Constituições Primeiras Do Arcebispado Da Bahia

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Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia

estudo introdutório e edição


Bruno Feitler
Evergton Sales Souza
Estudo introdutório

Há pouco mais de trezentos anos eram promulgadas as Constituições Primeiras


do Arcebispado da Bahia, verdadeiro espelho do ideal de funcionamento do
aparelho religioso e da sociedade católica a que aspirava seu autor, o arcebispo
D. Sebastião Monteiro da Vide. Esta obra de legislação canônica representa um
trabalho inédito de adaptação das normas eclesiásticas à realidade local de uma
diocese luso-americana. As Constituições permaneceram em vigor, com algumas
modificações, até o fim do Império; longevidade atestadora de seu êxito e indicativa
de sua grande importância enquanto fonte para o estudo da Igreja e da sociedade
brasileiras. Entretanto, sua última edição data de 1853, tornando mais difícil o
acesso dos pesquisadores a exemplares existentes em algumas bibliotecas do país.
A dificuldade de acesso à obra, aliada à sua importância, justifica plenamente
nosso propósito de reeditá-la, num projeto que se tornou viável devido ao apoio
fundamental dos organizadores da Coleção “Documenta Uspiana”.
Neste estudo introdutório, a análise do personagem e da obra de D. Sebastião
Monteiro da Vide serve de elemento contextualizador do momento em que as
Constituições foram redigidas, publicadas e depois impressas. Já o exame das
próprias Constituições não pretende mais do que levantar algumas questões que
nos pareceram importantes para a compreensão deste texto enquanto fonte para a
história do Brasil.

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1. d. sebastião monteiro da vide,
quinto arcebispo da bahia

1.1. Vida e Carreira

Sebastião Monteiro da Vide nasceu na vila de Monforte, no bispado de Elvas, a 19


de março de 1643, filho de Domingos Martins da Vide e Beatriz Moutosa. Recebeu
a primeira tonsura e ordens menores em 14 de junho de 1653 e, em 22 de maio
de 1659, em Évora, entrou como noviço da Companhia de Jesus, onde estudou
Artes no colégio do Espírito Santo entre 1662 e 1666. No ano seguinte, inscreveu-
se na Universidade de Coimbra, onde recebeu o grau de bacharel em maio de
1672, formando-se em Cânones em março de 16731. Após ordenar-se sacerdote,
em 1671, gozou sucessivamente os benefícios de prior da igreja de São Mamede
e depois de Santa Marinha, ambas em Lisboa. Foi vigário-geral de Setúbal em
16782. Posteriormente, ocupou os cargos de juiz dos casamentos do arcebispado de
Lisboa – desde dezembro de 1682 –, passando a vigário-geral em meados dos anos
1690, ao ser por três vezes preterido pelo soberano para bispados das conquistas
portuguesas: em 1685 para Goa, em 1691 para a Bahia e em 1694 para a Sé de Olinda3.
Monteiro da Vide serviu também como desembargador e chanceler do Ordinário
lisboeta4. Finalmente, no dia 8 de maio de 1701, foi nomeado por D. Pedro II para o
cargo de arcebispo da Bahia. Sua sagração ocorreu na igreja da Trindade de Lisboa,
em 21 de dezembro de 1701, e o lançamento do pálio, oficializado pelo bispo de

1. Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana Historica Critica e Chronologica […], (Cd-Rom), Lisboa, Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, s.d. (1. ed.: 1741–1759), vol. 3, p. 694; Orlandus
Schulte, De primis archidiœcesis Bahiæ Constitutionibus anno 1707 promulgatis, Romae, 1962, p. 18, apud Antonio Do-
mingues de Sousa Costa, “Padroado Régio e Elevação das Raças no Brasil segundo Monteiro da Vide Arcebispo
da Baía”, em V Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros, Coimbra, 1965, pp. 6–7, e Arquivo da Universidade de Coimbra,
gavetas nominais de alunos.
2. José Pedro Paiva, Os Bispos de Portugal e do Império (1495–1777), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra,
2006, p. 486.
3. Em 1685, foi nomeado em primeiro lugar pelo conselheiro Francisco Malheiro e pelo conde presidente do Conselho
Ultramarino, como “sujeito de boa opinião, ciência e bom exemplo para se esperar dele que fará o lugar de pastor
mui conforme ao que convém as obrigações que lhe toca”. Biblioteca da Ajuda, 51–VIII–25, n. 631 (fl. 330–330v).
Seis anos depois, foi nomeado para o arcebispado da Bahia por quatro membros do mesmo Conselho, “atendendo,
precisamente, a que à metrópole da Bahia acorriam todas as causas de apelação das dioceses do Rio e Pernambuco,
para o que se exigia prelado capaz”. Antonio Domingues de Sousa Costa, “Padroado Régio e Elevação das Raças”,
op. cit., pp. 8–10 e Orlandus Schulte, De primis archidiœcesis, op. cit., pp. 22–23.
4. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignacio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, offerecida ao Illustris-
simo Senhor Arcebispo da Bahia Dom Sebastião Monteyro da Vide […], Lisboa Occidental, Na Officina de Pascoal da
Sylva, 1718, Argumento gratulatório de Prudêncio do Amaral; Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, op. cit.,
vol. 3, p. 694; Orlandus Schulte, De primis archidiœcesis, op. cit.

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Epônia, D. frei Antonio Botado, no dia 31 do mesmo mês, na igreja em que até
então Monteiro da Vide fora prior. O novo arcebispo chegou à sua diocese em 20
de maio, tomando posse dois dias depois5. Monteiro da Vide foi, assim, o décimo
terceiro prelado a ocupar a Sé baiana e seu quinto arcebispo. Chegou também a
ocupar o governo civil por morte do governador-geral D. Sancho de Faro, conde
de Vimieiro, falecido em 13 de outubro de 1719. Tratou-se de um governo interino
trino, em conjunto com o chanceler da Relação Caetano de Brito de Figueiredo, e o
mestre-de-campo João de Araújo de Azevedo, exercido entre os dias 14 de outubro
de 1719 e 23 de novembro de 1720, quando tomou posse o vice-rei Vasco Fernandes
César de Meneses6. Monteiro da Vide faleceu a 7 de setembro de 1722 depois de
confessado pelo patriarca de Alexandria, de passagem por Salvador no seu retorno
da China7, e foi enterrado no mesmo dia, “pelas nove horas da noite, com todas as
honras funerais devidas à pessoa de [Sua] Ilustríssima e Reverendíssima, e estado
pontifical”, em “sepultura que humildemente escolheu no plano da capela-mor
da sua Sé”8, do lado da epístola9. Sua lápide funerária, hoje guardada no Museu
de Arte Sacra da Bahia, tem por epitáfio o dístico Brasiliae leges, Templi augmenta
paravit, / Venturis magnam Prœsulibusque domum / Obdormivit in Domino 7.
Setembris anno MDCCXXII.
Durante os vinte e um anos em que esteve à frente da Sé primaz do Brasil (sua
prelatura foi uma das mais longas da Bahia colonial), D. Sebastião dedicou-se com
afinco à sua missão pastoral, ao engrandecimento da Igreja na sua diocese – através
de uma série de construções e reformas que deram continuidade ao trabalho dos
seus antecessores – bem como ao enaltecimento da sua mitra no seio do mundo
católico por meio do que parece ter sido uma verdadeira política editorial. Como
veremos adiante, a organização do sínodo episcopal e a publicação do conjunto de
textos que formam a edição das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia se
inserem num episcopado original sob vários aspectos.

5. Antonio Domingues de Sousa Costa, “Padroado Régio e Elevação das Raças”, op. cit., p. 11. Barbosa Machado dá o
dia 3 de março de 1702 como data de sua sagração. As fontes de Antonio Domingues de Sousa Costa são os regis-
tros paroquiais de Santa Marinha. Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, op. cit., vol. 3, p. 694. A entrada do
arcebispo e do governador D. Rodrigo da Costa custaram 462 602 rs. aos cofres da Câmara. Cf. Arquivo da Câmara
Municipal de Salvador, Pagamentos pelo Senado (1693–1714), fl. 151.
6. Luis dos Santos Vilhena, A Bahia do Século XVIII, Salvador, Itapuã, 1969, vol. 2, pp. 406–407.
7. Segundo o padre José Fialho, que em 1792 escreveu uma pequena coletânea de biografias dos arcebispos da Bahia.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (doravante BNRJ) Mss II, 33, 34, 23, fl. 1v
8. Valentim Mendes, Sermaõ que na festividade das SS. Onze mil virgens padroeyras da America, celebrada na igreja do
collegio dos religiosos da Companhia de Jesus da cidade da Bahia, metropoli do Brasil, no dia 21. do mez de Outubro do anno
de 1732, Lisboa, Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1734, dedicatória.
9. Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, op. cit., vol. 3, p. 694.

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Contudo, no que toca a seu percurso e carreira, Monteiro da Vide não pare-
ce ter-se diferenciado muito de seus colegas. Como ele, vários dos candidatos e
futuros bispos ultramarinos exerceram, anteriormente, cargos de vigário-geral ou
desembargador em tribunais eclesiásticos do reino10. As promoções posteriores,
contudo, eram mais raras: se os arcebispos D. João Franco de Oliveira (1692–1700)
e D. frei José Fialho (1739–1741) passaram da Bahia para dioceses do reino (respec-
tivamente Guarda e Miranda), foram muito mais numerosos os que encerraram
sua carreira no cargo baiano, como foi o caso de D. Sebastião. Do mesmo modo,
poucos foram os que, como os mesmos D. João Franco de Oliveira e D. frei José
Fialho (antes bispos de Angola e de Pernambuco respectivamente), foram alçados
ao trono metropolita do Brasil vindos de outra diocese do ultramar português.
Ao serem consultados sobre a nomeação de um sucessor para D. Luiz Álvares de
Figueiredo (1725–1735), os deputados do Conselho Ultramarino listaram os nomes
de três prelados do além-mar: em primeiro lugar, D. Inácio de Santa Teresa, arce­­
bispo de Goa; em segundo, o bispo de Pernambuco, que foi finalmente nomeado,
D. frei José Fialho; e, em terceiro lugar, o bispo do Rio de Janeiro, D. frei Antônio
de Guadalupe11. Este tipo de promoção só começa a ocorrer com mais frequência
depois de meados do século XVIII, quando a importância consolidada do Brasil
no seio do império português fez com que o arcebispado da Bahia subisse no
ranking das dioceses, abrindo a possibilidade de que a nomeação para sua Sé fosse
vista como um real progresso na carreira para quem estivesse à frente de outra
diocese do ultramar: frei Manoel de Santa Inês saiu de Angola em 1771; Joaquim
Borges de Figueiroa foi transferido de Mariana em 1773; frei Antônio de São José,
bispo do Maranhão, depois de um período de desgraça, foi nomeado para a Bahia
em 1779, falecendo antes de assumir o cargo12. Assim, como para a maior parte dos
seus antecessores (arcebispos e bispos), e boa parte dos seus sucessores, para Mon-
teiro da Vide o cargo baiano significou uma boa promoção, mas com limitadas
possibilidades posteriores. Todavia, isso não impede que se veja no dinamismo de
seu governo episcopal um fator revelador de ambições mais elevadas.
A escassez da documentação sobre o seu provimento no arcebispado da
Bahia não permite que se entendam claramente quais foram as motivações

10. Ver as próximas páginas. Para mais detalhes sobre a carreira episcopal no mundo português da Idade Moderna, ver
José Pedro Paiva, Os Bispos de Portugal e do Império, op. cit.
11. Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), avulsos, Bahia, cx. 53, doc. 4654.
12. Introdução de Ildefonso Xavier Ferreira a Sebastião Monteiro da Vide, Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, São Paulo, Antonio Louzada Antunes, 1853, pp. XIV–XX.

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de D. Pedro II e de seus conselheiros, seja do Conselho de Estado, ou ainda do
Conselho Ultramarino, para nomeá-lo para o cargo. Quando, em junho de 1700,
discutia-se no Conselho Ultramarino quem seria o sucessor de D. João Franco
de Oliveira, nomeado para a Sé de Miranda neste mesmo ano, surgiram como
candidatos, ao lado do então vigário-geral do arcebispado de Lisboa, nomes como
o de frei Gaspar da Encarnação, do bispo de Pernambuco frei Francisco de Lima,
ou ainda de um certo João Duarte Ribeiro e de um Roque Ribeiro. Dos quatro
conselheiros votantes, dois elegeram Monteiro da Vide como sua primeira opção e
dois outros o citaram em segundo lugar13. Embora o Conselho fosse habitualmente
ouvido em tempos de Pedro II, nem sempre sua opinião era decisiva para a eleição
de um prelado, como mostram as deliberações de 1675 para escolher os nomes
dos três prelados do Estado do Brasil assim como o do bispado do Maranhão,
todos sede vacante14. Dos escolhidos pelo monarca – D. frei João da Madre de
Deus para a Bahia, D. José de Barros de Alarcão para o Rio, D. Estêvão Brioso de
Figueiredo para Olinda e D. frei Gregório dos Anjos para o Maranhão – nenhum
deles foi a primeira escolha dos conselheiros do rei para os negócios das conquistas,
apesar de alguns nomeados por eles terem finalmente sido escolhidos para outras
dioceses15. O mesmo pode ser dito em relação a uma consulta um pouco anterior,
referente à sucessão de D. Estevão dos Santos no bispado da Bahia em 1672, ou
nas mencionadas eleições para a Bahia em 1691 e para Olinda em 1694, quando o
candidato do Conselho, Monteiro da Vide16, não foi nomeado.
Outra questão importante a observar é a das razões que guiavam os conselhei-
ros em suas indicações para o provimento das mitras ultramarinas. Numa consulta
assinada por Feliciano Dourado, Salvador Correa de Sá e seus colegas da mesa
do Conselho Ultramarino, são mencionadas as razões das suas escolhas, o que
nos auxilia a ter uma ideia geral das qualidades ideais do candidato a um epis-
copado americano, na visão do Conselho. Antes de tudo, era imprescindível ter
“letras, bom procedimento, idade e suficiência”. Surgem como dados importantes
a experiência enquanto prelado de alguma ordem religiosa (que aqui parece estar
ligado, pelo menos para as dioceses do Estado do Brasil, mais a uma capacidade

13. AHU, avulsos, Bahia, cx. 3, doc. 293.


14. A vacância das Sés de Portugal e do Império português deveu-se ao longo tempo que a Santa Sé levou para re-
conhecer a independência do reino de Portugal, após a restauração de 1640. Sobre o assunto ver, entre outros, A.
Antunes Borges, “Provisão dos Bispados e Concílio Nacional no Reinado de D. João IV”, Lusitania Sacra, t. II, 1957,
pp. 111–219, e t. III, 1958, pp. 95–164.
15. AHU, Luísa da Fonseca, Bahia, cx. 22, doc. 1647/8.
16. AHU, Luísa da Fonseca, Bahia, cx. 21, doc. 2498.

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administrativa do que missionária17) ou o exercício de vigário-geral ou desembar-
gador em algum tribunal diocesano. A menção de parentescos nobres indica tanto
a importância estamental da nomeação quanto sua utilização como um tipo de
gratificação por serviços prestados pelos ancestrais18. Mais original é a justificativa
dada pelo deputado João Falcão de Souza para, em 1672, nomear o prior da igreja
do Santo Milagre de Santarém e fidalgo capelão do rei, D. Francisco Lobo, em
terceiro lugar para suceder a D. Estêvão dos Santos; ele põe em relevo a extrema
pobreza do candidato19. Nestas nomeações também é possível vislumbrar como
questões políticas podiam influenciar as escolhas dos candidatos. Assim, o agos-
tinho frei Pedro de Noronha foi cogitado com força, em 1675, pelos conselheiros
para o bispado do Rio de Janeiro, não só por suas virtudes, letras e cargos que havia
ocupado, mas também por ser filho do Conde dos Arcos, conselheiro de Estado
e… presidente do Conselho Ultramarino. Antonio Paes de Sande nomeia para o
Maranhão frei João da Encarnação, que havia sido geral da ordem dos Eremitas
de São Paulo da Serra de Ossa, por “não haver esta religião religioso algum pro-
movido a esta dignidade”, mostrando uma vontade de equilíbrio entre as ordens
regulares nas dioceses. Ele ainda cogitou o sobrinho de Salvador Correa de Sá para
ocupar o cargo em Olinda. O próprio Correa de Sá, por sua vez, ao propor (em
segundo lugar) frei Antonio Rolim para esse bispado, menciona sua qualidade de
fidalgo, “parte essencial nas conquistas”. Assim, Correa de Sá também nomeia em
primeiro lugar para o Rio o beneditino frei João de Souza, que, além de ser fidalgo,
era “muito respeitado naquelas capitanias da repartição do sul”, o que indica que
a experiência relativa às questões locais também podia ser levada em conta. Para
o recém-elevado arcebispado da Bahia todos nomearam em primeiro lugar ao dr.
João de Seixas de Cabreira, que havia sido desembargador da Relação, juiz das
três ordens militares e provisor do priorado do Crato, “o que para a nova direção
de arcebispo é conveniente para a formatura de uma Relação eclesiástica e mais
ofícios a ela anexos, além de que [ele] conhece os sujeitos eclesiásticos do Brasil
por ter informado com suas oposições como juiz geral à mesa da Consciência”.
Eles ainda nomeiam, num papel à parte, Estêvão dos Santos (homônimo do pri-

17. Contudo, essa qualidade de missionário e uma “idade suficiente” são mencionadas duas vezes por Salvador Correa de
Sá, tanto para o Rio, por causa “da dilação daquele bispado, com muitas vilas pelos sertões, serras e a passagem dos
rios e gente indômita como é a de São Paulo e seus recôncavos, e que necessita de bispo missionário”, quanto para o
Maranhão, quando nomeia frei João da Madre de Deus: “e com idade suficiente para o trabalho de missionário como
entende que será o bispo deste Estado”.
18. AHU, Luísa da Fonseca, Bahia, cx. 22, doc. 1647/8.
19. AHU, Luísa da Fonseca, Bahia, cx. 21, doc. 2498.

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meiro bispo baiano eleito após a reconciliação com Roma em 1668), graduado em
teologia, e que havia sido tanto vigário-geral e juiz dos resíduos em Pernambuco
quanto vigário-geral e visitador-geral do bispado do Brasil. Na época, era cônego
na Sé da Bahia e foi indicado porque, para além de sua experiência, lhe “cabe toda
a dignidade que S. A. for servido ocupá-lo”20.
Entretanto, nenhum dos candidatos que surgem em primeiro lugar nos dois
pareceres do Conselho Ultramarino citados acima (1672 e 1675) foram finalmente
escolhidos por D. Pedro, o que comprova que a opinião daquele órgão podia ser
importante mas não decisiva na matéria. Por outro lado, nota-se que pelo menos
algumas das qualidades mencionadas pelos conselheiros também se encontravam
na pessoa de Sebastião Monteiro da Vide. Ele não parece ter origens nobres: o
brasão por ele utilizado, fazendo referência aos Monteiro (as três cornetas), pode
ter sido tão simplesmente apropriado. Tinha já uma certa idade no momento de
sua nomeação: 57 anos, que pode parecer própria para o tipo de função. Na verdade,
contou em muito sua experiência e o trabalho efetuado enquanto desembargador,
chanceler e vigário-geral do arcebispado de Lisboa. Pode-lhe ainda ter sido de
grande valia o apoio de D. Luis de Sousa, arcebispo de Lisboa, e do seu irmão, o
Marquês de Arronches, ambos membros do Conselho de Estado21, além do apoio
reiterado dos deputados do Conselho Ultramarino, que já o haviam escolhido duas
vezes para cingir mitras no Brasil.
Podemos considerar a escolha de Monteiro da Vide para arcebispo da Bahia, e
assim suas qualificações para o cargo, como entrando em geral nos moldes do que
se esperava de um candidato tipo. Já por suas ações e também por seus ideais devo-
cionais, ele pode ser visto como um prelado tridentino. Mais do que isso, Monteiro
da Vide foi além de seus antecessores na busca do cumprimento perfeito, ainda
que nunca atingido, das diretivas do Concílio de Trento. Mas, antes de passar em
revista esses feitos especiais, não podemos deixar de pelo menos indicar sua atua-
ção na mais básica das atividades de um prelado: a ação pastoral.

1.2. A Missão Pastoral

Num relatório enviado a Roma, em 1711, lamenta-se o arcebispo, como todo pre-
lado americano, da extensão de sua diocese, justificando assim a impossibilidade

20. AHU, Luísa da Fonseca, Bahia, cx. 22, doc. 1647/8.


21. José Pedro Paiva, Os Bispos de Portugal, op. cit., p. 486.

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de fazer as visitas anuais ordenadas no “sacrossanto e ecumênico Concílio Tri-
dentino”. Contudo, no espaço de cinco anos, o arcebispo diz ter percorrido toda
a diocese, com a exceção de uma paróquia, não tanto pela distância de Salvador
(duzentas léguas portuguesas), mas por ter ficado gravemente doente22. O jesuíta
Prudêncio do Amaral escreve que Monteiro da Vide fez quatro visitas pastorais
entre 1702 e 1717/171823. Esta pequena média de visitas pastorais, quando posta, por
exemplo, em paralelo com as médias de seus sufragâneos pernambucanos, pode,
quem sabe, ser explicada pelo fato de Monteiro da Vide ter tentado visitar toda
a sua diocese, enquanto os mencionados bispos pernambucanos limitaram-se, na
maioria das vezes, a percorrer uma parte das paróquias do litoral do bispado,
aventurando-se raramente sertão adentro24. Em todo caso, depois de efetuar estas
visitas, Monteiro da Vide parece conhecer bem as necessidades de seu rebanho,
como o demonstra a súplica escrita, em 1712, ao rei, “em favor do culto divino e
da salvação das almas”25. Este conhecimento profundo da diocese, obtido através
da experiência direta das visitas pastorais, pode também ser visto como uma das
precondições para a redação de constituições adaptadas às necessidades locais. A
carta pastoral de Monteiro da Vide que abre o texto das constituições refere-se à
visita prévia de “algumas paróquias” do arcebispado. Noutro extremo do Império
português, D. Gaspar de Leão, arcebispo redator das constituições de Goa, lem-
bra não tê-las ordenado antes de visitar toda a prelazia três vezes, “para que com
maior consideração acertássemos remédio aos males que nela achássemos”26.
Não há descrições detalhadas do que se passou durante as visitas de Monteiro
da Vide. Mas não podemos duvidar de que ele tenha seguido as normas triden-
tinas, preocupando-se tanto com as condições materiais das igrejas e outros edi-

22. Archivio Segreto Vaticano (doravante ASV), Congr. Concilio, Relat. Diœc., 712 (Salvatoris in Brasilia). Relação ad
limina de 30 de agosto de 1711. Agradecemos a generosidade do amigo frei Marcos Almeida, que gentilmente nos
cedeu suas fotocópias dos documentos do Arquivo Vaticano.
23. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignácio, op. cit., argumento gratulatório de Prudêncio do Amaral.
24. D. Francisco de Lima, que chegou a ser cogitado para o arcebispado, visitou pessoalmente seu bispado a inter-
valos médios de oito meses durante os quatro primeiros anos do seu governo, enquanto D. José Fialho, mesmo
avesso ao envio de visitadores delegados, conformando-se assim com o espírito das normas tridentinas, que
preferiam as visitas pessoais dos prelados ao envio de visitadores delegados, fez ou mandou fazer visitas a cada
dezoito meses. Bruno Feitler, Nas Malhas da Consciência: Igreja e Inquisição no Brasil, São Paulo, Alameda/Pho-
ebus, 2007, pp. 24–33.
25. Reeditada recentemente por Cândido da Costa e Silva (ed.), Notícia do Arcebispado de São Salvador da Bahia, Salva-
dor, Fundação Gregório de Mattos, 2001.
26. Gaspar de Leão, Constituiçoens do arcebispado de Goa. Approvadas pello primeiro cõcillio provincial Anno 1568, Goa,
Ioão Endem, 1568, prólogo. Reeditadas em Goa pelo Colégio de São Paulo novo da Companhia de Jesus em 1649, e
insertas em Antonio da Silva Rego (ed.), Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente,
Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1953, vol. 10, pp. 481–800.

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fícios religiosos quanto com o estado espiritual dos fiéis, pregando à população,
instaurando devassas sobre situações pecaminosas e administrando o sacramento
do crisma. Esse último ponto parece destacar-se, pois ao escrever sobre as visitas
pastorais, em sua missiva de 1711, à Congregação do Concílio, diz ter confirmado
até então 26 000 almas. Prudêncio do Amaral afirma que, durante a última visita
efetuada, possivelmente em 1717, “se observou um crescido número de 10 496 cris-
mas e 8 033 comunhões”27. Além da administração do crisma aos fiéis em geral,
Monteiro da Vide preocupou-se especialmente com a situação espiritual dos es-
cravos, pois durante as visitas

[…] julgava […] por pouco não negar-se à rusticidade dos escravos mais vis, se não
que recebia com alegre semblante, e significação de grande gosto que tomava em ser tão
piamente importunado. Sucedeu muitas vezes depois do trabalho de administrar tardes
inteiras o sacramento da crisma, chegar já tarde um ou dois escravos, e para os consolar, de
novo se revestia de Pontifical, recolhendo aquelas poucas espigas que talvez escaparam das
mãos no maior da sega28.

Interessante notar que esta atenção para com os escravos, “que é maior número
de almas de que consta o […] arcebispado […] que haveria nele mais de noventa
mil almas, e deste número certamente […] muito mais de cinquenta mil são es-
cravos”, não surgiu apenas das suas preocupações espirituais, mas também de D.
Pedro II, que em pelo menos duas ocasiões escreveu aos prelados baianos pedindo
que se desse maior atenção aos cativos29. Esta preocupação refletiu-se com força
nas ações do arcebispo, que, enquanto não saíam do prelo as Constituições, onde
incluiu um catecismo adaptado para os escravos, “mandou imprimir muitos mil
livrinhos em fácil método para que os escravos pudessem mais facilmente aprender
a doutrina cristã e os repartiu por todo o arcebispado”30. Mas os escravos não eram
os únicos a carecer da extensão do pasto espiritual. Nas mencionadas Notícias do
Arcebispado da Bahia, datadas de 1712, Monteiro da Vide, após relembrar ao mo-
narca suas obrigações enquanto “governador e perpétuo administrador da ordem

27. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignacio, op. cit., Argumento gratulatório de Prudêncio do Amaral.
28. Idem, ibidem.
29. Cândido da Costa e Silva (ed.), Notícia do Arcebispado de São Salvador da Bahia, op. cit., pp. 44–45.
30. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignácio, op. cit., Argumento gratulatório de Prudêncio do Amaral. Ama-
ral continua: “Só fará conceito da importância desta obra quem à sua custa experimentou a dificuldade de catequizar
escravos da última rudeza”. O próprio arcebispo faz referência a este catecismo impresso no liv. I, tít. III, § 8. Não se
conhecem exemplares destes impressos.

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de Nosso Senhor Jesus Cristo”, significa-lhe a extrema necessidade espiritual em
que se encontravam os fiéis da sua diocese, urgindo a criação de novas paróquias.
Com efeito, a grande extensão de cada freguesia impedia a administração regular
dos sacramentos a boa parte do seu rebanho, e a ereção de curatos, custeados pela
própria população, não funcionava mais do que como paliativo. Monteiro da Vide
queria que os muitos curatos existentes fossem dotados pelo rei e transformados
assim em paróquias, com verbas para o pagamento do pároco e do seu coadjutor
(ou seus coadjutores), e para a boa manutenção da igreja. Os sucessivos prelados
da América portuguesa enfrentaram sempre o mesmo problema, ligado à expan-
são da ocupação territorial e ao aumento da população em escala muito diversa da
realidade europeia. Mal ou bem, os bispos conseguiram fazer com que paróquias
fossem criadas. Em 1718, finalmente, Monteiro da Vide obteve de D. João V a
ereção de vinte paróquias, todas com côngruas pagas pela Fazenda Real, que se
somaram às quarenta existentes31. Ele também pediu ao rei que aumentasse o nú-
mero de dignidades da Sé e o valor de suas côngruas, visando melhorar a qualidade
do culto, muito imperfeitamente respeitado na principal igreja do arcebispado32.
No mesmo alvará que erigiu as novas paróquias, D. João V autorizou a criação de
quatro novas prebendas: de cônegos magistral, doutoral, penitencial e mais uma
para dois meios cônegos, além de quatro capelanias. Também aumentou as côn-
gruas das outras dignidades. Isto para que, nas palavras do Rei, os ofícios divinos
se celebrassem “todos cantados, com a mesma solenidade como se celebram nas
metrópoles deste Reino, porque desejo que essa Sé tenha a mesma estimação dos
fiéis, principalmente estrangeiros, e muito mais pela importante consequência que
com a divina graça espero se siga de se converterem os infiéis e gentios, vendo a
grande veneração e reverente culto com que na mesma Sé tão principal, e de que
eu faço tanta estimação, se louva, e serve ao mesmo Senhor”33.
Entretanto, sem razão aparente, além de sua idade provecta, Monteiro da Vide
parece ter-se descuidado de sua vigilância pastoral no período final de seu epis-
copado. Pelo menos é isso que se depreende da leitura da carta que D. João V lhe

31. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 712 (Salvatoris in Brasilia). Relação ad limina de 10 de junho de 1721, e Arlindo
Rubert, A Igreja no Brasil: Expansão Territorial e Absolutismo Estatal (1700–1822), Santa Maria, Palotti, 1988, pp.
178–179.
32. Cândido da Costa e Silva (ed.), Notícia do Arcebispado de São Salvador da Bahia, op. cit., pp. 56–65.
33. Cf. Carta de D. João V ao arcebispo da Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide, de 11 de abril de 1718, reproduzida em
Prudêncio do Amaral (atribuído a), Catálogo dos bispos que teve o Brasil até o ano de 1676, em que a catedral da cidade da
Bahia foi elevada a metropolitana, e dos arcebispos que nela tem havido com as notícias que de uns e outros pode descobrir,
neste volume, p. 753.

16  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


escreveu em janeiro de 1722, chamando sua atenção para o fato de que, “em todo
esse Estado do Brasil, e especialmente nessa cidade [de Salvador], vive o comum
de meus vassalos com grande dissolução e com mui pouco respeito às leis divinas
eclesiásticas e seculares”. Encomendava-lhe o rei que, com o eventual auxílio do
vice-rei e dos prelados das ordens regulares presentes na diocese, introduzisse “nas
igrejas práticas espirituais a horas competentes e alguns exercícios de devoção e
penitência, os quais sejam dirigidos por algum sacerdote de espírito e prudência”;
em resumo, que colocasse em prática “todos os meios que podem ser eficazes e
suaves para se emendarem desordens tão escandalosas com que se ofende o céu e a
terra, e até provoca a Justiça divina”34.

1.3. Culto aos Santos e Piedade

O exame de algumas das principais ações de Monteiro da Vide enquanto arce-


bispo da Bahia não deixa dúvidas quanto ao seu caráter de prelado zeloso, em
particular no que diz respeito a dotar a igreja luso-americana de legislação própria.
Entretanto, os ofuscantes testemunhos de sua atividade legisladora – que adiante
será analisada mais detidamente – podem conduzir ao esquecimento de outros
traços marcantes da trajetória e personalidade do prelado baiano. É verdade que
algumas dessas características parecem ser de difícil reconstituição, pois delas não
chegaram até nós mais do que um ou outro indício. É o caso, por exemplo, do que
poderíamos chamar de relativa tolerância devocional do arcebispo. Importante in-
dício dessa tolerância aparece numa carta do vice-rei Vasco Fernandes César de
Meneses, conde de Sabugosa, ao Conselho Ultramarino, na qual se mostrava pre-
ocupado com os inconvenientes que se produziam devido a certas manifestações
devocionais35, nas quais havia participação simultânea de homens e mulheres sem a
devida separação de sexos. Ele, vice-rei, teria sugerido ao arcebispo que declarasse
tais inconvenientes numa carta pastoral, mas este lhe respondeu que “se não atrevia
a fazê-lo porque esfriaria a devoção”36. Embora a análise tenha que ser feita com
muita cautela, em virtude de ser a carta do vice-rei o único testemunho encontrado

34. AHU, cód. 247, fl. 296r–v. Carta de D. João V a D. Sebastião Monteiro da Vide, de 17 de janeiro de 1722.
35. As fontes consultadas até aqui, infelizmente, não trazem informação precisa sobre essas manifestações devocionais.
36. Arquivo Público do Estado da Bahia, ordens régias, livro 16, fls. 6–11. Carta de D. Vasco Fernandes César de Meneses
de 24 de julho de 1722. O Vice-rei escreveu esta missiva, seguramente, após ter conhecimento da carta régia enviada
ao arcebispo (citada na n. 33), recomendando-lhe que tomasse providências para combater a devassidão e os escân-
dalos contra a fé católica em seu arcebispado.

e stud o int r od utór io   17


sobre o assunto, é possível sugerir que a atitude de Monteiro da Vide seria reve-
ladora da opção por um método de conversão marcado pela ideia de que importa
sobretudo atrair os fiéis para a Igreja, tolerando, se preciso, alguns desvios. Nesse
caso, o arcebispo estaria entre aqueles que pensavam não ser factível a adoção de
uma política mais rigorosa de enquadramento religioso antes da sedimentação da
fé cristã numa comunidade formada majoritariamente por “recém-conversos”.
São vários os testemunhos que apontam para a preocupação de Monteiro da
Vide com relação ao culto aos santos, em particular com o culto mariano. O nono
tomo do Santuário Mariano, que trata da história das imagens de Nossa Senhora
milagrosamente manifestadas e aparecidas no arcebispado da Bahia e nos bispados
de Pernambuco, Maranhão e Grão-Pará, é dedicado ao arcebispo da Bahia por seu
autor, frei Agostinho de Santa Maria. Em sua breve dedicatória, o frade agosti-
niano menciona o empenho do arcebispo para reunir informações preciosas para a
obra que publicava naquele momento, tendo solicitado aos seus párocos o envio de
relações com “autênticas informações de todas as imagens da Mãe de Deus” vene-
radas em suas paróquias37. Nalguns relatos fica patente o cuidado do arcebispo em
checar a autenticidade das aparições das imagens e o bem-fundado do culto que
se lhes rende. É o caso da imagem de Nossa Senhora da Soledade38 do sertão nas
Ribeiras do rio São Francisco, atual santuário de Bom Jesus da Lapa. Para atestar a
verdade sobre a milagrosa imagem, o arcebispo enviou visitadores, que registraram
a veracidade das “grandes maravilhas” operadas por intercessão de Nossa Senhora
e “viram ser aquele lugar e aquele templo muito decente”39.
O jesuíta Valentim Mendes, ao publicar seu sermão pregado nas festividades das
onze mil virgens, em outubro de 1732, dedica-o ao falecido arcebispo da Bahia, D. Se-
bastião Monteiro da Vide, afirmando ter sido o prelado “devotíssimo” do culto a estas
santas “enquanto viveu neste arcebispado”, e que fora juiz da sua festividade em 170440.
Embora sem dispor de outras informações sobre o apoio dado pelo arcebispo à venera-
ção das onze mil virgens, é possível conjecturar que sua devoção ou boa-vontade para

37. Frei Agostinho de Santa Maria, Santuario Mariano, e Historia das Imagens milagrosas de Nossa Senhora, E milagro-
samente manifestadas, e apparecidas em o Arcebispado da Bahia, et mais Bispados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande,
Maranhão, et Graõ Parà, Em graça dos Pregadores, et de todos os devotos da Virgem Maria nossa Senhora. Tomo nono.
Que consagra, offerece, e dedica ao Illustrissimo Senhor Arcebispo da Bahia D. Sebastiaõ Monteyro da Vide, do Conselho de
Sua Magestade, Fr. Agostinho de Santa Maria, Ex-Vigário Geral da Congregação dos Agostinhos Descalços de Portugal, e
natural da Villa de Estremoz, Lisboa Occidental, Na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1722.
38. “É imagem prodigiosa e da proporção de uma perfeitíssima mulher”, Idem, p. 253.
39. Idem, p. 251. Sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa, ver o estudo de Carlos Alberto Steil, O Sertão das Romarias:
Um Estudo Antropológico sobre o Santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia, Petrópolis, Vozes, 1996.
40. Cf. Valentim Mendes, Sermaõ que na festividade das SS. Onze mil virgens, op. cit., dedicatória.

18  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


com esse culto, introduzido na América portuguesa pelos jesuítas, estaria relacionada
com a proximidade que sempre demonstrou ter com os religiosos da Companhia.
Também pode ser destacado seu apoio à irmandade de São Pedro dos Cléri-
gos. Enquanto seu provedor, coube ao arcebispo lançar a pedra fundamental da
igreja da irmandade, fazendo construir, ao seu lado, uma casa que deveria servir de
hospital para clérigos pobres41. Contudo, aqui parece destacar-se menos seu apego
a uma devoção específica do que sua preocupação social com um grupo – o clero
secular – do qual fazia parte.
Nenhum testemunho, entretanto, apresenta possibilidades mais ricas para o co-
nhecimento e análise da sensibilidade religiosa do prelado baiano do que seu livro
publicado em Roma, no ano de 1720, sobre a clarissa Vitória da Encarnação42. Em
sua tentativa de alçar o prestígio da metrópole luso-americana ao nível de uma me-
trópole como a do Pera, que desde 1671 já tinha uma santa devidamente canoniza-
da, o arcebispo busca dotar a Bahia de sua Santa Rosa de Lima. Logo no segundo
parágrafo do texto, ao referir o nascimento da madre sóror Vitória da Encarnação,
afirma ser causa suficiente para que a América meridional, tanto em sua parte
oriental quanto em sua porção ocidental, possa jactar-se “gloriosa, e aplaudida”.

A Ocidental por dar no jardim dominicano uma puríssima Rosa querida Esposa de
Cristo, que triunfou dos espinhos, ou acúleos das paixões com o fogo do amor divino. E
está por oferecer em o seráfico campo ao Senhor dos exércitos uma singular Vitória, que
com a vara de fumo de uma vida penitente e fervorosa oração, desbaratou e venceu ao
príncipe das trevas. Reciprocando-se estes dois empórios americanos de Lima e da Bahia
em dar Rosas triunfantes e Vitórias odoríferas43.

41. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignácio, op. cit., Argumento gratulatório de Prudêncio do Amaral.
42. Nascida Vitória Bixarxe, filha de Bartolomeu Nabo Correa e Luísa Bixarxe, natural de Salvador, ingressa no con-
vento de Nossa Senhora do Desterro em 1686, quando tinha 25 anos de idade. Anna Amélia Vieira Nascimento,
Patriarcado e Religião: As Enclausuradas Clarissas do Convento do Desterro da Bahia (1677–1890), Bahia, Conselho
Estadual de Cultura, 1994, p. 450.
43. Sebastião Monteiro da Vide, História da Vida, e Morte da Madre Soror Victoria da Encarnação Religiosa Professa no
Convento de Santa Clara do Desterro da Cidade da Bahia. Escrivia Arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide. Para as
Reverendas Madres Abadeça, e Religiosas do mesmo Convento, Roma, Na Estemparia de Joam Francisco Chracas, 1720,
pp. 8–9. O texto é mais acessível no translado feito por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, no seu Novo Orbe Serafico
Brasilico, ou Chronica dos Frades Menores da Provincia do Brasil, parte segunda (inédita), impressa por ordem do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Typ. Brasiliense de Maximiliano Gomes Ribeiro, 1859–1862, vol. III,
pp. 684–746. As razões desse translado, as dá Jaboatão: “sendo a primeira, o não termos presunção de o fazer nem com
melhor retórica, nem mais apurado discurso e também porque dos tais livrinhos se acham já hoje mui poucos; e como
pequenos e avulsos, se podem perder e acabar-se com eles a sua memória, e nesta crônica, como de maior corpo, e em
lugar próprio poderá ter mais larga duração e chegar à notícia de todos”. Utilizamos aqui a edição original.

e stud o int r od utór io   19


Para além do paralelo entre a clarissa baiana e a santa limenha, o trecho acima
suscita interesse por enunciar alguns topoi muito caros à construção da santidade
barroca44: vida penitente, fervorosa oração e luta contra Satanás. Monteiro da Vide,
ao escrever a biografia de Vitória da Encarnação, deixa transparecer sua própria
concepção sobre a santidade, revelando assim alguns traços de sua piedade. Atos
de rigorosa penitência e de mortificação da carne, por exemplo, são destacados
em algumas passagens do livro. O trecho transcrito abaixo oferece um exemplo
bastante claro da valorização de tais atos. Trata-se do testemunho de um secular

[…] que passando de noite em certa ocasião por junto ao coro do convento, e ouvindo
os golpes de uma rigorosa disciplina que nele se tomava, parara suspenso e atônito, até que
cessando a disciplina, que durou um largo espaço de tempo, disse consigo: é possível que
uma delicada donzela se esteja disciplinando com tanto rigor e eu, miserável pecador, não
só não faço outro tanto, se não que ainda vou ofender a Deus? Não será assim não por certo.
E dizendo isto voltou para casa com propósito firme de emendar a vida45.

Como é dado ver, o texto também procura evidenciar que o benefício da mor-
tificação extrapolava o campo individual, contribuindo para estimular a conversão
de pecadores. Relatos sobre os rigores das penitências a que se submetiam os san-
tos eram muito frequentes, não faltando a madre Vitória da Encarnação e ao seu
biógrafo modelos que pudessem servir de inspiração para práticas e narrativas as-
céticas. O padre Antônio Vieira, por exemplo, em seu Sermão de Todos os Santos,
exaltando a santidade de algumas virgens, indagava sobre a que extremos haviam
chegado algumas santas virgens para alcançar a santidade46. Noutro momento di-
zia: “que extraordinários modos de penitências não inventaram, mais engenhosas
para se martirizar a si mesmas, que os tiranos para atormentar os mártires?”47 No

44. É preciso, contudo, lembrar que, como assinala Caro Baroja, “las biografías de santos que podríamos llamar barrocas
cambian poco en espíritu con relación a las antíguas, o las góticas”. Segue sendo, portanto, uma literatura edificante
que busca influenciar o leitor através da narração de feitos heroicos e valorosos realizados pelo personagem biogra-
fado. No caso específico que tratamos, deve-se considerar que a obra também tinha o objetivo de despertar atenções
para uma possível canonização daquela a quem o prelado baiano chamava bem-aventurada. Cf. Julio Caro Baroja,
Las formas complejas de la vida religiosa: Religión, sociedad y carácter en la España de los siglos XVI e XVII, Madrid, Akal,
1978, p. 96. Sobre o assunto, ver também Antonio Rubial Garcia, La santidad controvertida: Hagiografia y conciencia
criolla alrededor de los venerables no canonizados de Nueva España, México, Unam/FCE, 1999, pp. 38–42.
45. Sebastião Monteiro da Vide, História da Vida, op. cit., pp. 31–32.
46. “Que extremos não obraram as santas virgens por ser santas? […] Que rigores e asperezas não executaram em si
mesmas?” Cf. Antônio Vieira, Sermão de Todos os Santos, em Lisboa, no convento de Odivellas, ano 1643, Sermões, Porto,
Lello & Irmãos, 1951, vol. IX, p. 57.
47. Idem, c. VIII.

20  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


mesmo sermão, após enumerar vários exemplos de santas que padeceram as mais
atrozes mortificações, Vieira cita o caso de Santa Margarida da Hungria, que to-
mou o hábito aos quatro anos e aos cinco se vestiu de cilício, “de dia, para morti-
ficar os passos, entre os pés e o calçado, metia certos abrolhos de ferro, e de noite,
para o pouco sono que tomava sobre uma tábua, se cingia de peles de ouriços com
todos seus espinhos”48. Não eram menos dolorosas as disciplinas de que fazia uso a
clarissa baiana. Segundo Monteiro da Vide, embora procurasse esconder cautelo-
samente os instrumentos penitenciais que usava para macerar seu corpo, após seu
falecimento soube-se com certeza do uso que fazia de várias disciplinas,

[…] umas de fio com pontas molestíssimas, outras de corda de viola, outras, final-
mente, de couro cru, que ela mesma torcia, e que depois das de ferro, de que também
usava, aturavam mais os rigores com que afligia seu virginal e delicado corpo. […] E qual
alma santa guarnecida de escudos, se segurava com estas armas de toda a invasão dos
inimigos49.

O relato de Monteiro da Vide alçava a religiosa baiana ao nível de outras tantas


santas virgens. Poder-se-ia, entretanto, objetar que noutras vidas de santas encon-
tram-se facilmente narrativas ainda mais fortes no que diz respeito aos castigos
infligidos ao próprio corpo ou ao desprezo com que algumas santas teriam trata-
do seu corpo. Algumas, como Marguerite-Marie Alacoque, a santa de Parayele-
Monial, canonizada 230 anos após sua morte, parecem querer atingir o nadir do
desprezo e da humilhação do seu corpo. Um dos seus biógrafos, o bispo Languet,
diz que ela teria confessado: “eu era tão delicada que a menor sujeira causava-me
arrepios. Ele [ Jesus] me corrigiu com tanta força a este respeito que, uma vez,
querendo limpar o vômito de uma doente, não pude me conter de o fazer com a
língua, dizendo a Jesus Cristo: se tivesse mil corpos e mil vidas, eu as imolaria para
ser vossa escrava, ó meu Esposo”50. Mas Vitória da Encarnação, a julgar pelo que
escreve seu biógrafo, não ficaria a dever em atos demonstrativos de desprezo ao
próprio corpo. Em todas as sextas-feiras da Quaresma, “seu insaciável desejo de
mortificar-se” inventava uma nova e mais dura penitência.

48. Idem, ibidem.


49. Sebastião Monteiro da Vide, História da Vida, op. cit., pp. 32–33.
50. Jean-Joseph Languet de Gergy, La vie de la vénérable Mère Marguerite Marie (1729), apud Jean Delumeau, Le péché et
la peur: La culpabilisation en Occident XIIIe-XVIIIe siècles, Paris, Fayard, 1983, p. 343.

e stud o int r od utór io   21


[…] em uma sexta-feira, correu os Passos levando na boca uma canela de defunto
ainda fresca e fétida, de que lhe procedeu andar mais de oito dias continuamente babando,
dizendo-lhe como por graça às religiosas, que haviam padecer tal fluxão de saliva que a
canela sem duvida era de algum defunto, a quem o azougue tinha penetrado os olhos51.

Importa perceber, a partir das passagens mencionadas do livro do arcebispo da


Bahia, o modelo de santidade subjacente ao discurso sobre a vida de Vitória da
Encarnação. Nota-se, por exemplo, que o prelado segue a mesma linha de Vieira,
e de tantos outros homens de Igreja do mesmo período, ao afirmar que os santos
teriam desprezado em vida “tudo o que os sentidos amam, tudo o que o gosto de-
seja, tudo o que mais solicita e se pega ao coração, tudo o que honra a memória e
conserva a posteridade”. Por outro lado,

[...] tudo o que encontra e repugna a esses mesmos apetites naturais, tudo o que moles-
ta e aflige esses mesmos afetos humanos, tudo mortificaram, tudo venceram, tudo sopea-
ram, tudo abraçaram por vontade, e sem obrigação, por gosto, e sem repugnância, por amor,
e sem dificuldade. Por quê? Porque queriam ser e haviam de ser santos, e por isso hoje o são,
e os celebramos como bem-aventurado52.

Esse modo de conceber a santidade revela o apego de religiosos lusitanos ao


dolorismo, permitindo-nos compreender que atos extremos como o da clarissa
baiana sejam enaltecidos e brandidos como marcas de uma vida santa. Para Mon-
teiro da Vide, assim como para Vieira, a dor e o sofrimento são caminhos que
levam ao Cristo. Mais do que isso: não há santidade sem dor!
Embora o dolorismo se encaixe perfeitamente no quadro de uma piedade barroca,
é necessário lembrar que ele lhe antecede em alguns séculos. Mas não há como negar
a força que parece desfrutar o dolorismo entre os séculos XVI e XVII – mantendo-se
ainda vigoroso durante boa parte do século XVIII –, apresentando-se como um traço
de união entre homens de diferentes sensibilidades religiosas. Com efeito, de jesuítas
a jansenistas, nenhum grupo parece ter ficado inteiramente imune a essas manifes-
tações doloristas, que estiveram intimamente relacionadas ao sentimento de culpa
desenvolvido pela teologia e pastoral católica ocidental ao longo de vários séculos53.

51. Sebastião Monteiro da Vide, História da Vida, op. cit., p. 51.


52. Antônio Vieira, Sermão de Todos os Santos, op. cit., c. IX.
53. Sobre o assunto ver, notadamente, Jean Delumeau, Le péché et la peur, op. cit., pp. 339–350.

22  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


Como tantos homens do seu tempo, Monteiro da Vide reuniu em si traços de
uma singular erudição e expressões de uma piedade católica que, aos olhos do ob-
servador incauto, poderiam parecer contraditórias. De fato, o erudito legislador,
autor das Constituições do Arcebispado da Bahia, é o mesmo que, como hagiógrafo,
relata feitos prodigiosos ocorridos por intercessão daquela a quem chama de
“serva do Senhor”. Aliás, a própria análise da estrutura de seu opúsculo sobre
a madre Vitória da Encarnação é um exemplo dessa imbricação entre erudição
canônica e piedade menos esclarecida. Um dos objetivos dessa biografia é pro-
duzir um testemunho que possa contribuir para transformar a religiosa baiana na
primeira santa da América portuguesa – neste sentido, seria interessante buscar
maiores informações sobre o porquê de ter-se publicado esta obra em Roma54.
Para tanto, o biógrafo constrói um discurso que segue de perto o modelo de
santidade mais em voga, destacando a pureza doutrinal, as virtudes, as visões
proféticas, as tentações sofridas e os milagres operados pela personagem biogra-
fada. Se estes são temas que normalmente aparecem nos relatos hagiográficos,
é bom não esquecer que são também elementos constitutivos dos processos de
canonização. Em outras palavras, o autor colocava, dessa maneira, sua erudição
a serviço da causa de madre Vitória da Encarnação. Já nos relatos produzidos,
percebe-se uma atitude bastante distante daquela erudição que caracterizava,
por exemplo, os bllandistas, autores dos célebres Acta sanctorum. A reprodução
e/ou construção de relatos de intercessões milagrosas não parecem passar por
qualquer crivo crítico. Da cura de uma dor de ouvido à de um tumor, qualquer
relato parece ser bom para comprovar a milagrosa intercessão da “serva de Deus”,
pouco importando se a fonte é suspeita ou não. O mais intrigante dentre esses
relatos é, sem dúvida, o de uma religiosa que padecia de fortes dores na garganta
causadas por tumor interno e externo, sem que as sangrias, ventosas e outros me-
dicamentos aplicados produzissem alguma melhora. Certa noite, segue o relato,
em que parecia findar-se a “esperança que podia ter nos remédios humanos”, a

54. Cabe lembrar aqui que, no pontificado de Urbano VIII, foram modificadas as regras para a beatificação e cano-
nização de santos. Além de modificar as regras processuais, centralizando todo o processo em Roma, as reformas
de Urbano VIII estenderam-se às imagens e à literatura hagiográfica. No que diz respeito às imagens, proibiu-se
que os bem-aventurados fossem retratados com atributos sobrenaturais. No campo literário, proibiu-se que fossem
publicados livros contendo sugestões de santidade, milagres ou revelações sem que houvesse aprovação explícita da
Sagrada Congregação dos Ritos. Como em toda obra de caráter hagiográfico, o livro de Monteiro da Vide tinha
no seu início uma Protestatio Auctoris, na qual afirmava sua obediência ao decreto pontifício de 1625 e submetia o
conteúdo referido na obra à apreciação da autoridade romana. Contudo, é preciso lembrar que nada disso explica
a publicação do livro em Roma. Sobre as reformas de Urbano VIII ver, entre outros, Antonio Rubial Garcia, La
santidad controvertida, op. cit., pp. 35–38.

e stud o int r od utór io   23


enferma lembrou-se que Madre Vitória lhe prometera interceder por ela caso
chegasse a estar na presença divina. Logo rogou-lhe para que dela se lembrasse
em momento tão perigoso e, para excitar sua intercessão e mostrar o quanto

[…] venerava qualquer relíquia sua, mandou desfazer em uma xícara de água, pouca
porção de terra da sua sepultura, e a bebeu com viva fé, e molhou a parte exterior inchada;
sucesso maravilhoso! Logo se foram mitigando as dores, houve algum sossego que deu
lugar ao sono, dormiu o restante da noite [o que nas antecedentes não tinha feito] e ama-
nheceu desfeito o tumor, com assombro das religiosas que viram em tão breves horas tão
extraordinários efeitos55.

A causa de madre Vitória da Encarnação, como tantas outras, não vingou. O


que vimos anteriormente é suficiente para demonstrar o interesse que poderia ter
uma pesquisa sobre esta religiosa. No quadro de tal investigação, seria importante
consultar os arquivos da Sagrada Congregação dos Ritos para saber como a buro-
cracia romana analisou o caso da clarissa baiana, apresentado em forma de relato
hagiográfico pelo próprio arcebispo da Bahia56. Aqui, contudo, nossas atenções es-
tiveram voltadas não para a madre Vitória da Encarnação, mas para a sensibilidade
e/ou piedade religiosa de seu hagiógrafo. E a análise do texto de Monteiro da Vide
mostrou ser ele, também sob este aspecto, um indivíduo que viveu as contradições
do seu tempo: estamos diante de um homem de Igreja que manifesta a sensibili-
dade religiosa de uma época em que o “desencantamento” ainda não havia tocado
fundo a alma humana e a própria Igreja.

1.4. A Preocupação com a Dignidade das Construções Diocesanas

Estas contradições, que podem ser vistas como características do “homem barroco”57,
não se restringem aos aspectos abordados acima. Também podem ser vistas na ma-
neira de harmonizar dois arquétipos do prelado tridentino: o ideal de pobreza, ou,
em todo caso, de humildade, dos homens de Igreja, e a dignidade e grandeza que
seu cargo implicava. O primeiro elemento aparece discretamente em alguns relatos
que procuram alçar Monteiro da Vide à condição de modelo de bispo reformador.

55. Sebastião Monteiro da Vide, História da Vida, op. cit., pp. 136–138.
56. Uma primeira tentativa de encontrar o seu processo de canonisação, tanto no Archivio Segreto Vaticano como na
Congregação para a Causa dos Santos, revelou-se infrutuosa.
57. A expressão é recente, como observa Rosario Villari, O Homem Barroco, Lisboa, Presença, 1994, pp. 7–8.

24  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


Já a preocupação do arcebispo com a magnificência de seu cargo e das construções
a ele ligadas é um traço bem mais fácil de ser verificado nas fontes.
De sua própria algibeira, o arcebispo concorreu

[...] com esmolas consideráveis a cinco igrejas matrizes, que são de São Pedro do Mon-
te da Cachoeira, Nossa Senhora da Purificação de Sergipe do Conde, São Jorge dos Ilhéus,
São Gonçalo da Vila de São Francisco, Nossa Senhora do Rosário da vila da Cachoeira.
[…] E da mesma sorte muitas outras igrejas socorreu para os reparos convenientes para
estarem com a decência devida, e principalmente a matriz da Madre de Deus, a que apli-
cou maior cuidado, atendendo à muita pobreza dos fregueses, e à indigência da dita igreja,
ficando todas as igrejas do arcebispado não só decentes, mas ornada58.

A preocupação com a dignidade das construções arquidiocesanas denota mais


um traço do perfil de Monteiro da Vide enquanto prelado inspirado por Trento.
Contudo, não parece ter-se preocupado com o estado da Sé, o que pode ter a ver
com o fato de seus antecessores, que lutaram desde as destruições feitas pelos ho-
landeses na tomada da cidade e até antes para (re)erguer a catedral da Bahia, terem
conseguido reformá-la para que abrigasse com dignidade as cerimônias eclesi-
ásticas. No tempo em que Monteiro da Vide foi arcebispo da Bahia, ele podia
relatar ao papa que “habet ecclesia bahiensis templum augustum et pulcherrimum,
et tantam capacitate et decentiam ornatum, ut in eo celebrari valeant divina officia
et dignem obiri munia pontificalia”59. Pareceu-lhe então mais urgente ocupar-se
do palácio arquiepiscopal, pois, assim como a grandeza da Igreja se materializava
na Sé, a dignidade de seu esposo místico, o prelado, espelhava-se em sua casa, que
devia então reluzir de toda a decência e beleza possíveis.
Até a elevação da mitra baiana a arcebispado, em 1676, os bispos moravam em
casas de aluguel. O primeiro arcebispo a desembarcar neste lado do Atlântico, D.
João da Madre de Deus (1683–1686), para resolver “tal indecência”, vendeu os foros
que se pagavam à mitra e com as verbas reunidas, mais “algum dinheiro da sua casa”,
comprou a residência arquiepiscopal à qual se recolheu Monteiro da Vide ao chegar
à Bahia. O palácio episcopal tinha como função, no âmbito do catolicismo tridenti-
no, manifestar aos olhos de todos a dignidade do prelado, mas também, no quadro
do padroado português, dignificar a instituição episcopal enquanto representante do

58. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignácio, op. cit., Argumento gratulatório de Prudêncio do Amaral.
59. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 712 (Salvatoris in Brasilia). Relação ad limina de 30 de agosto de 1711.

e stud o int r od utór io   25


soberano. Haveria assim quase que a exigência de uma monumentalidade que ia de
encontro às residências alugadas ou medíocres60. Monteiro da Vide quis remediar
esta segunda condição: no seu entender, a compra de D. João havia sido feita

[...] com tal infelicidade que não tem a Bahia pior sítio, porque não tem vista alguma de
mar, nem de terra, nem gozam das virações que são o único refrigério dos calores do Brasil,
e estão na baixa de uma ladeira que a cerca por dois lados, deixando-as por eles quase en-
terradas, e pelos outros dois partem com duas ruas tão estreitas que uma não tem mais que
19 palmos de largo e a outra 23 e com paredes e janelas muito mais altas, de que procede
ficarem as casas dos arcebispos tão devassas que ou há de ter as janelas sempre fechadas,
ou lhes podem registrar [?] os vizinhos (se estiverem abertas) quantas ações fizer em casa
sem ele o poder evita61.

Além disso, a residência não tinha cômodos suficientes para abrigar todas as
funções episcopais e sacerdotais com o conforto, a decência e o respeito que pe-
diam a dignidade episcopal, mas também a dignidade régia, como Monteiro da
Vide não deixa de apontar:

O que mais pena me dá é ver as Majestades divina e humana tão mal acomodadas em
casa de um prelado que deve ensinar com o exemplo mais do que com palavras e como hão
de ser veneradas, pois devendo o oratório em que cada dia se celebra o santo sacrifício da
missa ser totalmente separado de outro algum uso, este tem tantos como fica relatado, nem
pode deixar de o ser. E merecendo os retratos de Vossa Majestade e do Sumo Pontífice
(que estão debaixo do dossel) toda a veneração, não há outra casa em que se tomem as
visitas, cousa que eu sinto muitíssimo, mas não posso remediar62.

60. No que toca à dignidade episcopal em si, cf. Gérard Labrot, Sisyphes chrétiens: La longue patience des évêques bâtisseurs
du royaume de Naples (1590-1760), Seyssel, Champ Vallon, 1999, p. 147.
61. Carta de Monteiro da Vide, de 26 de agosto de 1703, AHU, avulsos, Bahia, cx. 4, doc. 396.
62. “As casas em si são tão limitadas que somente constam de uma pequena saleta vaga, e uma casa em que está o dossel,
e nela as cadeiras e serv[iço?] de tomar visitas. A terceira (por não haver outra) é oratório, é livraria, é casa de des-
pacho e é precisa passagem para uma camarinha em que mal cabe um leito mas certamente não caberiam dois, que
tal é a sua pequenez. E assim o oratório, como a camarinha com porta imediata para a cozinha e para um pequeno
tinelo em que os arcebispos comem com a sua família. Tem estas quatro casas outras tantas inferiores, que são a loja,
que corresponde à saleta vaga, e em outra que fica debaixo do dossel se faz relação e audiência; nas outras duas assiste
a família, mas tão mal acomodada que por causa de muita umidade de dois canos públicos que estão nas ditas duas
ruas e principalmente pela falta de ar que as purifique, se lhe pode dar nome de enfermaria melhor que de aposento.
E debaixo da do tonelo se recolhem as serpentinas que são as carruagens destas partes, e debaixo da da cozinha se
recolhe a lenha para serviço dela.” Carta de Monteiro da Vide, de 26 de agosto de 1703, AHU, avulsos, Bahia, cx. 4,
doc. 396.

26  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


Monteiro da Vide pediu então ao soberano que lhe concedesse os terrenos
vagos que haviam sido doados pelo rei D. Sebastião para a construção, nunca efe-
tuada, de um seminário, situados entre o colégio, a igreja dos jesuítas e as casas de
um particular, com vista para o mar e bem arejados63. O Conselho Ultramarino,
depois de confirmar as necessidades do arcebispo junto ao procurador da Coroa,
o dr. Belchior da Cunha Brochado, e ao governador-geral, seguindo o parecer do
primeiro, recomendava que se permitisse a construção do palácio nos chãos va-
gos, que só poderiam ter esta serventia, “porque podia muito bem suceder que os
arcebispos os vendam”, e que se desse um prazo máximo de oito anos para o seu
término. O que tudo foi concedido por uma provisão da rainha da Grã-Bretanha,
então regente, datada de 2 de dezembro de 1704. Em 7 de novembro de 1705, D.
Sebastião já havia mandado fazer “planta para o mesmo sítio, e ajuntar materiais”,
todos vindos de Portugal, assim como abrir alicerces. Mas faltavam-lhe fundos.
Os antigos paços, suposto terem custado treze mil cruzados, não atingiriam mais
este valor, e suas côngruas, de quatro mil, só lhe bastavam para “o sustento de [sua]
curta família, atendendo a grande carestia desta terra em tudo”, dizendo não poder
concorrer mais do que com que pagaria de aluguel. Apesar disso, previa custos que
se elevavam a trinta mil cruzados, “por ser o sítio mui despenhado, aonde só os ali-
cerces fazem a maior despesa”. Após o parecer do Conselho Ultramarino, emitido
em outubro de 1706, foram-lhe concedidos mil cruzados por ano “do sobejo do
contrato dos dízimos” durante os oito anos previstos para a construção64. A nova
residência, condizente com as necessidades e a dignidade dos arcebispos, deveria
ser construída nas imediações de onde hoje se encontra o prédio da Coelba, ao
lado da atual Sé, na beirada do despenhadeiro, mas não foi o que aconteceu. Em
julho de 1706, Monteiro da Vide escreveu novamente a Lisboa, pedindo permissão
para permutar os antigos terrenos do seminário inexistente com o do consistório
da irmandade de São Pedro dos Clérigos, que ficava junto à catedral e que preci-
sava de um novo espaço para a construção de igreja própria65. Segundo Prudêncio
do Amaral, a primeira pedra das novas casas foi lançada “com toda a solenidade”
e sob os bons auspícios de São Sebastião, o santo do arcebispo, ou seja, no “dia 20
de janeiro de 1708, e se trabalhou com tal pressa (sendo da grandeza que se vê) que
em pouco mais de três anos se pôde [o arcebispo] mudar para ele com toda a sua

63. Sobre o seminário: Arlindo Rubert e Frederico Westphalen, “O Primeiro Seminário Tridentino no Brasil”, Revista
Eclesiástica Brasileira, 30: 129–135, março de 1970.
64. AHU, avulsos, Bahia, cx. 5, doc. 445.
65. AHU, avulsos, Bahia, cx. 4 doc. 454.

e stud o int r od utór io   27


família”66. Dentre as razões alegadas para a mudança de sítio, chama a atenção o
fato de Monteiro da Vide evocar a necessidade de uma autorização por parte dos
jesuítas “por ficarem em parte devassados” os padres em seu colégio, sendo assim
mais propícios esses chãos para a construção de um templo do que de um palácio,
e “sobretudo por livrar de algum precipício futuro, pois a experiência tinha mos-
trado que o despenhadeiro junto do qual se haviam de levantar as casas, a todas
ameaçavam ruína”67. Essa precaução não era mera retórica: se o palácio erguido por
Monteiro da Vide permanece até hoje de pé, com seu brasão esculpido no cimo da
porta principal, a igreja da irmandade São Pedro dos Clérigos, cuja primeira pedra
também foi lançada por ele, foi engolida pelo precipício em primeiro de julho de
1797, “matando muita gente”68.
No contexto da Igreja militante e tridentina, na qual Monteiro da Vide estava
plenamente inserido, o paço arquiepiscopal devia servir para a celebração do poder
dos prelados, mas também como espelho da história da Igreja Católica. Como
lembra Gérard Labrot, a pintura era um instrumento privilegiado de exaltação.
Embora Monteiro da Vide não tenha sido (ao que nos consta) um mecenas,
como muitos dos prelados do reino de Nápoles69, ele sabia muito bem o papel
de representação que os retratos do papa, do soberano e dos próprios prelados
carregavam. Isso fica patente em sua carta mencionada anteriormente, quando
atenta para a inadequação do lugar em que tais quadros estavam alocados na
residência comprada por D. João da Madre de Deus. Assim, ao encomendar a
traça do novo palácio arquiepiscopal, previu sem dúvida um recinto de honra
para esses dois retratos, símbolos pictóricos que, relacionados com a presença
física do prelado, deviam imbuir todo o respeito devido às majestades do rei e do
pontífice, representados pelo arcebispo no exercício das sessões e funções ligadas
a seu cargo70. Mais ainda, Monteiro da Vide seguiu uma então já tradicional forma

66. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignácio, op. cit., Argumento gratulatório de Prudêncio do Amaral.
67. AHU, avulsos, Bahia, cx. 4, doc. 454.
68. Prudêncio do Amaral informa que o arcebispo, além de ter sido provedor da irmandade, mandou que se fizesse ao
lado da igreja “uma casa que servisse de hospital para clérigos pobres” e “uma casa para as consultas dos Reverendos
capitulares”, tudo construído com o auxílio de doações dos próprios irmãos. Francisco de Matos, Vida Chronologica
de S. Ignácio, op. cit., Argumento gratulatório de Prudêncio do Amaral. A informação sobre o desabamento nos traz
Braz do Amaral no seu prospecto de Salvador, inserto em Luis dos Santos Vilhena, A Bahia do Século XVIII, op. cit.,
vol. 1.
69. Gérard Labrot, Sisyphes chrétiens, op. cit., p. 167.
70. O retrato do monarca surgia como um importante instrumento de governo à distância, como apontam Lope de Veja,
na sua comédia Brasil restituído, e Juan Bautista Maino, na sua tela de 1635. Ambos tratam da retomada da Bahia
aos holandeses em 1625, quando D. Fradique de Toledo teria travado um verdadeiro diálogo com o retrato de Felipe
IV. Cf. Yann Lignereux, “Les objets du pouvoir royal militaire” A. C. Brefe e K. Gualdé (dir.), Pouvoirs. Représenter

28  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


tridentina de expressar sua legitimidade e a antiguidade da sua mitra, além de
uma continuidade reconfortante – e neste caso bastante diferente da realidade
baiana – dos sucessivos prelados da diocese. Segundo o jesuíta Luís de Carvalho,
o arcebispo “mandou fazer retratos de seus antecessores para ornar o novo
palácio arquiepiscopal”71, seguindo assim um programa recomendado por um dos
campeões da Reforma católica, o cardeal Gabriele Paleotti72, e que era largamente
utilizado pelos prelados do Sul da Itália. Há exemplos também no próprio Império
português: os bispos de Macau não deixaram de cultivar este hábito, como
provam os vários retratos dos prelados macaenses ainda existentes, alguns deles
claramente confeccionados por artistas locais no século XVII ou XVIII73. Não
sabemos se Monteiro da Vide mandou retratar bispos e arcebispos, ou somente
os arcebispos, como no frontispício da segunda edição das Constituições Primeiras,
mas essa sucessão de prelados retratados, assim como os retratos que Monteiro
da Vide mandou fazer de si próprio (tanto nas Constituições quanto na Vida
Chronologica de S. Ignácio) evidenciam a alta ideia que tinha de seu cargo. Havia
também um desejo de legar, ao mesmo tempo, graças ao paço prelatício, um
marco para a posteridade, e um símbolo de sua glória pessoal e de sua piedade74,
que surgem juntos nos elementos pessoais que Monteiro da Vide associa à
construção do palácio, como o seu próprio nome (o início da construção se deu no
dia de São Sebastião, como vimos) e o seu escudo d’armas, incrustado no frontão
do novo paço. Por outro lado, essas iniciativas pictóricas e arquiteturais, como
lembra mais uma vez Labrot, também se justificavam em nome dos sucessores dos
prelados construtores, de seu conforto e de sua honra, como Monteiro da Vide não

le pouvoir en France du Moyen Âge à nos jours, Paris e Nantes, Somogy e Musée du château des ducs de Bretagne,
2008, pp. 37-39. Sobre o governo à distância no Atlântico português, ver Rodrigo Bentes Monteiro, O Rei no Espelho.
A Monarquia Portuguesa e a Colonização da América 1640-1720, São Paulo, Hucitec, 2002 e Laura de Mello e Souza,
O Sol e a Sombra. Política e Administração na América Portuguesa do Século XVIII, São Paulo, Companhia das Letras,
2006.
71. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignácio, op. cit., Elogio de Luis de Carvalho.
72. Segundo Gabriele Paleotti, estes retratos podiam ser extremamente úteis “àqueles que, tendo administrado o poder
espiritual ou temporal com religião e justiça, podem, com seu exemplo, beneficiar o público, se como nós, com olhar
reverente admiramos com gosto os retratos dos sumos pontífices que em sucessão contínua sentaram-se na católica
e apostólica cátedra do príncipe dos apóstolos, e lemos que bispos bons e pios já compunham no palácio episcopal
a efígie em grande quantidade, por ordem de tempo”, “Discorso intorno alle imagini sacre e profane”, em Paolo
Barocchi (org.), Trattati d’arte del Cinquecento fra Manierismo e Controriforma, Bari, 1961, vol. II, p. 340, apud Gérard
Labrot, Sisyphes chrétiens, op. cit., p. 169, n. 1.
73. Alguns destes retratos foram reproduzidos pelo Padre Manuel Teixeira, Macau e a sua Diocese, Macau, Imprensa
Nacional, 1940, vol. II.
74. Para um desenvolvimento sobre a importância simbólica dessas construções, ver Gérard Labrot, Sisyphes chrétiens, op.
cit., pp. 170–171.

e stud o int r od utór io   29


deixou de mencionar ao pedir verbas ao rei75. Esta ideia pode até ter-se tornado
um topos, como são muitas das frases de efeito que Barbosa Machado emprega nas
apresentações dos autores de sua Biblioteca Portuguesa, descrevendo-os como pios,
doutos etc. De Monteiro da Vide, diz que “sempre viveu com suma parcimônia,
empregando o que lhe restava dos gastos precisos na reedificação do palácio para
mais cômoda habitação de seus sucessores”76, mostrando assim que o prelado se
inseria perfeitamente no conjunto dos antigos e futuros ocupantes do seu cargo.

1.5. As Prerrogativas Episcopais: Tensões e Conflitos

Em alguns prelados, esta atenção com a dignidade inerente ao cargo de arcebispo


se faz acompanhar de uma afirmação de seus poderes e de seus privilégios en-
quanto arcebispo perante as outras instituições locais, preocupação que, nos casos
coloniais, pode ter sido mais presente em relação aos poderes civis, por causa da
situação específica de padroado. Também neste sentido, Monteiro da Vide foi bas-
tante zeloso dos interesses episcopais.
Em 1685, devido ao crescimento da população do bairro da Fonte dos Mari-
nheiros, dividido entre as paróquias da Conceição da Praia e de Santo Antonio
além do Carmo, o arcebispo D. frei João da Madre de Deus concedeu aos habitan-
tes do local autorização para a construção de uma capela de invocação de Nossa
Senhora do Pilar, sem isenção alguma em relação à mitra.
Quando Monteiro da Vide fez a primeira visitação à cidade, os carmelitas,
que se haviam apoderado da capela, quiseram impedir que ele lá exercesse sua
jurisdição, dizendo que fariam apelo (agravariam) à justiça régia. Eles desistiram
dessa pretensão por intervenção do procurador da Coroa, o dr. Luís da Costa de
Faria, que invocou que a própria Coroa sairia prejudicada por essa alegada isenção,
por “se lhe tirar uma igreja fundada para freguesia com o dinheiro dos vassalos de
[Sua] Majestade”. O arcebispo efetuou finalmente a visita. O problema repetiu-
se durante uma segunda visita, em 1709 ou 1710, porém dessa vez os carmelitas
conseguiram instaurar o agravo com o “patrocínio” do procurador da Coroa e, no
tribunal da Relação, julgou-se a igreja por isenta, com base em breves que, segundo
Monteiro da Vide, haviam sido revogados pelo Concílio de Trento. Mais ainda,

75 Por exemplo: “Espero da real grandeza de Vossa Majestade me faça esta mercê, e mais propriamente a meus suces-
sores, que todos rogamos a Deus Nosso Senhor pela vida e saúde de Vossa Majestade e conservação de seu dilatado
império”. Carta de Monteiro da Vide, de 26 de agosto de 1703, AHU, avulsos, Bahia, cx. 4, doc. 396.
76. Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, op. cit., vol. 3, p. 694.

30  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


os religiosos haviam feito na dita igreja do Pilar “um conventinho, que dista tanto
do seu convento grande como [o convento lisboeta] da Trindade d[o convento d]
e São Domingos. E na capela-mor têm oito cadeiras fixas em forma de coro de
uma e de outra banda, e junto da igreja celas e as mais oficinas de que se compõe
um convento”. Monteiro da Vide, indignado com o procedimento, apela contra
este “muito prejudicial exemplo” para as resoluções tridentinas, que dizem que
nenhum convento ou igreja possa ser erigido sem a licença do bispo diocesano,
ou saltem ex urbanitate, o consentimento do rei enquanto soberano e grão-mestre
da Ordem de Cristo. Cita então um breve de Gregório XV, de 1621, proibindo
a formação de conventos com menos de doze religiosos, e explica que, quando
esse breve foi confirmado por Urbano VIII, a Congregação do Concílio ainda
especificara que os conventos que não tivessem este número de religiosos fossem
visitados pelo bispo. Completa a informação lembrando que esta desenvoltura
de certas ordens regulares não era inteiramente nova, pois os carmelitas já ha-
viam criado um convento sem autorização em Cachoeira, e os beneditinos um
outro na vila de São Francisco, além de terem transformado a igreja de Nossa
Senhora de Brotas em abadia, “usurpando as igrejas, e não tendo, nem podendo
ter nenhum deles o número de religiosos em que se conserve a disciplina regular,
nem rendas competentes com que se possam sustentar, [e] por esta causa andam
pedindo esmolas como franciscanos”. Para terminar, o arcebispo pede que o rei
transforme a igreja do Pilar em sede paroquial, “pelo muito que tem crescido o
número de moradores daquele sítio, com o edifício dos quartéis para os soldados
da frota”, na verdade também um meio definitivo para barrar qualquer pretensão
por parte dos carmelitas77.
Em dezembro de 1712, o Conselho Ultramarino pediu vistas aos carmelitas
das certidões de isenção. Não sabemos como terminou o episódio. Imaginamos
que o arcebispo tenha obtido ganho de causa, se dermos fé à cópia da criação
da capela que Monteiro da Vide anexou à sua carta e que confirma seu poder
sobre o templo. Em todo caso, é interessante ver a preocupação do arcebispo em
recuperar para a mitra uma jurisdição que era sua, e em afirmar a centralidade do
personagem do prelado.
Alguns anos antes, em 1705, havia estourado uma contenda entre o arcebispo
e o ouvidor-geral Miguel Manso Preto sobre a existência do açougue particular

77. Carta de Monteiro da Vide, de 1º de maio de 1712, AHU, avulsos, Bahia, cx. 8, doc. 705.

e stud o int r od utór io   31


dos clérigos do arcebispado78. O ouvidor, segundo os conselheiros do Ultramarino,
“com alguma paixão”, alegava que os direitos cobrados pelo uso do açougue dos
clérigos eram de direito da Câmara de Salvador, e não do arcebispo, que parecia es-
tar então embolsando indevidamente essas somas. A contenda arrasta-se até 1718,
quando Monteiro da Vide, em desespero de causa, ameaça fazer apelo ao papa, no
que parece ter sido impedido79.
Entre 1705 e 1718, acumularam-se outras duas questões com o mesmo ouvidor,
ambas apontando para uma vontade de extrema centralização e de controle por
parte do arcebispo. O ouvidor contestou a cobrança que o prelado fazia de lutuosas
(taxa cobrada pela mitra sobre os bens legados em testamento por clérigos) por
morte não só dos clérigos beneficiados, como previsto, aliás, pelas constituições do
arcebispado, mas também dos não-beneficiados, e o tribunal da Relação lhe deu
mais uma vez razão. Em 1718, o arcebispo ainda perdeu uma outra contenda, em
que pretendia fazer com que qualquer músico que cantasse nas festas particulares
só o fizesse com autorização do mestre-de-capela da Sé. Às reclamações de Mon-
teiro da Vide, a maioria dos deputados do Conselho Ultramarino recomendavam
que lhe estranhasse o exemplo de “grande perturbação” que ele estava dando, no
que foram seguidos pelo monarca80.

1.6. Uma Dupla Política: A Normatização e


a Divulgação da Catolicidade de sua Mitra

Essas demonstrações de centralismo e de reforma dos costumes locais, como a


construção do paço arquiepiscopal, a questão dos músicos ou dos conventinhos,
mas também as questões financeiras supracitadas, além das ações mais diretamente
pastorais descritas anteriormente, estão intimamente ligadas a uma dupla vontade
de Sebastião Monteiro da Vide: a implementação em força das normas tridentinas
no arcebispado da Bahia e, até certo ponto em decorrência desta, uma exaltação da
pessoa do arcebispo e de sua mitra. Estas ações podem ser vistas como a incorpo-
ração pelo arcebispo – ou como um impacto no ultramar – da política dignifica-
tória para o reino de Portugal de D. João V, que, entre outras concessões de favor

78. Esse privilégio não era o único dos clérigos: tanto a Misericórdia (que também parece ter-se apropriado de verbas que
deviam ficar para a Câmara) quanto o tribunal da Relação tinham seus talhos próprios. Segundo o ouvidor, essas rendas
eram o “principal rendimento” da Câmara. Carta de 20 de dezembro de 1705, AHU, avulsos, Bahia, cx. 5, doc. 442.
79. AHU, avulsos, Bahia, cx. 5, doc. 442.
80. AHU, avulsos, Bahia, cx. 11, doc. 955.

32  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


de Roma, obteve a elevação da capela real a patriarcado (em 1716) e para si, mais
tarde, o título de Fidelíssimo (em 1748), que o equiparava aos reis da Espanha (o
Católico) e da França (o Cristianíssimo)81. O arcebispo ainda podia ter em vista,
apesar dos poucos exemplos a seu dispor e de sua idade avançada, uma hipotética
elevação a um bispado de maior dignidade que o da Bahia, nomeadamente uma
mitra no reino, como obteve seu antecessor D. João Franco de Oliveira, que passou
de Salvador para a Sé de Miranda.
Não se trata aqui de saber se ele conseguiu ou não aplicar as normas de Trento
com mais sucesso do que outros, mas, sim, de ver especificamente como obrou para
que isto ocorresse. O verdadeiro programa editorial que instaurou mostra também
este esforço, além de poder ter funcionado como meio de divulgar a catolicidade
baiana para o resto do mundo. Em primeiro lugar, pela publicação de um conjunto
de obras que tinham a pretensão de ordenar a sociedade do ponto de vista da orto-
doxia católica e das práticas devocionais. A publicação, em 1720, da tradução, feita
pelo jesuíta Andreoni, do tratado apologético antijudaico A Sinagoga Desenganada
foi sua contribuição (ao gosto da época) para tentar acabar com o criptojudaísmo,
que parecia grassar na Bahia e no mundo atlântico português em geral82. Já a pu-
blicação no mesmo ano, em Roma, da anteriormente mencionada História da Vida
e Morte de Madre Soror Victoria da Encarnação mostra, como vimos, sua vontade de
elevar Salvador à condição de terra natal de uma santa. A Exortação à perseverança
da Via-Sacra na forma que se pratica no arcebispado da Bahia com uma breve instrução
da doutrina Cristã (1723, in-16º), também de sua autoria, segundo Barbosa Macha-
do, mas da qual infelizmente não conseguimos localizar nenhum exemplar, parece
voltar-se para a explicação de elementos da fé cristã àqueles que ignoravam alguns
dos seus aspectos mais básicos83. Podemos ainda citar o seu patrocínio intelectual à
publicação do IX volume do Santuário Mariano, de frei Agostinho de Santa Maria,
a ele dedicado84. As notícias das imagens da Virgem coletadas nesse volume da obra,

[…] todas são devidas à grande devoção que V. Ilustríssima [Monteiro da Vide] sempre
se reconheceu para com tão excelsa Princesa, e ao grande cuidado com que mandou, mo-
vido das minhas súplicas, tirar por todo o seu arcebispado, pelas pessoas mais fidedignas,

81. José Pedro Paiva, “A Igreja e o Poder”, em Carlos Moreira Azevedo (dir.), História Religiosa de Portugal, Lisboa,
Círculo de Leitores, 2000, vol. 2, p. 166.
82. Bruno Feitler, “‘A Sinagoga Desenganada’: Um Tratado Antijudaico no Brasil do Começo do século XVIII”, Revista
de História, 148: 103–124, 1º sem. 2003.
83. Cf. Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, op. cit., vol. 3, p. 694.
84. Agostinho de Santa Maria, Santuario Mariano, op. cit.

e stud o int r od utór io   33


autênticas informações de todas as imagens da Mãe de Deus que nele se veneram, servin-
do-se de mais mandar remeter para as epilogar neste nono tomo, para que pelo meio do prelo
se vulgarizassem ao mundo os prodígios, e as maravilhas que esta Advogada dos homens obra, não
só nesse arcebispado de V. Senhoria Ilustríssima, mas em todo esse novo Mundo, depois que os
portugueses o descobriram, e povoaram; levantando nele tantas aras a Maria Santíssima,
como se reconhece desta história (os itálicos são nossos).

E, com efeito, se Agostinho de Santa Maria cita várias obras impressas, como as
de Simão de Vasconcelos e de Brito Freire; se outros personagens – como o bispo
do Pará, D. frei Bartolomeu do Pilar (que havia sido missionário apostólico em
Pernambuco), o desembargador Cristóvão Soares Reimão ou vários missionários
capuchos – são nomeados como fontes para “as capitanias do norte”, para o arce-
bispado da Bahia, a pedido do autor, Monteiro da Vide ordenou que se fizesse um
trabalho sistemático de coleta de informações, paróquia por paróquia. São citados
nominalmente como fontes, sempre “por mandado do Ilustríssimo arcebispo da-
quela metrópole, o senhor D. Sebastião Monteiro da Vide”, o cura da Sé, os vigá-
rios das paróquias da Graça, da Conceição da Praia, de São Gonçalo da vila de São
Francisco, os vigários de Matoim, de Jaguaripe, de Itaparica, da matriz da Senhora
da Purificação de Sergipe do Conde, da matriz do Rosário de Ilhéus. Especial
interesse tem o relato sobre a imagem da Senhora da Soledade do sertão das Ri-
beiras do rio São Francisco. Através dele, ficamos sabendo que Monteiro da Vide
também se ocupou da catequese dos índios, enviando missionários para a região85.
Centrado na sua pessoa, e em associação com a Companhia de Jesus, Monteiro
da Vide financiou, em 1718, a publicação da primeira biografia de Inácio de Loyola
em português, escrita na Bahia pelo ex-provincial e então reitor do colégio jesuíta,
padre Francisco de Matos, para quem o arcebispo era “um dos Atlantes da fé em
Inácio”86. Com efeito, a obra é dedicada ao arcebispo e reúne um panegírico, uma
ode, um elogio, uma oferta, um argumento gratulatório e uma oração panegírica em
sua homenagem, além de uma bela gravura que o retrata em seu escritório, com suas
vestes episcopais, sentado, folheando um livro. Este volume e o tinteiro que também
se encontra sobre a mesa podem ser referências às suas obras de devoção ou aos seus
trabalhos de normatização legislativa. Ao lado, um crucifixo e sua mitra e, sob o re-
trato, a inscrição “D. Sebastião Monteiro da Vide, arcebispo da Bahia do Conselho

85. Idem, vol. IX, pp. 249–251.


86. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignácio, op. cit., Oferta de Francisco de Matos.

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de Sua Majestade”, entrecortada pelas armas do prelado. O relevo dado ao arcebispo
na publicação jesuíta é somente um dos aspectos de sua associação com os inacianos,
possivelmente um resquício de seu noviciado eborense, e que não parece encontrar
equivalente em outras ordens regulares. Andreoni, o Antonil de Cultura e Opulência
do Brasil por suas Drogas e Minas, chegou a vangloriar-se junto a Roma de ter sido
censor e revisor secreto das constituições sinodais, além de servir de consultor e con-
selheiro do arcebispo em conflitos com os ministros reais87. Essa proximidade é fla-
grante com a já mencionada publicação da Sinagoga Desenganada. Andreoni também
é o autor da oratio panegyryca, que encerra os textos de abertura da Vida Chronologica
de S. Ignacio. Contamos ainda nesse círculo o padre Prudêncio do Amaral, que escre-
veu o também mencionado “Argumento Gratulatório” ao arcebispo e é dado como
o verdadeiro autor do Catálogo dos Bispos… e Arcebispos que acompanha todas as
edições setecentistas das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia88.
Já sua vontade de normatização, possivelmente impulsionada por uma indica-
ção régia, surge em plena luz com a organização do sínodo diocesano, a subsequen-
te publicação das Constituições Primeiras e do Regimento do Auditório Eclesiástico e
a redação dos Estatutos da Sé (1718) e do Regimento do Coro da Sé (1719), fixando
assim o papel e a ação do cabido catedralício89. Embora tenha sido, sem sombra
de dúvida, o prelado mais bem-sucedido na empresa normatizadora, é necessário
lembrar que Monteiro da Vide não foi o primeiro a desejar, em conformidade com
o espírito do Concílio de Trento, enquadrar a vida religiosa na América portugue-
sa. Na verdade, aplicar muitas das disposições tridentinas não foi tarefa fácil na
Europa; seria menos ainda na América. Mas, ao menos no que diz respeito à ce-
lebração do sínodo e promulgação das constituições, Monteiro da Vide encontrou
em sua arquidiocese uma conjuntura favorável, conforme se depreende das Queixas
do povo da Bahia representado por Antônio da Silva Pinto, contra as opressões e mau
procedimento do arcebispo e mais clero, que as pedia, já em 169790.

87. Antônio Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1949, t. VII, pp.
113–114.
88. Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, op. cit., vol. 3, p. 694.
89. Uma cópia de fins do século XVIII ou começos do XIX de ambos os textos encontra-se na BNRJ Mss 22, 2, 39. O
texto introdutório dos Estatutos diz que até a chegada de Monteiro da Vide à Bahia não haviam “estatutos escritos
certos e determinados”, o cabido governando-se então pelos diferentes “estilos” dos prebendados. A concessão de
novos benefícios e conezias para a Sé, em 1718, por D. João V, fez com que houvesse a necessidade de se reformar os
Estatutos, e são estes os que vemos na BNRJ. Novos estatutos foram promulgados na Bahia por D. José Botelho de
Matos em 1754. Ver AHU, cód. 1206.
90. Queixas do povo da Bahia representado por Antônio da Silva Pinto, contra as opressões e mau procedimento do arcebispo e
mais clero, AHU, Luisa da Fonseca, cx. 32, doc. 4131.

e stud o int r od utór io   35


2. o sínodo e as constituições do arcebispado da bahia

2.1. Uma Difícil Tridentinização:


Sobre Concílios Provinciais e Sínodos na América portuguesa

No Cânon II do Decretum de Reformatione da Sessão XXIV do Concílio de Trento,


foi decidido o restabelecimento dos concílios provinciais em todo lugar em que
tivessem sido abolidos. O mesmo Cânon estabelece que os metropolitas deveriam
reunir um sínodo no ano seguinte após o fim do Concílio de Trento e, depois disso,
deveria haver sínodo ao menos a cada três anos. No caso dos sínodos diocesanos,
a frequência era ainda maior, pois deveriam ser realizados anualmente91. Não é
exagero dizer que um largo e profundo fosso separou boa parte das disposições tri-
dentinas da prática religiosa cotidiana. O atraso na aplicação de algumas determi-
nações conciliares esteve longe de ser uma exclusividade da Igreja luso-americana,
tendo sido, pelo contrário, uma realidade bastante comum no próprio continente
europeu, onde a Igreja de países centrais como a França demoraram muito para
receber o concílio92.
O primeiro bispado da América portuguesa, criado em 1551, foi erigido sob a
égide de uma Igreja que estava buscando o caminho de sua reforma – entre 1551
e 1552 teve lugar a segunda parte do Concílio Tridentino, quando ocorreram seis
sessões (da décima primeira à décima sexta) – mas demoraria muito tempo para
que ele viesse a conformar-se inteiramente ao espírito do concílio encerrado em
1563. O próprio regime de padroado, sob o qual se encontrava a Igreja do ultra-
mar português, continha especificidades que impossibilitavam a adoção de certas
disposições conciliares. Além disso, a realidade de um território muito extenso e,
em boa parte dos casos, com vias de comunicação bastante precárias, bem como
as próprias características da sociedade em processo de construção, dando à Igreja
da América um forte traço missionário que demoraria muito tempo para ser su-
perado, traziam dificuldades suplementares para que esta Igreja seguisse à risca
as disposições tridentinas. A imensidão do espaço da arquidiocese da Bahia e das
demais dioceses da América portuguesa foi, sem dúvida, um elemento decisivo

91. Cf. Concílio de Trento, Sessão XXIV, Decreto de reforma, Cânon II. Utilizamos a edição publicada em Giuseppe
Alberigo (dir.), Les conciles œcuméniques: Les décrets, t. II–2, Paris, Cerf, 1994.
92. Sobre as dificuldades na recepção do Concílio Tridentino em França ver, entre outros, Thierry Wanegffelen, Une
difficile fidélité: Catholiques malgré le concile en France – XVIe-XVIIe siècles, Paris, PUF, 1999. Sobre suas repercussões
em Portugal ver Federico Palomo, A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2006.

36  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


para que a realização de concílios provinciais e mesmo de sínodos diocesanos ti-
vesse sido tão protelada: 156 anos decorreram até que um primeiro sínodo fosse
efetivamente celebrado. Entretanto, não faltam notícias de tentativas anteriores.
Nos bispados de D. Pedro Leitão – segundo bispo da Bahia (1558–1574) – e de D.
Constantino Barradas – quarto bispo da Bahia (1602–1618) – parece ter-se tenta-
do celebrar sínodo diocesano93. Na diocese de Pernambuco, em 1680, D. Estêvão
Brioso escreveu querer “celebrar um sínodo e redigir novas constituições para a
diocese”, mas que “a distância excessiva que o separa das vilas e lugares, faz com
que estes projetos não poderão realizar-se rapidamente”94. O padre Baltazar de
Faria e Miranda, representante, em Roma, do também bispo de Olinda, D. Ma-
tias de Figueiredo e Melo, desculpou seu amo com outros subterfúgios. Evocou
o tempo gasto nas visitas pastorais e no governo civil, ocupado durante um ano,
mas também a expectativa da reunião de um concílio provincial, que finalmente
não aconteceu, segundo ele, por causa da morte do arcebispo, D. frei Manuel da
Ressurreição, em 169195.
A realização de sínodos e a promulgação de constituições diocesanas não foram
preocupações exclusivas dos bispos e arcebispos, que, no mais das vezes, referiam-
nas apenas em suas relações ad limina, haja vista a necessidade de justificar sua
não-celebração durante o exercício de suas funções episcopais. A ausência de cons-
tituições diocesanas, como se pode depreender das Queixas do Povo da Bahia, podia
ser um fator prejudicial aos interesses dos súditos que tinham alguma causa na
justiça eclesiástica. Com efeito, a falta de leis e regras claras deixava a população
à mercê de autoridades eclesiásticas cujo comportamento nem sempre foi ilibado.
No final do século XVII, durante o arcebispado de D. João Franco de Oliveira,
imediato antecessor de Monteiro da Vide, a situação parece ter chegado a um
ponto bastante grave, suscitando a reação do povo da Bahia – leia-se da Câmara
de Salvador – que, por meio do seu procurador em Lisboa, denunciava ao rei a
opressão praticada pelos arcebispos, bispos e demais ministros e Justiças eclesiás-
ticas sobre “os vassalos de Vossa Majestade, ou eclesiásticos ou seculares nas suas
conquistas do Brasil”. E, indo mais diretamente às razões do problema, diz:

93. Arlindo Rubert, A Igreja no Brasil, op. cit., pp. 231–234. Como veremos adiante, D. João Franco de Oliveira, antecessor
de D. Sebastião Monteiro da Vide na mitra baiana, também manifestou desejo de realizar um sínodo.
94. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 596 (Olinden), relação ad limina de 1680.
95. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 596 (Olinden), Rellatione della chiesa e Diocese d’Olinda… della quale è attual-
mente vescovo D. Mattia de Figueiredo e Mello. A intenção de D. frei Manuel da Ressurreição de realizar um sínodo
ou concílio provincial é confirmada nas Queixas do Povo da Bahia…, AHU, Luisa da Fonseca, cx. 32, doc. 4131.

e stud o int r od utór io   37


O fundamento em que se estribam os prejuízos que se experimentam naquele Estado,
consiste na falta de constituições que há para o seu regímen. São as leis ordenadas a de-
fenderem a inocência da malícia e como diz Villaroel, pe 2 qe 12, artº 4, n. 1 et 2, mais fácil
é a conservação de muitas cidades sem muros do que sem leis a de uma República. Ao
que, atendendo aos reverendos arcebispos e bispos deste Reino, e o que mais é, os bispos
ultramarinos de Angra e Funchal, como pastores vigilantíssimos, tratou cada um de fazê-
las para a direção de seus súditos. Só naquele Estado se experimenta esta falta desde o
princípio de sua fundação, em que neste foi ereta uma catedral que de Sé episcopal tem
passado já a Metrópole, havendo tantos abusos gentílicos que corrigir, tantas superstições
que castigar, e todo o gênero de vícios e delitos que punir96.

As Queixas vão além da constatação dos males provocados pela falta de cons-
tituições diocesanas, apontando aquelas que seriam as verdadeiras causas para a
não-realização de sínodo ou concílio provincial – sem o qual não poderia haver
constituições. Num argumento que busca mostrar a continuidade histórica do pro-
blema, o procurador da Câmara, Antônio da Silva Pinto, assinala que, no passado,
os bispos atribuíam “à insuficiência que diziam havia nos sujeitos que para o sí-
nodo deviam convocar-se […] e pelos não haver letrados se escusam de fazê-lo”.
Escusa que ele contesta, lembrando que

[...] nos dois bispados de Angra e Funchal se deu a mesma razão que no Brasil, pois
apenas se achavam, como ainda hoje, as dignidades primeiras de deão formados em Câ-
nones ou Teologia, sendo o mais cabido todo indouto, e o mais clero iletrado. E, contudo,
vemos impressas duas constituições de ambos os bispados logo não se livram de censura
quando ex Trid. Sess. 24, de reformat. cap. 2, eram obrigados cada ano, e ao menos de três,
havendo urgente necessidade, a fazer as ditas constituições, ou reformá-las97.

Um outro argumento criticado pelo procurador é o de que, enquanto bispado


sufragâneo do arcebispado de Lisboa, não havia necessidade de que se fizessem
constituições, regendo-se os seus súditos pelas daquele arcebispado. Ele deixa en-
tender que as do sínodo provincial e as constituições lisboetas não foram obser-
vadas; além disso, lembra que sua adoção não isentava os bispos do dever de rea-
lizarem seus sínodos diocesanos e promulgarem suas leis, “como fizeram os bispos

96. Cf. AHU, Luisa da Fonseca, cx. 32, doc. 4131.


97. Idem.

38  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


de Angra e Funchal, sendo sufragâneos de Lisboa”. De todo modo, a ausência de
sínodo e constituições é percebida como um problema ainda mais grave a partir do
momento em que a Sé da Bahia é elevada à condição de Metrópole. Com efeito,
segundo o procurador, tendo, a partir de então

[...] quatro sufragâneos, que são Rio de Janeiro, Pernambuco, Angola e São Tomé, não
há razão concludente para deixarem os reverendos arcebispos de fazer sínodo provincial,
porque ao menos podem os referidos bispos seus sufragâneos, enquanto não celebram os
seus diocesanos, adstringir-se ao provincial metropolitano, máxime sendo semelhantes aos
abusos e tendo parecença os delitos, por ter o arcebispado o mesmo gentio de índios e
etiópios que têm os quatro bispados.

No mais das vezes, as razões que levaram à procrastinação do concílio provincial


estiveram relacionadas com a morte prematura dos prelados que ocuparam a Sé
arquiepiscopal da Bahia. D. frei João da Madre de Deus, segundo as Queixas, “o
pretendia fazer”, mas seu arcebispado durou apenas quatro anos, tendo falecido
na epidemia de febre amarela que assolou a Bahia em 168698. O governo de D.
frei Manuel da Ressurreição durou menos ainda: “ano e meio, gastando-o
na averiguação dos costumes para o sínodo que pretendia fazer”99. O
prelado morreu em 1691, durante uma visita diocesana, no seminário de Belém da
Cachoeira, sendo também vítima, ao que parece, da febre amarela.
Nenhuma escusa, entretanto, era concedida pelos querelantes a D. João Franco
de Oliveira. Este, em quase seis anos de arcebispado, já havia visitado por si e por
seus visitadores a arquidiocese e, portanto, deveria apressar a celebração do sínodo:

[...] o que tanto não faz que antes se presume, por nunca haver praticado em tal maté-
ria que nem pela imaginação lhe passa, sendo tão importante e estando por tantos títulos
obrigado, que para se diferir o tempo do ano ou triênio pre[ ] por direito nas Índias de

98. Ver Evergton Sales Souza, “S. Francisco Xavier, Padroeiro de Salvador: Génese de uma Devoção Impopular”, Bro-
téria, vol. 163 (nov./dez. 2006), pp. 653–669.
99. AHU, Luisa da Fonseca, cx. 32, doc. 4131. Interessante notar os elogios feitos ao “sempre louvável e nunca assaz lou-
vado, Dom frei Manoel da Ressurreição”, cuja morte prematura embargou “a fatura do dito sínodo que sem dúvida
se concluiria pelo dito prelado, para o que incansavelmente principiou tão logo a visitar o arcebispado, e finda a
visita, lhe desse princípio sem embargo de que aquela devia pospor-se a este ut colligitr. ex cap. sicut olim de accusat.
Barbos. de potest. episcop. pe. 3. allegat. 34. n. 57 vers°. Praelatus. Porém, como os remorsos o obrigaram dos perceitos
jurídicos, de quibus ajunt tx. in cap. Si quis episcopus cap. siquis episcopum cum seqq. 18 diste. et cap. regulam Vs°
Porro 3 dist., quis que precedesse a visita ao sínodo, para que com mais acerto o fizesse, mas a morte lhe embargou o
desígnio”. Este discurso elogioso talvez tenha algo a ver com o período em que o prelado exerceu o governo na Bahia.

e stud o int r od utór io   39


Espanha foi necessário dispensação de Gregório VIII, o qual dispôs que naquelas par-
tes, pela longa distância dos diocesanos, se não celebrasse sínodos provinciais de ano
em ano, ou de três em três, de quo agit consilium supra Trid., senão de seis em seis, ou
sete em sete, cujo indulto, à instância da Majestade Católica, ampliou Paulo V para se
celebrarem de doze em doze, tenet Solors. de gubernat. Ind. tom. 2, lib. 3º, cap. 7. n. 4º. E
se isto sucede nas Índias de Espanha, onde há tantos prelados e tantas constituições por
donde se governam, com quanta maior razão se deve obrigar ao reverendo arcebispo da
Bahia a que as faça e convoque a elas a quem deve por direito para o regímen dos seus
súditos e dos mais sufragâneos, e muito [ ]em seus bispados as não fazem fortius, não
havendo-as até o presente100.

Em razão da protelação do sínodo “se segue o não haver naquele arcebispado


e mais bispados regimento e taxa do que hão de levar, assim os ministros pelas
assinaturas e os oficiais de Justiça pelas suas ocupações. Fora um processo, Senhor,
discorrer pelas dilapidações com que se avexam os vassalos de Vossa Majestade
por aquelas Justiças eclesiásticas, sem freio algum ou regimento mais que o da sua
cobiça, nem ordem mais que a da sua ambição”. Estes e outros abusos denuncia-
dos não eram, segundo o procurador, ignorados pelo arcebispo, que os tolerava
por conta de haver pensionado com grande carga os diversos ofícios. As Queixas
ainda sugerem que os próprios ministros da Relação Eclesiástica excediam-se na
cobrança de taxas das partes, o que decorria em razão de buscarem ressarcimento
da suposta cessão de suas côngruas ao arcebispo101.
O Conselho Ultramarino, ao examinar as Queixas, aconselhou ao rei que to-
masse medidas para coibir o abuso representado pela cobrança de emolumentos
e salários excessivos pelos juizes e demais oficiais da Justiça Eclesiástica da Bahia.
Não foi considerado como sendo da alçada do monarca o problema da realização
do sínodo e da consequente promulgação de constituições. É muito provável, en-
tretanto, que, cinco anos depois, quando chegou o novo arcebispo, D. Sebastião
Monteiro da Vide, este já tivesse notícia das queixas do povo da Bahia e tivesse

100. AHU, Luisa da Fonseca, cx. 32, doc. 4131.


101. AHU, Luisa da Fonseca, cx. 32, doc. 4131. “Todo o referido não ignora o Reverendo Arcebispo e o motivo porque
tolera estas exorbitancias é fama constante naquela cidade procede de haver pensionado com grande carga cada um
daqueles ofícios de escrivão da câmara e meirinho geral e escrivão dos auditórios; e o que mais é que dizem, ao que
eu me não persuado, que até os mesmos Ministros de que se compõe a sua Relação lhe largão as congruas, que V.
Majestade lhes consigna e por isso querem ressarcir-se, com o que não devem levar as partes.” A promoção de D.
João Franco de Oliveira a uma diocese do Reino, apesar das duras acusações feitas nas Queixas, indica a pequena
repercussão delas, ou, em todo caso, apoios poderosos na Corte.

40  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


sido informalmente avisado, pelo rei ou pelo Conselho Ultramarino, da necessida-
de que haveria de celebrar, o quanto antes, um concílio provincial.
A extensão territorial, os perigos ligados à navegação e as despesas que impli-
cam as viagens e a própria organização do sínodo foram, sem dúvida, as principais
razões do fracasso do concílio provincial intentado pelo metropolita baiano – o
insucesso mostra que, em suas queixas, os querelantes baianos parecem ter subes-
timado as reais dificuldades para a sua consecução. Com efeito, dos bispos sufra-
gâneos somente compareceu o de Angola, D. Luiz Simões Brandão, que estava
a caminho de sua diocese. D. Francisco de S. Jerônimo, bispo do Rio de Janeiro,
adoeceu e não pôde viajar, e tampouco enviou procurador ao sínodo. As dioceses
de Pernambuco e São Tomé estavam em sede vacante e não enviaram qualquer
representante102. Frustrada a ideia de realizar um concílio provincial, o arcebispo
aproveitou a presença do clero diocesano convocado e realizou no mesmo período,
em junho de 1707, um sínodo diocesano, o primeiro de toda a história da América
portuguesa, no qual foram promulgadas as primeiras constituições do arcebispado
da Bahia. Deve-se lembrar que as dificuldades mencionadas não se restringiam
à realização de um concílio provincial. Elas também se faziam sentir quando se
tratava de um sínodo diocesano. Em suas Notícias do Arcebispado da Bahia, D. Se-
bastião Monteiro da Vide assinalava que tinha seu “arcebispado para cima de seis-
centas léguas”, repartidas, excetuando a cidade da Bahia, em trinta e oito igrejas
paroquiais, sendo “vinte no Recôncavo, seis da banda do Sul, e doze da banda do
Norte: de sorte que se as ditas freguesias se repartissem em distritos iguais teria
cada uma quase vinte léguas de termo”103. Para além das distâncias, também as vias
de comunicação terrestres, marítimas ou fluviais eram responsáveis por dificultar
ainda mais toda locomoção104. Disto resultava que, em muitos casos, a ida do páro-
co à cidade da Bahia implicava numa ausência assaz prolongada de sua paróquia.
D. Luís Álvares de Figueiredo, sucessor de D. Sebastião na mitra baiana, em sua

102. Ver Sebastião da Rocha Pitta, História da América Portuguesa, Lisboa, Na Officina de Joseph Antonio da Silva, 1730,
liv. 9º, §§ 11–13, e Arlindo Rubert, A Igreja no Brasil, op. cit., pp. 231–234.
103. Cândido da Costa e Silva (ed.), Notícia do arcebispado de São Salvador da Bahia, op. cit., p. 40.
104. Idem, ibidem. “A superfície, ou solo principalmente nas terras em que se plantam, e produzem canas, de que se faz
o açúcar, é terra de tal qualidade, (chamão-lhe massapê) que em chovendo, fica um lodo que embaraça muito aos
viandantes; e continuando as chuvas pelo inverno, em que ordinariamente duram mais de três mezes, resultam
tais lamas, que quase é impossível andar os caminhos, e os que os andam é com perigo, o qual é maior para os que
andam a cavalo, por que atolando estes, sucede cairem, e sairem as pessoas dificultosamente dos atoleiros, onde já
têm acontecido morrerem algumas; além dos rios navegáveis, que são muitos os que há no Recôncavo, e não poucos
deles perigosos, há por entre a terra outros, que suposto no verão ou estão secos, ou com pouca água, no inverno, ou
também quando chove, abundam de tanta, que é dificultoso passá-los, sucedendo em alguas occasiões ser tão veloz
e precipitado o curso de suas águas, que é temeridade intentar vadiá-los por ser infalível o perigo”.

e stud o int r od utór io   41


relação de visita ad limina de 20 de setembro de 1733, apontava justamente para
estes problemas, ao explicar as razões de não haver sínodo diocesano em confor-
midade com as disposições do Concílio Tridentino:

Neque Synodum Diœcesanam neque Provincialem usque modo coēgi: […] Diœcesana quia
nonulli Parochorum, qui interesse debent ab hac distant civitate plusquam centum, et ducentas
leucas, et multi ultra mare, et pene omnes pauperes forme sunt, et summē gravarentur et non leve
detrimentum Parochianis ex sua absentia sequeretur105.

Portanto, como se depreende das palavras de D. Luís Álvares de Figueiredo,


as dificuldades para realizar sínodos diocesanos continuavam a ser gigantescas.
Dificuldades semelhantes devem tê-lo impedido de realizar um concílio provin-
cial, projeto que, segundo D. frei José Fialho, teria acalentado antes de falecer, em
1735106. Estes empecilhos, além do esforço logístico que representava a organização
dessas reuniões, explicam, em parte, o fato de ter sido o sínodo baiano o primeiro
e único celebrado em terras luso-americanas. Também é demonstrativo do grande
empenho de D. Sebastião Monteiro da Vide para sua realização.

2.2 O Sínodo Diocesano de 1707

Embora seu antecessor, D. João Franco de Oliveira, em carta encaminhada por


seu procurador em Roma à Congregação do Concílio107, tenha mencionado sua
intenção de celebrar um sínodo, D. Sebastião Monteiro da Vide, em sua decisão de
convocar um concílio provincial, foi sobretudo ao encontro dos anseios de impor-
tantes setores da sociedade baiana que clamavam, como visto anteriormente, pela
promulgação de constituições arquidiocesanas108.
A realização do sínodo era, para D. Sebastião Monteiro da Vide, assim como
para a maioria dos prelados do mundo português que se empenharam em realizá-
los, o momento de aprovar as constituições de suas respectivas dioceses, o que

105. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 712 (Salvatoris in Brasilia), relação ad limina de 1733.
106. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 596 (Olinden), relação ad limina de D. frei José Fialho.
107. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 712 (Salvatoris in Brasilia), relação ad limina de 1698. A carta do procurador de
D. João, o jesuíta Antônio do Rego, diz: “synodus inchoetur admodum necessaria pro stabilienda disciplina ecclesiastica,
corrigendis moribus, et eradicande zizania”. Ver também ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 596 (Olinden), relação
ad limina de D. frei José Fialho.
108. AHU, Luisa da Fonseca, cx. 32, doc. 4131.

42  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


também explica a parcimônia com que foram realizados109. O sínodo tinha como
função principal congregar o clero da diocese para que ele aceitasse oficialmente
o conjunto de regras outorgado pelo prelado: pouquíssimas foram as constituições
diocesanas portuguesas da época moderna que não passaram por esse processo,
e pouquíssimos os sínodos reunidos sem esse fito. No caso baiano, essa ligação
aparece claramente na carta de convocação do concílio110. Contudo, como veremos
adiante, este tipo de cerimônia, em que o bispo ocupava um papel central, era tam-
bém uma maneira de reforçar a imagem prelatícia111.
Segundo a Relação da Procissão e Sessões do Sínodo Diocesano que se celebrou na
Bahia, o arcebispo, após concluir sua visita à arquidiocese, resolveu enviar convo-
catórias para a realização de um concílio provincial, no dia de Pentecostes, que
seria comemorado em 12 de junho de 1707. Para que todos os bispos sufragâneos ou
seus procuradores, bem como o clero diocesano, pudessem comparecer ao concílio,
as cartas convocatórias foram enviadas com alguma antecedência: a do bispo de
Angola data de 22 de junho de 1706, e este prelado, único a comparecer ao sínodo,
chegou à Bahia já em fevereiro de 1707. A decisão de realizar sínodo diocesano em
lugar de concílio provincial foi tomada, ao que tudo indica, às vésperas do evento,
quando já não havia mais esperanças de ver chegar o bispo do Rio de Janeiro, que an-
teriormente havia confirmado por carta a sua disposição de tomar parte do concílio.
Com efeito, no dia de abertura, foi publicado e lido um decreto no qual D. Sebastião
Monteiro da Vide declarava a abertura do sínodo diocesano e diferia “por algum
tempo” o concílio provincial112.

109. Ver, neste volume a Relação da Procissão, e Sessões do Sínodo Diocesano, que se celebrou na Santa Sé Metropolitana da
cidade da Bahia em 12 de Junho de 1707, dia do Espírito Santo, e nas duas Oitavas seguintes, presidindo nele o Ilustríssimo
e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, quinto arcebispo do Arcebispado da Bahia (p. 707 [596]), “o
Ilustríssimo Senhor Arcebispo se resolveu a fazer de novo Constituições, valendo-se para este efeito do tempo do
inverno, em que não podia prosseguir a Visita deste vasto Arcebispado, (a que logo deu princípio depois de estar
nele)”. Ver também a carta convocatória enviada por Monteiro da Vide a seus sufragâneos: “Convocação do Bispo
de Angola para o Sínodo da Bahia em 1707”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 56: 103–105, 1893.
110. Monteiro da Vide escrevia: “Fazemos saber, que desejando Nós (quanto nos é possível com a graça de Deos) sa-
tisfazer às muitas e grandes obrigações que carregam sobre nossos fracos hombros neste ofício pastoral, que tão
indignamente occupamos; // E considerando que é causa de muitos e prejudiciais abusos a falta de constituições
diocesanas, as quais os Ilms. Srs. nossos antecessores não fizeram por justas occupações que lhes impediram, e por
esta razão mandavam guardar as do arcebispado de Lisboa, que em muitas cousas se não podiam acomodar a estas
remotas províncias, nos resolvemos a fazer ditas constituições”. “Convocação do bispo de Angola”, op. cit.
111. José Pedro Paiva, “Sínodos Diocesanos”, em Carlos Moreira Azevedo (org.), Dicionário de História Religiosa de Por-
tugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, pp. 240–247.
112. “Convocação do Bispo de Angola”, op. cit. e Relação da Procissão, e Sessões do Sínodo Diocesano … (p. 714 [605]). “se nos
oferecem justas causas para diferir por algum tempo o dito Concílio Provincial, e tratar agora somente do Sínodo
Diocesano, e das Constituições, que se devem guardar neste nosso arcebispado”.

e stud o int r od utór io   43


A Relaçam descreve pormenorizadamente o rito seguido no sínodo, além de
informar sobre algumas atitudes tomadas pelo arcebispo, antes do seu início, para
que tudo corresse bem e fossem atingidos os propósitos daquela reunião. Assinala-
se, por exemplo, que querendo

[...] ter propicio o favor e auxílio do Céu e a assistência do Espírito Santo no sínodo
(em quem firmemente confiava para esperar acerto em o que se obrasse), repetidas vezes
fez e mandou fazer deprecações a Deus Nosso Senhor para o tal fim. No principio da Qua-
resma escreveu aos prelados das religiões desta cidade, para que em tão santo tempo enco-
mendassem o negócio a Deus em seus sacrifícios e orações e de todos os seus religiosos113.

Nos três domingos que antecederam o sínodo, foram feitas procissões na Sé e


nas demais igrejas da diocese. Além disso, nos três dias anteriores ao início do sí-
nodo, em todas as igrejas e conventos da diocese se rezaram preces e orações diante
do Santíssimo Sacramento; já um ano antes, o arcebispo havia pedido que estas
mesmas ações fossem levadas a cabo por seus bispos sufragâneos114. Por essas e ou-
tras ações do arcebispo relacionadas com o sínodo, nota-se que havia uma preocu-
pação efetiva em solicitar o auxílio divino, em particular a intercessão do Espírito
Santo, para o seu pleno êxito. A data escolhida para a realização do evento, aliás, é
por si só reveladora do desejo de realizá-lo sob os auspícios do Espírito Santo115. A
mobilização espiritual não se restringiu ao clero diocesano e regular. O arcebispo
publicou, no domingo anterior ao da abertura da assembleia, um edital “sobre a
forma e modo de viver no tempo do sínodo”. Nele, os fiéis eram exortados a se
confessarem e comungarem muitas vezes, a fazerem obras de piedade e caridade
cristã116. Como o período de Santa Missão, o tempo do sínodo é, pois, um tempo de
emenda dos costumes; mas o objetivo neste caso não é a salvação da alma de cada

113. Relação da Procissão, e Sessões do Sínodo Diocesano (p. 709 [598].


114. “Convocação do Bispo de Angola”, op. cit., p. 104. “E por que sem o favor e auxílio da Divina Majestade nem uma
cousa se pode cuidar, quanto mais fazer que seja boa, como diz o Apóstolo, portanto, encarecidamente pedimos e
rogamos ao Ilmo. Sr. Bispo seja servido mandar ordenar aos párocos do seu bispado, que exortem e admoestem a
seus fregueses a que se confessem e comunguem muitas vezes, exercitando-se em obras pias e pedindo a Deus Nosso
Senhor, se sirva de darnos seu favor e graça para que tudo o que se tratar, fizer e ordenar no dito sínodo se encaminhe
a seu santo serviço.”
115. O Concílio Tridentino (Sessão XXIV, Decretum de reformatione, canon II) estabelece que o sínodo diocesano deve
ser realizado no período posterior ao segundo domingo da Páscoa, “ou em qualquer tempo mais cômodo, em função
dos hábitos da província”. No caso português, parece ter havido alguma preferência pela celebração dos sínodos do
domingo de Pentecostes, que é o sétimo depois do domingo de Páscoa.
116. Relação da Procissão, e Sessões do Sínodo Diocesano (p. 710 [598]).

44  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


indivíduo da comunidade, mas o de mover o Espírito Santo a auxiliar os clérigos
para que a assembleia tenha sucesso.
Chegado o dia do Espírito Santo, pela manhã, foi tocado o sino da catedral
para congregar o clero. A procissão, entretanto, só teve início por volta do meio-
dia – “quase sete horas depois de se rezar a Prima” – após o cabido ir capitular-
mente ao palácio episcopal, onde se encontravam os ornamentos que deveriam
portar na procissão. O deão, o arcediago do báculo e todos os demais capitula-
res se revestiram com pluviais, exceto os reverendos dignidades, tesoureiro-mor
e mestre-escola, diáconos assistentes e os cônegos que serviram de diácono e
subdiácono, que se revestiram com dalmáticas. O arcebispo revestido com capa
consistorial veio à sala onde, sob um dossel vermelho, estava a cadeira que deve-
ria usar para se revestir dos ornamentos pontificais. Após as devidas reverências
dos capitulares, o arcebispo sentou-se em sua cadeira e o diácono e o subdiácono
tiraram sua capa e, depois de lhe lavarem as mãos, o revestiram com amicto,
alva, cíngulo, cruz peitoral, estola, pluvial vermelho e mitra preciosa. Por fim, o
presbítero assistente lhe pôs o anel. Uma vez paramentado, o arcebispo deu iní-
cio à procissão que foi disposta do seguinte modo: à frente foram os irmãos da
Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé, revestidos de capas vermelhas; em
seguida, os carmelitas e depois destes um clérigo vestido de subdiácono, levando
a cruz da Sé, atrás do qual vinha toda a clerezia com sobrepelizes, seguida ime-
diatamente dos párocos revestidos com capas pluviais. Depois deles, ia um clé-
rigo revestido com dalmática, portando a cruz do cabido, a música e capelães da
Sé. Logo atrás vinha um capelão do arcebispo, também revestido com dalmática,
carregando a cruz arquiepiscopal entre dois acólitos ceroferários com castiçais e
velas acesas. Vinham em seguida os capitulares por suas antiguidades e, depois
deles, o diácono e o subdiácono, o presbítero assistente e arcediago do báculo. Ao
final, o arcebispo, ladeado por dois diáconos assistentes, que lhe levantavam as
extremidades do pluvial, levando na mão esquerda o báculo e com a mão direita
lançando a bênção. O trajeto da procissão foi relativamente curto: saindo do
palácio episcopal, deu a volta ao terreiro de Jesus e terminou na catedral, onde o
sínodo foi celebrado117. Uma vez na igreja, observou-se a seguinte disposição dos
lugares: aos lados do arcebispo sentaram-se os assistentes, arcediago, diácono e
subdiácono da parte da Epístola; os demais capitulares tomaram assento nas ca-
deiras do coro e a clerezia nos bancos que haviam sido postos da capela-mor para

117. Toda a descrição está baseada na Relação da Procissão, e Sessões do Sínodo Diocesano (p. 710-711 [600]).

e stud o int r od utór io   45


fora – e alguns dentro da dita capela. A disposição dos lugares foi feita de forma
que os clérigos ficassem separados da assistência.
Embora a Relação continue o relato do rito com muita riqueza de detalhes, não
nos parece necessário, tendo em vista os objetivos deste texto, seguir nesta exposi-
ção. O que foi exposto é suficiente para se ter clareza acerca da importância con-
sagrada aos ritos, tanto por sua natureza de ritos propiciatórios quanto por cons-
tituírem cerimônias carregadas de formas e sentidos simbólicos que relembram a
ordem do mundo, as hierarquias sociais do Antigo Regime. Evidentemente, como
lembra José Pedro Paiva, os diversos detalhes da cerimônia são notados e interpre-
tados de modo diferenciado pelas diferentes categorias de espectadores118. Mas não
há dúvidas quanto à ideia de grandiosidade e suntuosidade que a cerimônia sugere
às consciências daqueles que dela tomam parte, bem como daqueles que a assistem.
Doravante, centraremos nossa atenção no conteúdo do sínodo, que contou com
três sessões realizadas entre 12 e 14 de junho de 1707.
A julgar pelo que narra a Relação, a primeira sessão do sínodo teria sido marca-
da, sobretudo, pelas solenidades envolvendo as cerimônias de abertura do evento
que, para além dos ritos, contou com a leitura de um decreto que adiava a re-
alização do concílio provincial e determinava a realização do sínodo diocesano.
Entretanto, o sermão pregado por frei Manoel da Madre de Deus, ex-provincial
do Carmo, naquele mesmo dia, não deixa dúvidas quanto a qual foi o fato mais
importante daquela sessão – e, a bem da verdade, do próprio sínodo: a apresenta-
ção – “promulgação”, diz o pregador – das Constituições elaboradas pelo arcebispo.
A alegoria feita pelo pregador, ao aproximar o ensinamento referido no tema do
sermão, “Paraclitus autem Spiritus Sanctus, quem mittet Pater in nomine meo, ille
vos docebit omnia” ( J, 14, 26), daquele que produzia o arcebispo através das cons-
tituições, torna evidente a referida centralidade das constituições, como se vê na
seguinte passagem: “O Ilustríssimo e Reverendíssimo arcebispo metropolitano
deste Estado do Brasil, o Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, nas Constitui-
ções que hoje promulga, publica nova lei, cuja matéria se contém na lei da graça,
que Cristo instituiu, representando pelo sublime da obra não menos que a pessoa
do Espírito Santo”119.

118. Ver José Pedro Paiva, “Etiqueta e Cerimônias Públicas na Esfera da Igreja (séculos XVII-XVIII)”, em I. Jancsó e
I. Kantor (org.), Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa, São Paulo, Edusp/Imprensa Oficial/Hucitec/
Fapesp, 2001, pp. 86–87.
119. Frei Manoel da Madre de Deus, Sermam no Primeyro Synodo Diecesano, que se celebrou no Brasil pelo Illustrissmo Senhor
Dom Sebastiam Monteyro da Vide, Arcibispo da Bahia, do Conselho de S. Majestade. Pregou-o na Sé da Bahia o Reve-
rendo Padre Frey Manoel da Madre de Deos, Doutor, et Mestre jubilado na Sagrada Theologia, Ex Provincial do Carmo

46  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


Como é dado ver, não bastou ao carmelita fazer o elogio das Constituições;
fez-se necessário também exaltar o autor da obra, o arcebispo, alçado à condição
de representante do Espírito Santo120. Revela-se, assim, um outro objeto que, ao
menos nos momentos iniciais do sermão, merece destaque equivalente ao das pró-
prias Constituições: a valorização da personalidade e das ações do arcebispo. Na
verdade, o pregador procura não dissociar o arcebispo das Constituições, produ-
zindo um discurso no qual, propositadamente, funde-se o elogio ao autor e à obra.
Assim, após descrever e comentar brevemente as matérias tratadas nas Constitui-
ções, que eram todas voltadas “para o governo e estabilidade da Igreja Católica”,
afirma que, “sendo este o fim da descida do Espírito Santo Ille vos docebit omnia,
quæ ad Ecclesiæ gubernationem, ac stabilitatem sunt necessaria, bem se segue que o
Ilustríssimo senhor arcebispo representa o Espírito Santo, quanto ao fim de sua
descida”121. Para além de exaltar o pioneirismo de Monteiro da Vide ao convocar
o sínodo e ao dotar o arcebispado de constituições, o pregador lembra que o arce-
bispo havia visitado pessoalmente toda a arquidiocese, enfrentando toda sorte de
obstáculos proporcionados pelas “calamidades do deserto por esses sertões”, bem
como pelas “inclemências das águas por esses Ilhéus”122. Mais à frente, proporemos
uma interpretação para este discurso de exaltação das ações do arcebispo, que deve
ser observado como fazendo parte de um modelo retórico, mas também, possivel-
mente, de uma já aludida estratégia política.
É tempo de voltarmos à questão do caráter central das Constituições durante
o primeiro sínodo luso-americano. Se nas primeiras páginas do sermão elas divi-
dem espaço com o arcebispo, a partir do final da sétima das 23 páginas do sermão,
passam a figurar como único objeto, pois o pregador procura mostrar como as
Constituições são necessárias para o governo e estabilidade da Igreja. Esta segunda
parte do sermão obedece a uma clara divisão proposta por frei Manuel da Madre
de Deus, que reduz a três princípios o conteúdo das Constituições. “O primeiro
é aos mistérios divinos, a quem pertencem os sacramentos, os mandamentos da
Igreja, a decência dos templos, e a imunidade eclesiástica; o segundo a perfeição

da Bahia, et Pernambuco, aos 12 de Junho de 1707. dia do Espirito Santo, Lisboa, Na Officina de Miguel Manescal,
1709, p. 4.
120. Em outra passagem do mesmo sermão o pregador diz: “E sendo o Espírito Santo na sua descida ao Cenáculo subs-
tituto, vigário e sucessor de Cristo. Ut hic me referat, et meis fungatur vicibus, por sucessor, por vigário e substituto
de Cristo representa o Ilustríssimo senhor arcebispo ao Espírito Santo quanto ao modo com que hoje desceu”. Frei
Manoel da Madre de Deus, Sermam no Primeyro Synodo, op. cit., p. 5.
121. Idem, p. 6.
122. Idem, p. 7.

e stud o int r od utór io   47


dos costumes, a quem pertence à vida e honestidade do clero, testamentos, enterros
e regimento do Auditório; e o terceiro a disciplina eclesiástica, a quem pertencem
os crimes, e penas deles”123.
Ao tratar destas matérias, fica clara a preocupação do pregador em ressaltar a
responsabilidade do clero para com o governo e estabilidade da Igreja. A perfeição
dos costumes do clero deve servir de exemplo aos leigos. Caso os membros do
clero obrem mal, que esperar do comum dos fiéis? Para o carmelita, as ações dos
sacerdotes devem ser espelhos para os leigos. Daí afirmar ser mau que os seculares
sejam depravados nos seus costumes, porém que os sacerdotes “não sejam nas ações
justificados, não sejam nos costumes perfeitos, é muito maior mal, porque (como
notou Crisóstomo) se os sacerdotes pecam, a todos os seculares faz pecar o mau
exemplo dos sacerdotes”124. Trata-se de um princípio bastante comum em socieda-
des de Antigo Regime: as camadas hierarquicamente superiores, os mandatários,
os que detêm algum poder civil ou eclesiástico devem dar exemplo às camadas
inferiores. O pregador tira uma consequência ainda mais rigorosa sobre a respon-
sabilidade dos sacerdotes. Partindo do princípio de que quanto mais importante
é o sujeito maior a gravidade do seu erro, frei Manuel da Madre Deus defende a
dureza das penas contra os sacerdotes que pequem contra os costumes: dupla era
sua culpa, dupla, pois, deveria ser sua pena.
O problema dos castigos aparece com força na última parte do sermão. Para o
pregador “não é menos necessária para o governo e estabilidade da Igreja de Deus
a correção ou castigo severo dos crimes”125. O discurso sobre esse tema é marcado
pela defesa do rigor da lei e da severidade dos castigos, que não devem ser vistos
como uma espécie de crueldade, mas – e aqui o orador cita o grego Sólon – en-
quanto a forma mais segura para conservar a República. O tema da punição dos
crimes aparece também no sermão da segunda sessão do Sínodo, quando Sebastião
do Vale Pontes se refere ao papel que deveriam cumprir as testemunhas sinodais
eleitas naquele dia.

E saibam as ovelhas deste rebanho, que se até agora pecavam mais livre e assoutada-
mente, porque não tinham pessoas que por ofício delatassem de seus maus costumes e vida,
e por isso os seus pecados, ainda que eram inquiridos, não eram descobertos […] como

123. Idem, p. 8.
124. Idem, p. 15.
125. Idem, p. 17.

48  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


bem experimentou Sua Illustríssima na visita geral que fez deste seu arcebispado, doendo-
se de que por falta de prova ficassem muitos criminosos sem castigo126.

Adiante, veremos que a insistência sobre o tema do castigo e de sua severidade


traz algumas implicações para a análise do modelo de bispo-pastor adotado no
discurso acerca do arcebispo da Bahia. Por enquanto, é preciso continuar a de-
monstração da centralidade das Constituições no sínodo diocesano de 1707. Viu-se
que sua “promulgação” foi o ato mais importante da primeira sessão do sínodo. A
segunda sessão tem por objeto as eleições dos juízes delegados127, examinadores
sinodais128 e procuradores para as congregações nas quais “se resolvessem e propu-
sessem as matérias pertencentes à reformação dos costumes, melhora do Estado
eclesiástico e aumento do serviço de Deus, e se haviam de conferir as Constitui-
ções para o arcebispado”129. Embora estivesse prevista, a eleição das testemunhas
sinodais, por motivos que desconhecemos, foi adiada. Na Relação do Sínodo diz-se
apenas que, embora o arcebispo pretendesse nomear as testemunhas e dar-lhes o
juramento, “por justas causas as não nomeava logo, e também por julgar ser as-
sim mais serviço de Deus”130. Como se vê, neste segundo dia as Constituições não
ocupam um lugar central, embora não deixem de ser mencionadas seja na eleição
de procuradores que deveriam fazer sua conferência, seja no sermão do Doutor
Sebastião do Vale Pontes.
No terceiro dia do sínodo foram comunicados os nomes dos oito procuradores
escolhidos, sendo dois representantes do cabido, dois do clero da cidade da Bahia
e seus subúrbios, dois do clero do Recôncavo e vilas do Sul e dois do clero do
sertão de Inhambupe para cima. Também se fizeram as leituras de decretos que
tratam dos clérigos que não vieram ao sínodo e dos dias e horas em que as congre-
gações deveriam reunir-se com o arcebispo para a conferência das Constituições.
O sermão do terceiro dia do sínodo foi pregado pelo agostinho descalço frei João

126. Sebastião do Valle Pontes, Sermão no Segundo dia e sessão do synodo Diecesano, que na Sé Cathedral da Bahia celebrou o
Illustrissimo Senhor Dom Sebastiam Monteyro da Vide, Arcibispo Metropolitano da mesma Cidade, et Estado do Brasil, do
Conselho de Sua Majestade, etc. Prégou-o o Doutor Sebastiam do Valle Pontes, Mestre Escola da mesma Sé, Dezembargador,
et Chanceller da Relação Ecclesiástica. Aos 13 de Junho anno de 1707, Lisboa, Na Officina de Miguel Manescal, 1709.
127. O sínodo baiano seguia aqui o disposto na Sessão XXV, Decretum de reformatione generali, c. 10, que trata da
necessidade da eleição de pessoas qualificadas e aptas para que lhes sejam delegadas causas eclesiásticas e espirituais.
128. Também se trata de uma disposição tridentina: “Examinatores autem singulis annis in diocesana synodo satisfaciant
et ab episcopo vel eius vicario ad minus sex proponantur, qui synodo satisfaciant et ab ea probentur”. Concílio de
Trento, Sessão XXIV, Decretum de Reformatione, Canon XVIII.
129. Relação da Procissão, e Sessões do Sínodo Diocesano, op. cit. (p. 720 [612].
130. Idem (p. 723 [615]).

e stud o int r od utór io   49


Batista, que, ao fazer uma espécie de balanço das realizações daqueles três dias,
torna ainda mais evidente o caráter primordial das Constituições, verdadeira razão
de ser do próprio sínodo.

São as leis fundadas na luz da razão, e são os sinodais congregados para dar leis. As
eclesiásticas como são as mais justas, suaves e santas, devem ser dirigidas a um só fim, pra-
ticadas com uma só intenção e movidas do mesmo espírito. […]
Observavam-se até agora no Brasil umas leis como estranhas, porque todo o governo
espiritual deste Estado não tinha mais lei que umas Constituições alheias; e como nem em
tudo se ajustavam com a perfeição deste governo, hoje por inspirações de Deus e moções
do divino Espírito lhe decreta sua Ilustríssima leis próprias. […]
Dom Sebastião Monteiro da Vide, soberano Príncipe, e Davi Ilustríssimo, vendo a
República Cristã deste Estado sem mais direção que as Constituições de outras dioceses,
e que não podiam observar-se estas com a perfeição que requeria, ou pelas condições do
clima, ou por introduções do tempo, convoca hoje o sínodo para lhe ordenar umas leis
perfeitas…131.

Como se pode ver, da mesma forma que no sermão pregado no primeiro dia do
sínodo, destacam-se dois pontos nestas passagens da pregação do frade agostinho:
as Constituições e o seu autor. Na verdade, todo o sermão insiste sobre a lei e seu
legislador, ambos auxiliados e ungidos pelo Espírito Santo e alçados pelo orador
à condição de modelos de perfeição. Mais do que constatar a existência de uma
retórica enaltecedora da pessoa e ações de Monteiro da Vide, é preciso indagar
quais significados e intenções um tal discurso pode esconder ou revelar. Reduzir
os elogios feitos à pessoa do arcebispo da Bahia a um mero exercício turibulário
equivaleria não só a mostrar pouca compreensão dos meandros da política de An-
tigo Regime, mas a fechar os olhos a importantes pistas que permitem decifrar os
sentidos de certas ações e discursos.
Os autores dos sermões do sínodo procuraram apresentar uma imagem do ar-
cebispo que se aproximava muito do modelo episcopal abraçado por um número
crescente de prelados a partir do concílio de Trento. Ou seja, a leitura de algumas

131. Frei João Baptista, Sermão no Terceyro dia do synodo diecesano, que se celebrou na Sé Cathedral da Cidade da Bahia, pre-
sidindo o Illustrissimo Senhor Dom Sebastiam Monteyro da Vide, Arcibispo Metropolitano deste Estado do Brasil, Prégado
pelo Muyto Reverendo Padre Mestre Frey João Baptista, Lente de Filosofia, et Theologia na sua Congregação dos Agostinhos
Descalços de Portugal, et Presidente no seu Hospício da Bahia, em 14 de Junho anno de 1707, segunda oytava da festa do
Espirito Santo, Lisboa, Na Officina de Miguel Manescal, 1709, pp. 10–11.

50  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


passagens dos três diferentes sermões permite vislumbrar a utilização de certos
modelos retóricos construídos para enaltecer a imagem dos bispos132.

[…] para vós, senhor, reservou Deus esta glória, ou este trabalho, como porque figura
do Espírito Santo, não obstante o repetido das enfermidades e o cansaço dos anos, discor-
restes visitando pessoalmente todo o vosso arcebispado…133

[…] com a sua pessoa, atividade, desvelo e vigilância pastoral não há dúvida que muito
bem provido está o arcebispado […] porque verdadeiramente de sua Ilustríssima podem
dizer os Homeros da nossa Bahia: Par est multorum millibus unus, e por serem tantas, como
admiráveis as suas letras, acompanhadas de excelente prática, e larga experiência, com tão
vasta notícia das matérias e resoluções dos Doutores, que os casos mais novos os resolve
com a mesma prontidão, que os ordinários134.

[…] para reforma de toda a Metrópole nos deu o mesmo Deus um Príncipe para pri-
meiro legislador das leis da América…135.

Nestas e noutras passagens dos sermões são, pois, ressaltados elementos como
o zelo pastoral do prelado, que visita pessoalmente toda a sua diocese, seu vasto
conhecimento, sua atividade legisladora, marcada pela realização do sínodo e pela
redação das constituições de que estava a dotar o arcebispado. Todavia, nem todos
os elementos da construção da imagem de D. Sebastião Monteiro da Vide como
exemplo de prelado encaixam-se perfeitamente nos modelos mais difundidos de es-
pelhos de bispos. Assim, a defesa da aplicação de castigos rigorosos como meio para
conservar a estabilidade e bom governo da Igreja, referida no segundo sermão do sí-
nodo, vai de encontro à atitude preconizada por um Bartolomeu dos Mártires – este
modelo de prelado ideal cuja influência se estendeu a outros bispos reformadores da
Europa, como Carlos Borromeu – que aos severos castigos preferia a doce instru-
ção136. Contudo, a insistência na severidade do castigo não deixa de ser um elemento
que também encontra seu lugar em determinadas correntes do sentimento religioso
que se desenvolveram após o Concílio de Trento. Com efeito, a defesa do rigor das

132. Sobre o assunto ver o excelente estudo de José Pedro Paiva, Os Bispos de Portugal, op. cit., em particular pp. 111–170.
133. Frei Manoel da Madre de Deus, Sermam no Primeyro Synodo, op. cit., p. 7.
134. Sebastião do Valle Pontes, Sermão no Segundo dia e sessão do Synodo, op. cit., p. 15.
135. Frei João Baptista, Sermão no Terceyro Dia do synodo, op. cit., pp. 4–5.
136. Ver José Pedro Paiva, Os Bispos de Portugal, op. cit., p. 142.

e stud o int r od utór io   51


penas parece guardar estreita relação com a exacerbação do sentimento de culpa.
A obra do oratoriano Jean-François Senault, L’homme criminel, parece oferecer um
bom exemplo dessa relação, ao sustentar que a justiça divina não se contenta em
punir apenas a pessoa culpada, “ela descarrega sua ira sobre seus filhos e escravos”,
“ela envolve numa mesma punição o inocente com o culpado”137. A concepção de
um Deus iracundo que impõe punições extremamente rigorosas contribui para a
instauração de uma pastoral do medo que tem implicações no campo da espiritua-
lidade, mas também no campo da execução da justiça pelos tribunais eclesiásticos.
Além de concluir que os diferentes discursos buscaram oferecer uma imagem
de D. Sebastião Monteiro da Vide enquanto modelo de prelado “tridentino”, é
necessário indagar que motivações, eventualmente, esconder-se-iam por trás des-
ta construção, isto é, que interesses poderia ter o arcebispo baiano na divulgação
de suas ações e na exaltação de suas qualidades? Como vimos anteriormente, ele
podia ter alguma esperança de ser provido numa mitra do reino. Parece-nos lícito
interpretar como um indício deste seu desejo a seguinte passagem do sermão do
Doutor Sebastião do Vale Pontes: “temos com incrível ventura da Bahia […] ao
Ilustríssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, cujas grandes, notórias e cres-
cidas excelências, […] o fazem digno de maiores prêmios”138.
Outra possibilidade a ser considerada é a de o prelado ter desejado dar maior
lustro ao arcebispado da Bahia, sé metropolita e capital do Estado do Brasil, que
vinha assumindo um papel cada vez mais relevante no Império português. Mas,
neste caso, o incremento do prestígio de sua metrópole podia também significar
uma estratégia para a sua promoção. Independentemente disso, o fato é que suas
ações à frente do arcebispado devem ter contribuído, em todo o caso, para o êxito
de seu pleito junto à coroa pela criação de novas paróquias139.
É necessário dizer que o desejo de promoção pessoal, sugerido acima, em
nada fere o grande zelo pastoral que Monteiro da Vide demonstrou durante seus
longos 21 anos de episcopado na Bahia. Tampouco diminui a grandeza e singu-
laridade das realizações de seu arcebispado. As Constituições Primeiras do Arcebis-
pado da Bahia, obra magna do prelado baiano, razão de ser do primeiro e único
sínodo diocesano celebrado na América portuguesa, tornou-se o principal corpo
de leis eclesiásticas não só da Igreja baiana, mas de todas as demais dioceses

137. Jean-François Senault, L’Homme criminel, ou la Corruption de la nature par le péché, selon les sentimens de S. Augustin,
Paris, Veuve J. Camusat, 1644, apud Jean Delumeau, Le péché et la peur, op. cit., pp. 321–322.
138. Sebastião do Valle Pontes, Sermão no Segundo dia e sessão do Synodo, op. cit., p. 14, os itálicos são nossos.
139. Ver Cândido da Costa e Silva (ed.), Notícias do Arcebispado de São Salvador da Bahia, op. cit.

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luso-americanas. Também impressionam por sua longevidade, pois as Constitui-
ções continuaram, com algumas modificações, a reger o arcebispado da Bahia até
fins do século XIX. Não é demasiado lembrar que, em 1847, quando era arcebispo
D. Romualdo Antônio de Seixas, foi publicada uma Doctrina da Constituição
Synodal do Arcebispado da Bahia, que deveria servir como breve compêndio para
instrução do clero, já que os exemplares das Constituições se faziam raros140. Seis
anos depois, seria publicada em São Paulo uma nova edição das Constituições141.

2.3 As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

As constituições promulgadas pelo arcebispo da Bahia, simplesmente aprovadas (e


não redigidas) em sínodo diocesano, só vigoravam nos limites da sua diocese, ape-
sar da vontade explícita do metropolita de fazê-las aprovar por seus sufragâneos, já
que havia convocado sínodo provincial142. Apesar de não ter conseguido reuni-lo,
o sucesso da importante empreitada normatizadora do arcebispo fica patente na
utilização dos estatutos do cabido da Bahia, das suas Constituições e Regimento
do Auditório Eclesiástico em dioceses sufragâneas. Com efeito, prelados sufra-
gâneos do metropolita baiano rapidamente se deram conta do interesse do novo
texto e, já nos anos 1720, os bispados do Rio de Janeiro e de Olinda se regiam
pelas constituições baianas. É provável que o bispo de Angola, único sufragâneo
presente no sínodo, também se tenha servido das Constituições. Quanto ao bis-
pado de São Tomé, último sufragâneo do arcebispado, nada sabemos. Mais tarde,
as Constituições foram aplicadas em todos os bispados luso-americanos, mesmo
no do Maranhão, sufragâneo não do arcebispado da Bahia, mas do de Lisboa143.
Vejamos de perto o exemplo de Pernambuco. Foi D. frei José Fialho quem intro-
duziu a legislação baiana no bispado de Olinda. Frei José Campely, biógrafo de
D. frei José Fialho, relata como o bispo, sabendo que seu cabido não tinha estatu-
tos, decidiu redigi-los e, após confirmação régia, estes acabaram por ser aplicados.
Contudo, o bispo, “tendo formado bem merecido conceito do Exmo. e Revmo. Sr.

140. Cf. Joaquim Cajueiro de Campos, Doctrina da Constituição Synodal do Arcebispado da Bahia reduzida a hum tractado de
moral casuístico e oferecida ao Exmo. E Revmo. Senhor D. Romualdo Antonio de Seixas, arcebispo da Bahia, Metropolitano
e primaz do Brasil, por Joaquim Cajueiro de Campos, Cônego da Sé da Bahia, professor de Língua Latina e Vice-Diretor do
Lyceo da mesma cidade, Bahia, Typ. do C. Mercantil de R. Lessa et Cia., 1847, p. III.
141. Sobre a edição de 1853 das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, ver adiante p. 57.
142. Ver “Convocação do Bispo de Angola”, op. cit., p. 104, onde diz: “E si o dito Illm. Senhor [bispo de Angola] entender,
que ha algumas couzas particulares, que para bom governo da Igreja, e direcção do estado eccleziastico sejam neces-
sarias, será servido mandar-nos uma memoria para que com maduro conselho se tratem e determinem”.
143. Eugênio de A. Veiga, Os Párocos no Brasil no Período Colonial (1500–1822), Salvador, UCSal, 1977, pp. 42–45.

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D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo que fora da Bahia, teve inteligência
para mandar buscar os dessa Metrópole […] modificando e explicando algumas
coisas que entendeu que assim deviam ser observadas […]. Aceitos os estatutos,
e segunda vez confirmados por um Real decreto, foram pontualmente observados
no tempo do seu governo”144. Além dos estatutos do cabido da Sé, D. José serviu-se
também das constituições da Bahia para reger as taxas, benefícios e patrimônio dos
curas. Enfim, frei Campely afirma que as constituições da Bahia foram aceitas em
Pernambuco “com poucas modificações”145.
Na arquidiocese da Bahia, as Constituições deveriam ser conhecidas por todos
os párocos e, como disposto no seu §1310, deveria haver exemplar seu na Sé, no ca-
bido e em todas as igrejas paroquiais e curadas. Isto explica, em parte, a necessidade
de mandar imprimir este corpo de leis. Mas a inserção nas edições destes textos
de um catálogo dos bispos e arcebispos da Bahia e de uma relação da procissão e
sessões do sínodo denota outros objetivos. No primeiro texto, trata-se de enaltecer
a mitra, ressaltando sua antiguidade; no segundo, ao descrever o fausto da ceri-
mônia e destacar o respeito às regras tridentinas, exalta-se a imagem do prelado e,
também, de seu arcebispado. Este programa editorial comemorativo do evento foi
precedido pela publicação à parte, em Lisboa, em 1709, dos três sermões pregados
durante o sínodo, sem dúvida às custas do arcebispo. Embora Monteiro da Vide
pareça ter projetado a publicação do conjunto de textos que compõe as Constitui-
ções para pouco tempo depois do sínodo – em 1711, comunicava à Congregação do
Concílio que as Constituições já se encontravam em Lisboa para serem impres-
sas146 – a primeira edição data somente de 1719, sendo reeditada no ano seguinte.

2.3.1 Um Instrumento Jurídico-Pastoral

As constituições diocesanas são um instrumento jurídico-pastoral, formado pelo


conjunto de leis, decretos e disposições episcopais, e por vezes também de bulas e
breves papais e leis régias, que regulavam a vida litúrgica, doutrinal e disciplinar de
uma diocese, fundadas no direito canônico, na tradição da Igreja e em práticas con-

144. Frei Bonifácio Mueler diz ter visto os estatutos setecentistas da Sé de Pernambuco, nos anos 1950, nos arquivos
daquela cúria. Frei J. da Apresentação Campely, “Epítome da vida, ações e morte do Ilmo. E Revmo. Bispo de Per-
nambuco, Arcebispo da Baía e Bispo da Guarda em Portugal, D. frei José Fialho […]”, frei B. Mueler (pub., introd.
e notas), Revista Eclesiástica Brasileira, 12: 359–360, 1952.
145. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 596 (Olinden), relação ad limina de D. frei José Fialho e frei João da Apresen-
tação Campely, “Epítome da Vida”, op. cit., 14: 88, 1954.
146. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 712 (Salvatoris in Brasilia), relação ad limina de 30 de agosto de 1711.

54  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


suetudinárias locais147. As primeiras constituições diocesanas portuguesas que se
conhecem datam da época do IV Concílio de Latrão, de 1215, quando a anualidade
dos sínodos diocesanos foi instituída, momento privilegiado para a promulgação
desse tipo de texto normativo. Desde então, foram promulgadas pelo menos 120
constituições no mundo português. A promulgação destes textos legislativos epis-
copais foi bastante esporádica até fins do século XV, quando o ritmo de redação de
constituições intensificou-se, impulsionado pelo espírito de pré-reforma que então
vigorava entre os prelados portugueses. Trento estimulou ainda mais a produção de
constituições, e já em 1567 as dioceses de Miranda, Lisboa, Évora e Goa, por meio
de sínodos diocesanos, haviam adequado de modo expresso suas constituições aos
decretos tridentinos. Em começos do século XVII, todas as dioceses do reino de
Portugal haviam seguido o exemplo, o que não impediu que novos textos fossem
ainda publicados até meados do século XVIII.
Se a invenção da imprensa não determinou a produção de constituições em si,
ela sem dúvida influenciou a sua forma e serviu de base para uma melhor disse-
minação destes textos normativos. As primeiras a passar pelo prelo foram as do
Porto de 1496, publicadas no ano seguinte e quase que encerrando o longo período
de constituições diocesanas manuscritas. A partir de então, os prelados relatores
deviam pensar seus textos também a partir da forma impressa, apesar de o manus-
crito original manter um certo estatuto de princeps, como deixa entender Sebastião
Monteiro da Vide na carta pastoral publicada para divulgar o novo Regimento do
Auditório Eclesiástico: “E para que os ditos regimentos venham à notícia de todos, e
cada um os possa ter facilmente, havemos por bem que se imprimam, e que a cada
um dos volumes impressos se dê tanta fé e crédito como ao próprio original por
nós assinado, que ficará no cartório”.
O sínodo diocesano da Bahia encerrou-se no dia 8 de julho de 1707, com o
fim da conferência e a aceitação, pelos procuradores do cabido e do clero do arce-
bispado, do texto das Constituições apresentado pelo arcebispo. Como veremos,
o Regimento do Auditório já estava pronto desde 1704. As primeiras edições de
ambas as obras só saíram, contudo, em Lisboa, da oficina de Pascoal da Silva: o
Regimento em 1718 e as Constituições no ano seguinte, apesar de os textos terem sido
enviados para a corte por volta de 1710148. Houve uma segunda edição de ambas as
obras, agora no mesmo ano, publicada em Coimbra, no Real Colégio das Artes da

147. José Pedro Paiva, “Constituições Diocesanas”, em Carlos Moreira Azevedo (org.), Dicionário de História Religiosa de
Portugal, op. cit., vol. 2, p. 9.
148. ASV, Congr. Concilio, Relat. Diœc., 712 (Salvatoris in Brasilia), relação ad limina de 30 de agosto de 1711

e stud o int r od utór io   55


Companhia de Jesus em 1720, sem que se saibam exatamente as razões que levaram
à reedição tão rápida dos textos baianos – provavelmente uma pequena tiragem
da primeira edição, visto que, ao compará-las, não se encontram diferenças além
de uns pequenos erros tipográficos completamente irrelevantes para o sentido e o
nexo do texto. Estas duas edições, assim como uma terceira, de 1765, publicada em
Lisboa, na Oficina de Miguel Rodrigues, possuem exatamente o mesmo número
e quebra de páginas, ou seja, os editores mantiveram a paginação (apesar de visi-
velmente utilizarem conjuntos de tipos diferentes), como se o número delas, para
além dos números dos livros, capítulos e parágrafos, também pudesse servir de re-
ferência para a citação do texto. Não se trata de uma originalidade baiana, mas um
padrão, quando se comparam, por exemplo, as três edições da Constituições Sinodais
do Arcebispado de Lisboa, a primeira de 1646 e as outras em 1656 e 1737. A edição
de 1720 das Constituições da Bahia, utilizada para a fixação da edição que ora pu-
blicamos, diferencia-se das outras duas, possivelmente pela gravura que porta em
frontispício: não conhecemos exemplares das edições de 1719 ou da de 1765 com
essa gravura que aqui reproduzimos. Existe ainda uma última edição de época das
Constituições, tendo em vista que, em muitos aspectos, elas continuaram em vigor
até o fim do Império (1889): o cônego da Sé de São Paulo, dr. Ildefonso Xavier Fer-
reira, lente de teologia dogmática, organizou uma quarta edição dos textos em 1853,
publicada naquela cidade na Tipografia 2 de Dezembro de Antonio Louzada An-
tunes, acompanhando-os de um prólogo histórico, que se detém sobre a catequese
dos índios, completando o dicionário dos arcebispos da Bahia até os seus dias, e
marcando com uma cruz os parágrafos das constituições que não mais valiam no
seu tempo, sinal tipográfico que reproduzimos nesta nossa edição. Segundo Oscar
de Oliveira, uma última edição das Constituições teria sido impressa em 1870 por
um comitê preparatório do Concílio I Vaticano, mas não conseguimos ter acesso
a nenhum exemplar dessa coletânea, cujo texto tece, aliás, os mais francos elogios
à erudição canônica de Monteiro da Vide, quando normalmente não devia conter
mais que transcrições de decretos de concílios149.

149. Citamos: “Magna autem omnium et approbatione exceptae sunt (Constitutiones) et admiratione, tum ob genus
earum ad omnes ecclesiasticae vitae usus apprime accomodatum, tum ob eruditionis saluberrimae quae doctrinae
copiam…” Gerhardt Schneemann (ed.), Acta et decreta sacrorum conciliorum recentiorum, Friburgi Brisgoviae Herder,
1870–1890 (Col. Lac., t. I, p. 850), apud Oscar de Oliveira, Os Dízimos Eclesiásticos do Brasil nos Períodos da Colônia e
do Império, Belo Horizonte, Universidade de MG, 1964, p. 26.

56  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


2.3.2 As Constituições da Bahia no Contexto Português

Do ponto de vista formal, cabe chamar a atenção para as muitas características que
inserem as Constituições Primeiras no conjunto das constituições diocesanas por-
tuguesas. Com efeito, Sebastião Monteiro da Vide, ao organizá-las, não pretendia
inovar nem quanto à forma nem quanto ao conteúdo geral dos seus textos, mas, sim,
colá-las ao máximo às disposições do Concílio Tridentino e à já então larga tradição
do gênero em Portugal. Assim, as constituições baianas destacam-se menos por
suas especificidades do que por sua conformidade com suas congêneres. Apesar
disso, não havia uma regra fixa para formatar as constituições, e as da Bahia parecem
ter uma genealogia bastante complexa, como demonstra o largo espectro de textos
consultados para a sua redação. Uma das fontes mais citadas são, naturalmente, as
constituições do arcebispado de Lisboa, em uso na Bahia antes de 1707, mas Mon-
teiro da Vide não seguiu estritamente a forma utilizada pelas normas lisboetas.
Vale relembrar que o volume impresso, que usualmente chamamos de Consti-
tuições Primeiras do Arcebispado da Bahia, comporta outras obras que, embora pos-
sam ser lidas e estudadas separadamente, acompanham o texto normativo e lhe dão
mais sentido. Dos volumes consultados de legislação episcopal, nesse ponto de vista,
o da Bahia parece ser o mais completo, acumulando textos anexos que só surgem, se-
paradamente, em um ou outro estatuto português. Às Constituições do arcebispado de
Évora de 1565 e às dos bispados de Coimbra, de 1591, do de Portalegre, publicadas em
1632, da Guarda, publicadas pela primeira vez em 1621, ou ainda do Algarve, de 1675,
seguem, no mesmo volume, um Regimento do Auditório Eclesiástico. Já as do Porto,
por exemplo, impressas em 1690, vêm acompanhadas de uma Relação da procissam
e sessões do synodo diocesano, enquanto uma Relação dos senhores bispos de Portalegre
se segue às já citadas constituições desse bispado, que recebeu seu primeiro prelado
em 1550. O texto lisboeta, por sua vez, foi publicado sem nenhum adendo150.
Sem fugir à tradição anterior, o arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide esco-
lheu acompanhar suas constituições do máximo de material anexo. O volume abre
com uma bela gravura em frontispício, representando o arcebispo redator sentado

150. João de Melo, Constituicoens do Arcebispado de Évora […], Évora, Officina da Universidade, 1753 [1565]; Afonso de
Castelo Branco, Constituições sinodais do bispado de Coimbra […], Coimbra, António de Mariz, 1591; Afonso Furtado
de Mendonça, Constituiçoens synodais do Bispado da Goarda […], Lisboa, Miguel Deslandes, 1686 [1621]; frei Lopo de
Sequeira Pereira, Constituiçoens do Bispado de Portalegre […], Portalegre, José Roiz, 1632; Rodrigo da Cunha, Cons-
tituições synodaes do Arcebispado de Lisboa […], Lisboa Oriental, Na Officina de Filippe de Sousa Villela, 1737 [1646];
Francisco Barreto, Constituiçoens synodaes do Bispado do Algarve […], Évora, Impressão da Universidade, 1674, e João
de Sousa, Constituições synodaes do bispado do Porto […], Porto, Joseph Ferreyra, 1690.

e stud o int r od utór io   57


num trono, segurando na mão direita o seu capelo e na esquerda um volume que
presumimos ser o das Constituições. Ladeiam-no, inseridos nas laterais do arco de
estilo coríntio, fechado por uma abside onde se encontra a figura de Monteiro da
Vide, quatro medalhões com os retratos dos arcebispos que o precederam no cargo.
Encima a construção uma possível representação do sínodo diocesano, ladeada
por uma alegoria da Igreja esmagando a heresia a seus pés e outra da Fé como
vencedora dos pecados e caminho para a sabedoria. Acima da representação do
sínodo, dois putti adiantam-se à luz divina, sendo o conjunto coroado pelas armas
do arcebispo. Abaixo da gravura, assinada por I. S. Benard, a inscrição “Primeiras
Constituições Synodais do Arcebispado da Bahia. Feitas e ordenadas pelo Ilmo e
Rmo Sor D. Sebastião Monteiro da Vide 5º Arcebispo da Bahia, do Conselho de S.
Majestade”. Segue a folha de rosto e, em seguida, uma carta pastoral ordenando
aos oficiais da justiça eclesiástica e a todos os ministros que observem estritamente
as constituições recém-impressas e o seu Regimento do Auditório. Sucedem-se
depois o índice das constituições, as licenças do Santo Ofício, do Ordinário e do
Paço, e finalmente as constituições em si, com um total de 470 páginas. Seguindo
a numeração, imprimiu-se um “termo de como se conferiram as constituições do
arcebispado da Bahia” e um alentado índice temático, que vai da página 473 à pá-
gina 593. Duas páginas depois, e até a de número 618, vem a Relação da procissão e
sessões do sínodo diocesano que se celebrou na Sé metropolitana da cidade da Bahia em 12
de junho de 1707. Com outra numeração e com folha de rosto própria, aparece o Ca-
tálogo dos bispos que teve o Brasil até o ano de 1676 em que a catedral da cidade da Bahia
foi elevada a metropolitana, e dos arcebispos que nela tem havido, com as notícias que de
uns e outros pôde descobrir o Ilustríssimo e Reverendíssimo senhor D. Sebastião Montei-
ro da Vide, quinto arcebispo da Bahia, do Conselho de Sua Majestade etc., na verdade,
obra do jesuíta natural do Rio de Janeiro e, na época, professor de humanidades
do colégio da Bahia, padre Prudêncio do Amaral151. O arcebispo, assim como o
bispo redator das constituições de Portalegre, frei Lopo de Siqueira Pereira, sen-
tiu a necessidade de mostrar que, apesar de governar uma diocese relativamente
nova, esta já possuía suas tradições e história, que no caso da Bahia, já em começos
do século XVIII, perigava desaparecer por falta de fontes, como lembra o padre
Prudêncio em seu pequeno introito. Já o bispo de Portalegre, ao publicar a relação
dos bispos, diz desejar “perpetuar a memória [dos seus antecessores] em [seus]
súditos, e com ela estampar em suas almas suas grandes virtudes e procedimentos,

151. Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, op. cit., vol. 3, p. 629.

58  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


os quais sempre [teve] por norte de [suas] ações, trabalhando em os imitar quanto
[lhe] foi possível”152. À lista dos prelados baianos, segue, com uma página de rosto
completa, o Regimento do Auditório Eclesiástico […], com local, impressor e ano de
edição idênticos aos das Constituições, acompanhado do seu próprio índice temá-
tico, perfazendo ao todo 187 páginas. Assim, as constituições da Bahia parecem
formar o conjunto mais completo das constituições portuguesas, com anexos que
lhe dão mais corpo e relevância, além de assentar com mais força sua legitimidade.
Contudo, apesar de publicadas em conjunto e de serem desconhecidos exemplares
avulsos dessas diferentes obras, cada uma delas pode ser considerada separadamen-
te, com suas próprias funções e usos.
Quando se analisam as constituições em si, constata-se uma evolução da sua
organização interna e da sua extensão, com uma complexificação funcional de suas
subdivisões, de modo a tornar a consulta mais fácil e dar uma maior precisão a
seu conteúdo. As constituições de Braga, promulgadas pelo infante D. Henrique
em 1537, dividem-se apenas em títulos, não contando mais do que 84 fólios. As
de Évora, de 1565, são divididas em capítulos, contando somente 192 páginas. As
constituições, mais tardias, de Coimbra, de 1591, também se dividem em títulos,
mas que são por sua vez divididos em constituições, assim como as de Goa, apro-
vadas no concílio provincial de 1568153. Aparentemente, apenas no século XVII surge
o formato, que se fixou, de uma divisão geral em cinco livros, cada um reagrupando
quase sempre os mesmos temas, por vezes divididos em capítulos também temáticos,
ou somente em divisões menores que compartimentam as matérias tratadas. Assim,
enquanto as constituições do Porto e de Lisboa encerram um único título dedicado
ao batismo, subdividido em constituições (para as do Porto) ou em decretos (para a
de Lisboa), cada um deles dividido, por sua vez, em versículos ou parágrafos cuja nu-
meração recomeça a cada constituição (ou decreto), o texto baiano conta onze títulos
dedicados a este sacramento, cada um deles dividido em parágrafos de numeração
contínua. Sob este ponto de vista, as constituições da Bahia possuem a originalida-
de de poder-se referir ao seu conteúdo diretamente ao parágrafo, não importando
o número do livro ou do título. Ela conta ao todo 1 312 parágrafos numerados.

152. Frei Lopo de Sequeira Pereira, Constituiçoens do Bispado de Portalegre, op. cit., fl. 52v.
153. D. Henrique, Constituiçoens do Arcebispado de Braga, Lisboa, Germã Galharde, 30 de maio de 1598; João de Melo,
Constituiçoens do Arcebispado de Évora, op. cit., e Afonso de Castelo Branco, Constituições Sinodais do Bispado de
Coimbra, op. cit., e Gaspar de Leão, Constituicoens do Arcebispado de Goa, op. cit., em Antonio da Silva Rego (ed.),
Documentação para a História das Missões, op. cit., vol. 10, pp. 481–800.

e stud o int r od utór io   59


A divisão em cinco livros, segundo frei Lopo de Siqueira Pereira, bispo de Por-
talegre, se deve ao exemplo das Decretais:

A ordem com que se dispõem as leis é de muita importância para serem bem aceitas
a quem as ler e mui fáceis a quem as houver de guardar. E porque as Constituições dos
arcebispados e bispados deste reino estão dispostas por diversos modos, porque umas estão
repartidas em títulos, outras em livros, títulos e capítulos, mui de propósito consideramos a
ordem com que disporíamos estas Constituições para que com menos trabalho pudessem
nossos súditos mandar a substância delas à memória, e nos pareceu seguir a ordem com
que os Sagrados Cânones estão dispostos nas decretais, e à sua imitação repartimos estas
Constituições em cinco livros.

Com efeito, a compilação de direito canônico, organizada por Gregório IX


(1160–1241) divide-se em cinco livros: o primeiro discursa sobre a trindade e a fé
católica, o segundo sobre matérias judiciais, o terceiro sobre a vida e os bons cos-
tumes dos clérigos, o quarto sobre o matrimônio e seus impedimentos, e o quinto
sobre delitos e suas penas correspondentes, cinco livros estes que, alegoricamente,
correspondem aos sentidos do corpo, seguindo a ideia aristotélica de construção
das leis universais nos cinco sentidos154. Nada mais natural para um erudito forma-
do na Universidade de Coimbra do que referir-se a Aristóteles na estruturação de
um corpus jurídico que, ainda por cima, pretendia adaptar as regras gerais da Igreja
à realidade local de cada bispado, fazendo assim uso, mesmo com as limitações
impostas pelo rígido enquadramento escolástico e tridentino, da experiência, ou
seja, dos sentidos.
A estrutura geral das constituições diocesanas portuguesas do século XVII se-
guiu, sem dúvida, as Decretais, que, aliás, também serviram de inspiração para as
grandes divisões das Ordenações régias – desde as Afonsinas – também divididas
em cinco livros. Mas este parentesco não passa da estrutura, pois as Decretais não

154. “Diuidit n. opus in qnqz partes. In prima parte tractat de summa trinitate et fide catholica et de constitutõibus de
rescriptis de iudicib’ et eorum officijs. In scda parte tractat de iudicijs et cooperantibus ad iudicia. In tertia parte
tractat de vita et bonestate clericor’ et rebus eor’ et ecclesiasti. In quarta de spõsalib’ et matrimonijs et îpedimentis
eor’. In quinta de accusatiõib’ et criminib’ et penis eor’. Et sic terminat tractatû suû ipsû dividens in qnqz partes ad
similitudinem qnqz sensuz corporis: quos qlibet q iudicat babere debet: aliter non est idone’ iuder sic enim oîs copula
coniugalis restricta est usqz ad quartû gradû ad similitudinem quattuor humorû vel elemêtorû corpis hûani.” Gregó-
rio IX, Decretalium cum summariis suis et textuum divisionibus: ac etiam rubricarum continuationibus / [Gregorius IX];
Hieronymi Clarii Brixinesis emendatio, Veneza, per Baptistam de Tortis, 1496, p. 2 [proemium], nota a. Consultado na
biblioteca virtual http://gallica.bnf.fr/

60  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


são citadas no texto das constituições baianas diretamente mais do que duas vezes.
Quanto à forma, existem similitudes, mas não um decalque, mantendo os bispos
esta base quíntupla, mas adaptando-a às suas necessidades, o que resultou por ve-
zes numa mistura de temas num mesmo livro.
No caso baiano, o livro primeiro disserta sobre a profissão da fé católica, a obri-
gação do ensino da doutrina cristã pelos párocos aos fiéis, a obrigação da denúncia
dos hereges e da adoração de Deus, da Virgem, dos santos e das relíquias, mas
sobretudo sobre os sete sacramentos e os modos e condições de sua administração.
D. Afonso Furtado de Mendonça, bispo da Guarda, explica a necessidade de abrir
as Constituições por esses temas, pois são eles o seu “fundamento […] de todo o
edifício espiritual que pretende em [seu] bispado”. Outras constituições, contudo,
inseriram matérias alheias a essa temática no livro primeiro, como as de Lisboa,
que o abre com um título sobre a necessidade da existência de constituições e sobre
quem as deve respeitar e ter, matéria que, no caso da Bahia, surge no fim do livro
quinto. O título segundo do livro primeiro das Constituições de Lisboa trata ainda
da convocação e da realização dos sínodos diocesanos.
O livro segundo das Constituições da Bahia trata do sacrifício da missa e da
obrigação de ouvi-la aos domingos e dias santos, do respeito dos dias de guarda e
da realização de jejuns. Trata também da obrigação do pagamento de conhecenças
(as somas pagas aos curas pelos fiéis na realização de atos sacramentais) e do dí-
zimo. Na Bahia (como em toda terra de padroado) os dízimos eram devidos “à S.
Majestade”. Isto faz com que o texto baiano limite-se a tratar somente do essencial
sobre o assunto, enquanto outras constituições o fazem mais largamente. Mais
uma vez, as Constituições da Bahia distanciam-se do seu modelo mais evidente,
pois aqui as Constituições de Lisboa continuam, de modo aliás bastante coeren-
te, a discorrer sobre matérias que completam as questões cerimoniais já descritas,
como a missa, mas que são tratadas por Monteiro da Vide no livro seguinte.
Com efeito, no texto baiano os ofícios divinos, as horas canônicas, procissões,
ladainhas e pregações são tratados no livro terceiro, junto com as obrigações, quali-
dades requeridas e os meios de eleição de clérigos colados ou prebendados. É tam-
bém neste livro que as Constituições descrevem em detalhe a “forma da doutrina
cristã”, arrolando desde as pessoas da Trindade até a fórmula do ato de contrição,
passando pelos pecados capitais, os novíssimos do homem etc. Aqui, numa das
várias referências ao contexto local, Monteiro da Vide insere uma “breve instrução
dos mistérios da fé acomodada ao modo de falar dos escravos do Brasil, para serem
catequizados por ela”, baseando-se sem dúvida no pequeno catecismo dedicado

e stud o int r od utór io   61


aos escravos que ele havia feito imprimir alguns anos antes155. D. Afonso Furtado
de Mendonça, bispo da Guarda, e D. João de Sousa, bispo do Porto, ainda tratam
no livro terceiro da imunidade e dos privilégios dos clérigos, temas que, nas Cons-
tituições de Lisboa e da Bahia, somente são tratados no livro seguinte, assim como
as questões relacionadas com o enterro e o sepultamento dos fiéis, que D. Afonso
também aborda no livro terceiro.
O livro quarto trata, a seguir, das imunidades e isenções das pessoas eclesiásti-
cas e do estatuto especial das igrejas e outros prédios sacros. As Constituições da
Bahia detêm-se aqui sobre os bens das igrejas, seus ornamentos e também sobre
como e quando templos e mosteiros podem ser edificados. Ainda relacionado com
os espaços sagrados, tratam da imunidade das pessoas que se refugiam nas igrejas e
capelas. O livro continua sobre os modos de fazer e cumprir os testamentos, sobre
os enterros, as sepulturas e as exéquias dos fiéis, e sobre as confrarias e os pedintes
do arcebispado. Ele se encerra com um título que anuncia o tema do livro seguinte:
a execução das ordens arquiepiscopais.
O quinto e último livro das Constituições, de todas aquelas que, como a de
Portalegre, seguiram, pelo menos em parte, as Decretais, trata dos delitos sob ju-
risdição episcopal, das penas e censuras aplicadas aos que neles incorressem e dos
procedimentos básicos do tribunal eclesiástico: acusações, querelas, devassas e in-
quirições. Algumas constituições, como as já mencionadas dos bispados da Guar-
da, de Portalegre e do Porto, ainda tratam, no mesmo livro, das visitações, matéria
que aparece diluída nas constituições baianas, mas cujo procedimento é descrito
em detalhe no Regimento do Auditório Eclesiástico, no título dos visitadores.
O Regimento, na verdade o conjunto dos regimentos particulares de cada ofi-
cial ou ministro do juízo, Auditório e Relação eclesiástica (do chanceler da Relação
ao porteiro), completa as constituições por fornecer as vias práticas pelas quais
se dava a fiscalização e o controle dos fiéis e dos próprios membros da corpora-
ção eclesiástica. O bispo D. Afonso de Castelo Branco, redator do regimento de
Coimbra, decidiu promulgá-lo após ter ordenado novas constituições, “por enten-
der que em serem os oficiais e ministros da Justiça quais convém principal parte
da execução delas e do bom governo” do seu bispado. Já Sebastião Monteiro da
Vide adiantou-se à questão e, ao saber da falta de normas para os procedimentos
judiciais, preparou um Regimento do Auditório, que ficou pronto para a impressão
em setembro de 1704.

155. Francisco de Matos, Vida Chronologica de S. Ignácio, op. cit., Argumento gratulatório de Prudêncio do Amaral.

62  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


As Constituições do arcebispado da Bahia citam as Constituições de Lisboa
ao menos 730 vezes; referem-se diretamente às da Guarda pelo menos 390, às do
Porto 239, às de Braga 167 e às de Lamego 139 vezes. As do Algarve, de Évora, de
Coimbra e de Viseu também foram consultadas, mas muito pouco usadas. Atra-
vés desses números, e também da análise feita acima, percebemos que Monteiro
da Vide não fugiu às normas em vigor para a organização de sua obra no que
concerne à forma. Apesar disso, também se vê que não utilizou um molde único,
adaptando os modelos existentes às suas necessidades e ao que pensava ser mais
adequado à realidade do arcebispado que administrava: nenhuma das cinco partes
das constituições corresponde exatamente às partes de nenhuma das que lhe ser-
viram de base. Assim, estas questões de forma parecem estar ligadas diretamente
ao arbítrio do arcebispo. O mesmo não se pode dizer do conteúdo em si das
constituições, haja vista que em muitos aspectos estava submetido a uma legisla-
ção canônica universal que devia ser rigorosamente observada. Isto não impedia,
contudo, que adaptações fossem feitas para atender a necessidades e problemas
do cotidiano religioso vinculados ao contexto social e geográfico local – mas um
local que pode ser facilmente estendido ao espaço atlântico. Mas, antes de abordar
essas especificidades, vale a pena estudar as características impostas às constitui-
ções por um outro tipo de restrição, ligada à sua condição de terra de padroado,
que faz com que o texto baiano se distinga, por esse aspecto jurídico, de qualquer
outro texto do mesmo tipo do mundo português, com exceção das Constituições
do arcebispado de Goa.

2.3.3 As Constituições da Bahia no Contexto Colonial

Por uma série de bulas e breves, os sucessivos papas concederam à Ordem de Cris-
to, sob cuja bandeira se fez toda a expansão portuguesa, uma série de privilégios e
prerrogativas tocantes à disseminação da religião cristã nas terras por ela descober-
tas. Com a dupla qualidade de reis e de governadores e administradores perpétuos
da Ordem de Cristo, os soberanos portugueses da época moderna arrecadavam os
dízimos normalmente devidos à Igreja, devendo então custear com eles os gastos
e as necessidades do clero local e incentivar o movimento missionário. Tinham
também autoridade sobre todos os postos, cargos, benefícios e funções eclesiásticas
nos territórios ultramarinos sob o seu domínio156. Estas limitações ao poder papal e

156. Charles R. Boxer, O Império Marítimo Português 1415–1825, Lisboa, Edições 70, s.d., pp. 227–228.

e stud o int r od utór io   63


episcopal refletiam-se nas constituições das dioceses ultramarinas, especificamente
nas questões ligadas à nomeação de clérigos e dignidades e à arrecadação e uso dos
recursos do dízimo.
No que toca à nomeação dos curas beneficiados, as Constituições de Goa men-
cionam somente de modo acessório, num título que trata do uso simoníaco dos
cargos e não no das nomeações, que “el-Rei nosso Senhor (como padroeiro que é
de todos os benefícios deste arcebispado) [poderá] livremente apresentar” nomes
a benefícios vagos (tít. 15, const. II). Este direito de apresentação régia só surge, de
modo implícito, mais adiante, quando o arcebispo afirma ter o direito de prover
quem servisse nos benefícios, “porque muitas vezes acontece estarem muito tempo
os benefícios vagos ou serem ausentes os beneficiados e a serventia da igreja pa-
decer detrimento” (tít. 15, const. V). Quanto à questão dos dízimos, como parece
ser de praxe, as constituições goesas exortam aos priores, vigários, curas e prega-
dores que tratem de lembrar aos fiéis da obrigação do pagamento do dízimo (tít.
24, const. I). As constituições permanecem vagas no que tange à sua arrecadação,
dizendo que deviam ser chamados “a quem pertencer haver o dízimo, ou seus
priostes, dizimeiros e carretadores para irem dizimar e recolher a parte que lhe
couber, dizimando bem e verdadeiramente” (tít. 24, const. II), subentendendo a
possibilidade da existência de vários titulares de padroados quem sabe locais.
No caso das constituições baianas, o papel de padroeiro do soberano surge com
mais evidência que no texto temporão indiano, mesmo que, por questões de co-
modidade, algumas dessas prerrogativas régias tenham sido abandonadas ao pre-
lado: Monteiro da Vide começa por lembrar que, como grão-mestre e perpétuo
administrador da Ordem de Cristo, cabia ao rei a apresentação dos clérigos, não
cabendo ao prelado mais que a sua confirmação e colação.

Mas porque Sua Majestade com zelo, piedade e suma religião costuma permitir-nos o
uso desta regalia, atendendo mais ao útil das igrejas e bem de seus vassalos do que a este seu
supremo domínio, e querendo em tudo conformar-se com o que dispõe o sagrado Concílio
Tridentino, concede aos bispos a faculdade de proverem as igrejas, procedendo concurso
a elas para que sejam providas de párocos idôneos e dignos de exercitarem as gravíssimas
obrigações do ofício pastoral (liv. 3, tít. XXII).

Esta concessão, evidentemente, não se estendia à cobrança e usufruto do dízi-


mo. Após afirmar a obrigação do pagamento do dízimo do mesmo modo que as
Constituições de Goa, o texto baiano descreve em detalhes o que era o dízimo e

64  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


quais eram os outros impostos eclesiásticos, lembrando quem devia pagá-los. O
papel régio é lembrado com força no último parágrafo sobre a matéria, em que se
proibia, sob pena de excomunhão maior e de cinquenta cruzados, que se pusessem
empecilhos ao pagamento do dízimo “a quem for devido, que é à Sua Majestade”
(liv. 2, tít. XXI–XXVI).

2.3.4 As Constituições da Bahia no Contexto Atlântico: Os Sacramentos e a Vida Sacramental

A insistência na importância dos sacramentos e da vida sacramental foi uma das


características mais marcantes do catolicismo tridentino. Nenhuma constituição
diocesana poderia deixar de tratar do assunto, embora nem todas confiram igual
importância ao detalhamento de questões relacionadas com este ou aquele sacra-
mento. As escolhas, muito provavelmente, não eram arbitrárias, mas fruto do co-
nhecimento das realidades locais, bem como das tendências teológico-espirituais
que exerciam mais influência sobre a diocese ou, em particular, sobre o bispo.
Não temos a intenção de estudar em detalhe o que as constituições baianas
dispõem sobre cada um dos sacramentos, mas, sim, analisar aspectos que deno-
tem alguma singularidade com relação às suas congêneres. As questões que mais
chamam a atenção são, sem dúvida, aquelas que dizem respeito às especificida-
des decorrentes do sistema escravista estabelecido no território da arquidiocese da
Bahia e das suas dioceses sufragâneas. Todavia, não deixa de ser interessante notar
uma ou outra opção reveladora de uma tomada de posição a respeito de assuntos
controversos e sobre os quais havia mais do que uma posição aceita como ortodoxa
pela Igreja – é o caso, como veremos, da definição sobre o ministro do sacramen-
to do matrimônio, cuja posição restritiva adotada pelas constituições conheceria
modificações em épocas posteriores à sua publicação. Embora tenhamos centrado
nossa atenção no próprio texto das constituições, não nos furtamos a vez por outra
apresentar exemplos de como a realidade americana contribuiu para uma prática
sacramental que, sem se afastar da ortodoxia, apresentava, nalguns casos, traços
distintos daquela adotada comumente em Portugal.
Os onze títulos (do título X ao XX) consagrados ao sacramento do batismo
nas constituições baianas não destoam da importância dada ao mesmo assunto em
outras constituições diocesanas. A própria organização dos títulos parece seguir
um modelo corrente. Inicialmente, apresenta-se de modo geral a matéria, forma,
ministro e efeitos do sacramento. Em seguida, o texto ocupa-se de problemas rela-
tivos aos cuidados que o clero diocesano deveria ter na administração do batismo.

e stud o int r od utór io   65


Por fim, o último título é todo ele consagrado à importância do registro e conser-
vação dos livros de batismo. Uma questão, entretanto, denota um caráter bastante
específico das constituições da Bahia com relação às suas congêneres portuguesas:
a preocupação a respeito do batismo dos escravos. Numa terra em que o grande
número de escravos africanos não cessava de aumentar, é perfeitamente compre-
ensível que o legislador eclesiástico procurasse enquadrar o problema, apontando a
maneira de proceder no caso dos africanos. A questão é abordada do §50 ao §57, do
título XIV, “Do batismo dos adultos, e disposição que devem ter para se lhes haver
de conferir”, logo após reportar algumas disposições comuns a várias constituições
sinodais portuguesas no tocante ao batismo de adultos. Como teremos ocasião de
notar, esta não é a única parte das constituições em que se demonstra uma preocu-
pação particular com a cristianização dos escravos.
O §50 enuncia o modo de proceder nos “batismos dos escravos brutos e boçais e
de língua não sabida”, caso daqueles vindos da Mina e também de muitos oriundos
de Angola. Seja após terem alguma compreensão da língua portuguesa, seja antes,
através de intérpretes, os africanos deveriam ser instruídos nos mistérios da fé
cristã, para o que os párocos poderiam fazer uso da Breve instrução dos mistérios da
fé, acomodada ao modo de falar dos escravos do Brasil, para serem catequizados por ela,
que figura no §579 das mesmas constituições baianas, e que, como já dissemos, sem
dúvida retomam o texto do opúsculo acima mencionado, publicado pelo arcebispo
para o mesmo fim algum tempo antes da conclusão das constituições157. Não é sem
interesse observar que as constituições mandam (§52) àqueles que se servem de cati-
vos que tomem para si a responsabilidade por sua conversão à fé católica. Os muitos
relatos sobre senhores de escravos que se descuidavam totalmente da instrução reli-
giosa da escravaria e as exortações pastorais para que mudassem sua postura parecem
confirmar as dificuldades de implementação deste ponto das constituições158.
O legislador eclesiástico também refletiu sobre o caso específico das crianças
escravas. No caso delas, diz-se que até a idade de sete anos deveriam ser batizadas
mesmo sem o consentimento dos pais, haja vista que o princípio tomista de que
seria contrário à justiça natural batizar crianças infiéis contra a vontade dos pais
não se aplica no caso dos cativos. O mesmo já não se aplicava às crianças com

157. Para além das instruções, aos escravos a serem batizados dever-se-ia ainda fazer as seguintes perguntas: Queres lavar
a tua alma com água santa? / Queres comer o sal de Deus? Botas fora de tua alma todos os teus pecados? / Não hás
de fazer mais pecados? / Queres ser filho de Deus? / Botas fora da tua alma o demônio?
158. O próprio Monteiro da Vide, em 1712, cinco anos após a realização do sínodo, faz referência a este problema. Cf.
Cândido da Costa e Silva (ed.), Notícias do Arcebispado de São Salvador da Bahia, op. cit.

66  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


idade superior a sete anos. Na Doctrina da Constituição Synodal do Arcebispado da
Bahia, obra publicada em 1849, que procura explicar em linguagem simples e num
estilo próprio de catecismos, apresentando perguntas e respostas, o problema do
batismo de crianças maiores de sete anos aparece sob a seguinte forma: “Sérvulo
veio com idade de oito anos, em companhia de seus pais, da Costa d’África para o
Brasil, como cativos; e querendo o senhor os batizar, não quiseram eles: o senhor
fez batizar a Sérvulo contra a vontade de seus pais, e relutando também o mesmo
Sérvulo. Pergunta-se se foi este batismo válido e lícito? Resp. Que foi nulo e ilícito,
porque depois dos sete anos é necessário que o batizado peça e queira o batismo”159.
De fato, somente em casos excepcionais (ver §56) seria admitido o batismo sem
que houvesse o pedido por parte do converso.
Nos dois títulos das Constituições dedicados ao sacramento do crisma nenhu-
ma matéria tratada denota qualquer especificidade em relação aos usos e práticas
envolvendo este sacramento na Igreja portuguesa, que, aliás, como fica patente
nas frequentes notas que referem constituições de outras dioceses portuguesas,
são seguidos de perto pelo texto baiano. Se quisermos descobrir alguma especifi-
cidade americana na administração do crisma, não será na legislação eclesiástica
que iremos encontrá-la, mas na prática diocesana. Com efeito, embora o ministro
ordinário do sacramento da confirmação seja o bispo – como afirmam as pró-
prias Constituições em seu §76, seguindo as disposições tridentinas que retomam
o estabelecido no decreto pro Armenis do concílio de Florença – a imensidão das
dioceses da América portuguesa aliada à precariedade da saúde de alguns bispos
parecem ter constituído motivo suficiente para que a Santa Sé admitisse que um
simples padre administrasse o crisma160. Foi este o caso, por exemplo, de D. José
Botelho de Matos, arcebispo da Bahia entre 1741 e 1760, que, em 1748, quando já
contava setenta anos, foi atendido por Roma em sua demanda para delegar um
simples presbítero a crismar – solicitação que seria renovada e atendida dez anos
mais tarde, em 1758. No ano de 1752, segundo o próprio Botelho de Matos, o mis-
sionário apostólico padre Antonio de Oliveira, primeiro visitador enviado pelo
arcebispo com licença para administrar o crisma, teria confirmado mais de 115 mil
cristãos nos sertões baianos161.

159. Joaquim Cajueiro de Campos, Doctrina da Constituição Synodal, op. cit., p. 18.
160. É importante lembrar que esta prática, embora não fosse muito frequente, não constitui uma inovação ou parti-
cularidade da Igreja da América Portuguesa. No já citado decreto pro Armenis do Concílio de Florença, afirma-se:
Legitur tamen aliquando per Apostolicæ Sedis dispensationem ex rationabili et urgente admodum causa simplicem sacerdo-
tem chrismate per episcopum confecto hoc administrasse confirmationis sacramentum. Cf. Heinrich Denzinger, Symboles et
définitions de la foi catholique, Paris, Cerf, 1996, §1318.
161. AHU, avulsos, Bahia, cx. 11, doc. 2010.

e stud o int r od utór io   67


Não será exagero dizer que, também no que diz respeito às disposições acerca
do sacramento da penitência, as Constituições do arcebispado da Bahia figuram
entre as mais completas e detalhadas do mundo português. Além de fazer uso dos
textos de outras constituições diocesanas portuguesas, dispondo sobre questões
relativas aos usos e práticas deste sacramento comuns à maioria delas, há nesta um
maior cuidado na forma de apresentar os elementos que compõem este sacramen-
to. Nota-se bem esta particularidade no título XXXIV, “Da contrição, confissão
e satisfação que se requer para o sacramento da penitência, e dos efeitos que ele
causa”162. Não pareceu suficiente ao redator enunciar os elementos constitutivos
do sacramento, contrição, confissão e satisfação, motivo pelo qual se detém na
explicação com algum detalhe sobre cada um dos elementos163. Particularmente in-
teressante é notar o que sustenta a respeito da contrição, que foi objeto de algumas
renhidas disputas teológicas pós-tridentinas. Nesta parte, o texto das Constitui-
ções assume um tom menos legislativo e aproxima-se mais de um estilo magistral,
em alguma medida semelhante ao de certos catecismos – embora, evidentemente,
sem fazer uso das perguntas e respostas tão características da literatura catequé­tica –
buscando ensinar a diferença existente entre atrição e contrição e exortando o fiel
a seguir o melhor caminho para alcançar a remissão dos pecados.
Primeiro, o texto apresenta uma definição sobre a contrição: “uma dor, pesar,
detestação e aborrecimento dos pecados, com propósito firme de nunca mais pecar
com a graça de Deus”. Logo em seguida, lembra que há duas formas de contrição,
perfeita ou imperfeita, também chamada de atrição. No caso desta, o arrependi-
mento e a vontade de não mais pecar têm origem na consciência da torpeza do
pecado cometido, bem como no medo das penas infernais a que está submetido.
Diferentemente, na contrição perfeita, ou pura e simplesmente contrição, a detes-
tação do pecado e a vontade efetiva de não mais cometê-lo se dá pelo fato de ser
ele uma ofensa a Deus “e por ser Deus quem é, digno de ser amado sobre todas as
coisas, por sua infinita bondade”.
O modo como os problemas relativos à contrição e à atrição são apresenta-
dos nas constituições não deixa espaço para suscitar qualquer debate relacionado

162. A maior parte das constituições diocesanas portuguesas, a exemplo das do arcebispado de Lisboa e do bispado da
Guarda, parecem contentar-se com uma sumária descrição dos elementos constitutivos do sacramento da penitência,
sem entrar em detalhes de natureza teológica a seu respeito. Para as constituições consultadas ver as notas 150 e 153.
163. Aqui as constituições seguem muito de perto o texto do Concílio Tridentino, sessão XIV, que trata da “Doutrina
sobre os santíssimos sacramentos da penitência e da extrema unção”.

68  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


com as controvérsias que opõem contricionistas e atricionistas164. Com efeito, as
explicações, bem como a posição defendida nas Constituições, que se caracteri-
za por um “contricionismo moderado”165, estão em plena conformidade com os
ensinamentos tridentinos – largamente citados ao longo do título XXXIV – que
também afirmam a superioridade da contrição sobre a atrição, sem, contudo, rejei-
tar a utilidade e validade da segunda para a plena e perfeita remissão dos pecados
no penitente. Outro elemento que parece corroborar a ideia de que o autor das
Constituições teria adotado uma tendência rigorista moderada é o fato de fazer
referência ao decreto de Alexandre VII, de 24 de setembro de 1665, que condena 45
proposições de uma doutrina moral mais laxista, como, no mínimo, escandalosas
(ut minimum scandalosæ)166.
Também no que diz respeito à Eucaristia, nota-se a utilização de um discurso
moderado que, não deixa de ser verdade, parece flertar, por vezes, com certa sen-
sibilidade rigorista. Duas atitudes, grosso modo, marcaram o posicionamento dos
homens de Igreja com relação a este sacramento. Havia aqueles que defendiam seu
uso frequente, pois tinham-no como um reforço para resistir ao pecado ou para
tentar livrar-se dele. Neste caso, a frequente comunhão era desejável na medida
em que seria benfazeja mesmo para aqueles que a recebiam em pecado. A ideia
defendida nas constituições baianas é bem diferente. O acento parece recair antes
sobre o malefício que pode trazer ao pecador receber a comunhão sem verdadeira
disposição para tanto: “para este sacramento, mais que para qualquer outro, deve-
mos ir em graça de Deus e com consciência pura e limpa de todo o pecado mortal,
lembrando-nos daquelas tremendas palavras de São Paulo, quando diz: que o que
come e bebe indignamente e em pecado este sacramento, come e bebe o seu juízo
e condenação” (§85). Sem entrar no mérito da discussão acerca da frequente co-
munhão – debate que se fez bastante acalorado após a publicação, em Paris, do De

164. Sobre o assunto ver, especialmente, Jean Delumeau, A Confissão e o Perdão, São Paulo, Cia. das Letras, 1991, e Jean-
Louis Quantin, Le rigorisme chrétien, Paris, Cerf, 2000.
165. Este contricionismo moderado fica explicitado ao final do §132, onde se lê: “Portanto, deve o penitente, para que a
sua confissão seja boa, ter algum destes dois atos de contrição ou atrição: e para melhor, ambos, ou o primeiro, que é
mais seguro”.
166. A referência aparece no §143 das Constituições: “Declaramos que não satisfaz este preceito quem, voluntariamente,
faz confissão nula e sacrílega, ou porque calou por medo ou vergonha algum pecado mortal, ou porque nele lhe
faltou alguma das partes essenciais deste sacramento. E que a opinião contrária, que alguns doutores tiveram, está
reprovada por escandalosa pelo papa Alexandre VII em 24 de setembro de 1665. E mandamos aos párocos que façam
esta advertência a seus fregueses na estação dos três domingos antes da Quaresma, para que venha à notícia de
todos, doutrina que a todos tanto importa, e não possam alegar ignorância”. Trata-se dos decretos da Congregação
do Santo Ofício de 24 de setembro de 1665 e de 18 de março de 1666, que condenam 45 proposições laxistas. Estes
decretos estão publicados em Heinrich Denzinger, Symboles et définitions, op. cit., §§2021-2065.

e stud o int r od utór io   69


la fréquente communion, de Antoine Arnauld, em 1643 – o texto baiano lembra não
ser conveniente aos laicos comungarem quotidianamente, a não ser que para tanto
tenham permissão do pároco, confessor ou bispo167.
Embora, na maior parte dos títulos consagrados à eucaristia e à penitência, o
texto das constituições trate de questões gerais a respeito destes sacramentos, fa-
zendo largo uso de suas congêneres do reino de Portugal, o legislador não deixa de
abordar alguns problemas específicos da realidade americana. É o caso, por exem-
plo, do que se diz a respeito da desobriga dos escravos. Vê-se que a dinâmica do
trabalho e da indústria açucareira “sensibilizava” a Igreja, fazendo com que esta fle-
xibilizasse a data-limite da desobriga para os escravos. Assim, lê-se no §86: “Visto,
porém, ser costume introduzido estender o termo da desobrigação aos escravos
até o Espírito Santo, em razão do preciso impedimento que têm nos engenhos de
açúcar, o qual não permite interpolação, que todos os senhores mandem seus es-
cravos à matriz para se desobrigarem desde o princípio da Quaresma até o Espírito
Santo”. Outro exemplo revelador de como a realidade escravista da América por-
tuguesa invadia o cotidiano eclesiástico/religioso vem exposto num dos casos em
que a absolvição era reservada à autoridade do ordinário. No §177, item VIII, lê-se:

Reter o alheio cujo dono se não sabe, que exceda a quantia de dez tostões.
Neste caso se compreende reter em seu poder escravos fugitivos, ou que se apartaram de
seus senhores, ou furtados; e também a compra, ou venda dos índios que são livres, quando
os cativam para os fazerem escravos, ou para outros fins injustos, ou para se servirem deles:
e isso se reserva, ou os índios sejam batizados ou não.

Não obstante a enorme importância que as sociedades de Antigo Regime con-


sagravam aos assuntos relacionados com a morte, a extrema-unção é o sacramento
que merece o mais breve tratamento nas constituições baianas, sendo tratado ao
longo de dois capítulos, que contam com quinze parágrafos. Nota-se aqui, como
noutros lugares da mesma constituição, a observância estrita do Concílio Triden-
tino – referido ao menos uma dezena de vezes ao longo dos quinze parágrafos. O
texto também segue de perto os ensinamentos e disposições contidos no concílio de
Florença, no Ritual Romano – citado cinco vezes – e em constituições diocesanas,
como as de Lisboa, da Guarda e do Porto – para mencionar apenas as mais citadas.

167. O texto das Constituições segue, neste caso, o disposto pelo decreto da Sagrada Congregação do Concílio, Cum ad
aures, de 12 de fevereiro de 1679, acerca da frequente comunhão. Cf. Heinrich Denzinger, Symboles et définitions, op.
cit., §§2090–2095.

70  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


A centralidade do clero na vida religiosa resulta, normalmente, num cuidado
especial com relação ao sacramento da ordem. Não é demais lembrar que o clérigo
é, normalmente, o ministro de todos – ou quase todos, como veremos mais adian-
te – os sacramentos. As Constituições baianas, muito detalhadas a respeito das
disposições sobre o sacramento da ordem, não trazem especificidades com relação
a outras congêneres do reino.
O sacramento do matrimônio é tratado ao longo de 13 títulos que se desdobram
em 65 parágrafos. Acompanha muito de perto as instruções tridentinas e as dis-
posições constantes noutras constituições diocesanas portuguesas sobre o assunto.
Mesmo no título 71, que trata do matrimônio dos escravos, o texto parece seguir,
mais uma vez, muito do que já havia sido disposto em constituições como as do ar-
cebispado de Lisboa, de Braga e da Guarda. Não obstante, é possível notar, no §303
das constituições baianas, sinais de preocupação com relação aos abusos cometidos
pelos senhores contra seus escravos. Com efeito, além de lembrar o direito que os
escravos tinham ao matrimônio, o texto é claro em sua condenação aos senhores
que fizessem uso de algum artifício – ameaças ou maus-tratos – para impedir o
matrimônio ou para separar aqueles que já se encontravam casados.
Uma outra questão nos chamou a atenção ao longo dos parágrafos que tratam
do matrimônio. Neste caso, não por conta de alguma singularidade em relação às
suas congêneres do reino, mas em consequência da mudança de postura que viria
a verificar-se na própria igreja baiana. Trata-se da posição assumida pelo redator
quanto à definição de quem seja o ministro desse sacramento. Sem que a Igreja
decidisse a esse respeito, havia teólogos que defendiam serem os próprios contra-
entes os seus ministros, bem como teólogos que julgavam ser o padre o legítimo
ministro do matrimônio. Seguindo a opinião de autores como Sanchez, que parece
ter sido também a mais adotada pelo clero português168, as constituições baianas
definem que são ministros do sacramento os próprios contraentes do matrimônio.
A posição restritiva das constituições, entretanto, não permaneceu como a única
aceite durante sua vigência na arquidiocese. O cônego Joaquim C. de Campos,
em sua Doctrina da Constituição Synodal do Arcebispado da Bahia, afirma: “têm os
nossos Eclesiásticos presentemente a escolha livre de uma das opiniões sem receio
de demérito em seus exames; porque sendo a opinião do autor de Teologia Moral,
por que se estuda no seminário, sobre o ministro do sacramento do matrimônio a

168. As constituições de Lisboa, Porto e Guarda adotam a mesma definição.

e stud o int r od utór io   71


dos teólogos que afirmam ser o pároco o ministro, e da sinodal a dos que afirmam
que são os mesmos contraentes”169.
Ao final deste rápido percurso em que foram analisados aspectos relativos à
vida sacramental contidos nas constituições da Bahia, fica patente que suas especi-
ficidades em relação às congêneres do reino devem-se menos à extensão da diocese
e das paróquias do que à realidade da sociedade escravista luso-americana, que
exigia do texto pormenorizações acerca do modo de lidar com os escravos.

Pelo seu legado à posteridade, não há dúvida de que D. Sebastião Monteiro da


Vide constituiu-se num dos mais importantes prelados da Igreja da América por-
tuguesa. O presente estudo procurou mostrar que, para além da sua atividade le-
gisladora, o arcebispo baiano teve destacada ação noutros campos, numa incessante
busca para dar maior lustro à mitra baiana – que, vez por outra, ter-se-ia mesclado
a um suposto desejo recôndito de administrar uma diocese reinol. Homem de
Igreja e de letras, Monteiro da Vide poderia ser alçado à condição de modelo de
bispo tridentino nestes trópicos. Como noutros prelados do seu tempo, suas pre-
ocupações pastorais com a decência dos templos e do culto, a administração dos
sacramentos, a catequização dos pagãos e dos recém-convertidos, bem como sua
vontade de enquadramento dos fiéis, demonstram a conformidade de sua ação
com o espírito tridentino. Além disso, fica também patente sua harmonia com
o espírito dos homens de Igreja de uma época em que elementos aparentemente
contraditórios, como erudição canônica e uma piedade que, em certas ocasiões,
chega a parecer ingênua, coexistiam sem maiores problemas. Sua capacidade de
trabalho, entretanto, singulariza-o. Com efeito, a construção do palácio arquie-
piscopal, a realização do sínodo e, notadamente, a redação e publicação das Cons-
tituições fazem de Monteiro da Vide o mais destacado arcebispo a ocupar a Sé
baiana ao longo do século XVIII. Redigidas em conformidade com os cânones
tridentinos e denotando a erudição e cuidado do seu autor, as Constituições não
deixam de fazer, aqui e ali, adequações à realidade da América portuguesa, em
particular no que toca à evangelização e à prática religiosa dos escravos africanos.
Monumento da legislação eclesiástica do mundo português, o texto que ora se

169. Joaquim Cajueiro de Campos, Doctrina da Constituição Synodal do Arcebispado da Bahia, op. cit., p. 102.

72  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


reedita é uma fonte fundamental para o estudo da história religiosa do Brasil dos
séculos XVIII e XIX.

normas da presente edição

Pareceu-nos mais prático e proveitoso facilitar a leitura deste texto atualizando-o


sem, contudo, deturpar o original. Foram assim modernizados no corpo do texto:
a pontuação, as formas ortográficas das desinências verbais, os patrônimos e topô-
nimos, o uso do til e dos acentos; suprimidas as maiúsculas desnecessárias e desen-
volvidas as abreviaturas. As formas gramaticais arcaicas foram mantidas, de modo
a não modificar em nada a ordem das palavras. Os poucos erros tipográficos foram
evidentemente corrigidos. Nas citações em latim, foram desenvolvidas as abrevia-
ções e, por não ser sistemática, eliminada a acentuação gráfica. Como mencionado
neste estudo introdutório, incorporamos aqui os sinais tipográficos da edição de
1853, que indicam os títulos e/ou parágrafos das Constituições, cuja doutrina achava-
se ab-rogada (†) ou derrogada (*) no período imperial.

3. compêndio bibliográfico das


constituições primeiras do arcebispado da bahia

As notas de pé de página das Constituições seguem os usos da época, e tinham como


objetivo, sobretudo, listar as fontes de referência do texto principal, e não – como
também é frequentemente o caso hoje em dia – fornecer dados complementares ou
digressões. Assim, as notas apresentam, primordialmente, referências bibliográficas,
legais e escriturárias, os pequenos trechos textuais que ali surgem servem apenas
para explicitar como tal texto foi utilizado ou que outra fonte o refere (apud, in
fine, loc. citat., refert ou quam refert, dicto, ubi proxime, ad ea quæ, facit, sic limitat…).
Outra característica comum do aparato referencial das obras da época – e que nos
levou a preparar este anexo – é o uso generalizado de abreviações dos nomes dos
autores e das obras, que se pressupunha de conhecimento geral entre os leitores
coevos interessados neste tipo específico de texto. Com efeito, poucas são as
obras que apresentam em suas primeiras páginas (ou ao fim, como fazemos hoje
em dia) ao menos uma lista de nomes dos autores citados. Aqui reside o grande
problema que algumas vezes, apesar de uma busca bastante completa em catálogos
on-line ou nos antigos catálogos de bibliotecas de fundos vastíssimos, como a
Biblioteca Casanatense, a Biblioteca Valliceliana e a Biblioteca Centrale Nazionale

e stud o int r od utór io   73


de Roma170, é impossível de solucionar. Devemos, assim, admitir que algumas vezes
não nos foi possível desvendar o mistério bibliográfico. Assim, a bibliografia aqui
apresentada não é exaustiva, embora tenhamos a pretensão de apresentá-la do
modo mais completo possível. É preciso dizer que não conseguimos identificar
alguns autores/títulos mencionados nas Constituições, como, por exemplo, Pariz
de Puteo, de ludo n. 12, cujo autor sabemos ser Paride dal Pozzo, mas que nos foi
impossível descobrir a obra referida171. Há também casos, como o da referência
Theophyl. Parochor. p. 2. art. 13, em que não foi possível identificar nem o autor nem
a obra. Vale também ressaltar que, para além das abreviações, a inexistência de um
meio claro de separar uma referência da outra também dificulta bastante a leitura
das notas, em todo caso para os olhares pouco exercitados.
O objetivo deste anexo é o de proporcionar ao leitor uma ferramenta que lhe
permitirá ter uma ideia das fontes utilizadas por Sebastião Monteiro da Vide para
redigir as Constituições do Arcebispado da Bahia e seus anexos. Com efeito, a tare-
fa de desenvolver todas as notas nos pareceu de uma meticulosidade que ultrapassa
os limites de nossa empresa. Tampouco nos pareceu factível a reconstituição da
biblioteca do arcebispo, mesmo que a bibliografia aqui apresentada, de modo geral,
não possa ser dela muito diferente. O grande problema, neste caso, seria conseguir
estabelecer as edições exatas que possuía ou que por ele foram consultadas: esta
tarefa é quase impossível, já que, apesar de existirem alguns raros casos172, Mon-
teiro da Vide não se refere a páginas ou fólios (numeração que, aliás, nem sempre
distingue uma edição de outra), mas sim, dependendo da estrutura de cada obra,
a livros, títulos, questões, tratados, partes, capítulos, seções, glosas, distinções, ar-
gumentos, dúvidas, rubricas, anotações, artigos, pontos, parágrafos e/ou números,
que, salvo raríssimas exceções, são invariáveis de edição para edição. Lembremos
apenas que as próprias Constituições estão divididas em livros, títulos e parágrafos,

170. A primeira é uma importante biblioteca fundada pelo cardeal Casanate, falecido em 1700, e cujos fundos contém
sobretudo obras de direito canônico e civil e de teologia moral. A Valliceliana é a biblioteca central dos Oratorianos
e possui fundos enormes de obras de teologia. O acervo inicial da Nazionale se compõe de nada mais nada menos
que a biblioteca do colégio da Companhia de Jesus de Roma, além de ter incorporado os fundos das bibliotecas de
muitas outras ordens religiosas romanas, quando os bens da Igreja foram nacionalizados depois da unificação da
Península italiana.
171. Como também nos seguintes casos em que, apesar do cotejamento com as obras de época, não foi possível localizar
exatamente a referência citada. “Sot. de Eucharist. lib. 7.” não integra nem do De iustitia e de iure nem os Commen-
tariorum de Domingo de Soto; ou “Vasq. de Pœn.”, que não faz parte nem da Opuscula Moralia, nem do De cultu
adorationis de Gabriel Vazquez.
172. Ao mencionar a obra de Giovanni Luigi Ricci, as Constituições referem-se a duas edições diferentes. P. ex.: “Aloys.
Ric. in prax. fori Eccles. decis. 750. in prima editione, et resol. 635. in secunda editione”. Já no caso da obra de Juan
Bernal Díaz de Lugo, diz tratar-se da “última edição”: “Bernard. Dias in Pract. c. 57. aliàs 60. in novissima editione”.

74  const ituiçõe s pr imeiras d o ar c ebispad o da bahia


e que sua paginação não varia entre as três edições de época, servindo assim igual-
mente como referência invariável. Tendo em vista estas dificuldades, adotamos o
critério de mencionar as edições que mais se aproximam da virada do século XVII
para o XVIII, sem podermos garantir que tenham sido elas as que ele realmente
utilizou. No caso dos textos patrísticos, em razão da impossibilidade de precisar
as edições de que fez uso173, bem como por conta da fiabilidade e facilidade para a
consulta do público interessado, indicamos, sempre que possível, como referência,
os textos publicados na monumental Patrologia Latina e Grega de Jacques-Paul
Migne174. Ainda no que toca à reconstituição da biblioteca de Monteiro da Vide,
o modo lacunar e por vezes errado pelo qual algumas referências são citadas pode
ser um indício de que ele não tenha consultado diretamente parte destas obras em
Salvador, durante o tempo em que preparou o texto, mas, sim, ter feito algumas
citações de memória, ou a partir de anotações de seus tempos de vigário-geral do
arcebispado de Lisboa. Citamos também, caso existam, edições recentes destes
textos, sobretudo no caso dos grandes compêndios como os códices legislativos,
tendo em vista a utilidade que a lista abaixo pode ter enquanto instrumento de
pesquisa sobre os textos citados nas Constituições.
São aqui citados, essencialmente, três tipos diferentes de fontes:
• fontes escriturárias, ou seja, referências bíblicas do Velho ou do Novo Testa-
mento, assim como textos dos Padres e Doutores da Igreja. Anexamos aqui as
citações de obras clássicas, que surgem no Catálogo dos Bispos;
• fontes legais, como o Corpus Iuris Civilis e o Corpus Iuris Canonici, as Ordena-
ções do Reino e as Constituições episcopais de outras mitras lusitanas, concílios
(sobretudo o tridentino), bulas e extravagantes papais, para além dos textos le-
gais de outras dioceses; e, finalmente,
• uma miríade de compilações e de textos interpretativos, de teor legal ou tocantes
à teologia moral, ou ainda algumas poucas referências a crônicas históricas.

173. Além da possibilidade de usar edições específicas de cada Padre ou Doutor da Igreja, Monteiro da Vide pode ter
feito uso de coletâneas de textos patrísticos como a Maxima Bibliotheca Veterum Patrum et antiquorum scriptorum
ecclesiasticorum primo’ quidem a’ Margarino de La Bigne … in lucem edita. Deinde celeberrimorum in vniversitate Co-
loniensi doctorum studio, plurimus authoribus, et opusculis aucta, ac historica methodo per singula sæcula quibus scriptores
quique vixerunt, disposita. Hac tandem editione Lugdunensi … locupletata, et in tomos 27. distributa, Lyon, 1677.
174. Jacque-Paul Migne (ed.), Patrologiæ Latinæ cursus completus, Paris, excudebat Migne, 221 vols., 1844–1864, e Patrologiæ
Græcæ Cursus Completus, Paris, excudebat Migne, 166 vols., 1857–1866. No caso dos textos que não encontramos ou
não foram publicados nas referidas obras, citamos apenas edições de época, seguindo o mesmo critério anunciado
para as referências bibliográficas em geral.

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