejo de substituir a opinio com o conhecimento, a opinio ou a crena
com a razo. Para a filosofia, no suficiente apenas manter a crena na f, mas preciso
ser capaz de dar uma explicao racional, uma explicao que utilize o raciocnio, a crena.
O seu objetivo, portanto, substituir a f cvica com o conhecimento racional. E, portanto, a
filosofia necessariamente incompatvel com a crena e com este tipo de f cvica. O cidado
pode aceitar certas crenas sobre a f, porque ele ou ela est ligado a um determinado tipo de
ordem poltica ou regime. Mas, para o filsofo isso nunca suficiente. O filsofo busca julgar
essas crenas luz de normas verdadeiras, luz do que verdade sempre e em qualquer
F
lugar, uma busca pelo conhecimento. I
L
O
S
Existe uma tenso necessria e inevitvel entre a filosofia e a crena, ou, dito de outra O
F
maneira, entre a filosofia e as piedades cvicas que mantm a cidade unida. A partir deste ponto I
A
de vista, foi Scrates culpado de impiedade? A resposta parece ser afirmativa. Scrates no se
P
preocupava com as mesmas coisas com que seus concidados se preocupavam. Suas palavras O
L
de abertura ao jri parecem transmitir isso, ele diz, "sou, portanto, um completo estrangeiro
em relao ao tipo de linguagem que utilizada aqui (2008a, p. 138). Esta parece ser uma T
I
declarao de sua alienao ou descontentamento das preocupaes dos seus companheiros C
A
22 TPICO 1 UNIDADE 1

atenienses. Em outras palavras, dizer, eu no sei nada sobre o que vocs fazem ou sobre
o que lhes interessa. No entanto, certamente no parece certo dizer que Scrates no se
preocupa com nada. Ele afirma que se preocupa profundamente, talvez mais profundamente
do que qualquer um j tenha se preocupado antes ou depois dele. Entre as coisas que ele se
preocupa profundamente esse chamado de no fazer nada alm, como ele diz "pois tudo o
que eu fao em minhas andanas vos instar, jovens e velhos entre vs, a no zelardes por
vossos corpos ou vossas riquezas mais que pela perfeio possvel de vossas almas" (2008a,
p. 153). Essa preocupao com o estado de sua alma, ele diz que o jri o levou a no s a
empobrecer a si mesmo, mas o conduziram para longe dos negcios pblicos, das coisas que
dizem respeito cidade, busca da virtude privada.

Aqui esto as suas prprias palavras, com as quais finalizaremos esta parte. Comeando
com a seo 31d da Apologia. Scrates argumenta:

o que se ope minha participao na poltica. E sou da opinio de que


essa oposio algo excelente, pois podeis estar plenamente certos, homens
de Atenas, que se eu tivesse me envolvido na poltica, teria sido conduzido
morte h muito tempo e no teria feito nenhum bem a vs ou a mim mesmo.
No vos indigneis comigo por eu dizer a verdade. O fato que pessoa alguma
sobreviver se opor-se com franqueza a vs ou a qualquer outra multido,
impedindo que muitos acontecimentos injustos e ilegais ocorram no Estado.
(2008a, p. 155)

Em vez disso, diz ele, se algum realmente luta por justia tem que levar uma vida
privada, e no pblica, caso queira sobreviver mesmo por um efmero perodo (2008a, p.
155-156).

Pense nisso: se algum quer realmente lutar por justia e quiser preservar-se,
necessrio que ele tenha uma vida privada, no uma vida pblica. Como devemos entender a
afirmao de Scrates de que a busca pela justia exige que ele se desvie da vida pblica
vida privada? O que este novo tipo de cidado, preocupado com este tipo de virtude privada,
esta preocupao com a virtude da alma? Essa a pergunta que vamos considerar a seguir
ao finalizarmos a discusso sobre a Apologia e irmos em direo ao Crton (PLATO, 2008b).

F
I
L
O 4 A CIDADANIA SOCRTICA: PLATO E CRTON
S
O
F
I Voc acredita que Scrates era culpado ou inocente? Esta uma pergunta que devemos
A
continuar ponderando. Para considerar o que significa o julgamento de Scrates precisamos
P
O voltar a um problema ou a um paradoxo que levantamos anteriormente. Scrates prope uma
L
nova concepo do que ser um cidado, ele se ope, como vimos, concepo de cidado
T
I homrica tradicional, a certas noes de lealdade e patriotismo, criados e moldados pela tradio
C
A potica. Ele quer trocar isso por um novo tipo de cidadania racional, de cidadania filosfica. Uma
UNIDADE 1 TPICO 1 23

viso de cidadania que depende de seus prprios poderes, da razo independente, do juzo
e do argumento. No curso de defender esse ponto de vista, Scrates diz, em uma passagem
interessante, que ele passou toda a sua vida perseguindo assuntos particulares, em vez de
assuntos pblicos, e evitou deliberadamente questes pblicas, questes polticas, e isso
que levanta uma questo. Como pode um cidado, como pode este novo tipo de cidadania que
ele est propondo, como pode qualquer tipo de cidadania ser dedicada apenas s questes
privadas e no pblicas?

A cidadania parece exigir a esfera pblica, o domnio pblico. O que Scrates quer dizer
quando diz que seu modo de vida tem sido dedicado quase que exclusivamente ao privado ao
invs de assuntos pblicos? Bem, a primeira coisa que podemos pensar se isso inteiramente
verdade, se ele est sendo totalmente sincero com seu pblico. Afinal de contas, o tipo de
investigaes, o tipo de interrogatrios que ele tem buscado (desde o ocorrido com o Orculo
de Delfos e a sua interpretao do seu mandato), as investigaes dos polticos, dos poetas,
dos artesos e afins ele afirma que estas foram realizadas em pblico. Ele tem circulado no
mercado e em campo aberto e no frum pblico questionando, interrogando e, obviamente,
fazendo uma variedade de pessoas se passarem por tolas. Portanto, esta dificilmente
meramente uma questo privada ou uma forma privada de vida. Mas, talvez, ele simplesmente
queira dizer que, prosseguindo uma vida privada ele vai depender quase que exclusivamente
de seus prprios poderes individuais de razo e juzo, para no diferir ou depender de bens
pblicos tais como o costume, a autoridade, a tradio e coisas desse tipo. Todavia, possvel
perceber que Scrates quer dizer ainda mais do que isso, mais do que simplesmente que ele
deseja contar com os poderes do juzo individual privado.

Quando ele diz que seu modo de vida tem sido privado, ele quer dizer que tem
buscado uma poltica de abstinncia da vida pblica baseada em princpios. Scrates um
grande abstmio, ele se absteve de participao nas aes coletivas da cidade, aes que
ele acreditava que s poderiam acarretar uma cumplicidade em atos de injustia pblica. Seu
prprio lema, se voc quiser atribuir-lhe um lema, parece ser uma variao do Juramento de
Hipcrates, que os mdicos so famosos por fazer: "Primum non nocere (Em primeiro lugar,
no fazer mal"). E para no fazer mal, ele exigiu de si mesmo uma espcie de absteno da
vida pblica, baseada em princpios. Mas o que ele quer dizer referindo-se sua absteno
da vida poltica? Ele oferece um par de exemplos disto. Um deles concerne sua recusa em
F
participar da sentena para condenar e executar os dez generais atenienses que falharam em I
L
recolher os cadveres, os corpos, dos homens perdidos em uma batalha especfica, durante O
S
a Guerra do Peloponeso. Este foi um sinal de grande vergonha e desgraa, foi um evento O
F
real. Havia uma espcie de julgamento de culpa coletiva e todos eles foram executados l, os I
A
lderes, os generais desta batalha particular, e Scrates diz que ele se recusou a se envolver
P
nesse tribunal e neste julgamento (PLATO, 2008a, p. 156, 32b). O
L

A segunda histria, que voc j deve ter lido na Apologia, foi a sua narrao, lembrando T
I
ao jri como ele se recusou a participar na priso de um homem conhecido como Leon de C
A
24 TPICO 1 UNIDADE 1

Salamina, pois fora ordenado pelos Trinta Tiranos; uma priso que teria levado, e de fato
levou, execuo de Leon (2008a, p. 156-157, 32c-d). Scrates relata como ele, em risco
considervel a si prprio, se recusou a participar da priso deste homem. Em ambos os casos,
o ponto de Scrates que a sua prpria integridade moral individual se destaca como uma
espcie de prova decisiva para a possibilidade de engajar-se ou desengajar-se da vida poltica.
Preste bem ateno na seguinte declarao do filsofo, ser que acreditais que poderia eu ter
sobrevivido tantos anos se houvesse participado da vida pblica comportando-me como um
homem bom deve se comportar, prestando meu auxlio justia e o considerando o meu mais
elevado dever?; e ele continua: longe disso, homens de Atenas, e tampouco poderia isso
acontecer com qualquer outro homem. Ao longo de minha vida, em qualquer atividade pblica
em que possa ter me engajado, sou o mesmo homem que da vida privada. Na continuao
ele certamente lembra-se da sua recusa a se curvar aos Trinta Tiranos, no caso de Leon de
Salamina, dizendo: jamais compactuei com algum para uma ao injusta, fosse esse algum
qualquer outra pessoa ou um daqueles que, segundo meus caluniadores, so meus discpulos
(PLATO, 2008a, p. 157, 32e-33a).

4.1 A DESOBEDINCIA LEI JUSTIFICADA POR PRINCPIOS

Isso levanta um ponto central sobre a cidadania socrtica ou sobre a viso de Scrates
da cidadania. Esse tipo de desobedincia lei justificada por princpios, algo semelhante ao
modelo de desobedincia civil de Henry D. Thoreau (2012). Pode essa poltica de desobedincia
por princpios vindicar ou indiciar Scrates da acusao de corrupo e de impiedade que foi
levantada contra ele? Pode um cidado (ele afirma que sim) colocar sua prpria conscincia
acima da lei como Scrates parece fazer? Este um problema que vamos ver muito mais
adiante com um pensador poltico muito importante, Thomas Hobbes, sobre se um indivduo
pode de alguma forma colocar seu prprio senso de conscincia ou a sua integridade moral
acima da lei.

Como seria uma comunidade de cidados socrticos? Cada um selecionando e


escolhendo as leis ou as regras a obedecer, seguir ou no seguir. Scrates est to preocupado,
F
I ao que parece, com a sua integridade moral individual e privada, que ele diz, em certo sentido,
L
O para a cidade de Atenas, ao tribunal, assembleia, que ele no vai sujar as mos com a vida
S
O pblica. Esta uma questo que certamente veremos mais adiante com Maquiavel, que a
F
I tomar seriamente. Ser que a poltica, a vida poltica, requer que algum suje as suas mos no
A
mundo? Que tipo de cidado esse? aquele que se abstm, talvez at rejeite as necessidades
P
O e duras exigncias da vida poltica? Scrates parece ser, em alguns aspectos, um exemplo do
L
que Hegel (1999, p. 119) no sculo XIX descreveu, ironicamente, como a bela alma (schne
T
I Seele), algum que coloca sua prpria incorruptibilidade moral privada acima de tudo.
C
A
UNIDADE 1 TPICO 1 25

Como que Scrates responde a estas acusaes de no ser apenas um abstmio, mas
de ter colocando sua prpria conscincia moral privada ou a sua integridade sobre e acima da
lei? Ele tenta defender seu ponto de vista argumentando em uma famosa passagem que sua
poltica de abstinncia realmente traz benefcios importantes para a cidade. Na passagem a
que eu estou me referindo, ele define a si mesmo como um moscardo, uma mutuca. Como o
moscardo que melhora a qualidade de vida na cidade. Na seo 30d-e, da Apologia, Scrates
declara: "E, assim sendo, homens de Atenas, realizo agora minha defesa no no meu prprio
interesse, como se poderia supor, diz ele, mas no vosso, para impedir que ao condenar-me
erradamente faais uso indevido do dom que o deus vos conferiu, referindo a si mesmo. Ele
continua, se me executardes, no encontrareis facilmente outra pessoa como eu, que estava
ligada a esta cidade por ao do deus ainda que a expresso seja um tanto risvel, Scrates
declara, como a um grande e nobre cavalo, que se revelasse um pouco lerdo devido ao seu
tamanho, alude cidade de Atenas aqui, e precisasse ser estimulado por um moscardo.
Penso que foi para desempenhar uma funo assim que o deus vinculou-me cidade, e
assim ponho-me a circular por a estimulando e persuadindo e censurando cada um de vs,
e em toda a parte, o dia todo (PLATO, 2008a, p. 154). Portanto, temos aqui o exemplo de
Scrates no s declarando-se o dom de deus, mas que ele um grande benfeitor da cidade,
que o seu exemplo de homem, de conscincia moral individual, traz consigo grandes benefcios
pblicos. No em seu benefcio prprio, ele diz ao pblico, mas para os seus concidados
que ele faz o que faz.

Scrates est dizendo ao jri, "vocs podem no gostar de mim, mas eu sou bom para
vocs e, alm disso, ele afirma no que s pode ser descrito como uma espcie de linguagem
quase religiosa que no tem escolha no assunto. Isto no algo que ele escolheu para fazer.
Ele como um dom de Deus, como ele mesmo diz, e foi ordenado a fazer isso. Homens de
Atenas, ele declara, contais com meu respeito e minha amizade, mas acatarei ao deus, de
preferncia a vs, e por quanto durar minha existncia e for eu capaz de prosseguir, jamais
renunciarei filosofia e cessarei de vos exortar (PLATO, 2008a, p. 153, 29d). Ele parece cobrir
a si mesmo e o seu modo de vida com uma espcie de imagem religiosa, o Orculo de Delfos,
o dom de deus. Ele envolve sua concepo de cidadania dentro dessa linguagem religiosa e
isso deveria levar qualquer leitor da Apologia e qualquer leitor de Plato a fazer uma pergunta
importante sobre o uso de Scrates desta linguagem. Vamos v-la novamente em diferentes
formas na Repblica. Ser que ele est sendo sincero em dizer isso ou, de alguma forma,
F
est sendo irnico em seu uso do tom religioso? Ele est, afinal de contas, em julgamento por I
L
sua vida, com a acusao de impiedade. Ser que, para refutar a acusao de impiedade, ele O
S
usaria um tipo de linguagem religiosa que iria entrar em ressonncia com o jri e este refutaria O
F
a acusao, talvez at mesmo sugerindo que ele o nico verdadeiramente religioso e piedoso I
A
e no aqueles como nito e Meleto que esto trazendo acusaes contra ele?
P
O
L
Scrates parece estar falando no apenas ironicamente, mas provocativamente ao
descrever a si mesmo como um presente de deus. Em certo sentido, voc pode perguntar o T
I
que poderia ser mais ridculo, Scrates declarando-se, ou qualquer um declarando-se, ser um C
A
26 TPICO 1 UNIDADE 1

dom divino. Quem faria tal afirmao? Todavia, em outro sentido, ele parece levar o chamado
divino muito a srio. Foi s quando o Orculo de Delfos respondeu a Querefonte que no havia
ningum mais sbio do que Scrates, que o filsofo assumiu este novo rumo. Seu giro para
longe da investigao dos fenmenos puramente naturais para o estudo do mundo da virtude
moral e da justia. Ele afirma repetidamente que o caminho que ele tomou no de sua prpria
escolha, mas o resultado de uma ordem divina. Ele est sob algum tipo de decreto divino e
precisamente a sua devoo a este mandamento divino, a esse tipo especfico de vocao,
que o levou a negligenciar seus assuntos mundanos. Ele lembra, em vrios momentos, sua
audincia de sua extrema pobreza, a sua negligncia de sua famlia e de suas obrigaes para
com sua esposa e filhos, bem como o fato de sofrer a desgraa e o abuso que dirigido contra
ele por vrias figuras pblicas. Tudo isso o resultado de sua devoo ordem divina. Ele
apresenta-se, em outras palavras, como um ser humano de piedade e de devoo incomparvel
que arriscaria a sua prpria vida, em vez de abandonar a misso que lhe fora dada.

Ser que acreditamos nele, a este respeito? Esta uma questo importante, acreditamos
que ele est sendo sincero ou que ele est usando isso como se fosse uma espcie de retrica
com a qual procura refugiar-se? Qual este tipo peculiar de piedade que ele alega praticar?
De muitas maneiras, ao responder ao veredito do jri no pedido de que ele deixe de filosofar,
Scrates explica-se nos seguintes termos. Deixe-me apenas citar brevemente outra passagem
a partir do segundo discurso que ele d ao jri depois de sua condenao. "Convencer alguns
de vs sobre esse ponto a tarefa mais difcil, ele diz sobre o seu modo de vida, e continua:

Isso porque, se afirmo que tal procedimento corresponderia a desobedecer ao


deus e que, por conta disso, no posso ficar em silncio, pensareis que estou
ironizando e no me acreditareis. Se, por outro lado, afirmo que dialogar todos
os dias acerca da virtude e sobre as outras coisas em relao s quais me
ouvis discursando e examinando a mim mesmo e aos outros constitui o maior
benefcio para o ser humano, e que a vida sem esse exame no digna de
ser vivida, menos crdito ainda me dareis. (PLATO, 2008a, p. 163, 37e-38a)

Em outras palavras, o que ele parece estar dizendo, nessa passagem, que ele percebe
que est sobre a linha tnue de um dilema.

Por um lado, ele diz explicitamente que a sua referncia a uma misso divina ser tomada
pelo seu pblico como sendo apenas mais um exemplo de ironia socrtica e de insinceridade.
F
I Mas, ele afirma, se tentar convencer as pessoas da bondade e da justia de seu modo de vida
L
O fundamentando-se simplesmente em argumentos racionais, para persuadi-los de que a vida
S
O examinada por si s vale a pena ser vivida, ele admite que no seja acreditado. Ento, o que
F
I podemos dizer que um cidado socrtico deve fazer? Ele ser acusado de ser irnico e no ser
A
acreditado, ou ele vai ser simplesmente desacreditado se tentar defender-se por justificativas
P
O racionais ou filosficas. Isso levanta a questo com a qual comeamos esta parte do Caderno
L
de Estudos. Scrates deve ser tolerado, uma boa sociedade deveria tolerar Scrates? Esta a
T
I questo levantada no dilogo de Crton tambm (PLATO, 2008b). At que ponto a liberdade
C
A de expresso, o discurso que beira a impiedade cvica, at que grau tal discurso deve ser
UNIDADE 1 TPICO 1 27

tolerado? Tem sido uma suposio de leitores de Plato ao longo dos anos que o julgamento
de Scrates, que a execuo de Scrates apresenta o caso a favor da liberdade ou da mais
plena liberdade de pensamento contra os perigos de uma sociedade de tentar perseguir ou
suprimir a liberdade de expresso. Mas ser esta leitura correta? Em outras palavras, este
realmente o ensinamento de Plato?

Entre as coisas que Scrates diz que se preocupa profundamente est a sua vocao
para no fazer nada alm de persuadir os mais jovens e os mais velhos a no se preocupar
com seus corpos e seu dinheiro, mas sim com o fato de como a sua alma vai estar na melhor
condio possvel. Como devemos entender isso no que consta o caso sobre a tolerncia e a
liberdade de expresso? A Apologia mostra Scrates apresentando o caso mais intransigente
a favor do filsofo como um crtico radical ou questionador da sociedade. Scrates exige que
os atenienses no mudem simplesmente este ou aquele aspecto de sua poltica, mas ele
exige nada menos que uma drstica, diria at mesmo revolucionria, mudana na vida cvica,
na cultura cvica ateniense. Ele diz a seus companheiros cidados que suas vidas no valem
a pena, s a vida examinada vale a pena ser vivida e que eles no esto vivendo uma vida
examinada, portanto, suas vidas no podem ter qualquer valor. Mesmo quando confrontado
com a opo de deixar de filosofar, ele se recusa a faz-lo, pelo fato de estar agindo sob um
comando, uma ordem divina e de no poder fazer ao contrrio.

4.2 A APOLOGIA DE CRTON

Plato est nos pedindo para encarar Scrates como um homem de altos princpios,
levantando-se pelo que acredita em face da morte ou como uma espcie de agitador
revolucionrio que no pode e no deve ser tolerado por uma sociedade cujas leis e valores
bsicos ele no vai aceitar? At certo ponto, podemos responder que ambas as perguntas tm
algo de valor. Talvez a resposta, ou uma resposta, a esta pergunta revelada no dilogo Crton,
o discurso de um companheiro de Scrates, que normalmente est junto com a Apologia,
embora aquele normalmente receba muito menos ateno do que este ltimo. Em parte, porque
se a Apologia apresenta o caso do filsofo, Scrates, contra a cidade, Crton apresenta o
F
caso da cidade contra o filsofo. Aqui, Scrates faz o caso contra si mesmo, voc pode dizer I
que ele faz o caso contra si mesmo melhor do que os seus acusadores no tribunal o fizeram. L
O
Ento, na Apologia, o discurso entre Scrates e as leis forma a ao central do dilogo, S
O
apresentado o caso que Meleto e nito fazem contra ele. Enquanto que a Apologia parece F
I
denegrir a vida poltica como que exigindo cumplicidade na injustia, e Scrates diz que ele A

no ter parte de leis ou polticas que impliquem a injustia, Crton faz o caso para a dignidade P
O
das leis, a dignidade ou a majestade da cidade e suas leis. Enquanto a Apologia defende uma L

poltica de abstinncia baseada em princpios ou uma desobedincia vida poltica, Crton T
I
estabelece o caso mais completo e de maior alcance a favor da obrigao e da obedincia lei C
A
28 TPICO 1 UNIDADE 1

que jamais fora feita. Ento, como vamos conciliar essas duas perspectivas, aparentemente
contraditrias, nestes dois dilogos?

Esses dois dilogos diferem no s no contedo, mas em seu contexto dramtico.


Basta considerar alguns dos seguintes pontos. A Apologia um discurso proferido ante um
grande pblico, em grande parte annimo, de mais de 500 pessoas, a Assembleia e o Tribunal
de Justia. Vemos Scrates discursando, a nica vez em qualquer dilogo platnico, a uma
audincia deste tamanho. O Crton, por outro lado, uma conversa entre Scrates e um nico
indivduo, apenas uma pessoa. A Apologia ocorre no Tribunal de Atenas, o contexto mais pblico
possvel, enquanto o Crton ocorre dentro da escurido e confinamento de uma cela de priso.
A Apologia mostra Scrates defendendo a si mesmo e a sua vida como um dom de Deus
que realmente beneficia a cidade, mas no Crton podemos v-lo curvar-se autoridade das
leis que ele parece ter previamente rejeitado. Finalmente, se a Apologia apresenta Scrates
como o primeiro mrtir da filosofia, a primeira pessoa a morrer por causa da filosofia, o Crton
mostra o julgamento e a condenao de Scrates como um caso de justia consumada. Estes
contrastes enormes nos obrigam a fazer uma pergunta: o que faz Plato apresentando esses
dois pontos de vista muito diferentes, qual o seu objetivo de apresentar esses dois trabalhos
de duas perspectivas contrastantes sobre a relao de Scrates cidade? Estava Plato
confuso, estava se contradizendo, o que de fato ele estava fazendo?

Ento, vamos olhar para o Crton (PLATO, 2008b) s um pouquinho. Este dilogo
recebeu o nome de um amigo e discpulo de Scrates, que no incio do dilogo est sentado
como um guardio vigilante de seu mentor. Ele exorta Scrates para permitir-lhe que o ajude
a escapar. Os carcereiros tinham sido subornados e a fuga se tornaria fcil, mas ao invs de
tentar convencer Crton diretamente, Scrates cria um dilogo, na verdade, voc poderia dizer
um dilogo no mbito de um dilogo maior, um dilogo entre ele e as leis de Atenas, onde ele
invoca o caso contra a fuga, ou seja, o caso contra a desobedincia lei e o argumento poderia
ser resumido como se segue. Nenhum Estado pode existir sem regras. A primeira regra de
qualquer Estado a regra de que os cidados no so livres para deixar de lado as regras, para
escolherem entre elas quais obedecer e quais desobedecer. Participar da desobedincia civil
de qualquer tipo no apenas questionar esta ou aquela regra, mas pr em causa a prpria
natureza da lei, a prpria questo das regras. Questionar ou desobedecer lei o mesmo
F
que destruir a autoridade da lei. A quebra, mesmo que de uma nica lei, constitui a essncia
I
L
da anarquia, constitui a essncia da ilegalidade. Este um argumento de grande alcance
O
S
para a obedincia lei. A ideia de que a quebra mesmo que de uma nica lei pe em causa a
O
F
autoridade da lei como tal um argumento muito poderoso que, de certa forma, Scrates faz
I contra si mesmo, colocando esse discurso na boca das leis. Mas ele vai ainda mais longe do
A
que isso. O cidado, diz ele, deve sua prpria existncia s leis. Ns somos o que somos por
P
O causa do poder e autoridade das leis, dos costumes, das tradies, da cultura que nos formou.
L
As leis, diz ele, nos geraram e o uso do termo "gerou" claramente destinado a ressoar como
T
I algo sagrado, em nosso contexto lembra uma linguagem bblica. O cidado , em uma palavra,
C
A criado, gerado pelas prprias leis, estas exercem uma espcie de autoridade paternal sobre ns
UNIDADE 1 TPICO 1 29

de tal forma que a desobedincia a qualquer lei constitui um ato de irreverncia ou desrespeito
das coisas mais antigas que nos rodeiam. As leis no so apenas como nossos pais, elas so
como nossos ancestrais, os fundadores, a quem so devidos o respeito e a devoo.

De muitas maneiras, o Crton o dilogo platnico sobre a piedade. Scrates parece


aceitar aqui, inteiramente, a autoridade da lei, ele no oferece argumentos para o no
cumprimento, como ele faz na Apologia. Ento, o que aconteceu de repente com Scrates, o
apstolo da desobedincia civil, Scrates, o apstolo de absteno por princpios? Ele aceita
totalmente ou as leis o foram a aceitar integralmente o pacto que todo cidado tem com as leis
que os prendem obedincia absoluta. A questo : por que Scrates exibe um desafio altivo
e independncia das leis na Apologia e uma completa aquiescncia s leis no Crton? O que
aconteceu com ele, por que ele de repente se torna to humilde e submisso? O que aconteceu
com sua linguagem sobre ser o presente do deus? Vamos propor algo para responder a este
paradoxo, esta questo.

A Apologia e Crton representam uma tenso, representam um conflito entre dois


cdigos morais mais ou menos permanentes e irreconciliveis. Aquele representado por
Scrates refere razo, isto , razo soberana do indivduo como a mais alta autoridade
possvel. a dependncia do filsofo em sua prpria razo que o liberta da autoridade perigosa
do Estado e protege o indivduo de cumplicidade com a injustia e os males que parecem ser
uma parte necessria da vida poltica. Aqui est Scrates, o abstmio por princpios. Mas, o
outro cdigo moral representado pelo discurso das leis onde so as leis da comunidade, as
suas mais antigas e profundas crenas e instituies, a sua constituio, o seu regime, sua
politea, que so fundamentalmente obrigatrias sobre o indivduo e at mesmo tendo prioridade
sobre o individual. O primeiro ponto de vista considera a vida filosfica, a vida examinada, a
ser aquela que mais vale a pena viver; o outro considera a vida poltica, a vida do cidado
envolvido no negcio de deliberar, de legislar, fazer a guerra e a paz como a maior vocao do
ser humano. Estes constituem duas alternativas irreconciliveis, vocaes distintas, e qualquer
tentativa para conciliar ou para sintetizar estes dois s pode levar a uma profunda injustia
para com cada um.

Plato parece acreditar que cada um de ns deve escolher, de algum modo, entre um
ou outro destes dois contendedores quanto ao modo de vida mais srio e que valha mais a
F
pena. Qual que vamos escolher, qual a questo de preocupao ltima, de maior interesse, I
L
para cada um de ns? No podemos ter ambos. Essa distino em algum grau capta as O
S
diferenas estabelecidas, quando perguntamos no incio desta parte do Caderno de Estudos O
F
sobre quem acredita que Scrates inocente e deve ser absolvido e quem acredita que ele I
A
culpado e deve ser condenado, entre um ponto de vista filosfico e um ponto de vista poltico.
P
Podemos ainda perguntar: por que Scrates opta por ficar e beber a cicuta? Afinal, mesmo que O
L
ele esteja comprometido fundamentalmente com os princpios de sua prpria razo ou que ele
se importe muito pelas leis da cidade, por que no deixar Crton ajud-lo a escapar e ir para T
I
Creta, onde ele poderia beber o bom vinho da ilha de Creta e desfrutar de sua velhice? E, de C
A
30 TPICO 1 UNIDADE 1

fato, Plato escreveu outro dilogo, o seu maior dilogo, um livro chamado As Leis, onde voc
v um homem estrangeiro, simplesmente designado como o Ateniense, vivendo em Creta
e que mantm uma conversa com representantes daquela sociedade. Poderia ser Scrates,
embora ele no seja identificado como tal, pois o tipo de discurso ou conversa que Scrates
teria se tivesse escapado. Mas voltando questo, so verdadeiras as razes de Scrates
que ele oferece a Crton, por se recusar a fugir, as razes que ele coloca na boca das leis da
cidade de Atenas? Ser que Scrates acredita no discurso que ele constri entre ele e as leis
ou simplesmente uma fico que ele cria para o bem de aliviar seu amigo da culpa que ele
evidentemente sente por ser incapaz de ajud-lo?

Crton est, naturalmente, muito preocupado com o que as pessoas vo pensar dele
se tornar-se conhecido que de alguma forma ele no ajudou Scrates a escapar. Ser que o
discurso a favor da lei era realmente destinado para o benefcio de Crton, ao invs de uma
expresso de opinies mais profundas de Scrates sobre as questes de obrigao e de
obedincia? Ser que ele est, naquele discurso, concedendo uma espcie de justificativa a
Crton, para reconcili-lo com as leis da cidade e dar-lhe razes, consideraes racionais, para a
obedincia continuada lei? Em muitos aspectos isto daria certo sentido aparente discrepncia
entre esses dois dilogos. Demonstraria o sentido de superioridade de Scrates sobre as leis
de Atenas. No primeiro discurso da Apologia, ele desafia a cidade para coloc-lo morte por
expressar indiferena morte e, em seguida, no Crton, ele expressa aquela indiferena morte
por se recusar a permitir que Crton o deixe escapar. Scrates parece permanecer, mesmo at
o fim, uma espcie de lei em si mesmo e, ao mesmo tempo, proporcionando a Crton e aos
outros um exemplo, nele mesmo, de obedincia racional e digna lei.

FIGURA 3 A MORTE DE SCRATES

F
I
L
O
S
O FONTE: Pintura a leo sobre tela, de Jacques-Louis David (1787). Disponvel em: <http://commons.
F wikimedia.org/wiki/File:Jacques-Louis_David_-_The_Death_of_Socrates_-_Google_Art_
I
A Project.jpg>. Acesso em: 16 jan. 2015.

P
O
L Quando olhamos para a morte de Scrates, pensamos nisso como uma tragdia,

T
como uma tragdia moral, um homem justo condenado morte por uma lei injusta? Podemos
I
C
no pensar assim. possvel entender que a morte de Scrates com a idade de 70 anos foi
A intencionada por ele como um ato de martrio filosfico que permitiria a futura filosofia ser
UNIDADE 1 TPICO 1 31

reconhecida favoravelmente como uma fonte de coragem e justia. Em uma de suas cartas
posteriores, Plato refere-se imagem de Scrates, em sua tentativa de tornar Scrates jovem
e bonito, ou seja, ele conscientemente decidiu embelezar Scrates, apresentando um homem
sem medo ante a morte, que se recusa a participar em qualquer injustia ativa enquanto dispensa
sabedoria e justia para aqueles que queiram ouvir. Ns no conhecemos o verdadeiro Scrates,
tudo o que conhecemos de Scrates o que lemos em Plato e Aristfanes e em um pequeno
nmero de outros autores que esboaram vrias imagens diferentes dele. Mas a imagem de
Scrates proporcionada por Plato est necessariamente em um polo oposto quela descrita
por Aristfanes, como uma espcie de sofista que faz do argumento mais fraco o mais forte.

Os dilogos de Plato, a Apologia, bem como a Repblica e o Crton so, no sentido


mais amplo do termo, uma tentativa no s de responder acusao contra Aristfanes, mas
tambm defender a causa da filosofia como algo de valor e de mrito.

4.3 APLICANDO AS LIES SOCRTICAS AO NOSSO


MUNDO CONTEMPORNEO

Onde isso nos deixa hoje? O que fazer com tudo isso? Ns, que vivemos em um tipo
muito diferente de mundo comparado ao sculo IV AEC em Atenas, o que podemos aprender
com o exemplo de Scrates? A maioria de ns instintivamente toma o lado de Scrates contra
a cidade de Atenas. Aqueles que defendem a cidade de Atenas contra Scrates, aqueles que
acreditam no valor da piedade cvica so poucos entre ns. Ns, em geral, tendemos a aceitar
a imagem de Scrates como uma vtima da injustia. Ns, convenientemente, ignoramos uma
srie de fatos sobre ele, como a sua hostilidade democracia, como veremos na Repblica,
mas temos visto j em algum grau na Apologia. Sua afirmao de que a vida dos seus
concidados no vale a pena ser vivida e a sua afirmao de que o seu modo de vida tem sido
comandado por um deus que ningum nunca viu ou ouviu falar. Nenhum destes fatos parece
fazer qualquer diferena para ns, todavia penso que deveriam.

Dadas as afirmaes de Scrates, pergunte-se: o que um corpo de cidados


responsveis teria feito, como deveriam ter agido? Uma resposta poderia ser a de estender uma
F
maior tolerncia aos dissidentes civis, como Scrates. Indivduos de crena heterodoxa, mas I
L
cujos pontos de vista prprios podem estimular outros a questionar e pensar por si mesmos, O
Milton, John Locke e pessoas como Voltaire argumentariam a favor disto. Mas seria isto fazer S
O
justia a Scrates? F
I
A

A nica coisa que Plato no discute que Scrates deve ser simplesmente tolerado. P
O
Tolerar o seu ensinamento pareceria banaliz-lo em algum sentido, torn-lo inofensivo. Os L

atenienses, pelo menos, pagam o tributo de levar Scrates a srio, que exatamente a razo T
I
dele estar em julgamento. Os atenienses se recusam a tolerar Scrates porque eles sabem C
A
32 TPICO 1 UNIDADE 1

que ele no inofensivo, que ele coloca um desafio, um desafio fundamental ao seu modo
de vida e a tudo o que eles pensam ser nobre e de valor. Scrates no inofensivo por causa
de sua prpria capacidade declarada de atrair seguidores, poucos hoje em dia, um pouco
mais amanh. Quem sabe? Tolerar Scrates seria dizer a ele que ns nos importamos pouco
com o nosso modo de vida e que estamos dispostos a deix-lo, desafi-lo e impugn-lo todos
os dias. Isso bom, isso certo? O julgamento de Scrates nos pede para pensar sobre os
limites da tolerncia, quais pontos de vista, se que existem, que consideramos simplesmente
intolerveis? Uma sociedade saudvel aquela que literalmente est aberta a todos os pontos
de vista? A liberdade de expresso , certamente, uma coisa desejvel, mas ser que o bem
supremo? Deveria triunfar sobre todos os outros bens ou a tolerncia chega a um ponto em
que deixa de ser tolerncia e torna-se de fato em uma espcie de niilismo suave que pode
estender a liberdade a tudo, precisamente porque no leva nada muito a srio. E por niilismo
queremos dizer a viso de que todas as preferncias, at as mais esqulidas ou srdidas,
devem ser consideradas to legtimas quanto todas as outras. Seria isto realmente tolerncia
ou uma forma de decadncia moral que simplesmente nos levaria a abandonar a busca pela
verdade e pelos padres de juzo? H um perigo, creio que fica evidente, no fato da tolerncia
infinita poder levar a uma passividade intelectual e ao tipo de aceitao acrtica de todos os
pontos de vista. Dedique um tempo para pensar sobre isso. Agora vamos comear a discutir
sobre a leitura do que considerado, por muitos intelectuais, o livro mais importante j escrito,
a Repblica de Plato.

S!
DICA

Um filme excelente sobre o fundador da nossa disciplina:


SCRATES. Diretor: Roberto Rosselinni. Produtor: Renzo
Rosselinni. 120 min. 1971.

F
I
L
O
S
O
F FONTE: Scrates. Disponvel em: <http://en.wikipedia.org/wiki/
I
A Socrates_(film)>. Acesso em: 17 jan. 2015
P
O
L

T
I
C
A
UNIDADE 1 TPICO 1 33

RESUMO DO TPICO 1

Neste tpico voc viu que:

Em um sentido a filosofia poltica uma ramificao ou subcampo da cincia poltica, mas


em outro sentido ela a parte mais antiga e fundamental desta cincia, sendo, de certa
forma, a sua prpria fundao.
Um dos melhores mtodos de se estudar a filosofia poltica partindo das obras clssicas
e discernindo as questes fundamentais postuladas por estes autores, que orientam toda
investigao posterior na disciplina.
O conceito de regime uma das ideias mais fundamentais e antigas da filosofia poltica. O
termo indica formas de governo, se governado por um, por poucos, ou por muitos. Como
distribudo o poder, como so eleitos os responsveis pelo mesmo, em que circunstncia,
como ele composto, quais so suas estruturas e instituies, so todas questes que
surgem do tema regime.
Distintos autores atribuem caractersticas necessrias e especficas para o estadista e para
a arte de governar. O que indica que a disciplina de filosofia poltica seja eminentemente
prtica.
A filosofia poltica sempre foi guiada pela questo do melhor regime. Mas nunca pode rejeitar
a ideia do bom e real regime. Fica sempre entre o dever e o , entre o ideal e o real. E
qualquer que seja a forma do melhor ou bom regime, este sempre ser a favor de certo tipo
de ser humano.
A Apologia no fora somente Scrates a defender-se, no somente ele que est em
julgamento, mas a prpria Atenas est em julgamento perante o tribunal da filosofia.
Uma das questes centrais da Apologia sobre quem tem o direito de ensinar, quem tem
o direito de governar.
Havia dois conjuntos de acusaes contra Scrates, ambos revelam o confronto entre dois
conjuntos de virtudes cvicas e de cidados distintos, o homrico e o socrtico.
A crtica satrica de As Nuvens de Aristfanes a Scrates revela a seriedade com que os
F
poetas recepcionavam as ideias socrticas. I
O famoso giro socrtico, da investigao cosmolgica investigao sobre a justia, sobre L
O
as virtudes e o conhecimento de si. S
O
A defesa que o prprio Scrates, no dilogo com Crton, levanta em favor das leis da cidade F
I
e se nega a fugir da sua sentena. A

As questes levantadas por Scrates em Atenas do sculo IV AEC so ainda vigentes e P


O
pertinentes ao mundo contemporneo. L

T
I
C
A
34 TPICO 1 UNIDADE 1


IDADE
ATIV
AUTO

1 Explique a centralidade da questo do regime e do estadista na investigao da


filosofia poltica.

2 Disserte sobre a proposta socrtica de um novo cidado e um novo conjunto de


virtudes cvicas. Compare esta proposta com o cidado homrico.

3 Descreva os principais pontos levantados por Scrates em sua defesa na Apologia


e os principais pontos levantados por ele em defesa das leis no Crton. possvel
conciliar os dois? Explique sua resposta.

F
I
L
O
S
O
F
I
A

P
O
L

T
I
C
A
UNIDADE 1

TPICO 2

OS FILSOFOS E OS REIS: PLATO E A


REPBLICA

1 INTRODUO

Neste tpico vamos nos concentrar na famosa obra de Plato, A Repblica (2001),
mais especificamente, no Livro I ao V. Lembrando que a leitura desta unidade do Caderno de
Estudos deve ser acompanhada pela leitura da obra referida que ser analisada.

Vamos introduzir, primeiramente, A Repblica de Plato e os personagens centrais que


compem o seu dilogo: Cfalo, Polemarco, Trismaco, Glucon e Adimanto. Cada personagem,
com suas prprias caractersticas e argumentos, ser central para a compreenso da proposta
da Repblica platnica, de seu pensamento poltico.

A seguir, vamos nos concentrar no papel da impetuosidade para o estabelecimento


da cidade justa. Ento, j no Livro V da Repblica, vamos analisar o controle das paixes, a
proposta para a construo da cidade bela, a questo da justia e do filsofo-rei, o que nos
levar discusso do que Plato tem a dizer sobre as democracias modernas.

Finalmente, voc poder ver o resumo dos assuntos deste tpico e fazer a sua
autoatividade.

F
I
L
O
S
2 PLATO E REPBLICA: LIVROS I-II O
F
I
A
Acreditamos que haver acadmicos desta disciplina para os quais a leitura da
P
Repblica de Plato ser a experincia intelectual mais importante que tero neste curso. O
L
um livro que vocs retornaro a ele uma e outra vez e ele vai ficar com vocs para sempre.
T
Este o livro que comeou tudo. A Apologia e Crton so somente para esquentar para o I
C
A
36 TPICO 2 UNIDADE 1

grande tema, para o grande livro a Repblica. Cada outro livro de filosofia poltica, que j foi
escrito, comeando com a Poltica de Aristteles e passando para os dias atuais, de uma
forma ou de outra uma resposta Repblica de Plato.

A primeira coisa, e a mais bvia, a ser dita sobre a Repblica que um livro longo.
No o maior livro que voc provavelmente ler, mas longo o suficiente. Na verdade, em parte
devido a isso, vamos apenas comentar e discutir sobre a leitura de aproximadamente metade
do livro, os primeiros cinco livros, para ser mais especfico. Os cinco primeiros livros que lidam
com a melhor cidade, a cidade ideal de Plato, o que ele chama de Kallipolis, a cidade bela,
a cidade justa, governada por filsofos-reis. A segunda metade do livro se transforma em algo
um pouco diferente, com direes certamente igualmente importantes, mas levaria muito mais
pginas do que quelas que temos disposio para escrever neste Caderno de Estudos. A
Repblica um livro muito desconcertante, voc vai descobrir ao l-lo como ele nos deixa
perplexo. Seu significado no ser evidente para voc na primeira leitura. Pode no ser claro
para voc na dcima leitura, a menos que voc o aborde com as perguntas adequadas e com
a disposio mental adequada.

2.1 SOBRE O QUE A REPBLICA DE PLATO?

Ento, vamos comear com uma pergunta simples: Sobre o que a Repblica? Este
livro lida com quais coisas? Esta uma questo que tem intrigado e dividido os leitores de
Plato quase desde o incio. um livro sobre a justia, como o subttulo do livro sugere? um
livro sobre o que hoje poderamos chamar de psicologia moral e sobre a ordenao correta da
alma humana, sendo este um tema proeminente abordado neste trabalho? um livro sobre
o poder da poesia, do mito e todo o domnio da cultura para moldar as almas e para moldar
nossas sociedades? Ou um livro sobre metafsica e a estrutura final de ser, como certamente
muitos dos livros posteriores da Repblica sugerem? A teoria das formas, a imagem da linha
dividida e assim por diante. claro que sobre todas essas coisas e vrias outras tambm.
Mas, pelo menos no incio, quando nos aproximamos do livro, devemos ficar em sua superfcie,
no cavar muito profundamente.
F
I
L
O Como um dos grandes leitores de Plato do sculo passado disse uma vez, "no h
S
O nenhuma proteo mais segura contra o entendimento de qualquer coisa do que no dar valor
F
I ou at mesmo desprezar o bvio e a superfcie. O problema inerente superfcie das coisas, e
A
s na superfcie das coisas, a essncia das coisas". (STRAUSS, 1978, p. 13, traduo nossa).
P
O A superfcie da Repblica revela que se trata de um dilogo. uma conversao. Devemos
L
abordar o livro, em outras palavras, no como se fosse um tratado, mas como abordaramos
T
I um trabalho de literatura ou drama. um trabalho comparvel em escopo a outras obras
C
A primas literrias Hamlet, Dom Quixote, Guerra e Paz, e outros que voc pode lembrar. Em
UNIDADE 1 TPICO 2 37

uma conversao, em um dilogo, o autor quer que nos juntemos a ele, que passemos a
participar. Somos convidados a ser no apenas espectadores passivos desta conversa, mas
participantes ativos no dilogo que ocorre neste livro ao longo de uma nica noite. Talvez a
melhor maneira de ler este livro l-lo em voz alta, como voc faria em uma pea, para si
mesmo ou com seus amigos.

A Repblica tambm uma utopia, uma palavra que Plato no usa, no fora cunhada,
at muitos, muitos sculos depois por Sir Thomas More. Mas o livro de Plato uma utopia, uma
espcie de extremo. Ele apresenta uma viso extrema da poltica, uma viso extrema da polis.
O fio condutor do livro a correspondncia, a simetria entre as partes da cidade e as partes
da alma. A discrdia dentro da cidade, assim como a discrdia dentro da alma, considerada
como o maior mal. O objetivo da Repblica o de estabelecer e descrever como podemos
conseguir uma cidade harmoniosa baseada em uma concepo de justia que harmoniza o
indivduo e a sociedade. A melhor cidade seria necessariamente uma que pretende produzir
o melhor ou o mais elevado tipo de indivduo. A famosa resposta de Plato a isto que esta
cidade, qualquer cidade, nunca ser livre de conflito, nunca ser livre de conflitos entre faces
at que, em sua famosa frmula, os reis se tornem filsofos e os filsofos se tornem reis.

A Repblica nos pede para considerar seriamente como seria uma cidade governada
por filsofos. A este respeito, parece ser o final perfeito para a Apologia. Tente recordar, a
Apologia descreve os perigos que a cidade representa filosofia, ao filsofo e vida filosfica.
A Repblica nos interpela: como seria uma cidade se fosse governada por Scrates ou algum
como ele? Essa cidade exigiria, assim como Scrates relata ao longo dos livros de abertura,
a censura severa da poesia e da teologia, a abolio da propriedade privada e da famlia,
pelo menos entre a classe guardi da cidade, e o uso de mentiras e mitos selecionados, o
que hoje, provavelmente, seria chamado de ideologia ou propaganda, como instrumentos de
dominao poltica. Parece que, longe de utopia, a Repblica representa uma distopia radical,
uma stira, em certo sentido, do melhor sistema poltico. Na verdade, grande parte da cincia
poltica moderna dirigida contra o legado de Plato. O Estado moderno, como atualmente o
compreendemos, baseado na separao da sociedade civil da autoridade governante, que
possibilita todo o domnio do que chamamos vida privada separada do Estado. Mas a Repblica
de Plato no reconhece essa separao ou nenhuma independncia para a esfera privada.
Por esta razo, Plato tem sido frequentemente retratado como uma espcie de prenncio do
F
Estado totalitrio moderno. I
L
O
S
Um famoso professor em uma universidade distante foi dito ter comeado suas palestras O
F
sobre a Repblica, dizendo: "Agora, vamos considerar Plato, o fascista". Esta foi, de fato, a I
A
viso popularizada por um dos livros mais influentes sobre Plato escrito no sculo passado
P
por um vienense com o nome de Karl Popper, que nos primeiros anos de 1950, bem no auge O
L
da Guerra Fria e, claro, ao final da concluso da Segunda Guerra Mundial, escreveu um livro,
em dois volumes, intitulado A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1974). Ele queria saber quais T
I
foram as causas ou quem foi o responsvel pelas experincias do totalitarismo, tanto na Rssia C
A
38 TPICO 2 UNIDADE 1

de Stlin quanto na Alemanha de Hitler. No decurso deste inqurito, ele concluiu que no s
Hegel e Marx foram importantes naquela genealogia particular, mas que a mesma voltava-se
principalmente a Plato. Popper acusa Plato, em um livro passional, ainda que no muito bem
escrito, de ser o primeiro a estabelecer uma espcie de ditadura totalitria. Seria isso verdade?

A Repblica de Plato uma repblica de um tipo muito especial. No um regime como


o nosso, dedicado a maximizar as liberdades individuais, mas um que coloca a educao dos
seus cidados, a educao de seus membros, como o seu maior dever. A Repblica, como
a polis grega, era uma espcie de associao tutelar. Seu maior bem, seu objetivo principal,
era a educao dos cidados para cargos de liderana pblica e de altas responsabilidades
polticas. Vale sempre a pena lembrar que Plato foi, acima de tudo, um professor. Ele foi o
fundador da primeira universidade, a Academia, a Academia de Plato, aonde posteriormente
Aristteles veio estudar, entre muitos outros, Aristteles sendo o mais famoso. Plato foi o
fundador desta escola. Esta, por sua vez, gerou outras escolas filosficas em todo o mundo
grego e, mais tarde, no mundo romano. Com a queda do Imprio Romano, nos primeiros sculos
cristos, estas academias filosficas, estas escolas filosficas, foram absorvidas nos mosteiros
medievais. Estes, por sua vez, se tornaram a base das primeiras universidades europeias, em
lugares como Bolonha, Paris e Oxford.

Estas universidades foram depois transplantadas para o Novo Mundo. As primeiras


universidades foram fundadas na Amrica hispnica, So Domingos em 1538, San Marcos no
Peru em 1551 e Mxico em 1553, por exemplo. J na Amrica do Norte, fundaram Harvard em
1636 e Yale em 1701. No Brasil, somente no incio do sculo XX foram criadas as primeiras
universidades (CHARLES; VERGER, 1996). Podemos dizer hoje que as universidades
brasileiras so ancestrais diretos da Repblica de Plato, da Academia de Plato. Somos
todos aqui os herdeiros de Plato. Pense nisso, sem Plato no haveria universidades. Voc
no estaria hoje lendo este Caderno de Estudos. Acreditamos que isso um fato, basta refletir
sobre isso por um momento. Os requisitos institucionais e educacionais da Repblica de Plato
compartilham muitas caractersticas com muitas das nossas universidades que temos hoje
em nosso pas. Por exemplo, tanto na Kallipolis platnica, a cidade bela e justa, bem como
em muitas das universidades atuais, os homens e mulheres so selecionados em uma idade
relativamente cedo por causa de suas capacidades de liderana, de coragem, de autodisciplina
F
e de responsabilidade. Eles passam vrios anos vivendo juntos, comendo juntos em refeitrios
I
L
comuns, exercitando juntos e estudando juntos, muitas vezes longe da superviso dos pais. Os
O
S
melhores deles so peneirados para prosseguir os estudos e, eventualmente, assumir posies
O
F
de liderana pblica e muita responsabilidade. Ao longo de tudo isso, eles so submetidos a um
I curso de estudo rigoroso e treinamento fsico, que vai lev-los a adotar posies de destaque,
A
quem sabe nos ramos militares ou em outros servios pblicos. Deixe-me colocar de outra forma,
P
O se Plato um fascista, o que isso faz de ns? Plato, claro, um extremista. Ele empurra
L
suas ideias para suas concluses mais radicais. Todavia, isso o que ser um filsofo. Mas
T
I ele tambm est definindo um tipo especfico de escola qual ele se refere como Politea ou
C
A a Repblica, porque esse o ttulo no grego original do livro, Politea ou regime. Ele se refere
UNIDADE 1 TPICO 2 39

politea como uma escola, cujo objetivo principal a preparao para a orientao e para a
liderana de uma comunidade.

Se voc no acredita no que acabamos de argumentar, talvez considere as palavras de


Jean-Jacques Rousseau, um dos grandes leitores da Repblica de Plato. Rousseau escreveu
o seguinte em sua obra Emlio ou da Educao, "Quereis ter uma ideia da educao pblica",
diz ele, "lede a Repblica de Plato. No se trata de uma obra poltica, como pensam os que
julgam os livros pelos ttulos: o mais belo tratado de educao que jamais se escreveu
(ROUSSEAU, 1995, p. 14). Ento, l vamos ns.

2.3 FUI AT O PIREU

Vamos agora espreitar o livro em si. Somente espreitar, ns no vamos muito longe,
vamos comear com a primeira linha. "Ontem fui at o Pireu" (PLATO, 2001, p. 1), desci
ao Pireu. Por que Plato comea com essa linha? H uma histria, possvel que no seja
totalmente verdadeira, mas uma boa histria sobre o famoso filsofo alemo Martin Heidegger,
que relatou que em seu primeiro ensinamento sobre a Repblica, ele passou por todo o livro,
ensinou o livro inteiro em um seminrio, um semestre. Todavia, a ltima vez que ele lecionou
este livro, ele nunca foi alm da primeira frase, Ontem fui at o Pireu." O que isso significa? Por
que ele comea com isso? Em outra traduo est assim: "Desci ontem ao Pireu" (PLATO,
1965, p. 67). A palavra grega para isso katabasis (PANTELIA, 2009), que significa descender,
ou seja, "Eu fiz uma descida.

H um livro escrito por um famoso contemporneo de Plato. um homem chamado


Xenofonte, que escreveu um livro intitulado de Anbase (2008). Em grego, anabasis (PANTELIA,
2009), significa uma subida, ascender. Mas Plato comea este dilogo com esse estigma,
"eu desci." A descida ao Pireu evidentemente modelada na descida de Odisseu ao Hades na
Odisseia de Homero (2014). Na verdade, a obra Repblica uma espcie de odisseia filosfica
que tanto imita Homero quanto antecipa tambm outras grandes odisseias da mente humana,
obras daqueles como Miguel de Cervantes ou James Joyce. O livro est cheio de uma srie
de ascensos e descensos. A ascenso mais famosa, embora ns no vamos comentar esta F
I
parte neste Caderno de Estudos, refere-se subida para a linha dividida, a famosa imagem L
O
da linha dividida no Livro VI, e a subida ao mundo das formas imperecveis (PLATO, 2001, p. S
O
310-313, 509d-511e). J no ltimo livro da Repblica, o Livro X, h uma descida ao submundo, F
I
o mundo do Hades. A obra no , em certo sentido, escrita simplesmente como uma espcie A

de tratado filosfico atemporal, mas como um dilogo dramtico com um cenrio, um elenco P
O
de personagens e uma localizao firme no tempo e no espao. L

T
I
Vamos falar um pouco mais sobre esse tempo e lugar que foi indicado na frase: "Desci C
A
40 TPICO 2 UNIDADE 1

ontem ao Pireu." Plato nasceu em 427 AEC, ou seja, quatro anos aps o incio da Guerra do
Peloponeso. Ele era um jovem de 23 anos quando a democracia em Atenas foi derrotada. Ele
tinha apenas 28 anos quando a democracia restaurada executou seu amigo e mestre, Scrates,
em 399 AEC. Quase imediatamente aps o julgamento de Scrates, Plato deixou Atenas e
viajou extensivamente em todo o mundo grego. Aps seu retorno, ele estabeleceu uma escola
em Atenas e a chamou de Academia, para a formao dos filsofos, estadistas e legisladores.
Plato viveu um longo tempo, viveu at os 80 anos. Com exceo de duas expedies
Siclia, onde ele foi a pedido de Dionsio ajudar e tentar estabelecer uma monarquia filosfica
em Siracusa, permaneceu em Atenas ensinando e escrevendo. A Repblica pertence a esse
perodo da obra de Plato, aps o seu regresso a Atenas, aps a execuo de Scrates.

2.4 A CARTA STIMA

A caracterstica dominante da teoria poltica de Plato, disse David Grene, um grande


leitor de Plato, em todas as fases de sua vida o carter raiz-e-ramo das mudanas que
advoga nas instituies gregas existentes (1965, p. 127, traduo nossa). O desejo de Plato
por uma espcie de reforma radical, das instituies e da cultura poltica ateniense, nasceu
de sua experincia de derrota poltica e desespero. A utopia do livro , em muitos aspectos,
o lado inverso da profunda desiluso que sentiu na experincia real com a polis ateniense.
Isso no s verdade de sua experincia em casa, mas de seus esforos fracassados em
conseguir tornar o reinado de Dionsio na Siclia em um exemplo bem-sucedido de governo
filosfico. Na verdade, ns temos (vamos citar logo a seguir) uma longa transcrio do prprio
relato de Plato sobre a razo de ele escrever a Repblica. Uma coisa que voc notar na
Repblica, que Plato no est em lugar algum. Ele no um participante em seu prprio
dilogo, somente o autor.

Ns no sabemos exatamente o que pensava Plato, mas somos auxiliados, pelo


menos, por uma espcie de autobiografia intelectual que ele escreveu e que ainda a temos,
no que se convencionou chamar de a Carta Stima. Plato escreveu uma srie de cartas e
ns ainda as temos. Houve debates sobre a autenticidade delas, embora agora j esteja bem
F
I estabelecido que elas sejam de sua autoria. Na mais famosa dessas cartas, a longa Carta
L
O VII, ele nos oferece, mais uma vez, uma espcie de autobiografia e nos fala um pouco sobre
S
O a razo pela qual ele escreveu este livro. No incrvel que ns ainda tenhamos as cartas
F
I do homem que escreveu este livro? Deixe-me citar para vocs o que Plato diz sobre como
A
ele veio a escrever a Repblica. Os trechos a seguir so das sees 324b-d, da Carta VII de
P
O Plato (2011a, p. 61). "Quando eu era jovem", disse ele, e isto ele escreveu quando j estava
L
muito velho,
T
I
C experimentava o mesmo que muitos outros experimentavam. Pensava em
A
UNIDADE 1 TPICO 2 41

ingressar imediatamente na vida pblica, no exato momento em que me


tornasse meu prprio senhor. Aconteceu, entretanto segundo descobri, [...]
de ocorrerem certas alteraes nos negcios polticos. O governo vigente de
ento, objeto de insultos por parte de muitos, sofreu uma transformao que
o levou a cair; essa transformao revolucionria foi liderada por 51 homens
[...] 30 estabelecidos como governantes absolutos sobre tudo.

Aqui ele est se referindo tirania dos Trinta que existiu aps a derrota ateniense.

Desses 30, alguns realmente eram parentes e conhecidos meus, e na ver-


dade no tardaram a convidar-me para integrar o novo governo, julgando-o
adequado. Por conta de minha juventude, o que senti ento no foi, de modo
algum, surpreendente. Imaginei que iriam governar o Estado, tirando-o da vida
injusta para coloc-lo na senda da justia, de modo que passei a observ-los
muito diligentemente, a fim de ver quais seriam as suas aes. Realmente vi
aqueles homens, em pouco tempo, levarem as pessoas a relembrar o governo
anterior como uma idade de ouro.

Ele est se referindo a seus parentes, homens como Crtias e Crmides, que tornaram
a poltica ateniense em uma tirania, e que, segundo ele, fizeram com que a democracia anterior
parecesse "como uma idade de ouro." Vamos continuar nas palavras de Plato, citando agora
a seo 325c-e, e a seo 326a-b da Carta VII de Plato (2011a, p. 63):

Quanto mais eu ponderava sobre isso, sobre o tipo de seres humanos que
atuavam na poltica, incluindo suas leis e seus costumes, quanto mais os
considerava e envelhecia, mais difcil me parecia a tarefa de administrar cor-
retamente os negcios de um Estado, pois percebia que era impossvel agir
sem amigos e companheiros confiveis, os quais no era fcil encontrar em
disponibilidade, uma vez que nosso Estado no era mais administrado segundo
os costumes e prticas de nossos antepassados, ao passo que granjear novos
amigos facilmente era quase impossvel. Que se acrescente a isso que, tanto as
leis escritas quanto os costumes, eram corrompidos a uma espantosa rapidez.
O resultado foi que, embora inicialmente eu estivesse imbudo de um intenso
desejo de ingressar na vida pblica, aps ponderar sobre tudo isso e perceber
quo instveis eram as coisas, alterando-se em todas as direes, acabei por
me sentir aturdido; e apesar de no haver deixado de refletir em como algum
melhoramento poderia ser produzido, no s em relao a essas matrias,
como tambm em relao ao governo como um todo, no que se refere ao
pus-me a esperar pelo momento apropriado. Finalmente, observando todos
os Estados atualmente existentes, cheguei percepo de que so todos
mal governados, e a condio de suas leis tal que se mostra praticamente
irrecupervel na ausncia de algum remdio miraculoso e a boa sorte. Assim,
em meu louvor correta filosofia, fui forado a declarar que por meio dela
que somos capacitados a discernir a essncia da justia, tanto no mbito do
Estado quanto naquele do indivduo, e que no haver fim para os males da F
espcie humana enquanto a classe daqueles que so correta e verdadeira- I
mente amantes da sabedoria (filsofos) no governar, ou ento a classe que L
O
governa os Estados no se tornar, por favor dos deuses, realmente filosfica. S
O
F
I
Nesse trecho podemos ver uma espcie de sondagem, um autoexame de seus motivos A
e expectativas iniciais. Podemos ver a desiluso do Plato mais velho olhando para o que a
P
tirania tinha feito. Mas, tambm olhando para os Estados, as naes do seu tempo, vendo a O
L
sua gesto, sua decadncia e conflito, dizendo e sugerindo que nenhuma justia jamais ser
T
esperada at que, como ele diz no final, reis se tornarem filsofos e filsofos se tornarem reis, I
C
A
42 TPICO 2 UNIDADE 1

uma referncia direta a Repblica. Esta pequena autobiografia continua em uma extenso
considervel. Mas esse trecho proporciona uma espcie de introduo para a Repblica.
Temos nas prprias palavras de Plato, aqui, a forma como ele via a poltica e as suas razes
para a sua filosofia poltica. No entanto, em muitos aspectos, se a Repblica foi o resultado
de desespero abrangente e desiluso com os prospectos de reforma, o prprio dilogo aponta
de volta para um momento mais cedo na vida de Plato e da vida da cidade de Atenas. Esta
notvel carta foi escrita quando Plato era muito velho, aproximadamente 50 anos aps o
julgamento e execuo de Scrates. Mas a ao da Repblica ocorre muito antes da derrota
de Atenas, antes da ascenso dos Trinta e da execuo de Scrates. Refere-se ao perodo
que Plato descreve na carta que parecia "uma idade de ouro, quando muitas coisas pareciam
possveis. Isso nos conduz de volta ao incio, descida ao Pireu.

2.5 O INCIO DA REPBLICA E A HIERARQUIA


DOS PERSONAGENS

A ao do dilogo comea no Pireu, a cidade porturia de Atenas, por volta do ano


411 AEC, durante o que foi chamado de Paz de Ncias, ou seja, a paz que perdurou por uma
espcie de suspenso temporria, uma trgua que foi estabelecida durante os combates
entre Esparta e Atenas. No incio do dilogo, vemos Scrates e seu amigo Glucon. O que
eles esto fazendo? Eles esto caminhando de volta para Atenas desde Pireu. Mas, o que
Pireu? o porto de Atenas. O que voc espera de portos, como so as cidades porturias?
Elas tm a fama de serem decadentes. Voc encontra vrios tipos de coisas de m reputao
e talvez indecorosas acontecendo l. Somos obrigados a nos perguntar: O que Scrates e
Glucon estavam fazendo l? Por que eles esto l juntos? O que eles esperavam encontrar?
Estas parecem ser as perguntas que vm imediatamente mente. Aprendemos logo depois
que eles desceram a Pireu para ver um festival, uma espcie de carnaval. Soa como algo que
se poderia esperar ver em um filme de Federico Fellini, uma espcie de festival, um carnaval
brasileiro ou um Mardi Gras. Alm disso, uma nova deusa estava sendo introduzida no panteo
de divindades. Isso parece sugerir que, referindo-se Apologia, no Scrates, mas sim os
atenienses que inovam e que criam ou introduzem novas divindades. Scrates comenta que a
exibio dos trcios um bom show, mostrando que sua perspectiva no est simplesmente
F
I atrelada quela de uma cidade. Ele sugere, desde o incio, ter uma espcie de nobreza e
L
O imparcialidade em sua perspectiva, caracterstica de um filsofo, mas no necessariamente
S
O de um cidado.
F
I
A
No caminho de volta do festival eles so abordados por um escravo que foi enviado
P
O por Polemarco e seus amigos e que ordena a Scrates e a Glucon que esperem. "Polemarco
L
pede-vos que espereis", diz o escravo. Ele os ordena para esperarem, est vindo atrs de vocs,
T
I basta esperar. " claro que vamos esperar" (PLATO, 2001, p. 2, 327b), Glucon responde.
C
A Quando Polemarco e seus amigos chegam, vemos que seus amigos incluem Adimanto, que
UNIDADE 1 TPICO 2 43

irmo de Glucon e Nicrato, que filho de Ncias, o general que acabara de intermediar a
paz que eles esto agora desfrutando. Eles desafiam Scrates, "ou haveis de ser mais fortes
do que estes amigos, ou tendes de permanecer aqui", ou seja, fique com a gente ou prove ser
mais forte. "Ainda nos resta uma possibilidade, a de vos persuadirmos de que deveis deixar-
nos partir", prope Scrates. "Porventura sereis capaz de nos persuadir, se nos recusarmos
a ouvir-vos?", diz Polemarco (PLATO, 2001, p. 2). Scrates e Glucon teriam que ir com
Polemarco e os outros para a casa do pai de Polemarco, onde seria fornecido o jantar para
eles, e, mais tarde, um retorno ao festival, onde haveria uma corrida de cavalo. "Parece", diz
Glucon, "que temos de ficar", e Scrates concorda (PLATO, 2001, p. 3, 328c).

Por que o livro comea com este gambito de abertura? simplesmente um artifcio
para chamar a ateno do leitor ou para atra-lo com alguma promessa do que est por vir?
J a partir das linhas de abertura podemos ver uma pista para o tema que vai seguir. Quem
tem o ttulo, o direito de governar? Polemarco e seus amigos que dizem governar pela fora
dos nmeros? ["Podemos persuadi-lo?", "No, se no ouvirmos", ele afirma ]. Ou Scrates
e Glucon, que esperam governar pelos poderes da razo, do discurso e do argumento?
Ser que podemos convenc-lo? Podemos persuadi-lo? , pode a democracia que expressa
a vontade da maioria, a vontade do maior nmero, ser compatibilizada com as necessidades
da filosofia e as reivindicaes de respeitar somente a razo e um melhor argumento? Essa
parece ser a questo exposta nesta cena de abertura. Pode um compromisso ser alcanado
entre os dois? Pode a fora dos nmeros, bem como o respeito pela razo e um melhor
argumento ser, em algum sentido, harmonizado? Eles podem ser coadunados? a cidade
justa, a qual Scrates vai mais tarde considerar, uma combinao dos dois, de ambas, a fora
e a persuaso? Isso vai ser algo para ponderarmos. Penso que voc pode ver os grandes
temas do livro j muito presentes na cena do dilogo de abertura. O primeiro livro realmente
uma espcie de prembulo a tudo o que se segue.

Vamos falar um pouco sobre os participantes neste dilogo, que tem um nmero
considervel de personagens, embora apenas um nmero relativamente pequeno destes fale
no livro. Assim como gostaramos de saber particularidades dos personagens em qualquer pea,
novela ou filme, importante tambm observar certos detalhes sobre as pessoas que participam
deste jantar, o qual fora prometido a Scrates e a Glucon. Quem so estes personagens e o
que eles representam? H o Cfalo, que veremos rapidamente logo a seguir, que o pai de
F
Polemarco, em cuja casa esto sendo atendidos, o venervel paterfamilias. Polemarco, seu I
L
filho, um patriota slido que defende no somente a honra de seu pai, mas tambm aquela de O
S
seus amigos e concidados. Veremos tambm Trasmaco, um intelectual cnico que rivaliza O
F
com Scrates como um educador de futuros lderes e estadistas. Este ltimo, o intercmbio I
A
entre Scrates e Trasmaco, um dos momentos mais famosos do livro.
P
O
L

T
I
C
A
44 TPICO 2 UNIDADE 1

2.6 CFALO

H, no primeiro conjunto de dilogos, uma hierarquia distinta de personagens e


caracteres que, como veremos mais adiante, expressa as caractersticas distintivas da alma
e da cidade. Cfalo passou a sua vida nas artes da aquisio. Ou seja, ele um homem de
negcios. Ele est preocupado com a satisfao das necessidades do seu corpo e ganhar
dinheiro. Ele representa o que mais tarde ser chamado na Repblica da parte apetitiva
(desiderativa) da alma, os apetites. Polemarco, cujo nome significa "senhor da guerra", pense
nisso, o senhor da guerra est preocupado com questes de honra e lealdade. Ele nos diz,
adiantando agora um pouco o assunto, que a justia ajudar seus amigos e prejudicar seus
inimigos. Ele parece representar o que Plato ou Scrates, mais tarde, chamam de a parte
irascvel (impetuosa) da alma, algo a que certamente voltaremos. Trasmaco, um sofista de
visita, procura ensinar e educar, antecipando o que a Repblica vai chamar de a alma racional,
a parte racional da alma.

Cada uma dessas figuras, de muitas maneiras, prefigura as naturezas relativamente


superiores daqueles que aparecem depois no dilogo. Os dois irmos, Glucon e Adimanto,
que, alis, so os irmos de Plato, engajam-se em um intercmbio com Scrates que ocupa
a maior parte do resto do dilogo, do Livro II em diante. No sabemos historicamente nada
mais sobre Glucon e Adimanto, mas Plato os insere em seu dilogo. Eles sero sempre
lembrados como os dois irmos no dilogo de Plato. Entretanto, eles parecem representar algo
muito diferente entre si. Tenha isso em mente enquanto voc est lendo o livro, porque fcil
esquecer quem est falando e o que eles representam. Adimanto o tipo de irmo hedonista e
que est na busca do prazer. Glucon, cujo nome de acordo com o LSJ-Greek-English Lexicon
(PANTELIA, 2009), no perodo homrico significava algo como "brilhante, o feroz e blico
dos dois irmos. claro, h tambm Scrates, o inclinado filosofia. Cada um deles parece
representar de um modo superior os principais componentes da alma humana, o apetitivo ou
desiderativo, o irascvel ou impetuoso e o racional. Juntos, estes personagens formam uma
espcie de microcosmo da humanidade. Cada um dos participantes no dilogo representa uma
das classes ou grupos especficos que, eventualmente, ir ocupar a cidade bela e justa para
F a qual Plato ou Scrates d o nome de Kallipolis, a cidade bela.
I
L
O
S Vamos falar brevemente agora sobre a primeira conversa com o chefe da famlia, Cfalo.
O
F Esta conversa ocorre entre as sees 328c e 331 do Livro I (PLATO, 2001, p. 3-8). Ns no
I
A olharemos para isso com tanto detalhe neste momento. Voc pode, com certeza, durante as
P leituras do livro, dedicar mais tempo ponderando mais especificamente sobre os argumentos
O
L que so usados nestes trs primeiros conjuntos de conversas entre Cfalo, Polemarco e

T Trasmaco. A questo que vamos examinar um pouco mais aqui o que esses personagens
I
C representam. No caso agora, Cfalo, o seu nome indica cabea, ele o chefe da famlia, mas
A
UNIDADE 1 TPICO 2 45

tambm esto claramente presentes aqui as reivindicaes da idade, da tradio e da famlia.

No incio do dilogo, quando Polemarco leva seus amigos de volta para casa, vemos o
pai idoso, Cfalo. Ele est apenas retornando de uma orao, acabara de realizar certos atos
de sacrifcio ritual. Ele cumprimenta Scrates como um amigo h muito tempo perdido. Talvez
voc j tenha tido essa experincia, sempre um pouco desconfortvel. Quando voc leva
um grupo de amigos seus para sua casa, voc est esperando passar um bom tempo, e seu
av est l e diz: "Oh, to bom ver um bando de jovens. Eu quero falar com voc." uma
situao um pouco desconfortvel. Tanto estando de um lado quanto do outro. Por exemplo,
se voc for um pai, quando seu filho traz seus amigos, talvez alguns que voc j conhea h
muito tempo, voc pode perguntar: "Oh, como voc est?", e eles, na verdade, querem fugir
de voc. Scrates, neste caso, faz algo bastante abrupto, ele pergunta (2001, p. 4, 328d):
"Diga-me, Cfalo, como que ser to velho?", "Como que ser como voc?", "Voc ainda
sente a necessidade de sexo?". Voc pode se imaginar dizendo isso ao av de algum? Isso
lhe d uma pequena ideia do carter de Scrates. Todavia, Cfalo est muito feliz, resumindo
a sua fala, segue assim: "Oh, graas a Deus eu j passei disso", ele diz:

graas a Deus eu j no sinto esse desejo ertico. Na minha idade, eu posso


gastar meu tempo. Quando eu era jovem, isso tudo que eu fiz. Eu estava
pensando em sexo o tempo todo e quando eu no estava pensando sobre
isso, eu estava fazendo dinheiro. Mas agora eu me enchi de ambos e posso
passar meus ltimos anos, o crepsculo da minha vida, voltando-me para as
coisas sobre os deuses, a realizao de sacrifcios comandados pelos deuses.

Por que Plato comea desta maneira? Bem, Cfalo , como deve estar claro, a prpria
personificao, a encarnao do convencional. Ele no um homem mau, de modo algum,
mas ele algum completamente irrefletido. Ao atacar Cfalo como ele faz, Scrates ataca a
personificao da opinio convencional, o Nomos que sustenta a cidade. Note a forma como
Scrates manipula o dilogo, a conversa.

Cfalo diz, na seo 331b, que o homem piedoso, o homem justo pratica a justia
sacrificando aos deuses. Scrates transforma essa afirmao, na declarao de que a justia
significa pagar suas dvidas e devolver o que lhe devido. Cfalo, de uma forma descontrada e
malevel concorda e, em seguida, diz Scrates, o que voc pensa se algum recebesse armas
de um amigo em perfeito juzo, e este, tomado de loucura, as reclamasse" (PLATO, 2001, p.
F
9, 331c), poderamos dizer um quadro depressivo, seria justo entregar-lhe de volta? Como voc I
L
explica isso? Voc faria isso se a justia significa pagar suas dvidas e devolver a cada o que O
S
devido? Naquele momento, Cfalo se retira do dilogo e diz, um tanto abruptamente, "eu, por O
mim, fao-vos entrega da discusso, pois tenho de ir tratar do sacrifcio (331d). Scrates, em F
I
outras palavras, rompeu o vnculo da tradio e da autoridade tradicional que mantm juntas a A

cidade antiga e a famlia antiga. Cfalo banido do dilogo. A tradio banida e nunca mais P
O
ouvimos uma palavra sequer sobre isso nas prximas 400 ou mais pginas. Essa a maneira L

como Scrates comea este dilogo, ou essa a maneira que Plato faz com que Scrates T
I
comece. Vamos olhar um pouco mais a alguns destes detalhes a seguir, e depois passar para C
A
46 TPICO 2 UNIDADE 1

os personagens de Adimanto e Glucon. De qualquer forma, no deixem de ler, continuem


sua leitura da Repblica de Plato e divirtam-se.

3 PLATO E A REPBLICA: LIVROS III-IV

Vamos continuar com o relato das vrias figuras, das pessoas que habitam este dilogo,
e quem elas so, o que elas representam e como contribuem para o argumento e a estrutura
da obra como um todo.

Falamos brevemente sobre Cfalo e o tratamento que Scrates lhe concedeu. O


tratamento personificao e incorporao da conveno, personificao da opinio
ateniense, de maneira que Scrates afugenta Cfalo fora do dilogo. Percebemos que os
outros oradores so capazes, presumivelmente, de empreender os argumentos audaciosos
que aparecero no resto do livro sem a superviso do chefe da famlia, a personificao da
opinio convencional.

3.1 POLEMARCO

Scrates busca uma prxima discusso com o filho de Cfalo, Polemarco, o homem
que tinha abordado Scrates no Pireu. Essa discusso comea na seo 331d (PLATO, 2001,
p. 9). Polemarco descrito como o herdeiro do argumento, bem como o herdeiro da fortuna
da famlia. Polemarco o que os gregos chamariam de "cavalheiro". Vamos apenas dizer que
ele uma pessoa disposta a levantar-se para defender sua famlia e seus amigos. Portanto,
cavalheiro aqui no significa, necessariamente, algum que segura a porta para os outros
passarem, ou assim por diante, mas algum que se levanta por sua famlia e seus amigos da
maneira que ele faz.

F
I Ao contrrio de seu pai, no entanto, Polemarco mostra-se preocupado no apenas com
L
O
as necessidades do corpo como representava Cfalo, mas Polemarco est preocupado em
S
O
defender a honra e a segurana da polis. Ele aceita a ideia de que a justia dar a cada o que
F
I
lhe devido, mas interpreta isto dizendo que a justia significa fazer o bem a seus amigos e
A danos a seus inimigos. Justia, poderamos dizer, seria um tipo de lealdade que sentida pelos
P membros de uma famlia, os membros de uma equipe, os membros de um grupo em oposio
O
L a todos os outros. Ou seja, Polemarco entende a justia como uma espcie de sentimento

T patritico que os cidados de uma cidade ou de uma polis sentem um pelo outro em oposio
I
C a todos os outros lugares. Justia a devoo a seus prprios, e seus prprios o bem, o
A
UNIDADE 1 TPICO 2 47

justo para Polemarco.

Mas Scrates desafia Polemarco, alegando que a lealdade a um grupo, qualquer grupo,
no pode ser uma virtude em si mesma, e ele faz Polemarco tropear com uma argumentao
socrtica bem familiar: "Ser que ns nunca cometemos erros?", ele pergunta a Polemarco.
"No a distino entre amigo e inimigo com base em um tipo de conhecimento, em uma
percepo de quem seu amigo e quem seu inimigo? Ser que j confundiu um amigo com
um inimigo?" A resposta parece ser: " claro que j." (PLATO, 2001, p. 16, 334c). Todos ns
conhecemos pessoas que pensvamos serem nossos amigos, mas descobrimos que elas
estavam falando nas nossas costas, ou que estavam tentando nos enganar, de alguma forma
ou de outra.

Scrates argumenta dizendo, ento como podemos dizer que a justia significa ajudar
os amigos e prejudicar os inimigos, quando ns no podemos sequer ter a certeza de quem
nossos amigos e nossos inimigos realmente so? Por que os cidados de um estado, ou seja,
os seus prprios, devem possuir qualquer prioridade moral sobre os cidados de outro estado,
quando, mais uma vez, ns no os conhecemos e podemos muito bem estar enganados em
nossa suposio de que eles so inimigos ou amigos? Em outras palavras, tal apego irrefletido
prpria obrigao no poderia resultar em injustia para os outros? isso que Scrates
parece estar pedindo a Polemarco.

Mais uma vez vemos Scrates dissolver os laos do familiar. Em nenhum outro ponto
da Repblica vemos com tanta clareza a tenso entre a reflexividade filosfica, por um lado,
no sentido de camaradagem, mutualidade e o esprit de corps necessrio para a vida poltica,
de outro. Scrates parece dissolver aqueles laos de familiaridade, lealdade e apego que
todos ns temos ao dizer a Polemarco: "Como sabemos, como que vamos realmente saber
a distino entre amigo e inimigo?"

Mas Polemarco parece acreditar que uma cidade s poder sobreviver com uma
ntida sensao do que ela de fato , o que ela representa, e um sentido igualmente vvido
do que ela no e quem so os seus inimigos. No isto essencial para a sobrevivncia de
qualquer Estado, de qualquer cidade? Saber quem so os seus amigos e os seus inimigos? A
desiluso de Scrates deste quadro especfico desafia a prpria possibilidade da vida poltica,
F
por questionar a distino entre o amigo e o inimigo. I
L
O
S
Embora Polemarco, como o seu pai, seja reduzido ao silncio, notvel que seu O
F
argumento no seja realmente derrotado. Mais adiante, na Repblica, voc vai ver Scrates I
A
argumentar que a melhor cidade pode ser caracterizada pela paz e harmonia em casa, mas
P
isso nunca vai ser assim para as relaes entre Estados. Essa a razo pela qual at mesmo a O
L
melhor cidade, at mesmo Kallipolis exigir (e Scrates vai despender um bom tempo discutindo
sobre isso) uma classe de guerreiros, uma classe do que ele chama de "auxiliares". A guerra T
I
e a preparao para a guerra uma parte intrnseca at mesmo da cidade mais justa. At C
A
48 TPICO 2 UNIDADE 1

mesmo a cidade justa platnica ter que cultivar cidados guerreiros que estejam dispostos a
arriscar a vida no campo de batalha para o bem de sua prpria cidade.

Assim, em muitos aspectos, parece que o argumento de Polemarco, enquanto


aparentemente refutado no Livro I, reabilitado e reemerge ao seu prprio modo no final do
dilogo. E ns podemos querer pensar sobre isso, porque um argumento muito importante
para o sculo XX e XXI contemporneo. Um importante terico poltico do sculo XX, Carl
Schmitt, fez da distino amigo-inimigo o critrio fundamental para a sua compreenso da
poltica (1992, p. 51-53). Este um argumento que vem de Polemarco no Livro I da Repblica.

3.2 TRISMACO

Polemarco despachado de uma forma ou de outra, e isso cria a oportunidade para o


mais longo e de muitas maneiras o mais memorvel dilogo no Livro I, e talvez at mesmo na
Repblica como um todo, o dilogo com Trasmaco, que tem incio na seo 336b (PLATO,
2001, p. 19). Este representa um desafio muito mais difcil, em sua prpria maneira, do que
qualquer um dos dois primeiros personagens. Isso porque Trasmaco poderia ser visto como
o alter ego de Scrates ou o seu irmo gmeo do mal. Para ilustrar melhor ainda, seria para
ele semelhante ao que o Dr. Moriarty para o Sherlock Holmes.

Trasmaco um rival de Scrates em muitos aspectos. Ele, assim como Scrates, um


professor, um educador. Ele alega ter certo tipo de conhecimento sobre o que a justia, e afirma
ser capaz de ensin-la aos outros. Ele est ensinando uma espcie de realismo obstinado que
expressa desagrado com a fala de Polemarco sobre a lealdade, a amizade e afins. "Justia",
ele afirma, "no outra coisa seno a convenincia do mais forte." (PLATO, 2001, p. 23,
338c). Toda poltica de que sabemos baseada em uma distino entre os governantes e os
governados. A justia consiste das regras que so feitas pela classe dominante e para os seus
prprios benefcios. Justia nada mais e nada menos do que o que beneficia os governantes,
so estes que determinam as leis da justia.

F
I Trasmaco mesmo para ns, hoje, um tipo familiar de pessoa. Ele o intelectual que
L
O gosta de trazer luz os fatos duros e recorrentes da natureza humana, que gosta de dissipar
S
O as iluses e as crenas bonitas. Ele aquele que, provavelmente, seria o primeiro a dizer que
F
I no existe Papai Noel. Ele esse tipo de realista casca-grossa.
A

P
O No importa o quanto ns no gostemos dele, de certa forma, tem de se admitir que
L
talvez haja um gro, se no mais do que um gro de verdade no que ele parece estar dizendo.
T
I E o que ele parece estar dizendo o seguinte: ns somos seres que em primeiro lugar e
C
A principalmente somos dominados por um desejo de poder. Isso o que distingue o verdadeiro
UNIDADE 1 TPICO 2 49

homem, o homem real, o macho alfa do escravo. Poder e dominao so tudo o que realmente
nos interessa. E quando chegarmos mais adiante neste Caderno de Estudos, em Thomas
Hobbes, lembre-se de Trasmaco. Poder e dominao so tudo com o qual nos preocupamos.

E o que verdade para os indivduos tambm verdade para entidades coletivas, como
estados e municpios. Cada governo procura a sua prpria vantagem em detrimento do outro,
fazendo as relaes entre Estados, condio de incessante guerra de todos contra todos.
Na linguagem da economia moderna pode-se dizer que para Trasmaco a poltica um jogo
de soma zero. H vencedores e h perdedores, e quanto mais algum ganha significa que
quanto mais algum vai perder. E as regras da justia so simplesmente as leis criadas pelos
vencedores do jogo para proteger e promover seus prprios interesses. No precisou muito
para Karl Marx inventar ou descobrir este insight, que as regras da justia so simplesmente
as regras da classe dominante. Isso vem diretamente de Trasmaco, no Livro I da Repblica.

Bem, como responder a isso? Mais uma vez, Scrates desafia Trasmaco com
uma variao do argumento que ele usou contra Polemarco. Isso quer dizer "Ser que ns
cometemos erros?". Ou seja, no autoevidente ou nem sempre intuitivamente bvio quais
so os nossos interesses. Se a justia est realmente para o interesse do mais forte, isso no
requer algum tipo de conhecimento, algum tipo de reflexo por parte de quem est no poder
de saber o que real e verdadeiramente do seu interesse? As pessoas cometem erros e
muito possvel cometer um erro sobre os seus prprios interesses. E, claro, Trasmaco tem que
reconhecer isso, claro que os governantes cometem erros, e ele tenta inventar um argumento
de que, se um governante comete um erro, ele no realmente um verdadeiro governante. O
verdadeiro governante a pessoa que tanto atua em seu prprio interesse quanto sabe quais
so esses interesses. Mas o ponto que ele admite tudo, em certo sentido, que Scrates
precisa (PLATO, 2001). A justia no o poder por si s, a justia requer conhecimento. A
justia exige reflexo. E isso est, naturalmente, no cerne da famosa tese socrtica, que toda
a virtude uma forma de conhecimento, todas as virtudes exigem conhecimento e reflexo em
sua base. A maior parte do intercmbio com Trasmaco se volta ao problema de qual tipo de
conhecimento a justia engloba, e se a justia um tipo de conhecimento. Pois, se a justia
igual a interesse prprio e interesse prprio exige conhecimento, que tipo de conhecimento
este? Trasmaco afirma que a justia consiste na arte de convencer as pessoas a obedecer s
regras que so realmente do interesse de outros, os interesses dos seus governantes. Justia,
F
em outras palavras, para Trasmaco uma espcie de jogo de otrio. Obedecemos s regras I
L
que realmente beneficiam aos outros, em grande parte porque tememos as consequncias O
S
da injustia. Justia realmente algo somente respeitado pelos fracos que tm medo das O
F
consequncias da injustia. I
A

P
Portanto, o verdadeiro governante aquele, acredita Trasmaco, que tem a coragem de O
L
agir injustamente por seu prprio interesse. "O verdadeiro governante", diz ele, " aquele que
como um pastor com um rebanho, ele no governa para o benefcio do rebanho, claro, o T
I
faz para o seu prprio benefcio, o bem do pastor" (PLATO, 2001, p. 31-32, 343a-e). Justia, C
A
50 TPICO 2 UNIDADE 1

como todo o conhecimento, seria realmente uma forma de autointeresse.

Desse modo, se pode perguntar: "Trasmaco est enganado em acreditar nisso?".


Scrates ganha o argumento no livro I com uma espcie de, pode-se dizer, prestidigitao.
Tanto ele como Trasmaco acreditam que a justia uma virtude, mas Scrates diz: "Que tipo
de virtude essa para enganar e extorquir outras pessoas?" Trasmaco forado a admitir
que a pessoa justa um tolo, ele acredita que deve ser tolo por obedecer s leis que no
so benficas para ele. Mas a melhor vida, Trasmaco acredita, fazer o mximo de injustia
aos outros, fazer o que quiser. E com essa realizao, vemos um momento muito dramtico
do Livro I, at mesmo do livro como um todo, Trasmaco ruboriza-se (PLATO, 2001, p. 44,
350d). Ele cora ao perceber que estava defendendo a alegao de que a justia no uma
virtude, mas que a justia seria realmente uma forma de fraqueza. Trasmaco aparenta estar
envergonhado por sua defesa da vida tirnica, da vida injusta.

A sugesto que Plato parece estar fazendo ao dizer que Trasmaco ruborizou-se
que apesar de toda a sua conversa firme, ele no to forte como parece ser, como ele
quer pensar de si mesmo que . Ele est envergonhado pelo fato de que vem defendendo a
injustia e a forma tirnica de vida. desse modo que as trs conversaes acabam. O Livro
I termina com a incerteza sobre o que a justia. Tivemos trs pontos de vista, de Cfalo, de
Polemarco e de Trasmaco. Todos foram refutados, mas nenhuma alternativa clara parece ter
surgido. Certamente Scrates no props realmente uma alternativa para Trasmaco em sua
conversa com ele. Ele somente forou Trasmaco a ver que a lgica de suas ideias, a lgica
de seu argumento de que a justia est para o interesse do mais forte, uma defesa da tirania
e uma defesa do modo de vida injusta.

3.3 GLUCON

Portanto, tudo do Livro I realmente uma espcie de aquecimento para o que se segue
no resto da Repblica. Ns descobrimos presumivelmente o que justia. At este momento,

F
no temos razo para realmente desistir de nossas ideias atuais existentes sobre o que
I
L
justia. neste ponto, no incio do Livro II, que as duas figuras mais importantes da Repblica
O
S
comeam a fazer suas vozes serem ouvidas. Essas so as vozes de Glucon e Adimanto.
O
F
I Glucon diz a Scrates que ele est insatisfeito com a refutao de Trasmaco. possvel
A
que ns tambm devssemos estar. Pois Trasmaco foi envergonhado, ele foi forado a ver
P
O onde a lgica de sua argumentao o levou, mas isso no a mesma coisa que ser refutado.
L
Trasmaco teve vergonha de ser visto defendendo a vida injusta. "Mas por que devemos ter
T
I vergonha de elogiar a injustia?", Glucon desafia Scrates. "No o suficiente mostrar que a
C
A justia est errada", diz Glucon. "O que precisamos ouvir por que a justia boa", ou mais
UNIDADE 1 TPICO 2 51

precisamente, ouvir a justia louvada por ela mesma. "Existe, na sua opinio," Glucon pede
a Scrates, "uma espcie de bem que ns escolheramos somente porque nos deleitaramos
nele mesmo?" (PLATO, 2001, p. 54-55, 358a-d). Existe uma espcie de bem que temos prazer
nele mesmo, sem segundas intenes e intermedirios? E este o ponto onde as coisas ficam
realmente srias.

Quem Glucon? Glucon e Adimanto so os irmos de Plato, e alm de sua presena


neste livro, no h registros histricos deixados sobre eles. Mas Plato nos deu o suficiente.
Em primeiro lugar, eles so jovens aristocratas, e o desejo de Glucon de ouvir a justia
sendo louvada por si mesma j nos indica algo sobre sua escala de valores. Seria vulgar, ele
acredita, falar de justia ou de qualquer virtude em termos de recompensas materiais ou de
suas consequncias. Ele no precisa ouvir a justia ser louvada por seus benefcios, ele
indiferente s consequncias. Em vez disso, ele afirma que quer ouvir a justia ser defendida
de uma maneira que ningum jamais a defendeu antes. Os irmos desejam ouvir a justia
ser louvada somente por si mesma, e isso parece ser expresso da sua prpria liberdade de
motivos e incentivos mercenrios. Isso nos revela algo sobre o seu idealismo e certo tipo de
grandiosidade de sua alma. Certamente, os irmos no so incompetentes. Embora, mais tarde
no dilogo a maior parte de suas contribuies seja na forma de "sim, Scrates; no, Scrates",
o que lhes confere uma aparncia de interlocutores passivos, os seus primeiros desafios a
Scrates os revelam como filsofos potenciais. Ou seja, o tipo de pessoa que poderia um dia
governar a cidade.

Dos dois, Glucon parece ser o superior. Ele descrito como o mais corajoso, que,
nesse contexto, significa o mais viril, e mais tarde, Scrates admite que ele sempre foi cheio
de admirao pela natureza dos dois irmos. Na seo 368a (PLATO, 2001, p. 70), ele cita
uma linha de poesia escrita sobre eles por sua distino em batalha. Eles estiveram em guerra,
eles foram testados em batalha. Eles tambm so, e ns vemos isso a partir de sua relao
e da forma como falam um com o outro, altamente competitivos. H um pouco de duelo entre
eles que tambm preciso estar atento. E cada um prope a Scrates um teste que ele vai
ter que passar a fim de provar o valor da justia e da vida justa.

Glucon passa a reabilitar o argumento de Trasmaco de uma maneira mais vvida e


mais expressiva do que este o fez. Voc deve lembrar-se de sua leitura, nas sees 359b-360b,
F
que Glucon conta uma verso da histria, escrita pelo historiador Herdoto, sobre um homem I
L
chamado Giges que possua um anel mgico que lhe conferiu o poder da invisibilidade. Quem O
S
j no se perguntou o que faramos se tivssemos esse poder, o poder da invisibilidade? O
F
Giges, na releitura da histria por Glucon, usa esse anel para assassinar o rei, tomar o seu I
A
lugar e dormir com sua esposa. O que voc faria se voc tivesse esse poder, o poder deste
P
anel mgico, com o qual voc poderia cometer qualquer crime, saciar qualquer vcio, cometer O
L
qualquer ultraje e certificar-se de que voc nunca ser pego por isso? Por que, se voc pudesse
fazer isso, desejaria ser, ao mesmo tempo, justo? Ou desejaria ser justo apesar disso? Este T
I
o desafio que Glucon apresenta a Scrates. Por que algum com poder absoluto e completa C
A
52 TPICO 2 UNIDADE 1

imunidade punio preferiria justia injustia? "Diga-me Scrates", Glucon pergunta, "se
a justia realmente algo louvvel por si s, ento deves ser capaz de fornecer uma resposta
que satisfaa a releitura da histria de Giges, e isso certamente uma solicitao bem difcil.

3.4 ADIMANTO

neste momento, na seo 362d em diante (PLATO, 2001, p. 61), que junta-se ao
dilogo o irmo Adimanto, todavia com um conjunto de preocupaes um pouco diferentes.
Ele ouviu a justia ser louvada toda a sua vida, pelos seus pais, poetas e outras autoridades,
mas em sua maior parte, apenas ouviu estes louvores por causa dos benefcios que a justia
confere tanto nesta vida quanto na prxima. Honestidade, neste contexto, seria a melhor poltica.
Ouvimos Cfalo estar preocupado com devolver aos outros o que lhes devemos como uma
forma de agradar aos deuses na vida aps a morte. Adimanto toma justamente esse tipo de
argumento para dizer que se voc estiver apenas preocupado com as consequncias, a justia
seria simplesmente uma virtude para os fracos, os deficientes e os apticos. Um homem de
verdade no teme as consequncias da injustia.

Em vez disso, a preocupao de Adimanto (e ele nos oferece uma imagem muito
reveladora do que pensa ser a justia) com uma imagem de autotutela, ou de autocontrole.
Ele nos diz, na seo 367a (PLATO, 2001, p. 68), que cada um seria seu prprio deus. Em
outras palavras, no deveramos nos importar com o que as pessoas dizem sobre ns, mas
deveramos estar preparados para ser guardies de ns mesmos, desenvolver qualidades
de autoconteno, autonomia e independncia em relao influncia que os outros podem
exercer sobre ns. "Como posso desenvolver as qualidades de autotutela ou autocontrole?",
ele pergunta a Scrates.

E quem no se sentiu assim antes? Os dois irmos desejam ouvir a justia elogiada
em si e por si mesma, no caso de Glucon, e viver livremente e de forma independente, no
caso de Adimanto. Isso mostra at certo ponto a sensao de alienao de ambos em relao
prpria sociedade. Ou, colocando o caso deles anacronicamente, estes so dois filhos da
F
I alta burguesia que se sentem degradados pela falsidade e hipocrisia do mundo que veem ao
L
O seu redor. De qualquer maneira, que pessoa com sensibilidade para a grandeza no se sentiu
S
O assim em um momento ou outro?
F
I
A
Os dois esto abertos persuaso, a considerar alternativas, talvez at alternativas
P
O radicais, para a sociedade que os tem nutrido. Eles so, talvez, no s potenciais governantes
L
e potenciais filsofos, eles tambm podem ser potenciais revolucionrios, e o restante do livro
T
I dirigido a eles e, claro, pessoas como eles.
C
A
UNIDADE 1 TPICO 2 53

Podemos dizer que com os discursos de Glucon e Adimanto o cerco em torno de


Scrates fica efetivamente fechado. Ele sabe que no voltar a Atenas naquela noite, assim
ele prope aos dois irmos e queles ouvindo a conversa uma espcie de experincia mental,
a qual ele espera que ir persuadir os dois. "Vamos propor", diz ele, "ver a formao de uma
cidade atravs do nosso discurso." Vamos criar uma cidade com nossa imaginao. " mais
fcil", diz ele, "no ver a justia microscopicamente em um indivduo, mas sim v-la como se
fosse atravs de uma lupa". Vamos visualizar a justia no sentido amplo, vamos v-la em uma
cidade, a fim de nos ajudar a entender o que ela em um indivduo. (PLATO, 2001, p. 71-72,
368d-369b)

Essa ideia de que a cidade essencialmente anloga alma, que a cidade como a
alma a metfora central em torno da qual toda a Repblica construda. Parece ser uma
metfora totalmente incua, pois ningum no dilogo a objeta. No entanto, tudo o mais segue
a partir desta ideia de que a cidade, a polis, essencialmente como um indivduo, como a alma
de um indivduo. O que Scrates est tentando fazer aqui, e o que essa metfora central, e a
qual funo ela serve na obra? Para dizer o bvio, Scrates introduz esta analogia para ajudar
os irmos a compreender melhor o que a justia para uma alma individual. A governana da
alma, o padro de autocontrole de Adimanto deve ser em alguns aspectos decisivo, tal como
o governo de uma cidade. Mas, em quais aspectos? Como que uma cidade pode ser como
uma alma? E em qual aspecto o autocontrole/governo, o controle das prprias paixes e
apetites, semelhante ao governo de um corpo coletivo?

Considere o seguinte: quando dizemos que fulano de tal um brasileiro tpico ou um


argentino tpico, por exemplo, queremos dizer que essa pessoa expressa determinados traos
de carter e de comportamento que so amplamente representativos de um corte transversal
de seus compatriotas. Isso uma maneira til de pensar? Mais especificamente, o que significa
dizer que um indivduo pode ser visto desde uma perspectiva ampliada de seu pas, ou que o
pas de algum simplesmente a expresso coletiva de certos traos individuais de carter?
Isso parece ser o que Scrates est sugerindo, aonde ele quer chegar.

Uma maneira de se pensar sobre as duas metforas, da cidade e da alma juntas,


pensar nelas como um tipo particular de hiptese causal sobre a formao de ambos os
carteres individuais e as instituies polticas. Uma leitura assim, da analogia cidade-alma
F
como uma espcie de relao causal, sustenta a opinio de que tanto ns como indivduos I
L
determinamos/moldamos o carter de nossas sociedades, quanto essas sociedades moldam e O
S
determinam o nosso carter individual. A analogia cidade-alma poderia ser vista, ento, como O
F
uma tentativa de compreender como as sociedades se reproduzem, e como elas moldam os I
A
cidados que, por sua vez, moldam as sociedades em que habitam.
P
O
L
Essa parece ser uma forma de dar sentido hiptese cidade-alma, todavia no responde
pergunta sobre a maneira que as cidades e os indivduos se assemelham. Retornando ao T
I
exemplo do brasileiro, ser que significa que algo como a Presidncia, o Congresso e o Tribunal C
A
54 TPICO 2 UNIDADE 1

podem ser discernidos no interior da alma de cada cidado brasileiro? Pensar isso, a meu ver,
seria absurdo. Entretanto, poderia significar que a democracia brasileira, ou a democracia de
qualquer natureza, ajuda a produzir um tipo particular de alma democrtica. Algo semelhante
a isso pode ser visto no Antigo Regime na Frana, a antiga sociedade aristocrtica existente
antes da revoluo, que tendeu a produzir um tipo muito diferente de alma, um tipo muito
diferente de indivduo. Cada regime ir produzir um tipo distinto de indivduo, e esse indivduo
vir a incorporar os traos de carter dominantes do regime particular. O restante da Repblica
dedicado a descrever o regime que ir produzir um tipo distintivo de carter humano e
exatamente por isso que o livro uma utopia. Nunca houve um regime na histria que estivesse
nica e exclusivamente dedicado finalidade de produzir a mais rara e mais complexa espcie
da humanidade, aquela chamada de filsofo.

O discurso de Scrates sobre a cidade prossegue atravs de vrias etapas. A primeira


etapa, que podemos acompanhar na seo 369c-372b (PLATO, 2001, p. 72-77), proposta por
Adimanto, a cidade simples, a cidade das necessidades fundamentais. Esta uma cidade
limitada satisfao de certas necessidades bsicas. A cidade primitiva ou simples expressa a
natureza da prpria alma de Adimanto. H uma espcie de simplicidade nobre nele que trata os
sujeitos como corpos ou criaturas de apetites limitados. A cidade simples pouco mais do que
uma combinao de domiclios projetados com o propsito de garantir a existncia de algum.

Neste ponto, a partir da seo 372d (PLATO, 2001, p. 78), voc pode ouvir o seu
irmo reprimindo-o, neste momento Glucon retruca que parece que Adimanto criou uma
cidade apta somente para porcos, uma cidade de porcos. Somos apenas de tal forma que
apenas queremos nos alimentar por uma calha comum? No h nada mais para a poltica do
que isso? E Glucon diz: "Onde esto os luxos? Onde esto os deleites", ele pergunta, "onde
esto as coisas que compem uma cidade?" Aqui tambm, a cidade de Glucon expressa
seus prprios gostos e sua prpria alma. O belicoso Glucon presidiria sobre o que Scrates
chama de uma cidade inchada de humores, uma cidade febricitante, que institucionaliza
honras, competies e, acima de tudo, a guerra. Se Adimanto expressa a parte apetitiva ou
desiderativa da alma, Glucon representa animosidade, o brio, a qualidade que Plato chama
de irascvel, impetuosa, cujo termo em grego thumos ou thymos.

F
I
L
O
S
O 3.5 A IMPETUOSIDADE E O ESTABELECIMENTO
F DA CIDADE JUSTA
I
A
A impetuosidade, a animosidade, a qualidade psicolgica central da Repblica. Toda a
P
O propulso da obra dedicada domesticao e controle da impetuosidade. A impetuosidade a
L
qualidade da alma que est mais associada com os desejos de honra, de fama e de prestgio.
T
I uma qualidade psicolgica de ordem superior. Ela busca a distino, o desejo de ser o primeiro
C
A na corrida da vida e nos leva a procurar dominar os outros. Todos ns conhecemos pessoas
UNIDADE 1 TPICO 2 55

desse tipo, no ? E todos ns em algum grau incorporamos essa qualidade em ns mesmos.


a qualidade que associamos ao tipo de personalidade alfa. A questo para Scrates como
canalizar essa paixo indomada do esprito ou do corao selvagem, como canalizar isso para
algum tipo de bem comum. Isso pode ser feito? Como podemos comear a domesticao do
impetuoso Glucon? O resto do livro , at certo ponto, sobre isso, levantando a questo de
se Glauco poder ser domado.

aqui que Scrates volta-se para a sua primeira e, talvez, at mesmo a sua proposta
mais controversa para o estabelecimento da cidade justa. Ele prope, a partir da seo
383a e continua por quase todo o Livro III, que a criao da cidade justa s pode comear
com o controle da msica, da poesia e das artes. Vemos aqui a imagem de Plato como um
educador em ao. A primeira ordem do dia para o fundador de uma cidade, qualquer cidade,
a superviso da educao. E as suas propostas para a reforma da poesia, especialmente a
poesia homrica, representam claramente uma ruptura radical com as prticas educativas e
crenas gregas. Por que isso to importante para Scrates? Pergunte a si mesmo, se voc
estivesse fundando uma cidade, por onde voc comearia?

O argumento de Scrates, apresentado no Livro III da Repblica, parece ser algo


assim: a partir dos poetas (e eu digo isso no sentido mais amplo do termo, os criadores de
mito, contadores de histrias, artistas, msicos, hoje podemos incluir produtores de cinema e
televiso), a partir dessas pessoas que recebemos nossas primeiras e mais vvidas impresses
dos heris e dos viles, dos deuses e da vida aps a morte. Essas histrias, as histrias que
ouvimos desde a mais tenra infncia, nos moldam em um sentido muito significativo para o
resto de nossas vidas. E os picos homricos eram para os gregos o que a Bblia era ou
para muitos de ns no Ocidente cristo. Os nomes de Aquiles, Pramo, Heitor, Odisseu e jax
teriam sido to familiares e importantes para os contemporneos de Plato como os nomes
de Abrao, Isaque, Josu e Jesus eram ou so para ns.

A crtica da poesia homrica na Repblica de Plato dupla, tanto teolgica quanto


poltica. Talvez voc possa at dizer, influenciado por Baruch de Espinosa, que este o ncleo
do tratado poltico-teolgico de Plato. A crtica teolgica que Homero simplesmente retrata
os deuses como falsos, como instveis e inconstantes. Ele os apresenta como seres indignos
da nossa adorao. Mais importante ainda, os heris homricos so vistos como pssimos
F
modelos para aqueles que os seguem, eles so representados como no tendo temperana I
L
no sexo, excessivamente afeioados ao dinheiro e assim, somando a estes vcios, Scrates O
S
acrescenta a crueldade e o desrespeito pelos cadveres dos adversrios. Os heris homricos O
F
so homens ignorantes e passionais, cheios de raiva cega e desejo de vingana. Como poderiam I
A
tais figuras possivelmente servir como bons modelos para os cidados de uma cidade justa?
P
O
L
A resposta de Scrates a predao da poesia e das artes nos Livros II e III. Ele
quer privar os poetas do seu poder de encantar, algo que Scrates admite no dcimo livro da T
I
Repblica, que ele prprio foi altamente suscetvel ao encantamento dos poetas. Precisamos C
A
56 TPICO 2 UNIDADE 1

privar os poetas, os compositores de msica, os letristas, os msicos, os criadores de mitos, os


contadores de histrias, todos eles, do poder de nos encantar. E no lugar do poder pedaggico
da poesia, Scrates prope instalar a filosofia. Como resultado, os poetas tero de ser expulsos
da cidade. Imagine s, Sfocles ter de ser expulso da cidade justa que Scrates quer criar.

Isso levanta uma questo que voc dever ponderar em seus momentos de leitura, se
a censura de Scrates da poesia e das artes uma indicao de seus impulsos totalitrios.
Esta a parte da Repblica mais provvel a chamar nossos prprios instintos baseados no
art. 5o da Constituio da Repblica Federativa do Brasil. "Quem voc, Scrates," estamos
inclinados a perguntar, "para nos dizer o que podemos ler e ouvir?". Alm disso, Scrates
no parece dizer que a Kallipolis no ter poesia e msica, o que ele aparenta estar dizendo
que estas sero simplesmente poesias e msicas socrticas. H outra questo que vocs,
acadmicos, sem dvida, vo querer discutir. Como que seria essa tal msica e poesia
purificada socraticamente? Como ela soaria, com o que se pareceria? Eu no sei se tenho
uma resposta precisa para isso, mas talvez a Repblica como um todo , por si s, um pedao
dessa poesia socrtica que ir substituir a homrica.

importante lembrar que a questo da educao, da reforma, da censura e do controle


da poesia introduzida no contexto de domar as paixes belicosas de Glucon e outros como
ele. A questo da censura e do contar mentiras introduzida, em outras palavras, como uma
questo de necessidade militar, para controlar os guardies ou os auxiliares da cidade, enfim,
toda a sua classe guerreira. Entretanto, nada dito sobre a educao dos agricultores, artesos,
comerciantes, trabalhadores, a classe econmica. Talvez, para falar sem rodeios, Scrates
simplesmente no se importa muito com eles. Eles, neste caso, poderiam ouvir o que quisessem.
Tambm, at este ponto, nada foi realmente dito sobre a educao do filsofo. Seu interesse
aqui, nesta parte do dilogo, a criao de um grupo treinado e altamente disciplinado de
jovens guerreiros que iro proteger a cidade tal como ces de guarda protegem a sua prpria
casa. Ou seja, recordando Polemarco, aqueles que so bons para os amigos, mas latem e
rosnam para estranhos. Tais indivduos vo subordinar seus prprios desejos e prazeres ao
grupo, e viver uma vida por um cdigo de honra estrito.

Temos de perguntar: as propostas de Scrates so irrealistas? Elas so indesejveis? Ou


F
so elas desejveis? Elas no so indesejveis se voc acredita, como ele o faz, que mesmo
I
L
a melhor cidade deve fornecer provises para a guerra. Portanto, a vida de um guerreiro, a
O
S
vida de um soldado, vai exigir uma privao severa em termos de recompensas e benefcios
O
F
materiais, bem como a disposio para sacrificar-se pelos outros. Parece longe de ser irrealista,
I Scrates se engaja no que poderamos chamar de uma espcie de realismo socrtico. Muito
A
mais irrealista seria a crena daqueles que defendem (e eu estou pensando aqui em nomes
P
O como Immanuel Kant e outros do sculo XVIII e XIX) que um dia poderemos abolir a guerra
L
completamente, e, portanto, abolir as paixes que do origem aos conflitos e s guerras. At
T
I agora Plato acredita que este um aspecto passional ou impetuoso da natureza que permanece
C
A forte e ser necessrio para educar os guerreiros da sociedade que defendem a mesma.
UNIDADE 1 TPICO 2 57

4 PLATO E A REPBLICA: LIVRO V

Agora temos a misso praticamente impossvel de terminar as partes da Repblica


que selecionamos para abordar neste Caderno de Estudos. Vamos ver brevemente alguns
dos principais temas a respeito da criao da cidade bela e justa, a criao de Kallipolis e,
em seguida, finalizar tentando responder a seguinte questo: Quais so os pontos de vista de
Plato sobre o Brasil moderno ou sobre qualquer outro Estado Democrtico moderno? O que
Plato diria para ns hoje?

4.1 O CONTROLE DAS PAIXES

Iniciaremos com um dos grandes temas da Repblica, que indicado no Livro II pela fala
de Adimanto sobre o autocontrole. introduzido com mais profundidade pelas reivindicaes
de Scrates de controlar e censurar a poesia e as artes da cidade. Este o grande tema que
podemos chamar de "o controle das paixes". Um tema central para cada grande moralista de
Espinosa a Kant a Freud. Como que controlamos as paixes? Certamente um grande tema
da teoria da justia de Plato na Repblica. Todo grande filsofo moral tem uma estratgia para
nos ajudar a submeter nossas paixes a algum tipo de controle, a algum tipo de poder moral
superveniente. Lembre-se de que este o tema levantado no incio do Livro II por Adimanto,
que apresenta uma ideia de autocontrole, ou o que ele chama de autotutela e autodomnio,
como a sua meta. Como podemos nos proteger da paixo pela injustia? Uma das coisas que
Scrates enfatiza que a mais poderosa daquelas paixes a paixo socrtica que ele chama
de thumos. Este termo muito rico semanticamente, comumente referido nas tradues para o
portugus como irascibilidade ou impetuosidade, e s vezes como animosidade, comportamento
orientado pela paixo ou desejo e excitabilidade. Thumos , para Plato, a paixo poltica par
excellence. um tipo de amor ardente fama, amor distino que impulsiona certos tipos de
homens e mulheres a buscar as suas ambies na vida pblica, no espao pblico. A noo
de irascibilidade/impetuosidade ou essa qualidade thumotica est conectada claramente
F
nossa capacidade de herosmo e de autossacrifcio. I
L
O
S
Entretanto, tambm est conectada aos nossos desejos de dominao e aos desejos O
F
de exercer tirania sobre outros. O thumos possui uma espcie de componente duplo. Ele pode I
A
nos levar a uma sensao de indignao justa e raiva na presena da injustia, mas tambm
P
pode nos levar de uma forma bastante contraditria ao desejo de dominar e tiranizar outros. O
L
Esta a qualidade que Scrates considera como sendo possuda por cada grande lder poltico
T
e estadista, mas tambm claramente uma qualidade possuda por todos os tiranos. E a I
pergunta feita pela Repblica, a questo em torno da qual o livro como um todo gravita, se C
A
58 TPICO 2 UNIDADE 1

essa qualidade thumotica pode ser controlada. Ela pode ser redirecionada, pode ser canalizada
ao servio do bem pblico? Scrates introduz o problema do thumos com uma histria, uma
histria particularmente vvida que eu espero que todos recordem de suas leituras do Livro
IV da Repblica, onde ele conta a histria de Lencio na muralha. Lencio, filho de Aglion,
ao regressar do Pireu pelo lado de fora da muralha norte, percebendo que havia cadveres
que jaziam junto do carrasco, teve um grande desejo de v-los, ao mesmo tempo em que isso
lhe era insuportvel e se desviava; continua Scrates: durante algum tempo lutou consigo
mesmo e velou o rosto; por fim, vencido pelo desejo, abriu muito os olhos e correu em direo
aos cadveres, exclamando: Aqui tendes, gnios do mal, saciai-vos deste belo espetculo!
(PLATO, 2001, p. 197-198, 439e).

Essa histria que Scrates conta aqui no uma sobre a razo controlando as paixes,
mas sim de um intenso conflito interno que Loncio sentia. Vemos suas emoes conflitantes
tanto para ver, quanto para no ver a sensao de que ele deseja observar, todavia ele est
em guerra consigo mesmo, sabendo que ficar estupefato ao olhar aquela cena. possvel
perceber algo constrangedor no ato, pois ele sentiu vergonha. Um exemplo disto seria a emoo
que todos ns sentimos quando estamos dirigindo pela estrada e vemos um acidente de carro
ou passamos pelos carros acidentados e todo mundo reduz a velocidade, pois todos querem
ver. O que ns estamos esperando ver? Bem, queremos ver sangue, queremos ver se h um
corpo e quanto dano foi causado. possvel que todos ns j estivemos nesta situao, onde
sabemos que uma vergonha ficar olhando para isso, deveramos apenas dirigir sem querer
olhar. Poderamos dizer tal como Scrates, "cuidarei da minha vida", no entanto, ao mesmo
tempo nos sentimos compelidos a olhar. Pense sobre isso.

De qualquer maneira, essa histria que Scrates relata est ligada ao fato de que
Lencio um tipo especfico de homem. Ele se considera orgulhoso, independente, algum
que quer estar no controle de suas emoes, mas no est. Ele uma alma em guerra consigo
mesmo, portanto, potencialmente em guerra com os outros. O que a Repblica tenta fazer
nos oferecer estratgias, talvez possam at chamar de uma terapia para lidar com o thumos,
para submet-lo ao controle da razo e nos ajudar a alcanar certo nvel de equilbrio, de
autocontrole e moderao. Estas so as qualidades que em conjunto Scrates as chama de
justia, que s podem ser alcanadas quando a razo est no controle dos apetites e dos
F
desejos. Diante disso, uma pergunta que o livro levanta se esse ideal de justia pode ser
I
L
usado como um modelo para a poltica. Ser que pode servir como um modelo para a justia
O
S
na cidade? Scrates, como dito, estabelece um liame entre a justia na cidade e a justia na
O
F
alma. Se soubermos quais so as terapias ou estratgias usadas para resolver a injustia ou
I o desequilbrio na alma, poderamos transferir ou traduzir aquelas, de alguma forma, para a
A
justia pblica, a justia poltica, a justia na polis?
P
O
L

T
I
C
A
UNIDADE 1 TPICO 2 59

4.2 UMA PROPOSTA PARA A CONSTRUO DE KALLIPOLIS

Scrates prope no Livro V como proceder com a construo da Kallipolis, ele faz
isso atravs do que podemos chamar de trs vagas ou ondas (trykima) ou trs teses. H
trs ondas de reforma que iro contribuir para a criao da cidade. A primeira dessas ondas
(PLATO, 2001, 449a-457c) a restrio propriedade privada, at mesmo a abolio da
propriedade privada. A segunda onda (PLATO, 2001, 457d-471c), a abolio da famlia, e
a terceira onda (PLATO, 2001, 471c-543c) o estabelecimento dos reis filsofos. Cada uma
dessas ondas considerada, de algum modo, necessria para a construo adequada de uma
cidade justa. No vamos discorrer sobre todas elas, mas importante que vocs as leiam com
diligncia. Aferremo-nos um pouco sobre as suas propostas para a coeducao de homens e
mulheres, pois isso tem particular relevncia para ns. Esta uma grande parte de seu plano,
especialmente relacionado com a abolio da famlia, que homens e mulheres sejam educados
da mesma forma.

O ncleo da proposta de Scrates para a igualdade da educao apresentada em um


contexto que ele acredita que ser risvel, ao menos para Glucon e Adimanto. Ele afirma, a
partir da seo 457d, que no h nenhuma tarefa que no pode ser realizada igualmente bem
por homens e assim como por mulheres. Ser que Scrates um feminista? As diferenas de
gnero, ele prope, no so mais relevantes quando se trata de posies de poder poltico
do que a distino entre ser careca ou cabeludo. Scrates no est dizendo que homens
e mulheres so iguais em todos os aspectos, mas iguais em relao concorrncia para
qualquer tipo de tarefa. No haver tetos de vidro na Kallipolis. Ele pode ser considerado um
dos primeiros e grandes defensores da emancipao das mulheres. Mas esta proposta vem
com determinados custos, ele nos diz. A proposta de um jogo em campo nivelado demanda,
claro, uma educao igual.

Neste ponto, Scrates defende a ideia de que homens e mulheres sendo submetidos
ao mesmo regime significar, entre outras coisas, que eles iro competir uns com os outros em
ginsios coeducacionais. Eles iro competir uns com os outros nus, porque essa a maneira
como os gregos se exercitam. Alm disso, seus casamentos e suas procriaes sero para o F
I
bem da cidade. No haver nenhum tipo de amor romntico entre os membros da classe dos L
guardies. As relaes sexuais sero destinadas exclusivamente para o bem da reproduo O
S
e os fetos indesejados sero abortados. A nica exceo a esta proibio para membros da O
F
classe guardi que esto alm da idade de reproduo, eles podem ter relaes sexuais, se I
A
eles ainda forem capazes, com qualquer um que eles gostarem. Seria como uma espcie de
P
sexo recreativo, como uma recompensa por uma vida de autocontrole. Parir pode ser inevitvel O
L
para as mulheres, mas a criao da criana ser de responsabilidade da comunidade, quem
T
sabe uma espcie de creches comuns para a classe dos guardies. Podemos ver uma variao I
C
A
60 TPICO 2 UNIDADE 1

desta proposta de Plato no ditado africano, do povo Igbo e Yoruba (Nigria), de que preciso
uma aldeia inteira para educar uma criana, ditado que tambm inspirou o livro tarefa de
uma aldeia, de Hilary Clinton (1997). Nenhuma criana deve conhecer seus pais biolgicos e
nenhum pai deve conhecer seu filho. O objetivo deste esquema eliminar o sentido de minha
ou meu e promover uma espcie de senso comum de esprit de corps entre os membros da
classe guardi, "partilharo acima de tudo, de penas e prazeres", como Scrates afirma na
seo 464a (PLATO, 2001, p. 234). O que estamos criando aqui, na proposta socrtica,
uma comunidade de prazer e dor, algo como vou sentir suas dores e claro que voc sentir
a minha.

As objees a Scrates foram levantadas to cedo quanto prxima gerao, com o


prprio Aristteles em seu livro A Poltica (2009). Como podemos realmente cuidar de coisas
que so comuns? Aprendemos a cuidar de coisas que esto mais prximas a ns, que so de
alguma forma nossas. Ns s podemos mostrar amor e preocupao coerentes para as coisas
que so nossas, no as coisas que so comuns. A propriedade comum, Aristteles argumenta,
vai significar uma espcie de negligncia comum. As crianas no sero educadas melhor
colocando-as sob o cuidado comum de tutores ou em creches, mas elas sero igualmente
negligenciadas. Voc pode pensar sobre isso, sobre se isso verdade ou no. Todavia, no
mesmo contexto do tratamento de Scrates dos homens e das mulheres, h outra coisa que
muitas vezes passa despercebida. So os esforos de Scrates para reescrever as leis da
guerra, porque, naturalmente, os guardies esto sendo treinados e educados para serem
guardas, para serem guerreiros, para serem membros de uma classe militar.

Em primeiro lugar, ele nos diz que s crianas deve ser ensinada a arte da guerra.
Este deve ser o incio de sua formao, argumenta Scrates, fazer as crianas espectadores
da guerra. As crianas sero levadas, ele parece sugerir, s batalhas e aos locais onde a luta
est acontecendo, para serem espectadores, para que se tornem acostumadas e habituadas
a ver a guerra e tudo o que nela acontece. Alm disso, no s a expulso da categoria dos
guardies a punio pela covardia, mas Scrates sugere que deveria haver recompensas
erticas para aqueles que se destacam na bravura. Considere a seguinte proposta notvel
na seo 468c (PLATO, 2001, p. 242), "e at acrescento lei [da guerra], que, enquanto
estiverem [os guardies] em campanha, no ser lcito a ningum recusar-se a ser beijado
F
por quem quiser, continua Scrates, a fim de que, se acaso estiver apaixonado por algum,
I
L
homem ou mulher, tenha mais ardor em levar a palma [recompensa] no combate. Isso quer
O
S
dizer que, como recompensa por sua bravura, coragem exibida, ao heri deve ser permitido
O
F
beijar qualquer um que ele gostar, enquanto eles estiveram em patrulha, macho ou fmea. Um
I leitor de Plato, que seja particularmente puritano, poderia comentar sobre esta passagem e
A
dizer, "essa a nica passagem em Plato que desejaria apagar", pois, possivelmente a sua
P
O sensibilidade possa ser ofendida por essa noo. Por outro lado, pensando mais objetivamente,
L
podemos levantar a questo se isso seria mesmo um poderoso incentivo para o recrutamento
T
I militar hoje. O que voc acha? Bem, pense nisso.
C
A
UNIDADE 1 TPICO 2 61

4.3 A JUSTIA

Finalmente, passamos do ensino direcionado aos guardies justia. O que a justia?


o que temos questionado, perguntando a ns mesmos ao longo da leitura desta obra, a
Repblica, sendo continuamente provocados por Scrates. A ideia platnica de justia concerne
harmonia, afirma ele, tanto a harmonia na cidade quanto a harmonia na alma. Aprendemos
que estas duas so realmente homlogas de alguma forma. A justia definida como aquilo
que une a cidade. Ele expressa isso de outra maneira, dizendo que ela composta na medida
em que todos estiverem executando as funes para as quais so mais aptos. Scrates diz:
Mesmo os outros cidados devem ser encaminhados para a atividade para que nasceram, e
s para ela, a fim de que cada um, cuidando do que lhe diz respeito, no seja mltiplo, mas
uno, e deste modo, certamente, a cidade inteira crescer na unidade, e no na multiplicidade
(PLATO, 2001, p. 167, 423d).

A Justia na cidade parece significar aderir ao princpio da diviso do trabalho. Um


homem, um trabalho. Todo mundo fazendo ou realizando a tarefa que naturalmente se encaixa
ou lhe convm. Pode-se, claro, como voc j deve ter imaginado, levantar vrias objees a
este ponto de vista e, novamente, Aristteles parece assumir a liderana. A nfase excessiva de
Plato sobre a unidade parece destruir a diversidade natural dos seres humanos que compem
uma cidade. Existe uma e somente uma coisa que cada pessoa faz de melhor? E se assim for,
quem poderia decidir isso? Ser que esse plano da justia no excessivamente coercitivo em
forar as pessoas a assumirem papis sociais predefinidos? No deveriam os indivduos ser
livres para escolher por si mesmos os seus prprios planos de vida onde quer que possa lev-
los? Entretanto, Plato acredita ter encontrado na frmula de um homem, uma tarefa certo
fundamento para a justia poltica. Pois, se a classe dos negociantes, auxiliares e guardies
se ocupar das suas prprias tarefas, executando cada um deles o que lhe compete na cidade
[...] no tornaria a cidade justa? (PLATO, 2001, p. 188, 434c). Scrates acredita que somente
assim certo tipo de paz e harmonia iria prevalecer. E como a cidade simplesmente a alma
ampliada, as trs classes da cidade apenas expressam as trs partes da alma.

A alma justa, diz Scrates, quando os elementos apetitivo (concupiscncia), irascvel F


I
(impetuosidade) e racional cooperam com a razo. A razo deve governar o esprito (as paixes) L
O
e o apetite, assim como na polis o filsofo-rei governa os guerreiros e os trabalhadores. O S
O
resultado disso uma espcie de equilbrio das partes do todo. A justia uma espcie de F
harmonia em que as trs partes da cidade e as trs partes da alma so expresses diretas I
A
uma da outra. Mas esta frmula nos obriga a retornar pergunta socrtica original sobre a
P
harmonia da alma e da cidade. A estrutura de uma cidade , de fato, idntica estrutura de O
L
uma alma? So elas realmente idnticas? Bem, talvez sim, talvez no. Por exemplo, cada
T
indivduo composto por trs partes, a apetitiva, a irascvel e a racional. No entanto, cada um I
C
A
62 TPICO 2 UNIDADE 1

de ns ser confinado a apenas uma tarefa na hierarquia social. Partimos do princpio de que
Scrates quer dizer com isso que cada um de ns incorpora todas as trs caractersticas da
alma, todavia apenas uma dessas ser o trao dominante em cada um de ns. Alguns de ns
seremos dominantemente apetitivos, outros predominantemente irascveis e assim por diante.
Ainda assim, podemos alegar que mesmo que eu seja um membro da classe trabalhadora, eu
sou mais do que simplesmente um aglomerado de desejos e apetites, assim como se eu fosse
um membro da classe guerreira seria claramente mais do que mero thumos ou impetuosidade.
Assim, confinar o indivduo a uma e somente uma esfera da vida parece fazer uma injustia
para com a complexidade psicolgica interna que faz cada um de ns sermos o que somos.

Vamos examinar o problema a partir de um ponto de vista ligeiramente diferente.


Scrates nos diz repetidamente que a justia na cidade consiste de cada membro, cada
cidado cumprindo sua tarefa na diviso social do trabalho, na hierarquia social. Mas isto
parece ser algo bem diferente do tipo de justia na alma, que ele fala que consiste de um
tipo de autonomia racional ou autocontrole onde a razo controla as paixes e os apetites.
Na verdade, a grande maioria dos cidados, at mesmo aqueles da cidade platonicamente
justa no tero necessariamente almas platonicamente justas. A harmonia e autodisciplina da
cidade no sero devidas, ao que parece, a cada membro da cidade, mas em vez contar com
a classe guardi da qual emerge a classe especial de filsofos-reis que governar. Todavia,
lembrem-se da vossa leitura, estes governaro por meio de mentiras seletivas, mitos e outros
tipos de enganos. Ento, como pode de fato haver uma cidade justa, uma cidade onde todo
mundo est realizando sua prpria tarefa segundo a diviso do trabalho, mas onde poucos
desses membros tero almas platonicamente justas, almas dominadas por uma espcie de
autocontrole ou autotutela? Isto, certamente, no seria o caso dos membros da classe dos
artesos.

Essa objeo feita por Adimanto no incio do Livro IV. "Que dirs ento em tua
defesa, Scrates, diz Adimanto, se algum afirmar que no tornars estes homens nada
felizes (PLATO, 2001, p. 161, 419a). Adimanto receia que Scrates esteja sendo injusto
com os auxiliares e os guardies, dando-lhes todas as responsabilidades, mas nenhuma das
recompensas, nenhum dos prazeres que parecem ser a recompensa das responsabilidades.
Como pode um cidado da Kallipolis viver uma vida justa ou feliz se ele ou ela est privado
F
da maioria dos bens ou prazeres que buscamos? Scrates oferece uma resposta bastante
I
L
inconvincente. Ao fundar a cidade, diz ele, ns no estamos olhando para a felicidade
O
S
excepcional de um nico indivduo ou um grupo, mas sim para a cidade como um todo. Adimanto
O
F
parece aceitar essa resposta, afirmando que tinha esquecido que estavam considerando a
I felicidade e a justia do todo. Mas a sua pergunta ainda uma que perdura e que Plato incluiu
A
no dilogo por um propsito.
P
O
L
Como voc pode ter uma cidade platonicamente justa se a maioria das pessoas nela,
T
I certamente a maioria das pessoas da classe auxiliar, privada dos prazeres e dos bens que
C
A desejamos? uma questo que perdura e podemos perguntar se Scrates responde de fato
UNIDADE 1 TPICO 2 63

com sucesso a essa pergunta. Ele silencia Adimanto em semelhante medida como silenciou
Trasmaco anteriormente. No entanto, isso nem sempre quer dizer que suas objees foram
de fato respondidas.

4.4 O FILSOFO-REI

Isso nos conduz terceira e ltima onda de paradoxos da Kallipolis, que a famosa
proposta para o filsofo-rei, que vocs devem ter lido nas sees 471c-543c da Repblica.
O que Plato sem o filsofo-rei? O que a Repblica sem o filsofo-rei? A menos que os
filsofos governem como reis ou aqueles agora chamados reis genuinamente filosofarem, no
haver descanso dos males para as cidades, argumenta Scrates. Ele apresenta esta proposta,
um tanto estranha, e diz que espera ser recebida com risos. Isso levou alguns leitores a sugerir
que a proposta de filsofos-reis irnica. Que se pretende como uma espcie de piada para,
em muitos aspectos, desacreditar a ideia da cidade justa ou, pelo menos, para indicar sua
extrema implausibilidade.

A pergunta : por que Scrates considera a realeza filosfica como necessria para a
Kallipolis, para a cidade justa? De modo algum podemos considerar que a ideia do filsofo-rei
uma impossibilidade ou destina-se como uma espcie de absurdo, pois o prprio Plato,
lembrem-se, fez uma srie de viagens Siclia para servir como assessor de um rei l, Dionsio,
e todas estas misses falharam e deixaram-no profundamente desanimado. A ambio de
unir a filosofia e a poltica tem sido um sonho recorrente da filosofia poltica desde Plato.
Scrates diz que ser recebida com risos, mas muitas outras pessoas tm tido este sonho ou
esta aspirao e a levaram muito a srio. Considere um pensador, citaremos uma passagem
curta agora, pois voltaremos a ele na segunda unidade deste Caderno de Estudos, do Leviat
de Thomas Hobbes, captulo 31, onde Hobbes nos d uma declarao muito pessoal sobre
a sua inteno ao escrever este livro. (2003, p. 310-311): "estou no ponto de acreditar que o
meu trabalho seja intil, como a Repblica de Plato". Ele parece estar um pouco desesperado
sobre se este livro ter de fato qualquer efeito, pois tambm ele da opinio que impossvel
desaparecerem as desordens do Estado e as mudanas de governo por meio de guerras civis,
F
enquanto os soberanos no forem filsofos. Mas, depois de admitir seu desespero sobre a I
possibilidade de realizar suas ideias e prticas, Hobbes prossegue da seguinte forma: L
O
S
O
Retomo alguma esperana de que esta minha obra venha um dia cair nas F
mos de um soberano, que a examinar por si prprio (pois curta e penso I
que clara), sem a ajuda de algum intrprete interessado ou invejoso, e que A
pelo exerccio da plena soberania, protegendo o ensino pblico desta obra, P
converter esta verdade especulativa utilidade prtica. O
L

T
Portanto, voc tem Hobbes falando sobre seu prprio livro, pelo menos com uma I
C
esperana de que ele vai cair nas mos de um soberano e que um dia, sem intrpretes invejosos A
64 TPICO 2 UNIDADE 1

ou interessados em si mesmos, poder tornar-se uma fonte prtica de orientao para a arte
de governar. Aqui temos Hobbes tomando a sugesto de Plato muito a srio, e vemos isso
novamente na histria da filosofia poltica em pensadores como Rousseau, Marx, Nietzsche e
Maquiavel, todos os quais procuraram conquistar os ouvidos dos lderes polticos e converter
as suas ideias em algum tipo de prtica.

A maioria das objees forma particular de Plato sobre a realeza filosfica realmente
est centrada na praticidade de sua ideia. Alm disso, h o problema com a prpria fora de
convico da prpria ideia. Considere o seguinte: pode a filosofia e a poltica de fato estarem
unidas? Parece que as necessidades da filosofia so bastante diferentes das exigncias ou
requisitos do governo poltico. Voc pode imaginar Scrates voluntariamente desistindo de
uma de suas conversas para o negcio tedioso da legislao e da administrao pblica?
Podes imaginar isso? O filsofo descrito por Plato como algum com conhecimento das
formas eternas, que se encontram para trs ou para alm das muitas particularidades. Mas
como que esse tipo de conhecimento pode nos ajudar a lidar com o constante fluxo e refluxo
da vida poltica? Parece no ser suficiente que o filsofo possua conhecimento das formas,
esse conhecimento tem de ser suplementado pela experincia, pelo juzo e por uma espcie
de racionalidade prtica. Ser que Plato simplesmente ignorava este fato? No podemos e
no deveramos acreditar nisso. Ento a questo : que tipo de unidade ele estava esperando
entre a filosofia e a poltica?

Os filsofos no so puramente mquinas pensantes, eles tambm so seres humanos


compostos de razo, irascibilidade/emoes e apetite. Ser que os filsofos, dada a possibilidade
de poder absoluto, no sero tentados a abusar de sua posio? Talvez sim, talvez no, quem
sabe. Estas so as perguntas que esto entre as questes que Scrates ou Plato, o autor
do livro, coloca deliberadamente para que consideremos. Ento, o que a doutrina do filsofo-
rei pretendia provar? A inteno do enorme esforo para construir a cidade em discurso era
a de compreender a justia na alma? Ser que uma possibilidade filosfica? Ser que ele
a mantm como uma possibilidade real ou deve ser considerada um fracasso? Se o dilogo
de fato termina em fracasso, o que podemos aprender com isso? Essas so perguntas que
deixamos para que vocs considerem.

F
I
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O 4.5 PLATO E AS DEMOCRACIAS MODERNAS
F
I
A
Agora, o que queremos fazer falar sobre a democracia de Plato e a nossa democracia.
P
O O que Plato nos ensina sobre o nosso prprio regime poltico? Poderia Plato ter imaginado tal
L
regime? Pensamos que de muitas maneiras ele pode e ele fez. Em certo sentido, a Repblica
T
I
C
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UNIDADE 1 TPICO 2 65

parece ser o livro mais antidemocrtico jamais escrito. Sua defesa da realeza filosfica em
si um repdio direto da democracia ateniense. Sua concepo de justia, cada um cuidando
daquilo que lhe prprio, uma rejeio da crena democrtica de que os cidados possuem
conhecimento suficiente para participar de cargos pblicos. Com certeza, a democracia
ateniense no uma democracia como a brasileira. Plato pensava na democracia como
uma espcie de governo da maioria que estava associada liberdade irrestrita de fazer tudo o
que qualquer um deseja. Isto parece em muitos aspectos estar bastante longe da democracia
brasileira baseada em um governo constitucional, com proteo dos direitos individuais, e
assim por diante. As diferenas entre Atenas e o Brasil parecem estar muito longe. No entanto,
em muitos aspectos, Scrates diagnostica poderosamente uma condio importante da vida
democrtica moderna, com a qual todos esto familiarizados.

Considere esta passagem no Livro VIII da Repblica, que vos encorajo a ler mesmo
no sendo uma das partes de leitura especfica que utilizamos neste Caderno de Estudos.
Scrates escreve no Livro VIII, na seo 561c-d, falando que a alma democrtica, o homem
democrtico, passar cada dia a satisfazer o desejo que calhar, umas vezes embriagando-
se e ouvindo tocar flauta, outras vezes bebendo gua e emagrecendo, outras ainda fazendo
ginstica. Hoje ns temos diferentes tipos de msica para substituir a flauta, mas voc
compreende o ponto. Ele continua:

Ora entregando-se ociosidade e sem querer saber nada, ora parecendo


dedicar-se filosofia. Muitas vezes entra na poltica, salta para a tribuna e diz
e faz o que adregar. Um dia inveja os militares, e vai para esse lado, ou os
negociantes, e volta para a. Na vida dele, no h nem ordem nem necessida-
de; considera que uma vida destas doce, livre e bem-aventurada, e segue-a
para sempre. (PLATO, 2001, p. 391)

Essa imagem da vida no familiar? Fazer qualquer coisa que voc gosta, fazer o que
se quiser e chamar isso de doce, livre e abenoado em todos os seus aspectos, parece ser
o oposto do entendimento platnico da justia com cada um fazendo uma funo especial ou
cumprindo com um ofcio especial.

Essa descrio deve ser imediatamente reconhecvel, pelo menos em alguns aspectos,
como o Estado Democrtico moderno. Existe, como Plato e Scrates entendem claramente,
uma tendncia muito real dentro da democracia de identificar o bom ser humano, o bom homem
F
com algum que tenha o esprito esportivo, o cara regular, o companheiro cooperativo, com I
L
algum que vai junto com a correnteza e se d bem com os outros. Ao educar os cidados O
S
para cooperar uns com os outros de uma forma amigvel, a democracia parece, assim Plato O
F
sugere, correr o perigo de desvalorizar as pessoas que esto preparadas para ficarem sozinhas, I
A
os individualistas austeros que escolhem naufragar com o navio em caso de necessidade.
P
precisamente este tipo de conformismo rastejante, esse tipo de tolerncia malevel, esse tipo O
L
de niilismo suave que as democracias tendem a promover. E isso no somente Plato, mas
T
pensadores modernos como Emerson, Tocqueville, John Suart Mill advertiram. I
C
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66 TPICO 2 UNIDADE 1

O que mais incomoda Scrates sobre a nossa democracia o certo tipo de instabilidade
na mesma, a sua tendncia de ser tensionada entre os extremos da anarquia, entre a ilegalidade
e a tirania. Este ponto perceptvel na seo 563c da Repblica, na qual Adimanto pergunta,
ento vamos, como squilo, dizer o que nos acudiu agora mesmo aos lbios? (PLATO,
2001, p. 395). A ideia de ter a liberdade de dizer qualquer coisa que vier aos nossos lbios soa
para Plato como uma espcie de blasfmia. Uma viso de que nada vergonhoso, de que
tudo deve ser permitido e dizer o que vier aos nossos lbios. Ponderando mais sobre isso,
possvel dizer que, mesmo descartando a nocividade de uma blasfmia, h uma espcie de
licena que vem da negao de quaisquer restries sobre nossos desejos. Isto seria uma
espcie de crena relativista de que todos os desejos so iguais e de que tudo, portanto, deve
ser permitido. As vises de Plato sobre a democracia no foram todas negativas, claro. Ele
no era apenas um crtico da democracia. Tratava-se, afinal de contas, de uma democracia
aquela que produziu Scrates e lhe permitiu filosofar livremente at o seu septuagsimo ano.
Ser que isso teria sido permitido em qualquer outra cidade do mundo antigo? Ele certamente
no seria permitido filosofar em muitas cidades e pases hoje.

Vamos recordar agora da carta que Plato escreveu perto do fim de sua vida, na Carta
VII (PLATO, 2011), quando ele compara a democracia a uma idade de ouro, pelo menos em
comparao com o que se passou depois. Plato ali parece concordar com a famosa frase
citada por Winston Churchill em um discurso proferido na House of Commons em 1947, em
que ele diz: Ningum est fingindo que a democracia seja perfeita ou onisciente. De fato, tem
sido dito que a democracia a pior forma de governo, exceto todas as demais formas que
foram experimentadas de tempos em tempos (2013, p. 574, traduo nossa). Ento, qual
a funo da Kallipolis, esta cidade perfeita, justa e bela? Qual o seu propsito? O filsofo-rei
pode ser um objeto de esperana ou desejo, mas Plato percebe que essa possibilidade no
realmente algo de se esperar. A cidade filosfica introduzida como uma metfora para nos
ajudar a entender a educao da alma. A reforma poltica pode no estar ao alcance do nosso
poder, mas o exerccio de autocontrole sempre est. A primeira responsabilidade do indivduo
que deseja se envolver em reforma poltica reformar-se. Toda reforma deve comear em sua
prpria casa. Vemos isso muito nitidamente quando olhamos hoje para tantos polticos e outras
figuras pblicas que fazem discursos querendo dar sermes e, muitas vezes, nos exortando
sobre como devemos agir e qual o modo de vida que devemos viver. Todavia, comum logo
F
descobrirmos algo muito vergonhoso sobre eles. Possivelmente vocs sabem de alguns casos
I
L
assim. O veredito de Plato parece ser: "voc precisa reformar a si mesmo primeiro, para que
O
S
possa ento pensar em reformar os outros." Este um ponto que muitas vezes perdido sobre
O
F
a Repblica, o fato de que esta obra antes de tudo uma obra sobre a reforma da alma.
I
A
Isso no quer dizer, em absoluto, que ela ensina a retirada das responsabilidades
P
O polticas. A filosofia, e certamente a filosofia socrtica, requer amigos, camaradas, conversaes.
L
No algo que pode simplesmente ser buscado de forma isolada. Scrates entende que
T
I aqueles que querem reformar a outros devem reformar-se, todavia muitos que tentam imit-lo
C
A tm sido menos cuidadosos. fcil confundir, como muitas pessoas tm feito, a Repblica
UNIDADE 1 TPICO 2 67

com uma receita para a tirania. O sculo XX, at o incio do sculo vigente, est coberto com
os cadveres daqueles que se estabeleceram como supostos filsofos-reis, como Stlin, Mao
e Hitler, para citar apenas alguns dos mais bvios. Mas esses homens no foram e no so
filsofos. Suas profisses justia foram vazias, foram profisses ou pretenses que apenas
expressaram a sua prpria vaidade e a sua prpria ambio.

Para Plato, a filosofia era, em primeira instncia, uma terapia para as nossas paixes
de forma a estabelecer limites para os nossos desejos. Este precisamente o oposto do tirano,
o qual Plato descreve como uma pessoa de desejos ilimitados e que no possui o tipo mais
rudimentar de governana, ou seja, de autocontrole. A diferena entre o filsofo e o tirano ilustra
duas concepes muito diferentes de filosofia. Para alguns, a filosofia representa uma forma
de libertao da confuso, das paixes desordenadas e dos preconceitos, da incoerncia.
Mais uma vez, uma terapia da alma que traz paz e contentamento e uma espcie de justia.
Para outros, a filosofia a fonte do desejo de dominar. a base da tirania na grande era das
ideologias atravs da qual ainda estamos passando.

A questo que ambas as tendncias esto obrando dentro da filosofia, e como


podemos incentivar um lado, mas no o outro? Tal como o grande filsofo Karl Marx afirmou na
III Tese sobre Feuerbach, que muitos se esquecem de que so precisamente os homens que
transformam as circunstncias e que o prprio educador precisa ser educado (1998, p. 100).
uma das coisas mais sensatas que ele j disse. Portanto, a pergunta central aqui Quem
vai educar os educadores?, a quem podemos recorrer para pedir ajuda? Obviamente no h
soluo mgica para esta pergunta, mas uma das melhores respostas que conhecemos a
de Scrates. Ele mostrou s pessoas como viver, e to importante quanto, mostrou-lhes como
morrer. Ele no viveu e morreu como a maioria das pessoas, mas o fez melhor, at mesmo
seus crticos mais veementes vo admitir isso.

S!
DICA

Leia uma magistral recriao de um dos textos mais importantes


de todos os tempos, o livro: BADIOU, Alain. A Repblica de Plato
recontada por Alain Badiou. Trad. Andr Telles. Rio de Janeiro:
Zahar, 2014. F
I
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S
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S! A
DICA
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O
Assista ao documentrio: A Repblica. Produtor: Jan Albert. L
Discovery Networks-Civilization. Disponvel em: <https://www.
T
youtube.com/watch?v=fzh63-NY_Ss>. Acesso em: 1 fev. 2015. I
C
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68 TPICO 2 UNIDADE 1

RESUMO DO TPICO 2

Neste tpico voc viu que:

A Repblica um dilogo e um convite para o leitor entrar na conversao. uma utopia,


pois descreve como podemos conseguir a cidade harmoniosa entre indivduo e sociedade.
A Repblica coloca a educao de seus cidados como o seu maior dever. A proposta
central como construir e como seria a Kallipolis, a cidade justa e bela.
Cada personagem do dilogo na obra tem uma hierarquia e carter distintivo anlogo s suas
argumentaes e s questes centrais propostas por Plato em seu pensamento poltico.
Anlogos aos trs componentes da alma e s trs classes da cidade.
Cfalo representa a tradio e o convencionalismo e a parte apetitiva da alma. Polemarco
representa o cavalheiro, o guerreiro, a parte impetuosa da alma. Trismaco representa a
razo como rival de Scrates, a parte racional da alma. Todos estes trs aludem os outros
trs que iro dialogar na sequncia da obra.
Glucon representa o impetuoso, cheio de thumos, e quer a justia sendo louvada por si
mesma, no por suas consequncias.
Adimanto representa mais a parte apetitiva, ele quer alm de ver a justia louvada por si
mesma, viver livremente e de forma independente.
Scrates o contraponto a Glucon e Adimanto, representando a razo e propondo o
estabelecimento da cidade justa.
A impetuosidade central no estabelecimento da cidade, entretanto assim tambm o
controle dessas paixes, por isso a centralidade de um projeto educacional, voltado para o
autocontrole, o autogoverno, que seria o outro lado da moeda de controle e do governo da
cidade.
Entre as mudanas propostas por Plato, a educao de homens e mulheres igualmente
central. Assim como a abolio da famlia, a propriedade comum, e a reforma de todo o
currculo educacional, substituindo o homrico pelo socrtico.
A justia na cidade significa aderir ao princpio da diviso de trabalho. Cada homem e mulher
no ofcio que lhe convm, que lhe convm naturalmente. A cidade ficaria ento dividida em
F trs classes, a trabalhadora (apetitiva), a guerreira/guardies (impetuosidade) e os filsofos-
I
L reis (razo).
O
S A menos que os filsofos-reis governem ou aqueles agora chamados reis genuinamente
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filosofarem, no haver descanso dos males para as cidades.
I
A
Plato critica a liberdade irrestrita na democracia, onde qualquer um faz o que deseja, mesmo
no sendo apto ou mais adequado o que faz, lembrando que a finalidade da justia do regime,
P
O para Plato, proporcionar a felicidade para a cidade como um todo, no necessariamente
L
para o indivduo particular. Por isso seria melhor uma aristocracia do saber.
T
I Plato tambm elogia a democracia no fato de que os muitos so menos corruptveis que
C
A
os poucos. E a liberdade que ela permite foi quem possibilitou surgir Scrates.
O veredito de Plato que voc deve reformar a si mesmo primeiro, para que possa ento
pensar em reformar os outros.
UNIDADE 1 TPICO 2 69


IDADE
ATIV
AUTO

1 Escreva um texto explicando do que trata A Repblica de Plato. Ao fazer isso,


comente as informaes contidas na Carta VII.

2 Comente quem so os personagens do dilogo em A Repblica e o que cada um


deles representa.

3 Discorra sobre a hiptese cidade-alma e as etapas na construo da cidade ideal.

4 Explique o papel da impetuosidade, do thumos, no estabelecimento da cidade. Assim


como, descreva a proposta educacional de Plato para o controle das paixes.

5 Descreva a noo de Justia em A Repblica de Plato e explique quem o filsofo-rei.

6 Qual a crtica de Plato s democracias modernas? Comente os prs e contras.

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UNIDADE 1

TPICO 3

O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA:


ARISTTELES E A POLTICA

1 INTRODUO

Neste tpico vamos analisar a obra A Poltica (1985, 2009) de Aristteles (384 AEC322
AEC), cuja leitura dever acompanhar o estudo desta parte especfica da nossa disciplina. Logo
aps introduzir o filsofo vamos nos ater, nos Livros I-III de A Poltica, ao seu conceito de que
o homem naturalmente o animal poltico. Isso nos levar a uma polmica tese aristotlica,
aquela da naturalidade da escravatura.

A seguir, vamos analisar, no Livro IV da obra, questes sobre o regime poltico ou as


formas de governo, assim como as suas estruturas e instituies. Vamos nos ater um pouco
sobre o regime democrtico e sobre questes da lei, do conflito, do direito e da justia natural.

Na discusso do Livro VII, veremos a proposta da Politeia de Aristteles e as solues


que ele prope para os problemas das faces. Vamos tambm abordar a viso do filsofo sobre
a propriedade e o comrcio. Assim como, discutir sobre o seu modelo para o melhor regime, a
sua cincia poltica, sua percepo de um estadista e o seu mtodo para o estudo da poltica.

Ento, voc poder ler o resumo deste tpico 3 e depois realizar a autoatividade.

F
I
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O
2 ARISTTELES E A POLTICA: LIVROS I-III S
O
F
I
A
Uma introduo sria filosofia poltica precisa comear com uma boa amostra de
P
Plato. o que fizemos at aqui. Necessitamos agora seguir em frente. Ento, vamos passar O
L
para o discpulo de Plato, Aristteles. H uma histria sobre a vida de Aristteles e ela
T
mais ou menos assim: Aristteles nasceu, passou sua vida pensando e depois ele morreu. I
Obviamente, h mais em sua vida do que isso. Mas, at certo ponto, isso captura de algum C
A
72 TPICO 3 UNIDADE 1

modo como Aristteles foi percebido ao longo dos sculos. Ou seja, o filsofo par excellence.
Aristteles nasceu no ano de 384 AEC, 15 anos aps o julgamento de Scrates. Ele nasceu na
parte norte da Grcia, em uma cidade chamada Estagira, por isso ele muitas vezes referido
como o Estagirita, que parte do que hoje chamado de Macednia. Quando ele tinha cerca
de 17 anos foi enviado por seu pai para fazer o que voc est fazendo. Ele foi enviado por seu
pai, Nicmaco, faculdade. Ele foi enviado a Atenas para estudar na Academia, a primeira
universidade, fundada e estabelecida por Plato. Ao contrrio da maioria de vocs, Aristteles
no passou quatro anos na universidade, na Academia platnica. Ele permaneceu ligado
a ela pelos prximos 20 anos de sua vida, at a morte de Plato. Aps a morte de Plato,
talvez por causa da escolha dos sucessores para a Academia, Aristteles deixou Atenas, em
primeiro lugar para a sia Menor e, em seguida, retornou para sua casa em Macednia, onde
ele havia sido convocado pelo rei Filipe II para estabelecer uma escola para os seus filhos e
para a classe dominante da Macednia. Foi ali que Aristteles conheceu e ensinou o filho de
Filipe II, o prncipe Alexandre (REALE, 1994).

Aristteles retornou a Atenas, mais tarde, e estabeleceu uma escola prpria, um rival
para a Academia platnica que ele chamou de Liceu. H uma histria de que perto do final
de sua vida, o prprio Aristteles foi acusado de crime capital, tal como tinha sido Scrates,
devido a uma nova onda de hostilidade filosofia. Mas, ao contrrio de Scrates, em vez de
ficar a beber a cicuta, Aristteles deixou Atenas. Fora relatado ter dito ento que no queria
dar oportunidades aos atenienses de pecarem, pela segunda vez, contra a filosofia (DILTHEY,
2004, p. 53). Retornaremos a essa histria logo a seguir, pois julgamos ser muito reveladora
sobre Aristteles.

Essa histria ajuda a sublinhar algumas diferenas importantes entre Plato e Aristteles.
Em um nvel, voc poder dizer que h uma diferena importante no estilo, e esta voc vai
notar quase que imediatamente. Ao contrrio de seu padrinho intelectual, Scrates, que nada
escreveu, mas conversava sem parar, ao contrrio de seu prprio mestre, Plato, que escreveu
imitaes dessas interminveis conversas socrticas, Aristteles escreveu tratados temticos
e disciplinados sobre praticamente todos os assuntos, entre eles, biologia, tica, metafsica,
crtica literria e poltica. Pode-se seguramente assumir que Aristteles seria professor titular
em qualquer departamento na melhor universidade brasileira ou internacional, ao passo que
F
Scrates no poderia nem ter concorrido para ser um assistente de professor. Estas diferenas
I
L
podem esconder outras.
O
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Para Plato, ao que parece, o estudo da poltica sempre foi ligado a questes
I profundamente filosficas e especulativas, questes da metafsica, questes sobre a estrutura
A
do cosmos. O que a alma? Sobre o que a alma? Aristteles aparece desde o incio mais
P
O com o que ns poderamos chamar de um cientista poltico. Ele coletou constituies, 158
L
delas, de todo o mundo antigo (FERRATER-MORA, 2000). Ele foi o primeiro a dar algum tipo
T
I de rigor conceitual ao vocabulrio da vida poltica. Acima de tudo, as obras de Aristteles, como
C
A A Poltica e tica a Nicmaco, foram explicitamente concebidas como obras de instruo
UNIDADE 1 TPICO 3 73

poltica, de educao poltica. Elas parecem ter sido projetadas menos para recrutar filsofos
e filsofos potenciais do que para moldar e educar os cidados e futuros estadistas. Suas
obras parecem menos tericas, no sentido da construo de modelos abstratos da vida poltica
do que de aconselhamento, no sentido de servir como uma espcie de rbitro, com a mente
voltada para assuntos cvicos, de conflitos de interesses pblicos.

Ao contrrio de Scrates, que com a sua famosa alegoria descrita no livro VII da
Repblica, compara a vida poltica a uma caverna, e ao contrrio da Apologia onde Scrates
diz aos seus concidados que as suas vidas, porque no examinadas, no valiam a pena serem
vividas, Aristteles leva a srio a dignidade da cidade e mostrou o caminho, que a filosofia pode
ser til para os cidados e os estadistas. No entanto, por tudo isso, pode-se dizer que ainda h
um enigma profundo circundante s obras polticas de Aristteles. Expondo isso simplesmente,
algum poderia perguntar: quais eram as polticas da obra A Poltica de Aristteles? Quais
eram as prprias convices polticas de Aristteles?

Aristteles viveu virtualmente na cspide do mundo da cidade-estado autnoma Atenas,


a polis grega. Durante a sua prpria vida, Aristteles veria Atenas, Esparta, e as outras grandes
cidades da Grcia engolidas pelo grande Imprio Macednico ao norte. O que ns pensamos
como a idade de ouro da Grcia estava praticamente no fim, durante o tempo de vida de
Aristteles. Outros pensadores gregos do seu tempo, nomeadamente um homem chamado
Demstenes, escreveu uma srie de discursos chamados Filpicas, que eram contra Filipe II
da Macednia, para avisar seus contemporneos sobre os perigos que representavam para
Atenas as ambies imperiais da Macednia. Mas as advertncias de Demstenes vieram
tarde demais. A polis grega autnoma que Plato, Glucon, Adimanto e outros conheceram,
tinha chegado ao seu fim.

O que Aristteles pensava dessas mudanas? O que ele pensava que estava
acontecendo? Ele ficou em silncio. A extrema relutncia de Aristteles, sua hesitao para falar
sobre as questes de seu tempo, so, talvez, o resultado de ser um estrangeiro em Atenas. Ele
no era um ateniense, portanto no tinha a proteo da cidadania ateniense. Ao mesmo tempo,
voc pode pensar que sua reticncia, sua relutncia em falar com sua prpria voz tambm pode
ter sido uma resposta ao destino de Scrates e a situao politicamente perigosa da filosofia.
No entanto, para um homem notoriamente sigiloso e relutante como Aristteles, as suas obras
F
adquiriram ao longo dos sculos virtualmente um status cannico. Ele tornou-se uma autoridade, I
L
realmente pode-se dizer uma autoridade sobre praticamente tudo. Para Toms de Aquino, que O
S
escreveu no sculo XIII, Aristteles foi referido por ele simplesmente como "o Filsofo", fato O
F
recorrente na sua Suma Teolgica. No havia nenhuma razo para dizer o seu nome. Ele era I
A
simplesmente o Filsofo par excellence. O grande filsofo medieval judeu, Moiss Maimnides,
P
chamou Aristteles de chefe dos filsofos (1910, p. 18, traduo nossa) em seu Guide of the O
L
Perplexed [Guia dos perplexos]. Dante Alighieri, no Inferno o chama de o imortal mestre de
todo homem de saber [il maestro di color che sanno] (ALIGHIERI, 1998, p. 47). T
I
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74 TPICO 3 UNIDADE 1

Durante sculos, a autoridade de Aristteles ficou praticamente incontestada. No entanto,


a autoridade de Aristteles, obviamente, j no tem tanto poder quanto tinha uma vez. O ataque
no comeou h muito tempo, somente no sculo XVII. Um homem, sobre quem leremos na
Unidade II deste Caderno de Estudos, chamado Thomas Hobbes, foi um dos que liderou o
ataque. No quadragsimo sexto captulo do Leviat, um captulo que vocs devero ler e que
vamos comentar mais adiante, Hobbes escreveu:

E acredito que dificilmente se pode afirmar alguma coisa mais absurda em


filosofia natural do que aquilo que hoje se denomina metafsica de Aristteles,
nem mais repugnante ao governo do que a maior parte daquilo que disse
na sua Poltica, nem mais ignorante do que uma grande parte da sua tica.
(2003, p. 557)

Pense nisso, nada mais repugnante para o governo do que o que Aristteles escreveu
em sua Poltica.

Naturalmente, todos os pensadores, at certo ponto, leram Aristteles atravs de suas


prprias lentes. Aquino leu Aristteles como um defensor da monarquia. Dante, em seu livro,
Monarquia [De Monarchia] (2006), viu Aristteles dando credibilidade ideia de uma monarquia
universal, sob a liderana de um prncipe cristo. Mas Hobbes viu Aristteles de forma bastante
diferente. Para Hobbes, Aristteles ensinou a doutrina perigosa do governo republicano que foi
vista sendo praticada principalmente durante o perodo de Cromwell na Inglaterra, durante a
guerra civil. Hobbes acreditava que as doutrinas de Aristteles de que o homem um animal
poltico s poderiam resultar, e de fato resultaram, em regicdio, o assassinato de reis.

2.1 O HOMEM NATURALMENTE O ANIMAL POLTICO

Isto nos faz retornar ao enigma de Aristteles. Quem era esse homem estranho e
evasivo, cujos escritos parecem ter sido inscritos tanto para o apoio da monarquia quanto das
repblicas, at mesmo para uma monarquia universal, assim como para uma espcie menor
de governo democrtico participativo? Quem foi este homem e como entender seus escritos?

F
O melhor lugar para comear com seu prprio ponto de vista indicado nas pginas de
I
L
abertura da Poltica sobre a naturalidade da cidade. Sua afirmao a seguinte: evidente,
O pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem naturalmente um animal
S
O poltico (ARISTTELES, 2009, p. 16, 1253a, 9). Essa a sua famosa afirmao. O que isso
F
I significa, somos um animal poltico? Aristteles afirma as suas razes de forma sucinta, talvez
A
demasiado sucinta.
P
O
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No Livro I, captulo I, seo 1253a, e pargrafos 9 e 10, da Poltica, onde ele observa
T
I que cada cidade ou cada polis existe por natureza, ele passa a deduzir que o homem o que
C
A ele chama de zoon politikon, o animal poltico, o animal da polis. Seu raciocnio aqui, breve
UNIDADE 1 TPICO 3 75

que seja, vale a pena seguir. Deixe-me cit-lo: "Claramente se compreende a razo de ser o
homem um animal socivel [poltico] em grau mais elevado que as abelhas e todos os outros
animais que vivem reunidos. Por que se compreende claramente? A natureza, dizemos, ele
continua, nada faz em vo. O homem s, entre todos os animais, tem o dom da palavra; logos
o termo que ele utiliza. O homem tem logos razo ou palavra. Ele segue afirmando que a
voz o sinal da dor e do prazer, e por isso que ela foi tambm concedida aos outros animais.
Estes chegam a experimentar sensaes de dor e de prazer, e a se fazer compreender uns
aos outros. A palavra, porm, ele escreve:

tem por fim fazer compreender o que til ou prejudicial, e, em consequncia,


o que justo ou injusto. O que distingue o homem de um modo especfico
que ele sabe discernir o bem do mal, o justo do injusto, e assim todos os sen-
timentos da mesma ordem cuja comunicao constitui precisamente a famlia
do Estado (ARISTTELES, 2009, p. 16, 1253a, 10).

Em outras palavras, o que ele est dizendo que a palavra ou a razo, o logos, que
capaz de ambos distinguir e criar certas categorias morais importantes. A partir das quais
ns vivemos, e discernindo-as constitumos a famlia e a polis.

Mas isso Aristteles dizendo. Em que sentido, poderamos nos perguntar, a cidade
parte da natureza? Em que sentido somos animais polticos por natureza? Aristteles oferece
duas explicaes diferentes nas primeiras pginas do livro que voc deve prestar ateno.
Literalmente na abertura, ele oferece o que parece ser uma espcie de histria natural da polis.
Ele parece ser um antroplogo escrevendo. A polis natural no sentido de que ela cresceu de
formas menores e inferiores de associao humana. Primeiro vem a famlia, em seguida, uma
associao de famlias em uma tribo, em seguida, outra associao em uma aldeia, e ento
uma associao de aldeias que criam uma polis ou uma cidade. A polis natural no sentido de
que uma consequncia natural, um produto do desenvolvimento, a forma mais desenvolvida
de associao humana. Seria mais ou menos da mesma forma que se costuma ver em museus
de histria natural, grficos biolgicos do desenvolvimento humano a partir de formas inferiores
de vida, todo o caminho at a civilizao. Isso faz parte do argumento de Aristteles. Mas h
um segundo sentido, de certa forma, um sentido mais importante, para ele dizer que a polis
parte da natureza. Ela natural.

A cidade natural na medida em que permite aos seres humanos atingir e aperfeioar F
I
o que ele chama de telos, isso quer dizer, o seu fim, o seu propsito. Ns somos animais L
O
polticos, diz ele, porque a participao na vida da cidade necessria para a realizao da S
O
excelncia humana, para a realizao do nosso bem-estar. Uma pessoa que no pode viver na F
I
cidade, diz ele, um apolis (sem uma cidade) ou deve ser um bruto (uma besta) ou um deus A
(ARISTTELES, 2009, p. 17, 12453a, 11). Isto quer dizer, abaixo ou acima da humanidade. P
Nossa natureza poltica a nossa caracterstica essencial. Porque s atravs da participao na O
L
vida poltica que vamos conseguir, podemos adquirir as excelncias ou as virtudes que fazem
T
o que somos, que realizam nosso telos ou realizam a nossa perfeio. Quando Aristteles diz I
C
A
76 TPICO 3 UNIDADE 1

que o homem um animal poltico por natureza, ele est fazendo mais do que simplesmente
afirmar apenas um trusmo ou apenas alguma platitude. De muitas maneiras, ele est avanando
um postulado filosfico de grande alcance e poder, embora o pleno desenvolvimento da tese
seja s deixado enraizado. Ele no a desenvolve plenamente neste trabalho.

Agora, cuidado com outro sentido erroneamente atribudo a esta afirmao de Aristteles.
Ele no est dizendo que o homem poltico por natureza no sentido de instinto. Note-se
que ele no est dizendo, embora s vezes parea que sim, que h algum tipo de desejo
biologicamente implantado ou impulso que temos que nos leva a participar na vida poltica. Dizer
que natural para ns faz-lo no o mesmo que dizer que nos envolvemos na vida poltica
de forma espontnea e avidamente, comparado ao comportamento das aranhas ao tecer as
teias ou das formigas construindo formigueiros. Ele no uma espcie de sociobilogo da
poltica, de certa forma, o contrrio. Ele diz que o homem poltico, no porque temos algum
impulso biolgico ou instinto que nos leva a participar da poltica, mas, segundo ele, porque
somos possuidores do poder da fala. a fala que nos torna polticos. A fala ou a razo est
muito longe de determinar o nosso comportamento no sentido de um determinismo biolgico.
A fala e a razo nos do uma espcie de liberdade, de amplitude, uma rea de discrio em
nosso comportamento e que no est disponvel para outras espcies. a razo ou a fala,
no o instinto, que nos torna polticos.

A pergunta que Aristteles nos apresenta : Qual a conexo entre o logos, a capacidade
para a fala e racionalidade, e a poltica? Como se combinam? Por que um leva ao, ou implica
o outro? Na verdade, ele no est fazendo tanto uma reivindicao causal. Aristteles no
est dizendo que porque somos criaturas racionais possuidoras do poder da fala isso causa
o nosso envolvimento na poltica. Ele tem um argumento mais do tipo de que esse atributo,
logos, realmente envolve a vida poltica. Ele faz esse argumento, acredito, porque o logos
implica dois atributos fundamentalmente humanos. Em primeiro lugar, o poder de saber. O
poder de saber a nossa capacidade de reconhecer, pela viso, membros da mesma polis ou
cidade. , acima de tudo, a fala que de certa forma nos vincula aos outros de nossa espcie.
Ns no compartilhamos meramente a capacidade para a linguagem do modo que um linguista
poderia afirmar, mas compartilhamos certa linguagem moral comum. esta partilha de certas
concepes comuns do que justo e injusto que faz uma cidade. a capacidade de conhecer
F
e reconhecer outras pessoas que compartilham essa linguagem conosco que o primeiro
I
L
sentido em que o logos implica a poltica.
O
S
O
F
Mas a razo ou o logos implica mais do que essa capacidade. Envolve, ainda, para
I Aristteles, curiosamente, o poder do amor. Ns amamos as pessoas com quem estamos mais
A
intimamente relacionados e que so mais imediatamente presentes e visveis para ns. De muitas
P
O maneiras, Aristteles acredita que a nossa natureza social e poltica no o resultado do clculo,
L
como veremos em Hobbes, Locke e outros tericos do contrato social. Mas as coisas como o
T
I amor, afeto, amizade e simpatia so as bases da vida poltica e esto enraizadas em nosso
C
A logos. a fala que permite uma partilha nestas qualidades que nos tornam plenamente humanos.
UNIDADE 1 TPICO 3 77

Todavia, dizer que o homem poltico por natureza, no meramente dizer que nos
tornamos plenamente humanos ao participar com outras pessoas em uma cidade. Isto significa
mais do que isso. A forma de associao que conduz nossa perfeio necessariamente
algo particularista. A cidade sempre uma cidade particular. sempre esta ou aquela cidade
particular. A polis, como Aristteles, tambm como Plato a entende, uma pequena sociedade,
o que poderia ser chamado hoje de uma sociedade fechada. Uma sociedade que conduz
nossa perfeio, que nos leva a completar e aperfeioar nossos telos, deve ser unida por laos
de confiana, de amizade, de camaradagem. Uma sociedade baseada simplesmente no clculo
mtuo de interesses no poderia ser uma sociedade poltica real para Aristteles. No podemos
confiar em todas as pessoas, Aristteles parece dizer. A confiana s pode ser estendida para
um crculo de amigos e concidados relativamente pequeno. Apenas uma pequena cidade,
pequena o suficiente para ser governada por relaes de confiana, pode ser poltica, no
sentido do termo em Aristteles. A alternativa para a cidade, o imprio, s pode ser governada
despoticamente. No pode haver relaes de confiana em um despotismo grande, imperial.

Portanto, em certo sentido, quando Aristteles diz que o homem por natureza um
animal poltico e que a cidade parte da natureza, a cidade nunca pode ser um Estado
universal. Ela nunca pode ser algo que incorpora toda a humanidade. Ela nunca pode ser um
tipo de cosmopolis, um Estado mundial ou mesmo uma confederao de Estados ou pases.
O Estado universal nunca vai permitir o tipo de autoaperfeioamento que uma polis pequena e
autorregulada ter. A cidade, como Aristteles entende, sempre vai existir em um mundo com
outras cidades ou outros estados, com base em princpios diferentes que podem ser hostis ao
seu prprio. Isso quer dizer que nem mesmo a melhor da cidade, na viso de Aristteles, pode
dar-se ao luxo de ficar sem uma poltica externa. Um bom cidado de uma democracia no
ser o bom cidado de outro tipo de regime poltico. Partidarismo e lealdade a uma maneira
prpria de vida so requisitos para uma cidade saudvel. Para colocar o argumento nos termos
em que Polemarco da Repblica de Plato teria aprovado: amigo e inimigo so categorias
naturais e indelveis da vida poltica. Assim como no podemos ser amigo de todas as pessoas,
tambm a cidade no pode ser amiga de todas as outras cidades ou o Estado com todos os
outros Estados. A guerra e as virtudes necessrias para a guerra so to naturais para a cidade
como o so as virtudes da amizade, confiana e camaradagem que tambm so necessrias.

Perceba que nas pginas iniciais do livro, Aristteles no diz nada sobre qual o tipo de
F
cidade ou de regime que o melhor. Tudo o que ele nos diz que somos o animal poltico por I
L
natureza e que, para alcanar nossos objetivos, ser necessrio viver em uma polis. Mas que O
S
tipo de polis? Como deve ser governada? Por um, poucos, muitos, ou alguma combinao O
F
destas trs categorias? Neste ponto, sabemos somente as caractersticas mais gerais do que I
A
uma polis. Ela deve ser pequena o suficiente para ser governada por uma linguagem comum de
P
justia. No suficiente apenas falar as mesmas palavras, mas os cidados devem ter certas O
L
experincias e memrias comuns que moldam a cidade e as pessoas. As grandes comunidades
poliglotas, multitnicas de hoje no permitiriam, na avaliao de Aristteles, suficiente confiana T
I
mtua e amizade para contar com uma comunidade poltica saudvel. Assim, Aristteles parece C
A
78 TPICO 3 UNIDADE 1

estar oferecendo, em alguns aspectos, uma espcie de crtica ao tipo de Estados com os quais
estamos mais familiarizados. Pense sobre isso quando voc fizer suas leituras da Poltica ou
quando voc discutir este texto com seus colegas. O que Aristteles est dizendo sobre ns?

Os cidados de uma cidade s podem alcanar seus telos ou a perfeio atravs da


participao nos cargos pblicos, nos postos de governo de uma cidade. Mais uma vez, um
grande Estado cosmopolita pode permitir a cada indivduo a liberdade de viver como ele ou
ela gostar, mas isso no liberdade como Aristteles entende. A liberdade s vem atravs
do exerccio da responsabilidade poltica, o que significa responsabilidade e superviso dos
prprios concidados e do bem comum. Segue-se, para ele, que a liberdade no significa viver
como ns gostamos, mas a liberdade constituda por um sentido de moderao e conscincia
de que no so permitidas todas as coisas, que a boa sociedade ser aquela que promove
uma sensao de moderao, restries, autocontrole e autogoverno, como Adimanto, na
Repblica, afirmava, que so indissociveis da experincia da liberdade. Aristteles aqui
oferece, assim como Plato, um tipo de crtica teoria da liberdade democrtica moderna ou
at mesmo antiga, que a ideia de viver como cada um desejar.

2.2 A NATURALIDADE DA ESCRAVATURA

Voc pode ver, nas pginas iniciais do livro A Poltica, argumentos densos sendo
condensados de maneiras muito profundas, muito peso que precisaria ser descarregado. H
muita coisa l que precisa ser descompactada. S tentamos fazer um pouco disso nesta parte,
para falar sobre o que Aristteles est sugerindo com essa ideia de homem, o animal poltico.
Apesar do que pensemos sobre esta perspectiva, quer gostemos ou no, teremos de enfrentar
outra famosa, est mais para infame, doutrina que tambm uma parte muito importante
do Livro I da Poltica. Refiro-me aos seus argumentos para a naturalidade da escravido,
dispostos a partir do captulo II, seo 1253b. Aristteles nos diz que a escravido natural.
A naturalidade da escravido dita a partir da crena de que a desigualdade a regra bsica
entre os seres humanos. Aristteles e Thomas Jefferson parecem discordar sobre o fato bsico
da experincia humana, quer se trate de igualdade ou desigualdade. Se isso for verdade, A
F
I Poltica de Aristteles parece estar sentenciada como o livro mais antidemocrtico j escrito.
L
O Isso verdade? A afirmao de Aristteles, sobre a naturalidade da escravido, parece exigir
S
O a distino categrica da humanidade em senhores e escravos. Como entender isso?
F
I
A

P
S!
O DICA
L

T
I Para aprofundar sobre o tema da Escravido em Aristteles
C recomendamos a leitura do livro: BRUGNERA, Nedilson Lauro. A
A
escravido em Aristteles. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
UNIDADE 1 TPICO 3 79

Vale ressaltar que o argumento de Aristteles profundamente compacto e ser


facilmente mal interpretado se voc apenas l-lo uma vez. Na verdade, provavelmente ser
mal interpretado se voc l-lo trs, quatro, cinco, ou dez vezes, caso no estiveres atento ao
que ele est dizendo. Voc deve aprender a ler atentamente, analiticamente. O que Aristteles
est dizendo? Em primeiro lugar, importante que evitemos duas maneiras igualmente inteis
de responder a isso. A primeira, que se encontra entre muitos comentaristas modernos,
poderamos cham-los de neoaristotlicos, a de simplesmente desviar os olhos dos aspectos
agressivos, desagradveis do pensamento de Aristteles e proceder como se ele nunca
realmente tivesse dito ou quisesse dizer essas coisas. Precisamos evitar a tentao, at
certo ponto compreensvel, de higienizar Aristteles, para faz-lo parecer mais politicamente
correto para os leitores modernos. No entanto, devemos tambm evitar a segunda, a tentao
igualmente poderosa, de rejeitar Aristteles completamente, porque seu ponto de vista no
corresponde com o nosso.

A questo : o que Aristteles quer dizer com a escravido? Quem ou o que ele pensava
que era o escravo por natureza? At entender o que ele quis dizer, ns no temos nenhuma
razo para aceitar ou rejeitar o seu argumento. O primeiro ponto digno de nota sobre isso
que Aristteles no presumiu simplesmente que a escravido era natural porque era praticada
virtualmente em todo o mundo antigo. Voc vai notar que ele molda sua anlise na forma de um
debate. Ele diz no incio de seu argumento: Pretendem alguns diz ele, indicando que esta
uma opinio defendida por muitos povos, que existe uma cincia do amo, a qual idntica
economia domstica, autoridade do senhor e autoridade real ou poltica, ou seja, acreditam
que a escravido natural, porque governar e ser governado uma distino generalizada que
todas as sociedades praticam. Mas ele diz, outros sustentam que o poder do senhor sobre o
escravo contra a natureza. S a lei, dizem, impe diferena entre o homem livre e o escravo;
a natureza a nenhum deles distingue (ARISTTELES, 2009, p. 18, 1253b, 3), acreditam,
portanto, que a distino entre mestre e escravo se baseia na fora ou coero. Mesmo no
tempo de Aristteles parece que escravido era uma instituio controversa e suscitava muitos
tipos diferentes de opinies e respostas.

Aqui um daqueles momentos em que Aristteles, como referido anteriormente, parece


mais imparcial, de mente aberta. Ele est disposto a entreter argumentos, a favor e contra
no debate. Aristteles concorda com aqueles que negam que a escravido justificada pela
F
guerra ou conquista. As guerras, ele observa, nem sempre so justas. Assim, aqueles que I
L
so capturados na guerra no podem ser considerados como sendo justa ou naturalmente O
S
escravizados. Da mesma forma, ele nega que a escravido sempre ou apropriada apenas O
F
para os no gregos. No h, ele est dizendo, caractersticas raciais ou tnicas que distinguem I
A
o escravo natural do mestre natural. Em uma admisso impressionante, ele diz leia
P
atentamente que a prpria natureza parece querer dotar de caractersticas diferentes os O
L
corpos dos homens livres e dos escravos, continua Aristteles, mas, acontece o contrrio
muitas vezes" (ARISTTELES, 2009, p. 20-21, 1254b, 14), ou seja, a natureza muitas vezes T
I
se engana. Agora parece que estamos completamente confusos. Se a escravido natural, e C
A
80 TPICO 3 UNIDADE 1

se a natureza tem a inteno de distinguir o escravo do livre, o livre do no livre, como pode
a natureza errar o alvo? Como pode o oposto muitas vezes resultar? Dizemos isto porque tais
complicaes devem alertar o leitor atento. Estamos tentando ler atentamente. O que est
querendo Aristteles em fazer isso parecer to complicado?

Ao mesmo tempo, Aristteles concorda com os que defendem a tese da escravido


natural. Sua defesa se desenvolve mais ou menos assim. A escravido natural porque
no podemos governar a ns mesmos sem a conteno das paixes. Autogoverno significa
autoconteno. Conteno ou autocontrole necessrio para a liberdade ou autogoverno.
O que verdade, ele parece sugerir, sobre o sistema de conteno das paixes e desejos
verdadeiro tambm da conteno e controle sobre os outros. Alm disso, ele diz que existe
uma espcie de hierarquia dentro da alma no processo desta conteno da paixo. Ento,
essa hierarquia psicolgica poderia traduzir-se em uma espcie de hierarquia social entre os
diferentes tipos de pessoas? A hierarquia natural, ento, parece ser um tipo de hierarquia de
inteligncia ou, pelo menos, uma hierarquia do racional.

"Como isso veio a ser?", Aristteles pergunta. Como possvel que algumas pessoas
adquiram esta capacidade de autocontrole racional que necessria para a liberdade e outros
parecem no ter isso? Esta hierarquia uma qualidade gentica? algo implantado em ns por
natureza ou essa distino algo criado pela disciplina e educao, o que chamaramos hoje
de socializao? Se essa hierarquia de inteligncia ou a hierarquia do racional o resultado
da educao, ento como pode a escravido ser defendida como natural? No o prprio
Aristteles que chamava o homem de animal racional, o ser com logos, sugerindo que todos
os seres humanos tm um desejo de conhecimento e o desejo de cultivar suas mentes e viver
como pessoas livres? No h uma espcie de igualitarismo embutido na concepo de animal
racional e animal poltico?
Aristteles comea seu grande livro Metafsica com a famosa declarao de abertura:
"Todos os homens, por natureza, desejam conhecer" (1969, p. 36, 980a). Se todos ns temos
um desejo de saber, isso no conota algo universal, que todos devem ser livres, que todos
devem participar do governo e ser governados como cidados de uma cidade? No entanto,
ao mesmo tempo, Aristteles parece considerar a educao como a prerrogativa dos poucos.
O tipo de disciplina e autocontrole necessrios para uma mente educada parece ser, para ele,
F
desigualmente dividido entre os seres humanos. Segue disso, assim pensamos, que o regime
I
L
de acordo com a natureza, isto , o melhor regime, seria uma aristocracia dos educados, uma
O
S
aristocracia da educao e da instruo, uma repblica aristocrtica de algum tipo, onde uma
O
F
elite educada governa para o bem de todos. A Repblica de Aristteles, e usamos esse termo
I para lembr-los de Plato, dedicada ao cultivo de uma virtude de cidadania de nvel elevado,
A
isto significa aquelas qualidades da mente e do corao necessrias para o autogoverno. Estas
P
O qualidades, ele acredita, so o privilgio dos poucos, de uma minoria capaz de compartilhar
L
na administrao da justia e dos cargos de uma cidade. Parece ser um ensinamento muito
T
I elitizado. Voc concorda? Talvez seja pouco atrativo para todos ns, pelo motivo de ser muito
C
A oposto s nossas intuies e maneira como fomos educados.
UNIDADE 1 TPICO 3 81

Antes de descartar o relato de Aristteles como intoleravelmente desigual e elitista, temos


de fazer uma pergunta difcil, no apenas sobre Aristteles, mais importante ainda, sobre ns
mesmos. O que uma Universidade, uma Instituio de Ensino Superior, seno uma instituio
elitizada destinada a educar, moral e intelectualmente, os potenciais membros de uma classe
de liderana? Pense sobre isso. Qualquer pessoa pode entrar em uma Universidade? Ser que
temos uma poltica de admisso aberta para todos os que quiserem ingressar? Dificilmente
isso seria verdadeiro. Ser que no so requisitos, para se atingir o sucesso na graduao,
essas qualidades de autocontrole, disciplina e conteno?

Vou deixar de lado, por um momento, o que acontece na sexta-feira e sbado


noite. Todavia, seria apenas uma coincidncia que quem se forma em boas universidades se
encontram em altos cargos e postos pblicos (com suas excees, claro), de empresas, da
justia e da prpria academia? Seria injusto ou desproporcional descrever essa classe, como
Aristteles provavelmente o faria, como uma aristocracia natural? Deixo-vos com esta questo
para pensar. Antes de rejeitar Aristteles como um elitista antidemocrtico, vamos olhar para
ns mesmos. Voc faz parte desse grupo seleto, ou no estaria fazendo este curso hoje. Pense
sobre isso.

3 ARISTTELES E A POLTICA: LIVRO IV

Vamos agora ver o que podes chamar de poltica comparada de Aristteles e focar
sobre a ideia do regime. Este o tema que introduzimos no incio deste Caderno de Estudos
ao qual foi referido como o conceito central ou o fio condutor desta disciplina. dos livros III ao
VI da Poltica de Aristteles que ele desenvolve sua ideia do regime e as polticas do mesmo.
O livro I, do qual falamos anteriormente, nos fala na verdade sobre a metafsica da poltica de
Aristteles. Veremos agora Aristteles argumentando mais empiricamente, mais politicamente
sobre o que um regime. Sua ideia de regime politea, a mesma palavra que foi usada para o
ttulo da Repblica de Plato, literalmente a pea central da poltica de Aristteles. Ela ocupa
o tema dos livros intermedirios, do livro III ao VI.

F
Estes livros so difceis de vrias maneiras; eles so complicados. Eles no so a parte I
favorita do livro para muitos. Todavia deveriam ser, porque nos dizem mais precisamente, do L
O
que em qualquer outro lugar, como Aristteles entende a natureza da poltica. Afinal, isto no S
O
que estamos de fato interessados. F
I
A

P
O
L

T
I
C
A
82 TPICO 3 UNIDADE 1

3.1 O QUE UM REGIME POLTICO OU UMA


FORMA DE GOVERNO?

Um regime refere-se enumerao formal de direitos e deveres dentro de uma


comunidade, mas tambm aborda algo mais prximo ao que poderamos chamar o modo de
vida ou a cultura de um povo. Seus costumes distintos, costumes, leis, hbitos, disposies
e sentimentos morais. A teorizao constitucional de Aristteles comea com uma pergunta
simples. Qual a identidade de uma cidade? O que lhe confere a sua identidade e duradoura
existncia ao longo do tempo? Sua resposta : o regime, a forma de governo o que d a um
povo e a uma cidade a sua identidade.

Aristteles distingue entre o que ele chama de a substncia e a forma do regime ou


do governo. Vamos examinar esta distino. A matria, a substncia, a base material de um
regime diz respeito ao seu corpo cidado, o carter daqueles que constituem a cidade. Aqui, ele
rejeita uma srie de alternativas para o que constitui um corpo de cidados. Ele rejeita a ideia
de que a cidade definida simplesmente por um grupo de pessoas que habitam um territrio
comum, o mesmo espao (ARISTTELES, 1985, p. 94, 1281a). A identidade de uma polis, ele
escreve, no constituda por seus muros. Isto quer dizer que no constituda somente por
sua geografia, e de forma semelhante, ele rejeita a ideia de que um regime possa ser entendido
como uma aliana defensiva contra a invaso de outros (ARISTTELES, 1985, p. 80, 1276b).
Em nossos termos, por exemplo, a OTAN (Organizao do Tratado do Atlntico Norte) no seria
um regime, uma aliana puramente militar ou defensiva. Por fim, ele nega a possibilidade da
existncia de um regime quando um nmero de pessoas se rene meramente para estabelecer
relaes comerciais uns com os outros, organizaes como o Mercosul (Mercado Comum do
Sul) ou a OMC (Organizao Mundial do Comrcio) no formam um regime. Um regime no
pode ser entendido simplesmente como uma aliana comercial.

Ento qual essa substncia de um regime? Como que os cidados constituem um


regime? Aristteles argumenta que os cidados so mantidos unidos por laos de afeto comum,
koinonia em grego, literalmente o compartilhar, a comunho com os outros. O afeto, presente
nesta comunho a lealdade e a amizade, e isto que compe um regime. Esta parceria,
F comunidade poltica, o obrar do afeto, a palavra usada por ele aqui em grego philia. "Tudo
I
L isso obra da amizade, pois a amizade a motivao do convvio" (ARISTTELES, 1985,
O
S p. 94, 1281a). A amizade , portanto, a maior de todas as coisas boas para as cidades, pois
O
F quando as pessoas sentem afeto umas pelas outras elas ficam menos propensas a cair em
I
A conflito. Mas de qual tipo de amizade ele est falando? o tipo de amizade que voc sente
P por seu melhor amigo, por seus pais ou irmos? Que tipo de amizade so esses laos de afeto
O
L que mantm a cidade unida e que a tornam em um regime?

T
I
C Amizades polticas, para Aristteles (1985), no so o tipo de coisa que nos obriga
A
UNIDADE 1 TPICO 3 83

a renunciar a nossas prprias identidades individuais, como ocorre nas relaes de amor
passional. Em vez disso, elas pressupem relaes polticas, no entre amantes ou at mesmo
melhores amigos, mas entre parceiros cvicos que de fato podem ser rivais intensamente
competitivos um com o outro por posies nos cargos polticos e por honra. A amizade cvica,
philia cvica, portanto, tem um elemento forte, algo como a rivalidade entre irmos, em que
cada cidado se esfora para superar os outros em prol do bem cvico. Muitos de vocs
tm irmos e sabem um pouco sobre o que a rivalidade entre irmos. Irmos podem ser
melhores dos amigos, mas isso no exclui fortes elementos de competio, de rivalidade, e
at mesmo de conflitos para atrair a ateno dos pais. Os concidados, para Aristteles, so
como irmos, cada um competindo um com o outro para a estima, o afeto, o reconhecimento
da cidade que serve para eles como uma espcie de pai substituto. Essa a maneira como
Aristteles entende um corpo cvico, um corpo de cidados. De modo que quando ele diz que
os cidados so mantidos unidos por laos de afeto comum, significa algo muito especfico.
O vnculo cvico mais do que um agregado de mero autointeresse ou clculo racional, como
seria defendido por algum como Thomas Hobbes ou pela maioria dos economistas modernos
de hoje, que acreditam que a sociedade pode ser entendida simplesmente como uma srie de
transaes racionais entre os compradores e os vendedores de diferentes produtos e que pode
ser modelada de acordo com algum tipo de Teoria dos Jogos. Aristteles nega explicitamente
isso. Ele parecia saber algo sobre a teoria econmica moderna muito antes de a economia
moderna ter sido desenvolvida. Mas, novamente, quando Aristteles fala dos tipos de afeto
que mantm um corpo de cidados unidos, ele no quer dizer qualquer coisa semelhante aos
laos de intimidade pessoal que caracterizam amizades privadas. O que ele quer dizer, quando
fala sobre afeto cvico, mais parecido com os laos de lealdade, camaradagem que unem
os membros de uma equipe ou um clube, no meramente laos de mtua convenincia. Eles
exigem a lealdade, a confiana, o que os cientistas sociais hoje, s vezes, chamam de capital
social. As sociedades bem-sucedidas necessitam de capital social. A confiana, este capital
social, uma relao bsica, o componente bsico de uma democracia saudvel. Aristteles
sabia disso, ele no usou uma palavra excntrica das cincias sociais como o termo capital
social; ao contrrio, ele falou sobre a amizade cvica e philia.

A comunidade poltica, ento, deve existir para a prtica de aes nobilitantes, e no


somente para a convivncia (ARISTTELES, 1985, p. 94, , 1281a). A cidade, como Aristteles
costuma dizer, formada no somente com vistas a assegurar a vida, mas para assegurar
F
uma vida melhor (ARISTTELES, 1985, p. 93, 1280b). A vida melhor, a boa vida, a vida I
L
de amizade, de relaes de concorrncia para posies de honra e cargos pblicos. Assim, O
S
podemos dizer que um regime , em primeira instncia, constitudo pelo seu corpo de cidados. O
F
Os cidados so aqueles que compartilham um estilo de vida comum. H vrias espcies de I
A
cidados, que esse ttulo pertence, escreve Aristteles, principalmente, aqueles que tomam
P
parte nos servios pblicos (ARISTTELES, 2009, p. 89, 1278a). Ou seja, quem tem o direito O
L
de participar em um cargo envolvendo deliberao ou a tomada de deciso um cidado da
cidade. Um cidado aquele, pois, que no s goza da proteo da lei, no apenas um T
I
beneficirio passivo da proteo da sociedade e suas leis, mas aquele que tem uma ao C
A
84 TPICO 3 UNIDADE 1

na definio das leis e que participa do governo poltico e das deliberaes.

O prprio Aristteles observa que a sua definio de cidado mais apropriada para
os cidados da democracia, onde todo mundo sabe como governar e ser governado. Esta
reflexo, e o carter do cidado, o levam a se perguntar, no Livro III, captulo 2, se o bom
cidado e o homem de bem, ou bom ser humano, so um e a mesma coisa. Uma pessoa pode
ser ao mesmo tempo, em outras palavras, um homem de bem, uma boa pessoa e um bom
cidado? Essa uma discusso famosa no livro de Aristteles. A resposta de Aristteles para
isso talvez deliberadamente obscura. O bom cidado, ele nos diz, ainda algum relativo ao
regime. Ou seja, o bom cidado da democracia no seria necessariamente a mesma pessoa,
ou o mesmo tipo de pessoa que o bom cidado de uma monarquia ou uma aristocracia. A
virtude cvica relativa, ou, poderamos dizer, relativa ao regime. S no melhor regime, diz
ele, que o bom cidado e o bom ser humano so o mesmo. Mas o que o melhor regime?
Pelo menos at este momento ele no nos disse isso. O ponto que ele est tentando fazer
que existem vrios tipos de regimes polticos e, portanto, vrios tipos de cidadania que lhes
so prprios. Cada regime poltico constitudo por sua substncia, ou seja, pelo seu corpo
de cidados, mas agora tambm pela sua forma, por suas estruturas formais. Isso quer dizer
que cada regime tambm ser um conjunto de instituies e estruturas formais que moldam os
seus cidados. Regimes polticos so formas ou formalidades que determinam como o poder
compartilhado e distribudo entre os cidados. Cada regime uma resposta, consciente ou
no, mais antiga questo poltica de todas: quem governa? Quem deve governar? Cada
regime poltico uma resposta a essa pergunta, porque cada regime estabelece uma maneira
de formalmente distribuir poderes e cargos entre seu corpo de cidados.

3.2 QUAIS SO AS ESTRUTURAS E INSTITUIES


DO REGIME?

Passaremos agora da substncia do regime, o que constitui os seus cidados e seu


corpo civil, para a questo da forma do regime, suas formas, suas formalidades, suas estruturas
e instituies. Praticamente toda cincia poltica moderna est focada simplesmente nas formas
e nas formalidades da vida poltica, e muito pouco com perguntas sobre os cidados e o que
F
I os forma, o que os constitui, o carter ou a virtude, em termos aristotlicos, de seus cidados.
L
O Aristteles tambm dedica extraordinria ateno s formas ou formalidades que compem
S
O um regime. O que ele quer dizer com isso?
F
I
A
Aristteles define os critrios estritamente formais de uma politea duas vezes em sua
P
O Poltica, e eu tenho certeza de que voc deve ter notado onde. no Livro III, captulo 4, a
L
famosa definio: Uma constituio [regime] o ordenamento de uma cidade quanto s suas
T
I diversas funes de governo, principalmente a funo mais importante de todas. O governo
C
A em toda parte detm o poder soberano sobre a cidade, e a constituio [regime] o governo.
UNIDADE 1 TPICO 3 85

(ARISTTELES, 1985, p. 89, 1278b). Ou seja, o regime o arranjo de uma cidade com relao
a seus servios pblicos e cada cidade ter um corpo governante, e este ser o regime. A
segunda definio aparece no incio do Livro IV, captulo 1: "Com efeito, a constituio a
ordenao das funes de governo nas cidades quanto maneira de sua distribuio, e
definio do poder supremo nas mesmas e do objetivo de cada comunidade (ARISTTELES,
1985, p. 122, 1289a). Uma definio similar, mas levemente diferente do que constitui a estrutura
formal da poltica de regime.

A partir dessas duas definies que aparecem no Livro III, captulo 4 e Livro IV, captulo
1, aprendemos uma srie de coisas importantes. Em primeiro lugar, um regime diz respeito
maneira pela qual o poder dividido ou distribudo em uma comunidade. Isto o que Aristteles
(1985, p. 123) quer dizer quando ele usa a frase, "o ordenamento de uma cidade quanto s
suas diversas funes de governo". Em outras palavras, cada regime ser baseado em algum
tipo de juzo de como o poder deve ser distribudo a um s, aos poucos ou aos muitos, para
usar as categorias aristotlicas de governo poltico, ou alguma mistura dessas trs classes que
constituem cada cidade. Em cada regime um desses grupos, Aristteles (1985) afirma, ser a
classe dominante, ser o corpo dominante, o corpo governante. E o corpo governante, por
sua vez, que define a natureza do regime. Mas Aristteles nos diz algo mais do que isso. A
sua tipologia de regime, sua diviso de poder no governo de um s, dos poucos e dos muitos
se baseia no apenas em como os poderes so distribudos de uma forma puramente factual,
ele tambm distingue entre regimes que so bem ordenados, bem governados, e aqueles
que so corruptos. O que ele quer dizer em termos desta distino? A distino de Aristteles
parece ser no apenas emprica, parece ter inerente a ela um componente normativo, pois faz
uma distino ou um julgamento entre os regimes bem ordenados e os regimes desviantes,
os regimes corruptos. Por um lado, ele nos diz, os regimes bem ordenados so a monarquia,
a aristocracia e o que ele chama de politeia (governo constitucional), governo de um s,
de poucos, e de muitos, respectivamente. A verso corrupta desses, ele chama de tirania,
oligarquia e democracia, tambm governo de um s, de poucos, e de muitos, respectivamente.
Mas ns queremos saber quais critrios que ele utiliza para distinguir entre as seis faces desta
classificao de regimes? Como que ele distingue os regimes bem ordenados dos regimes
corruptos?

Aqui onde a anlise de Aristteles fica muito ardilosa por causa de sua relutncia
F
em condenar totalmente qualquer regime. Se voc fosse ler mais do que o requerido I
L
especificamente para este Caderno de Estudos, se voc lesse todo Livro VI, por exemplo, voc O
S
iria ver Aristteles no s dar conselhos aos democratas, s democracias e a outros regimes O
F
sobre como preservar-se, mas veria uma longa descrio de como os tiranos devem moderar, I
A
ou como os tiranos devem aprender a preservar e defender o seu prprio regime. como se, ao
P
viver antes da encarnao do mal no sculo XX com o surgimento dos totalitarismos modernos, O
L
Aristteles pensasse que nenhum regime seria to ruim, nenhum regime seria to desprovido
de bondade que a sua preservao no valesse a pena pelo menos algum esforo. Pensem T
I
um pouco nisso. Pelo contrrio, em muitos aspectos, ele fornece argumentos fundamentados C
A
para os pontos fortes e fracos dos vrios tipos diferentes de regime.
86 TPICO 3 UNIDADE 1

3.3 O REGIME DEMOCRTICO

Seria uma questo interessante para as pessoas considerarem, saber como que
Aristteles confrontaria ou qual seria a sua anlise de um regime como o de Hitler na Alemanha,
ou de Stlin na Rssia, regimes que so claramente tiranias, que tipo de conselho ele teria
para eles? De qualquer forma, agora vamos considerar o que est mais prximo de ns, a
democracia. Vamos considerar o que Aristteles tem a nos dizer sobre esse regime.

Curiosamente, encontramos Aristteles fazendo uma defesa da democracia, alegando


que ela possa conter coletivamente mais sabedoria do que um regime governado por um ou
por poucos. No Livro III, captulo 6, por exemplo, ele escreve: Onde h muitos, ou seja, o
corpo de cidados, o corpo governante da democracia, cada um tem uma certa poro de
bondade e prudncia, e que quando eles se renem, e sobre a sua unio, ele diz, da mesma
maneira que a multido se transforma num s homem com muitos ps e muitas mos e muitos
sentidos, pode assumir uma s personalidade quanto s faculdades morais e intelectuais
(ARISTTELES, 1985, p. 98, 1281b). Pensem nisso, ele diz que as pessoas em uma democracia
quando se unem tornam-se como um nico ser humano com muitas mos e ps, e com uma
s personalidade, que podemos deduzir que tambm seja maior. Ou seja, podemos ouvir e ver,
perceber melhor do que qualquer indivduo sozinho. Em seguida, no mesmo texto, tambm
vemos Aristteles elogiando a prtica de ostracismo, ou seja, o exlio, o banimento daqueles
indivduos considerados serem preeminentes em qualquer virtude ou qualidade particular.

Ele faz uma observao semelhante no Livro III, captulo 10, ao descrever o processo
de deliberao democrtica como um meio superior de chegar a decises. Ele compara esse
processo a um banquete.

Sem dvida, qualquer cidado individualmente inferior em comparao com


o melhor dos homens, mas a cidade constituda de muitos indivduos, e da
mesma forma que um banquete para o qual todos contribuem mais fino que
o jantar simples feito por uma s pessoa, na maioria das vezes um grupo julga
melhor que uma nica pessoa. A maioria tambm mais difcil de corromper
tal como acontece com a gua em maior quantidade, um nmero maior de
F pessoas mais difcil de corromper que um nmero menor, e a faculdade de
I julgar de um indivduo est sujeita a corromper-se quando ele dominado
L pela clera ou qualquer outra emoo (ARISTTELES, 1985, p. 112, 1286b).
O
S
O
F Ele oferece aqui um poderoso argumento em defesa da democracia, comparando-a a
I
A um banquete. Um cozinheiro sozinho pode no ser to bom como o melhor chef, mas muitos
P trabalhando em conjunto faro mais pratos e mais variedades que um nico chef poderia fazer.
O
L

T Ele diz que, alm disso, uma multido, os muitos, mais incorruptvel do que os
I
C poucos. Menos corruptvel, menos suscetvel ao suborno, voc no pode subornar um monte
A
UNIDADE 1 TPICO 3 87

de gente da mesma forma que voc faria com um nico indivduo. Est correta a anlise de
Aristteles, a sua viso sobre a democracia? De fato, muitos chefs fazem um jantar melhor
do que um nico chef? Voc prefere jantar em um restaurante chique com um chef mestre ou
prefere jantar com um grupo de amigos, cada um fornecendo alguma parte do jantar? um
argumento interessante, aberto ao debate de qualquer maneira. Mas, ao mesmo tempo, ser
que Aristteles est levantando uma defesa da democracia, proporcionando razo e muitos
argumentos lgicos para regimes democrticos?

Voc vai encontr-lo, na mesma seo do livro, proporcionando uma defesa da realeza
e do governo por um s. No Livro III, captulo 11, ele considera o caso do rei que age segundo
sua prpria vontade em todos os assuntos (ARISTTELES, 1985, p. 115, 1287a). Soa como
uma espcie de monarca absoluto. Esta a parte da Poltica de Aristteles que parece mais
prxima da ideia de um filsofo-rei platnico, um rei que governa sem lei e para o bem de
todos, simplesmente com base em sua prpria superioridade. Aristteles cunha um termo para
este tipo de rei sobre todos, ele chama de pambasileia. A palavra grega para rei basileu e
a palavra pan significa universal. Assim temos, pambasileia, o rei universal, o rei de tudo ou
monarquia universal (PANTELIA, 2009).

Aristteles no descarta a possibilidade de uma pessoa assim emergir, uma pessoa com
virtude excessiva e excelncia quase hiperblica, que estaria muito acima do resto, merecendo
ser o regente natural de todos. Mas como Aristteles consegue reconciliar seu relato do termo
pambasileia, o rei universal, com sua nfase anterior, sobre a deliberao democrtica e o
governo compartilhado? O cidado no aquele que permuta entre governar e ser governado?

Quando os leitores observam a descrio de Aristteles da realeza e, particularmente,


essa noo de pambasileia, deve pelo menos ocorrer a suspeita de que h um veio alexandrino
ou macednico escondido no pensamento poltico de Aristteles. Essa ideia de um rei universal
possui uma dvida maior sua naturalidade macednica que sua adoo ateniense. Pensem
em Alexandre, o Grande. E de fato, posteriormente, em uma de nossas passagens favoritas da
obra, no Livro VII, captulo VI, Aristteles escreve o seguinte: "Os habitantes dos lugares frios
(algumas regies da Europa) so geralmente cheios de coragem, aqui utilizada aquela palavra
platnica novamente, thumos, so geralmente cheios de thumos, mas um tanto deficientes
em inteligncia e habilidade, com falta de pensamento discursivo, o elemento deliberativo em
F
outras palavras. Por isto eles se conservam relativamente livres, mas carecem de organizao I
L
poltica, eles ficam livres porque eles so thumoticos, mas no possuem a governao poltica. O
S
Os povos da sia, por outro lado, ele escreve provavelmente pensando em lugares como O
F
a Prsia ou o Egito, so inteligentes e habilidosos, mas carecem de coragem e por isto so I
A
permanentemente dominados e escravizados (ARISTTELES, 1985, p. 235). Ou seja, tm
P
alma dotada de pensamento discursivo, mas falta impetuosidade, falta o thumos, portanto, O
L
eles permanecem governados e escravizados. Ele continua a dizer: As raas helnicas,
que vivem nas regies intermedirias, participam de ambos os caracteres, sendo ao mesmo T
I
tempo corajosas e inteligentes; por isto elas se conservam livres e tm as melhores instituies C
A
88 TPICO 3 UNIDADE 1

polticas, a ele conclui, e seriam capazes de dominar o mundo inteiro se conseguissem


formar uma s comunidade poltica (ARISTTELES, 1985, p. 235, 1328a). O que ele quer
dizer com o mundo inteiro? Os gregos? O resto do mundo? Ento aqui vemos uma passagem
na qual Aristteles parece estar apontando claramente para a possibilidade de uma espcie
de monarquia universal sob o domnio grego.

Esta extensa passagem que citamos importante por uma srie de razes, deixe-nos
tentar explicar. Em primeiro lugar, Aristteles nos fornece informaes cruciais sobre o seu
prprio pensamento a respeito das relaes entre o impulso e a razo, o thumos e razo, os
determinantes do comportamento humano. O termo crucial dessa passagem novamente
aquele termo platnico, irascibilidade ou impetuosidade, que tanto a causa do desejo
humano para governar e ao mesmo tempo uma causa de nosso desejo de resistir dominao
dos outros. a nica fonte da assertividade e agressividade humana, bem como a fonte de
resistncia agresso dos outros. um conceito psicolgico muito importante para se entender
a poltica. E em segundo lugar, a passagem nos diz algo sobre alguns fatores adicionais. Fatores
extrapolticos, como o clima e a geografia como componentes para o desenvolvimento da
sociedade poltica. Aparentemente, as qualidades, como thumos e razo, thumos e deliberao,
no esto distribudas de forma igual e universal. Ele distingue entre as pessoas do norte, que
chama de europeus, como pessoas com thumos, guerreiras, mas com carncia de pensamento
deliberativo e as pessoas da Prsia e do Egito, contendo formas altamente desenvolvidas do
conhecimento intelectual (sem dvida pensando no desenvolvimento de coisas como a cincia
e a matemtica no Egito), mas com falta dessa qualidade de thumos, que to importante
para o autogoverno e para o autodomnio. Poderamos dizer que, ao menos em parte, essas
coisas so determinadas por qualidades naturais, geogrficas ou climticas.

Um leitor moderno dessa passagem que vem-nos mente Montesquieu, em seu


famoso livro, Do Esprito das Leis (1996), com sua nfase sobre a maneira em que a geografia,
o clima e meio ambiente tornam-se, em parte, determinantes do tipo de cultura poltica e
comportamento poltico exibido por diferentes povos. Finalmente, esta passagem nos diz
que, sob certas circunstncias, Aristteles sugere, os gregos poderiam exercer uma espcie
de domnio universal, se eles assim escolherem. Ele no descarta essa possibilidade. Talvez
isso seja mais uma evidncia de sua viso de que existem diferentes tipos de regimes que
F
podem ser apropriados para diferentes tipos de situaes. No h um modelo nico da vida
I
L
poltica, mas bons regimes podem vir em uma variedade de formas. Parece haver, embutido
O
S
na viso de Aristteles sobre a poltica, certa flexibilidade, uma certa amplitude de critrio, que
O
F
em algumas passagens at parece beirar a uma espcie de relativismo.
I
A
Todavia, Aristteles compreende que uma pessoa, este pambasileia, de virtude
P
O superlativa, no algum para de fato se esperar. A poltica realmente uma questo de lidar
L
com coisas inferiores s melhores circunstncias. Talvez seja esta uma das razes pela qual
T
I Aristteles d pouca ateno estrutura do melhor regime. Tal regime, do qual falaremos mais
C
A adiante, algo a ser desejado, mas por razes de ordem prtica ele no dedica ao mesmo
UNIDADE 1 TPICO 3 89

muito do seu tempo. A maioria dos regimes sero misturas muito imperfeitas do governo de
poucos e do governo de muitos, dos ricos e dos pobres. A maioria dos regimes, a maioria
das polticas, sero conflitos entre o que ele chama de oligarquias e democracias, governo
das oligarquias ricas, governo das democracias pobres. A esse respeito Aristteles parece
adicionar uma categoria econmica ou sociolgica s categorias fundamentalmente polticas
dos poucos e dos muitos. No so simplesmente definidos quantitativamente, mas eles tambm
so definidos, por assim dizer, sociologicamente.

3.4 A LEI, O CONFLITO E O REGIME

Voc, provavelmente, perceber quando ler estas passagens que no foi Karl Marx,
mas sim Aristteles, o primeiro a identificar na poltica a importncia do que poderamos chamar
de luta de classes. Cada regime , em muitos aspectos, uma competio entre as classes.
Mas ele difere de Marx, pois acredita que a forma fundamental da luta entre as classes no
apenas pelos recursos, no uma luta sobre quem controla, na linguagem de Marx, os
meios de produo, uma luta por posies de honra, de status, posies de governo. A luta
, resumindo, uma luta poltica e no uma luta econmica. Cada regime, Aristteles acredita,
ser de certa forma um local de contestao com reivindicaes de justia concorrentes, com
reivindicaes para o domnio poltico competindo pelo direito de governar. H, em outras
palavras, no apenas um partidarismo entre regimes, mas partidarismo no interior dos regimes,
onde classes de cidados, diferentes grupos de cidados so excitados por entendimentos
rivais e concorrentes sobre a justia e o bem.

A faco democrtica, ele nos diz, s porque acredita que todos so iguais em alguns
aspectos, cr que devem ser iguais em todos os aspectos. Os oligarcas, ele nos diz, s porque
acreditam que as pessoas no so iguais em alguns aspectos, creem que devem ser desiguais
em todos os aspectos. Para Aristteles, o sentido e a finalidade da cincia poltica mediar
as causas das faces, auxiliar na mediao das causas das faces que levam revoluo
e guerra civil. A arte e a cincia poltica de Aristteles so uma forma de mediao poltica,
de como trazer a paz a situaes de conflito. sempre surpreendente o fato de que muitas
F
pessoas pensam que Aristteles ignorou ou no teve nenhuma teoria do conflito poltico, quando, I
L
ao que parece, o conflito inerente prpria estrutura do seu entendimento de um regime. E, O
S
novamente, no apenas o conflito entre regimes rivais, mas conflitos embutidos na natureza O
do que poderamos chamar de poltica interna, classes diferentes em conflito com concepes F
I
diferentes de justia. Como pode o cientista poltico trazer a paz, trazer moderao a estas A

situaes profundamente assoladas pelo conflito? P


O
L

Aristteles prope alguns remdios para compensar a luta potencialmente blica entre T
I
as vrias faces. O mais importante desses remdios o Estado de Direito, a nomocracia. C
A
90 TPICO 3 UNIDADE 1

A lei garante, diz ele, a igualdade de tratamento de todos os cidados e impede o governo
arbitrrio nas mos de um, alguns ou muitos. A lei estabelece uma espcie de imparcialidade,
a lei deve governar preferentemente a qualquer cidado, e segundo o mesmo princpio, mesmo
sendo melhor que certos homens governem eles devem ser nomeados apenas guardies
das leis e subordinados a elas (ARISTTELES, 1985, p. 115, 1287a). Argumenta Aristteles,
quem recomenda o imprio da lei, diz ele no Livro III, captulo 11, parece recomendar o
imprio exclusivo da divindade e da razo, mas quem prefere que um homem governe, de
certo modo tambm quer pr uma fera no governo, pois as paixes, thumos novamente, so
como feras e transtornam os governantes, mesmo quando eles so os melhores. Portanto, a
lei a inteligncia sem paixes (p. 116, 1287b). A lei a melhor proteo que temos contra a
dominao de parcialidade e do desejo. Mas este no o fim da histria. De fato, apenas o
incio. Aristteles levanta uma questo muito importante, se o Estado de Direito deve referir-se
ao governo do melhor, o melhor indivduo.

Novamente, ele parece responder pergunta partindo de dois pontos de vista distintos,
dando a cada perspectiva seu mrito. Ele comea, entre as sees 1287b e 1288a (1985, p.
116-117), aparentemente defendendo a perspectiva de Plato do governo do melhor indivduo.
O melhor regime, diz ele, no baseado em lei escrita. A lei, na melhor das hipteses, uma
ferramenta desajeitada. Porque as leis s tratam de assuntos gerais e no podem lidar com
situaes particulares concretas. Alm disso, a lei parece atar as mos dos governantes e dos
legisladores que sempre respondem a circunstncias novas e imprevistas. Mas, ao mesmo
tempo, Aristteles defende a lei, afirmando que o juzo de um indivduo, no importa o quo
sbio seja, mais corruptvel, seja por paixo, interesse ou simplesmente a falibilidade da
razo humana, do que a lei. Ele observa que nenhum indivduo pode perceber todas as coisas.
Apenas um terceiro, neste caso a lei, capaz de julgar adequadamente. Mais uma vez, ele
parece oferecer boas razes para ambos os casos.

Aristteles, ento, passa a questionar se a lei pode ser alterada. A lei mutvel? Se sim,
como? E mais uma vez, ele apresenta argumentos diferentes. No Livro II, captulo 5, ele compara
lei a outras artes e s cincias e sugere pode-se pensar que seria melhor haver alteraes;
de fato, em outras cincias este procedimento se mostrou benfico a medicina, por exemplo,
progrediu graas a alteraes no sistema tradicional (1985, p. 57, 1268b). A antiguidade de uma
F
lei por si s no justificativa para a sua utilizao. Aristteles parece rejeitar, pode-se dizer, o
I
L
conservadorismo burkeano muito antes do tempo. Meramente a antiguidade ou a tradio no
O
S
justificao, mas, ao mesmo tempo, ele parece reconhecer que as mudanas na lei, mesmo
O
F
quando o resultado a melhoria, so perigosas. Ele escreve, habituar os homens a modificar
I facilmente as leis um mal; para o povo, o benefcio com a alterao no seria grande quanto
A
o mal decorrente do fato de ele acostumar-se a no confiar em seus governantes (1985, p.
P
O 59, 1269a). Em outras palavras, ele est dizendo: legalidade, como qualquer outra virtude,
L
um hbito, um hbito de comportamento, e o hbito de destruir, de desobedecer. At mesmo
T
I uma lei injusta vai tornar as pessoas completamente sem lei.
C
A
UNIDADE 1 TPICO 3 91

Essa nfase na lei uma restrio ao comportamento humano. Isso parece introduzir
um forte elemento de convencionalismo no pensamento de Aristteles. Esta a viso de que
a justia determinada pelas leis, pelos costumes, pelas tradies, ou seja, pelas convenes.
O nomos, no sentido mais amplo do termo, o que constitui a justia. Como j indicado, neste
parecer h tambm um certo grau de relativismo associado, desde que as convenes variam
de sociedade para sociedade. Os padres de justia sero dependentes do regime e isto
inteiramente coerente com partes da antropologia de Aristteles. Afinal, se somos animais
polticos por natureza, ento os padres de justia devem ser provenientes da poltica, um
direito que transcende a sociedade no pode ser um direito natural ao homem.

3.5 O PADRO ARISTOTLICO DE DIREITO


NATURAL OU DE JUSTIA NATURAL

A concepo aristotlica da nossa natureza poltica parece exigir padres de justia


que so naturais para ns. O Estado de Direito pressupe que h uma forma de justia ou
direito natural para ns. Mas qual o padro aristotlico de direito natural ou de justia natural?
Aristteles faz uma afirmao surpreendente, infelizmente uma afirmao em um livro que
no foi sugerida a leitura para este Caderno de Estudo. No livro tica a Nicmaco, Livro V,
captulo 7, ele diz que "com toda a evidncia percebe-se que espcie de coisas, entre as que so
capazes de ser de outro modo, por natureza e que espcie no o , mas por lei e conveno,
admitindo-se que ambas sejam igualmente mutveis (ARISTTELES, 1984, p. 131, 1134b).
Em outras palavras, o bem natural mutvel ou varivel, assim como o direito e a lei natural
e o direito e lei convencional so mutveis. E com isso ele quer dizer que o direito natural
revelado no em proposies gerais ou mximas universais, como, por exemplo, Immanuel Kant
argumentaria mais tarde, mas nas decises concretas de uma comunidade ou de seus lderes
sobre o que certo ou errado. O direito natural mutvel porque circunstncias diferentes
vo requisitar diferentes tipos de decises. Isso significa que para Aristteles no existem
padres, normas universalmente vlidas de justia ou de direito? Ser que a justia, tal como
o bom cidado, relativa ao regime? Isto no seria cair no campo ilimitado de maquiavelismo
que declara o certo e o errado serem inteiramente relativos circunstncia, dependentes do
contexto, isto o que Aristteles est dizendo? No, em absoluto.
F
I
L
Aristteles enfatiza o carter mutvel do direito natural, em parte, para preservar a O
liberdade de ao requerida pelos estadistas. Cada estadista deve enfrentar situaes novas e S
O
s vezes extremas que exigem inventividade e ao criativa. E nas situaes em que a prpria F
I
sobrevivncia da comunidade pode estar em jogo, podemos chamar de situaes emergenciais, A

os estadistas conscienciosos devem ser capazes de responder de forma apropriada. Em um grau P


O
considervel, os padres aristotlicos de direito natural residem nas decises especficas, nas L

decises concretas dos Estados mais hbeis. No podem ser determinados com antecedncia, T
I
mas devem ser permitidos surgir em resposta a situaes novas, diferentes e imprevisveis. O C
A
92 TPICO 3 UNIDADE 1

que certo naturalmente, o que certo por natureza, em tempos de paz, no ser o mesmo que
certo naturalmente, ou certo por natureza, em tempos de guerra. O que certo em situaes
normais no ser o mesmo em situaes de emergncia. O estadista no sentido aristotlico
aquele que procura voltar o mais rpido e eficiente possvel para a situao normal. Isso
o que distingue Aristteles de Maquiavel, e todos aqueles pensadores posteriores que tomam
o rumo de Maquiavel, pensadores como Hobbes, Carl Schmitt e Max Weber. Todos esses
pensadores se orientam a partir de uma situao extrema, de situaes de guerra civil, de um
colapso social, de crise nacional. O estadista aristotlico no ser demasiadamente afetado pela
necessidade ocasional de se afastar da norma. Entretanto, o objetivo do estadista aristotlico
ser a restaurao das condies do governo constitucional e do Estado de Direito, da forma
mais rpida e mais eficiente possvel.

4 ARISTTELES E A POLTICA: LIVRO VII

Vamos abordar nesta parte algumas contribuies do pensamento aristotlico para os


governos democrticos atuais. Isso provavelmente vai vir como uma surpresa para alguns de
vocs, mas Aristteles antecipou em grande parte as propostas das constituies dos governos
democrticos atuais, tal como aquela do Brasil.

4.1 POLITEIA: O REGIME QUE CONTROLA AS


FACES COM MAIOR SUCESSO

Para Aristteles e para todos os alunos de cincia poltica, a questo mais difcil de se
confrontar o problema da faco. Como controlar as faces. Como controlar os conflitos
entre faces. Esse o tema abordado especialmente nos Livros IV e V da Poltica, onde
Aristteles passa a descrever o termo politeia, o regime que ele acredita controlar com maior
sucesso as faces. Esta a caracterstica essencial deste regime, a politeia, que de fato
a palavra grega genrica para regime. A politeia o regime que representa, para Aristteles,
F
I uma mistura dos princpios da oligarquia e da democracia. Por isso, diz ele, evita o domnio
L
O de um ou de outro extremo.
S
O
F
I Atravs da combinao de elementos, dos poucos e dos muitos, a politeia caracterizada
A
pelo predomnio da classe mdia, o grupo do meio, a forma intermediria. A classe mdia, ele
P
O diz, capaz de conquistar a confiana de ambos os partidos extremos contrrios e por ser
L
mais numerosa evita a preponderncia destes, evitando assim problemas de luta de classes
T
I e o conflito entre faces. Somente ela imune ao facciosismo, escreve Aristteles, j que
C
A onde a classe mdia numerosa menos provvel a formao de faces e partidos (1985,
UNIDADE 1 TPICO 3 93

p. 145, 1296b). Ento, Aristteles, de certa forma, descobriu muito antes que o famoso artigo
de Hamilton, Madison e Jay, em O Federalista (2003), captulo 10 (Utilidade da Unio como
salvaguarda contra as faces e as insurreies), o remdio para o controle e conteno
das faces. No dcimo captulo, ou ensaio de nmero dez, da obra O Federalista, Madison
descreve um esquema para uma repblica estendida, ele argumenta, onde numerosas faces
ao competir entre si promoveriam um equilbrio, evitando assim o domnio de uma nica faco
que poderia conduzir ao tipo de tirania da maioria, a tirania da classe majoritria.

A proposta de uma mistura entre oligarquia e democracia de Aristteles parece, em


muitos aspectos, antecipar quase dois mil anos a convocao de Hamilton, Madison e Jay por
um governo onde os poderes devem ser separados e opor a ambio ambio e travar de
tal maneira os interesses dos homens (HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 318), em outras
palavras, os extremos tanto da tirania quanto da guerra civil. de fato surpreendente perceber
que Aristteles ponderava sobre questes centrais presentes na Constituio dos Estados
Unidos, por exemplo, cerca de dois mil anos antes da mesma ser escrita.

Aristteles escreve, no Livro II da Poltica (1985, p. 43, 1264a), que o mundo eterno
e a Terra experimenta certas destruies peridicas e cataclsmicas, nas quais as civilizaes
so reduzidas barbrie s para se recuperar e crescer novamente.

S!
DICA

Confira tambm, em A Poltica (1985), o Livro VII, captulo 10


na seco 1329b, onde Aristteles repete essa mesma viso.

Se essa teoria de mudana cataclsmica verdade, no podemos descartar a


possibilidade de que uma constituio como a brasileira ou como aquelas dos governos
democrticos atuais, existiu em algum momento no passado, como possvel ver no relato de
Aristteles. Mas a constituio mista de Aristteles difere daquelas dos governos democrticos
atuais em certos aspectos importantes. Aristteles entende a constituio mista como um
equilbrio das classes do um, dos poucos, e dos muitos. Ele no insiste tanto, como voc ver na F
I
sua leitura, sobre a separao efetiva das funes de governo, pondo-as em mos separadas. L
O
o suficiente para ele se cada classe partilhe em algum aspecto do poder de governo. Todavia, S
O
isso conduz a uma diferena maior ainda. F
I
A

Tendemos pensar na doutrina da separao dos poderes como necessria para a P


O
segurana e para a liberdade do indivduo. Geralmente pensamos na segurana e na liberdade L

individual como o propsito da separao de poderes. quando as funes polticas ficam T
I
concentradas nas mos dos poucos que corremos o risco de um governo arbitrrio e de pr em C
A
94 TPICO 3 UNIDADE 1

perigo a liberdade do indivduo. Todavia, para Aristteles, a liberdade do indivduo no a maior


prioridade, mas sim o funcionamento ou o bem-estar funcional da cidade. A liberdade individual
pode ser, na melhor das hipteses, um subproduto desejvel do regime misto aristotlico, mas
a liberdade individual no o seu definidor ou principal objetivo. Para quem estiver interessado
nesta diferena, sugiro que contraste ou compare a descrio de Aristteles do governo misto
ao Livro XI do Esprito das Leis (1996) de Montesquieu, ou a alguns dos ensaios, captulos,
centrais da obra O Federalista, para ver a maneira pela qual Aristteles revisou, em alguns
aspectos, a sabedoria de Madison. Pensamos que compar-los, de alguma forma, seria valioso
para enriquecer o entendimento de suas propostas.

4.2 A IMPORTNCIA DA PROPRIEDADE E DO


COMRCIO PARA A REPBLICA PRSPERA

Aristteles no s entendia a importncia da doutrina da separao dos poderes e do


equilbrio e contrapeso das faces como uma forma de controlar o conflito e a luta, mas ele
tambm entendia a importncia da propriedade, da propriedade privada e do comrcio para
uma repblica prspera. Ns de fato no vimos muito sobre isso, mas no Livro II ele critica
por um tempo considervel a Repblica de Plato pela unidade excessiva que exige de seus
cidados. Mas Aristteles afirma que a cidade no naturalmente uma s. Isto quer dizer,
uma certa diversidade necessria para perfazer uma cidade. Por exemplo, ele diz: claro,
antes de mais nada, que se a imposio da unificao for alm de certo ponto, j no haver
uma cidade. Continua Aristteles: pois a cidade por natureza uma pluralidade; se sua
unificao avanar demasiadamente, a cidade ser reduzida a uma famlia, e a famlia a uma
individualidade, pois poderamos dizer que a famlia mais una que a cidade, e o indivduo
mais uno que a famlia (1985, p. 36, 1261b). Alm disso, Scrates exige a propriedade comum
dos bens, pelo menos entre a classe auxiliar. Aristteles, em resposta a esta posio socrtica,
afirma que a propriedade comum a maior nmero de donos recebe ateno menor; os homens
cuidam mais de seus bens exclusivos, e menos dos que eles possuem em comum (1985,
p. 37). Ou seja, onde toda a propriedade mantida em comum, mais propensa a sofrer de
negligncia comum. Ele entende claramente as virtudes da propriedade privada e do comrcio.

F
Vemos, portanto, no Livro II, Aristteles oferecendo sua crtica s reivindicaes para o tipo de
I
L
unificao excessiva da centralizao, da concentrao da propriedade.
O
S
O No entanto, apesar de sua conscincia sobre a importncia do comrcio e a importncia
F
I da propriedade, o objetivo da cidade, ele nos diz, no a riqueza, no a produo de riqueza.
A
Neste aspecto, seria til fazer um contraste entre Aristteles e algum como Adam Smith, o
P
O autor de A Riqueza das Naes. Se a riqueza fosse o objetivo da poltica, Aristteles afirma
L
(1985, p. 70, 1273b), os cartagineses ou fencios (no mundo antigo os fencios eram as pessoas
T
I comerciais par excellence) seriam o melhor regime. Mas ele nega isso. A parceria poltica deve
C
A ser considerada por causa de atos nobres bem executados. A riqueza e propriedade, ele nos
UNIDADE 1 TPICO 3 95

diz, existem para o benefcio da virtude e no a virtude para o benefcio daquelas.

Assim como Aristteles teria sido crtico da tendncia das democracias atuais, incluindo
a brasileira, de considerar os negcios e a economia o objetivo supremo do governo, ele
tambm criticou de antemo a tendncia brasileira, por exemplo, de se organizar em partidos
polticos que exacerbam o conflito poltico ao invs de control-lo. Estes partidos polticos usam
sua influncia para inflamar a populao, usando seu poder para agitar paixes perigosas
que tendem a tornar os polticos brasileiros, por exemplo, mais prximos de demagogos que
de estadistas. Ele tambm consideraria peculiar a prtica brasileira de realizar as eleies,
mais do que a prtica grega de nomeao de cargos polticos por sorteio. Ele consideraria as
eleies como um mero agravante tendncia para a demagogia, em que cada pessoa que
estivesse procurando um cargo pblico manipularia descaradamente a multido, prometendo
todos os tipos de coisas sabendo que no iria e no poderia cumprir. Essa descrio te faz
lembrar algum? Alm disso, enquanto, por exemplo, o regime brasileiro em princpio aberto
a todos e orgulha-se na crena da igualdade, sem dvida, Aristteles observaria que os seus
postos, na sua maioria, esto abertos apenas para os ricos e para os lderes que podem adquirir
o apoio dos ricos, tornando-se mais uma oligarquia sob o disfarce de uma repblica. Assim,
Aristteles tinha a sua prpria crtica s constituies democrticas contemporneas, assim
como s culturas polticas das mesmas.

4.3 A REPBLICA ARISTOCRTICA: UM


MODELO PARA O MELHOR REGIME

H, obviamente, muito no regime poltico brasileiro que Aristteles teria encontrado


admirvel, mesmo aquele no se conformando com a sua ideia do melhor regime, que o
tema dos dois ltimos livros da Poltica, Livro VII e VIII. Aristteles faz um esboo aqui sobre
a estrutura institucional do melhor regime, reconhecendo que o melhor regime aquele em
que os melhores homens governam. Ou seja, uma espcie de aristocracia ou uma repblica
aristocrtica. Vamos falar um pouco sobre este regime agora, o que Aristteles entende ser
os requisitos ou as necessidades desta repblica aristocrtica.

F
Nessas partes da Poltica (1985, p. 253-257, 1332b-1334a), Aristteles oferece um I
L
desafio srio s tradies e aos padres de educao poltica grega existente. Cada detalhe O
de grande alcance tal como a Repblica de Plato. Em primeiro lugar, ele nos diz que o S
O
objetivo do melhor regime, a finalidade da repblica de Aristteles dirigida no guerra, mas F
I
na verdade paz. O cidado do melhor regime, diz ele, deve ser capaz de sustentar a guerra se A

o dever exigir, mas apenas pelo bem da paz e do cio ou lazer. Uma crtica no s a Esparta, P
O
mas tambm a Atenas e suas ambies imperialistas. Em segundo lugar, Aristteles entende o L

propsito do cio, quando ele diz que a finalidade do regime a paz e a finalidade de paz o T
I
cio. Ele no entende por cio simplesmente o relaxar, desfrutar de seus momentos privados, C
A
96 TPICO 3 UNIDADE 1

desfrutar de seu tempo de frias. cio no significa meramente descanso ou inatividade, mas
o cio necessrio para a educao ou o que ele s vezes chama pelo termo filosofia.

Por filosofia, ele parece sugerir no tanto a capacidade de pensamento abstrato ou


especulativo, mas sim uma espcie de educao liberal que ele considera ser o domnio do
que ele chama de megalopsychos, literalmente, a pessoa ou o homem de grandeza na alma,
costumeiramente traduzido por magnnimo" (ARISTTELES, 1985, p. 269-272, 1337b-1338b).
Megalo, sendo o termo para grande e psychos relacionado com a nossa psique ou alma
(PANTELIA, 2009). A pessoa de grandeza na alma, o homem de grandeza na alma , para
Aristteles, o destinatrio ideal dessa forma de educao, de educao liberal e tambm o
pblico de leitores ideal ou perfeito para o prprio livro A Poltica. Podemos comear a ver
claramente como o melhor regime de Aristteles difere da demanda intransigente de Plato por
um governo de filsofos-reis. Os megalopsychos, o magnnimo, no um filsofo no sentido
estrito do termo. Sociologicamente, Aristteles deixa claro que o megalopsychos, ao contrrio
do filsofo, uma pessoa com alguma riqueza herdada, principalmente uma propriedade de
terra, mas cujo modo de vida ser urbano. Ele ser um membro do que poderamos chamar
de patriciado urbano.

Na tica a Nicmaco (1984), Aristteles nos fornece uma lista vvida das caractersticas
psicolgicas e at fsicas que tal pessoa deve possuir. No Livro 4, captulo 3 (p. 107-110,
1123b-1125a), ele diz que o magnnimo apresenta uma espcie de distanciamento elevado
das coisas mais ou menos triviais que pesam para a maioria de ns e nos conduzem para
baixo. Ele lento (prudente) para agir, a menos que algo de grande importncia estiver em
jogo. Ele retribui o favor com interesse, de modo a no estar sob quaisquer obrigaes para
com os outros. O magnnimo, continua dizendo Aristteles, fala o que pensa sem medo, porque
dissimular seria s para covardes. Ele pode eventualmente ferir os outros, mas isso no feito
por crueldade deliberada. Alm disso, Aristteles nos diz que essa pessoa ir possuir coisas
belas, todavia improfcuas, sugerindo a posse no s de riqueza, mas de uma espcie de
senso esttico cultivado. Como se isso no bastasse, Aristteles nos diz que os megalopsychos
caminham lentamente, porque a pressa indigna, a sua voz profunda e a entonao uniforme.
Mais importante ainda, pode-se dizer, o que distingue o magnnimo, como uma classe, dos
filsofos. Isto , um certo tipo de conhecimento ou inteligncia prtica. O magnnimo pode no
F
ter a inteligncia especulativa de um Scrates, mas ele vai ter a qualidade da racionalidade
I
L
prtica, de julgamento prtico necessrio para a administrao dos negcios.
O
S
O
F
Aristteles chama esse tipo de conhecimento, esse tipo de sabedoria prtica, pelo termo
I phronesis, no Livro VI, captulo 12, da tica a Nicmaco (1984, p. 151-152, 1143b-1144a).
A
A pessoa que o possui o phronimos, uma pessoa de sabedoria prtica (PANTELIA, 2009).
P
O Esse termo que capta algo do nosso significado de bom senso, juzo prtico, a capacidade
L
de julgar, que no a mesma coisa que a inteligncia especulativa ou filosfica. O phronimos
T
I a pessoa que capaz de compreender o apropriado, o conveniente ou o necessrio, de
C
A discernir a coisa apropriada a se fazer perante os arranjos complexos que compem qualquer
UNIDADE 1 TPICO 3 97

situao. Acima de tudo, uma pessoa que incorpora tal qualidade especial de discernimento,
insight e discriminao se distingue de pessoas com caractersticas de uma mente mais terica
ou especulativa.

Como adquirida essa qualidade de phronesis, de juzo, de sabedoria prtica, de bom


senso? Aristteles nos diz que esse um tipo de conhecimento mais adequado para a poltica
(ARISTTELES, 1985, p. 85-88, 1277b-1278b). No nem o conhecimento terico que visa
simplesmente as verdades abstratas, nem o conhecimento produtivo, o que ele chama de
techne, o conhecimento produtivo utilizado na fabricao de artefatos teis.

S!
DICA

Confira a obra tica a Nicmaco, de Aristteles (1984), no


Livro VI, nas sees 1140a-1141b, para aprofundar sobre esta
distino do conhecimento.

O que , ento? um conhecimento de como agir quando o objetivo da ao o agir


bem. Voc pode dizer que menos um corpo de proposies verdadeiras do que um senso
sagaz de know-how, de saber como, saber como fazer, ou uma perspicaz habilidade poltica.
Esse tipo de conhecimento implica julgamento e deliberao, a habilidade deliberativa ou a
arte deliberativa. Ns s deliberamos sobre as coisas, diz Aristteles, para as quais existe
alguma escolha. Ns deliberamos com o objetivo de preservar ou de mudar, de fazer algo
melhor ou de preserv-lo de tornar-se pior. Esse tipo de conhecimento ser a arte ou o ofcio
do estadista, preocupado acima de tudo com o que fazer em uma situao especfica. a
habilidade possuda pelos maiores estadistas, os pais das constituies, que criam o quadro
permanente permitindo que figuras posteriores e inferiores lidem com a mudana. Este o tipo
de habilidade e sabedoria poltica, possuda por fundadores de cidades, fundadores legislativos
de regimes.

A Poltica de Aristteles um livro sobre o tipo de conhecimento requerido para esse


tipo de habilidade. Esta qualidade de juzo prtico, phronesis, sabedoria prtica, foi referida F
I
em um belo ensaio, sem qualquer referncia explcita a Aristteles, pelo filsofo poltico ingls L
O
Isaiah Berlin. Ele escreveu um maravilhoso ensaio chamado Political Judgment [Discernimento S
O
Poltico]. F
I
A

P
O
L

T
I
C
A
98 TPICO 3 UNIDADE 1

S!
DICA

Este ensaio foi traduzido para o portugus por Renato Aguiar na


obra: BERLIN, Isaiah. O Sentido de realidade: estudos das ideias
e de sua histria. Civilizao Brasileira, 1999. Entretanto a obra
se encontra esgotada.
Tambm possvel ler o ensaio publicado em espanhol: BERLIN,
Isaiah. El Juicio Poltico.Rev. econ. inst.,Bogot, v. 3,n.
5,dez. 2001. Disponvel em: <http://www.scielo.org.co/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0124-59962001000200005&lng=
pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 jan. 2015.

Nele, ele pergunta: "O que ter um bom juzo em poltica? O que ser sbio ou
talentoso em poltica, ser um gnio poltico, ou ao menos ser politicamente competente, saber
como conseguir que se faam as coisas? (BERLIN, 1999, p. 40, traduo nossa). Ou seja, ele
pergunta qual a qualidade intelectual que estadistas bem-sucedidos possuem que distingue o
seu conhecimento de todas as outras formas de racionalidades e conhecimentos? Ele escreve
como se segue:

A qualidade que eu estou tentando descrever que a compreenso espe-


cial da vida pblica (ou neste contexto a vida privada) que estadistas bem-
-sucedidos tm, se eles so perversos ou virtuosos. Aquilo que Bismark teve
(certamente um exemplo conspcuo, no ltimo sculo, de um poltico dotado
com discernimento poltico considervel), ou Talleyrand ou Franklin Roosevelt,
ou, neste contexto, homens como Cavour ou Disraeli, Gladstone ou Atatrk em
comum com os grandes escritores de romances psicolgicos, e algo que est
conspicuosamente carente em homens de um gnio mais puramente terico,
como Newton ou Einstein ou Bertrand Russell ou mesmo Freud. (1999, p. 47,
traduo nossa)

Portanto, tal como Aristteles, Berlin distingue uma espcie de habilidade prtica
possuda pelas mentes polticas mais grandiosas, assim como os escritores de romances
psicolgicos, como sendo bem diferente daquela que possuem os maiores filsofos e cientistas.
"O que devemos chamar este tipo de capacidade?" Berlin continua. Ele escreve, mais uma
vez, como se segue:

F A sabedoria prtica, a razo prtica, talvez, uma sensao do que vai funcio-
I nar e o que no vai. uma capacidade, em primeiro lugar, de sntese em vez
L
O de anlise, para conhecimento, no sentido em que treinadores conhecem os
S seus animais, ou os pais os seus filhos, ou condutores as suas orquestras,
O em oposio quele em que os qumicos sabem o contedo de seus tubos de
F
I ensaio, ou matemticos conhecem as regras que seus smbolos obedecem.
A Aqueles carecem essa qualidade [de sabedoria prtica], no importa quaisquer
P
outras qualidades que eles possam possuir, no importa o quo inteligente,
O instrudo, imaginativo, bom, nobre, atraente, dotado de outras formas que
L sejam, sero corretamente considerados como politicamente ineptos. (1999,

T
p. 47, traduo nossa)
I
C
A Berlin, portanto, nos diz algo sobre o carter desse conhecimento poltico que Aristteles
UNIDADE 1 TPICO 3 99

descreve como phronesis. Mais uma vez, como que esse conhecimento adquirido?
Nascemos com ele? Algumas pessoas simplesmente o tm ou um produto da experincia?
Aristteles no explica, mas penso que a resposta claramente um pouco de ambas. uma
qualidade, como argumenta Berlin, possuda por alguns dos grandes escritores de romances
psicolgicos. Machado de Assis, Tolstoi, Dostoievski, Jane Austen, Henry James, so exemplos
perfeitos se voc quiser saber como um romancista emprega esta grande habilidade de juzo,
de discriminao e razo prtica.

Tambm uma virtude dos grandes estadistas. Berlin menciona, como exemplo,
Bismark, Talleyrand, Franklin Roosevelt, entre outros. Poderamos acrescentar os nomes de
Pricles, Winston Churchill e Abraham Lincoln. Por que tambm no o nome de Juscelino
Kubitschek? Leia as obras destes estadistas. Estude suas histrias. Elas fornecem uma
educao vital na arte de governar, em como negociar assuntos polticos, precisamente da
maneira que Aristteles quer que faamos.

4.4 O QUE A CINCIA POLTICA DE


ARISTTELES?

Isso nos leva questo mais abrangente que posta atravs da obra de Aristteles como
um todo. Qual a cincia poltica de Aristteles? O que ele est tentando fazer? Ou quem sabe,
antes de perguntar isso, ser que Aristteles tem uma cincia poltica, uma cincia da poltica?
Se assim for, do que ela trata? Para comear a pensar sobre isso da maneira certa, exigir
que nos afastemos, por um momento, do texto de Aristteles e faamos algumas perguntas
fundamentais sobre o mesmo. O que Aristteles quis dizer com a poltica? Qual o objetivo ou
a finalidade do estudo da poltica e o que distintivo sobre a abordagem de Aristteles para
o estudo de coisas polticas?

Hoje, o termo "cincia poltica" representa uma entre uma srie de diferentes disciplinas
que chamamos coletivamente de cincias sociais. Estas no incluem somente a cincia poltica,
mas a economia, a sociologia, a antropologia, a psicologia, entre outras. Cada uma dessas
disciplinas procura dar-nos um conjunto distintivo de aes e interaes humanas. A economia
F
lida com as operaes que envolvem a produo e distribuio da riqueza, a antropologia com I
o domnio da cultura, e assim por diante. L
O
S
O
O que que a cincia poltica estuda e qual sua relao com as outras disciplinas? O F
I
ncleo da cincia poltica, pelo menos de acordo com Aristteles, o que a distingue de todos A

os outros estudos o conceito de regime, conceito de politea. O regime, para ele, no uma P
O
ramificao da atividade humana entre outras, o princpio fundamental ou princpio de ordem L

que faz com que todas as outras sejam at mesmo possveis. por isso que Aristteles no T
I
considera o estudo da poltica como uma cincia social entre outras. , antes, o que ele chama C
A
100 TPICO 3 UNIDADE 1

de cincia mestre que determina a posio e a localizao de todas as outras dentro da


comunidade poltica. O seu estudo do regime, ou seja, dos princpios constitucionais subjacentes
que governam cada ordem, o que distingue Aristteles dos outros cientistas sociais. Quando
voc iniciou esta disciplina, voc pode ter pensado que estava apenas fazendo uma disciplina,
entre tantas, do curso de Filosofia. Voc provavelmente no sabia que estava por estudar o
que Aristteles chama de "a cincia mestre", a cincia das cincias.

essa prioridade que Aristteles atribui ao regime, que distingue o seu tipo de cincia
poltica da que temos hoje. Hoje, pode-se dizer que os cientistas polticos e os cientistas sociais
so mais modestos em prescrever prioridade a qualquer ramo especfico do conhecimento. Com
a possvel exceo dos economistas, que muitas vezes acreditam que os motivos econmicos
fornecem a chave para todos os possveis comportamentos humanos. Quem sabe, talvez eles
estejam certos, mas Aristteles iria neg-lo. Para Aristteles, a poltica tem uma prioridade
acima de todas as outras, porque, como ele alegou, o homem o animal poltico. Ser um
animal poltico significa, primeiro, possuir a fala ou a razo que nos permite participar de uma
comunidade ou de um modo de vida de acordo com padres compartilhados de justia e de
injustia. A cincia poltica de Aristteles pressupe, em outras palavras, certa concepo de
seres humanos como animais lingusticos que so capazes no s de viver juntos, pois assim
tambm o fazem uma srie de outras espcies, mas de partilhar a organizao do governo.
o nosso logos, nossa razo que torna uma comunidade possvel e tambm expressa ou cria
uma certa amplitude ou indeterminao em como o nosso comportamento nos distingue das
outras espcies. precisamente esta amplitude que faz das comunidades polticas no apenas
lugares de acordos sobre padres compartilhados, mas tambm, lugares de contestao
moral sobre justia e injustia. A poltica sobre o conflito, e conflitos sobre a justia. Ser um
animal poltico, para ele, envolver-se ou estar engajado nesta conversao contnua e debate
sobre a prpria natureza da justia. Recusar-se a participar dessa conversao, declarar-se
um outsider a ela, argumenta Aristteles, estar abaixo da humanidade ou acima dela. Ser
humano ser parte daquela conversao.

A centralidade que Aristteles atribui poltica nos obriga a considerar outra questo,
ou seja, qual o propsito deste estudo? primeira vista, isso parece ser extremamente bvio
- adquirir mais conhecimento. Mais conhecimento do que e para qu? A maioria das pessoas
F
hoje em dia atrada ao estudo da poltica por estarem interessadas em coisas que leram nos
I
L
jornais ou assistiram na TV. Coisas como eleies, lderes e partidos polticos, diferentes causas
O
S
para as quais eles possam ter interesses, como guerras e revolues. Comumente para
O
F
aprender mais sobre essas coisas que chegamos ao estudo da poltica. Isso to verdadeiro
I hoje como era no tempo de Aristteles.
A

P
O Aristteles certamente reconheceu que muito importante o acmulo de conhecimento
L
poltico, a organizao dos fatos. Os Livros III, IV e V da Poltica mostram o lado emprico da
T
I poltica de Aristteles. Todavia, o que Aristteles pretende fazer com isso ou o que deseja que
C
A faamos com isso? Poltica, cincia poltica, ele nos diz na tica a Nicmaco (1984), no
UNIDADE 1 TPICO 3 101

um assunto terico na matria de fsica, metafsica ou matemtica. O seu objetivo no o


conhecimento pelo seu prprio benefcio. Mesmo sendo importante o estudo da poltica, este
no existe pelo benefcio do prprio conhecimento, mas para a ao, para a prxis (o termo
utilizado para ao). A cincia poltica existe para o benefcio do bem humano e a sentena
de abertura da Poltica confirma isso. Ele diz, vemos que toda cidade uma espcie de
comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as aes de
todos os homens so praticadas com vistas ao que lhes parece um bem (ARISTTELES,
1985, p. 13, 1252a). Toda ao poltica visa, portanto, preservao ou mudana. Quando
agimos, procuramos preservar ou mudar. Toda ao poltica, pode-se dizer, guiada pela ideia
de melhor ou de pior. Ela implica um padro do que melhor e do que pior, e isso implica
uma ideia do bem pelo qual julgamos.

4.5 QUEM UM ESTADISTA?

Aristteles acredita, portanto, que o estudo da poltica no por uma questo de


conhecimento pelo conhecimento, mas o conhecimento que serve ao regime. Ajuda a torn-
lo melhor ou impede que se torne pior. Seu objetivo no apenas saber mais, mas saber
como, e isto requer no s perspiccia terica, mas o juzo, discernimento poltico e o tipo de
sabedoria prtica que Aristteles discute longamente. Esta qualidade prtica de juzo e reflexo
, de alguma forma, mpar arte poltica ou habilidade poltica. a capacidade no s para
manter o navio do Estado tona, mas permite aos maiores estadistas conduzirem este navio
com segurana at o porto. o tipo de conhecimento necessrio para os estadistas.

A cincia poltica de Aristteles , em ltima anlise, a cincia suprema da arte de


governar. A cincia poltica atual considera que muito subjetivo, carregado de valores, falar
sobre a arte de governar. Todavia este termo uma palavra que carrega conotaes distintas
e fortes. Quem um estadista? Quais so os atributos do estadista? J falamos um pouco sobre
os atributos que Aristteles considera essenciais para os megalopsychos, o maior de todos os
estadistas. Esses atributos so muito diferentes das qualidades que Maquiavel, e posteriormente
Hobbes ou Locke acreditam que so necessrias para os grandes fundadores ou estadistas.
F
Veremos estes autores mais adiante neste Caderno de Estudos. Plato e Aristteles oferecem I
L
suas prprias vises, o filsofo-rei, o magnnimo ou megalopsychos. O
S
O
F
De qualquer modo, os estadistas, sem sombras de dvidas, so os fundadores de I
A
regimes, de leis e de instituies. Eles fornecem o quadro constitucional no interior do qual
ns, personagens mais recentes, podemos operar. P
O
L

T
I
C
A
102 TPICO 3 UNIDADE 1

4.6 O MTODO DE CINCIA POLTICA DE


ARISTTELES

Se a cincia poltica de Aristteles uma educao para a arte de governar, quais so os


seus mtodos? Como que vamos educar um estadista? Como que vamos educar estadistas
potenciais? Esta uma pergunta feita a toda cincia madura. a posse de um mtodo que
distingue uma cincia madura de meramente um amontoado de fatos, boatos, suposies
inspiradas, ou uma coleo aleatria de ideias e observaes. Sem um mtodo distintivo para
a obteno e organizao do conhecimento todos ns estamos apenas tateando no escuro.

At certo ponto Aristteles se recusa a entrar no jogo do metodlogo. Em uma passagem


bem conhecida da tica a Nicmaco, ele diz que a nossa discusso ser adequada se tiver
tanta clareza quanto comporta o assunto, pois no deve exigir a preciso em todos os raciocnios
por igual (1984, p. 50, 1094b). Ele parece estar dizendo que errado exigir pureza metodolgica
em um assunto como poltica, onde h sempre uma grande variedade e imprevisibilidade.
o que distingue uma pessoa de educao liberal, em no buscar a preciso em todas as
coisas por igual, mas, em cada classe de coisas, apenas a preciso que o assunto comportar
e que for apropriada investigao (1984, p. 56, 1098a). Mas essa formulao parece, em
muitos aspectos, uma petio de princpio ou raciocnio circular. Quanto de preciso o assunto
permite? Como sabemos? Haver sempre, ele sugere, algo ad hoc sobre os mtodos utilizados
no estudo da poltica. Vamos ter que deixar o mtodo se encaixar, se adaptar ao assunto,
em vez de exigir o assunto se encaixar a um tipo de mtodo a priori. Insistir em uma pureza
metodolgica, ele indica, seria impor uma falsa sensao de unidade, uma falsa sensao
de certeza ou incondicionalidade ao estudo da poltica, que varivel, contingente e sempre
sujeito ao fluxo e mudana.

Mesmo que Aristteles possa negar que exista um nico mtodo adequado para o
estudo da poltica, ele prope um conjunto de questes comuns que os cientistas polticos tm
de enfrentar. Ele lana estas perguntas no incio do quarto livro da Poltica (1985, p. 121-122,
1288b-1289a). Ele enumera quatro de tais questes. Primeiro, o cientista poltico, o estadista,
diz ele, deve ter uma compreenso do melhor regime em face de determinadas circunstncias
F favorveis. Em segundo lugar, ele nos diz, o cientista poltico deve considerar o tipo de regime
I
L que ser o melhor em circunstncias menos ideais. Em terceiro lugar, o cientista poltico deve
O
S ter algum conhecimento de como tornar qualquer regime, no importa o quo imperfeito que
O
F seja, mais estvel e coerente. Finalmente, o cientista poltico deve saber algo sobre as tcnicas
I
A de reforma e persuaso, a rea da retrica poltica pela qual regimes existentes podem ser
P levados para mais perto do melhor. Juntas, essas quatro questes destinam-se a orientar,
O
L guiar e dar forma ao inqurito. Elas no se destinam a produzir resultados infalveis, mas para

T orientar e informar os estadistas e os cidados nos negcios de tomada de deciso.


I
C
A
UNIDADE 1 TPICO 3 103

Tendo em conta que a cincia poltica uma cincia prtica, uma cincia do juzo,
uma cincia que visa orientar a ao em circunstncias e situaes especficas, importante,
Aristteles finalmente sugere, que a linguagem da cincia poltica expresse o senso comum
ou a linguagem habitual dos atores polticos. No h praticamente qualquer jargo na Poltica
de Aristteles. A filosofia ou cincia poltica de Aristteles fica sempre dentro da rbita de fala
comum. Essa linguagem no tem a pretenso de ser cientificamente purgada de ambiguidades,
mas sim adota nveis de prova adequados para as pessoas em debates, assembleias, nos
tribunais e afins. A linguagem da cincia poltica aristotlica a linguagem do homem, o animal
poltico. Voc nunca vai ouvi-lo falando em termos de variveis dependentes ou independentes.
Voc nunca vai ouvi-lo usando jarges tcnicos, artificialmente importados cincia da poltica
ou ao estudo da poltica.

O que mais distingue Aristteles que sua linguagem destinada enfaticamente aos
cidados e aos estadistas, no a outros cientistas polticos ou filsofos. Ela tem uma orientao
pblica, dirigida e motivada publicamente. Est preocupada com o bem comum, em contraste
com a cincia poltica de hoje. Nos dias atuais, ao que parece, os cientistas polticos esto mais
preocupados com o avano das verdades abstratas da cincia e reivindicaes sobre a criao
de uma cincia metodologicamente rigorosa e pura da poltica, do que com o regime, no qual
Aristteles deposita a sua prpria preocupao. A cincia poltica moderna, em muitos aspectos,
pretende estar acima ou alm do regime, alegando ser mais objetiva, mais desinteressada,
como se estivesse observando os negcios humanos a partir de um planeta distante. Aristteles
toma sua posio de dentro da poltica e do regime do qual ele faz parte. Claro, todos ns
sabemos que os cientistas polticos contemporneos no so neutros, frequentemente inserem
em discusses suas opinies e juzos de valor. Estes valores so considerados por eles como
puramente subjetivos, e que o seu prprio juzo no poderia ser propriamente uma parte da
cincia poltica.

Todos ns sabemos que na sua maioria os cientistas polticos contemporneos tendem a


ser liberais. Portanto, seus valores so valores liberais. Isso levanta uma questo: Se a relao
entre cincia poltica contempornea e liberalismo meramente acidental ou se h alguma
conexo necessria e intrnseca entre eles. Pode ser realmente bom ponderar sobre qual
cincia poltica realmente mais cientfica: a de Aristteles, que explcita e necessariamente
avaliativa e que oferece aconselhamento e exortao para os estadistas e para os cidados
F
sobre como cuidar de seu regime; ou a cincia poltica contempornea, que afirma ser neutra I
L
e apartidria, mas contrabandeia seus valores e preferncias sempre pela porta dos fundos. O
S
O
F
I
A

P
O
L

T
I
C
A
104 TPICO 3 UNIDADE 1

RESUMO DO TPICO 3

Neste tpico voc viu que:

Aristteles considerado o filsofo por excelncia, investigou e sistematizou as mais variadas


reas do conhecimento, especialmente a poltica, e sua autoridade permaneceu quase que
inquestionada durante sculos.
O homem um animal poltico por natureza, pois possumos o logos e somos capazes
de distinguir categorias morais importantes a partir das quais vivemos, discernindo-as e
constituindo assim a famlia e a polis, a cidade, que tambm natural.
Aristteles apresenta tese a favor e contra a escravido natural, e junto com ela uma proposta
de educao elitizada, de governo dos poucos.
Aristteles distingue substncia/matria e forma do regime. Substncia se refere ao corpo
de cidados, unidos por laos de amizade cvica, philia cvica, semelhante amizade entre
irmos. Com rivalidade, competio, tentativas para chamar ateno e aprovao do pai.
Cada regime poltico uma resposta pergunta sobre quem deve governar, e, portanto,
como o regime distribui poderes e cargos entre seu corpo de cidados. o corpo governante
que define a natureza do regime.
A tipologia de regime pode ser dividida quantitativa e qualitativamente. Entre um, poucos e
muitos, em regimes bem organizados (monarquia, aristocracia e Politeia, respectivamente) um,
poucos e muitos, em regimes corruptos (tirania, oligarquia e democracia, respectivamente).
Aristteles defende e critica todas as seis formas de governo, fazendo uma anlise
discriminada para favorecer quem estiver no governo ou para melhorar ou para preservar-se
e evitar a derrocada.
H no apenas um partidarismo entre regimes, mas partidarismo no interior dos regimes,
onde classes de cidados, diferentes grupos de cidados so excitados por entendimentos
rivais e concorrentes sobre a justia e o bem.
Aristteles prope alguns remdios para compensar a luta potencialmente blica entre as
vrias faces. O mais importante desses remdios o Estado de Direito, a nomocracia.
F
I A lei garante, diz ele, a igualdade de tratamento de todos os cidados e impede o governo
L
O arbitrrio nas mos de um, alguns, ou muitos.
S
O Cada estadista deve enfrentar situaes novas e s vezes extremas que exigem inventividade
F
I e ao criativa. E nas situaes em que a prpria sobrevivncia da comunidade pode estar
A
em jogo, podemos chamar de situaes emergenciais, os estadistas conscienciosos devem
P
O ser capazes de responder de forma apropriada.
L
O que certo naturalmente, o que certo por natureza, em tempos de paz, no ser o
T
I mesmo que certo naturalmente, ou certo por natureza, em tempos de guerra. O que
C
A certo em situaes normais no ser o mesmo em situaes de emergncia. O estadista
UNIDADE 1 TPICO 3 105

no sentido aristotlico aquele que procura voltar o mais rpido e eficiente possvel para a
situao normal.
Atravs da combinao de elementos, dos poucos e dos muitos, a politeia caracterizada
pelo predomnio da classe mdia, o grupo do meio, a forma intermediria. A classe mdia,
ele diz, capaz de conquistar a confiana de ambos os partidos extremos contrrios e, por
ser mais numerosa, evita a preponderncia destes, evitando assim problemas de luta de
classes e o conflito entre faces.
Aristteles no s entendia a importncia da doutrina da separao dos poderes e do
equilbrio e contrapeso das faces como uma forma de controlar o conflito e a luta, mas
ele tambm entendia a importncia da propriedade, da propriedade privada e do comrcio
para uma repblica prspera.
Por filosofia ele parece sugerir no tanto a capacidade de pensamento abstrato ou
especulativo, mas sim uma espcie de educao liberal que ele considera ser o domnio
do que ele chama de megalopsychos, literalmente, a pessoa ou o homem de grandeza na
alma, costumeiramente traduzido por magnnimo.
A phronesis um conhecimento de como agir quando o objetivo da ao o agir bem. Voc
pode dizer que menos um corpo de proposies verdadeiras do que um senso sagaz de
know-how, de saber como, saber como fazer, ou uma perspicaz habilidade poltica. Esse
tipo de conhecimento ser a arte ou o ofcio do estadista, preocupado acima de tudo com o
que fazer em uma situao especfica.
O ncleo da cincia poltica, pelo menos de acordo com Aristteles, o que a distingue de
todos os outros estudos, o conceito de regime, conceito de politeia. O seu estudo do
regime, ou seja, dos princpios constitucionais subjacentes que governam cada ordem, o
que distingue Aristteles dos outros cientistas sociais.
Toda ao poltica visa, portanto, preservao ou mudana. Quando agimos, procuramos
preservar ou mudar. Toda ao poltica, pode-se dizer, guiada pela ideia de melhor ou de
pior. Ela implica um padro do que melhor e do que pior e isso implica uma ideia do bem
pelo qual julgamos.
Primeiro, o cientista poltico, o estadista, diz ele, deve ter uma compreenso do melhor regime
em face de determinadas circunstncias favorveis. Em segundo lugar, ele nos diz, o cientista
poltico deve considerar o tipo de regime que ser o melhor em circunstncias menos ideais.
Em terceiro lugar, o cientista poltico deve ter algum conhecimento de como tornar qualquer
regime, no importa o quo imperfeito seja, mais estvel e coerente. Finalmente, o cientista
F
poltico deve saber algo sobre as tcnicas de reforma e persuaso, a rea da retrica poltica I
L
pela qual regimes existentes podem ser levados para mais perto do melhor. O
S
O
F
I
A

P
O
L

T
I
C
A
106 TPICO 3 UNIDADE 1


IDADE
ATIV
AUTO

1 Explique o que Aristteles quer dizer ao declarar que: o homem naturalmente o


animal poltico; a cidade parte da natureza; e a escravido natural.

2 O que um regime poltico para Aristteles? Quais so as suas estruturas e instituies?

3 Comente as crticas e recomendaes de Aristteles ao regime democrtico.

4 Explique quais remdios Aristteles oferece para compensar a luta potencialmente


blica entre as vrias faces.

5 Qual o padro aristotlico de direito ou justia natural?

6 Discorra sobre a proposta do melhor regime, a Politeia, na perspectiva de Aristteles.

7 Explique o posicionamento de Aristteles quanto propriedade em relao


prosperidade da repblica.

8 Descreva o estadista na concepo de Aristteles.

F
I
L
O
S
O
F
I
A

P
O
L

T
I
C
A
UNIDADE 1

TPICO 4

NOVOS MTODOS E SISTEMAS:


Maquiavel E O prncipe

1 INTRODUO

Neste tpico nos concentraremos na anlise da obra O Prncipe (2001b, 2009a), de


Nicolau Maquiavel (1469-1527). Lembre-se de sempre acompanhar sua leitura do Caderno de
Estudos com a obra referida que ser analisada.

Aps introduzir quem era Maquiavel, vamos iniciar a anlise do ttulo e a dedicao
do seu livro. A seguir, vamos discutir a famosa distino que ele estabelece entre os profetas
armados e os profetas desarmados. Um tema central que tambm ser visto nesta parte
a viso de Maquiavel sobre o bem e o mal, a virtude e o vcio.

Os novos mtodos e sistemas para a poltica, propostos pelo autor, sero discutidos neste
tpico. Vamos tambm abordar, brevemente, outra obra de Maquiavel, os seus Comentrios
sobre a primeira dcada de Tito Lvio (1994), que nos ajudar no entendimento de O
Prncipe. Isso nos levar a um problema central do pensamento de Maquiavel, o problema das
mos sujas e seu papel na compreenso do envolvimento poltico. O que nos far questionar
se Maquiavel de fato era maquiavlico e o que realmente ele alcanou com suas novas e
revolucionrias propostas.

Finalmente, voc poder ler o texto Autoridade e Liberdade (MACKENZIE, 2011), de F


I
leitura complementar para esta Unidade 1. Assim como verificar o resumo deste tpico 4 e L
O
depois realizar as autoatividades. S
O
F
I
A

P
O
2 Quem era Maquiavel? L

T
I
Vamos comear este tpico com a citao de uma cena especfica do filme O Terceiro C
A
108 TPICO 4 UNIDADE 1

Homem, um filme que foi feito em 1949, a partir de um conto de Graham Greene. O personagem
Harry Lime, interpretado por Orson Welles, faz uma declarao que transmite um pouco da
intensidade do pensamento e do contexto do autor Maquiavel, que iremos analisar logo a
seguir. Na Itlia, por 30 anos, sob os Borgias, tiveram guerra, terror, homicdio, sangue, mas
produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Sua, tiveram amor fraterno,
500 anos de democracia e paz, e o que produziram? O relgio-cuco (O TERCEIRO HOMEM,
1949). Voltaremos a isto em um instante.

Primeiro vamos falar sobre quem era Maquiavel e como podemos ler O Prncipe.
Maquiavel era um florentino, e saber disso significa praticamente tudo o que voc precisa
saber sobre ele. Estamos exagerando, mas fazemos isso para enfatizar um ponto. Florena
era uma repblica, a Repblica Florentina, uma cidade-estado. Maquiavel passou boa parte
de sua vida adulta a servio desta repblica. Vivendo em Florena, no centro e no auge da
Renascena, Maquiavel quis fazer pela poltica o que seus contemporneos, como Leonardo da
Vinci e Michelangelo, tinham feito pela arte e pela escultura. Em outras palavras, ele esperava
reviver de algum modo o esprito da antiguidade, mas modific-lo sob as luzes de sua prpria
experincia. Como ele diz na dedicatria de seu livro mais famoso a Lorenzo de Mdici, ele
escreve que este livro O Prncipe foi "adquirido de uma longa experincia dos empreendimentos
modernos e do estudo contnuo da histria antiga (2009a, p. 38). Em Maquiavel temos o que
passamos a chamar de "modernidade", em sua primeira e mais poderosa expresso.

Maquiavel no era um florentino comum. Ele cresceu sob o domnio dos Mdici. Ou seja,
a primeira famlia de Florena, e viveu para v-los depostos por um frade dominicano, Jernimo
Savonarola. Savonarola tentou impor uma espcie de teocracia em Florena, uma espcie
de repblica crist da virtude. Mas os florentinos, sendo o que eram, rejeitaram essa ideia e
o governo de Savonarola foi de curta durao. Em seu lugar, uma repblica foi restabelecida
onde Maquiavel ocupou o cargo de secretrio na segunda chancelaria, uma espcie de posto
diplomtico que ocupou por 14 anos a partir de 1498 a 1512. Aps a queda da repblica e o
retorno dos Mdici a um governo principesco, Maquiavel foi exilado da cidade e da poltica a
uma pequena propriedade rural que ele possua na periferia da cidade. Voc at pode visit-
la hoje. Foi ali, a partir do lugar de exlio poltico, que ele escreveu suas principais obras - O
Prncipe, e Comentrios sobre a primeira dcada de Tito Lvio (tambm conhecido como
F
Discursos), e A Arte da Guerra. Foi a partir do exlio, tambm, que ele escreveu volumosas
I
L
cartas aos amigos buscando conhecimento sobre poltica. Maquiavel era um tipo de viciado
O
S
em poltica, em coisas que aconteciam na Itlia e em outros lugares.
O
F
I Em uma dessas cartas, uma famosa carta ao seu amigo, um homem chamado Francesco
A
Vettori, ele descreve como ele veio a escrever o seu livro mais famoso. Vamos citar uma
P
O passagem da carta que revela a maneira como Maquiavel dedicava-se aos seus estudos.
L

T
I Quando anoitece, volto para casa e vou para minha sala de leitura. J na porta
C comeo a despir as roupas do dia, suadas e empoeiradas; envergo o traje a rigor
A e, assim, decorosamente vestido, entro na agradvel convivncia das grandes
UNIDADE 1 TPICO 4 109

personagens do passado. Acolhido generosamente, ingiro o nico alimento


que me convm, aquele para o qual nasci. No sinto timidez ao dialogar com
eles, pergunto a razo de seus atos; em sua humanidade, respondem-me. Por
quatro horas, no sinto tdio, esqueo-me das mgoas, no temo a penria, a
morte no me apavora. Deixo-me absorver completamente por eles. E, como
disse Dante, no existe cincia sem a memria que retm o que escutou; tenho
anotado o que assimilei nessas conversaes, juntei um cabedal, e elaborei
uma pequena obra, De Principatibus, onde investigo a fundo o quanto posso
sobre este assunto, analisando o que um principado, de quantas espcies
so, como podem ser conquistados, como mant-los, e por que so perdidos.
(MAQUIAVEL, 2009b, p. 29, grifo no original)

Portanto, nesta carta, Maquiavel nos oferece uma noo da seriedade com que ele se
aproximou de seu tema de estudo, como ele estudou e como foi que passou a escrever. Deixe-
nos apenas dizer, j de incio, que O Prncipe um livro dissimulado. O que mais podemos
esperar do homem cujo nome se tornou sinnimo de dissimulao, astcia e ardileza? O
Prncipe uma obra que todos j devem ter ouvido falar, e talvez tenham algum preconceito
sobre ela. O nome de Maquiavel est em toda parte e aplicado a quase tudo, desde questes
de gesto de empresas at moda masculina. Todo mundo sabe ou pensa que sabe do que
se trata a sua obra. Seu nome, de novo, sinnimo de dissimulao, traio, astcia, engano.
Basta olhar para o famoso retrato de Maquiavel, pintado por Santi di Tito (1536-1603). Olhe bem
para o seu rosto. Olhe para o seu sorriso, se parece mais com um sorriso maroto. Ele parece
estar dizendo: "Eu sei de algo que voc no sabe." A dificuldade com a leitura de Maquiavel
hoje que todos ns pensamos que j sabemos o que ele sabe, e isso falso.

FIGURA 4 Nicoll Machiavelli

F
I
L
O
S
O
F
I
FONTE: Retrato pintado por Santi di Tito (1536-1603). Disponvel em: <http://upload.wikimedia.org/ A
wikipedia/commons/e/e2/Portrait_of_Niccol%C3%B2_Machiavelli_by_Santi_di_Tito.jpg>.
P
Acesso em: 20 jan. 2015. O
L

T
Maquiavel foi um revolucionrio. No prefcio do seu maior livro, Comentrios sobre a I
primeira dcada de Tito Lvio (1994, p. 17), ele compara a si mesmo com Cristvo Colombo C
A
110 TPICO 4 UNIDADE 1

por sua descoberta do que ele chamou de "novos mtodos e sistemas". O que Colombo tinha
feito para a geografia, Maquiavel afirma que far para a poltica. Ou seja, descobrir um continente
completamente novo, um novo mundo. O novo mundo de Maquiavel, seus novos mtodos
e sistemas, exigir um deslocamento do mundo anterior. Maquiavel escreveu que a forma
dominante de organizao poltica era o imprio ou, para falar com mais preciso, o imprio
cristo. O Sacro Imprio Romano, como era conhecido na poca de Maquiavel, foi o sucessor
do antigo Estado Romano, o antigo Imprio Romano. Ambos os imprios tinham aspirado a uma
espcie de universalidade. Esta universalidade foi consagrada no famoso tratado de Dante,
Monarquia (2006), que estabeleceu um modelo para o Estado Cristo Universal, baseado na
unidade e na unicidade da raa humana sob um governante cristo. Maquiavel rejeitou esta
ideia do imprio e retomou, em vez disso, o modelo da Roma republicana. H muito em seus
escritos que lembra o tipo de virtudes e capacidades extraordinrias dos cidados da antiga
cidade-estado republicana. Mas pode-se dizer, assim como Maquiavel rompeu com o modelo
dominante de universalismo cristo, assim tambm ele rejeita o modelo antigo do pequeno
estado republicano autnomo. Ele deixa isso claro em uma famosa passagem no incio do
captulo quinze de O Prncipe. Vamos citar esta passagem, Maquiavel diz: Sabendo que
esse assunto j foi tratado por muitos outros, penso que o que eu escrever sobre isso possa
ser considerado presunoso, especialmente porque nessa discusso vou divergir das regras
estabelecidas por eles. Maquiavel continua, entretanto, como meu objetivo escrever algo
que possa ser til a quem dirigido, parece-me apropriado ir ao encalo da verdade sobre o
assunto em vez de ceder mera fabulao sobre ele, pois muitos imaginaram repblicas e
principados. Provavelmente ele estava pensando em Plato, mas com certeza tambm estava
pensando no cristianismo que nunca realmente existiram. Pelo fato da maneira como os homens
vivem ser to diferente daquela como deveriam viver, aquele que deixa de seguir a trajetria
esperada perceber que isso o levar runa em vez de lhe dar segurana (MAQUIAVEL,
2009a, p. 146).

Em outras palavras, no vamos falar de cidades platnicas. No vamos falar de cidades


de deus agostinianas. Ns s vamos olhar, diz ele, para a verdade efetiva das coisas. Ir ao
encalo da verdade efetiva das coisas, no imaginao delas ou sua utopia. Essa passagem
no incio do captulo 15 muitas vezes considerada como sendo a essncia de Maquiavel e
do realismo, uma espcie de Realpolitik. Seu apelo de substituir o "deve" pelo "", de mover
F
o porte das pessoas s verdades efetivas das coisas. Este parece ser, em muitos aspectos, a
I
L
essncia de seus ensinamentos. Por isso, Maquiavel se concentra em aspectos fundamentais
O
S
da realidade poltica que muitas vezes so ignorados por pensadores como Plato e Aristteles.
O
F
Assassinatos, conspiraes, coup dtat (golpes de estado), estes so os tipos de fenmenos
I polticos nos quais ele est interessado. Ele parece estar mais interessado nos males que os
A
seres humanos fazem do que nos bens que eles aspiram. Voc pode at dizer que Maquiavel
P
O se deleita em demonstrar, para nossa decepo, o espao existente entre as nossas intenes
L
nobres e as consequncias reais dos nossos atos.
T
I
C
A No entanto, parece-nos que h mais em Maquiavel do que o termo "realismo" pode
UNIDADE 1 TPICO 4 111

conotar, apesar de que isto seja certamente importante. Nesta passagem, Maquiavel anuncia
seu rompimento, na verdade, seu repdio de todos aqueles que vieram antes. Ele tanto substitui
quanto reconfigura, de acordo com seu prprio entendimento, elementos do imprio cristo
e da repblica romana, para criar uma nova forma de organizao poltica distintamente sua.
O que podemos chamar hoje de o Estado moderno. Maquiavel o fundador, o descobridor,
o inventor do Estado moderno. Este Estado moderno, secular, soberano foi aperfeioado e
desenvolvido nas dcadas e sculos posteriores a Maquiavel, nos escritos de Hobbes, de Locke,
de Rousseau, para no falar de escritores contemporneos do sculo XX, tanto da direita quanto
da esquerda, como Carl Schmitt e Max Weber, at o filsofo italiano chamado Antonio Gramsci,
que em seu Cadernos do Crcere (2000), no terceiro volume, especificamente, apresenta o
que ele chama de o moderno prncipe, com base no prprio Maquiavel.

S!
DICA

Para melhor compreender a proposta de Gramsci, confira o livro:


NERES, Geraldo Magella. Gramsci e o moderno Prncipe: a
teoria do partido nos Cadernos do Crcere. So Paulo: Cultura
Acadmica, 2012. Disponvel em: <http://base.repositorio.unesp.
br/bitstream/handle/11449/109216/ISBN9788579833021.
pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 jan. 2015.

O prprio Estado de Maquiavel tem ambies universalistas, muito semelhante aos seus
antecessores cristos e romanos. Mas este um Estado, acredita ele, que agora foi liberado ou
emancipado das concepes crists e clssicas da virtude. A gesto dos assuntos polticos
deixada para aquelas pessoas que ele chama de prncipes, que no uso maquiavlico designa
um novo tipo de fundador poltico ou lder dotado de uma nova espcie de ambio, amor
glria, e elementos de autoridade proftica que poderamos chamar de carisma.

F
2.1 O Prncipe: O Ttulo e a Dedicao do Livro I
L
O
S
Qual era a natureza da revoluo contemplada por Maquiavel, o fundador da cincia O
F
poltica moderna? Considere, por um momento, o ttulo e a dedicao do livro. O Prncipe I
A
aparece, em sua superfcie, ser uma obra das mais convencionais. Apresenta-se na longa
P
tradio que veio a ser chamada de espelho de prncipes. Livros que oferecem uma espcie O
L
de guia para os prs e contras do comportamento principesco. Parece que este livro quer
T
voltar no tempo. A aparncia de convencionalidade apoiada pelas palavras de abertura do I
C
A
112 TPICO 4 UNIDADE 1

livro, em sua carta dedicatria. As primeiras palavras que saem de sua boca, ou as primeiras
linhas escritas so: "Costumam, o mais das vezes (MAQUIAVEL, 2001a, p. 129). Ou seja,
uma obra destinada a agradar a Lorenzo de Mdici, o homem a quem a obra dedicada, um
prncipe convencional, um prncipe tradicional que acabou de recuperar o seu poder.

Considere agora a estrutura dos trs primeiros captulos. Por exemplo, ele diz na
sentena inicial do captulo um: "Todos os Estados, todos os domnios que tiveram e tm
poder sobre os homens foram e so ou repblicas ou principados (MAQUIAVEL, 2001b, p.
3). Tendo distinguido dois, apenas dois tipos de regimes, repblicas e principados, como os
nicos que merecem ser mencionados, ele passa a distinguir dois tipos de principados. H
os principados hereditrios, como aquele atualmente regido por Lorenzo, que adquirem a
sua autoridade atravs da tradio e das linhagens hereditrias. Em seguida, ele diz que h
novos prncipes e novos principados. Maquiavel, afirma que o seu livro ir lidar apenas com os
principados, deixando a discusso das repblicas para outro lugar, o que se presume que seria
nos Comentrios de Tito Lvio, que ele j estava escrevendo naquele perodo. Mas, Maquiavel
passa a dizer ao leitor que o assunto exclusivo deste livro ser o novo prncipe. Em outras
palavras, no sobre o Lorenzo, mas precisamente prncipes que j alcanaram ou iro alcanar
a sua autoridade atravs de sua prpria astcia, a sua prpria fora, ou a sua prpria virt,
para usar o famoso termo maquiavlico do qual falaremos mais adiante.

O verdadeiro destinatrio deste livro deve ser necessariamente o prncipe em potencial.


Ou seja, algum com audcia poltica suficiente para criar a sua prpria autoridade, e no
simplesmente receb-la do passado. Talvez algum poderia at dizer que o prncipe de
Maquiavel , de certa forma, o primeiro homem verdadeiramente feito por si mesmo, um self-
made man. Ento, qual o carter deste novo prncipe e como ele se difere dos modos mais
convencionais de autoridade poltica? Em um dos captulos mais famosos do livro, o captulo
seis, intitulado "Dos Principados Novos que se Conquistaram com Armas Prprias e com Virt,
h aquela palavra novamente, virt, Maquiavel discute o carter do prncipe moderno, o novo
prncipe. Um homem prudente, ele escreve, deve sempre seguir os caminhos abertos pelos
grandes homens e espelhar-se nos que foram excelentes. Mesmo no alcanando sua virt,
deve pelo menos mostrar algum indcio dela. Ou seja, pelo menos, chegar a um passo de
sua grandeza. "E fazer", diz ele:
F
I como os arqueiros prudentes que, julgando muito distantes os alvos que pre-
L tendem alcanar e conhecendo bem o grau de exatido de seu arco, orientam
O
S a mira bem mais alto que o lugar destinado, no para atingir tal altura com
O flecha, mas para poder, por meio da mira elevada, chegar ao objetivo. (MA-
F QUIAVEL, 2001b, p. 23)
I
A

P Em outras palavras, mire bem alto sua viso, sabendo que voc, mesmo assim, ou
O
L quem sabe, somente assim, ficar aqum do objetivo.

T
I
C Ento, quem so os maiores exemplos, segundo Maquiavel, do domnio principesco
A
UNIDADE 1 TPICO 4 113

que o homem prudente deve imitar? E aqui, ainda no captulo seis, Maquiavel oferece uma lista
dos heris fundadores dos povos e Estados: Moiss, Ciro, Rmulo, Teseu, e assim por diante.
"Examinando suas aes e suas vidas, escreve ele, "veremos que no receberam da fortuna
mais do que a ocasio, que lhes deu a matria para introduzirem a forma que lhes aprouvesse.
Note aqui nessa frase, ele usa os termos aristotlicos, "forma" e "matria" (ou substncia) dos
quais falamos anteriormente em relao ao regime aristotlico. Ele continua dizendo, e sem
ocasio a virt de seu nimo se teria perdido, assim como, sem a virt, a ocasio teria seguido
em vo (MAQUIAVEL, 2001b, p. 24). Em suma, Maquiavel afirma que estes eram fundadores
que criaram, de certa forma, ex nihilo, do nada. Eles s tinham a ocasio, a oportunidade, em
um tipo de matria informe sobre a qual eles poderiam adotar e impor qualquer forma que eles
escolhessem. Eles tinham, claro, a fora de esprito, bem como a audcia e astcia, para tirar
proveito desta situao. Tais oportunidades, escreve ele, tais ocasies, fizeram esses homens
bem-sucedidos. Entretanto, foram as suas virtudes excelentes que lhes permitiram reconhecer a
prpria oportunidade. Por isso, as suas ptrias foram enobrecidas, e eles se tornaram prsperos.
Eles tiraram vantagem de sua oportunidade, apreenderam sua oportunidade e impuseram a
sua prpria forma sobre ela.

2.2 A distino entre profetas armados


e desarmados

Aqui Maquiavel apresenta sua conhecida distino entre profetas armados e profetas
desarmados. "Todos os profetas armados vencem, diz ele, enquanto os desarmado se
arrunam (MAQUIAVEL, 2001b, p. 25). Esta parece ser, e , claramente, uma espcie de
declarao clssica da poltica de poder maquiavlica pura. Uma possvel variao desta
seria: "O poder poltico nasce do cano de uma arma" (TSE-TUNG apud TERRILL, 2000, p.
178, traduo nossa), como um famoso maquiavlico do sculo XX certa vez disse.

Os profetas armados conquistam, os profetas desarmados perdem. Mas parece haver


mais do que isso. Maquiavel compara o prncipe a um profeta. Por que ele usa essa linguagem?
O que um profeta? A resposta mais bvia seria uma pessoa a quem Deus fala. Os profetas
F
armados de Maquiavel podem no ser figuras religiosas e eles no so necessariamente os I
L
beneficirios de algum conhecimento divino, mas eles parecem ser, pelo menos na explicao O
S
de Maquiavel, pessoas de qualidades pessoais excepcionais as quais so permitidas serem O
F
portadores da lei, legisladores, modeladores das instituies e tambm reformadores de I
opinies que governam nossas vidas. O profeta armado de Maquiavel mais do que apenas A

um gangster, como o ator Orson Welles interpreta no filme que mencionamos logo no incio P
O
deste tpico. Ele um professor e um tipo de educador tambm. Sugerimos que voc pondere, L

durante a sua leitura da obra, como ou de que maneira o profeta armado de Maquiavel difere em T
I
aspectos importantes, tanto do filsofo-rei de Plato, assim como da noo do megalopsychos C
A
114 TPICO 4 UNIDADE 1

que seria o tipo de estadista magnnimo de Aristteles. Embora este discurso sobre "profetas
armados sempre ganham" seja caracterstico de Maquiavel, pois ele gosta desse tipo de fala
mais firme, ele reconhece claramente que existem excees sua regra sobre os profetas
armados. Quem vem mente de maneira mais vvida? Quem, em outras palavras, no est
presente na lista dos grandes profetas de Maquiavel e que se deve imitar? Jesus.

Jesus, que triunfou somente por meio de palavras e ensinamentos. Ele no tinha tropas.
Ele no tinha armas. Ele estabeleceu uma religio, uma seita primeiro, pode-se dizer, depois,
uma religio, depois, eventualmente, um imprio, o Sacro Imprio Romano, que foi estabelecido
em nome daquele ensinamento. As palavras podem muito bem ser uma arma poderosa, to
poderosa como uma arma. Ento voc pode perguntar: Quem Maquiavel, seno um arqutipo
de um profeta desarmado? Ele no tem tropas. Ele no tem nenhum territrio. Ele foi banido,
mas ele est claramente tentando conquistar, comparando-se a Colombo, conquistar, em
grande parte atravs da transformao da nossa compreenso do bem e do mal, da virtude
e do vcio. Em outras palavras, para fazer as pessoas obedecerem voc, primeiro voc deve
faz-las acreditarem em voc. O prncipe proftico de Maquiavel, portanto, deve ter algumas
das qualidades de um filsofo, assim como de um reformador religioso tentando reformular e
remodelar a opinio humana, especialmente a opinio sobre, como dissemos, o bem e o mal,
o justo e o injusto. Mas, em que consiste esta reforma, ou essa transformao?

2.3 O BEM E O MAL, A VIRTUDE E O VCIO

Um ponto muitas vezes atribudo a Maquiavel que ele introduziu um novo tipo de
imoralismo na poltica. No captulo quinze, de O Prncipe, ele diz que se prope ensinar o
prncipe a como no ser bom: da ser necessrio a um prncipe, se quiser manter-se, aprender
a poder no ser bom e a se valer ou no disto segundo a necessidade (MAQUIAVEL, 2001b,
p. 73). Uma formulao certamente marcante. Ele vai ensinar o prncipe como no ser bom. O
autor de um dos livros mais importantes j escrito sobre Maquiavel, Thoughts on Machiavelli,
declarou que Maquiavel era um professor do mal (STRAUSS, 1978, p. 11-14, traduo nossa).
Vale a pena pensar sobre isso. Um professor do mal. Ser que Maquiavel era realmente isso?
F
I Questes sobre o bem e o mal, sobre a virtude e o vcio, aparecem em praticamente todas as
L
O pginas de O Prncipe. Ele no simplesmente um professor de pragmatismo poltico, de como
S
O ajustar os meios para se adaptarem aos fins. Ele parece oferecer nada menos do que uma
F
I revoluo abrangente, uma transformao, e se voc quiser usar a linguagem nietzschiana,
A
uma "transvalorao", do nosso vocabulrio mais bsico sobre o bem e o mal.
P
O
L
Maquiavel no rejeita a ideia do bem, ao contrrio, ele redefine-a. Ele est continuamente
T
I falando, em praticamente todas as pginas do livro, a linguagem da virtude. Sua palavra "virt",
C
A uma palavra que mantm a palavra latina vir, que significa "homem", talvez seja mais bem
UNIDADE 1 TPICO 4 115

traduzida pela nossa palavra, "virilidade", no sentido de brio, dignidade e coragem. O que
distingue o uso de Maquiavel desta linguagem de virt, virilidade, que ele busca localiz-la em
certas situaes extremas, como as fundaes polticas, as mudanas de regimes, as guerras,
tanto as nacionais como as estrangeiras. O que distingue Maquiavel de seus antecessores ,
portanto, a sua tentativa de apreender a situao extraordinria, a situao extrema, mais uma
vez, os extremos da fundao poltica, as conspiraes, as guerras, os golpes de Estado, como
a situao normal e, em seguida, fazer com que a moralidade se ajuste a esses extremos.
Seus exemplos so normalmente extrados de situaes extremas de seres humanos ou de
regimes, onde a prpria sobrevivncia ou a independncia de uma sociedade est em jogo.
Nessas situaes, e s nessas situaes, admissvel violar os preceitos da moralidade comum.
Nessas situaes preciso aprender, diz ele, como no ser bom, como violar as convenes
e os cnones da moralidade comum. Maquiavel toma suas consideraes destes estados
extremos de emergncia e sua prpria maneira procura normaliz-los, apresent-los como
a condio normal da poltica.

A preferncia de Maquiavel por estas situaes extremas expressa sua crena de


que somente em momentos de grande crise, em que a prpria existncia de um Estado est
em risco, que a natureza humana verdadeiramente se revela. Ns entendemos finalmente
ou plenamente o que as pessoas so, apenas nas situaes mais extremas. O paradoxo
que percorre por toda a moralidade de Maquiavel que a prpria possibilidade da virtude se
desenvolve a partir, e depende do, contexto de caos, da violncia e da desordem que sempre
ameaam o mundo poltico. Pense nisso. Pense em muitos dos nossos grandes modelos
polticos ou heris. Quem teria sido Deodoro da Fonseca sem Dom Pedro II? O Duque de
Marlborough sem Louis XIV? George Washington sem George III? Abraham Lincoln sem a
questo da escravido? Churchill sem Hitler? Em outras palavras, a sua tese que o bem s
possvel por causa da existncia prvia do mal. O bem fundado sobre o mal. E at mesmo
o maior bem, a fundao e preservao das cidades, muitas vezes exigem o assassinato.
O que foi o assassinato de Remo, cometido pelo irmo Rmulo, ou o assassinato de Abel,
cometido por Caim, alm de mais exemplos de assassinatos que esto na base das fundaes
de cidades e civilizaes?

A fundao de regimes requer, para Maquiavel, um tipo de clculo frio e cruel. Todavia,
Maquiavel no nega que, em tempos de poltica normal, as regras normais de justia
F
prevalecem. Ele tambm mostra, no entanto, que a poltica normal em si dependente das I
L
polticas extraordinrias, dos perodos de crise, de anarquia, de instabilidade, de revoluo, onde O
S
as regras normais do jogo esto suspensas. Nestes momentos que os indivduos de virtude e O
F
capacidade extraordinria, qualidades profticas, como ele as nomeia no captulo seis, so mais I
A
susceptveis de surgir. Enquanto os estadistas aristotlicos, fazendo agora um contraste, so
P
mais propensos a valorizar a estabilidade e os meios necessrios para alcan-la, o prncipe O
L
maquiavlico procura a guerra, porque somente nas situaes mais extremas que se pode
prosperar e ser prspero. Pense novamente sobre a fala do filme referida anteriormente. "Na T
I
Itlia, por 30 anos, sob os Borgias, tiveram guerra, terror, homicdio, sangue, mas produziram C
A
116 TPICO 4 UNIDADE 1

Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Sua, tiveram amor fraterno, 500


anos de democracia e paz, e o que produziram? O relgio-cuco. Pode haver um pouco mais
de Nietzsche do que de Maquiavel sugerido nesta frase, mas acreditamos que os sobretons
maquiavlicos esto muito evidentes.

Considere apenas o seguinte. Cada um de ns foi educado para saber que nunca se
deve fazer o mal, mesmo que boas consequncias possam seguir disso. Somos ensinados
que nunca certo dar maus exemplos para os outros, mesmo que se possa esperar vir bons
resultados. No entanto, Maquiavel rompe com estas regras sobre no dar maus exemplos.
A virtude no est associada com as concepes clssicas de moderao, de justia, de
autocontrole sobre as virtudes crists da f, esperana e caridade. Virtude significa para ele uma
espcie de autoafirmao viril, de audcia, de implacabilidade, de dependncia nas prprias
armas e de um uso calculado de crueldade para atingir os seus prprios fins. O modelo de
virt maquiavlico o estadista da Renascena, Cesare Borgia. at muito interessante que
Orson Welles interpretou outro filme, intitulado O Favorito dos Borgias (1949), que sobre
a histria de Cesare Borgia.

Vamos finalizar esta parte com a citao de um trecho de O Prncipe, no captulo


sete, em que Maquiavel ilustra o tipo de virt que Cesare Borgia representava e que ele quer
recomendar para aqueles que o seguem. Tendo-se apoderado da Romanha, referindo-se
a Cesare, tambm chamado de Duque, que apoderou-se de uma rea fora de Florena, e
encontrando-a sob o comando de senhores sem poder, que mais espoliavam os seus sditos do
que os governavam e lhes davam motivos mais para desunio do que para unio. Ele continua:

colocou ali, ento, messer Remirro de Oro, homem cruel e expedito, a quem
conferiu plenos poderes. Em pouco tempo, Oro a pacificou e uniu, granjean-
do grande reputao. A seguir, o duque julgou desnecessrio to excessiva
autoridade, pois temia que ela se tornasse odiosa, e props a instalao de
um tribunal civil na provncia, com um excelentssimo presidente, onde todas
as cidades teriam um advogado prprio. Como sabia que os rigores passados
haviam gerado um certo dio contra ele, quis mostrar que, se ocorrera alguma
crueldade, ela no se originava dele, mas da natureza dura do ministro para
apaziguar os nimos do povo e atra-lo para si. Aproveitando-se da ocasio,
uma certa manh mandou que o cortassem ao meio na praa pblica, tendo
ao lado um basto de madeira e uma faca ensanguentada. A ferocidade da-
quele espetculo fez o povo ficar, ao mesmo tempo, satisfeito e estarrecido.
(MAQUIAVEL, 2001b, p. 31)
F
I
L
O Essa a virt de Maquiavel, a virtude principesca, o que voc faz para deixar o povo
S
O satisfeito e estupefato. O que poderamos chamar de estratgia choque e pavor.
F
I
A

P
O
L

T 3 NOVOS MTODOS E SISTEMAS


I
C
A
UNIDADE 1 TPICO 4 117

Vimos at agora Maquiavel tanto como um revolucionrio, em muitos aspectos, quanto


como um reformador do vocabulrio moral sobre a virtude e vcio, o bem e o mal. Maquiavel visa
substituir, transpor um vocabulrio antigo associado tanto com Plato e, certamente, talvez mais
importante ainda, com as fontes bblicas. Transformando completamente a linguagem da virtude,
para dar-lhe um novo tipo de significado, para mud-la a partir de qualquer transcendentalidade
platnica ou crist a um maior sentido de mundanidade. A virtude, ou para usar o seu termo
novamente, a virt para ele relacionada virilidade, fora, ao poder. Ele nos diz, no captulo
vinte e cinco de O Prncipe, que a tica do prncipe deve ser uma tica de audcia, pois
melhor ser impetuoso do que tmido. Neste mesmo trecho ele usa uma imagem polmica, mas
interessante, a Sorte [fortuna] uma mulher e, se quiseres conquist-la, precisas enfrent-
la e subjug-la. Vers que ela permitir ser mais facilmente conquistada pelos audaciosos e
impetuosos do que pelos que agem friamente (MAQUIAVEL, 2009a, p. 220-221). Portanto,
o prncipe deve saber como conquistar a sorte, a fortuna, tal como se conquista uma mulher,
utilizando a poltica de fora, impetuosidade e audcia. Esta a linguagem de Maquiavel. A
virtude est associada com a busca pela glria mundana, com ambio, com o desejo de
alcanar o sucesso, e sobre isso que vamos discorrer mais longamente nas prximas pginas
deste Caderno de Estudos. Vamos falar sobre um assunto que na literatura poltica e filosfica
chamado de o problema das "mos sujas". A questo de que se voc quiser entrar no jogo
poltico, voc deve estar preparado para sujar as mos. O que Maquiavel quer dizer com isso,
como ele chega a este problema?

Para que, argumenta Maquiavel, se efetue uma transformao da moralidade europeia,


em outras palavras, para ensinar o prncipe a como no ser bom, como visto no captulo quinze
de O Prncipe, voc tem que ir at a fonte da moralidade. Para afetar as mximas, para afetar
as normas que regem nossas vidas, necessrio ir fonte dessas normas e dessas mximas.
Estas fontes s podem ser encontradas na religio. Estranhamente, a religio no parece ser
um dos principais temas de O Prncipe. Em uma passagem memorvel do captulo dezoito,
Maquiavel aconselha o prncipe a sempre cultivar a aparncia de religio. O prncipe, ele
escreve, deve parecer, para os que o virem e ouvirem, todo piedade, todo f, todo integridade,
todo humanidade e todo religio, ele acrescenta, no h nada mais necessrio do que parecer
ter esta ltima qualidade. O ponto aqui claro. A aparncia de religio, pela qual ele quer
dizer o cristianismo, boa enquanto que a prtica real da mesma prejudicial. Pense sobre
a maneira pela qual essa ideia transforma o que Plato diz sobre a justia em sua resposta
F
a Glucon no Livro II da Repblica, onde a pergunta levantada era sobre o que seria mais I
L
importante, ter a aparncia de justia apenas ou ser realmente justo? E aqui, voc v Maquiavel, O
S
de algum modo, adicionando a sua voz no debate. Para ele, muito melhor ter a aparncia O
F
do que a realidade da religio. I
A

P
O
L

T
I
C
A
118 TPICO 4 UNIDADE 1

3.1 COmentrios sobre Tito Lvio

A fim de compreender ou para descobrir o ncleo dos ensinamentos de Maquiavel sobre


a religio, precisamos fazer um pequeno desvio para longe de O Prncipe aos seus Comentrios
sobre a primeira dcada de Tito Lvio (1994), e talvez o captulo mais importante deste
livro esteja no Livro II, captulo 2, intitulado "Que povos os romanos combateram, e com que
determinao estes se defenderam", um ttulo longo para um captulo com certeza, mas aqui
Maquiavel desenvolve um poderoso contraste entre dois cdigos morais opostos e incompatveis
entre si, o cristo e o pago. Quando se considera, Maquiavel escreve, por que os povos da
antiguidade amavam a liberdade mais do que os da nossa poca, parece-me que a razo a
mesma que explica porque hoje os homens so menos robustos, mais ousados, o que se
relaciona, ao meu juzo, com a diferena entre a nossa educao e a dos antigos, e a diferena,
igualmente grande, entre a nossa religio e a dos antigos (1994, p. 199).

Ento, qual exatamente a diferena que Maquiavel refere-se aqui entre a nossa
educao e a educao dos antigos que fez os povos da antiguidade mais amantes da liberdade,
como ele diz, do que os nossos contemporneos ou os contemporneos de Maquiavel? A
nfase de Maquiavel na educao, particularmente na educao moral e religiosa, a principal
diferena entre os tempos antigos e o seu prprio. Estas duas pocas distintas, acredita ele,
avanaram dois sistemas muito diferentes de educao moral e religiosa, uma baseada no
mundanismo pago e a outra baseada na inocncia crist. E o conflito, por assim dizer, entre
o que poderamos chamar de mundanismo e inocncia que o ncleo do cdigo moral de
Maquiavel. Permita-nos citar mais uma passagem de Maquiavel dos Comentrios, porque
acreditamos que muito reveladora: Nossa religio, ele escreve, obviamente pensando no
cristianismo catlico de seu tempo, ao contrrio, s santifica os humildes, os homens inclinados
contemplao, e no vida ativa. Para ela, o bem supremo a humildade, o desprezo pelas
coisas do mundo. J os pagos, ele continua, davam mxima importncia grandeza dalma,
ao vigor do corpo, a tudo, enfim, que contribusse para tornar os homens robustos [ousados]
e corajosos. Se a nossa religio nos recomenda hoje que sejamos fortes, para resistir aos
males, e no para incitar-nos a grandes empreendimentos (MAQUIAVEL, 1994, p. 199). Em
F outras palavras, ele diz que a fora crist, a fora do cristo, a fora para sofrer, pensando em
I
L Jesus na cruz, em vez de, como ele diz, fazer grandes empreendimentos, fazer coisas ousadas.
O
S
O
F Para Maquiavel, no simplesmente a existncia dessas duas morais diferentes que
I
A est em jogo. Pela suavizao da moral, fazendo-nos mais brandos, o cristianismo teve alguns
P efeitos profundamente perversos sobre a poltica, assim acredita Maquiavel. Este padro de
O
L vida parece ter feito o mundo fraco, entregando o mundo audcia dos celerados (1994, p.

T 199). Este padro de vida, esse padro de educao, de educao moral, introduzido pela
I
C Bblia e pelo cristianismo, tornou o mundo fraco. Em outras palavras, Maquiavel est dizendo
A
UNIDADE 1 TPICO 4 119

que ao ensinar a humildade, a abnegao, a pureza de corao, o cristianismo tornou difcil


desenvolver qualidades necessrias para a defesa da liberdade poltica. O cristianismo tornou
o mundo fraco, ou, se voc quiser usar a palavra que ele mesmo usa, novamente altamente
carregada, fez com que o mundo se tornasse efeminado. por isso que, ele conclui, fazem
com que no haja no mundo tantas repblicas como outrora, e que, em consequncia, no se
veja em nossos dias todo o amor liberdade de outros tempos (MAQUIAVEL, 1994, p. 200).
A referncia explcita de Maquiavel s antigas religies civis, antiga teologia civil, uma
homenagem direta ao papel de Numa, na famosa Histria de Roma (2008) de Tito Lvio.
Nos livros de abertura da obra de Tito Lvio, ele conta a histria de como Roma foi fundada
por Rmulo, que havia assassinado seu irmo, Remo. Mas, depois disso foi necessria uma
segunda fundao, e a segunda fundao foi obra de um homem chamado Numa. Este, escreve
Lvio, determinou que Roma, que tinha sido originalmente estabelecida atravs da fora das
armas, deveria ser restabelecida atravs da justia, das leis e das observncias adequadas,
em outras palavras, a religio. Para completar a fundao da cidade foi necessrio estabelecer
seus deuses e assegurar o devido respeito lei. Numa era o portador dos cdigos jurdicos
romanos, respeitando a religio, as observncias adequadas e afins.

3.2 O problema das mos sujas

Maquiavel utiliza Lvio e a histria sobre a segunda fundao de Roma para trazer
uma lio importante sobre a utilidade da religio. A religio, para ele, no deve ser avaliada
pelo seu contedo de verdade, mas por suas consequncias para a sociedade. A histria de
Numa, ou o uso que ele faz daquela histria, nos oferece mais do que apenas uma lio sobre
a utilidade social da religio. Na poca da fundao de Roma, Maquiavel escreve, a religio
era necessria para temperar e controlar o carter guerreiro dos romanos. A religio teve que
trazer um efeito de abrandamento contra o carter violento e bestial dos primeiros romanos.
Mas para ns, nos dias atuais, Maquiavel sugere, a religio tem de servir ao objetivo oposto.
Ela deve incutir algo como um esprito de luta nas pessoas que perderam o seu instinto para
resistir a invases de sua liberdade. De muitas maneiras, este o significado mais profundo
das palavras armas prprias de Maquiavel, no captulo seis de O Prncipe. Ele usa em uma
F
variedade de passagens essa frmula, de que uma boa repblica depende das prprias armas I
e das prprias leis de uma pessoa. E num sentido mais profundo, essa ideia de "prprias armas" L
O
significa desenvolver as capacidades de resistir usurpao de sua liberdade. O prncipe, em S
O
outras palavras, tem de usar a religio para encorajar seus sditos a confiar em suas prprias F
I
armas, em vez de promessas divinas. E isso, mais uma vez, visto no ensino de sua releitura A

da histria bblica de Davi e Golias, no captulo treze de O Prncipe. P


O
L

Vamos recordar como Maquiavel reconta, e tambm reescreve essa histria. Ele escreve T
I
a histria dizendo que Davi entrou em batalha com Golias munido apenas, diz ele, com sua C
A
120 TPICO 4 UNIDADE 1

funda e seu punhal (MAQUIAVEL, 2001b, p. 65), e voc que conhece a histria e a confrontou
com o relato bblico dessa mesma histria, sabe que Davi foi para a batalha contra Golias
armado somente com a sua funda. Maquiavel quem lhe d um punhal. De onde veio isso?
Por que ele adiciona isso? Sua alterao sutil da histria bblica extremamente reveladora.
Sua moral parece ser "confie nas promessas de Deus, sim, mas leve consigo um punhal, s
por acaso". como a velha piada sobre um boxeador que entrou no ringue e antes de comear
a luta pediram a um padre que rezasse por ele. O padre disse: "Eu vou rezar por ele, mas se
ele souber dar socos certamente vai ajudar." Neste sentido, Maquiavel percebeu que o seu
pas estava profundamente deficiente nestas virtudes marciais, necessrias para reafirmar a
grandeza. Este foi um tema de um longo poema que ele escreveu. Voc est surpreso? Sim,
Maquiavel escreveu poesias e peas teatrais. Sua pea, A Mandrgora (2004), por exemplo,
ainda realizada. Mas, ele escreveu um poema interessante, um poema longo chamado
Ambizione, Ambio, algo semelhante ao thumos platnico, no qual lamenta a falta de esprito
cvico em seus compatriotas e a necessidade de serem reeducados na arte da guerra. Vamos
somente citar uma pequena seo desse poema para voc.

E quando algum acusa a Natureza se na Itlia, muito aflitos e cansados, os


homens no nascem to vigorosos e ousados.
Eu digo que isto no desculpa nem justifica nossa falta de valor, pois a disciplina
[educao] pode compensar onde est a natureza a faltar.
Estes tempos que se foram fizeram a Itlia prosperar, e para conquistar o
mundo de ponta a ponta, a disciplina [educao] austera lhe permitiu ousar.
Agora ela vive, se viver viver em lgrimas, sob o caos e o destino que por esta
sua grande indolncia merecido. (MAQUIAVEL, 1989, p. 737, traduo nossa)

A partir desta pequena seo do poema, voc j pode ver o tema de um novo tipo de
educao e que s isso pode remediar as carncias da natureza, as faltas ou defeitos, como
Maquiavel escreve. esta indolncia, esta longa ausncia de fora para agir no momento
oportuno que faz as pessoas fracas. As pessoas ficam enfraquecidas pela paz prolongada
e elas se fazem fortes, ferozes e independentes atravs da guerra. Somente tornando-se
ousados, intrpidos, diz ele, ser possvel para a Itlia florescer e conquistar o mundo inteiro,
assim como nos dias antigos, realizando a sua ascenso e construindo para ela mesma o seu
lugar. O ponto central aqui, ento, parece ser esse: Se voc quer liberdade, voc tem que
saber como no ser bom, pelo menos no sentido em que o cristianismo tem definido bondade.
A virtude crist da humildade, dar a outra face, o perdo dos pecados, e assim por diante, deve
F ser rejeitada, caso voc realmente queira fazer o bem ao invs de apenas ser bom. Voc
I
L precisa aprender, em outras palavras, como sujar as mos. Entre a inocncia do cristo e
O
S o mundanismo da nova moralidade de Maquiavel, no pode haver reconciliao. Estas so
O
F apenas duas posies morais incompatveis que Maquiavel declara, mas ele vai mais longe
I
A do que isso.
P
O
L A proteo e a segurana desfrutadas pelos inocentes, a nossa liberdade de viver vidas

T sem culpas e ter um sono imperturbvel, depende do uso de poder, perspicaz e at mesmo
I
C
impiedoso do prncipe. O verdadeiro estadista, o verdadeiro prncipe, para Maquiavel, deve
A
UNIDADE 1 TPICO 4 121

estar preparado para misturar: um amor pelo bem comum, um amor pelo seu prprio povo, com
um trao de crueldade, que frequentemente considerado como essencial para um grande
governante, soma-se a isso uma parte do saber como no ser bom e do saber quando e como
usar a crueldade, ou o que Maquiavel conspicuamente chama de "crueldade bem utilizada".
Quando ela bem utilizada, uma virtude. Isto simplesmente outro exemplo de como a
bondade moral cresce e se desenvolve, at mesmo requer, um contexto de mau moral. Os
conselhos de Maquiavel para voc so claros: se voc no pode aceitar as responsabilidades
da vida poltica, se voc no pode dar-se ao luxo de sujar as mos, se voc no pode aceitar
as necessidades desagradveis que podem exigir a crueldade, o engano e at mesmo o
assassinato, ento saia do caminho, ento isso no para voc. No tente impor, no procure
impor a sua prpria inocncia magnnima, s vezes chamada de justia, sobre as exigncias
da arte de governar, porque s te levar runa. Portanto, se voc no pode fazer coisas
espinhosas, se voc no pode fazer coisas desagradveis, Maquiavel diz que deves ficar de
fora da poltica e no tentar impor a sua moralidade de princpios elevados ao Estado.

Como dissemos anteriormente, na literatura filosfica desta questo tornou-se conhecida


como o problema das mos sujas, assim nomeada por causa da famosa pea escrita pelo
filsofo francs Jean-Paul Sartre (1972), originalmente publicada em 1948. O problema das
mos sujas refere-se ao conflito de deveres, ao conflito de moralidades entre as exigncias
severas da poltica e o desejo igualmente exigente por pureza moral e para manter o mundo a
uma distncia. Maquiavel no nega que h algo de profundamente admirvel sobre o desejo
de permanecer moralmente puro, moralmente decente, moralmente inocente. Mas, ele s
est querendo dizer que esta uma moralidade muito diferente da moralidade da poltica. Na
pea de Sartre, a ao ocorre em um pas fictcio do leste europeu durante a Segunda Guerra
Mundial, provavelmente algo como a Iugoslvia, onde um lutador da resistncia comunista
reprova um jovem recruta idealista que est contrariando, est se recusando a obedecer
uma ordem de realizar um assassinato poltico. "Por que voc se juntou a ns?", o lutador
da resistncia comunista pede. "A pureza uma ideia para um iogue ou um monge [...] Voc
acha que algum pode governar inocentemente?" (SARTRE, 1989, p. 218, traduo nossa),
a frase foi retirada, claro, de Saint-Just, um dos lderes do Reino de Terror jacobino durante
a Revoluo Francesa, que a proferiu em um discurso em 1790: No se pode reinar de modo
inocente: a loucura disso evidente. Todo rei um rebelde e um usurpador (SAINT-JUST apud
COGGIOLA, 2013, p. 297). O que voc pensa que a poltica ? Um jogo de pureza moral?
F
I
L
O mesmo tipo de conflito est de fato no ncleo da grande fico poltica de John Le O
S
Carr, o grande romancista da Guerra Fria. Em um de seus primeiros thrillers poltico, um O
F
livro chamado O espio que saiu do frio (2013), ele retrata um agente britnico que estava I
A
trabalhando paisana e que ao mesmo tempo estava tendo um caso de amor com uma jovem
P
bibliotecria idealista que se juntou ao Partido Comunista. Neste caso, ela, a comunista, a O
L
idealista. Ela se juntou ao Partido porque acreditava que iria ajudar na causa do desarmamento
nuclear e iria trazer a paz internacional. Quando Lemas, o espio, revela a ela que ele um T
I
espio, ele lhe diz a sua prpria viso do que a natureza da poltica: "H s uma lei neste C
A
122 TPICO 4 UNIDADE 1

jogo," Lemas diz, "[a convenincia de alianas temporrias]. Que julgas que os espies so?
Padres, santos, mrtires? So uma procisso decadente de loucos, homossexuais, sdicos
e bbados. (LE CARR, 2013, p. 195). Em outras palavras, ele pergunta se voc acha que
os espies se sentam como monges pesando o que certo ou errado? Eles fazem o que
necessrio e conveniente.

3.3 Maquiavel era um maquiavlico?

Assim, ambos os casos, o caso de Sartre e o caso de John Le Carr, de uma forma
so interessantes, todavia podemos consider-los uma espcie de maquiavelismo artificial.
Isto ocorre quando intelectuais se engajam em uma conversa mais rija para mostrar que eles
realmente perderam a sua inocncia. Seria o equivalente intelectual de perder a sua virgindade,
ou seja, mostrar que voc no mais inocente sobre o mundo. Maquiavel, claro, gosta de
jogar esse jogo e ele sugere que o mundo est dividido entre o fraco e o forte, entre os realistas
que veem as coisas como elas so e os idealistas que exigem o conforto de iluses morais.
Sim, Maquiavel s vezes parece corroborar este ponto de vista. Afinal, no ele que diz que
os profetas armados sempre ganham, e os profetas desarmados perdem? No foi ele que
disse que escreveu para revelar a verdade efetiva das coisas e no apenas o que as pessoas
imaginaram como deveria ser? No entanto, parece inconcebvel que Maquiavel escreveu um
livro inteiro simplesmente para provar o bvio, ou seja, que o forte sempre esmaga os mais
fracos e que a poltica deixada para aqueles que deixam seus escrpulos de lado. A questo
se Maquiavel era realmente esse tipo de maquiavlico?

Maquiavel era um maquiavlico? Vejamos. Qual o tipo de governo que Maquiavel


acha melhor? Como ele indica no incio de O Prncipe, h dois tipos de regimes: existem
os principados e as repblicas. Mas cada um desses regimes, diz ele, baseado em certas
disposies contrastantes ou o que ele chama de humores, umori. "Em todas as cidades, ele
escreve, no captulo nove de O Prncipe, existem esses dois humores diversos que nascem
da seguinte razo: o povo no quer ser comandado nem oprimido pelos grandes, enquanto os
grandes desejam comandar e oprimir o povo (MAQUIAVEL, 2001b, p. 43). Estas so as duas
F
I grandes disposies psicolgicas polticas, o desejo popular de no ser oprimido e a disposio
L
O do que ele chama os grandes para comandar e oprimir. Maquiavel usa este termo psicolgico,
S
O humores, para designar duas classes de pessoas nas quais toda sociedade se baseia.
F
I
A
A sua teoria dos humores no captulo nove (MAQUIAVEL, 2001b, p. 43-47) parece,
P
O em alguns aspectos, ser uma reminiscncia da explicao de Plato sobre as trs classes de
L
alma ou as trs partes da alma, com uma vvida exceo. Para Maquiavel, cada classe da
T
I cidade est vinculada ou determinada por um humor, mas nenhum destes est ancorado na
C
A razo ou na racionalidade. Cada Estado dividido em duas classes que expressam, essas
UNIDADE 1 TPICO 4 123

duas qualidades psicolgicas, os grandi, os ricos e poderosos que desejam dominar, e o


popolo, as pessoas comuns que desejam apenas serem deixadas em paz, que desejam no
serem governadas nem governar. Agora, poder-se-ia esperar que o autor de um livro intitulado
O Prncipe favoreceria os grandi, aqueles que desejam governar. No so estes objetivos
aristocrticos de honra e glria precisamente o que Maquiavel parece defender? No entanto,
Maquiavel passa a depreciar as virtudes da nobreza, talvez para nossa surpresa. Os fins do
povo, popolo, os seus propsitos, so mais decentes do que aqueles dos grandes, uma vez
que os grandes desejam oprimir e o povo deseja no ser oprimido. Seu conselho que o
prncipe deve procurar construir sua base de poder sobre o povo, em vez de sobre os nobres
ou grandes. Por causa da ambio pelo poder, os nobres sempre sero uma ameaa para o
prncipe e, numa interessante inverso da concepo platnica e aristotlica da poltica, os
nobres passam a ser vistos como os mais inconstantes e imprevisveis e o povo passa a ser
visto como mais constante e confivel. Lembre-se da viso platnica e aristotlica da poltica,
especificamente sobre a democracia, o governo do povo, o demos, que sempre foi criticado
por ser inconstante e instvel, sujeito ao capricho e paixo. Aqui, Maquiavel nos diz que
o que ocorre o inverso. O pior, escreve ele, que um prncipe pode esperar de um povo
hostil ser abandonado por ele; mas dos grandes, quando inimigos, deve temer no s de ser
abandonado, como tambm que o ataquem (MAQUIAVEL, 2001b, p. 44). Ou seja, os grandi
so mais perigosos e inconstantes.

Assim, o principal negcio do governo consiste em saber como controlar as elites,


porque elas so sempre uma potencial fonte de conflito e ambio. O prncipe deve saber
como esmagar a ambio e humilhar o orgulho dos grandes e poderosos, e isso, veremos mais
adiante, torna-se um tema importante na filosofia de Thomas Hobbes, humilhar ou esmagar
o orgulho dos poucos. O governo do prncipe ou soberano requer a capacidade de controlar
a ambio e faz-lo por meio de polticas seletivas de execues, de acusaes pblicas e
julgamentos polticos. Lembre-se do exemplo que citamos sobre Cesare Borgia e Remirro de
Oro, e como, sua execuo sangrenta, deixou o povo, diz Maquiavel, estupefato e satisfeito.
Aqui um exemplo perfeito de como controlar as ambies dos nobres e ganhar o povo para
o seu lado. Ento, o prncipe de Maquiavel, embora no seja exatamente um democrata,
reconhece a decncia essencial do povo e a necessidade de mant-los leais. E por decncia,
Maquiavel parece significar a ausncia de ambio, a ausncia do desejo de dominar e
controlar. Mas este tipo de decncia no o mesmo que a bondade, pois h tambm uma
F
tendncia por parte do povo a decair para o que Maquiavel chama de indolncia ou licena I
L
(MAQUIAVEL, 2001b, p. 43) O
S
O
F
O desejo de no oprimir os outros pode ser decente, mas, ao mesmo tempo, o povo I
A
precisa ser ensinado ou educado a defender sua liberdade. Mil e quinhentos anos de cristianismo,
P
diz ele, deixaram o povo fraco, sem a sua capacidade para exercer responsabilidade poltica O
L
e sem os recursos para se defender de ataques. Portanto, tal como os prncipes devem
saber como controlar as ambies dos nobres, devem tambm saber como fortalecer os T
I
desejos das pessoas comuns. Alguns leitores de O Prncipe, at mesmo alguns leitores C
A
124 TPICO 4 UNIDADE 1

muito astutos, pensam que o prncipe de Maquiavel realmente uma espcie de democrata
disfarado, e que O Prncipe se destina precisamente a alertar as pessoas sobre os perigos
de um prncipe usurpador. Isto , por exemplo, o que o grande filsofo poltico do sculo XVII,
Baruch de Espinosa, acreditava sobre Maquiavel. Em seu livro, chamado simplesmente de
Tratado Poltico, Espinosa escreveu: [Maquiavel] quis talvez mostrar uma multido livre deve
precaver-se para no confiar absolutamente a sua salvao a um s, Espinosa continua,
e sou tanto mais levado a crer isto deste homem prudentssimo quanto consta ele ter sido
pela liberdade (ESPINOSA, 2009, p. 46). Isso Espinosa falando sobre Maquiavel, "ele ter
sido pela liberdade". E ele comenta que O Prncipe uma espcie de stira sobre o domnio
principesco. Mas, se voc no acredita em Espinosa, se voc pensa que a autoridade dele
no suficiente, considere algum que voc dever ler para esta disciplina, Jean-Jacques
Rousseau, na obra O Contrato Social, em uma nota acrescentada por ele na edio de 1782:
"Maquiavel era um homem honrado e um bom cidado," Rousseau diz, "mas, ligado casa
dos Mdicis, via-se obrigado, diante da opresso de sua ptria, a dissimular seu amor pela
liberdade (1996, p. 89, nota de rodap). Ento, O Prncipe teria sido escrito de uma forma
dissimulada, o verdadeiro ensinamento do livro seria o amor liberdade e, presumivelmente,
liberdade do povo, algo semelhante ao que o prprio Rousseau falou. Talvez esses comentrios
vo longe demais. Talvez eles sejam exageros e, possivelmente at certo ponto eles so.
Todavia, revelador que ambos esses srios leitores de Maquiavel o tomaram como sendo
um apstolo da liberdade. Espinosa, considerando o livro de Maquiavel como sendo um aviso
para o povo sobre os perigos do domnio principesco. Rousseau, acreditando que ele tinha
deliberadamente dissimulado seu amor pela liberdade, porque ele teve que apelar natureza
tirnica da famlia Mdici. Em ambos os casos, eles consideram-no como sub-repticiamente
tomando o lado do povo contra os nobres.

O que quer que faamos com esses exemplos, Maquiavel parece estar desafiando
aspectos importantes das concepes clssicas que descrevemos at este momento. A repblica
clssica, a antiga repblica de Plato e Aristteles, era governada pela nobreza, magnnimos
possuidores de riqueza e de cio, que eram, portanto, capazes de construir um juzo poltico
coerente e seriam eles que dominariam. Enquanto no Estado de Maquiavel o povo que ser
o poder social e poltico dominante.

F
Maquiavel quer redirecionar o poder em alguns graus para longe dos nobres e em
I
L
direo ao povo. Por que ele quer fazer isso? Em primeiro lugar, ele julga o povo como sendo
O
S
mais confivel do que os grandes. Uma vez que o povo for ensinado a valorizar a sua liberdade,
O
F
aprender a se opor s invases de sua liberdade, ser como um co de guarda feroz e vigilante, e
I no um subordinado, subserviente e humilde, servir como uma base confivel para a grandeza
A
e o poder de um Estado. Com o povo ao seu lado, mais provvel ao prncipe alcanar seus
P
O objetivos de uma vida civil vigorosa para o seu povo e de eterna glria para si mesmo.
L

T
I Como o prprio Maquiavel gosta de dizer: o prncipe deve saber como adaptar-se aos
C
A tempos. E o que verdade para os prncipes no menos verdade para os conselheiros de
UNIDADE 1 TPICO 4 125

prncipes, como o prprio Maquiavel. preciso saber os tempos e o carter de um povo. Na


antiga repblica, pode ter sido necessrio encontrar e impor restries sobre as paixes do
demos, mas no mundo moderno, diz ele, onde as repblicas se tornaram uma coisa do passado,
o povo precisa ser ensinado a valorizar a sua liberdade acima de tudo. Os mais excelentes
prncipes do passado eram aqueles como Moiss, que trouxe as tbuas da lei e preparou
o povo para o autogoverno. coerente e adequado que Maquiavel conclua O Prncipe, no
captulo vinte e seis, com um apelo patritico aos seus compatriotas para emanciparem-se e
libertarem a Itlia dos invasores estrangeiros.

3.4 O que Maquiavel ALCANOU?

Ento, o que Maquiavel alcanou? Quais foram de fato as suas realizaes? Ele cumpriu
tudo o que ele se props a fazer, reescrever ou escrever um novo cdigo moral para a vida
poltica, fundar um novo continente poltico, como ele mesmo diz, fundar novos mtodos e
sistemas seguindo os passos de Colombo? Ser que ele conseguiu isso? Em primeiro lugar,
no se deve e no se pode subestimar sua ruptura sem precedentes, com a antiguidade clssica
e bblica. Ele, mais do que qualquer pessoa antes dele e talvez mais do que qualquer pessoa
aps ele, procurou liberar a poltica do controle eclesistico. O novo prncipe, como vimos,
deve saber como usar a religio, mas precisa aprender a no ser utilizado pela religio, no
deve tornar-se um joguete do religioso. Ele deve saber como usar as paixes religiosas e os
sentimentos religiosos, mas no pode ser usado por estes.

A poltica deve tornar-se um assunto puramente mundano. Ela no deve ser limitada
ou constrangida por quaisquer padres transcendentes ou leis morais que no derivam da
poltica em si mesma. O aviso ou a crtica de Maquiavel direita religiosa atual seria que no
se pode fazer poltica em conformidade com uma lei moral transcendente. Mas Maquiavel no
s trouxe um novo mundanismo poltica, ele tambm introduziu um novo tipo de populismo.

Plato e Aristteles imaginaram repblicas aristocrticas que investiriam poder em uma


aristocracia da educao e da virtude. Maquiavel procura deliberadamente recrutar o poder do
F
povo contra as aristocracias da educao e da virtude. Ele uma espcie de protodemocrata, I
pois procurou recriar, no por acidente ou acaso, mas por meio de uma concepo clara e L
O
de planejamento, um novo tipo de repblica no mundo moderno. A repblica que Maquiavel S
O
imaginava interessante ponderar que ele nos diz que vai apenas ao encalo da verdade F
I
efetiva das coisas e no imaginao delas, no entanto, Maquiavel de fato imagina um novo A

tipo de regime, era um novo tipo de repblica no mundo moderno que no seria uma cidade P
O
em paz, mas seria uma cidade em guerra. Seria armada e expansiva. A repblica de Maquiavel L

se alimenta de conflito, da guerra e da conquista. Ela agressiva e imperialista. T
I
C
A
126 TPICO 4 UNIDADE 1

Isso soa familiar? Provavelmente voc deve ter pensado na Repblica dos Estados
Unidos da Amrica. Vejamos, a repblica dos EUA a partir de seu incio foi expansiva, agressiva,
imperialista, desde as conquistas dos territrios, a expropriao dos nativos americanos, a
aquisio da Louisiana, guerras de libertao contra o Mxico e a Espanha, e assim por diante.
No sculo XX e agora o sculo XXI, tambm possvel ver a expanso, lembrando que a
expanso tambm mensurada pela influncia e potncia econmica e militar, a agressividade
e o imperialismo. Mas ser que esta uma caracterstica peculiar do estadunidense ou faz parte
do carter de uma repblica, a causa seria na verdade o tipo de regime? Faa um experimento
mental e pense na Repblica do Brasil, desde o seu incio at nos tempos atuais. Ser que o
povo brasileiro cordial, no sentido do poeta Ribeiro Couto, ou ainda, no sentido de Cassiano
Ricardo, um homem bom, hospitaleiro, de sentimentos positivos, tendncia credulidade e
concrdia (BEZERRA, 2005)? Ou cordial no sentido empregado por Sergio Buarque de
Holanda em sua obra Razes do Brasil, como vemos na citao a seguir:

A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes to gabadas por


estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um trao definido do
carter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda
a influncia ancestral dos padres de convvio humano, informados no meio
rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar
boas maneiras, civilidade. So antes de tudo expresses legtimas de um
fundo emotivo extremamente rico e transbordante. [] Nossa forma ordinria
de convvio social , no fundo, justamente o contrrio da polidez. Ela pode
iludir na aparncia e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir
precisamente em uma espcie de mmica deliberada de manifestaes que so
espontneas no homem cordial: a forma natural e viva que se converteu
em frmula. (HOLANDA, 1995, p. 146-147)

Ou seja, um homem concomitante bom e mau, capaz de ser to intensamente amigo


quanto inimigo. Uma aparncia de polidez que esconde o fundo emotivo extremamente rico
e transbordante. Se a caracterstica consagrada do povo brasileiro a cordialidade, qual
dessas duas verses se faz mais coerente com a histria da Repblica do Brasil, a do Ribeiro
Couto e Cassiano Ricardo ou a do Srgio B. de Holanda?

S!
DICA

F
I Para ponderar sobre a cordialidade do brasileiro e da Repblica
L
O
do Brasil, sugeriremos que assistas ao vdeo da palestra do
S professor Leandro Karnal, O dio no Brasil, publicada pela CPFL
O Cultura (2012). Disponvel em: <http://www.cpflcultura.com.
F
I
br/wp/?aovivo=o-odio-no-brasil-%E2%80%93-leandro-karnal>.
A Acesso em: 15 jan. 2015.
P
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L

T Para Maquiavel, esse tipo de comportamento, da expanso, agressividade e imperialismo,


I
C parece estar inerente natureza da repblica. Foi a admirao de Maquiavel pela poltica, o que
A
UNIDADE 1 TPICO 4 127

Hobbes chama de tendncia lupina poltica, da Roma republicana que o levou a entender
que todos os bens sociais e morais foram estabelecidos por meios moralmente questionveis.
Ser que nos tornamos ou sempre fomos uma repblica de Maquiavel, o desejo de Maquiavel?
Pense nisso quando estiver fazendo a sua leitura e suas atividades acadmicas.

Finalmente, Maquiavel o autor de um novo realismo amoral. "Por todos os meios


necessrios", deveria ser o seu lema, e estranhamente ele afirma estar apenas afirmando em
voz alta o que todos os escritores sempre souberam. preciso para o prncipe saber bem como
usar a besta e o homem. "Esse papel", "foi ensinado secretamente pelos escritores antigos,
diz ele no captulo dezoito. A ideia, ento, de que Maquiavel no faz nada mais do que dizer
abertamente e publicamente o que os escritores antigos tinham encoberto em parbolas,
enigmas e mitos, revela algo sobre a nova cincia poltica de Maquiavel. O que antes era
ensinado apenas sutilmente e em privado vai agora ser ensinado abertamente e em pblico.
O que antes era disponvel apenas para alguns, agora estar disponvel a todos. Talvez mais
do que qualquer outra coisa, a nova abertura de Maquiavel, a sua disponibilidade para desafiar
a autoridade recebida e a sua vontade de considerar a autoridade como autocriada, como
self-made, em vez de dada pela natureza ou de graa, o que constitui, fundamentalmente,
a sua modernidade.

Finalizamos agora a Unidade 1. De agora em diante, na Unidade 2, vamos comear


o estudo de um dos maiores e mais profundos discpulos de Maquiavel no mundo moderno,
Thomas Hobbes.

LEITURA COMPLEMENTAR

Autoridade e liberdade

Para Plato o mundo poltico precisa ser ordenado de cima. Os seres humanos dotados
da sabedoria e do carter moral excelso de filsofos deveriam ser os guardies da repblica
ideal. Elaborando as leis da repblica, designando as pessoas para os seus lugares prprios
na sociedade (at mesmo contando ocasionalmente uma mentira nobre para garantir a
ordem), os filsofos-reis e rainhas (Plato foi um revolucionrio na sua argumentao de F
I
que as mulheres tm as mesmas habilidades naturais que os homens para serem dirigentes) L
O
eram considerados as nicas pessoas capazes de criar uma forma de associao poltica que S
O
seria boa para todos. As estruturas bsicas dessa viso da repblica ideal foram transferidas F
com facilidade, alguns sculos mais tarde, para as emergentes formas crists de filosofia I
A
poltica. Os filsofos-reis cederam lugar a monarcas divinos, e a concepo da vida boa foi
P
substituda pela viso de como poderia ser construdo na terra o reino de Deus. Em ambas O
L
as concepes, tanto na clssica como na crist, a ordem poltica seria estabelecida de cima,
T
pelo uso da razo por parte dos poucos que poderiam us-la plena e sabiamente, ou mediante I
C
A
128 TPICO 4 UNIDADE 1

a interpretao da vontade de Deus por aqueles equipados para interpret-la acuradamente.


As exigncias da moralidade e da religio constituam os fundamentos usados para justificar
sociedades hierrquicas, conduzidas pelos poucos que tinham como responsabilidade manter
a ordem e buscar o bem, ou Deus.

No limiar da Antiguidade para a Modernidade, O Prncipe de Maquiavel nos apresenta


uma terceira vertente para justificar a ordem poltica, a saber: a fora bruta. De acordo com
Maquiavel, o prncipe governante est autorizado a fazer o que for necessrio para manter a
ordem (dado que a ordem a raison dtre da vida poltica) e para tanto pode usar todos os
meios necessrios para alcanar esse fim. As pessoas do povo (e, acima de tudo, os rivais do
prncipe) no sairo da linha, por saberem que, se o fizerem, estaro se expondo ao risco de
serem usados contra elas as malcias e o poder do prncipe. Uma nova ideia havia surgido: j
no eram as exigncias da moralidade ou da religio que embasavam a ordem poltica, mas as
maquinaes grosseiras da realpolitik. Dito isso, ao ler o panfleto Discursos, menos conhecido,
porm importante, encontramos outra sugesto, uma ideia de longa histria, mas que at o
incio do perodo moderno no estava bem desenvolvida e por isso era descartada, isto , que a
fonte da ordem poltica poderia brotar de baixo, do povo, e no de cima (mediante moralidade,
religio e fora bruta). Maquiavel, porm, no conseguiu aderir plenamente a essa ideia: sua
concepo cclica do desenvolvimento do Estado, sua viso cnica da natureza humana, sua
tendncia a ver dissoluo e decadncia em toda parte, sua crena nos poderes destrutivos de
fortuna e sua admirao, de inspirao clssica, pelos grandes homens de virt, conjugaram-se
para impedir Maquiavel de abraar plenamente a ideia de que a ordem poderia vir de baixo.

Ademais, Maquiavel era um homem do nascente Renascimento: ainda estava por


manifestar-se a ampla reviravolta social, econmica e poltica que haveria de caracterizar o
perodo da histria que chamamos Era Moderna, que passou a instilar-se na conscincia
dos que escreviam sobre a vida poltica. Nos 250 anos que se seguiram publicao de O
Prncipe e Discursos, a Europa sofreu uma srie de mudanas significativas, cujas marolas
continuam determinando como ns vivemos e vemos o mundo hoje. Para simplificar, uma histria
relativamente complicada: ocorreu o nascimento do capitalismo, que provocou um populacho
de mobilidade crescente, divises de classes cada vez mais acentuadas, crescimento de
cidades, e ecloses de novas tecnologias. Ocorreu tambm o surgimento da cincia moderna,
F
tendo como smbolo a revoluo de Coprnico, o desafio de Galileu autoridade religiosa, a
I
L
fundamentao de um mtodo cientfico indutivo por Francis Bacon, e uma multido de novas
O
S
descobertas a respeito do mundo humano e da natureza. Alm disso, ocorreu no mundo das
O
F
ideias uma mudana subjetiva na filosofia, de renunciar contemplao filosfica de ideais em
I troca da reflexo interna sobre as condies da experincia que determinam o que podemos
A
e o que no podemos conhecer. Essa transformao da filosofia foi iniciada pelo mtodo de
P
O Descartes, de duvidar de tudo, conduzindo afirmativa de que a nica coisa de que se podia
L
estar certo era a prpria atividade de duvidar. Isso culminou no famoso dito centrado no sujeito:
T
I Penso, logo existo.
C
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UNIDADE 1 TPICO 4 129

Essas ocorrncias se conjugaram para subverter a ideia de que a ordem poltica tinha
de vir de cima. As pessoas comearam a questionar as fontes tradicionais da ordem poltica
(moralidade, religio, poder do Estado) e, na verdade, as pessoas comearam a rebelar-se
e a derrubar as ordens estabelecidas que promovessem e sustentassem aquelas formas de
ordem poltica. Visto que a derrocada das fontes tradicionais da ordem vinda de cima deixou
um abismo na vida social e poltica, facilmente preenchido com caos e anarquia, surgiram
duas perguntas:

a) Como evitar a anarquia?


b) Como poderia estabelecer-se a ordem poltica sem retornar s fontes tradicionais
desacreditadas que haviam provocado aqueles problemas?

Em suma, como ter ordem social e poltica sem tirania? Como estabelecer ordem, no
de cima, mas de baixo? Em termos bem simples, este o problema que est no cerne do
que hoje chamamos filosofia poltica liberal. O conceito que os liberais muitas vezes usam para
reforar a necessidade de ordem com exigncia de que venha de cima, o de autoridade.
Como liberais, obedecemos ao Estado no por estar fundamentado racionalmente e ser
moralmente perfeito, no por incorporar a palavra de Deus, no por tender a usar a fora contra
ns, caso no o fizermos, mas porque ns autorizamos o Estado a nos dominar e a manter a
ordem. O Estado, porm, est autorizado somente sob condio de proteger nossa liberdade,
de forma que jamais voltemos a estar sujeitos aos regimes tirnicos da Europa feudal [...] acertar
o equilbrio entre autoridade e liberdade no questo bvia, nem incontroversa.

FONTE: MACKENZIE, 2011, p. 29-31.

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130 TPICO 4 UNIDADE 1

RESUMO DO TPICO 4

Neste tpico voc viu que:

Maquiavel rompeu com o modelo dominante de universalismo cristo, assim tambm como
rejeitou o modelo antigo do pequeno estado republicano autnomo.
Maquiavel se concentra em aspectos fundamentais da realidade poltica que muitas vezes
so ignorados por pensadores como Plato e Aristteles. Ele parece estar mais interessado
nos males que os seres humanos fazem do que nos bens que eles aspiram.
Ele tanto substitui quanto reconfigura, de acordo com seu prprio entendimento, elementos
do imprio cristo e da repblica romana, para criar uma nova forma de organizao poltica
distintamente sua. O que podemos chamar hoje de o Estado moderno. Maquiavel o
fundador, o descobridor, o inventor do Estado moderno.
O verdadeiro destinatrio do livro O Prncipe deve ser necessariamente o prncipe em
potencial. Ou seja, algum com audcia poltica suficiente para criar a sua prpria autoridade,
e no simplesmente receb-la do passado.
Maquiavel afirma que os fundadores, exemplos do novo prncipe, criaram, de certa forma,
ex nihilo, do nada. Eles s tinham a ocasio, a oportunidade, em um tipo de matria informe
sobre a qual eles poderiam adotar e impor qualquer forma que eles escolhessem. Eles tinham
a fora de esprito, bem como a audcia e astcia, para tirar proveito desta situao. Tais
oportunidades fizeram esses homens bem-sucedidos. Entretanto, foram as suas virtudes
excelentes que lhes permitiram reconhecer a prpria oportunidade.
Os profetas armados conquistam, os profetas desarmados perdem. Os profetas armados
so pessoas de qualidades pessoais excepcionais que lhes permitem portar as leis, serem
portadores da lei, legisladores, modeladores das instituies e tambm reformadores de
opinies que governam nossas vidas. Eles so professores, educadores, mas diferem em
aspectos importantes, tanto do filsofo-rei de Plato, assim como da noo do megalopsychos
que seria o tipo de estadista magnnimo de Aristteles.
Maquiavel no simplesmente um professor de pragmatismo poltico, de como ajustar os
F
I meios para se adaptarem aos fins. Ele parece oferecer nada menos do que uma revoluo
L
O abrangente, uma transformao, uma transvalorao do nosso vocabulrio mais bsico
S
O sobre o bem e o mal. Maquiavel no rejeita a ideia do bem, ao contrrio, ele redefine-a.
F
I O que distingue Maquiavel de seus antecessores a sua tentativa de apreender a situao
A
extraordinria, a situao extrema, os extremos da fundao poltica, as conspiraes, as
P
O guerras, os golpes de Estado, como a situao normal e, em seguida, fazer com que a
L
moralidade se ajuste a esses extremos.
T
I A virtude, para Maquiavel, no est associada com as concepes clssicas de moderao,
C
A de justia, de autocontrole sobre as virtudes crists da f, esperana e caridade. Virtude
UNIDADE 1 TPICO 4 131

significa para ele uma espcie de autoafirmao viril, de audcia, de implacabilidade, de


dependncia nas prprias armas e de um uso calculado de crueldade para atingir os seus
prprios fins. O modelo de virt maquiavlico o estadista da Renascena, Cesare Borgia.
Maquiavel visa substituir, transpor um vocabulrio antigo associado tanto com Plato
e, certamente, talvez mais importante ainda, com as fontes bblicas. Transformando
completamente a linguagem da virtude, para dar-lhe um novo tipo de significado, para
mud-la a partir de qualquer transcendentalidade platnica ou crist a um maior sentido de
mundanidade.
Maquiavel argumenta que pela suavizao da moral, fazendo-nos mais brandos, o
cristianismo teve alguns efeitos profundamente perversos sobre a poltica. Ao ensinar a
humildade, a abnegao e a pureza de corao, o cristianismo tornou difcil desenvolver
qualidades necessrias para a defesa da liberdade poltica. O cristianismo tornou o mundo
fraco.
A religio, para ele, no deve ser avaliada pelo seu contedo de verdade, mas por suas
consequncias para a sociedade. A religio teve que trazer um efeito de abrandamento contra
o carter violento e bestial dos primeiros romanos. Mas para ns, nos dias atuais, Maquiavel
sugere, a religio tem de servir ao objetivo oposto. Ela deve incutir algo como um esprito
de luta nas pessoas que perderam o seu instinto para resistir a invases de sua liberdade.
O prncipe tem de usar a religio para encorajar seus sditos a confiar em suas prprias
armas, em vez de promessas divinas.
O verdadeiro estadista, o verdadeiro prncipe, para Maquiavel, deve estar preparado para
misturar: um amor pelo bem comum, um amor pelo seu prprio povo, com um trao de
crueldade, soma-se a isso uma parte do saber como no ser bom e do saber quando e como
usar a crueldade, crueldade bem utilizada. Quando ela bem utilizada, uma virtude.
Maquiavel no nega que h algo de profundamente admirvel sobre o desejo de permanecer
moralmente puro, moralmente decente, moralmente inocente. Mas ele s est querendo
dizer que esta uma moralidade muito diferente da moralidade da poltica. Nesta ltima
necessrio estar preparado para sujar as mos.
H duas grandes disposies psicolgicas polticas, o desejo popular de no ser oprimido
e a disposio do que ele chama os grandes para comandar e oprimir. Maquiavel usa
este termo psicolgico, humores, para designar duas classes de pessoas nas quais toda
sociedade se baseia.
Cada Estado dividido em duas classes que expressam essas duas qualidades, essas duas
F
qualidades psicolgicas, os grandi, os ricos e poderosos que desejam dominar, e o popolo, I
L
as pessoas comuns que desejam apenas serem deixadas em paz, que desejam no serem O
S
governadas nem governar. O
F
O prncipe deve procurar construir sua base de poder sobre o povo, em vez de sobre os nobres I
A
ou grandes. Por causa da ambio pelo poder, os nobres sempre sero uma ameaa para
P
o prncipe e, numa interessante inverso da concepo platnica e aristotlica da poltica, O
L
os nobres passam a ser vistos como os mais inconstantes e imprevisveis e o povo passa
a ser visto como mais constante e confivel. T
I
A repblica clssica, a antiga repblica de Plato e Aristteles, era governada pela nobreza, C
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132 TPICO 4 UNIDADE 1

magnnimos possuidores de riqueza e de cio, que eram, portanto, capazes de construir


um juzo poltico coerente e seriam eles que dominariam. Enquanto no Estado de Maquiavel
o povo que ser o poder social e poltico dominante. Maquiavel no s trouxe um novo
mundanismo poltica, ele tambm introduziu um novo tipo de populismo.
Maquiavel de fato imagina um novo tipo de regime, um novo tipo de repblica no mundo
moderno que no seria uma cidade em paz, mas seria uma cidade em guerra. Seria armada
e expansiva. A repblica de Maquiavel se alimenta de conflito, da guerra e da conquista.
Ela agressiva e imperialista. Para Maquiavel, esse tipo de comportamento, da expanso,
agressividade e imperialismo, parece estar inerente natureza da repblica.

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UNIDADE 1 TPICO 4 133


IDADE
ATIV
AUTO

1 Comente a razo pela qual Maquiavel considerado o fundador do Estado moderno.

2 Descreva quem o verdadeiro destinatrio do livro O Prncipe.

3 O que a virt para Maquiavel?

4 Comente sobre o problema das mos sujas e a proposta de Maquiavel de reformular


a moralidade na poltica.

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134 TPICO 4 UNIDADE 1

IAO
AVAL

Prezado(a) acadmico(a), agora que chegamos ao final


da Unidade 1, voc dever fazer a Avaliao referente a esta
unidade.

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UNIDADE 2

FILOSOFIA POLTICA MODERNA:


HOBBES, LOCKE e ROUSSEAU

Objetivos de aprendizagem

Esta unidade tem por objetivos:


conhecer questes centrais Filosofia Poltica Moderna em
Hobbes, Locke e Rousseau;
analisar as contribuies dos pensadores Filosofia Poltica
Moderna a partir de suas obras: O Leviat (Hobbes); Segundo
Tratado sobre o Governo Civil (Locke); Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens e O Contrato
Social (Rousseau);
refletir e compreender temas fundamentais Filosofia Poltica
Moderna, como: o Estado Soberano em Hobbes; o Governo
Constitucional em Locke; a Desigualdade e a Democracia em
Rousseau.

PLANO DE ESTUDOS

Esta unidade est dividida em trs tpicos e no final de cada um


deles voc encontrar atividades que reforaro o seu aprendizado.

TPICO 1 - THOMAS HOBBES E O LEVIAT: O


ESTADO SOBERANO

TPICO 2 - JOHN LOCKE E O SEGUNDO


TRATADO: O GOVERNO
CONSTITUCIONAL

TPICO 3 - Jean-Jacques Rousseau: F


o Discurso sobre a I
Desigualdade e o Contrato L
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Social S
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UNIDADE 2

TPICO 1

THOMAS HOBBES E O LEVIAT: O


ESTADO SOBERANO

1 INTRODUO

Neste tpico vamos nos concentrar na obra fundamental de Thomas Hobbes, o Leviat
(2003). Lembrando que a leitura desta unidade do Caderno de Estudos deve ser acompanhada
pela leitura da obra referida que ser analisada.

Vamos introduzir, primeiramente, dados importantes sobre a vida e a obra de Thomas


Hobbes, para contextualizar suas principais contribuies filosofia poltica moderna. Faremos
tambm uma breve comparao entre as propostas polticas de Hobbes, Maquiavel e Aristteles.
Ento abordaremos temas como a arte, a cincia, a poltica, e a legitimidade da autoridade no
pensamento hobbesiano.

A seguir, vamos focar na primeira parte, Do homem, de sua obra o Leviat,


aprofundando temas centrais como a individualidade, o conhecimento, o estado de natureza,
as paixes do orgulho e do medo e as leis da natureza. Ento, analisaremos a segunda parte
da obra, intitulada Da Repblica, discutindo temas como a doutrina do positivismo jurdico, o
liberalismo e o estado moderno hobbesiano.

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2 Quem foi Thomas Hobbes? O
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Thomas Hobbes foi o autor da primeira, e provavelmente a maior, obra de teoria poltica I
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escrita no idioma ingls. Ele era um mestre do estilo ingls e da prosa, e seu trabalho est
P
entre os melhores neste quesito. O Leviat para a prosa inglesa o que Dom Casmurro, de O
L
Machado de Assis, para a prosa brasileira. Pense sobre isso. Hobbes foi, em muitos aspectos,
T
o florete perfeito para Maquiavel. Em outras palavras, ele realizou o que Maquiavel ajudou a I
C
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138 TPICO 1 UNIDADE 2

tornar possvel. Maquiavel, voc deve lembrar, afirmou ter descoberto um novo continente,
novos mtodos e sistemas. Foi Hobbes quem o ajudou a tornar este novo continente habitvel.
Poderamos at mesmo dizer que tal como Maquiavel comparou o seu trabalho a Colombo, o
Leviat de Hobbes poderia ser comparado a Hernan Cortez. Hobbes conquistou o territrio,
construiu as casas e as instituies. Hobbes forneceu-nos a lngua definitiva, na qual ainda
hoje continuamos a falar sobre o Estado moderno.

No entanto, o que queremos enfatizar, atravs da nossa leitura de Hobbes, que ele
sempre foi uma espcie de paradoxo para os seus leitores. Voc vai encontrar Hobbes sendo
o defensor mais articulado do absolutismo poltico. Em sua doutrina hobbesiana da soberania,
o soberano hobbesiano dever ter um completo monoplio do poder dentro de seu territrio.
Na verdade, o famoso frontispcio do livro, da edio original de 1651 do Leviat, retrata o
Leviat, o Estado, o soberano, segurando uma espada em uma mo e o cetro na outra, e
as vrias instituies de autoridade civil e eclesistica de cada lado (verifique a Figura 4, a
seguir). O soberano detm poder total sobre todas as instituies da vida civil e eclesistica,
dominando sobre uma espcie de reino pacfico. Adicione a isso a doutrina do poder soberano,
da soberania indivisvel, a insistncia de Hobbes de que o soberano exera completo controle
sobre as igrejas, sobre o currculo universitrio e sobre quais opinies e livros podem ser lidos
e ensinados. Ele parece ser o modelo perfeito do absolutismo e do governo absoluto.

FIGURA 5 - FRONTISPCIO DA EDIO DE 1651 DO LEVIAT DE THOMAS HOBBES

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FONTE: Disponvel em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Leviathan_by_Thomas_Hobbes.jpg>.
T Acesso em: 3 fev. 2015.
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UNIDADE 2 TPICO 1 139

Por outro lado, voc tem que considerar tambm o seguinte: Hobbes insiste na igualdade
fundamental dos seres humanos, que, segundo ele, so dotados de certos direitos naturais
e inalienveis. Ele mantm que o Estado um produto de uma aliana ou um pacto, uma
espcie de um contrato entre os indivduos, e que o soberano deve sua autoridade vontade
ou ao consentimento daqueles a quem ele governa e, finalmente, que o soberano apenas
autorizado a proteger os interesses dos governados pela manuteno da paz e da segurana
civil. A partir deste ponto de vista, parece que Hobbes ajuda a estabelecer a linguagem de uma
oposio liberal ao absolutismo. E esse paradoxo foi notado at mesmo na poca de Hobbes.
Ele era um defensor da realeza e do poder do rei ou era um oponente da realeza? Em muitos
aspectos, com certeza, Hobbes foi um produto do seu tempo, e o que mais poderia ser? Mas
Hobbes viveu numa poca em que o sistema moderno dos Estados europeus, assim como
ns os entendemos hoje, estava apenas comeando a emergir.

Trs anos antes da publicao do Leviat em 1651, a assinatura do Tratado de Vestflia,


o famoso tratado de paz, ps fim a mais de um sculo de guerra religiosa que tinha sido
inflamada pela Reforma Protestante. O Tratado de Vestflia oficialmente ps fim Guerra
dos Trinta Anos, mais do que isso, ratificou duas caractersticas decisivas que receberiam
de Hobbes uma poderosa expresso. Em primeiro lugar, o Tratado declarou que o Estado
soberano individual passaria a se tornar o mais alto nvel de autoridade; pondo fim de uma vez
por todas s pretenses universalistas do Sacro Imprio Romano. Cada Estado seria soberano
e teria a sua prpria autoridade. Em segundo lugar, que o chefe de cada Estado teria o direito
de determinar a religio do Estado, mais uma vez pondo fim s reivindicaes de uma nica
igreja universalista. Isto o que o Tratado de Vestflia ps em prtica e o que Hobbes tentou
expressar, entre outras coisas, na teoria de seu livro: a autonomia e a autoridade do soberano
e o poder do soberano para estabelecer qual doutrina religiosa ou, de modo mais abrangente,
quais opinies devem ser ensinadas e mantidas dentro de uma comunidade, dentro de um
Estado.

Quem foi Hobbes? Hobbes nasceu em 1588, ano em que as foras navais inglesas
impediram a invaso da famosa Armada Espanhola em territrio britnico. Ele cresceu nos
ltimos anos da era elisabetana, era apenas um menino quando as peas mais famosas de
Shakespeare foram interpretadas pela primeira vez. Hobbes, como muitos de vocs, era
um estudante talentoso, e foi faculdade. Seu pai, que era um pastor local do sudoeste da
F
Inglaterra, enviou-o para Oxford quando ele tinha 14 anos de idade. Depois de formado, ele I
L
passou a trabalhar para uma famlia aristocrtica, a famlia Cavendish, e se tornou o professor O
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particular de seu filho. Seu primeiro livro foi uma traduo da Histria da Guerra do Peloponeso, O
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de Tucdides, o grande historiador grego que mencionamos na Unidade 1 quando falamos de I
A
Plato, que ele completou em 1629.
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Hobbes era um talentoso erudito clssico. Ele passou um tempo considervel no
continente europeu, com seu jovem pupilo, Sr. Cavendish. Neste tempo na Europa, ele T
I
conheceu Galileu e Ren Descartes. Foi durante a dcada de 1640, o perodo em que iniciou C
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140 TPICO 1 UNIDADE 2

a grande Guerra Civil Inglesa, culminando na execuo do rei Carlos I, que Hobbes deixou a
Inglaterra para viver na Frana. Ele deixou a Inglaterra com muitas famlias reais, as famlias
aristocrticas, que foram ameaadas pelos exrcitos republicanos organizados por Cromwell
e que tinham executado o rei. Hobbes, no entanto, estava profundamente angustiado com
a ecloso da guerra, ele passou um bom tempo refletindo sobre as causas da guerra e da
desordem poltica. Seu primeiro tratado, um livro chamado De Cive, ou Do Cidado (1998), foi
publicado em 1642, e era uma espcie de verso preliminar do Leviat. Este ltimo foi publicado
quase uma dcada mais tarde, em 1651, ano em que Hobbes volta Inglaterra, onde passa a
maior parte do resto de sua longa vida. O Leviat foi escrito por volta de seus 60 anos. Ele tinha
63 anos quando foi publicado. Passou o resto de sua longa vida trabalhando em problemas
cientficos e polticos. Ele escreveu uma histria das guerras civis da Inglaterra, chamada de
Behemoth ou Longo Parlamento (2001), que permanece um clssico da anlise das causas
do conflito social. Como se isso no bastasse, perto do fim de sua vida ele voltou para os seus
estudos dos clssicos, traduzindo toda a Ilada e a Odisseia de Homero. Ele morreu em 1679
com a idade de 91 anos.

Dos vrios retratos e descries de Hobbes, podemos dizer que ele era um homem de
considervel charme.

FIGURA 6 - THOMAS HOBBES

FONTE: Pintura a leo na tela de John Michael Wright, ca.1669-1670. Londres: National Portrait
Gallery. Disponvel em: <http://www.npg.org.uk/collections/search/portraitLarge/mw03164/
Thomas-Hobbes?LinkID=mp02204&role=sit&rNo=0>. Acesso em: 4 fev. 2015.

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Vamos citar uma breve passagem de seu bigrafo, um homem chamado John Aubrey,
O que de fato conheceu Thomas Hobbes. Aubrey escreveu sobre Hobbes:
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Ele tinha um bom olho e de cor de avel, que estava cheio de vida e de esprito,
P at o final. Quando ele estava zeloso em discurso, mostrava ali um brilho (por
O assim dizer), como uma brasa brilhante nele. Ele tinha dois tipos de olhares.
L
Quando ele ria, era espirituoso, e com um humor alegre, mal podiam ver-se
T seus olhos; e aos poucos, quando ele estava falando srio e positivo, ele abria
I os olhos redondos (i.e. suas plpebras) [...] Ele tinha seis ps de altura [1.83
C
A m] e algo mais. (AUBREY, 1898, p. 348-349, traduo nossa)
UNIDADE 2 TPICO 1 141

Isso de fato significava ser muito alto, no sculo XVII. Aubrey continua: Ele tinha lido
muito, se considerarmos sua longa vida, mas sua contemplao era muito mais do que a sua
leitura. Ele costumava dizer que se ele tivesse lido tanto quanto os outros homens, ele saberia
nada mais do que sabem os outros homens (AUBREY, 1898, p. 349, traduo nossa). Se ele
tivesse lido tanto quanto, ele saberia to pouco. Essa descrio de sua postura nos proporciona
um vislumbre do senso de humor de Hobbes, um humor irnico que se torna evidente em quase
todas as pginas do seu livro Leviat, mas, tenha cautela, voc deve ser um leitor atento.

Hobbes foi profundamente controverso, como voc pode suspeitar, durante toda a sua
vida. O Leviat foi execrado por quase todos os leitores do texto. Para os religiosos, ele era
um ateu mpio. Para os republicanos, ele tinha sido contaminado com a monarquia, ou com o
monarquismo. Para os monarquistas, ele era um ctico e pensador livre perigoso.

S!
DICA

Um excelente livro para aprofundar sobre a vida e a obra de


Thomas Hobbes o seguinte: TUCK, Richard. Hobbes. So Paulo:
Loyola, 2001.

2.1 Hobbes, Maquiavel e Aristteles

Hobbes, tal como Maquiavel, foi um dos grandes arquitetos do Estado moderno. At certo
grau a sua linguagem mais caracteristicamente moderna do que a de Maquiavel. Devemos
considerar apenas alguns dos seguintes aspectos: Maquiavel fala do prncipe, enquanto Hobbes
fala do soberano, que uma espcie de poder impessoal ou, na linguagem de Hobbes, um
poder artificial criado a partir de um contrato. O mtodo de Hobbes parece cientfico, por ser
formal e analtico, em contraste com a combinao de Maquiavel de um comentrio histrico
e uma reflexo elaborada a partir de sua experincia pessoal. Enquanto Maquiavel falou
muitas vezes da crueldade sublime de homens como Cipio e Anbal, Hobbes fala a linguagem F
I
mais ordinria, a linguagem do poder poltico, onde o objetivo no a glria e a honra, mas a L
autopreservao. E a nfase de Maquiavel sobre as armas consideravelmente atenuada pela O
S
nfase de Hobbes sobre as leis. Hobbes, em outras palavras, tentou tornar aceitvel, tentou O
F
tornar palatvel o que Maquiavel tinha feito, fornecendo um quadro mais preciso, mais legal e I
A
institucional para o Estado moderno.
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Ento, vamos pensar um pouco sobre o que Hobbes estava tentando realizar. Hobbes,
T
tal como Maquiavel, foi um inovador, e ele era autoconsciente de suas inovaes. Maquiavel I
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142 TPICO 1 UNIDADE 2

disse no dcimo quinto captulo de O Prncipe que ele seria o primeiro a examinar a verdade
efetiva das coisas, ao invs de imagin-las. Hobbes escreveu, em uma dedicatria do seu livro
Elementos da Filosofia, ou De Corpore, ao Conde de Devonshire, que a Filosofia Natural
jovem, a Filosofia Civil, assim que ele chamou a cincia poltica, mais jovem ainda, como
o meu prprio livro De Cive (2012, p. 6), o livro Do Cidado. Ou seja, ele argumenta que a
cincia poltica moderna comeou com este livro de 1642. O que ele pensava que era a sua
novidade? O que era de fato inovador e revolucionrio acerca da cincia poltica de Hobbes?
Hobbes claramente via a si mesmo, em muitos aspectos, como o fundador de uma cincia
poltica seguindo o modelo dos primeiros fundadores da revoluo cientfica. Fundadores como
Galileu, o qual Hobbes conhecera pessoalmente, assim como William Harvey e Ren Descartes
e um punhado de outros que eram parte do que ns chamamos de revolucionrios cientficos
modernos. Tal como esses revolucionrios que tinham derrubado o paradigma aristotlico
na cincia natural, Hobbes levantou-se para minar a autoridade de Aristteles na cincia civil,
na cincia/filosofia poltica e moral. Hobbes estabeleceu-se como o grande antiaristotlico, a
grande oposio a Aristteles.

Considere apenas a seguinte passagem do Leviat, de um dos nossos ttulos favoritos


do livro, o captulo quarenta e seis, intitulado "Das Trevas resultantes da V Filosofia e das
Tradies Fabulosas". Nesse captulo, Hobbes escreve:

Acredito que dificilmente se pode afirmar alguma coisa mais absurda em fi-
losofia natural do que aquilo que hoje se denomina metafsica de Aristteles,
nem mais repugnante ao governo do que a maior parte daquilo que disse
na sua Poltica, nem mais ignorante do que uma grande parte da sua tica
(HOBBES, 2003, p. 557).

Ento, nessa passagem voc observa Hobbes lanando um desafio. O que foi que ele
alegou encontrar de to absurdo, repugnante e ignorante em Aristteles? O que ele estava
tentando destronar em Aristteles? Hobbes est tipicamente preocupado com os fundamentos
desta nova cincia, tentando colocar os blocos de construo no lugar certo desde o incio.
Os captulos de abertura do Leviat apresentam um tipo de fsica poltica onde os seres
humanos so reduzidos ao corpo e o corpo reduzido mais ainda a tanto matria quanto
movimento. Os seres humanos podem ser reduzidos s suas partes mveis, tal como uma
mquina. "O que vida?", ele pergunta retoricamente na introduo. "A vida no passa de um
F
I
movimento dos membros [...] Pois o que o corao, seno uma mola; e os nervos, seno
L outras tantas cordas; e as juntas, seno outras tantas rodas (2003, p. 11). Ainda, o que a
O
S razo, seno um meio de clculo dos prazeres e das dores. Hobbes se prope a oferecer uma
O
F fsica deliberadamente e completamente materialista e no teleolgica da natureza humana.
I
A Na verdade, um discpulo francs de Hobbes no sculo seguinte, um homem chamado Julien
P Offray La Mettrie, escreveu um tratado, O Homem-Mquina (1982), seguindo de perto as linhas
O
L de Hobbes. Esta a maneira que a nova cincia poltica de Hobbes parece comear. Esse

T novo comeo se destina a oferecer, em muitos aspectos, uma alternativa abrangente fsica
I
C de Aristteles, ou poltica de Aristteles.
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UNIDADE 2 TPICO 1 143

Aristteles, lembre-se, defende que toda ao dirigida, orientada a finalidades. Todas


as aes visam preservao ou mudana, em fazer algo melhor ou evitar que se agrave.
Hobbes, de outro modo, acreditava que a motivao primordial do comportamento humano
em grande parte negativa. No o desejo de fazer o bem, mas o desejo de evitar algum mal.
Aristteles, para Hobbes, havia simplesmente visto o mundo pelo lado errado do telescpio.
Para Aristteles, o ser humano tem uma finalidade ou um telos, que viver uma vida em
comunidade com outros em prol da prosperidade humana. Mas, para Hobbes, entramos em
sociedade, no a fim de cumprir ou aperfeioar a nossa natureza racional, mas sim para evitar
o mal maior, ou seja, a morte ou o medo da morte, nas mos de outros. A poltica, para ele,
menos uma questo de decises prudenciais de melhor e pior, do que uma deciso existencial
de escolher a vida ou a morte. Para Hobbes, tal como para Maquiavel, a situao extrema da
vida e da morte, do caos e da guerra, como norma para a poltica e para a tomada de deciso
poltica, que serve como alternativa fundamental ou como um desafio a Aristteles.

Alm disso, Hobbes no s criticou as fundaes, as bases motivacionais e psicolgicas,


da teoria da poltica e da natureza humana de Aristteles, ele culpou a influncia de Aristteles
por grande parte dos conflitos civis de sua poca. Aristteles estava sendo cada vez mais
adotado pelos republicanos cvicos da Inglaterra de seu tempo. Estes tinham sido educados,
de acordo com Hobbes, no ensino de Aristteles de que o homem por natureza um animal
poltico. Esta foi a tese dos republicanos clssicos, segundo a qual s somos plenamente
humanos, ou somente nos tornamos plenamente humanos quando estamos envolvidos na vida
poltica, governando a ns mesmos por leis de nossa prpria criao. Esta era uma doutrina
que Hobbes atribua ao ensino nas universidades de sua poca. precisamente este desejo
de ser autogovernado, de governar diretamente, ter uma participao direta no governo poltico,
que Hobbes via como uma das grandes causas da guerra civil. Sua resposta a Aristteles
e aos republicanos clssicos de seu tempo era a sua famosa doutrina, que poderamos
chamar de governo indireto", ou o que talvez fosse mais familiar para ns pelo termo de
"governo representativo". O soberano no , para Hobbes, o povo ou alguma faco do povo
governando diretamente em sua capacidade coletiva. O soberano , para Hobbes, a vontade
do povo artificialmente reconstruda na pessoa de seu representante. Os atos representativos
do soberano seriam uma espcie de filtro das vontades e paixes do povo. O soberano no
a expresso direta da minha vontade ou da sua vontade, mas sim uma abstrao do meu
desejo natural de me governar. Em outras palavras, ao invs de buscar participar diretamente
F
no governo poltico, Hobbes quer que abstenhamos da poltica, ao concordar em sermos I
L
governados por este homem artificial, como ele o chama, esta pessoa artificial ou representante O
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que ele d o nome de "o soberano". O
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2.2 A Arte, A Cincia e A Poltica em Hobbes

"Porque pela arte", diz ele na introduo, " criado aquele grande LEVIAT a que se
chama REPBLICA, ou ESTADO, que no seno um homem artificial, embora de maior
estatura e fora do que o natural, para cuja proteo e defesa foi projetado." (HOBBES, 2003,
p. 11, grifo no original). O soberano, diz ele, o Leviat, este grande homem artificial, seria algo
mais parecido com o que hoje chamaramos de um rgo Poltico, em vez de uma pessoa,
assim como quando falamos do Poder Executivo referindo-nos aos rgos que exercem
esta funo. Hobbes cria este rgo Poltico chamado soberano. Agora, preste ateno na
linguagem utilizada na sentena que acabamos de citar da introduo: "Porque pela arte",
mais uma vez, " criado aquele grande LEVIAT". Quando Hobbes utiliza o termo "arte" aqui,
profundamente revelador de seu propsito. Para Aristteles, a arte pressupe a natureza.
Em outras palavras, a natureza precede a arte. A natureza fornece os padres, os materiais,
os modelos, para todas as artes posteriores. por isso que a cidade por natureza, o homem
por natureza. A natureza, portanto, aquela que fornece o padro. Ela precede a arte e o
artifcio humano ou o fazer humano. Todavia, para Hobbes, a arte no imita tanto a natureza,
bem mais do que isso, a arte pode criar um novo tipo de natureza, uma natureza artificial,
uma pessoa artificial. neste sentido que o grande Leviat criado atravs da arte. Atravs
da arte devidamente compreendida, como a criao, a engenhosidade e a destreza humana,
poderemos comear no apenas a imitar, mas poderemos transformar a natureza, torn-la em
algo de nossa prpria escolha.

O termo "arte", nessa passagem, tambm no para ser entendido como a anttese
da cincia, como quando falamos das artes e das cincias. Em vez disso, a cincia a mais
elevada forma de arte. A cincia o tipo de criao humana mais elevada. A cincia, ou o que
Hobbes simplesmente chama pelo nome de "razo", a expresso mais completa da destreza,
da arte humana. "A razo", diz ele no captulo cinco, "no nasce conosco como os sentidos e a
memria, nem adquirida apenas pela experincia", ele continua, "pelo contrrio, alcanada
com esforo, primeiro por meio de uma adequada imposio de nomes, e em segundo lugar
obtendo-se um mtodo bom e ordenado (HOBBES, 2003, p. 43). Pondere um pouco isso.
F "Razo", ele usa como sinnimo de outros termos, como a cincia ou a arte, ela no nasce
I
L simplesmente com a gente. No simplesmente uma herana gentica, nem simplesmente
O
S o produto da experincia, o que Hobbes chama pelo nome de "prudncia". Mas, em vez disso,
O
F a razo alcanada pelo esforo, pelo trabalho e desenvolvida, primeiro, pela imposio de
I
A nomes s coisas, atribuir nomes corretos s coisas e, segundo, pela obteno de um mtodo
P de estudo bom e ordenado. A razo, portanto, consiste na imposio de um mtodo para a
O
L conquista da natureza. Cincia, Hobbes nos diz, o conhecimento das consequncias,

T e a dependncia de um fato em relao a outro, ele continua, quando vemos como algo
I
C acontece, devido a que causas, e de que maneira, quando causas semelhantes estiverem sob
A
UNIDADE 2 TPICO 1 145

nosso poder saberemos como faz-las produzir os mesmos efeitos (HOBBES, 2003, p. 44). A
razo, a cincia e a arte so as capacidades de transformar a natureza pela imposio de um
mtodo que ir produzir efeitos semelhantes aps consequncias semelhantes. H, em outras
palavras, uma viso radicalmente transformadora, atravs de toda a obra de Hobbes, sobre a
razo, o conhecimento, a cincia, a cincia poltica, a cincia civil. A razo no meramente
uma simples observao, mas ao contrrio, o criar, o produzir, ou como ele diz, fazer causas
semelhantes produzir os efeitos desejados.

Ns podemos ter uma cincia da poltica, Hobbes acredita. Podemos ter uma cincia
civil, porque a poltica uma questo do criar humano, do fazer humano, dos acontecimentos
humanos. Ns podemos conhecer o mundo poltico. Podemos criar uma cincia da poltica,
porque somos ns que fazemos isto. O objetivo de Hobbes aqui libertar o conhecimento,
libertar a cincia da subservincia ou dependncia da natureza ou do acaso, da fortuna.
Libertar a cincia transformando-a em uma ferramenta para refazer a natureza, fazendo com
que esta atenda as nossas necessidades. A arte, especialmente a arte poltica, uma questo
de reordenar a natureza, at mesmo a natureza humana. Primeiro, de acordo com Hobbes,
resolvendo-a em suas unidades mais elementares, e em seguida, reconstruindo-a para que ela
produza os resultados desejados, tal como um fsico faria em um laboratrio. Esta a resposta de
Hobbes famosa convocao de Maquiavel, no captulo 25 de O Prncipe (2001b), para dominar
a fortuna, dominar o acaso ou a sorte. Mas podemos dizer que Hobbes vai alm de Maquiavel.
Maquiavel disse, no captulo referido acima, que o prncipe, se tiver sorte, vai dominar a fortuna
cerca de metade do tempo, apenas cerca de cinquenta por cento do tempo. O resto da ao
humana, o resto da arte de governar, ser realmente deixado ao acaso, sorte, contingncia,
s circunstncias. No entanto, Hobbes acredita que armado com o mtodo adequado, com a
arte apropriada ou a doutrina cientfica, poderemos eventualmente tornar-nos os senhores e
os possessores da natureza. Usamos esse termo "senhores e possessores da natureza", um
termo no utilizado por Hobbes, mas por Descartes, da sexta parte do Discurso sobre o Mtodo
(DESCARTES, 1996, p. 69), porque expressa perfeitamente as aspiraes de Hobbes, no s
para criar uma cincia da poltica, mas para criar uma espcie de comunidade poltica, uma
commonwealth, imortal fundamentada na cincia, na cincia civil apropriada, sendo, portanto,
imune flutuao, decadncia, guerra e conflito, o que todas as outras sociedades anteriores
experimentaram.

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Voc pode comear a ver, em outras palavras, na breve introduo de Hobbes ao seu I
L
livro, assim como nos captulos de abertura, o esprito imensamente transformador e realmente O
S
revolucionrio subjacente a este incrvel livro. O
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2.3 O que torna a Autoridade legtima possvel?
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146 TPICO 1 UNIDADE 2

Vamos agora, partir da metodologia e da cincia poltica. comum, ao iniciar a leitura


de um novo livro, perguntar-se qual questo central o autor est tentando responder. Qual a
grande questo que Hobbes quer responder? Nem sempre fcil discernir esta questo, porque
s vezes os autores no esclarecem as suas questes mais profundas ou mais fundamentais
aos seus leitores. No caso do Leviat, gostaramos de sugerir a voc que a questo central
de Hobbes : O que torna a autoridade possvel? Qual a fonte de autoridade? Ou, mais
precisamente, o que a legitima, o que torna a autoridade legtima possvel? Esta ainda uma
grande questo para ns quando pensamos sobre a construo de uma nao ou de novos
Estados, a questo de como criar uma autoridade legtima. Podemos observar, por exemplo,
que h um problema enorme como este na Ucrnia e o seu conflito com a autoproclamada
Repblica Popular de Donetsk. As pessoas de l lutam com o que constituiria uma autoridade
legtima. Essa a questo com que Hobbes est fundamentalmente preocupado. Mas, sua
pergunta vai alm. Ele questiona como podem indivduos que so biologicamente autnomos,
que julgam e veem as coisas muito diferente uns dos outros, que nunca podem ter certeza se
eles confiam uns nos outros, como podem esses indivduos aceitar uma autoridade comum?
E, mais uma vez, no apenas o que constitui a autoridade, mas o que a torna legtima. Essa
continua a ser no s a questo fundamental para Hobbes, mas para toda a tradio do contrato
social que ele ajudou a criar.

Voc poderia dizer: claro que a pergunta, o que torna legtima a autoridade, s
possvel, ou s gerada quando a autoridade est em questo. Ou seja, quando as regras que
regem a autoridade se rompem em tempos de crise, e isso era certamente verdade na poca de
Hobbes, um tempo de guerra civil e crise. Entretanto, para responder a essa pergunta, Hobbes
conta uma histria. Ele conta uma histria sobre algo que ele chama de "estado de natureza",
um termo que ele no inventou, mas com o qual seu nome ser sempre associado. "O estado
de natureza" no um estado de graa do qual podemos ter cado, como no relato bblico do
den, tampouco uma condio poltica, conforme mantido em certo sentido por Aristteles,
quando ele diz que a polis por natureza. O estado de natureza para Hobbes uma condio
de conflito e de guerra. Por um "estado de natureza" ou por um estado de guerra, ele significa
uma condio em que no h nenhuma autoridade reconhecida para nos manter no temor,
nenhuma autoridade para nos fazer reverenciar. Tal condio, um estado de guerra, pode
significar uma condio de guerra aberta, mas no necessariamente. Hobbes diz que tambm
F
pode significar a vontade de lutar, simplesmente o desejo ou a vontade de se envolver em
I
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conflitos. Um estado de guerra pode incluir, em outras palavras, o que poderamos chamar de
O
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"guerra fria", dois lados hostis olhando um para o outro atravs de alguma espcie de barreira,
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no estando claro ou certo o que o outro poder ou ir fazer.
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Assim, o estado de natureza no necessariamente uma condio de luta real, mas o
P
O que ele chama de uma "conhecida disposio para lutar." Se conhecido ou acredita-se que
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voc est disposto a lutar, voc est em um estado de guerra. uma condio, para Hobbes,
T
I de insegurana mxima onde, em sua famosa frmula, "a vida do homem solitria, pobre,
C
A srdida, brutal e curta" (HOBBES, 2003, p. 109). Talvez ele devesse ter dito felizmente curta.
UNIDADE 2 TPICO 1 147

Esta a condio natural, o estado de natureza, o estado de guerra que Hobbes atribui ao
fato fundamental da natureza humana. A sua afirmao que o estado de guerra a condio
na qual estamos naturalmente habituados. Portanto, entre outras coisas, a natureza no nos
une em paz, em harmonia, na amizade, ou em solidariedade. Se a natureza uma norma,
no nos inclina ou tendencia paz, amizade e solidariedade com os outros. Somente a arte
humana, a cincia, a capacidade inventiva humana, pode trazer a paz. Os conflitos e as guerras
so primrios. A paz um possvel derivado. Em outras palavras, para Hobbes, autoridade e
relaes de autoridade no surgem naturalmente entre ns, mas como a prpria cincia civil,
um produto da inventividade ou da arte.

2.4 um relato plausvel do estado de natureza

Portanto, a questo continua a ser para ns a mesma que desafiou os leitores no


prprio tempo de Hobbes, o que torna plausvel a histria narrada por Hobbes sobre o estado
de natureza como uma condio de guerra? O que torna crvel esse relato da condio na
qual ns estamos naturalmente? Por que devemos acreditar na histria de Hobbes e no em
alguma outra histria? Vamos comentar brevemente sobre isso.

De certo ponto de vista, o seu relato sobre o estado de natureza parece derivar de
sua fsica do movimento e do repouso, tambm expostas nos captulos iniciais do Leviat. Ele
comea a obra, voc j deve ter lido, com uma explicao da natureza humana, uma explicao
da psicologia humana, como um produto dos sentidos e da experincia. Somos corpos em
movimento e no podemos evit-lo, apenas obedecer lei ou fsica da atrao e da repulso.
Somos corpos em movimento constante (HOBBES, 2003). Ele parece, em outras palavras, ter
um tipo de psicologia materialista na qual o comportamento humano apresenta, por exemplo,
as mesmas tendncias mecnicas que bolas de bilhar tendem a obedecer. Ou seja, processos
causais ou geomtricos de causa e efeito. O estado de natureza, nesse sentido, no visto por
ele como uma condio histrica real, embora, ocasionalmente, ir se referir a algo semelhante
evidncia antropolgica para sustentar seu ponto de vista sobre o estado da natureza. Todavia,
o estado de natureza, para ele, uma espcie de experimento mental, maneira da cincia
F
experimental. Este consiste em tomar os seres humanos que so membros de famlias, de I
L
Estados, de reinos, e assim por diante, dissolvendo essas relaes sociais em suas unidades O
S
fundamentais, nomeadamente os indivduos abstratos, e, em seguida, imaginando, mais uma O
F
vez, maneira de um qumico ou um fsico, como essas unidades bsicas, hipoteticamente, vo I
interagir umas com as outras, semelhante s propriedades das substncias qumicas. Como A

nos comportaramos nesse tipo de experimento mental? Esta seria uma maneira de ler Hobbes, P
O
compreendendo que ele deseja que pensemos sobre o estado de natureza semelhante a um L

experimento cientfico. Hobbes , portanto, um dos grandes fundadores do que poderamos T
I
chamar de o mtodo experimental em cincias sociais e polticas. E h uma razo para isso. C
A
148 TPICO 1 UNIDADE 2

Quando Hobbes era um homem jovem, ele trabalhou como secretrio particular por
um curto perodo de tempo, para outro ingls muito famoso. Este era Francis Bacon, o grande
fundador do que ns chamamos de o mtodo experimental, o mtodo da tentativa e erro, e,
possivelmente, Hobbes foi influenciado de vrias formas pela prpria filosofia da experincia
e do experimento de Bacon. Hobbes tomou o mtodo de Bacon e o aplicou poltica. Tentou
imaginar a condio natural do ser humano, aquilo que somos por natureza, a partir de
um processo de abstrao. Abstraindo, portanto, todas as relaes e as propriedades que
adquirimos ao longo da histria, atravs dos costumes e da experincia, desnudando-nos
das mesmas, como se fossem camadas de uma cebola, e praticamente colocando-nos em
um tubo de ensaio experimental ou sob um microscpio. E ali, observando como ns, nessas
condies, reagiramos e nos comportaramos uns com os outros.

3 HOBBES E A INDIVIDUALIDADE: PARTE 1 DO HOMEM

Tentamos, at agora, identificar o problema central de Hobbes, o problema da autoridade,


o que torna a autoridade legtima possvel. A fim de responder a essa pergunta, sugerimos
que ele criou uma ideia, uma metfora de um estado de natureza. A parte 1, intitulada Do
Homem, do Leviat (2003, p. 11-142), dedicada a explorar esta ideia. Este estado de natureza
hobbesiano praticamente o oposto da concepo do telos natural do homem aristotlico.
No consiste da nossa perfeio, uma condio para nossa perfeio, como Aristteles
acreditava. Para Hobbes, o estado de natureza algo como a condio da vida humana na
ausncia de autoridade, na ausncia de qualquer um que imponha as regras, a ordem, a lei
sobre ns. Como seriam os seres humanos em tal condio? possvel que ele imaginasse
essa condio mantendo uma semelhana com os perodos de crise, de guerra civil do tipo
que ocorria na Inglaterra na dcada de 1640. Tambm sugerimos que, em muitos aspectos,
a ideia de Hobbes do estado de natureza pode ser entendida como uma extenso de sua
metodologia cientfica estabelecida nos captulos iniciais do livro. Onde ele nos solicita imaginar
os seres humanos como se estivessem em uma espcie de tubo de ensaio em um laboratrio,
para decompor os seres humanos de todos os seus laos sociais, de seus costumes e suas
tradies. Possibilitando, assim, observar como eles seriam na abstrao de todas as suas
F
I relaes sociais e polticas, das quais se beneficiam, e observar como eles interagem uns com
L
O os outros, praticamente como se fossem propriedades qumicas.
S
O
F
I Todavia, compreender Hobbes a partir dessa abordagem, uma concepo cientfica ou
A
protocientfica do estado de natureza, no a resposta completa para essa histria. Porque
P
O subjacente concepo do estado de natureza hobbesiano jaz uma poderosa concepo moral,
L
uma ideia moral do ser humano, e sobre isso que vamos falar um pouco agora.
T
I
C
A Hobbes um moralista, o que pode parecer estranho em alguns aspectos. Como
UNIDADE 2 TPICO 1 149

poderia o sombrio e melanclico Thomas Hobbes ser considerado um moralista ou algum com
uma concepo moral da natureza humana e da condio humana? O termo que poderamos
caracterizar melhor a sua concepo do estado de natureza o de individualidade. Hobbes
nos mostra o que exercer a qualidade de agncia moral; isto , agir por ns mesmos ao invs
de ter as coisas feitas para ns. Hobbes introduziu na nossa linguagem moral o idioma da
individualidade. E este conceito, o conceito do que ser um indivduo, um agente moral, no
realmente mais antigo do que o sculo XVII. At o Renascimento, as pessoas consideravam-se
essencialmente no como indivduos, mas como membros de uma famlia particular, de uma
casta, de uma aliana, de uma ordem religiosa particular, de uma cidade ou assim por diante.
A ideia de que algum antes de tudo um self, um "indivduo", um ego, um eu, teria sido
considerada como ininteligvel. At mesmo no sculo XIX, Alexis de Tocqueville em Democracia
na America, no volume 2, captulo 2, diz, "o individualismo uma expresso recente que
uma nova ideia fez surgir" (TOCQUEVILLE, 2005, p. 119). Essa ideia soou como nova para
Tocqueville, mesmo no sculo XIX. Essa ideia do indivduo, queremos sugerir, pelo menos
em parte rastrevel a Hobbes.

O que o indivduo para Hobbes? Hobbes concebeu-nos, atravs de um processo de


abstrao da rede de afetos, vnculos, nos quais nos encontramos. Somos seres, ele argumenta
novamente nos captulos iniciais do Leviat, especialmente no captulo seis e sete da primeira
parte (2003), cujas caractersticas fundamentais so a vontade e a escolha. Somos seres para
quem o exerccio da vontade uma caracterstica proeminente e muito da nossa felicidade
como seres humanos depende de nossa capacidade de exercer a nossa prpria vontade e
nossa capacidade para a escolha. A vida para Hobbes um exerccio de contnua disposio
e contnua escolha, que pode ser temporariamente interrompido, mas nunca pode chegar a
um fim, exceto com o fim da prpria vida. A individualidade ou o individualismo de Hobbes
est intimamente ligado a essa concepo de um ser humano ou do bem-estar humano como
o sucesso na competio para os bens da vida. "O sucesso contnuo", ele escreve ainda no
captulo seis, "na obteno daquelas coisas que de tempos em tempos os homens desejam,
quer dizer, o prosperar constante, aquilo a que os homens chamam Felicidade; refiro-me
felicidade nesta vida, ou seja, o nosso bem-estar depende de nossa capacidade de alcanar
os objetos de nossos desejos, os objetos de nossas escolhas. Continua ele, pois no existe
uma perptua tranquilidade de esprito enquanto aqui vivemos, porque a prpria vida no passa
de movimento, e jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como no pode deixar
F
de haver sensao (HOBBES, 2003, p. 57). Estas so as caractersticas da vida humana, I
L
o sentido, o medo e o desejo. O desejo contnuo de uma coisa aps a outra, e para Hobbes, O
S
este fato no simplesmente uma descrio fsica ou factual do comportamento humano, mas O
F
uma condio moral, porque cada um de ns um feixe de atividade e iniciativa, de gostos I
A
e desgostos, de desejos e averses. A vida para Hobbes a competio ou luta no apenas
P
por recursos escassos, apesar de que isso possa ser parte da luta, mas pela honra ou por O
L
qualquer outra coisa que uma pessoa pode valorizar ou estimar.
T
I
C
A
150 TPICO 1 UNIDADE 2

S!
DICA

Uma leitura recomendada para aprofundar a concepo do


humano hobbesiano, especialmente a partir do Leviat,
o livro: MATOS, Ismar Dias de. Uma descrio do
humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. So Paulo:
Annablume, 2007.

Hobbes fascinado, tal como Montaigne e uma srie de outros autores, com a grande
diversidade e a multiplicidade de desejos humanos. O que leva uma pessoa ao riso leva outras
ao pranto; o que leva uma pessoa piedade e s preces leva outra ao ridculo e assim por
diante. At mesmo os termos morais, Hobbes diz, termos como "bom" e "mal", so expresses
de nossos gostos e desgostos individuais. As palavras bom, mal e desprezvel so
sempre usadas em relao pessoa que as usa (HOBBES, 2003, p. 48). Ns gostamos de
alguma coisa, diz ele, no porque ela boa, mas ns chamamos algo de bom, simplesmente
porque gostamos daquilo. O mesmo ocorre com os outros atributos e qualidades morais. So
expresses, para ele, dos nossos estados psicolgicos e aspiraes e este individualismo
que a base da competio geral de que todos ns experimentamos em relao aos objetos
de nossos desejos. a partir disso que ele alega ser a competio, a luta, a inimizade e a
guerra, a nossa condio natural. Em uma famosa passagem do captulo onze, ele assinala
que a tendncia geral de todos os homens, um perptuo e irrequieto desejo de poder e mais
poder, que cessa apenas com a morte (HOBBES, 2003, p. 85). Esta a inclinao geral de
toda a humanidade. Mas, essa inquietao constante e movimento, essa expresso de nossa
individualidade, o que estamos chamando de individualismo hobbesiano, est conexo e at
subscrito por outro atributo que central para Hobbes. O seu ceticismo.

3.1 Hobbes e A viso ctica do conhecimento

F Como muitos dos primeiros grandes filsofos modernos, pensadores como Montaigne,
I
L Descartes e Espinosa, Hobbes estava obcecado com a questo o que podemos saber? ou,
O
S expondo de um modo diferente, o que temos o direito de acreditar. H muitas passagens no
O
F Leviat que testemunham a viso fundamentalmente ctica de Hobbes sobre o conhecimento.
I
A Ele um ctico no porque ele acredite que no possa haver fundamentos para as nossas
P crenas. Ele um ctico no sentido de que no pode haver, em sua opinio, fundamentos
O
L transcendentes ou no humanos para as nossas crenas. Para ele, ns no podemos ter certeza

T dos fundamentos ltimos de nosso conhecimento, e isto explica a importncia que ele atribui
I
C
ao nomear e ao acoplar as definies corretas s coisas. A razo, neste sentido, nada mais
A
do que clculo (isto , adio e subtrao) das consequncias de nomes gerais estabelecidos
UNIDADE 2 TPICO 1 151

para marcar e significar os nossos pensamentos (HOBBES, 2003, p. 39-49, grifo do autor).

Conhecimento, em outras palavras, para Hobbes uma construo humana e est


sempre sujeito ao que os seres humanos podem acordar ou estabelecer. Esta viso ctica
do conhecimento ou, pelo menos, viso ctica da fundao do conhecimento, tem profundas
consequncias. Se todo o conhecimento, em ltima anlise de acordo com Hobbes, baseia-se
em um acordo sobre os termos comuns, ele deduz que a nossa razo, nossa racionalidade,
no tem nenhuma participao no que Plato ou Aristteles teriam chamado o nous divino, a
inteligncia divina. Nossa razo tem dentro de si nenhuma fasca de divindade. Nossa razo
no testemunha a algum tipo de voz interior da conscincia ou qualquer coisa que pretenda
dar-lhe algum tipo de fundao indubitvel. A certeza que temos sobre qualquer coisa para
Hobbes sempre provisria, descoberta com base na experincia e sujeita reviso contnua
luz de novas experincias adquiridas. Novamente, aqui temos a concepo experiencial
do conhecimento. Esse tipo de ceticismo sobre os fundamentos do conhecimento tem outras
implicaes para as concepes de Hobbes sobre coisas como a religio e a tolerncia religiosa.

"S no homem encontramos sinais, ou frutos da religio (HOBBES, 2003, p. 92, grifo
do autor), diz ele no captulo doze. Ou seja, as causas da religio podem ser rastreadas e
esto enraizadas na inquietao da mente humana em sua busca por causas. Nascemos
ignorantes das causas das coisas, e por isso, argumenta Hobbes, somos levados a buscar
origens e procedncias. Isso nos leva, em ltima anlise, a postular a existncia de Deus, que
, por assim dizer, a causa primeira de todas as coisas. Apesar deste tipo de viso racionalista
da religio e de sua viso que a mesma tem a sua origem na inquietude da mente humana,
Hobbes no nega a possibilidade de algum tipo de revelao ou algum tipo de comunicao
direta de Deus. Mas, o que ele nega que qualquer um que possa reivindicar ter recebido
tal revelao, tenha o direito de impor esse ponto de vista a algum. Pois, ningum pode ter
os meios adequados para verificar a afirmao de uma pessoa sobre tal revelao. Ou seja,
ningum pode impor sua reivindicao de conhecimento revelado ao outro. Ser que isto faz
de Hobbes um ateu, assim como muitos de sua poca o consideraram? No. Isso faz dele um
ctico sobre a religio revelada.

F
I
3.2 O estado dE natureza L
O
S
O
Para Hobbes, no poderia haver padres para julgar os conflitos no estado de natureza, F
I
o que seria coerente com seu individualismo, seu ceticismo e sua viso da vida como vontade A

e escolha. a partir deste background, deste plano de fundo, que a questo central da poltica P
O
surge: O que torna a autoridade possvel? Como que pessoas, que so indivduos constitudos L

por uma singularidade biolgica, so capazes de obedecer a regras comuns ou tm obrigaes T
I
morais uns para com os outros? Hobbes continua a levantar esta questo em praticamente C
A
152 TPICO 1 UNIDADE 2

quase todas as pginas do livro. Considere um pouco mais o relato de Hobbes sobre o estado
de natureza, pois este um ponto de partida plausvel para responder questo referida acima.

Dizer que o estado de natureza constitudo principalmente de indivduos com


diversidades de gostos, desgostos, crenas, opinies e afins no dizer que este um estado
de isolamento, como s vezes lhe atribudo. Pessoas no estado de natureza podem ter
contato regular e contnuo uns com os outros. O que ocorre somente que as suas relaes
no so reguladas. No so regulamentadas por lei, nem por autoridade. O estado de natureza
simplesmente uma espcie de condio de insegurana mxima, tal como um mercado no
regulamentado, sem leis ou regras comuns para sustent-lo. A nfase no indivduo apenas
outra maneira de dizer, ao contrrio de Aristteles, que ningum tem autoridade natural sobre
qualquer outra pessoa. As relaes de autoridade s existem por consentimento ou pela vontade
dos governados. O fato de que as relaes no estado de natureza no so regulamentadas
faz com que este seja, como ilustra Hobbes em sua clebre formulao, uma condio de
guerra de todos contra todos" (HOBBES, 2003, p. 110),

Voc poderia olhar para essa formulao, o estado de guerra de todos contra todos, e
dizer que tal condio de guerra civil, de insegurana mxima, do colapso total da condio
de regras e leis, um estado de exceo. Afinal, com que frequncia isso realmente ocorre
em nossa experincia na vida humana? Todavia Hobbes, tal como Maquiavel, gosta de levar a
situao excepcional e transform-la em norma. O estado de insegurana, de medo, de conflito
e afins se torna a condio normal.

Isso no quer dizer que o estado de natureza para Hobbes um estado de combate
permanente. Com certeza, um estado de medo e desconfiana permanentes. Hobbes pede
aos seus leitores que, por acaso, no acreditaram nas suas inferncias sobre as paixes,
novamente, lembre-se do seu ceticismo, que confirmem com a sua prpria experincia. Ele
escreve assim:

Considere-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e


procura ir bem acompanhado; quando vai dormir fecha as suas portas; mesmo
quando est em casa tranca os seus cofres, embora saiba que existem leis e
servidores pblicos armados, prontos a vingar qualquer dano que lhe possa ser
feito. Que opinio tem ele dos seus compatriotas, ao viajar armado; dos seus
F concidados, ao fechar as suas portas; e dos seus filhos e criados, quando
I tranca os seus cofres? No significa isso acusar tanto a humanidade com seus
L
O
atos como eu o fao com as minhas palavras? (HOBBES, 2003, p. 109-110)
S
O
F Voc pode ver a astcia de Hobbes nesta deleitosa passagem. Pondere sobre voc,
I
A diz ele, e isso no em algum tipo de estado de natureza. Isto em uma sociedade completa
P e em pleno funcionamento que voc viaja armado, que voc fecha as portas, que voc tranca
O
L seus cofres noite. As suas aes e a sua experincia simplesmente no confirmam o que

T estou dizendo? E isso nos diz outra coisa sobre o estado de natureza, e que fcil de esquecer.
I
C O estado de natureza, pelo menos para Hobbes, no um dado antropolgico primitivo que
A
UNIDADE 2 TPICO 1 153

encontramos ao regressar de alguma forma no tempo. Rousseau quem fala mais sobre isso
dessa forma. No entanto, para Hobbes, o estado de natureza existe sempre que a autoridade no
imposta. O estado de natureza continua totalmente, soe isto estranho ou no, na sociedade
civil, sempre que temos razo para acreditar que nossas vidas ou nossos imveis ou ns
mesmos no estamos seguros. Na verdade, nunca podemos estar totalmente livres do medo,
da ansiedade e da incerteza do estado de natureza, mesmo no interior de uma sociedade civil
plenamente constituda.

Assim, o estado de natureza um estado de insegurana, um estado de conflito. Mas,


como que vamos sair dele? Este o enorme problema sobre o qual Hobbes se debrua em
quase todo o resto da obra. O que vamos fazer para sair deste estado de natureza e ingressar
na sociedade civil, em uma condio de vida civilizada? Como posso abrir mo do meu direito
de fazer o que estiver em meu poder para proteger a minha pessoa ou meus bens, quando
no tenho garantia de que os outros ao meu redor esto preparados para faz-lo tambm?
Isto uma espcie de um exemplo clssico de que os economistas e psiclogos chamam
de o dilema do prisioneiro. Por que eu deveria agir de tal forma se eu no tenho nenhuma
expectativa razovel de que os que me rodeiam vo agir reciprocamente?

Os membros do estado de natureza hobbesiano parecem estar envolvidos no problema


clssico do dilema do prisioneiro. Talvez, poderamos dizer que abrir mo do nosso direito
de fazer todas as coisas na busca pela paz com os outros a coisa mais racional a se fazer
na condio de natureza. Somos todos agentes racionais e, portanto, racional procurarmos
e desejarmos a paz. Mas, note que isso exatamente o que Hobbes no diz. Longe de usar
um modelo de agente racional da poltica, ele opera com um modelo de agente irracional. Ele
assume que no a razo, mas sim as nossas paixes que so a fora dominante da psicologia
humana, nossos desejos, nossas averses, nossas paixes. Apesar de termos dito que Hobbes
enfatiza a diversidade de nossas paixes, h duas paixes principais, as quais ele acredita que
dominam universalmente a natureza humana. Essas duas paixes so o orgulho e o medo.

3.3 Orgulho e medo: As paixes que dominam


a Natureza Humana
F
I
L
O orgulho e o medo so os equivalentes hobbesianos dos dois grandes humores de O
S
Maquiavel os dois humores das duas grandes classes sociais, o desejo dos ricos e poderosos O
F
de governarem os outros, e o desejo dos fracos de no serem governados. Hobbes, de modo I
A
semelhante, tambm opera com uma espcie de modelo. Ele se revela como um grande
P
psiclogo poltico ao trabalhar, especialmente no captulo oito (2003, p. 61-73), com estas O
duas grandes paixes, o orgulho e o medo. O orgulho, diz ele, a paixo pela preeminncia, o L

desejo de ser o primeiro e tambm ser visto como o primeiro na grande corrida da vida. Pessoas T
I
orgulhosas, ele nos diz, so aquelas que transbordam com confiana sobre suas prprias C
A
154 TPICO 1 UNIDADE 2

habilidades para obter sucesso e todos ns conhecemos pessoas como estas. Maquiavel
poderia cham-los de homens viris, plenamente confiantes em suas prprias habilidades.

Contudo, Hobbes um grande solapador do orgulho humano. O orgulho equivalente


ao que ele chama de vaidade ou vanglria. um tipo de confiana exagerada no poder e na
capacidade prpria. O orgulho o desejo de assenhorear-se dos outros e ter a sua superioridade
reconhecida pelos outros, e isso, para Hobbes, um grande problema a ser evitado. Mas se o
orgulho, para ele, uma das suas grandes paixes universais, assim o seu oposto, o medo.
Ele vai descrever essa paixo especialmente a partir do captulo seis (2003, p. 51). Talvez
Hobbes exagere um pouco nisso, mas ele faz parecer que o estado de natureza uma espcie
de condio existencial em que a morte pode vir a voc em quase qualquer momento. Mas h
mais a respeito do medo do que simplesmente o medo da morte, embora Hobbes enfatize e
dramaticamente sobrevalorize isso. O medo no apenas o desejo de evitar a morte, mas de
evitar a perda. Voc poderia dizer que isso perceptvel na grande corrida da vida, o desejo
de evitar perder e de ser visto como um perdedor. o desejo de evitar a vergonha de ser visto
por outros como perdendo de alguma forma. H uma qualidade social claramente visvel em
ambas essas paixes, o orgulho e o medo. A primeira, o desejo de obter proeminncia e estima
dos outros. A segunda, o desejo de evitar a vergonha e a desonra.

Como somos vistos pelos outros uma parte crucial da psicologia moral de Hobbes e
cada um de ns, segundo ele, a possui. Estas paixes no representam simplesmente duas
classes de indivduos, duas classes de pessoas. Cada um de ns possui esses dois elementos
beligerantes em nosso interior, tanto a autoafirmao e o medo das consequncias dessa
autoafirmao. A questo para Hobbes como vamos domar essas paixes? Acima de tudo,
o orgulho que Hobbes quer domar. O prprio ttulo de seu livro, Leviat, ele nos diz, mais
tarde, vem de uma passagem do Livro de J, onde ele se refere ao Leviat como o Rei de
todos os filhos da Soberba. Vejamos a passagem:

At aqui expus a natureza do homem (cujo orgulho e outras paixes o obri-


garam a submeter-se ao governo), juntamente com o grande poder do seu
governante, ao qual comparei com o Leviata, tirando essa comparao dos
dois ultimos versiculos do capitulo 41 de Jo, onde Deus, aps ter estabelecido
o grande poder do Leviat, lhe chamou Rei dos Soberbos. No ha nada na
Terra, disse ele, que se lhe possa comparar. Ele feito de maneira que nunca
tenha medo. Ele ve todas as coisas abaixo dele, e e o Rei de todos os Filhos
F
I
da Soberba. (HOBBES, 2003, p. 271)
L
O
S
O
O livro, portanto, baseado em uma metfora bblica sobre a superao ou o subjugar
F do orgulho.
I
A

P Vale a pena lembrar-se do magnfico discurso de Marsellus Wallace no filme Pulp Fiction,
O
L ele diz, orgulho s di, ele nunca ajuda (PULP, 1994). Medo, Hobbes diz, a paixo com a

T qual podemos contar. o medo, no a razo, que nos leva a abandonar o estado de natureza
I
C e pedir a paz. O medo da opresso predispe os homens antecipao ou a buscar ajuda
A
UNIDADE 2 TPICO 1 155

na associao, pois no h outra maneira de assegurar a vida e a liberdade (HOBBES, 2003,


p. 87). Ele continua em outra passagem, as paixes que fazem os homens tender para a paz
so o medo da morte, o desejo daquelas coisas que so necessrias para a vida confortvel e
a esperana de consegui-las por meio do trabalho (HOBBES, 2003, p. 111). Isso no significa
dizer que Hobbes acredita que o medo naturalmente a mais forte das duas paixes. Na
verdade, longe disso. Certamente h muitas pessoas ao nosso redor, Hobbes acredita, que
no temem a morte como deveriam. O aristocrata orgulhoso que prefere a morte antes da
desonra, o fantico religioso preparado para sacrificar sua prpria vida e as dos outros, a fim
de alcanar as recompensas dos cus e, claro, o risco que alguns indivduos assumem ao
escalar o Monte Everest, por exemplo, apenas pela honra e a estima envolvidas. E parte da
funo educacional mais ampla ou pedaggica do Leviat a nos ajudar a ver os perigos do
orgulho e das vantagens da paz. Destarte, bem dirigido, o medo conduz paz.

3.4 As leis da Natureza

O medo a base, at mesmo do que Hobbes chama de leis da natureza, ou normas


de paz, que nos levam sociedade civil (2003, p. 111). As leis da natureza, para Hobbes,
so descritas como um preceito ou regra geral da razo segundo a qual todo homem deve
esforar-se pela paz e a partir do medo que comeamos a raciocinar e ver as vantagens da
sociedade; a razo dependente das paixes, do medo. A primeira e mais fundamental lei da
natureza, diz ele, procurar a paz, e segui-la (2003, p. 113).

Nos captulos quatorze e quinze do Leviat (HOBBES, 2003, p. 112-137), o autor


descreve o que ele chama de leis da natureza. Argumenta que no s se deve buscar a paz, mas
temos a obrigao de depor as armas, abrir mo do nosso direito de fazer todas as coisas sob
a condio de que os outros nossa volta esto dispostos a faz-lo tambm. Hobbes continua
a enumerar dezenove leis da natureza, no vamos falar de todas elas, mas as dezenove leis
da natureza constituem uma espcie de quadro para o estabelecimento da sociedade civil. Ele
at mesmo compara essas leis como o seu equivalente da Regra de Ouro disposta tambm
no Evangelho, faz aos outros o que queres que te faam a ti, e ele afirma no negativo, como
F
a lei de todos os homens: Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris (HOBBES, 2003, p. 113), I
ou seja, no faa aos outros o que voc no gostaria que fizessem a voc. Aqui Hobbes L
O
reescrevendo a Regra de Ouro em termos destas leis da natureza, mas isto levanta uma questo S
O
para ns, como leitores de Hobbes. Qual o status das leis da natureza? Qual o status moral, F
I
se houver, dessas leis? Hobbes, como se v, s vezes escreve como uma espcie de cientista A

ou protocientista para quem a natureza, e supem-se as leis da natureza, operam com o mesmo P
O
tipo de necessidade que as leis da atrao fsica. assim que ele descreve com frequncia L

o comportamento humano, que este obedece s mesmas leis da atrao fsica como fazem T
I
todos os outros corpos que poderamos querer descrever. Essas leis da natureza descrevem C
A
156 TPICO 1 UNIDADE 2

como corpos em movimento sempre e necessariamente se comportam.

No entanto, ao mesmo tempo, Hobbes escreve como um moralista para quem as leis da
natureza, que ele chama de "preceitos da razo" ou regras gerais, nos probem de fazer qualquer
coisa destrutiva com a vida. Neste sentido, as leis da natureza, como ele as descreve, parecem
ser leis morais com mandamentos morais, que nos ordena a no fazer nada que seja destrutivo
vida, a sua prpria ou a dos outros. Nesse sentido, temos presumivelmente a liberdade de
obedec-las ou desobedec-las. Se elas agissem com uma espcie de necessidade mecnica
ou mesmo uma necessidade geomtrica, elas no poderiam ser leis morais. S podem ser
moral se existir alguma possibilidade de escolha humana ou de vontade expressa na relao, a
nossa capacidade de fazer o contrrio. Assim estas leis da natureza, de procurar a paz e assim
por diante, no parecem simplesmente serem descritivas de como as pessoas se comportam.
Elas parecem ser prescritivas de como as pessoas devem se comportar. isso o que Hobbes
sugere no final do captulo quinze, quando ele escreve sobre as leis da natureza, "esses ditames
da razo os homens costumam dar o nome de leis, mas impropriamente. Pois eles so apenas
concluses ou teoremas relativos ao que contribui para a conservao e defesa de cada um
(HOBBES, 2003, p. 137). Costuma-se chamar estes ditames de leis da natureza, diz ele, mas
de forma inadequada. Ento, se so apenas indevidamente leis da natureza, por que Hobbes
continua a usar o termo? Por que ele usa essa terminologia de "leis da natureza"? Em certo
sentido, isso pode ser simplesmente a maneira de Hobbes homenagear a antiga tradio da
lei natural voltando-se aos escolsticos medievais, aos estoicos, e talvez at alm deles. As
leis naturais para Hobbes no so mandamentos ou ordenanas divinas, ele argumenta na
mesma passagem, mas so regras da razo prtica descobertas por ns como os meios ideais
para garantir o nosso bem-estar. Estas leis da natureza, como ele as descreve, no emitem
comandos categricos, tampouco regras hipotticas, do tipo se voc quer X, faa Y; se voc
quer paz, estes so os meios para obt-la. Ele chama essas leis, essas dezenove leis de
natureza, a verdadeira e nica filosofia moral (2003, p. 136). Assim, voc pode ver que nessa
passagem, Hobbes considerando a si mesmo como um moralista escrevendo no interior da
grande tradio da filosofia moral.

Bem, isso nos leva a algumas crticas, ou pelo menos algumas perguntas sobre a
concepo das leis da natureza de Hobbes. O que devemos fazer com essas leis? Em certo
F
sentido, parece haver um contedo moral genuno nas leis da natureza de Hobbes que pode
I
L
ser reduzido a uma nica frmula: Procure a paz acima de todos os outros bens. Hobbes, mais
O
S
do que ningum, quer que valorizemos as virtudes da civilidade. Isto o que as dezenove leis
O
F
da natureza comandam. A civilidade implica as virtudes da paz, equidade, justia e de respeito
I pelas regras (2003, p. 137). A paz para Hobbes um bem moral e as virtudes so aquelas
A
qualidades de comportamento que tendem paz e os vcios so os que levam guerra. Basta
P
O considerar as desvantagens de guerra e os benefcios da paz. Aqui est o que Hobbes escreve:
L

T
I Numa tal condio no h lugar para o trabalho, pois o seu fruto incerto;
C consequentemente, no h o cultivo da terra, nem navegao, nem uso das
A mercadorias que podem ser importadas pelo mar; no h construes con-
UNIDADE 2 TPICO 1 157

fortveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de


grande fora; no h conhecimento da face da Terra, nem cmputo do tempo,
nem artes, nem letras; no h sociedade; e o que pior que tudo, um medo
contnuo e perigo de morte violenta. (HOBBES, 2003, p. 109)

Esta , mais uma vez, o tipo de condio existencial em que Hobbes quer nos colocar
no estado de natureza. E todos os benefcios que ele enumera ali, que so negados a ns em
tal condio, nenhum conhecimento, nenhum cultivo da terra, nem navegao ou construo,
todas essas coisas so os frutos da paz.

Mas neste momento, um leitor atento, como voc, sem dvida estaria sugerindo que
fomos muito longe ao chamar Hobbes de um filsofo moral cujo lema de uma forma poderia ser
resumido na frase "d uma chance paz". isso mesmo o que Hobbes acreditava? Por que a
paz o bem maior? Por que no a justia? Por que no a honra? Por que no a piedade? Por que
no a vida examinada? O que faz a paz ser to boa para Hobbes? Bem, de fato temos citado
diversas vezes Hobbes elencando possveis razes para isso. Todavia, podemos sugerir que
no tanto a paz por si s que Hobbes estima. A paz um meio para a vida. Cada criatura, diz
ele, tem um desejo interno de preservar-se, perseverar a sua prpria existncia, para continuar
o seu prprio estado de equilbrio, para resistir invaso ou a usurpao dos outros. Todos ns
somos dotados, diz ele, com uma espcie de direito natural vida e o desejo de preservar a si
mesmo no apenas um fato biolgico, embora tambm o seja, para ele um direito moral.
Cada ser tem o direito fundamental sua prpria vida. Ns no s temos o direito nossa
vida, mas tambm o de fazer o que ns consideramos necessrio para proteg-la, por todos
os meios que pudermos, defendermo-nos a ns mesmos (HOBBES, 2003, p. 113).

Portanto, este no simplesmente um fato bruto da natureza. um direito moral para


Hobbes, a fonte do valor e da dignidade humana. Mas agora voc provavelmente vai sugerir
que realmente fomos longe demais, atribuindo a Hobbes uma doutrina da dignidade humana,
tal como se poderia esperar encontrar em um filsofo como Kant ou outro semelhante. No
foi Hobbes que cinicamente escreveu, no captulo dez, que "o valor, ou a importncia de um
homem, tal como de todas as outras coisas, o seu preo; isto , tanto quanto seria dado pelo
uso do seu poder? (HOBBES, 2003, p. 77). Uma frase, alis, citada por Karl Marx no O Capital
e no Salrio, preo e lucro, para indicar a pura crueldade do tipo de sociedade burguesa que
Hobbes estava esperando fazer emergir. Alm disso, o materialismo de Hobbes e seu tipo de
teoria mecanicista da natureza no parecem esvaziar qualquer valor intrnseco do indivduo? F
I
Embora tais sugestes tenham algo de relevante, Hobbes certamente considera a vida como L
O
um bem precioso, talvez o bem mais precioso de todos, e ele escreve com um sentido vvido S
O
de como a vida frgil e como ela est em perigo. F
I
A

A obra como um todo pode ser vista como um esforo para dissipar o que ele acredita P
O
ser falsas crenas, falsas doutrinas, que disfaram a verdade de ns, a verdade sobre o valor L

da vida; por exemplo, crenas sobre a vida aps a morte e todas as crenas que prejudicam T
I
uma apreciao do valor da vida como ela (HOBBES, 2003, pp. 35, 152-153, 251, 276, 282, C
A
158 TPICO 1 UNIDADE 2

290, 317, 394, 490, 498-499, 506, 528, 571). Isso fornece a base moral do que podemos chamar
de o humanitarismo de Hobbes, todavia esse humanitarismo parece levantar mais problemas.
Ser que a tentativa de Hobbes para incutir em ns, os leitores de seu livro, um apreo pela
vida e um valor vida, no cria em ns, simultaneamente, uma averso ao risco, um medo
extremo do conflito, do desafio ou do transtorno? Voc poderia dizer, esse medo constante
do qual Hobbes insiste sobre o medo da morte e valor da vida, isso no seria outra palavra
para covardia? Ser que a nfase de Hobbes sobre a preservao da vida como valor moral
supremo no torna o seu poderoso Leviat em uma espcie de comunidade de covardes?
Onde Aristteles fez da coragem de homens em combate uma virtude central da sua tica,
Hobbes incisivamente omite a coragem de sua lista das virtudes morais. Em um ponto, ele
at mesmo sugere que a coragem realmente apenas uma espcie de imprudncia. E seu
exemplo de coragem vem de combates de duelos que ele diz que sempre sero honrosos,
mas sempre sero ilegais.

Porque os duelos so tambm muitas vezes consequncia da coragem, e a


razo da coragem sempre a fora ou a destreza, que so poder, embora na
maior parte dos casos sejam consequncia de palavras speras e do temor da
desonra, em um ou em ambos os contendores que, tomados pela clera, so
levados a defrontar-se para evitar perder a reputao (HOBBES, 2003, p. 82).

Em outras palavras, coragem para ele uma forma de vaidade ou orgulho, o desejo
de no parecer menos do que outro. uma forma de precipitao.

Essa suspeita levada mais longe no tratamento que Hobbes d ao recrutamento militar,
do qual ele fala no captulo vinte e um. Ele descreve nesta passagem que em uma batalha,
como ele diz, "quando dois exrcitos combatem, h sempre os que fogem, de um dos lados,
ou de ambos; mas quando no o fazem por traio, e sim por medo, no se considera que
o fazem injustamente. Alm disso, ele diz que quando se trata de servio militar obrigatrio
deve haver proviso feita para aqueles que ele chama de "homens de natureza timorata",
covardes em outras palavras (HOBBES, 2003, p. 186). Um homem que seja ordenado como um
soldado, Hobbes escreve na mesma passagem, a lutar contra o inimigo, embora seu soberano
tenha o direito suficiente para punir sua recusa com a morte, pode, no entanto, se recusar
sem haver injustia, quando a substituio por outro soldado ou outra medida consiga atingir
o fim proposto. Em outras palavras, a viso de Hobbes disso : por que lutar, se voc pode
F conseguir algum, ou algo, que faa isso por voc? No h virtude intrnseca na coragem ou
I
L na batalha, se voc pode atingir o fim sem fazer o trabalho voc mesmo. uma espcie de
O
S descrio perfeita dos nossos exrcitos, pois pagamos essas pessoas para fazerem o trabalho
O
F difcil e perigoso por ns.
I
A

P Mas a pergunta , pode uma sociedade hobbesiana, uma que insiste em regras e
O
L
assim por diante, se manter sem as virtudes cvicas do orgulho, do amor honra, que Hobbes

T
parece condenar?
I
C
A Considere o caso de tantos policiais, bombeiros, e outros que ocupam ofcios de risco
UNIDADE 2 TPICO 1 159

para proteger e salvar estranhos, e que colocam as suas prprias vidas em jogo. Por que as
pessoas fazem isso? Ser que porque algumas pessoas tm uma espcie de sentido de
thumos, relembrando o termo platnico, inerente a elas? At mesmo a sociedade de Hobbes,
presumivelmente, no pode prescindir de um corpo de bombeiros ou de um departamento de
polcia. Entretanto, se fssemos seguir a psicologia hobbesiana avessa aos riscos, se fssemos
seguir as dezenove leis da natureza que nos aconselham a procurar a paz e evitar conflitos,
por que algum se tornaria um bombeiro, um soldado, um policial de qualquer tipo? Por que
algum arriscaria a sua vida por um pas ou por uma causa justa para ajudar outras pessoas,
pessoas que no sabemos e provavelmente nunca vamos saber quem so?

Mesmo na passagem que citamos anteriormente, onde Hobbes descreve os benefcios


da sociedade civil, ele fala de atividades como navegao, explorao e construo.
Presumivelmente, estas so atividades que esto todas envolvidas em comportamentos de
risco de um tipo ou de outro, o que no parece ser explicado apenas pelas leis da natureza
de Hobbes. Ento, a pergunta que voc deve ponderar antes de iniciarmos um novo tpico
a seguinte: Afinal, o que que as sociedades necessitam mais, de homens hobbesianos de
natureza timorata, ou de homens platnicos com thumos, ou quem sabe homens maquiavlicos
com virt?

4 A Teoria da Soberania de Hobbes:


Parte 2 da repblica

Vamos falar agora sobre soberania. Existem dois grandes conceitos no Leviat de
Hobbes que voc precisa lembrar. Um deles o estado de natureza e o outro a soberania.
Discorremos um pouco sobre o primeiro nos tpicos anteriores. Agora, vamos falar sobre a teoria
de Hobbes do Estado soberano, a criao do soberano, que Hobbes escreve, principalmente,
na parte 2, intitulada Da Repblica, de seu livro Leviat (2003, p. 143-312). Hobbes refere-se
ao soberano como um deus mortal, como a sua resposta aos problemas do estado de natureza,
a condio de vida que solitria, miservel, srdida, brutal e curta (HOBBES, 2003, p. 109).
somente a criao do soberano para Hobbes, dotado ou possessor do poder absoluto, que
suficiente para pr fim condio de perptua incerteza, ansiedade e agitao que o caso
F
da condio natural. I
L
O
S
Antes de explorarmos em detalhes, vamos ponderar sobre algumas das caractersticas O
formais do poder soberano de Hobbes, do Estado hobbesiano. Em primeiro lugar, o que eu F
I
quero enfatizar novamente que o soberano para Hobbes menos uma pessoa do que um A

rgo, um rgo governamental ou um cargo. O soberano descrito por Hobbes como uma P
O
pessoa artificial. Uma pessoa fictcia ou artificial, para Hobbes, quando so consideradas L

como representando as palavras e aes de um outro (HOBBES, 2003, p. 138). Assim, ele T
I
significa que o soberano a criao do contrato ou da aliana que trouxe este rgo, este C
A
160 TPICO 1 UNIDADE 2

cargo, a existncia. O soberano no existe por natureza, mas sim, Hobbes diz-nos outra
vez, a soberania o produto da arte ou da cincia. o produto, a criao do povo ou do que
poderamos chamar de consentimento dos governados.

S!
DICA

Um excelente livro que explora a histria dos vrios tericos


polticos que utilizaram este termo de consentimento dos
governados, entre outros termos, o seguinte: SABINE, George
Holland. Histria das teorias polticas. So Paulo: Fundo de
Cultura, 1964.

O soberano, isso crucial para Hobbes, o representante do povo. Ele o representante


soberano. o povo que dota o soberano com autoridade para represent-lo em seu nome
(HOBBES, 2003, p. 158-160). E, nesse aspecto, o soberano de Hobbes tem muitas das
funcionalidades ou caractersticas que passam a associar com o que chamamos de poder
executivo moderno ou autoridade executiva. Quando Lus XIV da Frana pronunciou a famosa
frase: L'tat c'est moi (o Estado sou eu), ele estava expressando uma concepo do Estado
peculiarmente pr-moderna; isto , ele considerava o Estado como sua propriedade pessoal.
"Eu sou o Estado. O Estado sou eu".

Mas isso muito diferente do soberano de Hobbes. O Estado de Hobbes no a


posse do soberano. O soberano no proprietrio do Estado, ele designado ou autorizado a
assegurar ao povo os limites da paz e da segurana. Ele tem a mesma funo e at certo ponto
a mesma personalidade do que hoje chamaramos de um diretor executivo, um CEO, ou seja, h
uma espcie de anonimato e impessoalidade sobre o soberano. Por exemplo, tente ao menos
nomear algum diretor executivo de alguma empresa. Provavelmente voc no conseguir.
Eles so, em sua maioria, pessoas relativamente annimas, o que , em muitos aspectos, a
caracterstica do soberano de Hobbes. A teoria do soberano de Hobbes, curiosamente, contm
em si elementos de ambos, o absolutismo secular e o liberalismo moderno, e sobre a tenso
entre estes dois que vamos discorrer a seguir.
F
I
L
O O poder do soberano, Hobbes insiste continuamente, deve ser ilimitado (HOBBES,
S
O 2003, p. 156-157, 177, 191-192). No entanto, ao mesmo tempo, ele nos diz que o soberano
F
I a criao do povo que ele representa (2003, p. 149-151). Embora Hobbes seja amplamente
A
considerado como sendo um defensor do absolutismo monrquico, voc vai notar, em suas
P
O leituras, que ele exibe uma espcie de neutralidade calculada sobre qual a forma que o soberano
L
realmente deve tomar. Ele s insiste que o poder soberano permanea absoluto e indivisvel
T
I se ele pertencer a uma nica pessoa, alguns, ou muitos. E entre os poderes que o soberano
C
A deve controlar so, por exemplo, as leis sobre a propriedade, o direito de declarar guerra e
UNIDADE 2 TPICO 1 161

paz, o que chamaramos de poltica externa, regras de justia a respeito da vida e da morte,
o que significa dizer leis penais, e, naturalmente, o direito de determinar quais os livros e as
ideias que so permitidas, ou seja, o direito da censura.

4.1 A Doutrina do Positivismo Jurdico:


A Lei o que o Soberano Comanda

Em certo sentido, o ncleo da teoria da soberania de Hobbes pode ser resumido na


afirmao de que o soberano, e somente o soberano, a fonte da lei. A lei o que o soberano
diz que . Isso, de alguma forma, deve soar familiar para voc ao que j vimos na Unidade 1
deste Caderno de Estudos. Trasmaco, do Livro I da Repblica, argumentava ser a justia o
que o mais forte diz que ela . Hobbes nos diz que a lei o que o soberano comanda.

Isso, s vezes, conhecido como a doutrina do positivismo jurdico, juspositivismo, o


que significa dizer que a lei o comando do soberano, imposta pelo soberano coletividade.
Mais uma vez, isso parece apontar de volta para o argumento de Trasmaco no primeiro livro
da Repblica. No h para Hobbes, assim como para Trasmaco, um tribunal de apelao mais
elevado do que a vontade ou a palavra do soberano, nenhuma lei transcendente, nenhuma lei
divina, nenhuma fonte de autoridade externa ao comando do soberano. Poderamos dizer que
o soberano para Hobbes se assemelha com um rbitro de jogo de futebol, ele define as regras
do jogo. Mas o soberano hobbesiano, ao contrrio dos rbitros, no so apenas os executores
das regras ou os intrpretes das normas, o soberano tambm o criador, o modelador e o
criador das regras. Hobbes extrai disso uma concluso surpreendente, em muitos aspectos
uma concluso infame, de que o soberano nunca pode agir injustamente (HOBBES, 2003, p.
151-152, p. 226). O soberano nunca pode agir injustamente, por qu? Porque o soberano a
fonte da lei e o soberano a fonte das normas da justia. Portanto, conclui Hobbes, ele nunca
pode agir injustamente. Ele suporta isto com um exemplo, profundamente perverso e divertido,
uma citao de uma histria bblica. Ele refere-se histria de Davi e Urias (HOBBES, 2003,
p. 182). A histria, de maneira resumida, mais ou menos assim. Davi era o rei de Israel e ele
cobiava a mulher de Urias, Bate-Seba. Ele queria dormir com Bate-Seba, ento o que ele
fez? Ele mandou matar Urias para que ele pudesse dormir com ela. A concluso de Hobbes
F
ao relatar esta histria que, embora a ao de Davi seja contrria lei da natureza, por I
L
ser contrria equidade [...] no constitui dano causado a Urias, e sim a Deus, ele continua, O
no a Urias, porque o direito de fazer o que lhe aprouvesse lhe foi dado pelo prprio Urias. S
O
Quem sabe Urias teria algo diferente a dizer sobre isso. Entretanto, de acordo com Hobbes, F
I
Davi no cometeu nenhuma injustia a Urias, pois, como o soberano legtimo, ele poderia A

fazer qualquer coisa, tudo o que ele lhe fizesse j estava estabelecido pelas normas da lei. P
O
Quando Hobbes relata essa histria, a qual ele menciona algumas vezes no livro, s podemos L

imaginar que ele deveria estar sorrindo ironicamente. O que seria compreensvel perante as T
I
suas crticas religio. C
A
162 TPICO 1 UNIDADE 2

S!
DICA

Para aprofundar em leituras especficas sobre as crticas


hobbesianas religio, sugerimos o seguinte livro: STRAUSS,
Leo. Hobbess critique of religion and related writings.
Trad. Gabriel Barlett e Svetozar Minkov. Chicago: The University
of Chicago Press, 2011.

O ensino de Hobbes sobre a lei , de certa forma, menos draconiano do que possa
parecer primeira vista. Ele deixa claro que a lei o que o soberano diz que . Que no pode
haver tal coisa como uma lei injusta, uma vez que o soberano a fonte de toda a justia. Mas
ele faz distino entre uma lei justa e uma boa lei. Todas as leis so por definio justas, mas
isso no quer dizer que todas as leis so por definio boas. "Uma boa lei", ele diz no captulo
trinta, " aquilo que necessrio para o bem do povo, e alm disso clara" (HOBBES, 2003, p.
293). Mas, ento, surge uma pergunta: quais so os critrios pelos quais determinamos o bem
do povo? Como isso determinado? Hobbes deixa claro que o soberano no est investido de
autoridade para exercer uma espcie de controle absoluto sobre tudo o que as pessoas fazem.
O propsito da lei, Hobbes nos diz, no tanto o de controlar, mas o de facilitar. Considere
apenas a seguinte passagem do captulo 30. Hobbes escreve:

Pois o objetivo das leis (que so apenas regras autorizadas) no coibir o povo
de todas as aes voluntrias, mas sim dirigi-lo e mant-lo num movimento
tal que no se fira com os seus prprios desejos impetuosos, com a sua pre-
cipitao, ou indiscrio, do mesmo modo que as sebes no so colocadas
para deter os viajantes, mas sim para os manter no caminho. (2003, p. 293)

Esta a fora ou a finalidade da lei, estabelecer regras, manter as pessoas em seu


caminho. Uma lei que se destina simplesmente a constranger e controlar para o seu prprio
benefcio, Hobbes diz, no pode ser uma boa lei. A finalidade de uma boa lei facilitar o agir
humano de alguma maneira. Isto tambm central para a teoria do soberano hobbesiana.
Sua finalidade facilitar, e no simplesmente controlar e/ou coibir. Todavia, aqui reside uma de
suas doutrinas mais controversas. Para Hobbes, o poder de controlar ou o poder da lei tambm
deve se aplicar a questes de opinio. Isso envolve o que hoje chamaramos de questes de
F
I liberdade de expresso, contidas, por exemplo, no artigo quinto da Constituio Federal do
L
O Brasil, especialmente nos incisos IV, VIII e IX (BRASIL, 2012). Isso algo que Hobbes insiste,
S
O pois as aes dos homens derivam das suas opinies, e no bom governo das opinies
F
I que consiste o bom governo das aes dos homens (HOBBES, 2003, p. 152). Ento, se ns
A
vamos governar ou regular o comportamento humano, temos de comear regulando a opinio.
P
O E segue-se a partir disto, acredita Hobbes, que o soberano tem o direito de decidir quais as
L

opinies, quais os livros, quais as ideias que so propcias para a paz e aquelas que visam
T
I
simplesmente atiar a guerra e o descontentamento. Esses comentrios de Hobbes sobre o
C poder do soberano de controlar opinies so dirigidos a duas instituies principais, a Igreja
A
UNIDADE 2 TPICO 1 163

e, adivinha qual outra, a universidade. Ambas para Hobbes so consideradas como o lcus,
o foco ou o centro das opinies sediciosas, exigindo, portanto, permanecer sob o controle do
soberano.

Por igrejas, Hobbes est falando da igreja reformada, mas, em particular, ele est
preocupado com aquelas seitas puritanas radicais, como as que mais tarde fundaram os
primeiros assentamentos na Amrica do Norte. Essas seitas radicais elevam questes da
conscincia e da crena privada sobre e acima da lei, ou seja, arrogando para si, aos direitos da
conscincia e da crena privada, os poderes para julgar o soberano. Foram esses dissidentes
protestantes, essas seitas dissidentes, que formaram as fileiras dos exrcitos de Cromwell
durante a Guerra Civil da Inglaterra. Eles formaram as fileiras dos exrcitos republicanos
na Inglaterra contra o governo do rei. Hobbes nos diz que baniria todas as doutrinas que
professassem fazer do indivduo ou, mais importante ainda, da seita o juiz do soberano.
somente no estado de natureza, diz-nos ele, que os indivduos tm o direito de determinar o
justo e o injusto, o certo e o errado por si prprios. Uma vez que entramos em sociedade, uma
vez que nos engajamos ou conclumos o pacto social, ns transferimos o nosso poder para
fazer isso ao soberano, para que ele determine essas questes por ns.

Para Hobbes, a universidade e o seu currculo so to importantes quanto igrejas


reformadas e seitas radicais. Em particular, Hobbes culpa as universidades por ensinarem as
doutrinas radicais do aristotelismo no sculo XVII. Aristteles, nesse perodo, era a fonte das
ideias republicanas modernas, ideias sobre o autogoverno, ideias sobre o que poderamos
chamar de democracia direta ou democracia participativa. As pessoas acreditavam que a nica
forma legtima de governo era como descrevera Aristteles, que os cidados se revezam entre
governar e serem governados, alternativamente. Foi, sobretudo, a influncia dos clssicos,
Aristteles e Ccero, em particular, que Hobbes considerou como uma causa importante para
a recente Guerra Civil e o regicdio de Carlos I. Leia atentamente a seguinte passagem que
ele escreve: Quanto rebelio contra a monarquia em particular, uma das suas causas mais
frequentes a leitura de livros de poltica e de histria dos antigos gregos e romanos, da qual
os jovens, pessoas como voc, e todos aqueles que so desprovidos do antdoto de uma
slida razo, que so suscetveis a estas histrias, ao que leem nos livros, recebendo uma
impresso forte e agradvel das grandes faanhas de guerra [...] Graas leitura, digo, de
tais livros os homens empreenderam matar os seus reis, alega Hobbes, porque os autores
F
gregos e latinos, nos seus livros e discursos de poltica, consideraram legtimo e louvvel I
L
faz-Io, desde que antes de os matar os chamassem tiranos (HOBBES, 2003, p. 276-277). O
S
O
F
Regicdio, isso o que voc aprende, alega Hobbes, a partir da leitura de Aristteles, I
A
dos gregos e dos romanos. Que a nica forma legtima de governo uma repblica e que
P
o regicdio legtimo e at mesmo um dever. claro que, antes de fazer isso, diz ele, voc O
L
deve cham-lo de tirano. uma passagem maravilhosa e interessante, no s por causa de
seu humor (e os exageros caractersticos de Hobbes), mas porque mostra com muita nfase T
I
o quanto Hobbes preza pela reforma da opinio, a reforma de ideias. Tal como Maquiavel e C
A
164 TPICO 1 UNIDADE 2

como Plato muito antes dele, Hobbes considera a si mesmo como um educador de prncipes,
um educador e um transformador, um reformador de ideias. H uma espcie de ironia interna
aqui, porque Hobbes, s vezes, escreve como se os seres humanos no fossem nada mais
do que mquinas complexas que obedecem mecanicamente s leis da atrao e repulso.
Mas ele tambm, obviamente, escreve que somos seres com vontade e propsito que so
guiados exclusivamente por opinies, ideias e doutrinas. por isso que o primeiro negcio
para o soberano agir como um reformador moral de ideias. Hobbes percebe que esta uma
tarefa difcil e rdua que ele estabelece em sua obra.

Em um raro momento de autorreflexo pessoal ou autorreferncia, Hobbes observa


quase que em gracejo, que a novidade de suas ideias tornar difcil para ele encontrar uma
audincia. "Estou a ponto de acreditar que o meu trabalho seja intil, como a Repblica de
Plato", diz ele em um momento de desespero incaracterstico, pois tambm ele de opinio
que impossvel desaparecer as desordens do Estado e as mudanas de governo por meio
de guerras civis, enquanto soberanos no forem filsofos (HOBBES, 2003, p. 310-311).
Embora, inicialmente em desespero diante da possibilidade de encontrar uma recepo ou
pblico amigvel pelo seu trabalho, Hobbes, em seguida, observa em um tom mais otimista
que o seu livro consideravelmente mais simples e mais fcil de ler do que aquele de Plato.
claro que voc, acadmico, pode depois discutir sobre qual de fato mais simples e mais
fcil de ler. Mas, Hobbes acredita nisso, e alega que sua obra mais propensa para atrair o
ouvido de um simptico.

Mas quando considero novamente [...] retomo alguma esperana de que esta
minha obra venha um dia a cair nas mos de um soberano, que a examinar por
si prprio (pois curta e penso que clara), sem a ajuda de algum intrprete
interessado ou invejoso, e que pelo exerccio da plena soberania, protegendo
o ensino pblico desta obra, converter esta verdade especulativa utilidade
da prtica. (HOBBES, 2003, p. 311)

Bem, podemos questionar isso. Ele diz que uma obra curta e penso que clara. Na
verdade, complexa e longa. Talvez, na esperana de que com a sua publicidade ganharia a
ateno de um soberano.

Hobbes, portanto, acredita que este livro vai ser til para um soberano ou um soberano
F em potencial. Ele pode estar subestimando a dificuldade da obra, mesmo assim ele retorna
I
L a esta questo novamente no final do Leviat. "As universidades", ele fala de novo um pouco
O
S sobre a audincia do livro, "so as fontes da doutrina civil e moral (HOBBES, 2003, p. 592), e
O
F tm a obrigao de ensinar a doutrina correta de direitos e deveres. Isso significa para Hobbes,
I
A antes de tudo, adotar o seu livro como autoridade no ensino sobre a doutrina da moral e a
P da poltica nas universidades. Em outras palavras, deveria ser o livro didtico requisitado de
O
L
cincia poltica e do ensino da poltica nas universidades, substituindo o livro mais antigo, ou

T
seja, A Poltica de Aristteles. Penso, portanto, que pode ser publicado com vantagem e com
I mais vantagem ainda ensinado nas universidades, ele afirma categoricamente. Como as
C
A universidades so as fontes da doutrina civil e moral, o pblico ideal para o livro, partindo da
UNIDADE 2 TPICO 1 165

universidade, seriam os pregadores e os fidalgos. Pois estes costumam borrifar o povo (tanto
do plpito como no convvio), com a gua que beberam nas universidades, as doutrinas
presentes na obra, com a qual devia certamente haver grande cuidado em conserv-la pura
(HOBBES, 2003, p. 592). Esta a forma como ele v que as doutrinas da obra deveriam ser
ensinadas. Elas deveriam ser ensinadas a partir das universidades, aos plpitos, s conversas
de convvio, borrifadas sobre o povo. A esperana de Hobbes, tal como a de todos os grandes
filsofos polticos, era a de ser uma espcie de legislador para a humanidade. Esta , outra
vez, uma obra com uma ambio pica.

4.2 O liberalismo hobbesiano

Temos discutido at agora o lado absolutista e autoritrio do ensino de Hobbes. Vamos


falar sobre algo que pode parecer paradoxal, o que no momento poderamos chamar de o
liberalismo hobbesiano. Hobbes se deleita descrevendo o soberano nos termos mais absolutos
e extremos. O soberano deve ter comando supremo sobre a vida e a morte, a guerra e a paz,
o que deve ser ensinado e ouvido. No entanto, em muitos aspectos, este soberano hobbesiano
visa permitir um amplo espao para a liberdade individual. Ele at mesmo define alguns limites
sobre o uso legtimo do poder soberano. No interior de toda a sua conversa peremptria, Hobbes
leva a justia e o Estado de Direito muito a srio, muito mais srio do que, por exemplo, o faz
Maquiavel. Em um momento no livro ele sustenta que uma pessoa no pode ser obrigada a
acusar a si mesma, sem a garantia de perdo. Voc no pode ser forado a acusar-se a si
prprio (HOBBES, 2003, p. 185-186), o que poderamos chamar de o princpio nemo tenetur se
detegere, o direito de no produzir prova contra si mesmo, como tambm o direito ao silncio,
garantidos pela nossa Constituio Federal, prevista em seu artigo quinto (BRASIL, 2012).
Voc no pode ser forado a acusar-se. Da mesma forma, ele diz na mesma passagem, uma
esposa ou um pai no pode ser coagido a acusar um ente querido. Ele tambm sustenta que
a punio nunca pode ser usada como um instrumento de vingana, mas apenas para o que
ele chama de correo ou o que chamaramos a reabilitao do agressor.

Adicione ao dito acima a repetida insistncia de Hobbes que a lei servir como um
F
instrumento para alcanar a igualdade social. No captulo trinta, intitulado "Do Cargo do I
L
Soberano Representante" (HOBBES, 2003, p. 283-299), Hobbes argumenta que a justia seja O
S
administrada igualmente a todas as classes de pessoas, ricos, assim como os pobres, aplicao O
igual da justia. Ele sustenta ainda que os ttulos de nobreza possuem valor apenas pelos F
I
benefcios que eles conferem aos de menor categoria, seno so totalmente inteis. Igualdade A

de justia, ele nos diz, exige uma poltica fiscal igualitria e ele parece estar propondo uma P
O
espcie de imposto sobre o consumo, de modo que os ricos, que consomem mais, tero de L

pagar sua parcela justa. Ele argumenta ainda que os cidados indigentes, que so incapazes T
I
de prover o prprio sustento, no devem ser forados a depender simplesmente da caridade C
A
166 TPICO 1 UNIDADE 2

privada de indivduos, mas devem ser mantidos pelos cofres pblicos. Ele parece, desta forma,
antecipar o Estado de bem-estar social moderno, o welfare state, no qual a assistncia pblica
deve ser fornecida, e os pobres no devem depender simplesmente da boa vontade privada
dos outros.

Mas, o mais significante voltar importncia dada ao indivduo na filosofia de Hobbes.


Hobbes deriva o prprio poder do soberano do direito natural de cada indivduo para fazer tudo
o que desejar no estado de natureza. Segue-se, assim pensando, que a finalidade do soberano
aquela de salvaguardar o direito natural de cada indivduo, e isto por regular esse direito
para que se torne consistente com o direito dos outros, e no permitindo a guerra aberta de
todos contra todos. O que significativo sobre isso, acreditamos, a prioridade que Hobbes
d aos direitos sobre os deveres. Isso, indiscutivelmente, faz dele o fundador do liberalismo
moderno, a importncia dada aos direitos sobre os deveres, ao indivduo sobre o bem coletivo
ou o bem comum.

Isso expresso na originalidade, de muitas maneiras sem precedentes, do ensino


hobbesiano sobre a liberdade no captulo vinte e um (HOBBES, 2003, p. 179-190). Aqui
ele distingue a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. Os antigos, ele acredita,
operavam com uma compreenso deficiente da liberdade humana. Para os antigos, a liberdade
significava viver em uma repblica autnoma, viver em uma repblica em que todos partilhavam
de algum modo dos cargos e ofcios do governo. Liberdade, em outras palavras, para os
antigos, no era apenas uma propriedade do indivduo, era um atributo do regime no qual cada
um era membro. "Os atenienses e os romanos", diz ele, "eram livres, quer dizer, repblicas
livres. Isso no significa que qualquer indivduo tivesse a liberdade de resistir ao seu prprio
representante: o seu representante que tinha a liberdade de resistir a um outro povo, ou de
o invadir (HOBBES, 2003, p. 183). Em outras palavras, a liberdade para os antigos era um
bem coletivo, a liberdade, como ele diz, para resistir ou para invadir outras pessoas. Era uma
propriedade da comunidade no dos indivduos que habitavam-na. Mas essa sensao de
liberdade coletiva, a liberdade de resistir ou invadir , de fato, contrria ideia moderna de
liberdade a qual Hobbes prope. E por liberdade Hobbes significa alguma coisa que soa muito
familiar para ns. Liberdade significa a ausncia de restries ou impedimentos ao. Somos
livres na medida em que podemos agir de forma desimpedida. E, segue-se para ele, que a
F
liberdade poltica significa a liberdade para agir onde a lei for omissa, ou onde a lei silencia,
I
L
como ele diz: "Quanto s outras liberdades, dependem do silncio da lei. Nos casos em que
O
S
o soberano no tenha estabelecido uma regra, o sdito tem a liberdade de fazer ou de omitir,
O
F
conformemente (sic) sua discrio (HOBBES, 2003, p. 187). Pense nisso, onde quer que
I a lei for omissa, temos a liberdade de fazer ou no fazer como ns escolhemos. Isso muito
A
importante para a nossa forma de pensar na liberdade hoje em uma democracia moderna, e
P
O voc pode dizer democracia liberal.
L

T
I O soberano de Hobbes mais provvel em permitir aos cidados uma zona de liberdade
C
A privada, onde eles so livres para agir como quiserem, do que na repblica clssica, onde h
UNIDADE 2 TPICO 1 167

um tipo de participao coagida em assuntos coletivos ou na deliberao poltica. Hobbes aqui


ataca os defensores do ponto de vista de que apenas os cidados de uma repblica podem ser
livres. At hoje se encontra escrita em grandes letras, nas torres da cidade de Lucca, a palavra
Libertas, continua Hobbes, mas ningum pode da inferir que qualquer indivduo l possui
maior liberdade, ou imunidade em relao ao servio da repblica, do que em Constantinopla, a
cidade dos califas, o Califado. Quer a repblica seja monrquica, quer seja popular, a liberdade
sempre a mesma (HOBBES, 2003, p. 183-184). Viver em uma repblica meramente no lhe
garante mais liberdade. A liberdade, conforme ele cita nesta passagem, exige a imunidade,
a "imunidade de servio". Um regime deve ser julgado ou avaliado, para Hobbes, por quanta
liberdade privada, quanta imunidade ele concede a cada um dos seus cidados. Esta uma
ideia da liberdade individual, em muitos aspectos desconhecida e sem precedentes no mundo
moderno. A este respeito, pode-se dizer que Hobbes tem alguma conexo com a criao do
que ns pensamos como o Estado liberal moderno, com sua concepo de liberdade privada
como imunidade da participao forada na poltica, muito diferente da viso dos antigos. E o
que tudo isso significa?

4.3 Hobbes e O Estado Moderno

Vamos pensar sobre o que Hobbes diria para ns hoje, pois em muitos aspectos nos
tornamos discpulos dele. Hobbes nos oferece a linguagem definitiva do Estado moderno. No
entanto, ele continua a ser contestado por ns, tal como ele foi em seu prprio tempo. Para
muitos, hoje, a concepo do Estado no Leviat de Hobbes um sinnimo de absolutismo
antiliberal. Para outros, ele abriu a porta para John Locke e a teoria liberal do governo. Ele
ensinou a prioridade dos direitos sobre os deveres e argumentou que o soberano deve servir
ao interesse ou finalidade modesta do fornecimento de paz e segurana, deixando aos
indivduos que determinem por si a melhor forma de viver suas vidas. No entanto, a liberdade
que os sujeitos desfrutam no plano de Hobbes cai naquela rea onde o soberano se omite
em regular. Hobbes no elogia a vigilncia em defesa da liberdade e ele denuncia todos os
esforos de resistir ao governo. Na melhor das hipteses, podemos dizer que Hobbes uma
espcie de liberal parcial.
F
I
L
Mas Hobbes melhor quando ele nos fornece a linguagem moral e psicolgica com a O
qual pensamos sobre o governo e o Estado. O Estado um produto de um conflito psicolgico S
O
entre as paixes beligerantes do orgulho e do medo. O medo, voc deve se lembrar, est F
I
associado com o desejo de segurana, de ordem, de racionalidade e de paz. O orgulho est A

vinculado com o amor glria, honra, ao reconhecimento e ambio. Todos os bens da P


O
civilizao, Hobbes nos diz, decorrem de nossa capacidade de controlar o orgulho. O prprio L

ttulo do livro deriva da maravilhosa passagem bblica de J onde o Leviat descrito como T
I
o Rei de todos os filhos da Soberba. E as dezenove leis da natureza que Hobbes desenvolve C
A
168 TPICO 1 UNIDADE 2

em seu livro realmente esto l simplesmente para enumerar ou instruir-nos sobre as virtudes
da sociabilidade e da civilidade, especialmente dirigidas contra o pecado do orgulho ou da
arrogncia. Assim, o Estado moderno, como ns o conhecemos e que ainda o temos, cresceu
a partir do desejo hobbesiano por segurana e do medo da morte que s pode ser conquistado
s custas do desejo por honra e glria. O estado hobbesiano destinava-se a garantir as
condies de vida, at mesmo uma vida altamente civilizada e cultivada, mas pelo crivo do
clculo em termos de autointeresse e preveno de riscos. Hobbes quer que estejamos com
medo e que evitemos cursos de ao perigosa que estejam inflamados por crenas na honra,
na ambio e afins. O homem timorato hobbesiano no susceptvel em tornar-se algum que
arrisca a prpria vida pela liberdade, pela honra, ou por uma causa. Ele mais provvel que
seja algum que joga pelas regras, evita perigos, e as apostas nas coisas certas. O cidado
hobbesiano no provvel que seja um afeito aos riscos, disposto a arriscar-se como um Zumbi
dos Palmares, por exemplo. Ele mais propenso a pensar como um aturio ou um contador
ou um agente de seguros, sempre calculando as probabilidades e encontrando maneiras para
cobrir os danos. Tericos polticos posteriores, como Jean-Jacques Rousseau e Nietzsche at
mesmo desenvolveram uma palavra para o homem hobbesiano. Eles iriam cham-lo, um pouco
desdenhosamente, de o burgus.

Entretanto, Hobbes foi um sucesso notvel em converter-nos ao seu ponto de vista. O tipo
de pessoa que ele tentou criar, cuidadoso, autointeressado, avesso ao risco, tornou-se o ethos
dominante da nossa civilizao. Ns temos at mesmo disciplinas inteiras, como Economia e
Psicologia, e ouso at dizer a Cincia Poltica moderna, que reforam essa viso da natureza
humana. Todos ns nos tornamos, quer queiramos admitir ou no, hobbesianos. E, no entanto,
ao mesmo tempo, e aqui est o paradoxo, at mesmo uma sociedade hobbesiana no pode
existir completamente sem alguns indivduos que estejam dispostos a arriscar a vida por uma
questo de honra ou mesmo apenas pela pura alegria que vem do prprio risco. Por que as
pessoas se tornam bombeiros, policiais, soldados, lutadores da liberdade, todas as atividades
que no podem ser explicadas em termos apenas de autointeresse? E de onde essas pessoas
vo surgir, se todos seguem a psicologia do medo e do autointeresse que Hobbes quer incutir
em ns? Hobbes considera estas paixes, as quais Plato chamou pela palavra thumos, como
brbaras, como no civilizadas e blicas, e at certo ponto ele estava certo.

F
Mas at mesmo o estado hobbesiano, o prprio Hobbes admite, vive em meio a um
I
L
mundo hobbesiano, ou seja, o mundo das relaes internacionais para Hobbes simplesmente
O
S
o estado de natureza em geral. O estado hobbesiano sempre vai existir em um mundo de outros
O
F
estados hostis, no regulados por algum tipo de lei superior. Os Estados se posicionam uns
I contra os outros em uma escala mundial da mesma maneira que os indivduos o fazem na
A
condio de natureza; que dizer, potenciais inimigos sem qualquer autoridade superior pela
P
O qual se possa adjudicar seus conflitos. Em tal mundo, at mesmo um Estado soberano estar
L
ameaado por outros Estados ou por grupos e indivduos dedicados ao terror e destruio.
T
I Pense na atual Guerra ao Terror. Este um problema que o cientista poltico Pierre Hassner,
C
A um pesquisador francs de poltica internacional, descreveu como a dialtica do burgus e
UNIDADE 2 TPICO 1 169

do brbaro, (HASSNER, 2000, p. 67) um conflito entre o Estado hobbesiano moderno, com
seus corpos de cidados em grande parte pacificados e satisfeitos, e aqueles estados pr-
modernos ou talvez at mesmo estados ps-modernos, que esto preparados para usar os
instrumentos da violncia, do terror e dos atentados suicidas para atingir seus objetivos. Um
Estado hobbesiano, paradoxalmente, exige de seus cidados, homens e mulheres preparados
para combater e arriscar tudo na defesa de seu modo de vida. Portanto, o paradoxo que o
burgus hobbesiano no pode dispensar inteiramente o brbaro, mesmo em seu prprio meio.
Ser que Hobbes pode explicar esse paradoxo? Ele parece evit-lo.

Este problema foi explorado de forma brilhante em um livro de um homem chamado


James Bowman. Ele escreveu o livro Honor (2013), no qual conta a histria da honra. No livro
ele aponta que, embora os assuntos de honra desapareceram em grande parte das sociedades
avanadas, a honra continua a ser uma paixo consumidora em muitas partes do mundo hoje,
incluindo a mais importante para ele, o Oriente Mdio. A honra, na maioria das sociedades,
pensada ser no apenas uma qualidade pessoal, algo como na cavalaria medieval, mas acima
de tudo honra do grupo, a honra que envolve a famlia, o cl estendido, ou a seita religiosa.
Um ataque contra um um ataque contra todos. Isso nos ajuda a explicar, por exemplo, por
que em tantas culturas o conceito de livrar a cara to importante. Uma das razes que
Bowman acredita que ns temos tanta dificuldade em compreender outros povos e outras
culturas que a prpria ideia de defender a honra em grande parte tem sido desvalorizada no
Ocidente moderno. Ns tendemos a olhar para o comportamento humano como uma questo
de fornecer incentivos racionais para a ao humana, enquanto a maioria das pessoas, na
verdade, movida por uma necessidade de estima e desejo de evitar a humilhao.

Honra para muitos de ns soa estranho, at mesmo extico, como um cdigo de honra
ou o cdigo de escoteiros, ou algo parecido. Soa como algo primitivo, como algum tipo de tica
primitiva, portanto, ns realmente no conseguimos compreender. por isso que muitas vezes
passa despercebido que grande parte dos esforos de Hobbes foi para desacreditar esse tipo
de virtude guerreira, este tipo de virtude da honra que ainda uma parte muito importante
de diversas culturas. Nossa cegueira atual, referente aos assuntos de honra, consequncia
direta do sucesso desse esforo hobbesiano.

Isso nos leva ao ponto final sobre a nossa civilizao hobbesiana, que a mesma esconde
F
de ns uma verdade muito desconfortvel. A paz, a segurana, a proteo, que poderamos I
L
chamar de nossas liberdades burguesas que ns tanto estimamos, repousam sobre o fato O
S
desconfortvel de que ainda existem pessoas que esto dispostas a arriscar suas vidas por O
F
causa de objetivos mais elevados, como a honra ou o dever. irracional esse modo de agir I
A
deles? Pensamos que Hobbes diria que sim. Afinal, isso no faz sentido do ponto de vista
P
puramente hobbesiano, pois ele nos encoraja a pensar como agentes racionais interessados O
L
principalmente na segurana e em calcular as probabilidades.
T
I
C
A
170 TPICO 1 UNIDADE 2

RESUMO DO TPICO 1

Neste tpico voc viu que:

Hobbes foi o autor da primeira, e provavelmente a maior, obra de teoria poltica escrita no idioma
Ingls.
Hobbes insiste na igualdade fundamental dos seres humanos, que, segundo ele, so dotados
de certos direitos naturais e inalienveis. Ele mantm que o Estado um produto de uma
aliana ou um pacto, uma espcie de um contrato entre os indivduos, e que o soberano deve
sua autoridade vontade ou ao consentimento daqueles a quem ele governa e que o soberano
apenas autorizado a proteger os interesses dos governados pela manuteno da paz e da
segurana civil.
Hobbes, tal como Maquiavel, foi um dos grandes arquitetos do Estado moderno. At certo grau
a sua linguagem mais caracteristicamente moderna do que a de Maquiavel.
Hobbes claramente via a si mesmo, em muitos aspectos, como o fundador de uma cincia
poltica seguindo o modelo dos primeiros fundadores da revoluo cientfica. Tal como esses
revolucionrios que tinham derrubado o paradigma aristotlico na cincia natural, Hobbes
levantou-se para minar a autoridade de Aristteles na cincia civil, na cincia/filosofia poltica e
moral.
Hobbes acreditava que a motivao primordial do comportamento humano em grande parte
negativa. No o desejo de fazer o bem, mas o desejo de evitar algum mal. Entramos em sociedade
no a fim de cumprir ou aperfeioar a nossa natureza racional, mas sim para evitar o mal maior,
ou seja, a morte ou o medo da morte, nas mos de outros.
Hobbes no s criticou as fundaes, as bases motivacionais e psicolgicas da teoria da poltica
e da natureza humana de Aristteles, ele culpou a influncia de Aristteles por grande parte dos
conflitos civis de sua poca. Sua resposta a Aristteles e aos republicanos clssicos de seu
tempo, era a sua famosa doutrina que poderamos chamar de governo indireto.
O soberano , para Hobbes, a vontade do povo artificialmente reconstruda na pessoa de seu
representante. Os atos representativos do soberano seriam uma espcie de filtro das vontades
F
I e paixes do povo.
L
O Para Hobbes, a arte no imita tanto a natureza, bem mais do que isso, a arte (a criao, a
S
O engenhosidade e a destreza humana) pode criar um novo tipo de natureza, uma natureza artificial,
F
I uma pessoa artificial. neste sentido que o grande Leviat criado atravs da arte.
A
A razo, a cincia e a arte so as capacidades de transformar a natureza pela imposio de
P
O um mtodo que ir produzir efeitos semelhantes aps consequncias semelhantes. A arte,
L
especialmente a arte poltica, uma questo de reordenar a natureza, at mesmo a natureza
T
I humana. Resolvendo-a em suas unidades mais elementares, e em seguida, reconstruindo-a
C
A para que ela produza os resultados desejados, tal como um fsico faria em um laboratrio.
UNIDADE 2 TPICO 1 171

O estado de natureza para Hobbes uma condio de conflito e de guerra, uma condio em
que no h nenhuma autoridade reconhecida para nos manter no temor. Pode significar uma
condio de guerra aberta, mas tambm a vontade de lutar, o desejo ou a vontade de se envolver
em conflitos, uma conhecida disposio para lutar. Essa condio de insegurana mxima,
onde a vida do homem solitria, pobre, srdida, brutal e curta.
Se a natureza uma norma, no nos inclina ou tendencia paz, amizade e solidariedade com os
outros. Somente a arte humana, a cincia, a capacidade inventiva humana, pode trazer a paz. Os
conflitos e as guerras so primrios. A paz um possvel derivado. A autoridade e relaes de
autoridade no surgem naturalmente entre ns, mas como a prpria cincia civil, um produto
da inventividade ou da arte.
O relato de Hobbes sobre o estado de natureza parece derivar de sua fsica do movimento e do
repouso. Hobbes um dos grandes fundadores do mtodo experimental em cincias sociais e
polticas.
Subjacente concepo do estado de natureza hobbesiano jaz uma poderosa concepo moral.
Hobbes nos mostra o que exercer a qualidade de agncia moral; isto , agir por ns mesmos
ao invs de ter as coisas feitas para ns. Hobbes introduziu na nossa linguagem moral o idioma
da individualidade.
O sentido, o medo e o desejo so as caractersticas da vida humana, e isto uma condio moral,
porque cada um de ns um feixe de atividade e iniciativa, de gostos e desgostos, de desejos e
averses. A vida para Hobbes a competio ou luta no apenas por recursos escassos, mas
pela honra ou por qualquer outra coisa que uma pessoa pode valorizar ou estimar.
Para Hobbes termos como bom e mal so expresses de nossos gostos e desgostos
individuais.
Hobbes um ctico no sentido de que no pode haver, em sua opinio, fundamentos
transcendentes ou no humanos para as nossas crenas. Ns no podemos ter certeza dos
fundamentos ltimos de nosso conhecimento, pois, para Hobbes, este uma construo humana
e est sempre sujeito ao que os seres humanos podem acordar ou estabelecer.
A certeza que temos sobre qualquer coisa sempre provisria, descoberta com base na
experincia e sujeita reviso contnua luz de novas experincias adquiridas.
Pessoas no estado de natureza podem ter contato regular e contnuo uns com os outros. O que
ocorre somente que as suas relaes no so regulamentadas por lei, nem por autoridade. A
nfase no indivduo apenas outra maneira de dizer, ao contrrio de Aristteles, que ningum
tem autoridade natural sobre qualquer outra pessoa.
F
O estado de natureza continua totalmente na sociedade civil, sempre que temos razo para I
L
acreditar que nossas vidas ou nossos imveis ou ns mesmos no estamos seguros. Na O
S
verdade, nunca podemos estar totalmente livre do medo, da ansiedade e da incerteza do estado O
F
de natureza, mesmo no interior de uma sociedade civil plenamente constituda. I
A
Longe de usar um modelo de agente racional da poltica, Hobbes opera com um modelo de
P
agente irracional. Ele assume que no a razo, mas sim as nossas paixes que so a fora O
L
dominante da psicologia humana, nossos desejos, nossas averses, nossas paixes.
O orgulho e o medo so os equivalentes hobbesianos dos dois grandes humores de Maquiavel. T
I
C
Ambos so grandes paixes universais, mas opostas. A
172 TPICO 1 UNIDADE 2

O orgulho a paixo pela preeminncia, o desejo de ser o primeiro. O orgulho equivalente ao


que ele chama de vaidade ou vanglria. O orgulho o desejo de assenhorear-se dos outros e
ter a sua superioridade reconhecida pelos outros, e isso, para Hobbes, um grande problema
a ser evitado.
O medo no apenas o desejo de evitar a morte, mas de evitar a perda, de evitar a vergonha.
o medo, no a razo, que nos leva a abandonar o estado de natureza e pedir a paz. O medo
a base, at mesmo do que Hobbes chama de leis da natureza, ou normas de paz, que nos
levam a sociedade civil.
Hobbes argumenta que no s se deve buscar a paz, mas temos a obrigao de depor as armas,
abrir mo do nosso direito de fazer todas as coisas sob a condio de que os outros nossa
volta esto dispostos a faz-lo tambm.
A paz para Hobbes um bem moral e as virtudes so aquelas qualidades de comportamento
que tendem paz e os vcios so os que levam guerra.
Todos ns somos dotados com uma espcie de direito natural vida e o desejo de preservar
a si mesmo no apenas um fato biolgico, um direito moral. Ns no s temos o direito
nossa vida, mas tambm o de fazer o que ns consideramos necessrio para proteg-la.
A obra como um todo pode ser vista como um esforo para dissipar o que ele acredita ser falsas
crenas, falsas doutrinas, que disfaram a verdade de ns, a verdade sobre o valor da vida; por
exemplo, crenas sobre a vida aps a morte e todas as crenas que prejudicam uma apreciao
do valor da vida como ela .
O soberano descrito por Hobbes como uma pessoa artificial, fictcia, a criao do contrato
ou da aliana, no existe por natureza, o produto da arte ou da cincia. a criao do povo
do consentimento dos governados. o representante do povo.
O Estado de Hobbes no a posse do soberano. O soberano no proprietrio do estado, ele
designado ou autorizado a assegurar ao povo os limites da paz e da segurana.
A teoria do soberano de Hobbes, curiosamente, contm em si elementos de ambos o absolutismo
secular e o liberalismo moderno.
No h, para Hobbes, um tribunal de apelao mais elevado do que a vontade ou a palavra do
soberano, nenhuma lei transcendente, nenhuma lei divina, nenhuma fonte de autoridade externa
ao comando do soberano.
Todas as leis so por definio justas, mas isso no quer dizer que todas as leis so por definio
boas. Uma boa lei, aquilo que necessrio para o bem do povo, e alm disso clara.
F A finalidade do soberano aquela de salvaguardar o direito natural de cada indivduo, e isto por
I
L regular esse direito para que se torne consistente com o direito dos outros, e no permitindo a
O
S guerra aberta de todos contra todos.
O
F Hobbes prioriza os direitos sobre os deveres, isso, indiscutivelmente, faz dele o fundador do
I
A
liberalismo moderno, a importncia dada aos direitos sobre os deveres, ao indivduo sobre o
P
bem coletivo ou o bem comum.
O
L
Liberdade significa a ausncia de restries ou impedimentos ao. Somos livres na medida

T
em que podemos agir de forma desimpedida. A liberdade poltica significa a liberdade para agir
I onde a lei for omissa.
C
A
UNIDADE 2 TPICO 1 173


IDADE
ATIV
AUTO

1 Hobbes argumenta que o Leviat criado pela arte. Explique o sentido do termo arte
para Hobbes, ao fazer isso esclarea o que este termo e o que ele no para o
referido autor.

2 Um aspecto importante do pensamento hobbesiano a sua concepo de


conhecimento e, portanto, o seu ceticismo. Descreva a partir do texto o significado
do ceticismo hobbesiano e quais so as suas consequncias.

F
I
L
O
S
O
F
I
A

P
O
L

T
I
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A
174 TPICO 1 UNIDADE 2

F
I
L
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S
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A
UNIDADE 2

TPICO 2

JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O


GOVERNO CONSTITUCIONAL

1 INTRODUO

Neste tpico vamos nos concentrar especificamente em uma obra de John Locke, o
Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1994, 1998a). Lembrando que a leitura desta unidade
do Caderno de Estudos deve ser acompanhada pela leitura da obra referida que ser analisada.

Vamos introduzir, primeiramente, dados importantes sobre a vida e a obra de John


Locke, para contextualizar suas principais contribuies filosofia poltica moderna. A seguir
veremos temas centrais do pensamento lockeano, como a teoria da lei natural, o estado de
natureza, a propriedade e o trabalho.

Analisaremos tambm a relao da perspectiva lockeana e o esprito do capitalismo,


a ideia de um governo pelo consentimento, a proposta de um governo limitado e o papel do
poder executivo na teoria de Locke. Para finalizar o tpico, faremos uma comparao entre a
teoria do liberalismo lockeano e a teoria da justia de John Rawls, este ltimo um pensador
contemporneo que ser discutido com maior profundidade na terceira unidade deste Caderno
de Estudos.

F
I
2 Quem John Locke? L
O
S
O
difcil acreditar que um pequeno livro, como o Segundo Tratado sobre o Governo F
I
Civil (1994, 1998a), de pouco mais de uma centena de pginas, possa ter o efeito de moldar A

o mundo. Se algum duvidasse da importncia das ideias polticas na histria, solicitaramos P


O
que consultasse a histria e a influncia de John Locke, pois simplesmente impressionante. L

H muitas razes para ler suas obras em diferentes tipos de disciplinas, mas para os nossos T
I
propsitos, John Locke oferece ao Estado moderno a sua expresso que nos mais familiar. C
A
176 TPICO 2 UNIDADE 2

Por exemplo, seus escritos parecem ter sido to completamente absorvidos e adotados por
Thomas Jefferson, que quando ele escreveu a Declarao da Independncia, Locke poderia ser
considerado praticamente um coautor ou fundador honorrio dos Estados Unidos da Amrica.

Entre outras coisas, John Locke defende a liberdade natural e a igualdade dos seres
humanos, nossos direitos naturais para coisas como a vida, a liberdade, e o que ele chama de
"estate" ou a propriedade. Ele tambm defende a ideia de que o governo, ao menos o governo
legtimo, um governo por consentimento e necessariamente limitado, constitudo por uma
separao de poderes. Por isso, quando os governos se tornam repressivos ou quando se
tornam abusivos dos direitos naturais, as pessoas tm o direito revoluo. Alm disso, John
Locke foi um famoso defensor da tolerncia religiosa. Seu nome sempre ficar vinculado s
nossas ideias atuais de democracia liberal ou constitucional. Ele, portanto, oferece ao Estado
constitucional moderno sua expresso definitiva.

No entanto, Locke no surgiu ex nihilo, seus escritos vieram de algum lugar e de


alguma fonte. Eles foram preparados, em parte, por Maquiavel, que havia morrido cerca de
um sculo antes do nascimento de Locke. Mais significante ainda, por outro escritor ingls,
do qual j comentamos, Thomas Hobbes. Este ltimo tomou a ideia de Maquiavel contida em
O Prncipe e a transformou em uma teoria ou doutrina da soberania. O soberano hobbesiano
est na base de nossas ideias de um governo impessoal ou representativo. Ele transforma
o domnio principesco em um rgo, um cargo, um corpo artificial, chamado o soberano.
Este corpo artificial , para Hobbes, a criao de um contrato ou pacto social. Isso torna o
soberano o representante dos agentes ou pessoas que o criaram, assim como o responsvel
para garantir a paz, a justia e a ordem. Sem o poder do soberano, ns nos encontramos na
condio de natureza, em um estado de natureza, termo cunhado por Hobbes para indicar um
mundo sem autoridade civil ou, pelo menos, com uma autoridade civil fraca, incapaz de fazer
cumprir as regras e as leis comuns. Hobbes deu voz doutrina do absolutismo secular, que
investe o soberano com poder absoluto para fazer o que for necessrio para garantir o Estado
de Direito, a justia e a estabilidade poltica.

A partir dessas premissas, Locke criou uma teoria constitucional do Estado diferente e mais
liberal, ao mesmo tempo em que se manteve muito dependente das premissas que Hobbes havia
F
assumido ao modificar Maquiavel. Locke, na verdade, estabeleceu um processo de domesticao
I
L
para domar a teoria feroz e rigorosa de Hobbes de um governo absoluto, que tinha encontrado
O
S
poucos defensores em sua prpria poca. A obra mais importante de Locke sobre teoria poltica
O
F
ou filosofia poltica Dois tratados sobre o governo (1998b), dos quais s estudaremos o segundo,
I muitas vezes referido como o Segundo Tratado, mas provavelmente voc vai ter suspeitado, este
A
foi precedido por um primeiro tratado. O Primeiro Tratado (1998c) mais longo do que Segundo
P
O Tratado, e foi uma elaborada e minuciosa desconstruo da teoria do direito divino dos reis, que em
L
sua poca tinha recebido expresso por um homem chamado Robert Filmer, cujo nome aparece de
T
I vez em quando no Segundo Tratado. Filmer tinha escrito um livro chamado Patriarcha (1680), no
C
A qual havia argumentado que toda a autoridade poltica deriva da concesso de autoridade que Deus
havia dado a Ado, e, portanto, que toda autoridade legtima tem um direito divino em sua base.
UNIDADE 2 TPICO 2 177

S!
DICA

No h tradues para o portugus da obra de Robert Filmer,


entretanto h uma boa traduo para o espanhol que podemos
recomendar a leitura: FILMER, Robert. Patriarca o el poder natural
de los reyes. Trad. Angel Rivero Rodrguez. Madrid: Alianza, 2010.

O Primeiro Tratado de Locke uma obra muito importante, especialmente no que


se refere crtica e exposio bblica. Mas s no Segundo Tratado que Locke comeou a
definir a sua prpria teoria positiva do governo. Este livro foi escrito pouco antes da famosa
Revoluo Gloriosa de 1688, e nele, Locke expe a sua teoria da supremacia parlamentar,
do Estado de direito, e do governo constitucional. O Segundo Tratado pretendia ser um livro
prtico, direcionado no tanto aos filsofos, mas aos homens ingleses, escrito na linguagem
cotidiana de seu tempo. Ele escreveu para capturar o senso comum de seu tempo, embora isso
no signifique que Locke no era, ao mesmo tempo, uma figura profundamente controversa.
Locke tinha a capacidade de pegar ideias radicais ou mesmo revolucionrias e express-las
em um tipo de linguagem que fazia com que as pessoas acreditassem que isso era o que
elas pensavam o tempo todo. Essa , em certo grau, a genialidade do Segundo Tratado, pois
a linguagem de Locke tornou-se para ns quase o senso comum, ou linguagem corriqueira,
quando pensamos sobre poltica.

Locke foi um homem profundamente poltico, mas ele tambm foi, ao mesmo tempo,
muito reticente. Ele viveu em um perodo de intenso conflito religioso e poltico. Ele era apenas
um garoto quando rei Carlos I foi executado e j era um adulto quando outro rei, Jaime II, foi
forado ao exlio. Ele era um jovem contemporneo de Hobbes, mas viveu em um perodo
de imenso conflito civil e guerra. Locke passou muitos anos na Universidade de Oxford, e
suspeitavam que durante a maior parte de seu tempo l ele nutriu simpatia a polticas radicais.
Todavia, ele era to cauteloso e cuidadoso em expressar-lhes que depois de muitos anos,
mesmo aqueles mais prximos a ele no sabiam claramente quais eram de fato as suas
opinies. O reitor do colgio residencial de Locke em Oxford, o Sr. Fell, descreveu o Sr. Locke
em uma carta com as seguintes palavras:
F
Por vrios anos tenho mantido meus olhos sobre ele; mas a sua guarda tem I
sido to fechada sobre si mesmo que, depois de vrios inquritos rigorosos, L
O
posso afirmar com segurana que no h sequer um na Universidade, no S
importa quo familiarizado com ele, que o tenha ouvido falar uma palavra O
contra ou referente ao Governo; e, embora muito frequentemente, tanto em F
pblico como em privado, os discursos foram propositadamente introduzidos I
A
ao desacordo de seu mestre, o Conde de Shaftesbury, seu partido e seus
feitos, ele nunca pode ser provocado a tomar qualquer aviso ou revelar em P
uma palavra ou em um olhar a menor preocupao; por isso que eu acredito O
L
que no exista no mundo tal mestre da taciturnidade e da paixo como ele.
(apud FOWLER, 2011, p. 43, traduo nossa). T
I
C
A
178 TPICO 2 UNIDADE 2

Um mestre da taciturnidade, porque mesmo atravs de inquritos rigorosos, entre outras


coisas, ningum sabia quais eram as opinies de Locke sobre questes religiosas e polticas.
Pense um pouco nisso. Observe atentamente o retrato de John Locke pintado por Sir Godfrey
Kneller em 1697 (Figura 6), porque, tal como Maquiavel e outros, a face de um indivduo
muito reveladora. Tente detectar, como o fez o Sr. Fell, no retrato, o sentido de um mestre de
taciturnidade em John Locke.

FIGURA 7 JOHN LOCKE

FONTE: Retrato de John Locke, pintando a leo na tela por Sir Godfrey Kneller em 1697. Disponvel
em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/db/Godfrey_Kneller_-_Portrait_of_
John_Locke_%28Hermitage%29.jpg>. Acesso em: 5 fev. 2015.

Locke foi secretrio e mdico particular de Anthony Ashley Cooper, mais tarde conhecido
como Lorde Shaftesbury. Este Lorde tinha um crculo, o Crculo de Shaftesbury, de seguidores
polticos que eram adversrios da monarquia e que foram forados ao exlio em 1683. Locke
os seguiu para o exlio e passou vrios anos na Holanda, antes de voltar para a Inglaterra, um
pouco antes da Revoluo Gloriosa, onde seu livro, o Segundo Tratado, foi publicado e onde
viveu at sua morte, em 1704.

S!
DICA

F
I
L Recomendamos a leitura de um dicionrio especfico com cerca
O de 130 verbetes, elaborados a partir da obra completa de Locke:
S YOLTON, John W. Dicionrio Locke. Trad. lvaro Cabral. Rio de
O
F Janeiro: Zahar, 1996.
I
A

P
O
L

T
I
C
A
UNIDADE 2 TPICO 2 179

2.1 John Locke e a Teoria da lei Natural

Vamos nos concentrar agora sobre o tema que constitui o ncleo central da doutrina
poltica de Locke, sua Teoria da Lei Natural. Este um termo que surge de tempos em tempos,
mas no h outro pensador moderno que faa a lei natural ser to importante para a sua doutrina
como o faz Locke. A melhor maneira de reconstruir o obrar da lei natural seguir o procedimento
que vimos anteriormente, ou seja, analisar o estado de natureza, onde podemos ver a lei natural
em sua forma operativa. Especialmente no captulo dois, Do estado de natureza (1998a, p.
381-394), Locke descreve seu entendimento do estado de natureza. Para ele, assim como
para Hobbes, este estado no uma condio de governar e ser governado, como o para
Aristteles. O estado de natureza no uma condio poltica, Locke o descreve como uma
condio para a liberdade perfeita. Enquanto Aristteles disse que ns ramos, por natureza,
membros de uma famlia, da polis, de uma comunidade moral, unidos por laos de obrigao
cvica ou familiar, Locke entende que o estado de natureza uma condio sem autoridade
ou obrigaes civis.

Como a natureza humana na ausncia de autoridade? Locke sugere que o


estado de natureza no uma condio amoral, como o foi para Hobbes, no simplesmente
uma condio de guerra de todos contra todos. O estado de natureza, ele nos diz, de fato
uma condio moral, regida por uma lei moral ou lei natural que dita a paz e a sociabilidade.
H uma lei moral da natureza que determina que ningum deve prejudicar outra pessoa em
sua vida, sua liberdade, ou seus bens. Esta lei natural, Locke afirma, dita a paz e preservao
de toda a humanidade (LOCKE, 1998a, p. 384, 6). Assemelha-se com uma forma muito
tradicional da lei moral, bem familiar aos leitores de seu tempo; leitores familiarizados com a
tradio da lei natural desde Ccero aos estoicos romanos, a Toms de Aquino e certamente
at ao pastor anglicano Richard Hooker.

A teoria da lei natural de Locke soa reconfortante e tradicional, mas isso at certo ponto.
Afinal, toda autoridade civil tem seu fundamento em uma lei da razo que se faz cognoscvel
em virtude de nossas capacidades racionais. A lei da natureza declara, de acordo com Locke
em sua famosa afirmao, que todos os homens so um artefato de um mesmo Criador F
I
onipotente e infinitamente sbio" (LOCKE, 1998a, p. 384, 6). por essa razo, de sermos L
O
todos artefatos divinos, que nunca devemos prejudicar ningum em suas vidas, liberdades ou S
posses. Locke parece facilmente tecer a tradio estoica da lei natural com as ideias crists O
F
da obra divina em um conjunto harmonioso. A retrica de Locke rene e entrelaa diferentes I
A
vertentes da tradio filosfica e teolgica, todavia, no se deixe seduzir apressadamente por
P
isto. Porque mesmo dentro da mesma seo, a lei natural de Locke que comanda ou dita paz e O
L
preservao de toda a humanidade, transforma-se em um direito de autopreservao (LOCKE,
T
1998a, p.385, 6; p.388-384). I
C
A
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Todavia, a questo no est totalmente clara se a lei natural uma teoria do dever moral,
os deveres que temos de preservar os direitos e obrigaes dos outros, ou se de uma teoria
dos direitos naturais que demanda a mxima prioridade autopreservao individual e tudo o
que necessrio para alcanar a preservao do indivduo. Se o estado de natureza uma
condio sem a autoridade civil, ento a lei da natureza no tem nenhuma pessoa ou rgo
para supervisionar a sua aplicao. Portanto, esse estado de natureza que ele descreve no
incio do livro uma condio de paz e tambm de desconfiana mtua que rapidamente se
degenera em uma condio de guerra civil, onde cada indivduo atua como juiz, jri e executor
da lei natural. O estado de natureza torna-se rapidamente em uma condio essencialmente
hobbesiana de cada um por si. Considere a seguinte passagem na seo onze do Segundo
Tratado: A pessoa prejudicada", escreve Locke algum que tenha sido maltratado na condio
da natureza,

Tem o poder de apropriar-se dos bens ou servios do transgressor, por direito


de autopreservao, assim como todo homem tem um poder de punir o crime
para evitar que este seja cometido novamente, em virtude do direito que tem
de conservar a toda humanidade, e de fazer tudo o que for razovel para atingir
tal fim (1998a, p. 389).

Em outras palavras, se voc foi ou se sente injustiado no estado de natureza, de


acordo com a lei natural voc tem o direito de apropriar-se dos bens ou dos servios do ofensor.
Poders fazer isso do modo que lhe aprouver, pois cada pessoa se torna o juiz e o executor
da lei da natureza.

A lei fundamental da natureza, para Locke, o direito autopreservao. Este afirma


que cada pessoa tem o poder de fazer o que est ao seu alcance para preservar-se. Considere
a seguinte citao da seo dezesseis, no captulo dois: Pode-se destruir um homem que
promove a guerra contra ns ou manifestou inimizade nossa existncia, pela mesma razo
por que se pode matar um lobo ou um leo, continua Locke, porque tais homens no esto
submetidos lei comum da razo e no tm outra regra que no a da fora e da violncia,
e, portanto, podem ser tratados como animais de presas, criaturas perigosas e nocivas que
seguramente nos destruiro se cairmos em seu poder (LOCKE, 1998a, p. 396). Preste bem
ateno nessa descrio feita por Locke. Pois, a partir de uma condio moral original, na qual
estvamos sob a lei natural de no prejudicar, de preservar e proteger o bem-estar de outros
F
I
da nossa espcie, nos tornamos como lees e lobos uns para os outros, tal como animais de
L rapina e outras criaturas nocivas. Poderamos ento exclamar, o que o estado da natureza
O
S seno o que Dorothy Gale, interpretada por Judy Garland, no filme O Mgico de Oz: Lees e
O
F tigres e ursos! Ai, ai!" (O MGICO..., 1939). Isto o que ns somos uns para os outros.
I
A

P Podemos chamar essa abordagem como o bestirio de Locke, e de fato, o Segundo


O
L Tratado est repleto de uma linguagem comparativa entre os seres humanos e nosso

T comportamento para com os animais. Ele fala sobre lees, lobos, doninhas, gambs e raposas,
I
C sempre para afirmar que se realmente somos todos seres criados por uma lei natural, ento
A
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parece que estamos nos degenerando rapidamente em um comportamento quase bestial, pois
feras de rapina esto longe de serem cooperativas e promotoras da paz. A prpria liberdade
que seres como ns desfrutam em um estado de natureza nos leva a abusar dessa mesma
liberdade e, por sua vez, requer a necessidade de um governo civil. No entanto, a pergunta
que qualquer leitor do Segundo Tratado deve fazer a si mesmo saber se a condio natural,
como Locke a entende, supervisionada por uma lei moral que justifica ou santifica a paz e
a segurana, ou se o estado de natureza de Locke simplesmente uma descrio velada da
guerra hobbesiana de todos contra todos. Ser que Locke, o mestre da taciturnidade, foi
simplesmente um Hobbes em pele de cordeiro?

Locke parece estar falando duas linguagens muito diferentes, uma da lei natural
tradicional que mantm como prioridade os deveres para com os outros, e outra da concepo
hobbesiana moderna dos direitos naturais que mantm a prioridade do direito, o direito do
indivduo autopreservao. Portanto, ser que Locke um membro da tradio da lei natural
ciceroniana antiga e da tomista ou um hobbesiano moderno? A sua poltica deriva de uma
concepo teolgica da obra divina ou de uma concepo naturalista das paixes humanas e de
sua luta pela sobrevivncia? As suas prioridades vo em direo aos deveres ou aos direitos?
Afinal, Locke est confundindo duas linguagens diferentes ou ele est sendo intencionalmente
ambguo em seu relato?

Observe a declarao de Locke na quarta seo do Segundo Tratado:

Sendo absolutamente evidente que criaturas da mesma espcie e posio,


promiscuamente nascidas para todas as mesmas vantagens da natureza e
para o uso das mesmas faculdades, devam ser tambm iguais umas s outras,
sem subordinao ou sujeio (LOCKE, 1998a, p. 382, 4).

Essa declarao, de que criaturas da mesma espcie e classificao devem ser iguais
umas s outras, considerada como baseada em um argumento religioso muito especfico.
O argumento que se o fato de pertencer a uma mesma espcie confere um nvel especial
de dignidade a cada um dos seus membros, isso s faria sentido se acreditssemos que a
espcie em questo teria uma relao especificamente moral com Deus. Ou seja, a questo
saber se a ideia de Locke da igualdade e da lei moral no estado de natureza baseia-se nessa
crena, ou se pode ser inferida a partir de coisas como os princpios bsicos da liberdade, de
F
premissas ou fundamentos mais naturalistas e no puramente teolgicos. Para responder I
questo levantada acima, vamos necessitar buscar alguns argumentos de Locke expostos em L
O
outros escritos alm do seu Segundo Tratado. S
O
F
I
A

P
O
L
2.2 A LEI NATURAL E O ESTADO DE NATUREZA
T
I
C
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Podemos afirmar que a lei natural distinta da lei divina em que esta ltima, na tradio
crist, normalmente se refere s leis que Deus revelou diretamente por meio de profetas e
outros escritores inspirados. A lei natural pode ser descoberta pela razo e se aplica a todas as
pessoas, enquanto a lei divina s pode ser descoberta atravs da revelao especial de Deus
e se aplica somente para aqueles a quem revelado e que Deus indica especificamente que
so contemplados. Assim, alguns comentaristas do sculo XVII, Locke includo, declararam
que nem todos os 10 mandamentos, e muito menos o resto da lei do Antigo Testamento, eram
obrigatrios para todas as pessoas. Os 10 mandamentos comeam com "Ouve, Israel" e,
portanto, s so obrigatrios para as pessoas a quem foram dirigidos (LOCKE, 1824). Como
veremos a seguir, embora Locke pensou que a lei natural poderia ser conhecida para alm da
revelao especial, ele no via nenhuma contradio em Deus ter desempenhado um papel no
argumento, desde que os aspectos relevantes do carter de Deus poderiam ser descobertos
pela razo por si prpria. Na teoria de Locke, a lei divina e a lei natural so consistentes e
podem sobrepor-se no contedo, mas elas no so coextensivas. Assim, no h problema
para Locke se a Bblia ordena um cdigo moral que mais rigoroso do que aquele que pode
ser derivado da lei natural, no um problema real se a Bblia ensina o que contrrio lei
natural. Na prtica, Locke evita esse problema porque a coerncia com a lei natural era um
dos critrios que ele usou ao decidir a interpretao adequada de passagens bblicas.

No sculo antes de Locke, a linguagem dos direitos naturais tambm ganhou destaque
atravs dos escritos de pensadores como Hugo Grotius, Thomas Hobbes e Samuel Pufendorf.
Considerando que a lei natural enfatiza deveres, os direitos naturais normalmente enfatizam
privilgios ou reivindicaes a que um indivduo tinha direito. H um desacordo considervel
sobre a forma como estes fatores devem ser entendidos um em relao ao outro na teoria de
Locke. Leo Strauss (2009), e muitos de seus seguidores, dizem que os direitos so primordiais,
vo ao extremo, ao ponto de retratar a posio de Locke como essencialmente semelhante
de Hobbes (DEUTSCH; MURLEY, 1999, p. 63-65). Eles apontam que Locke defendeu uma
teoria hedonista da motivao humana (LOCKE, 2010, p. 110-114, II) e afirmam que ele deve
concordar com Hobbes sobre a natureza essencialmente egosta dos seres humanos. Locke,
afirmam, s reconhece obrigaes de direito naturais nas situaes em que a nossa prpria
preservao no est em conflito, enfatizando, ainda, que o nosso direito de nos preservar
supera quaisquer direitos que possa ter.
F
I
L
Na outra extremidade do espectro, outros estudiosos adotaram, por exemplo, a viso
O
S
de John Dunn (2003) de que a lei natural, no os direitos naturais, que so os primordiais.
O
F
Eles sustentam que, quando Locke enfatizou o direito vida, liberdade e propriedade, ele
I estava enfatizando os deveres que temos para com as outras pessoas: deveres para no matar,
A
escravizar, ou roubar. A maioria dos estudiosos tambm argumenta que Locke reconheceu
P
O o dever geral de ajudar com a preservao da humanidade, incluindo um dever de caridade
L
para aqueles que no tm outra maneira de obter a sua subsistncia (LOCKE, 1994, p. 136,
T
I VII, 93). Estes estudiosos consideram que esses deveres so primrios em Locke porque
C
A os direitos existem para assegurar que somos capazes de cumprir os nossos deveres. John
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Simmons (1992) defende uma posio semelhante a este ltimo grupo, mas afirma que os
direitos no so apenas o outro lado da moeda dos deveres em Locke, nem apenas um
meio para realizar os nossos deveres. Em vez disso, os direitos e deveres so igualmente
fundamentais, pois Locke acredita em uma "zona robusta de indiferena" (SIMMONS, 1992,
pp. 53, 64, 76, traduo nossa), em que os direitos protegem a nossa capacidade de fazer
escolhas. Enquanto essas escolhas no possam violar a lei natural, elas tambm no so um
mero meio para cumprir a lei natural.

Outro ponto de contestao tem a ver com a medida em que Locke pensou que lei
natural poderia, de fato, ser conhecida pela razo. Ambos, Leo Strauss (2009) e Peter Laslett
(1988), embora muito diferentes em suas interpretaes de Locke em geral, consideram a
teoria da lei natural de Locke como cheia de contradies. No Ensaio acerca do Entendimento
Humano, Locke defende uma teoria do conhecimento moral que nega a possibilidade de ideias
inatas (1999, p. 35-54, I) e afirma que a moral capaz de demonstrao da mesma forma que
a Matemtica o (1999, p. 203, III,11.16; p. 228-230, IV, 3.18-20). No entanto, em nenhum
lugar, em qualquer de suas obras Locke faz uma deduo integral da lei natural a partir das
primeiras premissas. Mais do que isso, Locke, por vezes, parece apelar s ideias inatas no
Segundo Tratado (LOCKE, 1994, p. 87, 2.11), e, em seus escritos sobre a razoabilidade do
cristianismo (LOCKE, 1824, p.139), ele admite que a lei natural no poderia ser compreendida,
em todos os seus aspectos, somente atravs da razo. Strauss deduz da que as contradies
existem para mostrar ao leitor atento que Locke no acredita de fato na lei natural. Laslett,
mais conservador, simplesmente diz que Locke o filsofo, e, Locke o escritor poltico devem
ser mantidos separados.

Podemos, no entanto, sugerir que no h nada estritamente inconsistente na admisso


de Locke nos escritos sobre a razoabilidade do cristianismo (1824). O fato de que ningum
deduziu tudo sobre a lei natural dos primeiros princpios no significa que nada disso tenha
sido deduzido. As passagens, supostamente contraditrias, nos Dois tratados sobre o Governo
esto longe de serem decisivas. Embora seja verdade que Locke no prev uma deduo
no Ensaio acerca do entendimento humano, no est claro que ele estava de fato tentando.
Nas sees 1 a 19 do Livro IV e captulo 10 (LOCKE, 1999), Locke parece mais preocupado
em mostrar como possvel argumentar com termos morais e no em proporcionar um relato
completo da lei natural. No entanto, deve-se admitir que Locke no trata o tema da lei natural
F
sistematicamente como se poderia desejar. As tentativas para elaborar sua teoria em mais I
L
detalhes com relao aos seus fundamentos e ao seu contedo devem tentar reconstru-la a O
S
partir de passagens dispersas por diversos textos. O
F
I
A
Para entender a posio de Locke em razo da lei natural, deve ser situada dentro
P
de um debate mais amplo na teoria da lei natural que antecede Locke, o chamado debate O
L
"voluntarismo-intelectualismo" ou "voluntarista-racionalista". Na sua forma mais simples, o
voluntarista declara que certo e errado so determinados pela vontade de Deus e que somos T
I
obrigados a obedecer vontade de Deus, simplesmente porque a vontade de Deus. A menos C
A
184 TPICO 2 UNIDADE 2

que essas posies sejam mantidas, o voluntarista argumenta, Deus torna-se suprfluo
moralidade uma vez que tanto o contedo como a fora vinculativa da moralidade podem ser
explicadas sem referncia a Deus. O intelectualista responde que esse entendimento torna a
moralidade arbitrria e no consegue explicar por que temos a obrigao de obedecer a Deus.

Com relao aos fundamentos e contedo da lei natural, Locke no totalmente


claro. Por um lado, h muitos casos em que ele faz declaraes que soam voluntaristas no
sentido de que a lei exige um legislador com autoridade (LOCKE, 1999). Locke tambm insiste
repetidamente nos Ensaios sobre a lei da natureza que os seres criados tm a obrigao de
obedecer a seu criador (LOCKE, 2005, p. 103-109, VI).

S!
DICA

Um excelente livro para aprofundar questes que envolvem


a moral e a histria em Locke o seguinte: JORGE FILHO,
Edgar Jos. Moral e histria em John Locke. So Paulo:
Loyola, 1992.

Por outro lado, h declaraes que parecem implicar um padro moral externo ao
qual Deus deve estar em conformidade (LOCKE, 1998b, p. 557, II, 195). Locke claramente
quer evitar a implicao de que o contedo da lei natural arbitrrio. Vrias solues tm sido
propostas. Uma soluo faz de Locke um intelectualista por fundamentar a nossa obrigao
de obedecer a Deus em um dever antecedente de gratido que existe independente de Deus.
Esta proposta foi sugerida por Don Herzog (1985). A segunda opo, sugerida por John
Simmons (1992), simplesmente considerar Locke um voluntarista, j que nesta direo que
a preponderncia de suas declaraes aponta. Uma terceira opo, sugerida por Alex Tuckness
(2009), tratar a questo do voluntarismo como tendo duas partes diferentes, fundamentos
e contedos. Deste ponto de vista, Locke era de fato um voluntarista no que diz respeito
pergunta: "Por que devemos obedecer lei da natureza?" Locke pensava que a razo, para
alm da vontade de um superior, s poderia ser consultiva. No que diz respeito ao contedo,
F a razo divina e a razo humana devem ser suficientemente anlogas que os seres humanos
I
L podem raciocinar sobre o que Deus provavelmente quer. Locke toma como certo que desde
O
S
que Deus nos criou com a razo, a fim de seguir vontade sua vontade, a razo humana e a
O
F
razo divina so suficientemente semelhantes que a lei natural no seria arbitrria para ns.
I
A

P
Os interessados na relevncia contempornea da teoria poltica de Locke devem
O
L
confrontar seus aspectos teolgicos. Os straussianos fazem a teoria de Locke ser relevante ao
alegar que as dimenses teolgicas do seu pensamento so fundamentalmente retricas; elas
T
I so como uma "cobertura" para mant-lo longe da perseguio pelas autoridades religiosas
C
A de sua poca. Outros, como John Dunn (2003), consideram Locke como de pouca relevncia
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para a poltica contempornea, precisamente porque muitos de seus argumentos dependem


de pressupostos religiosos que no so mais amplamente compartilhados. Mais recentemente,
um nmero de autores, como John Simmons (1992), tentaram separar os fundamentos do
argumento de Locke de outros aspectos do mesmo. Simmons, por exemplo, argumenta que
o pensamento de Locke sobredeterminado, contendo argumentos religiosos e seculares.
Ele afirma que, para Locke a lei fundamental da natureza "a conservao da humanidade,
nenhuma sano humana pode ser vlida contra ela" (LOCKE, 1998b, p. 506, 135). s vezes,
ele afirma, Locke apresenta este princpio em termos de regras consequencialistas: o princpio
que usamos para determinar os direitos e deveres mais especficos que todos tm. Em outros
momentos, Locke aponta para uma justificao mais kantiana que enfatiza a impropriedade de
tratar nossos iguais como se fossem meros meios para nossos fins. Jeremy Waldron (2002),
em seu mais recente trabalho sobre Locke, explora a afirmao oposta: a de que a teologia de
Locke, na verdade, fornece uma base mais slida para sua premissa da igualdade poltica do
que as abordagens seculares contemporneas que tendem a simplesmente afirmar a igualdade.

No que diz respeito ao contedo especfico da lei natural, Locke nunca fornece uma
declarao abrangente do que ele requer. No Segundo Tratado (1994), Locke afirma com
frequncia que a lei fundamental da natureza que tanto quanto possvel a humanidade deve
ser preservada. Nesta mesma obra Locke apresenta os seguintes tipos de deveres (1994, p.
84-85, II, 6):

1) o dever de preservar a si mesmo,


2) o dever de preservar os outros, quando a autopreservao no entra em
conflito,
3) o dever de no tirar a vida de outra pessoa, e
4) o dever de no atuar de uma forma que tende a destruir os outros.

Intrpretes libertrios de Locke tendem a subestimar os deveres do tipo 1 e 2. Locke


apresenta uma lista mais extensa no Ensaios sobre a Lei da Natureza. Curiosamente, Locke,
nesta obra, inclui a glria e a honra da divindade conforme exigido por lei natural, bem como
o que poderamos chamar de boas qualidades de carter (LOCKE, 2005, p. 87-88).

No que diz respeito ao conceito de estado de natureza de Locke, este foi interpretado
pelos comentaristas em uma variedade de maneiras. primeira vista, parece bastante simples.
F
Locke escreve "a vontade de se ter [a falta de] um juiz comum com autoridade coloca todos I
L
os homens em um estado de natureza e, novamente, "homens vivendo juntos segundo a O
S
razo, sem um superior comum na terra com autoridade para julgar eles, eis efetivamente o O
estado de natureza (LOCKE, 1994, p. 92-93, II, 19). Muitos comentaristas tomaram isso F
I
como a definio de Locke, concluindo que o estado de natureza existe onde quer que no A

haja autoridade poltica legtima capaz de julgar disputas e onde as pessoas vivem de acordo P
O
com a lei da razo. Nesta interpretao o estado de natureza distinto da sociedade poltica, L

onde existe um governo legtimo, e de um estado de guerra em que os homens no conseguem T
I
cumprir a lei da razo. C
A
186 TPICO 2 UNIDADE 2

Podemos argumentar que a afirmao acima est redigida como condio suficiente
em vez de condio necessria. Duas pessoas podem ser capazes, no estado de natureza,
de autorizar um terceiro a resolver as disputas entre eles sem sair do estado de natureza, uma
vez que o terceiro no teria, por exemplo, o poder de legislar para o bem pblico. H outras
interpretaes que no levam em considerao o fato de que h algumas pessoas que vivem
em estados com governos legtimos que, no entanto, esto no estado de natureza: estrangeiros
que visitam (LOCKE, 1994, p. 155, 122), as crianas com idade inferior maioridade (1994,
p. 152, 118), e aqueles com algum "defeito" natural que no atingem a razo (1994, p. 117,
60). Diante disto, poderamos afirmar que o estado de natureza um conceito relacional que
descreve um conjunto particular de relaes morais que existem entre as pessoas em particular,
ao invs de uma descrio de um territrio geogrfico particular. O estado de natureza seria
apenas a maneira de descrever os direitos morais e responsabilidades que existem entre as
pessoas que no consentiram a adjudicao de suas disputas pelo mesmo governo legtimo.
Os grupos que acabamos de mencionar, ou no tm condies ou no podem dar o seu
consentimento, portanto eles permanecem no estado de natureza.

Esta interpretao do estado de natureza lockeano est em contraste agudo com a leitura
de Strauss. De acordo com Strauss (2009), Locke apresenta o estado de natureza como uma
descrio factual do como eram as sociedades mais antigas, uma descrio que quando lida
de perto revela o distanciamento de Locke dos ensinamentos cristos. As teorias do estado
de natureza, Strauss e seus seguidores afirmam, so contrrias ao relato bblico de Gnesis e
evidenciam que os ensinos de Locke so semelhantes ao de Hobbes. Como observado acima,
na abordagem straussiana, as declaraes aparentemente crists de Locke so apenas uma
fachada projetada para esconder seus pontos de vista essencialmente anticristos. Pois, uma
vez que o estado de natureza um relato moral, ele compatvel com uma grande variedade
de relatos sociais, sem cair em contradio. Se ns sabemos apenas que um grupo de pessoas
est em um estado de natureza, sabemos apenas dos direitos e as responsabilidades que eles
tm um para com o outro; no sabemos nada sobre se so ricos ou pobres, pacficos ou blicos.

Uma interpretao complementar feita por John Dunn (2003) no que diz respeito
relao entre o estado de natureza lockeano e suas crenas crists. Ele afirmou que estado
de natureza de Locke menos um exerccio de antropologia histrica do que uma reflexo
F
teolgica sobre a condio do homem. Na interpretao de John Dunn, o estado de natureza
I
L
no pensamento de Locke uma expresso de sua posio teolgica, que o homem existe em
O
S
um mundo criado por Deus para os propsitos de Deus, mas que os governos so criados por
O
F
homens, a fim de promover esses fins.
I
A
A teoria do estado de natureza de Locke est, assim, intimamente ligada sua teoria
P
O da lei natural, uma vez que esta ltima define os direitos das pessoas e sua condio como
L
pessoas livres e iguais. Quanto mais fortes os fundamentos para aceitar a caracterizao de
T
I Locke do povo como livre, igual, e independente, mais til torna-se o estado de natureza como
C
A um dispositivo para representar o povo. Ainda assim, importante lembrar que nenhuma dessas
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interpretaes afirma que o estado de natureza de Locke apenas um experimento mental,


da maneira que muitos pensam que Kant e Rawls usam o conceito. Locke no respondeu ao
argumento "onde que j teve pessoas em tal estado", dizendo que no importa, pois era
apenas um experimento mental. Em vez disso, ele argumentou no Segundo Tratado que h e
houve pessoas no estado de natureza.

2.3 A Propriedade, O Trabalho e A Teoria


da lei Natural

O ncleo da teoria de Locke da lei natural no estado de natureza est alojado em sua
explicao da propriedade no captulo cinco do Segundo Tratado. Se h uma coisa que voc
no pode esquecer sobre Locke o que est registrado neste captulo, quem sabe tambm
o captulo dezenove "Da dissoluo do governo, certamente uma das doutrinas mais
caractersticas do pensamento poltico de Locke. A viso de Locke da natureza humana que
ns somos basicamente o animal adquiridor de propriedades. Aristteles disse que somos
polticos por natureza; Locke diz que somos seres adquiridores de propriedades, e nossas
reivindicaes de propriedade derivam do nosso trabalho. O fato de termos gasto o nosso labor,
o nosso trabalho, em algo nos d um ttulo ao mesmo, pois o trabalho confere valor e a fonte
de todos os valores. O estado de natureza uma condio, nos diz Locke, de propriedade
comunal, o que Karl Marx teria chamado de "comunismo primitivo", dado a todos os homens
em comum. Partes dele se torna propriedade privada apenas quando somamos nosso trabalho
a alguma coisa. Deixe-me citar a famosa tese das sees 27 e 28. "Cada homem," Locke diz,
"tem uma propriedade em sua prpria pessoa. A esta ningum tem direito algum alm dele
mesmo. Todos ns, em outras palavras, viemos ao mundo com certa propriedade privada,
uma propriedade em nossa pessoa, e ningum mais tem direito a isso. "O trabalho de seu
corpo e a obra de suas mos, pode-se dizer, so propriamente dele [...] por ser esse trabalho
propriedade inquestionvel do trabalhador", Locke continua, "homem nenhum alm dele pode
ter o direito quilo que a esse trabalho foi agregado, pelo menos enquanto houver bastante
e de igual qualidade deixada em comum para os demais (LOCKE, 1998a, p. 407, 409, 27).
J na prxima seo ele diz que esse trabalho imprimiu uma distino entre esses frutos e o
comum, acrescentando-lhes algo mais do que a natureza, me comum de todos, fizera; desse
F
modo, tornaram-se direito particular dele (p. 410. 28). Ento passamos aqui, nestas sees, I
do estado de natureza, que ele diz ser comum a todos, condio de propriedade privada L
O
rudimentar. Esta condio est em nosso prprio corpo, em nossa pessoa, o que tambm inclui S
O
o trabalho do corpo e o trabalho das mos. Esse labor, diz ele, o que coloca algo entre ns e o F
I
comum, torna-se a fonte de propriedade das coisas que nos cercam, e esta propriedade, por A

sua vez, torna-se um direito, o seu direito privado. Temos aqui, portanto, a origem do direito P
O
propriedade. L

T
I
A lei natural, como Locke argumenta, determina o direito propriedade privada e C
A
188 TPICO 2 UNIDADE 2

para garantir esse direito que os governos so finalmente estabelecidos. Em uma formulao
marcante, Locke diz-nos que o mundo foi criado, a fim de ser cultivado e melhorado. Aqueles
que trabalham para melhorar e desenvolver a natureza, que acrescentam natureza atravs
do trabalho de seus corpos e as obras das suas mos so os verdadeiros benfeitores da
humanidade. "Deus deu o mundo aos homens em comum", diz ele, na seo trinta e quatro,
"mas uma vez que lhes deu o mundo para benefcio deles e para a maior convenincia da vida
que dele fossem capazes de extrair. Locke continua, "no se pode supor que tivesse Ele a
inteno de que permanecesse comum e inculto para sempre", e ento ele acrescenta: Deu-o
para o uso dos diligentes e racionais (e o trabalho haveria de ser o seu ttulo de propriedade), e
no para a fantasia e a cobia dos rixentos e litigiosos (LOCKE, 1998a, p. 414, 34). Deus deu
ao mundo para que o pudssemos melhorar, portanto, Ele deu-o ao trabalhador e ao racional.
Locke parece sugerir nesta frase que o Estado ser comercial, que a repblica lockeana ou o
Estado de Locke ser uma repblica comercial. Pense nisso.

A antiga teoria poltica, de Plato e Aristteles, por exemplo, considerava o comrcio e


a propriedade como subordinadas vida de um cidado. Plato teria institudo uma espcie de
comunismo de bens entre os guardies de sua Kallipolis. Aristteles pensava na necessidade da
propriedade privada, mas simplesmente como um meio de permitir que alguns desses cidados
se envolvessem na vida poltica. A economia, poderamos dizer, sempre esteve subordinada
poltica. Locke transforma esta doutrina antiga e medieval ao afirmar que o mundo pertence
ao trabalhador e ao racional, aqueles que por meio de seus prprios esforos, labor e trabalho,
ampliam e melhoram a abundncia de tudo. A este respeito, apenas um passo relativamente
curto de John Locke a Adam Smith, o grande autor de A Riqueza das Naes (1996), publicada
pouco menos de um sculo depois do Segundo Tratado. Para Locke, o ponto essencial que
no h limites naturais para a aquisio de propriedades. A introduo do dinheiro ou de um
sistema monetrio no estado de natureza, questo que se torna um momento importante no
captulo cinco, torna a acumulao de capital ilimitada no apenas possvel, mas at mesmo
uma espcie de dever moral. Torna-se o nosso dever aprimorar e trabalhar sobre as matrias-
primas do mundo natural que nos rodeia. Pois, enriquecendo a ns mesmos, mesmo sem
inteno acabamos trabalhando para o benefcio dos outros.

Considere a seguinte frase notvel: "Um rei de um territrio to vasto e produtivo [na
F
Amrica]", diz ele, "se alimenta, se aloja e se veste pior do que uma diarista na Inglaterra"
I
L
(LOCKE, 1994, p. 107, 41). Porque o nosso trabalho, Locke pensa, de alguma forma aumentou
O
S
a abundncia de tudo. A criao de uma abundncia geral, uma commonwealth, riqueza em
O
F
comum ou para todos, deve-se emancipao do trabalho dos tipos anteriores de restries
I morais e polticas que lhe eram impostas pelas antigas tradies filosficas, assim como
A
religiosas. O labor torna-se, para Locke, sua fonte de todo valor e o nosso ttulo propriedade
P
O comum. Portanto, ele no torna a natureza, mas sim de trabalho e aquisio humana a fonte
L
de propriedade e de bens materiais ilimitados.
T
I
C
A Ele comea o captulo cinco com a seguinte afirmao, "Deus, que deu o mundo aos
UNIDADE 2 TPICO 2 189

homens em comum" (LOCKE, 1994, p. 97, 26), sugerindo que o estado original uma condio
de direito propriedade em comum. A seguir, sugere que cada pessoa o proprietrio de seu
prprio corpo e que se adquire um ttulo s coisas atravs do trabalho. Mas o que comea
como um ttulo muito modesto aos objetos sobre os quais trabalhamos, seu exemplo algo
bem simples como pegar as mas em uma rvore, o ato de coletar as mas nos daria um
direito de posse ma, uma forma muito simples ou rudimentar de propriedade logo se
transforma em uma explicao em ampla escala sobre a ascenso da propriedade e uma
espcie de economia de mercado no estado de natureza. Sobre esta questo, Locke diz, a
isto eu acrescentaria que aquele que se apropria da terra por meio de seu trabalho no diminui,
mas aumenta a reserva comum da humanidade. O autor continua, pois as provises que
servem para o sustento da vida humana, produzidas por um acre de terra cercado e cultivado,
so dez vezes maiores que aquelas produzidas por um acre de terra de igual riqueza, mas
inculta e comum. Ou seja, o nosso trabalho aumenta o valor da natureza em dez vezes. Em
seguida, Locke acrescenta: Eu aqui estimo o rendimento da terra cultivada a uma cifra muito
baixa, avaliando seu produto em dez para um, quando est muito mais prximo de cem para
um (LOCKE, 1994, p. 104, 37). Destarte, nosso trabalho avana as coisas em cem vezes,
e pouco tempo mais tarde, na seo quarenta e trs, ele diz que o valor de qualquer coisa
melhorado mil vezes devido ao trabalho.

Portanto, o que comeou como uma discusso bastante rudimentar das origens da
propriedade privada no incio do captulo cinco, limitada pela extenso do nosso uso e a
deteriorao, at o final do mesmo captulo se transforma em uma explicao de direito posse
de larga escala, com grandes desigualdades de riqueza e de poder. At o final do captulo
cinco parece haver quase uma ligao direta entre a teoria dinmica da propriedade de Locke
e a famosa frase de Hamilton, Madison e Jay no O Federalista (2003). Como Madison diz no
ensaio de nmero dez: "A diversidade de faculdades nos homens, que a origem dos direitos
de propriedade, um obstculo igualmente invencvel uniformidade dos interesses. A proteo
dessas faculdades o primeiro fim do governo (p. 61). Parece uma proposta muito lockeana em
O Federalista. Locke oferece, em outras palavras, ao comrcio, ao fazer dinheiro, ganncia,
uma espcie de posio de orgulho e uma espcie de status moral que voc nunca encontrar
no mundo antigo e medieval. A nova poltica do Estado lockeano deixar de se preocupar com
a glria, a honra, o thumos, a virtude, mas a poltica lockeana ser sbria, ser prosaica, ser
hedonista, sem sublimidade ou alegria. Locke o autor da doutrina de que o comrcio suaviza
F
as maneiras, que nos torna menos guerreiros, que nos faz civilizados, algo que atinge a sua I
L
mais alta expresso no vigsimo livro do Esprito das Leis (1996) de Montesquieu. Para Locke, O
S
o comrcio no exige de ns o derramamento de sangue ou arriscar a prpria vida. Assim, O
F
Locke o grande autor da ideia de que o ofcio do governo proteger no apenas os direitos I
A
de propriedade, mas o direito de adquirir e construir sobre a propriedade que j possumos.
P
O
L

T
I
C
A
190 TPICO 2 UNIDADE 2

3 Locke e o Esprito do Capitalismo

Vamos agora abordar a questo do governo por consentimento. Junto com a ideia da
lei natural, a doutrina do consentimento uma das contribuies mais significativas de Locke
filosofia poltica.

Os cinco primeiros captulos do Segundo Tratado lidos como uma unidade, nos contam
uma histria, uma espcie de antropologia filosfica que nos leva atravs do estado de natureza,
o estado de guerra e a criao da propriedade privada. No quinto captulo particularmente,
Locke comea com a condio original da natureza que forma uma espcie de comunismo
primitivo criao da propriedade atravs do trabalho do prprio corpo e do trabalho das
prprias mos. At o final do quinto captulo, temos a criao de uma espcie de economia de
mercado em escala integral, sofisticada e repleta de vrias desigualdades, talvez at algumas
desigualdades de bens e propriedades em grande escala, tudo isso no interior do estado de
natureza. Como isso ocorre e o que o torna legtimo? O que legitima essa transio do estado
original da natureza governada por nada mais do que a lei da natureza ao surgimento da
propriedade e, de certa forma, a uma espcie de economia de mercado?

O que Locke est fazendo nos cinco primeiros captulos do Segundo Tratado reescrever
o relato da origem do ser humano que originalmente pertencia s escrituras bblicas. Ele conta
a histria dos seres humanos encontrando-se em uma condio de natureza com ningum ou
nenhuma autoridade adjudicando as suas disputas, governados apenas por uma lei natural.
No entanto, conta como eles so capazes de desfrutar do uso das propriedades criadas e
adquiridas atravs de seu labor e trabalho. Ele nos diz, nesses captulos iniciais, que o homem
um animal adquiridor de propriedade, o animal aquisitivo, mesmo no estado de natureza,
onde no h nada seno a lei natural para governar as associaes e relaes humanas. Mas
o problema com o estado de natureza para Locke, assim como tambm o foi para Hobbes, a
sua instabilidade devido ausncia de autoridade civil para arbitrar as disputas, principalmente
aquelas por propriedade. O deleite pacfico e a aquisio de propriedade, os frutos do trabalho
e labor, so continuamente ameaados pela guerra e pelo conflito. Como podemos estar
F seguros em nossa pessoa ou propriedade sem foras policiais ou agncias que imponham
I
L a lei e resolvam qualquer ruptura na paz? Como podemos estar seguros onde todos so os
O
S juzes, jris e executores da lei natural? A necessidade de um governo surge da necessidade
O
F real de resolver conflitos ou disputas sobre direitos de propriedade. Isso soa como uma ideia
I
A muito familiar, que governo existe para garantir a proteo dos diretos de propriedade. uma
P espcie de doutrina fundamental que chamaramos hoje de libertarianismo.
O
L

T Locke , provavelmente, o primeiro escritor que afirma que "o grande objetivo dos
I
C homens quando entram em sociedade desfrutar de sua propriedade pacificamente e sem
A
UNIDADE 2 TPICO 2 191

riscos, e o principal instrumento e os meios de que se servem so as leis estabelecidas nesta


sociedade (LOCKE, 1994, p. 162, 134). Ningum antes de Locke tinha dito de modo to ousado
e direto que o propsito da poltica a proteo de direitos de propriedade. E por propriedade,
Locke no significa meramente os objetos nossa volta que foram transformados por ns em
bens; mas a propriedade est enraizada, sobretudo e em primeiro lugar, em nossa pessoa e
em nosso corpo. Comeamos a vida com uma determinada propriedade rudimentar que se
resume a ns mesmos. Portanto, para ele a propriedade significa mais do que simplesmente
bens imveis, e sim tudo o que engloba a nossa vida, liberdade e bens. Estas so todas
propriedades no sentido original e mais revelador do termo, isto , que melhor se adqua a
ns. Todavia, Locke enfatiza continuamente a incerteza do estado de natureza, porque a vida l
"embora livre, est repleta de medos e perigos contnuos; e no sem razo que o indivduo
solicita e deseja se unir em sociedades com outros (LOCKE, 1994, p. 156, 123).

Contudo, importante comparar a explicao de Locke da transio do estado de


natureza ao estado civil com aquela de Hobbes. Locke tenta modificar, domesticar, aprimorar
os ensinamentos severos e rigorosos de Hobbes. Hobbes havia enfatizado o temor absoluto
do estado de natureza. Para Hobbes, o estado de natureza era uma espcie de estado de
pavor existencial, de medo absoluto. Para Locke, no entanto, uma condio continuamente
atormentada pela inquietao e pela ansiedade ou por inconvenientes, esta ltima sendo
a palavra que ele usa com frequncia. O estado de natureza aquele que consiste em
inconvenincias contnuas. o nosso mal-estar, a nossa inquietao que no apenas um
estmulo para o nosso trabalho, mas a causa das inseguranas que temos no estado de
natureza. Mas, qual a razo da nfase de Locke na inquietude, no mal-estar e no carter de
ansiedade perptua dos seres humanos no estado de natureza? Ser que alguma vez ouvimos
Plato ou Aristteles discutindo o carter do medo, da ansiedade ou da inquietude da psicologia
humana? Provavelmente no. Ser que a razo disso no foi simplesmente em funo da
disposio nervosa de Locke, o fato de que ele era simplesmente propenso reticncia e quem
sabe a uma espcie de medo? Ou ser que a nfase de Locke sobre o nosso mal-estar na
condio natural realmente representa as qualidades de uma nova classe, as novas classes
comerciais, uma vez que estavam procurando estabelecer a sua legitimidade?

O Segundo Tratado de Locke em muitos aspectos uma obra sobre a classe mdia
ou, como um marxista diria, sobre a ascendncia da burguesia. Quando Locke escreve que o
F
mundo est destinado ao uso do trabalhador e do racional, de quem ele est falando? Quem I
L
o trabalhador e o racional? Ele est falando sobre um novo ethos da classe mdia cujo ttulo O
S
para governar no repousa sobre a hereditariedade ou na tradio; ele no est se referindo a O
F
uma classe dominante habitual, uma classe cujo ttulo de governar vem de suas reivindicaes I
A
de nobreza. Ele est se referindo a pessoas cujo ttulo para governar ou ttulo potencial para
P
governar repousa sobre sua capacidade para o trabalho duro, parcimnia e oportunidade. O O
L
Segundo Tratado de Locke poderia muito bem ser chamado de Manifesto do Capitalista, ou
talvez o Manifesto Anticomunista. T
I
C
A
192 TPICO 2 UNIDADE 2

Mas ser que o lockeanismo simplesmente um Maquiavel com uma face humana?
Afinal, a regra de O Prncipe em Maquiavel no a regra de um novo lder, uma nova autoridade
que opera fora dos parmetros da autoridade tradicional? Ento, no seria o lockeanismo
como em Maquiavel, uma tica do homem feito por si mesmo, o self-made man, com toda
a insegurana, ansiedade e inquietao que este tipo de homem representa? Ser que o
lockeanismo representa uma domesticao de Maquiavel, transformando a sua tica feroz,
guerreira, de conquista e dominao em uma tica do trabalho de conquista e dominao da
natureza atravs do labor rduo? O que queremos sugerir que a filosofia poltica de Locke
d expresso ao que o grande socilogo alemo Max Weber argumenta em seu famoso livro
chamado A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo (1999), publicada em 1904.

Nesse trabalho, Weber argumentou que a tica capitalista transformou o direito de


acumulao ilimitada de capital que era, em termos weberianos, o desenvolvimento natural
dos movimentos puritanos e calvinistas dos sculos XVI e XVII, em um dever moral supremo
ou em vocao religiosa. Para Weber foi exatamente onde a reforma protestante tinha criado
razes nos pases do norte da Europa que esse ethos capitalista se desenvolveu pela primeira
vez, aprovando uma atitude moral inteiramente nova s coisas como a propriedade, a aquisio
de imveis e o dinheiro. Anteriormente, essas coisas tinham sido consideradas moralmente
duvidosas, deixadas de lado por haver algo vergonhoso sobre elas. Certamente voc pode
ver isso nos escritos clssicos de filosofia poltica. Todavia, para os primeiros modernos, a
acumulao de capital se tornou uma espcie de vocao e dever moral. Deus deu o mundo
ao racional e ao trabalhador, no ao queixoso e contencioso; ou seja, no queles aristocratas
soberbos que buscam a luta pela dominao e poder sobre os outros. O que Locke traz
existncia uma atitude moral totalmente nova e revolucionria sobre a propriedade e a
aquisio da mesma, que acaba encontrando sua maior expresso um sculo mais tarde com
Adam Smith e sua contribuio essencial para a economia moderna.

Portanto, sem John Locke no haveria a disciplina moderna chamada economia.


Porque ele foi o nico, um sculo antes de Smith e da ascenso da escola de economia
poltica, que deu o primeiro e decisivo passo em tornar a aquisio de propriedades at mais
do que respeitvel, de transform-la em uma alta vocao moral e digna. Como efeito direto
disso, transformou o governo e a poltica em uma ferramenta para a proteo da propriedade
F
e os direitos de propriedade. Essa , em sntese, uma das contribuies mais significativas de
I
L
Locke para a poltica moderna.
O
S
O
F
I
A

P 3.1 Governo pelo consentimento


O
L

T
I Agora vamos focar na ideia de Locke sobre o consentimento, a ideia de que a origem
C
A de todo o governo, ou, pelo menos, de todo o governo legtimo derivada do consentimento
UNIDADE 2 TPICO 2 193

dos governados. Essa ideia estava implcita na teoria do pacto que cria o soberano de Hobbes,
todavia Locke pe-na em lugar de destaque. No captulo oito do Segundo Tratado, Locke nos
fornece uma espcie de reconstruo hipottica da origem de todas as sociedades. Ele escreve
na seo noventa e cinco que:

A nica maneira pela qual algum se despoja de sua liberdade natural e se


coloca dentro das limitaes da sociedade civil atravs de acordo com outros
homens para se associarem e se unirem em uma comunidade para uma vida
confortvel, segura e pacfica uns com os outros (LOCKE, 1994, p. 139, 95).

Locke diz-nos que h algo sobre os fins legtimos da sociedade, fins de servir a uma
vida confortvel, segura e de convivncia pacfica. Ele continua a afirmar que quando qualquer
nmero de homens decide constituir uma comunidade ou um governo, isto os associa e eles
formam um corpo poltico em que a maioria tem o direito de agir e decidir pelo restante (LOCKE,
1994, p. 139, 95).

Essa declarao curta, da seo noventa e cindo no captulo oito, parece levantar
talvez o primeiro e mais poderoso caso a favor da democracia. Com base nesta afirmao,
Willmoore Kendall, um famoso acadmico e professor de filosofia poltica, escreveu um livro
extremamente importante que descreve John Locke como um democrata do governo da
maioria. Ele disse no livro John Locke and the Doctrine of Majority Rule (2013), [John Locke
e a Doutrina do Governo da Maioria], que a filosofia de Locke fornece a f do democrata no
governo da maioria, e faz isso concentrando-se em grande parte das sees noventa e cinco
e noventa e seis como uma espcie de chave para o ensino da poltica de Locke no Segundo
Tratado. Agora, considere a seguinte frase, que parece acrescentar esta alegao.

Quando qualquer nmero de homens, atravs do consentimento de cada in-


divduo, forma uma comunidade, do a esta comunidade uma caracterstica
de um corpo nico, com o poder de agir como um corpo nico, o que significa
agir somente segundo a vontade e a determinao da maioria. (LOCKE, 1994,
p. 139, 96).

O que faremos com esta afirmao, que em qualquer comunidade somos governados
pela maioria? Essa ideia, sem dvida, seria recebida com uma imensa surpresa pelo rei da
Inglaterra ao saber que o seu governo era justificado pelo consentimento dos governados. Ou
ainda, se voc atravessasse o Canal da Mancha e fosse Frana de Lus XIV naquele perodo,
F
o rei que disse a famosa frase L'tat c'est moi, "o Estado sou eu", sem dvida, teria ficado muito I
L
surpreso e provavelmente achado risvel a ideia de que a sua legitimidade veio do consentimento O
S
dos seus sditos. Ser que Locke, ao dizer que o governo deriva do consentimento da maioria, O
F
est negando a legitimidade de todos os governos que no derivam do mesmo? Seria ele, com I
A
base nisto, uma espcie de democrata do governo da maioria? Ser que ele mina argumentos
como os de Aristteles, que observara diversas formas de governo como igualmente legtimos P
O
desde que fossem moderados e governados pela lei? De fato, parece que Locke est dizendo L

que a nica forma legtima ou justa de governo o governo da maioria. Mas preste ateno no T
I
termo parece que, pois Locke um escritor escorregadio, ele tem uma tendncia a tomar C
A
194 TPICO 2 UNIDADE 2

de volta com uma mo o que oferece com a outra.

O acordo para fazer uma comunidade, no entanto, no exatamente a mesma coisa


como o estabelecimento de uma forma de governo. A escolha de ter um governo, que o que
Locke est falando aqui nestas sees relevantes, optando por ter um governo para ser um
povo, em muitos aspectos um ato anterior eleio de qualquer forma particular de governo
para governar. O Segundo Tratado, de alguma forma, especifica apenas que os governos
obtm seus poderes justos do consentimento dos governados. No parece dizer de forma muito
explcita sobre qual a forma de governo que o povo pode querer consentir. O Segundo Tratado,
portanto, ainda bastante neutro quanto s formas de governo. A nica forma de governo que
parece ser absolutamente excluda no relato de Locke uma espcie de monarquia absoluta,
pois no podemos ceder os nossos direitos inteiramente a outro indivduo. Mas ele parece
estar relativamente aberto para o que quer que as pessoas possam desejar consentir, pois o
ato de consentimento por si s no cria um governo, meramente um ato para formar uma
sociedade. De muitas maneiras, ele aceita a famosa mxima do Alexandre Pope: "Qual Governo
melhor loucos disputem; O que melhor regido [administrado] melhor sempre" (1819, p.
37, III, 303). Em outras palavras, voc tem o melhor governo se este bem administrado,
se este protege os seus direitos de propriedade; no constante sua forma, se monrquico,
aristocrtico, republicano ou qualquer outra, no to importante. O que importante, e isto
para Locke pode ser sintetizado como a nica coisa que de fato importante, que a forma
de governo receba o consentimento dos governados.

As pessoas no precisam necessariamente consentir com a democracia. Se Locke


democrtico, apenas porque ele democrtico no sentido de que o governo deriva a
autoridade do consentimento. Foi essa doutrina do consentimento de Locke que capturou, por
exemplo, a imaginao dos fundadores norte-americanos. Quando Thomas Jefferson escreveu
sobre os objetivos do governo, ele disse que so para proteger a vida, a liberdade e a busca
da felicidade. Ele parece ter modificado a declarao de Locke sobre a vida, a liberdade e a
propriedade. Por que ele fez isso? Poderamos falar sobre o que significa a busca da felicidade,
certamente, se destina a implicar, entre outras coisas, a aquisio da propriedade. Mas Jefferson,
de certa forma eleva a linguagem lockeana, ao indicar que no simplesmente focada na
propriedade, mas na busca da felicidade, interpretada em conformidade com os direitos dos
F
outros (DRIVER, 2006).
I
L
O
S
Portanto, a linguagem de Locke que o poder dos governos deriva apenas do
O
F
consentimento que parece ter inspirado Jefferson e os fundadores dos Estados Unidos da
I Amrica. Essa doutrina, por exemplo, teve um enorme efeito sobre o segundo maior fundador
A
daquela nao, Abraham Lincoln. Considere a seguinte passagem de Lincoln em 1854 em seu
P
O primeiro grande discurso, s vezes chamado o Discurso de Peoria, no qual estava debatendo
L
Stephan A. Douglas sobre a escravido. Lincoln diz: "Quando o homem branco se governa isso
T
I autogoverno, mas quando ele governa a si mesmo, e tambm governa outro homem, isso
C
A mais do que autogoverno, isso o despotismo". Lincoln continua: "Minha f antiga", sem dvida
UNIDADE 2 TPICO 2 195

pensando na Declarao e nos ideais de Jefferson, "me ensina que no pode haver direito
moral com um homem fazendo um escravo de outro. O que eu digo", Lincoln argumenta, "
que nenhum homem bom o suficiente para governar um outro sem o consentimento deste.
Isto, conclui ele, " o princpio condutor, a ncora de esperana do republicanismo americano
(LINCOLN, 2009, p. 168-169, traduo nossa). Fica claro nesta citao que Abraham Lincoln
est se referindo Doutrina do Consentimento.

Essa declarao, como j dito acima, parte de seu debate com Douglas sobre a questo
da escravido e que, em muitos aspectos, foi at o cerne do significado de consentimento.
Douglas tambm tentou derivar seus argumentos a partir de uma ideia de consentimento. O
que Douglas disse foi que ele no se importava com a questo da escravido per si, ele era
indiferente quanto ao fato de as pessoas de um determinado Estado ou um territrio quererem
ou no a escravido. A questo para ele era que, o que quer que a maioria do povo consentisse,
estava certo. Ele at poderia preferir no haver escravido, mas era o que o consentimento do
povo, o que a maioria quisesse que decidiria o assunto (LINCOLN, 2009, p. 169-170). Lincoln,
no entanto, havia dito que a doutrina do consentimento no simplesmente uma espcie de
cheque em branco, que a doutrina do consentimento ainda implicava um conjunto de limites
morais ou restries sobre o que um povo pode consentir. O consentimento era incompatvel
com a escravido, exatamente porque ningum pode governar um outro sem o consentimento
deste. Em muitos aspectos esse um debate fundamental, no s para a histria dos Estados
Unidos, mas da poltica como um todo. Pois, nele exumado um problema interno na doutrina
do consentimento de Locke, nomeadamente, o problema de qual forma de governo faria
mais sentido para a maioria das pessoas consentirem. Em outras palavras, se o governo por
consentimento significa o governo de qualquer coisa que a maioria desejar, seria um tipo de
tirania da maioria. Ento, ser que o governo por consentimento implica certos limites e restries
sobre o que a maioria pode fazer? Que garantias Locke fornece, voc poderia perguntar, que
o governo por consentimento ser por um consentimento instrudo ou racional?

O povo pode simplesmente consentir com qualquer coisa e ser governado por qualquer
meio? Esta no uma questo intil ou puramente terica, pois sabemos que as maiorias
populares no mundo de hoje podem escolher com base no capricho, na vontade, ou algum
outro tipo de paixo arbitrria. A no ser que tenhamos algum conjunto de restries morais
sobre o que os indivduos ou as maiorias possam consentir, como poderemos evitar uma
F
maioria de agir to despoticamente ou to arbitrariamente quanto um rei ou qualquer poder I
L
absoluto? Essa foi a questo que Lincoln levantou em seu argumento contra Douglas e suas O
S
reivindicaes sobre o consentimento. Mas esta questo das restries ou dos limites sobre O
F
o que um povo pode consentir conduz a outra pergunta sobre a Doutrina do Consentimento. I
A
Como conferido um consentimento? Somos cidados de uma democracia, todavia, pergunte
P
a si mesmo, algum lhe pediu o seu consentimento? A ideia de dar o seu consentimento a uma O
L
forma de governo implica algo ativo, uma voz enftica, mas provavelmente ningum, desde a
primeira gerao que participou da constituio de um Estado democrtico, foi solicitado a dar T
I
o seu consentimento para isso. C
A
196 TPICO 2 UNIDADE 2

Voc pode querer saber qual a resposta de Locke para este problema, e um
problema que ele est ciente e com o qual se debate no captulo oito. Sua resposta acaba
por ser algo bem diferente do nosso ponto de vista sobre a cidadania, o que um cidado
e como conferido o consentimento do cidado ao governo. Na seo cento e dezoito, ele
escreve: "Uma criana no nasce sdito de nenhum pas ou governo" (LOCKE, 1994, p. 153,
118). Em outras palavras, ele est dizendo que a cidadania no conferida por nascimento;
apenas ter nascido em um lugar no faz de voc um cidado do mesmo, tal como a doutrina
que seguimos hoje. Locke continua dizendo:

Permanece sob a tutela e a autoridade de seu pai at que atinja a idade do dis-
cernimento, e s a partir da ele um homem livre, com liberdade para escolher
o governo ao qual vai se submeter [...] O poder que o pai exerce naturalmente
sobre seus filhos o mesmo, independente do lugar de seu nascimento, e os
vnculos das obrigaes naturais no so determinados pelos limites jurdicos
dos reinados e das comunidades civis (LOCKE, 1994, p. 153, 118).

Locke parece estar levantando algum tipo de princpio ativo de escolha ou deciso, um
princpio de cidadania e de atribuio de consentimento. Somente quando uma criana atinge o
que ele chama a idade da razo, entre dezoito e vinte e um anos, que obrigado a escolher e
realizar algum sinal ou marca de concordncia em aceitar a autoridade do governo. Locke no
totalmente claro sobre como tal sinal ou uma marca deve ser realizado. Suspeita-se que ele
est se referindo a algum tipo de juramento ou algum tipo de cerimnia civil onde o indivduo
faz seus votos ou promessas dando a sua palavra de aceitao forma do Estado. "Nada
poderia torn-lo, um cidado real de um estado, a menos que ele entrasse efetivamente nele
por meio de um compromisso especial e de uma promessa e um acordo explcitos (LOCKE,
1994, p. 155), ele declara na seo cento e vinte e dois. Uma promessa ou acordo explcito
tornaria a pessoa, diz ele na mesma seo, "obrigado a se comportar de acordo com as leis
vigentes e se submeter ao governo ali encontrado. Ento, quando voc der sua palavra ou
acordar, Locke diz que voc est perpetuamente e indispensavelmente obrigado a esse Estado.
Essa a seriedade com que Locke leva essa ideia de consentimento. algo que s pode ser
celebrado com a idade da razo, deve ser realizado de forma consciente, totalmente racional,
e depois de realizada a cerimnia, o seu consentimento para a forma de governo permanece.
Voc ficar obrigado inalteravelmente. Isso mostra o quo importante Locke considera a palavra,
o juramento, ou algum tipo de acordo civil. A palavra de algum a sua prpria obrigao.
F
I
L Dar o consentimento ao governo no um ato de ser assumido levianamente, para
O
S Locke, mas uma espcie de compromisso por toda a vida. Isso certamente nos mostra como a
O
F viso de Locke a respeito do cidado diferente da nossa. Em outras palavras, ao que parece,
I
A para Locke, as nicas pessoas que so cidados de pleno direito em nosso pas seriam as
P pessoas que tenham dado o seu consentimento ativo e, praticamente as nicas pessoas que
O
L
deram o seu consentimento ativo so as pessoas que se submeteram ao que ns chamamos

T
de processo de naturalizao. um processo administrado por um juiz e voc deve jurar
I lealdade ao novo pas e provavelmente ters que abrir mo de suas obrigaes para com o
C
A seu anterior pas. Esse parece ser o tipo de coisa que Locke est alegando, pois, o simples fato
UNIDADE 2 TPICO 2 197

do nascimento em um lugar especfico no lhe confere a cidadania daquele pas em particular.

O que isso significa para o resto de ns, aqueles que no deram o seu consentimento
ativo? Locke est ciente de que nem todo mundo d o seu consentimento ativo. por isso que
ele introduz outra ideia de como o consentimento pode ser dado. Ele fala sobre o que ele chama
de um acordo tcito. H aqueles talvez que no tenham jurado fidelidade ou dado um juramento
civil, mas que, no entanto, pode-se dizer que deram o seu consentimento tcito forma de
governo e suas leis. Mas como que vamos dar um consentimento tcito? O consentimento
tcito uma palavra estranha, porque o consentimento implica algo ativo e aberto, e tcito
implica algo fechado ou oculto. Como dado o consentimento tcito? Isso um problema
que voc pode ver Locke tentando resolver. At certo ponto, ele diz, quem simplesmente se
deleita na proteo da lei, na segurana da propriedade e da pessoa sob a lei pode ser dito ter
dado o seu consentimento tcito. Isso ocorre, por assim dizer, ex silentio, pois mesmo o seu
silncio confere consentimento. Mas como que vamos realmente saber se o silncio confere
consentimento tcito ou se silncio no simplesmente silncio? Um exemplo disso seria o
que ocorre habitualmente em uma cerimnia de casamento, quando o ministro diz se algum
tiver algo contra este matrimnio, fale agora ou cale-se para sempre. claro que todos, exceto
nos filmes, ficam em silncio. Ningum afirma o seu consentimento, o silncio a esta pergunta
seu consentimento tcito dado. Entretanto, podemos dizer que a questo ainda permanece,
como vamos saber de fato quando o silncio de fato um consentimento. uma questo
que Locke se esfora para resolver, mas que no consegue resolver plenamente. Talvez voc
consiga resolver, fica a um desafio para um trabalho acadmico, caso voc decida escrever
sobre o consentimento cidadania e a diferena entre as suas formas expressas e tcitas. Alm
disso, h uma outra questo que Locke faz aluso, mas tambm no responde plenamente,
se h alguma diferena em privilgios civis entre os cidados que deram o seu consentimento
expresso e aqueles que s consentiram tacitamente forma de governo? Ser que ele sugere
que uma classe de cidados tem mais direitos ou responsabilidades que a outra? Voc pode
observar essa questo tambm e ver se Locke sugere quaisquer diferenas sobre isso.

3.2 O Governo limitado de Locke


F
I
L
Locke no parece endossar qualquer forma particular de governo no Segundo Tratado. O
S
A tarefa de formar o governo vai depender da deciso da maioria, mas novamente, qual a O
F
forma que a maioria vai decidir , at certo ponto, uma questo em aberto. O que d a Locke I
ou ao lockeanismo seu tom caracterstico, a alegao de que qualquer tipo de governo que a A

maioria decidir, dever ser um que limita o poder do soberano. Nesse aspecto Locke est muito P
O
mais prximo de Lincoln do que de Douglas, pois consentimento no significa simplesmente L

consentimento a regras arbitrrias. No significa o consentimento ao poder do soberano de T
I
fazer qualquer coisa. A teoria do governo constitucional de Locke uma teoria de um governo C
A
198 TPICO 2 UNIDADE 2

contido, de restries constitucionais, de um governo pela lei. Locke d, em muitos aspectos,


a importncia lei e restrio constitucional, o que ns hoje chamaramos de um governo
limitado. Ele d a isto uma expresso maior e mais poderosa do que qualquer um dos seus
antecessores. Certamente mais que Hobbes, que tinha atribudo o poder absoluto ao governo,
ou Aristteles, que, apesar de compartilhar algumas semelhanas com Locke, tinha srias
dvidas sobre Estado de Direito.

Locke absolutamente confiante de que o governo limitado, as restries ao poder,


no importando se o poder de um, de poucos ou de muitos, o nico tipo de governo que
pode ser confivel para proteger os direitos. E, em uma das poucas piadas que aparece no
Segundo Tratado, pode ter passado despercebido, porque Locke um piadista sutil, ele no
como Maquiavel ou Plato, afinal ele era um ingls. Na seo noventa e trs, referindo-
se a Hobbes, ele escreve: No dia em que os homens deixaram o estado de natureza para
entrar na sociedade, tivessem concordado em ficarem todos submissos conteno das
leis, pensando no Leviat de Hobbes, exceto um, que ainda conservaria toda a liberdade do
estado de natureza, ampliada pelo poder, e se tornaria desregrado devido impunidade. Ele
continua, isto equivale a acreditar que os homens so tolos o bastante para se protegerem
cuidadosamente contra os danos que podem sofrer por parte das doninhas ou das raposas,
mas ficam contentes e tranquilos em serem devorados por lees (LOCKE, 1994, p. 137, 93).

O leo sendo o Leviat soberano, enquanto que no estado de natureza lockeano, os


seres humanos so como doninhas e raposas. Eles so criaturas nocivas, diz ele, mas eles no
so verdadeiramente perigosos para voc. Assim, quando algum deixa o estado de natureza
para entrar na sociedade civil, certamente no est fazendo isso para apoderar um soberano
com poderes anlogos ao leo contra si mesmo. Quem faria isso? Por isso, melhor ter algum
tipo de teoria do governo contido, de um governo limitado.

No tpico a seguir vamos continuar com a doutrina lockeana de um governo limitado,


porque, como veremos, h uma exceo muito importante a ela. H uma espcie de clusula
de escape e gostaramos de incentiv-lo a ler e a prestar ateno especial ao captulo quatorze
do Segundo Tratado, um captulo que ele intitula de Da Prerrogativa, uma doutrina que tem
implicaes muito importantes e graves para a nossa poltica hoje. um captulo essencial
F
que vamos comentar a seguir, assim como vamos falar sobre os prs e contras da filosofia
I
L
poltica de Locke.
O
S
O
F
I
A

P 4 O Poder Executivo na teoria do governo de Locke


O
L

T
I Vamos concluir a nossa interpretao da leitura do Segundo Tratado, centrando-nos no
C
A papel do poder executivo na teoria de Locke sobre o governo, sobre o Estado constitucional.
UNIDADE 2 TPICO 2 199

Enfocaremos, particularmente, o papel do executivo vis--vis ao ramo legislativo do governo,


e, em seguida, faremos algo mais especulativo ao ponderar sobre Locke e o nosso regime
poltico, o estado atual da filosofia poltica.

Argumentamos que Locke no endossa necessariamente uma forma particular de


governo em detrimento a qualquer outra. Contudo, vimos que ele ridiculariza o soberano
hobbesiano comparando-o a um leo, dizendo que no entramos no pacto social para sermos
devorados por lees. Sugerindo, portanto, uma rejeio forma monrquica absolutista. Todavia
o que ele defende, sem sombras de dvidas, um governo limitado, o governo constitucional,
embora ele seja relativamente aberto a respeito de qual forma particular o governo poder
tomar. Uma caracterstica desta forma de governo que ele acredita ser essencial, que este
deve incorporar uma separao de poderes. Ou seja, os poderes devem ter a funo de policiar
um ao outro, o que ele chama no livro, no captulo treze, de subordinao dos poderes da
sociedade poltica (LOCKE, 1998a, p. 517-528). Muitas vezes associamos esta doutrina com
Montesquieu ou s vezes com os autores de O Federalista, mas, na verdade, o prprio Locke
um forte defensor do que ele chama de subordinao ou de separao dos poderes. No
exatamente a mesma compreenso que ns temos do executivo, legislativo e judicial, mas,
, no entanto, uma separao.

Em primeira instncia, Locke enfatiza e continuamente afirma a primazia da autoridade


legislativa. Na Inglaterra do seu tempo at hoje, isso significa uma doutrina que chamamos
de supremacia parlamentar. Alm disso, ele diz que a primeira e fundamental lei positiva de
todas as constituies estabelecer o poder legislativo, portanto, este o primeiro ato aps a
concluso do contrato social. a autoridade do governo de legislar que deve ser suprema. No
tanto o poder executivo, o poder de um prncipe, mas sim o poder legislativo, o parlamento,
que supremo. No h nada mais importante na teoria do governo constitucional de Locke,
que a existncia do que ele continuamente se refere como leis estabelecidas ou conhecidas,
que servem contra o governo arbitrrio. Em muitos aspectos, o objetivo do governo de Locke
muito menos de afastar os perigos do retorno ao estado de natureza anrquico como era para
Hobbes do que de evitar a possibilidade do surgimento de um poder ou soberano tirnico ou
desptico. Obviamente, a escrita de Locke est muito ligada grande e grave crise constitucional
do seu tempo, que levou derrubada e expulso do rei Jaime II.

F
No entanto, apesar de Locke ser o grande defensor da supremacia legislativa, ele I
L
obviamente no pode e no pretende abandonar totalmente o papel do poder executivo. Ele O
S
refere com frequncia ao executivo, seja na forma de um prncipe, de um monarca ou talvez O
F
de um corpo de chefes de gabinetes do Estado, simplesmente como se fossem um agente do I
A
legislativo ou da legislatura. O objetivo do executivo, ele s vezes parece escrever, somente
P
realizar a vontade do legislador. Na linguagem de Locke, o mesmo ocorre com o poder O
L
federativo, que, juntamente com o executivo, auxiliar o subordinado ao legislativo; este,
como j mostramos, o poder supremo em uma comunidade civil organizada (LOCKE, 1994, T
I
p. 175, 153). O executivo, na escrita de Locke, parece ser pouco mais do que uma cifra em C
A
200 TPICO 2 UNIDADE 2

comparao com a doutrina da supremacia legislativa.

Todavia, Locke aqui no completamente consistente, porque ele entende que em


cada comunidade h uma necessidade de um ramo distinto do governo lidando com questes
de guerra e paz. Locke chama isso de poder federativo, e neste aspecto ele se assemelha
muito com Hobbes. Ele diz que cada comunidade para todas as outras comunidades o que
cada indivduo para todos os outros indivduos no estado de natureza, por isso um distintivo
poder de fazer a guerra ou poder federativo no interior do governo necessrio para lidar com
questes de conflito internacional, conflito entre Estados. Em uma passagem notvel, Locke
observa que:

Este poder federativo, faa ele uma boa ou m administrao, apresente uma
importncia muito grande para a comunidade civil, ele se curva com muito
menos facilidade direo de leis preexistentes, permanentes e positivas; por
isso necessrio que ele seja deixado a cargo da prudncia e da sabedoria
daqueles que o detm e que devem exerc-lo visando o bem pblico (LOCKE,
1994, p. 171-172, 147).

Em outras palavras, Locke parece sugerir que este tipo particular de ramificao do
governo, o poder federativo, que em algum grau est no mbito do executivo, deve ter certa
margem de manobra, mesmo perante a lei, dependendo da prudncia e da sabedoria dos
responsveis em gerenci-lo para o bem pblico.

Deste modo, as questes de guerra e paz no podem ser deixadas ao legislador ou s


leis estabelecidas por si s, mas requer a interveno de lderes fortes, os quais ele chama, em
uma passagem absolutamente deslumbrante, de prncipes quase deuses, na seo cento e
sessenta e seis (LOCKE, 1994, p. 184). A referncia de Locke aqui aos prncipes quase deuses
parece lembrar Maquiavel em sua fala sobre os profetas armados e a necessidade para tais
prncipes, em situaes extremas, de usar o seu poder prerrogativo. Locke escreve que
impossvel de prever e, portanto, para a lei prover, todos os acidentes e as necessidades que
possam concernir ao pblico. Por isso, durante as contingncias ou situaes de emergncia
o executivo deve ser apoderado com este poder prerrogativo de agir pelo bem da comunidade.
Por esta razo, ao que parece, o executivo no simplesmente uma ferramenta ou um agente
da legislatura, mas deve ter o poder de agir de acordo com a sua prpria discrio, ou seja, de
F acordo com sua prpria vontade para o bem pblico sem a prescrio da lei. Como equilibrar o
I
L seu argumento a favor do governo constitucional e da supremacia legislativa com esta doutrina
O
S do poder prerrogativo e a necessidade do uso deste poder por prncipes quase deuses? A
O
F prerrogativa de Locke o resultado da, simplesmente, incapacidade da lei em prever todas
I
A as circunstncias possveis, todas as contingncias possveis. Esse um argumento que
P encontramos at mesmo em Aristteles, como j visto neste Caderno de Estudos.
O
L

T
Nossa incapacidade de fazer regras que possam ser aplicadas a todos os eventos
I possveis faz com que seja necessrio deixar algum poder discricionrio nas mos do executivo
C
A para agir em prol da segurana pblica. Um dos exemplos que Locke d do uso deste poder
UNIDADE 2 TPICO 2 201

de uma questo domstica, no internacional. Ele usa o caso de um incndio em uma cidade,
dizendo que s vezes necessrio (e isto obviamente referindo-se ao corpo de bombeiros de
sua poca) derrubar a casa de uma pessoa inocente para evitar que o fogo se espalhe para
outras casas. Isto seria agir para o bem pblico da comunidade, mesmo sendo claramente uma
violao dos direitos de propriedade. Na verdade, este exemplo no to improvvel. Assuntos
atuais que debatemos no Brasil, como a Reforma Agrria, por exemplo, caem no mbito do que
chamamos de Funo Social da Propriedade, que matria de ordem constitucional, garantido
o direito do governo para absorver ou para assumir propriedades privadas visando a melhoria
geral do bem pblico. O que isso seno um exemplo do poder prerrogativo de Locke ainda
vigente atuando em prol de algo que dito ser para o bem pblico? Mas, isso representa algum
tipo de poder extraconstitucional?

A pergunta que poderamos fazer a Locke, como a qualquer advogado constitucional, :


quais so os limites desse poder prerrogativo? H algum limite para impedir o abuso deste poder?
Locke no responde diretamente, ele somente levanta a questo da fundamental importncia de
um governo constitucional. Mas, ser que a autoridade executiva deve estender-se a todas as
coisas, mesmo ou sobretudo em tempos de guerra? Pense sobre os debates que ainda esto
acontecendo sobre os detidos em Guantnamo ou sobre as questes de espionagem domstica
e internacional, mesmo quando se trata de questes da guerra, ou da to polmica Guerra
contra o Terror. Estes so exemplos de poder prerrogativo, ou seja, o executivo agindo fora
dos limites da autoridade constitucional com o intuito de proteger o bem pblico, ou estes so
exemplos de algum tipo de absolutismo poltico? No seria a invocao desse poder descer a
ladeira escorregadia ao despotismo e ao absolutismo? Vamos deixar estas questes para que
voc possa ponderar e discutir esses assuntos. Todavia, no podemos esquecer que o prprio
Locke elogia aqueles que ele chama de prncipes mais sbios e os melhores da Inglaterra
(LOCKE, 1994, p. 184, 165) como sendo aqueles que exerceram a maior prerrogativa em
nome do bem pblico. Isso de fato soa mais e mais como Maquiavel do que com o defensor do
governo limitado. Este poder entra em jogo, de acordo com Locke, especialmente em tempos
de crise ou emergncia nacional, quando necessrio agir para a segurana pblica. H, de
fato, os tericos polticos, como Carl Schmitt, um filsofo poltico e jurista alemo do sculo
XX, que argumentou que o estado de emergncia ou a situao excepcional a essncia da
poltica e que a pessoa ou a entidade que tenha o poder de declarar a exceo no outro
seno o soberano (SCHMITT, 1992, 2006). Portanto, o ponto de vista de Schmitt que voc
F
pode dizer que esta ideia de prerrogativa um tipo de poder extraconstitucional que o estadista I
L
tem a necessidade de utilizar quando as operaes constitucionais comuns, como o Estado O
S
de Direito, revelarem-se insuficientes. O
F
I
A
Mas considere outro exemplo sobre os poderes prerrogativos que podem ser concedidos
P
pela Constituio. Considere a suspenso do Habeas corpus durante a ditadura militar de 1964 O
L
a 1985 no Brasil. Observe a seguinte citao:
T
I
O Habeas corpus durante este momento histrico, em pleno perodo de ditadura C
A
202 TPICO 2 UNIDADE 2

militar, foi sempre ameaado. Um exemplo forte disso foi o AI5 (Ato Institucio-
nal n. 5), de 13 de dezembro de 1968, que em seu Art. 10 afirmava que, fica
suspensa a garantia de habeas corpus nos casos de crimes polticos, contra a
segurana nacional, a ordem econmica e a economia popular. Mesmo com a
redao da outrora citada emenda constitucional de 1969, o AI5 foi mantido,
sendo revogado somente no ano de 1978. (COSTA, 2012, p. 3)

Neste caso especfico, a Constituio Federal Brasileira foi modificada por um Ato
Institucional, concedendo poder constitucional ao executivo sobre o direito da pessoa de ir e
vir. Outro exemplo seria a famosa suspenso de Lincoln de habeas corpus durante a Guerra
Civil Americana. Lincoln, curiosamente, no precisou apelar a um poder extraconstitucional,
tampouco a um Ato Institucional. Em vez disso, Lincoln argumentou com bastante fora que
este tipo de poder prerrogativo j estava profundamente enraizado na estrutura do governo
constitucional. Ele cita a Constituio dos Estados Unidos da Amrica no caso da suspenso
do habeas corpus. Nosso um caso de rebelio assim chamado pelas resolues minha
frente de fato, um claro, flagrante, e gigantesco caso de rebelio, Lincoln continua, e a
proviso da Constituio que o privilgio do writ de habeas corpus no pode ser suspenso,
seno quando, em casos de rebelio ou invaso, a segurana pblica assim o exigir, a proviso
que se aplica, ele afirma, especialmente ao nosso caso presente (LINCOLN, 2009, p. 674,
traduo nossa). Em outras palavras, a prpria Constituio parece permitir, nestes casos, este
tipo de ao extraordinria. No caso da Constituio dos Estados Unidos da Amrica parece
incorporar dentro de si mesma esse poder lockeano de prerrogativa que entra em vigor ou
pode ser legitimamente exercido em tempos de rebelio ou invaso.

importante ressaltar que Locke est cnscio do potencial de abuso deste tipo de
prerrogativa. Ele pergunta nas sees duzentos e quarenta e duzentos e quarenta e um:
Quem vai julgar, se o comissionado ou o mandatrio age bem e de acordo com a confiana
nele depositada (LOCKE, 1994, p. 233)? Quem pode julgar se o critrio do executivo est
sendo usado para a segurana pblica ou o bem pblico ou se simplesmente uma espcie
de usurpao do poder? Quem julgar se este poder est sendo utilizado de modo legtimo?
(LOCKE, 1994, p. 185, 168). Nestes momentos de grande crise constitucional entre os
poderes conflitantes do governo, Locke diz, na mesma seo, que no pode haver juiz na
Terra. Ele diz que as pessoas no tm outro remdio no presente, mas apelar para o cu. O
que est contido nesse termo "apelar para o cu"? O que Locke significa em termos de alta
F crise constitucional, quando ele diz que no h juiz na Terra, o povo deve apelar para o cu?
I
L Isso significa que eles devem cair de joelhos e comear a rezar, o que devem fazer? Por um
O
S apelo para o Cu, Locke significa o direito do povo a dissolver seu governo (LOCKE, 1994, p.
O
F 233-234). Ele levanta esta questo no final do livro. Quando um conflito entre as pessoas ou
I
A seus representantes e o executivo se torna to grande que as prprias condies de confiana
P social foram dissolvidas, quem ser juiz? E ele responde enfaticamente: as pessoas vo ser
O
L juiz. Locke afirma aqui um direito de revoluo. O recurso para o cu, ou o que ele chama de

T um apelo para o cu realmente refere-se a um apelo s armas, rebelio, e a necessidade de


I
C criar um novo pacto social. Locke, voc pode verificar, est tentando manter unidas a crena na
A
UNIDADE 2 TPICO 2 203

santidade da lei e a necessidade de prerrogativas que podem ter que contornar o governo da
lei. So estas duas doutrinas incompatveis? Acreditamos que pelo menos em alguns aspectos
so. Pode o poder prerrogativo do executivo ser de alguma forma constitucionalizado para que
ele no ameace a liberdade de seus prprios cidados? Locke nos alerta para este problema.

Uma das melhores fontes para pensarmos sobre muitas destas questes constitucionais
atuais em relao aos direitos de privacidade e outros tipos de direitos de cidadania pode ser
encontrada nos ltimos cinco captulos do Segundo Tratado de Locke. difcil imaginar uma
fonte melhor.

No final da obra, o argumento de Locke para as pessoas apelarem ao cu, ou seja,


um apelo s armas, um apelo revoluo, sugere que em ltima instncia Locke era um
revolucionrio, mesmo que cauteloso e moderado. No vamos comentar na ntegra o captulo
dezenove, o famoso captulo sobre revoluo, para falar sobre as condies em que ele acreditava
que o povo poderia, legitimamente, apelar para o cu. Mas, a doutrina do consentimento e da
supremacia legislativa de Locke deve torn-lo um heri para os democratas, at mesmo para
os democratas radicais. J suas crenas sobre o governo limitado, os direitos de propriedade
devem torn-lo um heri para os conservadores constitucionais e at mesmo os libertrios. No
fim das contas, acreditamos que Locke no era nem um nem outro. Como todos os grandes
pensadores, ele desafia qualquer classificao simples, mas no h dvida de que Locke deu
ao Estado constitucional moderno sua forma de expresso definitiva. E os problemas legais,
constitucionais e polticos do Estado que ns experimentamos so problemas profundamente
enraizados na filosofia de John Locke e so impensveis sem a influncia deste autor.

Ningum que l Locke, mesmo que superficialmente, pode deixar de ficar impressionado
com a harmonia entre os escritos de Locke e as repblicas modernas e contemporneas. Sua
concepo da lei natural, dos direitos, do governo por consentimento, o direito revoluo e
entre outros, fazem parte da pedra fundamental dos nossos documentos fundadores. At certo
ponto, podemos sugerir que um julgamento sobre repblicas como o Brasil ou os Estados
Unidos da Amrica, por exemplo, um julgamento sobre a filosofia de Locke, e vice-versa.
Ento, como devemos pensar em Locke depois de mais ou menos trs sculos de influncia
lockeana consistente? Por muitos anos, e para muitas pessoas, ainda hoje, a afinidade, a
afiliao entre Locke e repblicas como os Estados Unidos tem sido considerada em uma
F
grande parte, embora no inteiramente, amplamente positiva. Para muitos historiadores e I
L
cientistas polticos, a estabilidade, o sistema de governo limitado, a economia de mercado tem O
S
sido o resultado de uma espcie de amplo consenso sobre princpios lockeanos. O
F
I
A
Mas para muitos outros leitores da histria americana, por exemplo, esta relao tem
P
sido vista como mais problemtica. Em 1955, um livro escrito por um famoso terico poltico O
L
e historiador, chamado Louis B. Hartz, um livro intitulado The Liberal Tradition in America (A
tradio liberal na Amrica), se queixou da Amrica e do que ele chamou de "Lockeanismo T
I
irracional" (HARTZ, 1991, p. 308, traduo nossa). Este conceito, para ele, significava uma C
A
204 TPICO 2 UNIDADE 2

espcie de compromisso fechado com princpios e ideais lockeanos excluindo todas as outras
alternativas e possibilidades polticas. Hartz estava muito interessado na questo, como muitos
tericos polticos aps ele tambm se interessaram, por que no houve nenhum socialismo
nos Estados Unidos, por que esta nao no evoluiu ou se desenvolveu ao longo das linhas
europeias com partidos socialdemocratas e os partidos socialistas, como o Partido Trabalhista
Ingls e outros tipos de movimentos trabalhistas (HARTZ, 1991).

O argumento de Hartz foi que a poltica estadunidense estava muito presa nesta fase
lockeana de desenvolvimento, fechando-se em muitos aspectos a outros princpios. Outros
pensadores, mais ou menos de esquerda, afirmaram que Locke legitimou uma tica que foi
chamada de "individualismo possessivo" (MACPHERSON, 1979), particularmente referente
ao foco de Locke sobre a propriedade e os direitos de propriedade privada que se concentra
totalmente nas relaes de mercado ou coloca no mercado valores frente de todas as outras
coisas. Para outros ainda, mais recentemente, pensadores de orientao mais comunitria, a
nfase de Locke sobre os direitos e a proteo, que o governo deve proteger os direitos naturais
e inalienveis, sugere uma concepo puramente ou excessivamente legalista da poltica que
se esvai de qualquer linguagem para falar sobre o bem comum, o bem pblico ou de outro tipo
de bens ou benefcios coletivos.

O ponto que queremos enfatizar que a influncia de Locke no foi totalmente aceita por
todos. Surgiram muitas crticas sobre a afinidade peculiar entre o lockeanismo e seus benefcios
para uma repblica democrtica. Mas hoje, poderamos afirmar que a teoria do liberalismo ou
a teoria do governo limitado, do governo constitucional de Locke, confrontada por uma outra
alternativa que, em muitos aspectos, tem razes profundas na tradio do prprio Locke. Estamos
nos referindo a um livro em particular, Uma Teoria da Justia (2000), que voc ir ler para a
Unidade 3 deste Caderno de Estudos quando falarmos de filosofia poltica contempornea.
O livro foi escrito em 1973 por um filsofo poltico chamado John Rawls, como uma tentativa
de atualizar a teoria liberal do Estado. Ele invoca a ideia de um estado de natureza, o qual ele
chama de uma condio original, e uma teoria de direitos, embora ele faa isso atravs das
tcnicas da filosofia contempornea e da teoria dos jogos, o livro de Rawls provavelmente a
contribuio mais importante para a filosofia poltica anglo-americana na ltima gerao. um
livro que se situa dentro da tradio liberal iniciada por Locke e desenvolvida por pessoas como
F
Immanuel Kant e John Stuart Mill, a qual o prprio Rawls esperava levar a termo. A sua teoria
I
L
da justia est fundada sobre a sua teoria de direitos a partir da qual tudo o mais derivado.
O
S
Agora, pois, vamos contrastar a teoria geral de Rawls, que to influente nos dias atuais,
O
F
teoria de John Locke, o fundador original da teoria liberal do Estado, e ver como elas divergem.
I
A

P
O
L
4.1 A teoria da justia de Rawls e a Teoria do
T
I liberalismo de Locke
C
A
UNIDADE 2 TPICO 2 205

Considere as seguintes proposies. Primeiro de John Locke, na seo vinte e sete do


Segundo Tratado: "Cada um guarda a propriedade de sua prpria pessoa; sobre esta ningum
tem qualquer direito, exceto ela (LOCKE, 1994, p. 98). John Locke tambm afirma, no Ensaio
acerca do entendimento humano (1999), que onde no h propriedade no h injustia
(LOCKE, 1999, p. 229, IV, 3.18), para deixar esta ltima afirmao mais clara, podemos
parafrasear do seguinte modo, onde h propriedade, h [ou pode haver] justia [e injustia].

S!
DICA

Vale a pena comparar esta definio da fonte da justia com


o que Thomas Hobbes havia dito no Leviat: Nesta lei da
natureza reside a fonte e a origem da Justia. Porque sem
um pacto anterior no h transferncia de direito, e todo
homem tem direito a todas as coisas; consequentemente
nenhuma ao poder ser injusta. Mas, depois de celebrado
um pacto, romp-lo injusto. E a definio de injustia no
outra seno o no cumprimento de um pacto. E tudo o
que no injusto justo (HOBBES, 2003, p. 124, I, 15)

Agora observe as proposies de John Rawls em uma das pginas de abertura de


Uma Teoria da Justia. "Cada pessoa", Rawls escreve, "possui uma inviolabilidade fundada
na justia que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa
razo", continua ele, "a justia nega que a perda de liberdade de alguns se justifique por um bem
maior partilhado por outros" (RAWLS, 2000, p. 4). Ambos apresentam suas teorias da justia
como justificada em termos de princpios liberais de igualdade, liberdade e a inviolabilidade do
indivduo e dos direitos individuais. Ambos consideram o propsito do governo o de assegurar
as condies de justia como decorrentes do consentimento ou o consentimento informado
dos governados. Todavia, ambos parecem diferir profundamente sobre a fonte dos direitos e,
portanto, ao papel que o governo tem para garantir as condies de justia. Vamos explicar
um pouco mais este ponto a seguir.

Para Locke, voltando ao captulo cinco do Segundo Tratado, os direitos derivaram


F
de uma teoria da autopropriedade. De acordo com seu ponto de vista, como j comentamos I
anteriormente, todo mundo tem uma propriedade em sua prpria pessoa. Ou seja, ningum L
O
tem uma reivindicao sobre nossos corpos alm de ns mesmos. sobre a pedra angular da S
O
autopropriedade, o fato de que temos propriedade em ns mesmos, que Locke constri seu F
I
edifcio dos direitos naturais, da justia e do governo limitado. Para coloc-lo de uma forma A

um pouco diferente, uma pessoa tem uma identidade, o que poderamos chamar hoje uma P
O
personalidade moral, pelo fato de que somente ns mesmos somos responsveis por fazer a L

ns mesmos. Ele usa a metfora do trabalho do corpo e do labor de nossas mos, mas ns T
I
somos, literalmente, os produtos de nossa prpria fabricao. Ns criamos a ns mesmos C
A
206 TPICO 2 UNIDADE 2

atravs de nossa atividade e nossa atividade mais caracterstica o nosso trabalho. A doutrina
fundamental de Locke que o mundo o produto de nossa prpria criatividade livre, no da
natureza, mas do self, o indivduo a fonte de todo o valor para Locke. este self, o eu, o ego
que a nica fonte de direitos e a tarefa do governo o de garantir as condies de nossa
propriedade, no sentido mais amplo do termo, ou seja, tudo o que apropriado a ns.

Agora, usando isso como uma espcie de taquigrafia, compare isso com a ideia de
Rawls. Rawls acrescenta sua ideia de justia algo que ele chama de "princpio da diferena"
(2000, p. 69-101, I, 2, 12-14). O que o princpio da diferena? Este princpio afirma que os
nossos dotes naturais, os nossos talentos, nossas habilidades, nossos backgrounds familiares,
nossas histrias exclusivas, o nosso lugar na hierarquia social, todas essas coisas so de
um ponto de vista moral algo completamente arbitrrio. Nenhuma destas coisas so nossas
em qualquer sentido forte do termo. Elas no pertencem a ns, mas so o resultado de uma
espcie de loteria gentica aleatria ou arbitrria, uma loteria social da qual eu ou voc por
acaso somos os nicos beneficirios. O resultado disto, em outras palavras, que eu j no
posso ser considerado como o nico proprietrio dos meus ativos ou o destinatrio original das
vantagens ou desvantagens que podem advir a partir deles. A fortuna maquiavlica, a sorte,
neste sentido totalmente arbitrria e, portanto, Rawls conclui que eu no devo ser considerado
como o possuidor, mas apenas o destinatrio dos talentos, das capacidades e habilidades que
por um acontecimento puramente arbitrrio passei a possuir.

O que isso significa em termos de poltica social ou teoria do governo? O resultado do


princpio da diferena de Rawls e sua diferena fundamental com a proposta de John Locke
no poderia ser mais marcante. A teoria de Locke da justia, em termos gerais, apoia uma
meritocracia s vezes referida como "igualdade de oportunidades", isto , o que uma pessoa
faz com seus bens ou ativos naturais pertence exclusivamente a ela, o direito de subir ou cair
pertence exclusivamente a ela. Ningum tem o direito moral de interferir com os produtos do
nosso labor, e por produtos podemos incluir no apenas um sentido primitivo do que fazemos
com nossas mos e nossos corpos, mas o que fazemos com a nossa inteligncia e nossos
dotes naturais. Para Rawls, por outro lado, os nossos dotes nunca so realmente nossos
para comear. Eles fazem parte de uma posse comum ou coletiva a ser compartilhada pela
sociedade como um todo, as capacidades de trabalho duro, ambio, inteligncia e apenas a
F
boa sorte, na explicao de Rawls realmente no pertencem a voc ou, pelo menos, os frutos
I
L
dessas ambies, inteligncia e boa sorte no lhe pertencem.
O
S
O
F
Assim, para Rawls, essas coisas so arbitrrias como resultado da educao e da
I gentica. Elas no so suas nem minhas, em qualquer sentido forte do termo, mas sim, uma
A
posse coletiva que pode ser ou deveria ser os frutos distribudos para a sociedade como um
P
O todo. Considere a seguinte passagem de Rawls. "O princpio da diferena representa, com
L
efeito, um consenso em se considerar, em certos aspectos, a distribuio de talentos naturais
T
I como um bem comum", escreve ele, "e em partilhar os maiores benefcios sociais e econmicos
C
A possibilitados pela complementaridade dessa distribuio (RAWLS, 2000, p. 108, I, 2, 17). Sua
UNIDADE 2 TPICO 2 207

inteligncia ou a sua motivao, seus dotes so o que ele chama de um bem comum. Pense
sobre isso. esta concepo de bens comuns que subscreve a teoria da justia distributiva
e do Estado de bem-estar de Rawls, tal como a teoria da autopropriedade de Locke justifica
sua concepo de governo limitado no Estado constitucional. De acordo com Rawls, a justia
requer que os arranjos sociais sejam estruturados para os benefcios dos menos favorecidos
na loteria gentica da sociedade. Seu experimento mental, que ele chama de "a posio
original", especifica que ningum saberia com antecedncia nesta condio qual seria o seu
dote intelectual particular. Portanto, cada indivduo, na contratao com o todo, concordaria
em dividir igualmente os benefcios desta loteria gentica. Ento, redistribuir os nossos bens
comuns no infringe, no argumento de Rawls, a inviolabilidade do indivduo porque os frutos do
nosso trabalho nunca foram realmente nossos, para comear. Ao contrrio de Locke, cuja teoria
da autopropriedade fornece uma justificativa moral para o indivduo, para o ego, para nossa
personalidade moral, o princpio da diferena de Rawls sustenta que ns nunca pertencemos a
ns mesmos. Ns realmente nunca temos a propriedade em ns mesmos, mas somos sempre
parte de um "ns" social maior, um social coletivo, uma conscincia coletiva cujos bens comuns
podem ser redistribudos para o benefcio do todo.

John Locke e John Rawls representam duas vises radicalmente diferentes do Estado
liberal, uma amplamente libertria, a outra amplamente assistencialista (welfarist), uma
enfatizando a liberdade, a outra enfatizando a igualdade. Curiosamente, esta transio ou
evoluo representa uma mudana que ocorreu dentro da prpria tradio liberal. Ao contrrio
de alguns outros crticos, como, por exemplo, o Hartz e o MacPherson, Rawls no alega
desenvolver uma tradio fora do liberalismo, mas desenvolver certos argumentos no interior
da tradio liberal. Mesmo assim a posicionou de uma forma claramente muito diferente de
sua formulao lockeana. Ambos os pontos de vista comeam a partir de premissas comuns,
mas se movem em direes muito diferentes. A teoria da autopropriedade de Locke considera
a comunidade poltica em termos amplamente negativos como protegendo nossos selves
individuais e nossos direitos individuais antecedentes. A teoria dos bens comuns de Rawls
considera a comunidade de uma maneira muito mais positiva, como tendo um papel ativo em
remodelar e redistribuir os produtos de nossos esforos individuais para os interesses comuns.
A pergunta para voc, assim como a questo para qualquer um de ns : qual desses dois
pontos de vista mais vlido ou qual dos dois lhe parece mais poderoso ou plausvel?

F
Um possvel posicionamento poderia ser o seguinte. Usando como exemplo a Declarao I
L
de Independncia dos Estados Unidos (DRIVER, 2006), a mesma afirma que cada indivduo O
S
dotado de direitos inalienveis, entre os quais esto a vida, a liberdade e a busca da felicidade. O
F
A prpria indeterminao da ltima frase, a busca da felicidade, com sua nfase sobre o I
A
direito do indivduo de determinar a felicidade para si mesmo, sugere uma forma de governo
P
que permite a ampla diversidade de nossos talentos e habilidades naturais e, embora esta O
L
Declarao certamente tenha a inteno de que o estabelecimento da justia seja uma das
primeiras tarefas do governo, em nenhum lugar implica que isto requer a redistribuio por T
I
atacado dos nossos bens e valores individuais. Em segundo lugar, embora Rawls esteja C
A
208 TPICO 2 UNIDADE 2

claramente atento aos males morais da desigualdade (e ns voltaremos para esse problema
enfaticamente no prximo tpico desta Unidade 2, quando comentarmos o Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1999b) de Jean-Jacques
Rousseau, pois nunca houve um crtico mais poderoso, apaixonado e persuasivo dos males
da desigualdade do que Rousseau), ele aparenta certa ingenuidade sobre os mecanismos
polticos reais atravs dos quais as desigualdades podem ser retificadas. Rawls quer que o
governo trabalhe em benefcio dos menos favorecidos, mas isso exige o uso extensivo e muitas
vezes arbitrrio do poder judicial para determinar quem tem o direito de que. Podemos sugerir
que se seguirmos os ensinamentos de Rawls ao p da letra, o resultado seria no uma classe
de filsofos-reis, mas sim uma classe de chefes de justia, presidentes de Supremas Cortes,
dotados com o poder de reorganizar e redistribuir nossos ativos coletivos em prol de atingir o
grau mximo de igualdade social.

Por outro lado, um retorno a Locke, at mesmo se tal retorno fosse possvel literalmente,
de nenhum modo significaria uma panaceia para o que nos aflige. No sugerimos que Locke
seria algum tipo de cura. Alguns historiadores, entre os quais Louis Hartz foi um dos mais
famosos, estabelecem uma crtica contundente sobre os fundamentos lockeanos e os males
que este traz para o desenvolvimento de uma repblica moderna. O esforo de Locke para
construir um governo republicano moderno sobre os fundamentos slidos, apesar de pouco
elevados, do autointeresse, da autopropriedade e o desejo pela preservao confortvel, no
pode evitar de gerar suas prprias formas de insatisfao.

Voc poderia, portanto, questionar se um regime dedicado busca da felicidade ou


proteo da propriedade sempre satisfar os desejos mais profundos da alma humana? Um
regime dedicado acumulao racional da propriedade pode responder s necessidades ou
virtudes de ordem superior, como a honra, a nobreza e o sacrifcio? Pode um regime, dedicado
preveno da dor, do desconforto e da ansiedade, produzir algo mais do que as formas
contemporneas de epicurismo e niilismo? Em qualquer caso, o que parece que as repblicas
contemporneas, no levando em considerao as diferenas bvias entre elas, experimentam
as grandes alturas, bem como as grandes profundidades das formas tardias da modernidade,
onde as muitas facetas da mesma interagem e se desenvolvem mutuamente. Somos apenas
um momento na abrangente autoinsatisfao que a modernidade, de modo que um retorno
F
ao lockeanismo no tanto uma cura para as patologias da modernidade. Poderamos at
I
L
mesmo sugerir que essas patologias esto elas prprias j enraizadas nas patologias de Locke.
O
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UNIDADE 2 TPICO 2 209

RESUMO DO TPICO 2

Neste tpico voc viu que:

Locke criou uma teoria constitucional do Estado diferente e mais liberal, ao mesmo tempo em
que se manteve muito dependente das premissas que Hobbes havia assumido ao modificar
Maquiavel.
A Teoria da Lei Natural o tema que constitui o ncleo central da doutrina poltica de Locke.
O estado de natureza no uma condio poltica para a liberdade perfeita, sem autoridade
ou obrigaes civis. uma condio moral, regida por uma lei moral ou lei natural que dita
a paz e a sociabilidade e determina que ningum deve prejudicar outra pessoa em sua
vida, sua liberdade, ou seus bens. Todavia tambm condio de desconfiana mtua que
rapidamente se degenera em uma condio de guerra civil, onde cada indivduo atua como
juiz, jri e executor da lei natural.
A lei fundamental da natureza, para Locke, o direito autopreservao. Este afirma que
cada pessoa tem o poder de fazer o que est ao seu alcance para preservar-se. Nos tornamos
como lees e lobos uns para os outros, tal como animais de rapina e outras criaturas nocivas.
A prpria liberdade que seres como ns desfrutam em um estado de natureza nos leva a
abusar dessa mesma liberdade e, por sua vez, requer a necessidade de um governo civil.
A lei natural pode ser descoberta pela razo e se aplica a todas as pessoas, enquanto a lei
divina s pode ser descoberta atravs da revelao especial de Deus e se aplica somente
para aqueles a quem revelado e que Deus indica especificamente que so contemplados.
A lei divina e a lei natural so consistentes e podem sobrepor-se no contedo, mas elas no
so coextensivas.
Leo Strauss, e muitos de seus seguidores, dizem que os direitos so primordiais, vo ao
extremo ao ponto de retratar a posio de Locke como essencialmente semelhante de
Hobbes, apontam que Locke defendeu uma teoria hedonista da motivao humana.
John Dunn, entre outros, defendem a viso de que a lei natural, no os direitos naturais,
que so os primordiais. Eles sustentam que, quando Locke enfatizou o direito vida,
F
liberdade e propriedade ele estava enfatizando os deveres que temos para com as outras I
L
pessoas: deveres para no matar, escravizar ou roubar. O
John Simmons defende a ideia de que os direitos e os deveres so igualmente fundamentais S
O
para Locke, pois este acredita em uma zona robusta de indiferena em que os direitos F
I
protegem a nossa capacidade de fazer escolhas. Enquanto essas escolhas no possam A

violar a lei natural, elas tambm no so um mero meio para cumprir a lei natural. P
O
Outro ponto de contestao tem a ver com a medida que Locke pensou que a lei natural L

poderia, de fato, ser conhecida pela razo. Para entender a posio de Locke, em razo da T
I
lei natural, deve ser situado dentro de um debate mais amplo na teoria da lei natural que C
A
210 TPICO 2 UNIDADE 2

antecede Locke, o chamado debate voluntarismo-intelectualismo.


Locke claramente quer evitar a implicao de que o contedo da lei natural arbitrrio.
Vrias solues tm sido propostas.
Os interessados na relevncia contempornea da teoria poltica de Locke devem confrontar
seus aspectos teolgicos.
Locke apresenta os seguintes tipos de deveres: 1) o dever de preservar a si mesmo, 2) o
dever de preservar os outros, quando a autopreservao no entra em conflito, 3) o dever
de no tirar a vida de outra pessoa, e 4) o dever de no atuar de uma forma que tende a
destruir os outros.
O estado de natureza um conceito relacional que descreve um conjunto particular de
relaes morais que existem entre as pessoas em particular, ao invs de uma descrio de
um territrio geogrfico particular. Seria apenas a maneira de descrever os direitos morais
e responsabilidades que existem entre as pessoas que no consentiram a adjudicao de
suas disputas pelo mesmo governo legtimo.
A teoria do estado de natureza de Locke est intimamente ligada sua teoria da lei natural,
uma vez que esta ltima define os direitos das pessoas e sua condio como pessoas livres
e iguais.
A viso de Locke da natureza humana que ns somos, basicamente, o animal adquiridor
de propriedades e nossas reivindicaes de propriedade derivam do nosso trabalho. O fato
de termos gasto o nosso labor em algo nos d um ttulo ao mesmo, pois o trabalho confere
valor e a fonte de todos os valores.
O estado de natureza uma condio de propriedade comunal.
A condio de propriedade privada rudimentar est em nosso prprio corpo, em nossa
pessoa, o que tambm inclui o trabalho do corpo e o trabalho das mos.
A lei natural determina o direito propriedade privada e para garantir esse direito que
os governos so finalmente estabelecidos. O mundo foi criado, a fim de ser cultivado e
melhorado. Aqueles que trabalham para melhorar e desenvolver a natureza, com seus corpos
e suas mos, so os verdadeiros benfeitores da humanidade.
Para Locke o ponto essencial que no h limites naturais para a aquisio de propriedades. A
introduo do dinheiro ou de um sistema monetrio no estado de natureza torna a acumulao
de capital ilimitada, no apenas possvel, mas at mesmo uma espcie de dever moral.
A nova poltica do Estado lockeano deixar de se preocupar com a glria, a honra, o thumos,
F
a virtude, mas a poltica lockeana ser sbria, ser prosaica, ser hedonista, sem sublimidade
I
L
ou alegria. Locke o autor da doutrina de que o comrcio suaviza as maneiras, que nos
O
S
torna menos guerreiros, que nos faz civilizados.
O
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O ofcio do governo, para Locke, proteger no apenas os direitos de propriedade, mas o
I direito de adquirir e construir sobre a propriedade que j possumos.
A

P
A necessidade de um governo surge da necessidade real de resolver conflitos ou disputas
O sobre direitos de propriedade. uma espcie de doutrina fundamental, o libertarianismo.
L
Por propriedade, Locke no significa meramente os objetos nossa volta que foram
T
I transformados por ns em bens; mas a propriedade est enraizada, sobretudo e em primeiro
C
A lugar, em nossa pessoa e em nosso corpo. Comeamos a vida, a propriedade rudimentar
UNIDADE 2 TPICO 2 211

que se resume a ns mesmos.


O estado de natureza aquele que consiste em inconvenincias contnuas. o nosso mal-
estar, a nossa inquietao que no apenas um estmulo para o nosso trabalho, mas a
causa das inseguranas que temos no estado de natureza.
Locke est falando sobre um novo ethos da classe mdia cujo ttulo para governar no
repousa sobre a hereditariedade ou na tradio, mas para governar. O ttulo potencial para
governar repousa sobre sua capacidade para o trabalho duro, parcimnia e oportunidade.
Locke traz existncia uma atitude moral totalmente nova e revolucionria sobre a
propriedade e a aquisio da mesma, que acaba encontrando sua maior expresso um
sculo mais tarde com Adam Smith e sua contribuio essencial para a economia moderna.
Locke afirma que quando qualquer nmero de homens decide constituir uma comunidade
ou um governo, isto os associa e eles formam um corpo poltico em que a maioria tem o
direito de agir e decidir pelo restante.
A nica forma de governo que parece ser absolutamente excluda no relato de Locke uma
espcie de monarquia absoluta, pois no podemos ceder os nossos direitos inteiramente a
outro indivduo. Mas ele parece estar relativamente aberto para o que quer que as pessoas
possam desejar consentir, pois o ato de consentimento por si s no cria um governo,
meramente um ato para formar uma sociedade.
O melhor governo aquele bem administrado, se este protege os seus direitos de propriedade,
no constante a sua forma, se monrquico, aristocrtico, republicano ou qualquer outro no
to importante.
A cidadania no conferida por nascimento; apenas ter nascido em um lugar no faz de
voc um cidado do mesmo. Locke levanta algum tipo de princpio ativo de escolha, um
princpio de cidadania e de atribuio de consentimento que deve ocorrer na idade da razo,
entre dezoito e vinte e um anos, que algum obrigado a escolher e realizar algum sinal ou
marca de concordncia em aceitar a autoridade do governo.
Qualquer tipo de governo que a maioria decidir, dever ser um que limita o poder do soberano.
A teoria do governo constitucional de Locke uma teoria de um governo contido, de restries
constitucionais, de um governo pela lei. O governo limitado o nico tipo de governo que
pode ser confivel para proteger os direitos.
Uma caracterstica da forma de governo que Locke acredita ser essencial, que este deve
incorporar uma separao de poderes. Os poderes devem ter a funo de policiar um ao
outro, deve haver uma subordinao dos poderes da sociedade poltica.
F
A primeira e fundamental lei positiva de todas as constituies estabelecer o poder I
L
legislativo, este o primeiro ato aps a concluso do contrato social. a autoridade do O
S
governo de legislar que deve ser suprema. O
F
O objetivo do governo de Locke muito menos de afastar os perigos do retorno ao estado I
A
de natureza anrquico como era para Hobbes do que de evitar a possibilidade do surgimento
P
de um poder ou soberano tirnico ou desptico. O
Nossa incapacidade de fazer regras que possam ser aplicadas a todos os eventos possveis, L

faz com que seja necessrio deixar algum poder discricionrio nas mos do executivo para T
I
agir em prol da segurana pblica. C
A
212 TPICO 2 UNIDADE 2

Quando um conflito entre as pessoas ou seus representantes e o executivo se torna to


grande que as prprias condies de confiana social foram dissolvidas, as pessoas vo
ser juiz. Locke afirma aqui um direito de revoluo. O recurso ao cu refere-se a um apelo
s armas, rebelio e necessidade de criar um novo pacto social.
Rawls e Locke apresentam suas teorias da justia como justificada em termos de princpios
liberais de igualdade, liberdade e a inviolabilidade do indivduo e dos direitos individuais.
Consideram o propsito do governo o de assegurar as condies de justia como decorrentes
do consentimento ou o consentimento informado dos governados. Todavia, ambos parecem
diferir profundamente sobre a fonte dos direitos e, portanto, o papel que o governo tem para
garantir as condies de justia.
John Locke e John Rawls representam duas vises radicalmente diferentes do estado liberal,
uma amplamente libertria, a outra amplamente assistencialista (welfarist), uma enfatizando
a liberdade, a outra enfatizando a igualdade.
O esforo de Locke para construir um governo republicano moderno sobre os fundamentos
slidos, apesar de pouco elevados, do autointeresse, da autopropriedade e o desejo pela
preservao confortvel no pode evitar de gerar suas prprias formas de insatisfao.

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UNIDADE 2 TPICO 2 213


IDADE
ATIV
AUTO

1 Os tericos polticos sempre explicitaram, de um modo ou de outro, o papel ou a


funo da propriedade em suas teorias polticas. Compare a viso de propriedade e
de comrcio de Plato, Aristteles e Locke.

2 Tanto Hobbes como Locke explicam a transio do estado de natureza ao estado


civil. Compare as explicaes destes dois autores.

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TPICO 3

Jean-Jacques Rousseau: o Discurso


sobre a Desigualdade e o Contrato
Social

1 INTRODUO

Neste tpico vamos nos concentrar em duas grandes obras de Jean-Jacques Rousseau,
o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1999b), muitas
vezes chamado simplesmente de o Segundo Discurso, e O Contrato Social (1996, 1999c).
Lembrando que a leitura desta unidade do Caderno de Estudos deve ser acompanhada pela
leitura das obras referidas que sero analisadas.

Vamos introduzir, primeiramente, dados importantes sobre a vida e a obra de Rousseau,


para contextualizar suas principais contribuies filosofia poltica moderna. Discorrendo sobre
o seu Segundo Discurso, vamos discutir sua concepo do estado de natureza e sua proposta
da transio do homem deste estado sociedade. Ainda baseado na anlise do Segundo
Discurso, vamos nos concentrar no papel do conceito de amour-propre e sua relao com a
desigualdade e o mal-estar na civilizao.

A seguir, vamos nos focar em sua obra O Contrato Social, analisando tanto o papel deste
contrato social e o conceito de vontade geral para Rousseau. Finalizaremos nossa discusso
destas duas obras referidas com uma considerao ao legado dos escritos rousseaunianos.

Aps a leitura deste tpico voc poder ler o texto complementar O Estado segundo a F
I
razo, de Norberto Bobbio, que far pontes entre as concepes de Hobbes, Locke, Rousseau L
O
e outros pensadores da filosofia poltica moderna, sobre o tema central comum aos mesmos, S
O
a racionalidade do Estado moderno. F
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2 QUEM Jean-Jacques Rousseau?
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216 TPICO 3 UNIDADE 2

Jean-Jacques Rousseau um dos poucos escritores de filosofia poltica a quem se


poderia com toda a justia dedicar uma disciplina inteira para seus escritos. Neste tpico
faremos o mximo para sintetizar algumas das principais contribuies para a filosofia poltica
deste notvel ser humano e escritor.

Uma forma muito comum de introduzir o pensamento de Rousseau v-lo como um


crtico do liberalismo, do tipo de sociedade baseada na posse de propriedade e nos direitos, tal
como expressa por John Locke. Mas, ver Rousseau meramente como um crtico do liberalismo
de Locke seria uma perspectiva mope e muito injusta. Rousseau no era um produto da
sociedade liberal, mas sim do Ancien Rgime, o Antigo Regime na Frana. Rousseau nasceu
em 1712, dois anos antes da morte do famoso Rei-Sol, Lus XIV, um homem que simbolizou
a poca do absolutismo, e ele morreu em 1778, cerca de uma dcada antes da ecloso da
Revoluo Francesa. Sua vida, em outras palavras, foi vivida inteiramente dentro das dcadas
de declnio, os anos finais da era do absolutismo na Frana e na Europa continental. Rousseau
estava profundamente cnscio de que ele viveu em uma poca de transio, mas no tinha
nenhuma clareza quanto ao que viria aps este perodo. Ele escreveu, como voc vai notar
em suas leituras, com a paixo e a intensidade de algum que esperava integralmente ser
um instrumento para a vinda de uma nova poca histrica e poltica, e na verdade ele o foi.
Rousseau era suo, no era francs, ele assinou muitas de suas obras mais importantes com
estas simples palavras citoyen de Genve, um cidado de Genebra, referindo-se cidade onde
nasceu. Ele era filho de um arteso que abandonou a famlia depois de uma briga com as
autoridades locais e o jovem Rousseau se tornou aprendiz de gravador, mas ele tambm fugiu
de Genebra com a idade de 16 anos. Nos 16 anos seguintes, Rousseau viveu uma espcie
de vida vagabunda variada, fazendo muitas coisas diferentes, trabalhando como instrutor de
msica e como um transcritor. Depois se tornou o secretrio do embaixador francs na cidade
de Veneza, e foi tambm o amante de uma mulher rica e muitos anos mais velha que ele.

Aps se mudar para Paris em 1744, Rousseau passou vrios anos se esforando
para viver margem da cena literria parisiense at 1750, quando ele publicou seu primeiro,
embora muito breve, grande ensaio, uma obra chamada Discurso sobre as Cincias e as Artes
(1999a), que o catapultou para a fama literria. Esse trabalho fez o seu nome e passou a ser
chamado de o Primeiro Discurso. Esse trabalho foi seguido, cinco anos depois, em 1755, pelo
F
trabalho que estaremos comentando, e que voc deve ler para este tpico, o Discurso sobre a
I
L
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1999b), muitas vezes chamado
O
S
simplesmente de o Segundo Discurso. Este trabalho foi seguido mais tarde, em 1762, pelo O
O
F
Contrato Social (1996), e tambm no mesmo ano Rousseau publicou sua principal obra em
I educao poltica, chamada milo ou da educao (1995). Durante este perodo, Rousseau
A
foi pai de cinco filhos e abandonou todos eles para um orfanato. Ele teve os filhos com uma
P
O mulher chamada Threse Le Vasseur, a criada do quarto de hotel onde ele residia, com quem
L
somente casou oficialmente em 1768. Durante este tempo os escritos que mencionamos
T
I so apenas uma pequena parte, embora uma parte muito importante dos escritos por ele
C
A elaborados. Ele tambm foi o autor de um grande romance, Jlia ou a Nova Helosa (1994),
UNIDADE 2 TPICO 3 217

Julie ou la Nouvelle Heloise, que foi um best-seller em seu tempo, assim como uma espcie
de romance filosfico no qual ele explorou muitas de suas ideias. No podemos esquecer que
alm de tudo isso, ele tambm foi o compositor de uma pera, Le Devin du Village (1752), que
foi realizada na corte de Lus XV.

S!
DICA

Voc pode escutar a pera Le Devin du Village (1752) de


Jean-Jacques Rousseau on-line. Aproveite para escutar
enquanto voc faz as suas leituras obrigatrias das principais
obras deste autor. A pera est no seguinte endereo
eletrnico: Disponvel em: <https://www.youtube.com/
watch?v=uEucVoQ1fsU>. Acesso em: 13 fev. 2015.

Ele tambm escreveu vrios volumes muito importantes e interessantes de autobiografia,


o mais conhecido destes simplesmente chamado Confisses (2008a), anlogo ao ttulo e
obra de Santo Agostinho. Ele tambm escreveu outro volume de autobiografia em uma
forma de dilogo chamado Rousseau juiz de Jean-Jacques em que ele divide-se em duas
pessoas diferentes, Rousseau e Jean-Jacques, em uma espcie de interrogatrio interno a
si mesmo. Rousseau escreveu em muitos e variados gneros e seu trabalho se estende por
toda a gama de temas filosficos, literrios e polticos. Ele tambm foi o autor de diversos
projetos constitucionais, foi consultado pelos chefes de Estado de sua poca e escreveu as
constituies para a Polnia e para o pequeno pas insular da Crsega, sobre a qual ele disse
no Contrato Social que era o nico lugar na Europa onde se poderia esperar grandes coisas
(1996, p. 62, II, 10). claro que ele estava certo, pois uma ou duas geraes depois, o famoso
corso, Napoleo Bonaparte, surgiria.

As pessoas habitualmente ficam perplexas com a natureza das contribuies de


Rousseau. Em que ele acreditava? O que ele representava? O que seus escritos representam?
Ele era um revolucionrio, cujo trabalho ajudou a inspirar as fases radicais da Revoluo
Francesa? Basta lembrar, por exemplo, da famosa sentena de abertura dO Contrato Social, "o
F
homem nasceu livre e, no obstante, est acorrentado em toda a parte" (ROUSSEAU, 1999c, I
L
p. 25), seu apelo tica poltica severa da antiga Esparta e Roma, bem como sua crena de O
S
que o povo em sua capacidade coletiva a nica fonte legtima da soberania. Tudo isso parecia O
F
abrir o caminho poltica revolucionria do final do sculo XVIII e at o nosso prprio tempo. I
Ento, Rousseau uma espcie de incendirio e revolucionrio ou seus escritos procuram A

libertar-nos completamente dos laos da sociedade, como ele aparenta fazer no Segundo P
O
Discurso, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. L

Neste trabalho, Rousseau parece lanar as bases para o tipo de individualismo romntico que T
I
estaria associado com pessoas como William Wordsworth na Inglaterra, Henry David Thoreau C
A
218 TPICO 3 UNIDADE 2

nos Estados Unidos, Jos de Alencar no Brasil e Jose Hernandez na Argentina. Apelos diretos
de Rousseau natureza, bem como a sua celebrao da simplicidade da vida dos camponeses
e da vida rural parecia abrir a porta posteriormente para escritores como Lev Tolstoi, bem como
para vrios tipos de experincias sociais na utopia camponesa ou rural comunitria, tais como,
por exemplo, o movimento kibutz israelense, que em sua prpria maneira um descendente
direto de Rousseau, ou a Revolta Camponesa de Formoso e Trombas (1950-1957) que ocorreu
no Brasil.

Nossa sugesto que os escritos de Rousseau so variados e suas influncias tm


sido muitas, para dizer o mnimo. Ele tanto ajuda fruio quanto a concluso do movimento
poltico e intelectual que ns conhecemos como o Iluminismo. Ele conduz este movimento
sua fase mais elevada de perfeio, todavia, ao mesmo tempo, ele foi um crtico severo do
mesmo. Ele era um amigo prximo e associado de homens como Diderot, que era o editor geral
da Enciclopdia, a grande contribuio francesa para a era do Iluminismo, e ainda assim ele
denunciou o progresso das artes e das cincias e se preocupava com os seus efeitos sobre
a vida moral das comunidades. Ele defendeu o que chamou o selvagem, sauvage, contra o
homem civilizado. Ele tomou o lado dos pobres e despossudos contra as elites e adotou a
postura do filho leal e cidado de Genebra contra os intelectuais parisienses sofisticados de
seu tempo. Ento, quem foi Rousseau e o que ele representa? Isso o que vamos comear
a tentar descobrir neste tpico.

O Segundo Discurso , aos olhos de muitos leitores, a maior obra de Rousseau, isso
no mnimo discutvel. Os escritores do sculo XVIII chamavam este tipo de obra de histria
conjectural, uma espcie de histria filosfica ou uma reconstruo filosfica da histria, mas
no do que realmente aconteceu no passado. No uma histria de fatos e datas, mas uma
histria que deve ter acontecido, assim acredita Rousseau, para que o ser humano pudesse
evoluir sua condio atual. Rousseau comea a sua obra comparando os efeitos da histria
em ns com a esttua de Glauco, ele diz:

Tal como a esttua de Glauco que o tempo, o mar e as tempestades haviam


desfigurado tanto que se parecia menos com um deus do que com um animal
feroz, a alma humana, alterada no seio da sociedade por mil causas incessan-
temente renascentes, pela aquisio de um grande nmero de conhecimentos
e de erros, pelas mudanas ocorridas constituio dos corpos e pelo choque
F contnuo das paixes, mudou, por assim dizer, de aparncia a ponto de ficar
I irreconhecvel (LOCKE, 1999b, p. 149-150).
L
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O Isto o que a histria e o tempo nos tem feito, ficamos to afetados que a nossa prpria
F
I natureza humana transformou-se e desfigurou-se. Por isso, ele argumenta, se quisermos
A
entender o que realmente a natureza humana, ser necessrio reconstru-la atravs de uma
P
O espcie de experimento mental.
L

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I Rousseau compara o Segundo Discurso aos experimentos empreendidos por fsicos e
C
A cosmlogos de seu prprio tempo, que especulavam sobre as origens do universo da mesma
UNIDADE 2 TPICO 3 219

forma que ele est especulando sobre a condio original da natureza humana. Ou seja, no
h nenhuma evidncia emprica ou fsica para se basear a fim de entender como o mundo
realmente foi estruturado. Ns s podemos fazer, diz ele, suposies inteligentes e determinadas
inferncias ou conjecturas com base nas provas que encontramos ao nosso redor. Assim,
observa Rousseau em uma das passagens mais impressionantes de seu livro (e Rousseau
era um homem conhecido por escrever frases paradoxais e engenhosas), "Comecemos,
pois, por descartar todos os fatos, pois eles no se podem realizar sobre esse assunto por
verdades histricas, continua ele, mas somente por raciocnios hipotticos e condicionais,
mais apropriados para esclarecer a natureza das coisas do que para lhes mostrar a verdadeira
origem (ROUSSEAU, 1999b, p. 161). Em outras palavras, o que ele est dizendo que a
histria que ele tem a inteno de desdobrar um experimento muito parecido com aqueles
realizados por gelogos quando tentam inferir o desenvolvimento da vida vegetal ou animal a
partir da existncia de certos restos fsseis ou restos de esqueletos.

No entanto, ao mesmo tempo em que Rousseau fala de seu trabalho como uma tentativa
experimental e conjectural, ele arrisca algumas suposies que voc no pode deixar de ficar
impressionado com o tom de confiana com que ele apresenta suas descobertas. Em particular,
ele discute e rejeita com bastante nfase as investigaes de seus predecessores antigos e
modernos. "Os filsofos", ele escreve, que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram
todos a necessidade de remontar ao estado de natureza, mas nenhum deles o atingiu (1999b,
p. 160). Ele acredita que somente ele, finalmente, conseguiu atingir o alvo. Oh, homem", ele
exclama, de qualquer terra que sejas, quaisquer que sejam as tuas opinies, escuta: eis tua
histria, tal como acreditei l-la, no nos livros de teus semelhantes, que so mentirosos, mas
na natureza que jamais mente (1999b, p. 162). Essa uma frase notvel, parece atingir direta
e enfaticamente qualquer leitor de sua obra. Pela primeira vez, Rousseau afirma, a natureza
humana ser revelada e a histria da sociedade civil explicada a ns.

S!
DICA

Uma excelente obra para introduzir e aprofundar os conceitos


centrais do pensamento rousseauniano a seguinte:
DENT, N. J. H. Dicionrio Rousseau. Trad. lvaro Cabral. Rio
F
de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. I
L
O
S
O
F
I
A

P
2.1 O ESTADO DE NATUREZA DE ROUSSEAU O
L

T
I
C
A
220 TPICO 3 UNIDADE 2

Qual o estado de natureza de Rousseau? Um termo que estudamos em Hobbes e


Locke. O que que Rousseau pensa haver encontrado e que iludiu seus antecessores?
exatamente este tema que Rousseau explora na primeira parte de seu Segundo Discurso
(1999b, p. 163-201). Em diversos aspectos, Rousseau segue os passos de seus grandes
predecessores, especialmente Hobbes e Locke, na tentativa de compreender a condio original,
referindo-se a este estado hipottico ou conjectural da natureza. Ele elogia e segue Hobbes
e Locke ao fazer isso, mas sugere que eles nunca realmente levaram a srio o suficiente o
problema da natureza. O que significa, Rousseau parece perguntar, levar a srio a natureza
humana, o estado de natureza? Para compreend-la, para entender a natureza humana, faz-se
necessrio realizar uma espcie de experimento mental onde tiramos as camadas, anlogas
quelas de uma cebola, tudo o que adquirimos atravs da influncia do tempo, da histria, do
costume e da tradio, a fim de descobrir o que naturalmente permanece l. Ento, quando
Hobbes nos diz e atribui ao homem natural certas propenses blicas, Rousseau descobre
que isso no pode estar certo.

A guerra e as prprias paixes que a fazem surgir s podem existir uma vez que estamos
em sociedade. O estado de guerra de fato meramente o estado de sociedade. Isso no pode
referir-se ao homem natural, porque nas condies naturais no h relaes sociais deste tipo.
Essa sua declarao, podemos observar, uma mxima contrria a John Locke, na medida
em que Locke atribui a ns, no estado de natureza, certas qualidades de racionalidade, de
avidez ao trabalho e de ganncia. Estas tambm, Rousseau reclama, so apenas qualidades
que podemos adquirir luz da sociedade. A propriedade implica relaes sociais entre as
pessoas, as relaes de justia e injustia, e o homem em um estado de natureza no um
animal social. Por isso, fica claro para Rousseau que a natureza humana algo infinitamente
mais remoto e estranho do que qualquer um dos seus antecessores tivera imaginado. Qual
era a condio do homem natural? Rousseau cativou seus leitores em seu tempo e ainda o
faz em nosso tempo, ao mostrar que a condio original da natureza humana era muito mais
similar quela de um animal do que qualquer coisa identificvel ou reconhecidamente humana.
Parece que Rousseau desfruta de um grande deleite em animalizar a natureza humana, em
nos animalizar.

Quando Aristteles disse que o homem o animal poltico por natureza, o ser possuidor
F
da racionalidade, ele estava afirmando que temos esta natureza, pois possumos a fala ou o
I
L
logos, Rousseau diz: "errado de novo." A linguagem dependente da sociedade e s poderia ter
O
S
se desenvolvido literalmente ao longo de milhares de geraes e no pode ser uma propriedade
O do homem natural (ROUSSEAU, 1999b, p. 178-179).
F
I
A

P
S!
O DICA
L

T
I Vale a pena para aprofundar sobre a temtica da origem da
C linguagem ler o Ensaio sobre a origem das Lnguas (1997)
A
de Rousseau, publicado postumamente.
UNIDADE 2 TPICO 3 221

Portanto, a natureza humana pouco diferente da natureza animal e podemos ver,


particularmente nas notas de rodap de Rousseau, que ele se deleita em investigar histrias
sobre os orangotangos e outras espcies que ele acredita que so nossos antepassados
distantes. Podemos dizer que um sculo antes de Darwin, Rousseau poderia facilmente ter o
direito de intitular seu Segundo Discurso de Sobre a Origem das Espcies. Em certo aspecto, a
cincia da biologia evolutiva j est implcita aqui, mas apesar de todas as nossas caractersticas
comuns com outras espcies, Rousseau especifica duas qualidades que nos diferenciam. A
primeira a qualidade da liberdade ou o que ele chama de agente livre ou ato de liberdade,
embora ele entenda isso de uma maneira muito especfica. Vamos citar uma passagem
relevante: Vejo em todo animal, Rousseau escreve, somente uma mquina engenhosa,
a quem a natureza deu sentidos para funcionar sozinha e para garantir-se, at certo ponto,
contra tudo quanto tende a destru-la ou a desarranj-la. Percebo precisamente as mesmas
coisas na mquina humana. Em outras palavras, ele diz que os animais so simplesmente
pequenas mquinas que operam por impulsos e necessidades mecnicas ou fsicas e desejos,
e o mesmo verdade, diz ele, na mquina humana, com essa diferena de que a natureza
faz tudo sozinha nas operaes do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na
qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto e o outro, por um ato de liberdade
(ROUSSEAU, 1999b, p. 172).

O que ele quer dizer com a afirmao de que o homem um agente livre? Essa ideia
de fato semelhante a Hobbes e Locke, ambos disseram que a liberdade de vontade, que
algum tipo de liberdade uma caracterstica do homem natural ou do homem pr-social. Mas
Rousseau parece acrescentar a isto algo diferente. A liberdade para Hobbes ou Locke significa
simplesmente a liberdade de escolher fazer isso ou aquilo, a liberdade de exercer a vontade
e de no sofrer a interferncia dos outros ao nosso redor. Rousseau tambm acredita nisso,
mas ele acrescenta algo a mais. Um pouco mais adiante da passagem citada, ele conecta
a liberdade ao que ele chama de qualidade ou faculdade de aperfeioar-se, o fenmeno
da perfectibilidade (ROUSSEAU, 1999b, p. 173-174). O que ele quer dizer com a liberdade
conectar-se com essa faculdade de perfectibilidade? Perfectibilidade, para Rousseau, sugere
uma abertura virtualmente ilimitada mudana. No somos meramente a espcie que tem a
liberdade para fazer isso ou aquilo, mas somos a espcie que com a liberdade podemos nos
tornar isto ou aquilo. a nossa prpria abertura a mudana que explica a nossa mutabilidade
ao longo do tempo. Como uma espcie somos exclusivamente indeterminados, significando que
F
a nossa natureza no est confinada com antecedncia ao que pode tornar-se. Pelo contrrio, I
L
nossa natureza, para Rousseau, singularmente adequada a alterar-se e transformar-se na O
S
medida em que as circunstncias mudam e ns nos adaptamos e adotamos as situaes novas O
F
e imprevistas. A perfectibilidade para Rousseau no tanto uma caracterstica do indivduo, I
A
quanto o da espcie.
P
O
L
Enquanto Hobbes ou Locke assumiram que a natureza humana em si mesma manteve-
se mais ou menos constante na transio entre o estado de natureza ao estado civil, Rousseau T
I
acreditava que a natureza humana tinha sofrido mltiplas revolues ao longo do tempo. O C
A
222 TPICO 3 UNIDADE 2

que ns somos, em qualquer fase especfica da histria humana, ou da evoluo humana,


ser muito diferente do que seremos em qualquer outra fase particular. isso o que ele chama
de faculdade diferenciada e ilimitada que ele diz que tambm a fonte de todos os nossos
infortnios. Ento, quando ele diz que somos caracterizados pela liberdade e por esta associada
perfectibilidade, ele no quer dizer, necessariamente, por "perfectibilidade" aquilo que nos
aperfeioa. Ele tambm diz que o que est na origem das nossas misrias e das nossas
insatisfaes. exatamente por isso que no seria inadequado voc atribuir a este livro outro
ttulo j sugerido, A Origem das Espcies. Poderia muito bem ter sido tambm chamado,
mais de um sculo antes de Freud, de O Mal-estar na Civilizao, que , em vrios aspectos,
a tentativa de Freud de reescrever o relato de Rousseau sobre a evoluo da espcie humana.
Mas, Rousseau observa que a liberdade ou perfectibilidade no nossa nica caracterstica
natural, embora seja responsvel por quase tudo o que nos tornamos, pois o que nos tornamos
devido a essa abertura mudana.

Alm de perfectibilidade e liberdade h a qualidade que Rousseau chama de piti,


ou piedade, e aqui temos Rousseau em sua forma mais caracterstica (ROUSSEAU, 1999b,
p. 189-193). Podemos dizer que aqui temos o Rousseau como o fundador do Romantismo.
O homem, para ele, no o animal racional, o ser pensante, o ser com logos, mas somos a
criatura sensvel. Rousseau encontra todos os tipos de evidncias para supor que a comiserao
faz parte da nossa natureza original. Ele observa em outras espcies uma relutncia para
testemunhar a dor ou o sofrimento de outro de sua prpria espcie. Como, por exemplo, um
animal no vai querer andar perto de um membro morto de sua prpria espcie. Isso parece
indicar a Rousseau que, mesmo nas outras espcies, h um ncleo natural de comiserao
ou piedade. O fato de que ns choramos perante as desgraas dos outros que nada tm a ver
com a gente prova da nossa sensibilidade original. Basta voc perguntar a si mesmo se j
chorou assistindo algum filme ou documentrio? Provavelmente todos ns j experienciamos
situaes assim. No caso dos filmes, muitas vezes sentimos comiserao por situaes que
nem mesmo envolvem pessoas, mas objetos, animais, e coisas que nem mesmo existem.
Rousseau entende completamente isto, ao afirmar: Mollissima corda Humano generi dare se
natura fatetur, Quae lacrimas dedit (ROUSSEAU, 1999b, p. 191). Ao dar ao homem lgrimas,
a natureza testemunha de que ela deu ao gnero humano o mais macio dos coraes.

F
O homem uma criatura sensvel, tanto que Rousseau encontra provas no presente
I
L
para o que ele acredita ser a nossa bondade natural. A bondade natural do homem no estado
O
S
de natureza corroborada por esta qualidade de piedade ou comiserao que ns at mesmo
O
F
compartilhamos com outras espcies. Por que Rousseau enfatiza essa qualidade? Porque
I profundamente importante para ele. Muito antes de Dr. Phil MacGraw e milhares de outros gurus
A
e manuais de autoajuda, Rousseau nos ensinou a entrar em contato com nossos sentimentos.
P
O O homem natural pode ser compassivo e amvel, no entanto, este sentimento facilmente
L
dominado por paixes mais poderosas uma vez que entramos em sociedade, uma vez que
T
I nos tornamos civilizados ou socializados. Deixamos, uma vez que estamos na sociedade, de
C
A nos preocupar com os outros e nos tornamos calculistas e mercenrios com outros motivos. O
UNIDADE 2 TPICO 3 223

ensimesmar-se, o amor-prprio e o egosmo so de fato reforados pelo desenvolvimento da


razo. a razo, ele escreve, que engendra o amor-prprio e a reflexo que o fortalece;
ela que faz o homem ensimesmar-se; ela que o separa de tudo quanto o incomoda e o
aflige (ROUSSEAU, 1999b, p. 192). O desenvolvimento da racionalidade, para Rousseau,
simplesmente acelera nossa corrupo ao auxiliar no desenvolvimento de diferentes vcios.
A misso do Segundo Discurso, pelo menos a sua misso retrica, de recuperar os nossos
selves naturais, compassivos, gentis e amveis, a partir dos selves corruptos, calculistas e
artificiais nos quais nos tornamos na sociedade civil. praticamente impossvel ler Rousseau
sem perceber que h um germe significativo de verdade no que ele diz.

Ser que Rousseau acredita que possvel ou desejvel retornar ao estado de


natureza, retornar a algum tipo de condio pr-queda antes do incio da sociedade civil? Ele
frequentemente interpretado como quem est dizendo isso. Voltaire, por exemplo, escreveu
uma carta a Rousseau em 30 de agosto de 1755, ao receber uma cpia do Segundo Discurso,
e disse: "Jamais se empregou tanto esprito em querer tornar-nos animais; sente-se vontade de
andar de quatro patas, quando se l vossa obra (VOLTAIRE, 1999, p. 245), uma observao
inteligente e irnica, mas no de fato correta e precisa. Voltaire certamente sabia que 150
anos antes de Rousseau houve um escritor francs pelo nome de Michel de Montaigne que
escreveu um ensaio importante chamado Sobre os Canibais (2010), no qual ele descreveu
tribos indgenas ao largo da costa do Brasil e a quem elogiou contra a verdadeira selvageria e
a barbrie de seus conquistadores europeus. Quando pede para intitularem seu famoso ensaio
Sobre Canibais, fica a questo em aberto sobre quem so os canibais. So eles os nativos
do litoral brasileiro ou so os conquistadores europeus? Montaigne, tal como Rousseau, mas
um sculo ou mais antes, elogiou as qualidades e as capacidades destes sauvages que ele
descobriu e contrastou-os crueldade sanguinria dos europeus de sua poca. Rousseau foi
profundamente influenciado por este ensaio particular. um pequeno texto e gostaramos de
sugerir a voc que o lesse em algum momento quando tiver a chance.

S!
DICA

Quem quiser se aprofundar em estudos mais especializados


sobre Rousseau vale a pena conferir a monumental obra: F
Correspondance Complete de Jean-Jacques Rousseau. I
Editada por R. A. Leigh em 52 volumes. Geneva: Institut et Muse L
O
Voltaire, 1965-1971; Oxford: Voltaire Foundation, 1971-1998. S
O
F
I
A

De todos os modos, Rousseau deixa claro que um retorno ao estado de natureza ou P


O
a algum tipo de estado pr-social ou pr-civil j no uma opo para os seres civilizados. L

Em uma das notas de rodap, e eu encorajo voc a sempre ler as notas de rodap, pois elas T
I
so essenciais na compreenso das obras, Rousseau escreve: Como? Ento ser preciso C
A
224 TPICO 3 UNIDADE 2

destruir as sociedades, aniquilar o teu e o meu e voltar a viver nas florestas com os ursos?",
escreve ele, "Consequncia moda dos meus adversrios, que prefiro evitar a deixar-lhes
a vergonha de tir-las" (ROUSSEAU, 1999b, p. 308). Em outras palavras, ele est dizendo
que no, ns no podemos fazer isso. Um retorno ao estado de natureza impossvel a ns,
pela mesma razo que seria a um animal domstico voltar sua vida selvagem. Tanto eles
como ns simplesmente perdemos o nosso instinto de autopreservao, que ficou entorpecido
devido associao contnua e dependncia nos outros. Ns no duraramos um nico dia
no estado de natureza, tal retorno impossvel. Portanto, a nica alternativa de alguma
maneira aprender como viver em sociedade. Todavia, antes que possamos aprender a viver
em sociedade, Rousseau quer nos contar a histria de como o homem tornou-se civilizado,
como de fato ocorreu a passagem da natureza cultura ou sociedade.

2.2 A transio do homem, da natureza


sociedade: Civilizao e propriedade

Em certo sentido, o relato de Rousseau desta histria pode ser transmitido em uma
nica palavra: Propriedade. A primeira frase da segunda parte do Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens diz o seguinte: O primeiro que, tendo cercado
um terreno, atreveu-se a dizer: Isto meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para
acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Locke certamente concordaria,
em alguns aspectos, mas Rousseau continua como se segue:

Quantos crimes, guerras, assassnios, quantas misrias e horrores no teria


poupado ao gnero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo
o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: Evitai ouvir esse impostor.
Estareis perdidos se esquecerdes que os frutos so de todos e que a terra
no de ningum. (ROUSSEAU, 1999b, p. 203)

A voc v, em um grmen, o seu repdio a Locke. Rousseau no era comunista,


embora isso soe muito como Karl Marx, ele no pensava ser possvel ou desejvel acabar com a
propriedade privada ou coletivizar a propriedade na forma de um Plato ou de um Marx. Todavia,
no h algum que seja um observador mais agudo dos males das classes e dos efeitos da
F propriedade privada do que Rousseau. Ele acreditava que havia algo de profundamente errado
I
L com a concepo de um governo como o protetor da propriedade privada que intervm o mnimo
O
S necessrio nos assuntos dos indivduos, simplesmente deixando-os livres para buscar a vida,
O
F a liberdade e a propriedade como eles bem entenderem. Rousseau aponta de volta para uma
I
A concepo clssica de governo da polis antiga e da repblica antiga, uma concepo na qual
P a poltica tinha entre seus objetivos o de supervisionar a busca e a aquisio de propriedades,
O
L mitigando os efeitos mais severos das desigualdades econmicas. Uma nica frase do Primeiro

T Discurso de Rousseau, o Discurso sobre as Cincias e as Artes, j diz tudo. "Os antigos polticos"
I
C escreveu ele, "falavam incessantemente de costumes e de virtude; os nossos s falam de
A
UNIDADE 2 TPICO 3 225

comrcio e de dinheiro (ROUSSEAU, 1999a, p. 28). Essa foi a reclamao de Rousseau, hoje
no h qualquer conversa sobre a virtude cvica e a cidadania, somente sobre dinheiro. Pense
um pouco nessa acusao rousseauniana, creio que gritantemente vigente.

A viso de Locke, basta lembrar o que vimos nos tpicos anteriores desta Unidade 2,
de que a emancipao da aquisio faz com que todos se tornem melhores. Na famosa frmula
de Locke, uma diarista na Inglaterra se aloja, se veste e se alimenta melhor do que um rei
das Amricas (LOCKE, 1994, p. 107, 41). Rousseau acreditava que desde um ponto de vista
estritamente econmico h certamente muita verdade nisso. Mas ele tambm percebeu que
o ponto de vista econmico mal comeou a arranhar a superfcie das coisas. Rousseau fica
muito mais impressionado pela honrosa dignidade e independncia do rei nativo americano do
que com todos os luxos e confortos que tornaram mais dependentes os reis e at mesmo os
trabalhadores comuns europeus. Rousseau ficou profundamente impressionado, e voc poder
ver isso claramente em suas notas de rodap, com o tipo de carter inassimilvel dos povos
nativos, os islandeses, os groenlandeses, os hotentotes, entre outros, e toda a sua recusa em
assimilar aspectos da religio e dos costumes europeus (ROUSSEAU, 1999b, p. 325). Em
uma passagem da segunda parte do Segundo Discurso ele diz o seguinte:

Quando vejo multides de selvagens inteiramente nus menosprezarem as


voluptuosidades europeias e afrontarem a fome, o fogo, o ferro e a morte para
conservarem apenas sua independncia, percebo que no a escravos que
compete raciocinar sobre a liberdade (ROUSSEAU, 1999b, p. 227).

Eles preferiam a sua independncia pessoal aos confortos e luxos da civilizao


moderna.

Considere outra passagem, mais longa, mas consideramos uma das melhores neste
livro e que vem de suas notas de rodap. Ele diz:

Vrias vezes levaram-se selvagens a Paris, a Londres e a outras cidades;


empenharam-se em exibir-lhes nosso luxo, nossas riquezas e todas as nossas
artes mais teis e mais curiosas; tudo isso sempre despertou neles apenas
uma admirao estpida, sem o menor movimento de cobia. Lembro-me,
entre outras, da histria de um chefe de alguns americanos setentrionais que
levaram corte da Inglaterra h uns trinta anos. Passaram-lhe mil coisas diante
dos olhos, procurando dar-lhe algum presente que pudesse agradar-lhe, sem
que encontrassem algo com que ele parecesse importar-se. Nossas armas
pareciam-lhe pesadas e incmodas, nossos sapatos machucavam-lhe os ps, F
I
nossas roupas o incomodavam, a tudo ele rejeitava; por fim, perceberam que, L
ao pegar um cobertor de l, ele pareceu sentir prazer em envolver os ombros O
com ele. Concordais, pelo menos, disseram-lhe na mesma hora, com a S
O
utilidade desse objeto? Sim, respondeu ele, parece to bom quanto a pele F
de um animal. Contudo no teria dito isso se tivesse usado uma e outra na I
chuva. (ROUSSEAU, 1999b, p. 325) A

P
Aqui vemos mais uma vez o sentido de virtude para Rousseau. A independncia O
L
honrosa do nativo, do sauvage, como ele o chama, perante a decadncia e a corruptibilidade
T
do europeu moderno. I
C
A
226 TPICO 3 UNIDADE 2

Rousseau consentia o fato de que as economias de mercado e os governos que


as protegem possibilitam, em certos aspectos, uma melhor situao a todas as pessoas.
Mas, apesar disso, ele percebeu que as economias de mercado tambm introduzem vastas
desigualdades entre os seres humanos, e este um trade-off, uma negociao, que Rousseau
no deseja e no est disposto a fazer. Entretanto, temos que admitir que a maioria de ns
aparente estar bastante feliz com este trade-off, isso talvez porque nos tornamos uma espcie
de lockeanos naturais. Rousseau no ficou somente impressionado com o que foi adquirido
pelo progresso da civilizao, mas ficou muito mais impressionado com o que foi perdido. Com
o aumento das desigualdades, somos forados a tornar-nos ganancioso, calculistas, aquisitivos,
e a nossa piedade ou comiserao singular facilmente superada por essas paixes mais
poderosas. O que acontece com a nossa bondade original e decncia natural? O homem natural,
para Rousseau, pensava em si mesmo, enquanto o homem civilizado forado a pensar em
outras pessoas. No entanto, s fazemos isso de forma calculista e mercenria, pois pensamos
em outras pessoas como meios para nossos prprios fins. At mesmo o prprio vnculo social,
o contrato social, simplesmente um acordo entre parceiros de negcios, tornando o contrato
a mais burguesa das instituies. De fato, Rousseau acredita que nas condies modernas
o homem natural transformado em um burgus. Rousseau um dos primeiros a usar esse
termo exatamente dessa forma (ROUSSEAU, 1996, p. 121, IV, 4; 1999c, p. 132, IV, 3).

O homem racional e industrioso de Locke era, para Rousseau, simplesmente o burgus


calculista e, ao contrrio do homem natural, que s pensa em si mesmo, ou do cidado clssico
de Roma ou de Esparta, que s pensa no bem comum e em seus deveres pblicos, o burgus
habita um lugar intermedirio, no capaz de uma bondade original ou espontnea nem de um
herosmo poltico ou de um autossacrifcio. Em suma, os nossos povos modernos tornaram-
se uma espcie de nulidades ou, tomando emprestado o termo agambendiano, homens
sem contedos (AGAMBEM, 2012, p. 57). Uma excelente msica dos Beatles consegue
captar a ideia proposta por Rousseau do homem burgus moderno, a msica intitulada
Nowhere Man (Homem de lugar nenhum), vale a pena conferir tanto a letra quanto a msica.
Como isso aconteceu? Como chegamos nessa situao? Rousseau sugere uma resposta, o
desenvolvimento da propriedade. Mas isso apenas parte da histria. O que vamos fazer a
seguir contar a outra parte dessa histria, considerada ainda mais importante, de como ns
nos tornamos o que somos.
F
I
L
O
S
O
F 3 o Discurso sobre a Desigualdade: A Participao
I e A democracia
A

P
O Vamos discorrer agora sobre outra parte do Segundo Discurso, um livro que de fato
L
nunca envelhece e nunca falha em seus efeitos. Comentamos nos tpicos acima o relato de
T
I Rousseau sobre as origens da desigualdade e focamos na famosa passagem em que Rousseau
C
A afirma que o estabelecimento da propriedade privada inaugurou a verdadeira formao da
UNIDADE 2 TPICO 3 227

sociedade civil, assim como os primrdios da desigualdade e de todas as misrias subsequentes


da raa humana, as quais ele procura descrever. Mas, o fato que isso no realmente
verdade, e Rousseau sabe disso. Se Rousseau s estivesse interessado em questes de
classe e desigualdade econmica, haveria pouca diferena entre ele e os tericos materialistas
da sociedade, como Karl Marx, embora Marx fosse um leitor de Rousseau e dessas leituras
extraiu as suas melhores mximas contra a sociedade capitalista. No entanto, Rousseau
compreendia que para instituies como a propriedade e a sociedade civil se tornarem possveis,
deveriam ocorrer amplos e importantes desenvolvimentos antecedentes s mesmas. Estes, na
concepo rousseauniana, seriam as transformaes morais e psicolgicas dos seres humanos.
Para Rousseau so exatamente estes danos morais e psicolgicos da desigualdade, e no
meramente os aspectos materiais do fenmeno, que constituem o foco de sua preocupao.
Rousseau toma o lado dos pobres e despossudos, mas no a questo da propriedade ou
da pobreza que realmente desperta a ira de Rousseau, so as atitudes e crenas moldadas
pelas desigualdades de riqueza e de poder. no Rousseau como psiclogo moral onde a sua
voz realmente se faz ouvir. Poderamos dizer que Rousseau, tal como Plato, encontra a sua
voz quando discute as vrias complexidades da alma humana.

3.1 Amour-Propre: a causa mais durvel


da Desigualdade

Qual o principal vilo de Rousseau no Segundo Discurso em seu relato sobre o incio
do desenvolvimento da desigualdade? A desigualdade real comea em uma faculdade ou em
uma disposio que o amour-propre, na maioria das edies do livro o termo permanece
em francs, porque realmente complexa a sua traduo. Na traduo que utilizamos para
comentar neste Caderno de Estudos, o tradutor utiliza o termo amor-prprio, sendo esta a
primeira e mais durvel causa da desigualdade para Rousseau (1999b, pp. 189, 212, 217).
Amour-propre uma palavra relacionada a uma srie de caractersticas psicolgicas, tais
como o orgulho, a vaidade, a presuno, entre outras. Em algumas tradues referida como
egocentrismo ou egosmo, mas se optssemos por alguns destes termos anlogos sugeriramos
termos como a vaidade, a presuno ou o orgulho. O amour-propre para Rousseau s surge
na sociedade e a verdadeira causa, ele acredita, dos nossos descontentamentos. Em uma
F
longa nota de rodap, que esperamos que voc j tenha verificado, ele distingue o amor- I
L
prprio de outra disposio que ele chama de amour de soi-meme, ou amor de si mesmo. O
Como estes so distinguidos? Ele diz naquela nota: "No se deve confundir o amor-prprio S
O
e o amor de si mesmo, duas paixes muito diferentes por sua natureza e por seus efeitos. O F
I
amor de si mesmo um sentimento natural, ele escreve, que leva todo animal a zelar pela A

prpria conservao e que, dirigido no homem pela razo e modificado pela piedade, produz P
O
a humanidade e a virtude" (ROUSSEAU, 1999b, p. 323). Portanto, h uma espcie de amor, o L

amor de si mesmo, que est na raiz do nosso desejo de preservar a ns mesmos, de ser forte T
I
em nossa autopreservao, e de resistir invaso ou usurpao dos outros. C
A
228 TPICO 3 UNIDADE 2

Mas ento, ele continua a dizer que o amour-propre um tipo totalmente diferente de
paixo ou sentimento. "O amor-prprio no passa de um sentimento relativo, factcio e nascido
na sociedade, que leva cada indivduo a dar mais importncia a si do que a qualquer outro, que
inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente e a verdadeira fonte da honra
(ROUSSEAU, 1999b, p. 323). Leia atentamente essa ltima expresso. Ele est dizendo que o
amor-prprio a verdadeira fonte tanto do mal quanto da honra, o desejo de ser reconhecido
e valorizado pelos outros. Como pode esta paixo de amour-propre ser responsvel por estes
dois tipos muito diferentes de efeitos concorrentes? Como que este sentimento surge em
primeiro lugar? E, mais importante ainda, o que podemos ou devemos fazer sobre isso?

Para Hobbes, vamos recordar (2003, p. 51-73), essa ideia de orgulho, vaidade, ou o
que ele chama de vanglria uma parte muito importante de sua psicologia e moral poltica
no Leviat. O orgulho visto como algo natural para ns, Hobbes escreve, faz parte do nosso
desejo natural de domnio sobre os outros, mas para Rousseau, ao contrrio, o amour-propre
algo que s poderia surgir depois que o estado de natureza, um estado que Hobbes havia
descrito a vida do homem como solitria, pobre, srdida, brutal e curta (2003, p. 109), tivesse
dado lugar sociedade. Na concepo de Rousseau, o relato de Hobbes incoerente. Se o
estado natural verdadeiramente solitrio, pobre, srdido, brutal e curto, o que significaria em
tal estado sentir orgulho ou vaidade, pois o mesmo exige a sociabilidade humana e requer a
estima e de alguma forma a contemplao ou o olhar dos outros? Como poderia o orgulho
ter surgido em um estado de natureza, que pela descrio de Hobbes solitrio? Rousseau
usa Hobbes para provar o seu ponto (ROUSSEAU, 1999b, p. 189), que o amor-prprio, a
vaidade, no um sentimento natural, mas, como ele diz na passagem da nota de rodap que
citamos, um sentimento relativo e artificial, e s poderia ter surgido uma vez que entramos
na sociedade.

Mas como isso aconteceu? Rousseau especula sobre isso e, mais uma vez, isso faz
parte de sua histria hipottica ou conjectural (ROUSSEAU, 1999b, p. 210-212). Ele especula
que amour-propre comeou a surgir e a desenvolver-se assim que as pessoas comearam a
se reunir em torno de uma cabana ou uma rvore e olhar um para o outro. No instante em que
nos tornamos conscientes do olhar do outro, a partir desse olhar do outro, a paixo da vaidade
nasceu. Preste ateno na maneira como ele especula como isso surgiu. "Cada qual", diz ele,
F
I comeou a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima p-
L blica teve um preo. Aquele que cantava ou danava melhor; o mais belo, o
O
S mais forte, o mais hbil ou o mais eloquente passou a ser o mais considerado,
O e foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vcio ao mesmo
F tempo; dessas primeiras preferncias nasceram, de um lado a vaidade e o
I
A desprezo, do outro a vergonha e o desejo; e a fermentao causada por esses
novos germes produziu por fim compostos funestos felicidade e inocncia.
P (ROUSSEAU, 1999b, p. 210-211).
O
L

T Assim, o surgimento desta paixo de ser visto, de ser contemplado como o melhor em
I
C alguma coisa, produziu em muitas pessoas o orgulho, a vaidade, e inerente a estas o desprezo.
A
UNIDADE 2 TPICO 3 229

Mas, em outras pessoas, produziu a vergonha e inveja, ou o desejo. Destes efeitos emerge um
composto que possibilitou o desenvolvimento de tendncias fatais para a nossa felicidade e
inocncia. perceptvel que Rousseau, nesta passagem, est tocando em um ponto essencial.

NOT
A!

Vale a pena explorar as possveis conexes entre a proposta
rousseauniana do desejo pelo reconhecimento do outro, com a
proposta hegeliana do desejo (Begierde) pelo desejo do outro, o
desejo de ser desejado como o ponto crucial do surgimento da
autoconscincia (Selbstbewusstsein), a conscincia de si mesma.
Esta narrativa rousseauniana-hegeliana tambm inspirou a noo
nuclear psicanaltica freudiana de desejo (Wunsch). A exposio
de Hegel pode ser conferida na Fenomenologia do Esprito (1999).

O amour-propre apresentado, na passagem que acabamos de ler e em grande parte


do Segundo Discurso, em termos negativos. Entretanto, tambm est relacionado a um aspecto
positivo para o desenvolvimento de humanidade na sociedade, que o desejo sentido por
todas as pessoas, uma vez que entram na sociedade, de ter algum tipo de reconhecimento
ou respeito por aqueles que os rodeiam. Isso tambm uma parte do amor-prprio, o desejo
de ser visto, reconhecido e respeitado. Para Rousseau, o desejo de reconhecimento est na
raiz de nosso senso de justia e subjacente a este, podemos sugerir, est a intuio poderosa
e profundamente verdadeira, de que se os nossos sentimentos, crenas, opinies e atitudes
forem reconhecidos e respeitados por outras pessoas ao nosso redor, significa que importamos
de alguma forma. Do contrrio, quando sentimos que as nossas opinies so desprezadas,
quando os outros no reconhecem o nosso valor, sentimos raiva. Assim, essa necessidade de
reconhecimento, que faz parte dessa paixo de amour-propre, para Rousseau uma pedra
angular da justia. Todavia, esta demanda por reconhecimento pode facilmente tornar-se cruel
e violenta medida que exigimos isso dos outros.

Considere-se outra passagem da mesma parte do texto. Rousseau escreve:

Assim que os homens comearam a apreciar-se mutuamente e se lhes formou F


no esprito a ideia de considerao, cada qual pretendeu ter direito a ela e no I
L
foi mais possvel privar ningum dela impunemente. Provieram da os primeiros O
deveres da civilidade, mesmo entre os selvagens, e a partir da qualquer agravo S
voluntrio tornou-se um ultraje porque, com o mal que resultava da injria, o O
F
ofendido nela via o desprezo de sua pessoa, em geral mais insuportvel do I
que o prprio mal. (1999b, p. 211) A

P
O
Pense sobre a psicologia moral que Rousseau est invocando aqui em sua fala sobre L

o dano e o prejuzo. No o aspecto fsico dos danos que lhe incomoda, o tipo de desprezo T
I
que est implcito ou inerente ao ato de leso. Por isso, ele continua a dizer, "punindo cada C
A
230 TPICO 3 UNIDADE 2

qual o desprezo que lhe haviam demonstrado de uma maneira proporcional importncia que
atribua a si mesmo, as vinganas se tornaram terrveis e os homens, sanguinrios e cruis
(ROUSSEAU, 1999b, p. 211). Ou seja, o amour-propre e a sociedade deram origem ao estado
de guerra. Ser que isso soa familiar?

Como exemplo disso, basta considerar um fato que repercutiu muito nas notcias
internacionais. No dia 7 de janeiro de 2015, a sede do jornal satrico Charlie Hebdo sofreu
um atentado terrorista culminando em um massacre. A polmica fora causada, ao menos em
seu apogeu, por caricaturas do profeta Maom. Estas causaram, antes e aps o massacre,
indignao e protestos muitas vezes violentos. At certo ponto, Rousseau poderia argumentar,
os protestos eram sobre as charges desrespeitosas do profeta. Entretanto, mais provvel
que ele argumentasse que a causa mais profunda era que os manifestantes sentiram-se
desrespeitados pelo o que lhes foi mostrado devido s suas prprias crenas, no caso suas
crenas em algo sagrado. Ou seja, o desrespeito foi direcionado s suas crenas, no s suas
pessoas estritamente falando. Todavia, estas crenas se tornam to entrelaadas valorizao
de si mesmo, que tal discriminao nublada pela fora da paixo do amor-prprio. O amour-
propre, como o prprio Rousseau reconhece, uma paixo muito voltil. Ela contm o desejo
de ser respeitado, que est na raiz da justia e da virtude e, no entanto, ao mesmo tempo
essa paixo facilmente manipulvel por aqueles que querem convencer os outros de que
os seus direitos bsicos ou pontos de vista no esto sendo respeitados. Podemos dizer, em
certo sentido, que Rousseau diria que aqueles que protestaram contra as charges tinham um
ponto relevante a seu favor.

Caso dissessem que seus pontos de vista no estavam sendo respeitados, e voc fosse
um lockeano ou buscasse uma formulao liberal de uma resposta ao problema, esta seria:
"Bem, e da?" A tarefa do governo, de acordo com Locke, ou o ponto de vista liberal, o de
garantir a segurana das pessoas e das propriedades, proteg-las do perigo e, naturalmente,
fornecer-lhes a liberdade de praticarem a religio que quiserem, por exemplo, de acordo com
a liberdade dos outros para faz-lo tambm. No assunto pertinente ao governo garantir que
suas crenas sejam respeitadas. Crenas, ideologias, teorias, podem ser criticadas, contestadas,
satirizadas, ironizadas, desde que a sua pessoa, a sua propriedade e a sua liberdade sejam
preservadas. Este foi claramente o ponto de vista, por exemplo, dos editores de jornais
F
franceses, e anteriormente a este caso especfico do Charlie Hebdo, os jornais dinamarqueses
I
L
em 2006 com um caso similar. Os responsveis e os representantes polticos destes pases
O
S
se recusaram pedir desculpas, fundamentados no fato de que a funo do governo no
O
F
aquela de impor uma ordem de silncio sobre o que pode e o que no pode ser dito baseado
I no que algumas pessoas podem ou no achar ofensivo. Uma mxima, comumente atribuda
A
a Voltaire, mas que pertence a Evelyn Hall, conhecida pelo pseudnimo Tallentyre, sintetiza
P
O perfeitamente este posicionamento: Eu discordo do que voc diz, mas vou defender at a
L
morte seu direito de o continuar dizendo (TALLENTYRE, 1906, p. 199). Esta uma linha de
T
I pensamento liberal respeitvel, que vai de Locke a John Stuart Mill. provvel que muitos de
C
A ns estejamos inclinados a concordar com esse ponto de vista. Todavia, h algo poderoso e
UNIDADE 2 TPICO 3 231

verdadeiro sobre o que Rousseau tem a dizer sobre isso, sobre este tipo de problema.

O pensamento liberal de Locke foi dirigido s pessoas que vivenciaram o cadinho da


guerra civil, um sculo de conflito religioso, e estavam procurando uma maneira de resolver
suas diferenas religiosas e polticas. A tolerncia, de muitas maneiras, uma virtude liberal,
porque nos obriga a distinguir entre crenas que podemos tomar com a maior seriedade em
nossa vida privada e, no entanto, suspend-las ou p-las de alguma forma entre parnteses,
o que no significa abrir mo delas, uma vez que entramos no mundo pblico. Isso, em muitos
aspectos, a virtude liberal peculiar da autoconteno ou abnegao, que a recusa de permitir
que o nosso prprio ponto de vista moral domine o espao pblico. Mas uma coisa , voc
poderia dizer, tolerar outros pontos de vista e outra coisa conceder-lhes respeito e estima.
Isso parece ser algo muito diferente do que Locke falou. Tolerar significa simplesmente no
perseguir, deixar em paz, enquanto que o respeito a algo requer que o estimem. Voc pode
se perguntar: "Ser que devemos estimar e respeitar valores e pontos de vista que ns no
compartilhamos?" Isso parece muito diferente do tipo de entendimento liberal de tolerncia,
que significa apenas estender aceitao s vises diferentes das nossas. Pois, exatamente
por isso que no exige a autocensura, ou seja, censurar os nossos prprios pontos de vista
baseado na possibilidade de serem desrespeitosos ou ofensivos para os outros.

Este um tema realmente muito vasto. Utilizamos esta oportunidade para nos afastar de
Rousseau um pouco, com o intuito de contrastar o seu posicionamento. Retornando agora ao
conceito rousseauniano de amour-propre, podemos afirmar que este desejo de ser estimado,
reconhecido, e de ter seus valores e pontos de vista estimados por aqueles ao seu redor
na verdade uma paixo violenta e incontrolvel. uma paixo muito parecida com o thumos
de Plato, a impetuosidade ou irascibilidade, como j discutido na Unidade 1, ao falarmos
sobre a Repblica. uma paixo que nos faz arder de raiva perante as desconsideraes
percebidas e nos leva, tambm, a arriscar nossas vidas e a pr em perigo a vida dos outros
para corrigir o que acreditamos ser atos de injustia. Como Plato, Rousseau quer saber se
o amor-prprio puramente uma paixo ou disposio negativa, ou se, tal como o thumos,
ele pode ser redirecionado para alcanar bens e benefcios sociais. Tudo isso est implicado
nesse curto espao de discusso sobre o amour-propre no Segundo Discurso. Portanto, muito
do relato posterior de Rousseau sobre a civilizao e seu descontentamento se desenvolve a
partir desta paixo e disposio psicolgica peculiar.
F
I
L
O
S
O
F
3.2 O mal-estar na civilizao I
A

P
O
Vamos discutir um pouco mais sobre o mal-estar na civilizao. No filme de Woody L

Allen, Noivo neurtico, noiva nervosa (1977), h uma cena em que ele diz: Eu sinto que a T
I
vida dividida entre o horrvel e o miservel. So estas as duas categorias. O horrvel so, sei C
A
232 TPICO 3 UNIDADE 2

l, os casos terminais, as pessoas cegas e aleijadas, Allen continua, Eu no sei como elas
conseguem passar pela vida. Me deixa maravilhado. E os miserveis so todos os outros.
Ento voc deve agradecer por ser miservel, porque uma sorte ser miservel (NOIVO...,
1977, traduo nossa). Rousseau quer que sejamos miserveis. Ele nos quer sentindo o quo
ruim as coisas esto, o quo ruim ns somos, o quo desventurados somos (ROUSSEAU,
1999b, pp. 186-187, 213). A nica exceo a esta misria humana geral o incio da sociedade
primitiva. Essas sociedades descritas por ele, no bem o estado de natureza, mantinham uma
espcie de posio intermediria entre o estado de natureza puro e ao desenvolvimento das
condies modernas. Ele diz que deve ter sido a poca mais feliz e duradoura (ROUSSEAU,
1999b, p. 212), estas foram as sociedades mais felizes e as melhores para o homem. Foi no
homem primitivo, e no no selvagem puro do estado de natureza, onde Rousseau encontrou
um equilbrio feliz entre os nossos poderes e as nossas necessidades que, segundo ele,
a receita para a felicidade, levar os nossos poderes e as nossas necessidades ao equilbrio.
Mas, o fim daquele estado de felicidade emergiu com duas invenes, duas descobertas: A
metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja inveno produziu essa grande revoluo
(ROUSSEAU, 1999b, p. 213).

Com a agricultura veio a diviso de terras, a diviso da propriedade e as desigualdades


subsequentes. Com a metalurgia veio a arte da guerra e da conquista (ROUSSEAU, 1999b,
p. 213-221). Com estes dois acontecimentos, ele nos diz, a humanidade entrou em uma nova
fase, aquela em que as leis e as instituies polticas tornaram-se necessrias para adjudicar
os conflitos sobre os direitos. Mas o estabelecimento de governos, implicado neste processo,
em vez de trazer a paz, como sugeriram Hobbes ou Locke, teve o efeito de simplesmente
sancionar as desigualdades existentes que tinham comeado a se desenvolver. Para Rousseau,
h algo de profundamente revoltante e perturbador na constatao de que os homens que
antes eram livres e iguais so to facilmente conduzidos a consentir com as desigualdades de
propriedade e deixar-se governar pelo mais forte, aquele a quem o governo traz existncia.
O contrato social, como apresentado por ele no Segundo Discurso, realmente um tipo de
fraude. O estabelecimento de um governo um tipo de embuste que os ricos e os poderosos
usam para controlar os pobres e os despossudos. Ao invs de instituir a justia, este pacto
apenas legitima usurpaes passadas. O governo um conto do vigrio, um engano ardiloso,
que o rico lana sobre o pobre. O poder poltico simplesmente contribui para legitimar as
F
desigualdades econmicas. Os governos, ele nos diz, podem operar por consentimento, mas
I
L
os consentimentos que lhe so atribudos so baseados em falsidades e mentiras. De que
O
S
outra forma se pode explicar por que os ricos vivem vidas que so muito mais livres, de modo
O
F
muito mais fcil, muito mais abertas ao prazer e ao deleite do que os pobres? Essa a crtica
I real e verdadeira questo de Rousseau (1999b, p. 220-243).
A

P
O o estabelecimento de um governo, que o ltimo elo da cadeia da histria conjectural
L
de Rousseau, que legitima as desigualdades que foram criadas aps a nossa emergncia
T
I da condio natural. Mas o que mais doloroso para Rousseau o surgimento de um novo
C
A tipo de ser humano que este estgio da civilizao trouxe existncia. Rousseau um dos
UNIDADE 2 TPICO 3 233

primeiros a usar o termo burgus/burguesia da maneira carregada e poderosa que se tornou


muito comum nos prximos dois sculos. O burgus uma inveno de Rousseau e o mais
impressionante sobre este tipo humano para ele a necessidade que este tem de parecer ser
uma coisa quando, na verdade, outra coisa. Podemos retornar aqui e pensar na forma como
Plato ou Scrates usavam essa distino entre a aparncia e o ser, quando ele discursa sobre
o homem justo no Livro II da Repblica, algum que parece ser justo e algum que justo.
esta tenso entre os dois que to central para descrio de Rousseau do que ele chama
de o burgus ou a burguesia. "Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes,
e dessa distino provieram o fausto imponente, a astcia enganadora e todos os vcios que
lhes formam o cortejo (ROUSSEAU, 1999b, p. 217). Vale a pena observar nesta citao,
que Rousseau sugere, que antes do surgimento deste novo tipo humano, antes dos efeitos
da sociedade no homem, a dicotomia aparncia/essncia no existia, e que o surgimento da
mesma acarreta consequncias nefastas.

NOT
A!

Um dos temas centrais das abordagens de filosofia e filosofia
poltica contempornea a superao da dicotomia essncia/
aparncia. Como podemos ver no movimento Pragmatista, com
John Dewey e no Neopragmatismo, com Richard Rorty.

No penltimo pargrafo do Segundo Discurso, Rousseau descreve o dilema da burguesia


da seguinte maneira. Ele diz: Tal , de fato, a verdadeira causa de todas essas diferenas: o
selvagem vive em si mesmo; o homem socivel [o burgus], sempre fora de si, s sabe viver
na opinio dos outros e , por assim dizer, do juzo deles que lhe vem o sentimento de sua
prpria existncia. (ROUSSEAU, 1999b, p. 242)

Pondere um pouco sobre a citao acima. Ela est prxima do final do livro e diz que
na sociedade ns somente vivemos atravs das opinies dos outros, atravs do olhar dos
outros, atravs do que os outros pensam sobre ns. Ns estamos constantemente fora de
ns mesmos, ausentes para o nosso prprio sentimento de existncia, somos homens sem
F
contedo, somos inautnticos. O nosso sentimento de self e o sentido da nossa existncia na I
L
verdade vm inteiramente do juzo daqueles que nos rodeiam. O
S
O
F
O burgus, em outras palavras, algum que vive nas e atravs das opinies, das I
A
boas opinies dos outros, que s pensa em si mesmo quando ele est com outras pessoas
P
e s pensa nas outras pessoas quando ele est sozinho. Tal pessoa um dplice, hipcrita e O
L
falso. Condio magistralmente capturada no romance de Fidor Dostoievski, O Duplo (2013),
esculpida no personagem de Golyadkin, cujo nome deriva do termo miservel. Observe um T
I
trecho da anlise que Malcom Jones faz deste personagem dostoievskiniano e que toca no C
A
234 TPICO 3 UNIDADE 2

mago do homem burgus rousseauniano:

Golyadkin oprimido por um mito de normalidade em que as outras pessoas


so fortes, bem-sucedidas, confiantes, interessantes e poderosas, e onde
ele parece fracassar em toda curva apesar de seus extenuantes esforos
para cumprir a imagem mais normal. Sentindo, correta ou incorretamente,
que outras pessoas imediatamente percebem estes esforos de uma criatura
pattica, inadequada, inferior, ele desmorona em uma absurda caricatura da
imagem que procura projetar (JONES, 1990, p. 42 apud VIEIRA, 2010, p.21).

Este o verdadeiro mal-estar na civilizao, o que a nossa perptua inquietao


e reflexividade fizeram de ns. Aguilhoados perpetuamente pelo amour-propre, esta a
misria particular que a civilizao nos legou. Portanto, a pergunta no final do livro : o que
fazer sobre isso? necessrio admitir que o Segundo Discurso fica aqum de uma resposta
concreta a esta questo. O livro termina com uma nota de desespero incomensurvel, pois
no oferece nenhuma resposta positiva para curar o problema da civilizao. Conseguimos
apenas perceber duas pistas que apontam para solues possveis. Uma pista sugerida pela
carta dirigida Repblica de Genebra (1999d), que praticamente o prefcio do livro. Talvez a
maior aproximao ao estado precoce da sociedade primitiva, aquele elogiado por Rousseau,
so as pequenas repblicas rurais isoladas como Genebra, onde uma espcie de patriotismo
simples e amor ptria no tenham sido completamente dominados pelas agitaes do amour-
propre. Somente em uma democracia bem temperada, um Estado bem governado (1999d,
p. 137) como Genebra possvel que os cidados ainda desfrutem um pouco da igualdade
do homem natural. Democracia para ele, esse tipo de simples democracia rural como a de
Genebra, a condio social que mais se aproxima da igualdade do estado de natureza e
que, obviamente, um tema no qual Rousseau vai se debruar intensamente em seu livro O
Contrato Social (1996).

Rousseau oferece outra pista para encontrarmos uma soluo ao problema da civilizao.
O Segundo Discurso nos leva a acreditar que toda a sociedade um estado de escravido e
de alienao da natureza, do nosso verdadeiro ser. Perdemos a nossa verdadeira humanidade,
aquela descrita por ele no estado de natureza, que era composta de nossas capacidades
piedade e comiserao e similares. A resposta a este problema da sociedade o retorno raiz
da prpria sociedade. Esta raiz da sociedade no apenas a necessidade de autopreservao,
F
I
mas um sentimento primordial, que referido foi em uma passagem citada acima, o sentimento
L
O
de existncia, o sentimento da nossa prpria existncia. Rousseau descreve este processo
S
O
da seguinte maneira: Sua alma, que nada agita, entrega-se apenas ao sentimento de sua
F existncia atual, sem nenhuma ideia do futuro, por mais prximo que possa ser, e seus projetos,
I
A limitados como as suas vistas, mas se estendem ao fim do dia (ROUSSEAU, 1999b, p. 176).
P Ou seja, ao render-se a este sentimento da existncia, sem um pensamento preso ao futuro,
O
L sem a preocupao ou o medo, o indivduo retorna psicologicamente ao estado natural. Apenas

T algumas poucas pessoas (e Rousseau escreve que ele uma delas, claro) so capazes
I
C de encontrar o seu caminho de volta natureza. O tipo de ser humano que pode encontrar
A
UNIDADE 2 TPICO 3 235

o seu caminho de volta ao tipo de sentimento puro da existncia no ser um filsofo, no


ser uma pessoa com capacidade reflexiva de alto nvel como Scrates, mas o mais provvel
que ser um artista ou um poeta. Sua afirmao de superioridade no baseada em uma
compreenso mais elevada, mas em uma sensibilidade superior, menos voltada sabedoria do
que comiserao. Rousseau acreditava ser uma dessas pessoas. Talvez voc tambm seja
uma destas pessoas. Mas isso requer que voc, de alguma forma, se distancie rigorosamente e
psicologicamente de todas as possibilidades da sociedade para voltar-se ao seu prprio interior,
e foi essa viagem ao interior que Rousseau empreendeu e relatou de modo to surpreendente
em suas Confisses (2008a) e em seu ltimo livro, Os Devaneios do caminhante solitrio
(2008b). Nestas obras voc encontra o Rousseau fundador da disposio romntica, o qual
inspirou tantos outros escritores e poetas que olharam para dentro de si e buscaram, de alguma
forma, um retorno natureza, ao seu self natural em oposio sociedade.

3.3 O Contrato Social

Entretanto, o Segundo Discurso deixa-nos com um paradoxo. O progresso da civilizao


responsvel por todas as nossas misrias. Sim, a culpa da sociedade, no uma culpa
do indivduo particular. a sociedade, ele deixa isso explcito, e ainda assim ele tambm
nos deixa sem qualquer sada concreta deste problema. Ele nega que possamos, como uma
soluo prtica, retornar s formas mais simples e naturais de associao poltica, mas como
ento que vamos resolver o problema com o qual ele nos deixou? A resposta poltica de
Rousseau ao problema da sociedade est contida em seu livro chamado O Contrato Social
(1996, 1999c), Du Contrat Social, publicado em 1762, sete anos aps o Segundo Discurso.
Aqui ele tenta dar uma resposta ao problema descrito acima. Todavia, observe que usamos os
termos tenta e uma ao nos referirmos sua resposta, porque o que ele escreve nesta obra
no a resposta nica ou final, mas uma resposta possvel para os problemas da desigualdade
e para a aguilhoada do amour-propre.

O Contrato Social comea com uma das frases mais famosas de toda a histria da filosofia
poltica, "o homem nasceu livre, e no obstante, est acorrentado em toda a parte (1999c, p.
F
25). Uma dica para voc quando for escrever um artigo ou ensaio, sempre comece com uma I
L
assero boa e forte assim. Rousseau sabia disso, ele sabia como escrever. A frase parece O
S
estar em perfeita consonncia com o Segundo Discurso. No estado de natureza, nascemos O
F
livres, iguais e independentes. S na sociedade que nos tornamos fracos, dependentes e I
escravizados. Mas, o que se segue aps essa frase que surpreendente. Como que se A

deu essa mudana?, Rousseau pergunta, Ignoro-o. O que pode legitim-la? Creio poder P
O
resolver esta questo (ROUSSEAU, 1996, p. 9). Aqui ele se refere legitimao das cadeias L

nas quais o homem, aps nascer livre, fica acorrentado em toda a parte. No Segundo Discurso, T
I
ele havia tentado deslegitimar completamente os laos da sociedade, descrevendo como o C
A
236 TPICO 3 UNIDADE 2

contrato social e a criao de governo no passava de uma fraude ardilosa. Agora, nO Contrato
Social, ele faz a pergunta: "O que pode dar a essas cadeias ou laos legitimidade moral?" Ele
diz acreditar que pode responder a isso. Ser que Rousseau sofreu uma mudana macia em
seu pensamento nos sete anos que se passaram entre esses dois livros? Provavelmente no,
mas esta uma de suas possveis respostas questo fundamental. Antes de entrarmos nos
detalhes, vamos considerar algumas das diferenas entre estas duas obras marcantes.

O Segundo Discurso, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade


entre os homens, apresenta-se como uma histria hipottica ou conjectural do desenvolvimento
humano, a partir do estado de natureza ao estado civil. Foi escrito em uma linguagem vvida,
razo pela qual muitas vezes considerada uma das obras mais poderosas de Rousseau. Esta
linguagem vvida se entrelaa com as cincias biolgicas de sua poca e com o conhecimento
recm-descoberto de espcies animais como os orangotangos e outros tipos de investigaes
antropolgicas realizadas com os povos caribes e com os povos da Amrica do Norte. O
Contrato Social, pelo contrrio, est escrito de modo seco, at mesmo com uma linguagem
que se assemelha a ensaios jurdicos. uma escrita que poderia ser classificada no gnero
de um documento legal. Seu subttulo : Princpios do Direito Poltico. uma obra de
grande abstrao filosfica cujos conceitos centrais so abstraes, como, o contrato social,
a vontade geral, e assim por diante. O livro, ele nos diz em um curto prefcio, foi extrado de
uma obra mais extensa, empreendida outrora sem nenhuma consulta s minhas foras e de h
muito abandonada (ROUSSEAU, 1996, p. 3), ou seja, era originalmente parte de uma longa
investigao poltica que fora abandonada. Alm disso, O Contrato Social parece apresentar-
se como uma utopia, uma cidade ideal, em alguns aspectos como uma resposta Kallipolis
da Repblica de Plato, todavia esta aparncia utpica pode enganar.

A obra comea mesmo antes da famosa frase sobre o homem que nasceu livre, ela
prefaciada por uma declarao que poderia ter vindo diretamente dO Prncipe de Maquiavel.
"Considerando os homens tais como so e as leis tais como podem ser, Rousseau diz:
"Procurarei sempre, nesta investigao, aliar o que o direito permite ao que o interesse
prescreve, a fim de que a justia e a utilidade no se encontrem divididas (ROUSSEAU, 1996,
p. 7). Voc deve lembrar do dcimo quinto captulo dO Prncipe, quando Maquiavel diz para
irmos ao encalo da verdade efetiva das coisas, em vez de ceder mera fabulao sobre as
F
mesmas, no ir em busca do que imaginamos ser, mas de como as pessoas realmente so
I
L
(MAQUIAVEL, 2009a, p. 146). Rousseau nos diz que no vai comear fazendo pressupostos
O
S
heroicos sobre a natureza humana, nenhum voo metafsico extravagante, mas vai ficar no
O
F
terreno mais baixo, porm mais firme dos fatos reconhecidos. O que ele quer dizer com isso
I e quais so esses fatos da natureza humana, os homens tal como eles so, que Rousseau
A
afirma descrever nO Contrato Social? Chegamos agora premissa bsica do livro. A premissa
P
O bsica a partir da qual todo O Contrato Social se desenrola a afirmao de que o homem
L
nasce livre. Todas as relaes posteriores de hierarquia, obrigao e autoridade so o resultado
T
I no da natureza, mas de acordos ou convenes. Toda a sociedade e os laos morais que a
C
A constituem so convencionais por via de acordos. No h nada de natural em qualquer aspecto
UNIDADE 2 TPICO 3 237

do contrato social. A partir dessa base do homem como um agente livre, pois nascemos livres,
Rousseau tenta elaborar um sistema de justia.

Os Princpios de Direito Poltico, como dissemos, o subttulo e sugere que apropriado


aos seres humanos serem concebidos como agentes livres e responsveis por si mesmos.
Mas como podemos fazer isso? A filosofia poltica de Rousseau comea, pelo menos ele assim
acredita, com a suposio realista ou at mesmo emprica de que cada indivduo tem um
profundo interesse em garantir as condies de sua prpria liberdade. O estado de natureza e
o contrato social pressupem indivduos que esto competindo uns com os outros e cada um
tentando garantir as condies para a sua prpria liberdade. Ele no pressupe altrusmo por
parte de qualquer ser humano ou qualquer outro tipo de caracterstica que aluda considerao/
estima interpessoal, o que chamamos acima de pressupostos heroicos. Ele no faz a suposio
de que agimos pelos interesses dos outros. Estamos egoisticamente preocupados com a
nossa prpria liberdade e os melhores meios de preserv-la e proteg-la. O problema, claro,
que no estado de natureza o desejo de preservar minha liberdade entra em conflito com o
desejo egosta de todos os outros para preservarem suas prprias liberdades. O estado de
natureza torna-se rapidamente um estado de guerra com base nesses desejos conflitantes e
contraditrios. Ento, como podemos preservar nossa liberdade sem cair na anarquia, que
o estado de guerra? Esta a pergunta que O Contrato Social se prope responder e para a
qual sua conhecida formulao do que ele chama de Vontade Geral, a soluo. Portanto,
vamos agora falar sobre a vontade geral e como Rousseau a v como uma espcie de resposta
coletiva para o problema de garantir, de assegurar a liberdade individual.

4 O Contrato Social e a vontade geral

A vontade geral pode ser considerada a mais importante contribuio de Rousseau


cincia poltica. a sua resposta aos problemas da civilizao ou o problema poltico do
Segundo Discurso, os problemas da desigualdade, o problema do amour-propre, o problema do
nosso mal-estar geral. O contrato social a sua resposta para o problema da liberdade natural,
porque, para Rousseau, a natureza no prov normas ou diretrizes para determinar quem deve
F
governar, a ordem social um direito sagrado, que serve de base para todos os demais. Tal I
L
direito, entretanto, no advm da natureza; funda-se, pois, em convenes (ROUSSEAU, O
S
1996, p. 9). Ao contrrio de Aristteles, o homem aqui no um animal poltico, e observe O
F
que, quando Rousseau fala do contrato social na vontade geral, como o fundamento de toda I
A
autoridade legtima, ele literalmente quer dizer que todos os padres de justia e de direito tm
P
suas origens na vontade, nessa propriedade humana singular, a vontade ou agncia livre. A O
libertao da vontade de todas as fontes ou normas transcendentes, sejam estas encontradas L

na natureza, nos costumes, na revelao, ou em qualquer outra transcendncia, o centro T
I
de gravidade da filosofia de Rousseau. um mundo que comea a enfatizar a primazia e C
A
238 TPICO 3 UNIDADE 2

a prioridade da vontade, um ponto de vista moral que conforme indicaremos mais adiante,
encontra a sua maior expresso na filosofia de Immanuel Kant.

Dada a concepo libertria da natureza humana de Rousseau, sua descrio do real


mecanismo do contrato social poder vir como algo inesperado. O problema, para o qual a
frmula da vontade geral a resposta, afirmado sucintamente por Rousseau no Livro I,
captulo 6 do Contrato Social. "Encontrar uma forma de associao", escreve ele, "que defenda
e proteja com toda a fora comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada
um, unindo-se a todos, s obedea, contudo, a si mesmo e permanea to livre quanto antes
(ROUSSEAU, 1996, p. 20, I, 6). Este o problema fundamental para que o contrato social seja
a soluo. Entretanto, a declarao citada acima realmente contm duas partes que merecem
uma ateno especial. A primeira parte diz que o objetivo do contrato proteger e defender com
a fora comum os bens e a pessoa de cada associado. Este ponto totalmente coerente com a
afirmao de Locke ou at mesmo a afirmao de Hobbes de que o propsito da sociedade
proteger a segurana, a vida, a liberdade e a propriedade de cada um dos seus membros. No
entanto, Rousseau acrescenta a esta clusula lockeana ou liberal, uma segunda reivindicao
que mais distintamente rousseauniana. Ou seja, o contrato deve garantir no s as condies
de proteo mtua e a preservao do self e da propriedade, mas que ao unir uns aos outros,
cada pessoa deve obedecer apenas a si mesma e, em seguida, ele diz, que permanece to
livre como antes". Mas como isso possvel, queremos saber. No a essncia do contrato
social que desistamos de alguma parte da nossa liberdade natural para garantir a paz e a
segurana mtua? Como podemos permanecer to livres como ramos antes, e alm disso
cada um obedecer apenas a si mesmo?

Este o paradoxo ou o problema fundamental, para o qual o seu contrato uma


soluo. Rousseau fornece uma resposta da seguinte forma, ele diz: "Bem compreendidas,
essas clusulas se reduzem todas a uma s, a saber, a alienao total de cada associado,
com todos os seus direitos, a toda a comunidade (ROUSSEAU, 1996, p. 21). Essas duas
partes, a "total alienao" e "toda a comunidade" so obviamente centrais aqui. Em primeiro
lugar, todas as pessoas devem entregar-se inteiramente ao contrato social para garantir que
os termos do acordo sejam iguais para todos. A clusula de total alienao, por assim dizer,
a maneira de Rousseau garantir que os termos do contrato so os mesmos para todos. Mas,
F
por outro lado, quando nos alienamos de ns mesmos, crucial, diz ele, que isso seja feito ou
I
L
entregue a toda a comunidade, pois s assim o indivduo no se sujeita a qualquer vontade
O
S
privada, associao particular, ou a alguma outra pessoa, mas somente vontade geral, a
O
F
vontade de toda a comunidade.
I
A
O contrato social o fundamento da vontade geral que , para Rousseau, o nico
P
O soberano legtimo. Nem os reis, nos os parlamentos, nem as assembleias representativas, nem
L
os presidentes, mas a vontade geral de toda a comunidade o nico soberano geral, esta
T
I a famosa doutrina que chamamos de a soberania do povo ou a soberania popular. Uma vez
C
A que todos se renem para formar esta vontade, quando nos entregamos a ela por completo,
UNIDADE 2 TPICO 3 239

no fazemos nada mais do que obedecer a ns mesmos. O soberano, em outras palavras,


no um terceiro distinto que criado pelo contrato, mas sim o soberano simplesmente
o povo como um todo agindo em sua capacidade coletiva. Agora, voc pode sugerir que h
uma profunda incongruncia aqui. Ou seja, a partir de um conjunto de premissas altamente
individualistas onde cada pessoa, no estado de natureza ou na tradio pr-contratual, se
preocupava apenas com a proteo de suas vidas, das pessoas e dos bens, Rousseau nos
conduz, ao menos aparentemente, a uma concluso altamente regulamentada e coletivizada,
onde o indivduo abre mo praticamente de todo o seu ser vontade da comunidade. De que
forma isso nos torna to livres quanto ramos antes? De que maneira permanecemos livres
e obedecemos somente a ns mesmos? Isso parece ser o problema. A frmula de Rousseau
para a vontade geral uma receita para a liberdade ou uma receita para a tirania da maioria?

Rousseau quer dizer, paradoxalmente, que s atravs desta total alienao que vamos
permanecer livres. Por que isso? Porque ele quer argumentar que ningum dependente da
vontade de outro. O povo estabelece atravs de seu ato um novo tipo de soberano, a vontade
geral, que estritamente falando, para Rousseau, no a soma total ou o total aditivo das
vontades individuais ou das partes individuais, mas mais parecido com o interesse geral ou
a vontade racional, se voc quiser usar esse tipo de formulao kantiana, a vontade racional
de uma comunidade. J que todos ns contribumos para a formao dessa vontade geral,
quando obedecemos s suas leis, fazemos nada mais do que obedecer a ns mesmos.
Rousseau descreve assim este novo tipo de liberdade que alcanamos sob a vontade geral.
Ele quer dizer que isso traz, de certa forma, uma transformao radical natureza humana
em si. A liberdade do cidado sob a vontade geral no a liberdade do estado de natureza,
no a liberdade de fazer qualquer coisa que quiser, qualquer coisa que a nossa vontade e o
nosso poder nos permitem fazer, mas um novo tipo de liberdade, que ele chama de liberdade
moral, a liberdade para fazer o que a lei ordena.

A passagem do estado de natureza ao estado civil, ele escreve, produz no homem uma
mudana considervel, substituindo em sua conduta o instinto pela justia e conferindo s suas
aes a moralidade que antes lhes faltava (ROUSSEAU, 1996, p. 25, I, 8). Rousseau continua
essa declarao como segue: "O que o homem perde pelo contrato social a liberdade natural
e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcanar. O que ele ganha a liberdade
civil e a propriedade de tudo o que ele possui. Mas, o argumento fundamental ou a clusula
F
crucial, ele escreve no prximo pargrafo da mesma passagem: Sobre o que precede, isto I
L
, a liberdade civil, poder-se-ia acrescentar s aquisies do estado civil a liberdade moral, O
S
a nica que torna o homem verdadeiramente senhor de si, ele afirma, porquanto, o impulso O
F
do mero apetite escravido, e a obedincia lei que se prescreveu a si mesmo liberdade I
A
(1996, p. 26, I, 28). Essa uma afirmao notvel, a obedincia lei que se prescreveu a si
P
mesmo liberdade. Essa a liberdade moral que s criada e possvel atravs do contrato O
L
social, e as implicaes morais e polticas dessa declarao so enormes. particularmente
neste ponto que Rousseau se distancia mais dramaticamente de seus antecessores modernos. T
I
C
A
240 TPICO 3 UNIDADE 2

Considere o seguinte. Para Hobbes e Locke, a liberdade significava aquela esfera


da conduta humana que no era regulamentada pela lei. Lembre-se do captulo 21 do Leviat,
onde Hobbes diz: "Quanto s outras liberdades, dependem do silncio da lei. Nos casos em que
o soberano no tenha estabelecido uma regra, o sdito tem a liberdade de fazer ou de omitir,
conformemente sua discrio (2003, p. 187). Ou seja, onde a lei for omissa, o cidado
livre para fazer sempre o que ele ou ela escolher. A liberdade comea, por assim dizer, onde a
lei omissa. Mas, para Rousseau, a lei o incio de nossa liberdade. Quando a lei for omissa,
podemos ter um tipo de liberdade natural, mas no a nossa liberdade moral, somos livres na
medida em que somos participantes nas leis que, por sua vez, devemos obedecer. Liberdade
significa agir em conformidade com leis autoimpostas. Uma compreenso radicalmente diferente
sobre o que consiste a liberdade e parece sublinhar a diferena entre Hobbes e Locke de
um lado, e Rousseau de outro. uma diferena entre duas concepes muito diferentes de
liberdade. Poderamos cham-los de liberais e republicanos, respectivamente, republicano com
"r" minsculo ou at mesmo democrtico. Para os liberais, seguindo a tradio de Hobbes e
Locke, a liberdade sempre significou uma esfera de privacidade, onde a lei no se intromete
ou onde outras pessoas no se intrometem. por isso que a separao da esfera pblica e
da esfera privada sempre foi to sagrada para os liberais, porque s na esfera privada, s
nessa rea da sociedade civil em que o Estado no pode se intrometer, o indivduo realmente
e verdadeiramente livre. Mas, para a teoria republicana da liberdade, da qual Rousseau
o expoente moderno mais poderoso, essa separao entre pblico e privado apenas um
exerccio do egosmo privado. Ao invs disso, o objetivo criar uma comunidade onde o indivduo
e o interesse pblico no esto em conflito um com o outro, onde o indivduo no pensa em si
mesmo como um ser parte do corpo social. Esta a liberdade do cidado, para Rousseau,
que assume um papel ativo na determinao das leis da prpria comunidade.

O propsito de Rousseau ao dizer e ao escrever isso parece ser o de trazer de volta


vida um conceito que ele acredita que estava dormente durante sculos, o conceito de
cidado. Os ltimos povos que realmente sabiam o que significava ser um cidado, diz ele,
foram os romanos. Em uma nota de rodap do Livro I, captulo 6, ele indica que o verdadeiro
sentido dessa palavra perde-se quase por completo entre os modernos; a maioria considera
um burgo [ville] como uma Cidade [cit], e um burgus como um cidado (ROUSSEAU, 1996,
p. 22). Pense nisso. A maioria confunde um burgus com um cidado. O mundo moderno
F
no oferece quase nenhum exemplo do que um cidado, e por isso que necessrio que
I
L
Rousseau se volte s histrias da Antiguidade, especialmente as de Roma e de Esparta para
O
S
encontrar modelos de cidadania. Somente nessas sociedades se pode encontrar o esprito de
O
F
autossacrifcio e a devoo ao bem comum, uma espcie de devoo patritica sobre a qual a
I cidadania fundada. O exemplo mais memorvel de Rousseau do verdadeiro cidado se trata
A
de um exemplo que ele cita do escritor romano Plutarco, e que ele usa nas pginas de abertura
P
O de seu livro, Emlio ou da educao (1997), que esperemos que voc tenha a oportunidade
L
de ler em algum momento.
T
I
C
A Aqui, ele conta uma histria inesquecvel para quem l Emlio.
UNIDADE 2 TPICO 3 241

Uma mulher de Esparta tinha cinco filhos no exrcito, aguardava notcias da


batalha. Chega um hilota; ela pede-lhe, trmula, informaes: Vossos cinco
filhos morreram. Vil escravo, perguntei-te isso? Alcanamos a vitria! A
me corre ao templo e rende graas aos deuses. Eis a cidad. (ROUSSEAU,
1997, p. 13)

Eis a cidad, para Rousseau. Um exemplo que ao mesmo tempo terrvel e sublime, que
exatamente o que ele pretende expressar. Este o exemplo do que o verdadeiro cidado. A
questo, quando se considera esta possibilidade, saber se a ideia de Rousseau da liberdade
do cidado, a liberdade de viver sob a lei autoimposta, leva a uma forma superior de nobreza,
mais elevada do que o tipo de busca vulgar do prprio autointeresse. Ele quer dignificar a
poltica novamente, conduzindo-a a uma forma superior de nobreza, ou ser que isso resultar
em um novo tipo de despotismo, o despotismo da lei, o despotismo de obedincia vontade
geral? Implicitamente a esta interpretao mais sinistra de Rousseau est a famosa ou talvez
infame mxima, de que a vontade geral no somente a fonte de liberdade, mas que quem a
obedece, ou recusa-se obedecer, a vontade geral pode for-lo a ser livre. Que qualquer um
que desobedece poder ser punido, sendo forado a ser livre. Lembre-se de que esta uma
concepo de liberdade que quase o oposto daquela da tradio liberal. uma concepo
um tanto paradoxal, e Hobbes consegue captar esse aspecto em uma passagem que citamos
nesta Unidade 2 quando discorremos sobre o Leviat, ele destaca um forte contraste com a
posio de Rousseau.

No captulo 21 do Leviat de Hobbes l-se: "Os atenienses e os romanos eram livres,


quer dizer, repblicas livres. Isso no significa", diz ele, "que qualquer indivduo tivesse a
liberdade de resistir ao seu prprio representante: o seu representante que tinha a liberdade
de resistir a um outro povo, ou de o invadir (2003, p. 183). Hobbes diz claramente que a
antiga liberdade era a liberdade do coletivo; no era a liberdade do indivduo. A liberdade das
autoridades, como ele diz, para resistir ou para invadir outros povos. At hoje se encontra
escrita em grandes letras, nas torres da cidade de Lucca, a palavra Libertas, continua
Hobbes, mas ningum pode da inferir que qualquer indivduo l possui maior liberdade, ou
imunidade em relao ao servio da repblica, do que em Constantinopla (2003, p. 183-184).
Ou seja, a liberdade de Hobbes consiste, como ele mesmo diz, na imunidade de servio e por
isso no h razo para acreditar que algum mais livre na cidade republicana de Lucca, que
tem libertas na parede, do que em Constantinopla. Isso parece, h mais ou menos 100 anos
antes de Rousseau, sugerir uma alternativa poderosa para sua viso de liberdade. F
I
L
O
O argumento de Hobbes, tal como o de Rousseau, extremo e provavelmente esta S
O
a fonte do poder desses dois pontos de vista. A viso de Hobbes da liberdade a imunidade F
I
de servio ou quanta imunidade o regime concede a cada um dos seus cidados, a viso de A

Rousseau que a liberdade consiste apenas no servio. A nossa liberdade comea onde a lei P
O
comea. com base nisso que temos duas vises radicalmente diferentes sobre o papel da L

participao poltica no processo legislativo. Para Rousseau, as leis so legtimas desde que T
I
todo mundo tenha uma participao direta na sua elaborao. Isso no significa que todos C
A
242 TPICO 3 UNIDADE 2

estaro de acordo com o resultado, mas apenas que todos tiveram algum tipo de ao ou de
voz em sua elaborao. Para Hobbes, para Locke e para os autores dO Federalista (2003),
por outro lado, a participao direta do cidado no processo legislativo claramente um bem
subordinado ou secundrio. A legislao melhor tratada por pessoas escolhidas a partir do
eleitorado, que so, por assim dizer, os agentes ou representantes do povo. Isso foi o que
os autores federalistas (Hamilton, Madison e Jay) argumentaram que foi o grande avano da
cincia poltica moderna, a doutrina da representao. O que muito mais importante para os
autores federalistas, bem como para Locke, Hobbes e toda esta tradio que as leis sejam
conhecidas geralmente e que sejam aplicadas por juzes imparciais, em vez de ser a expresso
direta da vontade geral. Podemos concluir disso que subjacente concepo liberal da lei
h certa desconfiana em relao sabedoria coletiva, ou soberania coletiva do povo. A
ideia de que muito complicado e tambm muito perigoso um mecanismo que convoque as
pessoas para decidir sobre questes concernentes a assuntos pblicos. Seria melhor se fosse
deixada esta responsabilidade, de acordo com esta tradio, aos representantes. Rousseau,
obviamente, no poderia discordar mais. Voc pode querer argumentar que Rousseau est
novamente fazendo suposies heroicas e descabidas sobre a natureza humana. Por que
quereramos reunir constantemente para decidir, para deliberar e debater sobre questes de
interesse pblico? A maioria das pessoas j tem dificuldade apenas para votar, por que quereriam
se envolver em debates interminveis como, por exemplo, em uma reunio do conselho da
faculdade tentando discutir o que fazer, se comprar ou no determinados itens para as salas
de aula ou para os banheiros. Este poderia ser um debate que perdurasse horas e horas e
talvez at semanas. Ser que as pessoas no querem simplesmente serem deixadas em paz?
Rousseau, mais uma vez, parece fazer suposies descabidas sobre a natureza humana e
sobre a nossa capacidade de nos envolver em debates.

Mas Rousseau vai dizer a voc que ele no est, de modo algum, sendo idealista. Ele
est partindo do pressuposto dos homens como eles de fato so. A no ser que todo mundo
se engaje no processo de legislao, no haver maneira de voc saber se as leis sero a
expresso de sua vontade, em vez de simplesmente a vontade privada ou a vontade corporativa
de algum indivduo ou intermedirio. Sem a participao direta, voc se encontrar em uma
condio de dependncia e escravido da vontade dos outros. E o que est realmente em
questo para Rousseau a liberdade ante a dependncia de alguma faco, algum interesse,
F
ou alguma associao, que podemos hoje chamar de grupos de interesse. O apelo de Rousseau
I
L
no ao nosso altrusmo, mas sim, ao nosso egosmo, de alguma forma. O nosso desejo
O
S
particular ou egosta de preservar a nossa liberdade e resistir dominao intencional de
O
F
outros sobre ela. At agora, tudo isso muito abstrato e Rousseau deliberadamente define o
I seu plano para a vontade geral em uma linguagem altamente abstrata e semitcnica.
A

P
O
L

T
I
C
A
UNIDADE 2 TPICO 3 243

4.1 Aplicaes da vontade geral

Particularmente no Livro III dO Contrato Social (1996, p. 71-122), Rousseau se volta


para questes sobre como esta vontade geral ser realmente aplicada. Como ela aplicada?
Aqui Rousseau mais especfico sociologicamente sobre as condies em que uma vontade
geral pode surgir. Em primeiro lugar, a vontade geral s pode operar em pequenos Estados,
assim como o tamanho de uma antiga repblica. Em um lugar particularmente notvel da obra
O Contrato Social, ele diz que apenas o pas ilha de Crsega hoje um lugar onde a vontade
geral pode ser estabelecida (1996, p. 62). O moderno Estado-nao demasiado grande e
difuso para poder determinar a vontade geral. Os grandes Estados implicaro necessariamente
nveis considerveis de desigualdade social da riqueza e do status, e com tais desigualdades
no pode haver vontade geral. Alm disso, um Estado onde a vontade geral operatria teria
que evitar as tentaes do comrcio e do luxo, pois estas trazem com elas desigualdades em
grande escala. A cidade ideal rousseauniana parece ser um tipo de democracia agrria, uma
pequena sociedade agrria.

No entanto, ao mesmo tempo, podemos ter a impresso de que s uma democracia


direta iria satisfazer os requisitos de Rousseau para a vontade geral, todavia descobrimos que
este no bem o caso. No Livro III (1996, p. 71-122), que esperamos que voc tenha lido com
cuidado, ele mostra uma flexibilidade surpreendente sobre as formas de governo que podem
ser adequadas a diferentes climas, fsicos, topografia e assim por diante. No final do captulo
sobre a democracia, ele observa, "se houvesse um povo de deuses, haveria de governar-se
democraticamente e, em seguida, ele acrescenta, "um governo to perfeito no convm
aos homens (ROUSSEAU, 1996, p. 84, III, 4). Ele ctico sobre a possibilidade de uma
democracia direta. Isso significa, para Rousseau, no s uma democracia onde o povo legisla
e cria a lei, mas onde ele o responsvel tambm pela administrao e pela execuo da lei.
Ele muito ctico sobre este tipo de democracia. As democracias seriam apenas possveis
em circunstncias muito especiais e singulares; caso contrrio, a aristocracia, a monarquia ou
algum tipo de governo misto mais possvel ou at mesmo mais desejvel.

Ele insiste na separao de poderes por muitas das mesmas razes que encontramos F
I
em Locke. As pessoas que elaboram a lei no devem ser as responsveis e incumbidas pela L
execuo e pela aplicao da mesma. Ao longo do Livro III, Rousseau parece estar em dilogo O
S
com um rival annimo a quem ele, s vezes, simplesmente se refere como o autor famoso. O
F
Esse autor, obviamente, Montesquieu, o autor dO Esprito das Leis, obra publicada em 1748, I
A
14 anos antes da publicao dO Contrato Social. Montesquieu era famoso por argumentar
P
que as diferentes formas de governo devem ser adaptadas a diferentes climas, diferentes O
L
geografias e diferentes circunstncias. De muitas maneiras, no Livro III, Rousseau parece
T
indicar ou introduzir uma nfase quase anti-rousseauniana sobre a prudncia, a moderao e a I
C
A
244 TPICO 3 UNIDADE 2

flexibilidade, que parecem em desacordo com as afirmaes dogmticas dos dois primeiros livros
com sua nfase na inviolabilidade absoluta da soberania. Mas o que central para Rousseau
que a autoridade legislativa, em qualquer tipo de constituio e sob qualquer tipo de governo,
seja sempre realizada pelo povo em sua capacidade coletiva. por isso que no captulo 15,
do mesmo Livro, Rousseau rejeita totalmente a legitimidade do governo representativo. Essa
passagem poderia ser considerada como um repdio, no apenas de Locke e sua teoria do
governo representativo, mas tambm do argumento federalista a favor da representao que
seria publicado 25 anos mais tarde, em 1787. Preste ateno na citao a seguir:

A soberania no pode ser representada pela mesma razo que no pode


ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade no se
representa: ou a mesma, ou outra no existe meio-termo. Os deputa-
dos do povo no so, nem podem ser os seus representantes; so simples
comissrios, e nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo no
tenha ratificado diretamente nula, no uma lei. O povo ingls pensa ser
livre, mas est redondamente enganado, pois s o durante a eleio dos
membros do Parlamento; assim que estes so eleitos, ele escravo, no
nada. Nos breves momentos de sua liberdade, pelo uso que dela faz bem
merece perd-la. (ROUSSEAU, 1996, p. 114, III, 15)

A soberania nunca pode ser representada, ela s pode ser expressa pela vontade geral.
A vontade geral no pode ser delegada a outra pessoa. Se voc fizer isso, se voc delegar a
autoridade para fazer as leis, voc est dando o primeiro passo no caminho tirania, porque
voc est dando a algum, a algum corpo parcial ou associao, o poder de fazer a lei acima
e a despeito de voc. A funo de legislar s pode legitimamente ser realizada pelas prprias
pessoas, pelo prprio povo.

4.2 O Legado de Rousseau

Vamos ter de ser extremamente breves sobre o relato de Rousseau do legislador, o


indivduo extraordinrio que era responsvel, no incio dos regimes, de moldar um povo e de
dar vontade geral uma espcie de forma e direo distintiva. Esperamos que voc possa ler
atentamente e debater com seus colegas este tema que aparece no Livro II, especialmente
F
I no captulo sete (1996, p. 49-53). Vamos ter que deixar para outra oportunidade a discusso
L
O
interessante da teologia ou religio civil, que ocupa o tema do ltimo captulo do Livro IV, o
S
O
captulo 8, onde Rousseau fala sobre a maneira pela qual a religio civil deve ser customizada
F
I
ou adaptada para levar amor e obedincia vontade geral. Foi esse captulo, mais do que
A qualquer outra coisa, que levou os livros a serem queimados e proibidos em Genebra e em
P outros lugares, por esta proposta e pelo poderoso ataque ao cristianismo tambm ali presentes.
O
L Vamos deixar todos estes assuntos e suas profcuas discusses de lado aqui, na esperana

T de que voc se debruce sobre eles durante a sua leitura. Agora vamos somente falar sobre
I
C os legados de Rousseau. Usamos deliberadamente essa palavra no plural, os legados,
A
UNIDADE 2 TPICO 3 245

porque no h praticamente nenhuma parte da vida moderna, seja poltica, cultural, intelectual e
moral que de algum modo no contenha o carimbo ou as impresses digitais de Jean-Jacques
Rousseau.

A descrio de Rousseau do legislador, o tipo de fundador poltico que cria um povo, era
para muitos, intimamente ligada Revoluo Francesa e, particularmente, reivindicao dos
revolucionrios de criar uma nova nao, um novo povo, um novo soberano popular na Frana.
Considere as seguintes palavras do famoso revolucionrio Robespierre em sua homenagem
a Rousseau escrita em 1791.

Homem divino voc me ensinou a me conhecer. Enquanto eu ainda era jo-


vem, voc me fez apreciar a dignidade da minha natureza e refletir sobre os
grandes princpios da ordem social. O velho edifcio est desmoronando, o
prtico do novo edifcio est se levantando sobre as suas runas e graas a
voc eu trouxe minha pedra a ele. Receba minha homenagem; to fraca como
ela , deve lhe deleitar: eu nunca lisonjiei os vivos [...] Eu desejo seguir os
teus passos venerveis [...] feliz se, na carreira perigosa que uma revoluo
sem precedentes acaba de abrir ante ns, eu permaneo constantemente fiel
s inspiraes que eu encontrei em seus textos. (ROBESPIERRE, 1986, p.
156-157, traduo nossa)

As pessoas podem dizer-lhe que os escritos de Rousseau no tiveram nenhuma


influncia sobre a Revoluo Francesa, que a Revoluo Francesa foi provocada somente
por crises de po e problemas econmicos e assim por diante. No o que verificamos na
citao acima. Os escritos de Rousseau tinham essa poderosa influncia sobre a ideia de criar
um novo povo e uma nova nao. Portanto, apesar do que parece ser utpico e impraticvel
em sua poltica, Rousseau teve uma profunda influncia sobre a poltica de sua poca. Ele foi
procurado durante a sua vida para escrever constituies para a Polnia e para a Crsega, e,
claro, essa foi a ilha onde uma gerao depois um homem chamado Napoleo Bonaparte
nasceu e tentou, de alguma forma, ampliar o ensino de Rousseau, no apenas para a Frana,
mas para toda a Europa, sob a mira de uma arma. Levar a democracia a toda a Europa sob a
mira de uma arma, ser que isso soa familiar a eventos contemporneos?

Embora o ataque de Rousseau ao governo representativo parea coloc-lo fortemente


em desacordo com a nossa Constituio e de outras repblicas democrticas vigentes, sua
glorificao da repblica rural baseada na igualdade, na simplicidade moral, no ceticismo
sobre o comrcio e o luxo, re-ecoou em escritos de grandes pensadores polticos e estadistas. F
I
Como, por exemplo, nos escritos de Thomas Jefferson, com sua idealizao de uma nao de L
O
pequenos agricultores yeoman ou no ideal pastoral contido nas propostas dos republicanos S
O
radicais dos Oitocentos brasileiros, como Tefilo Otoni (PAULA; STARLING; GUIMARES, F
I
2006). At mesmo, nas propostas dos socialistas utpicos, como o Falanstrio de Charles A
Fourier no Brasil, o Falanstrio do Sa, formado em 1841 por colonos franceses, prximo P
O
atual cidade de So Francisco do Sul, Santa Catarina (GTTLER, 1994). L

T
I
C
A
246 TPICO 3 UNIDADE 2

FIGURA 8 - FALANSTRIO DE CHARLES FOURIER

FONTE: Disponvel em: <http://www.lasalle.es/santanderapuntes/historia_1/movimiento_obrero_


socialismo/falansterio_plano_03.jpg>. Acesso em: 17 fev. 2015.

Tambm certamente perceptvel influncia rousseauniana a qualquer leitor da descrio


de Tocqueville em sua comemorao dos municpios independentes da Nova Inglaterra. O relato
de Tocqueville disso foi diretamente dependente de sua leitura de Rousseau, o experimento
em pequena escala na democracia direta que Tocqueville viu foi um exemplo real de um tipo
de poltica regida pela vontade geral. E quando voc ler os captulos iniciais de A Democracia
na Amrica (2000, 2005), de Tocqueville, sobre as comunas da Nova Inglaterra voc ver
Tocqueville olhando para a Amrica atravs das lentes que foram artesanalmente formadas e
moldadas por Rousseau.

Essa influncia palpvel em uma srie de escritores do sculo XIX tardio. Como Tolstoi,
por exemplo, cuja celebrao da vida camponesa russa foi inspirada por Rousseau, e atravs
de Tolstoi, Rousseau influenciou a criao do movimento kibutz israelense, que tambm foi
fundado por judeus russos que haviam sido influenciados por Tolstoi. Podemos, portanto, ver
aqui uma espcie de ciclo de influncia. Estas pequenas experincias socialistas rurais de
vivncia comunal exibem o mesmo tipo de igualdade, autogoverno, devoo ao bem comum que
Rousseau ajudou as pessoas a imaginarem ser possvel. No entanto, a influncia de Rousseau
F no se limitou poltica. Se ele era um homem divino, como Robespierre o chamou, ele no
I
L era menos do que isso para Immanuel Kant, que alegou que foi sua leitura de Rousseau que
O
S o levou a aprender a respeitar a dignidade e os direitos do homem. Ele chamou Rousseau "o
O
F Newton do mundo moral" (KANT apud CASSIRER, 1999, 41, 70-71). Toda a filosofia moral
I
A de Kant, e esperamos que voc tambm tenha a oportunidade de ler pelo menos a Crtica da
P Razo Prtica em outras disciplinas do curso de filosofia, uma espcie de aprofundamento
O
L e radicalizao do rousseaunismo, com a clara substituio do que Rousseau chamava de

T a vontade geral, transmutada no que Kant chama de a vontade racional e de imperativo


I
C categrico.
A
UNIDADE 2 TPICO 3 247

No foi um menor legado o fato de Rousseau, aps sua morte, tornar-se um heri, tanto
para a revoluo, quanto para a contrarrevoluo, tanto para um reavivamento do republicanismo
ao estilo romano, quanto para o Romantismo. Ralph Waldo Emerson, Henry Davis Thoreau, e
o transcendentalismo americano com a sua venerao da natureza e seus protestos contra o
tipo de influncia da sociedade corruptora e de amortecimento, todas essas pessoas foram os
herdeiros diretos de Rousseau. O ltimo trabalho de Rousseau, um livro chamado Os Devaneios
do Caminhante Solitrio (2008b), preparou o palco para clssicos americanos posteriores,
como Walden Pond e geraes de escritores da natureza que vieram depois dele e imitavam-
no. Apenas pelo afastamento do barulho e dos assuntos da sociedade se pode retornar ao
que precede a sociedade, ao sentimento da existncia, sensao da mera existncia, ao
sentimento de existncia, o Le sentiment de soi, como Rousseau o chama, o sentimento do
self. H um tipo de unio que ele celebra com a natureza, que coloca o caminhante solitrio
ou acima da humanidade ou abaixo dela. Esse tipo de homem prenunciado por Rousseau,
o solitrio, no mais um filsofo em qualquer sentido que possamos entender. Poderia ser
melhor entendido como um artista ou um visionrio. Este pode reivindicar um lugar privilegiado
na sociedade, porque um tipo de pessoa que considera a si mesmo como a conscincia
daquela sociedade. Sua reivindicao por privilgio baseada em uma sensibilidade moral
elevada, em vez de sua sabedoria ou sua racionalidade. esse tipo de individualismo radical, o
desapego radical do solitrio aos interesses da sociedade, que talvez o legado mais profundo
e mais duradouro de Rousseau para ns hoje.

LEITURA COMPLEMENTAR

O Estado segundo a razo

O fato de que todas as variaes do modelo por ns consideradas (e que no esgotam


o nmero das que poderiam ser indicadas) sejam o reflexo de diferentes posies ideolgicas
e tenham, como consequncia, relevantes implicaes polticas, revelou-se com muita clareza
e no necessita de ulteriores comentrios. Deve ser ainda esclarecido que, entre a estrutura
de um modelo e sua funo ideolgica, no subsiste aquele paralelismo perfeito que seramos
tentados a imaginar: o mesmo modelo pode servir para apoiar teses polticas opostas, e a
mesma tese poltica pode ser apresentada com modelos diversos. Trata-se, de resto, do bem
conhecido problema da complexa relao, de modo algum simples e simplificvel, entre a F
I
construo de uma teoria e seu uso ideolgico: relao que desencoraja ou deveria desencorajar L
O
os que buscam correspondncias unvocas (dada tal teoria, tem-se determinada ideologia). S
O
F
I
Ao se escolher como critrio para distinguir as atitudes polticas dos diversos autores A
a resposta que deram velha e sempre recorrente disputa sobre a melhor forma de governo, P
O
podem-se distinguir, grosso modo, trs posies, conforme a preferncia tenha sido dada ao L
governo monrquico (Hobbes), ao democrtico (Spinoza, Rousseau) ou ao constitucional
T
representativo (Locke, Kant). A derivao da construo spinoziana a partir da hobessiana I
C
A
248 TPICO 3 UNIDADE 2

evidente e no de modo algum atenuvel (como tentam fazer os que consideram dever
evitar, para o autor que apreciam, a vergonha da reductio ad Hobbesium). Mas, quando ambos
se empenham em dar uma resposta motivada pergunta sobre a melhor forma de governo
(Hobbes no cap. X do De cive, Spinoza nos captulos VI-IX do Tratado Poltico), chegam a
concluses opostas: para Hobbes, a melhor forma de governo a monarquia, enquanto para
Spinoza a democracia. bastante conhecido o quanto influiu sobre Rousseau o modelo
hobbesiano; mas, do modelo escolhido como guia, Rousseau extrai no as consequncias
polticas de Hobbes, mas as de Spinoza: a definio dada por Spinoza da democracia antecipa
surpreendentemente a frmula de Rousseau: [A democracia] define-se como a unio de todos
os homens que tm coletivamente pleno direito a tudo o que est no poder (Spinoza, Tractatus
theologico-politicus, cap. XVI, Ed. cit., p. 382). Contudo, a construo rousseauniana no
nem a de Hobbes nem a de Spinoza: o modo pelo qual ele figura a distino entre o poder
legislativo e o poder executivo, como distino entre a vontade que delibera e dirige e a mo
que atua, de ntida derivao lockeana. Mas Rousseau defensor da democracia direta,
enquanto Locke defende e racionaliza o regime da monarquia constitucional e representativa.
Sobre a relao Locke-Kant no que se refere forma de governo, no h necessidade de gastar
muitas palavras: quando contrape a repblica no monarquia, mas ao despotismo, Kant tem
em mente o ideal da monarquia constitucional, e no certamente o ideal spinoziano e menos
ainda o rousseauniano da democracia; alis, ele execra a democracia como a pior forma de
governo. Contudo, se examinarmos os elementos singulares da construo, no h dvida de
que alguns deles, em minha opinio os mais significativos a teoria da obedincia absoluta
acompanhada da liberdade de opinio aproximam-se de Spinoza. Kant muito mais estatista
que Locke, apesar da diviso dos poderes, mas ao mesmo tempo menos democrtico que
Spinoza e, naturalmente, que Rousseau, de quem, contudo, mais prximo pelo seu estatismo
e de quem derivou a ideia do contrato originrio como fundamento de legitimidade do poder
e a prpria frmula desse contrato, segundo o qual todos depem sua liberdade externa para
retom-la na condio de membro de um corpo comum (Kant, Metaphysik der Sitten, 47).

No diversa a concluso a que podemos chegar quando examinamos no a soluo


dada ao problema da melhor forma de governo, mas a ideologia poltica expressa em cada
autor: conservadora (Hobbes), liberal (Spinoza, Locke e Kant), revolucionria (Rousseau). O
significado ideolgico de uma teoria depende no de sua estrutura, mas do valor primrio ao
F
qual ela serve: a ordem, a paz social, a segurana, a liberdade individual estreitamente ligada
I
L
propriedade, a igualdade social que se realiza no na liberdade individual, mas na liberdade
O
S
coletiva, e assim por diante. A frmula hobbesiana do pacto de unio desempenha uma funo
O
F
conservadora em Hobbes, radical-revolucionria em Rousseau, enquanto a ideologia liberal
I acolhe e utiliza para a mesma finalidade, respectivamente em Spinoza-Kant e em Locke, duas
A
solues opostas com relao ao problema da obrigao poltica (dever de obedincia ou
P
O direito de resistncia).
L

T
I Todavia, para alm das variaes estruturais, at mesmo nos limites de um nico modelo,
C
A e para alm das divergncias ideolgicas, todas as filosofias polticas que se enquadram no
UNIDADE 2 TPICO 3 249

mbito do jusnaturalismo tm com relao s que as precedem e s que as sucedem uma


caracterstica distintiva comum: a tentativa de construir uma teoria racional do Estado. Nas
primeiras pginas, insistimos no ambicioso projeto da chamada escola do direito natural, a
comear por Hobbes, de elaborar uma tica, uma cincia do direito, uma poltica (ao que se
acrescentar, no final, uma economia), ou, em suma, uma filosofia prtica demonstrativa,
isto , apoiada em princpios evidentes e deduzida desses princpios de modo logicamente
rigoroso. Esse projeto culmina na teoria do Estado, no s porque o Estado, e em geral o direito
pblico, constitui a parte final da teoria do direito e era at ento a parte teoricamente menos
desenvolvida, mas tambm porque aquela a que os prprios jusnaturalistas deram maior
destaque, e que deixou atrs de si maiores marcas, tanto que o jusnaturalismo foi geralmente
considerado como uma corrente de filosofia poltica.

A expresso teoria racional do Estado tem um significado metodolgico, sobre o qual,


depois do que dissemos nas pginas anteriores, no o caso de insistir. Quando muito, ser
necessrio acrescentar que, precisamente na teoria do Estado, manifesta-se mais clara e
mais concretamente do que em qualquer outro terreno o propsito pufendorfiano de separar a
jurisprudncia da teologia. Construir racionalmente uma teoria do Estado significa prescindir
totalmente de qualquer argumento (e, portanto, de qualquer subsdio) de carter teolgico, ao
qual sempre recorrera doutrina tradicional, na tentativa de explicar a origem da sociedade
humana em suas vrias formas; ou seja, em outras palavras, significa buscar explicar e justificar
um fato puramente humano com o Estado partindo do estudo da natureza humana, das paixes,
dos instintos, dos apetites, dos interesses que fazem do homem um ser socivel/insocivel,
ou, em suma, partindo dos indivduos como dir Vico, em tom de condenao, referindo-se
a Pufendorf lanados neste mundo sem cuidado e ajuda divina (G. B. Vico, La scienza
nuova prima, Ed. cit. 18). teoria do Estado como remedium pecatti, Hobbes e, em suas
pegadas, Spinoza contrape a teoria do Estado como remdio para um fato humanssimo,
as paixes humanas, consideradas no como vcios, mas como propriedades da natureza
humana, pertinentes a ela do mesmo modo que natureza da atmosfera so pertinentes o
calor, o frio, a tempestade, o trovo e assemelhados (Spinoza, Tractatus politicus, cap. I, 4).

Com Locke, com os economistas, com Kant, os interesses assumiram o lugar das paixes
como mola da vida social: mas a anttese interesse individual/interesse social, utilidade imediata/
utilidade mediata, jamais eliminar inteiramente a anttese, da qual partiu a teoria racional do
F
Estado, entre paixes (afetos) e razo. Alis, as ditas antteses procedem mescladas uma I
L
outra, mas distinguveis uma da outra, de modo que o Estado aparece em cada oportunidade e O
S
ao mesmo tempo como o ente racional por excelncia e como o garante do interesse coletivo, O
F
do til mediato, que o verdadeiro til precisamente o til tal como sugerido pela reta I
A
razo. A hiptese do estado de natureza e do consequente contrato social faz desaparecer
P
definitivamente a doutrina do nulla potestas nisi a Deo, da qual Kant dar uma justificao O
L
puramente racional: a mxima diz ele no tem finalidade que a de fazer compreender que
a origem do poder imperscrutvel (mas, se assim, ento a doutrina da origem divina do T
I
poder poder ser tranquilamente substituda pela doutrina que funda a legitimidade do poder C
A
250 TPICO 3 UNIDADE 2

unicamente na tradio, como a defendida por Edmund Burke, contemporneo de Kant, j que
a tradio to imperscrutvel quanto a vontade de Deus). A construo racional do Estado
avana pari passu com o processo de secularizao da autoridade poltica, e, em geral, da vida
civil: no pode ser dissociada, embora seja difcil dizer se se trata de um estmulo ou de um
reflexo (provavelmente ambas as coisas), daquela profunda transformao das relaes entre
Estado e Igreja, pela qual o Estado se torna cada vez mais independente da Igreja, enquanto
a Igreja (a partir do momento em que entra em colapso o universalismo religioso e nascem as
Igrejas nacionais) se torna cada vez mais dependente do Estado.

Por outro lado, quando se fala em teoria racional do Estado, a propsito do jusnaturalismo,
preciso saber captar alm do significado metodolgico tambm um significado teoricamente
bem mais rico e historicamente bem mais relevante, que se refere natureza e ao resultado da
construo e que revelar toda a sua importncia quando o modelo se for esgotando nas vrias
correntes antijusnaturalistas. Com um pequeno nmero de palavras, pode-se expressar a ideia
nos seguintes termos: a doutrina jusnaturalista do Estado no apenas uma teoria racional
do Estado, mas tambm uma teoria do Estado racional. Isso quer dizer que ela desemboca
numa teoria da racionalidade do Estado, na medida em que constri o Estado como ente de
razo por excelncia, nico no qual o homem realiza plenamente sua prpria natureza de ser
racional. Se verdade que, para o homem enquanto criatura divina, extra ecclesiam nulla salus,
igualmente verdade que, para o homem enquanto ser natural e racional, no h salvao
extra rempublicam.

Com a sua costumeira e peremptria lucidez, Hobbes expressa esse conceito numa
clebre passagem que pode ser assumida quase como emblema da elevao do Estado a sede
da vida racional: Fora do Estado, tem-se o domnio das paixes, a guerra, o medo. A pobreza,
a incria, o isolamento, a barbrie, a ignorncia, a bestialidade. No Estado, tem-se o domnio
da razo, a paz, a segurana, a riqueza, a decncia, a sociabilidade, o refinamento, a cincia,
a benevolncia (Hobbes, De cive, X, 1). O maior terico do Estado racional Spinoza: no
homem, as paixes so to naturais quanto a razo; mas, no estado de natureza, as paixes
triunfam sobre a razo; contra as paixes, a religio pode pouco ou nada, j que ela vale
no momento da morte, quando as paixes j foram vencidas pela doena e o homem est
debilitado ao extremo, ou nos templos, onde os homens no exercem relaes de interesse
F
(Spinoza, Tractatus politicus, cap. I, 5); somente a unio de todos num poder comum, que
I
L
refreie, com a esperana de prmios ou com o temor de castigos, os indivduos que tendem
O
S
naturalmente a seguir mais a cega cupidez do que a razo, pode permitir ao homem alcanar
O
F
do melhor modo possvel a meta da prpria conservao que a finalidade precpua prescrita
I pela razo; na medida, de resto, em que o Estado, e somente o Estado, permite ao homem
A
realizar a suprema lei da razo, que a lei da prpria conservao (da verdadeira utilidade),
P
O ele deve se comportar, se quer sobreviver, racionalmente, de modo diverso do que ocorre com
L
os homens no estado de natureza; ou seja, o homem deve se comportar seguindo apenas
T
I os ditames da s razo; o indivduo no delinque se, no estado de natureza, no segue a
C
A razo; o Estado, sim, porque somente o Estado racional consegue conservar a potncia que
UNIDADE 2 TPICO 3 251

constitutiva da sua natureza; um Estado no racional impotente; e um Estado impotente no


mais um Estado. O indivduo pode encontrar refgio no Estado. Mas, o Estado? O Estado
ou potente (e, portanto, autnomo) ou no nada: mas, para ser potente e autnomo, deve
seguir os ditames da razo. O Estado-potncia tambm, ao mesmo tempo, o Estado-razo.
Spinoza aprendeu bem a lio do agudssimo, do sbio Maquiavel, de quem um admirador,
e transformou-a num fragmento de uma das mais coerentes (e impiedosas) concepes do
homem jamais imaginada. As razes do Estado so, no final das contas, as razes da razo:
a racionalizao do Estado se converte na estatizao da razo, e a teoria da razo de Estado
se torna a outra face da teoria do Estado racional.

Para Locke, as leis naturais so as prprias leis da razo. Mas, para observar as leis
da razo, so necessrios seres racionais, ou melhor dizendo, so necessrias condies tais
que permitam a um ser racional viver racionalmente, ou seja, seguir os ditames da razo. Essas
condies no existem no estado de natureza: existem somente na sociedade civil, a qual,
portanto, configura-se tambm em Locke como o nico local em que os homens podem ter a
esperana de viver segundo as leis da razo. As leis civis, com efeito, no so no deveriam
ser nada mais do que as prprias leis naturais munidas daquele tanto de poder coercitivo
capaz de obrigar tambm os recalcitrantes a respeit-las. Por conseguinte, se os homens
querem viver o mais possvel racionalmente, devem ingressar naquela nica sociedade onde
as leis naturais podem se transformar em verdadeiras leis, ou seja, em normas de conduta
que no so apenas formalmente vlidas, mas tambm eficazes de fato. Essa sociedade o
Estado. Para Kant, a sada do estado de natureza e o ingresso no estado civil no so apenas
consequncia de um clculo utilitrio, como o caso certamente em Hobbes, Spinoza e Locke,
mas um dever moral; no so um imperativo hipottico, no so mera regra de prudncia (se
queres a paz, entra no estado civil), mas um imperativo categrico, um comendo da razo
prtica, um dever moral: Do direito privado no estado natural, decorre agora o postulado do
direito pblico: tu deves, graas relao de coexistncia que se estabelece inevitavelmente
entre ti e outros homens, sair do estado de natureza para entrar num estado jurdico (Kant,
Metaphysik der Sitten, 42). Isso quer dizer que, pelo menos no tocante vida de relao, s
condies de existncia da liberdade externa, o Estado tem um valor intrnseco absoluto (da
o carter absoluto do poder soberano e, consequentemente, da obedincia que lhe devida);
no um expediente, um remdio, cujo valor dependa do valor da finalidade, mas um ente
moral (moral, observe-se, no tico!). O indivduo no livre (no que se refere liberdade
F
externa) se no ingressa no reino do direito; mas o reino do direito perfeito aquele no qual o I
L
direito privado-natural submetido ao direito pblico-positivo, ou, em suma, a sociedade civil. O
S
Numa histria ideal da humanidade, como aquela que vai da liberdade selvagem do estado O
F
de natureza liberdade refreada da sociedade civil, a instituio do Estado um momento I
A
decisivo, a ponto de constituir uma ideia reguladora para o projeto daquela futura sociedade
P
jurdica universal para a qual tende o homem em sua gradual aproximao a uma forma de O
L
existncia cada vez mais conforme a razo.
T
I
O ato especfico atravs do qual se explicita a racionalidade do Estado a lei, entendida C
A
252 TPICO 3 UNIDADE 2

como norma geral e abstrata, produzida por uma vontade racional, tal como o , precisamente,
a do Estado-razo. Enquanto geral e abstrata, a lei se distingue do decreto do prncipe, atravs
do qual se expressa o arbtrio do soberano e se institui uma legislao de privilgio, criadora
de desigualdade. Enquanto produto de uma vontade racional, a lei se distingue dos costumes,
dos hbitos, dos usos herdados, das normas a que deu vida a mera fora da tradio. O que
caracteriza o Estado precisamente o poder exclusivo de fazer leis: Hobbes contrrio
common law e no admite outro direito alm daquele que decorre da vontade do soberano.
O governo civil de Locke se funda no primado do poder legislativo, o qual no apenas o
poder supremo da sociedade poltica, mas permanece sagrado e imutvel nas mos em que
a humanidade o colocou (Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, 134). Rousseau v na
vontade geral o rgo de criao das leis, e nas leis distintas dos decretos do poder executivo,
enquanto aquelas so sempre voltadas para a generalidade dos cidados, sem discriminaes
a destruio de todo privilgio e a garantia da igualdade civil.

Como foi vrias vezes observado, um dos aspectos do processo de racionalizao


do Estado, considerado (basta pensar em Max Weber) como caracterstica fundamental da
formao do Estado moderno, antes de mais nada a reduo de toda forma de direito a
direito estatal, com a consequente eliminao de todos os ordenamentos jurdicos inferiores ou
superiores ao Estado, tanto que se chega pouco a pouco a estar diante de apenas dois sujeitos
de direito, os indivduos, cujo direito o direito natural (que, de resto, um direito imperfeito),
e o Estado, cujo direito o direito positivo (que o nico direito perfeito); em segundo lugar,
a reduo de toda possvel forma de direito estatal a direito legislativo, do qual nascer
aquela (suposta) positivao do direito natural que constituda pelas grandes codificaes,
em especial pela napolenica, e que pretende, atravs da eliminao da pluralidade das fontes
de direito, assegurar a certeza do direito contra o arbtrio, a igualdade (ainda que formal) contra
o privilgio, ou, em suma, o Estado de direito contra toda forma de despotismo.

Tomando como ponto de referncia as duas formas tpicas de poder legtimo descritas
por Max Weber, o poder tradicional e o legal-racional (a terceira, o poder carismtico, uma
forma excepcional e, por sua prpria natureza, provisria), no se pode deixar de observar
a contribuio que a filosofia poltica do jusnaturalismo deu crtica do poder tradicional e
elaborao da teoria do poder legal-racional. medida que o jusnaturalismo desemboca
F
no leito da filosofia das luzes, da qual se torna o aspecto jurdico-poltico, a anttese paixo/
I
L
razo substituda (ou melhor, complementada) pela anttese costume-lei, onde o primeiro
O
S
termo representa o depsito cada vez melhor documentado e no ulteriormente amplivel
O
F
de tudo o que o homem produziu na histria sem o subsdio da razo. O poder tradicional
I caracterizado pela crena na sacralidade do chefe e, portanto, pela atribuio ao mesmo de
A
um poder arbitrrio, no regulado por normas gerais, que decide caso por caso (a justia dos
P
O kadi); por um ordenamento jurdico composto em grande parte por normas consuetudinrias,
L
herdadas, emendadas e atualizadas pelos juzes; por relaes pessoais ou de clientela entre
T
I o prncipe e seus funcionrios; por uma concepo paternalista do poder que, partindo da
C
A concepo da famlia como Estado em miniatura, chega concepo do Estado como famlia
UNIDADE 2 TPICO 3 253

ampliada. De todas as pginas anteriores, resultou de modo bastante claro que a filosofia poltica
do jusnaturalismo expressa uma teoria do poder que est nos antpodas da teoria do poder
tradicional e que contm todos os principais elementos da forma de poder que Weber chamou
de legal-racional: laicizao do Estado e subordinao do prncipe s leis naturais que so as
leis da razo; primado da lei sobre o costume e sobre as normas criadas em cada oportunidade
pelos juzes; relaes impessoais, ou seja, atravs das leis, entre prncipe e funcionrios, de
onde nasce o Estado com estrutura burocrtica, e entre funcionrios e sditos, de onde nasce
o Estado de direito; e, finalmente, concepo antipaternalista do poder estatal, que identifica
Locke, adversrio de Robert Filmer, com Kant, o qual v realizado o princpio do Iluminismo,
definido como a era na qual o homem finalmente se tornou adulto, no Estado que tem como
meta no fazer os sditos felizes, mas torn-los livres.

Ao contrrio do modelo aristotlico, que procede do crculo menor para o crculo maior por
meio de uma pluralidade de graus intermedirios, o modelo jusnaturalista como dissemos
dicotmico: ou o estado de natureza, ou a sociedade civil. O que significa: ou tantos soberanos
quantos so os indivduos, ou um nico soberano, feito de todos os indivduos unidos em um
s corpo.

O Estado no como uma famlia ampliada, mas como um grande indivduo, do qual
so partes indissociveis os pequenos indivduos que lhe do vida: basta pensar na figura
posta no frontispcio do Leviat, na qual se v um homem gigantesco (com a coroa na cabea
e, nas duas mos, a espada e o bculo, smbolo dos dois poderes), cujo corpo composto
de vrios homens pequenos. Rousseau expressa o mesmo conceito ao definir o Estado como
o eu comum, imagem muito diversa da de pai comum. Na base desse modelo, portanto,
est uma concepo individualista do Estado, por um lado, e, por outro, uma concepo
estatista (que significa racionalizada) da sociedade. Ou os indivduos sem Estado, ou o Estado
composto apenas de indivduos. Entre os indivduos e o Estado, no h lugar para entes
intermedirios. E tambm essa uma extrema simplificao dos termos do problema, qual
conduz inevitavelmente uma constituio que quer ser racional e, enquanto tal, sacrifica em
nome da unidade as vrias e diferentes instituies produzidas pela irracionalidade da histria;
mas tambm, ao mesmo tempo, o reflexo do processo de concentrao do poder que marca
o desenvolvimento do Estado moderno. Uma vez constitudo o Estado, toda outra forma de
associao, includa a Igreja, para no falar das corporaes ou dos partidos ou da prpria
F
famlia, das sociedades parciais, deixa de ter qualquer valor de ordenamento jurdico autnomo. I
L
Dos partidos, Hobbes diz que devem ser condenados, porque terminam por ser um Estado no O
S
Estado (Hobbes, De cive, XIII, 13): o Estado ou nico e unitrio ou no Estado. Condena O
F
o grande nmero de corporaes, que so como vrios Estados menores nas entranhas de I
A
um maior, semelhantes a vermes no intestino de um homem natural (Hobbes, Leviathan, cap.
P
XXIX). O
L

Com a rida linguagem do discurso racional, Spinoza formula com rigor lgico a mesma T
I
ideia: Dado que o direito soberano definido pela potncia comum da multido associada, C
A
254 TPICO 3 UNIDADE 2

bvio que a potncia e o direito do Estado diminuem em razo do motivo que ele mesmo
oferece ao constituir-se de associaes (Spinoza, Tractatus politicus, cap. III, 9). Segundo
Rousseau, para se ter a verdadeira expresso da vontade geral, necessrio que no existam
no Estado sociedades parciais, e que cada cidado raciocine apenas com a prpria cabea
(Rousseau, Du contrat social, L. II, cap. 3).

FONTE: BOBBIO, Norberto. O Estado segundo a razo. In: BOBBIO, Norberto; BOVERO,
Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Poltica moderna. 4. ed. So Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 85-95.

F
I
L
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F
I
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P
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T
I
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A
UNIDADE 2 TPICO 3 255

RESUMO DO TPICO 3

Neste tpico voc viu que:

Os escritos de Rousseau so variados e sua influncia tem sido muita. Ele tanto ajuda
fruio quanto a concluso do movimento poltico e intelectual do Iluminismo. Ele conduz
este movimento sua fase mais elevada de perfeio, todavia, ao mesmo tempo, ele foi um
crtico severo do mesmo.
A histria e o tempo afetaram a alma humana, ficamos to afetados que a nossa prpria
natureza humana transformou-se e desfigurou-se. Por isso, se quisermos entender o que
realmente a natureza humana, ser necessrio reconstru-la atravs de uma espcie de
experimento mental.
A guerra e as prprias paixes que a fazem surgir s pode existir uma vez que estamos em
sociedade. O estado de guerra de fato meramente o estado de sociedade. Isso no pode
referir-se ao homem natural, porque nas condies naturais no h relaes sociais deste
tipo.
A propriedade implica relaes sociais entre as pessoas, as relaes de justia e injustia, e
o homem em um estado de natureza no um animal social. A linguagem dependente da
sociedade e s poderia ter se desenvolvido literalmente ao longo de milhares de geraes
e no pode ser uma propriedade do homem natural.
Temos caractersticas comuns com as outras espcies animais. Todavia, Rousseau especifica
duas qualidades que nos diferenciam, a liberdade conexa perfectibilidade e a piedade/
comiserao.
A liberdade, o agente livre ou ato de liberdade, mais do que a liberdade de exercer a
vontade e de no sofrer a interferncia dos outros ao nosso redor. Rousseau conecta a
liberdade com a faculdade de aperfeioar-se, o fenmeno da perfectibilidade, uma abertura
virtualmente ilimitada mudana. Aquilo que nos aperfeioa e a origem das nossas misrias
e das nossas insatisfaes.
O homem, para ele, no o animal racional, o ser pensante, o ser com logos, mas somos
F
a criatura sensvel. A bondade natural do homem no estado de natureza corroborada por I
L
esta qualidade de piedade ou comiserao que ns at mesmo compartilhamos com outras O
espcies. S
O
Rousseau deixa claro que um retorno ao estado de natureza ou a algum tipo de estado F
I
pr-social ou pr-civil j no uma opo para os seres civilizados. A nica alternativa de A

alguma maneira aprender como viver em sociedade. P


O
Rousseau aponta de volta para uma concepo clssica de governo da polis antiga e L

da repblica antiga, uma concepo na qual a poltica tinha entre seus objetivos e os de T
I
supervisionar a busca e a aquisio de propriedades, mitigando os efeitos mais severos das C
A
256 TPICO 3 UNIDADE 2

desigualdades econmicas.
O sentido de virtude para Rousseau pode ser visto na independncia honrosa do nativo, do
sauvage, perante a decadncia e a corruptibilidade do europeu moderno.
O homem natural, para Rousseau, pensava em si mesmo, enquanto o homem civilizado
forado a pensar em outras pessoas, mas faz isso de forma calculista e mercenria, pensando
em outras pessoas como meios para seus prprios fins.
Rousseau toma o lado dos pobres e despossudos, mas no a questo da propriedade ou
da pobreza que realmente desperta a ira de Rousseau, so as atitudes e crenas moldadas
pelas desigualdades de riqueza e de poder, so exatamente estes danos morais e psicolgicos
da desigualdade.
A desigualdade real comea em uma faculdade ou em uma disposio que o amour-propre,
uma palavra relacionada a uma srie de caractersticas psicolgicas, tais como o orgulho,
a vaidade, a presuno, entre outras. No um sentimento natural, relativo e artificial, s
surge na sociedade e a verdadeira causa dos nossos descontentamentos.
O surgimento da paixo de ser visto, de ser contemplado como o melhor em alguma coisa
produziu em muitas pessoas o orgulho, a vaidade, e inerente a estas o desprezo. Mas,
em outras pessoas, produziu a vergonha e inveja, ou o desejo. Destes efeitos emerge um
composto que possibilitou o desenvolvimento de tendncias fatais para a nossa felicidade
e inocncia.
A necessidade de reconhecimento, que faz parte dessa paixo de amour-propre, para
Rousseau uma pedra angular da justia.
O desejo de ser estimado, reconhecido, e de ter seus valores e pontos de vista estimados
por aqueles ao seu redor na verdade uma paixo violenta e incontrolvel. uma paixo
muito parecida com o thumos de Plato.
Foi no homem primitivo, e no no selvagem puro do estado de natureza, onde Rousseau
encontra um equilbrio feliz entre os nossos poderes e as nossas necessidades que a
receita para a felicidade, levar os nossos poderes e as nossas necessidades ao equilbrio.
Com a agricultura veio a diviso de terras, a diviso da propriedade e as desigualdades
subsequentes. Com a metalurgia veio a arte da guerra e da conquista. Com estes dois
acontecimentos a humanidade entrou em uma nova fase, aquela em que as leis e as
instituies polticas tornaram-se necessrias para adjudicar os conflitos sobre os direitos.
O contrato social, como apresentado por ele no Segundo Discurso, realmente um tipo de
F
fraude, um tipo de embuste que os ricos e os poderosos usam para controlar os pobres e
I
L
os despossudos. Legitima as desigualdades que foram criadas aps a nossa emergncia
O
S
da condio natural.
O
F
Na sociedade ns somente vivemos atravs das opinies dos outros, atravs do olhar dos
I outros, atravs do que os outros pensam sobre ns. Ns estamos constantemente fora de
A
ns mesmos, ausentes para o nosso prprio sentimento de existncia, somos homens sem
P
O contedo, somos inautnticos.
L
O verdadeiro mal-estar na civilizao o que a nossa perptua inquietao e reflexividade
T
I fizeram de ns. Aguilhoados perpetuamente pelo amour-propre, esta a misria particular
C
A que a civilizao nos legou.
UNIDADE 2 TPICO 3 257

O tipo de ser humano que pode encontrar o seu caminho de volta ao tipo de sentimento puro
da existncia no ser um filsofo, no ser uma pessoa com capacidade reflexiva de alto
nvel como Scrates, mas o mais provvel que ser um artista ou um poeta.
A premissa bsica a partir da qual todo O Contrato Social se desenrola a afirmao de que
o homem nasce livre. Todas as relaes posteriores de hierarquia, obrigao e autoridade
so o resultado no da natureza, mas de acordos ou convenes. Toda a sociedade e os
laos morais que a constituem so convencionais por via de acordos.
Rousseau fala do contrato social na vontade geral como o fundamento de toda autoridade
legtima, afirma que todos os padres de justia e de direito tm suas origens na vontade,
nessa propriedade humana singular, a vontade ou agncia livre.
A libertao da vontade de todas as fontes ou normas transcendentes o centro de gravidade
da filosofia de Rousseau.
O objetivo do contrato proteger e defender com a fora comum os bens e a pessoa de cada
associado. O contrato deve garantir no s as condies de proteo mtua e a preservao
do self e da propriedade, mas que ao unir uns os outros, cada pessoa deve obedecer apenas
a si mesma e permanecer to livre como antes.
Todas as pessoas devem entregar-se inteiramente ao contrato social para garantir que os
termos do acordo sejam iguais para todos. crucial que isso seja feito ou entregue vontade
geral, de toda a comunidade.
O contrato social o fundamento da vontade geral que o nico soberano legtimo.
A liberdade do cidado sob a vontade geral no a liberdade do estado de natureza, no
a liberdade de fazer qualquer coisa que quiser, qualquer coisa que a nossa vontade e o
nosso poder nos permite fazer, mas um novo tipo de liberdade, que ele chama de liberdade
moral, a liberdade para fazer o que a lei ordena.
A vontade geral no somente a fonte de liberdade, mas quem a obedece ou recusa-se
obedecer, a vontade geral pode for-lo a ser livre.
Para Rousseau, as leis so legtimas desde que todo mundo tenha uma participao direta
na sua elaborao. Isso no significa que todos estaro de acordo com o resultado, mas
apenas que todos tiveram algum tipo de ao ou de voz em sua elaborao.
A no ser que todo mundo se engaje no processo de legislao, no haver maneira de
voc saber se as leis sero a expresso de sua vontade, em vez de simplesmente a vontade
privada ou a vontade corporativa de algum indivduo ou intermedirio. Sem a participao
direta, voc se encontrar em uma condio de dependncia e escravido da vontade dos
F
outros. I
L
A vontade geral s pode operar em pequenos Estados, assim como o tamanho de uma O
S
antiga repblica. A cidade ideal rousseauneana parece ser um tipo de democracia agrria, O
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uma pequena sociedade agrria. I
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Os grandes Estados implicaro necessariamente nveis considerveis de desigualdade social
P
da riqueza e do status, e com tais desigualdades, no pode haver vontade geral. O
L
Rousseau mostra uma flexibilidade surpreendente sobre as formas de governo que podem
T
ser adequadas a diferentes climas, fsicos, topografia e assim por diante. I
As democracias seriam apenas possveis em circunstncias muito especiais e singulares; C
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258 TPICO 3 UNIDADE 2

caso contrrio, a aristocracia, a monarquia ou algum tipo de governo misto mais possvel
ou at mesmo mais desejvel.
As pessoas que elaboram a lei no devem ser as responsveis e incumbidas pela execuo
e pela aplicao da mesma.
O que central para Rousseau, que a autoridade legislativa, em qualquer tipo de constituio
e sob qualquer tipo de Governo, seja sempre realizada pelo povo em sua capacidade coletiva.
Rousseau rejeita totalmente a legitimidade do governo representativo.
Os escritos de Rousseau tinham essa poderosa influncia sobre a ideia de criar um novo
povo e uma nova nao.
Embora o ataque de Rousseau ao governo representativo parea coloc-lo fortemente em
desacordo com a nossa Constituio e de outras Repblicas democrticas vigentes, sua
glorificao da repblica rural baseada na igualdade, na simplicidade moral, no ceticismo
sobre o comrcio e o luxo, ressoou em escritos de grandes pensadores polticos e estadistas.
A influncia de Rousseau no se limitou poltica, influenciou o mundo moral e a sua
proposta de um individualismo radical, de um desapego radical do solitrio aos interesses
da sociedade, o legado mais profundo e mais duradouro de Rousseau para ns.

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IDADE
ATIV
AUTO

1 Hobbes atribuiu ao homem natural certas propenses blicas, e Locke atribuiu


ao homem natural certas qualidades de racionalidade, de avidez ao trabalho e de
ganncia. Todavia, Rousseau argumenta que essas atribuies no poderiam estar
corretas. Descreva os argumentos de Rousseau que rejeitam a proposta de Hobbes
e a proposta de Locke quanto s suas respectivas atribuies ao homem natural.

2 O conceito de liberdade central na teoria poltica tanto de Hobbes e Locke quanto


de Rousseau. Descreva em quais aspectos o conceito de liberdade em Rousseau
difere das concepes hobbesianas e lockeanas.

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260 TPICO 3 UNIDADE 2

IAO
AVAL

Prezado(a) acadmico(a), agora que chegamos ao final


da Unidade 2, voc dever fazer a Avaliao referente a esta
unidade.

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UNIDADE 3

FILOSOFIA POLTICA CONTEMPORNEA

Objetivos de aprendizagem

Esta unidade tem por objetivos:

conhecer a origem e o desenvolvimento dos principais regimes


totalitrios do sculo XX;
identificar os elementos que possibilitaram o estabelecimento do
totalitarismo;
avaliar o efeito devastador dos regimes totalitrios na histria da
humanidade;
apresentar as diferentes concepes do papel do Estado na
garantia dos direitos do homem;
analisar o papel do indivduo na sociedade;
compreender a funo social do indivduo na comunidade;
refletir sobre o papel da moral na vida poltica da comunidade;
compreender o sentido de justia na sociedade contempornea.

PLANO DE ESTUDOS

Esta unidade est dividida em trs tpicos. No final de cada um


deles voc encontrar atividades que reforaro o seu aprendizado.

TPICO 1 - O TOTALITARISMO

TPICO 2 - A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O


INDIVDUO

TPICO 3 - JUSTIA, LIBERDADE E IGUALDADE

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TPICO 1

O TOTALITARISMO

1 INTRODUO

Para estudarmos a filosofia poltica contempornea foi necessrio optar por alguns
autores especficos, portanto escolhemos autores cujas obras possuem maior afinidade com
aquilo que iremos tratar nesta unidade. Neste tpico iremos discorrer sobre alguns elementos
que fazem parte dos regimes totalitrios. Para efeito de estudo recorremos obra de Hannah
Arendt Origens do Totalitarismo, que nos auxiliar na compreenso do assunto.

Inicialmente iremos discorrer sobre o totalitarismo, assunto fundamental para


compreender o desenvolvimento da filosofia poltica dos sculos XX e XXI. De acordo com
Aranha e Martins (1993, p. 253), no totalitarismo O Estado coincide com a totalidade da
atividade humana, com a vida familiar, econmica, intelectual, religiosa, de lazer, nada restando
de propriamente privado e autnomo.

A experincia de Hannah Arendt com o totalitarismo europeu possibilitou a ela um


profundo conhecimento do assunto, pois este sistema se utilizou, por exemplo, da mentira e
do terror como forma de implantar e manter o regime totalitrio. Junto a estes elementos os
governos totalitrios delegam polcia secreta um poder quase absoluto, pois esta obedece
diretamente s ordens do lder totalitrio no sentido de eliminar qualquer ameaa ao regime.
Outro elemento, no menos importante para o regime, a organizao das massas em torno F
I
da ideologia totalitria. L
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No h como falar em totalitarismo sem fazermos meno ao antissemitismo, pois F
I
os judeus, assim como outras classes de pessoas, foram alvo do extermnio do totalitarismo A
nazista na Alemanha. A anlise que faremos sobre estes assuntos no esgota a discusso, pelo P
contrrio, servir apenas como ponto de partida para que voc aprofunde seus conhecimentos. O
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264 TPICO 1 UNIDADE 3

2 HANNAH ARENDT

Hannah Arendt nasceu em Linden, na Alemanha, em 1906. De origem judaica, tornou-


se uma das pessoas mais influentes do sculo XX. Desde a mais tenra idade seus estudos se
direcionaram para a filosofia. Foi aluna de Martin Heidegger quando estudou na Universidade
de Marburg, sua relao extrapolou as linhas acadmicas e foram amantes por um longo tempo.
Com a ascenso do nazismo na Alemanha, Hannah, se sentindo ameaada, foi para Paris em
1933 e posteriormente em 1940 foi para os Estados Unidos, devido s ameaas que sofria na
Frana. No ano de 1951 naturalizou-se americana, sendo que no mesmo ano publicou seu livro
As Origens do Totalitarismo. Desenvolveu um pensamento crtico e independente, deixando um
legado filosfico significativo para a compreenso de muitas questes relacionadas filosofia
poltica contempornea.

FIGURA 9 - HANNAH ARENDT

FONTE: Disponvel em: <https://hannaharendt.wordpress.com/galeria-de-fotos-harendt/


hannaharendt1/>. Acesso em: 2 fev. 2015.

Em sua obra Origens do Totalitarismo possvel observar que a autora busca entender
o totalitarismo como um acontecimento que introduziu certas rupturas na histria humana,
pois o Estado Totalitrio diferente de qualquer outro regime tirnico vivido na histria da
humanidade. O totalitarismo rouba a identidade da pessoa e extingue sua histria. O indivduo
apenas mais um nmero em uma determinada classe de pessoas estruturadas de acordo
F
com o regime. Essa uma maneira de exercer o controle absoluto sobre a vida das pessoas.
I
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Por que devemos compreender o totalitarismo? De acordo com Reis (apud SOUZA,
O 2009, p. 244), compreender o totalitarismo no seria perdo-lo, mas nos reconciliar com um
F
I mundo em que tal evento ou processo de eventos foi possvel. Compreend-lo seria julg-lo
A
nos termos cristos e dos direitos humanos da prpria Europa.
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UNIDADE 3 TPICO 1 265

UNI

SUGESTO DE LEITURA:

A leitura deste livro fundamental para a compreenso dos


elementos que contriburam e culminaram com os regimes
totalitrios. A autora faz uma anlise elucidativa do crescimento do
antissemitismo, do imperialismo colonial europeu. Por fim, analisa
os dois principais regimes totalitrios da histria: o nazismo na
Alemanha e o stalinismo da Rssia.

3 ESTADO TOTALITRIO

Para efeito de estudo, iremos analisar os elementos do Estado totalitrio separadamente,


pois acreditamos que essa seja uma maneira mais simples e objetiva para compreendermos
o assunto. Estes elementos se inter-relacionam de maneira a possibilitar o surgimento, o
desenvolvimento e a manuteno dos regimes totalitrios.

Num regime totalitrio o governo no reconhece qualquer lei, instituio ou tribunal que
possa limitar sua autoridade. O totalitarismo a excluso total de qualquer liberdade fora do
controle do governo. As caractersticas dos regimes totalitrios no podem ser comparadas a
nenhum outro regime poltico da histria da humanidade, pois peculiar em sua maneira de
ser, se organizar e agir.
F
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3.1 A MENTIRA E O TERROR F
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Para a efetivao de um regime totalitrio os lderes do movimento precisam recorrer a O
L
mecanismos eficientes para a concretizao de seus planos. Nesse sentido, podemos destacar
T
pelo menos dois elementos iniciais que permitem o estabelecimento de um Estado totalitrio: I
a mentira e o terror. C
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266 TPICO 1 UNIDADE 3

Inicialmente precisamos analisar a diferena entre o movimento totalitrio e o Estado


totalitrio, pois de acordo com Arendt (2012, p. 551-552), Uma das importantes diferenas
entre novimento e Estados totalitrios que o ditador totalitrio pode e necessita praticar a
arte totalitria de mentir com maior consistncia e em maior escala que o lder do movimento.
Num Estado totalitrio a mentira tem que ser orquestrada de maneira muito astuta e inteligente
para sustentar a ideologia.

A fim de garantir sua existncia, o totalitarismo recorre mentira, pois por meio deste
recurso imoral ele consegue criar um universo fictcio capaz de ludibriar as massas que ento
lhe so favorveis.

A mentira se mantm em um Estado totalitrio quando este consegue calar aqueles


que esto interessados em trazer a verdade tona. Para que a mentira perdure e d certa
estabilidade ao regime totalitrio so utilizados importantes instrumentos, dos quais podemos
destacar pelo menos dois: a polcia e a propaganda.

Dentre os elementos de controle em um Estado totalitrio o principal o uso do terror.


De acordo com Arendt (2012, p. 29),

A diferena entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado est no uso


do terror no como meio de extermnio e amedrontamento dos oponentes,
mas como instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente
obedientes. O terror, como conhecemos hoje, ataca sem provocao preliminar,
e suas vtimas so inocentes at mesmo do ponto de vista do perseguidor.

O totalitarismo s se concretiza com o estabelecimento do terror, pois segundo Arendt


(2012, p. 30), O estabelecimento de um regime totalitrio requer a apresentao do terror como
instrumento necessrio para a realizao de uma ideologia especfica, e essa ideologia deve
obter a adeso de muitos, at mesmo da maioria, antes que o terror seja estabelecido. Nesse
processo as ideias contrrias ao movimento so suprimidas da maneira mais terrvel possvel,
no h nenhum tipo de condescendncia para com o sofrimento alheio. uma demonstrao
brutal da incapacidade de estabelecer uma ideologia pelo dilogo se utilizando de uma lgica no
sentido de convencer os que se posicionam contrrios ideologia do movimento. O totalitarismo
incapaz de conviver com os que pensam diferente, e a melhor maneira de lidar com isso
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eliminar ou acuar por meio do terror qualquer um que se ope.
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3.2 A POLCIA SECRETA TOTALITRIA
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T No podemos falar em Estado totalitrio sem fazermos meno polcia secreta


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C totalitria, cujo papel eliminar qualquer possvel ameaa ao regime, para tal usa o terror como
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UNIDADE 3 TPICO 1 267

forma de silenciar as vozes que se posicionam contrrias s arbitrariedades dos governos


totalitrios. Por meio de aes cruis que so desconhecidas do pblico geral, este brao do
governo capaz de cometer os crimes mais absurdos e condenar pessoas inocentes. A polcia
secreta consiste num agrupamento especial da polcia, que no caso do totalitarismo, trabalhava
diretamente para o lder, o lder totalitrio, pois de acordo com Arendt (2012, p. 566), A polcia
totalitria [...] totalmente sujeita ao desejo do lder, que o nico a decidir quem ser o prximo
inimigo em potencial e, como o fez Stlin, pode dizer at quais os escales da prpria polcia
secreta devem ser liquidados. Observe que este tipo de polcia consiste numa espcie de
fora oculta incapaz de ser medida em seu alcance e capaz de eliminar do caminho do lder
totalitrio qualquer pessoa que represente ou que o lder imagina que representa uma ameaa.
Outra questo em relao polcia secreta totalitria o fato de no se saber onde
comea e onde termina seu poder e como est organizada. Para Arendt (2012, p. 560), Acima
do Estado e por trs das fachadas do poder ostensivo, num labirinto de cargos multiplicados,
por baixo de todas as transferncias de autoridade e em meio a um caos de ineficincia, est
o ncleo do poder do pas, os supereficientes e supercompetentes servios da polcia secreta.
Veja que um agrupamento composto de indivduos eficientes que est oculto por trs da
ineficincia do Estado, ou seja, o Estado no possui controle sobre este departamento, pois
em certo sentido a polcia secreta um Estado dentro do prprio Estado.

O Estado a organizao racional da comunidade que delibera sobre os seus destinos.


A composio do Estado deve ser marcada pela diversidade de pessoas que discutem sobre
o destino da nao. Num governo totalitrio o Estado, ou seja, o poder dos cidados, perde a
fora e dado lugar polcia secreta para cumprir a vontade do movimento totalitrio, nesse
sentido a polcia secreta ganha o status de Estado porque se considera capaz de deliberar sobre
suas aes a partir das decises do lder totalitrio, sem dar explicaes para a comunidade
ou at mesmo ao parlamento, quando este existe.

FIGURA 10 - TOTALITARISMO

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FONTE: Disponvel em: <http://systemfailureb.altervista.org/il-totalitarismo-perfetto/>. Acesso em: 17 C
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jan. 2015.
268 TPICO 1 UNIDADE 3

A polcia secreta lida com informaes para manter o controle do Estado e ela por si s
possui informaes que so vitais para a manuteno do totalitarismo. Arendt (2012, p. 567)
afirma que No regime totalitrio, como em outros regimes, a polcia secreta tem o monoplio
de certas informaes vitais. O que isso significa? Significa que a polcia secreta possui
informaes que so desconhecidas por todas as pessoas, inclusive por membros importantes
do governo. Essas informaes tornam a polcia cada vez mais importante e necessria, pois
pode manipular estas informaes da maneira mais conveniente para o departamento e/ou
para o lder totalitrio.

A polcia secreta a responsvel por executar ordens do governo, nesse sentido Arendt
(2012, p. 571) coloca que:

ela o verdadeiro ramo executivo do governo, atravs do qual todas as ordens


so transmitidas. Atravs da rede de agentes secretos, o governante totalitrio
cria uma correia transmissora diretamente executiva que, em contraposio
com a estrutura de camadas superpostas da hierarquia ostensiva, comple-
tamente separada e isolada de todas as outras instituies. Nesse sentido, os
agentes da polcia secreta so a classe francamente governante nos pases
totalitrios, e as suas normas e escala de valores permeiam toda a textura da
sociedade totalitria.

Isso equivale a dizer que o Estado, a sociedade sob um regime totalitrio, dana
conforme a msica que a polcia secreta toca. Isso demonstra um fato muito simples, o governo
se mantm no poder por meio de um eficiente servio secreto que executa aquilo que
determinado pelo lder totalitrio, sem levar em conta as outras instituies, ou seja, o brao
direito do governo no sentido de fazer com que as coisas aconteam, sem a necessidade de
um debate amplo com as demais instituies que fazem parte do Estado.

O papel principal da polcia secreta totalitria eliminar os inimigos do Estado. No


entanto, no podemos fugir da seguinte questo: Quem o inimigo do Estado? Qualquer
um que o regime quiser que seja. Os inimigos do Estado totalitrio residem em dois polos: o
real e o imaginrio. Uma pessoa pode tornar-se inimiga do Estado se apenas for considerada
inimiga. Quanto prova de que algum realmente est conspirando, no problema, pois se
as provas no existem elas so criadas. Com o auxlio da polcia secreta o comunismo sovitico
eliminou, juntamente com parte da histria, aqueles que a construram, pois assassinou todos
F
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os intelectuais que no concordavam com as polticas totalitrias do governo. A aniquilao
L
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de pessoas se tornou uma prtica corriqueira para a polcia secreta. De acordo com Arendt
S
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(2012, p. 575),
F
I
A A mudana do conceito de crime e de criminosos determina os mtodos da
polcia secreta totalitria. Os criminosos so punidos, os indesejveis de-
P saparecem da face da Terra; o nico vestgio que resta deles a memria
O
L daqueles que os conheceram e amaram, e uma das tarefas mais difceis da
polcia secreta fazer com que at esses vestgios desapaream juntamente
T com o condenado.
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UNIDADE 3 TPICO 1 269

Num Estado totalitrio negado um dos princpios fundamentais da justia, o direito


que o indivduo tem de se defender. As pessoas so eliminadas na tentativa de eliminar sua
histria, sua identidade e qualquer outra coisa que seja que possa preservar o seu nome, pois
Nos pases totalitrios, todos os locais de deteno administrados pela polcia constituem
verdadeiros poos de esquecimento onde as pessoas caem por acidente, sem deixar atrs de
si os vestgios to naturais de uma existncia anterior, como um cadver ou uma sepultura.
(ARENDT, 2012, p. 577). Tal prtica foi muito comum nos campos de extermnio nazista e
nos campos de trabalho forado na Rssia. Esses regimes negaram os direitos mnimos de
um cidado, incluindo o direito de ser sepultado por seus familiares ou amigos. a negao
extrema da liberdade.

3.3 A PROPAGANDA

A propaganda foi uma arma poderosa nas mos dos estados totalitrios, pois por meio
deste instrumento possvel manipular a mente das pessoas atravs da exposio diria,
constante e intensa sobre a ideologia do Estado. o meio pelo qual as mentiras so veiculadas
e propagadas no sentido de garantir a ascenso poltica do movimento e posterior permanncia
no poder. A propaganda totalitria no se restringe a pequenos espaos de tempo na televiso,
no rdio ou nos jornais impressos, vai muito alm, pois todos os meios de comunicao, as
artes, literatura, filmes etc., so apropriados pelo governo totalitrio no sentido de promover
sua ideologia e doutrinar as pessoas.

O regime totalitrio tenta se apropriar de maneira absoluta dos meios de comunicao.


De acordo com Nlson Garcia (2005, p. 11-12),

Os noticirios de jornais, rdio e televiso e documentrios cinematogrficos


transmitem as informaes como se fossem neutras, mera e simples descrio
dos fatos ocorridos. Mas, em verdade, essa neutralidade apenas aparente,
pois as notcias so previamente selecionadas e interpretadas de molde a
favorecer determinados pontos de vista. Os filmes de fico, romances, poe-
sias, as letras das msicas e expresses artsticas de maneira geral parecem
resultar da livre imaginao dos mais variados artistas. Todavia, a distribuio, a
promoo das obras, so controladas de modo a s tornar conhecidas aquelas F
cujo contedo no contrarie as ideias dominantes. I
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Observe que o controle sobre os meios de comunicao uma forma de o governo S
O
totalitrio estender seus tentculos e definir quais contedos sero veiculados pelos meios de F
I
comunicao. A imprensa, o cinema, a literatura ou a msica so destitudas da neutralidade, A

pois tudo o que desenvolvido nestes segmentos segue as ordens do governo e serve aos P
O
interesses do totalitarismo. A liberdade de expresso j no existe, pois os contedos a L

serem veiculados nos meios de comunicao devem ser de interesse do governo e tudo T
I
minuciosamente selecionado para promover a ideologia totalitria. C
A
270 TPICO 1 UNIDADE 3

A figura a seguir era parte da propaganda ideolgica sovitica de que Stlin era o lder do
povo, que estava perto do povo. No entanto, no podemos esquecer que durante seu governo
foram assassinadas centenas de milhares de pessoas, dentre elas importantes intelectuais,
que no concordavam com sua poltica, e tambm morreram milhares de pessoas que eram
tidas como inimigas do Estado, mesmo no sendo. Infelizmente, um observador comum que
no conhece as atrocidades cometidas por este ditador sanguinrio pode ser enganado pela
propaganda.

FIGURA 11 - STLIN

FONTE: Disponvel em: <http://educador.brasilescola.com/estrategias-ensino/teoria-socialista-


stalinismo.htm>. Acesso em: 1 fev. 2015.

A censura dos meios de comunicao, por parte do governo totalitrio, cumpre o


propsito de inibir qualquer questionamento a respeito daquilo que parte da sua poltica. A
propaganda poltica seduz as pessoas, pois a seduo como elemento de ordem emocional
muito eficaz na conquista de adeso poltica. Os governos sabem da importncia da propaganda
para governar. um elemento fundamental para convencer as pessoas de que aquilo que o
governo est fazendo traz ou ir trazer muitos benefcios para todos. Quando o governo censura
os meios de comunicao, no h abertura para a discusso no sentido de promover debates
sobre a situao. A propaganda no o elemento principal do regime totalitarista, mas exerceu
papel fundamental para sua instalao no poder.

F
I Hannah Arendt (2012, p. 474) afirma que somente a ral e a elite podem ser atradas
L
O pelo mpeto do totalitarismo; as massas tm de ser conquistadas por meio da propaganda. A
S
O propaganda cria um mundo fictcio no qual reside a esperana das massas, que consiste em
F
I fugir de um mundo de problemas, necessidades e privaes, refugiando-se na esperana de
A
que aquilo que est sendo proposto ser possvel com sua adeso ao movimento.
P
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A intensidade da propaganda tem como objetivo levar as pessoas a pensarem a partir
T
I
daquilo que veiculado, pois condiciona a mente do indivduo no sentido de fazer com que o
C
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regime pense por ele. Os governos totalitrios, em especial, utilizaram os meios de comunicao
UNIDADE 3 TPICO 1 271

de massa disponveis para difundir a ideologia oficial.

A propaganda totalitria excluiu totalmente a possibilidade de dilogo com as classes


inferiores. Tanto o governo quanto a populao foram convencidos pelos meios de comunicao
que serviam aos interesses do governo de que em seu projeto no havia lugar para o diferente,
a soluo final seria sua extino, o aniquilamento daqueles que corrompem a comunidade.

A propaganda como ferramenta de controle do governo totalitrio possui dois estgios.


O primeiro se refere conquista das massas. O segundo estgio diz respeito ao aspecto
doutrinador da propaganda, pois segundo Arendt (2012, p. 474), Quando o totalitarismo detm
o controle absoluto, substitui a propaganda pela doutrinao. No caso da doutrina nazista, esta
consistia de alguns princpios, dentre eles podemos destacar que o Estado era soberano e,
portanto, todas as pessoas deveriam estar totalmente submissas a ele; outra tese da doutrina
nazista era a de que a raa ariana era superior a todas as outras; e a tese antissemita, na
qual defendia a ideia de que os judeus (semitas) eram inferiores aos arianos. Posteriormente
essa tese levou tentativa de aniquilao do povo judeu. O propsito da doutrinao incutir
na mente das pessoas determinada ideia como sendo inquestionavelmente verdadeira. Isso
infelizmente foi alcanado, pois muitos alemes, ao entregarem os judeus, cuidavam estar
cumprindo com suas obrigaes. No vamos entrar aqui na questo moral, se esta pessoa
que entregava um judeu culpada ou inocente, a questo aqui repousa sobre o poder da
propaganda para a concretizao dos propsitos mais nefastos dos governos totalitrios.

Inicialmente a propaganda totalitria vinha carregada de cientificismo. Os responsveis


pela elaborao dos contedos da propaganda recorriam cincia para fundamentar aquilo
que estavam passando para o pblico. Essa medida foi fundamental para convencer aquelas
pessoas que por natureza ou formao so mais crticas e exigem uma argumentao mais
racional para as medidas do governo; todavia, Tanto no caso da publicidade comercial quanto
na propaganda totalitria, a cincia apenas um substituto do poder. (ARENDT, 2012, p. 478).
Isso significa dizer que o uso da cincia na propaganda totalitria apenas um degrau rumo
ao poder, pois quando o poder alcanado a cincia substituda pelos interesses polticos
de dominao e controle por parte do governo.

Nos regimes totalitrios, alm de ser marcado por um Estado forte e absoluto, ainda h
F
o culto personalidade do lder do regime. H um forte apelo emocional por parte do regime I
L
no sentido de endeusar o lder e coloc-lo como uma espcie de salvador. Tanto no nazismo O
S
quanto no comunismo da Rssia e o fascismo italiano, havia uma forte propaganda em torno O
F
da figura de Hitler, Stlin e Mussolini, como se estes fossem uma espcie de semideuses. Tal I
A
apelo proposital no sentido de criar uma espcie de dependncia, at mesmo inconsciente,
P
por parte do povo. A centralizao do poder, da esperana, entre outras coisas, na figura do O
L
lder do regime, cria uma blindagem contra possveis ataques ao regime.
T
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No podemos esquecer que o culto em torno da personalidade de Stlin, por exemplo, C
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272 TPICO 1 UNIDADE 3

exaltava virtudes reais, mas a estas eram acrescentadas virtudes irreais, que tinham uma
finalidade apenas propagandstica. Esta exaltao exacerbada da figura de um lder por parte
dos meios de comunicao controlados pelo regime uma maneira muito comum de ocultar
as atrocidades cometidas por estas personalidades.

3.4 AS MASSAS

As massas so fundamentais para a sustentao do totalitarismo, por pelo menos


dois motivos. O primeiro motivo a quantidade, pois o lder totalitrio precisa de sditos e
evidentemente que aqueles que se opuserem ao sistema totalitrio sero enviados para os
campos de trabalho forado, para a priso ou mortos. Nesse processo h uma diminuio
drstica de pessoas disponveis para a manuteno do Estado totalitrio, que vo desde os
burocratas, os agentes militares e os que trabalham na manuteno do regime. O segundo
motivo que as massas no possuem uma ideologia enraizada e por este motivo so fceis
de manobr-las ideologicamente, fazendo com que abracem a ideologia do Estado totalitrio
sem muito questionamento ou at mesmo nenhum.

No estamos afirmando que as massas sejam um amontoado de ignorantes e/ou


iletrados. As massas so constitudas de pessoas no pertencentes a nenhuma classe poltica e
no esto alinhadas a nenhuma ideologia, por este motivo que as mesmas so to importantes
para o movimento totalitrio. Segundo Ricardo Souza (2009, p. 246), O totalitarismo um regime
que s ganha viabilidade se implantado em grande escala, inclusive em termos populacionais,
corroborando com a ideia de Arendt (apud SOUZA, 2009, p. 246), uma vez que somente
onde h grandes massas suprfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos
de despovoamento que se torna vivel o governo totalitrio. Isso deixa muito claro que as
massas consistem num elemento que facilita as manobras polticas, inclusive o extermnio, pois
o terror e o aniquilamento aplicados a uma parcela da populao geram o medo e facilitam o
domnio totalitrio sobre os demais.

As massas eram compostas por indivduos que no estavam alinhados a ideologias


F
I dos partidos polticos, pois a desiluso e o desinteresse causados pelos problemas sociais,
L
O polticos e econmicos fizeram com que um grande nmero de pessoas pendesse para a
S
O individualidade, e lutasse individualmente pela sobrevivncia, pois, como afirma Passos (2010,
F
I p. 3), No mais havendo o princpio de individuao social, originada pela estratificao social,
A
os homens passaram a formar uma unidade homognea, na qual no se pode distinguir um
P
O indivduo de outro. No h mais indivduos, mas somente seres da mesma espcie. Numa
L
sociedade de indivduos significa que h pluralidade, diversidade e no significa individualismo.
T
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A A ideologia do movimento totalitrio foi como uma argamassa que uniu a sociedade
UNIDADE 3 TPICO 1 273

fragmentada em torno de um ideal, mesmo que seja utpico, mas que serviu bem aos lderes
do movimento, culminando com sua chegada ao poder com forte apoio da populao. Nesse
sentido, Hannah Arendt (2012, p. 453-454) afirma que Os movimentos totalitrios so
organizaes macias de indivduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos
e movimentos pela exigncia de lealdade total, irrestrita, incondicional e inaltervel de cada
membro individual. Aqui ns comeamos a perceber que o indivduo comea a perder sua
capacidade de ser ele mesmo, pois deve obedincia incondicional ao regime totalitrio. Ao
cumprir ordens, deve fazer sem questionar, pois seu dever servir ao regime. Isso ficou claro
no caso de Karl Adolf Otto Eichmann. Segundo Arendt (apud PEREIRA, 2015, p. 22), Eichmann
era um homem que no parava para refletir. Ele no tinha perplexidades e nem perguntas,
apenas atuava, obedecia. Seu desejo [era] de agir corretamente, de ser um funcionrio eficiente,
de ser aceito e reconhecido dentro da hierarquia.

A partir do momento em que os movimentos totalitrios organizam as massas, estes


exercem um controle quase absoluto sobre os homens. Arendt (apud PASSOS, 2010, p.2) afirma:

Quem aspira ao domnio total deve liquidar no homem toda a espontaneidade,


produto da existncia da individualidade, e persegui-la em suas formas mais
peculiares, por mais apolticas e inocentes que sejam. O co de Pavlov, o
espcime humano reduzido s reaes mais elementares, o feixe de reaes
que sempre pode ser liquidado e substitudo por outros feixes de reaes de
comportamento exatamente igual, o 'cidado' modelo do Estado totalitrio;
e esse cidado no pode ser produzido de maneira perfeita a no ser nos
campos de concentrao.

O cidado totalitrio perde sua personalidade, no busca uma razo lgica para as
suas aes, ou por ignorncia ou por medo de estar cometendo injustia e no ter que lidar
com sua conscincia. Sua maneira de pensar doutrinada pela propaganda totalitria, que de
certa maneira o condiciona a agir de acordo com as ordens do governo totalitrio. O homem
das massas como uma marionete nas mos de quem controla a poltica totalitria. Seus
movimentos no so resultado de sua liberdade totalmente consciente, mas so pensados e
determinados por algum que exerce o controle e o domnio sobre a vida pblica e privada
dos indivduos.

FIGURA 12 - AS MASSAS

F
I
L
O
S
O
F
I
A

P
O
L

T
I
C
FONTE: Disponvel em: <http://wwwhistorianasveias.blogspot.com.br/2010/07/europa-em-transe- A
fascismo-e-nazismo-as.html>. Acesso em: 16 fev. 2015.
274 TPICO 1 UNIDADE 3

O que precede os movimentos de massa? Arendt (2012, p. 446) nos responde dizendo
que A atomizao social e individualizao extrema precederam os movimentos de massa.
Isso significa dizer que o processo de atomizao reduziu a comunidade em pequenos grupos,
pois primeiro os indivduos ficavam isolados em suas classes e ento, medida que as prprias
classes se deterioravam a partir de dentro, tornavam-se atomizadas e desumanizadas (YOUNG-
BRUHEL apud SOUZA, 2009, p. 249). Nesse sentido, A verdade que as massas surgiram
dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solido
do indivduo eram controladas apenas quando se pertencia a uma classe (ARENDT, 2012,
p. 446). O isolamento do indivduo causado pela atomizao desencadeia nele a vontade de
pertencer a um determinado movimento que lhe d um sentido, uma direo. Essa multido de
indivduos desorientados e solitrios se constitui a base do movimento totalitrio, pois desta
massa que saem os adeptos e soldados para a formao do contingente necessrio para o
funcionamento do totalitarismo.

A desestruturao da sociedade de classes e partidrias deu origem a uma grande massa


desiludida na Europa. A neutralidade e sua apatia poltica facilitaram que os movimentos totalitrios
organizassem as massas no sentido de fortalec-los. De acordo com Arendt (2012, p. 436),

Os movimentos totalitrios objetivam e conseguem organizar as massas e


no as classes, como o faziam os partidos de interesses dos Estados nacio-
nais do continente europeu, nem os cidados com suas opinies peculiares
quanto conduo dos negcios pblicos, como o fazem os partidos dos
pases anglo-saxes.

A funo dos partidos polticos representar as classes. No existe um partido poltico


capaz de representar todos, isso uma utopia. As massas so presas fceis dos movimentos
totalitrios porque no se sentem representadas na poltica nacional. Fazer parte de uma
determinada classe poltica nos pases europeus gerava certo equilbrio no poder, pois havia
uma possibilidade maior do debate poltico e a diversidade poltica permitia que de certa forma
houvesse a pluralidade. Uma das caractersticas dos movimentos totalitrios construir um
pas de iguais, onde ningum pode se manifestar contrrio ideologia do regime, pois pode
pagar com a prpria vida tal atitude.

No regime totalitrio o lder representa as massas e estas o representam, pois como


F
I
afirmou Hitler (apud ARENDT, 2012, p. 456), Tudo que vocs so, o so atravs de mim; tudo
L que eu sou, sou somente atravs de vocs. Isso demonstra claramente a interdependncia
O
S existente entre as massas e o lder, pois um sustenta a existncia do outro, e assim que um
O
F deixa de existir o outro desaparece com ele, como foi o caso da Alemanha ps-guerra.
I
A

P Um pas constitudo de indivduos, de classes de pessoas, no que uma classe seja


O
L superior ou melhor que a outra, o sentido de classes que as pessoas possuem crenas

T diferentes, costumes diferentes e objetivos polticos e econmicos diferentes. Construir um pas


I
C justo no eliminar classes, mas, acima de qualquer coisa, criar condies para que todas as
A
pessoas sejam atendidas pelo Estado e que todos sejam tratados com igualdade perante a lei.
UNIDADE 3 TPICO 1 275

4 O ANTISSEMITISMO E OS APTRIDAS

No h como falar de totalitarismo sem fazermos referncia ao antissemitismo e aos


aptridas. Diante das crises e problemas comum as pessoas procurarem um culpado, como
se isto fosse a soluo. No caso da Europa, os nacionalistas viam nos estrangeiros, nos grupos
tnicos, uma ameaa constante estabilidade econmica e poltica de seus pases.

IMPO
RTAN
TE!

Devemos lembrar que no foram somente judeus que morreram
nos campos de extermnio da Alemanha, pois para l foram
levados ciganos, alemes que eram contrrios ao nazismo e
considerados inimigos do regime, deficientes fsicos, homossexuais,
testemunhas de Jeov ou qualquer pessoa que apresentasse um
comportamento antissocial.

Os judeus, desde a Idade Mdia, foram alvos de perseguies religiosas. Em fins do


sculo XIX e incio do sculo XX, os judeus comearam a ser alvo de perseguio poltica, pois
foi criado o mito de que os judeus comandavam os destinos polticos do mundo. De acordo
com Joo Vicente (2012, p. 147),

Desse antissemitismo poltico, Hannah Arendt faz questo de destacar com


cuidado o antissemitismo social, que acontece no em um grupo separado,
mas em um grupo no qual a emancipao se conciliou com a igualdade; quanto
mais esta se afirma, mais se aprofunda uma discriminao por sentimento da
diferena que suscita.

A repugnncia pelos judeus j existia na Europa bem antes da ascenso do nazismo,


no entanto houve uma intensificao, pois, ao pregar a igualdade, o regime totalitrio busca
eliminar os diferentes e no as diferenas. Do ponto de vista totalitrio, ao eliminar os diferentes
no h incmodo em criar polticas de incluso social que contemplem a todos.
F
I
Um dos fatores que contribuiu para o antissemitismo social foi o fato de no pertencerem L
O
a nenhuma classe poltica. Sobre a questo de os judeus no pertencerem a nenhuma classe, S
O
Arendt (2012, p. 39) nos diz: Mesmo que ingressassem na sociedade, formavam um grupo F
I
bem definido que preservava a sua identidade mesmo dentro de uma das classes com as A
quais se relacionavam, fosse esta aristocracia ou burguesia. Os judeus queriam sobreviver P
O
como grupo distinto, preservar sua cultura, costumes, prtica religiosa etc., caractersticas que L

os distinguiam dos demais. O problema consiste no fato de que sempre que se procurava um T
culpado para os problemas de um pas onde havia um grande nmero de judeus, geralmente I
C
A
276 TPICO 1 UNIDADE 3

a culpa recaa sobre eles. No estamos negando que houvesse interferncias de algumas
famlias judias na economia ou na poltica dos pases, o problema que o todo era tomado
pelos indivduos.

O fato de os judeus no pertencerem a nenhuma classe ou partido poltico fez com


que sua posio ficasse fragilizada diante do nacionalismo crescente nos pases europeus
e principalmente na Alemanha. O fato de os judeus ocuparem posies importantes na
administrao e na economia dos Estados-nao fez com que fossem agraciados com muitos
privilgios especiais, nesse sentido, por um bom tempo gozam de uma situao privilegiada. No
entanto, com a ascenso do totalitarismo, principalmente na Alemanha, seus privilgios foram
radicalmente abolidos. Toda propaganda nazista alem tinha como alvo a eliminao completa
dos judeus, por considerar que este grupo era responsvel pelos problemas na Alemanha. O
resultado desta investida nazista foi um genocdio onde morreram mais de seis milhes de
judeus nos campos de extermnio.

FIGURA 13 - CAMPOS DE EXTERMNIO DE JUDEUS

FONTE: Disponvel em: <http://libertar.webnode.com.br/news/>. Acesso em: 17 fev. 2015.

Os aptridas consistem em outro tema importante no estudo do totalitarismo. Com o fim


da Primeira Guerra Mundial, um grande nmero de pessoas migra de seus pases em direo a

F
outros em busca de uma vida melhor, de segurana e estabilidade, pois por mais que a grande
I
L
guerra houvesse chegado ao fim, muitos pases ainda enfrentavam sangrentas guerras civis. A
O soluo encontrada para grandes contingentes de pessoas era sair de seu pas e refugiar-se
S
O em outro. Isso significava que Uma vez fora do pas de origem, permaneciam sem lar; quando
F
I deixavam o seu Estado, tornavam-se aptridas; quando perdiam os seus direitos humanos,
A
perdiam todos os direitos: eram o refugo da terra (ARENDT, 2012, p. 369).
P
O
L
Considerados como um novo grupo humano, pois eram indivduos sem um Estado para
T
I defender seus direitos, residindo em um pas diferente e em sua maioria queriam preservar seus
C
A costumes e seu idioma. Isso era visto de maneira muito negativa. Os aptridas se encontravam
UNIDADE 3 TPICO 1 277

em uma situao extremamente delicada, juntamente com as minorias, pois ambos no tinham
representantes polticos para defender seus interesses ou simplesmente defend-los. Nos anos
que precederam a Segunda Guerra Mundial estes dois grupos sofriam uma grande rejeio por
parte dos nacionalistas. Infelizmente, um quadro muito negativo estava se desenhando num
futuro muito prximo. Uma das sadas possveis que os governos consideravam era repatri-los,
o que os governos de seus pases de origem rejeitaram. A segunda opo era naturaliz-los,
mas os governos se deparavam com grandes dificuldades de faz-lo em massa.

Infelizmente no havia para onde os aptridas recorrerem, pois os direitos humanos


lhes haviam sido negados. Somente em 1950 que a ONU criou um rgo denominado de
Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados (ACNUR). Este rgo responsvel
por supervisionar e coordenar a ao internacional em favor da proteo dos refugiados no
mundo e garantir que eles sejam atendidos em suas necessidades.

A questo do antissemitismo e dos aptridas ainda so temas que exigem muita ateno
por parte dos Estados, pois so problemas recorrentes e que precisam ser enfrentados de
maneira direta, para que as pessoas que fazem parte destes grupos no sejam discriminadas
por sua origem ou condio de estrangeiro em outro pas. Que seus direitos sejam preservados
e possam ter uma vida digna onde estiverem.

O texto a seguir nos d uma noo mais exata sobre a questo dos aptridas.

QUEM SO E ONDE ESTO OS APTRIDAS?

O ACNUR estima que sejam aptridas aproximadamente 12 milhes de pessoas


em dezenas de pases desenvolvidos e em desenvolvimento, embora no se conheam os
nmeros exatos. Pessoas aptridas podem ser encontradas na frica, nas Amricas, na sia
e na Europa e tm sido uma populao de interesse do ACNUR desde sua fundao.

Polticas discriminatrias esto na raiz de muitas situaes de apatridia. No Oriente


Mdio e em outras partes do mundo, legislaes que discriminam com base no gnero criam
riscos de apatridia. Em muitos dos pases do Golfo, populaes que ficaram s margens dos
processos de independncia so chamadas de Bidoon, sem em rabe. Sob o regime de F
I
Saddam Hussein, muitos curdos feili foram privados de suas nacionalidades, ordem revogada L
O
em 2006. S
O
F
I
Na frica, parte dos nbios localizados no Qunia no usufruem de direitos de A
cidadania. Do outro lado do continente, na Costa do Marfim, a falta de clareza em seu status P
nacional afeta um grande nmero de pessoas. Na Europa, a dissoluo da Unio Sovitica O
L
e da Federao Iugoslava nos anos 1990 levou apatridianos novos pases que surgiram.
T
I
C
A
278 TPICO 1 UNIDADE 3

O problema da sucesso de Estados foi agravado em ambos os casos pela presena


de fluxos massivos de deslocados e refugiados. Esforos para naturalizar essas pessoas e
para expedir documentos de nacionalidade esto em progresso, mas a situao ainda no
est completamente resolvida.

A apatridia tambm matria de interesse do ACNUR no Caribe.

Em anos recentes, algumas experincias exitosas tm ocorrido na sia, onde milhes


de pessoas receberam sua nacionalidade no Bangladeche e no Nepal. Mas, apesar do Nepal
ter alcanado em 2007 a maior reduo de apatridia vista no mundo, a nao Himalaia ainda
abriga cerca de 800 mil pessoas cuja nacionalidade no confirmada e que no podem acessar
importantes servios pblicos pela falta de um certificado de cidadania.

FONTE: Disponvel em: <http://www.acnur.org/t3/portugues/quem-ajudamos/apatridas/quem-sao-e-


onde-estao-os-apatridas/>. Acesso em: 1 mar. 2015.

5 TUDO POSSVEL

Diante do genocdio causado pelo totalitarismo, essa expresso ganha um novo sentido
para Arendt. Os regimes totalitrios foram capazes de mostrar ao mundo que o ser humano
capaz de cometer as maiores atrocidades contra seu semelhante, os lderes totalitrios e seus
seguidores provaram que no h limite para a maldade humana. Diante desta realidade, a
expresso tudo possvel nos faz repensar o que podemos fazer para que o que aconteceu
no se repita.

O absurdo a marca de um regime totalitrio. Leia a seguir um fragmento dos escritos


de Hitler (apud VICENTE, 2012, p. 150),

a misso principal dos Estados Germnicos cuidar e por um paradeiro a uma


progressiva mistura de raas. A gerao dos nossos conhecidos fracalhes de
hoje naturalmente gritar e se queixar de ofensa aos mais sagrados direitos
F
dos homens. S existe, porm, um direito sagrado e esse direito , ao mesmo
I tempo, um dever dos mais sagrados, constituindo em velar pela pureza racial,
L para, defesa da parte mais sadia da humanidade, tornar possvel um aperfeio-
O
S
amento maior da espcie humana. O primeiro dever do Estado nacionalista
O evitar que o casamento continue a ser uma constante vergonha para a raa e
F consagr-lo como instituio destinada a reproduzir a imagem de Deus e no
I
A
criaturas monstruosas, meio homem meio macacos. Protestos contra isso esto
de acordo com uma poca que permite qualquer degenerado reproduzir-se
P e lanar uma carga de indizveis sofrimentos sobre os seus contemporneos
O
L
e descendentes, enquanto, por outro lado, meios de dividir a procriao so
oferecidos venda em todas as farmcias e at anunciados pelos camels,
T mesmo quando se trata de pais sadios.
I
C
A
UNIDADE 3 TPICO 1 279

Este fragmento resume a ideologia por trs do regime totalitarista alemo. Nesse
fragmento podemos observar que a partir de tais declaraes tudo seria possvel, e quando se
tratasse de judeus, ciganos, homossexuais, deficientes fsicos e mentais, tudo seria possvel.
Todo tipo de tortura fsica e psicolgica, culminando com o aniquilamento nas cmaras de
gs e por fim nos fornos que consumiam os restos daqueles tidos como meio homens meio
macacos. Os humanos so uma nica raa: a raa humana. A ideia de que uns so superiores
aos outros demonstra que ainda necessrio que os homens superem muitos preconceitos.

Atualmente o mundo vive aterrorizado pelas aes do Estado Islmico que promovem
espetculos de decapitaes com o propsito de disseminar o terror pelo mundo. Estamos
vendo uma histria de terror sendo escrita com o sangue de muitos inocentes. Infelizmente, o
tudo possvel tambm est ganhando outro sentido para a presente gerao.

mais do que urgente que nossa gerao repense os valores humanos e aprenda a
lidar e a respeitar as diferentes crenas, ideologias, culturas, estilos de vida etc. A educao
uma forma de humanizar as pessoas. Que nossas escolas possibilitem e sejam um espao de
discusses democrticas que avaliem as posies contrrias e que, acima de tudo, aprendamos
a respeitar as pessoas como indivduos.

UNI

SUGESTO DE FILME

O filme se d em torno de uma srie de artigos escritos por


Hannah Arendt para a revista The New Yorker sobre o julgamento F
I
de Karl Adolf Otto Eichmann. O filme muito interessante e L
O
esclarecedor, pois traz reflexes importantes sobre a banalidade S
O
do mal e a responsabilidade humana diante dele. Em seu discurso, F
I
defende a ideia de que necessrio entender o que aconteceu e A

que entender no significa perdoar, mas antes ensina apenas a lidar P


O
com os fatos ocorridos. Vale muito a pena assistir. L

T
I
C
A
280 TPICO 1 UNIDADE 3

LEITURA COMPLEMENTAR

ORIGENS DO TOTALITARISMO

O que prepara os homens para o domnio totalitrio no mundo no totalitrio o fato de


que a solido, que j foi uma experincia fronteiria, sofrida geralmente em certas condies
sociais marginais como a velhice, passou a ser, em nosso sculo, a experincia diria de massas
cada vez maiores. O impiedoso processo no qual o totalitarismo engolfa e organiza as massas
parece uma fuga suicida dessa realidade. O raciocnio frio como gelo e o poderoso tentculo
da dialtica que nos segura como um torno parecem ser o ltimo apoio num mundo onde
ningum merece confiana e onde no se pode contar com coisa alguma. a coero interna,
cujo contedo nico a rigorosa evitao de contradies, que parece confirmar a identidade
de um homem independentemente de todo relacionamento com os outros. Prende-o no cinturo
de ferro do terror mesmo quando ele est sozinho, e domnio totalitrio procura nunca deix-lo
sozinho, a no ser na situao extrema da priso solitria. Destruindo todo espao entre os
homens e pressionando-os uns contra os outros, destri-se at mesmo o potencial produtivo
do isolamento, ensinando e glorificando o raciocnio lgico da solido, onde o homem sabe
que estar completamente perdido se deixar fugir a primeira premissa que d incio a todo
processo, elimina-se at mesmo a vaga possibilidade de que a solido espiritual se transforme
em solido fsica, e a lgica se transforme em pensamento. Quando comparamos um meio de
imprimir movimento ao prprio deserto, um meio de desencadear uma tempestade de areia
que pode cobrir todas as partes do mundo habitado.

As condies em que hoje vivemos no terreno da poltica so realmente ameaadas


por essas devastadoras tempestades de areia. O perigo no que possam estabelecer um
mundo permanente. O domnio totalitrio, como a tirania, traz em si o germe da sua prpria
destruio. Tal como o medo e a impotncia que vem do medo so princpios antipolticos e
levam os homens a uma situao contrria ao poltica, tambm a solido e a deduo do
pior por meio da lgica ideolgica, que advm da solido, representam uma situao antissocial
e contm um princpio que pode destruir toda forma de vida humana em comum. No obstante,
a solido organizada consideravelmente mais perigosa que a impotncia organizada de todos
os que so dominados pela vontade tirnica e arbitrria de um s homem. o seu perigo que
ameaa devastar o mundo que conhecemos, um mundo que, em toda parte, parece ter chegado
F
I ao fim, antes que um novo comeo, surgindo desse fim, tenha tido tempo de firmar-se.
L
O
S
O parte dessas consideraes que, como predies, so de pouca valia e ainda menos
F
I consolo, permanece o fato de que a crise do nosso tempo e a sua principal experincia deram
A
origem a uma forma inteiramente nova de governo que, como potencialidade e como risco
P
O sempre presente, tende infelizmente a ficar conosco de agora em diante, como ficaram, a
L
despeito de derrotas passageiras, outras formas de governo surgidas em diferentes momentos
T
I histricos e baseadas em experincias fundamentais, monarquias, repblicas, tiranias, ditaduras
C
A e despotismos.
UNIDADE 3 TPICO 1 281

Mas permanece tambm a verdade de que todo fim na histria constitui necessariamente
um novo comeo; esse comeo a promessa, a nica mensagem que o fim pode produzir. O
comeo, antes de tornar-se evento histrico, a suprema capacidade do homem; politicamente,
equivale liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est - o homem foi criado para
que houvesse comeo, disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse comeo, ele ,
na verdade, cada um de ns.

FONTE: Arendt, Hannah. Origens do totalitarismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 638-
639.

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282 TPICO 1 UNIDADE 3

RESUMO DO TPICO 1

Neste tpico voc viu que:

Hannah Arendt deu uma importante contribuio na compreenso do totalitarismo.


Dos elementos do totalitarismo destacamos o uso da mentira e do terror para instalar e
manter o regime totalitrio.
A polcia secreta que est diretamente ligada ao lder totalitrio e dele recebe ordens,
se tornando o executivo do regime, pois cumpre o papel de eliminar qualquer ameaa
continuidade do regime totalitrio.
A propaganda cumpre o papel de convencer e doutrinar as pessoas na ideologia dos
movimentos totalitrios.
As massas so fundamentais para a sustentao do totalitarismo.
As questes do antissemitismo e dos aptridas, intensificadas nos regimes totalitrios, so
problemas que ainda precisam ser debatidos na poltica mundial contempornea.
E, por fim, qual o sentido da expresso tudo possvel para Arendt e para ns.

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UNIDADE 3 TPICO 1 283


IDADE
ATIV
AUTO

1 Aps os estudos realizados, descreva com suas palavras as principais caractersticas


dos regimes totalitrios.
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2 A propaganda totalitria foi um meio pelo qual os regimes totalitrios espalharam suas
mentiras e doutrinaram as massas no sentido de aderirem ao movimento e lev-lo
adiante. Sobre a propaganda totalitria, assinale V para a sentena verdadeira e F
para a falsa:

( ) A liberdade de expresso deixa de existir num regime totalitrio. Os contedos so


minuciosamente selecionados de acordo com os interesses do governo totalitrio no
sentido de promover a ideologia do regime.
( ) A propaganda totalitria inicialmente vinha carregada de cientificismo. Os
responsveis pela elaborao dos contedos da propaganda recorriam cincia
para fundamentar aquilo que estavam passando para o pblico.
( ) A propaganda foi a nica e mais eficiente arma utilizada para estabelecer os
regimes totalitrios.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequncia CORRETA:


a) ( ) V V F. F
I
b) ( ) V F F. L
O
c) ( ) F V F. S
O
F
3 Durante a Segunda Guerra Mundial ficou muito evidente a questo do antissemitismo. I
A
A partir de ento este assunto esteve na pauta das grandes discusses sobre os
P
direitos humanos. Sobre o antissemitismo no regime totalitrio alemo, analise as O
L
sentenas a seguir:
T
I
C
A
284 TPICO 1 UNIDADE 3

I- Antes mesmo da ascenso do nazismo na Alemanha os judeus j sofriam certa


discriminao na Europa, todavia no regime nazista houve uma intensificao desta
discriminao, quando teve incio o processo de eliminao sistematizada nos campos
de extermnio.
II- Devido ao nmero de judeus (aproximadamente seis milhes) que morreram nos
campos de extermnio, os demais povos ou classes, tais como os ciganos, deficientes
fsicos e mentais, homossexuais e testemunhas de Jeov so insignificantes e nem
deveriam entrar nas estatsticas quando falamos de atentados contra os direitos
humanos.
III- O antissemitismo foi um fato isolado na Alemanha e ocorreu apenas porque os judeus
eram os donos das grandes fortunas, nada tem a ver com a questo tnica.
IV- O fato de os judeus no pertencerem a nenhuma classe ou partido poltico fez com
que sua posio ficasse fragilizada diante do nacionalismo crescente nos pases
europeus e principalmente na Alemanha.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As afirmativas I, II e III esto corretas.


b) ( ) As afirmativas II e IV esto corretas.
c) ( ) As afirmativas I e IV esto corretas.

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UNIDADE 3

TPICO 2

A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O


INDIVDUO

1 INTRODUO

A ao humana na histria precisa ser considerada em sua natureza e estrutura para


que possamos compreender o funcionamento da sociedade moderna. O Estado moderno
resultado de uma construo e desenvolvimento gradativo dos princpios morais e ticos
que hoje norteiam as relaes humanas na vida em comunidade. medida que o tempo vai
passando, as relaes sociais vo ficando cada vez mais complexas. Nesse sentido, elementos
novos so acrescentados aos j existentes com a finalidade de tornar a convivncia em
sociedade menos violenta.

Para compreendermos um pouco mais sobre as relaes do indivduo na sociedade e


suas relaes com o Estado moderno, tomaremos como ponto de partida para nossas reflexes
sobre este assunto as obras do filsofo ric Weil. As obras de Weil so muito importantes para
compreendermos o funcionamento do Estado moderno e as questes ligadas cidadania,
violncia, injustia, lei, opresso e outras questes relacionadas vida em comunidade. Em
sua Filosofia Poltica, Weil faz uma anlise da ao humana na histria em comunidade. Esta
anlise aborda o papel do Estado na vida da comunidade e a relao do indivduo com a
universalidade da lei e da moral.

O primeiro tema a ser abordado em nosso estudo diz respeito importncia da discusso F
I
na construo social. A discusso possibilita que haja um debate profundo e amplo daquilo que L
O
interessa ao indivduo em sua comunidade. Em seguida, nosso estudo se direcionar para o S
O
que o Estado moderno e como acontece a relao do indivduo com a organizao racional F
I
da comunidade denominada de Estado, cuja funo primordial garantir a subsistncia da A
comunidade. A cidadania um tema necessrio em nosso estudo sobre o Estado moderno, P
pois o indivduo, ao ser e fazer parte de uma comunidade, precisa agir moralmente em relao O
L
a ela a fim de preservar sua integridade e a dos demais indivduos. A moral e a poltica so dois
T
temas tratados simultaneamente, pois a vida poltica precisa ser orientada pela moral coletiva. I
C
A
286 TPICO 2 UNIDADE 3

Por fim, trataremos de um tema muito importante na obra de Weil, que diz respeito ao valor
social do indivduo na comunidade.

Dito isto, convido voc a dar mais um passo em direo aos novos conhecimentos sobre
o Estado moderno, lembrando que este material no esgota o assunto, sendo apenas o ponto
de partida para estudos e pesquisas mais aprofundadas. Mos obra!

2 ERIC WEIL

O filsofo Eric Weil nasceu na cidade alem de Parchim, em 1904, de famlia judaica.
Estudou Medicina e Filosofia nas universidades alems e em 1933 mudou-se para a Frana,
tornando-se cidado francs. Durante a Segunda Guerra Mundial ele lutou ao lado dos franceses
na resistncia s tropas alems. Foi capturado e ficou preso at 1945. No perodo em que esteve
preso se dedicou a ler e a estudar, foi um perodo de amadurecimento de suas ideias, sendo que
em 1950 publicou sua tese de doutorado. Suas principais obras trazem importantes reflexes
sobre as questes pertinentes ao Estado moderno, a moral e a cidadania, entre outros temas.

FIGURA 14 - ERIC WEIL

FONTE: Disponvel em: <http://www.univ-conventionnelle.com/kant/Conclusion-provisoire-de-la-


F reflexion-sur-Kant-23-05-12_a23.html>. Acesso em: 1 fev. 2015.
I
L
O
S Ao estudar o pensamento de Weil possvel perceber que seus questionamentos so
O
F fundamentais para a construo de uma sociedade moderna mais justa. Sua obra no consiste
I
A numa teoria sobre o Estado, mas levanta questes pertinentes sociedade moderna, das
P quais no podemos fugir. Termos como violncia, justia, racionalidade, opresso e injustia
O
L so tratados de maneira muito objetiva em suas obras, pois ele acredita que o homem um

T ser racional e violento, sendo que estes elementos que constituem sua natureza.
I
C
A
UNIDADE 3 TPICO 2 287

A comunidade uma construo histrica, resultado de uma luta constante pela


sobrevivncia. A ideia fundamental de comunidade o agrupamento humano com o objetivo
de criar uma fora coletiva na luta contra a natureza. Para que essa comunidade exista, alguns
elementos importantes foram criados, dentre eles podemos destacar aquilo que chamamos
de administrao pblica, na qual necessrio que todos os que fazem parte da comunidade
possam participar direta ou indiretamente. Nesse sentido, o primeiro ponto que iremos estudar
est relacionado com a discusso como elemento fundamental da poltica.

IMPO
RTAN
TE!

O sentido de discusso nas obras de Weil no aquele que
comumente usado no dia a dia, que tem o sentido de brigar.
Discusso em Weil tem o sentido de examinar detalhadamente
um determinado assunto, levantando questionamentos por parte
dos interlocutores.

UNI

Este livro faz um apanhado geral da filosofia poltica de ric Weil.


Consiste num manual muito importante para compreender o
pensamento do filsofo e avaliar o alcance de sua obra para a
filosofia poltica contempornea. Ao ler esta obra voc ir perceber
a atualidade dos escritos de Weil ao abordar temas to pertinentes
nossa realidade. Boa leitura!

F
I
L
O
S
O
3 A DISCUSSO NA CONSTRUO SOCIAL F
I
A

A linguagem um elemento fundamental para as relaes humanas em comunidade, P


O
pois o homem estabelece suas relaes com seus pares por meio da linguagem. Nesse sentido, L

T
I
O homem, para ser cidado, no sentido weiliano, deve ser reconhecido, num C
A
288 TPICO 2 UNIDADE 3

momento inicial, como ser da linguagem e condio. Linguagem, porque


pela palavra dita que ele comea a existir, a se socializar; condio, porque
est situado no mundo. O homem constitui o mundo e o organiza a partir de
seu falar. Pode-se dizer que cidado a presena do homem falante como
particular no universal concreto. (CAMARGO, 2014, p. 61).

O que Weil percebeu que todos tm algo a dizer, mesmo que este algo seja simples ou
at mesmo sem sentido, mas o homem se constitui a partir do que ele expressa. Um exemplo
moderno disso so as redes sociais, que tm sido um meio importante, possibilitando que as
pessoas se expressem, mesmo que, para alguns, determinadas expresses sejam de certa
forma ridculas. Este espao, entretanto, permite que as pessoas critiquem e expressem suas
opinies sobre os mais diversos assuntos, abrindo espao para que haja discusso, elemento
fundamental na construo da cidadania.

A linguagem possibilita que o ser humano discuta e reflita sobre os mais diversos
assuntos que lhe dizem respeito, pois ao expressar suas opinies atravs da linguagem, o ser
humano levanta questes relevantes para que ocorram mudanas no sentido de haver um
aperfeioamento social ou no, isso depende de como o indivduo se utiliza da linguagem. A
discusso a anlise feita dos elementos sociais a partir da razo e do uso da linguagem. De
acordo com Srgio Camargo (2014, p. 64),

Na atitude da discusso, o homem interdita a velha luta, a atitude mais primitiva


que comum ao homem e ao animal. O homem que prefere a luta violento.
Assim, inicia-se o processo histrico de constituio da ideia de cidadania
razovel quando o homem opta por discutir. Cidado o homem que, ao op-
tar por falar abandona a violncia, ou melhor, o homem domesticado pela
atitude da discusso. Dito de outro modo, cada homem ao discutir est, no
fundo, se constituindo cidado pelo uso da linguagem, em vista de resolver
seus conflitos, os problemas da comunidade e do Estado.

A racionalidade humana se concretiza por meio da discusso, pois para se construir o


discurso ou a argumentao necessrio que o ser humano recorra ao ato de pensar. Diante
de um desentendimento o homem pode escolher dois caminhos: a discusso ou a violncia
fsica. A discusso exige que os envolvidos estejam muito bem preparados para travar uma
batalha no campo das ideias. A discusso viabiliza uma sada menos violenta para os embates.
O combate no campo das ideias o meio pelo qual o ser humano preserva a possibilidade
F de dilogo permanente com aqueles que pensam diferente. Cessando a discusso e partindo
I
L para a violncia sabido de todos que os danos so irreparveis, pois no h como devolver
O
S a vida de algum. Pela prpria experincia de Weil, com relao Segunda Guerra Mundial,
O
F ele entendeu a importncia da discusso como meio de buscar solues para os problemas
I
A humanos, jamais a guerra.
P
O
L A discusso no uma prtica recente, mas Historicamente, a discusso nasce na

T Grcia motivada pelo desenvolvimento democrtico das cidades gregas e pelo chamado
I
C predomnio do problema antropolgico, onde, pela primeira vez, o homem discute em busca
A
UNIDADE 3 TPICO 2 289

do agir razovel (CAMARGO, 2014, p. 63). A gora era o lugar onde as pessoas se reuniam
para discutir ideias, para refletir coletivamente sobre os problemas comuns, para exercer a
cidadania. No h como um pas se desenvolver se no colocar em pauta a discusso dos
assuntos que dizem respeito vida de seu povo. A discusso um elemento essencial na
construo de uma sociedade verdadeiramente democrtica.

FIGURA 15 - DIFERENTES MANEIRAS DE PENSAR

FONTE: Disponvel em: <http://pixabay.com/pt/photos/discuss%C3%A3o/>. Acesso em: 9 fev. 2015.

Para Weil (1990, p. 273), A discusso o fundamento ideal do sistema constitucional:


todo cidado nele considerado capaz de partilhar as responsabilidades do governo e
governante em potncia. Observe que o indivduo deve fazer parte das discusses daquilo que
est relacionado sociedade da qual ele faz parte, ou em assuntos que de alguma maneira
influenciam em sua vida. Nesse sentido, as questes importantes devem ser discutidas com
a sociedade.

Essas discusses podem ocorrer por meio de referendos, plebiscitos e nas campanhas
eleitorais. De outro modo, o povo elege seus representantes polticos para discutirem as
questes pertinentes ao dia a dia do cidado. Por este motivo fundamental para uma
democracia que o poltico, o governante, oua o clamor popular e pondere sobre suas colocaes
e anseios, pois sua responsabilidade levar as questes populares e discuti-las junto aos
demais parlamentares e poder executivo.

A discusso cumpre o propsito de se buscar as melhores solues para os problemas


comuns de uma comunidade, pois muitas solues encontradas sem discusso tornam-se
solues para uns e problemas para outros. A discusso tem por objetivo a busca do consenso, F
I
do bem-estar coletivo, de encontrar o lugar do indivduo na universalidade, pois a maneira de L
O
se evitar as discusses o isolamento, e mesmo assim o indivduo ir travar uma discusso S
O
consigo mesmo sobre o que melhor ou pior, suportar o peso da discusso coletiva, ou a F
I
solido do isolamento. A

P
O
Uma sociedade democrtica se constri atravs do debate de ideias e ideais, por este L

motivo os partidos polticos so importantes para a democracia, pois representam as mais T
I
diversas ideologias, os diferentes segmentos de uma determinada comunidade. Nesse sentido, C
A
290 TPICO 2 UNIDADE 3

o lugar na discusso deve ser garantido e mediado pelo governo. Para Weil (1990, p. 276),

A autoridade do governo repousa, em ltima anlise, na capacidade de ins-


taurar e guiar esta discusso. certo que o governo no onisciente, ele
participa da discusso, busca saber, como todos os cidados e junto com
eles. Entretanto, compete-lhe arbitrar a discusso e determinar o momento
da ao, na qualidade de governo prudente. Ele ser seguido pelos cidados
se souber dirigir a discusso e se esta tornou acessveis e aceitveis tanto as
necessidades tcnicas como o que d sentido a elas - e lhes d um sentido
to evidente para todos que eles prefeririam, se preciso fosse, morrer a levar
uma vida privada desse sentido.

No papel do governo impor suas ideologias ou programas sem permitir que haja
ampla discusso por todos os setores da sociedade. dever do governo assegurar que partidos
polticos, sindicatos, grupos religiosos, minorias tnicas e raciais, entre outros grupos, participem
de discusses sobre os assuntos que lhes dizem respeito. O partido poltico que assume o
governo no deve jamais cercear o direito das pessoas de se pronunciarem, discutirem e
exporem suas ideias. A partir do momento em que um governo no permite a discusso ou
foge dela, a democracia pode estar em risco.

IMPO
RTAN
TE!

muito importante que o cidado aprenda a ouvir com cautela,
pois sempre que a lngua for mais rpida que o pensamento,
muitas coisas so ditas sem medir as consequncias. Mesmo
nas discusses mais acirradas necessrio preservar o respeito
e o bom senso. No campo poltico, principalmente, comum
observarmos uma retrica que tem como objetivo desconstruir o
outro, em muitos casos se utilizando de argumentos falsos com
um tom de verdade, enganando os incautos.

A discusso o que caracteriza a cidadania, pois aes do indivduo na comunidade


no podem ser injustificadas, suas aes precisam ser justificadas mediante o discurso. Este
discurso estar sujeito aprovao, ou reprovao da comunidade. Nesse sentido, a discusso
constitui-se elemento essencial da cidadania, pois cidado o homem que, ao pertencer a
F uma comunidade, a um Estado, tem conscincia da existncia do outro, fala com o outro,
I
L capaz de defender seus interesses, de fazer prevalecer, pela discusso, seu ponto de vista
O
S (CAMARGO, 2014, p. 65). Essa discusso com o outro pode ser mediada pelo Estado por
O
F meio dos tribunais, pois a lei tem o papel de apontar quem est com a razo em determinada
I
A discusso.
P
O
L A independncia dos tribunais fundamental para a manuteno da discusso e a

T democracia. Nos Estados modernos a lei deve regular as relaes entre indivduos e entre o
I
C indivduo e o Estado. Para Weil (1990, p. 214), O cidado s tem seus direitos protegidos pelos
A
UNIDADE 3 TPICO 2 291

tribunais. Os tribunais so fundamentais para mediar as partes envolvidas na discusso em


uma determinada comunidade, pois cabe ao tribunal decidir por A ou por B numa discusso a
partir da lei, que resultado de um entendimento coletivo. Nesse ponto precisamos compreender
sobre a moral coletiva que norteia a conduta dos indivduos em uma comunidade. O tribunal
no aplica a justia, seu dever analisar as discusses luz do que est na lei e aplicar aquilo
que a lei determina. claro que mesmo a aplicao da lei passiva de discusso, pois a lei
pode ser interpretada de diferentes maneiras. Por este motivo que a vida numa comunidade
dialtica, pois a cada discusso se abre a possibilidade para novas discusses e anlises.

O que podemos concluir sobre a discusso que ela uma prtica comum entre as
pessoas, pois quanto mais as pessoas estiverem abertas discusso, anlise racional das
questes comuns, haver uma maior chance de que a sociedade melhore, aperfeioe e mude
seus conceitos e preconceitos.

4 O ESTADO MODERNO

Na vida em comunidade cada indivduo, cada instituio, cada organizao possui seu
espao, com o objetivo de que o coletivo caminhe em direo estabilidade e felicidade
geral. Essa unio racional e organizada da comunidade denominada de Estado. De acordo
com Mota (2015, s.n.),

O Estado a pessoa jurdica territorial soberana formada pela sociedade.


Entende-se de tal forma que se caracteriza por ser uma sociedade poltica
difundida por vontade da humanidade, constitudo de trs elementos originrios
e indissociveis: Povo, Territrio e Governo soberano, tendo em vista a regu-
lamentao, unificao e preservao da sua entidade e de seus peculiares
interesses pblicos. Ao ser constitudo aos poucos, o Estado ficou vulnervel
aos problemas sociais que percorrem a sociedade, tendo como causa maior
a falta de mecanismos que regulamentam determinados problemas sociais.
Diante dessa vulnerabilidade, o Estado tenta atribuir suas funes de maneira
organizada e correta em busca do bem-estar do povo.

Segundo Eric Weil (1990, p. 185), O Estado a organizao racional e razovel (moral)
da comunidade; no se lhe pode atribuir outro objetivo seno a subsistncia como organizao F
I
consciente da comunidade histrica da qual ele organizao, comunidade que o que L
O
exatamente nesta forma de organizao. Essa organizao consciente da comunidade, que S
O
personificada na instituio Estado visa subsistncia da mesma, ao longo do tempo vem F
I
passando por mudanas no sentido de que suas polticas contemplem todas as pessoas da A

comunidade. O governo de um Estado deve estar consciente de que de sua responsabilidade P


O
governar para todos, pois todo indivduo parte da comunidade da qual o Estado a instituio L

que delibera acerca das questes sociais. T
I
C
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292 TPICO 2 UNIDADE 3

FIGURA 16 - COMUNIDADE ORGANIZADA RACIONALMENTE

FONTE: Disponvel em: <http://sociedadeemdia.blogspot.com.br/2010/08/definicoes-para-sociedade.


html>. Acesso em: 9 fev. 2015.

Para Weil (1990, p. 198), O Estado moderno a organizao consciente de uma


comunidade que trabalha racionalmente; o governo que dirige os negcios dessa comunidade-
sociedade deve ser informado para poder deliberar e decidir: o aparelho destinado a preencher
esta funo a administrao. O governo tem a funo de administrar o Estado no sentido de
executar aquilo que considerado necessrio vida da comunidade. Para maior eficincia do
Estado, o governo dispe da administrao pblica que cumpre o papel de auxiliar o governo.
A administrao no o governo, ela coloca em prtica as determinaes do governo, mas
uma entidade autnoma, ou pelo menos deveria ser para o bom andamento da mquina
pblica e a democracia.

Um governo racional senhor da estrutura da administrao, e ele quem


escolhe os problemas a lhe submeter, ao mesmo tempo que decide sobre os
atos executivos que incumbem aos funcionrios; mas ele no intervm no
trabalho corrente da administrao e limita-se ao controle de sua qualidade e
eficincia. Com estas reservas, o funcionrio independente, e por coop-
tao, segundo o critrio exclusivo da qualificao tcnica e intelectual dos
candidatos, que se constitui o corpo de funcionrios. A administrao, consci-
ncia tcnica (racional) do Estado e rgo eficaz de execuo das ordens do
governo, o seu servidor autnomo. (WEIL, 1990, p. 199)

Observe que a administrao cumpre as determinaes do governo, mas no deve


ser usada pelo governo para o cumprimento de seus anseios particulares, pois o governo
tem a obrigao de orientar a administrao pblica no sentido de atender as necessidades
da comunidade. O governo submete a administrao quilo que considera necessrio para a
F
I soluo de problemas e a melhoria da vida da comunidade, mas deve preservar sua autonomia,
L
O pois a administrao deve ser composta de um corpo tcnico que por meio de seu trabalho
S
O no vise o beneficiamento do governo, mas que os maiores beneficiados sejam os cidados
F
I que pagam seus impostos e contribuem para a manuteno do Estado. Por este motivo que o
A
excessivo nmero de cargos comissionados em determinados governos acaba por prejudicar
P
O a administrao, pois a administrao perde seu carter tcnico e ganha um carter partidrio,
L
gerando em muitos casos o uso da administrao pblica em funo do governo e no da
T
I comunidade.
C
A
UNIDADE 3 TPICO 2 293

Weil classifica os Estados modernos de duas maneiras: autocrticos ou constitucionais.

Fala-se de governo autocrtico quando o governo o nico a deliberar, decidir


e agir, sem nenhuma interveno obrigatria de outras instncias (interveno
obrigatria: nenhum governo faz tudo sozinho, todos tm necessidade de
rgos de execuo, de equipes de informaes etc., numa palavra, de uma
administrao). Falaremos, na falta de outro termo, de governo constitucional
quando o governo considera-se, e considerado pelos cidados, obrigado a
observar certas regras legais que limitam sua liberdade de ao, pela inter-
veno obrigatria de outras instituies que definem as condies de validez
dos atos governamentais - condies inexistentes em regime autocrtico, no
qual basta que a vontade do governo faa-se conhecida para ser legalmente
aceitvel e vlida. (WEIL, 1990, p. 209).

O Estado precisa preservar a autonomia das instituies que dele fazem parte, pois
a independncia dos poderes do Estado fundamental para a manuteno dos direitos do
cidado. No governo autocrtico no h espao para a discusso, pois as deliberaes partem
exclusivamente de quem est no poder, os direitos do homem so fragilizados, pois a qualquer
momento podem ser violados pelo governo.

O governo constitucional, por sua vez, tem a obrigao de cumprir e fazer cumprir aquilo
que est prescrito na Constituio. Nesse sentido, a lei ganha um status muito importante, pois
por meio dela que as discusses so mediadas. O governo constitucional resultado de uma
evoluo histrica e social onde o povo buscou sua autonomia, pois a Constituio que rege tal
governo teve ampla discusso pelos representantes da sociedade no sentido de estabelecer
diretrizes que faam valer a vontade popular em detrimento da vontade das elites dominantes
ou de governos tirnicos, pois No sistema constitucional, a lei regra e limita a liberdade de
ao do governo (WEIL, 1990, p. 213). De acordo com Renato do Vale (2012, p. 52-53), Na
dimenso poltica, a lei a forma na qual o Estado existe e pensa, ou seja, neste plano poltico
compete s leis proporcionar a forma da conscincia aos objetivos da comunidade e nela se
exprime a vida consciente dessa comunidade.

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UNI
Voc sabia que o Brasil j est em sua stima Constituio?
Aprimeira Constituiofoi feita em 1824. Ela estava inserida no
contexto de ps-independncia do Brasil e para constitu-la ocorreu
um grande confronto entre as principais foras polticas da poca.
Asegunda Constituioocorreu no ano de 1891 e tinha como
contexto a ps-proclamao da Repblica. A terceiraConstituio
ocorreu em 1934, seu contexto poltico estava includo na
chamada Era Vargas, onde Getlio Vargas era o presidente.
Aquarta Constituioocorreu trs anos depois, em 1937. Ainda
inserida no contexto da Era Vargas. Seu mandato terminava em
1938 e para continuar no poder ele teve que dar umgolpe de
Estado, dizendo que era obrigado a fazer isso para proteger o povo
brasileiro de ameaas comunistas. Aquinta Constituioocorreu
no ano de 1946. Em contexto estava aredemocratizao do pas.
Asexta ocorreu em 1967, e ela estava inserida em uma nova
ditadura, agora a militar. E finalmente aConstituio de 1988.
Agora sim, com o fim de uma nova ditadura, o Brasil estava na
mesma situao que anos atrs, precisava de uma ordem que
estabelecesse a redemocratizao do pas.
FONTE: Disponvel em: <http://www.infoescola.com/direito/
constituicoes-brasileiras/>. Acesso em: 17 fev. 2015.

A Constituio possibilitou o surgimento do Estado de Direito, considerando que A


funo do Estado de Direito colocar as condies reais da igualdade diante da lei. As leis
devem reger todas as relaes entre os cidados, assim como as relaes dos cidados com
a sociedade e com o Estado (CAMARGO, 2014, p. 204). Num Estado de Direito a lei cumpre
um papel fundamental na regulamentao das relaes entre o governo e a populao, pois
se o cidado se sentir injustiado por parte do governo, de outros cidados, empresas etc., o
mesmo pode recorrer aos tribunais para buscar amparo diante daquilo que considera injustia.

FIGURA 17 - LEI MARIA DA PENHA

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FONTE: Disponvel em: <http://www.vozdabahia.com.br/index/blog/id-149668/lei_maria_da_penha_
P ainda_e_pouco_usada_pela_justica_em_casos_de_assassinato>. Acesso em: 9 fev. 2015.
O
L

T A Lei Maria da Penha tem por objetivo coibir a agresso fsica contra as mulheres,
I
C tornando crime esse tipo de atitude por parte dos homens. Por muito tempo, no Brasil, as
A
UNIDADE 3 TPICO 2 295

mulheres sofreram com o abuso da fora bruta dos homens, pois quando no conseguiam se
impor pela argumentao, recorriam a atitudes agressivas de espancamento. Com esta lei o
Estado passou a interferir diretamente nessas situaes de violncia e permitir mulher mais
liberdade e igualdade em relao aos homens. Isso tem sido um passo muito importante nos
direitos das mulheres.

A elaborao das leis um processo dinmico e as mesmas vo surgindo em decorrncia


da necessidade de regulamentar os procedimentos diante dos problemas que se apresentam
na comunidade, como foi o caso da Lei Maria da Penha.

O carter essencial da lei dado pela sua universalidade formal: ela lei para
todos os cidados, e todos os cidados so iguais diante dela. No por seu
contedo justo que ela lei, mas por dirigir-se a todos nos mesmos termos
e no por reconhecer nenhuma diferena natural e permanente entre os indi-
vduos (a infncia, a doena mental etc. so considerados estados essencial-
mente passageiros e a sua presena s suprime os direitos e as obrigaes
do indivduo enquanto durarem tais estados). Todo indivduo adulto e sadio de
esprito igual a todos os outros enquanto, por uma ao individual, no se
separar deles mostrando-se como criminoso ou louco. (WEIL, 1990, p. 192)

A lei deve possibilitar que todos sejam julgados igualmente, pois independente da classe
social, cor, etnia, o indivduo deve ser julgado pela lei e no por sua procedncia ou classe
social. Vamos usar o exemplo da Lei Maria da Penha. O homem que agredir uma mulher, no
importa se negro, branco, rico ou pobre, doutor ou analfabeto, a lei deve ser aplicada na
mesma medida, pois agredir uma mulher crime. Observe que a lei torna os homens iguais
no sentido de que o crime que cometeram crime independente de quem so. Voc poderia
levantar a questo de que alguns cometem crimes e so punidos, outros no. Isso no depende
da lei, mas depende de como foi interpretada e aplicada quela situao.

Se a lei muitas vezes no faz justia, qual sua importncia? A importncia fundamental
da lei est no fato dela existir e o cidado poder se referir a ela, pois se a mesma injusta ou
no, a questo que ela existe. Pior do que uma lei injusta a inexistncia de alguma lei, pois
no havendo lei os indivduos podem fazer o que quiser, pois no h uma regra na qual se
pode recorrer e fazer valer o menor direito que seja. Havendo lei h um parmetro sobre o qual
o cidado poder pautar suas decises. A questo de justia ser tratada no prximo tpico.

F
Para finalizar este tpico, vamos falar um pouco mais sobre a tarefa do Estado moderno. I
L
De acordo com Weil (1990, p. 186), O
S
O
F
A tarefa do Estado proteger a comunidade contra os perigos que a ameaam, I
seja do interior (decomposio), seja do exterior (opresso ou supresso por A
outros Estados). A poltica prtica de cada Estado apresenta, por consequn-
cia, dois aspectos fundamentais tradicionalmente designados como poltica P
O
externa e poltica interna. L

T
I
A comunidade possui problemas internos dos mais diversos, cabe ao Estado lidar com C
A
296 TPICO 2 UNIDADE 3

estes problemas no sentido de possibilitar solues para a manuteno das relaes sociais.
Um exemplo de problemas internos de uma comunidade a violncia. De que maneira o Estado
pode intervir nestes problemas. Dentre as muitas solues apresentadas que o Estado deve
deter o monoplio da violncia. Mas em que sentido? Somente o Estado tem apoio legal, por
meio de mecanismos, de utilizar-se da fora para fazer com que o cidado cumpra a lei. Nesse
sentido, cabe ao Estado fazer justia e no ao cidado comum. Quando algum rouba, no cabe
ao cidado comum prender este ladro, cabe ao Estado proceder conforme a lei estabelecida
e aplicar a punio prescrita na lei para o ladro que infringiu a lei. Se por um lado o cidado
contribui, principalmente com o pagamento de seus impostos para a manuteno do Estado,
este, por sua vez, tem a obrigao de proteger a comunidade. Nesse sentido, observamos que
h uma obrigao mtua entre Estado e comunidade.

FIGURA 18 - PROTEO DA CRIANA CONTRA ABUSO SEXUAL

FONTE: Disponvel em: <http://erradicacaotrabalhoinfantil.blogspot.com.br/2012/09/solicitamos-


auxilio-na-divulgacao-das.html>. Acesso em: 17 fev. 2015.

A poltica externa de um Estado diz respeito tarefa que o mesmo tem de proteger
seus cidados contra tudo aquilo que considerado ameaa felicidade dos mesmos. Essa
proteo envolve desde as questes de ordem militar e econmica, entre outras. Por exemplo,
quando h um risco de que as importaes aumentem o desemprego na comunidade, o governo
F que lidera o Estado decide elevar os impostos de importao para proteger os cidados do
I
L desemprego. Diante das inmeras ameaas externas, o Estado precisa ter polticas claras
O
S para defender os interesses de seus cidados que contribuem para a manuteno do mesmo.
O
F
I
A Para finalizar, gostaria de destacar a importncia do Judicirio, pois uma instituio
P
fundamental para garantir os direitos do cidado. Para Weil (1990, p. 217), A independncia
O
L
dos tribunais uma condio indispensvel para a vida do Estado constitucional. O Judicirio

T
tem que estar protegido contra qualquer ameaa, seja do governo ou dos cidados comuns,
I
C
para que suas deliberaes e decises sejam conforme s leis, as mais justas possveis. Os
A tribunais devem fazer valer a universalidade e imparcialidade da lei e determinar sua aplicao,
independente de quem seja.
UNIDADE 3 TPICO 2 297

5 CIDADANIA

Para Camargo (2014, p. 15), problematizar a ideia de cidadania significa perguntar


sobre o modelo de sociedade e comunidade poltica que se quer construir. O indivduo que
faz parte de um Estado est condicionado a cumprir obrigaes para com o Estado de maneira
a fazer com que este garanta os direitos do cidado. Entre os direitos fundamentais de um
cidado se encontra aquele de o Estado garantir que as leis sejam cumpridas. A existncia
do Estado se deve participao do indivduo, pois a individualidade no Estado est atrelada
universalidade, pois a menos que o indivduo se isole completamente, ela far parte da
sociedade, mesmo que essa participao seja mnima, como, por exemplo, ser apenas mais
um nmero nas estatsticas.

De acordo com Srgio Camargo (2014, p. 190), Weil distingue os cidados ativos dos
cidados passivos de acordo com o modo como participam do debate pblico. O primeiro
grupo vive por si e para si, pois seus interesses se resumem em conquistar bens materiais
para satisfazer seus interesses. O segundo grupo, por sua vez, tem interesses mais amplos,
pois est preocupado com as questes relacionadas justia, elementos tais como valores
que sejam de interesse e consenso coletivo. Nesse sentido, o cidado ativo est preocupado
com a corrupo que prejudica a comunidade, no somente a corrupo, mas podemos pensar
nas questes ambientais que tm se agravado nas ltimas dcadas e prejudicado milhares de
pessoas. O sentido de cidado ativo no simplesmente aquele que participa das discusses
pblicas, mas acima de tudo d uma contribuio importante para o desenvolvimento da
comunidade, pois A felicidade apresenta-se como a meta a ser alcanada pelo cidado, visto
que ela que d sentido ao moral e poltica, ou melhor, o objetivo da poltica a felicidade
do cidado numa vida em comum, vida vivida com sentido (CAMARGO, 2014, p. 191).

O exerccio pleno da cidadania elevar os interesses coletivos no mesmo nvel que os


interesses individuais, pois isso possibilita que o indivduo desenvolva atitudes elevadas com
base no em seus interesses egostas, mas naquilo que considera bom para toda a comunidade.
A participao poltica do cidado um meio de exercer a cidadania, pois por meio dessa
participao ele acaba por conhecer os reais problemas sociais e lutar coletivamente para a F
I
soluo dos mesmos. L
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6 A MORAL E A POLTICA P
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T
Antes de qualquer coisa, precisamos responder a duas perguntas: O que moral? e, I
O que poltica? C
A
298 TPICO 2 UNIDADE 3

Segundo Vale (2013, p. 161),

Moral diz respeito ao mor, moris, que traduz o grego t ethika. O termo Moral
designa, tanto em latim como em grego, aquilo que se refere aos costumes,
ao carter, s atitudes humanas em geral e, em particular, s regras de con-
duta. Moral pode ser definida tambm como um conjunto de regras que so
seguidas no interior dos grupos humanos.

Diante deste significado de moral, precisamos entender que o conceito fundamental de


moral o dever. No existe, portanto, moral sem o dever, pois de acordo com Weil, O dever
existe sob a forma dos deveres, no plural: o dever encontrado nas relaes com o outro e
consigo mesmo considerado (e tratado) como outro (apud CAMARGO, 2014, p. 90). O dever
ainda concebido de dois modos, ou seja, todo dever de fazer produz um dever de no fazer,
toda proibio encontra sua contrapartida num mandamento (apud CAMARGO, 2014, p. 90).

Observe a figura a seguir e reflita sobre se moral ou imoral no se sujeitar s leis que
consideramos injustas?

FIGURA 19 - MORAL OU IMORAL

FONTE: Disponvel em: <http://www.desistirnunca.com.br/tag/martin-luther-king-jr/>. Acesso em: 5


fev. 2015.

A moral surge a partir do momento em que os grupos humanos passaram a utilizar a


linguagem, a comunicao, formas de estabelecer princpios de relacionamento e dever frente
F
I ao outro. A luta pela sobrevivncia de uma comunidade, que um dos princpios que unem
L
O os homens, s possvel pelo estabelecimento de uma moral de grupo. O trabalho de Weil
S
O
repensar o contedo da moral, tais como a justia, verdade, honestidade, felicidade e prudncia,
F
I
que so essenciais para a vida do indivduo e da comunidade. A universalidade o critrio
A utilizado para orientar a ao do indivduo na sociedade e perante o Estado. A moralizao do
P
O
cidado consiste em cumprir com seus deveres, ou seja, a moral concreta.
L

T O dever da honestidade tido como o fundamento para os demais, pois conforme Weil
I
C (apud CAMARGO, 2014, p. 90), um nico dever, o da honestidade, e que esse dever contm
A
UNIDADE 3 TPICO 2 299

em si todos os outros. Por que a honestidade tem esta importncia para Weil? A honestidade
diz respeito conduta do cidado com o outro e consigo mesmo. A honestidade deve regular as
aes do cidado para que os problemas sociais sejam minimizados, pois se as aes visarem
sempre a verdade, a transparncia, dizer no ao engano, haver menor ndice de violncia,
corrupo, pobreza, desigualdade.

O dever de ser feliz, para Weil (apud CAMARGO, 2014, p. 93), todo dever do homem
moral fundado no dever para consigo mesmo, que o dever de ser feliz. A felicidade a
busca de todo homem e para isso ele empreende seus esforos. O dever de ser feliz no
um dever do outro em relao ao indivduo, mas dever do indivduo para consigo mesmo.
atravs da sua ao moral no mundo que ser feliz se torna possvel. A felicidade o ponto
fundamental para a vida do cidado, pois felicidade no consiste naquilo que o homem possui,
mas acima de qualquer coisa, a felicidade est relacionada ao que o homem para consigo
mesmo e para a comunidade.

O dever da justia, segundo Weil (apud CAMARGO, 2014, p. 97): A justia exige
que eu trate o outro como a mim mesmo e a mim mesmo como o outro: antes da ao, todo
indivduo , para a moral, equivalente a qualquer outro indivduo. O mal que no quero para
mim no posso desejar aos outros. Nisto consiste o dever moral, pois eu sou como o outro,
pensar em si deve ser tambm pensar no outro. O cidado pleno aquele que vive para si e
para a comunidade, no se anulando, mas cooperando.

O dever da prudncia, de acordo com Weil (apud CAMARGO, 2014, p. 100): A prudncia
a virtude que leva perfeio todas as outras, o dever que torna praticveis os deveres da
justia. A prudncia elemento de equilbrio, pois o homem prudente cidado que avalia
suas aes e a partir dessas avaliaes busca concretiz-las com vistas ao bem maior, ao bem
coletivo. A prudncia diz respeito ainda ao controle dos interesses, pois o homem prudente
sabe controlar seus impulsos, seus interesses so regulados e equilibrados. O prudente est
consciente de sua responsabilidade moral diante da comunidade e capaz de escolher agir
conforme a realidade da comunidade no sentido de manter a estabilidade. Evidentemente que
no se pode confundir prudncia com passividade ou covardia, pelo contrrio, a prudncia
ter atitude corajosa sem perder o equilbrio.

F
A poltica pode ser definida como a compreenso do cidado vivendo no Estado. a I
L
ao razovel, sensata, visando satisfao de todos os cidados no Estado (CAMARGO, O
S
2014, p. 77). O indivduo razovel aquele que faz suas escolhas avaliando as consequncias O
F
das mesmas no apenas com vistas na lei ou numa possvel punio, uma escolha razovel I
A
consiste numa escolha de bom senso. Vamos utilizar, por exemplo, o caso das filas nos bancos.
P
Quando voc chega num banco e v uma fila enorme. Esto ali vrias pessoas, entre elas O
L
idosos e mulheres gestantes. Um cidado razovel ir aguardar sua vez na fila, pois sabe que
deve respeitar os demais que ali esto. No entanto, este mesmo indivduo poderia dar um T
I
jeitinho e furar a fila. Ele no ser preso por isso, mas por que no o faz? Ele no fura a fila C
A
300 TPICO 2 UNIDADE 3

porque se coloca no lugar daqueles que esto ali, e da mesma maneira que no gostaria que
algum fizesse isso com ele, tambm no far com os outros. Essa uma ao razovel do
indivduo que vive numa sociedade e deseja que todos estejam satisfeitos.

A moral e a poltica esto profundamente interligadas, pois no h poltica sem moral.


Diante de tal afirmao, podemos questionar qual o lugar da moral na poltica? De acordo com
Renado do Vale (2013, p. 162),

O lugar da moral na poltica definido por Weil: o campo da questo pelo


sentido da ao, j que se impe no plano da universalidade. O homem come-
ou a agir antes de se pr a refletir sobre suas aes, e aqui se d a prioridade
da poltica. Devemos ter conscincia de que a poltica ocupa todo o centro
dinmico da nossa civilizao, ultrapassando os limites da particularidade e
alcanando a universalizao.

A ao poltica precisa ter sentido, ou seja, necessrio que para toda e qualquer ao
poltica haja o elemento de racionalidade. As aes precisam ser pensadas. Nesse sentido,
o lugar da moral na poltica consiste no fato de que por meio dela se questione o sentido de
uma determinada ao poltica. Sendo a moral um conjunto de regras, logo, deve ser tomada
como fundamento da ao poltica, pois o cidado s socializado e politizado pela moral
(CAMARGO, 2014, p. 80). A socializao a assimilao dos hbitos, costumes, leis, tradies
etc., de uma determinada sociedade. No decorrer da vida o indivduo passa por este processo
de socializao e a moral tem um papel fundamental neste processo, pois por meio dela que
o indivduo dever descobrir se suas aes so aceitveis ou reprovveis em uma determinada
sociedade. Nesse sentido, um indivduo considerado moral quando cumpre com os deveres
morais estabelecidos pela comunidade. O indivduo imoral aquele que no cumpre com seus
deveres morais e por isso sofre sanes e punies em decorrncia de seu comportamento. O
indivduo amoral aquele que incapaz de julgar se determinada ao moralmente aceitvel
ou no, neste grupo se encaixam as pessoas com alguma deficincia mental.

O indivduo ao viver isolado estabelece seus prprios princpios. Todavia, ao fazer parte
da comunidade, sua individualidade dever ser superada pela universalidade, no que suas
vontades sejam de todo anuladas, mas ser necessrio observar princpios da moral coletiva
no sentido de no provocar conflitos. A ao poltica do cidado na comunidade precisa ser
F com base na moral coletiva, ou seja, a moral que regula as relaes sociais na comunidade.
I
L Essa moral coletiva deve ser construda com sua participao, ou, se houver necessidade
O
S de mudanas, que haja ampla discusso no sentido de se estabelecer novos princpios
O
F reconhecidos pela maioria e pelo Estado.
I
A

P Quanto moral estabelecida pela comunidade, o cidado poder escolher entre viver de
O
L
acordo com a moral vigente, ou a recusa da mesma. Devemos observar que o estabelecimento

T
de uma regra deve essencialmente objetivar o bem-estar coletivo e a felicidade da comunidade.
I A poltica em certo sentido a moral posta em prtica. Segundo Weil (apud CAMARGO,
C
A 2014, p. 77), a poltica a moral em marcha, o que significa dizer que a moral est sujeita
UNIDADE 3 TPICO 2 301

s convenincias polticas que melhor atendam aos grupos humanos.

O homem precisa ter conscincia de que pode ser moral, ou seja, capaz de viver em
uma comunidade que tem estabelecida uma moral que o antecede, mas que ao identificar-
se com a comunidade precisa abraar a moral estabelecida. O que busca o indivduo moral
(descobrir a moral que o torne verdadeiramente moral) a satisfao, o apaziguamento da sua
inquietude sobre o sentido da vida, a reconciliao interior que suprima o conflito e diviso - em
uma palavra, a felicidade. (WEIL apud VALE, 2013, p. 163).

A moral, dentre outros aspectos, tem um papel humanizador, pois no aspecto moral
todos os homens so constitudos de humanidade. Segundo ric Weil (1990, p. 34),

A moral, afirma, pois, que todo homem tem em si tudo o que constitui a hu-
manidade do homem. Na verdade, assim que ela define o homem. O que
ela deduz da resume-se na afirmao de que no devo nunca considerar um
ser humano como objeto, como coisa manipulvel e utilizvel; devo respeitar
nele a humanidade, trat-lo como ser razovel.

Essa colocao de Weil deixa muito claro qual deve ser o tratamento em relao ao
outro, pois qualquer indivduo constitudo de humanidade, embora as aes de alguns de
certa maneira os desqualifiquem desta que deve ser a caracterstica fundamental daquele que
faz parte da comunidade.

Para concluir este assunto, Weil (apud VALE, 2013, p. 166) diz que a vida moral no
constitui o todo da vida humana, mas sem ela no existe a vida humana propriamente dita.
Observe que a moral est intrinsecamente relacionada com a nossa existncia. Por que no
existe a vida humana propriamente dita sem a moral? A principal caracterstica da vida humana
so as relaes sociais que o indivduo estabelece. Para que as relaes sociais perdurem
necessrio que sejam reguladas por algum tipo de moral, pois do contrrio, em sua grande
maioria as relaes sociais no se sustentam. Nesse sentido, as regras so fundamentos
necessrios vida em comunidade.

7 O VALOR SOCIAL F
I
L
O
S
Cada indivduo possui obrigaes para com a comunidade da qual faz parte. A cidadania O
F
consiste em estar consciente destas obrigaes e assumi-las. Para compreendermos um I
pouco mais sobre isso, precisamos entender que o ser humano, ao longo da histria, vem se A

organizando em sociedade no sentido de sobreviver aos desafios naturais. Nesse sentido, a P


O
sociedade travou uma luta pela sobrevivncia que Weil (1990, p. 77) coloca da seguinte maneira: L

T
Toda sociedade humana est essencialmente em luta com a natureza exterior. I
C
A
302 TPICO 2 UNIDADE 3

Isso no significa que os homens, em todas as pocas, considerem-se em


luta com a natureza. Ao contrrio, esse modo de interpretar as relaes do
homem com a natureza exterior o resultado de uma longa e complexa evo-
luo, e caracteriza, propriamente, o homem moderno. Porm, mesmo onde
a conscincia da luta no existe, e onde prevalecem outras interpretaes, o
fato que os homens no se contentam com o que a natureza lhes oferece
e transformam o dado que assim, torna-se matria, materies, hle, material
de construo.

Observe que nesta luta pela sobrevivncia cada indivduo tem um papel social. ric
Weil trabalha com a ideia de que o indivduo possui um valor social, e este valor est associado
ao que o indivduo representa para a sociedade. Na sociedade moderna o indivduo luta no
sentido de garantir sua utilidade para a sociedade agregando maior valor social sua pessoa.
Segundo Weil (1990, p. 102),

Os indivduos, na competio pela maior participao nos bens produzidos,


considerando-se como objetos naturais a serem valorizados, tentaro atribuir-
-se o mais alto grau possvel de utilidade. Pouco importa que essa utilidade
seja real ou aparente; mas importa muito que seja reconhecida pelos que, no
momento em que ela entra em cena, detm o poder de situ-lo.

Nesta luta constante da comunidade por sobrevivncia, cada indivduo ter um grau
de importncia, ou valor social, a partir das suas contribuies que garantem a sobrevivncia
da comunidade. O valor do indivduo est de alguma maneira associado ao grau de utilidade
que este possui para a sobrevivncia do grupo. Nesse sentido, Weil (1990, p. 80) escreve que
O indivduo [...] o produto da sociedade, na sua individualidade como na sua existncia.
Assim, no plano social, ele no conta pelo que para si, mas pelo que para a comunidade:
uma fora disponvel para a luta.

O indivduo possui um valor para a coletividade. A partir desta questo, por exemplo,
podemos debater: qual o valor social de um professor? O valor social de um professor
incalculvel, mas se pensarmos este valor social em relao ao valor financeiro pago a ele
por sua contribuio social, veremos que h uma injustia muito grande. O valor social nem
sempre est no mesmo nvel que o valor monetrio.

Para concluir, necessrio que a sociedade repense sobre o valor social que os
indivduos representam para a sobrevivncia da comunidade. Esse repensar envolve valorizar
F
I e reconhecer aqueles que realmente trazem benefcios concretos para o desenvolvimento
L
O social, cultural e poltico da sociedade.
S
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UNIDADE 3 TPICO 2 303

LEITURA COMPLEMENTAR

Em princpio, a sociedade moderna calculista, materialista e mecanicista.

Os termos empregados comportam uma carga afetiva. Como palavras de ordem,


para alguns elas designam os nicos valores sustentveis, para outros, valores negativos e
execrveis. J chamamos a ateno para a natureza desta oposio (cf. 21). oportuno
acrescentar que estes termos podem ser tomados, e devem s-lo aqui, em sentido descritivo.

Em princpio, dado que subsistem fatores psicolgicos, a sociedade moderna mostra-se


calculista: toda deciso, toda transformao dos processos de trabalho e de organizao, todo
emprego das foras disponveis (humanas e naturais) deve ser justificado, demonstrado que o
domnio do homem sobre a matria reforado, dito de outro modo, que o mesmo resultado
mensurvel obtido com menor dispndio de energia humana, ou que uma quantidade maior
de foras naturais posta disposio da humanidade (ou da comunidade particular), coisa que
no seria possvel com os mtodos anteriores. A sociedade moderna materialista porque nas
suas decises s os fatores materiais so levados em considerao. Ela mecanicista porque
todo problema deve ser transformado em problema de mtodo de trabalho e de organizao, e
s deve referir-se ao mecanismo do trabalho social: todo problema que no pode ser formulado
assim , por definio, um falso problema.

A sociedade orienta-se desta maneira e assim que ela se mostra a quem a observa
na sua atividade, esteja ele convencido ou no do valor desse sistema. Sua conscincia, a
conscincia dos que enunciam o princpio da sociedade e emitem juzos que tm autoridade
sobre os outros, formula o que essa sociedade , porque conscientemente, quer s-lo.

FONTE: WEIL, ric. Filosofia Poltica. So Paulo: Loyola, 1990. p. 92.

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304 TPICO 2 UNIDADE 3

RESUMO DO TPICO 2

Neste tpico voc viu que:

A discusso fundamental para o aperfeioamento da vida em comunidade e por meio da


discusso possvel participar da vida poltica e promover mudanas.
Ao governo cabe garantir e mediar o espao para a discusso, pois uma sociedade mais justa
se constri a partir das discusses dos problemas levantados e debatidos pelos cidados.
O Estado moderno a organizao racional da comunidade que visa deliberar sobre as
questes relacionadas sua sobrevivncia.
dever do Estado proteger o cidado de ameaas internas e externas.
Cidado aquele que participa da vida pblica, sua participao deve ser garantida pelo
Estado. Cidadania a preocupao com o bem-estar coletivo.
Moral diz respeito aos deveres que o cidado tem para com a comunidade no sentido de
garantir uma vida sem violncia.
Cada indivduo tem um valor social em decorrncia de sua contribuio para a sobrevivncia
da comunidade.

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IDADE
ATIV
AUTO

1 Defina, com suas palavras, o que caracteriza o Estado moderno, segundo ric Weil.
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
______________________________________________________

2 De que maneira Weil entende o dever de ser feliz?


____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
________________________________________

3 Eric Weil d importncia muito grande ao fato de que a discusso deve fazer parte
da construo social tanto do indivduo quanto da comunidade. Sobre a necessidade
da discusso na construo social, analise as sentenas a seguir:

I- fundamental para manuteno da discusso e da democracia que os tribunais


sejam independentes.
II- A discusso tem por objetivo a busca da imposio das ideias de quem tem mais
prestgio na comunidade e no deve levar em conta se esta discusso racional ou
no.
III- A discusso viabiliza uma sada menos violenta para os embates, pois o combate
que antes se dava no campo fsico, com a discusso passou para o campo das ideias. F
I
IV- O governo no deve se envolver com as discusses da comunidade, pois sua tarefa L
O
apenas executar aquilo que determinado pela administrao pblica. S
O
F
Agora, assinale a alternativa CORRETA: I
A
a) ( ) As afirmativas I e II esto corretas.
P
b) ( ) As afirmativas I, II e IV esto corretas. O
L
c) ( ) As afirmativas II, III e IV esto corretas.
T
I
C
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306 TPICO 2 UNIDADE 3

d) ( ) As afirmativas I e III esto corretas.

4 Sabemos que cada indivduo possui um valor social, dependendo do que ele pode
contribuir para com a comunidade. Nesse sentido, analise as sentenas a seguir e
assinale V para as verdadeiras e F para as falsas:

( ) Na luta constante da comunidade por sobrevivncia, o valor social de cada indivduo


est relacionado ao grau de contribuio do mesmo para garantir a sobrevivncia da
comunidade.
( )O indivduo no deve lutar pela sobrevivncia da comunidade, pois esta atribui valores
sociais injustos que nem sempre correspondem com aquilo que os indivduos realmente
fazem por ela.
( ) O indivduo possui obrigaes para com sua comunidade, seu dever cumprir com
estas obrigaes para a sobrevivncia da mesma.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequncia CORRETA:


a) ( ) V V F.
b) ( ) F F V.
c) ( ) V F V.

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UNIDADE 3

TPICO 3

JUSTIA, LIBERDADE E IGUALDADE

1 INTRODUO

A obra de John Rawls, Uma Teoria Poltica, um marco importante na histria da filosofia
poltica contempornea. Sua ideia de contrato social apresenta-se como uma alternativa ao
utilitarismo, pois Rawls faz uma defesa da justia com equidade resultante da escolha de
princpios justos. Os indivduos tm a obrigao de fazer justia social, no com vistas ao bem
para um nmero maior de pessoas, mas a justia social acontece a partir do momento em que,
em ltima instncia, os menos favorecidos sejam contemplados pelas vantagens decorrentes
das decises polticas.

A grande questo levantada pela filosofia poltica clssica consiste na dificuldade de


conciliar a liberdade e a igualdade num regime democrtico. Para responder a esta questo, a
proposta de Rawls consiste na ideia de que para escolher os princpios de justia necessrio
que os negociadores (indivduos responsveis pela escolha de tais princpios) estejam numa
posio original sob o vu da ignorncia. Essa a condio sine qua non para que os princpios
de justia sejam equitativos, no sejam tendenciosos, mas que tenham em vista o bem das
pessoas, independente de quem seja.

Em nosso estudo voc ir perceber que a justia como equidade um processo que
passa por estgios importantes, que vo desde a escolha dos princpios de justia, a estruturao F
I
da Constituio, a tarefa do legislador e, por fim, a responsabilidade moral de cada indivduo L
O
no cumprimento de seu dever para com a justia. A complexidade da temtica e os desafios S
O
que as questes relacionadas justia apresentam consistem numa problemtica que exige F
I
muito empenho por parte dos interessados em compreender um pouco mais do assunto. Nesse A
sentido, ressaltamos que este apenas um ponto de partida para que voc aprofunde suas P
pesquisas e possa elaborar suas crticas e concepes acerca dos temas aqui abordados. O
L

T
I
C
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308 TPICO 3 UNIDADE 3

2 JOHN RAWLS

O filsofo John Rawls nasceu em 1921, na cidade de Baltimore, nos Estados Unidos.
Devido ao conhecimento e envolvimento de sua famlia com alguns movimentos sociais, Rawls
foi influenciado em suas concepes sobre temas como justia, liberdade e igualdade. Foi
bem-sucedido em sua carreira, trabalhando em Princenton, Oxford e Harvard. Em sua obra
retoma a teoria do contrato social na tentativa de responder de que maneira os indivduos
podem avaliar as instituies sociais. Dentre os filsofos que o influenciaram se destacam
John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant.

FIGURA 20 - JOHN RAWLS

FONTE: Disponvel em: <https://paw.princeton.edu/issues/2008/01/23/pages/6141/index.xml>. Acesso


em: 2 fev. 2015.

A grande questo a ser respondida por Rawls, que no uma questo nova, mas que vem
desde o surgimento da filosofia poltica, a seguinte: O que uma sociedade justa? Na sua obra
Uma Teoria da Justia, Rawls prope alguns procedimentos e orientaes que so considerados
fundamentais para que um Estado elimine, ou pelo menos minimize, os problemas das desigualdades
sociais, que so to recorrentes no mundo. Nesse sentido, o princpio fundamental para que estas
F
I mudanas ocorram diz respeito a uma concepo clara do que justia e como possvel estabelecer
L
O princpios de justia que possibilitem uma vida melhor e mais digna aos menos favorecidos.
S
O
F
I Sua teoria uma proposta diferente daquilo que vinha sendo proposto pelo utilitarismo. Sua
A
ideia de contrato social visa, em ltima instncia, que os indivduos ajam de forma racional no sentido
P
O de promover a justia social, no com vistas apenas ao bem-estar de um maior nmero de pessoas,
L
mas com vistas naqueles que se encontram numa situao desfavorecida em relao aos demais.
T
I Isso nos leva ao prximo passo, de que a teoria da justia de Rawls se constitui numa alternativa ao
C
A utilitarismo clssico.
UNIDADE 3 TPICO 3 309

Alm de sua obra magna, Uma Teoria da Justia, Rawls escreveu Liberalismo Poltico e O
Direito dos Povos, que representam as trs fases de seu pensamento em torno do tema da justia
social. Essas obras despertaram novamente os debates acerca daquelas questes consideradas
fundamentais com relao vida humana.

3 UMA ALTERNATIVA AO UTILITARISMO

A corrente de pensamento utilitarista defende a tese de que o indivduo, em alguns casos,


deve se autoimpor um sacrifcio no presente com vistas em um bem maior no futuro. A sociedade
visa, em ltima instncia, um bem maior para um maior nmero de pessoas. Nesse sentido, tanto
a sociedade quanto o indivduo devem fazer um balano entre as perdas e ganhos no presente
e as perdas e ganhos no futuro e escolher aquilo que resultar em um bem maior para um maior
nmero de pessoas.

Partindo deste pressuposto possvel observar que no h uma preocupao com relao
ao fato de se aquilo que o indivduo ou a sociedade escolher justo ou injusto, o bem maior para
um maior nmero de pessoas, no caso da sociedade, deve ser almejado e buscado a qualquer
custo. Nesta teoria o bem definido independentemente de ser justo. Por este motivo que Rawls
(2008, p. 26-27) escreveu que Meu objetivo elaborar uma teoria da justia que represente uma
alternativa ao pensamento utilitarista em geral. Na teoria da justia de Rawls o outro um fim em
si mesmo e no um meio para os meus fins, isso significa dizer que todos os indivduos devem ser
tratados com justia, reconhecendo seu valor social e humano. De acordo com Gorovitz (1982, p.
268), O objetivo bsico de A Theory of Justice fornecer uma fundamentao terica coerente
para o conceito de justia, que possa ser contraposta ao ponto de vista utilitrio predominante desde
Jeremy Bentham. Desde Bentham os contratos sociais firmados pelas sociedades, em sua maioria,
possuem os pressupostos utilitaristas, pois de certa forma uma maneira mais simples de resolver
as questes de justia. Todavia, no utilitarismo nos deparamos com uma difcil questo: como ficam
aquelas pessoas que no possuem representatividade poltica para reclamar seus direitos?

Para ilustrarmos o que foi dito at aqui, leia atentamente a tirinha abaixo:
F
I
FIGURA 21 - MORAL UTILITARISTA L
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FONTE: Disponvel em: <http://imagohistoria.blogspot.com.br/2011/04/liberdade-3-de-3-liberdades. C
html>. Acesso em: 28 fev. 2015. A
310 TPICO 3 UNIDADE 3

Voc percebeu que a escolha em no matar a abelhinha no era com vistas no direito
de ela viver, mas a escolha baseou-se na ideia de que com a abelha viva as pessoas se
beneficiariam com isso. Neste caso se aplica a ideia de que o indivduo no um fim em si
mesmo, mas consiste num meio para os meus fins. Nesta concepo do outro como um fim
em si mesmo, os princpios da liberdade e igualdade esto ameaados, pois o outro ser livre
enquanto sua liberdade me trouxer benefcios. O utilitarismo, em certo sentido, incentiva o
egosmo, a lei do mais forte.

A escolha a partir de uma viso utilitarista est restrita a uma viso muito individualizada.
Segundo Rawls (2008, p. 33), O utilitarismo no leva a srio a distino entre as pessoas.
Esse um ponto importante, pois tratar as pessoas com igualdade no significa que todos os
indivduos so iguais. As pessoas so distintas em suas personalidades, preferncias, desejos
etc. Criar uma sociedade harmoniosa no criar uma sociedade de iguais, uma sociedade
harmoniosa consiste numa sociedade composta de indivduos com suas diferenas, mas
que sabem conviver com elas respeitando os limites, cumprindo com seus deveres e tendo
seus direitos respeitados. Os princpios de justia no utilitarismo so baseados nas escolhas
de indivduos que j conhecem sua posio social e, portanto, iro elaborar leis que lhes
proporcionem uma maior vantagem em relao aos demais. Um indivduo no poder escolher
por todos quais so os melhores caminhos para a sociedade, a menos que seja destitudo das
contingncias sociais que influenciam suas escolhas. Esta a proposta da teoria da justia
como equidade, que veremos adiante.

Outra questo levantada diz respeito liberdade. Segundo Rawls (2008, p. 34), A
justia nega que a perda da liberdade para alguns se justifique com um bem maior partilhado
por outros. No utilitarismo a perda da liberdade de alguns se justifica pelo fato de que isso
resultar no benefcio de um maior nmero de pessoas. A liberdade direito universal e do
ponto de vista da justia deve ser garantida a todos. Quando falamos de liberdade, estamos
nos referindo aos diversos tipos de liberdade, tais como liberdade de conscincia, liberdade
religiosa, liberdade de expresso, liberdade para fazer suas escolhas etc. Evidentemente que
nesta questo da liberdade entrar uma questo muito importante: a de que o ser humano
racional e razovel.

F
A racionalidade dos membros de uma sociedade diz respeito ao conhecimento e
I
L
razo pelas quais fazem suas escolhas. No entanto, os membros da sociedade so razoveis
O
S
no sentido de que alguns fins no so os melhores fins, ou seja, mesmo sendo livre para fazer
O
F
suas escolhas, o indivduo optar entre uma escolha e outra com base na razoabilidade. Um
I exemplo disso quando voc passa uma noite em um hotel e consome alguns itens do frigobar.
A
Ao fazer o checkout, quando sair do hotel, seu dever comunicar ao() recepcionista acerca
P
O dos itens que voc consumiu e fazer o pagamento. Voc poder prestar contas ou no, isso
L
depende de uma escolha razovel. Sua escolha em pagar ou no pagar a conta deve ser
T
I justificada pelos fins. Caso optar por no pagar, do ponto de vista da justia o indivduo cometeu
C
A um delito, pois a conveno social que voc pague por aquilo que consumiu, mesmo que
UNIDADE 3 TPICO 3 311

ningum foi ao quarto para conferir se voc consumiu alguma coisa ou no. A ideia de justia
como equidade tratar exatamente desta questo, pois no sabendo em que situao voc
estaria, se de hspede do hotel ou dono do hotel, qual seria sua escolha? Que princpio de
justia voc adotaria para uma atitude como esta? Este assunto ser tratado adiante.

Pois bem, a teoria da justia de Rawls consiste em uma alternativa ao utilitarismo, porque
aponta a justia como equidade, ou seja, no o bem para um maior nmero de pessoas que
deve nortear as decises, mas as decises devem ser pautados em princpios que no violem
a liberdade e a igualdade dos indivduos.

UNI
SUGESTO DE LEITURA:

Nesta obra, publicada pela primeira vez em 1971, Rawls explica


suas ideias e conceitos sobre justia. uma obra vasta, que se
prope a responder como possvel construir uma sociedade
justa, igualitria e livre. Ao apresentar sua teoria da justia, Rawls
expe de maneira bastante detalhada como se deve dar a escolha
dos princpios de justia e o papel de todos os envolvidos. um
verdadeiro clssico, vale a pena ler!

5 A JUSTIA COMO EQUIDADE


F
I
A palavra equidade tem o sentido de imparcialidade, ou seja, aquilo que no pende nem L
O
para um lado, nem para outro, consiste na justa medida das coisas. A justia como equidade S
O
coloca o justo como prioridade. Enquanto o utilitarismo entende que o bem deve ser o fim a ser F
I
alcanado visando beneficiar um maior nmero de pessoas, a justia como equidade entende A
que a justia social deve ser alcanada primeiro, pois desta maneira todos os indivduos sero P
O
contemplados. A justia o valor preponderante de uma sociedade, pois a legitimidade de uma L
democracia no capaz de eliminar as decises injustas. Nesse sentido, os fundamentos de
T
uma sociedade devem ser estabelecidos na justia, pois nem tudo que legtimo em uma I
C
A
312 TPICO 3 UNIDADE 3

sociedade significa que justo, pois a legitimidade das leis consiste no apoio da maioria, dos
mais influentes; o que legitima uma ao do governo muitas vezes o Congresso, mas esta
legitimidade nem sempre est relacionada com a justia, pois vai contra os interesses e as
necessidades da populao. Essa uma problemtica levantada por Rawls e que precisa
urgentemente ser discutida nos crculos acadmicos atuais.

A escolha daquilo que justo decorre de uma questo muito simples, em que as pessoas
estejam numa posio de liberdade igual. Rawls esclarece isso da seguinte maneira:

Na justia como equidade [...], as pessoas aceitam de antemo um princpio


de liberdade igual, e sem conhecer seus prprios objetivos especficos. Implici-
tamente concordam, portanto, em adaptar as concepes de seu prprio bem
quilo que os princpios de justia exigem, ou pelo menos em no reivindicar
nada que os transgrida. (RAWLS, 2008, p. 37).

Para que a escolha daquilo que deve consistir nos princpios norteadores da associao
entre os indivduos, o ponto fundamental que todos se encontrem numa posio de igualdade
de condies. A igualdade o valor fundamental na convivncia poltica, enquanto que a liberdade
o valor supremo da vida humana. Ao escolher os princpios de justia, os indivduos devem
necessariamente ter os valores da liberdade e da igualdade acima de qualquer outro valor.

Para elaborar a teoria da justia, Rawls prope dois princpios a partir de uma situao
hipottica particular, a qual ele denomina de posio original, em que os representantes (os
negociadores) da sociedade a ser estruturada estariam cobertos com um vu da ignorncia,
assim desconheceriam sua posio e condio social, condio financeira, seus projetos de vida
e tambm as caractersticas da sociedade da qual fazem parte, e at mesmo caractersticas
de sua personalidade estariam ocultas aos mesmos. Segundo Rawls (2008, p. 14), Na justia
como equidade, a situao original de igualdade corresponde ao estado de natureza da teoria
tradicional do contrato social. Isso significa dizer que O pacto social do contratualismo
substitudo por uma posio original, denominada por ele de posio original, que abrange
restries de conduta fundamentadas em razes que conduzem a um acordo inicial sobre os
princpios da justia (BARROS, 2007, p. 25). No contrato social clssico, os indivduos partem
de posies, situaes e condies diferentes para a elaborao das normas que nortearo
as relaes sociais. Na teoria da justia proposta por Rawls, todos os envolvidos partem de
F
I
uma mesma posio, condio e situao, nesse sentido no haveria espao para privilegiar
L um grupo em detrimento do outro. Ao realizar a escolha dos princpios de justia, os indivduos
O
S precisam estar cientes de que vivero segundo os princpios escolhidos, no ser uma escolha
O
F apenas para terceiros, pois alm de assumirem os princpios escolhidos, tero que apoi-los
I
A publicamente. Os indivduos que participaro da negociao dos princpios de justia so
P racionais e, portanto, possuem interesses, objetivos de vida, metas a serem alcanadas, mas
O
L como no sabem em que posio se encontram, suas escolhas sero o mais imparcial possvel.

T
I
C A posio original, na verdade, representa uma posio de incerteza gerada pelo fato de
A
UNIDADE 3 TPICO 3 313

os atores no conhecerem seu lugar na organizao social, ou seja, os negociadores possuem


uma sabedoria geral, e uma ignorncia particular (GOROVITZ, 1982, p. 272). Nesse sentido,
h vrios modelos de sociedades que podem ser criados. Portanto, cada indivduo que atua no
processo de escolha dos princpios de justia deve almejar as alternativas que posicionem as
pessoas menos privilegiadas nas situaes menos desfavorveis, pois na posio original, o
agente racional compreender, pelo menos na medida em que o vu da ignorncia o permitir,
que a aplicao de quaisquer princpios favorecendo interesses individuais determinados tanto
poder benefici-lo quanto prejudic-lo (GOROVITZ, 1982, p. 272). A partir dessas premissas,
os atores so levados escolha da regra maximin. De acordo com Rawls (2008, p. 186), A
regra maximin determina que classifiquemos as alternativas partindo dos piores resultados
possveis: devemos adotar a alternativa cujo pior resultado seja superior aos piores resultados
das outras.

A partir da regra maximin a escolha consistir no pior que poder acontecer. A regra
maximin consiste em minimizar as perdas. Diante de um horizonte de incertezas em que se
encontra o indivduo na posio original sob o vu da ignorncia, conhecendo apenas os
possveis resultados, dever escolher aquilo que pode ser o melhor na pior das hipteses.

Leia atentamente o texto abaixo para compreender um pouco mais sobre o que ns
estamos falando.

Considere-se a tabela de ganhos e perdas abaixo. Ela representa os ganhos e perdas


em uma situao que no a de um jogo estratgico. No h ningum jogando contra a
pessoa que toma essa deciso; em vez disso, essa pessoa est diante de vrias circunstncias
possveis que podem ou no acontecer. As circunstncias existentes no dependem do que
decide a pessoa que faz a escolha ou de anunciar ou no suas decises antecipadamente.
Os nmeros da tabela so valores monetrios (em centenas de dlares) comparados a uma
situao inicial. O ganho (g) depende da deciso (d) do indivduo e das circunstncias (c).
Assim, g=f (d,c). Supondo-se que h trs decises possveis e trs circunstncias possveis,
teramos esta tabela de ganhos e perdas:

Circunstncias
F
I
Decises C1 C2 C3 L
O
S
d1 -7 8 12 O
F
d2 -8 7 14 I
A
d3 5 6 8
P
O
L
A regra maximin exige que tomemos a terceira deciso, pois, nesse caso, o pior
T
que pode acontecer ganhar quinhentos dlares, o que melhor que a pior para os outros I
C
A
314 TPICO 3 UNIDADE 3

atos. Se adotarmos um desses outros, poderemos perder oitocentos ou setecentos dlares.


Assim, a escolha de d3 maximiza f (d, c) para o valor c, que, para determinada d, minimiza
f. O termo maximin significa maximun minimorun; e a regra dirige a nossa ateno para o
pior que pode acontecer em qualquer curso de ao proposto, e a decidir com base nisso.

FONTE: RAWLS, 2008

A justia como equidade se difere do utilitarismo no que concerne s escolhas racionais,


pois enquanto o utilitarismo busca a concretizao de um bem maior, a justia como equidade
busca um mal menor. Em que pesa isso nos princpios de justia? Pesa no sentido de possibilitar
um mal menor aos que esto em situao de desvantagem em relao aos demais. A justia
social depende exatamente desta regra.

Ao ser inserido na sociedade, intuitivamente os indivduos devem se encontrar numa


posio original para se associarem, a fim de promoverem interesses prprios. Ao assumir esta
posio original ser possvel atingir um consenso do que justo. Este consenso diz respeito
delimitao de termos equitativos de cooperao social, sendo que a finalidade destes termos
equitativos ser reger a sociedade da qual esses indivduos faro parte como cidado.

A sociedade composta pelos indivduos que esto associados por meio das relaes
sociais estabelecidas no sentido de cooperar uns com os outros para a sobrevivncia. Nascemos
nessa condio, ou seja, quando os indivduos vm ao mundo j existem leis que regulam os
comportamentos, que podem ou no sofrerem alteraes durante nossa vida, mas basicamente
temos que nos adequar s convenes sociais estabelecidas. No entanto, natural que para
esta sociedade coexistir necessrio que existam as regras para orientar e guiar suas atitudes.
Numa sociedade as relaes sociais so construdas a partir das vantagens e desvantagens,
essa relao, por sua vez, desencadeia os conflitos de interesse. A justia tem por objetivo
estabelecer princpios nos quais as pessoas sejam amparadas. No sentido de gerir estes
conflitos, cabe s instituies sociais, criadas pela sociedade, definir a distribuio adequada
das responsabilidades de cada indivduo na cooperao social. Para definir estes princpios
de justia, os indivduos precisam encontrar sua posio original.

F
I Nesta posio original o indivduo estar coberto de um vu de ignorncia, livre das
L
O contingncias do mundo social que est sua volta e que influenciam no momento das suas
S
O escolhas. Nesse sentido, os indivduos numa posio original sob o vu da ignorncia
F
I escolheriam os seguintes princpios: o primeiro princpio consistiria na igual liberdade para
A
todos. O segundo princpio consiste em que as desigualdades sociais e econmicas devem ser
P
O distribudas de tal forma que garantam os maiores benefcios aos menos favorecidos e a justa
L
igualdade de oportunidades. Nesse sentido, os princpios de justia so definidos a partir de
T
I
uma situao em que nenhum indivduo poder pensar naquilo que melhor para sua classe,
C
A
pois como no sabe a que classe ir pertencer, sua escolha ser com base no sumo bem.
UNIDADE 3 TPICO 3 315

As escolhas numa posio original sob o vu da ignorncia sero marcadas pela escolha
desinteressada de pensar apenas nos benefcios individuais, ou seja, pensar no que melhor
para mim. Segundo Gorovitz (1982, p. 272), A finalidade e o efeito do vu da ignorncia
eliminar da negociao qualquer possibilidade dos participantes protegerem seus prprios
interesses ao custo dos interesses dos outros. O interesse recai sobre o bem-estar de todas
as pessoas. Essas escolhas no devem ser feitas como algum que est apostando em
possibilidade, assim como um apostador de um jogo de pquer, mas so escolhas racionais, em
que os indivduos que se encontram na posio original e sob o vu da ignorncia consideram-
se em diversas situaes, por exemplo: como homem, ou como mulher, como branco ou como
negro, como pobre ou como rico. Como o indivduo sob o vu da ignorncia no sabe em
qual destas categorias ou classes de pessoas ele se encontra, o mesmo escolher princpios
de justia em que todas as classes sejam contempladas e protegidas. Estando nessas
circunstncias, os negociadores chegaro aos princpios de justia, que segundo Rawls (2008,
p. 73) so os seguintes:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de
iguais liberdades fundamentais que seja compatvel com um sistema similar
de liberdades para outras pessoas.
Segundo: as desigualdades sociais e econmicas devem estar dispostas de
tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleam
em benefcio de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posies
acessveis a todos.

A partir do momento em que os negociadores chegarem a um consenso ou acordo


sobre os princpios de justia, o prximo passo ser dado. O vu da ignorncia parcialmente
levantado e os negociadores entram no estgio de deliberao, onde tero que estruturar uma
constituio, que segundo Rawls (2008, p. 241):

Nesse ponto, devem decidir acerca da justia das formas polticas e escolher
uma constituio: so representantes, por assim dizer, nessa conveno.
Sujeitas s restries dos princpios de justia j escolhidos, devem elaborar
um sistema para os poderes constitucionais do governo e para os direitos
fundamentais dos cidados.

Ainda desconhecendo sua posio na sociedade, as pessoas participantes da


constituio, no entanto, conhecem as demandas sociais, os fatos comuns vida em sociedade.
A partir deste conhecimento genrico acerca das questes econmicas, sociais e polticas da F
I
sociedade, os constituintes devero elaborar uma constituio a partir dos princpios de justia L
escolhidos sob o vu da ignorncia, mas que agora foi parcialmente retirado, devem escolher O
S
a constituio justa mais eficaz, a constituio que atenda aos princpios de justia e seja a O
F
mais bem projetada para produzir uma legislao eficaz e justa (RAWLS, 2008, p. 241). I
A

P
O estgio seguinte ao da estruturao da constituio quando os negociadores se O
L
tornam os legisladores, pois Os projetos de lei so julgados do ponto de vista de um legislador
T
representativo que, como sempre, no tem conhecimento de particularidades sobre si mesmo I
C
A
316 TPICO 3 UNIDADE 3

(RAWLS, 2008, p. 243). A funo do legislador elaborar as leis ou as normas a partir das
demandas existentes. O legislador, na teoria de Rawls, precisa estar parcialmente coberto pelo
vu da ignorncia, desconhecendo sua identidade e caractersticas pessoais, para no deixar
que sua condio altere seu julgamento justo das leis, emendas ou normas propostas. Caso
contrrio, o legislador, conhecendo sua identidade e caractersticas pessoais, poder legislar
em causa prpria, criar leis ou emendas que atendam a seus interesses que no estejam
sujeitos aos princpios da justia.

UNI
SUGESTO DE FILME:

Voc no poder deixar de assistir a este filme. O filme trata do


dilema e as dificuldades encontradas por uma jovem negra em
uma sociedade onde os negros eram vistos como mercadoria. Nele
so discutidas questes importantes sobre a liberdade, igualdade,
moral e justia. Baseado em histria real, reflete a coragem e a
determinao de uma jovem e um jovem em mudar as leis no
sentido de que estas sejam justas e que todos sejam tratados
com igualdade pelos tribunais. O filme rico em dilogos muito
inteligentes e construtivos. Vale a pena assistir!

5.1 O PRINCPIO DE DIFERENA

F Ao escolher os princpios de justia, o indivduo na posio original sob o vu da


I
L ignorncia, de acordo com o que vimos at aqui, escolher princpios que contemplam todas
O
S as pessoas em qualquer situao e prezar por uma distribuio de riqueza equitativa. Por no
O
F saber qual sua posio social, sua escolha no deve consistir no benefcio de um grupo em
I
A detrimento do outro; optar, por exemplo, por igual distribuio de vantagens e riquezas entre
P as pessoas. Ao escolher o princpio de diferena, os negociadores, ento, no podero ter
O
L
em mente o benefcio prprio, pois ningum escolheria racionalmente o princpio de diferena

T
diante da possibilidade de ser o mais prejudicado por sua escolha, pelo fato de desconhecer
I
C
sua posio na sociedade. Seria uma aposta muito arriscada, com as chances muito pequenas
A de ganhar.
UNIDADE 3 TPICO 3 317

Todavia, mesmo nessa situao hipottica, o negociador poder optar em escolher


situaes em que haja diferenas entre indivduos como uma aposta na possibilidade de que ele
seja o beneficiado, ou porque ele entende que necessrio que haja diferena por motivos que
considera necessrios e justos. Ele poderia, por exemplo, defender a ideia de que um mdico
deve ganhar vinte vezes mais que um mordomo. Por qu? O negociador poder alegar que
este mdico poder desempenhar melhor seu trabalho entre as pessoas pobres de uma regio
isolada se tiver uma boa condio financeira, ento, em ltima instncia, os menos favorecidos
financeiramente seriam beneficiados com esta diferena. O mordomo, por sua vez, desenvolve
suas atividades em funo de pessoas mais privilegiadas economicamente, o que, por sua vez,
no traz benefcios aos menos favorecidos. Esta concepo do princpio de diferena pode
mudar se considerarmos o fato de que os mdicos ganham mais porque fazem atendimentos
a pessoas em melhores condies econmicas e um mordomo cuida de uma pessoa invlida
e que s poder sair de casa com sua ajuda. claro que isso nos levaria para outros nveis
de discusso e consideraramos outras questes. Todavia, no segundo caso (o mdico que se
dedica a cuidar dos mais ricos) o princpio de diferena seria injustificvel. Por qu?

De acordo com Rawls (2008, p. 91), O princpio de diferena , ento, uma concepo
fortemente igualitria no sentido de que, se no houver uma distribuio que melhore a situao
de ambas as pessoas [...] deve-se preferir a distribuio igualitria. Nesse sentido, seria
admissvel que houvesse desigualdades sociais e econmicas se beneficiassem os membros
menos favorecidos de uma sociedade ou todas as pessoas. A anlise de Rawls no consiste
em querer definir se o salrio de A ou de B justo ou no, a questo colocada por ele consiste
no seguinte: as riquezas de um determinado indivduo contribuem para a melhoria dos menos
favorecidos? Observe que no sistema de Rawls os menos favorecidos da sociedade vm antes
de qualquer interesse, pois tudo deve ser pensado no sentido de que estas pessoas sejam
atendidas de maneira justa.

5.2 A ESTRUTURA BSICA DA SOCIEDADE

Uma sociedade composta de vrios elementos que fazem parte de sua estrutura. Mas
F
existem aqueles que so bsicos, ou seja, o todo depende deles, a chamada estrutura bsica. No I
L
que consiste ento a estrutura bsica da sociedade? Silveira (2011, p. 201) nos responde da seguinte O
maneira: S
O
F
I
A estrutura bsica compreendida como a forma pela qual as principais instituies A
se harmonizam em um sistema e a forma especfica de essas instituies distribu-
rem direitos e deveres fundamentais. As partes da estrutura bsica da sociedade P
O
so a constituio poltica, as formas legalmente reconhecidas de propriedade, a L
organizao da economia e a natureza da famlia. A estrutura bsica o sistema
social de fundo em que tomam parte as atividades de associaes e indivduos, T
I
sendo a estrutura bsica o que assegura a justia de fundo. C
A

Observe que a sociedade composta de instituies que fazem com que a sociedade coexista
318 TPICO 3 UNIDADE 3

em harmonia. A ausncia de princpios justos reguladores das relaes sociais faz com que a sociedade
seja fragmentada pelos conflitos de interesses. Nesse sentido fundamental que as instituies sociais
que existem na sociedade sejam pautadas em princpios de justia que assegurem a igualdade e
a liberdade. De acordo com Rawls (2008, p. 8), o objeto principal da justia a estrutura bsica da
sociedade, ou, mais precisamente, o modo como as principais instituies distribuem os direitos e
os deveres fundamentais e determinam a diviso das vantagens decorrentes da cooperao social.
Observe que Rawls levanta uma questo muito importante sobre a questo da cooperao social.
De acordo com ele, as instituies devem salvaguardar o direito de que todos os que cooperam
socialmente sejam beneficiados com as vantagens decorrentes desta cooperao.

A justia o elemento fundamental das instituies sociais, pois Rawls (apud BARROS, 2007,
p. 25) salienta que a justia a primeira virtude das instituies sociais, como a verdade o dos
sistemas de pensamento. Isso significa dizer que um sistema de pensamento to logo abandonado
assim que se prova que falso, da mesma maneira as leis que so provadas injustas devem ser
mudadas imediatamente.

Falando ainda sobre as instituies sociais, Rawls (2008, p. 8) salienta que a proteo jurdica
da liberdade de pensamento e a da liberdade de conscincia, mercados competitivos, a propriedade
privada dos meios de produo e a famlia monogmica so exemplos de instituies sociais
importantes. Essas instituies sociais influenciam diretamente nos projetos de vida dos indivduos.
Quando tais instituies esto constitudas de princpios destitudos dos elementos bsicos da vida
humana, liberdade e igualdade, os indivduos so seriamente prejudicados. Para ilustrar tal situao,
vamos usar o exemplo da instituio social denominada de famlia, em que o homem no deixa a
mulher estudar, pois de acordo com ele a mulher tem que cuidar da casa e dos filhos. Neste exemplo
temos os princpios da igualdade e liberdade sendo violados. Na teoria da justia como equidade
esta atitude do homem em relao mulher injustificvel, pois viola o princpio da liberdade e da
igualdade, que so direitos fundamentais do ser humano.

Observe a figura e discuta com seus colegas como que o princpio da igualdade pode ser
aplicado neste caso.

FIGURA 22 - JUSTIA E IGUALDADE

F
I
L
O
S
O
F
I
A

P
O
L

T
I
C
A

FONTE: Disponvel em: <http://blogdoporto.com.br/2012/11/justica-e-equidade/>. Acesso em: 22 fev.


2015.
UNIDADE 3 TPICO 3 319

Nessa estrutura bsica da sociedade as pessoas nascem em diferentes condies,


sejam elas econmicas, polticas, familiares etc. Estas diferenas iro influenciar diretamente
na maneira como os indivduos iro lidar com a vida, com a sociedade e com as instituies
sociais. As pessoas nascem em condies desiguais e os seus projetos de vida dependem
disso. Nesse sentido, fundamental que haja alguma contrapartida do Estado, no sentido de
prover que os indivduos tenham as mesmas oportunidades para ocupar as posies e funes
sociais. Isso nos remete a uma reflexo importante sobre uma educao pblica de qualidade,
onde todos os indivduos tenham as mesmas condies de estudo e oportunidades.

No sentido de conciliar a tolerncia e a liberdade individual, to valorizada nos Estados


Unidos, e a igualdade social e econmica de profundo valor para o continente europeu, John
Rawls formula os dois princpios de justia, como j foi citado anteriormente, mas que vale a
pena relembrarmos:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de
iguais liberdades fundamentais que seja compatvel com um sistema similar
de liberdades para outras pessoas.
Segundo: as desigualdades sociais e econmicas devem estar dispostas de tal
modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleam em
benefcio de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posies acessveis
a todos. (RAWLS, 2008, p. 73).

Estes princpios aplicados estrutura bsica da sociedade governam a atribuio


de direitos e deveres que regulam as vantagens econmicas e sociais. O primeiro princpio
preza pela igualdade dos indivduos no sistema mais extenso de liberdades. a garantia da
liberdade poltica, liberdade de expresso e reunio, liberdade de conscincia e de julgamento,
e, liberdades pessoais, de acordo com o primeiro princpio, so consideradas liberdades iguais,
ou seja, todos os indivduos de uma sociedade devem gozar desta liberdade.

O segundo princpio coloca a ideia de que a distribuio de riquezas deve ser vantajosa
para todos, no somente as riquezas, mas as posies de autoridade e de responsabilidade
devem ser acessveis a todas as pessoas e no serem restritas a um grupo de indivduos
que possuem algum tipo de poder. A distribuio de riquezas e das posies de autoridade e
responsabilidade no deve ser feita arbitrariamente, pelo contrrio, deve ser compatvel tanto
com as liberdades bsicas, quanto com a igualdade de oportunidades.
F
I
O que comumente presenciamos na sociedade brasileira, por exemplo, uma violao L
O
constante destes princpios. Tais violaes tm profundo impacto nas instituies sociais que S
O
compem nossa sociedade. Um exemplo disso a questo da sade pblica, a educao F
I
e a segurana. No quesito sade, sabemos que h uma profunda desigualdade na maneira A
como as pessoas recebem os atendimentos bsicos; enquanto pessoas morrem nas filas de P
O
hospitais, a classe poltica recebe os melhores tratamentos. Diante disso, no podemos deixar L
de perguntar: no que os polticos so melhores que o povo? Outro fator so as desigualdades
T
econmicas no Brasil, que revelam o abismo que h entre ricos e pobres e a maneira como estes I
C
A
320 TPICO 3 UNIDADE 3

so tratados, por exemplo, no sistema judicirio e pela classe poltica de uma maneira geral.
Temos um sistema poltico composto em sua grande maioria por indivduos que legislam em
causa prpria, negando atravs de suas aes e da corrupo os direitos bsicos sociedade
brasileira. H uma violncia constante aos princpios de justia que so contemplados na
Constituio.

A obra de Rawls pode ser considerada como um marco do renascimento do liberalismo,


porque a funo do Estado na vida das pessoas no deve ser de controle, mas de gerar
oportunidades e condies iguais. Nesse sentido, volto a frisar a importncia das instituies
polticas no desenvolvimento de polticas pblicas que gerem oportunidade de ascenso social,
e no polticas pblicas que tornem as pessoas dependentes do Estado.

5 O CONCEITO DE LIBERDADE E A LIBERDADE IGUAL

A liberdade e a igualdade so os dois principais valores do mundo moderno. No mundo,


desde que mundo, os homens lutam por uma sociedade em que as pessoas sejam livres.
Este um dos princpios fundamentais de uma sociedade democrtica. De que maneira uma
sociedade poder ser justa e livre ao mesmo tempo? Quando falamos em liberdade, estamos
nos referindo liberdade nos seus mais diversos aspectos, por exemplo, liberdade poltica,
liberdade econmica, liberdade de conscincia etc. A liberdade econmica diz respeito
liberdade que o indivduo tem de angariar riquezas e adquirir propriedades, contratar pessoas
para trabalhar e estabelecer regras para este indivduo que lhe presta servio.

A liberdade ir produzir desigualdades sociais, pois os indivduos so livres para investir


recursos econmicos e ganhar com isso. O enriquecimento de uns vai gerar a dependncia
de outros. Isso um processo difcil de compreender e conciliar os princpios da justia como
equidade. Nesse sentido, compete ao Estado desenvolver uma poltica que faa justia social.

O papel fundamental do Estado manter a ordem pblica. Para que isso seja possvel
o Estado possui mecanismos de controle que possibilitam que o mesmo intervenha no sentido
F
I de regulamentar e restringir, em alguns momentos a liberdade, quando esta coloca sob ameaa
L
O a ordem pblica. Nesse sentido, a liberdade de uma pessoa s pode ser diminuda na medida
S
O em que este cerceamento constitui parte essencial de um sistema de liberdade que maximize
F
I a liberdade de todos (GOROVITZ, 1982, p. 274).
A

P
O John Rawls tenta explicar o conceito de liberdade a partir de trs elementos: quais os
L
agentes que so livres, as restries ou limitaes das quais eles esto livres e aquilo que
T
I eles so livres ou no de fazer.
C
A
UNIDADE 3 TPICO 3 321

Os agentes so livres para escolher a qual religio pertencer, partido poltico a se filiar,
time para torcer, com quem se casar, que profisso deseja exercer etc. Estas so escolhas
comuns aos indivduos e esto associadas ao seu livre-arbtrio e a seu projeto de vida. Estas
escolhas so comuns e vo sofrer restries caso oferecerem algum risco ordem pblica.
Digamos que um indivduo escolhe a profisso de motorista de caminho. At a est tudo
certo. No entanto, o que ele ir transportar so cargas de entorpecentes, que so proibidos
pela legislao brasileira. Ao ser parado pela polcia, o mesmo ser acusado por trfico de
entorpecentes. No entanto, ele alegar que apenas um motorista de caminho. Ento
passamos para a segunda parte do problema. Ser motorista no crime, mas traficar drogas
sim. A questo que pesa : o motorista sabia qual era o produto da carga ou no? Se conseguir
provar que no sabia ser inocentado, caso contrrio ser penalizado por contribuir com o crime.

A questo levantada acima desencadear uma srie de outras discusses sobre a


liberdade dos indivduos usarem drogas ou no, pois alguns podero alegar que se fizerem
algum mal, fazem para si etc. Esta , por exemplo, a questo da legalizao do uso de maconha:
at que ponto o Estado deve intervir nas vontades de seus cidados? Este um debate longo,
controverso e difcil de chegar a um consenso.

5.1 TOLERNCIA

A vida em sociedade caracterizada pelas diferenas. Uma sociedade democrtica


deve preservar com muita nfase a tolerncia, seja religiosa, poltica, filosfica, cultural etc. A
convivncia com o outro exige que os indivduos tenham a capacidade de suportar os outros
com suas diferenas. No entanto, a tolerncia est vinculada liberdade. No podemos fugir
da difcil questo sobre at que ponto eu devo tolerar as prticas do outro, se estas colocam
em risco a minha liberdade? De que maneira o Estado dever intervir em tais situaes?

O Estado em Rawls definido como uma associao constituda por cidados iguais.
Todavia, o governo no tem nenhuma autoridade para tornar associaes legtimas ou
ilegtimas, nem tampouco no que se refere arte e cincia. O dever do Estado se limita a
F
garantir as condies de igual liberdade religiosa e moral. De acordo com Rawls (2008, p. 264), I
L
A tolerncia no derivada de necessidades prticas nem de razes de Estado. A liberdade O
moral e religiosa provm do princpio da liberdade igual. A liberdade de praticar determinada S
O
arte, cincia ou religio somente receber uma interveno do Estado se tal prtica ameaar F
I
a dignidade e a liberdade de outros indivduos. Nesse sentido, A limitao da liberdade s A

justificada quando isso necessrio para a prpria liberdade, para evitar uma infrao P
O
liberdade que seria ainda pior (RAWLS, 2008, p. 264). L

T
I
Em que momento o Estado deve intervir na liberdade de conscincia? De acordo C
A
322 TPICO 3 UNIDADE 3

com Rawls (2008, p. 262), a liberdade de conscincia s deve ser limitada quando h uma
expectativa razovel de que no faz-lo prejudicar a ordem pblica que o Estado deve manter.
Esta expectativa razovel se refere aos critrios estabelecidos no sentido de garantir a liberdade
de todos. A sociedade democrtica no impede que as pessoas tenham seus credos, mas a
mesma sociedade democrtica pode impor limites se as crenas de um indivduo colocarem
em risco a vida do outro. O Estado deve intervir, por exemplo, se uma determinada prtica
religiosa exigir a morte de pessoas em sacrifcio para alcanar determinados poderes espirituais.
O Estado regula determinadas prticas no sentido de garantir a ordem pblica e a liberdade
igual, e no tomar partido por qualquer doutrina ou religio, mas assegurar que os cidados
tenham pleno direito de exercer suas faculdades, podendo aderir a qualquer religio, filosofia
ou partido poltico, desde que seja assegurada a ordem pblica e a segurana dos demais
indivduos que fazem parte da sociedade.

Diante disso, vamos nos deparar com outra questo de difcil resposta: a tolerncia para
com os intolerantes. De que maneira lidar com os movimentos ou religies cujos princpios
visam suprimir a liberdade do outro?

A sociedade poltica ps-Iluminismo tem sido caracterizada pela formao de


comunidades plurais. A pluralidade se deve ao fato de que os seres humanos possuem
diferentes maneiras de ver o mundo e atribuir valores s coisas. A intolerncia consiste no
fato de que certo indivduo no reconhece que o outro pode ter valores diferentes dos seus. A
grande questo consiste no desafio em como lidar com o intolerante.

Ao analisar o assunto, Rawls parte de um problema muito recorrente, que a intolerncia


religiosa. Para o filsofo,

preciso distinguir algumas questes. Em primeiro lugar, h a questo de


saber se uma seita intolerante tem algum direito de reclamar se no for tole-
rada; em segundo lugar, em que condies as seitas tolerantes tm o direito
de no tolerar as intolerantes? E, por fim, quando as primeiras tm o direito de
no tolerar as ltimas, e com que fins se deve exercer esse direito? (RAWLS,
2008, p. 267).

Tolerar uma intolerncia caracterizado como um relativismo no qual os princpios da


F justia como equidade so negados, pois a intolerncia aceita pelo Estado o mesmo que
I
L tomar partido. S que no podemos fugir da difcil tarefa do Estado em ter que escolher qual
O
S doutrina compreensiva particular intolerante ou no, pois a partir do momento em que o Estado
O
F interfere no sentido de avaliar qual doutrina tolerante ou intolerante, necessariamente est
I
A inserindo-se num plano que no seu, mas particular de cada grupo que compe a sociedade.
P No entendimento de Rawls, uma doutrina somente poder ser considerada intolerante quando
O
L
esta ameaar o prprio Estado.

T
I O Estado, ao elaborar sua Constituio, deve salvaguardar os princpios de justia, pois
C
A neles esto asseguradas a liberdade dos indivduos e o direito de exercer suas crenas com
UNIDADE 3 TPICO 3 323

igualdade, desde que no violem a liberdade alheia. Por este motivo que as discusses sobre
a tolerncia so fundamentais para a construo de uma democracia. No podemos nos iludir
com a possibilidade de que as pessoas cheguem a um consenso pleno acerca da liberdade
e igualdade, mas dever de cada cidado apelar sempre para o bom senso no sentido de
garantir a ordem pblica.

6 DEVER E OBRIGAO

De acordo com Rawls (2008, p. 416), Do ponto de vista da teoria da justia, o dever
natural mais importante apoiar e promover instituies justas. Esta afirmao nos remete
ao princpio de equidade individual. Ao se associar a uma instituio justa, o indivduo tem a
obrigao de cooperar com esta instituio, assim como os demais indivduos que dela fazem
parte. Em contrapartida, tendo cumprido com suas obrigaes, o indivduo tem naturalmente
o direito de desfrutar das vantagens provenientes da sua cooperao.

A obrigao tira momentaneamente a liberdade do indivduo, mas isso ser compensado


pelas vantagens em decorrncia de sua abnegao para com o interesse do grupo em que
se associou. Observe que estamos falando de instituies justas, que iro reconhecer de
maneira justa a cooperao individual. A obrigao deve se dar a partir de um ato voluntrio.
Podemos usar como exemplo o casamento. As pessoas se associam a esta instituio
voluntariamente, ou pelo menos deve ser assim, no entanto esta deciso voluntria acarreta
determinadas obrigaes que precisam ser cumpridas para que haja vantagens em decorrncia
desta associao com outra pessoa. Neste caso, uma instituio como o casamento, para ser
considerada justa, precisa considerar os elementos liberdade e igualdade para ambos, e da
mesma maneira as obrigaes um para com o outro devem ser cumpridas, para que ambos
desfrutem das vantagens do cumprimento de seus deveres.

O dever de promover instituies justas pode ser dividido em duas partes: primeiro,
devemos fazer nossa parte e obedecer s instituies justas existentes que nos dizem respeito;
segundo, devemos cooperar na criao de instituies justas quando elas no existem, pelo
F
menos quando podemos faz-lo sem grande nus pessoal (RAWLS, 2008, p. 416). Existem I
L
os princpios de justia que so aplicados s instituies, bem como existem os princpios de O
S
justia que se aplicam aos indivduos. Assim como h a obrigao das instituies para com o O
F
indivduo, da mesma maneira o indivduo tem suas obrigaes para com as instituies. Pelo I
A
menos essa deveria ser a ordem natural das coisas.
P
O
Rawls (2008, p. 137) d alguns exemplos daqueles que considera como os deveres L

naturais: o dever de ajudar o prximo quando est em necessidade ou em perigo, contanto que T
I
seja possvel faz-lo sem perda ou risco excessivo para si mesmo; o dever de no prejudicar C
A
324 TPICO 3 UNIDADE 3

ou agredir o prximo; e o dever de no provocar sofrimento desnecessrio. O primeiro dever


considerado como positivo, pois exige uma ao em que o indivduo se desloca em direo
ao outro. Os dois ltimos deveres so negativos, pois o que exigido do indivduo a no
ao, exige que no faamos nada que prejudique o prximo. No entanto, o dever natural
bsico a justia.

Os deveres naturais so assim denominados por no dependerem do indivduo estar


vinculado a uma instituio, no sentido de que a instituio crie um indivduo justo, o indivduo
que deve, por exemplo, promover as instituies justas e no o contrrio. O dever natural
aquilo que est com e no indivduo. Tais deveres independem do indivduo se voluntariar a
isso, independem de uma promessa feita, o dever natural est intrnseco sua existncia.
O dever diferente da obrigao, pois a obrigao consiste no fato do indivduo assumir um
compromisso voluntrio com uma determinada instituio para cooperar com ela. O dever
natural no depende da voluntariedade em fazer ou deixar de fazer, e ainda, no se aplica a
determinados indivduos, pois qualquer ser humano em qualquer lugar est sob o dever natural.

Por que os princpios do dever e da obrigao moral seriam escolhidos na posio


original? Vamos voltar ideia de que o dever natural mais importante apoiar e promover
instituies justas. Na posio original o indivduo no poder escolher deveres que daro
maior obrigao para um determinado grupo de pessoas e menor obrigao para outro. Nesse
sentido, ao promover as instituies justas, as pessoas estaro contribuindo para o bem-estar
coletivo, pois as instituies justas resultaro numa sociedade mais igual, onde a distribuio
de riquezas, por exemplo, ser feita de maneira equitativa, eliminando as desigualdades
sociais. Outro exemplo que podemos usar o casamento. O indivduo na posio original no
saber se num casamento ser o marido ou a mulher. Ao estabelecer os deveres e obrigaes
matrimoniais, suas escolhas no poderiam beneficiar nem um e nem outro, nesse sentido
o dever ser promover um casamento justo, onde tanto o homem quanto a mulher tenham
deveres e obrigaes que sejam igualitrios.

7 CONSIDERAES FINAIS
F
I
L
O Caro acadmico(a), percorremos mais este caminho juntos na busca pelo conhecimento.
S
O Sabemos que a filosofia poltica um campo muito vasto, procuramos tratar dos temas que
F
I consideramos importantes em nossa sociedade. Ressaltamos que demos os primeiros passos
A
na direo da ampliao de nossos horizontes filosficos, muito embora no tenhamos
P
O conseguido tratar de todas as questes filosficas relacionadas poltica. Reconhecemos as
L
nossas limitaes, mas nos esforamos para possibilitar a voc um contedo pertinente para
T
I compreender as difceis e complexas questes relacionadas vida em sociedade. Sabemos
C
A que as demandas sociais exigem que, cada vez mais, as pessoas envolvidas na educao
UNIDADE 3 TPICO 3 325

sejam capazes de propor solues inteligentes e oportunas para os problemas do dia a dia.
Nesse sentido, acreditamos que seu preparo ir contribuir significativamente no processo de
politizao da nossa sociedade.

LEITURA COMPLEMENTAR

A POSIO ORIGINAL E A JUSTIFICAO

Afirmei que a posio original o status quo inicial apropriado para garantir que os
acordos fundamentais nele alcanados sejam equitativos. Esse fato gera a expresso justia
como equidade. Torna-se claro, ento, que quero dizer que uma concepo de justia mais
razovel que outra, ou mais justificvel do que outra, quando pessoas racionais na situao
inicial escolheriam seus princpios, e no outros, para o papel da justia. As concepes
de justia devem ser classificadas por sua aceitabilidade a pessoas nessas circunstncias.
Entendida dessa maneira, a questo da justificao se resolve por meio da resoluo de um
problema de deliberao: precisamos verificar quais princpios seria racional adotar, dada a
situao contratual. Isso vincula a teoria da justia teoria da escolha racional.

Para que essa interpretao do problema da justificao tenha xito, precisamos,


naturalmente, descrever com algum grau de mincia a natureza desse problema de escolha.
O problema da deciso racional s encontra soluo definitiva quando conhecemos as
convices e os interesses das partes, suas relaes entre si, as opes que tm a escolher,
o procedimento por meio do qual tomam as suas decises etc. Conforme as circunstncias de
escolha se apresentam de maneiras diversas, tambm so escolhidos princpios diferentes a
elas correspondentes. O conceito da posio original, como o denominarei, o da interpretao
filosoficamente preferida dessa situao de escolha inicial para os fins da teoria da justia.

Porm, como decidir qual a interpretao a ser preferida? Em primeiro lugar,


suponho que existe um amplo senso de que os princpios de justia devem ser escolhidos sob
determinadas condies. Para justificar determinada descrio da situao inicial, demonstra-se
que ela contm esses pressupostos de aceitao geral. Argumenta-se, partindo de premissas
amplamente aceitas, porm fracas, na direo de concluses mais especficas. Cada um dos
pressupostos deve ser, em si, natural e plausvel; alguns podem parecer incuos ou mesmo F
I
triviais. O objetivo do mtodo contratualista demonstrar que, juntos, impem ponderveis L
O
limites aos princpios aceitveis de justia. O resultado ideal seria que essas condies S
O
definissem um nico conjunto de princpios; mas eu me darei por satisfeito se bastarem para F
classificar as principais concepes tradicionais de justia social. I
A

P
No devemos nos deixar enganar, ento, pelas condies um tanto incomuns que O
L
caracterizam a posio original. A ideia aqui simplesmente tornar ntidas para ns mesmos
T
as restries que parecem razoveis impor a argumentos a favor de princpios de justia e, I
C
por conseguinte, a esses prprios princpios. Assim, parece razovel e de modo aceitvel A
326 TPICO 3 UNIDADE 3

que ningum seja favorecido ou desfavorecido pelo acaso ou pelas circunstncias sociais na
escolha dos princpios. Tambm parece haver consenso geral de que deve ser impossvel
adaptar os princpios s circunstncias de casos pessoais. Tambm devemos garantir que
determinadas inclinaes e aspiraes e concepes individuais do bem no tenham influncia
sobre os princpios adotados. O objetivo excluir os princpios que seria racional algum propor
para aceitao, por menor que fosse a possibilidade de xito, se essa pessoa conhecesse
certos fatos que, do ponto de vista da justia, so irrelevantes. Por exemplo, se determinado
homem soubesse que era rico, poderia achar razovel defender o princpio de que os diversos
impostos em favor do bem-estar social fossem considerados injustos; se ele soubesse que era
pobre, seria bem provvel que propusesse o princpio oposto. Para representar as restries
desejadas, imagina-se uma situao na qual todos carecem desse tipo de informao. Exclui-se
o conhecimento dessas contingncias que geram discrdia entre os homens e permitem que
se deixem levar pelos preconceitos. Desse modo chega-se ao vu da ignorncia de maneira
natural. Esse conceito no deve causar nenhuma dificuldade se tivermos em mente que seu
propsito expressar restries a argumentos. A qualquer momento podemos ingressar na
posio original, por assim dizer, simplesmente obedecendo a determinado mtodo, ou seja,
argumentando em favor de princpios de justia de acordo com essas restries.

Parece razovel supor que as partes na situao original so iguais. Isto , todos tm
os mesmos direitos no processo da escolha dos princpios; todos podem fazer propostas,
apresentar razes para sua aceitao, e assim por diante. bvio que a finalidade dessas
condies representar a igualdade entre os seres humanos como pessoas morais, como
criaturas que tm uma concepo do prprio bem e esto capacitadas a ter um senso de
justia. Considera-se que o fundamento da igualdade a similaridade nesses dois aspectos. Os
sistemas de fins no so classificados segundo seu valor, e presume-se que cada pessoa tem
a capacidade necessria para entender quaisquer princpios adotados e agir em conformidade
com eles. Junto com o vu de ignorncia, essas condies definem os princpios da justia
como aqueles que pessoas racionais interessadas em promover seus interesses aceitariam em
condies de igualdade, quando no h ningum que esteja em vantagem ou desvantagem
em razo de contingncias naturais ou sociais.

FONTE: RAWLS, John. Uma teoria da justia. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 21-26.

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UNIDADE 3 TPICO 3 327

RESUMO DO TPICO 3

Neste tpico vimos que:

Teoria de justia defendida por John Rawls apresentada como uma alternativa ao utilitarismo.
Rawls defende a justia como equidade, porque considera que a justia social deve ser
alcanada primeiro, nesse sentido todos os indivduos sero contemplados. Isso difere do
utilitarismo, que visa o bem maior para o maior nmero de indivduos.
Para que a escolha dos princpios de justia seja desinteressada, Rawls defende uma situao
hipottica, em que os indivduos responsveis por esta escolha se encontrem numa posio
original sob o vu da ignorncia.
Rawls levanta a questo sobre o direito liberdade e a igualdade dos indivduos.
A tolerncia para com os intolerantes uma situao em que o Estado no pode tomar partido,
mas tem a obrigao de intervir quando a intolerncia coloca em risco a ordem pblica.
O dever natural bsico dos indivduos promoverem e apoiarem as instituies justas.

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328 TPICO 3 UNIDADE 3


IDADE
ATIV
AUTO

1 Uma das propostas de Rawls em sua teoria da justia que os indivduos, ao


escolherem os princpios de justia, devem se encontrar em uma posio original.
Por que Rawls defende esta ideia?
____________________________________________________________________
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__________________________________________________

2 De acordo com o que estudamos, em que situao, por exemplo, o Estado deve
intervir na liberdade de conscincia?
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__________________________________________________

3 A teoria da justia de John Rawls considerada como uma alternativa ao utilitarismo.


Analise as sentenas abaixo e assinale aquela que justifique tal ideia:

a) ( ) A teoria da justia prope que os princpios de justia devem considerar a maioria,


pois a meta consiste que seja garantido um bem maior para o maior nmero de pessoas
possvel, mesmo que seja necessrio sacrificar a liberdade de uns poucos.
b) ( ) A liberdade direito universal e do ponto de vista da justia deve ser garantida a todos.
F No utilitarismo a liberdade de alguns negada para possibilitar a liberdade de um nmero
I
L maior de pessoas.
O
S c) ( ) A teoria da justia de Rawls uma alternativa ao utilitarismo clssico, porque a principal
O
F preocupao com a garantia da estabilidade econmica daqueles que geram empregos
I
A e garantem a subsistncia bsica das pessoas.
P
O
L 4 O indivduo possui seus deveres naturais, so aqueles inerentes sua natureza

T humana; isto no consiste em uma escolha livre, consiste numa obrigao moral.
I
C Sobre isso, assinale a afirmativa correta sobre aquele que Rawls considera o dever
A
UNIDADE 3 TPICO 3 329

moral mais importante:

a) ( ) promover as instituies justas.


b) ( ) Consiste em ser solidrio com o prximo.
c) ( ) pagar seus impostos em dia.

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330 TPICO 3 UNIDADE 3

IAO
AVAL

Prezado(a) acadmico(a), agora que chegamos ao final


da Unidade 3, voc dever fazer a Avaliao referente a esta
unidade.

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331

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