Estudo Dirigido
Estudo Dirigido
Estudo Dirigido
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
Belo Horizonte
2014
TATIANA PEDROZO DE SOUSA PINTO
Belo Horizonte
2014
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por aquele meio
convencional ou eletrônico, para fins de pesquisa, desde que citada a fonte
Aprovando em:
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________________
Instituição: UFOP
____________________________________________________________________
Instituição: UFMG
____________________________________________________________________
Instituição: UFMG
Aos meus pais que permitiram que eu me dedicasse
exclusivamente a escrita deste trabalho
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Antônio Teixeira pela orientação precisa e certeira; por ter me ensinado sobre
a pontuação necessária às proliferações do pensamento.
Aos meus pais por me dar um lugar no mundo e em seus desejos; pelo incentivo e
apoio durante a escrita desde trabalho.
A minha irmã Elisa com quem divido com empolgação as vãs filosofias.
Aos amigos que já se tornaram irmãos, Evandro, Lili, Filipe e Alessandro; Àquelas
que se tornaram as minhas pares e coringas para todos os momentos: Lu, Pri e Ya; A todos
com quais tive o privilégio de compartilhar a caminhada; Às maravilhosas amizades possíveis
a partir do mestrado.
Aos nossos Indutos da Semi-Liberdade, aos momentos que dividi com Marina, Maria,
Tati, Vinicius e Poli.
Em, “A Instância da letra ou a razão desde Freud”, (1957/1998) Lacan formaliza sua
abordagem estruturalista inscrita em seu retorno a Freud. Ao ressaltar a transposição, ou
Entstellung, como o mecanismo básico do sonho enquanto formação do inconsciente, Lacan
introduz seu conceito de significante. Assim, Lacan parte da leitura estruturalista, extraída de
Saussurre, colocando o significante como elemento principal para ler os conceitos
fundamentais da psicanálise freudiana, donde surge a ideia do inconsciente estruturado como
uma linguagem. Desta feita, o estruturalismo foi escolhido por Lacan como instrumento de
seu retorno a Freud.
Sabemos que o signo saussureano é composto por uma relação do significante com o
significado. Entretanto, ao tomar o significante, diferentemente do que propõe Sassurre,
Lacan sublinha a importância da barra que separa esses elementos que compõem o signo.
Desta feita o que leva o efeito de significação, que é a ultrapassagem da barra, passa a ser
dificultado e extremamente evanescente. Diante desse modelo, a cadeia pede o incansável
dizer do significante para gerar sentido. É preciso, portanto, supor um ponto aonde a cadeia se
ancora, para pensarmos um sujeito que não seja consumido pela angustia do falar sem
produzir sentido ou laço. Esse ponto de ancoragem é comumente tratado na teorização como
ponto de captonage (point of capiton) ou 'ponto de basta'.
Dado que a cadeia significante funciona continuamente, nosso intuito nessa
dissertação foi entender como ela se interrompe e quais os conceitos relacionados a esse
mecanismo. Para isso demonstramos como Lacan o define no seminário sobre 'As psicoses'
(Lacan J. , 1955-1956/1985) e como o reformula a partir do seminário sobre 'A identificação'
(Lacan J. , 1961-1962/ 2003) , com a noção de traço unário. Relativamente a esse último
conceito, o de traço unário, consideramos que ele tornou-se o centro desta dissertação, desde
que foi nosso objetivo principal cernir seus pressupostos e implicações.
Palavras chave:
Traço unário, Psicose, Nome Próprio, Ponto de Basta, Ponto de Capton, Significante, Signo,
Saussure, estruturalismo.
ABSTRACT
In "The Instance of the Letter in the Unconscious, or Reason Since Freud" (1957/1998) Lacan
formalizes his structural approach inscribed in his return to Freud. Underlining transposition,
or Entstellung, as the basics dream's mechanism while a unconscious formation, Lacan
introduces his concept of signifier. This way, Lacan departs of the structuralist view, extracted
from Saussure, locating the significant as the main element for reading the key concepts of
Freudian psychoanalysis, from where the idea of unconscious structured as a language arises.
Moreover, structuralism was chosen by Lacan as an instrument for his return to Freud.
We know that saussurian's sign is composed of a relationship of signifier to signified.
However, taking the signifier, despites of what's proposed by Saussure, Lacan underlines the
importance of the bar that separates these elements that compose the sign. Thus, that wich
leads to the signification effect, the bar's surpassing, is hampered and extremely evanescent.
With this model, the chain asks for the tireless signifier's saying to create sense. Therefore, a
point where the chain anchor itself is needed in order to think a subject that is not consumed
by anguish produced by speaking without generating sense or social bond. This anchoring
point is commonly treated in the theorization as "button ties" [points de capiton], or 'quilting
point'.
Since the signifier chain runs continuously, our aim in this dissertation was to
understand how it stops and which concepts are related to this mechanism. In order to do so
we showed how Lacan defines this mechanism in the seminar on the psychoses (J. Lacan,
1985 [1955-1956]) and how it has been reworked from the seminar on Identification (J.
Lacan, 2003 [1961-1962]) with the notion of unary trait. For this last concept, the unary trait,
we consider that it became the center of this dissertation, since it was our main goal sift its
assumptions and implications.
Keywords:
Unary trait, Psychosis, First Name, Quilting Point, Points de Capton, Signifier, Sign,
Saussure, Structuralism.
LISTA DE TABELAS
ABSTRACT ............................................................................................................................... 9
LISTA DE TABELAS............................................................................................................. 10
SUMÁRIO ................................................................................................................................ 11
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12
PRÓLOGO ............................................................................................................................... 15
2.4 Conclusão........................................................................................................................ 92
Essa dissertação é fruto de uma pergunta a respeito do conceito de traço unário e suas
nos forçou a fazer uma incursão pelos seminários 3 e 9 em que, marcadamente, Lacan dá
psicose, percebemos que era necessário, anteriormente, cernir a ideia de traço unário, seus
'Ponto de Basta', perguntando sobre sua relação com o traço unário. Enquanto tentávamos
esclarecer o conceito de traço unário, por outro lado, acabamos por perceber que ele é um
importante operador para uma discussão epistêmica, havendo nesta dissertação muito espaço
uma abordagem nomeadamente estruturalista para tomar a leitura de Freud. Desta feita,
podemos dizer que foi em concordância com o próprio pai da psicanálise que Lacan sugere tal
certamente subversiva feita por Lacan tanto de Freud quanto do estruturalismo, ressaltando os
artifícios utilizados por Lacan para alicerçar sua leitura enquanto um “retorno a Freud”. Neste
mesmo capítulo, discorremos sobre a crítica feita à abordagem lacaniana e à resposta a ela
dada. A crítica de Derridá e de Nancy & Lacoue-Labarthe é de que apesar de apresentar um
sistema em que figura a autonomia do significante ligada a certa autonomia do sujeito a ele
característica, dizendo que a cadeia retorna a um ponto. Fizemos isso de modo a definir o
conceito de traço unário relacionando-o com os temas do qual ele tratou nos textos a
"instância da Letra ou a razão deste Freud" e no comentário que ele faz sobre "a carta
para verificar sua relação com esses temas. Assim, para entender o conceito, neste capítulo
diferença como única propriedade, o que implica na redução das qualidades. Em seguida
contrapomos a abordagem de Jaspers com aquela de Lacan em relação à doença mental grave,
hermenêutico. Por outro lado, identificamos Lacan como um autor que adere ao
estruturalismo e com isso consegue propor uma abordagem mais profícua da psicose.
relevo merecido à tarefa do terceiro capítulo, no qual tentamos cernir qual o mecanismo de
clássica (conforme apresentada por Foucault M., 2000b), cujo paradigma foi o texto
conhecido como Lógica de Port Royal. Tentamos identificar as diferenças entre este último e
junção entre pensamento e som que permitia a precipitação do signo, que é o elemento
traço unário. Essa aproximação permitiu esclarecer as operações de fundação do traço unário.
brevemente os autores comentados por Lacan e que são referências tradicionais sobre esse
ponto. Demos maior importância à teorização de Kripke, ao entorno desde tema, desde que
PRÓLOGO
precoce da teorização lacaniana, Hyppolite erige instrumentos teóricos para que já se leia algo
justifica-se uma abordagem pelo significante enquanto inscrita numa tentativa de retorno a
Freud, em consonância com o esforço empreendido por Lacan naquela época. Podemos
resumir brevemente a leitura de Hyppolite nos seguintes termos: a partir de uma operação
Hyppolite “a negação vai desempenhar um papel, não como tendência para destruição, nem
tampouco no interior de uma forma de juízo, mas como atitude fundamental de simbolicidade
Hyppolite. Neste texto, entretanto, ele deriva da linguística saussuriana o que seja o conceito
de significante com o qual ele vai operar. Conserva mesmo assim a ideia de que seja um
elemento que se caracteriza justamente por ser a presença de um vazio, agora, a partir de
Saussure enunciada como materialidade acústica, ao qual não está relacionada a priori
nenhuma significação. Conforme dizíamos, ele faz essa localização do que seja o significante,
para disso extrair as consequências, sendo a principal, neste texto, uma ideia de inconsciente
16
funcionamento significante conforme ele mesmo propõe, este agora retirado de sua relação
biunívoca com o significado, como era desenvolvido por Saussure. Conforme expõem Nancy
Assim sendo, para além de propor que as palavras não se ligam aos seus referentes, que foi a
inovação saussuriana, Lacan defende que o significante não se liga nem mesmo ao
significado, sendo, portanto, o puro elemento diferencial “a diferença dos lugares, a própria
possibilidade de localização” (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1991, p. 50). Desta feita, Lacan
radicaliza a posição estruturalista da própria linguística, pois entende que nada assegura o
sentido a não ser a posição de um significante em uma cadeia linguística. Assim sendo, tendo
em vista a necessidade de assegurar algum sentido, Lacan começa a trabalhar com o conceito
de significância.
O conceito de significância é o que garante que haja significação sem que a autonomia
fechada.” (Lacan J. J., 1998 [1957], p. 501) Ou seja, os significantes só produzem sentido se
colocados uns em relação aos outros, seguindo certas leis, e para tanto há a necessidade de um
encadeamento dos significantes. Podemos definir a significância como o processo por meio
do qual o significante toma sentido neste encadeamento, o que se caracteriza por uma
muito bem ilustrada por Lacan no seguinte excerto: “se vocês tivessem uma orelha
significância é destituída pelo encadeamento significante, mas também é por ele promovida.
significância desliza somente ao longo da barra” (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1991, p. 71)
relacionada ao lugar do sujeito na teoria lacaniana. Lacan nos diz que o sujeito é o que um
que, assim como o significante, o sujeito não tem nenhum referente. Desta feita, o sujeito
lacaniano não tem contrapartida a não ser no discurso, na cadeia significante, portanto, carece
de relação com uma pretensa subjetividade, e é destituído de estatuto. Por outro lado, o sujeito
é o que se depreende da relação dos significantes em cadeia, que, conforme dizíamos acima, é
amplamente articulado à possibilidade de querer dizer outra coisa. Seria dizer que o sujeito só
relação aos lugares e às formas como o significante se encadeia, porque o significante tem a
propriedade de deixar dizer outra coisa, não estar associado biunivocamente a um conceito,
como quis Saussure. A palavra pode dizer outra coisa do que denotaria se tomarmos o
consenso linguístico.
18
A partir dessa colocação, percebemos que uma mesma propriedade é o que baseia o
diferença dos lugares, isento de toda significação, mas capaz de tomá-la, pois é uma
mais um significante pode querer ser outra coisa. Há uma autonomia no funcionamento
estrutural do significante que é o que permite que o sujeito se instale. Esse sujeito, portanto, é
lugar vazio” (Deleuze, 1973, p. 300). Tanto o sujeito como a linguagem se baseiam na
propriedade do lugar vazio, de um buraco, que é, entretanto, material. Lacan chega a notar
isso como -1, que pode ser lido como “uma ausência em seu lugar”: a ausência notada com
um sinal de menos e o lugar com o sinal de 1. Por isso temos que um sujeito é instituído no e
pelo significante, na medida em que a estrutura se baseia numa propriedade que permite a
Reiteramos, neste ponto, que neste momento da teorização, em seu retorno a Freud,
último, “A Instância da Letra no Inconsciente” (1998 [1957]), Lacan produz uma teoria do
registro simbólico, que é composto pelo material significante. Para Lacan, neste momento, o
A criancinha que vocês veem brincar fazendo um objeto desaparecer e tornar aparecer,
e que se exercita assim na apreensão do símbolo, mascara, se vocês se deixam fascinar
por ela, o fato de que o simbólico já está ali, imenso, englobando-o por toda parte, de
19
que a linguagem existe, enche bibliotecas, transborda, rodeia todas as suas ações(...)
(1955-1956/1985)
significante, e que, portanto, sempre há sujeito. Isso, entretanto, não garante que para todo
sujeito a fala seja plena, um conceito que tentaremos desenvolver a seguir, ao tratar da
busca de significação” (Lacan J. J., 1998 [1957], p. 505). A partir de tal proposição se deduz
que a significação sempre resta para além, o que escravizaria o sujeito a falar incessantemente
sem que se possa gerar um sentido. É este o caso do psicótico, por isso Lacan diz que ele fala
como uma máquina, uma fala vazia da possibilidade de criar sentido perene. Diante desta
Admitimos, portanto, que, para que haja comunicação e laço social, é preciso haver
também um ponto de consenso, um ponto onde se possa ter certeza de que não há engano, de que
pura diferença, seu fundamento não estando ligado ao objeto, mas à ausência de acesso à
coisa, temos que, para haver comunicação e uso do significante em sua vertente denotativa, um
ponto de consenso deve ser fabricado. Tal ponto de consenso diz respeito a uma operação de fé,
Desta feita, há elementos para resumir a tese principal de Lacan no Seminário 3 nos
seguintes termos: “O sujeito dispõe de todo um material significante que é a sua língua,
materna ou não, e dela se serve para fazer passar no real significações. Não é a mesma coisa
20
ser mais ou menos cativado numa significação e exprimir um discurso destinado a comunica-
la.” (1955-1956/1985, p. 78). Ou seja, para todos está colocado o simbólico, em função da
imersão do humano neste universo, mas só alguns foram cativados por um significante, só em
alguns o significante se inscreve, podendo funcionar como um ponto de basta, é o caso dos
neuróticos. Os neuróticos são aqueles que têm a possibilidade de palavra plena em função de
o significante ter sido inscrito, criando o ponto de basta que permite a estabilização dos
significados. Por causa disso Lacan nos diz que a neurose é a palavra que se articula (1955-
A definição clássica da psicose é uma versão dessa teorização que acabamos de expor,
forclusão (Lacan J. , 1955-1956/1985, p. 360), querendo dizer de algo que não faz sentir seus
efeitos por ter sido posto para fora. Portanto, tal significante forcluído, não inscrito no
Neste momento, é preciso esclarecer qual seja a natureza deste tão falado ponto de
basta, e para tanto vamos explorar as figuras que Lacan utiliza no seminário sobre as psicoses
conceito em Freud nos é cara: se trata de uma primeira introjeção no organismo, pelo efeito
inscrição da linguagem no corpo do sujeito, criando a noção de dentro e fora corporal. Assim
sendo, já no Seminário 3 Lacan nos diz que há um significante que diz respeito à inscrição
21
neurose esse significante Bejahung é recalcado, mas não deixa de fazer sentir seus efeitos.
Lacan também utiliza o termo Significante Primordial. Tal significante, o autor nos
significantes de base que permitem a organização dos demais. A partir desses, tem-se a chave
para a explicação das mais diversas situações extraordinárias. Ou seja, a partir do significante
Um resumo: “que haja significantes de base sem os quais a ordem das significações humanas
não poderia estabelecer-se, nossa experiência nos faz sentir com muita frequência” (Lacan J. ,
1955-1956/1985, p. 227)
Em outro trecho, trata-se diretamente do Ponto de Basta, sem, entretanto, nomear esse
conceito. O autor nos chama atenção à propriedade acima citada de que a significação sempre
remete a outra significação, ou, que o significante sempre remete a uma coisa que está adiante
ou que volta sobre si mesmo. Cabe aí a pergunta anunciada já anteriormente neste projeto, que
antecipa a necessidade de um ponto de parada. Neste momento, Lacan responde com clareza,
o discurso para “sempre no nível deste termo problemático chamado o ser” (1955-1956/1985,
(1955-1956/1985, p. 161).
Aqui cabe um esclarecimento sobre esse Ponto de Basta que organiza a cadeia e que
realidade discursiva em que o sujeito pode circular com tranquilidade visto que se baseia em
recorrente nas definições do conceito de Ponto de Basta dadas nos parágrafos acima, a noção
22
de real. Queremos explicitar, porque Lacan sempre fala do real e para tanto recorremos a
premissa da dúvida elevada à condição de método, Descartes teve de recorrer a Deus. Tal
autor levanta a hipótese de que poderia haver um gênio maligno a enganá-lo, incutindo-lhe
pensamentos falsos. Deus é colocado no lugar de quem afiança a não ocorrência disso, mas
somente na medida em que é um elemento que não poderia ser acessado pelo método que ele
garante. Ou seja, Descartes precisou lançar mão de um elemento exterior, incognoscível para
o homem, para garantir o conjunto do conhecimento, para construir o conjunto filosófico que
funda o método e, como consequência, a ciência moderna. Ou seja, o que permite conhecer é
esse irreconhecível chamado real como um ponto em que não há engano: “a noção de que o
real, por mais delicado que seja de penetrar, não pode fazer velhacarias conosco, não nos
ponto de basta, o que leva o psicótico a se comportar como uma màquina de fala, um refém da
linguagem e produção de sentido. Isso acontece porque apesar da não inscrição da linguagem
no psicótico, que é essa parte da simbolização que Lacan nos diz não acontecer, o psicótico
tem acesso à linguagem pela invasão desta em seu psiquismo. Ou seja, pela ausência de
Bejahung - que no neurótico é inconsciente em função do recalque, mas está ali presente -
psicótico não houve Bejahung, o que segundo Rabnovich é uma interpretação coerente com o
que se propõe no texto “reposta ao comentário de Jean Hyppolite...” (Lacan J. , 1954/ 1998).
Ali a Verwerfung confunde-se com a Austossung, como aquilo que “é exatamente o que se
23
opõe a Bejahung primária e constitui como tal aquilo que é expulso” (Lacan J. , 1954/ 1998,
p. 384). Neste momento, a Verwerfung é a total supressão da Bejahung, que não aparece em
seu caráter simbólico, visto que o que retorna como alucinação não é simbolizado. Seria então
possível dizer que, no caso do psicótico, há a ausência deste significante no real que tem a
quem esse personagem desenvolve uma relação erótica. Entretanto, é esse mesmo Deus, que:
lhe diz a palavra significativa, aquela que põe as coisas nos seus lugares, a mensagem
divina por excelência, ele diz a Schreber, o único homem que resta após o crepúsculo
do mundo – Carcaça. (...) Em torno deste cume, todas as cadeias da montanha deste
campo verbal são desenvolvidas para vocês por Schreber numa perspectiva magistral
(Lacan J. , 1955-1956/1985, p. 118)
notado pelo termo Verwerfung. Esta incoerência teria sido descrita também por Balmès
(2000, pp. 52-97 apud Safatle V., 2006) que nos diz que de um lado a Verwerfung, é
sinônimo da Ausstossung, a expulsão que constitui o real como o que está fora da
Podemos resumir esse problema teórico nos seguintes termos: enquanto Lacan estava
posterior a essa, da entrada do sujeito na linguagem. Nesta época, segundo ressalta Safatle, ele
parece mais interessado em “insistir numa espécie de significante fora da cadeia simbólica
que não poderia ser integrado ao espaço simbólico do Outro” (2006, p. 52). Entretanto,
poderíamos introduzir nossa hipótese de que é quando Lacan introduz a ideia de traço unário,
isolando a experiência de entrada na linguagem, que este autor pode sistematizar com mais
Dizíamos, portanto, que no Seminário 3, Lacan não se focou tanto nos melindres da
questão da inscrição do simbólico no organismo porque sua intenção principal era estabelecer
(2009). Neste seminário, então, fica especificada, dada a flutuação infinita do significante em
constrói que esse mesmo termo que fundamenta o funcionamento significante, estando
apagado, é o que confere uma estabilidade, construída entre dois significantes, funcionando
se há ou não simbolização no psicótico, mas sim que o significante que organiza a cadeia deve
servir como organizador da cadeia, aquele que notamos acima como carcaça, Lacan nos faz
observar que graças a esse Deus schreberiano, “subsiste alguém que pode dizer uma palavra
verdadeira, mas essa palavra tem por propriedade ser sempre enigmática” (1955-1956/1985,
25
p. 119). Ou seja, o significante organizador schreberiano existe, dito por Deus, entretanto não
ponto mítico de sua fundação - o que entendemos poder ser esclarecido com o conceito de
simbólico em torno de um significante que se apaga. Para ilustrar a importância deste intento
Grécia Antiga, Solon, que pode funcionar como uma alegoria sobre a constituição subjetiva.
função do embate entre os grandes donos de terra, Agathoi, que detinham o poder político, e
os Kakoi, aqueles que nada possuíam e aos Agathoi eram submetidos. Para resolver essa
querela, Solon se serve de uma figura sobre a qual era bem informado, a figura do fundador
nobre e distinto, ou seja, eram homens cuja natureza era heterogênea àquela cuja civilidade
criariam. Assim, em torno da fundação, cada cidade buscava se diferenciar relacionando sua
origem com um nome do passado ao entorno do qual se construía um marco inicial. Erigia-se
um herói fundador que estabelecia “uma ponte entre uma fase pré-politica e uma fase humana
humanos. A partir deste lugar, enuncia as leis que organizariam o campo político, sem
beneficiar nenhum dos lados políticos em demasia, nem mesmo o dos Agathoi, classe
societária a qual pertencia. Entretanto, ao fazer isso, Solon se dá conta de que não poderia
habitar essa cidade, visto que deste lugar que calcou para si, facilmente se tornaria um tirano.
26
Assim, ele se retira da cena citadina, o que o torna um legislador solitário. A sabedoria
Desta alegoria, percebemos que aquilo que funda, sendo um elemento heterogêneo ao
fundado, precisa ser retomado para organizar o campo que institui, mas quando o é, deve ser
apagado. Retomamos aqui que o traço unário tem essa dimensão heterogênea em função de
seu parentesco com o real. Na medida em que enunciamos tal conceito, é possível perceber,
seja, a própria relação com o real é o que permite ao traço unário fundamentar a linguagem.
Com esse conceito localizamos a entrada do sujeito na linguagem, que é o que não está claro
no Seminário 3 e, por outro lado, como essa inscrição, ela própria, provê o elemento a ser
Lacan sempre se remete ao traço unário como um significante, mas certamente não é
qualquer um, já que está fora da cadeia e não aceita predicações. É um significante, “um traço
que se introduz no real, perfurando-o” (Vorcaro, 2004, p. 78). Por ter essa relação com o real, tal
significante guarda sua propriedade de ser sempre vazio, um vazio que os outros significantes
tentarão retomar. Tentar-se-á sempre repetir essa diferença, de modo a recuperar o objeto
perdido que ela marca: “o comportamento se repete como tal para fazer ressurgir o número que
significante, pois guarda relação com um ponto excluído do conjunto significante, mas
garantidor de tal conjunto e seu organizador, por lhe conferir a propriedade principal, a de ser
A hipótese que aqui levantamos gira em torno de admitir que o ponto em relação ao qual
unário, este que, excluído da cadeia, carrega um ponto de interseção com o ser no entorno da
qual a mesma cadeia se organiza. Assim, nossa pergunta gira em torno da própria asserção
lacaniana: “pode haver um significante inconsciente. Trata-se de saber como esse significante
No caso da neurose, algo do nível de uma amarração ocorre em relação ao traço unário.
uma solução padrão em que há uma amarração desse ponto de capiton– como é considerado o
traço unário – por meio de uma identificação no nível do ideal do eu, ou seja, uma identificação
simbólica.
Esse tipo de solução padrão não vigora na estrutura psicótica. Nesses termos,
considerando que o traço unário, por funcionar como esse ponto em que não há trapaça, é um
operador importante para pensar a solução neurótica, podemos então nos perguntar sobre o
Aqui nos voltamos a uma vertente relacionada a essa lógica que tentamos cernir,
relativa a este elemento heterogêneo ao campo e pode funcionar como Ponto de Basta. Essa
vertente se apresenta no estudo dos nomes próprios, no que tange o seu caráter único em
relação aos outros termos da língua. Nesse sentido, Saul Kripke (2001) traz contribuições
próprias sobre o assunto, além de apresentar as teorias de Frege e de Bertrand Russell como
aquelas que fazem a tentativa de igualar o ‘nome’ a uma descrição abreviada. Tal descrição
dessa teoria: a descrição toma por base as características imputadas ao objeto, mas toda
característica é contingente. Igualar o nome à descrição faz com que, diante de toda mudança
28
na contingência, o nome não tenha mais referente. Kripke (2001) propõe, diante dessa
dificuldade preliminar, acompanhada de muitas outras que ele desenvolve em sua obra
NamingandNecessity, uma teoria acessória àquela que ele nomeia como teoria Frege/Russell.
Ele nos propõe tratar o nome como um ‘designador rígido’, necessariamente o mesmo em
todos os mundos possíveis, sendo que o nome seria referenciado a uma breve descrição. A
utilização do termo referência para designar a relação do nome com a descrição é o que
possibilita o giro teórico, pois o nome não é sinônimo da descrição, essa serve somente para
permitir, num dado instante, selecionar um objeto para relacioná-lo ao nome. Se o objeto não
tiver, em um tempo segundo, a característica que a ele foi relacionada, isso não invalida a
propriedade do nome.
Com essa pequena formulação, Kripke provoca uma revolução epistemológica, já que:
1) Estipula que uma propriedade contingente, como uma descrição, pode ser usada para
determinar um referente. Isso quer dizer que Kripke propõe que podem existir a prioris
metafísica inquestionável sirva como referente para um operador da linguagem como o nome.
Kripke, portanto, demonstra que não é necessário ter acesso a verdades metafísicas para
ter uma referência à linguagem. Sinaliza somente que, ali aonde ela se relaciona a um
particular, há algo que não muda, que não é traduzível. Admitimos que o seguinte excerto
traduza sua discordância geral em relação às teorias tradicionais: “O que eu de fato nego é que
um particular é nada mais do que um “pacote de qualidades”, o que quer que isso possa
um grau de abstração ainda maior, não um particular”1 (Kripke, 2001, p. 52; tradução nossa)
Destaca-se, então, que a diferença do nome próprio em relação aos outros termos na
língua é a sua propriedade de designar as coisas particulares como tal, fora de toda descrição.
1
“What I do deny is that a particular is nothing but a ‘bundle of qualities’ whatever that may mean. If a quality is
an abstract object, a bundle of qualities is an object of an even higher degree of abstraction, not a particular”
29
Ou seja, um nome próprio seria aquilo em relação ao qual não é possível fazer nenhuma
relação, nenhuma predicação. Nas palavras de Lacan, que são afins às de Kripke, há uma
“afinidade justamente do nome próprio com a marca, com a designação direta do significante
como objeto” (Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 94). Não a toa, Lacan, no Seminário 9,
um a priori não se relacionar com um referente. Assim sendo, tal conceito permite pensar um
Ponto de Basta para a cadeia significante que não desminta a propriedade principal do
significante explicitada no começo deste trabalho: a de ser pura diferença, não vinculada a
características bastante afeitas, a titulo de conclusão, resumimos nosso intento como uma
CRÍTICA DE DERRIDA
1.1 Introdução
diversa o que um primeiro signo quis fazer repetir em um segundo, o conhecimento faz
proliferar indefinidamente a cadeia de signos, uns relacionados aos outros. Tal proliferação,
ao invés de dar mais claridade àquilo sobre o que versa, liga o novo signo a uma antiga
verdade que o irradia, verdade essa escondida, mas que pela presença das relações de
similitude se dá a ver. Ou seja, se podemos crer que é certo que existem 7 planetas no sistema
solar, é devido a confirmação analógica concedida pela presença de 7 furos em nossa cabeça,
dado este colocado ali de modo que pudéssemos decifrar a verdade do mundo. Na forma da
estando na floresta, na concha cresce o líquen e no cervo crescem galhos, explicando-se assim
o exemplo de que pela simpatia da terra em relação à terra, o grão tende a cair, e por antipatia
31
mundo, na confiança de que eles nos são assinalados dadas as relações de similitudes que
podemos achar, a hermenêutica, nos permite interpretar esses signos. E, mais importante, se
podemos ter certeza de que há essa similitude, é que a divindade, advertida de nossa
racionalidade, pôs ali os signos para serem interpretados levando-nos a verdade: “Mas Deus,
para exercitar nossa sabedoria, só semeou na natureza figuras a serem decifradas (e é nesse
sentido que o conhecimento deve ser divinatio), enquanto os antigos já deram interpretações
que não temos senão que recolher.” (Foucault M. , 2000a, p. 45) Deste pondo de vista, a
natureza comunica, o objeto fala, “o discurso dos antigos é feito à imagem do que ele
Não longe disso está a ideia de Sperber, linguista que constituiu um artigo relativo à
conservativa (relativa aos pedidos de comida) de todas as palavras. Ele prevê que, como a
linguagem tem o objetivo de comunicar, e o ser humano teria que comunicar para resolver
duas necessidades básicas, todas as palavras teriam origem em duas formas primitivas de
tradução nossa).
Lacan nos diz que de fato existem “zonas nas quais a significação sexual progride feito
bola de neve, (...)rios nos quais habitualmente ela se espalha, e um sentido que, como vocês
viram, não é indiferente, e especialmente escolhido para que se ponha em uso, a fim de atingi-
los, palavras que já foram empregadas na ordem sexual” (Lacan J. , 1959-1960/2008, p. 202),
2
The child’s drawing his mothers attention to his need of food and e male’s need to draw the female’s attention
to his need to mate.
32
mas uma explicação filogenética deste fenômeno é inscrita em uma tradição analógica, onde
existe uma ligação natural entre o significante e o significado. Aqui, novamente estamos no
palavra estava associada à verdade, então o estudo filogenético destas mesmas palavras levar-
nos-ia a realidade indebatível. No caso de Sperber temos que a verdadeira significação das
palavras se origina na constituição biológica e nas necessidades físicas. No caso dos antigos,
sua crença na correspondência entre as palavras e as coisas está baseada no fato de que as
primeiras palavras foram no mundo colocadas por Deus “a linguagem era um signo das coisas
destruída em Babel para a punição dos homens” (Foucault M. , 2000a, p. 49). Novamente,
neste tipo de raciocínio a verdade é passível de ser recolhida no mundo, como um elemento a
Podemos ler a querela teórica entre Jung e Freud no terreno desta discussão. Jung,
anterior a neurose, ou seja, anterior a presença do sujeito, antecede uma verdade natural em
relação a qual se desenvolve a personalidade humana. Segundo esse autor, há na natureza algo
que antecede a significação individual, o mito individual. Assim como em Sperber, segundo o
qual a comunicação se baseia na insistência do sexual sendo explicada em sua gênese pela
necessidade básica de copula, toda a significação que o sujeito pode soerguer está em
arquétipos. Para Jung, seguindo a construção dos mitos, fazendo em relação a eles uma
arqueologia, se pode obter signos que comprovam a verdade autoevidente, que a própria
símbolos a serem interpretados. Não a toa, tempos depois de seu rompimento relativo à Freud,
Jung inicia uma viajem pelo mundo, no período de 1924 à 1934, a fim de recolher nas culturas
espalhadas (Egito, palestina, Uganda, Quênia, Monte Elgon, Novo México, Índia, etc.) a
que se espelha, Lacan demonstra com uma alegoria. O que parecia fazer proliferar nos dá
acesso a sempre mais do mesmo, ou, “o saber do século XVI nos condenou-se a só conhecer
sempre a mesma coisa, mas a conhecê-la apenas ao termo jamais atingido de um percurso
imaginária? Lacan propõe que imaginemos umas maquininhas. Cada uma dessas maquininhas
estaria ligada à imagem do que a outra vê, o que funcionaria como um guia para ela se
(Deleuze, 1973), que não permite que a interpretação sígnea se prolifere de tal maneira a
manter preso o conhecedor numa atividade incessante e despropositada, que, entretanto, leva
sempre ao mesmo núcleo. Freud, conforme cita Regnault, avisado deste efeito, adverte a Jung
relativamente ao mesmo:
consiste em não tomar toda a fachada para interpretá-la, como em uma alegoria, mas
restringir ao conteúdo, perseguindo a gênese dos elementos, e não se deixar induzir em
erro por todos os remanejamentos, as reduplicações, as condensações etc. mais tardios
(Freud & Jung, 1974, p.75, conforme citado por Reugnot 2010, p. 96)
simbólica. Esse terceiro registro é irreal e inimaginável. Trata-se de um virtual que não deixa
34
de fazer sentir seus efeitos. Define-se pela “natureza dos elementos atômicos” (Deleuze, 1973,
p. 275) e as leis que regem seu posicionamento. Esses elementos não se definem por
realidades pré-existentes, ou seja, não têm referente. Aqui por exemplo, se elimina a
possibilidade de incluir a pesquisa de Sperber no campo simbólico, já que ele pretende achar
forma, o elemento simbólico não se liga a imagens ou conceitos, onde se deduz que a
principal característica do significante é ser a pura diferença, e seu sentido só pode ser obtido
dada a sua posição em relação aos outros elementos, havendo aí o principio da determinação
recíproca.
Vislumbra-se aí que o mais importante dos registros, daquilo que nossa razão registra,
não é nem aquilo do qual é possível produzir a imagem, o imaginário; nem aquilo que tem
consistência, e tende a fazer 1, o real; O que permite antever uma estabilidade para a ciência é
o simbólico, composto por elementos que não tem referente na realidade - na percepção - nem
alicerçamento em algo que obtemos pela percepção, ou algo que obtemos pelos textos e
sentidos que leem o mundo, para que de fato fosse possível uma estabilidade no
conhecimento. Tal manobra pode ser chamada de golpe que separa a verdade do saber, ou
seja, aquilo que percebemos e imaginamos não serve para sustentar a razão. O que sustenta a
principal característica é aquela de diferir dos outros elementos, são assim elementos
discretos.
ciência é a queda do referente. Nosso intuito agora será como Lacan se apropriou dessa
Ora, conforme nos demonstra Teixeira (2007), Freud era um cientista. Sua intenção
construção é avaliada conforme sua capacidade de tornar pensável seu objeto, estando,
portanto, constantemente sujeito a testes e a revisões (Freud, 1999, t. XIV, pp. 218-
19). O que Freud critica, por conseguinte, na especulação filosófica, seria o ideal de
uma adequação entre o pensamento e a coisa representada em que se orientam as
interpretações dos signos no interior de uma estrutura virtualmente completa.
(Terixeira, 2007, p. 139)
Ou seja, o objetivo maior seria obter uma teoria que fosse fecunda, explicasse o objeto, no
Desta feita, podemos dizer que foi em concordância com o próprio pai da psicanálise
que Lacan sugere tal aproximação estruturalista, a qual ele chama de retorno a Freud. No
feita por Lacan tanto de Freud quanto do estruturalismo, nosso intuito agora é ressaltar os
artifícios utilizados por Lacan para alicerçar sua leitura enquanto um “retorno a Freud”.
descarta uma faceta do conceito de inconsciente que por muito tempo caracterizou a
Se o que está em jogo, portanto, não é o caráter tópico do inconsciente, ou seja, de ser
um lugar de abrigo para aquilo que não acede à consciência, trata-se de saber o que mais
36
nos parece que tal teórico esteve mais preocupado com a forma de funcionamento; os
2005), uma incompatibilidade entre dois tipos de processos. Esses dois tipos de processos, em
expressa como uma incompatibilidade entre o mundo interior e o mundo exterior, sendo que o
contraposição entre principio do prazer e principio de realidade, bem como pelo dualismo
entre processo primário e secundário. Elegendo esse último dualismo, tentaremos explicar o
forma de funcionamento dos sonhos é o paradigma desse tipo de funcionamento, já que esses
processos são caracterizados pelo incessante deslizar de sentido. Esse deslocar de sentido
ocorre porque a energia psíquica, nesse tipo de processo, escoa livremente sem nenhum tipo
alucinado. Tal tentativa se justificaria pela percepção mitológica de que esse objeto primordial
procurada. Abre-se para realidade, pois, a fim de evitar um sinal errôneo de satisfação, o ente
37
deverá perscrutar o meio, a fim de perceber se ali se encontrará o objeto procurado para
efetiva satisfação. Nesse processo, a energia deve estar ligada para ser escoada, o que
constitui barreiras para a mesma. Assim devem ser percorridos caminhos mentais para que a
energia possa se satisfazer. Esses caminhos são processos mentais de julgamento e escolha
afeito ao processo primário, isso é o que o caracteriza. Deste modo, Freud já ultrapassa a
noção descritiva com que a principio utilizava o termo, no sentido de designar aquilo que não
pode aceder ao consciente. Podemos inclusive dizer que esclarecer o modo de funcionamento
teorização sobre o que já não é somente o local aonde existe o reprimido. O psicanalista já
prenuncia esse avanço em sua introdução do artigo “O inconsciente”, onde tenta formalizá-lo
metapsciologicamente:
não disponível a Freud, pôde ler o funcionamento descrito como processo primário, através da
moderna teoria linguística. Essa ultima teoria é sublinhada por Lacan enquanto representando
uma “posição-piltoto nesse campo entorno do qual uma reclassificação das ciências assinala,
como é de costume, uma revolução do conhecimento.” (Lacan J. J., 1998 [1957], p. 499)
inconsciente que ele irá propor, visto que nada parecido à linguística havia de contemporâneo
Visitaremos a teorização que Lacan produz em seu retorno a Freud, tendo em vista o
Freud” (1998 [1957]). Neste, Lacan promove uma releitura dos mecanismos de
funcionamento do sonho, que, como vimos, é o fenômeno que se caracteriza por excelência
ressaltado por Freud, a Entstellung, que remete ao fato de que o “ inconsciente só se expressa
transposição seria o principal mecanismo, já que é o que permite que um elemento seja
tomado por outro, é o que em Freud já remete a ausência de ligação biunívoca entre
consideração que os elementos não estão intrinsecamente ligados àquilo que eles comunmente
remetem, podendo ser usados para designar os mais diversos conteúdos. Tal mecanismo,
portanto, é o que, já em Freud, traz a noção de que o significante não tem significado nenhum,
modelos utilizados por Freud (o rebus, a escrita hieroglífica) os traços essenciais de um puro
jogo significante distinto de todo simbolismo analógico” (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1991, p.
104), sublinhando novamente em Freud a distinção por ele feita entre um conhecimento
baseado na similitude e outro baseado no discurso científico. Por sua vez, Lacan também se
freudiana em tratar do sonho em termos de uma escrita. Conforme Lacan “Freud diz que os
sonhos se exprimem antes em imagens do que de outro modo (...) logo ele mostra que espécie
39
de imagens se trata – a saber, de imagens que intervém numa escrita” (Lacan J. J., 1955-
1956/1985, p. 281), ou seja, imagens funcionam como uma escrita, elas estão ali para trazer o
que deve ser lido, no seu texto somente, não tomando-as como representantes de um sentido
que está alhures. Insistimos neste aspecto para demonstrar a necessidade Lacaniana em
justificar o seu recurso à linguística como necessário para seu retorno a Freud.
Desta feita, Lacan agora passa a tomar os conteúdos do sonho, exemplo último do
linguagem. O significante, por si, responde a algumas propriedades. Lacan destaca aquela da
qual todas as outras derivam: o fato dele se diferir dos outros, assim sendo, não precisaria
estrutura última do significante está, como se diz comumente em linguagem, em ele ser
articulado” (1998 [1957], p. 504) e para tanto, tem de ser um elemento discreto, que se
signo sobre o qual tal ciência se funda. O signo Saussuriano é baseado na correspondência e
Conceito Significado s
imagem acústica Significante S
figura 1
o que se lê, conforme ressaltam Nancy e Lacoue-Labarthe (1991, pp. 41-57), é a ênfase dada à
40
com que o signo lacaniano se escreva dando importância primordial ao suporte material do
mesmo, ou seja, o significante ou imagem acústica, que passa então a ocupar a parte superior
acima, de que o significante tem como principal função diferir-se dos outros significantes.
últimos e de os comporem segundo as leis de uma ordem fechada.” (Lacan J. J., 1998 [1957],
p. 501) Ou seja, os significantes só produzem sentido se colocados uns em relação aos outros,
seguindo certas leis, e para tanto Lacan chama atenção para a necessidade de um
encadeamento dos significantes. É neste ponto, então, que podemos usar um recurso gráfico
eixo diacrônico, em que as palavras são colocadas uma após a outra em cadeia, e um eixo
sincrônico vertical, que aponta para a grande quantidade de significações a que remete uma
palavra. Sobre esse eixo vertical, Lacan nos diz: “ não há cadeia significante, com efeito, que
não sustente, como que apenso na pontuação de cada uma de suas unidades, tudo o que se
articula de contextos atestados na vertical, por assim dizer, deste ponto.” (Lacan J. J., 1998
[1957], p. 507)
41
Eixo sincrônico
Eixo Diacrônico
figura 2
Esse esquema3 nos permite visualizar como operam duas outras figuras de linguagem
que caracterizam o trabalho do sonho, que segundo Lacan nos diz, é aonde se pode ver o
na tentativa de apreender o objeto. A metonímia está em relação com a lei do significante que
remete ao fato de que o objeto não se apreende por este, ele é fugidio, para tanto, vários
significantes são aí sequenciados para tentar apreendê-lo. A metonímia é então uma figura
presente, deixa ali algo de seu aspecto no efeito adicional de sentido. Na metáfora, portanto,
há necessariamente um efeito de sentido que tem lugar nela mesma, agora sem tanta relação
com a cadeia de significantes. Tem-se, portanto, uma transposição que exprime “a condição
3
Inspirado em notas de aula da professora Ângela Vorcaro no segundo semestre de 2010
42
básico da metonímia, sem o qual não se admite o efeito metafórico. A metonímia é fundante e
deslocamento. Haja vista, na transposição, a não relação do elemento com aquilo que ele
figura, ou, usando uma leitura linguística, a não biunivocidade entre significado e significante,
temos que será necessário, para a emergência da significação, que sejam encadeados
articular segundo certas leis, conforme escrevemos acima. Nas palavras de Lacan: “As
1956/1985, p. 250)
Um exemplo pode esclarecer tal fenômeno. Anna Freud sonhava e seu pai a ouviu
259). Parecem ser palavras sozinhas, ou o significado em estado puro, mas ao exemplo da
É na afasia que Lacan faz notar, entretanto, de forma mais consistente, a característica
frase corretamente do ponto de vista sintáxico, mas fica de lado aquilo que a sentença queria
dizer, não há intencionalidade na frase. Por outro lado, a afasia motora, de maior gravidade,
estoque verbal. O afásico motor não produz uma sintaxe, não articula as palavras de uma
Retomando, da mesma forma que no famoso livro de Oliver Sacks, o músico confunde
sua mulher com um chapéu, ou seja, tinha um tipo de agnosia visual que o impedia de
médico não consegue associar a imagem ao conceito do objeto, também o afásico sensorial
articuladamente, mas, apesar de ter uma intencionalidade ele não consegue transmiti-la na
frase. Isso se identifica, pois muitas vezes a fala do afásico tenta ser um protesto, isso move
sua tentativa de articulação. Entretanto a intencionalidade deste sujeito não se junta ao seu
continuar o encadeamento significante começado por outrem, o afásico não consegue retomá-
lo, explicá-lo com outras palavras. É incapaz, portanto, de uma metafrase, de comentar uma
fala, o que o permitiria, de uma forma acessória, cernir o objeto mesmo sem nomeá-lo. O
encadeamento, temos que é essa própria figura que permite uma certa estabilização da cadeia,
construindo aí um ponto de basta para a mesma. Com essa figura forja-se artificialmente uma
capacidade nominativa. Por outro lado, esse sentido “a mais” que se relaciona ao basteamento
e a intencionalidade.
A metáfora é então a figura de linguagem que Lacan elege para resolver um problema
significante. É o elemento que permite assentar algum sentido. A teoria dos pontos de basta
(points de capiton), é somente nomeada ou invocada na Instância da Letra (Lacan J. J., 1998
[1957]), sem que seja de fato desenvolvida. Nancy e Labarthe (1991, p. 63) ressaltam que ela
é explorada nos textos “Subversão do sujeito e Dialética do Desejo”, bem como no texto
fato algo que faz peso, não a toa funcionando como um chumbo na malha. É o que faz
elemento funciona como um basteador, que fixa algo em relação a todos os significantes. É
em que a energia está ligada, constituindo barreiras para seu escoamento, ou na terminologia
que a metonímia sendo uma função basal, aponta para o encadeamento da cadeia, sendo assim
efeito curioso, pois Lacan acaba por colocar na origem de ambos mecanismos, a mesma
causa, o que seria, a princípio, um tanto paradoxal, dado que os mesmos têm, a
Ainda sobre a metáfora, Lacan nos diz que quando ela produz esse ponto de parada, é
aí que se localiza provisoriamente o sujeito. Essa nova significação, emerge como algo
portanto, conceitualizar o que seja o sujeito para a psicanálise. Para tanto é impossível não
porque não há um significante que o represente no campo do Outro, não há algo que a ele
possa ser igualado como um sinônimo, o que faria com que ele tivesse um lugar marcado no
campo simbólico. Assim é preciso que seja chamado outro significante que possa somar a
esse novo e tentar então dizer do sujeito. Mesmo assim isso não basta, pede-se outro
dividido entre os significantes que tentam dizê-lo, mas nunca exaurido por eles. Nos parece,
então, que a divisão do sujeito é entre: 1) o ser que ele é - um ser pulsional, que demanda
satisfação; 2) aquilo que permitiu-o não ter uma satisfação instintiva e natural – o Outro – que
Esse sujeito da psicanálise, por definição, desde Freud, dividido pelo inconsciente, é o
sujeito do desejo. Ou seja, em sua divisão, ele falta e, portanto, deseja. É neste ponto em que
se inscreve o desejo que começam a surgir nossas dúvidas. No inicio do texto de Lacan o
f(S...S´) ≡ S(-)s que pode ser lida: a função significante de conexão dos
significantes entre si equivale à manutenção da barra que retém o significado
fora do alcance do significante. O significado assim elidido pode, então,
designar o objeto de desejo como falta do ser (Nancy & Lacoue-Labarthe,
1991, p. 105)
Ou seja, esse menos que se gera pela substituição significante é - como o desejo: sempre
proliferação, em passar pelo mesmo ponto, é possível conceber o desejo, relativo à divisão do
sujeito, participante da dimensão metafórica e metonímica. Neste caso, ainda que o desejo
aponte para a dimensão do sujeito, onde se localiza o ponto de parada da cadeia, é esse
mesmo ponto que comanda o incansável voltear da cadeia, de modo a, em cada volta,
cernir, trazer uma dimensão sobre a verdade do sujeito, onde ela se ancora. Nas palavras
cuja associação constitui a lei da linguagem como lei do desejo”(1991, p. 124), ou seja, a lei
dizíamos acima, é resolvido pela adoção da ideia, esboçada aqui a grosso modo, da causa
idêntica para tais mecanismos. Esse é um motivo de controvérsia dentro do campo intelectual
47
Derrida (Vieira, 1998), a posição deste último tendo sido compartilhada por Nancy e Lacoue-
Acima iniciamos do mecanismo da metáfora para entender como o "mais de" sentido
Indicamos, portanto, que ambas tem em Lacan o mesmo cerne. Podemos, entretanto, iniciar
pela metonímia, indo chegar à metáfora, de modo a esclarecer nosso argumento. Partindo daí,
significante que não se atualize em nenhum elemento com certa consistência imaginária,
retomam o desejo enquanto algo ao que a cadeia volta, mas que da mesma maneira
qual é o papel da carta, que assume funções correlatas às funções das figuras de linguagem.
traça o espaço dessa estrutura.” (1973, p. 280). Então, se no espaço virtual da estrutura há
tem acesso pela experiência: “o que se atualiza, aqui e agora, são tais relações, tais valores de
se nas relações previstas por tal estrutura. É esse dado que nos assegura da impossibilidade de
pensar um sistema estrutural que conduza a uma justaposição, ou a uma convergência aos
possível encontrar uma série de base, a qual se liga uma segunda série que retoma os seus
elementos. É o caso que Lacan encontra na sua análise do conto de Poe “A carta Roubada”,
conforme estabelecida nos Escritos como Seminário sobre “A carta Roubada”. Aqui
adotaremos sobre isso a leitura de Vieira (Poe, Lacan e Derrida: o destino da Letra, 1998)
A rainha que recebe uma carta a ser escondida do rei. É enganada por Ministro D que
troca a carta por outra, por saber da importância desta. O Ministro D esconde a carta da
polícia de forma sagaz.
Na segunda série:
Vê-se que a primeira série retoma a segunda série ponto a ponto, mas os elementos
que ocupam as posições são diferentes. Na primeira série vemos três posições:
Resta a pergunta, o que faz com que os elementos da primeira série ocupem posições
relativas a uma segunda série, mas posições diversas àquelas que ocuparam em uma primeira
49
série? É necessariamente um elemento de ligação que não ocupa lugar algum em ambas as
conhecemos o conteúdo, não tem nenhum sentido, mas que movimenta as séries, as ativa.
Esse elemento, a carta, não pertence nem à primeira série, nem à segunda, mas faz com que as
significante referenciado a outro significante. Pode-se observar que sempre há na cena alguém
que possui a carta, alguém que não sabe sobre ela, e alguém que a reouve. Conforme definido
por Deleuze:
“a natureza deste objeto é precisada por Lacan: ele está sempre deslocado em relação a
si mesmo. Tem por propriedade não estar aonde é procurado, mas em contrapartida,
ser encontrado onde não está. (...) Só podemos dizer literalmente que isso falta em seu
lugar daquilo que pode mudar de lugar, ou seja, o simbólico” (1973, p. 293).
Faltar em seu lugar, neste sentido, diz respeito ao que é eminentemente simbólico, que
possui, portanto, uma materialidade, como um vaso, mas não possui conteúdo, é oco. O que é
assumir nenhum, mas determinando por retroação a partir da pontuação que exerce na cadeia,
Assim, daqui vemos que a carta comanda a movimentação da cadeia, onde ela está os
elementos se colocam em relação uns aos outros criando uma série. A carta, portanto, é que
metáfora que funda a carta como casa vazia, ou elementos eminentemente simbólicos.
significante, este último, restando abaixo da barra. O significante substituído resta no lugar do
feita, torna-se claro que casa vazia, assim o é visto que o elemento significante que um novo
50
deste signo é descritivamente inconsciente, o que poderia ser notado como um vazio. Há ali
tesouro significante, permite que recebamos o dito do outro de forma invertida, se alguém diz
eu sou seu homem, usando a linguagem como código de comunicação, podemos inverter o
dito e colocarmo-nos aí como mulher daquele que diz. Assim, se tem a possibilidade de
desinvestido, não como espelho, mas como um terceiro ao nível de qual a mensagem se
inverte. Ou seja, o que permite o efeito de comunicação é o fato de que “o outro está aí
enquanto Outro absoluto. Absoluto, isto é, que ele é reconhecido, mas que ele não é
conhecido” (Lacan J. J., 1955-1956/1985, p. 49). É preciso que se tenha fé no Outro, uma
fides não baseada no conhecimento. Essa fides se funda no fato de desconhecermos aquele
ponto aonde um significante se liga a um significado, ponto este relativo ao mais singular do
basteamento da cadeia, é o que permite que ela se funde como instrumento para o
conhecimento do mundo. Assim também ocorre com o míope, que só pode enxergar como os
óculos a partir do momento em que para de ver o instrumento que permite sua visão, é dizer
que, se o míope foca na lente, para de ver o mundo. Ou, permanecendo no texto de Lacan: “Se
o surdo-mudo fica fascinado pelas lindas mãos de seu interlocutor, ele não registrará o
51
discurso veiculado por essas mãos” (1955-1956/1985, p. 158). Teixeira torna tal raciocínio
mestre que do seu ponto de ausência organiza a cadeia significante, é possível que se crie um
operador, fálico, que permite com que a realidade psíquica do sujeito esteja em relação com a
desejo da mãe, é suprimido em função do significante paterno que aponta para um terceiro
Isso permite com que o sujeito tenha acesso ao falo simbólico que, sendo um
Santos (1991, apud BARATTO, 2004, p.247) é “a significação fálica, significação genérica e
prototípica que com suas leis gerais e conceitos universais, que constitui uma superfície de
consenso, fundamento de uma realidade compartilhável.” Ou seja, é o falo que permite que se
significante a outro, assim como a carta permite as duas séries entrarem em contato.
Esse efeito metafórico fundante do efeito metonímico regido pelo desejo, pode
simbólico, na medida em que ele constitui a lei do significante.” (Lacan J. , 1957/ 1998, p.
Significante do ternário
simbolico: falo
imaginário (aquilo que
localiza o desejo da mãe)
Nome do Pai
Reduplicado no campo
do outro (falo simbolico)
Seria dizer que há um primeiro enigma, qual seja: o que a mãe deseja? A primeira
isso o sujeito responde – para se defender de uma reintegração pela mãe de seu objeto (a
criança em seu ser) –: ela deseja o falo, mas neste ponto, imaginário. Na medida em que a
mãe falta ele se perde como objeto restrito à satisfação da mãe. A própria brincadeira do Fort-
Da mostra que é mais confortável para a criança supor a possibilidade da perda do objeto.
Percebemos, portanto, que o falo imaginário é uma resposta da criança sobre o que ela é,seu
ser, já que nesses tempos primordiais ela só pode ser algo em relação ao desejo de seu
Esse falo imaginário – que já do inicio constrói uma relação que não é dual, mas
ternária – é o que é reduplicado no campo do outro, agora tendo perdido sua consistência
aquele que está submerso torna-se inconsciente, este mecanismo é o que possibilita que o falo
perca qualquer conteúdo imaginário, donde possa funcionar como a casa vazia.É isso o que
significa “reduplicar o significante do ternário simbólico no campo do Outro”: fazer com que
ele perca qualquer significado, por sua articulação como o significante que é fixamente
imaginário), e x é o que dá a consistência a esse significante, porquanto ele possa ser o ser do
ente. Isso porque, se havíamos demonstrado que o falo imaginário carrega alguma elaboração
“sobre o que há por significar, ou seja, o ser do ente” (Lacan J. , 1957/ 1998, p. 582), temos
que ao final a informação de fato inconsciente refere-se ao ser do sujeito, sendo que essa
nunca poderá ser acessada, já que é heterogênea a natureza do significante. É essa informação
que a entrada na linguagem torna inacessível, ela aliena o sujeito de seu ser.
Por outro lado, o que garante o funcionamento do falo simbólico como casa vazia é
que ele guarda um significante que de fato não adota nenhum sentido, por já estar ligado
propriedade que guarda a característica do significante mestre não adotar nenhum significado,
conforme vimos na breve abordagem do conto de Poe, fator primordial para que ele atue
1.4 A crítica
considerada um sistema no sentido em que “não inclui nada que não esteja ali organicamente
articulado, e não exclui nada de sua circunferência sem ordená-lo anda rigorosamente com
essa mesma estrutura” (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1991, p. 114). E esse sistema – calcado
em uma teorização rigorosa e extensa, conforme tentamos apresentar acima, versando sobre o
não possui significado – aponta paradoxalmente para um ponto central que insiste em
aparecer, em se fazer reconhecer na cadeia. Tal ponto é referente ao desejo do sujeito, relativo
54
a sua divisão, à verdade do sujeito que surge “pois, na articulação entre a fala e a letra, entre o
sujeito e seu ser” (Vieira, 1998, p. 60). Ou seja, apesar de apresentar um sistema que figura a
articulamos no prólogo, Lacan paradoxalmente subtrai tal característica, dizendo que a cadeia
retorna a um ponto. É desta forma que Lacan articula a repetição, formulada na forma
Se o significante não tem um lugar ou sentido próprio, ou seja, se não está fixado, é
consequência disso que a posição do sujeito, que se define pelo encadeamento do significante,
é, tampouco, imutável. Conforme Derrida: “Se existe um sujeito do significante, é por estar
submetido à lei do significante. Seu lugar está marcado pelo recurso do significante, por sua
consequência disso é que aquele significante que move toda a cadeia de deslocamentos não
pode ter tampouco, nenhum sentido. Se esse significante, bem como, não está atrelado ao
sujeito, sendo o contrário, teríamos que “o significante em sua letra, como texto selado e
como localidade, reste e caia no fim das contas” (Derrida, 2007, p. 469).
Entretanto, quando Lacan fala que a cadeia volta a seu ponto de repetição articulado ao
bem como pela incidência da linguagem; retoma a ideia de um ponto onde infalivelmente se
acha o sujeito, já aí então fixado, e a este ponto cabe ao significante voltar. Assim sendo, ele
não pode restar, ele não pode ser como uma carta voadora, assim como se pode assumir na
tradução título do conto de Poe (la letre volè). A carta/significante nesse sentido, como não
idealidade?) da letra, correlativa a uma lógica (ou uma estratégia?) do significante.” (2002,
55
pp. 145-146). Nesses termos, tal sistema utiliza-se da linguística, do significante, para ler
Freud com uma lógica criteriosa que esteja coerente com o ideal freudiano de respeito ao
objeto, sendo essa a característica da estratégia lacaniana. Entretanto, a crítica a ser feita, é
que esse sistema camufla o cerne não domesticável pela teoria linguística, sobre o qual Freud
falou. Esse cerne é o que acaba por subverter o fato do significante não ter rigorosamente
relacionado a uma verdade própria ao sujeito. Não significa dizer que o sentido do
significante está acessível ao sujeito, num lugar “objetivo, determinável numa topologia
empírica e ingênua.” (Derrida, 2007, p. 483), mas sim que este possui “um lugar e um sentido
próprios que forma a condição, a origem e a direção de toda a circulação, assim como de toda
a lógica significante (...): não um sujeito mais um furo, a falta a partir da qual se constitui o
Dito de outro modo, Lacan faz veicular algo que não serve a lógica do significante por
assente mediante um contrato original, é responsável pela divisão do sujeito. Temos então que
a verdade desse sujeito não pode ser atingida pelo saber que é baseado na articulação
permitir passar de forma metafórica, com a articulação da fala, na fala plena, algo da verdade
original”(Vieira, 1998, p. 94), sendo a metáfora o que permite a manifestação desta. Por outro
Diríamos, mais coloquialmente, que Lacan teria feito, conforme Derrida, uma
descentrado de sua consciência, com o de significante. Desde então a mesma propriedade que
linguagem que relega a verdade ao impossível de saber, passa a ser causa e efeito do sistema
lacaniano. Então, a verdade de Lacan, muito mais do que articulada a Heidegger, é uma forma
de se apropriar deste filósofo para ler a verdade da castração em Freud. Desde então cabe a
pergunta: O conceito de verdade em Lacan constituiria uma doutrina? Neste caso “a verdade”
passa a ser um axioma, colocada, portanto, na dependência de ser alvo de uma crença, dado
insiste em perceber que para Lacan, a metonímia, ligada à característica diacrônica da cadeia,
sincrônica. Disto decorre que a circulação do significante tem um sentido definido, relativo ao
que pode se dar a conhecer sobre a verdade do sujeito, a ele colocada inacessível em função
mesmo da entrada na linguagem. Ou seja, Derrida diz que tudo conspirava para que o
encadeamento significante pudesse levar o sujeito a vários destinos. Isso não é possível,
Se esse efeito de fato existe, é verdadeiro para uma estrutura, e esta é a neurose. Assim
diante da perspectiva da psicose, a crítica exposta no subtema acima não se aplica. Vejamos
por que.
Para a psicose vale o “caráter basal da metonímia”, que pela ausência de metáfora
(metáfora paterna) não está atrelada ao falo simbólico que localiza o desejo. Se foi do nosso
metonímia em relação à metáfora, foi para evidenciar os efeitos de uma estrutura psicótica. O
sujeito em grave crise funciona dentro do registro metonímico quando suas palavras se
colocam sem uma vinculação que caracterize a intencionalidade do discurso. Diante desse
modelo, a cadeia pede o incansável dizer do significante para gerar sentido. Então, seguindo
Deleuze, na ausência de um ponto onde a cadeia se ancora - ponto esse que ele nos aponta, é
significante - o efeito é que o significado não acontece, pois o sentido que se dá é meramente
evanescente. Desde então, podem ser observados os dois fenômenos típicos da psicose:
Donde se depreende que os dois efeitos da psicose são que o significante liga-se a coisa de
maneira não dialetizável, desaparecendo enquanto tal, já que aí se torna signo; e, de outro
lado, não se liga de forma alguma, o que gera um encadeamento sem sentido.
basta. Isso permite afirmações contundentes por parte de Lacan, como estas:
conforme aqui conceituado, coloca a necessidade, para nossa sanidade mental, de se admitir
que deve haver tal referente. Desta feita, uma forte refutação à crítica de Derrida ao
Resumindo, Lacan acaba com a ideia de que haja desde sempre referente, mas aponta
que é preciso que haja referente. Mas de que natureza é esse referente? Major, trás uma
formulação que aqui nos é cara, dado que permite localizar o problema acima levantado em
termos do discurso e o que o garante. Ele assim o apresenta fazendo uso de um trecho de
L’Ecorce et le Noyau: “(o discurso) não diz respeito às trocas entre significações,
significantes e significados, mas sim entre a ordem da significação e aquilo que, ao tornar
possível a significação, deve ainda ser traduzido na língua daquilo que a torna possível.”
que haja no discurso algo que estabilize a significação. Ou seja, apresenta a necessidade de
necessário incluir tal referente. Ou seja, seria necessário incluir no discurso “justamente
aquilo que, por ser a condição do discurso, lhe escapa radicalmente” (Major, 2002, p. 164).
Portanto, se a linguagem tem um referente, esse referente deve ser explicitado na linguagem,
mesmo isso sendo impossível, visto que é condição lógica que aquilo que forma um conjunto
referente. Uma primeira abordagem dá-se se definirmos o discurso como aquilo que
estabiliza certas significações em uma comunidade, todo discurso implica que alguns
artificialmente. Assim uma pessoa pode ser um pai alienando-se na imagem esperada do pai
que codifica suas ações, o permitindo responder como se fosse um pai, nesse discurso. Assim,
pra você, isso é para mim, isso é isso, isso é aquilo” (Lacan J. J., 1955-1956/1985, p. 51). O
facilmente questionado, abalado dadas as mudanças nas contingencias. Se digo que a mesa é
sempre aquele objeto de madeira, havendo uma mudança no aspecto descritivo da mesa, a
Pode haver, entretanto, abrindo para uma segunda abordagem, o que funciona como
quando falo de minha perspectiva da realidade em que juro uma verdade no que vejo, ou seja,
dou um testemunho. Lacan sublinha: “o testemunho, não por acaso que isso se chama em
latim testis, e que se testemunha sempre em cima dos próprios colhões.” (Lacan J. , 1955-
1956/1985, p. 51).
relacionável à verdade do sujeito -admitimos que para Lacan, na década de 50, o paradigma
pelo Nome-do-Pai, cria o significante consensual que faz com que as séries significantes se
comuniquem. É a esse tipo de conclusão a que Lacan se precipita quando se direciona ao final
de seu seminário sobre as psicoses. Isso fica claro no seguinte trecho em que comenta a obra
Moises e monoteísmo de Freud: “porque via a dimensão da verdade entra de maneira viva na
vida, na economia do homem? Freud responde que é por intermédio da significação ultima da
dizer que a verdade não está articulada na psicose, dado que não há metáfora paterna, que
conforme vimos é o que reduplica o significante que carrega algo da verdade do sujeito no
campo do Outro. Desta feita, a “verdade” em Lacan é um epifenômeno, dada uma certa
amarração, de uma estrutura que admitiria outras formas de solução. Há na base do que
funda a “verdade” elementos mais gerais a toda estrutura que ficam desnudados nas
Mais a frente, Lacan define mais claramente que essa significação é o tanto que pode ser
O simbólico dá uma forma na qual se insere o sujeito ao nível de seu ser (...) Há com
efeito algo de radicalmente inassimilável ao significante. É simplesmente a existência
singular do sujeito. (1955-1956/1985, p. 205)
Se esses registros do ser estão em alguma parte, é afinal de contas, nas palavras.
(1955-1956/1985, p. 226)
Propõe-se também que o significante por excelência vinculante dessa questão do ser é o
significante primordial que se inscreve no sujeito, dada sua entrada na linguagem, situação
essa que Lacan considera mítica, e uma forma arriscada de veicular sua teoria:
Vou lhes dize a minha tese. E vou dizê-la por onde é mais arriscada, isto é,
situando-a nesse plano genético que parece tão necessário para que vocês se sintam a
vontade. Eu lhes direi depois que não é isso... (Lacan J. , 1955-1956/1985, p. 171)
61
Neste sentido, teria relação com a Bejahung, “o que teria sido submetido aBejahung, a
seria relacionável a uma inscrição do significante no real do corpo do ser, fato que o tornaria
um significante erotizado.
Assim sendo, elencamos aqui elementos que nos fariam acreditar que esse significante
ao real, e que veicula algo da significação singular do sujeito. Entretanto, Lacan desmente
Soubessem vocês que a fome e o amor é a mesma coisa, vocês seriam como todos os
animais, verdadeiramente motivados. Mas graças a existência do significante a
pequena significação pessoal de vocês – que é também de uma genericidade
absolutamente desesperadora, humana demasiado humana – arrasta vocês muito mais
longe. (Lacan J. , 1955-1956/1985, p. 66)
absolutamente desesperadora”. Nada teria, portanto, de singular. Nos parece que é por esse
motivo que ele se recusa a tratar dessa inscrição do significante em termos míticos, a não ser
em função do caráter didático desse tipo de aproximação. Assim ele nos fala:
Não creio de modo algum, que haja em parte alguma, um momento, uma etapa em que
o sujeito adquire em primeiro lugar o significante primitivo, e depois o jogo das
significações é introduzido, e que depois ainda, significante e significado tendo dado
os braços entremos no domínio do discurso (1955-1956/1985, p. 175)
significante de grande genericidade, e, portanto, universalidade, bem como supor que não há
inicio mítico da simbolização, é função de uma mesma condição teórica, efeito da afiliação de
Lacan ao estruturalismo. Dizemos isso porque admitir que há um significante que veicula a
marca singular do sujeito, seria contrário a ideia de que toda a atualização da estrutura já está
importante para a estruturação que não está somente referida a este registro. Esse significante
depende de um encontro do real do ser do sujeito com o simbólico. Assim sendo, estaria
ferido o principio da primazia do simbólico frente aos outros registros, dado que então para a
estruturação, ele depende de um efeito de encontro com outro registro, havendo também a
que tenha um caráter especial em relação aos outros, marcado por uma inscrição mítica, dada
“uma espécie reservatório ou de repertório ideal” (Deleuze, 1973, p. 283). A essa concepção
Lacan se afilia, supondo que a ideia que Freud tem do Édipo é o que permite pensar como um
estrutura por excelência, nada relativo ao simbólico ocorre fora deste âmbito. Assim Lacan é
contrario a Melanie Klein que pensava sobre as primeiras etapas pré-edipianas, deixando claro
que sua teoria propõe uma melhor alternativa para explicar os fenômenos que Melanie Klein
queria acessar sem precisar supor algo exteriormente ao Édipo (Lacan J. , 1955-1956/1985,
pp. 170-175). Também podemos antever essa posição, relativa à ideia de que toda
Assim sendo, admitir um significante que tenha um caráter heterogêneo aos demais
não seria possível dentro da ideia da estrutura enquanto um reservatório ideal. Ou seja, como
admitir que um significante de caráter fundamental para estruturação do sujeito possa ser
Além disso, vemos que esse significante seria relativo ao inicio da história do sujeito
radical da estrutura pelo sujeito, pois admite-se no conjunto do simbólico um significante que
Admitiria também que há estruturação fora do Édipo. Esse tempo mítico não implica
que já exista o ternário mínimo que Lacan elenca para pensar a estruturação edípica: mãe,
criança e falo. Essa estruturação supõe tão somente a criança enquanto “bicho humano”
exposto à linguagem.
podemos visualizar o simbólico para Lacan como um círculo, máquina, moto-contínuo, feita
para ler o que seja o objeto Freudiano. Qual seria o dificultador deste tipo de aproximação?
Não permite ver que existem duas pontas a atar para que o simbólico funcione, ou seja, que é
significante do ternário simbólico, antes de ser reduplicado no campo do outro pelo Nome-do-
Pai, não tem sua particularidade esclarecida. O que não fica claro no Seminário 3 e no texto
“Uma questão preliminar...” é, portanto, do que ser trata esse significante do ternário
Desta feita, para não ter que lidar com tantos problemas teóricos que trariam a
do pai. Ressaltamos novamente que todo o final do Seminário 3 dedica-se a explorar essa
em relação ao simbólico, mas essa hipótese genética, e que inclusive admite um ponto de
Seminário 9. Se no seminário sobre as psicoses Lacan escolhe dar ênfase a hipótese do Nome-
do-Pai, temos que no Seminário 9 ele se interessa por essa experiência mítica que no primeiro
seminário ele escolheu por desqualificar em seu caráter heurístico, ressaltando o caráter
meramente didático.
Fazendo no Seminário 3 uma escolha teórica a favor do simbólico, nos parece que
Lacan dá subsídios para a crítica de Derrida, pois ele fortalece a ideia de que há algo que
subjaz a estrutura simbólica e que não pode ser por ela tocada. Esse algo diz respeito ao que
Lacan repetidas vezes, conforme mostramos, chama de ser, mas que fica sem conceituação
dentro de sua teoria. Assim, remetendo a uma certa referência metafísica – segundo a crítica
de Derrida – encoberta pela aproximação teórica informada pela linguística, Lacan abandona
Nos capítulos ulteriores, quereremos, por conseguinte, explorar a retomada deste tema
Lacan.
65
CIÊNCIA
retorno a Freud. Tal leitura, conforme vimos, se fez necessária para resgatar a psicanálise de
Quisemos a partir daí, apresentar tal abordagem, estruturalista tendo em vista a necessidade de
precisaria supor que o significante encontra um ponto aonde para, criando assim a
teorização sobre esse chamado “ponto de capiton”, que supostamente tem relação com a
conceituação do sujeito.
Nosso intuito neste segundo capítulo é demonstrar como Lacan retomou esse assunto
forjando o conceito de traço unário, a partir de um termo que pinçou do texto de Freud,
Psicologia das Massas e Análise do Ego (Freud, Psicologia das Massas e Analise do Eu,
(Enziger Zug). É importante notar, entretanto, que a única menção que Lacan faz a Freud
acontece na quinta lição de seu seminário quando já tinha, a muito, introduzindo o assunto, o
que nos leva a pensar que a citação a Freud é meramente formal 4. Assim temos elementos
4
Aqui estamos referendados em Teixeira (1999, p. 117) que nos diz que o termo Enziger Zug em Freud “se
restringe a uma uma observação extremamente transitória e consisa” relativa a sua observação do sintoma de
Dora, em que há uma “identificação regressiva a um traço singular do objeto amado” (Teixeira, De deus como
garantia ausente, 1999, p. 117)
66
para sustentar que esse é um termo inventado por Lacan para resolver esses entraves teóricos
“Seminário sobre a carta roubada” (Lacan, 1956 apud Vieira, 1998), e mesmo no texto a
“Instância da Letra...” (Lacan, 1957/1998). Estamos aqui conforme o próprio Lacan, que
explicita:
Ressaltamos: o traço unário, então, é evocado por Lacan enquanto o conceito que o
permitiria ir mais longe. Tentaremos, assim, extrair dessa indicação de Lacan suas
consequências, ou seja, tentar definir quais os avanços permitidos por esse conceito.
mais das vezes atrelado à relação especular com a imagem, conforme explicitado no exemplo
do grilo peregrino (Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 27). Esse inseto, dependendo do encontro
que tem com o seu semelhante, pode tomar a forma gregária ou solitária, sendo que, para cada
Assim ele nos introduz uma questão aparentemente inócua, a saber: porque admitimos
que A é igual a A? Tal questão, entretanto, é por ele trabalhada desde o seminário das
psicoses (LACAN, 1955-1956/1988, p. 172), onde se pergunta sobre o que nos possibilita
diferenciar o dia da noite. Pressupõe-se que a compreensão do dia não é algo que venha da
experiência. Um neonato que percorre os ciclos dos dias e noites não os reconhece
naturalmente assim, como antíteses. É preciso que algo interceda para que saiamos do ciclo
noite e dia como algo irreconhecido. Para compreender essa alternância, é necessário supor a
ausência de dia. O dia e a noite são tomados, desde muito cedo, como códigos significantes,
Assim, antes de falar que A é A, há primeiro que admiti-los como diferentes, já que,
não sendo isso um pressuposto, inexistiria a necessidade de igualá-los em seguida. Ou seja, tal
Diríamos, nesse sentido, que a identificação tem relação com traço unário na medida
exclusivamente humanos, o que Lacan deixa claro ao retomar o exemplo de sua cadela. A tal
cadela nunca se engana, ela sempre toma Lacan por Lacan, “contrariamente ao que acontece
ao homem enquanto falante, ela não me toma jamais por um outro” (Lacan J. , 1961-1962/
2003, p. 41). A cadela pode identificar automaticamente as duas aparições de Lacan, pois elas
nunca foram diferentes. É nesse sentido que Lacan nos diz que “a identificação não tem nada
a ver com a unificação. Somente a distinguindo desta é que se pode dar-lhe, não somente seu
68
destaque e essência, como suas funções e suas variedades” (1961-1962/ 2003, p. 49). Se
radicalizamos esse argumento, diríamos inclusive que não há identificação a não ser
simbólica, no sentido de que não há que se identificar o que nunca foi distinto.
de uma crença pode igualá-las. Seria o mesmo que dizer, o humano, alienado ao Outro, tem
ele estabelecidas não são sempre óbvias, já que dependem de um julgamento, uma fé. Lacan
demonstrará que é esse mecanismo que permite o advento da transferência, que consiste em
tomar um por outro. Para exemplificar, Lacan (1961-1962/ 2003, p. 47) retoma uma lenda
Céltica em que o senhor de uma fazenda morre. Após esse acontecimento, um empregado vê
um ratinho que passeia pelo campo. O servo o segue por esse campo e vê que depois o rato
vai ao celeiro. Esse sujeito interpreta que o senhor era aquele ratinho que passeou pela
propriedade para despedir, e tem a confirmação disso, segundo a lenda, a partir da aparição do
espírito do senhor que diz ter estado no rato. É muito premente esse efeito da identificação
que pode aproximar duas manifestações tão distintas, a do amo e a do ratinho que vaga sem
identificação simbólica para Lacan serve para ler o fenômeno em questão percebendo-o como
teórico - Levy-Brürl - que acredita que essa lenda é resultado de uma “mentalidade pré-
Há uma outra ilustração escolhida por Lacan (1961-1962/ 2003, p. 87), que permite
a Jonh Stuart Mill que teria falado do exemplo da fada Morgana que, ao perceber que a casa
de seus adoradores fora marcada por terem sidos condenados a um flagelo, marca todas as
casas da mesma forma, assim todas as casas teriam o mesmo símbolo e não seria possível
69
distinguir qual é qual, portanto, os malfeitores não saberiam qual casa atingir. Lacan,
entretanto, prefere a versão de um outro autor, Gardner, que teria repensado esse exemplo
dizendo que se Morgana quisesse de fato ter escondido os signos que distinguiam a casa, ela
teria que ter marcado todas as casas com os mais diversos signos sendo que fosse inviável
distinguir qual dos signos é o certo, já que eles são igualmente distintos. Ou seja, aqui a
diferença, logo atrelada a um inicio mítico. Para compreender esse “saltar aos olhos”, um
destacamento da diferença, um exemplo (Lacan J. , 1961-1962/ 2003, pp. 51- 65) pode nos
esclarecer. Lacan estava na presença de uma achado arqueológico que era exposto em meio a
outros. Esse achado tratava-se de um osso, uma costela, em que haviam pequenos traços em
forma de bastão, como ranhuras. Ele trata essas ranhuras como consequência do fato de que
outras, e foi preciso marcá-la. Diríamos ter sido um fato que exerce um corte no rotineiro.
Entretanto, seria preciso notar que, os registros no osso que são função do relevo dado a tal
de bisões, ou outro tipo de reprografia muito comum em cavernas e outros sítios aonde
viveram homens primitivos. Esse registro mínimo, um pequeno traço, não guarda nada da
experiência que marca, não tem nenhuma qualidade, imagética ou não, daquilo que ela
qualitativa” (Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 59). Temos em ambos os casos um registro, mas
sua diferença é gritante, pois em um dos registros, aquele que elimina a qualidade, é possível
supor o surgimento da possibilidade do significante. É radical a ênfase posta por Lacan nesta
paradoxo da alteridade radical” (1961-1962/ 2003, p. 75), sendo que é esse afastamento da
70
qualidade que permite que ele seja “tanto mais distintivo quando está apagado de tudo o que
ele distingue” (1961-1962/ 2003, p. 75). Lacan supõe uma vocação humana à utilização do
significante como consequência da descoberta do registro sem qualidade: “Há no material pré
histórico uma infinidade de manifestações de traçados que não tem outro caráter se não serem,
Temos assim o traço unário tomado como suporte da diferença significante. Seria
dizer que a propriedade primordial do significante em ser distinto de todos os outros, se baseia
na “originalidade que carrega do traço, digamos, da serialidade que ele comporta, traço
discreto, quer dizer, de corte” (Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 28). O traço unário é o que
constitui o conjunto dos significantes “é o que tem em comum todo o significante, de ser
sobretudo constituído como traço, de ter esse traço por suporte” (Lacan J. , 1961-1962/ 2003,
p. 35). Assim, temos pela letra de Lacan que se um significante é diferente de outro isto é
função do traço unário. E se, como vimos, é característica principal do significante sua
propriedade de diferir de seu par, temos que o fundamental do significante é o traço unário.
as apresentamos até então: 1) funciona como suporte da diferença significante; 2) implica que
simples “por não ser mais do que ele é, ou seja, um puro traço distintivo” (Teixeira, De deus
como garantia ausente, 1999, p. 117) é o que sustenta todo edifício teórico de Lacan no que
que seriam supostos a teoria lacaniana, enquanto adepta de tal paradigma. Queremos, a seguir
Apresentaremos o que seriam as três teses minimalistas, dando mais ênfase as que se
A primeira considera que só podem ser objetos de um sistema aqueles que podem ser
reconhecidos por ele enquanto objetos. Ela permanece vazia enquanto não se pensar para um
sistema, qual a propriedade que o leva a considerar o que seja um objeto. No estruturalismo
A segunda tese considera que um elemento só pode ter como propriedade aquela a ele
radicalmente dedutivista. Tal tese comunga com a ideia que expusemos no primeiro capítulo,
de que, para que o simbólico funcione gerando ciência, ele não pode estar alicerçado no
elemento perceptivo na realidade. A propriedade não vai do elemento para a teoria, como
faria um empirista, mas sendo a diferença a única propriedade suposta ao sistema, ela é dada
elemento é tão somente aquela definida pelo sistema. Se a primeira tese, no caso do
que a segunda define que essa é a única propriedade que um elemento pode ter. Doravante,
por essas duas teses percebe-se ser o suporte do sistema estruturalista a ideia de traço unário,
enquanto suporte da diferença. Milner não assim nomeia, mas do mesmo modo nos respalda:
“A linguística estrutural utiliza assim o que poderemos chamar diferença pura”(1996, p. 82)
repousa na ideia da axiomática antiga. Segundo esta, a hipótese será tão superior quanto mais
72
eventos explicar a partir de menos formulas. Citamos o argumento que Lacan adere para com
“Por que desde que se começou a fazer ciência – pois essa reflexões referem-se a algo
bem diferente e a campos mais vastos que o de nossa experiência – exige-se a máxima
simplicidade possível? (...) No princípio era o verbo, quer dizer No princípio era o
traço unário. Tudo que é possível de ser ensinado deve conservar essa marca desse
inicio ultra-simples.” (1962-1963/ 2005, pp. 30-31).
Seria dizer que esse ato divino, primeiro ato de criação, a distinção entre a luz e as
trevas é o ato preponderante, ele gera uma simplicidade relacionada à simplicidade exigida da
ciência.
Poderíamos dizer que até então somente retomamos por um outro viés a teorização
estruturalismo, sendo o que permite antever uma estabilidade para a ciência em contrapartida
p. 50). Ressaltamos aqui, então, que o suporte da diferença significante é o traço unário. Mas
ao isolar esse elemento podemos explorar com mais clareza quais os pressupostos da ciência
em si, sendo que todos eles parecem dever algo a essa noção.
uma abordagem proposta por Jaspers e que só conserva do método cientifico dito causal para
demonstrar as consequências de uma tal abordagem dos transtornos psíquicos graves, e como
o estruturalismo adotado por Lacan logrou dissolver os problemas levantados pela teorização
Jasperiana.
73
Jaspers
nasce5 como uma especialidade médica em desvantagem em relação às outras. Em função das
pesquisas em anatomia, microbiologia, etc. varias doenças tinham sua etimologia esclarecida,
o que permitia a criação de uma terapêutica eficaz. Ou seja, de posse da causa orgânica da
doença, era possível criar uma terapêutica que atuasse na causa e dirimisse a doença. A
psiquiatria, por sua vez, iniciava a construção de um saber descritivo e classificatório sobre os
fenômenos que acometiam o doente, entretanto, não detinha um saber sobre a etiologia do
amplo escopo de experiências em que a causa e o efeito são os mesmos. Desta experiência
seria extraída, portanto, uma regra. Tal regra, se observada regularidade quase infalível,
poderia ser considerada uma lei. É o caso da paralisia geral, que é sempre causa de Sífilis.
Como a psiquiatria não pôde acompanhar o modelo das ciências naturais aplicado com
permitissem enquadrar o seu problema gerando novas soluções. Para essa tarefa foi
importante a teorização do filósofo Dilthey (Teixeira, 2006) que já havia, à época, proposto
5
A fundação da psiquiatria é artificialmente datada a partir da assunção do cargo de psiquiatra por Pinel em
Bicetre em 1793
74
psicológicos em dois tipos, aqueles que são efeito de um processo e aqueles que são efeito de
um desenvolvimento. Em função desta formulação a psicopatologia teria uma base dual que
Para Jaspers, na esteira de Dilthey, todo fenômeno psicológico poderia ser acessado na
nunca ser acessados pelo método das ciências naturais já que, como vimos, tal método implica
uma redução das qualidades. Jaspers avalia a razoabilidade da ideia de redução das qualidades
dentro da psicologia afirmando sobre ela que “no terreno psíquico (o qual permanece sempre
qualitativo por sua essência), nunca é possível (grifo nosso), em princípio, a não ser que se
parte: as conexões compreensíveis da vida psíquica, 1973, p. 363) Então, para Japers, a
vida e contexto no qual se insere o paciente. Uma de suas modalidades era chamada de
compreensão racional. Tal tipo de compreensão seria bem construído se baseado em pontos
apesar de conservar certa objetividade, nunca implica a criação de leis, pois haveriam tantas
6
al comprender (Verstehen)como el quehacer operativo fundamental de las ciencias del espíritu, y el explicar
(Erklaren) como el procedimiento fundamental de las ciencias naturales
75
compreensões, quanto pessoas cujos históricos gerariam parâmetros para que fosse feita a
conexão compreensiva. Neste ponto, o parâmetro real e empírico da vivência daquele sujeito é
poeta ou um teórico como Nietzsche, aproveitando aqui os exemplos dados por Jaspers.
Assim, o particular do vivido da pessoa importa mais que qualquer teoria que pretenda saber
Essa característica empírica da teoria Jasperiana fica ainda mais evidente quando esse
autor dá maior importância a um outro tipo de compreensão, que infere que o motivo dos
fenômenos psicológicos são os estados de ânimo, ou seja, que tais estados geram os conteúdos
empática, dado que os fenômenos psicológicos são aqueles conteúdos gerados por estados de
vida psíquica, 1973, p. 368). Esse tipo de compreensão depende em grande medida de uma
relação entre médico e paciente que possibilite o acesso pelo médico da experiência vivida
pelo paciente. Aqui não há como acessar racionalmente o fenômeno, sendo que o clínico deve
colocar o seu corpo no lugar daquele do paciente para imaginar quais tipos de conteúdo
psíquico poderiam advir de certos estados de ânimo. O teor empirista fica sublinhado, já que
metafísica, na qual a abordagem pela razão é quase eclipsada, já que o mais importante é a
experiência da qual a pessoa tem acesso: uma “iluminação de experiências primárias através
1973, p. 370).
76
epistemológica empirista, sendo este também o motivo de sua crítica a Freud. Para Jaspers
toda causa é extraconsciente, porque aquilo que é mental ou consciente se acessa pela
compreensão e não pela explicação. Este autor também considera o modelo freudiano como
um modelo causal-explicativo. Entretanto, não poderia existir, para Jaspers, uma causa que
não seja somática, ou pertencente ao campo da natureza e possa ser verificada empiricamente.
O modelo racional explicativo de Freud é refutado por Jaspers por não poder ser baseado no
observável.
compreensão e ilimitação da explicação, ponto que, mais a frente, nos dará a margem para
uma primeira crítica de sua teorização. Os limites para a compreensão são resumidos por
Jaspers enquanto tudo aquilo que compõe a base estrutural física do psiquismo, sendo que “o
558). O que é fenômeno mental é compreensível, o que permite gerar o fenômeno mental é
explicável e, portanto, extraconsciente. Por exemplo, uma alucinação dever ser explicada,
pois é causada por um fato somático; a personalidade é mais provável que tenha gênese
causal, pois observa-se certa hereditariedade. Para Jaspers: “Nessas investigações causais,
sempre havemos de pensar em que algo extraconsciente subjaz (grifo nosso) as unidades
todos os fenômenos que se dão quando não se encontra a limitação do substrato biológico. Se
compreensão, é porque o alicerce físico não foi perturbado. Se, por exemplo, há uma
depressão após uma morte, essa depressão é reativa, está dentro do desenvolvimento. Há uma
77
citação no próprio Lacan que explicita como a psicogenética formula uma tese
desenvolvimentista também para acessar certas psicopatologias. Ela explicita os motivos que
exemplo dado por Lacan, um delírio poderia ser abordado como um desenvolvimento,
cabendo aí, a aplicação do método compreensivo. Mesmo assim, resta excluído do campo de
investigação a doença mental grave. Esses quadros eram excluídos do alcance das ciências do
espírito, porque a maioria apresentava delírios e outras formações que, em detrimento deste
quadro de paranoia descrito por Lacan, não podiam ser compartilhados, e, portanto,
indivíduo acometido pela doença. Era, então, suposto que a sintomatologia não acessível ao
cerebrais.
Tabela 2.1
Processo X Desenvolvimento
Processo Desenvolvimento
Forma de Surto, fase, episódio, acesso Reação vivencial, crise
apresentação
do
acometimento
psíquico
Tipo de Função vital extrapsíquica Alteração do conteúdo
acometimento intrapsíquico
Metodológia Explicação Compreensão
de acesso
78
os motivos da doença mental, eram colocados os quadros que tinham causa orgânica, ainda
não sabida. Ou seja, postulava-se um processo físico como subjacente a uma alteração mental
colocando sua solução em função das posteriores descobertas das ciências naturais. Ou seja,
“haveria na postulação do processo, uma verdadeira demissão do pensamento, uma vez que
por ela se aguarda a explicação posterior de uma causa física, ao mesmo tempo em que se
Para além desse que já se apresenta como um grave problema para essa abordagem,
nos parece que a escolha pelo empirismo traz ainda uma série de entraves à teoria de Jaspers.
Vê-se que é uma abordagem que depende da extração de sentido daquilo que é imediatamente
acessado pela percepção e “consiste em pensar que há coisas que são evidentes, que, por
exemplo, quando alguém está triste é porque não tem o que seu coração deseja.” (Lacan J. ,
1955-1956/1985, p. 14). Isso é facilmente refutável como neste exemplo bastante caricato:
compreende-se que ao dar um tapa em uma criança ela chora, ou, motivo de ela chorar é o
tapa. Lacan, entretanto, argumenta que pode ser que uma criança chore só depois que lhe
informem que era uma palmada e não o carinho. Há para esse caso tantas reações quanto os
discursos que permitem lê-las, tanto o é que a criança teve que recorrer ao seu Outro, o pai
que lhe deu a palmada, para verificar qual o discurso que daria legibilidade àquela
experiência. Ou seja, a evidência empírica não produz nenhuma referência, o que gera uma
proliferação do que pode se dizer sobre um fenômeno. Donde se deriva que existam tantas
verificabilidade e estabilidade.
79
Lembremos ainda, conforme dissemos, que Jaspers não prevê a criação de regras para
a compreensibilidade dado que esta última só pode ser construída em relação a um recorte da
realidade, que gera, de forma autoevidende, uma compreensão. A alta frequência de certas
se confirma em absoluto, pela curva do suicídio, que atinge o máximo na primavera; daí não
se segue porem que a conexão compreensível seja falsa” (Jaspers, Segunda parte: as conexões
compreensíveis da vida psíquica, 1973, p. 365). Não se admite, portanto, qualquer abstração
de Dilthey. Seria interessante para nós retomarmos os afluentes que influenciaram Dilthey a
propor uma tal divisão. Comte (1798-1857), grande teórico inaugurador da ciência positivista,
pensava que a ciência era dividida, sendo que dentre as ciências naturais haveriam as ciências
zoologia ou botânica. Courtnot (1801-1877) se apropria desta divisão para supor que haja de
um lado as ciências com o aspecto mais perene e que tratam de teorias, e de outro, aquelas
que teriam um sentido mais histórico, de coleção, sendo que Cournot “faz acompanhar cada
ciência teórica do real por uma ciência histórica correspondente” (Blanché, 1983, p. 87).
Dilthey por sua vez, na esteira de Cournot, então iguala a ciência do homem à história, donde
se conclui, por essa pequena derivação que fizemos, corresponderia a uma descrição, coleção.
Renuncia qualquer esforço de teorização que proponha haver aspectos do homem que são
falar da angústia, acaba por fazer um pequeno ensaio sobre o método. Ele primeiramente
identifica que existe uma abordagem que seria a “via do catálogo”. Nesta se reúne tudo o que
80
se sabe e já foi escrito sobre um tema. Seria uma maneira enciclopédica, que trata do estado
da arte em certo campo. Poderíamos dizer que até onde apresentamos, essa é a estratégia de
Jaspers com o seu método compreensível. Já dizíamos que existem tantas compreensões
quanto pessoas e por esse viés o nosso conhecimento psicológico acaba sendo uma coleção
descrevemos abaixo.
de sua presença, o que segundo Jaspers, confere à compreensão maior estabilidade possível.
lugar do sujeito para supor qual representação ideativa viria de uma dada emoção. Isso não
está de modo algum distante do conhecimento por analogia, uma das formas de similitude que
disso que Lacan nos adverte dizendo que a compreensão, e ainda mais aquela que se faz em
preferível advertir qualquer um de que ele não deve fiar-se demais naquilo que pode
Foi pauta de nosso primeiro capítulo a ideia de que o conhecimento anterior à ciência
fazê-los falar de modo a alcançarmos sua verdade. É essa a vertente que nos parece ser afeita
consequências deste tipo de abordagem em que se supõe que há uma ligação intrínseca entre o
saber e a realidade, onde vigora a ideia de que é possível obter saber a partir do acesso direto
à realidade, porque desta emana uma verdade autoevidente. Por outro lado, a operação básica
81
percepção como fonte de saber, operação feita em seu máximo tensionamento por Descartes
Jaspers quis conservar toda a qualidade da experiência, pois para ele disso dependia a
experiência consciente. Mas é próprio à ciência uma tentativa de redução do dado perceptivo,
ou qualitativo, sem o que não se pode construir generalizações, regras e leis. A ciência
depende da perda do referente que é o que Jaspers se recusou a fazer. Ele, ao contrário,
colocou o referente emocional no mais alto grau de importância, sendo esta a fonte de nossas
espírito.
É interessante notar que para esse autor na própria ciência natural, cujo método é o da
ciência positivista, existem limitações para a ideia mecanicista que a baseia numa relação de
causa unilinear. Essa relação, entretanto, é a base de estabilidade de uma teoria, visto que ela
propõe que dada uma circunstância, o que se segue é esperado; ou, é a partir do modelo
exceções que questionam a teoria. Citemos exemplos elencados por ele: se o alcoolismo
crônico causa várias sequelas, como explicar as várias formas em que tais sequelas se
de esquizofrenia, é provável que o outro também seja acometido, dada que a causa da doença
empírico qualitativo refuta “uma imagem mecânica de relação causal unilinear” (Jaspers,
1973, p. 554) para sugerir uma “imagem de um tecido vivo infinito”(Jaspers, 1973, p. 554).
Para ele não se pode replicar o modelo cuja ciência tipo é a física matematizada nas ciências
82
causal assim adquirido impõe, no entanto uma estrutura absolutamente diversa para as
É possível dizer que Jaspers conserva a ideia de relação causal, e admite-se uma
decomposição necessária a essa abordagem, mas que somente poderá acontecer de modo
significativo se o plano de fundo não for a ideia de um mundo constituído de partes discretas.
Para que haja a essa operação de discriminação, de partição do mundo, é necessário supor
“uma moldura da contemplação e da apreensão cada vez mais clara das totalidades, onde as
relações causais se realizam, onde tem sua condição e limite (grifo nosso)” (Jaspers, 1973, p.
553). Aqui temos que a causalidade é limitada pela noção de que o universo é por natureza
uma totalidade.
que não podem ser acessados pelo método compreensivo. Essa formulação sobre o processo
permite que Jaspers funcione como uma base epistêmica para os desenvolvimentos ulteriores
da psicologia “nos estudos que correlacionam fato mental e atividade cerebral, e da pesquisa
sobre a hereditariedade da conduta, que confere base física ao estudo da mente”(Lima, 2011,
p. 231). Lima nos ajuda a resumir a crítica que fizemos a psicologia explicativa de Jaspers ao
utilizar-se de Blanché (1935 apud Lima) para explicitar o erro epistemológico existente na
equação que iguala psiquismo a uma realidade física. Tal autora aponta ainda uma assonância
***
83
que estivemos apresentando aqui como um método de redução das qualidades sensíveis,
através de uma matematização estendida. Essa é uma consequência das três teses minimalistas
método do catálogo e o do análogo. Lacan apresenta-o como “função da chave” que seria “a
forma pela qual funciona ou não a função significante” (1962-1963/ 2005, p. 30). Abaixo,
queremos retomar os pressupostos do estruturalismo assim como organizados por Milner para
outros; sendo que as estruturas são indistinguíveis. Assim tudo o que é estruturado tem a
Milner uma conclusão necessária se entendemos que toda estrutura é baseada na diferença:
“se admite-se uma propriedade estrutural determinada, que será verdadeira para uma
estrutura qualquer, que distinguirá toda estrutura, enquanto tal, daquilo que não é uma,
mas que não distinguirá nenhuma, enquanto tal, de nenhuma outra”(Milner J. C., 1996,
p. 85)
abordagem lacaniana das psicoses permite sustentar uma serie de intervenções nessa clínica e
7
A psicanálise em extensão tem se mostrado um instrumento vigoroso para a intervenção em contextos institucionais
voltados para o tratamento da psicose. O próprio movimento de reforma em saúde mental reconhece que um dos
principais trunfos da experiência mineira, exemplo a nível nacional, foi o recurso à psicanálise o que está relatado
no texto “A cidade e a loucura, entrelaces" (LOBOSQUE & ABOU-YD, 1998)
84
estratégias de tratamento que tem efeito mesmo fora do ambiente artificialmente controlado
do hospital psiquiátrico.
humana e natureza biológica, que expulsa os fenômenos psicóticos para fora do humano e
2. De outro lado está o que não é estruturado, sendo que aqui não há objeto
ponto com as bases do sistema linguístico, que é a suposição da diferença como única
autor que adere ao estruturalismo e com isso consegue propor uma abordagem mais
profícua da psicose.
85
estrutura na lógica matemática; ou, a lógica matemática funciona como uma linguagem, da
mesma forma que o inconsciente funciona como uma linguagem. O que estamos dizendo aqui
casual e pode ser vista como a consequência da hipótese hiperestruturalista: se algo está
estruturado, a estrutura é a mesma, tem propriedades não quaisquer. Tal paradigma, segundo
Milner (2003, pp. 155-170; 1996), é uma consequência necessária se levadas a sério as teses
minimalistas que compõem o estruturalismo. Milner ressalta ainda que Lacan foi o único dos
Sendo assim, é possível demonstrar alguns pontos em que Lacan seguiu essa posição.
1961-1962/ 2003, pp. 67-77), aponta como necessário um ‘défrichment’, que seria traduzível
como “preparação de campo”, solicitando uma concessão do leitor para desviar-se pelo campo
da lógica, já que ela esclarece a função algorítmica da linguagem. Há aqui então a suposição
de que na lógica matemática se encontra a estrutura. Lacan então elogia essa aproximação
estrutural, que segundo ele retira-nos do campo de “uma confusão muito antiga e que era
aquela onde tinha ficado atravancado o campo do pensamento humano durante séculos”
fecundidade no âmbito da ciência, há uma assonância com o dito que Lacan recorta de
“ que o número, ele, nada mais é que essa espécie de multiplicidade que surge
86
Quisemos com essa citação ressaltar a proficuidade da noção de traço unário, como
Dito isso, percebe-se então que toda a empreitada em que se pretende encontrar a
estrutura alcança o objeto no nível em que, mesmo que ele seja despojado de todas as suas
tem, portanto, propriedades não quaisquer, disso percebemos que mesmo se reduzirmos o
fenômeno no máximo grau ele ainda é pensável, donde se extrai uma metafísica.
pensar o que há de comum entre todos os objetos das diversas ciências, à época, estabelecidas.
O termo “metafísica” advém da tentativa de pensar qual é a natureza do objeto para além da
física, o que tem o objeto da física em comum com o objeto das outras ciências. Na definição
de Aristóteles essa ideia fica explicita "Se há algo de eterno, imóvel e separado, o
conhecimento disso deve pertencer a uma ciência teorética, porem certamente não à física
(que se ocupa das coisas em movimento), nem à matemática, porem uma ciência que está
além de ambas" (Aristoteles, 1924 citado por Abbagnano, 2007, p. 661). A consequência
disso é que a metafísica ganha o status de ciência primeira, que tem hierarquicamente
e que, portanto, todos os objetos tem que ter para que sejam considerados como tal, sendo
substância: "aquilo que um ser não pode não ser"(Abbagnano, 2007, p. 663). Dessa forma
diametralmente oposta. Para demonstrarmos isso temos que lembrar que o hiperestruturalismo
respeita as 3 teses minimalistas que como demonstramos estão calcadas na diferença mínima
estenografada por Lacan como traço unário. Neste ponto gostaríamos de retornar a Saussure
através de Milner (2003), pois neste há uma definição da diferença conforme pensada pelos
estruturalistas, em que fica clara a oposição entre a metafísica que diríamos clássica e aquela
Conforme Milner (2003, pp. 15-44), há uma definição tradicional da diferença que ele
mostra inclusive ser tributária da lógica aristotélica. Ele então evoca essa definição dizendo
que ela depende da existência de duas outras, quais sejam: o próprio e o essencial. O próprio é
aquela característica que pertence ao indivíduo e não pode ser encontrada em nenhuma outra
espécie ou indivíduo. Por sua vez, a diferença é exatamente a característica que, ao mesmo
tempo, é própria e essencial. O exemplo seria: é próprio do homem rir, nenhum outro animal
parece ter essa capacidade, entretanto, não é essencial rir para ser um homem. O que
diferencia o homem não pode ser, portanto, uma risada, mas sim uma característica que seja
própria e essencial. Neste caso a tradição filosófica poderia permitir eleger a razão como
diferença do homem, porque ela é própria e essencial a ele, ou seja, não pode haver homem
Dada essa definição, temos que explicitar agora que a ideia de diferença na lingüística
estrutural, conforme inaugurada por Saussure, não se reduz a essa. A diferença acima definida
depende de características positivas, sendo que a diferença de Saussure não pode ser
desvinculada do tema do negativo: "uma diferença supõe em geral termos positivos entre os
quais ela se estabelece, mas na língua não há mais que diferenças sem termos positivos
88
(tradução nossa)8" (Saussure, F., 1916 conforme citado por Milner J.-C. , 2003, p. 40). Assim
das qualidades implica uma antipredicabilidade que está em conformidade com a ideia de
Frege, já apresentada anteriormente. Ele sustenta que uma frase não seja lida como a relação
do sujeito com um predicado, mas sim como a "função" que articula os "argumentos" 9. Neste
caso não se pode ter qualidades, mas sim elementos em relação, sendo que, para que hajam
essas relações nenhum dos elementos podem estar aprioristicamente ligados uns aos outros,
em termos de uma identidade - pelo contrário - o pressuposto é a diferença entre eles. Há,
Assim, o que há em comum a todos os objetos é a ausência de predicados. Isso se torna uma
proposição metafísica porque percebe-se que mesmo com a extração de toda a qualidade,
ainda resiste a possibilidade de um objeto ser. Ora, esse esvaziamento é contrario a metafísica
aristotélica que pretendia que todo o objeto tivesse uma substância, por isso dissemos que tais
Então nos parece que dizer que "há uma metafísica no estruturalismo", é sinônimo de
uma das teses minimalistas, o minimalismo de objeto, que diz que a única propriedade que o
objeto tem necessariamente é aquela que vem do sistema para o objeto, neste caso, a
diferença. Mesmo que um objeto seja despojado de todas as características, uma ainda
Até então, estamos demonstrando que há algo comum a todo objeto. Mas o
8
"Una diferencia supone en general términos positivos entre los cuales ella se estabelece, pero en la lengua no
hay más que diferencias, sin términos positivos"
9
Esse aspecto econtra-se desenvolvido nas pags. 74 e 75 deste trabalho.
89
filosofia de modo a localizar as consequências dessa tese. O tema é relativo à unidade das
brevemente a seguir.
Blanché (1983, p. 85) explica que com o advento do empirismo lógico propõe-se uma
possível divisão entre as ciências formais - lógica e matemática - e as ciências do real. Essa
seria uma outra faceta da querela entre o empirismo e o racionalismo, o primeiro fazendo
Tal discussão é bastante longa, mas cabe apontar para nossos efeitos, que o sucesso da
científico, fez com que esse autor apresentasse com otimismo uma ciência que fosse
indiferente ao que é percebido. Entende daí que a ciência “não se pode desenvolver senão
virando as costas à experiência sensível se pode tomar a chave que nos permite decifrá-
É um sem número de autores que posteriormente identificam que uma tal concepção
acaba por retirar a ciência formal, representada pela lógica, matemática, física matematizada,
dentre outras, do campo da ciência. Esses autores passam a entender que não haveria
como um instrumento cientifico do que como as ciências propriamente ditas, visto nada nos
real. Buffon (1707 –1788), um reconhecido naturalista e enciclopedista, que teve também
Citamos autores bastante antigos – Galileu, Buffon – que já apresentam essa noção de
que as verdades a priori da matemática não tem necessariamente relação a algo exterior a ela,
mas esse aspecto também foi notado por aqueles autores que trabalharam na axiomatização da
características da linguagem supondo que “os enunciados da lógica são tautologias, isto é,
proposições não destituídas de sentido, mas vazias de todo o conteúdo, e próprias por
Aqui nosso intuito principal foi, de forma menos robusta, apresentar a leitura de
alguns filósofos que acabam por retirar ciências formais do campo das ciências, destacando
seu caráter de instrumento do pensamento. Esses autores parecem perceber as ditas ciências
formais exatamente como as propriedades não quaisquer que permitem acessar um fenômeno
em sua inteligibilidade. Cabe notar, portanto, que esses autores pensam que a matemática -
aqui lida como linguística, lógica ou estrutura - não pode ser considerada uma ciência, mas é
mas sem a matemática a ciência não poderia existir. É portanto, imprescindível à ciência, mas
Aqui estamos coerentes a visão de Milner (1996) que enfatisa que a linguagem se
articula como uma lógica, pois ela se apoia nas três teses minimalistas que explicamos acima
neste capítulo. Da mesma forma, a matemática pode ser lida como uma disciplina derivada da
lógica filosófica. Como consequência, podemos nos apropriar de forma mais efetiva da
formulação de Milner de que a matemática pode ser vista como uma linguagem, dado que
“que a matemática seja uma língua (a maioria dos modernos sustentam, alem disso
que cabe a lógica enunciar-lhe as regras, mas desde que a própria lógica seja
enunciada em língua matemática), essa afirmação vincula-se de maneira geral, ao
doutrinal da ciência (...)”(1996, p. 71)
Justificamos então nosso singelo desvio pela epistemologia como uma tentativa de
representar nesses autores o que seria uma propriedade transcendental. A matemática seria
considerada como tal porque não pertencendo a nenhuma ciência, é aplicável a todas elas.
exemplo da matemática, teríamos que para os autores supracitados (que na esteira de Galileu a
Dito isso, podemos perceber que também o hiperestruturalismo pode ser lido enquanto
uma abordagem transcendental já que "a analogia salta aos olhos entre as propriedades
C., 1996, p. 89). Neste ponto, sintetizamos o intuito dessa sessão como sendo uma tentativa
de: 1) expor o Hiperestruturalismo - cuja tese se resume a: "a estrutura qualquer tem
propriedades não quaisquer" (Milner J. C., 1996, p. 85); 2) mostrar suas consequências, quais
92
sejam: apresenta um parecer metafísico, e ter a qualidade de ser uma abordagem que aparenta
ser transcendental.
Entretanto, se considerarmos a apresentação mais extensa que foi feita anteriormente neste
capítulo sobre essas duas teses, fica claro que elas não funcionam de forma independente uma
2.4 Conclusão
la, fica demonstrada a função premente da ideia de diferença na teoria lacaniana. Assim dá-se
o relevo merecido a nossa segunda tarefa, que será de tentar cernir qual o mecanismo de
campo do saber. Queremos apresentar no próximo, o que está na raiz, na fundação desse traço
minimal que apresenta-se, por ser o suporte da diferença, como o fundador da propriedade
principal do significante, ser oponível a um outro. Dizendo de uma forma mais simples,
tentamos neste capítulo mostrar para onde o traço unário vai e o que é possível fazer com ele;
93
em seguida queremos falar de onde ele vem, explorando a noção de que o referente é sempre
Foucault nos sugere uma imagem, ele nos diz que Dom Quixote, personagem lendário
de Cervantes, pode ser entendido como um arauto do fim de uma era dos jogos antigos das
semelhanças e dos signos. Se está finita a crença de que o texto atinge o mundo, que a
apreende e pode ser considerada ela mesma o mundo, Dom Quixote é o personagem que tenta
restabelecer essa comunicação. Ou seja, "se ele quer ser-lhes semelhantes é porque deve
prová-los, é porque os signos (legíveis) já não são semelhantes ao seres (visíveis)" (Foucault
semelhança entre a realidade e o texto, romance extravagante, comprovando que "os signos da
Entretanto, é sempre frustrado nessa tarefa, pois a realidade tende a desmentir seus propósitos.
Há, porem, uma segunda parte do livro em que Dom Quixote é reconhecido como o
herói, como queria. É como se a narrativa que foi feita na parte anterior fosse reconhecida em
seu texto, restando então ao herói ser fiel àquilo que quis inscrever no mundo, sendo guardião
da coerência dessa verdade. Se Dom Quixote intentava achar os signos nas coisas, no que
diríamos a primeira parte do livro, é ele que deve defender esse texto em uma segunda parte
"dos erros, das falsificações e das sequências apócrifas" (Foucault M. , 2000b, p. 66). É como
95
se essa segunda parte do texto tivesse que retomar a primeira. Daí se percebe que perdido o
referente, efeito que gera a epopéia de Dom Quixote, o herói, ao querer retomá-lo, faz
com que a linguagem tenha que se dobrar sobre si mesma: "a verdade de Dom Quixote
não está na relação das palavras com o mundo, mas nessa tênue e constante relação que as
marcas verbais tecem para si mesmas" (Foucault M. , 2000b, pp. 66-67) A linguagem
portanto, retirando-se da relação biunívoca com o referente, quer saber o que caracteriza a
linguagem internamente: "a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar
linguagem. Segundo ele, a partir da idade clássica, "a linguagem se retira do meio dos seres
para entrar na sua era de transparência e de neutralidade." (Foucault M. , 2000b, p. 77). Nesse
sentido, alia-se a ciência que tem três formas de acessar o mundo: através do mecanicismo,
empírico; e uma terceira tentativa, mais geral, que tentava transformar todo o perceptível em
unidades através de medidas, posteriormente tentando ordenar essas medidas. Nessa aliança, a
ciência "cumpre-lhe fabricar uma língua e que ela seja bem feita- isto é, que, analisante e
combinante, ela seja realmente a língua dos cálculos" (Foucault M. , 2000b, p. 85). De
qualquer maneira todas essas três formas eram estratégias nas quais a linguagem tentava em
se exceder. Já que foi cortada sua relação imediata com o mundo, cabe entender de que forma
atingi-lo novamente.
natureza e era nosso destino chegar a decifrá-los, mas "era a linguagem mesma das coisas que
mundo só será medida em relação aos outros termos e as relações que ele permite traçar entre
96
eles. Desta feita, o signo convencionado, apesar de não ser o único previsto, é o preferível,
dado que "pode-se sempre (e é preciso com efeito) escolhe-lo de tal sorte que seja simples,
O paradigma dessa forma clássica de teorizar o signo como representante foi o texto
que ficou conhecido como Lógica de Port-Royal10, sendo o grande expoente da influência
cartesiana na teoria do signo. Se o objetivo era, conforme dissemos, criar uma língua bem
feita para acessar o mundo e criar um saber confiável, a lógica port-royalista , estabelece que
uma linguagem é tão melhor quando mais tiver a forma do pensamento, e o pensamento em si
linguagem é afeita a ordem do pensamento, ela é também afeita a ordem do mundo. Então, se
pensamento.
2010), tanto em Descartes quanto nos port-royalistas. Seu argumento inicia-se com o
presssuposto de que se a lingua é arbitraria, não existe possibilidade de que ela tenha
influência nos processos cognitivos. Assim da-se mais importância ao pensamento e sua
forma de estruturação do que à linguagem, daí a ideia de que a linguagem é tão melhor quanto
10
Esse texto chamado Lógica, ou A arte de pensar de 1662 foi escrito pelos Jansenistas Antoine Arnauld, (1612-
94) & Pierre Nicole (1625-95), mas ficou mais conhecido como Lógica de Port-Royal. Segundo Marcondes
(2010) pode ser considerado um texto sobre linguagem à influência da teoria de Descartes. Contem menos
asserções sobre lógica do que sobre o funcionamento linguageiro do pensamento: "as operações do intelecto no
processo de conhecimento e a maneira pela qual as ideias (termo empregado no sentido cartesiano) representam
a realidade e como por sua vez as palavras expressam as ideias - afastando-se com isso do formalismo lógico"
(Marcondes, 2010, p. 46).
97
sobre o pensamento, decorre que não conhecemos a partir da linguagem e que a posssibilidade
de conhecer supõe algo prévio, inclusive em relação à experiência e/ou à apreensão sensível.
A consequência é que tudo o que se pode conhecer será sabido como verídico, se respeita a
Um dos aspectos desta Ordem, que elegemos como exemplo para que se entenda qual
depois os coloca em relação a partir do mecanismo de comparação. Aqui fica expressa uma
das propriedades essenciais dessa Ordem, que era estabelecer diferenças e depois igualdades
Neste paradigma, "porque o espirito analisa, o signo aparece. Porque o espirito dispõe
de signos, a análise não cessa de prosseguir." (Foucault M. , 2000b, p. 84) Fica, portanto,
expressa a ideia de que a linguagem funciona tão melhor quanto mais esteja próxima do
pensamento. Assim, os signos que outrora eram elementos a serem procurados nas coisas,
A consequência para a linguística é que fica estabelecido desde então que se "a
materialidade dos signos é grandemente arbitrária, é tão somente a maneira por que são
combinados que pode exprimir a coisa significada " (Ducrot, 1968, p. 27). Daí se deduz que a
forma que eles devem se combinar é exatamente a ordem do pensamento: "as 'gramáticas
gerais' do século XVIII, que ensinam, segundo Port-Royal, que a construção da frase imita a
Uma outra forma de caracterizar essa distensão entre essas duas formas de lidar com a
linguagem, é utilizando categorias que Ducrot (1984) nos ensina a identificar: linguagem,
atinge o referente, isso é, ela poderia ser tautológica, mas existe uma vontade, uma orientação,
não escapamos, pois, a essa exigência, segundo a qual a palavra tem que conter, como
seu elemento constitutivo, uma alusão a uma exterioridade. (...) Desde que haja um ato
de fala, há uma orientação necessária para aquilo que não é o dizer. É essa orientação
que podemos chamar <<referência>> (Ducrot, 1984, p. 419)
Esse exterior, que muitas vezes se confunde com a realidade, apresenta uma grave
qualidade. De qualquer forma não há como não notar que existe a possibilidade da linguagem
interferir nisso que é externo, se o definirmos como aquilo que "não é, assim, como por vezes
se diz, a realidade mas sim a sua realidade, isto é, o que o discurso escolhe ou institui como
realidade" (Ducrot, 1984, p. 419). Isso gera uma consequência muito importante
relativamente ao conceito de referência, pois se a linguagem sempre tentará acessar isso que é
exterior a ela, o referente fica ao mesmo tempo nela capturado, mas a ela externo. Fica assim
inscrito o "estatuto ambíguo do referente que, por um lado, deve ser exterior ao discurso e
que, por outro, é chamado pelo discurso, e portanto, fica inscrito nele" (Ducrot, 1984, p. 419).
Ora, é possível, então, dizer que o referente está em relação à linguagem em inclusão externa.
com a qual linguagem acessa o que lhe é externo, é a solução que sugere inserir nessa
discussão um terceiro conceito, o de sentido. Assim separa-se pela alcunha de sentido o que é
interno ao discurso, mas de toda maneira independente dele, como uma realidade discursiva e
99
contextual, e o referente, sendo esse último o que é realmente externo ao discurso, mas visado
por ele.
É interessante notar como esse esquema que relaciona signo, sentido e referente,
- e suas consequências. Tal propriedade é definida por Foucault justamente como a "a relação
do signo com o seu conteúdo não é assegurada na ordem das próprias coisas" (Foucault M. ,
Anteriormente a idade clássica, o signo articulava três termos: o signo, o que ele
medieval o sentido era o que aproximava a coisa do signo e estava previsto como termo que
funciona ao contrário com dois termos, "o signo encerra duas ideias , uma da coisa que
representa, outra da coisa representada; e sua natureza consiste em excitar a primeira pela
segunda."(Arnauld y Nicole, 1662, conforme citado por Foucault, 2000, p. 88). Assim, há
uma assimetria entre o representante e o representado, havendo também uma hierarquia que
privilegia o representante, já que ele é o que acessa o representado e não o contrário. Essa
Entretanto, mais importante que isso, vê-se que com essa guinada, a linguagem na
epsteme clássica é o que indica e faz aparecer, ou seja, fica manifesta a sua tendência a se
dobrar em relação a si mesma, conforme expressado com a alegoria de Dom Quixote. Ducrot
o diz com termos muito precisos: "se é a minha palavra que indica aquilo de que fala, se é ela
que especifica o seu objeto como poderia ela ser desmentida por esse objeto que a si própria
lado o referente. Percebe-se, portanto, que construir a categoria de sentido destaca que este é
interno ao discurso, criando uma realidade independente. A ideia de sentido põe em evidência
que a linguagem não necessariamente acessa o referente e coloca-o fora do plano linguístico.
gostaria de conservar a sua relação intrínseca com o referente, fica difícil distingui-la do
próprio objeto. Conforme Ducrot: "o sentido destinado a <<apresentar o objeto>>, quando
cumpre efetivamente essa função torna-se difícil distinguir do próprio objeto." (Ducrot, 1984,
p. 424). Assim, mostramos abaixo a relação de 3 termos, donde o sentido fica sendo o
elemento de ligação entre signo e referente. Este garantiria, portanto, que signo e referente
Signo referente
Entretanto, o que queremos mostrar é que o efeito foi outro. Nos parece que ao adotar
uma teoria da representação com dois termos, ao invés de, por uma teoria do signo
convencionado, se atingir mais facilmente o referente, como era seu intento, a linguagem
acaba por construir para si um mundo à parte. Nele se tem a relação não do signo com o
Signo sentido
101
conhecimento, e, segundo o excerto acima, quanto mais arbitrário melhor, cabe pensar de que
forma irão atingir a significação, pois se os signos são convencionais, instituídos pelo saber, e
sem relação com o referente, a consequência é que o signo, indiferente ao mundo, não o é em
relação aos discursos. A escolha do signo está embebida em um tipo de pensamento, que
quisemos expor acima quando explicitamos a ideia de Ordem. Primeiro se institui a ideia,
depois um sistema de signos que coadune com ela. Não à toa, Foucault chama atenção
(2000b, p. 90), nesta época foi vislumbrada por Destutt a noção de Ideologia.
Conforme quisemos explicitar com a alegoria escolhida por Foucault a partir de Dom
Quixote, mesmo que na era clássica a linguagem tentasse constituir-se como um instrumento
que atingisse garantidamente o objeto, o que se consegue é que ela se prenda nas condições de
possibilidade deste intento. Ou seja, assim como a segunda parte do livro de Foucault em que
a epopeia de Dom Quixote promove uma volta sobre o texto que escreveu na primeira,
quando o livro se dobra sobre si mesmo, assim acontece com a linguagem na era clássica.
Neste movimento cria uma ideologia para sustentar que o pensamento tem uma forma de
funcionamento e que ela deve ser o crivo para a invenção de uma linguagem que seja a ele
afeito. Presume desta forma que o pensamento, quando corretamente utilizado, tem a
É interessante notar que Saussure, poderia ser facilmente incluído nesta tradição. Ele
estipulou que o elemento fundamental de sua linguística fosse o signo, este sendo descrito
noção de sentido. Sobre o referente, Saussure não emitiu nenhum parecer. Mais do que isso,
negou que o seu conceito de significado pudesse fazer qualquer alusão a externalidade do
102
discurso. Vê-se aqui as propriedades sublinhadas por nós como sendo as que caracterizam a
noção clássica de Signo, que afasta-se do referente com a consequência de produzir uma
linguagem que só induz sentido internamente a ela. O corte entre Saussure e os Port-
Royalistas seria, neste caso, a consciência, por parte de Saussure de que não se atinge o
referente. Como consequência esse autor deixaria claro também que o sentido depende de
uma realidade discursiva, de um paradigma, no sentido que fora descrito acima neste texto.
ao signo. Nos parece que o fato de Saussure ter apresentado elementos incongruentes com
essa tradição foi o que permitiu com que Lacan, com um gesto simples, aproveitasse a noção
a pensar que se Saussure estivesse tão próximo a ideia de sentido, tão embebido na mesma, a
apropriação feita por Lacan não seria possível. A partir de então, tentaremos mostrar quais os
elementos em Saussure deixaram sua teoria mais distante do sentido e mais próxima a uma
apreensão hiperestruturalista.
Saussure em relação a não representatividade do signo. Ele, em momento algum entende que
Essa, entretanto, não parece ser a característica primordial que o separa do classicismo
pois a perda do referente não separa Saussure da ideia que internamente a ela mesma a língua
11
la relación del signo con la cosa significada, no le importa en absoluto a Saussure. Asistimos aquí a un
desplazamiento decisivo: Saussure construye un modelo del signo que se separa de toda teoría de la
representación
103
língua não excede a si mesma, não atinge algo externamente ao sentido que ela produz
internamente. O advento da teoria de Saussure é tão somente deixar clara essa característica
internamente a ela. De qualquer forma, devemos ressaltar que é esse resquício em relação a
epistême clássica que impede Saussure de levar a teoria do signo as suas últimas
consequências, qual seja, a hipótese hiperestruturalista do sujeito como o único elemento que
Um outro ponto, mais importante, para retirar Saussure da tradição clássica, que marca
clássica prevê uma definição, portanto, uma tipologia para os signos. Entende que os signos
podem ser classificados segundo três variáveis (Foucault M. , 2000b, p. 80). A primeira seria
origem da ligação com o que representa, neste caso podendo ser naturais ou de convenção. A
segunda relacionada ao tipo de ligação, se pertence ao mesmo conjunto que ele designa ou se
o conjunto que ele designa é outro. A terceira variável seria a certeza da ligação, se o signo
língua, sendo que o signo é o elemento axiomático utilizado para teorizar a língua. Desta
forma, não há uma definição, mas sim uma descrição do signo, isso porque o signo é um
conceito primitivo, que permite derivar uma teoria sobre a língua. Em uma abordagem o signo
é o objeto, em outra a língua é o objeto sendo que o signo torna-se um tipo axiomático, e,
materialidade fônica (tradução nossa) 12" (Milner J.-C. , 2003, p. 31). Entretanto, a descrição
de significado é bastante complexa, no mais das vezes, feita de forma negativa. Ele diz que o
significado é o conceito ou a ideia, mas o conceito é definido como aquilo que não é a própria
coisa, nem a classe de coisas, nem a coisa conforme definida em um mundo ideal. Ducrot
testemunha sobre a definição de conceito: "o que é que, positivamente, se deve entender por
conceito? O parágrafo do Cours consagrado a essa questão (parte II cap iV, §2) é
Essa dificuldade ainda se agrava, pois se para Saussure significado e significantes são
indissociáveis, disso decorre uma grande dificuldade pragmática para sua teoria, na análise
dos signos nas cadeias linguísticas. Milner nos sugere um exemplo: se tomamos a palavra
árvore, o significado da mesma estaria relacionado a todas as ocorrências deste signo. Isso
faria com que só houvesse um significado para todas as aparições, inclusive quando
associadas a outras palavras que mudariam totalmente o seu sentido, por exemplo, árvore
genealógica. Se assim, toda a vez que se dissesse árvore, somente um conteúdo poderia ser a
ela relacionado, mesmo quando esse significante fosse utilizado na forma figurada. Como
esse ponto torna a teoria indefensável, para manter a relação necessária entre significado e
significante, tem se que a única alternativa plausível é admitir que todo o significante é
diferente inclusive dele mesmo. Ou seja, toda a aparição da palavra arvore é única, donde que
sua propriedade última é somente ser diferente de todos os signos, dele inclusive. Ou seja,
utilizado um signo em dois contextos, admitiremos que eles não são o mesmo, dependendo o
seu sentido de sua posição. A consequência disso é que não exista sinônimos. Vemos que
12
el representante psíquico de la materialidad fónica
105
entendeu que dada a semelhança material de duas aparições elas logo seriam consideradas a
identidade. O que o conceito saussuriano de significante promove é uma ruptura com essa
proposição desde que um significante deve ser inclusive diferente de si mesmo, distinto de sua
Outra consequência, é que conceito ou significado para Saussure parece não poder ser
pensado internamente ao signo porque só pode ser formado por oposição. Ou seja, ao colocar
que o estruturalismo é uma "maneira de reagrupar as ciências do signo" (Wahl, 1968, p. 16),
Wahl nos respalda em nossa suposição dizendo que, na abordagem de Saussure sobre o signo,
como "o que há de novo não é o significado, mas sua relação com o significante, poderíamos
nos sentir tentados (eu pessoalmente me sentiria) a dizer que é por esse último que se define o
significante e significado se não produz uma definição clara do que seja o significado? Para
entendermos isso cabe uma retrospectiva em relação ao que já dissemos sobre a epistême
vontade, com os sons. O som era o representante exterior do pensamento. Essa é uma herança
"quem fala, pois, manifesta exteriormente o sinal [signum] de sua vontade através da
articulação do som...." (Agostinho, 389, conforme citado por Marcondes, 2010, p.33)
Já dissemos, entretanto, que não podemos nos enganar com essa noção de significado,
quanto tal teoria depende da suposição de que esse acesso está garantido por uma propriedade
apriorística compartilhada pelo pensamento e pelo mundo, aquela que prevê que ambos
donde se conclui que o som e a coisa representada estão no mesmo patamar, são dois
aspectos da mesma realidade, mesmo que a relação entre os dois não possa ser invertida e
não seja recíproca. Segundo Milner, nesta o signo é "uma realidade (a imagem acústica arbor,
por exemplo) que representa, graças a uma relação assimétrica, outra realidade: a coisa
chamada arbor ou eventualmente a ideia desta coisa. (tradução nossa)"13 (2003, p. 29)
manter os termos de Santo Agostinho, que são os sons, aos quais ele corresponde o
entretanto, que o linguista não tinha nenhuma pretensão de que os significado remetesse a
coisa. Também temos que, na esteira de Santo Agostinho, os lógicos de Port-Royal davam
maior importância ao pensamento e entendiam que a linguagem era tão melhor, quanto
13
este es una realidad (la imagen acústica arbor, por ejemplo) que representa, gracias a una relación asimétrica,
otra realidad: la cosa llamada arbor o eventualmente la idea de esa cosa
107
melhor desse forma a esse pensamento. Saussure, por sua vez, foi bastante deficitário em
definir o significado e o qual sua relação com o pensamento enquanto ideia ou conteúdo.
som ou sinal no mesmo nível, esse autor pensa que o significante e o significado eram
pensamento com o som era como o encontro do vento com as águas, gerando as ondas. Esses
dois meios existem independentemente, mas somente com o encontro dos dois a onda tem
existência, como elemento novo e distinto dos outros dois que o formam. Assim é o signo, ele
da premissa da heterogeneidade desses dois conceitos primitivos que decorre que o signo
precisa da presença de ambos para que emerja como algo distinto. Prevê-se, portanto, uma
relação necessária entre significado e significante. Para ilustrar esse ponto, Saussure diz que
significante e significando se comportavam como, numa folha, a frente e o verso. Numa folha
necessariamente associados, o que se escreve na frente nenhuma relação precisa ter com o
verso. Entretanto, uma vez preenchidos frente e verso, os dois estão ligados. Com isso fica
explicitada a relação arbitraria entre significante e significado, mas que, depois de montada,
torna-se necessária. Na formulação de Saussure: "na língua não se poderia isolar o som do
É preciso dizer que a associação recíproca dos elementos do signo não foi desde
sempre necessária, ou seja, não é natural um certo som corresponder a um certo significado.
Há nessa associação uma arbitrariedade, mas uma vez estabelecida a correspondência ela não
pode ser desfeita. De qualquer forma, a noção de significado aqui parece surgir somente para
sugerir uma vontade de significação, sem promover qualquer sentido que conforme já
108
eventualmente poderia gerar sentido, é o que para Saussure gera a delimitação das
" o papel característico da língua diante do pensamento não é criar um meio fônico
material para a expressão da ideia, mas servir de intermediário entre o pensamento em
o som, em condições tais que uma união conduza necessariamente a delimitações
recíprocas de unidades. O pensamento caótico por natureza é forçado a precisar-se ao
decompor-se." (Saussure, 2012, p. 159)
Ou seja, Saussure precisa supor o encontro entre dois heterogêneos para que surja um
elemento que funcione como o que confere distintividade entre as ideias do pensamento e
entre os sons da língua, e, para que haja essa diferenciação é como se algo tivesse que se
destacar como uma unidade. Anteriormente, o som e o pensamento são fluidos amorfos
colocados em paralelo. É somente do encontro entre eles que eles determinam mutuamente as
unidade, assim como a água e o vento geram a onda como elemento destacado. Novamente
teoria de Saussure. Na premissa clássica, a razão é clara e distinta e se a linguagem for afeita a
ele ela será também clara e distinta como uma boa linguagem deve ser. Por sua vez, Saussure
parte da outra extremidade, o pensamento para ele, é caótico, "nosso pensamento não passa de
uma massa amorfa e indistinta" (Saussure, 2012, p. 158). É a junção entre pensamento e som
que permite a precipitação do signo que é o elemento unitário que confere a propriedade de
Sem o recurso dos signos seriamos incapazes de distinguir duas idéias de modo claro e
constante. Tomado em si, o pensamento é como uma nebulosa em que nada está
109
O parentesco com a definição Lacaniana do traço unário, enquanto sendo algo que se
destaca, se recorta do entorno gerando distintividade não pode ser maior. Em Lacan, traço
unário é usado para "designar a função da unidade enquanto ela é o fator de coerência pelo
qual alguma coisa se distingue daquilo que a cerca, faz um todo, um no sentido unitário da
Milner (2003, p. 38) destaca que há um parentesco entre a ideia do vento e da água com a
primeira passagem do Gêneses que diz: "o sopro de Deus passou sobre as águas". Sendo
ligeiramente distinta, ele diz, também fazendo uma citação bíblica, conforme já mencionamos
no capítulo anterior: "No principio era o verbo quer dizer, no principio é o traço unário"
(1962-1963/ 2005, p. 31). Ambos os autores, portanto, colocam a distintividade num início
Retomando, temos então que Saussure pensa o signo como o encontro de dois
heterogêneos. Neste encontro do significante e o significado, temos que esse segundo termo é
de difícil definição, sendo utilizado no mais das vezes somente para manter um outro meio
indefinível com o qual o som deve encontrar para fazer emergir um elemento novo. Assim o
significado não é o sentido, o conteúdo, a ideia, donde que " o signo não representa nada, é
somente um ponto de contato entre dois fluxos" (Milner J.-C. , 2003, p. 39). O que se deve
reter, portanto, é que o significado, mesmo em Saussure, precisa existir para que haja o
contato entre os dois fluxos gerando o elemento novo, mas por sua indefinição
permanece interior ao signo como um elemento indefinido. Por isso poderíamos cogitar
que o signo em Saussure corresponde ao significante em Lacan, se feita uma leitura rigorosa,
dado que o que se mantém é o significante, definido como materialidade fônica, associado a
110
um outro elemento opaco. Milner sugere esse entendimento ao explicitar como Saussure passa
a pensar no sentido a partir da ideia de valor, que depende da posição do signo em relação a
cadeia, em detrimento do que se pode extrair internamente ao signo. Ele então nos diz:
"Saussure parte do signo para afastar-se dele, mas não pode abandoná-lo já que havia
colocado o signo no ponto de partida (tradução nossa) " (Milner J.-C. , 2003, p. 41)14
próprio signo linguístico, em que se tem o contato entre dois fluxos heterogêneos, se deriva a
propriedade primordial de todo o signo em relação a outro signo, a oposição, diferença, corte.
epistemológicas minimalistas, das quais se deduz todo edifício estruturalista. Disto temos que
elemento e estrutura são subjacentes a uma mesma propriedade, a estrutura não tendo
Milner (2003, p. 38), ainda nos faz perceber que a metáfora do vento com a água tem
judaico/cristã. Entretanto, para ilustrar o mesmo princípio sugere outra figura na qual há o
encontro de dois magmas sem qualidades nem divisões, mas que, por heterogêneos um em
relação ao outro, dão a ver o corte formado entre as duas massas que se encontram, sendo que
"esse encontro basta para suscitar divisões e, com ele, diferenças (tradução nossa) 15". (Milner
J.-C. , 2003, p. 38) Porque insistimos com esse novo exemplo? Para mostrar que a onda, na
14
Saussure parte do signo para apartar-se de él, pero no puede abandonarlo sino porque había colocado al signo
en el punto de partida.
15
ese encuentro basta para suscitar divisiones y , con ello, diferencias.
111
metáfora de Saussure o elemento que se destila do encontro dos dois heterogêneos, não é nada
mais que a divisão que se dá a ver com o encontro dos dois magmas. A percepção do corte, a
diferença como corte que se dá a ver nessa nova metáfora: "a distintividade é cabalmente uma
ação, e sobre essa ação se fundam os cortes reconhecidos como pertinentes (tradução nossa)
16
" (Milner J.-C. , 2003, p. 164) .
Defendemos aqui que o signo de Saussure tem em comum com a ideia de significante
em Lacan mais do que se supõe geralmente. Entretanto é preciso notar, com Milner (2003, pp.
163-165), que o gesto de Lacan em separar o Significante e Significado não pode ser
assim uma ação pura que passa a fazer parte do conceito de significante, uma ação de corte,
de cesura. Isso faz com que se reescreva a conjuntura hiperestruturalista da seguinte forma:
considerar um elemento qualquer só desde o angulo da ação pura que suscita suas
propriedades mínimas não quaisquer17 (Milner J.-C. , 2003, p. 163)
se o corte já estava tematizado em Saussure, internamente ao signo pelo fato dele haver o
encontro entre dois heterogêneos, Lacan coloca esse corte agora na dependência de uma ação
que isola o significante do significando. O corte passa a ser função de uma ação. Parece estar
dito que uma vez destilado o corte pode funcionar sozinho, sem remeter ao encontro de um
Tal operação feita por Lacan aponta para a necessidade de se supor um início mítico,
do encontro entre dois heterogêneos, mas o traço unário só pode funcionar se não estiver a
16
la distintividad es cabalmente una acción, y sobre esta acción se fundan los rasgos reconocidos como
pertinentes
17
considerar un elemento cualquiera sólo desde el ángulo de la acción pura que suscita sus propiedades mínimas
no cualesquiera
112
partir daí em relação direta com o indefinível que é necessário para gerá-lo. Se usamos agora
a terminologia psicanalítica, saberemos que podemos aproximar esse indefinível do real. Daí,
temos que a premissa do simbólico se funda em função do encontro do simbólico com o real,
Para que esse ponto fique explicito, voltamos ao seminário IX no qual o encontro entre
esses dois heterogêneos é tematizado também em Lacan. Ele nos lembra que "desde que o
homem é homem, tem uma missão vocal como falante" (1961-1962/ 2003, p. 90). Por outro
lado, existem os registros rupestres, no material pré-histórico dos traços, que são a princípio
"uma bagagem, uma bateria, de algo que não temos o direito de chamar abstrato, no sentido
que empregamos hoje essa palavra" (1961-1962/ 2003, p. 91). Do encontro entre o traçado
rupestre que funciona como uma bateria, e poderia ser considerado no nível do simbólico, e
da fala amorfa que poderia ser pensada enquanto real, "o que fica é algo da ordem daquele
Entretanto, o traço unário não pode ser essa diferença que dependerá da permanência
dessa simetria, o traço unário é somente a marca desta diferença. É em função disso que
Lacan insiste no corte entre significante e significado, donde que o real permanece no interior
do significante apenas como marca. O traço unário, portanto, somente indica onde se fixa o
trabalho através da alegoria de Sólon: aquilo que funda e organiza, o que está no ponto mítico,
deve se excluir do meio que ele organiza. Aquilo que é a relação necessária interna ao signo
113
do qual provem a propriedade de distintividade tem que ser excluído com uma ação de corte,
Dissemos no prólogo desta dissertação que o traço unário está relacionado ao conceito
de Nome Próprio, tradicionalmente abordado pela lógica e pelos linguistas. Ao tratar das
diferentes definições do Nome Próprio, Lacan parece querer cernir um outro aspecto relevante
mãe, sugerindo que a solução que o garoto tramou não é sem relação a um "significante chave
que permite ao sujeito preservar o que está em questão, para ele, a saber, esse mínimo de
ancoragem, de centragem de seu ser, que lhe permite não se sentir um ser completamente a
deriva do capricho materno." (Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 82). Logo em seguida, Lacan é
rápido em dizer que esse ponto de amarração provido pelo significante está relacionado a
Trabalhar esse aspecto de forma satisfatória não será possível para o pouco espaço que
nos resta nesta dissertação. Entretanto, se ao início deste trabalho queríamos pensar sobre a
relação do traço unário com o ponto de Basta e, portanto, com as formas de estabilização
brevemente este conceito, desde que é apontado como um operador primordial para a
amarração do sujeito.
comentados por Lacan e que são referências tradicionais, Bertrand Russell e Stuart Mill, mas
daremos maior importância à teorização de Kripke (Naming and Necessity, 2001), ao entorno
desde tema. Sublinharemos estratégia deste autor desde que identificamos na sua teoria várias
semelhanças com o que tratamos acima sobre o signo saussuriano. Assim poderemos cotejar
essas duas abordagens tentando perceber se tal aproximação auxilia no entendimento das
relações do nome próprio com o traço unário, o que já cria fundamentos para futuras
investigações.
Bertrand Russel é o autor que demonstra que a ideia de nomes próprios não pode vir
desvinculada de uma discussão em relação ao referente. Para esse autor, conforme comentado
por Lacan, existem duas formas de estabelecer referências para a linguagem. Uma delas é
aquela em que se iguala o termo do qual se quer falar a uma descrição que permite achar o
referente daquele nome no mundo. A segunda forma é aquela que, em sua radicalidade, deixa
expressa a qualidade do nome em designar um particular enquanto tal. Assim, para Russell,
um nome seria da mesma categoria que um pronome demonstrativo, desde que tem grande
dependência em relação a presença do objeto que ele designa. O nome tem necessariamente,
portanto, de estar atrelado a um objeto único, sendo que preferencialmente este objeto deve
estar na presença dos falantes para ser batizado pelo nome. O Nome Próprio para Russel é
então "a word for particular, uma palavra para designar as coisas particulares como tal"
(Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 85). Segundo essa definição, que é bastante contra-intuitiva,
temos que, por exemplo, Sócrates não é um nome próprio porque não é possível saber ao
115
certo qual é o particular que ele designa, dada a distância histórica de toda a prova material da
Há ainda a definição de Stuart Mill, este defendendo que o nome é aquela palavra que
não tem conotação, mas tão somente denotação. Ou seja, o nome não tem significado, é
somente um palavra que se associa a um elemento. O exemplo que Mill utiliza para
demonstrar essa propriedade é relativo a uma cidade hipotética chamada Darthmouth (boca do
Darth). Darth seria o nome de um rio, sendo que a cidade recebeu esse nome porque fica na
boca do rio, ou seu estuário. Para Mill, a cidade de Darthmout poderia continuar se chamando
assim, mesmo que por algum motivo o rio não passe mais próximo a ela e nem fosse ali sua
foz. Assim o falante não cairia em contradição quando dissesse que estava na cidade "da foz
do rio Darth" ou "Darthmouth", se um dia o rio não passasse mais por ali. Isto porque em
Essa definição do Nome Próprio ainda sugere uma relação intrínseca com o objeto
particular que ele nomeia, por isso não precisa de um sentido, significado, para conotar esse
O nome comum parece concernir o objeto enquanto, junto com ele, vem um sentido.
Se alguma coisa é um Nome Próprio, é porque não é o sentido do objeto que ele traz
consigo, mas algo que é da ordem de uma marca aplicada de alguma maneira ao
objeto, superposto a ele, e que por causa disso lhe será tanto mais estreitamente
solidária quanto menos for aberta, devido à ausência de sentido, a toda a participação
com uma dimensão por onde esse objeto se ultrapassa, se comunica com outros
objetos (Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 87)
Aqui surge um problema que Kripke percebe em relação a Mill, e Lacan identifica
como sendo próprio da teoria de Russell. Kripke lembra que a maior objeção dos lógicos em
relação à teoria de Mill é que ela torna difícil transmitir, dentro de uma comunidade de
falantes, qual é o referente do nome. Se não é possível identificar qual é esse referente
18
Kripke argumenta que para Mill o nome até tem conotação, porque pode ser entendido como "boca do darth".
Entretanto não tem sentido, porque não significa que a cidade de Darthmouth tem sempre que estar próxima ao
rio, na ausência disso não podendo ser chamada de Darthmouth.
116
descrevendo-o, ou dando o sentido que o nome pode ter, como se transmite o nome a outro
falante? A teoria acessória que resolve esse problema é aquela proposta por Frege e Russell.
Para esses autores, principalmente Frege, o Nome Próprio, como comumente utilizado, seria
somente "uma descrição precisa abreviada ou disfarçada19" (Kripke, 2001, p. 27)20. Assim,
para transmitir o nome próprio aos outros era possível simplesmente dizer a definição a qual o
nome é igualado, sendo que na versão de Mill não há nenhuma menção sobre como se dá o
especificamente sobre os nomes próprios, porque para esse autor não haveria transmissão oral
do nome, porque sempre seria necessária a presença do objeto a ser nomeado para que alguém
objeção de que ao definir tal termo linguístico, ele acaba por infringir uma das regras
fundamentais da linguagem, aquela em que um elemento substitui o outro de acordo com uma
convenção dos falantes. Em Russell o nome próprio não funciona a não ser que haja a
presença do objeto que é designado, por isso o melhor exemplo de nome é o pronome 'isso'.
Qual é a necessidade de criar o nome próprio se o objeto está ali? Qual é a necessidade de
nomear o objeto se sua presença sempre é requerida para o melhor funcionamento do termo?
é certo que aqui vemos que perdemos inteiramente a meada do que nos dá a
consciência lingüística, ou seja, que se é preciso que eliminemos tudo o que dos nomes
próprios se insere numa comunidade da noção, chegamos a uma espécie de impasse
(Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 86)
19
a definite description abbreviated or disguised
20
Conforme dissemos, Russell tinha uma teoria dos Nomes Próprios e uma para os Nomes comuns. Assim,
sempre que agruparmos a teoria de Russell com a de Frege, entender-se-á que estaremos tratando da versão de
Russell sobre os nomes comuns. Kripke (2001, p. 27) justifica essa junção porque para Russell a maioria dos
elementos que tratamos como nomes próprio são na verdade nomes comuns. Por exemplo, para Russell, Walter
Scott abrevia uma descrição, e por isso não pode ser considerado um nome próprio. Assim, na versão russelliana
os nomes, como usados ordinariamente, tem sentido e podem ser associados a uma descrição que permite
encontrar seu referente.
117
Existe entre essas duas críticas um ponto comum que é referente à necessidade de o
propriedade, parecem fazer o nome deixar de portar uma das principais qualidades do termo
na língua, que é se colocar numa comunidade de noção. Isso aponta para o movimento
pendular da língua que oscila entre o sentido, sustentado pela realidade discursiva, pelo
convencionado; e o referente, aquilo externo a língua que, no entanto, quer-se atingir. Para
estes dois lógicos, a ênfase do nome próprio está no referente, no particular do objeto que está
sendo designado. Nesse ponto, é interessante mencionar que a palavra grega que designava
Nos chama atenção, entretanto, que Lacan hesita em tratar as teorias de Russell e Mill
da mesma forma. Russell provê uma definição de nome próprio que gera um paradoxo, pois
uma palavra não pode ser assim considerada se não tem a característica principal da
linguagem que é poder, de alguma forma, colocar-se na troca simbólica. Lacan defende que
Mill não peca por tal defeito, pois para este lógico o nome próprio funcionava como uma
palavra, era uma dentre outras, mas que tem um elemento que permite seu conhecimento
Resumiríamos a distinção que para Lacan é percebida entre Mill e Russell como sendo
a diferença entre ser tomado como um particular, e ser tomado como um particular sem perder
algo do que é considerado comum. A segunda forma é aquilo que se precisa para ter a
Kripke, entretanto, segue outra linha de argumentação e, em vista de sua crítica a Mill,
agrupa as teorias de Frege, sobre o nome próprio, e Russell, agora sobre o nome comum, 21
ressaltando que essas teorias pensavam que o nome próprio poderia ser igualado, portanto,
substituído por uma descrição abreviada a ele relacionado. Assim para Kripke, "Frege e
21
lembramos aqui que quando juntamos as teorias de Frege e Russell, estamos tratando da teoria de Frege sobre
os nomes próprios e a teoria de Russell sobre os nomes comuns (ver nota 21) .
118
Russell, então, parecem dar a definição natural da forma como a referência é determinada
aqui; Mill parece não dar nenhuma (tradução nossa22)" (2001, p. 28).
Por esse caminho, Kripke opta por analisar a teoria de Frege e Russell (que
passaremos a tratar como teoria Frege/Russell), mas desde o início se coloca contrária a
problemas de utilizar uma teoria que parte do pressuposto que é possível isolar um particular
por sua descrição. Assim, em detrimento da visão deste dois autores, cria sua própria teoria
Kripke então retoma que na teoria Frege/Russell o nome é sinônimo de sua descrição,
e também é a forma como a referência é determinada, ou seja, a forma como posso saber a
que se refere um certo nome é achando no mundo o objeto que satisfaça certa descrição. O
primeiro problema deste tipo de estratégia é que, a partir do momento em que o objeto é
identificado a uma certa descrição, feita a verificação empírica de que aquele objeto não
satisfaz efetivamente aquela descrição, o nome não pode mais se referir a ele, mas a outra
coisa que satisfaça a descrição. Por exemplo, definimos que iremos chamar de Aristóteles
aquele que foi professor de Alexandre. Se descobrirmos que Aristóteles não foi professor de
Alexandre, então o nome Aristóteles não mais pertencerá ao filósofo, mas a quem quer que
seja que tenha sido verdadeiramente o professor de Alexandre. Isso cria uma série de
dificuldades, pois, por qualquer mudança nas contingências o nome deixa de se referir àquilo
que imaginávamos que ele referia, dado que o nome é identificado à descrição e não ao
objeto.
definir qual é a propriedade essencial do objeto e ela então será relacionada ao nome. Neste
caso, o nome do objeto não poderia ser usado para imaginar qualquer hipótese contrafatual.
22
Frege and Russell, then, appear do give the natural account of how reference is determined here; Mill appears
to give none.
119
Por exemplo, se descobrimos ser essencial a Nixon que ele seja ruivo, não poderemos
imaginar um mundo onde Nixon não seria ruivo, porque o nome Nixon está necessariamente
associado a um homem com tal característica. Neste paradigma (Kripke, 2001, p. 49), fica
necessárias serão usadas para identificá-lo em outro contexto. Somente desta maneira é que se
essenciais. Assim posto, se não podemos pesquisar algo em um mundo a não ser que já
soubéssemos de antemão quais as características deste objeto, está respeitada a ideia filosófica
comumente admitida, de que todo o a priori é necessário, sendo que necessário é o fato que
não poderia ser diferente mesmo alterando todas as circunstâncias. Assim sendo, um tal
conceito etimológico defenderá que "as verdades apriorísticas são aquelas que podem ser
condições de possibilidade para aquela experiência. Neste ponto de vista, portanto, é possível
situações que ele denomina transmundo, em que se imagina o objeto em um diferente mundo
ou contexto. Com isto, o que este lógico tenta é justamente perceber o que pode ser usado,
sem ser afetado por mudanças contingenciais, para falar de um certo objeto. Utilizando essa
estratégia percebe-se que para que a teoria de Frege/Russell se mantenha estável com a
hipótese de situações contrafatuais tem-se que admitir que: 1) o nome é um a priori, ou seja,
ele é dado antes da experiência com o objeto, 2) a descrição que está associada ao nome para
essencial ao objeto e que, portanto, não pode mudar. A consequência deste quadro respeita a
23
a priori truths are those wich can be known independently of any experience.
120
caracterização tradicional dos termos a priori e necessário, que segundo Kripke é uma
Além deste quadro que, desde já, parece problemático, Kripke percebe que um dos
problemas principais de tal perspectiva é que, ao pensar que os objetos têm características que
lhes são essências, transfere-se para o objeto os qualificadores de contingente e necessário que
só deveriam se aplicar as declarações feitas a um objeto. Kripke, portanto, não concorda que o
objeto tenha características essências porque isso depende da maneira com a qual ele é
uma coisa muito pior, algo criando problemas adicionais, é se podemos dizer de um
particular que ele tem propriedades contingentes ou necessário. Olha, somente uma
declaração ou estado de coisas pode ser, um dos dois, necessário ou contingente! Se
um particular contingentemente ou necessariamente tem uma certa propriedade
depende da forma como foi descrito (tradução nossa) 24. (Kripke, 2001, p. 40)
Adotando essa posição, Kripke identifica que a descrição é uma foram de chegar a um
particular que o enreda cada vez mais numa rede de linguística e quanto mais o faz, mais
longe está do objeto em si e mais perto está da língua e de certas categorias filosóficas que
pensam que é possível conhecer alguma verdade apriorísticamente. Novamente temos uma
posição que entende que quanto mais a língua se fecha em si mesma, mais ela tende para a
adesão a uma certa perspectiva discursiva, o que é coerente a análise de Foucault. Neste caso,
Para que fique mais claro, Kripke sugere um exemplo que novamente envolve
situações contrafatuais. Pede que imaginemos uma mesa T, em dois cenários em que ela terá
Então, pode-se somente referir a essa mesa que está ali diante e imaginar como ela seria se
24
a much worse thing, something creating additional problems, is whether we can say of any particular that it
has necessary or contingent properties. Look, its only a statement or state of affairs that can be either necessary
or contingent! whether a particular necessairly or contingently has a certain property depends on the way it is
described.
121
essa mesa por uma discrição, e somente por essa descrição saberíamos que aquela mesa era a
mesa T. Neste caso, o outro mundo também teria que ser descrito e teríamos que pensar se a
mesa naquele mundo teria as características que satisfazem a descrição da mesa T conforme
dada a priori, o que permitiria identificar que a mesa de lá é a mesa T. Com esse exemplo,
que chega a ser cômico, fica evidente a posição de Kripke, conforme já citado no prólogo:
suas descrições, enquanto no caso da teoria Frege/Russell há, conforme expusemos, uma
nome. Kripke sustenta que entre o objeto e o nome existe uma disjunção, um
desnivelamento que dever ser mantido se não quisermos incorrer nos mesmos
Tendo isso em vista, propõe a sua versão do que deve ser um nome próprio. Com essa
versão ele quer resolver seu problema primordial, saber o que permite falar de um objeto em
propriedades da palavra que não mudam. Kripke propõe pensar o nome próprio como um
uma descrição que serve para selecionar um objeto que a partir de então está necessariamente
atrelado ao nome a ele dado. Se por algum motivo o objeto não tiver mais a descrição que foi
utilizada para designá-lo isso não prejudica as propriedades do designador rígido, porque a
descrição foi utilizada meramente para selecionar o objeto, não exercendo qualquer função
25
“What I do deny is that a particular is nothing but a ‘bundle of qualities’ whatever that may mean. If a quality
is an abstract object, a bundle of qualities is an object of an even higher degree of abstraction, not a particular”
122
Kripke pede que pensemos na forma como o metro foi estipulado, pois para ele "a
referência do nome é fixada via descrição da mesma maneira com que o sistema métrico foi
26
fixado (tradução nossa)” (Kripke, 2001, p. 57). Essa imagem tem a vantagem de permitir
categoria universal de medida, foi estabelecido a partir de um parâmetro, que é uma barra
estabelece essa medida não tem sempre um metro, mesmo havendo cuidado para manter
variações ainda que pequenas devido a sua exposição, a sua existência material. Aqui temos
que um objeto foi selecionado para ser o alicerce de uma medida universal, e esse objeto tem
os lógicos porque, aceitada a formulação, indica-se que uma verdade, uma universal
esse objeto de medida impõe que um a priori não é necessário, como queriam os lógicos
clássicos, mas pode ser baseado em uma contingência. Isso só é possível a partir do momento
Nos parece interessante notar que esse é um movimento parecido com aquele perpetrado
por Saussure ao desenvolver sua teoria do Signo. Conforme dissemos a epsiteme clássica
pensava que o signo era um representante de um conteúdo a qual esse signo estava ligado, e
funcionava da mesma maneira que um nome ligado a uma descrição. deste patamar a
linguagem teria que pensar de qual maneira atingira o referente, e em ambos os casos, tanto
para a teoria Frege/Russell, tanto para a epsiteme clássica representada pelos lógicos de Port-
26
the reference of the name is indeed fixed the same way that the metric system was fixed.
123
Royal, essa propriedade estava baseada em uma teoria filosófica não explicitamente
declarada.
Vimos que a estratégia de Saussure, que modifica o paradigma, foi considerar que
representante e representado são heterogêneos, trata-se de dois campos distintos. Essa parece
ter sido também a estratégia de Kripke, sublinhar que existe uma descontinuidade ente
linguagem e objeto. Logicamente que os termos de Saussure são diferentes, ele trata de
defendemos que a estrutura seja a mesma: em ambos os casos, o que permite o giro teórico é
entender que quando se trata da palavra, o que ela quer atingir é de outra natureza em relação
a ela mesma.
Podemos ainda traçar outro paralelo. Em Kripke percebemos que a principio não há
nenhuma relação entre o nome e o objeto, mas depois que ela é estabelecida com a ajuda da
ocorre, ele não defende que alguns significantes estão naturalmente ligados a certos
significados, a criação desta relação recíproca é arbitrária, entretanto, uma vez estipulada, a
Poderia se objetar dizendo que a relação do nome com a descrição também não é
necessária aprioristicamente na teoria Frege/Russell, já que eles não admitem que haja um
nome que serve melhor a uma descrição. A relação do nome com a descrição deve ser
estipulada, para somente depois ser tomada como sinônima. Entretanto nesta versão da
arbitrariedade é suposta uma ligação do nome com a descrição e esta relação é arbitrária
(Milner J.-C. , 2003, p. 35). Essa versão não se preocupa com o objeto porque a prerrogativa é
Saussure não é aplicada ao tipo de ligação, de relação, entre duas instâncias do mesmo nível,
uma vez que pra esse autor ela não existe. A arbitrariedade somente qualifica a não relação do
124
particular com o nome, ou do significante com o significado, uma vez que eles partem de
da folha de papel, em que o verso e o anverso estão em relação, mas o que se desenha de um
Essa aproximação entre o signo de Saussure e o designador rígido de Kripke nos parece
interessante porque permite entender porque Lacan, por sua vez, aproxima os conceitos de
traço unário e nome próprio. Se admitimos que o nome próprio, em Kripke, tem as mesmas
traço unário daquele de nome próprio assim como fizemos acima ao explicitar a relação do
Signo
Saussure
traço unário
Nome próprio
Kripke
Assim, sobre o Signo, havíamos dito que a correlação de dois campos heterogêneos faz
nome, que é correlacionado ao objeto, cria-se uma característica particular que extrapolada do
âmbito deste primeiro elemento, funda a linguagem. Trocando os nomes, como fizemos
acima, o que está concernido aqui é o encontro do simbólico e do real. Lacan falando dos
nomes próprios, anuncia que "a presença daqueles elementos está ali para nos fazer tocar
alguma coisa que se propõe como radical dentro do que podemos falar do enlaçamento da
linguagem com o real." (1961-1962/ 2003, p. 97). Deste enlaçamento com o objeto parece
125
sobrar no campo da linguagem, com o traço unário, a capacidade de distinguir porque guarda
do nome próprio o que ele marca como sendo único: "Se é do objeto que o traço surge, é algo
do objeto que o traço retém, justamente sua unicidade. (...) essa relação do objeto com o
nascimento de algo que se chama aqui signo, já que ele nos interessa no nascimento do
significante, é exatamente em torno disso que estamos detidos." (Lacan J. , 1961-1962/ 2003,
p. 101).
encontro de dois heterogêneos, uma parte indefinível, do real, e uma parte que pretende ser
restante da linguagem. Como o nome tem características específicas que o diferenciam dos
outros termos da linguagem, por exemplo, o fato de não ser traduzido, ele não é o significante.
Parece por isso é preciso que Lacan faça o corte e aproveite disso a propriedade que daí pode
ser destilada. Do trauma, do que marca que cada um em sua forma singular de gozo, se destila
4. CONCLUSÃO
colocou alguns entraves à teorização Lacaniana, se considerada a definição dada por Deleuze
(1973) de que a estrutura funcionaria como um espaço virtual ou repertorio ideal que poderia
ou não se atualizar em um contexto. Dissemos que esse pressuposto implica: 1) que já exista a
sujeito estão todos presentes nesta cadeia. A consequência é que não haveria na estruturação
cadeia significante.
Havíamos demonstrado que existem dois mecanismos pelos quais a cadeia linear
funciona. Estes são a metáfora e a metonímia. Milner (2003, pp. 157-162) nos lembra que
essa é uma terminologia usada por Jakobson para acessar os mesmos mecanismos da cadeia
que Saussure descreveu como Sintagma e Paradigma. Assim, da mesma forma que a ideia de
ideia de sintagma. Por sua vez, a ideia de paradigma remete a um certo campo virtual, que é o
os variados outros signos a que um signo pode remeter e que, por consequência, tem
influência no sentido que se poderá extrair do sintagma na sua extensão horizontal. A noção
27
há no primeiro capítulo uma representação do eixo sintagmático e paradigmático da linguagem na pag. 41 que
poderá auxiliar na visualização desse argumento
127
como a linguagem o produz. Daí a sua ideia de que com os mecanismos de organização da
sentido advêm.
muito mais como um ponto de parada da cadeia, em função de um encontro vertical de dois
estende um contexto virtual de significantes que funcionam para dar o sentido a frase.
Também quisemos demonstrar no primeiro capítulo que esses dois mecanismos são
complementares, que em Lacan é possível antever a exigência de uma metáfora para que se
inaugure a metonímia, bem como, há a exigência do metonímico para que haja a metáfora 28.
De qualquer forma, o que fica claro é que nenhum desses funcionamentos sozinhos geram
significação. Assim Lacan, mesmo que com isso pague o preço da crítica de Derrida, teve que
teorizar sobre algo exterior a cadeia se queremos supor a possibilidade de significação. Ele
chamou isso de ponto de capton, mas às vezes o igualou ao que ele chamou de ser. Conforme
demonstram Nancy e Lacoue-Labarthe (1991), Lacan constrói um sistema, mas tem que supor
Utilizando os termos sintagma e paradigma, Milner (2003) acaba por nos possibilitar
acessar essa questão sob um outro ângulo. Ele propõe lermos o paradigma, assim como a
metáfora, que funcionando como um ponto de parada para a cadeia. Ele lê esses termos
28
assim como foi minha intenção demonstrar nos nas sessões 1.3 e 1.4
128
29
finita e curta - dos termos da sequência em ato reciprocamente (tradução nossa) " (2003, p.
159). Assim cada termo do sintagma, enumerado em sequência ao outro, gera por retroação,
em função do efeito do paradigma, uma significação. Ora, este não é nada mais que o conceito
de significância, que nos aponta que mesmo que concluída uma certa significação o efeito
metonímico (ou sintagmático) se instala novamente colocando novo significante, que retroage
Fica claro que é possível algum sentido na cadeia, comandada pelo paradigma e
sintagma que são as formas de relação dos significantes em uma cadeia. Entretanto esse
metáfora e metonímia é lócus privilegiado onde se produz sentido, mas esses mecanismos não
permitem por eles mesmos que o sentido surja. Seria preciso, portanto, supor algo externo a
cadeia mas interferente nela para instituir o sentido. É o mesmo dizer que a cadeia é um
simples mecanismo produtor incessante de sentidos infinitos, mas é um sentido tão infinito
que deixa de ser sentido. Nos parece que é isso que Milner quer dizer quando afirma "a frase é
estrutura interna da cadeia algo que dê um uso comunicador, é o limite da língua, ou "ponto
31
limite onde a língua cessa para dar passagem a comunicação vivente (tradução nossa) "
(2003, p. 161)
não haja outro estrato que comande virtualmente essa cadeia, a cadeia é a estrutura e a
estrutura é por definição linear. A cadeia é a única forma de relação entre os significantes, e as
29
el paradigma de un término dado es solo la enumeración - finita y corta - de los términos de la secuencia en
acto recíprocamente.
30
la frase es el dominio finito en cuyo interior se construyen paradigmático y sintagmático; pero ella misma no
da lugar a paradigma o a sintagma
31
punto límite donde la lengua cesa para dar paso a la comunicación viviente
129
a metonímia. Ora feito esse retrato, a única conclusão que se pode perceber é que há aí um
esse mecanismo em si mesmo não o gera. Fica claro que a cadeia, por si mesma, não gera a
linguagem, mas não é gerado por um contexto virtual que ultrapassa a linearidade da cadeia.
pressuposto saussuriano de signo, para dar sentido a frase não se pode admitir o paradigma no
sentido de Saussure, porque não se admite qualquer conceito teórico que não esteja de acordo
com a ideia de linearidade da cadeia. Na língua sozinha, pelos seus mecanismos eles mesmos,
produção de sentido. Desde então é preciso admitir o ponto central aonde quer chegar essa
argumentação:
"a estrutura mínima qualquer contém em inclusão externa um certo existente distinto que
chamaremos de sujeito" (Milner J. C., 1996, p. 85)
Assim, a tarefa de esclarecer as operações que dariam origem ao traço unário nos
permitiu justificar porque dizemos que o sistema lacaniano se baseia nas três teses
dizer em consonância com Milner(1996) que Lacan radicaliza o estruturalismo fazendo caber
neste a ideia de sujeito. Além disso, ao fazê-lo resolve a tautologia interna ao sistema
epistemológico da linguística.
Já nos servimos do exemplo que Lacan recorta de Freud, em que este exemplifica o
efeito metonímico da cadeia em um excerto de um sonho de Ana Freud em que ela pronuncia:
lembrando que Lacan mesmo aí enxerga uma cadeia, mais que palavras soltas. Entretanto,
uma outra sequência ainda mais descontínua e desregulada das regras contextuais, é ainda
mais contundente por demonstrar que mesmo então pode-se supor um sujeito e sua
intencionalidade nos interstícios de qualquer cadeia. Esse exemplo é recortado do Homem dos
Ratos, e remete a cena cujo paciente, quando criança, após ter sido surrado, dirige ao pai as
palavras: “Seu lâmpada! Seu toalha! Seu prato!”. Há sentido aí, mesmo numa série não usual,
de construção esdrúxula, tanto o é que diante destes inusitados xingamentos o pai interpretou:
“Ou este menino vai ser um grande homem ou um grande criminoso”. Sendo que esse sentido
algo fora dela, ou exceda sua tautologia, se admitirmos um elemento que ao mesmo tempo
seja interno, ou seja, esteja suposto na cadeia, mas também externo a ela. A definição de
Lacan que supõe o sujeito é o clássico aforismo: "o significante representa o sujeito para outro
qualquer) fica incluído, nos intervalos da mesma, o sujeito. A asserção "o significante
representa para outro significante" é uma definição da cadeia linear, e o sujeito aquilo que
deve se supor no interstício dessa cadeia para evitar a possível tautologia que adviria dela. O
sujeito, nesta construção é "o único elemento novo, o único que transporta uma afirmação
especifica, o único que faz da proposição um juízo sintético (tradução nossa) 32" (Milner J.-C.
, 2003, p. 148)
O que estabelece a ponte entre os dois registros, implicando que exista um referente,
ou, em outros termos, que a língua acessa alguma externalidade, é algo relativo ao sujeito.
32
"El único elemento nuevo, el único que transporta una afirmación especifica, el único que hace de la
proposición un juicio sintético"
131
Dessa permanência do sujeito lhes mostro a referência, e não a presença, pois essa
presença não pode ser cingida senão em função dessa referência. Eu a demonstrei,
designei da ultima vez, em nosso traço unário (...) (Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 75)
Aqui ficam imbricados três conceitos: traço unário, sujeito e referente. Nosso intuito a
seguir será entender como esses conceitos se imbricam. Primeiramente, mostraremos porque é
Temos que o traço unário, enquanto efeito do corte que promove a possibilidade de
o traço unário é primeiro, e dele depende a estrutura enquanto definida pela possibilidade de
distinções, não pode-se supor a priori qualquer conteúdo a mesma. A consequência é que a
língua torna-se esvaziada das qualidades e, portanto, do sentido. Não se admite contexto ou
paradigma da onde uma língua pode retirar seu sentido. Não há para a língua relação interior
que gere sentido, ou mítico amo das palavras (hipótese metalinguística), ou ponto fixo externo
(referente). (Milner J.-C. , 2003, p. 36). Assim, O que o traço unário faz e implantar a noção
de que o signo não é o representante da ideia, ele não é o substituto da coisa, ele é somente o
que resulta da distintividade. O signo saussureano não se define pela relação de representação
ou de substituição em relação a coisa, mas "se um dado signo se sustenta é pelos outros signos
33
(tradução nossa) " (Milner J.-C. , 2003, p. 36). O referente da linguagem passa a ser a
relação com os outros signos, propriedade instituída pelo traço unário, desta feita, o
traço unário é a o que gera o referente na linguagem. O traço unário é a base da linguagem
Neste ponto podemos abrir um parênteses para demonstrar que o que o traço unário
33
si un signo dado se sostiene, es por los otros signos
132
Miller (2012) que já podia ser depreendida desde o seminário sobre as psicoses. Segundo
Teixeira, nesse seminário há “uma inspeção cientifica de sua base de linguagem” (Teixeira A.
, 2000, p. 61) permite perceber que “a língua como sistema puramente diferencial, não se
encontra vinculada à identidade do referente” (Teixeira A. , 2000, p. 61). Ora, o traço unário
sendo o suporte da diferença significante é aquilo que gera a forclusão generalizada, já que a
partir daí o significante não tem nenhuma referência a não ser o sentido que se depreende dele
a partir da sua posição em uma cadeia, sua definição recíproca a partir dos outros
significantes. A consequência é que há somente uma cadeia com signos que se sustentam
mutuamente.
relação entre referente e traço unário. Tentaremos pensar agora qual é a relação disso com o
sujeito. Retomando, se quisemos supor que essa cadeia exceda a ela mesma gerando sentido
deve-se admitir um elemento que é ao mesmo tempo externo e interno a língua: precisa da
língua como substrato para o sentido, mas é somente a partir da pontuação que promove à
do sujeito depende indiretamente da ideia de traço unário. O traço unário tanto gera a cadeia
possibilidade de que uma tal cadeia significante gere sentido sem a suposição deste elemento
Porque exige-se a máxima simplicidade possível? (...) pois bem, nada - nada senão
esse initium subjetivo que enfatizei aqui durante toda a primeira parte de meu ensino
do ano passado, ou seja, que só há aparecimento concebível de um sujeito como tal a
partir da introdução primária de um significante, e do significante mais simples, aquele
chamado de traço unário. O traço unário é anterior ao sujeito. (1962-1963/ 2005, p. 31)
Por outro lado, usando da noção de corte que definimos no terceiro capítulo vemos
que essa dependência entre sujeito e traço unário se inscreve ainda em outro nível. O
133
mecanismo pelo qual uma cadeia gera sentido é aquele de retroação, onde o último
significante, sendo considerado o último, reconstitui o sentido de toda a frase, de acordo com
pontuou, ou do corte. Lembrando novamente que é o sujeito que promove o sentido, então a
propriedade do sujeito deve ser a de pontuar a cadeia significante. O ato do sujeito que gera
sentido é o ato de corte. Sendo o traço unário o que confere a propriedade de gerar
distintividades à cadeia, ele é o corte. Para que o sujeito seja o que promove o corte na cadeia
, 1955-1956/1985) permite pensar que o psicótico não tinha elementos para soerguer um
ponto de basta para a cadeia simbólica, ao exploramos o conceito de traço unário, no entanto,
nos deparamos com a hipótese hiperestruturalista pela qual o sujeito é quem define o ponto de
parada. Assim, há sujeito e há interrupção da cadeia mesmo que o Nome-do-Pai não opere.
Há, portanto, uma disjunção em relação à metáfora e o ponto de basta. A metáfora permite a
encadeamento dos significantes esse sentido continua evanescente. Por isso quem pontua de
Porque então teríamos que supor toda essa estruturação ulterior do sujeito, que no caso
da neurose leva em conta a metáfora paterna e o Nome-do-Pai, e no caso das psicoses as mais
Neste ponto, retomamos a ideia exposta também no primeiro capítulo, que mesmo que
a hipótese do sujeito permita pensar que haja esse ponto de parada na psicose, a incidência da
metáfora paterna é o que permite a organização, para o sujeito do campo do Outro, através de
134
seu engajamento a um discurso. A metáfora paterna cria um operador, que é o falo, que
social.
Sabemos que um discurso é aquilo que estabelece sinonímias, ou seja, estabelece uma
correspondência entre dois signos que a partir de então permanecem ligados. É o discurso que
estabelece convenções que permitem saber qual o significado das palavras. A experiência da
Na ausência de uma grade discursiva que permite identificar na experiência os elementos que
já tem significados fixos e são importantes para construção dos sentidos, todo signo passa a
sem a convenção por ele estabelecida o individuo passa a construir sentidos particulares não
compartilháveis.
presentes nesta cadeia, e como consequência não haveria na estruturação do sujeito nada
Para entender de onde surge essa afirmação temos que voltar ao seminário sobre as
psicoses. Neste, como insistentemente temos tratado, havia a ideia do ponto de basta
construir mesmo que momentaneamente uma estabilidade na significação para que haja
comunicação. Ao final de seu seminário percebemos que paulatinamente ele aproxima esse
ponto de basta de algo que funcione como elemento terceiro que coloque em perspectiva toda
a construção que já encadeada. Isso fica claro na leitura que ele faz da obra de Atalaia na qual
há uma rixa entre dois personagens. Do diálogo desses dois personagens, Joad e Abner, ele
135
destaca as palavras temor e receio. Abner deixa a entender que Joad receia pelo filho. Joad
coloca um ponto final na discussão dizendo: “eu temo somente a Deus”. Em seu comentário
Lacan destaca que o temor a Deus é algo inventado pelos homens como um remédio para um
temor múltiplo, ele é um temor único de algo cuja existência não se personifica, está recuada
e imanifesta, é sumamente simbólica. É com esse artifício que Lacan vai paulatinamente
relacionando a ideia de ponto de basta com o Nome-do-Pai, já que na obra Atalaia é Deus pai
final do seminário tal ideia é explorada a ponto de esses dois conceitos, função paterna e
que sustentam que a função paterna funciona como uma garantia do Outro, o que garante a
Para essa dissertação torna-se imprescindível notar que a ideia de traço unário exerce
uma resistência a tal formulação, já que por meio deste conceito demonstramos que o ponto
fundação mítica da linguagem. Assim, nos parece que em alguma medida, um significante do
Outro cativa particularmente o sujeito, conforme uma tese já presente no Seminário 3 (Lacan
Seminário 10 em que Lacan escreve: "o Homem encontra sua casa num ponto situado no
Outro para além da imagem que somos feitos" (1962-1963/2005, p. 58). Vimos que esse
34
Paginas 20 à 22 e 60 à 64
136
significante que se enlaça com o real do gozo do sujeito parece funcionar como um signo, e
nessa operação em que se coloca em relação o simbólico e o real, dá-se a ver a diferença, a
A partir dessa experiência de fundação da linguagem, assim como quisemos deixar claro
através da alegoria do legislador Sólon, é necessária uma segunda operação para que haja o
significante que contingentemente cativa o sujeito em seu ser. Nesta imagem que elencamos, o
legislador teve de se apoderar das insígnias dos deuses antigos para se autorizar. Se Sólon não
tivesse acessado a contingência dos deuses em sua consistência, não teria o referente ao
entorno do qual constituir suas leis. Depois de usar deste artifício e organizar o campo da
cidade, Sólon se retira deste meio para não restar como tirano. Se não tivesse se retirado, e
com isso arrefecesse o poder dos deuses, desequilibraria a ordem que criou.
com a alegoria de Sólon. Nesta, apresentamos a ideia de que a metáfora é uma operação em que
operador simbólico fálico. Se as palavras de Lacan são "o Nome do Pai reduplica o significante
do ternário simbólico no campo do Outro" está implícito que algo que já trata a relação da mãe
com o bebê, o falo imaginário (significante do ternário simbólico) deve ser retomado na
organização do campo. Ou seja, algo que se relaciona a uma etapa mais fundamental, deve ser
retomado na operação que organiza o campo do Outro estabelecendo suas leis e limites. A
relação do falo imaginário com isso de mais fundamental fica explicitada abaixo, sendo que
Lacan ainda ressalta que este operador terá relação com aquele outro que intervirá como
neste lugar da falta onde algo pode aparecer, coloquei pela ultima vez e entre
parêntesis, o sinal (-φ). ele lhes indica que aqui se perfila uma relação com a reserva
35
ver paginas 49 à 53
137
libidinal, ou seja, com esse algo que se projeta, não se investe no nível da imagem
especular, que é irredutível a ela, em razão de permanecer profundamente investido no
nível do próprio corpo, do narcisismo primário, daquilo que chamamos auto-erotismo,
de um gozo autista. Em suma, ele é um alimento que fica ali para animar,
eventualmente, o que intervirá como instrumento na relação com o outro. (Lacan J. ,
1962-1963/2005, p. 55)
A hipótese que aqui levantamos gira em torno de admitir que há um ponto fundamental
em relação ao qual se faz uma amarração criando o discurso. Deverá ser excluído da cadeia,
mas marca a interseção com o ser no entorno da qual a mesma cadeia se organiza. No caso da
neurose, algo do nível de uma tal amarração ocorre a partir da incidência do Nome-do-Pai, na
ocasião do Édipo. Admite-se, na neurose, uma solução padrão em que há uma amarração desse
ponto de capton por meio de uma identificação no nível do ideal do eu, ou seja, uma
identificação simbólica. Nesses termos algo relativo a um estranho familiar, um signo que é do
Outro, mas que nos cativa singularmente, e por isso tem um estatuto privilegiado em relação aos
Assim, ao querer tratar do traço unário, percebemos existir uma operação muito
operador que serve como suporte da diferença e imprescindível para pensar o significante. Por
outro lado, e menos claramente, já vislumbramos que sob a rubrica do Nome Próprio, Signo, ou
Letra, há aí um elemento importante a ser considerado quando se quer tratar das soluções pela
Dito isso, para finalizar, resumiríamos da seguinte forma: desde que Lacan explora
investigando os fundamentos da linguagem ele percebe que não há um fundamento para o uso
das palavras em sua função comunicativa, não há nenhuma garantia inerente que aquilo do
que falo é transmissível a um outro. Ou seja, não há referente. Para isso se deu o nome de
138
forclusão generalizada. Uma das formas de lidar com a forclusão generalizada é utilizar-se de
um significante consensual, e não questionável por estar afastado ao infinito, objeto de fé, que
cria a estabilidade necessária à criação do discurso. Por aí, passa a solução normatizante do
Sólon, é a que nos permite visualizar que poderiam haver outras soluções, conquanto que se
levasse em conta a necessidade de revisitar e fazer uso do ponto em que se funda a linguagem
para que haja uma estruturação posterior. Foi preciso que Sólon se valesse da autoridade dos
fundamento da linguagem algo que a coloca em contato com o mais singular do sujeito, seu
Nome Próprio, aquilo que não é traduzível, nos parece que esses elementos são essenciais se
quisermos pensar em constituições psíquicas estabilizadas que não utilizam da solução padrão
do Nome-do-Pai
Se é o próprio Lacan que nos diz que o traço unário é algo que “vai permitir-nos ir
mais longe” (Lacan J. , 1961-1962/ 2003, p. 89), é que ele está na base do mecanismo da
linguagem, e escancara a falta do referente da mesma. Por outro lado, aponta para o
BIBLIOGRAFIA
Bignotto, N. (junho de 1999). A Solidão do Legislador. Kriterion , no. 99, pp. 7-37.
Bréhier, É. (1977-1978). O realismo. In: É. Bréhier, História da Filosofia (pp. 171-191). São
Paulo: Mestre Jou.
Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes
Médicas.
Derrida, J. (2007). O carteiro da Verdade. In: J. Derrida, O Cartão-Postal (pp. 459-542). Rio
de Janeiro: Civilização Brasilieira.
Freud, S. (1925/1976). A negativa. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. XIX, pp. 261-269). Rio de
Janeiro: Imago.
obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. XII, pp. 13-108).
Rio de Janeiro: Imago.
Freud, S. (1915/1976). O inconsciente. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. XIV, pp. 165-217). Rio de
Janeiro: Imago.
Freud, S. (1921/1976). Psicologia das Massas e Análise do Eu. In: S. Freud, Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol.
XVIII, pp. 77-154). Rio de Janeiro: Imago.
Gabbi Jr., O. F. (1995). Notas críticas sobre o Projeto para uma psicologia Científica. In: S.
Freud, Projeto para uma psicologia Científica. Rio de Janeiro: Imago.
Hyppolite, J. (1954). Comentário falado sobre a Verneinung de Freud. In: J. Lacan, Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998.
Ianinni, G. (2009). Não Há formalizações sem restos: Frege com Lacan. Estudos Lacanianos ,
V.2 n.3.
Lacan, J. (1962-1963/ 2005). Angustia, signo do Desejo. In: J. Lacan, O seminário - Livro 10-
A Angustia (pp. 25-37). Rio de Janeiro: Zahar.
Lacan, J. J. (1998 [1957]). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: J.
J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1954/ 1998). Resposta ao comentário de Jean Hyppolite. In: J. Lacan, Escritos. Rio
de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1998.
141
Lacan, J. (1957/ 1998). Uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: J.
Lacan, Escritos (pp. 531-590). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Miller, J.-A. (2012). Forclusión Generalizada. In: J.-A. Miller, Los Signos del Goce (pp. 367-
382). Buenos Aires: Paidos.
Milner, J. C. (1996). O primeiro classicismo Lacaniano. In: J. C. Milner, A Obra Clara (pp.
63-95). Rio de Janeiro: Zahar.
Milner, J.-C. (2003). El periplo estructural. Buenos Aires- Madrid: Amorrortu editores.
Nancy, J.-L., & Lacoue-Labarthe, P. (1991). O titulo da Letra. São Paulo: Escuta.
Regnault, F. (2010). Freud anti-alegorista. In: F. Regnault, Em torno do vazio: a arte à luz da
psicanálise (pp. 95-119). Rio de Janeiro: Contra Capa.
Rinald, D. (out de 2008). O traço como marca do Sujeito. Estudos de psicanálise , n. 31, pp.
59 -63.
Santos, L. H. (1978). Vida e Obra. In: H. Mattew(org.), Russell - Os pensadores (pp. VI-
XIX). São Paulo: Abril.
Teixeira, A. (1999). De deus como garantia ausente . In: A. Teixeira, O Topos Etico da
Psicanálise (pp. 116-137). Porto Alegre: EDIPURCS.
Teixeira, A. (Abril de 2000). Forclusão Generalizada: como é possível não ser louco. Curinga
, 14, pp. 60-65.