A Experiência Da Pintura - Beatriz Ruco (Web)

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A Experiência da Pintura

Beatriz Ruco
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA
FILHO”
INSTITUTO DE ARTES
BACHARELADO EM ARTES VISUAIS

A EXPERIÊNCIA DA PINTURA

Beatriz Ruco

SÃO PAULO

2018
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA
FILHO”
INSTITUTO DE ARTES
BACHARELADO EM ARTES VISUAIS

A EXPERIÊNCIA DA PINTURA

Trabalho de Conclusão de Curso apre-

sentado ao Curso de Bacharelado do Ins-

tituto de Arte da Unesp como requisito à

obtenção do título de Bacharel em Artes.

Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol

Beatriz Ruco

SÃO PAULO

2018
BANCA EXAMINADORA

_______________________________
José Spaniol

_______________________________
Fernando Burjato
AGRADECIMENTOS

Estiveram ao meu lado bons amigos em toda essa trajetória da gradu-


ação e agradeço a cada um deles de terem caminhado ao meu lado, mesmo
que alguns estiveram presentes apenas por um período. Todas as trocas foram
importantes em algum nível para formar quem hoje sou.
Agradeço aos colegas de classe, em especial a André Bontorim e Isaac
Moraes Neto por me aguentarem em tantos humores diferentes, por tantas
conversas de bar e por tantos trabalhos bonitos que produzem; Ao Urano que
veio depois, mas conquistou meu coração com todo ímpeto que ele carrega;
Ao a Philipe, que veio antes, e esteve ao meu lado nos momentos cruciais da
passagem para a vida adulta e pelas boas risadas sempre.
Ao meu orientador, que sempre tem consigo uma história para contar
e que, em meio a tantas tarefas e obrigações, sempre se mostrou justo para
ajudar e defender os seus alunos e a universidade.
Aos meus pais, Wagner e Gracimari que sempre foram meu porto
seguro, aflitos e amorosos. Sempre, no fim, ao meu lado.
À Ana Prata que faz as coisinhas mais lindas do mundo da arte, me
abriu os olhos, e fez de mim pintura; Ao Bruno Dunley que tem uma inquie-
tação dentro de si que o move na pintura e no mundo; Tiago Mesquita por
todo o seu trabalho e contribuição para a arte e sua disposição em ajudar no
que fora ao seu alcance; Rodrigo Naves, por me fazer olhar e reolhar Giotto
Ao Anderson, companheiro de ateliê, a quem devo minha formação
em pintura, a tudo o que ele me mostrou e o tanto que me apoiou. É meu
companheiro da vida - vamos juntos!

4
Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

Manuel Bandeira

5
SUMÁRIO

Introdução 7
Primeiros anos: o embate com a pintura 9
Desdobramentos 26
A Experiência Hoje 41
Considerações Finais: Por que Pintura? 47
Bibliografia 51

6
INTRODUÇÃO

Como muitos artistas, foi o hábito do desenho que me levou a seguir


carreira na área de criação. O cursinho Prévia (Pré Vestibular do Instituto de
Artes da Unesp) - focado em história da arte - me ajudou a passar nas provas
específicas e foi essencial para eu escolher a Unesp como instituição de ensino
num laço afetivo com o lugar. Na época eu tinha dois grandes interesses na
faculdade de artes: dar aula para o ensino básico público ou trabalhar como
artista de conceito em cenário para videogames, principalmente devido às
artes de jogos que seriam lançados no ano de 2013, ano que ingressei no Ins-
tituto de Artes, principalmente os lugares pós-apocalípticos do jogo The Last
of Us, do qual as paisagens me chamavam muito a atenção.Esses objetivos
foram se transformando durante a graduação, mas o estudo da história da arte
para preparar as aulas do cursinho Prévia, que dei aulas entre 2012 e 2015,
e o interesse na criação de espaços e ambientes fez com que o meu trabalho
tomasse o rumo que tomou.
Esta pesquisa se concentra em percorrer o caminho que foi traçado
durantes os anos da graduação, o repertório criado pelo cursinho, as conver-
sas com colegas e com artistas mais velhos que me impulsionaram a encarar o
que era feito no ateliê com uma seriedade para além dos exercícios em sala de

7
1. Maciej Kuciara, Concept Art de The Last of Us

aula, que à princípio ocorria de maneira desarticulada com o debate teórico


artístico, mas que a partir desses contatos passou a tomar consciência do fazer
e relacioná-los com o que estava sendo produzido e com a tradição.
Partindo da ingenuidade da linguagem, a minha pintura foi se reco-
nhecendo no meio da arte, reconhecendo seus pares e com eles dialogando,
sendo a faculdade, de uma maneira ou de outra, o lugar dessa maturação.
Os capítulos aqui se dividem entre os primeiros anos da faculdade e
o embate dialético entre figuração e abstração; os anos de um desdobramento
teórico dentro do meu discurso por meio de aulas complementares, contato
com outro artistas e por fim a situação atual na qual é possível verificar um
vocabulário próprio, este em constante movimento. É contado por meio de
relato e aproximações com a história da arte e busca nesse caminho entender
paradigmas da pintura, dos quais minha produção esbarra, abraça ou conde-
na.

8
PRIMEIROS ANOS:
O EMBATE COM A PINTURA

Até o segundo ano da faculdade, os estudos eram voltados para os


exercícios de sala de aula e a preparação do conteúdo para o cursinho Prévia,
o qual na época eu já estava atuando como educadora. Fora esses dois mo-
mentos, não havia uma produção própria que tivesse continuidade de um
trabalho para o outro, muito menos qualquer reflexão acerca do que era co-
locar um trabalho de arte no mundo. Sendo assim, iniciei as aulas de pintura
que começaram no ano seguinte, em 2014, de maneira bem estereotipada,
usando o pincel e a tinta como mero instrumento para formar uma figura.

2. Sem Título, 2014

9
3. Still do filme Stoker, 2013

4. Processo da pintura baseada na still do filme Stoker, 2014

Minhas referências vieram principalmente da internet com imagens


de blogs, sites de busca, cenas de filmes e figuras públicas, enfim, o bombar-
deio imagético que recebemos o tempo todo e absorvemos sem questionar. A
minha primeira pintura surgiu de uma fotografia digital de moda que retirei
de um blog, o fato de estar na internet me dava a liberdade de apropriação e
é uma forma contemporânea de aproximação com as imagens. Era uma forte

10
iluminação vermelha e amarela, da qual eu desconhecia a modelo, nem em
quais circunstâncias aquela foto foi feita, porém eu a usei pela sua composição
cromática. Para outro trabalho, usei um still do filme “Stoker”, do diretor
Park Chan-Wook, como motivo da pintura com maiores dimensões que até
então eu havia feito. Era uma das cenas finais que me agradavam pelo afeto
com o a história do filme. Em nenhum desses momentos eu me voltava para
como eu estava pintando, apesar de existir essa escolha pelo o que me agrada-
va, nada daquilo carregava um discurso que justificasse seu uso na tela, no uso
da tinta, na escolha de referências. Existia aqui um problema com a natureza
da imagem usada.
O ateliê, para além do espaço da produção, foi um ambiente de muita
conversa entre professores e alunos, sobretudo entre os alunos novos e vetera-
nos, que me auxiliaram a trazer para o centro do trabalho o questionamento
sobre o discurso que ele contém, utilizando como base a história da arte, fa-
zendo-o se voltar a discutir e explorar sua própria linguagem, sua própria na-
tureza. A fatura da tinta e o tamanho da tela, uma vez notados, começaram a
importar, e o trabalho começou a ser questionado a partir da imagem: minha
referência é banal ou um ícone - o que é amplamente reconhecido?
Veja bem, se é banal, a tinta ganha espaço de expressão autônoma,
ganha protagonismo de sua fatura e modo em que é posta, fala por si só e não
apenas como uma ferramenta que constitui a figura, enquanto o contrário
seria também verdadeiro, a imagem amplamente reconhecida teria uma força
maior que o material que a compõe, pois o olho do espectador se foca mais
no que a figura remete e menos em como ela é construída. O que a princípio
que se coloca como uma regra, vira reflexão para que o artista explore as pos-
sibilidades entre o motivo e o material e suporte usado para criar o quadro.
Abro aqui um longo comentário sobre essa questão da possibilidade
do motivo da pintura. O artista americano Jasper Johns trouxe muitas contri-
buições para o campo pictórico, seu trabalho causou desconforto e admiração

11
dos críticos da época que não sabiam como avaliar suas pinturas de bandeiras,
alvos, mapas, entre outros signos banais de objetos feitos pelo homem. Leo
Steinberg lembra da tentativa da crítica de contornar esse alvoroço cunhando
os trabalhos de neodadá, assim qualquer pessoa que estivesse desnorteada sobre o
que dizer a respeito de Johns podia então recitar tudo o que lembrava do dadá1,
mas isso é ter medo de confrontar o trabalho e toda a abertura de novas leitu-
ras sobre a Pintura. Sabe-se que Johns usa de figuras bidimensionais vindas de
lugares-comuns que já vinham prontas nas suas formas - como os números e
letras feitos por estêncil- e seus sistemas criavam uma tensão interna no qua-
dro. Sendo as coisas elas mesmas e não mais representações (a bandeira é ela
mesma), há uma resolução de uma das questões da arte moderna que é o rea-
lismo - no sentido de chegar perto das coisas como elas são e aproximar mais
a arte da vida. Cada vanguarda tentou resolver a sua forma esse problema: o
impressionismo pelo estudo da luz, a abstração pelas objetividade das formas.
Porém, até então, a pintura ainda esbarrava em técnicas de ilusão para mime-
tizar o mundo - Johns resolve isso quando desloca o motivo do trabalho da
natureza para a cultura, enquanto a bidimensionalidade do que ele escolhia
para pintar resolvia a questão da figura-fundo, dando aos elementos a tensão
interna que os fazem conviver no mesmo espaço por igual. Johns era prag-
mático e possuía uma ética própria de preservar o uso dos objetos originais,
diferentemente dos cubistas que transfiguravam suas apropriações para in-
cluí-las em seus trabalhos. Ainda assim, Johns opera dentro da tradição2, como
fala Paulo Pasta, mas dá um passo adiante trazendo, agora a contribuição que
mais me interessa, é que toda imagem é uma possível pintura, mais que isso,
toda imagem é pretexto para se pintar.
Logo em seguida, a Pop Art explorou o bombardeio imagético da

1 Steinberg, “Jasper Johns: Os Sete primeiros anos de sua arte”, Outros Critérios. p. 39.

2 Calzavara,”Três Pintores Contemporâneos: Paulo Pasta / Sean Scully / Luc Tuymans”. p. 3.

12
5. Jasper Johns, Flag, 1954-55

13
propaganda capitalista como assunto da sua produção. Os trabalhos apare-
cem de maneira extrovertida acerca da ideia do American Way of Life, ora
vibrando com esse ideal, ora irônico com o desgaste das figuras pela repetição.
Um exemplo interessante para se comentar dos trabalhos dessa época são as
séries Brushstrokes do Roy Lichtenstein que coloca a pincelada do expres-
sionismo abstrato como um símbolo, uma convenção da pintura, retirando
seu caráter espontâneo para ser lido como um raciocínio linguístico cultural
pronto, colocando entre o homem e o mundo um véu que é esse raciocínio e
do qual o homem não consegue se livrar dele jamais. Outro exemplo impor-
tante a ser citado é o Andy Warhol, que tensiona o ícone e o banal. Diferente
de Jasper Johns que tentava ser indiferente nas suas escolhas de figuras, mas
falhava, seja pelos pedaços de corpos darem um ar mórbido ao trabalho, seja
pela bandeira ser questionada como símbolo nacionalista. Warhol escolhia
ícones, como a figura da Marilyn Monroe que se repetia até a exaustão cau-
sando um misto de morbidade (intensificado pela morte da artista à época) e
banalidade para aquele rosto. Pontuo aqui os dois conceitos que eu começava
a pensar enquanto fazia minha pintura: os signos culturais e a possibilidade
de tensão ao pensar a natureza da imagem.

6. Roy Lichtenstein, Brushstroke, 1965

14
7. Andy Warhol, Twenty five colored Marilyns, 1962

15
A pintura, que sempre foi refém da tradição, tem as discussões abertas
por Johns incrustadas em seus próprios discursos e lidam com ela a partir de
então, assim como diversos outros artistas pré-modernos e modernos, o que
torna difícil criar uma genealogia de caminho único dos trabalhos atuais. Por-
tanto, eu entendo a enorme variedade da produção pictórica, mas me permi-
to identificar e traçar características de uma pintura que nasce das influências
oitocentista e que vai reverberar na minha própria produção. Uma das mais
importantes referências dessa nova produção é Gerhard Richter, pintor dos
anos 1960, que vai pensar outro sentido para a imagem fotográfica, que ele
considera possuir uma sedutora obscenidade. A fotografia já era usada pelos
impressionistas para capturar o instante e desvendar o que o olho não conse-
guia perceber, mas nas mãos de Richter a pintura será colocada entre o olho
e a máquina, e o virtuosismo será usado para pintar até mesmo a retícula da
fotografia, bem como seus efeitos de luz e foco. Ele transforma a abstração em
imagem e a imagem em gênero, pinta imagens já prontas e diz que seu papel
se volta para a escolha do que pintar. Não é apenas apropriação, como ocorria
na Pop, existe um refinamento na fatura da tinta, nas técnicas de pintura que
dão grandiosidade para o trabalho, o trabalho é a escolha e o fazer pictórico.
É o uso de imagens prévias que dos interessa aqui, oriundas de outros supor-
tes de imagens, seja da fotografia ou da história da arte.
Posteriormente na história, Luc Tuymans, o pintor belga que vai ser
influenciado por Richter, utiliza da fotografia e do filme como ready-made
da pintura para fazer, não algo grandioso como o seu influenciador, mas uma
pintura introvertida de um mundo que se esvaece. Suas figuras e ambientes
são desbotados com detalhes que se perdem como uma memória antiga, pos-
suem uma mudez; os assuntos lembram os outros pintores aqui citados, mas
em Tuymans existe um esvaziamento, é violento e nauseante, seja na bandeira
desbotada e sem vida, seja na morbidez da câmara de gás feita com poucas
pinceladas. Essa tristeza que seu trabalho carrega vem muito de uma postura

16
8 e 9. Gerhard Richter, Annunciation after Titian, 1973

17
que o próprio artista tem com o humanismo, que em nome do progresso
trouxe a barbárie, ainda assim o pintor diz que sente felicidade no ato de pin-
tar e que isso está de alguma maneira dentro de seus quadros, talvez possamos
perceber essa graça no ato de pintar no refinamento com os quais suas telas
são feitas, um refinamento que vem de quem olhou El Greco, Monet, Ensor,
Spilliaert.
Ambos, Richter e Tuymans, lidam com a representação da represen-
tação, mas a presença de uma noção fílmica dos trabalhos do segundo pintor
é notável pelos enquadramentos escolhidos para seus trabalhos. Em uma en-
trevista que dá à Ana Calzavara, o artista conta que por um tempo deixou de
pintar e obteve uma super-8. Os assuntos das filmagens eram qualquer coisa
que lhe chamasse a atenção no dia-a-dia, que aos poucos foi se concentrando
mais para os enquadramentos e montagem das cenas do que a própria narra-
tiva em si, algo que vai influenciar as pinturas posteriores. A nossa existência
parece vir editada3, conclui o artista sobre a fragmentação das imagens que
sempre levam a outras e geram outras.

10. Luc Tuymans, Gas Chamber, 1986

3 Calzavara,”Três Pintores Contemporâneos: Paulo Pasta/Sean Scully/Luc Tuymans”. p.15.

18
11. Luc Tuymans, Flag, 1995

A imagem como gênero espetacular de Richter e o esvaziamento do


símbolo de Tuymans são dois lugares comuns que se vê na pintura atual de
diversos artistas.
A partir daí decidi, enfim, que queria me voltar mais para a lingua-
gem da pintura e para isso busquei pelas formas mais banais com as quais pu-
desse trabalhar me voltando especificamente para a abstração. A solução para
o meu problema formal foi realizar as pinturas de faixas de cor, feitas com
máscara de fita adesiva que, apesar de serem composições duras e monótonas,
deixavam-me livre para repensar a tela, sua orientação, vertical ou horizontal,
e uma a paleta de cores que mais agradasse. Aos poucos, a orientação vertical

19
da tela foi se tornando preferida, enquanto as faixas deixaram de dividir a tela
por igual e começaram a ocupar sua superfície de modo que o limite do su-
porte se tornava evidente. Eu pensava muito no desenho da moldura dentro
da tela, que propriamente dita é um objeto que dispenso até hoje. Gosto de
pensar o trabalho habitando o mesmo espaço do espectador, e evocar a mol-
dura dentro da tela é também falar sobre pintura.

11 e 12. Sem Título, 2014

A verticalidade da pintura e as faixas que dividem os espaços hori-


zontais, por convenção, aludem à linha do horizonte e, portanto, à paisagem.
Esse mesmo recurso foi muito usado por Mark Rothko, que pintava grandes
áreas de cor que faz o olho do espectador, diante da tela, imergir numa pai-
sagem colorida que se divide entre céu, terra e uma cor que ele dedica para
ser uma moldura interna da tela. A ideia de paisagem para mim se tornou
confortável e um recurso que permaneceria como pretexto para a pintura.
Meu trabalho, então, caminhou para se tornar um plano esquemático
da própria pintura de uma maneira bem crua e rígida, o que não me agradava
por completo e sentia a falta de algo que fosse além das estruturas meramente
formais.

20
13. Mark Rothko, Sem Título, 1968

O contato com o trabalho de Mira Schendel indicou o caminho para


o lirismo que me faltava. Ela que era atenta ao construtivismo e esteve em
contato com o concretismo brasileiro, se recusava a entregar o trabalho a
uma rigidez violenta da forma, preferindo a filosofia, especificamente a feno-
menologia, e o ato mínimo como guias do seu discurso. Porém a delicadeza
presente no seu trabalho não o torna menor e aconchegante, pelo contrário,
o trabalho de Mira se mostra imenso e abre espaço para um eterno diálogo
sobre o mundo da linguagem e arte, o que me empolga de um jeito que não
sei diferenciar se os significados estão presentes no trabalho ou se já são di-
vagações minhas causadas pelo contato. Os trabalhos com papel de arroz são
os que mais me chamam a atenção, pela translucidez que traz suspensão da
matéria e se comportam como espaço infinito onde os desenhos, palavras,
letras se tornam coisas que ali flutuam. O papel é uma dimensão, um cosmos
onde os signos testam as possíveis configurações de existência. Primeiro com
as monotipias, os desenho exploram o plano e a linha na simplificação da for-

21
ma, inclui letras e palavras como desenho e desenhos e palavras que remetem
um ao outro; depois explora esses papéis no espaço com os Objetos Gráficos,
decretando os desenhos e palavras como coisas, as Droguinhas que fazem a
bidimensionalidade do papel se retorcer em si mesma criando um emaranha-
do de dimensões e o Trenzinho que coloca as folhas seriadas unidas por uma
linha. Para Mira, o aprendizado do mundo é uma prática e para tanto se faz
necessário multiplicar os contatos com ele4 e é nesse movimento de explorar a
sistematicidade dos signos do mundo, de olhar o mundo de novo e de novo
e num gesto mínimo falar sobre esse mundo e dar uma dimensão mais ampla
da realidade que o trabalho da artista se tornou um rumo para o meu próprio.

14 e 15. Mira Schendel, Sem Título (Monotipias), 1964

4 Naves, Mira Schendel: O presente como utopia, O vento e o moinho, p. 97.

22
16. Mira Schendel, Sem Título (da série Droguinhas), 1964

17. Mira Schendel, Trenzinho, 1965

23
A tela então foi trabalhada em cima de três níveis de profundidade:
um nível virtual, que se estende ao infinito para dentro da pintura, e está li-
gada à perspectiva e à imagem naturalista; a superfície da tela no qual a tinta
se assume propriamente como tinta sobre tela, incluindo as laterais que não
serão cobertas por uma moldura; e por fim o nível de profundidade que se
expande para fora da tela, que pode se fazer presente pelas massas de tinta
espessa que criam grandes relevos na superfície, objetos colados ou cores que
refletem como uma aura para fora da tela, principalmente as fluorescentes
que rebatem no olho do espectador e no ambiente que habitam. A pintura se
torna objeto e os elementos podem ser dispostos a fim de coabitar esses três
níveis.
O Cacto II, minha primeira tela usando tinta a óleo, tenta aproximar
a figuração da abstração a partir de um recorte em close de uma figura da
planta, tornando seus detalhes um conjunto de cores e traços e componentes
que são colocados, retirados e organizados de modo a reforçar o caráter de
objeto para a pintura. A linha podia ser feita colocando tinta com a ponta
do pincel ou retirando-a com o cabo, uma construção que se dá, não por fi-
nas camadas, mas de maneira muito colocada, a tinta como objeto na tela, o
que remete a montagem de Tuymans, que aliás, descobri posteriormente sua
pintura Bloodstains parte do mesmo princípio de aproximar uma imagem o
bastante para ela existir no limiar entre figura e abstração.
Era o começo do meu vocabulário, o ponto, a linha, a palavra, a cor
de fundo são elementos de um universo que fala sobre sobre a linguagem,
sobre os movimento mínimo do desenho e do pincel na tela.

24
18. Cacto II, 2014

19. Luc Tuymans, Bloodstains, 1993

25
DESDOBRAMENTOS

As soluções das minhas pinturas eram muito simples, muitas vezes,


eram apenas uma cor de fundo coberta com outra com a espátula e esta cor
coberta era revelada pelo rabiscar da ponta do pincel. A simplicidade aqui era
timidez diante da tela, mas nada inesperado de um trabalho tão embrionário.
A banalidade que antes era pretexto para fugir da figuração se tornou tema
dos trabalhos, do qual eu evitava elementos com uma alta carga simbólica,
bem como evitei pintar retratos e pessoas, ao contrário, busquei pintar as
coisas e os espaços. Não queria uma narrativa óbvia e acreditava, e ainda acre-
dito, que a única presença da figura humana que importa é a do observador
do trabalho.
Fiz uma série de pinturas que usando copos americanos como motivo
para serem exibidas no Bar do Seu Ademir na exposição chamada POCKET
SHOW, organizada pelo Marcelo Jarozs. As pinturas, de maneira muito pre-
cária ficavam expostas no balcão do lugar, apoiadas em copos americanos do
bar, uma piada metalinguística não intencional. Foi a primeira vez que os vi
trabalhos expostos dentro de uma coesão temática, fora da faculdade, dando
outra dimensão para a compreensão do trabalho, que só é possível de se notar
quando este está fora do ateliê.

26
20. Vista da exposição POCKET SHOW, 2015

Uma dessas conclusões foi sobre o tamanho do chassi. As telas co-


meçaram pequenas por uma necessidade financeira, assim como o próprio
modo de pintar veio de uma limitação técnica, mas o que era um problema
foi absorvido e se tornou a poética do trabalho. O tamanho diminuto criava
uma relação intimista desde a produção, na qual eu apoiava a tela no colo
para colocar detalhes, como na exposição em que a relação corporal com o
espectador o aproxima do trabalho. A limitação virou discurso.
Assim como olhei para Mira, a pintura e o desenho de Volpi e Guig-
nard compuseram meu repertório de inspiração. Alfredo Volpi foi um artista
que assimilou as formas modernas, mas também se opôs à rigidez construti-
vista e preferiu o fazer artesanal contra a violência industrial. Faz a tinta em
têmpera, produz o próprio chassi, não diferencia o fazer na tela com pintar
paredes. Em entrevista para a TV Cultura em 1976, o repórter o questiona
sobre já ter pintado paredes, Volpi responde: o que que tem pintar parede?5

5 Entrevista à TV Cultura, em 1976. Especial Volpi. Publicado no YouTube em 2011

27
21. Sem Título (da série Copo Americano), 2015

28
e iguala a fazer um afresco. É como se assumisse: sou pintor, eu pinto. Suas
figuras são bandeirinhas, mas também são relações geométricas, utilizando-se
da reversibilidade da forma.

22. Alberto da Veiga Guignard, Paisagem Mineira, 1960

Seu trabalho quando não é totalmente plano, possui uma profundi-


dade rasa, organizada pela cor. Dos anos 1950 viajou para a Itália e viu a arte
pré-renascentista e renascentista, como Giotto e Paolo Uccello, como aponta
Rodrigo Naves6. Se coloca como artista com olhar atemporal, capaz de assi-
milar o clássico e o moderno, um não como antítese do outro, mas como di-
álogo entre os dois e transpõe isso no seu trabalho. Enquanto isso, Guignard
constrói suas pinturas e desenho de paisagens dentro de um espaço vasto,
com detalhes pitorescos de Ouro Preto, mas estranhados naquela nebulosida-
de de detalhes dissolvidos. A luz não incide sobre as coisas, mas emana delas,
aumentando a sensação de mundo imaterial, transcendental, metafísico. A

6 Naves, Anonimato e Singularidade em Volpi, A Forma Difícil, p. 202.

29
23. Alfredo Volpi, Bandeirinhas horizontais com mastro, 1970

24. Paolo Uccello, A Batalha de São Romano, c. 1435-1455

30
paisagem suspensa é uma influência do Ukiyo-e7 ou na Europa, o japonismo
que fez parte do repertório moderno, que buscava soluções antiperspectiva, e
que foi influência de uma de suas inspirações, Matisse.
É possível perceber com mais clareza a influência de Matisse nas suas
pinturas de retratos e interiores, onde aparecem muitas ornamentações e co-
res mais sólidas, ao contrário do mundo difuso da pintura de paisagem.
Os desenhos de paisagem tem mais gestos mínimos que me chama-
ram bastante a atenção na época.
Olhando essas de paisagens, surgiu uma série de desenhos que depois
virou pintura chamado Paisagem Ponto e Linha. Os desenhos eram simples,
mas bem resolvidos, tinham força, enquanto o que veio a ser pintura não era
algo ideal, o fundo só preenchia o branco da tela e a linha da paisagem não
tinha intensidade para ser tinta - como linha sobre papel fazia mais sentido -
o que me causava bastante angústia, mas que eu sabia que algo bom poderia
ser extraído dali.

23. Paisagem Ponto e Linha, 2016

7 “Retratos do mundo flutuante” em tradução literal. É um gênero de xilogravura e pintura que

prosperou no Japão entre os séculos XVII e XIX

31
O Pepino Amarelo nasceu dessa má resolução da pintura anterior: um
sol que se confunde com um elemento comprido de cor amarelo-limão no
meio da tela e que carrega uma pequena montanha na base, essa flutuante e
sem linha do horizonte de suporte. Era uma paisagem-vocabulário que me
daria inspiração para as demais telas que se seguiram e disso eu tirei uma li-
ção valiosa de que pintura puxa uma nova pintura e assim o discurso vai se
fazendo.

24. Pepino Amarelo, 2016

Em paralelo a esse percurso de transformação do meu trabalho, co-


mecei a realizar cursos complementares de história e teoria da arte fora da
faculdade. Já havia uma dedicação no estudo dessas disciplinas por participar
do cursinho Prévia, antes chamado de Ideia, primeiro como aluna em 2010
e depois como educadora em 2012 e permaneci no projeto por três anos. O
cursinho é voltado para o público vestibulando, então ele se concentra no
estudo e ensino do início da arte moderna até a contemporânea. Feito por

32
alunos, os conteúdos por vezes eram repassados com alguns erros (como acre-
ditar numa rígida diferença entre arte moderna e contemporânea) e o período
anterior ao moderno era um pouco nebuloso para nós, por isso o grupo foi
tomando cada vez mais empenho em estudar conteúdos diversos no primeiro
semestre (o curso inicia em agosto) para suprir as deficiências do projeto.
Em 2015, o ano que deixei de participar do Prévia, fiz os cursos com
Tiago Mesquita sobre esse período moderno e contemporâneo e com Rodri-
go Naves que começa suas aulas a partir de Giotto, o que foi essencial para eu
trabalhar minhas dúvidas com o período pré-clássico, clássico e romântico.
No ano seguinte realizei cursos específicos de pintura com o artista Bruno
Dunley e com Paulo Pasta.
Com esses cursos complementares foi possível trabalhar num projeto
em paralelo da extensão L.O.T.E., o Curso Livre de História da Arte que, nos
mesmos moldes do Prévia, ensinava o conteúdo das provas para os vestibu-
landos, mas, por não possuir limite de vagas e também ser aberto ao público
geral, tinha a liberdade de trazer em suas discussões assuntos que iam além
para falar sobre o clássico e o romântico.
O constante estudo sobre diversos artistas e seus trabalhos, transfor-
mou a história da arte num catálogo aberto do qual eu poderia comentar, in-
serir e assimilar nas minhas pinturas, como o uso enciclopédico das imagens
utilizadas por Richter. Neste ponto é preciso fazer outro grande comentário,
pois é nessa época que começa a ser estabelecido um entendimento sobre o
que ocorre na pintura contemporânea, principalmente a pintura paulista, as
também de outras regiões nacionais e internacionais.
A volta da pintura dos anos 80 no Brasil fez do expressionismo abs-
trato, a transvanguarda italiana e o neoexpressionismo a sua base, sendo a
Documenta de Kassel que exibiu Baselitz, Lupertz, Schnabel, entre outros,
um marco para os pintores da época, dentre eles, os integrantes da Casa 7. A
narrativa não-obvia, a agilidade na execução da pintura (one shot painting) e

33
a problematização do fazer em pintura são características que eles carregam,
ainda que cada artista tenha seguido sua própria poética posteriormente. Em
uma entrevista para a Escola da Cidade, Rodrigo Andrade fala em como os
artistas fazem seus trabalhos antes de tudo para seus pares e para o artistas com
quem se mantém diálogo8. A geração dele, por sua vez, vão ser artistas que vão
dialogar com geração mais jovens pintores que tem uma pintura ligada a ima-
gem e vão se agrupar no que foi nomeado de grupo 2000e8. Eles não eram
um coletivo, foi nomeado como grupo, após a jornalista Camilla Molina do
jornal Estado de São Paulo perguntar se assim se consideravam e entre olha-
res, Regina Parra e Rodolfo Parigi tomarem a dianteira e confirmarem que
sim. Faziam também parte Bruno Dunley, Rodrigo Bivar, Ana Elisa Esteja,
Marina Rheingantz, Renata de Bonis, Marcos Brias. Não fazia parte do grupo
2000e8, mas eram amigos e com um trabalho próximo os também pintores
Lucas Arruda e Ana Prata.
Todos se unem pela pintura, com uma forte influência, não só dos
pintores mais velhos (Bruno foi assistente de Sérgio Sister), como da pintura
de imagem síntese de Richter e Tuymans com a relação contemporânea de se
aproximar e se apropriar das imagens da internet, que nada mais é do que uti-
lizar a imagem digital para colocá-la no mundo físico da tinta, transpor para o
mundo material. Esses artistas estavam lidando com toda uma reorganização
do repertório da pintura e dando novos usos para as convenções de imagem
como por exemplo Ana Prata que nessa época utilizava de programas de edi-
ção de imagem para construir a cena, criando uma nova verdade com relação
a imagem. Tiago Mesquita em seu texto A pintura de imagem vai alertar que
toda a história da tradição da pintura e a liberdade que eles aparentemente
tinham em seus trabalhos, em contrapartida exigia deles, mesmo com um

8 Entrevista de Rodrigo Andrade para os alunos da pós-graduação da Escola da Cidade em 2014.

Publicado no Youtube, no mesmo ano.

34
trabalho jovem, uma intelectualização muito grande de seus discursos. Dizer
que a pintura pode fazer qualquer coisa é uma utopia a ser visada, mas na
prática, o peso da história é uma pedra no caminho.

25. Ana Prata, Vaca, 2009

O grupo não era homogêneo e desenvolveu suas pesquisas no campo


pictórico de maneira singular, aproximando e afastando integrantes.
Dos artistas desse grupo, me aproximei primeiro de Bruno Dunley,
em 2014 alguns anos depois em que seu trabalho já estava ficando mais con-
solidado. Fui visitar seu ateliê e ele me deixou sobre a mesa um monte de
catálogos de arte e comentava com empolgação de cada um: Raoul de Key-
ser, Jasper Johns, Martin Kippenberg. O Bruno já era alguém que estudava
e levava consigo a postura da história da arte como um livro de figurinhas a
serem usadas, comentadas, apropriadas. Sua pintura é bem diversificada (algo

35
também visível no trabalho da Ana Prata que comentarei mais para frente),
monocromos, pinceladas abstratas, imagens retiradas de enciclopédias, con-
venções da pintura, imagens de referência fotográfica com paleta de cor res-
trita e esmaecida. Grandes e pequenas. Ele estava falando da história da arte,
da pintura e da humanidade e a tela era seu plano esquemático. Eu queria isso
para mim também.

26. Bruno Dunley, Sem Título, 2013

Lucas Arruda é mais reservado e não tem uma pintura tão diversifi-
cada. Pinta paisagens com uma perspectiva impessoal, utiliza técnica de ras-
pagem para dar refinamento e virtuosismo para o trabalho que é totalmente

36
romântico (a raspagem era bastante usada nas paisagens de William Turner).
Existe um tom religioso e emocionado nas telas, a técnica usada cria uma que
vem de trás da tela, do interior da paisagem e não apenas da luz que incide
sobre ela.

27. Lucas Arruda, Sem Título, 2011


Marina Rheingantz pinta paisagens vastas ou espaços sem começo
e fim, não existe presença humana, mas há elementos criados pela mão hu-
mana. Isso é algo que me interessa muito, é como se o espectador estivesse
diante de um memorial da humanidade com objetos banais, não necessa-
riamente como ruína. Lembra bastante a pintura metafísica nesse sentido,
porém a pincelada abstrata dá forma a figuras mais ou menos reconhecíveis,
enquanto a figuras reconhecíveis dos lembram que também é tinta sobre tela.
Não raro existem elementos absurdos dos seus espaços, dando a sensação de
lugar imaginado ou memória distante ou memória imaginada. As cores tam-
bém são esmaecidas. Existe um trabalho dessa artista que mostra a liberdade
desses pintores em poder transfigurar seus trabalhos na medida do possível.
São tapeçarias que imitam a tinta na tela de uma maneira muito delicada que
evocam lugares mais distantes ainda.

37
28. Marina Rheingantz, Chuvisco II, 2013

Por fim, Ana Prata a qual conheci o trabalho durante exposição na


Galeria Millan(2014) quando ela marcava uma mudança radical na sua pin-
tura, deixando de lado a imagem fotográfica editada e se voltando mais para
a linguagem própria da pintura e do desenho na tela, utilizando, para isso,
de suportes novos, de objetos presos na tela, colados ou apoiados. Existe uma
graça, uma delicadeza no trabalho, mas também possui uma vontade punk
de fazer o que quiser. Apesar de ter um repertório rico sobre história da arte
(inclusive dando aulas sobre pintura), a artista não tem paciência para uma
exigência intelectualizante, pragmática, diz que pinta o que tem vontade. Por
conta disso foi muito mal compreendida por alguns outros artistas, sendo

38
desacreditada pela forma de pintar, enquanto para mim e para meu grupo, o
que ela fazia era o que mais nos empolgava (e empolga) entre os jovens pin-
tores daquela geração.

29. Ana Prata, Céu, 2014

A inteligência da Ana é pictórica e não verbal e aquela exposição foi


um estopim para eu ir moldando meu trabalho. Por conta dessa proximidade
de interesses, acabei trabalhando como assistente dela durante o ano de 2017,
como ajudante e como modelo para uma série de retratos que seriam expostos
na Art Basel de Hong Kong, porém a minha imagem era apenas pretexto para
se fazer pintura e ela fazia o que queria.

39
É importante perceber aqui a passagem da pintura que vem de nomes
como Rodrigo Andrade, Sérgio Sister, Paulo Monteiro, Paulo Pasta passa por
esses nomes mais jovens e chega até a minha pintura e dos colegas de facul-
dade.
Entre os anos de 2014 até 2016 foram anos que eu testei as possi-
bilidades entre abstração e figuração e cheguei num resultado que ainda era
muito tímido, com soluções muito fáceis e rasas, o pragmatismo de como eu
colocava os elementos na tela vinha menos como discurso e mais como uma
limitação e eu queria vencer o quanto antes essa barreira.

30. Ana Prata, vista do stand na Art Basel Hong Kong, 2017

40
A EXPERIÊNCIA HOJE

Existia uma ansiedade imatura de se inserir no mercado de arte, prin-


cipalmente porque era um momento em que as grandes galerias estavam cha-
mando jovens artistas para compor seu time e também pipocavam pequenas
galerias por toda a cidade.
Os anos de 2017 e 2018 foram também os anos em que a minha
pintura foi consolidando uma personalidade e, portanto, criando um vocabu-
lário que começavam a me identificar junto com outros colegas. Não foi um
movimento individual, não era raro ouvir pintores e críticos atentos a “nova
geração de pintores que estavam saindo da UNESP”. Thomaz Rosa, Ander-
son Godinho, Sandra Mazzini entre os mais velhos, enquanto eu e André
Bontorim éramos os mais novos.
Graças ao Guilherme Teixeira, jovem curador, comecei a expor em
espaços mais expressivos. Fiz parte de uma coletiva no Museu de Arte de Ri-
beirão Preto, depois galeria Sancovsky. Em 2018 um convite para expor no
Memorial da América Latina na exposição, Scapeland de curadoria do tam-
bém artista Laerte Ramos.
Dentre os trabalhos que estavam nessa exposição, dois foram feitos
durante a residência artística na Fazenda Serrinha, que mantém parceria com

41
a UNESP. Eu já tinha estado lá como assistente do trabalho de José Spaniol
em 2016, mas apenas como residente eu tive tempo de fazer caminhadas pela
fazenda a fim de chegar a soluções artísticas. As caminhadas eram diárias, en-
volvia desenhos de observação, fotos e vídeos dos lugares. Desse ritual diário
saíram alguns projetos de site specific e de instalação que não saíram do papel,
enquanto todos os cenários observados não viraram pintura diretamente, mas
uma reorganização da memória criando esquemas de paisagens.

31. Vista da exposição Ontem foi um dia longo, 2017

Sobre isso, Bruno Dunley, em seu curso de pintura observa que pro-
curamos soluções pictóricas no lugar de olhar o mundo real. Claro que olha-
mos o mundo real, mas o ultimato é olhar para a história da arte.
Não é de se estranhar que tenha aparecido projetos fora do suporte
tradicional da pintura. Nessa época, além de estar olhando a obra Raoul de
Keyser, me voltei para alguns artistas que lidavam com o espaço como James
Turrell e, por quem me apaixonei pelo trabalho, Richard Tuttle que faz da
sua montagem pontos de ativação onde as obras se encontram. Eu quis então

42
realizar trabalhos que se forem pintura, usem material e suporte não conven-
cionais.
Tuttle usa materiais simples di-
versos, madeira, tecido colorido, tinta,
papel, papelão, às vezes tudo isso jun-
to num emaranhado compositivo que
ele espalha pelo cubo branco ativando
centros, cantos, quinas. Algo do traba-
lho em construir esses objetos inúteis,
quase brinquedos, me chamava a aten-
ção. Existe um indício de que a mão es-
colheu,uniu e pintou esses objetos que
me agrada muito, porém queria desta- 32. James Turrel,
car aqui sobre o conceito de ativação do Tewlwolow Kernow, 2013
espaço, algo que fazia com que a minha
pintura pensasse fora de sua organização interna. A tela como pensamento
deveria, para além de suas próprias questões, ativar o espaço no seu entorno e
ser consciente dessa possibilidade para a dar potência ao trabalho.

34. Richard Tuttle, Vista de Exposi-

33. Richard Tuttle, Formal Alpha- ção Looking for the Map, 2014

bet K, 2015

43
35. Richard Tuttle, Hello, The Roses 6, 2012

44
O modo como as telas devem ser expostas não é mais uma ao lado da outra
com distanciamento igual, os trabalhos devem se aproximar ou se afastar,
estar dispostos dos cantos, centros e quinas se couber a elas ativar esses es-
paços. Parte disso já estava presente quando eu pensava nas profundidades
da tela, mas eu ainda me prendia no limite do chassi, pensava sobre uma cor
que pudesse refletir no espaço, algo como o dourado transcendental da arte
bizantina, mas estava me privando de pensar as telas como objetos no espaço.
A consolidação de um vocabulário próprio na pintura, naturalmente
já me instiga a tentar novas configurações: telas maiores, telas orientadas na
horizontal, outros materiais, novas cores a serem usadas. Éden, um dos traba-
lhos mais recentes, veio de uma dessas necessidades, onde a pintura do paraí-
so deveria tomar um espaço maior, de ser feita com maior embate corporal e
de ser grande no gesto mínimo.
Todos os trabalhos vem mais ou menos de rascunhos rápidos que faço
em qualquer pedaço de papel ou com ajuda do celular, de memorizar uma sé-
rie de imagens da memória, real ou imaginária. Por vezes os trabalhos tomam
seus próprios rumos, fugindo do planejamento inicial, o que é normal, já que
a tela pede coisas e o artista escolhe como responde a esses pedidos. Atual-
mente, para escrever esta monografia e por uma série de eventos no ano, fiz
uma pausa em toda a produção, mas no fim isso não me ajudou em nada. A
distância não me fez ter um olhar mais analítico sobre o trabalho, pelo menos
conclui que esse olhar não viria de mim, já que nunca podemos fugir de nós
mesmo e os trabalhos nascem de uma série de operações mentais e sentimen-
tais. Inevitavelmente, desenhos de imagens mentais foram aparecendo, ainda
que ausente da rotina de ateliê, que espero retomar para colocar no mundo
esses novos trabalhos.

45
33. Éden, 2018

46
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
POR QUE PINTURA?

Por muito tempo fui me questionando do porquê de fazer pintura.


No começo da faculdade li o Estética Relacional do Nicolas Bourriaud e pelos
escritos do livro a pintura parecia antiquada, mercadológica demais e mor-
ta, o que era e é reafirmado exaustivamente. Por outro lado, os artistas que
pintavam se afirmam como pintores, especificamente pintores, para marcar
uma diferenciação com todos os outros que fazem arte e usavam disso como
proteção, algo como um clubismo.
Para mim restava a pergunta: Porquê Pintura? Se tudo já foi feito,
por que colocar mais uma pintura no mundo? A formação de pintura de São
Paulo carrega a postura de uma ética do fazer. Ainda que temos um horizonte
infinito de possibilidades, justamente porque tudo foi feito e tudo pode ser
feito, existe uma necessidade de verdade no trabalho. Alguns artistas reafir-
mam isso, como Bruno Dunley que, em seu curso, destaca que a fotografia
tem liberdade da imagem, enquanto a pintura busca uma união temática
para afirmar coesão, ou Rodrigo Andrade em sua entrevista para a Escola da
Cidade conta como Philip Guston tinha sua própria ética ao questionar sobre
colocar mais um trabalho no mundo e que a pintura deveria pagar o preço de
sua existência.

47
A pintura é então um problema? Não, o problema não é sobre a na-
tureza da linguagem, mas existem problemas na pintura atual que é aquela
pintura que não passa de um comentário, uma citação da história da arte, é
uma anedota e não diz mais nada além disso, é confortável em sua situação.
Tenho medo do meu trabalho, que usa a história da arte como base, caia nesse
problema e é algo que penso muito sobre. Isso é um problema levantado por
diversas figuras, mas destaco Paulo Pasta que fala isso tanto no seu curso de
pintura, como também indica esse torcer de nariz no seu livro A educação pela
pintura quando vai falar de Tuymans.9
Mas também é Paulo Pasta que destaca que não pintamos o que ve-
mos e sim vemos o que pintamos. A pintura vem de uma necessidade interna
de querer ampliar a relação com o mundo, suspender certezas para talvez
revelar novas interações e isso não é possível sem o embate do pintor com a
tela. A resposta para a pergunta porquê pintura não poderia ser mais tosca do
que pinta-se porque precisa pintar.
Respostas mais elaboradas que isso requerem o tempo da vida para
serem respondidas. O tempo da vida, que é o mesmo tempo das coisas de
Volpi, aquele que admite desgastes, que faz do fazer uma poética, é a antítese
do tempo da informação, levantado por Lorenzo Mammì:

Em face de um sistema de informação que exige efeitos imediatos, mensagens

sintéticas e facilidade de circulação, tornam-se [as obras de arte] obscuras, tortuosas, irri-

tantes. Em compensação, quando postas em movimento, continuam produzindo novos

significados por séculos, talvez ao infinito - uma qualidade com que o mundo da mídia não

sabe bem como lidar.10

9 Pasta, O evento e a pintura, A educação pela pintura, p. 68-69.

10 Mammì, A arte depois da arte, O que resta, p. 14

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Apesar do texto supracitado caminhar para uma conclusão de inter-
dependência da arte com a indústria cultural, gostaria de me ater a separação
que Mammi percebe sobre a temporalidade.
O tempo da informação é rápido demais, frio demais, consome arte
como tendência da moda e não a encara como reflexões humanas acerca do
mundo. Esse é o tempo que pede uma intelectualização violenta dos trabalhos
jovens a fim de lançá-los como marcas, é esse o tempo que causa a ansiedade
infantil de querer fazer parte do mercado, é esse o tempo que pede respostas
prontas para a condição da pintura. Porém, no tempo da vida, que é o tempo
que a arte habita para produzir seus significados mais importantes, as coisas
são lentas e não respondem diretamente a vaidade fashionista ou o próprio
tempo mostra a fraqueza de discurso. Esse tempo não nega os desgastes e não
é melancólico, não encara suas mortes com angústia e também não é sobre
evolução, pois seu caminho não é linear.
O tempo da vida, o tempo das coisas, meu embate subjetivo com a
tela e a história da arte como vitrine do humanismo são os elementos que ro-
deiam o desejo de pintar, que é apontado por Yve-Alain Bois, como algo que
não está inteiramente subordinado ao mercado e aponta que com esse desejo,
a morte da pintura apenas precede sua ressureição de um lugar inesperado.
Para mim, gostaria de utilizar esse tempo da vida para experimentar
novas possibilidades de se relacionar com o mundo e faço das palavras de
Mira as minhas:

49
O que me preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda a força

empírica, para o símbolo, com sua memorabilidade e relativa eternidade. Sei que se trata,

no fundo, do seguinte problema: a vida imediata, aquela que sofro, e dentro da qual ajo, é

minha, incomunicável, e portanto sem sentido e sem finalidade. O reino dos símbolos, que

procuram captar essa vida (e que é o reino das linguagens), é pelo contrário, antivida, no

sentido de ser intersubjetivo, comum, esvaziado de emoções e sofrimentos. Se eu pudesse

fazer coincidir esses dois reinos teria articulado a riqueza da vivência na relativa imortalida-

de do símbolo (o vazio do mundo)11

11 apud Naves, Mira Schendel: o presente como utopia, O vento e o moinho, p. 104.

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BIBLIOGRAFIA

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51
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TV Cultura. Especial Volpi. Disponível em: <https://www.youtube.com/


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