Texto Marco DeMarinis
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Corpo/carne
Trata-se de uma distinção bastante desenvolvida feita pela
filosofia fenomenológica e que influenciou muito as práticas
artísticas do corpo, bem como qualquer tentativa subsequente
de elaboração teórica sobre o mesmo assunto. O primeiro foi
Edmund Husserl, com sua distinção entre Körper, corpo como
res extensa, corpo-coisa, e Leib, o corpo vivido e agido, uni-
dade vivida de percepção e movimento (Husserl, 1970). Essa
distinção foi retomada e desenvolvida por Maurice Merleau-
Ponty, que separou o corpo e a carne (chair), tornando-se assim
o primeiro a atribuir um estatuto filosófico para essa segunda
noção (Merleau-Ponty, 1964; 1993)4. Trata-se do próprio corpo,
que constitui um horizonte comum a todos, a linha de contato
com o mundo exterior.
Na performance art e, em especial, na body art, muitas
vezes há uma tentativa, por parte do artista, para redescobrir
o corpo como seu próprio corpo, isto é, como Leib ou carne
(chair). Em outras palavras, o bodyartista se esforça, com as
suas ações ao extremo excessivas, violentas, de reapropriar-
se do seu corpo, da sua autenticidade-verdade, além de toda
alienação-reificação, além e contra qualquer redução a um
corpo objeto de consumo, uma simples mercadoria.
O fato interessante na body art, e também em outras
experiências extremas da cena contemporânea (por exemplo,
no Teatro da Crueldade de Artaud), é que para ir do corpo à
carne, isto é, do corpo-objeto ao próprio corpo, vivido, parece
muitas vezes necessário passar pela carne do açougueiro, ou
seja, pela viande: em outras palavras, para recuperar a posse
de seu corpo, para desaliená-lo, é, muitas vezes, indispensável
Corporeidade
Esse corpo singular, peculiar, fenomênico, vivido, pode-
ria ser levado utilmente para a, e talvez dissolvido na, noção
de corporeidade, a qual se refere Enrico Pitozzi (s/d, p. 3)5
– “[...] para a expressão singular e não universal de um corpo
fenomênico, assim como podemos encontrar na cena de Jan
Fabre, Romeo Castellucci, Jan Lowers, Fura dels Baus”, mas
também na body art acima mencionada, que vai desde Gina
Pane até Marina Abramovich, e na dança contemporânea (Pina
Bausch, William Forsythe, Saburo Teschigawara).
Portanto, para a cena contemporânea, Pitozzi acha útil
distinguir entre o corpo como uma categoria universal e a cor-
poreidade como uma experiência singular. Em outras palavras,
a vantagem da adoção do conceito de corporeidade, de acordo
com esse estudioso, está no fato de que ela permitiria uma
maior conscientização, graças a uma abordagem fenomenal
para o corpo, uma verdadeira novidade presente nas pesquisas
dos mestres do século XX, os Pais Fundadores do espetáculo
moderno, novidade que, não por acaso, no momento, eu havia
colocado o emblema distintivo de redescoberta do corpo (De
Marinis, 2000). Foi, de fato, a redescoberta do corpo sensível,
isto é, concreto, considerado não mais pelo externo, mas por
intermédio de um “[...] conhecimento aprofundado de suas
dinâmicas internas” (Pitozzi, s/d, p. 3); um corpo subtraído,
em consequencia, para a esfera do simbólico, por um lado, e
para o formal, por outro, e devolvido para a sua materialidade.
Na verdade, de acordo com essa perspectiva, “[...] não se trata
tanto de estudar o corpo em movimento, mas o movimento no
corpo” (Pitozzi, s/d, p. 2)6.
Mimismo/jeu/rejeu
Na sua obra póstuma Anthropologie du geste (1969),
Jousse propõe um estudo do ser humano concebido como “um
animal intencionalmente mimético”, com o conceito central
de mimismo: na verdade – escreve Jousse – “[...] nós conhe-
cemos as coisas somente na medida em que elas se jogam, se
‘gestualizam’ em nós” (Jousse, 1974, p. 59).
Além do conceito de mimismo, também jeu e rejeu
constituem duas noções chave para Jousse. Como explica
um especialista italiano do estudioso francês, E. De Rosa, na
terminologia de Jousse.
O ‘jogo’ é a gesticulação, obrigada e inconsciente,
produzido no homem pelos movimentos das coisas
incorporados pelos seus órgãos; é a irradiação na
musculatura humana dos gestos plásticos e sonoros
das coisas. O ‘jogo’ é o conjunto que se insere em nós,
nosso malgrado, e nos obriga a manifestá-lo. O ‘jogo’
é, portanto, a fase da impressão seguida da fase da
expressão, que Jousse chama de ‘re-jogar’. Esse ‘re-
jogar’ é uma espécie de ‘re-emergência’: a penetração
das interações externas no homem repercute-se em toda
a sua musculatura e o constringe a refazer os gestos
das coisas, a reproduzi-los, a mimá-los (De Rosa apud
Colimberti, 2005, p. 125)7.
Teatro Rásico
O teórico americano nos recorda como, ao lado e em
alternativa ao modelo ocidental (platônico-aristotélico) de ex-
periência estética, baseado sobre ver-ouvir e, portanto, sobre a
distância e sobre o logos da interpretação-compreensão, opera
desde milênios um modelo bem diferente, que poderíamos
chamar asiático, ligado ao degustar, logo, à boca, ao aparelho
digestivo, ao corpo e, assim, baseado sobre a participação si-
nestésica e cinestésica. Existe um país e uma cultura na qual
esse modelo alternativo de fruição conheceu uma teorização
admiravelmente precisa e fascinante: é – eu apenas o antecipei
– a Índia antiga, mais precisamente o teatro clássico indiano,
no qual o célebre tratado Natya-Sastra domina duas noções,
bhava, que significa emoção, e rasa, que significa sabor, e vem
delineada uma visão de teatro como uma arte que permite ao
espectador saborear as emoções, degustá-las quase na mesma
proporção das comidas (e junto delas). Schechner lhes dá o
nome de “teatro rásico”, sustentando, entre outras coisas, que
“[...] a estética do rasa é uma experiência que se prova ‘nas
vísceras’” (Schechner, 1998-1999, p. 32).
Seríamos tentados a ler a distância entre esses dois mode-
los de experiência estética e, especialmente, performativa, no
interior da oposição mente/corpo, ou cérebro/vísceras: quase
como se o rásico fosse um teatro sem cabeça, um pouco como
o teatro gastronômico contra o qual Brecht lutou à sua época.
Entretanto, tratar-se-ia de um erro: esse teatro, como todo outro
tipo de experiência estética multissensorial e cinestésica, é,
sim, visceral, mas nem por isso não pensante.
Práticas Performativas
A teoria biológica das práticas performativas e da relação
teatral (ator-espectador), na qual Pradier trabalha há algum
tempo (1990), quer demonstrar: a) que existe uma espetacu-
laridade pré-humana, no mundo animal, substancialmente
feita das reações de organismos vivos em presença de outros
organismos vivos (camaleonismo, danças de galanteio etc.);
b) que a espetacularidade humana também participa dessa
espetacularidade animal, das suas bases biológicas e dos seus
determinismos genéticos; c) que tanto os atores quanto os es-
pectadores investem na relação teatral necessidades biológicas
além e primeiro que as culturais (sociais, estéticas, espirituais),
elaborando de tal maneira determinismos genéticos não menos
do que comportamentos apreendidos e livres, conscientes.
Em suma, para o teatro, além e antes de seres humanos
pensantes (dotados de neocórtex) somos (ou ao menos deve-
ríamos ser), também, animais, ou melhor, organismos vivos
(providos, entre outras coisas, de um cérebro arcaico e de
um sistema nervoso entérico ou segundo cérebro) e, como
tais, também nos comportamos. Quando somos colocados,
como espectadores, na presença de outros organismos vivos,
disparam em nós reações físicas e cognitivas típicas, ausen-
tes em outras situações: a cinestesia, ou empatia muscular, é
Simulação Encarnada
A descoberta, cerca de quinze anos atrás, dos neurônios-
espelho por parte de uma equipe de pesquisadores italianos
da Universidade de Parma, produziu um enorme interesse e
grandes repercussões no campo das teorias estéticas e da te-
atrologia em particular, por exemplo, a neuroestética de Zeki
e Ramachandran e as tentativas de uma neuroestética teatral
por parte de Calvo Merino, Hagendoorn, Gallese (apud Bor-
toletti, 20078; Sofia, 2010, 2011). Na verdade, ela começa a
fornecer as evidências empíricas-experimentais para muitas
teorias e hipóteses que foram formuladas no curso do século
XX – como vimos brevemente – a propósito do papel do corpo
(incluindo o cérebro) na experiência estética e na compreensão
das práticas performativas.
Individualizando as bases neurais do comportamento
mimético do ser humano, a descoberta dos neurônios-espelho
nos permite compreender melhor o funcionamento da relação
teatral, a identificação espectador-personagem, a empatia
espectador-performer, a cinestesia e chegar, então, a colher
Conclusões Provisórias
Com base no que foi visto até aqui, resulta, em geral,
evidente que temos a possibilidade de repensar profundamente
a relação teatral e a experiência do espectador, reabilitando,
por exemplo, aquelas reações pré-interpretativas (propostas
nos anos 1980, sobretudo no ambiente científico da Antro-
pologia Teatral) (Barba; Savarese, 1983)9 que a semiótica do
teatro havia tratado na época, talvez, de modo muito rápido
(De Marinis, 2008); ou encontrando lugar, na competência do
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Marco De Marinis é um dos mais importantes teóricos italianos do teatro. É pro-
fessor na Università di Bologna na Itália. É autor de diversos livros e artigos em
várias línguas. É membro permanente da ISTA (International School of Theatre
Anthropology).
E-mail: [email protected]
Traduzido do original em italiano por Débora Geremia e revisado por Gilberto Icle.
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