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HISTÓRIA

&
PERSPECTIVAS
Nº 57

Julho/Dezembro/2017

Revista do Instituto de História, vinculada aos


Cursos de Graduação em História
e ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Uberlândia

Núcleo de Pesquisa e Estudos em História, Cidade e Trabalho

ISSN 0103-409X impresso


ISSN 2176-4352 online

Hist.& Perspec. Uberlândia-MG N° 57 p. 1-430 jul./dez./2017


REVISTA HISTÓRIA & PERSPECTIVAS
Revista dos Cursos de Graduação e do Programa de Pós-graduação em História
Núcleo de Pesquisa e Estudos em História, Cidade e Trabalho
Diretor do Instituto de História: Prof. Dr. Florisvaldo Paulo Ribeiro Junior
Coordenador do Prograwma de Pós-Graduação em História: Prof. Dr. Jean Luiz Neves Abreu
Coordenador dos Cursos de Graduação: Prof. Dr. Gilberto Cézar de Noronha
Diretor da Edufu: Prof. Dr. Guilherme Fromm
Editora Responsável: Profa. Dra. Regina Ilka Vieira Vasconcelos
Conselho Editorial
Conselho Executivo:
Regina Ilka Vieira Vasconcelos – Editora Instituto de História – UFU
Marili Peres Junqueira Instituto de Ciências Sociais – UFU
Marta Emisia Jacinto Barbosa Instituto de História - UFU
Sérgio Luiz Miranda Instituto de Geografia – UFU
Colaboradores Externos
Carlos Alberto de Oliveira Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC/Ilhéus-BA
Leandra Domingues Silvério Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM
Jiani Fernando Langaro Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD
Conselho Consultivo
Alessandro Portelli Sapienza – Universitá de Roma
Estevão Chaves de Rezende Martins Universidade de Brasília – UnB
Francisco Sacristán Romero Universidad Complutense de Madri
Geoff Eley University of Michigan – USA
Heloisa de Faria Cruz Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
Josep Fontana Lázaro Universitat Pompeu Fabra (UPF) – Barcelona
Maria Giuseppina Eboli Sapienza – Universitá de Roma
Maria Hilda Baqueiro Paraíso Universidade Federal da Bahia – UFBA
Michael Lowy École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS) – Paris
Peter Linebaugh University of Toledo – Ohio/USA
Raquel Glezer Universidade de São Paulo – USP
Raquel Varela Universidade Nova Lisboa – Portugal
Regina Helena Alves da Silva Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Capa: Diego Marcos Silva Leão Revisão: Edufu


Diagramação: Luis Frederico Serraglia Periodicidade: Semestral
Imagem da capa: Disponível na versão eletrônica:
<https://pixabay.com/pt/reed-cesta-cestas-de-vime-3166698/> <http://www.historiaperspectivas.inhis.ufu.br/>

HISTÓRIA & PERSPECTIVAS, n. 57 – jul./dez. 2017


Uberlândia-MG – Universidade Federal de Uberlândia.
Revista do Instituto de História, vinculada aos Cursos de Graduação e ao Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Uberlândia
Núcleo de Pesquisa e Estudos em História, Cidade e Trabalho – NUPEHCIT
Data do 1º volume: jul./dez./1988
Semestral
ISSN 0103-409X impresso e ISSN 2176-4352 online
1. História. I. Universidade Federal de Uberlândia. Instituto de História
CDU930

UFU – Universidade Federal de Uberlândia


EDUFU – Editora da Universidade Federal de Uberlândia
Av. João Naves de Ávila, 2121 – Campus Santa Mônica – Bloco 1S – Térreo
Cep 38408-100 – Uberlândia – Minas Gerais
Tel: (34) 3239-4293 – www.edufu.ufu.br

Indexado em Latindex
HISTÓRIA
&
PERSPECTIVAS 57

SUMÁRIO

Apresentação ...................................................................................... 7

DOSSIÊ: MEMÓRIAS, OFÍCIOS E LUTAS DE TRABALHADORES E


TRABALHADORAS NO BRASIL

Os trabalhadores nas páginas do Estadão: “demonização” e


criminalização dos movimentos de trabalhadores rurais e urbanos (1963-
1964) no jornal O Estado de S. Paulo................................................ 13
Luiz Antonio Dias

A trama têxtil de Villa Platina: profissões do vestuário no sertão de


Minas.................................................................................................. 43
Maristela Novaes
Noé Freire Sandes

Costureiras e as mudanças nas relações de trabalho em Santa Helena,


PR .................................................................................................... 73
Rosane Marçal da Silva

Os trabalhadores do Norte de Minas Gerais: entre o “desenvolvimento”


e o “progresso”................................................................................. 101
Valéria de Jesus Leite
Te m p o l i v r e e l a z e r d o s t r a b a l h a d o r e s n a M a n c h e s t e r
Mineira: reflexões acerca dos relatos nos processos crime de
homicídio (1900-1924)..................................................................... 129
Cleber Augusto Gonçalves Dias
Marina Fernandes Braga Nakayama

Escravos senhores de escravos. Pernambuco, séculos


XVIII e XIX........................................................................................ 149
Robson Pedrosa Costa

ARTIGOS

História, consciência histórica e utopia em J. Rüsen e A. Heller: reflexões


para a didática da história................................................................ 179
Luis Fernando Cerri
Caroline Pacievitch

O ofício do historiador: reflexões sobre o conceito de passado em suas


dimensões sociais e históricas......................................................... 209
João Paulo Pereira Coelho
José Joaquim Pereira Melo

Das raízes à formação da educação brasileira: os subsídios de


Primitivo Moacyr............................................................................... 233
Rosana Areal de Carvalho

Letrados e escrita da história escolar: Sebastião Paraná e o Manual O


Brasil e o Paraná para uso nas escolas primárias........................... 257
Maria Aparecida Leopoldino

Intelectuais e educação: o debate brasileiro em torno da Lei de Diretrizes


e Bases da Educação Nacional (Lei nº 4.024 de 1961)................... 281
Maria Cristina Gomes Machado
Mário Borges Netto

Lendo manuscritos coloniais: uma análise crítica de três


documentos setecentistas sobre festas públicas na Capitania de
Pernambuco..................................................................................... 307
Kalina Vanderlei Silva
Doenças, medicina popular e sociedade provincial: aspectos do
tratamento de doenças na família Vieira dos Santos (Município de
Morretes, Província de São Paulo, 1848-1851)............................... 335
André Luiz Moscaleski Cavazzani
Sandro Aramis Richter Gomes

Sebastião: o santo dardejado em terras de Goiás........................... 367


Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira
Maria Clara Tomaz Machado

Configurações iniciais do ensino de desenho na Universidade Federal


do Paraná (1971-1977): do Instituto de Matemática ao Setor de Ciências
Exatas.............................................................................................. 395
Adriana Vaz
Rossano Silva
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 7-9, jul./dez. 2017

APRESENTAÇÃO

Para este Número 57, da Revista História & Perspectivas,


temos a composição do Dossiê Memórias, ofícios e lutas de
trabalhadores e trabalhadoras no Brasil e uma seção de artigos
com diferentes temáticas.
Ao definir a temática para a chamada deste dossiê, o Conselho
Editorial da Revista teve como objetivo construir um panorama
sobre estudos com diferentes abordagens, que enfocassem
diversos aspectos envolvidos na constituição da condição de
trabalhadora ou trabalhador e de seus modos de vida no Brasil.
O propósito era de que a delimitação dessa temática abrangesse
estudos sobre questões relacionadas a formação de identidades,
construção de ofícios, relações de gênero e etnicorraciais,
movimentos sociais, organizações sindicais, memórias, lutas,
embates e disputas de trabalhadoras e trabalhadores, implicadas
na própria constituição do ser trabalhadora ou trabalhador e de
suas vidas em diferentes temporalidades e espacialidades do
Brasil.
Apresentamos seis artigos originados de pesquisas em torno
de trabalhadores e de trabalhadoras no Brasil, sua experiência
de atuação profissional, seus movimentos de organização e luta,
relações com imprensa, transformações nas relações de produção
e de poder nos espaços de vida, em diferentes temporalidades e
conjunturas entre os séculos XIX e XXI.
O primeiro artigo, de Luiz Antonio Dias, analisa como o jornal
O Estado de S. Paulo retratou os movimentos de trabalhadores,
tanto rurais como urbanos, no período que antecedeu o Golpe
de 1964, e como justificou o golpe e a violência que se seguiu
sobre os trabalhadores. O segundo, de Maristela Novaes e Noé
Freire Sandes, discute a presença de profissionais do vestuário
(fiandeiras, tecelãs, costureiras, alfaiates, comerciantes) no
contexto cultural de Villa Platina, região do Triângulo Mineiro, no
início do século XX, a relação dessa sociedade com seu sistema
de vestuário e com o comércio direcionado a esse ramo nos termos

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 7-9, jul./dez. 2017

da redefinição da tradição da manufatura de roupas. O terceiro, de


Rosane Marçal da Silva, problematiza elementos e dimensões do
processo de intensificação da produção industrial e as mudanças
que o trabalho industrial ocasionou na vida dos trabalhadores
das indústrias de confecções do vestuário, em Santa Helena,
no Paraná, durante os anos 1980-2000. Valéria de Jesus Leite
se debruça sobre a organização dos trabalhadores em Montes
Claros e Norte de Minas Gerais, suas demandas e suas lutas,
entre as décadas de 1970 e 1980, problematizando o processo
de modernização econômica. Cleber Augusto Gonçalves Dias e
Marina Fernandes Braga Nakayama apresentam reflexões sobre
práticas e espaços de sociabilidade de trabalhadores durante o
tempo livre e o lazer em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira,
com base em relatos presentes nos processos crime de homicídio
produzidos do período de 1900 a 1924. Escravos que se tornam
senhores de escravos é o objeto de discussão de Robson Pedrosa
Costa, que investigou um modelo de gestão implementado pela
Ordem Beneditina do Brasil em Pernambuco, durante os séculos
XVIII E XIX, a partir do estímulo dado a escravos a possuírem os
próprios escravos para o trabalho em suas roças.
Na segunda seção deste número consta um conjunto de
nove textos.
Luis Fernando Cerri e Caroline Pacievitch cotejando obras de
Jörn Rüsen e de Agnes Heller para discutir suas posições sobre
consciência histórica e suas possíveis implicações para a Didática
da História, face à importância da defesa de valores como a
razão, a verdade e a democracia para a formação de historiadores
e professores de história. João Paulo Pereira Coelho e José
Joaquim Pereira Melo desenvolvem reflexão sobre o conceito de
passado em suas dimensões sociais e históricas, considerando
as relações entre enfrentamentos sociais e diferentes formas de
apropriação do passado.
Rosana Areal de Carvalho se dedica a compreender a
publicação da obra de Primitivo Moacyr e discutir o modo como
a questão da instrução enquanto responsabilidade do Estado se
fez presente no cenário político e cultural brasileiro entre anos

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 7-9, jul./dez. 2017

1930 e 1940. Maria Aparecida Leopoldino desenvolveu pesquisa


no campo da História da Disciplina Escolar, tomando como objeto
de estudo e fonte de pesquisa o manual O Brasil e o Paraná
para uso nas escolas primárias, de 1903, no contexto dos ideais
republicanos e da construção de uma “história regional”. Ao mesmo
tempo, a relação entre intelectuais educação e imprensa durante
o debate brasileiro em torno da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional de 1961 é o objeto de estudo de Maria Cristina
Gomes Machado e Mário Borges Netto, que problematizaram o
modo como os intelectuais lidaram com a imprensa para divulgar
distintos projetos educacionais no conflituoso processo de
constituição e consolidação da escola pública estatal.
Kalina Vanderlei Silva dedica-se à análise crítica e
paleográfica de três manuscritos setecentistas, da Capitania de
Pernambuco, sobre festas públicas, discutindo possibilidades de
estudo de documentos camarários e de interpretação das festas
como espaços de demarcação de status para a elite açucareira
colonial. André Luiz Moscaleski Cavazzani e Sandro Aramis
Richter Gomes discutem práticas terapêuticas em uma região
da Província de São Paulo, nos anos de 1848 a 1851, a partir do
estudo de registros de tratamentos de doenças em memórias de
famílias. Também tratando de festas como temática de estudo,
Maria Clara Tomaz Machado e Anderson Aparecido Gonçalves
de Oliveira analisam práticas e saberes rurais do interior goiano a
partir das festividades religiosas em homenagem a São Sebastião.
Adriana Vaz e Rossano Silva estudaram a forma como as
disciplinas de desenho foram formatadas na primeira década da
Reforma Universitária na Universidade Federal do Paraná para
compreender a matriz do ensino de desenho no início dos anos
1970 e suas relações com outras áreas de conhecimento.

Conselho Editorial

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DOSSIÊ: MEMÓRIAS, OFÍCIOS E
LUTAS DE TRABALHADORES E
TRABALHADORAS NO BRASIL
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-1

OS TRABALHADORES NAS PÁGINAS DO ESTADÃO:


“DEMONIZAÇÃO” E CRIMINALIZAÇÃO DOS
MOVIMENTOS DE TRABALHADORES RURAIS E
URBANOS (1963-1964) NO JORNAL O ESTADO DE S.
PAULO.

Luiz Antonio Dias*

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar a forma como


o matutino O Estado de S. Paulo retratou os movimentos de
trabalhadores, tanto rurais como urbanos, no período que
antecedeu o Golpe Civil Militar de 1964. Mais especificamente
entre outubro de 1963 e março de 1964, buscamos compreender
em que medida esse periódico contribuiu para a disseminação
do “fantasma” do comunismo – associando o termo às lutas
camponesas, à reforma agrária, aos sindicatos e às greves – e
como legitimou o golpe civil-militar como única alternativa para
conter aquela ameaça. Avançamos, na análise do material, até
o final de abril de 1964, para mostrar como esse jornal justificou
o golpe e a violência que se seguiu sobre os trabalhadores.
Mostramos que, através de forte atuação editorial, o periódico
vinculou as manifestações sindicais e as greves ao “avanço
comunista”, contribuindo para o processo de criminalização das
lutas dos trabalhadores – tanto no campo quanto na cidade – e
de desconstrução da legitimidade de suas reivindicações.

PALAVRAS-CHAVE: Golpe de 1964. Imprensa. Trabalhadores.

* Doutor em História Social – UNESP-Assis. Pós-Doutorado pela Universid de


Córdoba. Professor do Departamento de História e do Programa de Estudos
Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
Professor do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas
da Universidade de Santo Amaro (UNISA). E-mail: [email protected]

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

ABSTRACT: The purpose of this paper is to present how the


morning newspaper “O Estado de S. Paulo” portrayed the
movement of workers, both rural and urban, in the period before
the Civil Military Coup, to be more precise, between October
1963 and March in 1964, we try to understand to what extent this
newsletter has contributed to the spread of “communism’s ghost”
- associating the term to peasant struggles, agrarian reform, trade
unions and strikes and how legitimized the civil-military coup as the
only way to contain that threat. We move forward in the analysis of
material by the end of April 1964 to show how this newspaper has
justified the coup and the ensuing violence on workers. We show
that, through strong editorial role, the journal linked the industrial
action and strikes the “Communist breakthrough,” contributed to
the criminalization process of workers’ struggles - both in the field
and in the city - and deconstruct the legitimacy of their claims.

KEYWORDS: 1964. Coup. Press. Workers.

A pena legitimando o fuzil

Para compreender o processo de criminalização dos


trabalhadores, no momento que antecedeu o golpe civil militar
de 1964, utilizamos como fonte primária o jornal O Estado de
S. Paulo, no período de outubro de 1963 a abril de 1964. Esse
recorte cronológico fundamenta-se nos episódios ocorridos em
outubro de 1963, como o pedido de estado de sítio – que será
apresentado mais adiante – e uma grande greve ocorrida em São
Paulo; ao avançarmos até abril de 1964, analisamos a forma pela
qual o jornal recepcionou os militares no poder e legitimou o golpe.
A escolha desse jornal fundamentou-se na importância de suas
páginas e seu envolvimento em diversos episódios históricos do
país; além disso, esse periódico sempre foi referência no meio
jornalístico, tanto na cena local como nacional. Em 1964, O Estado
de S. Paulo era um dos grandes jornais do país, pela sua tiragem e

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

pela sua relevância opinativa, tido como um jornal sério e coerente


pelos leitores, era visto como uma fonte de “informações seguras”.
O uso da imprensa como fonte histórica requer certo cuidado
teórico-metodológico, pois devemos compreender o veículo de
comunicação como produto social. Para evitarmos armadilhas
e anacronismos, não podemos analisar essas fontes de forma
isolada, separadas do contexto histórico. Não devemos aceitar
determinada narrativa do acontecimento como a única possível,
pois, na realidade, ela está diretamente relacionada aos interesses,
às ideias e às necessidades do próprio jornal. Verificamos, assim,
que pode existir distância entre o ocorrido e o narrado, justamente,
em função da posição de cada um desses veículos da grande
imprensa. Dependendo das necessidades e conveniências
do momento histórico, as fontes podem ser manipuladas, seja
para justificar, seja para produzir uma “realidade” que legitime o
discurso da época. Mas, mesmo deturpando o real, essa fonte
é importante e deve ser utilizada, inclusive para mostrar como
se opera essa ação de construção de determinada ideia do real.
A forma como o jornal O Estado de S. Paulo noticiou o golpe
civil-militar em 1964 é, nesse sentido, um caso exemplar do que
aqui estamos argumentando. Para compreendermos porque o
processo foi noticiado de uma forma, e não de outra, devemos,
como indica Luca, verificar:

[…] suas ligações cotidianas com diferentes poderes e interesses


financeiros, aí incluídos os de caráter publicitário. Ou seja, à análise
da materialidade e do conteúdo é preciso acrescentar aspectos
nem sempre imediatos e necessariamente patentes nas páginas
desses impressos. (LUCA, 2006, p. 140).

A imprensa e seus agentes orgânicos, os proprietários,


editores e jornalistas determinam o que será “notícia” e, o mais
importante, a forma como esse fato será noticiado. Cabe, pois,
ao historiador aplicar o rigor técnico e metodológico de seu ofício
à análise dos fatos e documentos, buscando problematizar sua
estrutura, discutir suas nuances e, assim, oferecer subsídios para

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

melhor entender as causas e motivações que elevam determinado


acontecimento à condição de “notícia”.
Devemos, também, analisar a posição dos leitores, já que
existe grande distância entre o que “foi dito” pela imprensa e o
que foi entendido e aceito pelo público. Portanto, é necessário
tomar alguns cuidados com a ideia de manipulação exercida
pelos meios de comunicação. O leitor não pode ser visto como
massa amorfa, que pode ser “moldada” contra seus próprios
interesses, defendemos a ideia de que o jornal atinge, sobretudo,
seu próprio grupo, as pessoas que já pensam de forma parecida
à do veículo. Seria, portanto, um respaldo importante para a
confirmação da opinião do indivíduo. Isso não significa, porém,
reduzir a importância e a responsabilidade dos jornais por aquilo
que é noticiado e pela forma como essa notícia foi construída.
O jornal O Estado de S. Paulo – fundado em 1875, como
Província de S. Paulo – nasceu norteado pelos princípios e
projetos do pensamento liberal. Talvez por isso, trazia já em seu
nascedouro uma visão mais elitizada da sociedade, evidenciada
na aberta e sistemática crítica que fazia aos movimentos sociais,
nem tanto contra a pertinência de suas causas, mas, sobretudo,
pela forma de atuação de seus membros. “Quando foi decretada
a Lei de Segurança Nacional (1935) o OESP considerou-a branda
[…] no combate ao banditismo (comunismo) brasileiro, tudo
deveria ser sacrificado.” (CAPELATO, 1989, p. 121). A concessão
de benefícios sociais e trabalhistas, na década de 1930, só
passou a contar com o apoio do jornal após a constatação de
que seriam instrumento importante no combate ao comunismo.
Esse avanço, no entanto, deveria ser fruto da ação do Estado e
não uma conquista das lutas dos trabalhadores.
É interessante notar que o liberalismo nem sempre foi praticado
com a mesma desenvoltura pelo jornal. Suas convicções liberais
ficaram, por exemplo, muitas vezes represadas nos estreitos
limites da redação. Evidentemente, em alguns momentos, houve
certa contradição entre esses princípios liberais “econômicos” e
os “políticos”. No plano político, o jornal aceitou a intervenção em
1937 e o Estado Novo, mas o apoio não durou muito tempo. No

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

início de 1940, O Estado de S. Paulo sofreu intervenção. Júlio


de Mesquita Filho só conseguiu recuperá-lo em dezembro de
1945. Importante destacar que, mesmo antes desse episódio, o
jornal já demonstrava descontentamento com o governo Vargas,
com seu discurso nacionalista e populista. O confisco do jornal
tornou a relação ainda mais conflituosa. Para Capelato e Prado,
1937 foi “[…] o final de um período em que se pode assistir ao
esboroar das perspectivas do periódico, vítima de suas próprias
contradições, aguçadas pelo temor do comunismo.” (CAPELATO;
PRADO, 1980, p. 65-66).
Ao assumir a defesa do governo militar, em 1964, O Estado
de S. Paulo fez ecoar o pensamento de variados setores da
imprensa; tal qual como em 1935 e 1937, “o banditismo” deveria
ser combatido. Para esses setores, a defesa da “Revolução
Redentora” era o caminho mais seguro para reencontrar a paz
social e garantir os direitos básicos do cidadão ameaçados,
naquele contexto, pelo avanço das “agitações comunistas” no
território brasileiro.
Nesse sentido, apresentamos um mapeamento de algumas
expressões – “greve”, “comunismo”, “reforma agrária” – utilizadas
pelo jornal, bem como uma análise de parte das matérias em que
essas expressões apareceram. Optamos por selecionar esses
termos, pois estavam diretamente relacionados à organização
de trabalhadores (greve), demandas (reforma agrária) ou
“demonização” (comunismo) e poderiam indicar a forma como
esse periódico interpretava e difundia esses elementos. Esses
dados foram obtidos a partir de consultas ao acervo do jornal,
utilizando a ferramenta de busca do próprio jornal. É importante
destacar que esses dados podem apresentar divergências quando
comparados aos obtidos com outras formas de coleta; de qualquer
forma, os números encontrados, que podem ser ainda maiores,
são importantes, pois indicam a grande preocupação do jornal
com esses temas.
Verificamos, dentro do nosso recorte cronológico, os
seguintes números para o termo “greve”: 211 referências em
outubro de 1963, o maior índice desse ano; em novembro,

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

ainda de 1963, temos 202 citações, o segundo maior do ano; e,


finalmente, em dezembro, encontramos 62 referências. Em janeiro
de 1964, verificamos 66 referências; em fevereiro, 69; em março,
observamos o maior índice do ano: 107; e, finalmente, em abril,
foram 72. Cabe destacar que o ano de 1963, ao longo de toda a
década, foi o que mais apresentou referências ao termo “greve”.
Quando procuramos a palavra “greve”, associada, em
uma mesma matéria, ao termo “comunismo”, encontramos,
evidentemente, números menores, mas ainda assim expressivos,
sobretudo no mês de outubro de 1963 (32), o maior índice do
ano, seguido por novembro (23). Em dezembro, a ocorrência caiu
para três, mesmo número de janeiro de 1964; depois temos uma
ampliação das referências: 12 vezes em fevereiro, 20 em março e
34 em abril. Nos meses seguintes ao golpe, as aparições desses
termos em conjunto caíram bastante.
Situação semelhante também ocorreu com as referências,
em conjunto, dos termos “reforma agrária” e “comunismo”, que
tiveram redução significativa após o golpe. Antes, porém, essa
associação era comum. Em outubro de 1963, encontramos 17
vezes; em novembro, 20 vezes; em dezembro, o número de
referências caiu para dois. Em janeiro de 1964, observamos quatro
ocorrências; em fevereiro, subiu para 12; em março, para 21; em
abril, a associação apareceu 18 vezes.
Diante desse amplo material, optamos por selecionar algumas
das referências mais significativas para apresentar a forma como
o jornal apresentou os trabalhadores e suas lutas. Destacamos a
cobertura do jornal à “Greve dos 700 mil”, ocorrida em São Paulo
no final de outubro de 1963, bem como a cobertura sobre as
propostas de reforma agrária. Em muitos casos, o termo “greve”
foi utilizado apenas para informar a ocorrência de uma greve ou
o final dela, sem grande aprofundamento analítico. Em outros
momentos, é claramente perceptível o trabalho jornalístico na
tentativa de criminalizar o movimento. O jornal esforçava-se,
muitas vezes, para mostrar que essas lutas faziam parte de
ampla “estratégia comunista” para criar o caos. Nesse sentido, a
narrativa do fato estará sempre permeada de intencionalidades,
como bem destacam Cruz e Peixoto:

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

[...] notícias sobre os movimentos sociais ou sobre greves veiculadas


por algum jornal da grande imprensa ou revista semanal no período
da ditadura, são ali deslocadas e imediatamente articuladas à
produção de uma narrativa sobre como ocorriam os movimentos
naquele período. (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 258).

Assim, ao analisarmos o material coletado do jornal O


Estado de S. Paulo no período de outubro de 1963 – quando o
presidente João Goulart encaminhou proposta de “estado de sítio”
ao Congresso e passou a ser acusado de golpista pela imprensa
– até abril de 1964, foi possível apontarmos em que medida
esse periódico contribuiu para a disseminação do “fantasma”
do comunismo e como legitimou o golpe civil-militar como única
alternativa para conter essa ameaça. Por meio de forte atuação
editorial, esse periódico vinculou as manifestações sindicais e
as greves a uma “ardilosa trama comunista” para, com o aval do
presidente João Goulart, implantar uma república sindicalista no
Brasil. Também percebemos um processo de criminalização das
lutas dos trabalhadores – tanto no campo quanto na cidade – e
de desconstrução da legitimidade de suas reivindicações.

Camponeses e operários, a foice e o martelo

O mês de outubro de 1963 começou de forma bastante


intensa. Ainda sob o impacto de uma revolta de sargentos –
ocorrida em setembro, na cidade de Brasília –, os leitores do
jornal Tribuna da Imprensa puderam ler, em primeiro de outubro,
a entrevista concedida por Carlos Lacerda – governador da
Guanabara – ao jornal Los Angeles Times, em que ele atacava o
presidente João Goulart por suas relações com os comunistas e
seu apoio à indisciplina nas Forças Armadas; finalizando, Lacerda
cobrava uma posição mais dura dos EUA contra essa situação.
Nesse interim, o jornal O Estado de S. Paulo brindava
seus leitores com o editorial “A Marcha da Convulsão”, onde
afirmava que “Não se pode negar […] o êxito da campanha

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

comunista empreendida no País pelos totalitários em geral e


pelos comunistas em particular.” (O ESTADO DE S. PAULO, 1
out. 1963, p. 3). O editorial seguia afirmando que os “totalitários
de esquerda” comumente acusavam de fascistas todos aqueles
que eram contra as greves ilegítimas, “[…] na suposição de que
as massas ignoram a ilegalidade, no bolchevismo, de todas as
greves, que são afogadas em sangue, quando o operariado […]
se revolta contra o inferno do paraíso em que vive.”
Cabe destacar a proximidade do jornal com a UDN (União
Democrática Nacional), principal partido de oposição ao presidente
João Goulart, e com Carlos Lacerda, provável indicação da UDN
para concorrer às eleições presidenciais de 1965.
Desse momento e até abril de 1964, teremos inúmeras
referências ao comunismo e sua vinculação com movimentos
de trabalhadores. Isso fica ainda mais evidente em outro
editorial dessa mesma data: “A Tática Comunista”. Para o jornal,
existiria um plano ardiloso em que as “[…] agitações das Ligas
Camponesas, os assaltos frequentes aos engenhos e terras
açucareiras, os discursos explosivos dos Juliões e dos Arraes
[…]” (O ESTADO DE S. PAULO, 1 out.1963, p. 3) serviriam para
desviar o foco do epicentro do avanço comunista, que era a região
Centro-Sul do país. Assim, prosseguia o jornal:

A greve dos bancários na Guanabara e a tática a que eles


estão decididos a recorrer para levarem de vencida não só os
empregadores, mas a própria Justiça do Trabalho, são claramente
indicativas do perigo que está rodeando as instituições do
País. (O ESTADO DE S. PAULO, 1 out.1963, p. 3, grifos nossos).

A conclusão do texto evidenciava a inépcia do governo,


afirmando que ele se recusava a proteger a Pátria contra aqueles
que a queriam escravizada.
Durante grande parte do mês de outubro de 1963, o jornal
dedicou-se a criticar o pedido de estado de sítio solicitado ao
Congresso pelo presidente João Goulart. Em grande parte desse
material, observamos a vinculação do pedido à tentativa de golpe

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para estabelecer uma “república sindicalista”. Para Ferreira (2011),


os ministros militares, indignados com a postura de Carlos Lacerda
no episódio da entrevista, sugeriram que o presidente João Goulart
deveria solicitar o estado de sítio, instrumento necessário para
uma eventual intervenção na Guanabara. No entanto, faltou-lhe
apoio de todos, da direita – como esperado – e, mesmo, dos
setores da esquerda como, por exemplo, do PCB, do governador
Miguel Arraes, da UNE; importante destacar que: “O grande receio
das esquerdas era de que as leis de exceção se voltassem contra
elas e o movimento sindical.” (FERREIRA, 2011, p. 368).
No final de outubro de 1963, observamos ampla cobertura
à greve dos “700 mil” e a tentativa de apresentar esse episódio
como mais um elemento do plano, que avançava rapidamente,
para desestabilizar o país.
Antes mesmo da eclosão dessa greve, o jornal destacava, em
matéria de página inteira, intitulada “Dirigente sindical denuncia
ação comunista nas ferrovias” (O ESTADO DE S. PAULO,
13 out. 1963, p. 27), a influência e infiltração dos comunistas
nos sindicatos, indicando que as greves eram um instrumento
para “agitar a Nação”. No dia 18 de abril de 1963, o título da
matéria apresentava tom semelhante: “Salários: o PAC (Pacto
de Ação Conjunta) tenta acirrar os ânimos visando a greve geral”
(O ESTADO DE S. PAULO, 18 abr. 1963, p. 14). O texto afirmava
que os dirigentes sindicais buscavam criar um impasse nas
negociações, para justificar a convocação de uma grande greve,
com mais de 70 sindicatos, agregando 700 mil trabalhadores. O
jornal percebia – e criticava – que o grande risco era o princípio
que norteava a greve: a tentativa de unificar as negociações,
como indicava a matéria a seguir:

[…] os diretores do Sindicato profissional […] estão adotando uma


tática protelatória, a fim de que não se realizem de imediato, os
entendimentos na fase administrativa […] outros membros […]
preferem uma solução inviável e ilegal: o entendimento direto com
a Federação das Indústrias de S. Paulo (FIESP) passando por
cima da Consolidação das Leis do Trabalho […]. Procuram ganhar

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tempo, pois nos próximos dias, conforme essa folha já publicou,


haverá uma série de providências objetivando um acirramento de
ânimos que conduza à greve do maior número de categorias. (O
ESTADO DE S. PAULO, 18 abr. 1963, p. 14).

Nessas linhas, ficava evidente a ideia defendida pelo jornal:


a situação era artificial, os diretores do “sindicato profissional”
atuavam deliberadamente para acirrar os ânimos e conduzir os
trabalhadores a uma greve ilegal, pois contrária aos princípios
básicos da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), como o
acordo intersindical.

Os líderes do movimento […] estavam descrentes em relação


aos entendimentos entre a CNTI e a Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp). […] Para eles, sindicalistas, o receio
dos patrões não estava no teor das reivindicações, muito menos
no valor do reajuste pleiteado, mas, sim, no perigo que a mudança
na forma de negociar os dissídios coletivos poderia representar
aos interesses patronais. Os empregadores tinham consciência
de que se a CNTI passasse a representar todas as categorias de
trabalhadores, o movimento operário ganharia força e coesão. A
mudança nas negociações coletivas poderia representar a unidade
da classe operária e teria as organizações horizontais como as
principais representantes dos trabalhadores. (CORRÊA, 2008,
p. 222-223).

Para Corrêa, era um momento extremamente delicado


e tenso, pois uma “[…] campanha liderada pela oposição ao
governo Goulart disseminava o medo de que uma nova ‘república
sindicalista’ se instalasse no país. Desde meados de 1962, o CGT
e o PAC atuavam como entidades centralizadoras dos sindicatos
[…].” (CORRÊA, 2008, p. 220).
Em vários momentos, verificamos a tentativa de o jornal
desqualificar esses grupos. Uma charge, publicada no início de
outubro, apresentava o presidente João Goulart carregado por
“elementos suspeitos”, com fisionomias assustadoras e camisas

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com as siglas PAC (Pacto de Ação Conjunta), CGT (Comando


Geral dos Trabalhadores) e FSD (Fórum Social de Debates),
tendo em volta crianças, mulheres, trabalhadores com semblantes
assustados (O ESTADO DE S. PAULO, 4 out. 1963, p. 4). Era
nítida a tentativa de indicar que o presidente não possuía apoio
popular, dos trabalhadores reais, mas de agitadores profissionais
que eram assustadores e perigosos para o Brasil.
A discussão sobre o caráter das greves continuou pautando o
jornal até o final de outubro. Em entrevista, o governador de São
Paulo, Ademar de Barros, atribuía a possibilidade da ocorrência
de uma greve, que poderia paralisar 700 mil trabalhadores, à
“falta de severidade administrativa por parte do governo federal”
(O ESTADO DE S. PAULO, 26 out. 1963, p. 5), mas afirmava que
São Paulo estava preparado para evitar as desordens. Cunha
destaca – no relatório da Comissão Nacional da Verdade, no texto
sobre violações de direitos humanos dos trabalhadores – que:

[…] a postura repressiva adotada pelo governador de São Paulo,


Ademar de Barros, contrastava fortemente com o comportamento
negociador do governo federal e de seu ministro do Trabalho, Amaury
Silva, senador pelo PTB. Em pronunciamento feito pela televisão, o
governador Ademar de Barros (militar e economicamente engajado
na conspiração contra Goulart) interveio diretamente contra a greve,
afirmando que o movimento havia subvertido a ordem pública e
conclamava o operariado a não aderir. Apelou a Deus e às mães,
esposas e noivas, exortando-as a não deixarem seus filhos, maridos
e noivos fazerem greve. Seu secretário de Segurança, general
Aldevio Barbosa de Lemos, repetiu os argumentos do governador,
declarando à imprensa que a greve era política e subversiva.
(CUNHA, 2014, p. 57).

Assim, a greve foi apresentada, pelo jornal e pelos políticos de


oposição, como desordem e caos, promovida pelo próprio governo
federal. No dia seguinte, um artigo assinado por Pedro Dantas,
intitulado “Greves Políticas” (O ESTADO DE S. PAULO, 27 out.
1963, p. 4), explicava que o “Partido Comunista utiliza as greves

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para chegar ao poder. Quando e onde já o tenha conquistado, não


as admite mais, seja contra o que for”. Seguia explicando que, nas
democracias, as greves são sempre aceitas e toleradas, desde
que legitimas, quando apresentam reivindicações econômicas.
As greves políticas, porém, seriam ilegítimas e, portanto, não
deveriam ser toleradas.
No dia seguinte, 28 de outubro, os trabalhadores decidiram
decretar a greve. Organizada a partir da CNTI (Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Indústria), os operários buscavam
um reajuste salarial de 100% e uma série de outras reivindicações
econômicas; no entanto, o que mais assustava as forças
conservadoras eram as reivindicações políticas:

[…] os trabalhadores procuravam também intensificar a luta pelas


reformas de base, sobretudo, a reforma agrária. E, ainda, queriam
a encampação das refinarias, a posse imediata dos deputados
operários e sargentos eleitos e não empossados em virtude das
acusações de práticas comunistas e outras medidas contra a
Carestia. (CORRÊA, 2008, p. 225).

Outra reivindicação era a centralização das negociações em


torno de uma central sindical, isso daria força às categorias mais
frágeis e, também, aos trabalhadores em geral, que poderiam
organizar greves muito mais amplas, unindo várias categorias,
como o foi a própria greve dos 700 mil. Para a FIESP e, como
demonstrado anteriormente, para o jornal O Estado de S. Paulo,
isso era ilegal, pois contrário à CLT; além disso, empresários e o
jornal não viam legitimidade, para negociação, na CNTI.
Após três dias de greve, o TRT (Tribunal Regional do Trabalho)
determinou que o julgamento seria por categoria e não unificado.
Embora tenham conseguido um reajuste próximo do reivindicado
(80%) e a não punição dos grevistas, foi negada a unificação das
datas-bases, principal ponto da pauta política. Apesar disso, para
Negro e Silva, o que ocorreu foi uma vitória, ainda que parcial,
nessa questão, pois “a volta à produção só aconteceu quando
uma Comissão de Greve negociou um acordo válido para 700

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mil trabalhadores, independentemente dos entendimentos terem


ocorrido em particular” (NEGRO; SILVA, 2011, p. 85); assim, para
os autores, na prática, houve um avanço nas reivindicações, pois
o acordo foi coletivo.
Por outro lado, para o jornal O Estado de S. Paulo, a greve
já era um fracasso desde seu início, como se via em artigo
intitulado “Vitória do operariado: a greve política malogra em S.
Paulo”, que afirmava: “[…] de acordo com informações colhidas
junto à FIESP e posteriormente corroboradas pelas autoridades
policiais, verificava-se que apenas 30% do operariado entrou
em greve pelo que se considerava malogrado o movimento” (O
ESTADO DE S. PAULO, 30 out. 1963, p. 36). O texto seguia
apresentando a situação em algumas regiões do estado de São
Paulo, sempre destacando a baixa adesão e críticas da FIESP ao
Ministro do Trabalho, Amaury Silva, que teve pouco contato com
os empregadores, mas sempre recebia os grevistas. Outro texto,
na mesma página, intitulado “Adaucto diz que Goulart é quem
chefia a conspiração”, fazia alusão à declaração do deputado
federal Adaucto Lucio Cardoso, líder da UDN na Câmara, para
quem: “[…] nesse episódio da greve geral de São Paulo, temos
a demonstração de que o sr. João Goulart é incansável no seu
propósito de conspirar contra o sossego da Nação”. Assim, o jornal
buscava mostrar que o movimento não representava os interesses
dos operários nem os da nação e, pior, era um movimento ilegal
orquestrado pelo próprio presidente da república e por seu ministro
do trabalho.
No dia do julgamento da greve pelo TRT (31 de outubro
de 1963), o jornal destacava a situação de caos e baderna na
cidade de São Paulo, promovida pelos grevistas e piquetes que
chegaram, inclusive, a tombar um carro de polícia. Segundo
O Estado de S. Paulo, esses atos de violência, por si só, já
justificavam a prisão de mais de mil operários.
Nos dias que se seguiram ao julgamento da greve, o jornal
comemorou a vitória da lei e da ordem contra a tentativa de
impor o caos pela CNTI. Em matéria intitulada “Confirma-se o
malogro da greve: o TRT rejeita a tese da CNTI” (O ESTADO

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

DE S. PAULO, 1 nov. 1963, p. 30), mostrava que a organização


não havia conseguido mobilizar aqueles a quem supostamente
representava, tendo sido afastada, pela justiça, do debate no
judiciário.
Para Corrêa, “de um lado, os trabalhadores procuravam
instituir uma nova forma de negociar com os patrões dentro e
fora da Justiça do Trabalho. De outro, a classe patronal procurava
desmobilizar o movimento […] classificando-os como ‘agitadores’.”
(CORRÊA, 2008, p. 228). Nesse sentido, a cobertura da imprensa
paulistana, em geral, e do O Estado de S. Paulo, em especial, foi
muito importante nessa construção imagética, pois mostravam à
população que grande parte dos envolvidos não era “trabalhadores
de verdade”, mas arruaceiros; indicavam, dessa forma, que as
prisões e punições eram sido justas.
Negro e Silva confirmam essa forma de atuação dos
patrões, essa tentativa de deslegitimar as organizações
operárias, indicando que “por meio da FIESP, os patrões atuaram
coletivamente nas mesas-redondas, mas só concordaram com
negociações em separado, entender-se diretamente com a CNTI
era ilegal, alegavam.” (NEGRO; SILVA, 2011, p. 83).
Da mesma forma que O Estado de S. Paulo apresentava as
greves como fruto da ação de agitadores profissionais, comunistas
e toda sorte de elementos nocivos à sociedade, também o fazia
com relação às manifestações no campo. Evidentemente que
esse posicionamento do jornal estava em consonância com a
grande parte das elites nacionais, preocupadas com as greves e
a ação no campo, mas, sobretudo, com o que isso representava
em termos de avanços populares.
Em fevereiro de 1964, a matéria intitulada “Projeto deve criar
CPI sobre a agitação rural em toda a Nação”, o jornal destacava
a importância dessa CPI, que poderia “[…] verificar ‘in loco’, as
origens, natureza e profundidade da agitação reinante nos meios
rurais […]” (O ESTADO DE S. PAULO, 22 fev. 1964, p. 5). A ideia
embutida no texto não deixa dúvidas sobre a visão de “conspiração”
do jornal. A transcrição da entrevista do deputado Cunha Bueno,
autor da proposta, contribui para reafirmar essa ideia:

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

Tem crescido sensivelmente nos meios rurais o ambiente de


agitação que, depois de perturbar a vida das maiores concentrações
urbanas do País, através de sucessivas greves, ameaça contaminar
também os meios agrícolas. […] alguns setores governamentais
estão incentivando o clima de desordem e a tentativa de invasão
de terras […]. (O ESTADO DE S. PAULO, 22 fev. 1964, p. 5).

O destaque dado pelo jornal a esse tipo de argumento


contribuiu para o clima de intranquilidade reinante e, em certa
medida, foi utilizado para justificar a ação dos militares. Na
mesma edição, o jornal informava que os debates no legislativo
mineiro indicavam que “A maioria da Assembleia é contra os
métodos empregados pela SUPRA (Superintendência de Reforma
Agrária), repudia o comunismo e defende o respeito ao direito de
propriedade”. Na sequência, informava que mesmo um deputado
do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) – base de sustentação do
presidente João Goulart – tecia críticas aos excessos: “Ao final
(Daniel de Barros), não discordou do presidente da República,
mas não pôde deixar de condenar a inquietação promovida pelos
comunistas”. (O ESTADO DE S. PAULO, 22 fev. 1964, p. 5).
O jornal nunca escondeu sua posição sobre as propostas
de reforma agrária. Já no início de 1964, em editorial intitulado
“Inconstitucional o decreto de espoliação”, indicava que o projeto
apresentado pelo presidente João Goulart feria a Constituição
em vários pontos, assim como indicava que, percebendo essas
incoerências, seus ardilosos assessores haviam alterado o plano
de ação, buscando outra interpretação da Constituição. Cabe
destacar, também, o esforço do jornal em vincular o presidente
João Goulart e seus projetos de reforma agrária ao comunismo,
conforme destacamos:

Encostados à parede e reconhecendo o caráter absolutamente


insustentável da tese que vinham sustentando, entenderam agora
os assessores comuno-nacionalistas do sr. João Goulart mudar a
tática […]. Constituição que invocam em tentativa de desesperada
para justificar os seus propósitos vandálicos. Esquece, entretanto
o “staff” comunista do caudilho […] (que) o artigo 147 é expresso
quando exige […] que se realize por lei – por lei e não por decreto.
(O ESTADO DE S. PAULO, 4 jan. 1964, p. 3, grifos nossos).

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

Nos dias seguintes, esse tema continuou pautando o jornal.


Em 5 de janeiro de 1964, o editorial aprofundava essa discussão e
várias matérias mostravam a inconstitucionalidade das propostas
apresentadas pelo presidente. No dia 7 de janeiro de 1964, o jornal
indicava que o recuo no decreto da SUPRA foi uma manobra. E,
no dia seguinte, discutia essa situação em editorial – “O recuo
do sr. Jango Goulart” –, dizendo que esse recuo não era fruto do
bom senso, mas sim parte de uma ardilosa estratégia:

[…] não se pode sobre isso iludir quem como nós, acompanha os
passos do pupilo do sr. Getúlio Vargas, desde que o ditador voltando
ao poder […] empreendeu fazer dele Ministro do Trabalho. […]
Estamos diante de uma pausa […]. Resolve s. exa. recuar ante os
protestos contra o absurdo constitucional que pretendia impor ao
País, mas para voltar dentro de em breve à sua mesma linha de
conduta, indefectivelmente fiel aos propósitos subversivos […]. (O
ESTADO DE S. PAULO, 8 jan. 1964, p. 3).

O jornal sempre procurou demonstrar o caráter desagregador


e subversivo do governo João Goulart. O editorial “A subversão
e a conivência oficial” mostrava que o presidente não estava
disposto a impedir, por suas ações e omissões, “[…] a criminosa
tentativa comunista de afogar a Nação num mar de sangue.”
(O ESTADO DE S. PAULO, 9 fev. 1964, p. 3). O texto seguia
indicando que as Ligas Camponesas avançavam pela região de
Aragarças – às margens do Araguaia – sobre várias cidades. A
subversão seria composta, além das Ligas, também “[…] pelos
Sindicatos Rurais e pelas uniões estudantis dominadas pelos
comunistas”. Ao longo desse material, temos várias referências
às armas em posse desses grupos e a organização de estruturas
de guerrilha na região. Não nos parece difícil supor que um
material como esse poderia causar pânico na sociedade civil.
Não podemos desconsiderar que, dentro do contexto da Guerra
Fria – acirrada com a Crise dos Mísseis em 1962 –, esse tipo
de discurso, anticomunista, difundido pelo jornal encontrava um
campo bastante fértil para vicejar.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

Ao longo do período analisado, verificamos que as matérias


apresentaram um tom de dramaticidade crescente até culminar,
em março de 1964, com convocações explicitas de intervenção
militar. Tendo, como pano de fundo, o Comício pelas Reformas de
Base, ocorrido na Guanabara em 13 de março de 1964, o jornal
apresentava “O discurso de Goulart no comício totalitário”. Nessa
matéria, o periódico trazia o discurso do presidente João Goulart,
na integra, e destacava que a “cor do comício” era vermelha, pelas
faixas e cartazes do Partido Comunista com “dizeres subversivos”.
(O ESTADO DE S. PAULO, 14 mar. 1964, p. 5).
Nessa mesma data, é importante destacar, também, o tom
do editorial – “O comício”:

Nunca, portanto, a situação foi tão clara. Sob a bandeira das


“reformas”, as palavras de ordem da revolução são levadas
a todos os cantos do país. Isto sob a proteção dos tanques e
das metralhadoras, com as Forças Armadas transformadas em
instrumento do novo poder ditatorial. […] O povo da Guanabara
ficou em casa, deixando a praça Cristiano Otoni entregue às hordas
arregimentadas e aos pelegos de toda a espécie que ali acorreram.
E esse simples fato tem um grande significado para todos os
democratas brasileiros e uma séria advertência à ditadura que se
esboça. (O ESTADO DE S. PAULO, 14 mar. 1964, p. 3).

Verificamos, assim, um campo bastante fértil de análise para


compreendermos a construção do “medo” do comunismo e do
perigo iminente da implantação da “ditadura sindical”. O editorial
“O estado de revolução em Pernambuco”, também de março de
1964, tornava isso muito evidente:

Em Pernambuco estabeleceu-se um espantoso caos. A cidade


de Recife encontra-se praticamente ocupada por elementos
de procedência suspeita, ostensivamente armados e que
não escondem os seus intuitos agressivos. No interior, o
panorama não é diferente, sendo total a paralisação na área da
agroindústria, com os engenhos cercados por piquetes de grevistas.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

[…] Pernambuco se transformou em estado sem lei […]. Assim


perguntamos até onde vão as coisas? E até quando permanecerá
de braços cruzados o Exército? Não podemos é permitir que seus
chefes não tenham consciência dos perigos que nos ameaçam e
do sangue que acabará fatalmente correndo em torrentes se as
Forças Armadas continuarem confundir o que ai está com um regime
legal. (O ESTADO DE S. PAULO, 5 mar. 1964, p. 3, grifos nossos).

A referência aos “elementos suspeitos, armados e de


procedência duvidosa” era clara tentativa de vincular as lutas aos
interesses de agitadores profissionais. Além disso, contribuía para
disseminar o medo do “avanço do comunismo” e de uma situação
de grave crise institucional. Clamava pela unidade nacional, pela
intervenção dos militares, que, quando ocorreu, pode ser assim
legitimada, bem como a violência sobre os trabalhadores.
A temperatura continuava aumentando. No editorial do dia
24 de março de 1964, intitulado “Escombros da Democracia”,
O Estado de S. Paulo afirmava que caminhávamos para uma
“cubanização do país”, com alta inflacionária e anarquia nas
Forças Armadas.
Para os militares, as greves, a quebra da hierarquia nas
Forças Armadas, bem como a “ameaça comunista”, justificariam
a intervenção. Para Hélio Marques – Tenente Coronel Instrutor
da ECEME (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército), em
1964 – a situação estava insustentável, pois:

Acordava-se em dúvida a respeito do fornecimento de energia


elétrica e de gás de cozinha; saía-se de casa na incerteza de haver
condução para ir e voltar; até as refeições diárias eram incertas,
tanto pela questão da obtenção de artigos alimentícios como pelo
seu preparo. (MOTTA, 2003, p. 256).

O militar segue afirmando, ainda em seu depoimento, que a


sociedade civil dava sinais inequívocos desse descontentamento;
nesse sentido, as Forças Armadas foram pressionadas e
“empurradas” pelos civis para a intervenção.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

Não é fácil definir a importância e a contribuição da imprensa


em geral – e do jornal O Estado de S. Paulo, em particular – nesse
processo de radicalização que antecedeu o golpe civil-militar, mas
é evidente que existiu árduo trabalho jornalístico no sentido de
desestabilizar o presidente João Goulart, bem como desqualificar
suas propostas de Reformas de Base, para conter os avanços sociais.
A fala do Tenente-Coronel Rubens Mário Brum Negreiros,
em 1964, mostra a importância dos jornais na legitimidade
do processo. Para ele, Goulart era um fraco, dominado pelos
comunistas, e a intervenção foi necessária para evitar que os
subversivos tomassem, definitivamente, o controle da situação:

Sabia-se, através de jornais da época, que no Palácio Laranjeiras,


onde o presidente João Goulart se encontrava constantemente, a
sala de espera era local de reunião de sindicalistas, onde pelegos
relaxados, com os pés em cima das cadeiras e das mesas,
demonstravam a intimidade que tinham com o governo. (MOTTA,
2003, p. 101, grifos nossos.)

Para esse militar, os jornais serviram, em 1964, como fonte


de informação sobre os caminhos escolhidos por Goulart e hoje
servem para buscarmos a “verdade” sobre os episódios de
1964, pois, para ele, era evidente a adesão da sociedade civil ao
“movimento de 31 de março”, que: “[…] significou a resposta aos
anseios da sociedade […]. Quem quiser hoje saber se é verdade
ou é mentira é só ir às bibliotecas e ler os jornais […]”. (MOTTA,
2013, p. 104, grifos nossos).
Antes de avançarmos para o período pós-golpe e a violência
engendrada contra a sociedade em geral – e os trabalhadores
em especial –, creio que seja importante, ainda que rapidamente,
apresentar algumas possibilidades interpretativas para o processo
de 1964. A opção por uma análise, ou outra, tem implicações
diretas na interpretação da ação da imprensa. Nesse sentido,
Fico (2004) apresenta excelente análise de algumas dessas
interpretações, indicando as principais obras e correntes. Para
ele, é importante destacar a forte aliança civil militar:

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

É incontestável a atuação dos empresários para a desestabilização


do governo Goulart, tanto quanto fundamental a atuação
propriamente militar que surgiu das conspirações dispersas na
caserna. Não são fatores contrapostos. Sem a desestabilização
(propaganda ideológica, mobilização da classe média, etc.) o golpe
seria bastante difícil; sem a iniciativa militar, impossível. (FICO,
2004, p. 42).

Em tom crítico em relação à historiografia revisionista,


devemos destacar o trabalho de Toledo (2006), que indica uma
tendência, a partir de 2004, de associar o golpe ao radicalismo
das esquerdas e sua falta de compromisso com a democracia;
para ele, no entanto, essa interpretação apresenta “[…] ideias
falaciosas que passam a ter significados políticos e ideológicos
claros e precisos no debate historiográfico; a rigor endossam uma
visão conservadora e reacionária do golpe de 1964.” (TOLEDO,
2006, p. 36).
Importante indicar o trabalho, mais atual, de Melo (2013)
que, também, apresenta um posicionamento bastante crítico
na análise das interpretações revisionistas – além de analisar
outras explicações para o golpe –, indicando que “[…] parte da
historiografia acadêmica buscaria endossar o que sempre foi a
justificativa das direitas para a derrubada do governo Goulart […]:
um suposto golpe do próprio Goulart, arquitetado com apoio dos
comunistas e da própria URSS.” (MELO, 2013, p. 61).
Para Melo, o trabalho que fundamenta essa tendência,
publicado ainda em 1993, é a obra “Democracia ou reformas?
Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964”, de Argelina
Cheibub Figueiredo:

Em uma historiografia que começaria a ser produzida no início os


anos 2000 e que ganharia grande repercussão no contexto dos
quarenta anos do golpe de Estado (2004), as teses revisionistas de
Argelina Figueiredo encontrariam guarida, como pode ser aferido
nos trabalhos do professor Jorge Ferreira, que explicitamente a
toma como referência. Em inúmeros artigos em revistas acadêmicas

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e de divulgação científica, em capítulos de livros e em sua recente


biografia de João Goulart, a explicação do golpe de Estado de
Jorge Ferreira está centrada nesse suposto “déficit democrático”,
através de uma narrativa na qual, tal como em Argelina Figueiredo,
a luta de classes e a própria conspiração golpista estão ausentes.
(MELO, 2013, p. 63).

Essa explicação vincula-se à tese de que o episódio de


abril de 1964 foi resposta ao suposto golpe organizado pelas
esquerdas. Apesar da crítica de Melo (2013), acreditamos que
essa interpretação seja importante, principalmente se deixarmos
de lado o “real” e pensarmos a “sensação”, existente no período,
de que estava ocorrendo um avanço comunista no Brasil. Para
esse autor, “[…] com esse tipo de narrativa, o golpe de Estado é
explicado como se as direitas tivessem sido quase que vítimas
da radicalização das esquerdas, e, ‘assustadas’, teriam partido
para o golpe.” (MELO, 2013, p. 63).
Apesar de não acreditarmos na possibilidade real de um
“golpe” das esquerdas ou do presidente João Goulart, não
podemos ignorar a ação dos meios de comunicação na difusão
dessa possibilidade, contribuindo assim para “assustar” as
direitas que, temerosas quanto aos avanços dos trabalhadores
e aproveitando-se dessa histeria anticomunista, encontraram
campo fértil para promover a tese de que a intervenção militar
salvaria a democracia.
Cabe ressaltar que, mesmo Toledo, em sua crítica a essa
historiografia revisionista, destaca que “[…] era isso (golpe) o que
a direita alardeava pela imprensa, fazendo clara analogia com
o golpe que, em 1937, instituiu o Estado Novo. Para os setores
reacionários, Goulart nada mais fazia do que ser fiel ao ‘caudilho’
Vargas.” (TOLEDO, 2006, p. 37). Temos, portanto, uma forte ação
dos grupos conservadores para reforçar e disseminar essa ideia.
Para Dreifuss (1981) e Bandeira (2010), o golpe foi o resultado
da organização dos setores conservadores para conter os avanços
das camadas populares; essa interpretação “de uma grande
conspiração” – que congregava vários setores da sociedade civil e

33
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

os militares, além dos EUA – reforça a ideia de “golpe de classes”.


Não acreditamos, porém, que são ideias excludentes – de um lado,
um “golpe de classes” a partir de uma grande “conspiração”, e,
de outro, uma ação preventiva contra um “golpe das esquerdas”.
Entendemos que a união dos setores conservadores, contra um
suposto golpe de João Goulart e das esquerdas, contribuiu para
reforçar a tese de um “golpe de classes”.
Ainda nesse sentido, Cunha afirma que:

Relativamente às motivações que conduziram a 1964 é certo que as


elites civis urbanas identificaram no golpe e na ditadura o caminho
para implantar um novo regime econômico que privilegiasse o
capital nacional associado ao multinacional. No campo, os senhores
de terra visualizaram o golpe e a ditadura como a solução para
evitar a reforma agrária e a extensão dos direitos trabalhistas à
área rural. Na cidade e no campo, as elites civis entendiam que
era preciso reprimir, disciplinar, submeter e tornar os trabalhadores
mais produtivos, com o fim de possibilitar uma maior acumulação
de riqueza, bem como manter os privilégios existentes. (CUNHA,
2014, p. 60).

A autora segue afirmando que ocorreu grande colaboração


entre empresas e agentes públicos no sentido de reprimir as
manifestações populares de formas preventiva e reativa, buscando
impedir “[…] filiação ao sindicato, a participação em assembleias,
a organização de chapas de oposição para concorrer em eleições
para a diretoria dos sindicatos […] dificultando a articulação e a
retomada dos sindicatos por setores progressistas.” (CUNHA,
2014, p. 63).
Carneiro e Cioccari destacam que a violência no pós-1964
indicava essa situação, de “golpe de classes”:

Uma repressão política que revela uma violência de dupla face,


uma comandada diretamente pelo Estado, pela ação das forças
policiais e do Exército, e outra, privada, expressa pela ação de
milícias e jagunços a mando de latifundiários. Um imbricamento

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

que acentua a singularidade da repressão política no campo, e que


não deixa dúvida de que a resistência dos camponeses, na sua
luta por terra e por direitos, trazia em si toda a energia da luta pelas
transformações democráticas do campo e do país. (CARNEIRO;
CIOCCARI, 2011, p. 14).

Assim, apesar de várias possibilidades interpretativas para o


golpe, suas razões e a importância de cada setor, é inegável que
a queda do presidente João Goulart representou um duro golpe
para os trabalhadores e, de fato, teve um caráter de choque de
classes, possibilitando a união – antes e depois de 1964 – de
industriais, banqueiros, latifundiários, meios de comunicação
e militares, para reverter os avanços sociais alcançados pelas
classes populares.

A derrubada de João Goulart pelos militares representou a


interrupção deste processo de ascensão da mobilização da
classe trabalhadora brasileira. A elaboração de uma nova política
trabalhista encetada pelo governo de Castello Branco (1964-1967),
aplicada em conjunto com as medidas repressoras, assim como as
intervenções nos sindicatos, possibilitou uma verdadeira revanche
patronal. A aliança entre empresários e a polícia tornou-se ainda
mais sólida e disseminada. Um clima de medo e perseguições
passaria a dominar o interior das empresas. No campo, um número
ainda não calculado de trabalhadores rurais foi expulso de suas
terras e muitos foram mortos. Uma política econômica antitrabalhista
proibiu greves, comprimiu salários, acabou com a estabilidade no
emprego, facilitando demissões e a rotatividade da mão de obra.
O deliberado enfraquecimento dos sindicatos facilitou em muito a
superexploração dos trabalhadores, uma das marcas do regime
autoritário, elevando o número de acidentes e mortes nos locais
de trabalho. (NEGRO, 2014, p. 5).

No pós-1964, realmente, a organização e a luta dos operários


tornaram-se, pelo menos dentro da legalidade, praticamente
impossíveis. Já em julho de 1964, o direito de greve foi regulado

35
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

pela Lei 4.330, que dificultava sobremaneira a possibilidade


de greves, proibindo funcionários públicos e trabalhadores de
serviços essenciais de qualquer manifestação grevista. O número
de greves, que vinha crescendo até 1963, caiu de forma abrupta
após abril de 1964. No campo, a organização em torno das Ligas
Camponesas ou dos Sindicatos Rurais também sofreu duro golpe
com a intervenção militar.
A violência contra os trabalhadores teve início já nas primeiras
horas da movimentação golpista, sempre buscando conter e
controlar os trabalhadores. Cunha (2014) indica que, só no ano
de 1964, 409 sindicatos e 43 federações sofreram intervenção
do Ministério do Trabalho.
Carneiro e Cioccari chamam a atenção para o tratamento
conferido a Gregório Bezerra – nome importante na organização
dos trabalhadores rurais, militante do PCB e ex-deputado federal
– no raiar do novo governo: “No dia 2 de abril de 1964, uma cena
para o país não esquecer: Gregório, aos 64 anos, foi obrigado
a desfilar pelas ruas de Recife com três cordas amarradas no
pescoço, puxado por um jipe, enquanto era espancado por
militares […].” (CARNEIRO; CIOCCARI, 2011, p. 39).
Em 4 de abril de 1964, o editorial “Solução revolucionária”
orientava a população a se unir contra os inimigos nacionais,
identificados como as “velhas raposas” da política que queriam
retomar o controle do país. No dia seguinte, a população brasileira
era brindada com um novo editorial que defendia os militares. Ele
tinha o seguinte título: “Inadmissível usurpação da vitória.” Em tom
dramático, esse editorial expunha as dificuldades enfrentadas na
segunda fase da “revolução” e, sem meias palavras, afirmava que o
“[…] movimento militar assegurou tão estupenda vitória democrática
ao povo brasileiro.” Na sequência, destacava a necessidade de
levar “[…] avante até o fim o desmonte da formidável organização
aqui montada para arrastar o Brasil à orbita do Império comunista.”
(O ESTADO DE S. PAULO, 4 abr. 1964).
O jornal buscava, assim, mostrar que uma batalha havia
sido vencida, mas a guerra contra a ameaça comunista apenas
começara. Esse tipo de discurso foi utilizado para justificar a
violência que se abateu sobre operários e camponeses.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

Desmesuradamente os condutores da ditadura labutavam para


mostrar que a sua noção de ordem social era produto dos anseios
da maioria da população. Nestes termos, o regime insistia em que
ele possuía todos os elementos que permitiam a sua identificação
com o povo. Ao pressupor que havia esta identificação, os militares
circunscreviam a ação de todos à sua ação. Assim, tudo o que
estava fora deste limite deveria ser decididamente repelido e/ou
eliminado. Justificava-se, assim, a repressão a determinados grupos
que se negavam a identificar-se com o regime em vigor. Portanto,
tudo o que estava fora dos limites desta relação de identificação
em quaisquer campos (objetivo e/ou subjetivo) estava sujeito ao
controle, rechaçamento e até eliminação. (REZENDE, 2013, p. 4-5).

Dessa análise de Rezende, devemos destacar a construção


de uma ideia de legitimidade da ação militar, da violência, das
torturas, uma vez que se afirmava como um “anseio de todos”
contra os “inimigos da nação”. Em grande medida, essa visão
foi criada ou fortalecida pelos meios de comunicação, que se
apresentavam como porta-vozes da opinião pública.

Considerações finais

Por diversas vezes, conforme destacamos ao longo desse


trabalho, o jornal tentou imputar às organizações sindicais e
aos trabalhadores a responsabilidade por uma suposta baderna
reinante no país, indicando que suas reivindicações e lutas –
greves nas cidades e ocupações no campo – estavam diretamente
relacionadas à expansão de uma “ameaça comunista”. Essa
construção imagética, dos trabalhadores vinculados ao “império
vermelho” e de caos no país – largamente difundida pela imprensa
–, contribuiu para legitimar a violência de latifundiários contra
camponeses imediatamente após o golpe, bem como a violência
do Estado na repressão ao movimento operário nas cidades.
Como indicam Carneiro e Cioccari, a violência foi intensa,
ampla e imediata:

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

Quase todos os dirigentes das Ligas foram presos ou mortos. No dia


21 de abril de 1964, o Diário de Pernambuco noticiava que a polícia
havia encontrado o corpo do presidente das Ligas Camponesas
de Vitória de Santo Antão, Albertino José da Silva, em adiantado
estado de decomposição. Nessas execuções sumárias, ficavam
evidentes os compromissos entre o latifúndio e o poder militar que
comandava o país. (CARNEIRO; CIOCCARI, 2011, p. 27).

Em matéria intitulada “Continuam as prisões e devassas”, o


jornal O Estado de S. Paulo indicava, de maneira implícita, aquilo
que acreditamos ser uma das justificativas para esse tipo violência:
“As autoridades do Departamento de Vigilância Social de Minas
esperam esclarecer as atividades que vinham desenvolvendo em
Minas as ‘Ligas Camponesas’ […] onde se preparava a invasão
de terras e extermínio de diversos proprietários” (O ESTADO
DE S. PAULO, 23 abr. 1964, p. 64). A matéria seguia afirmando
que vários “agitadores” haviam sido presos e estavam sendo
interrogados para que indicassem outros nomes envolvidos no
processo. Desse modo, o jornal acabava por legitimar a violência
dos latifundiários, pois seria apenas uma reação de defesa contra
a violência dos camponeses, ao direito natural à propriedade
privada e à própria vida dos proprietários.
Contra os operários, a repressão e violência não foi diferente,
como destaca Cunha:

Os trabalhadores e seu movimento sindical constituíram o alvo


primordial do golpe de Estado de 1964, das ações antecedentes
dos golpistas e da ditadura militar. Essa afirmação evidencia-se
pela violência anterior ao golpe, praticada nos estados em que
os governadores, forças militares e policiais, articulados com o
governo norte-americano, já estavam conspirando contra o governo
federal, bem como pelos duros ataques, desde as primeiras horas,
impostos aos trabalhadores e a seus órgãos representativos de
classe. Evidencia-se, também, pelas políticas econômicas e sociais
desenvolvidas pela ditadura militar e pelo número de vítimas das
graves violações sofridas, na comparação com vítimas de outras
classes sociais. (CUNHA, 2014, p. 56).

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Para o jornal O Estado de S. Paulo, a ação foi necessária,


justamente, para garantir a manutenção da democracia: “[…] o
significado do primeiro de abril é […] um triunfo alcançado […],
finalmente a democracia brasileira venceu a ditadura sobre cujas
as estruturas a Nação vegetava.” (O ESTADO DE S. PAULO,
2 abr. 1964, p. 3).
Como podemos verificar, o jornal buscava conferir legalidade
e legitimidade ao movimento militar, com o sempre insuspeito
argumento de que tais medidas eram necessárias para garantir a
manutenção do regime democrático, constantemente ameaçado
pelo governo João Goulart.
O destaque dado à fala do general Castelo Branco,
apresentado a seguir, indicava que a ordem voltaria a reinar e
que todos aqueles que haviam colocado a nação em risco seriam
punidos:

Disse que a Revolução não foi feita […] para vingança, a maldade,
o ódio, a violência. Foi feita para restaurar a confiança no trabalho,
no amor, no carinho e na honra […] estamos prendendo aqueles
que queriam ser os assassinos do povo brasileiro […]. (O ESTADO
DE S. PAULO, 8 abr. 1964, p. 7).

Para Cunha, é importante destacar que tivemos uma ampla


aliança pré-1964, mas também no pós-1964, para a consolidação
desse novo modelo. Observamos, assim, uma forte ação
colaborativa entre o Estado ditatorial e as empresas privadas, onde
se destaca “[…] a organização de um poderoso sistema de controle
e vigilância e a militarização das fábricas.” (CUNHA, 2014, p. 64).
Mais realista do que o rei, o jornal publicaria ainda, em 18 de
abril de 1964, editorial intitulado “A Revolução e a Suprema Justiça”,
onde afirmava “que os expurgos estão muito lentos, muitos civis
que contribuíram para levar o país ao caos continuam impunes”.
Reforçava, dessa forma, a necessidade de levar adiante a “cruzada
anticomunista”, indicando a importância da repressão àqueles que
colocavam o país em risco, justificando, assim, a existência e a
manutenção de uma “união sagrada”.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

O processo de formação da “União Sagrada” contra o comunismo


se consumou, reunindo as elites empresariais, militares, políticos,
religiosos e as “classes médias”, todos amedrontados ante a
possibilidade de uma suposta ruptura revolucionária. (MOTTA,
2002, p. 264).

Mais uma vez, cabe destacar que o “real” é irrelevante diante


dessa construção imagética do avanço comunista e os riscos
advindos das mobilizações dos trabalhadores no campo e nas
cidades. O medo, no entanto, era de fato “real” e, nesse sentido,
o jornal teve relevância na construção das bases para o golpe de
1964. Ainda que sua importância tenha sido mais no sentido de
consolidar uma ideia – que legitimava a intervenção militar – do
que propriamente construir uma opinião pública nesse sentido,
não podemos reduzir as responsabilidades desse jornal, em
especial, e da imprensa em geral, no golpe e na consolidação do
regime militar pós-1964.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 13-42, jul./dez. 2017

REZENDE, Maria José de. A ditadura militar no Brasil: repressão e


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TOLEDO, Caio N. 1964: Golpismo e democracia. As falácias do
revisionismo. Crítica Marxista, Campinas, n. 27, p. 27-48, jul. 2006.

Recebido em fevereiro de 2016.


Aprovado em agosto de 2017.

42
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-2

A TRAMA TÊXTIL DE VILLA PLATINA: PROFISSÕES


DO VESTUÁRIO NO SERTÃO DE MINAS*

Maristela Novaes**
Noé Freire Sandes***

RESUMO: Este artigo analisa a presença de profissionais do


vestuário (fiandeiras, tecelãs, costureiras, alfaiates, comerciantes
etc.) no município de Villa Platina, tendo como fonte documental
os livros que compõem o Recenseamento Municipal de 1904.
Essa vila localiza-se na região do Triângulo Mineiro, antigo “Sertão
da Farinha Podre”, Minas Gerais. O objetivo é compreender o
contexto cultural dessa vila e a relação dessa sociedade com seu
sistema de vestuário e com o comércio direcionado a esse ramo.
Para isso, investigamos as origens, o nível de alfabetização, as
relações de parentesco e os locais de residências dos profissionais
e suas relações com o aprendizado e com o exercício dessa
profissão. Nessa sociedade já era visível a presença de imigrantes
introduzindo novas técnicas de costura, um dos fatores a colaborar
para a redefinição da tradição da manufatura de roupas local.
Como procedimento teórico-metodológico, a investigação parte
do entrecruzamento de várias fontes numa perspectiva dialética
para situar historicamente a vila e as atividades dos profissionais
do vestuário.

* Esse artigo se vincula ao projeto de pesquisa de doutorado em História, La


costruzione di uno spencer Liberty nei confini di Minas, orientado pela Profª
Maria Giuseppina Muzzarelli, professore ordinário no Dipartimento di Storia
Cultura Civiltà da Università di Bologna, Itália
** Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da UFG e
doutoranda no programa de pós-graduação, Dottorato di Ricerca in Storia
Cultura Civiltà, com endereço em História, na Università di Bologna-Itália, e
professora no Curso de Design de Moda da Universidade Federal de Goiás,
Brasil.
*** Professor titular da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás,
pesquisador do do CNPq.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

PALAVRAS-CHAVE: Profissões do vestuário. Imigração.


Modernidade. Villa Platina.

ABSTRACT: This article analyzes the presence of garment workers


(spinners, weavers, seamstresses, tailors, etc.) in the municipality of
Villa Platina. It has the 1904 county census as the primary source of
investigation. This village is located in the Triângulo Mineiro region,
former “Hinterland of rotten flour”, Minas Gerais. The objective is to
understand the cultural context of this village and the relationship of
this society with the clothing production and commerce. Therefore,
we investigate the origins, the level of literacy, kinship relations and
the residential sites of professionals, as well as their relation with
learning and the pursuit of this profession. In this society it was
already visible the presence of immigrants introducing new sewing
techniques, one of the factors that contributed to the redefinition of
the tradition of local clothing manufacturing. The research begins
with a description of the census and relates it with other sources,
with a dialectic perspective, to better situate historically the village
and the clothing professional’s activities.

KEY-WORDS: Clothing professions. Immigration. Modernity. Villa


Platina.

Desdobrando o tecido

Villa Platina1 foi uma vila da região do Triângulo Mineiro,


antigo “Sertão da Farinha Podre”, interior de Minas Gerais, Brasil.
Assim foi nominada de 1901 a 1915. Seguindo a hierarquia dada
aos diferentes núcleos de povoamentos no Brasil, primeiro ela foi
um povoado formado no entorno da Capela de São José do Tijuco,
esta fundada em 1832 pelo padre Antônio Dias de Gouveia, nas
terras a ela doadas em 1820 pelos sesmeiros José da Silva Ramos

1
Adotamos o uso dos nomes de localidades e de pessoas como aparecem
no documento.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

e Joaquim Antônio de Morais. Em 1839, foi criada a freguesia de


São José do Tijuco, passando à condição de distrito do mesmo
nome. De distrito, em 16 de setembro de 1901, pela Lei Estadual
nº 319, foi instituído o Município de Villa Platina, com território
desmembrado do Município do Prata, ao qual era subjugado.
Em 1915, a vila recebeu foros de cidade, tal como o distrito e o
município, com o nome de Ituyutaba.
Vila foi uma condição e Villa Platina um nome provisório, um
nome de passagem. Doze anos após a proclamação da República
Federativa do Brasil, essa é uma sociedade em transição. A
vila, bem como boa parte do território brasileiro, vivia a tensão
de adequar-se aos valores republicanos, em meio às tradições
herdadas do império.
Esse estudo utiliza como fonte primária a documentação
oficial referente aos livros que compõem o Recenseamento
Municipal de 1904 de Villa Platina (ITUIUTABA, 1904) e tem
como objetivo compreender seu contexto sociocultural e a relação
dessa sociedade republicana, especificamente mineira, com seu
sistema de produção de vestuário. Como procedimento teórico-
metodológico, realizamos o entrecruzamento de várias fontes para
compreendermos: 1. a relação entre o contexto cultural presente
nessa vila, sua articulação com comércio do vestuário e o mesmo
com uma perspectiva global; 2. como se efetivava a formação dos
profissionais do vestuário por intermédio da cultura familiar e pela
escolarização institucional; e 3. a inserção do imigrante nessa
sociedade e sua contribuição às transformações das práticas das
manufaturas de roupas locais.
Deste modo, procuramos identificar no documento as
qualificações e ou profissões ligadas à tecelagem e à manufatura
de roupas, tais como: fiandeiras, tecelãs, costureiras, alfaiates,
assim como comerciantes – de tecidos, aviamentos, livros técnicos
e revistas de moda – que ofereciam matéria prima, além de
informações técnicas e de moda, fomentando a atividade.

A urdidura: o espaço rural

Villa Platina localiza-se no vale do Rio Paranaíba, que faz


parte da segunda maior bacia hidrográfica do Brasil: a bacia do
Prata ou bacia Platina. Um dos principais rios desta bacia é o Rio

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

Paraná, formado pela confluência dos rios Paranaíba e Grande


(Fig. 1). Antes dessa confluência, que forma o “nariz” do Triângulo
Mineiro, numa complexa rede hidrográfica, o Rio Paranaíba
recebe as águas do Rio da Prata. Este, por sua vez, recebe as
do Rio Tijuco. Rio da Prata e Rio Tijuco formam um triângulo.
Dois córregos formam o ribeirão do Carmo que deságua no Rio
Tijuco. É na confluência desses dois córregos, o Piratininga e o
Sujo, que se assenta a vila recenseada acomodada no que seria
chamado de Chapadão de São Vicente. Serras emergem do
chapadão: a de São Lourenço de sul a sudoeste; o morro do Bahú
e o do Bahuzinho ao norte; e a nordeste o morro da Mamona. A
visualização desse relevo e da sua rede hidrográfica, registrada
no mapa do Município de Ituyutaba (Fig. 1), tem relevância para a
compreensão desse espaço, uma vez que nomeiam as localidades
circundantes: fazendas e latifúndios. Além disso, à esquerda, na
Figura 1, se sobrepõe o pequeno mapa que nos permite visualizar
a situação desse município no Estado de Minas Gerais.

Fig. 1 - Mapa do município de Ituyutaba, antiga Villa Platina, 1927.


Fonte: Album Chorographico 1927.2

2
O mapa do município de Ituiutaba adotado neste trabalho faz parte do
Album Chorographico, que foi produzido no contexto de comemoração do
Centenário de Independência do Brasil (1822-1922) e publicado em 1927.
MINAS GERAIS. Album Chorographico. 1927. Disponível em: <http://www.
albumchorographico1927.com.br>. Acesso em: 15 jul. 2015.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

O município de Villa Platina, quando de sua criação, foi


composto pelos distritos de São José do Tijuco e N. Srª. do Rosário
da Boa Vista do Rio Verde (Monjolinho). Prata e Villa Platina
disputaram o espólio dessa área, a partir da criação da vila, e, em
1911, pela Lei Estadual de 30 de agosto, o distrito de Boa Vista do
Rio Verde foi transferido do Município de Villa Platina (Ituyutaba)
para o Município do Prata e sua sede para a povoação de Campo
Bello3. Publicações de Villa Platina no Almanak Laemmerts (SAUER,
1904-1909), no período que vai de 1904 a 1909, especificavam
uma superfície de 20.000 quilômetros quadrados para o município,
sendo este coberto por 1/5 de matas4.
É nessa área que se espalha a população rural organizada
em latifúndios. Essa superfície era, originalmente, coberta por
florestas virgens, capoeiras e campos de criar. Na raiz do seu
povoamento, os imensos latifúndios ocuparam essas terras com a
criação extensiva de gado vacum e o cultivo de grãos numa prática
de agricultura de subsistência em que o excedente era vendido nos
centros urbanos mais próximos às áreas de produção (TEIXEIRA,
1953). Nessas unidades de produção rural, além dos mantimentos
para sustento da família, como arroz, milho, feijão, rapadura,
café, produzia-se os veículos de tração animal, as arreatas, os
chapéus, as alpercatas de couro cru, os materiais para habitações
etc. Tudo era utilizado no regime de economia da abastança em
que as “casas de negócios” das vilas obtinham pouca vantagem
(CHAVES, 1953, p. 46).

3
Para esta síntese, ver “Histórico do Município” de Ituiutaba, Prata e Campina
Verde em IBGE Cidades. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Históricos dos censos. Censos demográficos. Disponível
em: <http://memoria.ibge.gov.br/pt/sinteses-historicas/historicos-dos-censos/
censos-demograficos>. Acesso em: 17 jun. 2105.
4
Os dados são ambíguos, uma vez que a cidade do Prata anuncia em 1904 uma
área de 20.000 quilômetros para os dois municípios. Em 1909, Vila Platina
anuncia a mesma área para seu município. SAUER, A. Almanak Laemmert:
Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro: Estado de
Minas Geraes. Rio de Janeiro: Companhia Typographica do Brazil, 1904. p.
1259; p. I-103. Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em: 20 set.
2015.

47
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

O vestuário não fugia a essa regra. Na fazenda do Salto,


propriedade do Major Francisco José de Carvalho5, ainda no
Segundo Império, um tear de madeira era usado para tecer os fios
de algodão colhido na lavoura e para preparar o tecido caseiro,
nominado de “pano tecido cá”, sendo este destinado a confecção
de roupas para os escravos, redes, colchas e também roupas
de serviço para homens e mulheres, comprovando que essas
unidades de produção se ocupavam também da tecelagem e da
manufatura de roupas.
Assim como a urdidura forma a estrutura base do tecido
(DONNANNO, 2011), são as atividades agropastoris as bases
do povoamento do “Sertão da Farinha Podre”. Segundo Chaves
(1953, p. 45), foi o sertanejo, “com sua família, se sucedendo pelos
anos afora, quem permaneceu na liderança da ação civilizadora,
criando fazendas, subdividindo nos inventários os imensos
latifúndios, empurrando com seu braço e seu sangue, em cada
descendência, a linha divisória do sertão”. Ao longo do século
XIX, as áreas ocupadas pelos nativos índios Caiapós seriam
expropriadas em função da ocupação pelo sertanejo, descendente
de portugueses, expandindo o povoamento com suas práticas de
produção rural. Assim, a importância da economia rural, para essa
sociedade na primeira década do século XX, pode ser comprovada
pelo anúncio da administração municipal de Villa Platina no Rio
de Janeiro (SAUER, 1909, p. I-103), onde se lê que as maiores
fontes da renda do município são a criação de gado vacum, a
criação de suíno e a produção de arroz.
A vida ali era basicamente rural, e assim o foi até por volta
de 1930 (TEIXEIRA, 1953). Segundo Teixeira (1953, p. 182), sua
população espalhava-se pela extensão do município e “a sede
era apenas procurada para os serviços de assistência religiosa,
médico-fármaco-dentária, quando não comercial, forense, social

5
Major Carvalho, proprietário do latifúndio que compreendia terras que
começavam nos morrinhos do Prata e alcançavam a barra do São Vicente.
CHAVES, Petronio Rodrigues. A loja do Osório. Ituiutaba: Edição do autor,
1984.

48
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

e política”. Sendo uma população eminentemente católica, a


missa na Igreja de São José do Tijuco aos domingos e as festas
religiosas e cívicas eram veículos de convergência social.

A trama: o espaço urbano

1904, data do recenseamento em analise, é o 21º ano de


trabalho, na “Matriz de São José do Tijuco, Diocese de Goyas,
Estado de Minas Gerais”6, daquele que viria a ser chamado de
o padre urbanista e o recenseador: Pe. Ângelo Tardio Bruno,
italiano, napolitano de origem. Em 1883, quando o padre ali
chegou, o arraial era um descampado com a igreja no centro e
alguns casebres ao redor. Tudo era coberto de palhas: casebres
e igreja. O padre, que saiu da Itália determinado a catequizar
índios (TEIXEIRA, 1953), se deu conta de que aos “gentios” não
restara nem mesmo o sertão. Diante disso, tomou para si a missão
de povoar esse lugar e se juntou aos cidadãos comprometidos
com os ideais republicanos para a condução do projeto. O padre
compreendeu a carência de recursos do sertão e se desdobrou
em aptidões (CHAVES, 1998): organizou os cultos; abriu o Livro
de Tombo da igreja; criou uma banda de música; criou o traçado
urbano da vila, traçando in loco as ruas; vendeu as terras doadas
à igreja em “datas” de 25 x 25 m, ampliando o espaço urbano;
atraiu imigrantes, formando a colônia italiana com profissionais
da saúde, da construção civil e do vestuário; criou uma escola;
construiu e vendeu casas. Sua obra levou Teixeira (1953) a afirmar
que sua participação foi um passo decisivo para o futuro do lugar.
Sendo assim, na virada do século, Pe. Ângelo Tardio Bruno podia
comparar favoravelmente a vila republicana atual com a antiga
corrutela monarquista que conhecera.
No alvorecer do século XX, a vila já estava bem crescida e
era assim constituída: Largo da Igreja, Rua do Comércio, Rua

6
Como consta no Livro de Carta de Aforamento. Fonte: Centro de Pesquisa,
Documentação e Memória do Pontal (CEPDOMP) da Faculdade de Ciências
Integradas do Pontal (FACIP) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

49
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

da Matriz, Rua 24 de Maio, Rua São José, Rua Antônio Pedro


Guimarães, um rego d’água e uma lagoinha. As ruas eram ainda
salpicadas de casas cobertas de capim, e os arrabaldes repletos
de pastagens e de chácaras, mas o casario em alvenaria coberto
de telhas já era em grande número e mudava a feição da vila
(TEIXEIRA, 1953; CHAVES, 1984). O comércio se expandia, a vida
social em torno da igreja e do Largo da Matriz era efervescente.
O proprietário rural já habitava a vila entrelaçando espaço rural
e urbano na formação de uma trama têxtil que favoreceria as
mudanças socioeconômicas do lugar.
Villa Platina vivenciava o início do processo de urbanização e
com ele uma nova sociabilidade que envolvia aspectos modernos
evocados pelo governo central ao longo do século XIX. Essa
nova sociabilidade impunha à “boa sociedade” valores oriundos
do mundo europeu ao privilegiar a difusão da moda, ou melhor,
a distinção social expressa nos modos de vestir. O primeiro
recenseamento populacional da vila autônoma nos permite
visualizar essa distinção intrínseca na trama têxtil da sociedade
platinense.

Recenseamento de 1904

Este estudo analisa o documento oficial do recenseamento da


população da então Villa Platina (ITUIUTABA, 1904) e se refere a
quatro livros: Livro I, Livro III, Livro VI e a um Livro “Sem Ordem”,
cujos termos de abertura e de fechamento, de cada um dos livros
do conjunto, são datados em 23 de abril de 1904. O recenseador
e supervisor do recenseamento foi o pároco local, Ângelo Tardio
Bruno. Para o recenseamento foi adotado o “elenco de família” e
os dados foram fornecidos ao recenseador pelo chefe da família
recenseada ou por um seu representante, sendo também este
um chefe de família7.

7
Como são os casos de Antônio Pedro Guimarães, que representa 33 famílias,
e de Augusto Alves Villela Filho, que representa 21 famílias, ambos no

50
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

Os dados solicitados no recenseamento são: 1. Nº da família


recenseada; 2. Nº de ordem do sujeito recenseado; 3. Nome;
4. Filiação; 5. Idade; 6. Naturalidade; 7. Residência; 8. Estado
civil; 9. Sabe ler e escrever; 10. Profissão; 11. Condição e 12.
Relação8. A relação de cada família recenseada foi assinada pelo
recenseador e supervisor dos dados e cada página do livro foi
assinada pelo primeiro “Agente Executivo”9 da vila, Augusto Alves
Villela, assim como também os termos de abertura e fechamento
dos livros. Governo e igreja são envolvidos nos recenseamentos
da população desde os tempos do Brasil Colonial até a criação
e estabilização das instituições competentes.10
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), as tentativas de levantamento da população do Brasil são
muitas e vêm desde o período colonial, mas aquele considerado o
primeiro, por ser o mais significativo, é o Censo Geral do Império ou
Recenseamento do Brazil em 1872. A partir de então, a população
deveria ser recenseada a cada dez anos. Como referência para
o estudo deste recenseamento, os mais significativos são: o de
1872, pela sua importância no contexto dos recenseamentos; o
de 1890; e o terceiro, o de 1910.
O documento em análise foi realizado entre o recenseamento
republicano de 1900 e o de 1910. O documento não registra a

Livro VI. ITUIUTABA. Livros do Recenseamento Municipal de Villa Platina,


no ano de 1904. Fonte: Centro de Pesquisa, Documentação e Memória do
Pontal (CEPDOMP) da Faculdade de Ciências Integradas do Pontal (FACIP)
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). CD-ROM.
8
Os dados são organizados em tabelas e cada uma delas ocupa duas páginas
de um “livro Ata” de capa dura, cartonado e de cor bege, pintado de marrom.
Cada livro tem 100 folhas numeradas. A contagem das famílias e dos sujeitos
não é sequencial no conjunto de livros, ou seja, cada livro inicia a contagem
a partir do item “1”. Id. ibid.
9
Agente Executivo” é a designação dada ao vereador mais votado que exercia
as funções hoje equivalentes às de Prefeito na gestão do município.
10
A saber: Diretoria Geral de Estatística, em 1872; Instituto Nacional de
Estatística (INE), em 1934; e depois Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), em 1938. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Históricos dos censos. Censos demográficos. Disponível
em: Disponível em: <http://memoria.ibge.gov.br/pt/sinteses-historicas/
historicos-dos-censos/censos-demograficos>. Acesso em: 17 jun. 2105.

51
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

origem da solicitação do levantamento. No entanto, o fato de ser


ele validado pelo “Agente Executivo” em mandato sugere ter sido
promovido pelo governo municipal com a participação da igreja
local. À igreja coube a operacionalização do recenseamento.
Sendo esse município emancipado logo após a instituição
da República Federativa Brasileira e impulsionado pelo pacto
federativo, é provável que a intenção do levantamento tenha sido
a de facilitar as deliberações da administração política para fins
tributários e administrativos.

A população platinense

Nos quatro livros, foram recenseadas 1.437 famílias, num total


de 9.450 pessoas distribuídas por 35 localidades de residência.
O Livro I e o VI registram as populações de áreas rurais. O Livro
III se refere ao recenseamento do distrito de Rio Verde com
duas áreas urbanas: sua sede em Campo Bello e o povoado de
Monjolinho. O Livro “Sem Ordem” se refere à parte da população
de Villa Platina, a sede do município, em plena expansão urbana.
O perfil da população se diferencia de acordo com a
localidade em três aspectos que são fundamentais para a nossa
análise: naturalidade, profissões e nível de alfabetização.
A “naturalidade” do recenseado é um campo muito significativo
no recenseamento, porque nos possibilita compreender os
movimentos populacionais: são 4.624 os platinenses e 4.829 os
imigrantes (internos e externos), ou seja, os forasteiros superam
os nativos em 2,17%. Em geral, essa população era recentemente
imigrada, basicamente, de outras cidades de Minas Gerais11 ou
de estados como São Paulo e Goiás. No entanto, é significativa
a presença de imigrantes oriundos de outros países.

11
Essa população é originária de localidades como Araguary, Araxá, Bagagem,
Conceição do Rio Verde, C. Jardim, C. Para, C. Pd. Sucesso, Cadeias,
Campanha, D. C. Formoso, D. C. Formozo, Desemboque, Fructal, Monte
Alegre, Oliveira, Patrocínio, Piumhy, Ponte Nova, Prata, Rio das Velhas, S.
Roque, S. Thomé Lethen, Sabará, Sacramento, Sta. Maria, Três Corações,
Uberaba, Uberabinha, Veríssimo” e outras. Nesse campo registra-se a cidade,
mas é frequente nominarem somente a região ou o país. ITUIUTABA, 1904.

52
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

Um campo quase sempre vazio é o da “profissão”, pois a


maioria dos recenseados não declara suas profissões, mesmo
sendo adultos e, muitas vezes, preenchendo o campo “relação”,
como empregados do chefe da família a que se vinculam.
No Livro III e no Livro VI, a maioria das mulheres adultas não
declarara suas profissões. Neste caso, mesmo quando seus
maridos se declaravam lavradores, somente eles preenchem
o campo “profissões”. Já no Livro I e no Livro “Sem Ordem”, a
maioria das mulheres declara suas profissões. Estes dois livros
se destacam dos outros porque neles encontramos registrada
uma variedade de profissões urbanas12. Entretanto, mesmo que
sejam citadas essas várias profissões, “lavrador” é a profissão
predominantemente masculina e “trabalhos domésticos” a
profissão feminina por excelência, sobretudo nos Livros I e VI,
onde as profissões urbanas desaparecem.
Pelos registros, constatamos que são 1.451 os alfabetizados,
7.937 os analfabetos e o restante não declara seu nível de
instrução. Sendo assim, concluímos que somente 15,35% da
população recenseada nesses Livros eram alfabetizados.
Os imigrantes de outras cidades ou regiões do país estão
espalhados pela região rural e urbana, enquanto os imigrantes
de outras nacionalidades estão concentrados na vila, ou seja, no
Livro “Sem Ordem”, e são 40 no total. Destes, 19 são italianos,
6 são austríacos com sobrenomes de origem italiana e 6 são
turcos. Os demais são: 3 portugueses, 2 africanos, 1 alemão,
1 prussiano, 1 paraguaio e 1 espanhol. Além destes, no Livro
VI temos a presença de 2 árabes e de 1 italiano, e, no Livro I, o
registro de 1 japonês e de 1 africano. Os imigrantes estrangeiros
exercem, em maioria, profissões urbanas.
Esse documento nos permite uma avaliação parcial da
população recenseada por dois motivos. O primeiro deles se
refere à falta de dados que poderiam favorecer uma análise mais
detalhada dessa sociedade, como a “cor de pele”, demanda dos
censos anteriormente citados. Numa sociedade recém-saída do
processo de produção escravocrata, o item “cor de pele” poderia

12
Profissões urbanas, como: agrimensor, marceneiro, carpinteiro, médico,
dentista, costureira, tecelã, lavrador, trabalhos domésticos (“do lar”),
cozinheira, agricultor, ferreiro, lavadeira, costureira, alfaiate, negociante etc.

53
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

sinalizar a reorganização do trabalho e a posição do negro nessa


sociedade, assim como em relação às profissões do vestuário.
Em 10 de janeiro de 1905, Padre Ângelo Tardio Bruno regista
o balanço do Recenseamento da Freguesia de Villa Platina e
município (ITUIUTABA, 1884-1912), no qual o autor sustenta
que foi levantada uma população de 13.237 habitantes, sendo
6.700 homens e 6.537 mulheres (Tabela 1). Um “livro Ata” de 100
páginas, como os livros estudados nesse trabalho, nos permite
registrar cerca de 2.500 pessoas. Seriam necessários, então,
seis livros para o recenseamento total da população, sendo um
deles incompleto. Dessa forma, nos faltariam dois dos livros do
conjunto da obra e esse seria o segundo motivo a corroborar
para o entendimento das limitações desse documento para uma
compreensão precisa da população dessa sociedade, nos limites
que um recenseamento pode nos proporcionar.

Tabela 1 – População de Villa Platina de 1872 a 1910.


Denominação Ano População Total Homens Mulheres
Freguezia de São José do Tijuco 1872 2.431 1.271 1.160
Distrito de São José do Tijuco 1890 5.067 2.624 2.443
Município de Villa Platina 1904 13.137 6.700 6.537
Município de Villa Platina 1910 20.882 - -

Fonte: Censos de 1872, 1890, 1904 e 191013.


Organização: Maristela Novaes, 2015.

13
Para essa tabela, foram consultados: Recenseamento do Brazil em 1872,
Cf. BRASIL. Recenseamento do Brasil em 1872. Rio de Janeiro: Typ.
De G. Leuzinger & Filhos, s/d. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.
br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/Recenseamento_do_
Brazil_1872/Imperio%20do%20Brazil%201872.pdf>. Acesso em: 10 set. 2015;
Synopse do recenseamento de 31 de dezembro de 1890, Cf. BRASIL. Ministério
da Indústria, Viação e Obras Públicas. Diretoria Geral de Estatística. Brasil.
[Constituição (1891)]. Synopse do recenseamento de 31 de dezembro de 1890.
Rio de Janeiro: Officina da Estatistica, 1898. Disponível em: <http://www2.
senado.leg.br/bdsf/item/id/227299>. Acesso em: 10 set. 2015; Recenseamento
Geral do Brasil de 1950, Cf. BRASIL. População do Brazil por municípios e
estados (1907-1912). Recenseamento Geral do Brasil (1º de setembro de
1940), Série Nacional (II volume), Censo Demográfico: população e habitação.
Rio de Janeiro: Serviço Gráfico de Geografia e Estatística, 1950. Disponível
em: <http://seculoxx.ibge.gov.br/images/seculoxx/arquivos_download/
populacao/1908_12/populacao1908_12v1_082_a_116.pdf>. Acesso em: 10
set. 2015; e ITUIUTABA. Tombo da Matriz de Sao José. Livro N° 1. Ituiutaba:
Matriz de Sao José, 1884-1912.

54
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

Nos quatro livros, as famílias registradas eram, normalmente,


muito numerosas. Os “nomes” dos sujeitos recenseados são,
predominantemente, de origem portuguesa e, nesses casos, a
homonímia é uma recorrência. Muitas vezes os recenseados
apresentam somente o nome, sem nenhum sobrenome,
sugerindo desconhecerem suas origens. No registro da “filiação”
é predominante a paternidade do sujeito e o da maternidade,
uma exceção. Em muitos casos a filiação é “desconhecida” ou
apenas sugerem essa condição, uma vez que o campo para
esta informação permanece em branco. Pela “idade” registrada,
podemos constatar que a população menor de idade é muito
mais numerosa que a população adulta: no total, são 5.406 e
3.030, respectivamente. O campo “relação” registra a posição do
sujeito recenseado em referência ao chefe da família. A chefia
de 88,6% das famílias é exercida por homens, enquanto 11,3%
seria destinada às mulheres, geralmente viúvas.
Concluímos que, nos livros analisados, a população descrita
é rural com nomes predominantemente de origem portuguesa.
Pela condição de propriedade, percebemos a proeminência da
desigualdade socioeconômica nessa sociedade, pois no campo
“condição” o número de proprietários14 se restringe a 6,6%
da população. Trata-se de uma população em expansão pelo
processo de imigração (interno e externo) e pelas altas taxas
de natalidade que registram 57,20% de menores na população.
Nesse universo, 0,19% da população é composta de profissionais
ligados à manufatura de roupas.

As profissões do vestuário na trama têxtil de Villa Platina

Profissões ligadas ao vestuário são citadas no Livro I, no


Livro “Sem Ordem” e desaparecem completamente nos demais
livros. Elas se resumem a 14 costureiras, 3 tecelãs, 1 alfaiate e
1 discípulo de alfaiate, num total de 18 profissionais (Tabela 2).
Essas profissões encontram-se estabelecidas na Villa Platina,

14
O termo “proprietário”, como aparece no recenseamento, é ambíguo e não
especifica o tipo de bem. Por isso, não podemos inferir se a propriedade à
qual se refere é um terreno, uma casa na vila ou ainda um imóvel rural.

55
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

no arraial de Monjolinho e na zona rural do município. Dos 18


profissionais levantados, somente 1 costureira e 2 tecelãs são
declaradas analfabetas. Todos os outros 15 profissionais ligados
às profissões do vestuário se declaram alfabetizados. Numa
sociedade basicamente analfabeta, esse é um dado relevante
e nos coloca algumas questões: 1. para o exercício da costura
nessa sociedade, era fundamental saber ler e escrever?; 2. a
proporção de analfabetas no grupo de tecelãs é muito maior do
que no grupo de costureiras, o que sugere que, para o exercício
da tecelagem, o domínio da leitura era dispensável; e 3. num total
de 9.450 indivíduos, por que somente 13 mulheres se declaram
costureiras, 3 se declaram tecelãs, 1 se declara alfaiate e 1 se
declara discípulo de alfaiate?

Tabela 2 – Profissões do vestuário em Villa Platina em 1904.15


Nºde Nºde
Nome Filiação Idade Naturalidade
familía ordem
Purdenciana Alves Emerenciano Alves de
1 4 33 Santa Maria
de Oliveira Andrade
2 14 Tereza Benta Felissia (sic.) Maria de Jesus 25 Araguary
3 18 Maria Rufina Rufino da Costa Fagundes 25 Villa Platina
Mariana Alves do
20 139 Pedro Alves Correia (sic.) 62 Piruy
Nascimento
Theodora Candida
35 211 Pedro Alves Correia (sic.) 62 Piruy
de Jesus
Etelvina Garcia de
46 288 José Bernardino de Oliveira 18 Villa Platina
Oliveira
Rita (?) Garcia de
48 301 José Bernardino de Oliveira 33 Villa Platina
Oliveira
Iranta (?) Garcia de
50 323 José Bernardino de Oliveira 20 Villa Platina
Oliveira
(?)Iria Maria de
70 476 Manoel Ferreira Rosa 60 Monte Alegre
Oliveira

15
A tabela foi organizada segundo a disposição dos dados no livro. A primeira
tabela corresponde à página da esquerda e a segunda, à página da direita. Os
dados são lidos da esquerda para a direita, seguindo a linha correspondente, e,
para facilitar a leitura, reinserimos os “nºs de ordem” dos sujeitos recenseados
na segunda tabela. O livro a que se referem vem indicado em (L. 1, Fam. Nº
46, Nº O. 282), sendo L, livro com o nº na sequência; livro Fam, família com o
nº na sequência e “Nº O”, o número de ordem do sujeito no livro.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

Maria Gertrudes
72 455 Vicente José Muniz 41 Villa Platina
das Dores
Emilia da Fonceca
124 801 João da Fonceca e Silva 34 E. de Goyaz
e Silva
Ambrozina da
140 878 João Alves Ferreira 27 E. M. Grosso
Silveira Diniz
157 992 Aldelia Finotte Theobaldo Finotte 29 Italia
Candida de Souza Antonio Joaquim de Souza
184 1174 56 Campo Bello
Monteiro Monteiro
223 1436 Carmilia Janunzzi José Antônio Janunzzi 30 Prata
108 716 Erinia(?) Simone Amadio Simone 32 Italia
52 382 Miguel Jualianie(?) Antonio Jualianie(?) 31 Italia
Antonio Ricardo
52 388 José Ricardo Ferreira 21 Prata
Ferreira

Nº de Estado
Residência Sabe ler e escrever Professão Condição Relação
Ordem Civil
Segundo
4 Viúva Sim Costureira Proprietária Sogra
Salto
Segundo
14 Casada Sim Costureira Proprietária Esposa
Salto
Segundo
18 Casada — Tecelã Proprietária Esposa
Salto
139 Fattoria Casada Não Tecelã Proprietária Mãe
211 Fattoria Viúva Sim Tecelã — Tia
288 Monjolinho Solteira Sim Costureira — Filha
301 Monjolinho Casada Sim Costureira — Esposa
323 Monjolinho Casada Sim Costureira — Esposa
476 Villa Platina Viúva não Costureira C. c Chefe
455 S.Roza Viúva Sim Costureira Proprietária Viúva
801 Villa Platina Casada sim Costureira — Esposa
878 Villa Platina Casada sim Costureira — Esposa
992 Villa Platina Casada sim Costureira — Esposa
1174 Villa Platina Solteira sim Costureira — Filha
1436 S. Lourenço Casada sim Costureira — Esposa
716 Villa Platina Cazada sim Costureira — Esposa
382 Villa Platina Solteiro sim Alfaiate C. c Chefe
388 Villa Platina Solteiro sim Discipulo

Fonte: Livro I e “Sem Ordem” do Recenseamento Municipal de Villa Platina


em 1904. Transcrição: Maristela Novaes, 2015.

Outra questão proeminente nesses dados é o fato de três

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

das costureiras serem da mesma família, a de José Bernardino


de Oliveira (L. 1, Fam. Nº 46, Nº O. 282). Também duas das três
tecelãs são irmãs, filhas de Pedro Alves Correia (L. 1, p. 07 e 11).
Estes dados nos colocam ainda outra questão: como se adquiriam
os conhecimentos necessários às profissões da costura e da
tecelagem? Eram profissões cujos conhecimentos se adquiriam
em família?
É relevante, na leitura dos dados, o fato de três das
profissionais da costura residirem na região rural: Segundo Salto,
S. Lourenço e duas em fazendas não nominadas. Quatro outros
profissionais residem no povoado de Monjolinho, pertencente ao
distrito de Rio Verde. Oito deles residem na sede do município,
ou seja, em Villa Platina. Duas das tecelãs que aparecem
no recenseamento residem em fazendas. Que relação pode
haver entre essas profissões e os lugares de residências dos
profissionais que as exercem?
O movimento de imigração que percebemos na população
em geral se confirma também na população ligada às profissões
do vestuário. Desse universo de profissionais, somente quatro
são naturais de Villa Platina e estão no grupo das mais jovens.
Sete deles vêm de cidades do próprio estado. Uma vem de
Campo Bello, sede do distrito de Rio Verde. Dois vêm de estados
próximos: Goiás e Mato Grosso. Três profissionais são imigrantes
italianos e uma descende de pai italiano.
A desigualdade socioeconômica que caracteriza a sociedade
em geral está presente também entre os nativos, entre os
imigrantes de cidades e regiões do Brasil, assim como entre os
imigrantes italianos do grupo de profissionais do vestuário. Quatro
costureiras são proprietárias; quatro não são “proprietários”, mas
estão ligadas a um “proprietário” por matrimônio ou parentesco;
e o restante não é proprietário e não tem relações de parentesco
com proprietários. Proprietários ou não, a manufatura de roupas
se faz a partir da matéria-prima.
O comércio abastece as profissões do vestuário com matéria-
prima e informações de moda e de técnicas de construção de
roupas. No recenseamento, encontramos 22 negociantes e 4

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

ajudantes de comércio. Não existe registro de comerciante.


Como em outros aspectos, a terminologia não nos favorece a
compreensão das posições dos sujeitos quanto ao seu papel
no comércio. Entre os comerciantes levantados, podemos ver
a presença de nomes portugueses, de imigrantes italianos,
assim como de sírio-libaneses. Portanto, diferentes origens se
entrelaçam em diversas atividades ligadas à manufatura de
roupas.

As habilidades da gente do sertão

O Recenseamento Geral do Brasil de 1872 registra como


profissões ligadas ao vestuário: “costureiras”, “operários em
tecido” e “operários de vestuários”. Não registra alfaiates e não
categoriza os “operários em tecido” e “operários de vestuários”.
Para o estado de Minas Gerais, ele registra como costureiras
124.633 mulheres, 7.904 “operários em tecido” e 838 “operários
de vestuário”. Em São Paulo, temos: 29.082 costureiras, 10.256
“operários em tecido” e 1.659 “operários de vestuários”. E, em
Goiás: 8.984 costureiras, 9.829 “operários em tecido” e 463
“operários de vestuários”.
O Triângulo Mineiro teve seu processo de povoamento
vinculado à distribuição das cartas de sesmarias a partir do início
do século XIX. Lara (1912, p. 222) afirma que “as raízes da Farinha
Podre nunca foram mineiras, mas sim resultado de uma mistura
cultural herdada das províncias de São Paulo, Goiás e Minas”,
o que se confirma nos dados do recenseamento e sugere que
a cultura da tecelagem e das práticas de manufatura de roupas
tenha se disseminado na região ao longo da “marcha para o
oeste”.
Em 1842, trinta e dois anos após o início de povoamento
da região, a presença de ovinos, entre os animais de criar, e de
rodas de fiar, na relação de móveis do inventário de João Inácio
Franco, é um claro indício de que havia em sua propriedade uma
razoável produção de panos de lã (LARA, 1912). No elenco do
inventário de Ignácio José Muniz, feito por sua esposa Purcina

59
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

Maria de Jesus em 1877, consta “a presença de uma roda de fiar


velha e de uma máquina de costura de pé” (LARA, 1912, p. 29),
sinalizando a produção têxtil e a atividade de costura no ambiente
rural. O primeiro inventariado é situado na fazenda dos Bahús e
o segundo, na fazenda Santa Bárbara, ambas em Villa Platina.
A confirmar a evidência da cultura têxtil e da costura, Petronio
Rodrigues Chaves (1953, p. 46) afirma que, em São José do
Tijuco, o algodão era cultivado para abastecer a indústria caseira
de fiação nas rodas e a tecelagem nos teares primitivos, onde se
fabricavam tecidos de algodão com os quais “se confeccionavam
calças e camisas para homens, saias para as mulheres, rêdes,
mantas e cobertas para as camas”.
O recenseamento de 1872 registra a costura como sendo
uma profissão eminentemente feminina. Além disso, mesmo não
desenvolvendo a atividade como uma profissão, as mulheres
costuravam as roupas da família para contribuir com a economia
doméstica, sendo este o escopo das disciplinas de “trabalhos
manuais” nas escolas católicas do período. A atividade de costura e
a de tecelagem também podia ser exercida como um complemento
às atividades domésticas, como ilustra a personagem Germana do
romance de Chaves. Segundo o autor (CHAVES, 1998, p. 214),
“Germana cuidava dos trabalhos caseiros e, nas folgas, sentava-
se à roda, fiando algodão, que vendia aos novelos”.
Durante o processo de povoamento, escravos e terras foram
os pilares da riqueza da maioria dos fazendeiros do “Sertão da
Farinha Podre” e, mesmo sendo a agricultura a base da economia,
um instrumento importante como o arado era por eles ignorado.
Esse atraso tecnológico limitava as áreas de plantio que eram,
em média, 7,7% menores que os campos usados para o pastejo.
Lara (2012, p. 213) afirma que “o mesmo não se pode dizer
dos instrumentos empregados na indústria doméstica têxtil, tais
como teares, urdideiras, descaroçadores, fusos, rocas e cardas”.
A tecelagem é uma herança do passado colonial das Minas
Gerais, que se constituiu numa indústria doméstica têxtil que,
pelo grande número de mulheres e meninas nela envolvidas,
ultrapassou com intensidade a produção de autoconsumo em toda

60
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

a província. Segundo Lara (2012), essa indústria “absorvia grande


parte da mão de obra feminina, que preponderava e controlava
os métodos e as técnicas de produção de fios e panos, quer a
mulher fosse livre ou escrava”. O autor afirma que, pelos quatro
cantos da província, o cenário era sempre idêntico em qualquer
fogo: “sob o mesmo teto [...] fiandeiras e tecedeiras, mulheres
livres e escravas, viúvas e casadas, mães e filhas, todas juntas,
comprometendo-se nas várias etapas do intrincado trabalho
artesanal de fiação e tecelagem” (LARA, 2012).
O universo de profissionais do vestuário em Villa Platina se
completa com 3 profissionais levantados nas citações bibliográficas
de historiadores e memorialistas do lugar. São eles: “Pedro
Prescialiano”, alfaiate e músico; “Inhá, costureira para homens”
(CHAVES, 1984, p. 352-353); e “Zeca Alfaiate” (TEIXEIRA, 1953,
p. 244). Com isso, chegamos a 22 profissionais, sendo: 3 tecelãs,
15 costureiras, 3 alfaiates e 1 discípulo de alfaiate.
Podemos aferir que as profissões do vestuário estavam
distribuídas no espaço urbano e rural, sendo o maior número de
costureiras e os alfaiates concentrados na sede do município:
Villa Platina. As origens desses profissionais traziam, certamente,
experiências e formações distintas, heterogêneas entre si,
uma vez que a tecelagem, a costura e a modelagem implicam
inúmeros procedimentos e técnicas que podem conviver
contemporaneamente.

Tradição e modernidade no tecer panos e fazer roupas

A costura, que transforma o material têxtil, foi tradicionalmente


realizada com técnicas manuais, mas, em meados do século XIX,
sofreu uma grande revolução tecnológica: o surgimento da costura
mecânica. Essa se tornou possível graças ao aperfeiçoamento
da máquina de costura e das formas de comercialização desse
produto – feitos por Issac Singer nos E.U.A. a partir de 1853 –
que o introduziram nos espaços domésticos de grande parte do
mundo ocidental e oriental.
A costura mecânica é uma atividade complexa na medida

61
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

em que a costureira deve desenvolver a coordenação motora


para, simultaneamente, operar a máquina e manusear os tecidos.
Considerando os modelos mais primitivos, como os das primeiras
máquinas, a costureira deve acionar e manter em movimento
a manivela ou os pedais, ao mesmo tempo em que organiza
e direciona as diversas folhas de tecido em costuras de linhas
curvas, retas ou quebradas, numa infinidade de arranjos. Nesse
sentido, as costureiras do “Sertão da Farinha Podre”, com toda
a falta de recursos do lugar, demonstraram maior disponibilidade
para a absorção de novas ferramentas e de novas técnicas
da atividade de costura do que os lavradores locais em suas
atividades, pois, como vimos, a máquina de costura já era presente
nas listas de inventários dos finais do século XIX.
No recenseamento (ITUIUTABA, 1904), o vazio abissal no
campo das “profissões” é um fato. Segundo Bloch (2001, p. 95),
“à medida que a história foi levada a fazer dos testemunhos
involuntários um uso cada vez mais frequente, ela deixou de se
limitar a ponderar as afirmações [explícitas] dos documentos”.
Sendo essa uma sociedade patriarcal, agropastoril, os dados do
recenseamento em estudo foram, quase sempre, fornecidos pelo
chefe de família. Numa tentativa de desvendar as informações
possivelmente ocultadas pelos chefes de família, buscamos
algumas explicações para lacunas presentes no censo. A
primeira delas é que o desprezo pelos ofícios mecânicos e o
temor da degradação possuíam raízes assentadas no antigo
regime de produção, o sistema escravista, “do qual saíram em
abundância os ‘negros de ganho’, o que contribuía para acentuar
o preconceito contra o trabalho manual externado pelas pessoas
de melhor condição social” (MALERONKA, 2007, p. 31). O
segundo é a necessidade de os indivíduos dessa sociedade
exercerem variadas funções e, com isso, serem impossibilitados
de se especializarem em determinadas atividades. No caso das
mulheres, essa lacuna também pode evidenciar o desdém dos
patriarcas pelas atividades femininas, exercidas quase sempre
como tarefas ordinárias resultantes de uma educação informal
adquirida em família e através da cultura oral (LARA, 2012).
Essa cultura de omissão das atividades relacionadas à

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

manufatura de roupas em geral, e às atividades femininas em


particular, na vila, pode ser flagrada na comparação das publicações
dos municípios produzidas pelos “Agentes Executivos” da cidade
do Prata e de Villa Platina no Rio de Janeiro. Enquanto a primeira
localidade divulgava suas modistas e alfaiates (ALMANAK, 1903,
p. 1259-1260), Villa Platina privilegiaria as atividades ligadas
às profissões masculinas e ao mundo rural (ALMANAK, 1909,
p. 103-105).
As técnicas de modelagem e de costura, masculina e
feminina, tiveram grande desenvolvimento nos séculos XVIII e
XIX (TECNICUS, [1948?]). No que se refere à modelagem de
roupas, a técnica geométrica foi a que, primeiramente, melhor se
adequou aos métodos de produção industrial, tornando-se com
isso hegemônica. Essa técnica, que é embasada no desenho
geométrico, exigia, como conhecimento, além do próprio desenho,
as equações básicas da matemática e o manuseio de utensílios
específicos para o traçado de moldes personalizados. Os muitos
métodos resultados dessa técnica foram criados, sobretudo, na
França e na Inglaterra, e eram disseminados no Brasil.
O Colégio N. Sra. das Dores de Uberaba, dominicano de
origem francesa, que também cuidava da educação das moças da
aristocracia rural dessa região, oferecia entre as suas disciplinas:
“Arithmetica, Systema métrico, Lingua (sic.) Franceza [...] e também
trabalhos manuaes próprios de uma senhora como: costura, crochet,
bordados, etc.” (SILVA, 1885, p. 3). Além da alfabetização, essas
três disciplinas citadas podiam facilitar o acesso ao conhecimento
das novas técnicas divulgadas nas revistas de moda nacionais e
importadas que circulavam no país e na região. Uma disciplina a
tratar exclusivamente do sistema métrico evidencia as dificuldades
na adoção desse sistema, que havia sido criado na França em 1790,
e que fora transferido para a fita métrica em meados do século XIX.
Talvez a complexidade das novas técnicas de modelagem seja um
fator a determinar um grau mínimo de alfabetização para afrontar
o exercício da costura como uma profissão, se a compreendemos
ligada à modelagem personalizada.
A tecelagem, nos seus procedimentos mais rudimentares,

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

pode estar ligada aos conhecimentos embasados, sobretudo,


na tradição oral, e por isso talvez dispense a alfabetização tão
limitada naquela região. No documento em análise, o registro de
quatro costureiras descendentes do mesmo pai, assim como de
duas tecelãs de outro, é evidência de que essas são profissões
cujos conhecimentos podiam ser adquiridos em família, assim
como também a alfabetização. Segundo Chaves (1984), antes
de ir para a escola formal prosseguir seus estudos, ele e sua irmã
Alice estudaram as primeiras letras e as quatro operações em
Campo Bello com a irmã mais velha, Etelvina, recém-diplomada
em Uberaba.
Outro meio de aquisição informal de conhecimentos de
costura pode ser sugerido pela relação de Miguel Jualianie16,
de 31 anos (L. s/o., fam. nº 52, nº o. 382), e de Antônio Ricardo
Ferreira (L. s/o., fam. nº 52, nº o. 388), de 21 anos. Este último é
o único discípulo da profissão encontrado no documento e sugere
a permanência da aprendizagem artesanal no modelo em que
o mestre ensinava o ofício ao jovem aprendiz, “em sua própria
oficina, com seus próprios instrumentos e até mesmo morando em
sua casa” (CUNHA, 2005, p. 2.). Além disso, ela merece destaque
porque Miguel Jualianie é o único profissional que declara ter um
ajudante, o que sugere um volume de produção considerável em
relação aos demais profissionais do vestuário.
A negação da relevância da atividade de costura pelos
platinenses não encontraria eco entre os pratenses. De 1904 a
1907, a administração da cidade do Prata, da qual a vila havia
se emancipado, publicaria, no Rio de Janeiro, sua relação
de profissionais ligados à produção de vestuário (SAUER, p.
1259-1260; SAUER, 1911, p. 140). Dela fizeram parte, por seis
anos, as alfaiatarias: Chic Universal, de Miguel Giuliani; Tesoura
Mineira, de Antenor Soares da Costa; e o alfaiate José Vida de

16
Miguel Jualianie(?) poderia ser Michele Giuliani ou ainda Miguel Giuliani,
homônimo de seu colega de profissão instalado no Prata. SAUER, A. Almanak
Laemmert: Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro:
Estado de Minas Geraes. Rio de Janeiro: Companhia Typographica do Brazil,
1904. Disponível em: <http://memoria.bn.br>. Acesso em: 20 set. 2015.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

Camargos. No que se refere à confecção de roupas femininas,


o mesmo anúncio divulgava o trabalho das modistas: Abbadia
Maria de Jesus, Francisca Moreira da Costa, Maria Clemencia
de Novaes, Philomena Moreira da Costa e Vitalina Angelica da
Silva. Às tecelãs, não sendo citadas em nenhum dos anúncios,
coube o anonimato.
As diferenças entre esses profissionais, entre os inúmeros
procedimentos e entre técnicas na manufatura de roupas
certamente conviviam com maior ou menor intensidade nessa
sociedade de núcleos urbanos pequenos, carente de recursos e
de população pobre e rarefeita espalhada pelas imensas áreas
de produção rural. Os núcleos rurais, no entanto, se ligavam aos
centros urbanos, onde as mudanças fluíam mais rápidas em
função do grande tráfego de pessoas, produtos e conhecimentos,
próprios de uma sociedade em expansão urbana.
Uma das modalidades comerciais que permitiam essas
ligações pode ser compreendida na experiência de Pedro
Rodrigues Chaves que atuou nessa região, primeiro, como
mascate e, posteriormente, como comerciante. Como mascate,
por muitos anos ele aprontou seus cargueiros, acondicionando
as mercadorias nas bruacas, percorrendo o sertão, viajando
de “fazenda em fazenda, onde fazia pião, para atender aos
moradores da vizinhança. Abria as bruacas repletas de tecidos,
caixas de armarinhos, calçados, enfeites, bugigangas” (CHAVES,
1984, p. 92). Feito o patrimônio necessário, Pedro Rodrigues
Chaves abriu loja própria e passou à condição de comerciante
em Campo Bello e, posteriormente, em Ituyutaba. As mercadorias
eram adquiridas em Uberaba. Tradicional centro comercial,
de relevância regional, essa cidade oferecia uma significativa
rede comercial. Dela faziam parte atacadistas em produtos de
vestuário, como: a Casa Caldeira, a Casa Especial, a Meirelles
Carvalho & Cia., a Sobral & C., a Vasconcelos, a Couto & Comp.
etc. (RIBEIRO, 1895, s/p.). Lojas como o Empório Barateza,
integrante dessa rede, propagavam, ainda em 1888,

Ter recebido o mais esplendoroso sortimento do ano, escolhido

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

na côrte, S. Paulo e Santos por um dos sócios da casa que ali foi
expressamente para comprar o que houvesse de superior, não
só em qualidade de gêneros, gostos, padrões, novidades, como
também em barateza de preços. (SILVA, 17 out. 1885, p. 4).

Esses atacadistas abasteciam também as tradicionais casas


comerciais de São José do Tijuco, entre as quais: a casa comercial
de José Martins Ferreira (1864), a de Capitão José Flausino
Ribeiro (1870), a do Capitão Jerônimo Martins de Andrade (1882),
a de Manuel Caetano de Novais (1883), a de Lica Martins e a de
Nagib Yunes (CHAVES, 1984). Em 1909, vemos uma evidência
das mudanças e da expansão no comércio de Villa Platina, na
divulgação de seus estabelecimentos comerciais especializados
em “fazendas, ferragens, armarinhos (vendendo 60 contos para
cima): Ferreira & Avelar, Junqueira & Andrade, Junqueira & Padua,
Maria Noyane, Marques & Oliveira e Tito Chaves & C.a” (SAUER,
1909, p. 1-104).
A presença do estrangeiro, em especial da colônia italiana e
de alguns sírio-libaneses, no âmbito das práticas de construção
da roupa e no comércio, pode ter agregado mudanças, como já
se evidenciava na arquitetura, no urbanismo, na vida sociocultural
e administrativa de Villa Platina. No caso das mudanças relativas
ao sistema de vestuário, ela se fazia sentir a partir do eixo de
ligação comercial da vila com Rio de Janeiro, com São Paulo
e com Santos, passando por Uberaba ou por Uberabinha, que
faziam o entreposto comercial. Todos esses polos já contavam
com a interferência do contingente de imigrantes europeus,
provocando mudanças em todas as esferas do sistema de
vestuário. Essas inovações chegavam ao sertão e conviviam com
os modos tradicionais de comercializar e de construir roupas, seja
pela inserção da diversidade de matérias-primas, de formas e de
tipologia de roupas, como também das técnicas que viabilizavam
suas materialidades.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

Arrematando o tecido

Apesar de nos faltar dados para uma leitura mais rigorosa,


esse recenseamento (ITUIUTABA, 1904) nos possibilita a
visualização de uma sociedade rural, com uma população
basicamente analfabeta em crescimento acelerado e em profunda
transformação sociocultural motivada por fatores internos e
externos.
A partir dos dados levantados nessa pesquisa, concluímos
que os profissionais envolvidos nas atividades de manufatura de
roupas em Villa Platina, no final do século XIX e na primeira década
do século XX eram predominantemente mulheres, alfabetizadas,
nativas ou originárias de outras cidades, estados ou países e
de distintas classes sociais. Verificamos que as informações
circulavam rapidamente entre estes profissionais, que faziam uso
de novas técnicas e máquinas, por vezes, as mais modernas da
época, em contraste com o setor agrícola produtivo que não se
modernizava na mesma velocidade, ainda que essa sociedade
fosse predominantemente rural com economia embasada na
agropecuária.
A circulação de informações relativas aos saberes específicos
da construção de roupas (modelagem e costura) era promovida em
parte por intermédio da cultura familiar, em parte pelo ensino dado
às mulheres nas escolas católicas, mas também pela experiência
trazida pelos imigrantes brasileiros e estrangeiros que vinham de
centros urbanos maiores cujos conhecimentos da manufatura
das roupas se beneficiavam de longa e aprimorada tradição. No
entanto, além da tradição, muitos imigrantes europeus já tinham
conhecimento de novas tecnologias decorrentes da revolução
industrial da qual o sistema de moda é um produto.
Como exposto, a atividade da costura na virada do século em
Villa Platina já era praticada com fins comerciais e não apenas
motivada pelo autoconsumo. Esse corresponde ao período em
que as mulheres adentravam o mercado de trabalho e a costura foi
uma possibilidade profissional para muitas delas (MALERONKA,
2007). Diante da diversidade de formas e de materiais, destacar-

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

se no ambiente profissional implicava que cada artesão se


empenhasse em explorar ao máximo suas habilidades e se
mostrasse informado sobre as mudanças nos feitios e nas técnicas
empregadas na construção de roupas (MALERONKA, 2007).
Nesse contexto, o comércio exercia um papel fundamental,
pois ele se entrelaçava à manufatura de roupas, fornecendo
matérias primas, instrumentos, máquinas, informações de moda
e impulsionando a assimilação de novas técnicas empregadas
nos feitios. Era ele o agente de ligação entre a vila e os grandes
centros de distribuição de mercadorias.
O resultado do levantamento da população proporcionou o
dimensionamento do analfabetismo e da significativa parcela de
menores na população local. Este fator pode ter determinado
a conjunção de esforços das autoridades administrativas e da
comunidade para resolver a questão da educação. Observamos
que, entre as deliberações da administração política da vila,
posteriores ao levantamento, a construção de um edifício
destinado à criação do Grupo Escolar Villa Platina inaugurou o
ensino formal primário na vila em 1910. O manual intitulado O
ensino em Minas Gerais no Tempo da República (1964) apresenta
o currículo instituído nos grupos escolares do período, e, neste, as
disciplinas elencadas, como: corte costura, ensino de matemática/
aritmética, geometria e desenho, francês, trabalhos manuais,
costura e trabalhos de agulha para as meninas (MOURÃO,
1962). Essas disciplinas proporcionavam uma formação que
favorecia a assimilação dos conteúdos dos novos métodos
de modelagem geométrica embasada no cientificismo e no
positivismo (TECNICUS, [1948?]), na mesma medida em que
impulsionariam o consumo de informações de moda e de técnicas
de manufatura divulgadas nas revistas de moda nacionais e
francesas em circulação no país.
O diálogo estabelecido por intermédio das fontes e do
referencial teórico possibilitou, a priori, concluir que o contraste
do rural com o urbano, do saber formal com o informal, do
conhecimento da classe dominante com o da classe menos
favorecida, da cultura local e as dos imigrantes, constituiu a

68
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 43-71, jul./dez. 2017

trama têxtil de Villa Platina. A trama, no entanto, se constitui de


direitos e avessos. Nessa perspectiva, a relação dessa sociedade
com o seu sistema de vestuário se estabelece pelo lado direito,
aquele que implica a norma, o oficial, o instituído, mas também
pelos vazios – a invisibilidade das profissões, especialmente as
femininas, e as ambiguidades das relações sociais –, os laços
pessoais que escondem as relações de exploração do trabalho
que constituem o avesso da trama.

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Recebido em novembro de 2015.


Aprovado em outubro de 2016.

71
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-3

COSTUREIRAS E AS MUDANÇAS NAS RELAÇÕES DE


TRABALHO EM SANTA HELENA, PR*

Rosane Marçal da Silva**

RESUMO: As questões desenvolvidas neste artigo centraram-se


na discussão e na problematização de elementos e dimensões do
processo de intensificação da produção industrial e das mudanças
que o trabalho industrial ocasionou na vida dos trabalhadores
das indústrias de confecções do vestuário, em Santa Helena-PR,
durante os anos 1980 a 2000. Para isso, utilizo-me de narrativas
produzidas com os trabalhadores.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho. Trabalhadores. Indústrias do


vestuário.

ABSTRACT: The topics developed in this article focuses on


discussing and problematizing elements related to the growth
process of the industrial production and changes in their lives
caused by this kind of industrial work Santa Helena in the period
1980–2000. For this, I use some oral accounts from workers.

KEYWORDS: Job. Workers. Clothing industries.

* Este artigo liga-se à pesquisa desenvolvida durante o curso de doutorado


realizado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Uberlândia, sob orientação do Prof. Dr. Rinaldo José Varussa.
** Professora Doutora em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia.

73
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

Introdução

Para investigar e analisar as trajetórias dos trabalhadores das


indústrias de confecções do vestuário, colocando em destaque
as mudanças que o trabalho industrial ocasionou na vida desses
sujeitos em Santa Helena-PR, durante os anos 1980 a 2000,
fez-se necessário o uso da história oral, pois buscava colocar em
pauta as interpretações dos próprios sujeitos que vivenciaram
a experiência do trabalho fabril1. Esta escolha foi parte de um
posicionamento enquanto ser social que também experimentou
tais relações e que viu nas entrevistas orais o caminho para
a compreensão das dinâmicas do trabalho industrial e de sua
complexidade, uma vez que, nas entrevistas, seria possível
encontrar elementos para esclarecer aspectos silenciados pela
produção dominante.2
As primeiras confecções registradas (1989, 1994, 1995, 1996
e 1999) trabalhavam com malhas envolvendo a produção de
cortinas, lingeries e uniformes escolares e empresarias. A maior
expansão desse setor aconteceu nos anos 2000, quando havia
14 empresas registradas, sendo 9 especializadas na produção
de jeans. Possivelmente, esta expansão resulta da propagação
dos incentivos fornecidos pela prefeitura do município de Santa
Helena mediante o programa de concessão de uso. Isso pode ser
depreendido no processo de formação dessas empresas.
Contabilizando as empresas da indústria do vestuário
registradas entre 1989 e 2013, obtive um total de 193, elas estavam

1
Os trabalhadores foram identificados com pseudônimos.
2
Para analisar as experiências e trajetórias de vida e trabalho dos trabalhadores,
dialoguei com as reflexões de Alessandro Portelli e Yara Aun Khoury, pois
ambos compreendem que, ao falarem, as pessoas se posicionam como
sujeitos dos processos que vivem em sociedade e estabelecem relações
sociais, interpretam e expressam seus valores culturais. As experiências
são constituídas de uma realidade social, ou seja, são de origem social. Cf.:
Portelli, 1996; Khoury, 2004.
3
Além dessas industrias de confecções do vestuário, havia 2 ateliês de
costura e 13 costureiras domiciliares registradas. Os números de ateliês e

74
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

instaladas na sede e nos distritos do município e empregavam


entre 4 e 120 pessoas, num total de 632 trabalhadores
contratados. Os dados indicados apontam uma porcentagem
maior de facções industriais4 (12)5, ante 1 facção domiciliar. O
número de estabelecimentos especializados na produção de
jeans – incluindo shorts, saias, jaquetas e, sobretudo, calças – era
maior (11), se comparado com as confecções especializadas em
uniformes escolares e empresariais, lingeries, cortinas e roupa
social masculina (8).
Nos anos 1980, Santa Helena 6 passava por mudanças

de costureiras domiciliares indicam só os estabelecimentos localizados na


sede municipal de Santa Helena, PR.
4
Optei por adotar o princípio utilizado por Angela Maria de S. Lima,
que classificou as confecções em facções domiciliares e industriais,
compreendendo que as facções industriais são empresas de pequeno ou
médio porte que prestam serviços a outras empresas ou outras facções
maiores, que possuem geralmente mais de 10 funcionários, nem sempre
registrados (LIMA, 2009, p. 91). Facções domiciliares caracterizavam-se
como pequenas e não tinham marca própria nem estilista ou desenhista.
Produziam roupas “integralmente ou peças específicas parceladamente e
que, às vezes, insere nela a marca do produto da empresa ou das empresas
contratantes” (LIMA, 2009, p. 91). Em Santa Helena, as facções domiciliares
eram ocupadas, em geral, por cerca de cinco trabalhadoras, às vezes com
membros da família, tais como filhos, e vizinhas ou pessoas próximas que
executavam as operações. Fora da estrutura das fábricas, se encontravam
as costureiras domiciliares e as faccionistas (ABREU, 1986, p. 154). Nessa
estruturação também encontrei um grupo de costureiras autônomas que
exerciam suas profissões em suas casas ou em “puxados” construídos no
fundo de seus quintais.
5
Não inclui as empresas que confeccionavam cortinas, enxovais, lingeries,
uniformes escolares e empresarias, pois sua dinâmica de organização difere
das facções industriais e domiciliares ligadas à produção de roupas.
6
Localizada na microrregião do extremo oeste do Paraná, às margens do
Lago de Itaipu, Santa Helena dista 619 quilômetros da capital, Curitiba. Com
população estimada em 24.895 habitantes (conforme Censo Demográfico de
2013, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE),
o município se limita com Entre Rios do Oeste, ao norte; com Missal e
Itaipulândia, ao sul; com São José das Palmeiras e Diamante do Oeste, ao
leste; e com a República do Paraguai (Lago de Itaipu), a oeste. Conforme

75
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

vinculadas à formação do Lago de Itaipu e suas consequências


para a cidade e a população lá residente. A preocupação com as
consequências da formação da Usina Hidrelétrica de Itaipu para a
região e os rumos administrativos que assumiriam a partir de então
era compartilhada pelo conjunto dos municípios, em especial
aqueles localizados às margens do Lago. O momento exigia a
construção de outras relações políticas econômicas e sociais
e, diante disso, as classes dominantes viam como alternativa
econômica e referencial de “desenvolvimento” a tentativa de
industrialização por meio da constituição de um parque industrial
e da instalação de indústrias. Assim, se estabeleceu um processo
de deslocamento de algumas indústrias e de criação de outras.7
Na perspectiva dominante, a formação do Lago desembocou
num movimento de industrialização e constituição urbana das
cidades do oeste do Paraná, porque, com o alagamento das
terras, alguns daqueles sujeitos que sobreviviam do trabalho
agrícola perderam suas formas de sobrevivência e precisaram
se deslocar para as cidades.
Desse processo, os setores ligados ao poder político e

informações extraídas do website da Itaipu, Santa Helena foi o município


que teve a maior área alagada pela formação do Lago, num total de 263,76
quilômetros quadrados. Por isso, recebe uma quantidade maior de royalties
da Itaipu Binacional, cuja distribuição é proporcional à área alagada dos
municípios e cujos porcentuais são definidos pela Agência Nacional de
Energia Elétrica (ANEEL). Cf.: AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA
(ANEEL). Royalties de municípios alagados pela formação do Lago de Itaipu.
Disponível em: <http://www.itaipu.gov.br/responsabilidade/royalties>. Acesso
em: 1. fev. 2013.
7
Estudos na área da Geografia buscaram explicações para o processo de
industrialização no oeste do Paraná nos fatores territoriais, com o argumento
de que a localização das indústrias é importante para analisar a perspectiva de
desenvolvimento regional. Esses estudos apontam também que as políticas
de incentivos à industrialização têm constituído uma das estratégias do
capitalismo contemporâneo, com a busca de regiões pouco industrializadas
que ofereçam condições política e economicamente favoráveis. Indústrias de
produtos alimentícios e do vestuário têm se deslocado para a região oeste
do Paraná, aproveitando-se do que os governos estaduais e municipais
oferecem como atrativos (GEMELLI, 2011).

76
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

empresarial costumavam frisar aquilo que enxergavam como


positivo, a saber: que a formação do Lago propiciou a constituição
de uma cidade turística e a intensificação da atividade industrial.
Os projetos de turismo e de industrialização são vistos pelos
setores dominantes como símbolo de “desenvolvimento”
proporcionado pelo Lago. Essa formulação se configurou a partir
de 1990, quando o município de Santa Helena se projetava como
“local de progresso” a resultar dos royalties pagos pela Itaipu
Binacional (LANGARO, 2005, p. 66; SILVA, 2011). Tais projetos
passaram a compor a pauta da administração como propostas
de crescimento econômico e social que colocariam o município
numa nova etapa, supostamente benéfica à cidade e aos santa-
helenenses.
Como resposta a esse contexto dos anos 1980, o governo
municipal lançava suas expectativas no futuro, ou seja,
acreditava na industrialização. Líderes do governo acreditavam
que a industrialização seria uma forma de “adaptar” a economia
municipal “[...] às necessidades e imposições de um novo tempo.”
(GIOVANELLA; COPINI, 1988, p. 12).
Embora tenha sido entre os anos 1990 e 2000 que houve
uma expansão do número de empresas e do pessoal empregado
em confecções do vestuário, antes desse período já existiam
trabalhadores sobrevivendo de costura realizada em seus
domicílios e sem registro formal. Exemplo deles é Salomé, que
disse ter, desde criança, o “dom” da costura: “[...] fazia roupa de
boneca com a agulha [...]”. Por volta de 1980, aos 13 anos de
idade, ela fez o curso de costura e iniciou suas atividades como
“costureira doméstica”: “[...] sempre tinha mais pedidos do que
eu mesma conseguia [...]. Com 16 anos, eu casei. Já costurava
na casa dos meus pais, né? Como costureira doméstica. Depois,
casei e sempre continuei na mesma profissão.” (SALOMÉ, 7 out.
2013).
Costureiras que, nos anos 1980, laboravam em seus
domicílios, em geral residiam no meio rural; em meados de
1990, mudaram-se para a sede municipal a fim de constituir
empreendimento próprio. Esse processo ocasionou mudanças em

77
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

suas vidas e na vida do conjunto dos trabalhadores ligados a esse


setor de produção. Elas registraram tais mudanças demarcando
diferenças entre o labor domiciliar e o industrial. Com efeito, a
passagem da atividade domiciliar para a constituição de empresas
é comum na trajetória das empresárias do ramo de confecções,
sobretudo aquelas especializadas na produção com tecidos leves,
tais como uniformes, lingerie, cortinas, enxoval e decoração.
As costureiras domiciliares que constituíram empresas
pareciam contar suas trajetórias com o objetivo de exaltar
sua posição no presente. Foi perceptível que, dentre algumas
empresárias, a identificação e o reconhecimento do lugar social
que ocupavam estavam entrelaçados com o fato de serem
trabalhadoras que produzem e serem patroas. Ao falar das
condições e da rotina laboral, estas empresárias demonstravam
objetivos diferentes daqueles que prestavam serviços para
alguma facção e até das costureiras domiciliares sem vínculo
com empresas.8
As trajetórias das entrevistadas mostram que, num momento,
podiam estar em casa costurando e, noutro, empregarem-se
nas indústrias como costureiras internas. Essa complexidade
e heterogeneidade laboral parecem especificar a condição de
trabalhadores num contexto de mudanças em que passam da
atividade informal àquela formalizada pelo registro em carteira.
Nesse contexto de diversificação e fragmentação nas formas de
produção de roupas, as trabalhadoras se colocam como sujeitos
que almejam e criam mecanismos para obter condições laborais
melhores; e uma dessas formas está na constituição do próprio
negócio.
Com a formação dessas empresas, as relações laborais
nesse setor foram se configurando e apresentando mudanças
nas experiências vividas pelos trabalhadores. Nessas relações,
pude identificar duas linhas de diferenciação: quem tinha registro
formal e quem não tinha. A primeira categoria incluía internos das

8
Para o aprofundamento das trajetórias das empresárias e a formação das
empresas, ver: Silva, 2016.

78
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

facções industriais; a segunda, externos e costureiras domiciliares


sem ligação com empresas. Os internos e os que estavam nas
facções informais realizavam tarefas parceladas, mas aqueles
sem vínculo com empresa tinham uma atividade que implicava
fazer a peça inteira. Os externos trabalhavam por produção; os
internos poderiam receber prêmio de produção se atingissem a
meta estabelecida pelos empresários.
A produção no interior das fábricas de jeans tendia a ser
dividida em seis setores: onde se carimbavam os pacotes de
acordo com as tonalidades do tecido, da cor e do tamanho;
onde se produzia a frente das peças; onde se produziam as
partes traseiras; onde se montavam as peças – junção da
frente com a traseira; onde se pregavam cós e se colocavam
passantes – chamado de “cantinho”; enfim, onde se tiravam fios
e se empacotavam as peças para encaminhar às lavanderias.
Normalmente, as lavanderias eram firmas contratadas pelos
empresários e estavam localizadas em outros municípios. Nelas,
as peças passavam pela alteração da coloração e da textura do
tecido.

Experiências na indústria do vestuário e as transformações


na vida dos trabalhadores

Dos 36 entrevistados, 9 não trabalhavam na indústria de


confecção. Destes, 3 haviam pedido demissão porque conseguiram
emprego em outro setor; Rosário fez o curso de costura industrial,
mas não atuou no setor, pois tinha magistério e foi lecionar numa
escola; Mônica atuou durante 15 dias e foi demitida; Tereza pediu
demissão porque estava grávida; Edwiges parou de trabalhar
porque a empresa foi desativada por causa de um vendaval que
destruiu o barracão; Jezabel e Rebeca não estavam ligadas a
nenhuma empresa – faziam serviço de costura somente para a
família. Havia uma entrevistada que estava no seguro-desemprego,
pois foi demitida após estabelecer contato com o sindicato dos
costureiros, e outra que estava desempregada.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

O processo que levou as trabalhadoras ao trabalho industrial


podia variar, porém todas ressaltaram a busca de um trabalho para
garantir sua subsistência e de sua família. Jezabel trabalhava com
seu esposo na agricultura, mas, por volta de 1990, sua família
passou por dificuldades econômicas e precisou procurar emprego
na indústria de confecção de roupas. No trecho abaixo, ela salienta
as transformações que afetaram as relações de trabalho de que
vivia no campo:

[...] A dificuldade apertou, a gente não tinha dinheiro pra


sobrevivência, e eu optei por arrumar emprego [...]. Fui pra sala de
costura, me dei bem trabalhando de costura, e ela [a empresaria]
me deu o emprego de costura. E, daí, eu ia daqui a pé, ou de
bicicleta, trabalhava o dia inteiro lá e daí vinha pra casa atendê o
meu serviço. Não era tão leviano [leve] assim, né? Porque tinha
que saí 5 horas da manhã pra 7 horas tá lá pra começar o serviço.
Era bastante difícil. Depois... Nos primeiros tempos, eu ia a pé.
Depois, comprei uma bicicleta. Daqui, dá quase 10 quilometro até
lá. Também era puxado. Daí, depois consegui comprar uma moto,
era um poquinho melhor [...]. (JEZABEL, 12 mar. 2015).

A jornada laboral era excessiva: começava antes das cinco


horas, quando ela acordava para preparar o almoço do esposo e
dos filhos. Até as cinco horas, ela deixava tudo pronto, arrumava
pão para levar como refeição e saía de casa. Não podia levar
marmita para a fábrica porque não tinha onde deixar e nem fogão
para esquentar: “Arrumava o meu pão e levava, pra não levá
comida, porque não tinha onde esquentá. Daí, eu levava o meu
pão e comia. De noite, eu comia comida salgada com eles. O que
sobrava do almoço nós jantava”. Como se pode deduzir, o trabalho
na indústria de confecção mexeu com os horários e com a forma
de organização da vida familiar; sobretudo intensificou seu labor,
pois, ao chegar em casa, por volta das dezenove horas, precisava
ajudar seu esposo na lida com afazeres agrícolas e domésticos;
de tal modo que fazia o trabalho da casa “[...] de noite, de manhã,
de madrugada”.

80
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

Para dar conta de seus quefazeres, Jezabel mudou os hábitos


alimentares da família. Adotou a prática de cozinhar os alimentos
nos fins de semana: “No final de semana, eu fazia. Eu cozinhava
o que podia cozinhá e deixá na geladeira pra durante a semana.
Limpava a casa, fazia pão, lavava a roupa no final de semana.”
(JEZABEL, 12 mar. 2015).
Jezabel enfatizou que a necessidade de recursos financeiros a
fez se submeter aos sacrifícios que o labor fabril lhe impunha. Seu
esforço era impulsionado pelo desejo de garantir as necessidades
básicas dos filhos, como roupas, calçados e materiais escolares.
Ao frisar que, todos os dias, precisava andar – ou pedalar – dez
quilômetros para trabalhar, apontava as mudanças no seu modo
de viver e em suas condições de trabalho, ao mesmo tempo em
que construía sua imagem de trabalhadora, pois estava dizendo
que não eram todas as pessoas que fariam o que ela fez.
Em 1995, Jezabel entrou na indústria do vestuário. Saiu em
1999, porque a família decidiu se mudar para Foz do Iguaçu.
Em 2000, voltaram para Santa Helena, e ela entrou em outra
indústria, de onde saiu em 2006. Diferentemente de outros
trabalhadores, Jezabel não se desvinculou de todo do trabalho
rural, pois permaneceu morando no campo, de onde se deslocava
para ir à sede municipal enquanto seu esposo se mantinha na lida
agrária. A decisão de deixar o emprego na indústria se justificou
por causa da saída dos filhos de casa, dos problemas de saúde
de seu esposo e do aumento das tarefas domésticas.

[...] Tinha muito serviço e não vencia mais. Não dava mais pra ele
ficar sozinho, não vencia aqui. E, pra mim trabalhar lá e vim fazê
meu serviço em casa, não dava mais [...]. Daí, a idade começa
pesar, a dificuldade começa chegar, a gente não vence mais tudo,
a cabeça não ajuda mais como ajudava. Daí, tu não consegue
associar [conciliar] uma coisa com outra, alguma coisa tem que
ficar pra trás. (JEZABEL, 12 mar. 2015).

O esforço em se manter na indústria não suportou o excesso


de trabalho. Foi um elemento central que a levou a se afastar do

81
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

emprego de costureira. O labor industrial acelerou a vida dessa


trabalhadora de modo que, depois de alguns anos de uma rotina
estafante, se sentia esgotada. As limitações físicas e mentais
decorriam desse processo exaustivo, embora as dinâmicas do
trabalho industrial produzissem a sensação de que seria devido
às mudanças do processo natural de envelhecimento que ela já
não era capaz de se manter ali.
Após sair da empresa, ainda assim Jezabel ajudava uma filha
que tinha uma confecção domiciliar. Somente depois de sofrer um
acidente de moto parou de costurar, pois “[...] perdi o movimento
de um pé, não podia mais costurar, ficou muito difícil, doía muito,
não rendia mais. Daí, eu parei.” (JEZABEL, 12 mar. 2015). Na
ocasião da entrevista, disse que cuidava dos afazeres da casa
e ajudava nas atividades da roça. Quanto à rotina laboral, frisou
ter dias mais apurados, em que levantava às seis horas e ia até
por volta das vinte e duas horas. Mas a diferença em relação
ao emprego industrial era que fazia conforme conseguia: “Nós
fizemos silagem em grão e aquele dia é apurado. O dia que faz
silagem de milho verde também é um dia que não dá sossego,
é apurado. Às vezes, vai até tarde da noite até que termina o
serviço. Não é assim, um dia igual o outro.” (JEZABEL, 12 mar.
2015). Ao dizer que a vida no campo e o trabalho rural não eram
todos os dias iguais, ela estava dialogando com a realidade do
labor industrial: este era monótono, intenso e repetitivo; no campo,
havia dias com atividades mais intensas e outros mais tranquilos,
quando podia cuidar das tarefas da casa e descansar. Como ela
disse, “[...] Se tu quer levantar às nove horas, se tu quer levantar às
cinco horas, tu vai a hora que tu quer. Se atrasou serviço, se ficou
pra trás, o problema é o teu, né? E lá, não! Se atrasou o serviço,
o problema não é de um só, [é] de muita gente.” (JEZABEL, 12
mar. 2015).
Os trabalhadores que tinham experiência com a vida e o
labor no campo, ao se iniciarem nessas indústrias, sentiam
certo estranhamento, pois as dinâmicas e as exigências eram
diferentes. Com efeito, Clara expôs as mudanças que o trabalho
industrial ocasionou em sua vida:

82
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

[...] Eu vou falar como foi o meu primeiro dia: apesar de eu já ter
o curso de costura, eu não tinha assim, não tinha, vamos dizer
assim, produção. Não tinha qualidade ainda na costura. Então, eu
achei difícil, porque eles começaram a me cobrar. Então, por várias
vezes, eu vinha pra casa chorando, por causa que, em casa, por
mais que a gente trabalhava, a mãe não xingava. E daí, então,
tinha uma estranha que vinha do meu lado e me xingava, que eu
tava fazendo errado. (CLARA, 6 fev. 2012).

Desde adolescente, Clara trabalhava na agricultura com a


família (seus pais tinham três alqueires e meio). Plantavam fumo,
milho e mandioca, dentre outras culturas. Para ela, o trabalho rural
tinha o sentido de algo familiar, fraternal; já as fábricas de costura
eram algo que a assustava de início. Com a presença de pessoas
“estranhas”, pressionando e cobrando produção, ela demarcou
aspectos que diferenciavam a relação com o trabalho, a começar
pelo fato de que o labor na roça ela sabia fazer e, na fábrica, ela
não dominava as operações a serem executadas. Além de não
conhecer as etapas da produção, as pessoas “estranhas” não a
ensinavam com a mesma paciência que tinham seus familiares. A
“liberdade” e o prazer de um trabalho acolhedor eram substituídos
pela agressividade do sistema da fábrica e por um ritmo acelerado.
Submeter-se e buscar se adaptar a essas condições era
uma necessidade que expressava as dificuldades enfrentadas
pelos agricultores. Também marcava mudanças na vida pessoal
dos trabalhadores, sobretudo quando se viam em situações
imprevistas, como separação ou gravidez. Clara acabara de ser
mãe de sua primeira filha quando foi contratada para trabalhar na
indústria de confecção. Ela argumentou que queria oferecer à filha
mais do que o alimento necessário para viver; ou seja, “[...] roupas
boas [...] coisas que ela vai gostar, né? Então, a necessidade de
você querer dar uma coisa melhor do que eu tinha, dar uma coisa
melhor pra ela. Então, acho que foi isso que me levou a querer ir
trabalhar fora.” (CLARA, 6 fev. 2012). A instabilidade do trabalho
rural lançava a expectativa de conseguir emprego nas fábricas,
pois os trabalhadores enxergavam a possibilidade de garantir um

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

salário fixo no fim do mês. Isso os impulsionava a permanecer no


labor fabril. Esse foi o processo vivido por Clara e seu esposo,
funcionários da mesma indústria:

[...] Na fábrica, você tem o salário todo mês garantido e na


agricultura, não. Que nem ele [o esposo], trabalhava no plantio
quatro, cinco meses [...]. Ganha bem na agricultura, mais vamos
dizer assim: só são quatro, cinco meses por ano, os outros meses
– vamos dizer –, você tem que economizar aqueles quatro, cinco
meses pra se manter por [pelo] resto do ano, né? E na fábrica
não, se chove, se tem sol, você tá lá, mais você vai recebe, né?
(CLARA, 6 fev. 2012).

Com efeito, de famílias ligadas ao meio rural, um número


significativo dos trabalhadores, sobretudo aqueles com idade
entre 35 e 50 anos, referia-se ao trabalho rural com positividade,
como algo prazeroso; mas, ante a falta de terra e de condições
de permanecer nela, precisaram rumar para a cidade, a fim de
garantir a sobrevivência com trabalho na indústria.
Quanto às mudanças que o labor industrial ocasionou na vida
dos trabalhadores da cidade, Ana destacou aspectos referentes
às mudanças no conjunto familiar – seus costumes e valores.

[...] Muitas vezes, a gente não tem esse tempo de [ficar com a
família], no final da tarde ou na hora do meio-dia [...]. Quase a gente
não se vê mais, né? É muito difícil. É só à noite. Então, a gente
senta, toma chimarrão, conversa aquele pouco e, logo, tem que
cuidar dos afazer, que logo tá na hora de dormir de novo. Então,
[...] hoje, as famílias perderam muito esse jeito de viver como
família, né? Porque, quando eu era jovem, que a gente tinha...
que eu estava com o pai e a mãe em casa, que a gente trabalhava
na roça, a gente tinha mais aquele tempo de sentar na mesa na
hora do meio-dia, todos junto embaixo de um pé de árvore, contar
causo, dar risada, viver aquele momento, né? À noite, também,
mesmo com tudo o trabalho que tem na lavoura... Só que aqui na
[cidade]... Nós, que vivemos na cidade, né?,... Esse tempo vai,
parece que ele vai se esgotando, que é minuto a minuto. Parece

84
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

que o dia deveria de ter mais 12, mais, mais 24 horas a mais pra
fazer o que você tem que fazer. E muitas vezes a gente deixa a
desejar, né? (ANA, 10 jan. 2012).

Ana salientou as mudanças na organização de tempo,


traçando um paralelo entre a experiência da agricultura e a vida
na cidade. No meio rural, ainda existia certo respeito aos ritmos
biológicos e sociais; na cidade, as pessoas viviam “num corre-
corre”, não conseguiam se reunir, tampouco conversar sem
estar preocupadas com os afazeres. Na cidade, a casa passou
a ficar vazia, pois as pessoas se encontram à noite a fim de se
prepararem para os compromissos da jornada de um novo dia.
Há quem veja o trabalho industrial com positividade ao ser
comparado com o labor campesino porque vê as atividades na
facção como algo mais leve:

Na lavoura, é mais sofrido, né? E a gente não tinha terra nossa


mesmo, né? Então, era bem sofrido. [...] Mudou bastante devido a
ser um trabalho braçal da lavoura, pesado, né? E a costura, além
dela ser assim, mesmo ela sendo assim, uma... muitas horas
sentado, ou coisa assim, mais ela é bem mais tranquilo. Não sei
se é porque eu gosto. (DULCE, 12 mar. 2015).

Quanto ao ritmo de trabalho e ao cotidiano da vida urbana,


Dulce frisou que “A rotina mudou muito, porque, mesmo tendo
hora marcada pra tudo, é um serviço mais leve, né?” (DULCE,
12 mar. 2015).
Ante a referência de Ana e Dulce às mudanças na relação
com o tempo (THOMPSON, 1998), cabe reiterar o que diz
Izabel Cristina Ferreira Borsoi:9 “[...] o ritmo e o tempo dentro
de uma dinâmica de vida rural seguem, de certa forma, a lógica
da natureza, com lida do nascer ao pôr do sol; na indústria, o
ritmo e o tempo seguem a máquina e o relógio e, às vezes, nem

9
O estudo de Borsoi analisou a industrialização que vinha ocorrendo, no Ceará,
especificamente em Horizonte, a partir de 1990.

85
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

sequer o sol é vislumbrado durante o dia” (BORSOI, 2005, p. 79).


O ponteiro do relógio controla cada minuto da vida, construindo
uma racionalidade temporal diferente daquela do campo. Como
destacou Eva, qualquer coisa que não seja produção é “matar
tempo.” (EVA, 4 nov. 2011). Na avaliação de Jezabel, o trabalho
na agricultura era

[...] pesado. Só que tu trabalha a hora que tu pode, a hora que


tu quer; o dia que tu não quer tu não precisa ir. Numa fábrica, tu
tem um compromisso sério. Se tu tem alguém doente, tu tem que
deixar, porque a fábrica não pode perder se você tem um doente,
né? Se você não tá bem, não pode ir, a fábrica tá perdendo, né?
Ao invés, aqui, não: se tu pode fazer hoje, tu faz; se tu não faz
hoje, você faz amanhã. A diferença da fábrica da agricultura: aqui
é serviço próprio, né? E lá, não! É um serviço que um depende do
outro. No meu serviço, se eu faltasse – eu cortava a roupa pras
outras costurar –, se eu faltasse, meu serviço ficava parado, tinha
que ir a outra que não tinha muita experiência no meu lugar [...].
(JEZABEL, 12 mar. 2015).

Ao contratarem pessoal, as empresas passam a controlar


o tempo e a interferir na vida dos funcionários. Diferentemente
do que ocorre no labor no meio rural, o relógio determina a hora
de entrar e sair das empresas.10 Esse processo de se deslocar
da área campesina para o perímetro urbano – na avaliação de
Ana – levava as pessoas a perder o controle do tempo e de suas
vidas. Por vezes, sentem uma desorganização interna. Não se
satisfazem consigo mesmas, pois percebem que o dia é curto
para cumprir as obrigações diárias.
Sobre isso, eis o que disse Fátima:

Eu acho que todo trabalho tira tempo da gente, num importa que
trabalho que seja. Tipo, os horários, né? [...] Mais, na medida do

10
Além da carga horária laboral diária, em alguns casos a hora extra é utilizada
para completar a cena.

86
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

possível, a gente tenta é intercalar as coisa, tenta dar atenção


pros filho, pro marido, pra casa. Geralmente, a casa é quem fica
bagunçada, os filhos sofrem um pouquinho a falta de atenção,
né? Então, férias. A gente adora férias porque as férias são um
momento assim pra gente ficar com os filhos, ficar com a família.
Tem gente que tira férias e viaja; só que, daí, no meu caso, eu tiro
férias pra ficar com os filhos, pra dar uma geral na casa, né? Então,
[o trabalho fabril] interfere [na relação com o tempo]; mais não é,
tipo assim, ruim também, né? Pelo fato de ser uma forma da gente
ganhar a vida, né? (FÁTIMA, 20 dez. 2011).

Na avaliação dessa trabalhadora, a perda de controle sobre


o tempo é algo inevitável ante as dinâmicas de sobrevivência
a que precisavam se submeter. Como seres humanos, parece
impossível cuidar de todos os aspectos da vida da forma que
gostariam, por isso algo sempre era colocado em segundo plano.
Nesse caso, Fátima destacou que a organização da casa perdeu
a prioridade e que os filhos não recebiam a atenção devida. Isso
porque os pais precisavam ganhar a vida com o trabalho, daí ser
justificável a ausência de casa e do cuidado com a prole: “[...] eu
acho ainda que justifica, justifica o fato de eu não ter muito tempo”.
Deixar o trabalho na agricultura, assim como deixar atividades de
diarista ou empregada doméstica, implicava projetar a vida noutro
sentido: o de um modo de viver e trabalhar que impunha valores
trabalhistas alheios às suas experiências de classe.
Ao se referir às mudanças do trabalho na agricultura em
relação ao trabalho nas facções de costura, Isabel foi enfática:

Olha! Pra mim, foi uma mudança bem radical, porque mudou como
se fosse da noite pro dia. Cê vinha [em] uma coisa que era... Tua
vida era uma coisa só, né? Aquela rotina: levantar, tirar o leite e ir
pra roça. Depois, muda tudo. Tu tem que mudar, cuidar da casa, sair,
ver as coisa na cidade. É completamente tudo diferente, demora
pra conciliar tudo (ISABEL, 10 dez. 2011).

Essa dinâmica provoca uma autocobrança: os trabalhadores

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

pensam que não fazem o suficiente, alimentando a sensação de


que poderiam fazer sempre mais, pois “deixam a desejar” (ANA,
10 jan. 2012). Ana acreditava que a rotina da vida na cidade, o
cumprir horário, além de ser fisicamente cansativo, com o passar
do tempo “mata os valores, né? A família se acaba, e você não
encontra um rumo pra seguir”. Em sua avaliação, para manter os
laços familiares, era necessária a prática religiosa: “[...] a religião
faz parte da família. Eu acho que a família que não tem religião
não segue. Eu acho que não tem como viver”. Pude perceber
que, para Ana, os valores familiares e religiosos articulavam um
sentido e definiam o lugar do trabalho em sua vida. Entendia que
a família era “um laço sagrado” e acreditava na necessidade de
se reunir para conversar, sair juntos e ir à Igreja. Porém, a correria
do cotidiano impedia que isso acontecesse: “[...] a gente não tá
encontrando esse tempo quase, né?”. Essa realidade despertava
nela o desejo de voltar a viver no meio rural, onde havia passado
a infância.
Segundo o ponto de vista dessas pessoas, o trabalho na
indústria até melhorava suas condições econômicas; por outro
lado, implicava mudanças que se expressavam em perdas.
Ana manifestou isso com profundidade, uma vez que apontou a
perda de controle sobre o tempo e sobre sua vida social, familiar
e emocional. Ante tais perdas, pareciam lutar para estabelecer
seus vínculos, buscando elementos e relações fora do ambiente
laboral que pudessem dar sentido à vida e ao próprio trabalho.
Exemplo disso está na conexão entre trabalho, família e prática
religiosa: aspectos que tentavam preservar.
Esse processo tem dificultado cada vez mais a vida e a
sobrevivências da classe trabalhadora e pobre. Visto sob a
avaliação feita pelos que o viveram e vivem, percebe-se um
deslocamento da valorização do trabalho para a produção. Esta
desvalorização dos trabalhadores é narrada por eles a partir das
perdas em relação a seus saberes e às formas de se relacionarem
na produção, perdendo as relações que os identificavam com o
trabalho (VARUSSA, 2012).
Entre os 36 entrevistados, 17 eram casados. Havia 10

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

solteiros, 4 vivendo em união estável, 3 separados e 2 divorciados.


Da mesma forma que o fator idade, o estado civil e a presença
dos filhos pareceram ser uma variável importante na vida e no
relacionamento que os trabalhadores estabeleciam com o serviço,
pois a dependência do grupo familiar em relação à garantia da
subsistência se constituía como um impulso à permanência no
emprego. O maior número de casados estava entre o grupo da
faixa etária com mais concentração nas empresas: entre 36 e 45
anos de idade; estes eram também os que tinham o maior número
de filhos. As categorias ocupacionais dos cônjuges das casadas
eram variadas: abrangiam atividades na agricultura – tratorista,
hortigranjeiro, prestador de serviços para proprietários de terras
e de aviários –; assalariados da indústria; auxiliares de produção
da cooperativa Lar; costureiro; assalariados do comércio e do
setor de serviços; técnico de informática; mecânico; operário
de construção civil; vigilante de banco; instrutor de autoescola;
jardineiro; motorista. Havia diversidade, também, no nível de
renda das famílias, ainda que as informações obtidas nesse
tópico tenham sido imprecisas. A renda mensal podia variar de
um salário mínimo – quando um cônjuge estava desempregado
– a três mil reais.
Foi entre as trabalhadoras de 36 a 55 anos de idade que
encontrei índicos de que sonhavam em ser costureiras. Relataram
dificuldades de conseguir emprego por causa da idade mais
avançada e pela pouca escolaridade.
Dentre aquelas com idade entre 41 e 60 anos, a escolaridade
variava de analfabeta ao ensino médio completo. Uma delas tinha
cursado até a antiga segunda série; uma até a terceira série do
primeiro grau; quatro tinham cursado até a quarta série; e duas,
até a oitava série. Entre as quatro com ensino médio completo,
duas haviam se formado depois de adultas, através do supletivo;
uma com ensino médio incompleto havia estudado nesse sistema.
Esses dados confirmam o que as entrevistadas disseram sobre
dificuldades para estudar.
Para alguns trabalhadores da faixa etária entre 16 e 20 anos,
o labor nas facções industriais constitui a primeira experiência

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

trabalhista formal. Para outros, com idade entre 21 e 60 anos, o


emprego nas facções de costura, em grande parte, era o primeiro
com registro na carteira profissional. Oriundos de famílias ligadas
à agricultura e pecuária, trabalhavam sem registro formal ou
prestavam serviço como diaristas e domésticas. Os internos às
empresas tinham faixa etária de 16 a 49 anos. Dentre os externos
e as costureiras domiciliares, percebi a presença de pessoas
com idade entre 40 e 60 anos. Em meio a estas, a idade mais
avançada, algumas vezes, era argumento para expressar a
experiência no ramo de confecções do vestuário.
Priscila concluiu o ensino fundamental aos 44 anos de
idade; o que, para ela, representava uma de suas limitações
para ter perspectivas de mudança profissional. Em outubro de
2011, fazia cinco meses que trabalhava numa confecção do
vestuário, emprego que representava a realização do sonho de
ter registro em carteira – “E outro sonho era trabaiar de carteira
assinada, porque aquela que eu trabaiei na agricultura eu nunca
tive carteira assinada. Primeira vez, com 44 ano – vou fazer 45
–, primeira vez a minha carteira foi assinada.” (PRISCILA, 17 out.
2011). Antes de se empregar na fábrica, havia sido diarista por
oito anos consecutivos; trabalhava uma vez por semana, em três
casas. Somados os valores que recebia das três casas, disse que
conseguia receber duzentos reais no mês.
Quanto às diferenças entre trabalhar de diarista e na indústria
de confecção, Priscila frisou: “Passar bolso lá não é que nem
passar roupa em casa”. Ela fazia referência a mudanças quanto
ao conhecimento do que fazia, pois, embora soubesse passar
roupas e tenha feito isso por vários anos em sua residência e nos
trabalhos que desenvolveu como diarista, sentia que não sabia
fazer o que lhe era cobrado na fábrica: “Ele [o gerente] te ajuda,
ele pega o ferro, ele passa o primeiro pra tu entender. Pra mim, foi
assim no começo, pra mim foi assim, porque tu ir passar bolso lá
não é passar uma calça aqui, uma camisa aqui [...].” (PRISCILA,
17 out. 2011).
No caso de Priscila, a falta de estudos era vista como elemento
que produzia nela a perspectiva de permanência naquele trabalho.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

Para os trabalhadores com idade entre 16 e 30 anos, estudar


poderia ser o meio de conseguir sair das fábricas de confecções do
vestuário. Em geral, estes não pretendiam permanecer por muito
tempo em confecções de costura porque acreditavam que ainda
conseguiriam algo, pelo menos, mais próximo do que projetavam
para suas vidas. Os parâmetros para mudar de emprego eram
definidos pelo descontentamento com as condições laborais,
incluindo salário, que era considerado pouco ante o volume de
serviço. Esses aspectos somavam-se a anseios pessoais como
fazer uma graduação ou curso técnico em outro setor.
Nazaré terminou o ensino médio em 2011 e fez o vestibular
para cursar Contabilidade na Universidade Estadual do Oeste
do Paraná. Mas ficou “na lista de espera”, o que ela viu como
“grande avanço” porque era “muito difícil passar” sem fazer um
curso preparatório. Por isso seguia com esperança: “Quem sabe
ano que vem eu consiga?! Mais eu sonho muito com isso. É uma
coisa que eu sou boa, que eu entendo e que eu me identifico,
sabe?” (NAZARÉ, 24 jan. 2012). Ela via o emprego de costureira
como algo que poderia lhe conceder as condições para se graduar
em Contabilidade, pois isso era sua expectativa. Acreditava que
poderia conciliar o serviço na facção de costura com os estudos.
Conforme disse essa entrevistada, o serviço de costureira era
como outro qualquer que contribuía para suprir suas necessidades
naquele momento. Mas definir a profissão que seguiria supunha
ser algo para o resto da vida; para isso, seria preciso gostar do
trabalho, porque, em sua concepção, uma pessoa que gosta de
biologia e cursa uma graduação em letras “não vai se dar bem”.
Em sua perspectiva, o emprego na indústria de confecção era
“uma saída” que havia encontrado para aquele momento presente:

Porque, no quê que eu ia trabalhar? Por exemplo, alguém que


trabalha na prefeitura, o seu filho vai fazer o quê? Vai conseguir
na área da prefeitura também, né? Não tem outra, muitas opções,
porque em cidade pequena eles não aceitam pessoas sem
experiência, né? Então, é aí que a gente consegue. (NAZARÉ, 24
jan. 2012).

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

Na avaliação dessa entrevistada, a falta de opções na hora de


procurar emprego era uma realidade que atingia toda a população
do município, mas era pior para a classe trabalhadora e pobre.
Ela estava enfatizando que, se tivesse oportunidade de emprego
noutro setor, não estaria numa fábrica do vestuário. Mas, como
filha de costureira, irmã de costureira e afilhada de costureira,
tendia a fazer o mesmo. Nazaré enxergava sua trajetória em
relação à de outras pessoas de sua idade cujos pais ocupavam
cargos na prefeitura. Percebia que seu lugar social era diferente do
lugar daqueles sujeitos. Ter um emprego público podia representar
prestígio ante quem não tinha vínculo empregatício com os órgãos
públicos (LANGARO, 2005).
Levando em consideração que a formação do setor de
confecções do vestuário em Santa Helena deu-se entre os anos
1990 e 2000 e que o trabalho nessas confecções era a primeira
experiência deles como trabalhadores da indústria, pode-se
constatar que os sujeitos entrevistados para esta pesquisa
já iniciaram suas trajetórias como trabalhadores de indústria
convivendo com as mudanças caracterizadas pela historiografia
como de “reestruturação produtiva”. Eles tiveram suas trajetórias
de trabalho construídas em um mercado caracterizado pelos
processos de intensificação laboral, terceirização e informalidade
(ANTUNES, 2006; GUIMARÃES, 2004).
Ressaltando as mudanças ocasionadas com o uso de
máquinas eletrônicas, Diná elencou elementos das transformações
produtivas vividas pela classe trabalhadora. Ela destacou as
cobranças e as metas de produção:

[...] Antigamente, [as máquinas] era mais reta, manual, assim e tal.
Hoje, já existe aquela eletrônica, né? Que tem uns detalhe a mais.
Ela vai mais rápida, ela corta a linha, ela tem uns detalhe a mais,
hoje. Até antigamente, num existia a pregadeira de bolso, hoje tem
a pregadeira. Aqui não tem, mais em Missal, [onde] eu trabalhava,
tinha pregadeira de bolso tipo eletrônica, ela prega bolso. Então, ela
tirava o serviço de quatro costureiro, quatro costureiro produzia o
que a máquina, em uma hora, produzia, entendeu? E a passadeira

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

de bolso, que a própria máquina fazia, comprensava o bolso, tipo


assim: imprensava e não precisava... Então, são claro, máquinas
[...] mais rápidas. Tem a máquina de travete, principalmente. Você
faz... Eu fazia um passante, você tinha que cortar o passante, o
rapaz tinha que dobrar isso daqui. Hoje, não! Existe uma máquina
que ela já pega, corta, já deixa dobradinho, a própria máquina
costura, facilita muito, né? Então... Só que tem lugares... Como
as máquinas são caras e... Essa, de pregar bolso, além dela ser
cara, ela precisa de molde; todo molde, cada modelo de bolso é
500, 600 reais, uma daquelas chapa, né? Então, o próprio patrão
achava meio caro comprar toda vez. Então, o que eles podiam
usar a máquina, eles usavam, a tradicional. (DINÁ, 30 jan. 2012).

Na conjuntura nacional, esse período é considerado como


sendo de crise, marcado por políticas de abertura econômica, de
desregulamentação financeira e de privatizações que repercutem
na indústria nacional (JINKINGS; AMORIN, 2006, p. 339). De
acordo com Jinkings e Amorin, desde 1990 as empresas têxteis
com maior poderio econômico mantiveram-se no mercado à custa
de intensa reestruturação produtiva. O setor de confecções do
vestuário em Santa Helena se constitui dentro de uma conjuntura
de transformações no mercado internacional e nacional.

O uso de tecnologia para aumentar a produtividade do trabalho, as


novas formas de organização da produção e a introdução maciça
da terceirização para reduzir os custos do trabalho resultaram em
forte aumento dos níveis de desemprego e subemprego no setor
têxtil. (JINKINGS; AMORIN, 2006, p. 339).

Em conformidade com esse processo, constatei que empresas


de Santa Catarina contratavam os serviços de costureiras de
Santa Helena, PR. Dulce, por exemplo, costurava na própria
residência. Ela tinha sete funcionárias que produziam blusas,
vestidos e saias. A empresa que contratava seus serviços era de
Itajaí, SC; e as marcas das peças eram: Colcci, Coca Cola, Triton
e Fórum. Disse-me que a produção ia para Itajaí e São Paulo; de
lá, algumas peças eram exportadas.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

Os estudos sobre as indústrias de confecções têxteis e do


vestuário têm demonstrado que recorrer à mão de obra domiciliar
é uma dinâmica que tem se propagado Brasil afora. Conforme
Abreu e Sorj, os empresários da indústria têxtil e do vestuário do
Rio de Janeiro, em particular da zona norte, Baixada Fluminense
e Niterói, adotavam essas práticas desde meados da década de
1970. Essas autoras constataram que o trabalho domiciliar no
local de suas pesquisas estava caracterizado pelo isolamento
das trabalhadoras, ignoradas pelos sindicatos e excluídas dos
benefícios sociais atribuídos aos assalariados.11
Aqueles que se posicionam na defesa das mudanças
recentes nas relações de produção argumentam que as mudanças
organizacionais velozes acompanharam o desenvolvimento da
inovação tecnológica e do mercado, acentuando a necessidade
de aprendizagem e atualização continuas (PAULOS; MONIZ,
2013, p. 114).
Na perspectiva dos empresários de Santa Helena, atualizar-
se era algo necessário ao desenvolvimento das empresas e do
município; tinham como prioridade a competição produtiva e
costumavam lançá-la aos trabalhadores, o que, por vezes, tende
a distanciar essas duas classes, ou seja, patrões e empregados.
Podemos encontrar esse posicionamento em defesa das mudanças
recentes nas relações de trabalho na fala do ex-prefeito municipal
Silom Schimidt, que, em 1997, foi questionado pelo jornal Costa
Oeste sobre as alternativas do governo municipal para o problema
do desemprego. Eis sua resposta: “Estamos terceirizando os
serviços públicos, que, aliás, é uma recomendação da nova
política administrativa a terceirização. Terceirizando nós temos
um resultado prático e rápido, com isso resolvemos o problema
da geração de empregos” (COSTA OESTE, 1997, p. 9).

11
Abreu e Sorj destacam que esse tema pede uma análise que leve em conta
fatores econômicos – por exemplo, redução de custos de produção, vistos através
da transferência para os trabalhadores das despesas com energia, equipamentos
e espaço – e que sejam percebidas e analisadas as relações de gênero e a
divisão sexual do trabalho; isso porque o trabalho em domicílio contemporâneo
seria realizado mais por mulheres. Cf.: ABREU; SORJ, 1993, p. 44.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

Para os trabalhadores, os resultados dessas mudanças só


são rápidos porque, dentro de poucos anos, a saúde é consumida,
e eles passam a sentir os efeitos através de doenças ocasionadas
pelo trabalho. Com apenas três anos na linha de produção, Fátima
sentiu os primeiros sinais de tendinite. Antes de se iniciarem nas
fábricas, o organismo das trabalhadoras estava acostumado a
um ritmo, e o trabalho fabril, acelerado, fez com que sentissem
as alterações.
Além de elementos das possíveis melhorias que as máquinas
eletrônicas podiam oferecer, facilitando o aumento da produção,
Diná, citada anteriormente, pontuou que, em 2012, o número de
empregados nessas indústrias de confecções do vestuário era
reduzido ante o fim da década de 1990, quando ela se iniciou
nesse setor, pois uma máquina eletrônica podia dispensar até
três operários. Na concepção dos empresários, essas mudanças
são vistas pelo viés da produtividade, uma vez que oferecem
condições para aumentar a produção e obter mais lucros no
final do mês. Contudo, essas chamadas inovações tecnológicas
intensificam o trabalho e podem colocar os trabalhadores na
condição de desempregados. De tal modo, passaram a viver com
insegurança constante quanto a suas condições de sobrevivência.
Os trabalhadores foram atingidos pela instabilidade
financeira, realidade que se torna mais penosa com as falências
e o fechamento de empresas, que têm se tornado frequentes.
Cabe dizer que quatro empresas de confecção de jeans que se
instalaram no município entre os anos de 1998 e 2008 vieram a
falir entre os anos 2003 e 2010.
Embora tenha diminuído o número de trabalhadores atuando
diretamente no interior das fabricas, eles não foram eliminados.
A intensificação do trabalho e a crescente instabilidade e
precariedade do emprego são consequências dessas mudanças.
Na lógica capitalista, parece que o processo de reestruturação seria
algo inevitável e necessário para prosseguir o desenvolvimento e
colocar as empresas nas relações de competitividade no mercado
mundial (ALVES, 2007; ALVES, 2000).
Considerando as trajetórias dos trabalhadores das indústrias

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

de confecções do vestuário em Santa Helena, é possível perceber


que conviviam com a incerteza de emprego e de suas condições
de vida, pois ora estavam empregadas, ora não. Às vezes, a
vida de trabalho constituía vários tipos de ocupações, pois, para
sobreviver, se submetiam a serviços temporários com o objetivo de
conseguir renda mínima. Algumas vezes, a necessidade as levava
a retomar os estudos. A discussão a respeito da escolaridade dos
trabalhadores e as exigências de qualificação são questões que
devem ser aprofundadas em outro momento.
Os relatos apontados pelos trabalhadores permitem questionar
as produções acadêmicas que estabeleceram uma concepção de
positividade no processo de mudanças que ocorre no mundo do
trabalho e dos trabalhadores. Isso porque tais acontecimentos
não apresentam um retorno produtivo para esses sujeitos; a eles
coube um processo de perdas em relação ao prazer de trabalhar,
do conhecimento e da saúde física e emocional. Na avaliação dos
trabalhadores das confecções do vestuário de Santa Helena, as
mudanças após a década de 1980 trouxeram a desvalorização de
seus saberes e de seu modo de viver e de trabalhar, pois tiveram
de deixar a vida e o trabalho agrícola para iniciar uma trajetória
de vida como trabalhadores da indústria.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

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Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na residência da
entrevistada, então com 42 anos de idade.
CLARA. Santa Helena, PR, 6 fev. 2012. Arquivo de MP3 (63 minutos).
Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na residência da
entrevistada, que tinha então a idade de 27 anos.
DINÁ. Santa Helena, PR, 30 jan. 2012. Arquivo de MP3 (46 minutos).
Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na empresa onde ela
trabalhava. Ela estava com 38 anos de idade à época.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 73-99, jul./dez. 2017

DULCE. Santa Helena, PR, 12 mar. 2015. Arquivo de MP3 (45 minutos).
Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na residência da
entrevistada, que tinha 49 anos de idade à época.
EVA. Santa Helena, PR, 4 nov. 2011. Arquivo de MP3 (64 minutos).
Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na residência da
entrevistada. Ela estava com 49 anos de idade no momento da entrevista.
FÁTIMA. Santa Helena, PR, 20 dez. 2011. Arquivo de MP3 (89 minutos).
Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na residência da
entrevistada, que tinha então 30 anos de idade.
ISABEL. Santa Helena, PR, 10 dez. 2011. Arquivo de MP3 (89 minutos).
Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na residência da
entrevistada. Ela estava com 44 anos à época.
JEZABEL. Santa Helena, PR, 12 mar. 2015. Arquivo de MP3 (42
minutos). Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na residência
dela. A entrevistada tinha 57 anos à época.
NAZARÉ. Santa Helena, PR, 24 jan. 2012. Arquivo de MP3 (70 minutos).
Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na residência da
entrevistada. Ela estava com 18 anos de idade à época.
PRISCILA. Santa Helena, PR, 17 out. 2011. Arquivo de MP3 (59
minutos). Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na residência
da entrevistada. Ela estava com 44 anos de idade à época.
SALOMÉ. Santa Helena, PR, 7 out. 2013. Arquivo de MP3 (40 minutos).
Entrevista concedida a Rosane Marçal da Silva na empresa da
entrevistada. Ela estava com 46 anos de idade à época da entrevista.

Recebido em abril de 2016.


Aprovado em julho de 2017.

99
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-4

OS TRABALHADORES DO NORTE DE MINAS GERAIS:


ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E O “PROGRESSO”

Valéria de Jesus Leite*

RESUMO: Neste artigo, analisamos a organização dos


trabalhadores em Montes Claros e Norte de Minas Gerais,
suas demandas e suas lutas, entre as décadas de 1970 e
1980. Especificamente, trataremos a respeito de como se deu
o processo de modernização econômica na cidade de Montes
Claros e de como esse processo, efetivado a partir da década de
1960, afetou a vida dos trabalhadores, tanto nesta cidade como
na referida região. É importante ressaltar que, quando tratamos
do processo de modernização das estruturas econômicas de
Montes Claros, não podemos nos restringir somente aos seus
limites geográficos, pois estaremos também fazendo uma análise
da região e do país. A dinâmica experimentada durante o período
em questão nos mostra que as transformações pelas quais passou
essa cidade na segunda metade do século passado afetaram
a região como um todo, do mesmo modo que, por sua vez, as
transformações ocorridas na região influíram em Montes Claros.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalhadores. Movimentos sociais. Norte


de Minas.

ABSTRACT: In this article, we analyzed the workers’ organization


in Montes Claros and North of Minas Gerais, their demands and
their struggles, between the 1970s and 1980s. Specifically, we will
deal with the modernization of the economic process in Montes
Claros and how this process effective since the 1960s, affected

* Doutora em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia.


Professora da rede pública de ensino de Minas Gerais

101
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

the workers’ life, both in this city and its region. It is important to
emphasize that when we deal with the modernization process
of the economic structures of Montes Claros, we can not restrict
ourselves to its geographical limits, we will also be analyzing the
region and the country. The dynamics experienced during the
period in question shows the transformations that this city passed
in the second half of the last century affected the region as a whole,
in the same way that the transformations that took place in the
region has influenced in Montes Claros.

KEYWORDS: Workers. Social movements. North of Minas Gerais.

Buscando o desenvolvimento e o progresso

A partir da segunda metade do século XX, o Brasil, como um


todo, passou por profundas transformações de caráter político,
econômico e social.
Em 1959, foi criada a Superintendência de Desenvolvimento
do Nordeste (Sudene). A Sudene foi um projeto do governo
federal, idealizado por Celso Furtado, que pretendia alavancar
o crescimento do país, corrigindo as disparidades regionais,
sobretudo dos estados na região que hoje conhecemos como
Nordeste, em relação ao Centro-Sul. Celebrada por muitos e
questionada por tantos outros, a Sudene, enquanto incentivadora
de vários projetos, esteve presente no processo de modernização
econômica do Norte de Minas a partir de 1965, momento em que
a industrialização em Minas Gerais começou a se consolidar.1
Quando a Sudene foi criada, as lideranças políticas do Norte
de Minas já estavam em sintonia e apresentavam capacidade de
mobilização, conforme foi constatado por Pereira (2007), sendo

1
Sobre críticas ao modelo Sudene de desenvolvimento, ver: OLIVEIRA,
Francisco de. Elegia para uma re(li)gião. Sudene, Nordeste. Planejamento
e conflitos de classe. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

102
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

que uma de suas mais importantes conquistas foi a inclusão do


Norte de Minas na área de abrangência da Sudene. Com isso,
o Norte de Minas Gerais, a partir de 1965, passou a fazer parte
de duas dinâmicas desenvolvimentistas maiores, a mineira e a
nordestina, sendo que esta última tinha sua pauta direcionada
pela Sudene e se baseava em políticas de combate à seca e de
geração de emprego. Por isso, entender a dinâmica do Nordeste é
importante para entender também a dinâmica do Norte de Minas,
já que as transformações aqui ocorridas só foram possíveis por
meio dos investimentos da Sudene.
Todavia, as políticas públicas do governo federal para
promover o desenvolvimento do Nordeste tiveram início muito
antes da Sudene. Segundo informa Rodrigues (1998, p. 17-29), as
ações governamentais buscando promover o desenvolvimento do
Nordeste aconteceram desde o fim da Segunda Guerra Mundial
e envolviam o aproveitamento dos recursos da bacia do Rio
São Francisco. Até a criação da Sudene, em 1959, o governo
federal já havia destinado inúmeros recursos para projetos e
ações, principalmente com relação às questões hídricas, como
a construção de barragens.
Nesse sentido, foi criada, em 1945, a Companhia Hidrelétrica
do São Francisco (CHESF) e, em 1946, a Comissão do Vale do
São Francisco (CVSF), inspirada no modelo norte-americano de
valorização econômica do Vale do Rio Tennessee. A CVSF foi
efetivamente criada em 1948 e estava vinculada diretamente à
Presidência da República. Seu objetivo foi elaborar e executar
um plano geral para o aproveitamento do Vale do São Francisco,
considerando todo o potencial hidrelétrico do Vale, desenvolvendo
a agricultura, a irrigação, a indústria, as comunicações, a educação
e a saúde, além de coordenar as desapropriações de terra e o
assentamento de agricultores (RODRIGUES, 1998, p. 17-29).
Esse foi um plano de desenvolvimento com ações complexas que
requereu um extenso conjunto de atividades e responsabilidades.
Entre 1964 e 1967, o governo estadunidense prestou
assistência técnica à Comissão do Vale do São Francisco, em
convênio que envolvia também a Sudene, a CHESF e a United

103
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

States Agency International Development (USAID). A intenção


foi fazer um estudo mais elaborado dos recursos hídricos e dos
solos do Vale do São Francisco com o objetivo de desenvolver
a irrigação. Os resultados apresentados apontaram uma
capacidade de três milhões de hectares de terras irrigáveis e
12.500 MW de potencial hidroelétrico, assim como a necessidade
de reestruturar a Comissão do Vale do São Francisco. Seguindo
tais recomendações, em 1967 o governo extinguiu essa instituição
e criou a Superintendência para o Desenvolvimento do Vale do
São Francisco (Suvale). Esta, no entanto, não contava com a
mesma autonomia da CVSF e seus programas estavam atrelados
à Sudene (RODRIGUES, 1998, p. 17-29).
Já em 1972, o governo brasileiro extinguiu a Superintendência
para o Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Suvale)
e criou, em 1974, a Companhia de Desenvolvimento do Vale
do São Francisco (Codevasf). A Codevasf tinha como objetivo
aproveitar os recursos hídricos e do solo do Rio São Francisco
para a agricultura, pecuária e indústria, diretamente ou por meio
de organismos públicos e privados (RODRIGUES, 1998, p. 17-29).
Foi com base neste planejamento e racionalidade, idealizados e
colocados em prática por agentes do Estado, que a classe dirigente
do Norte de Minas passou a viabilizar seus interesses, os quais
seriam defendidos e difundidos como interesses de todos os norte-
mineiros.
É interessante dizer que o Norte de Minas foi incluído na área de
abrangência da Sudene em 1965. A partir desse ano, foi inaugurado,
em Montes Claros, cidade considerada polo regional, um escritório
do órgão com o objetivo de facilitar as relações entre as lideranças
regionais e sua cúpula. Nesse mesmo ano, 1965, foi completada
a rede de transmissão do sistema de abastecimento de energia
da usina hidrelétrica de Três Marias e inaugurado o Frigorífico
Frigonorte, antiga reivindicação dos pecuaristas locais, também
em Montes Claros. Em 1976, a Associação Comercial e Industrial
de Montes Claros (ACI) conduziu importantes investimentos para
a cidade, dentre os quais a criação da Escola Técnica, que tinha
como finalidade formar e qualificar mão de obra para as indústrias
incentivadas pela Sudene.

104
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

Portanto, em conformidade com o ideal desenvolvimentista,


as políticas para o desenvolvimento regional basearam-se
na industrialização incentivada nas cidades, com destaque
para Montes Claros e Pirapora, e no incremento das relações
produtivas no campo. É importante lembrar que os projetos
agropecuários (como a pecuária de corte e o reflorestamento)
foram apoiados pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal, enquanto os projetos públicos de agricultura irrigada
(Gorutuba, Jaíba, Pirapora e Jequitaí) ficaram a cargo da
Codevasf e da Ruralminas. Assim, a Codevasf, articulada à
Sudene e à Ruralminas, coordenou o desenvolvimento econômico
na bacia do São Francisco (RODRIGUES, 1998, p. 17-29). As
transformações, fossem no campo ou nas cidades, tiveram como
base e aconteceram atreladas a uma dinâmica maior, isto é, à do
capitalismo brasileiro, principalmente às indústrias do centro-sul,
sempre em conformidade com a lógica capitalista mundial. À frente
desse processo estava a burguesia local associada a agentes do
poder público, em âmbito estadual e federal, por meio das ações
de órgãos como a Sudene, a Ruralminas e a Codevasf.
A imagem de Montes Claros como centro polarizador regional
foi sendo construída e, com o tempo, adquiriu consistência como
tal, tornando a cidade a “princesa do norte”. Já nesse período,
a cidade começava a crescer e, consequentemente, a atrair
pessoas buscando melhores condições de vida, o que elevou o
número de habitantes. Com o crescimento demográfico acelerado,
sobretudo a partir da década de 1970, período em que a indústria,
sob incentivo, foi responsável por 45,63% do emprego industrial
no município, esse foi o momento em que, segundo Oliveira
(2000), Montes Claros e o Norte de Minas começaram a sentir
os resultados positivos das políticas de promoção industrial, com
uma taxa de emprego de 85,1% para o ano de 1977.2
As transformações nas relações de trabalho no campo

2
Os efeitos positivos da modernização econômica foram sentidos de forma
mais acentuada em Montes Claros e cidades como Pirapora, Janaúba,
Januária.

105
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

acabaram por reestruturar as antigas formas de produção, a


exemplo das parcerias e/ou agregações, e isso contribuiu para
o esvaziamento do campo e o crescimento desordenado das
cidades, principalmente Montes Claros. Cabe ressaltar que esse
modelo de desenvolvimento que modernizou a economia não foi
capaz de promover um desenvolvimento social e humano e, por
isso mesmo, foi o tempo todo tensionado pela classe trabalhadora,
por meio de associações classistas ou pela atuação das pastorais.
Em especial, a atuação das Comunidades Eclesiais de Base,
nesse processo, foi extremamente significativa. A Pastoral da
Terra e a Pastoral Operária participaram da organização dos
trabalhadores, da constituição dos sindicatos e da formação de
lideranças, a exemplo do que aconteceu no restante do país. Pode-
se dizer, portanto, que os trabalhadores, ancorados nas pastorais
sociais da Igreja Católica, tiveram condições de questionar e
causar tensão no projeto da classe dirigente local, nas cidades,
reivindicando infraestrutura nos bairros (água, luz, saneamento,
escolas, pavimentação de ruas, limpeza pública, postos de saúde,
hospitais) e na zona rural, lutando pelo cumprimento dos direitos
trabalhistas e na luta pela terra. É sobre os trabalhadores e suas
lutas que falaremos em seguida.

Os trabalhadores rurais assalariados e o “progresso que


traz cativeiro”

Já foi dito que o projeto de desenvolvimento para o Norte


de Minas Gerais foi parte de uma dinâmica maior, cujas
transformações se fizeram sentir, principalmente, a partir da
década de 1960. A paisagem rural da região foi remodelada pelas
extensas plantações de eucaliptos. Os perímetros irrigados para
cultivo de frutas foram construídos entre as cidades de Jaíba e
Matias Cardoso, entre Janaúba e Nova Porteirinha e em Pirapora.
No caso, os projetos Jaíba, Gorutuba, Lagoa Grande e Pirapora,
respectivamente. A implantação desses projetos de irrigação só
foi possível com a desapropriação de centenas de famílias, tarefa
que ficou a cargo da Codevasf, da Ruralminas e do Departamento

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Portanto, para


que o desenvolvimento e o progresso se efetivassem no Norte de
Minas, era preciso retirar os trabalhadores de suas terras.
Os primeiros passos do progresso na região se deram com
a chegada das reflorestadoras, na década de 1970. A ação das
reflorestadoras contribuiu para acirrar os conflitos no campo, pois
a tensão envolvia os pequenos sitiantes, posseiros, fazendeiros
e as empresas de reflorestamento. Para os trabalhadores rurais
assalariados, a violência acontecia através do não cumprimento da
legislação trabalhista e do total desrespeito aos direitos humanos.
Em sua página na internet, a Pastoral da Terra apresenta alguns
números da violência experimentada pelo trabalhador rural na
década de 1980. Abaixo, o Quadro 1, com parte dos dados
retirados do site da Pastoral da Terra para o Norte de Minas:

Quadro 1 – Acidentes com trabalhadores rurais assalariados e boias-frias em


1985 (Norte de Minas).
Data Trabalhador Cidade Idade Empregador Acidente

Morto em balsa
25/01 Hamilton de O. Neto Itacambira 17 Plantar
sem segurança.

Morto em balsa
25/01 Miguel José dos Santos Itacambira 27 Plantar
sem segurança.

Dois trabalhadores
27/07 mortos e não identifi- Varzelândia Capotamento.
cados

Quatro boias-frias mor- Caminhão sem


04/09 Espinosa
tos freio.
Fonte: Comissão Pastoral da Terra, 1985.
Disponível em: <http://www.cptnacional.org.br/index.php/downloads/finish/43-
-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/ 266-conflitos-no-campo-brasil-1985>.
Acesso em: 10 jan. 2014.

Entre janeiro e setembro de 1985, foram oito trabalhadores


mortos devido à precariedade das condições de trabalho das
empresas de reflorestamento. A falta de segurança e o desrespeito

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

aos direitos trabalhistas eram sempre noticiados nos meios de


comunicação alternativos ou populares, principalmente nos
boletins produzidos pelas Comunidades Eclesiais de Base, pela
Comissão Pastoral da Terra e pela Pastoral Operária. Os boletins
Integração e Pelejando eram periódicos editados pela Igreja
Católica, por meio das Dioceses, em nível regional e estadual,
respectivamente. Esses boletins tinham grande circulação entre as
Comunidades Eclesiais de Base, os sindicatos e as associações
urbanas e rurais, bem como entre os parceiros da Igreja, naquele
período. Os boletins eram feitos com a colaboração dos membros
das comunidades que enviavam notícias sobre os conflitos de
terra, assassinatos de trabalhadores, desrespeitos aos direitos
trabalhistas e humanos, fundação de associações e sindicatos.
Portanto, os boletins cumpriam o objetivo de informar e ajudar na
formação de um trabalhador mais crítico a respeito da sociedade.
Especificamente no Jornal Integração, editado na Diocese
de Montes Claros, na seção CPT Denuncia, encontramos uma
matéria informando sobre as vítimas diárias das Reflorestadoras no
Norte de Minas. As mortes de Hamilton e Miguel José dos Santos,
constantes do Quadro 1 acima, aconteceram no Rio Congonhas
quando eles faziam o transporte de mudas de eucalipto em uma
balsa improvisada com tambores e tábuas puxadas por duas
cordas de nylon. A embarcação não resistiu à força das águas.
Há também dois trabalhadores não identificados, moradores da
cidade de Varzelândia, mortos em um capotamento. Eram dois
jovens, Geraldo e Agostinho, este último era líder comunitário e
do culto dominical (INTEGRAÇÃO, 1985).
O avanço do reflorestamento aconteceu expulsando os
pequenos sitiantes e posseiros. Nesse ambiente, os trabalhadores
rurais que foram empregados pelas reflorestadoras se viram
obrigados a conviver com uma situação constante de riscos,
pois estavam expostos aos venenos que eram levados junto
com eles nos caminhões e trabalhavam muito mais que as oito
horas estabelecidas pela lei. Além disso, esses trabalhadores
não recebiam as horas extras e não tinham assistência médica;
tampouco recebiam os dias em que se ausentavam quando

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

estavam doentes. Muitas vezes, moravam em acampamentos


feitos de plástico, com água velha e quente para beber (CPT,
1984, p. 16-25). Muitos desses trabalhadores não tinham a carteira
assinada e corriam o risco de perder a vida nos caminhões que
os transportavam. No quadro apresentado acima, constam seis
trabalhadores mortos em acidentes com caminhões que os
transportavam.
Nessas circunstâncias, a organização dos trabalhadores em
sindicatos possibilitou, mesmo que por pouco tempo, inúmeras
mobilizações que buscavam melhores condições de trabalho,
reconhecimento social e respeito. A importância das pastorais
sociais nesse processo, cabe ressaltar, foi fundamental. Em
especial, a Pastoral da Terra e a Pastoral Operária subsidiaram
a organização dos trabalhadores. Elas significavam muito mais
que uma ligação entre Igreja e seus fiéis, pois eram uma ponta
de esperança em meio às agruras da vida. Ademais, ofereciam
um suporte extremamente necessário à medida que a luta se
tornava maior e mais abrangente.3
Dentre os materiais de apoio elaborados pela CPT em maio
de 1984, em conjunto com os sindicatos rurais, está um pequeno
livro cujo título é “História das lutas dos trabalhadores rurais:
greve no Paraíso”. Este caderno foi feito para debater a greve
dos trabalhadores da Florestaminas (reflorestadora presente
na região), ocorrida entre 30 de maio e 12 de junho de 1983 e
organizada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São João
do Paraíso em parceria com os trabalhadores. É um material
interessante e contém um significado importante para a luta dos
trabalhadores, pois nele está registrada uma parte da história
vivida pelos trabalhadores do reflorestamento naquela cidade,
sob sua própria perspectiva.
O caderno foi organizado em nove tópicos a serem debatidos
em reuniões ou encontros das Comunidades Eclesiais de Base.
Nesses tópicos, foram abordados os conflitos e a exploração

3
Para maiores informações sobre a constituição dos sindicatos na região, ver:
Augusto, 2011.

109
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

a que os trabalhadores do reflorestamento eram diariamente


submetidos, desde a chegada das reflorestadoras e a consequente
mudança nas relações de produção. O texto denuncia o ideal de
progresso que aprisiona o pequeno trabalhador ao invés de libertá-
lo. Aprisiona porque promove a perda da terra do pequeno sitiante
para as empresas que aumentavam suas cercas e iludiam pessoas
simples com promessas de bons salários e progresso para todos.
Além de relatar a movimentação que antecedeu à greve, o texto
também discute os problemas e os obstáculos enfrentados pelos
trabalhadores em sua organização, suas pequenas conquistas até
a decisão de greve pela assembleia geral. Percebe-se que, ao
rememorar esse passado, o objetivo é conhecê-lo e apresentá-lo
a outros. Assim, usando o passado como arma para transformar
o presente, torna-se possível redimi-lo (LOWY, 2005). Significa,
portanto, que ele não foi em vão.
Segundo informa a CPT, o intuito foi registrar a história para
que outros trabalhadores a conhecessem e para que, em alguma
medida, esses registros pudessem contribuir na organização de
outros trabalhadores (CPT, 1984).
Nesse processo de luta, a organização dos trabalhadores
era sempre desmantelada pelos representantes das empresas de
reflorestamento. Entretanto, mesmo nas situações adversas, os
trabalhadores conseguiam manter seus sindicatos e continuavam
promovendo encontros. A importância da Comissão Pastoral da
Terra pode ser avaliada também quanto a momentos em que, por
meio dos seus jornais, dava destaque aos encontros e às pautas
discutidas, divulgando a situação precária dos trabalhadores,
assim como os principais assuntos debatidos nas reuniões,
como a situação dos trabalhadores que lidavam com o cultivo do
eucalipto, tanto no plantio como na produção do carvão. Ambas
as situações eram precárias e sem segurança, tendo em vista que
os trabalhadores não conseguiam suportar o serviço por mais de
seis anos (PELEJANDO, 1984).
As reflorestadoras eram constantemente acusadas de não
cumprirem a legislação trabalhista, seja em Grão Mogol, Rubelita,
Rio Pardo de Minas, São João do Paraíso, Taiobeiras ou qualquer

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

outra cidade. E, nesse ambiente, a situação de exploração


agia como um combustível na organização da luta contra as
arbitrariedades.
A situação de exploração dos trabalhadores não ficou restrita
às empresas de reflorestamento. Uma matéria veiculada pela
Revista Montes Claros em Foco, em novembro de 1979, discutia a
aplicação da legislação trabalhista na zona rural da região. O título
foi “O problema trabalhista: ameaça ou direito?” Consta na nota
que “já houve até crime de morte, quando um fazendeiro matou
seu empregado que queria receber pela terceira vez.” (MONTES
CLAROS EM FOCO, 1979, p. 56).
O caso foi apresentado e discutido como um fato cotidiano.
Isso significa que foi, ao mesmo tempo, uma maneira de
legitimar a fala dos fazendeiros e desqualificar as demandas dos
trabalhadores. Para uma parcela considerável dos criadores de
gado, a crise no campo teve uma causa muito distante do que
fora experimentado pelos trabalhadores. Segundo a reportagem,
fazendeiros da região que, anteriormente mantinham em suas
propriedades vinte ou trinta famílias, naquela data (1979),
mantinham uma ou duas. Isso, segundo os fazendeiros, acontecia
porque a Legislação Trabalhista Rural era um “fantasma que
ronda o campo”, pois permitia aos trabalhadores rurais reclamar
seus direitos trabalhistas em qualquer época, caso se sentissem
lesados pelo patrão.
Segundo a matéria, Edilson Brandão, pecuarista, agricultor e
liderança em Janaúba, disse que “são estes direitos, infindáveis
no tempo, que estão causando o esvaziamento no campo”.
Ressaltou, inclusive, que “é mais seguro não ter o empregado”
(MONTES CLAROS EM FOCO, 1979, p. 56), visto que a qualquer
momento o fazendeiro poderia enfrentar causas trabalhistas
que não teria como quitar. Opinião que foi compartilhada pelo
advogado Eustáquio Cruzoé, de família tradicional na cidade.
Nessa perspectiva, o esvaziamento no campo havia tido como
causa a má conduta de trabalhadores rurais, mesquinhos e
gananciosos, que usaram de ardil para enganar seus patrões e
obter ganhos na justiça do trabalho.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

Esse é a tese sobre a qual foi construída a matéria pela revista


Montes Claros em Foco. Nas seis páginas que discutem o tema,
as imagens do homem do campo – seja à frente de sua casa feita
de adobe ou com um saco nas costas caminhando pela estrada
de terra em direção à cidade – reforçam a ideia de que o problema
do campo estaria na deficiência da legislação que regula as
relações de trabalho. Nessa perspectiva, as “soluções” impostas
pela legislação se resumiriam a “ser favelado na cidade ou ser
boia-fria no campo” (MONTES CLAROS EM FOCO, 1979, p. 56).

A luta pela terra no Norte de Minas: “entre morrer de fome


ou de tiro”

A dinâmica proporcionada pelo ideal desenvolvimentista


acabou por permear todas as relações estabelecidas, causando
profundas transformações na vida do homem do campo. No
Norte de Minas não foi diferente. As ações do governo – estadual
ou federal – para modernizar a economia da região esbarraram
nas necessidades dos moradores locais, causando um enorme
descompasso entre estes e o poder público. Muitos trabalhadores
não conseguiram lidar com essa situação e deixaram o campo,
fato que resultou na venda das terras a preços módicos. Outros,
ainda, tiveram suas propriedades tomadas por fazendeiros ou
empresas que não mediram esforços para isso.
Assim, expulsos de suas terras ou seduzidos pelo discurso do
progresso, muitos foram morar nas pequenas cidades e passaram
a trabalhar como assalariados nas empresas de reflorestamento,
nos perímetros irrigados ou nas grandes fazendas de gado. Era
possível perceber e sentir o clima tenso ao ler as páginas policiais
dos jornais, ao conversar com os vizinhos que sempre contavam
sobre um assassinato, sobre uma cerca que fora aumentada,
sobre casas queimadas, trabalhadores demitidos, acidentes
com caminhões que transportavam pessoas para o trabalho etc.
Parte desse processo pode ser compreendida ao se analisar o
conflito de Cachoeirinha, antigo distrito de Varzelândia, na região
de Jaíba. Este se tornou o caso mais emblemático da luta pela
terra no Norte de Minas.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

Em 1967, 212 famílias de posseiros foram expulsas das


terras que ocupavam havia décadas. Consta nos jornais que a
retirada dos posseiros foi feita por “12 soldados armados com
metralhadoras, acompanhados de vinte e tantos jagunços”.
O ocorrido ganhou destaque na imprensa regional e nacional
(MINAS GERAIS, 1981). Iris dos Santos, esposa de Jader de
Paula (líder dos posseiros), era considerada a liderança feminina
de Cachoeirinha. Dona Iris revela, em depoimento constante nos
autos do processo sobre o despejo dos posseiros, a situação
de permanente necessidade a que estavam submetidos, sem
alimento para os filhos e para si próprios. Diante da possibilidade
de receberem outras terras, mesmo que na mesma região de
Jaíba, ressaltou: “[...] Não queremos! Nós morremos de fome ou
matado, mas daqui não saímos.” (MINAS GERAIS, 1981).
As notícias veiculadas pela mídia a respeito de Cachoeirinha
fazem os acontecimentos parecer confusos, embora sua
compreensão seja fácil. Entender a dinâmica que envolve essa
questão é importante para se compreender a luta pela terra na
região. Consta em jornais, e também foi dito por pessoas, que a
propaganda sobre terras devolutas feita pelos agentes do Estado
de Minas Gerais incentivou muita gente, a partir dos anos iniciais
da década de 1960, a seguir em direção à região do Jaíba em
busca de seu pedaço de terra, fato que aparece nos depoimentos
de posseiros expulsos e está registrado no processo crime que
aborda a expulsão. Os autos do processo sobre o despejo dos
posseiros de Cachoeirinha, assim como as matérias veiculadas
pelos jornais e anexadas ao processo, dão conta da chegada
de posseiros a partir de 1963. No entanto, esses documentos
não informam sobre os descendentes de escravos ou os nativos
que habitavam a região havia mais de 100 anos ou, quando
mencionam, o fazem de forma muito discreta. A ideia foi qualificar
os posseiros como aventureiros ou interesseiros e, portanto, não
merecedores da terra.
A luta dos posseiros de Cachoeirinha para reaverem suas
terras se estendeu por quase 20 anos, sendo resolvida pela justiça
em 1986, quando os trabalhadores foram legalmente assentados

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

em suas antigas terras. No entanto, mesmo depois de assentados,


os conflitos entre trabalhadores e fazendeiros permanecem até
os dias atuais.
Apesar de Cachoeirinha ter chamado, com mais ênfase, a
atenção da imprensa e das autoridades, existiam outros conflitos
no Norte de Minas, como mostram os Quadros 2 e 3 a seguir:

Quadro 2 – Conflitos de terra no Norte de Minas. Áreas desapropriadas sem


imissão de posse.
Município Local do conflito Famílias Área (ha) Data Decreto
1) Januária Faz. Capivara 67 2.850 03/06/1988 96131
2) Joaquim Felício Faz. Catoni 75 7.797 03/06/1988 96126
3) Manga Faz. Ressaca 6.695 15/01/1987 93937
4) Monte Azul Faz. Poço da Vovó 09 3.338 05/07/1989 97912
5) São Romão Faz. Vargem Grande 1.171 22/07/1988 96397
6) Ubaí Faz. Pacuí 5.290 22/05/1989 97771
Várias fazendas – Ca-
7) Varzelândia 100 8.423 02/04/1986 92509
choeirinha

Município Situação do local do conflito


1) Januária Pendente na justiça. Classificada como empresa rural.
Contestado judicialmente. Classificada como empresa rural. Mantém o
2) Joaquim Felício conflito. Fazendeiro ganha a liminar, mas a ação do despejo é contestada
pelo STR Bocaiúva, que impede o despejo.
3) Manga Processo adm. suspenso por medida cautelar. Potencial para 120 famílias.
4) Monte Azul Sem imissão na posse, mantém o conflito. Famílias ocupam a área.
5) São Romão Contestada na justiça.
6) Ubaí Contestada na justiça.
7) Varzelândia Contestada na justiça desde 1986.
Fonte: Fórum Popular de Desenvolvimento Regional. Montes Claros, 1993, 44 p.

Quadro 3– Áreas desapropriadas com imissão na posse e em fase


de assentamento.
Município Local do conflito Famílias pessoas Área (ha) Data Decreto
1) Januária Faz. Picos 46 9.054 21/09/1989 98153
2) Montalvânia Faz. Vaca Preta 5.431 21/09/1989 98165
Faz. Agrivale e
3) Manga Mocambinho Ja- 295 20.577 22/09/1986 93302
íba I
Faz. Manga ou
4) Manga 25 6.509 10/08/1987 94753
Japoré

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

Faz. São João Bo-


5) São Romão 33 17.348 04/09/1987 94840
queirão
Faz. Brejo Verde
6) São Romão 3.322 05/08/1988 96508
Logradouro
Reserva Logra-
Coloniza-
7) São Romão douro ou Projeto 120 8.000 1960
ção Incra
Sagarana
Faz. Vereda gran-
8) São Romão 127 7.229 13/10/1983 88860
de
9) São Fran- Faz. Morrinhos ou
32 1.170 21/06/1989 97856
cisco Água Branca
10) Varzelândia Faz. Caitité 10 964 03/1987 Compra
Faz. Córgão ou
11) Varzelândia 33 2.420 29/08/1988 96439
Boa Esperança

Município Situação

1) Januária Imissão na posse sem projeto de assentamento.

2) Montalvânia Imissão na posse em 04/04/1990.

Com imissão na posse em 22/09/1987, sem projeto de assentamento. Estima-se


3) Manga
potencial de 4.100 beneficiários.
Imissão na posse em, 16/03/1988, ainda ocupada pelo proprietário. Potencial
4) Manga
para 238 beneficiários.
Imissão na posse em 28/07/1988, mas ocupada por grileiro. Potencial para
5) São Romão
506 beneficiários.

6) São Romão Imissão na posse em 15/04/1989. Potencial para 126 beneficiários.

7) São Romão Sem projeto parcelamento para novos colonos. PROCERA/88 30.000 OIN’s.

Imissão na posse em 19/10/1985.


1990 – Projeto parcelamento aprovado, mas parado. Ainda não concretizadas
8) São Romão
as reivindicações do projeto de assentamento: 07 escolas, 01 posto de saúde,
45 km de estradas, 07 poços artesianos e divisão da área em 194 lotes.
9) São Fran-
Imissão na posse em 05/11/1991.
cisco

10) Varzelândia Projeto parcelamento aprovado.

Imissão na posse em 14/02/1989, aprovado projeto parceladamente. Potencial


11) Varzelândia
para 100 famílias. PROCERA/1989.
Fonte: Fórum Popular de Desenvolvimento Regional. Montes Claros, 1993, 44 p.

Assassinatos e desrespeito aos direitos humanos somam


alguns dos ingredientes que compunham essa realidade. Essa
situação era constantemente denunciada pelos trabalhadores
e suas organizações de classe, como aconteceu no encontro

115
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

promovido pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de


Buritizeiro e publicado pelo Jornal Corrente, de dezembro de
1981 (CORRENTE, 1981), entre os dias 28 e 29 de novembro,
que contou com a presença de 80 lavradores da zona rural de
Buritizeiro e de delegações de Montes Claros, Unaí, Manga, João
Pinheiro, Janaúba e Jequitaí. O objetivo desse encontro foi discutir
os problemas que afligiam os trabalhadores da região.
O evento foi organizado de forma que todos os lavradores
pudessem expor suas opiniões. Nos dois dias de debate,
concluíram que tudo havia piorado e a questão considerada
como mais séria referia-se à posse da terra e à luta desigual que
os lavradores enfrentavam na justiça contra as “poderosíssimas
firmas”. Essas últimas, segundo eles, lançavam mão dos mais
“escusos recursos para dobrá-los, usando muitas vezes a
violência, queimando barracos, espancando colonos, quando se
trata de expulsá-los da posse” (CORRENTE, 1981).
Segundo os dados apresentados pela Comissão Pastoral
da Terra no ano de 1985, Minas Gerais apresentava 65 áreas
de conflitos de terra com grande índice de violência. Foram
50 trabalhadores mortos, 05 feridos e 05 presos. Os conflitos
atingiram 21.123 pessoas, em uma área de 100.953 hectares,
com um número elevado de ameaças de morte4. Nos primeiros
anos da década de 1990, os dados da Comissão Pastoral da
Terra dão conta de 86 conflitos na região, conforme apresentado
nos quadros acima.
Os conflitos também aconteceram em virtude da
desapropriação de comunidades inteiras para a criação dos
perímetros irrigados. Em 1984, o Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Janaúba convocou os moradores da região para uma
assembleia que aconteceria no dia 29 de julho. A finalidade seria
debater a situação de 1.000 famílias que moravam à margem
esquerda do Rio Gorutuba e que seriam desapropriadas pela
Codevasf. As 2.000 famílias que moravam do lado direito já haviam

4
Disponível em: <https://www.cptnacional.org.br/index.php/component/
jdownloads/download/41-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/266-conflitos-
no-campo-brasil-1985>. Acesso em: 4 nov. 2014.

116
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

sido desapropriadas pela mesma Codevasf na década de 1970.


Segundo informa a nota, essas famílias foram jogadas em favelas,
a terra foi entregue a fazendeiros e uma pequena parte teria
sido reservada para a colonização. Agora, a Codevasf pretendia
retirar as famílias restantes. O impasse se deu porque as famílias
não aceitaram a “oferta”. Essas desapropriações tinham como
propósito a continuação da implantação do perímetro irrigado do
Gorutuba (PELEJANDO, 1984).
O clima de tensão e os conflitos na região foram constantemente
monitorados pelos órgãos do governo federal, principalmente
entre os anos de 1975 e 1985, período de maior investimento
do poder público na região. Nesse período, existiu um sistema
de monitoramento conduzido por órgãos públicos interessados
em manter a “paz e tranquilidade”, livrando-a das influências
“comunistas”. Principalmente porque um ambiente conflituoso se
colocava contra os objetivos do governo para a localidade, pois
afastava possíveis investidores.
Isso pode ser constatado ao verificarmos uma correspondência
emitida pelo escritório da Sudene em Montes Claros à Assessoria
de Segurança e Informações da Sudene (ASI), que estava sob
os cuidados do Coronel João Batista Ramos Lima. Trata-se
de um ofício informando sobre a situação de Cachoeirinha.
Consta do relatório, qualificado como secreto e confidencial, que
“começa a ser esboçado um movimento por parte de elementos
reconhecidamente de tendências esquerdistas, no sentido de
dificultar a vinda de grandes grupos para a região conhecida como
Jaíba dentro de nossa área de atuação” (ARQUIVO PÚBLICO
MINEIRO. DOPS. Pasta 1065). Segundo informa o relatório,
havia um esforço conjunto entre estado e órgãos federais para a
criação de um ambiente propício para investidores nessa região
do país, no entanto,

agitações e arbitrariedades [...] faz com que vários empresários


interessados em ali adquirir terras para seus projetos, fiquem
intranquilos, temendo problemas com relação a posse e uso das
terras que por eles venham a ser adquiridas. (ARQUIVO PÚBLICO
MINEIRO. DOPS. Pasta 1065).

117
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

O relatório ainda aponta a grande cobertura dada pela TV


Globo-MG, em cadeia nacional, veiculando entrevistas com
posseiros, nas quais estes haviam afirmado que “soldados da
Polícia Militar mineira metralharam crianças, filhos de posseiros”
(ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. DOPS. Pasta 1065). Essas
denúncias criavam uma imagem negativa para possíveis
investidores, o que acabava atrapalhando os planos dos agentes
do Estado para a região.
Ao que parece, a Sudene colaborou com o aparelho repressor
do governo militar no sentido de mantê-lo informado sobre esses
conflitos ocorridos no Norte de Minas e na tentativa de calar essas
vozes. Principalmente porque tais conflitos afastavam possíveis
investidores, como já foi mencionado. A existência da Assessoria
de Segurança e Informações sugere a magnitude dos projetos
implantados no local e o compromisso dos agentes envolvidos,
fossem estes empresários, órgãos públicos ou privados, em
torná-los bem-sucedidos. Essa questão nos leva a inferir que os
objetivos dos agentes do Estado para a região se inserem em uma
dinâmica maior que vai além de proporcionar um desenvolvimento
econômico, mas está centrado também na organização social e
espacial.
Ao confrontar a produção historiográfica com as fontes,
podemos inferir que os projetos públicos para a região a
transformaram em um terreno minado, abrigando inúmeros
conflitos. Existem projetos distintos sendo disputados nesse
espaço, embora, por muito tempo, somente um deles tenha sido
priorizado pela mídia e pela academia. O desenvolvimento e o
progresso tão propalados pela classe dirigente local não seguiram
o seu curso original. Enquanto agentes do Estado e governos
buscaram, por meio dos seus órgãos de ação, abrir frentes
de expansão do capital no Norte de Minas, os trabalhadores
buscavam manter-se na terra e dela viver.

118
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

Do campo para a cidade: o caminho da mudança?

Para muitos, deixar o campo nem sempre foi uma opção,


mas uma necessidade que se impôs diante de uma situação
extrema. Nesse sentido, a cidade passa a ser encarada como
a única alternativa, tornando-se a oportunidade de estudo para
os filhos e, talvez, sua própria redenção. Essa é uma questão
que passa pela compreensão da sociedade em que vivemos e
pela compreensão de seus valores hegemônicos. Um desses
valores é a educação escolar, já que a importância dispensada à
educação enquanto salvadora é reiterada constantemente. Nas
relações estabelecidas socialmente, a educação é apresentada
como condição para se obter sucesso, é o caminho para uma vida
satisfatória, uma vida diferente do que fora outrora.
Um de nossos entrevistados, o Sr. Humberto Leal, que veio
da zona rural de Montes Claros, fornece-nos a dimensão desse
significado. Em entrevista, perguntamos se ele havia sentido
muita diferença quando chegou a Montes Claros. Sua resposta foi
longa e muito detalhada, focando-se, sobretudo, nas dificuldades
da vida na cidade. Ao fim da questão, concluiu que “se eu tivesse
hoje um estudo mais elevado eu seria outra pessoa, né?”.
Entretanto, Humberto também reconhece a importância de se
ter um capital social que, somado à educação escolar, poderia
significar melhorias em sua vida: “talvez pela amizade que eu
tenho eu tava mais bem colocado, ganhava um pouquinho mais,
que aí dava pra me manter.” (LEAL, 2009).
Essa concepção de educação como salvadora e redentora
está presente na vida das pessoas e torna-se mais forte quando
é confrontada com um passado “sofrido”. Por isso, é preciso
dar aos filhos a oportunidade que lhes foi negada, ou ainda,
faz-se necessário seguir um caminho diferente daquele trilhado
pelos pais. A educação e o trabalho, como forma de ganhar
honestamente o sustento, podem ser entendidos como alguns
dos valores hegemônicos de nossa sociedade. Ao se referir à sua
vida na zona rural, Humberto ainda disse que a sua permanência
na roça o impedia de trabalhar e estudar. A percepção de

119
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

Humberto sobre o seu passado só faz sentido agora, diante das


oportunidades perdidas devido ao pouco estudo. É nesse sentido
que o hegemônico é vivido e compartilhado em um terreno comum,
no qual predominam interesses convergentes e divergentes,
assimilações e resistências.
Assim como Humberto, Domingos Lopes Martins, deficiente
físico, nascido em Januária, em 1937, também resolveu deixar a
roça para aventurar-se na cidade, em busca de dias melhores.
Até os 21 anos, Domingos trabalhou no campo. Em fins da
década de 1950, deixou a zona rural e se estabeleceu em Manga,
onde trabalhou como barbeiro por 30 anos. Em 1988, ficou
desempregado e resolveu tentar a sorte em Montes Claros. Sem
condições financeiras para comprar ou alugar uma casa, foi viver
sob marquises ou em espaços vazios, ficando nessas condições
por cinco anos. Em março de 1991, estava vivendo em um lote
vago, na rua Melo Viana, no bairro Morrinhos, próximo ao centro
da cidade, quando o proprietário pediu que ele desocupasse o
lote. Sem trabalho, com a mulher, quatro filhos e um neto de 2
meses, seguiu para o bairro Santa Lúcia, onde conseguiu um
lote com a prefeitura. De posse do terreno, Domingos armou sua
barraca, mas logo se viu desabrigado, pois um dos funcionários
da Secretaria de Ação Social o expulsou do lote para repassar
a outra pessoa. Esse caso foi publicado no Jornal do Norte, em
16 de abril de 1991, devido a denúncias dos moradores a um
vereador local (JORNAL DO NORTE, 16 abr. 1991).
Foi buscando conter a ida de trabalhadores como Domingos
Lopes Martins e Humberto Leal para os grandes centros que o
governo federal se viu obrigado a controlar a migração. Para
isso, foi criado o programa Cidades de Porte Médio, em fins da
década de 1970. Esse programa foi pensado com o objetivo de
“conter os dois grandes fluxos migratórios do país, ou seja, do
sul para o centro-sul e do norte para o centro-sul” (DIÁRIO DE
MONTES CLAROS, 9 out. 1977), em municípios considerados
estratégicos e com condições para absorver o fluxo de pessoas
que migravam em direção às capitais do centro-sul. Os recursos
seriam captados pelo Ministério do Interior por meio do Conselho

120
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

de Desenvolvimento Urbano junto ao BIRD, uma das instituições


que formam o Banco Mundial. O Banco Nacional de Habitação e
o governo do estado completariam a parceria.
Para a implantação do Programa em Montes Claros, foi
firmado um convênio com a prefeitura. O Programa ficaria sob a
gerência da Superintendência de Apoio aos Municípios, vinculada
à Secretaria de Estado do Planejamento (OLIVEIRA, 2000).
A maioria dos novos moradores na cidade de Montes
Claros era composta por habitantes em condições precárias ou
sem nenhuma condição financeira, morando em construções
deficientes em morros, à beira das rodovias ou em áreas de risco,
como se deu com o sr. Domingos. Em um ambiente como esse,
a aquisição da casa própria passou a ser o objetivo perseguido
por todos aqueles que não dispunham de um teto. Tornou-
se, portanto, o grande sonho a ser alcançado. Mesmo com a
constante e crescente mobilização popular em prol desse objetivo,
a questão da moradia nunca foi tratada de forma efetiva pelos
governos, levando à constituição de movimentos organizados,
como o Movimento de Defesa dos Favelados (MDF), que lutavam
e reivindicavam moradia.5
No decorrer da década de 1970, em Montes Claros, alguns
programas de habitação foram anunciados pelo poder público
municipal em parceria com o Banco Nacional de Habitação, mas
nunca foram suficientes. A revista Montes Claros em Foco, em
agosto de 1979, veiculou uma matéria ressaltando os problemas
sociais na cidade. O título foi “As favelas invadem a cidade”
(MONTES CLAROS EM FOCO, ago. 1979, p. 42), e a reportagem
enfatizava os problemas relacionados ao aumento populacional e
à sua implicação direta: o aumento das favelas. A matéria ressaltou
ainda que estudos estavam sendo feitos no sentido de viabilizar

5
Esse movimento foi criado na década de 1970, na região de Belém, na grande
São Paulo, com os participantes formando pequenos grupos para reflexão
e debate. Posteriormente, o grupo passou a contar com a presença de
missionários irlandeses, padres e irmãs, apoiados e incentivados pelo bispo
local. Ver: <http://www.mdf.org.br/quem-somos/historico.html>. Acesso em:
20 mar. 2015.

121
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

um conjunto habitacional para aqueles moradores, e que o prefeito


Antônio Lafetá Rebelo tinha como meta coibir a invasão de locais
públicos e o surgimento de favelas nas margens das vias públicas.
Tal proibição certamente está relacionada às muitas
ocupações ocorridas em Montes Claros. Nos primeiros anos de
1970, um grupo de pessoas recém-chegadas do campo ocupou
uma área vazia localizada na região norte da cidade. A área era
considerada de risco, pois ficava debaixo dos fios de alta tensão
da Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG). A trajetória
de Constantina Pereira da Silva, quando chegou a Montes Claros
após deixar a zona rural, é representativa do que inúmeros desses
migrantes experimentaram. Constantina foi uma das muitas
pessoas que ocuparam essa área vazia e perigosa da cidade.
De lá, saíram em 2010, quando a Cemig construiu, em parceria
com o governo, um conjunto de apartamentos para as famílias
que ali viviam. Ao ser questionada, em entrevista, sobre as ações
públicas quando do momento da ocupação da área, ela conta que:

quando tinha assim na base dos cinco anos que eu morava aqui,
hoje [2009] já tem 40 anos, naquele tempo teve uma reunião na
prefeitura, sobre nós morando aqui. Aí eles falou assim: que ordem
que vocês tem, que vocês invadiu a Vila Mauricéia, aquelas áreas
lá pra fazer casa?
Aí eu peguei e falei assim... E eu fui a pessoa que todo mundo
ficou besta com o que eu respondi, porque todo mundo queria
falar isso né, mas não sabia. Aí, eu falei né, e o juiz estava perto
né: - Oh, ninguém fez invadir ali por boniteza e querendo enricar
não. A gente só invadiu porque nós não tinha terreno pra morar,
e nós não tinha salário pra poder comprar um terreno pra pagar a
prestação também. Então, o quê que nós tinha que fazer? Os pais
de família, cheio de crianças, nós não tinha onde morar, então foi
a única coisa que nós temos que fazer foi invadir a área da CEMIG
(SILVA, 2009).

A fala de Constantina, quando associada com a matéria da


revista Montes Claros em Foco, deixa claro o modo de pensar

122
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

da classe dirigente local sobre essas questões. A noção de que


as “favelas” estariam invadindo a cidade indica uma percepção
reduzida e muito conveniente sobre os problemas sociais
enfrentados pela cidade. Sugere, portanto, que a pobreza ou
a favelização não estão associadas ou não têm relação com
a organização social da cidade ou com o sistema capitalista,
tornando-se apenas um produto da ingerência no campo.
Como a falta de habitação sempre foi um problema
negligenciado pelas autoridades, os movimentos populares
organizados que lutavam por moradia em Montes Claros foram,
aos poucos, ganhando visibilidade. No início dos anos 1980,
especificamente em 1984, em consonância com o seu congênere
em São Paulo, o MDF já estava organizado e atuando na cidade.
A primeira atuação de que temos registro aconteceu quando
da ocupação de uma área pertencente à Companhia de Distrito
Industrial de Minas Gerais (CDI), localizada no Distrito Industrial de
Montes Claros. A área foi ocupada por um grupo de trabalhadores
desempregados. Consta que essas terras estavam destinadas
à construção de indústrias, mas estavam desocupadas havia
vinte anos. Nos primeiros dias de junho de 1984, cerca de 100
famílias se organizaram e ocuparam esse espaço e, em pouco
tempo, já haviam plantado suas roças. A organização contou com
o apoio da Comissão Pastoral da Terra, do MDF e do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Montes Claros. Os trabalhadores
ocuparam a área por cerca de três anos, mas foram retirados em
8 de novembro de 1987. A imprensa noticiou o fim do conflito e
a negociação que foi feita com os trabalhadores com a presença
da Comissão Pastoral da Terra. Estes seriam indenizados com
dinheiro e sementes e auxiliados no replantio das roças (DIÁRIO
DE MONTES CLAROS, out. 1987).6
Todos os conflitos e embates vividos no Brasil nesse momento
contribuíram para que a questão habitacional tivesse novos
contornos na cidade, o que significou também o desenvolvimento

6
Não obtivemos mais informações sobre o que teria acontecido com esse
grupo de trabalhadores.

123
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 101-127, jul./dez. 2017

de outros movimentos organizados na região. Quanto ao poder


público, quando atuava, o fazia no sentido de dotar de alguma
infraestrutura os novos bairros ou legalizar as ocupações.

Considerações finais

Ao buscar pelos trabalhadores que viviam em Montes


Claros e Norte de Minas durante as décadas de 1970 e 1980,
foi possível identificar vários pontos de conflitos em curso na
região. O caminho para o desenvolvimento se fez à custa da
opressão aos trabalhadores, rurais ou urbanos. A luta pela posse
e a permanência na terra transformaram-se em um cativeiro, e
a possibilidade de mudança visualizada por esses trabalhadores
estava na cidade e não no campo.
As situações de conflito e exploração foram evidenciadas
pelos agentes das pastorais sociais da Igreja Católica – em
especial, pela CPT e pela PO – e por entidades de classe que,
mesmo incipientes, foram importantes na organização e na luta
dos trabalhadores. Estes, fossem das cidades ou do campo,
lutaram pelo cumprimento dos direitos trabalhistas, por moradia
e por uma vida decente, gerando conflitos e incomodando os
donos do poder, evidenciando que o tão sonhado caminho para
o “desenvolvimento” e o “progresso” não poderia ser alcançado
sem a inclusão dos trabalhadores. Portanto, a trajetória dos
trabalhadores brasileiros foi e segue sendo construída entre um
“desenvolvimento” e um “progresso” excludente, que promove
exploração, conflitos e tensões, mas também se faz sob o signo da
luta e da esperança em um futuro diferente, mais justo e humano.

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siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 8 jan. 2015.
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Montes Claros, 1981. 330 p. p. 68-70.

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Jornal das CEBs, CPT e CPO de Minas Gerais, Montes Claros, ano II,
n. 16, jun. 1986.

Entrevistados

Humberto Leal Rodrigues. Nasceu em Miralta, zona rural de Montes


Claros, no ano de 1966. Chegou a Montes Claros no ano de 1988.
Trabalha no grupo Coteminas desde 1990. É casado e pai de três filhos.
Mora no bairro Nova Morada, região do grande Santos Reis.

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Constantina Pereira da Silva. Nasceu em Passagem Funda, povoado


localizado próximo à cidade de Brasília de Minas. Antes de vir para
Montes Claros, Constantina morou no Paraná, em São Paulo e em
Goiás. Chegou em Montes Claros na década de 1970.

Recebido em abril de 2016.


Aprovado em setembro de 2017.

127
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 129-148, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-5

TEMPO LIVRE E LAZER DOS TRABALHADORES NA


MANCHESTER MINEIRA:
REFLEXÕES ACERCA DOS RELATOS NOS
PROCESSOS CRIME DE HOMICÍDIO (1900-1924)*

Cleber Augusto Gonçalves Dias**


Marina Fernandes Braga Nakayama***

RESUMO: Este trabalho apresenta algumas reflexões a respeito


do tempo livre e do lazer dos trabalhadores em Juiz de Fora, uma
cidade na Zona da Mata mineira, que se destacou nas primeiras
décadas do século XX devido ao incremento e diversidade das
suas indústrias, comércio e serviços. Para tanto, utilizamos os
processos crime de homicídio produzidos durante o período de
1900 a 1924, que se localizam no Arquivo Municipal de Juiz de
Fora, procurando observar as práticas de lazer e a utilização dos
espaços urbanos da cidade, com o objetivo de refletir sobre as
práticas dos trabalhadores e os espaços de sociabilidade durante
o tempo livre e lazer dos trabalhadores.
* Este artigo é a versão atualizada do trabalho apresentado no XXVIII Simpósio
Nacional de História, de 2015, realizado em Florianópolis-SC. O trabalho,
intitulado “Tempo Livre e lazer dos trabalhadores em Juiz de Fora/MG –
possibilidades através dos processos crime de homicídio (1900-1924)”,
consistia no resultado preliminar da pesquisa de doutorado em andamento.
** Doutor em Educação Física pela Unicamp e Mestre em História Comparada
pela UFRJ. Coordenador do grupo de pesquisa em História do Lazer
(HISLA) na EEFFTO/UFMG. Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Estudos do Lazer da UFMG (2015/2016).
*** D outoranda e bolsista CAPES-DS no Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Estudos do Lazer da UFMG (2012-2016), linha de pesquisa
“Lazer, história e memória”. Mestre em Educação pela UFPR. Professora
convidada no curso de Pós-Graduação Lato Sensu “Ensino de Educação
Física para a Educação Básica” do Colégio de Aplicação João XXIII da
Universidade Federal de Juiz de Fora (2015/2016), atuando na disciplina
“Educação Física e Educação Física Escolar: Aportes Históricos, Sócio
-Filosóficos e Epistemológicos”.

129
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 129-148, jul./dez. 2017

PALAVRAS-CHAVE: Lazer. Tempo livre. Processos crime.

ABSTRACT: This paper presents some reflections on the free time


and the workers’ leisure in Juiz de Fora, a city in Minas Gerais
Forest Zone, which stood out in the first decades of the twentieth
century due to the increase and diversity of its industries, trade and
services. Therefore, we use the processes homicide crime that are
in Juiz de Fora Municipal Archives during the period 1900-1924,
seeking to observe the leisure practices and the use of urban
spaces of the city, in order to reflect on the practical workers and
spaces of sociability during free time and leisure of workers.

KEYWORDS: Laisure. Time free. Processes crime.

Juiz de Fora: a Manchester Mineira

Juiz de Fora é uma cidade do sudeste de Minas Gerais,


localizada na Zona da Mata, entre a Serra da Mantiqueira e a
Serra do Mar. No início do século XX, seguindo os passos de
outras cidades do Brasil, tais como Rio de Janeiro (CHALHOUB,
1996, 2001), São Paulo (SEVCENKO, 1992, 1998, 1999) e Belo
Horizonte (VEIGA, 2002; VAGO, 2002), a localidade vivenciava um
processo de modernização e de reformas sanitárias, urbanísticas,
educacionais, entre outras.
Para a historiadora Maraliz Christo (1994), entre meados do
século XIX e o início do século XX, Juiz de Fora não foi herdeira da
cultura colonial mineira. A cidade contava com um fator expressivo,
a produção cafeeira, já que as terras da Zona da Mata mineira
não eram propícias à extração de minerais, tal como as cidades
da região central do estado.
Já em meados do século XIX, os primeiros traços de
progresso podiam ser observados na localidade. Exemplos
disso são a abertura da estrada de rodagem União e Indústria
– a qual ligava a cidade à Capital Federal –, as comunicações

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 129-148, jul./dez. 2017

ferroviárias e, ainda, a instalação da primeira usina hidrelétrica da


América Latina – a Usina de Marmelos, que permitiu uma nova
configuração do Rio Paraibuna, sendo inaugurada em 1889. Esses
traços de desenvolvimento, que permaneceram ainda ativos
durante o século XX, foram responsáveis pelo escoamento da
produção cafeeira durante o século XIX e pelo escoamento de
diversas mercadorias, como os artigos têxteis, alimentos e bebidas
em Juiz de Fora e região (CHRISTO, 1994, p. 11).
Christo (1994, p. 10) ainda identifica uma singular diferença
na formação urbana de Juiz de Fora em relação à de outras
cidades barrocas de Minas Gerais, uma vez que essa estaria
“normatizada pelos apitos das fábricas de estilo neoclássico e
o bater dos tamancos de seus operários de ambos os sexos
e diversas nacionalidades”. Pode-se dizer que os libertos e os
estrangeiros teriam presença marcante como mão de obra na
cidade e região.
Contínuas transformações na paisagem da cidade mineira
aconteceram, tais como obras de retificação do Rio Paraibuna,
embelezamento da região central, com reforma de ruas, criação
de praças, criação do matadouro, regulamentação das casas
e de animais domésticos, tentativas de solucionar problemas
relacionados a epidemias, entre outros, como nos apontam as
Resoluções da Câmara Municipal de Juiz de Fora nas primeiras
décadas do século XX. Exemplo disso foi a Resolução da
Câmara nº 706, que estabeleceu a proibição da abertura de
avenidas para operários ou vielas que ficassem localizadas no
centro da cidade. Ela também determinava a desapropriação e
a demolição de imóveis que ficassem em avenidas abertas bem
no meio dos quarteirões centrais, formando pequenas vilas na
cidade (CÂMARA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA, 1917). Pode-
se perceber uma preocupação com o uso e com a apropriação
do centro da cidade, como aconteceu nas primeiras décadas do
século XX em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo
Horizonte.
Ao mesmo tempo em que olhares se debruçavam sobre a
cidade, entendendo-a como moderna, bela e próspera, as páginas

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do Jornal O Pharol, em 1907, destacavam más impressões:


“conhecemos Juiz de Fora há anos, sempre atrasada e gozando de
fama de um péssimo clima, o que lhe emprestavam as epidemias
aqui ocorridas” (O PHAROL, 17 out. 1907); o que demonstrava
a existência de contradições no processo de modernização da
cidade nas primeiras décadas do século XX, bem como a intenção
de organizar a localidade, dividindo seus espaços e determinando
como seriam utilizados e ocupados.
Com uma população que, no ano de 1890, atingiu 55.185
habitantes, e que, em 1920, chegou ao número de 118.166,
incluindo pessoas do meio urbano e rural (GIROLETTI, 1988), a
cidade de Juiz de Fora se expandiu significativamente em trinta
anos. Além disso, a composição de seus habitantes foi alterada,
tendo os libertos e os imigrantes como seus componentes.
No caso dos imigrantes, várias nacionalidades podiam ser
encontradas, incluindo os italianos, os portugueses, os espanhóis,
os franceses, os norte-americanos, os árabes, entre outros em
menor expressão quantitativa (OLIVEIRA, 1966).
Além do aspecto populacional, outra transformação
socioeconômica que ocorreu, na época, como causa e
consequência da redefinição da cidade, foi o aumento de
casas comerciais, de oficinas e de fábricas. Em seu trabalho
Industrialização de Juiz de Fora, publicado em 1988, Domingos
Giroletti analisa como a cidade se tornou referência econômica
para a Zona da Mata mineira frente ao desenvolvimento das
indústrias nela estabelecidas. Para o autor, a cidade, até a
década de 1930, transitou de uma grande produção cafeeira
para um intenso processo de industrialização, o que exigiu sua
reorganização em vários setores da economia para atender às
novas demandas.
Segundo Giroletti (1988, p. 113-114), a participação da mão
de obra de imigrantes europeus – que também se tornaram,
em grande parte, pequenos empreendedores –, associada a
empresários locais que fundaram as indústrias e possibilitaram
o investimento em outros setores, como o de comércio e o
de serviços, foram significativas para o alargamento e para o
incremento da economia na cidade.

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No Almanach1 de Juiz de Fora, publicado em 1917, há


um número significativo de anúncios de casas comerciais e de
indústrias dos mais variados setores. Identificamos propagandas
de tipografias, fábricas de balas e guloseimas, fábricas de tecidos
e malhas, laboratórios químicos e industriais, fábricas de móveis,
cervejarias, fábricas de máquinas, construtoras e fábricas de
mantimentos (ALMANACH, 1917).
Também eram constantes as publicações de anúncios
referentes a serviços diversos nos jornais que circulavam na
cidade. Essa diversidade de mercado levou-nos à compreensão
de por que a cidade se tornou referência para as demais em seu
entorno. Além disso, era necessária a inserção de trabalhadores
nas casas comerciais e nas fábricas, o que fazia com que a mão
de obra da cidade se constituísse justamente para suprir as novas
demandas. Assim, deixava-se para trás a produção cafeeira, que
já não mais se constituía como o elemento central da economia
da região.
Juiz de Fora apresentava-se como uma cidade com
características próprias às cidades que se industrializavam e
que se desenvolviam no início do Novecentos. Dentre essas
características, podemos destacar que, durante as três primeiras
décadas do século XX, foi de suma importância a atividade
industrial, com o estabelecimento de vários tipos de produção,
destacando-se a indústria têxtil.
A fim de corroborarmos essa ideia, disponibilizamos um
anúncio datado de 1909, da Fábrica São Roque, localizada em
Juiz de Fora. É interessante observar nele a variedade de artigos
produzidos em uma mesma fábrica e a grande quantidade de
máquinas a vapor necessárias para o seu funcionamento. Nota-
se que o funcionamento dessa fábrica era dividido por seções,
indicando sua pluralidade e ainda a possibilidade de abastecer os

1
Os Almanachs eram catálogos de propagandas e serviços encontrados na
cidade, e, também, um meio de comerciantes e autônomos das cidades
vizinhas realizarem seus anúncios. Ofereciam, além disso, orientações sobre
horários de trens e momentos de leitura, através da publicação de poesias,
crônicas e estórias.

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comerciantes da região de maneira atacadista, já que ela possuía


estoque de produtos. Também é relevante destacar o número
significativo de 220 operários na primeira década do Novecentos.

Figura 1: Anúncio da Fábrica São Roque

Fonte: Jornal O Pharol, Juiz de Fora, 11 set. 1909.

É por esses fatores e, especialmente, por causa do processo


de industrialização, que Juiz de Fora foi identificada, nas últimas
décadas do século XIX até o início do século XX, por Manchester
Mineira. Esse epíteto ilustrava bem a condição da cidade mineira,
que era comparada à cidade industrial de Manchester, localizada
na Inglaterra.

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A partir desse conjunto de características, refletimos e


levantamos algumas questões. Primeiramente, como, nessa
cidade, tão ligada ao progresso, era utilizado o tempo livre dos
trabalhadores2? Que atividades os trabalhadores realizavam
durante o tempo do não trabalho?
Assim, ficamos nos questionando quais fontes de pesquisa
permitiriam que um outro olhar, que não fosse ligado às classes
mais abastadas, viesse à tona. Foi quando nos deparamos
com o trabalho de Sidney Chalhoub (1994), que se orientou em
identificar o cotidiano e a cultura dos trabalhadores no Rio de
Janeiro por meio dos processos crime. Nesse caminho, também
nos deparamos com o trabalho de Deivy Carneiro (2008), que
estudou as injúrias por meio dos processos crime. Nesse viés,
decidimos procurar, nas páginas dos processos de homicídio,
registros que possibilitassem um olhar acerca do tempo livre e
do lazer do trabalhador nessa cidade mineira.

Os processos crime como fonte de pesquisa

Os processos crime pesquisados para este estudo


encontram-se sob guarda do Arquivo Histórico de Juiz de Fora,
órgão da Prefeitura Municipal desta cidade, no Fundo Criminal
do Fórum Benjamin Colucci. Esta documentação foi recolhida
em 1996 em condições precárias, infestados por poeira,
insetos, úmidos e até mesmo deteriorados. Após um trabalho de
higienização, eles puderam ser organizados, levando-se em conta
o período em que foram produzidos (se período do Império ou da
República), e, conforme o delito cometido, foram criadas séries

2
Optamos por utilizar o termo “trabalhadores” aproximando-nos de Eric
Hobsbawn (1987) que utiliza o termo trabalhadores de forma genérica, sem
aplica-lo a uma tipologia específica de ocupação. No entanto optamos por
equivaler trabalhador e operário, considerando a necessidade e a importância
de se pesquisar as tradições e a formação desse tipo de trabalhador quando
pensamos em Juiz de Fora, especialmente devido ao seu destaque fabril e
industrial nas primeiras décadas do século XX.

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para sistematizá-los, nas quais os processos ficaram alocados


em ordem cronológica de acordo com a data da notícia do crime.
A série por nós elencada foi a que englobava os processos
crime de homicídio, inseridos na categoria de crimes contra a
segurança da pessoa e da vida, referente ao período da República,
entre os anos de 1891 e 1942.
No entanto, para este trabalho analisamos os processos
abertos no período de 1900 a 1924, por entendermos esse período
como de grande importância na organização do trabalho livre
na cidade. Assim, foram examinados cerca de 400 processos,
levando-se em consideração os dados contidos na denúncia e os
depoimentos do réu e das testemunhas. Desse conjunto de 400,
foram selecionados 26, por nos revelarem práticas culturais no
tempo livre e de lazer dos trabalhadores urbanos e rurais, e que,
de alguma forma, se tornaram cenário trágico com a ocorrência
de um crime contra a vida.
Dessa maneira, foi possível perceber que apenas 6,5% do
total dos processos analisados neste período foram abertos
por crimes de homicídio cometidos nos momentos de lazer e
divertimento.
Embora esse seja um percentual pequeno de ocorrências,
entendemos que é de extrema importância a possibilidade de
identificá-las, uma vez que são escassas as fontes de pesquisa
que contribuem para uma história do lazer dos trabalhadores,
devido à falta de registros documentais produzidos pelos mesmos
ou que se remetam a eles.
A justificativa para a escolha da referida série foi pensar que,
embora o crime cometido possuísse um grau de importância
elevado, se deixássemos o crime cometido em um segundo
plano poderíamos identificar a situação em que o mesmo ocorreu,
deparando-nos com uma situação de tempo livre ou lazer que
possibilitaria a identificação de uma parte do cotidiano das
pessoas envolvidas.
Os dados coletados se remontam aos processos crime
de homicídio que ocorriam devido a desentendimentos entre
desafetos e conflitos. A investigação ocorrida nos processos crime

136
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possibilitou mostrar mais que os delitos. A leitura ampliada desses


processos que foram selecionados permitiu identificar fragmentos
dos movimentos urbanos e rurais dos conflitos ocorridos na cidade
de Juiz de Fora e também os momentos de lazer e de divertimento
dos trabalhadores nesses ambientes.

Divertimentos dos trabalhadores em Juiz de Fora

Para pensarmos nos divertimentos dos trabalhadores em Juiz


de Fora, torna-se necessário pensarmos: o que seria o tempo
livre? Numa tentativa de compreensão desse “tempo”, dialogamos
com Theodor Adorno (1995), em seu livro Palavras e sinais. Ao
tentar conceituar a expressão tempo livre, o autor baseia-se na
“diferença específica que o distingue do tempo não livre, que é
preenchido pelo trabalho e, poderíamos acrescentar, na verdade,
determinado desde fora” (ADORNO, 1995, p. 70). Além disso,
Adorno afirma que o tempo livre dependerá da situação geral
das sociedades. Por isso, ele pode se apresentar de diferentes
formas, conforme a passagem dos tempos e de acordo com os
hábitos de cada comunidade.
Em seu ensaio Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo
industrial, Edward P. Thompson (1998) diz que, no povo inglês
do período pré-industrial, o tempo era marcado conforme os
processos familiares, os modos de vida, os ciclos de trabalhos
e da vida doméstica. Nota-se, então, que houve uma evolução
na medição de intervalos de tempo, chegando ao ponto de que
o relógio nas sociedades industriais se torna necessário para
a contagem do tempo de trabalho. Com o desenvolvimento do
capitalismo, da industrialização e dos modos de vida urbano, o
tempo contabilizado pelo relógio permitiu uma organização mais
racional, mecânica e rígida do trabalho e da existência humana,
cujas dimensões da vida cotidiana passaram a ser divididas,
contadas e regulamentadas.
Essa nova organização do tempo permitiu que a diferenciação
dos tempos sociais ocorresse. O tempo sem trabalho passava a
ser entendido mais como um tempo de repouso do que de lazer.

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Surgia, também, como um tempo voltado ao cumprimento ritual.


Assim, a religião, as festas, o divertimento e a restauração das
forças de trabalho continuavam profundamente relacionados. O
trabalho e o lazer permaneciam intimamente ligados e qualquer
alteração de um afetaria diretamente o outro (CORBIN, 2001).
Dessa maneira, compartilhando das ideias de Thompson
(1998) e Corbin (2001), bem como de Norbert Elias (1985), em
seu ensaio O lazer no espectro do tempo livre, compreendemos
que todas as atividades de lazer são atividades de tempo livre,
mas nem todas as atividades de tempo livre são atividades de
lazer. Elias ainda (1985) destaca que:

[...] as características especiais das atividades de lazer só podem


ser compreendidas se forem consideradas não apenas em relação
ao trabalho profissional, mas, também, em relação às várias
atividades de não lazer, no quadro de tempo livre. Desta maneira,
o espectro do tempo livre contribui para dar maior precisão ao
problema do lazer. (ELIAS, 1985, p. 54).

Portanto, o tempo livre está para além das atividades de


lazer, englobando também as atividades de rotina, tais como os
cuidados pessoais, o tempo para o cuidado com a casa e com
os familiares e o tempo para o trabalho pessoal.
No entanto, aqui, privilegiaremos as práticas voltadas ao lazer
nesse tempo livre, na tentativa de refletir sobre essas práticas que
são concebidas em contraposição ao tempo de trabalho.
No dia onze de abril de 1903, um sábado de Aleluia, por volta
das oito horas da manhã, o lavrador Geraldo Laurindo da Silva,
de trinta e dois anos, morador do distrito do Rosário3, estava no
arraial de São Francisco de Paula, que se encontrava em festa
por comemoração da Semana Santa (AHJF, 1903). Participando
de uma banca de jogo que acontecia nas imediações do botequim

3
Tanto o distrito do Rosário quanto o arraial de São Francisco de Paulo eram
pertencentes a Juiz de Fora e compunham sua zona rural. (ESTEVES; LAGE,
1915).

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de Pascoal Petresi, Geraldo se divertia com o jogo jaburu4 em


companhia de aproximadamente trinta pessoas, entre as quais,
“Martiniano de tal”, que era o banqueiro desta mesa de jogos.
Aconteceu que, de repente, um dos jogadores reclamou por certa
quantia de dinheiro que ele alegava ter ganhado; não concordando
com a alegação do jogador, Martiniano o esbofeteou. Geraldo
e João Sabino reprovaram a reação agressiva de Martiniano
e, por isso, viraram a mesa de jogo. Martiniano, enfurecido,
perseguiu Geraldo e tentou agredi-lo com uma navalha, mas,
não conseguindo, atirou-se em luta corporal com o mesmo.
Numa atitude de tentar separar o conflito que ali se instalou,
João Sabino, com um cacete, deu uma bordoada na cabeça de
Martiniano. Nesse mesmo momento, ouviu-se um estampido de
arma de fogo; era Cezarino Gomes de Oliveira, que puxara o
gatilho de sua garrucha e atingira a Geraldo, que então caiu por
terra abraçado em Martiniano. Geraldo veio a falecer cerca de
trinta dias depois, pelo agravo dos ferimentos causados pelo tiro.
Durante esse processo crime, foram ouvidas nove
testemunhas, muitas delas residentes no arraial de São
Francisco de Paula e que estavam no festejo daquele dia. Todas
as testemunhas apresentaram versões próximas da denúncia,
no entanto nenhuma delas pronunciou que estava na mesa de
jogo junto aos envolvidos no delito, apenas que estavam nas
proximidades da jogatina ou que haviam ouvido falar sobre o
acontecimento por parte de um “fulano de tal”.
Quando analisamos os processos crime elegidos para este
trabalho, percebemos que aproximadamente 30% deles são

4
Conforme relato da vítima Geraldo Laurindo da Silva, no momento em que
a mesa foi virada, tanto o dinheiro quanto a roleta caíram no chão. O que
permite inferir que este parecia ser um jogo de aposta em que se utilizava
roleta para designar o ganhador. (AHJF, Série 24, cx 41, 11 abr. 1903, p. 08).
Conforme o Dicionário online Michaelis, em um de seus significados, “jaburu”
seria: “3. Espécie de roleta, com figuras de animais ao invés de números”.
DICIONÁRIO MICHAELIS. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/
moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=jaburu>
Acesso em: 20 maio 2015.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 129-148, jul./dez. 2017

relativos à temática “jogos”, incluindo os jogos de azar e jogos


esportivos, como é o caso do jogo de malha que aparece em
uma ocorrência. Além do jogo chamado jaburu, também há a
ocorrência do jogo chamado buzio ou busio e do jogo truc ou
truco e douradinha.
Conforme Eloísa Oliveira e Vanderci Aguilera (2007) e ainda
Ana Paula Puzzinato e Vanderci Aguilera (2006), ao estudarem a
influência do africanismo na geolinguística e lexicografia brasileira,
a palavra buzio ou busio varia de buzo, que deriva da lexicografia
africana e significa jogo popular que utiliza cascas de laranja,
pequenas conchas ou grãos de milho, ao invés de dados. Isso
nos leva a crer que tal prática provavelmente foi inserida na região
através da cultura dos escravos que trabalhavam nas fazendas
e permaneceu como prática entre os populares.
Já o truco é um jogo de cartas que tem sua origem na
Inglaterra no século XVII. Uma de suas variações é a douradinha,
que se caracteriza quando há mais de seis jogadores. Conforme
Tizuco Kishimoto (1994), o jogo se expande, pelos séculos
seguintes, à Idade Média, associado ao dinheiro, à novidade, ao
não sério, possibilitando que a atividade lúdica se desenvolvesse
na vida social das comunidades à margem da religião oficial
que abominava essas práticas. Segundo Kishimoto (1994), a
Encyclopédie, de Diderot e D’Alembert, mostra que, no século
XVII, o jogo aparece como uma ocupação fútil, divertimento,
acaso, perda de fortuna e honra, sagacidade, uma espécie de
convenção para se usar a habilidade, que diverte pela esperança
do ganho (KISHIMOTO, 1994, p. 118).
A situação do jogo no Brasil durante a década de 1920 é
bem representada por Nicolau Sevcenko (1992), que, em seu
trabalho Orfeu extático na metrópole, indica a concepção do jogo
na sociedade paulista durante aquele período. Para ele, o jogo
poderia ser compreendido como fonte de excitação e possuía a
característica de ser uma prática de mais fácil acesso, amplamente
difundido nos vários setores da sociedade e por muitas vezes
divulgado nos periódicos em tom dúbio, de forma acriminosa e
também produzindo “efeitos de maneira horrível” (p. 86). Várias

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vezes o jogo adquiria característica de “virtude e como fato da


vida desde que praticado com obstinada convicção e ilimitada
ambição; fosse no mercado internacional, doméstico, no urbano,
na política, na roleta ou no esporte.” (SEVCENKO, 1992, p. 87).
Já alertava Walter Benjamin (1995) sobre o perigo
inconsciente da paixão pelo jogo:

O jogo, como qualquer outra paixão, dá a conhecer seu rosto


como a faísca que salta, no âmbito do corpo, de um centro a outro,
mobilizando ora este, ora aquele órgão, e reunindo e confinando
nele a existência inteira. [...] O jogo tem devotos apaixonados, que
o amam por ele mesmo e de modo algum pelo que ele dá. E mesmo
que o jogo lhes tire tudo, procuram a culpa em si mesmos. Dizem
então: – Joguei mal. (BENJAMIN, 1995, p. 264-265).

Dos processos elegidos relativos à temática “jogos”, apenas


uma ocorrência foi constatada na área urbana da cidade, no bairro
Pito Aceso, região hoje dos bairros Manoel Honório e Bonfim. Esta
ocorrência pode ser classificada em duas temáticas de lazer, a
dos jogos e a dos botequins existentes na cidade, e, devido a sua
riqueza de detalhes, será analisada a seguir.
Ao localizarmos os delitos que ocorreram em botequins, cerca
de 27% perfazem o total de processos de homicídio selecionados
para essa análise. Vejamos a ocorrência comentada acima através
do relato das testemunhas.
Na noite de sábado do dia dezessete de novembro de
1923, Veríssimo Venâncio da Silva, um operário de trinta e dois
anos de idade, morador no bairro Manoel Honório, vizinho do
botequim de Anacleto Eugênio Vidal, encontrava-se dentro deste
comércio com amigos que jogavam truco e douradinha como
forma de passar o tempo, quando, por volta de dez e meia da
noite, apareceu no botequim Francisco de Paula, um soldado do
10º Regimento de Infantaria. Ao interromper o jogo, o soldado
Francisco, acompanhado de um colega do regimento, dirigiu-se
de forma agressiva aos amigos que se divertiam, soltando um
“para com essa merda, ahi”. Sua intenção era que se parasse

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com o jogo para iniciar um outro, o jogo de víspora. Veríssimo,


percebendo que tal situação poderia terminar mal, uma vez que
o soldado tinha fama de valentão e desordeiro, se retirou para
sua casa, quando, de repente, ouviu o som de um estampido.
Não querendo voltar para o botequim com receio de que alguma
confusão tivesse ocorrido, somente no dia seguinte ele passou a
saber que Anacleto havia atirado em Francisco, assassinando-o
(AHJF, 1923).
A testemunha Augusto Estopa, um verdureiro de sessenta e
seis anos, também morador do Manoel Honório e que participava
do jogo no botequim, ainda revelou à polícia que Anacleto, o
dono do botequim, disse ao soldado Francisco que, além de
não haver víspora em seu estabelecimento, ele não consentia
jogo em sua casa, e apenas estavam amigos jogando uma
partida de douradinha, mas sem apostas em dinheiro. Mesmo
assim Francisco intimou a Anacleto que parasse o jogo, quando
seu colega soldado tentou retirá-lo do botequim. No entanto,
Francisco, possuindo um bastão de pau nas mãos, quebrou o
lampião do botequim e deu outra bordoada em Anacleto, que não
se machucou, pois entrou para o interior da casa onde morava, e
de onde voltou armado. Francisco chegou a ser contido por quatro
homens, mas conseguiu se soltar e desfechar nova bordoada
em Anacleto, que lhe acertou com um tiro. Francisco faleceu
momentos depois.
Outro relato interessante nesse mesmo processo é o do
colega de Francisco, João Paulo da Silva, que era praça do 10º
Regimento de Infantaria e indicou que eles retornavam de um
baile que havia ocorrido na região do Pito Acesso. Ao entrarem
no botequim para comprar um maço de cigarros, João Paulo
recomendou a Francisco que não bebesse mais, pois ele já
havia bebido e a rua estava escorregadia devido à chuva que
havia caído. A partir daí ocorreu o que as outras testemunhas já
haviam narrado.
Alguns elementos podem ser analisados nesse processo
crime. O primeiro deles é a forma agressiva com que o soldado
interrompe o divertimento, faz o dono do botequim tomar

142
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providencias para colocar ordem na situação, chegando ao


extremo de utilizar arma de fogo na questão. Se, de certo
modo, o dono do botequim agiu para manter a honra em seu
estabelecimento comercial como forma valorativa de manter seu
lugar no mundo social, ao mesmo tempo, podemos perceber o
uso indiscriminado da arma de fogo.
Uma questão que nos chamou atenção foi a presença
apenas de homens nesse processo de 1923 e no processo citado
anteriormente, de 1903. Neles, tanto os réus quanto as vítimas e
testemunhas envolvidas são homens, o que nos permite pressupor
que tanto os locais em que ocorriam os jogos, quanto os botequins
e tavernas, eram locais predominantemente frequentados por
homens, mesmo no momento de compras dos gêneros de
primeiras necessidades nas vendas e nos botequins. Os espaços
dos botequins e das vendas funcionariam como espaços de trocas
de experiências sociais e econômicas, possibilitando também a
sociabilidade masculina.
Em sua maioria, os desentendimentos aconteciam nesses
locais devido à intolerância de gestos ou falas agressivas e
grosseiros entre os frequentadores, ou mesmo de acertos de
conta que pretendiam humilhar a honra da vítima.
Outro elemento comum nos botequins, nas vendas e nos
restaurantes era a bebida. Quer fosse a cerveja produzida nas
inúmeras fábricas que existiam na cidade ou a cachaça, elas eram
constantemente atribuídas ao réu ou à vítima dos delitos. Inúmeras
vezes, as testemunhas qualificavam o réu como possuindo o
hábito de embriagar-se, enquanto forma de desqualificação de
sua honra e seu caráter. No entanto, cabe destacar que a bebida
também era utilizada para interação social dentro dessas casas
comerciais, permitindo que houvesse vínculos sociais entre os
frequentadores desses locais (CARNEIRO, 2008).
Já em uma noite de julho no ano de 1917, na Fazenda
Santa Clara, distrito de Vargem Grande (atual cidade de Belmiro
Braga), pertencente à cidade de Juiz de Fora, Benedito Glória,
com cinquenta anos de idade, nascido na Bahia, estava com
outros camaradas, festejando com danças o término da colheita

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do café no terreiro desta fazenda, onde também residia. Em certo


momento da noite, ouviu-se um tiro que partiu de um rancho ali
próximo e feriu a Pedro Domingos e sua filhinha, Julia Carolina
de Jesus, vindo a falecer Pedro. De acordo com os relatos das
testemunhas, embora Paulino Marciano Januário da Silva tenha
atirado em Pedro, não havia inimizade entre eles, e o ocorrido
pareceu ter sido um acidente (AHJF, 1917).
Através desse relato, podemos identificar uma situação festiva
em ambiente rural que exemplifica uma conjuntura recorrente na
vida campesina, pois, nos processos elegidos para esta pesquisa,
apenas uma ocorrência é de um baile em ambiente urbano.
O processo acima descrito nos permite identificar uma
organização e uma sistematização na vida rural, desde a plantação
até a colheita. Nesse sentido, a festa é um ato coletivo que implica
uma determinada organização em sua produção. Preparada,
planejada e montada em conjunto entre o dono das terras e
seus colonos, ela permitia o estabelecimento de sociabilidades
na vida cotidiana dos envolvidos. Nesse ambiente, ela permitia
um afastamento das atividades cotidianas e a produção de uma
identidade.

Algumas considerações

A utilização dos processos judiciais como fontes de pesquisa


indica uma importante possibilidade, amplitude e diversidade de
temáticas e informações a serem pesquisadas.
Podemos perceber, entre os exemplos aqui mencionados,
que, por deslizes, intolerância e mesmo questões de honra e
respeito, os crimes eram cometidos em momentos de lazer e de
tempo livre dos trabalhadores. Muitas das vezes, os momentos
de lazer eram esperados pelos criminosos para realizar o crime,
principalmente quando havia inimizade entre os envolvidos.
Importante atentar também para a influência de práticas
afrodescendentes, como é o caso do jogo búzio, relatado em vários

144
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 129-148, jul./dez. 2017

processos quando havia a questão do jogo no envolvimento do


ato criminoso. É possível que, nos primeiros anos do Novecentos,
a prática desse jogo e de outros com influência africana fosse
presente nessa localidade, pois a presença de escravos e libertos
se fazia visível mesmo após a abolição. No entanto, deve-se
chamar atenção para o fato de que as práticas possam ter sofrido
modificações com o passar dos anos, permitindo, contudo, que
as raízes da cultura africana permanecessem, o que nos faz
refletir sobre a influência de uma cultura sobre outra e sobre a
apropriação das práticas. O mesmo deve ser pensado em relação
ao imigrante europeu que também se instalou na região.
Diferentemente do que se pode inferir sobre uma possível
concentração de possibilidades de divertimento na região urbana
da cidade, também é significante a identificação da experiência de
atividades de lazer no mundo rural, fato que pode ser observado
nos distritos da cidade relatados nos processos. Dessa maneira,
através dos processos crime, é possível identificar alguns
costumes na região rural da cidade, localidade aquela em que
esses costumes muitas vezes são difíceis de serem estudados
por escassez de registros dos acontecimentos, situação diferente
dos centros urbanos, que possuem uma maior quantidade de
fontes de pesquisa a serem utilizadas.
Mesmo que a causa dos processos jurídicos tivesse um
grau de importância devido ao fato de se tratar de um crime
de consequências máximas, através dos relatos desses
crimes também é possível notar a ocorrência de momentos de
sociabilidades entre os envolvidos, revelando que a população
se permitia experimentar os divertimentos nos tempos livres
do trabalho, ainda que estes divertimentos tivessem alguma
aproximação com o trabalho, como é o caso dos festejos
relacionados à colheita.

145
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Recebido em agosto de 2016.


Aprovado em maio de 2017.

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http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-6

ESCRAVOS SENHORES DE ESCRAVOS.


PERNAMBUCO, SÉCULOS XVIII E XIX

Robson Pedrosa Costa*

RESUMO: Entre os séculos XVIII e XIX, a Ordem Beneditina


do Brasil construiu um modelo de gestão que permitiu manter
a estabilidade quantitativa de seus escravos até 1871, quando
libertaram todos os seus cativos. Um dos aspectos que
caracterizaram este modelo foi o estímulo dado aos escravos a
possuírem escravos, que os utilizavam em suas roças (concedidas
pela Ordem) ou na troca pela própria alforria, através do sistema de
“substituição”. O poder desses escravos-senhores era repassado
por meio de herança, como no caso de Micaela, que deixou três
escravos para os seus filhos. Outros acumularam grande poder,
como Nicolau, possuidor de nove escravos, além de outros bens.
Ao todo, encontramos 21 escravos-senhores na documentação
analisada. Sem dúvida, esta é uma face da escravidão ainda
pouco estudada pela historiografia e este estudo vem a contribuir
para trazer à luz novos olhares sobre a sociedade escravista.

PALAVRAS-CHAVE: Escravos senhores de escravos. Beneditinos.


Pernambuco.

* Professor do Instituto Federal de Pernambuco (Campus Recife), Doutor


em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Líder do Grupo de
Pesquisa História, Cultura e Trabalho, Linha de Pesquisa Cultura, Trabalho
e Controle Social nos Oitocentos. Email: [email protected]. Este artigo
é parte do terceiro capítulo de minha tese de doutorado intitulada “A Ordem
de São Bento e os escravos do Santo: Pernambuco, séculos XVIII e XIX”.
Agradeço à Facepe pela concessão de bolsa de doutorado e aos meus
orientadores: Marcus J. M. de Carvalho e Suely Creusa Cordeiro de Almeida.
Agradeço ainda ao irmão João Cassiano dos Santos, por sua dedicação na
preservação de valiosa documentação disponível no Arquivo do Mosteiro de
Olinda, além de sua gentileza e disposição durante minha pesquisa.

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ABSTRACT: Between the eighteenth and nineteenth centuries,


the Benedictine Order of Brazil built a management model that
was able to keep the quantitative stability of their slaves until
1871, when they released all its captives. One of the aspects
that had characterized this model was the stimulus provided to
the slaves to possess slaves, who used them in their gardens
(granted by the Order) or exchange by the liberation through the
system “replacement”. The power of these slaveholder slaves was
transferred through inheritance, as in the case of Micaela, who left
three slaves to their children. Others accumulated great power, like
Nicholas, owner of nine slaves and other goods. Overall, we found
21 slaveholder slavers in the studied documentation. Undoubtedly,
this is a side of slavery that has not been sufficiently researched
by historiography and this study is to contribute to bring out new
perspectives on the slave society.

KEYWORDS: Slaveholder slaves. Benedictines. Pernambuco.

Introdução

Entre os séculos XVIII e XIX, a Ordem Beneditina do Brasil


construiu um modelo peculiar de gestão escravista,1 conseguindo

1
Este conceito foi elaborado a partir do estudo do historiador Rafael de
Bivar Marquese (2004), que discutiu as “ideias sobre a administração dos
escravos elaboradas nas Américas” entre 1660 e 1860. O autor explorou
os escritos deixados pelos letrados coloniais e também produzidos por
senhores que visavam prescrever sobre as melhores formas de governar
os escravos. Apesar de utilizarmos o termo modelo, os beneditinos não se
preocuparam com a produção de um escrito (código de conduta, manual
etc.) a ser compartilhado pelo público geral, como o fizeram religiosos como
Antonil, Jorge Benci, Manuel Ribeiro Rocha, Antônio Vieira, entre outros, que
visavam orientar os senhores acerca do melhor tratamento a ser dispensado
aos cativos. Ao mesmo tempo, consideramos que a política de gestão
escravista beneditina reuniu um conjunto de regras próprias voltadas para o
bom gerenciamento dos estabelecimentos da Ordem de São Bento em todo
o Brasil, servindo de modelo para os diversos mosteiros do país.

150
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manter a estabilidade do número de escravos até 1871, quando


decidiu libertar todos os seus escravos.2 Este modelo teria como
princípios básicos: o estímulo à formação de famílias (pautadas
no casamento cristão e na procriação de vários filhos); o incentivo
ao roçado próprio (individual ou familiar); a “moralização dos
costumes” (através de preceitos religiosos); a autonomia de cada
propriedade rural (geralmente sob a administração de um feitor-
escravo, sem a presença diária de um monge-administrador); e a
miragem da liberdade, por meio de um complexo e bem planejado
sistema de alforria. Tudo isso seguindo procedimentos minúsculos
de conduta impostos aos seus membros, na tentativa de evitar o
assenhoramento de um patrimônio que, em teoria, não pertencia
aos monges, mas, sim, ao próprio patriarca São Bento. Sendo
assim, os beneditinos seriam apenas administradores de todos os
bens que pertenciam na verdade ao santo, incluindo os escravos.
Outro ponto importante refere-se ao conjunto de regras
construído no decorrer dos séculos XVIII e XIX para a concessão
da alforria. Ao adentrar o cotidiano desta prática, foram encontrados
muitos aspectos comuns a outras categorias senhoriais. Porém,
o que mais chamou a atenção foram as peculiaridades, que
em vários pontos contribuem para comprovar a tese sobre a
peculiaridade do modelo de gestão escravista beneditino. Entre
essas peculiaridades, destacaremos neste texto o incentivo
concedido aos escravos a possuírem escravos.
Antes de adentrar o tema, algumas explicações se fazem
necessárias. A Ordem Beneditina do Brasil possuía diversos
mosteiros espalhados por todo país. Neste estudo, evidenciaremos
a análise dos dados referentes ao Mosteiro de Olinda, localizado
na província de Pernambuco, nordeste do Brasil. Os monges
desta província administravam inúmeros bens, entre eles quatro

2
Um dia antes (28 de setembro), foi decretada pelo Governo Imperial a Lei
do Ventre Livre, que criou uma série de procedimentos para a libertação
dos escravos do país de forma gradual e segura. Neste contexto, as
Ordens Religiosas foram pressionadas pelo Governo a tomarem medidas
semelhantes, já que recebiam benefícios do Estado. Os beneditinos foram
os únicos que libertaram todos os seus cativos nesta data.

151
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

propriedades rurais (a fazenda Jaguaribe e os engenhos Goitá,


São Bernardo e Mussurepe) e centenas de escravos. No final do
século XVIII, o número de cativos chegava a 408, mantendo-se
estável até 1866, quando os monges possuíam 350 escravos (a
partir desta data, eles iniciaram um processo de libertações em
massa) (COSTA, 2013, p. 73-74).3 É importante destacar que,
devido aos mecanismos criados para estimular o crescimento
vegetativo da escravaria, raras vezes recorreram à compra de
novos cativos (COSTA, 2013, p. 69).
O referencial teórico-metodológico utilizado dialoga com
historiadores que se dedicaram a questões pertinentes às relações
entre senhores e escravos, numa perspectiva voltada para o que
E. P. Thompson chamou de história vista de baixo. Este autor,
que tanto influenciou os estudos sobre escravidão no Brasil,
chama a atenção para os discursos produzidos “de cima”, que
poderiam persuadir o historiador a tomar esta perspectiva como
única referência e levá-lo a conceber as camadas subalternas
como totalmente dependentes do mandonismo senhorial,
desconsiderando as estratégias de resistência dos dominados.
Dessa forma, o historiador acabaria colocando “a casa-grande”
no “ápice, e todas as linhas de comunicação” convergiriam “para
a sua sala de jantar, o escritório da propriedade ou os canis”
(THOMPSON, 1998, p. 29-30).
Thompson ajuda a lidar com a documentação produzida, ao
longo de dois séculos, por uma instituição que visava disciplinar e
vigiar por todos os meios aqueles sob sua tutela, destacando-se
os monges e os escravos. Ao nos depararmos com um discurso
produzido “de cima”, buscamos extrair as “vozes” que vinham
“de baixo”, fazendo com que se evidenciassem as tensões e os
conflitos vivenciados por seus sujeitos. Caso contrário, teríamos
incorporado o discurso escravista senhorial. Outros conceitos

3
A visível redução de escravos na segunda metade do século XIX explica-se
principalmente por duas razões: a diminuição progressiva do número de
monges responsáveis pela administração (de 28 no final do século XVIII para
apenas 4) e o aumento do número de alforrias a partir de 1850.

152
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e concepções produzidos por E. P. Thompson também foram


pertinentes a este estudo, como poderá ser percebido ao longo
do texto, considerando que sua influência, como dito antes, é
marcante sobre a produção historiográfica da escravidão; o que
nos levou a dialogar constantemente com suas ideias, mesmo
que de modo indireto.4
Apesar de tratarmos de um modelo construído por uma
instituição, não nos ateremos apenas ao seu discurso, pois
destacaremos também as ações e reações dos sujeitos envolvidos
no processo, trazendo à tona os embates produzidos no cotidiano
das relações escravistas. Na verdade, compreendemos que as
práticas do cotidiano contribuem para alterar as estruturas de
funcionamento das redes de “vigilância”, através dos modos de
proceder dos indivíduos e grupos, com suas “astúcias”, “táticas”,
formas “sub-reptícias” contra as imposições dos mecanismos
disciplinares da sociedade. Encaramos, assim, o cotidiano
como campo da “antidisciplina” (CERTEAU, 1994, p. 41-42), e
que os indivíduos – fossem eles monges ou escravos – tinham
consciência de suas possibilidades e limitações.5

Um escravo por si

Um dos juristas mais famosos do século XIX, Perdigão


Malheiros, escreveu um importante tratado sobre a escravidão no
Brasil, publicado em 1866, em que discutiu, entre outras coisas,
os direitos dos cativos. Segundo ele, baseando-se no Direito
Romano, “O escravo nada adquiria, nem adquire, para si; tudo
para o senhor [...]”. “Fosse, direitos reais, desmembrações da
propriedade, créditos, legados, herança, posse ainda que sem
sciencia e consentimento do senhor [...].” (MALHEIROS, 1866,
p. 50-51).

4
Sobre a influência de E. P. Thompson na historiografia brasileira, Cf.: Lara
(1995); Neder et al. (1998); Lara; Mendonça (2006); Marquese (2013).
5
Outros autores que fazem parte de meu referencial teórico-metodológico são:
Slenes (1997); Levi (1992); Revel (1998); Ginzburg (2006); Davis (1987);
Ginzburg (1989).

153
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

“Por exceção”, continua o jurista, ao escravo era permitido o


pecúlio, que se referia “a tudo aquilo que ao escravo era permitido,
de consentimento expresso ou tácito do senhor, administrar,
usufruir e ganhar, ainda que sobre parte do patrimônio do próprio
senhor”. Mas, segundo Malheiros, nenhuma lei no Brasil garantia
ao cativo o direito ao pecúlio (situação esta modificada pela lei de
1871).6 O mesmo poderia ser dito a respeito da livre disposição
sobre qualquer bem, nem em “ato de última vontade, nem a
sucessão”. Contudo, apesar de não amparados por lei, caso o
senhor tolerasse tal pedido, “em vida ou causa mortis”, era um
fato que deveria ser respeitado (MALHEIROS, 1866, p. 52-53).
A historiografia vem apontando as diversas faces por trás
do costume da formação do pecúlio pelos escravos no Brasil,
principalmente no que se refere ao acúmulo de certa quantia
para se alcançar a liberdade. Vários estudos apontaram que a
maioria dos cativos que se alforriaram teve que pagar por suas
libertações. Para isso, era necessário que o próprio senhor
deixasse abertos certos espaços de subsistência, que garantissem
o acúmulo de bens por parte do escravo. O que a historiografia
ainda não explorou foi o alcance desta abertura no que diz respeito
ao acúmulo de posses que iam além do “simples” desejo de
manumissão.
Alguns escravos pertencentes aos beneditinos conseguiram
bens para si e para sua família, incluindo entre suas posses outros
escravos. Trataremos, a seguir, de três elementos constituintes
desta prática nas propriedades beneditinas: a troca de um escravo
por outro como pagamento da alforria; a transmissão de herança
de um cativo a outro; e os recursos que possibilitaram o acúmulo
de certo patrimônio dentro do cativeiro.
Apesar do grande número de estudos que se dedicaram à
prática da alforria, poucos evidenciaram uma categoria peculiar

6
A Lei de 28 de setembro de 1871, popularmente conhecida como Lei do
Ventre Livre ou Lei Rio Branco, reconheceu, segundo Chalhoub, “uma série
de direitos que os escravos haviam adquirido pelo costume e aceitação de
alguns objetivos das lutas dos negros” (CHALHOUB, 1990, p. 159-160).

154
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

de manumissão, onde um escravo utilizava como moeda de troca


outro cativo que o substituísse. Isso se deve ou à ausência destes
casos nas respectivas fontes pesquisadas ou ao número ínfimo
encontrado na documentação, representando uma porcentagem
muito diminuta, se comparada a outras formas de libertação.7
Devemos considerar ainda que, excluindo-se uns poucos
trabalhos referentes à manumissão, há uma grande lacuna
historiográfica acerca dos escravos como proprietários de outros
escravos. Existem algumas menções, mas não encontramos
nenhum estudo que tenha se aventurado nessa empreitada de
forma mais aprofundada. O que tem crescido é o número de
pesquisas que se dedicam aos libertos que conseguiram acumular
certa riqueza quando fora do cativeiro e a alguns que chegaram
a formar verdadeiras fortunas.
Muitos destes libertos possuíram escravos, mas, em sua
grande maioria, não ultrapassaram a posse de mais de seis
cativos. A exemplo, podemos citar o estudo de João José Reis,
que seguiu a trajetória do liberto Manoel Ricardo. Reis (2016,
p. 3) afirma que, de uma lista contendo 304 africanos libertos,
apenas 67 possuíam escravos, em sua maioria detentores de um
ou dois cativos. Já em seu estudo sobre Domingos Sodré, o autor
observou que o africano liberto possuiu apenas quatro escravos
ao mesmo tempo (REIS, 2008, p. 298).
Semelhantes resultados encontramos no estudo de Nelson
Oliveira (2010, p. 55), que analisou 37 inventários (24 de homens
livres e 13 de forros) do final do século XVIII. O pesquisador
encontrou apenas um liberto que possuía mais de seis escravos
e, entre os livres, somente quatro. Temos ainda a tese de
doutoramento de Valéria Gomes Costa (2013, p. 196) sobre os
africanos libertos do Recife no século XIX, constatando que,
de sua amostra, 56,6% eram possuidores de cativos, mas a
“maioria chegou a ter no máximo dois escravos, corroborando

7
Alguns exemplos de estudos clássicos e recentes que se dedicaram à questão
da alforria, mas não evidenciaram a prática da substituição, foram: Paiva
(1995); Mattoso (1976); Zero (2009); Lima (2010).

155
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

com a historiografia, que afirma o quanto era alto o custo dessa


propriedade”.
É importante afirmamos ainda que, mesmo considerando
outros estudos sobre a Ordem de São Bento e demais
associações religiosas, não encontramos referência a escravos
possuidores de escravos, com exceção do estudo de Vanessa
Ramos, que encontrou três casos entre suas fontes.8 Ao contrário
das pesquisas citadas, nossa documentação traz importantes
subsídios para investigarmos com profundidade os escravos-
senhores, como poderá ser constatado ao longo deste texto.
Entre 1793 e 1865, os monges beneditinos concederam
alforria para 85 escravos.9 O número maior de libertações ocorreu
no contexto de acirramento dos debates emancipacionistas
(1866-1870), quando alforriaram 119 cativos. Entre as alforrias
onerosas10 da primeira fase (1793-1865), 18 escravos ofereceram
em troca de sua liberdade outro escravo, caracterizando a
prática conhecida como “substituição”. Ou como os beneditinos
intitulavam: “um escravo por si”. Esta estratégia utilizada pelos
cativos representou 23,4% (de 77 casos) do total de libertações
onerosas. Se comparados a outros estudos, o numero de casos
que apresentam esta prática entre os cativos de São Bento é

8
Dois estudos sobre a Ordem de São Bento que tiveram como objeto de
pesquisa os seus escravos não encontraram tal peculiaridade: Piratininga
Júnior (1991); Pacheco (2010). Outros estudos que tocam na questão da
posse de cativos pela Ordem Beneditina e Carmelita, mas sem evidenciar
aquela prática: Tavares (2007); Souza (2007); Souza (2011); Molina (2006);
Araújo (2007).
9
Os escravos precisavam seguir um procedimento minucioso para alcançar
a liberdade. Com a permissão do Abade, faziam um pedido por escrito e
encaminhavam ao Conselho Beneditino. Teoricamente, o pedido só poderia
ser votado com a presença do Abade Geral, quando em visita ao mosteiro.
Decidido através de “favas brancas ou pretas”, decidia-se pela alforria ou
não. Encontramos apenas dois cativos que tiveram seus pedidos reprovados.
Apesar do rigor do processo, a grande maioria dos escravos teve que pagar
por sua liberdade.
10
Ou seja, aquelas em que o cativo dava algo em troca por sua liberdade
(dinheiro, tempo de serviço ou substituição).

156
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surpreendente, já que alcança uma porcentagem bastante elevada


no cômputo das alforrias onerosas.
Stuart Schwartz (2001, p. 205-206), num montante de 1.650
cartas de alforria, encontrou apenas 18 casos, representando 3%.
Peter Eisenberg (1989, p. 282-283), analisando 2.347 cartas de
liberdade, encontrou apenas 2 casos. Márcio Soares (2006, p.
155) encontrou, nas mais de 600 alforrias analisadas, apenas 8
casos de substituição. Kátia Almeida (2006, p. 51-51), 33 destes
casos, representando apenas 4,4% das alforrias pagas de
sua amostra. Tatiana Lima (2004, p. 76), entre as 456 alforrias
analisadas, apenas 2 escravos utilizaram a substituição como
forma de pagamento. Vanessa Gomes Ramos (2007, p. 34)
encontrou, no conjunto de 370 registros de liberdade, apenas
três casos de troca.
O estudo que dedicou mais atenção a esta prática foi
produzido por Mieko Nishida (1993, p. 256), referente às alforrias
em Salvador, entre 1808 e 1888. Num universo de 3.516 cartas de
liberdade, além de outras fontes (testamentos de forros e registros
de compra e venda), a autora encontrou 35 casos de substituição.
Dado o grande número de alforrias que analisou, esta categoria
representou apenas 1% de todas as manumissões e 2,63% das
autocompras (pagas).
Como visto, mesmo em estudos em que o número de
substituições chegou a 33 (ALMEIDA, 2006) ou 35 casos
(NISHIDA, 1993), estes tiveram uma representação diminuta no
cômputo geral dos dados utilizados pelos respectivos autores.
Chegaram a representar, respectivamente, 4,4% e 2,63% das
manumissões pagas.
Logo, fica evidente que o modelo de gestão escravista
beneditino previa este mecanismo de substituição com uma
importante ferramenta para a manutenção da estabilidade de
sua escravaria. Isso pode ser explicado pelo fato de que a
aquisição de um novo escravo vindo do mercado (considerado
“estrangeiro”, desconhecido e não aculturado), poderia trazer
certos inconvenientes, como possíveis conflitos internos e a
necessidade de prepará-los para o trabalho no campo ou em
alguma especialidade, como destacou Mary Karasch (2000, p. 448).

157
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Neste sentido, os beneditinos investiam em cativos que


demonstrassem habilidades artesanais, como pedreiros, carpinas,
oleiros etc., além de atividades mais artísticas, como música, o
que demonstra a preocupação destes monges com o trabalho
especializado. Considerando que a maioria dos escravos em
posse de cativos já residia nas propriedades dos beneditinos há
certo tempo, trabalhando ao lado de seus senhores, isso pode ter
contribuído para que aprendessem o ofício de seus proprietários,
além de passarem a compreender melhor as peculiaridades de
ser um “escravo do Santo”.
Um dado interessante a ser destacado é que, após 1850,
a prática da substituição se tornou rara entre os cativos de
São Bento. Depois de 1849, só encontramos mais uma alforria
utilizando a substituição como pagamento, e remonta a 1869,
não contabilizado entre os 18 casos mencionados (referentes à
primeira fase de nosso estudo: 1793-1865). Logo, a concentração
das substituições até a data do fim do tráfico de escravos nos faz
pensar em algumas questões.
Primeiramente, como apontou Maria Inês Oliveira Cortez
(1988, p. 41), entre o final do século XVIII e primeiras décadas
do século XIX, o “incremento do tráfico de escravos” possibilitou
aos proprietários a aquisição de cativos a um preço menor,
devido ao aumento da oferta no mercado durante este período.
Segundo a autora, isso explicaria o alto índice de posses de
escravos por libertos neste contexto. O mesmo pode ser pensado
para os escravos proprietários que perceberam a importância de
possuir cativos a seu serviço. Mas, diferentemente dos libertos,
muitos escravos utilizavam suas posses para juntarem a quantia
necessária para libertar a si mesmos ou um parente, ou utilizá-los
diretamente como moeda de troca.
Todavia, após o fim do tráfico negreiro, o acesso a mão-de-
obra não possuía a mesma facilidade que em tempos anteriores.
As áreas dominadas pelas grandes lavouras começavam a
drenar para suas fazendas um número cada vez maior de cativos
pertencentes aos pequenos proprietários, inclusive de outras
regiões (MATTOS, 1998, p. 33-34). A posse de escravos começou

158
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

a se tornar um privilégio de poucos. E os escravos senhores de


escravos perceberam as mudanças.
Isso não quer dizer que estes cativos deixaram de ser
senhores, mas perceberam, possivelmente, que seria mais
lucrativo permanecerem com suas posses do que realizarem uma
troca pela liberdade. Com a diminuição do número de cativos
decorrente do fim do tráfico, as possibilidades de juntar mais
dinheiro com o aluguel ou na realização de outras atividades
remuneradas se ampliaram (através de seu trabalho e/ou de
seu escravo), levando os cativos beneditinos a dar preferência
ao pagamento da alforria em dinheiro. Mas isso é apenas uma
hipótese.
Outros autores também perceberam essa concentração de
substituições no período anterior ao término do “infame comércio”.
Kátia Almeida constatou que as 33 substituições que analisou se
referiam ao período anterior a 1850, “período de tráfico aberto,
quando os cativos tiveram mais oportunidades de adquirir outro
cativo, sobretudo aqueles de origem africana recém-chegados,
que custavam menos do que um escravo especializado ou já
ladino”. Desse montante, 12 eram de origem africana, 7 nascidos
no Brasil e 14 não identificados (ALMEIDA, 2006, p. 57).
Alguns autores também evidenciaram a predominância de
africanos entre os cativos utilizados nas substituições. Segundo
Márcio Soares (2006, p. 155, nota 40), as 8 trocas que analisou
tinham origem africana. Já no estudo de Mieko Nishida (1993, p.
256), dos 35 forros nesta categoria, 24 haviam nascido na África,
contra apenas 3 do Brasil. Outros 8 não tiveram sua origem
revelada. No nosso estudo, dos 18 casos de substituições, apenas
2 revelam a origem de suas posses, ambos de “nação” angola. Os
demais não revelam origem ou cor, com exceção de “um negro
para todo serviço”, que pode indicar não necessariamente a cor,
mas sim, a condição escrava.11
Além das questões até aqui apontadas, uma nos intrigou

11
Para uma discussão sobre as classificações raciais no Brasil, ver: Santos
(2005, p. 115-137).

159
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ainda mais, ao nos depararmos com esta prática como parte


dos mecanismos de manumissão dos escravos de São Bento.
A substituição seria uma contrapartida dos próprios escravos ou
uma exigência dos beneditinos para evitar o esvaziamento de
suas senzalas? Sem dúvida alguma esta prática representou
um dos elementos constituintes do modelo de gestão escravista
construído pela Ordem de São Bento de Pernambuco. Isso
porque, apesar do número de casos ser inferior ao pagamento em
dinheiro, os escravos tinham a opção, estimulada pelo Conselho,
em trocar sua liberdade através da substituição.
Dos 18 pedidos analisados, 5 aparecem claramente como
exigência dos monges para a respectiva permuta.12 As expressões
que demonstram tais iniciativas trazem a seguinte redação:
“mediante o preço em que fosse avaliada ou em troca de outro
escravo de igual valor”13; “500 mil reis ou um escravo a contendo”;
“o Conselho determinou que fosse dado uma escrava a nosso
contendo ou o seu valor”.14
Contudo, foram os escravos que na maioria das vezes
propuseram a substituição: 13 casos. As expressões que
simbolizam tais pedidos podem ser assim exemplificadas: “dando
um escravo por si”; “oferecendo em seu lugar”; “oferecendo por
si”. Outras duas expressões bem exemplificam a iniciativa dos
escravos. Em 1798, André Ribeiro, pedindo a liberdade para sua
filha, ofereceu uma escrava Angola como pagamento. O Conselho
“deveria julgar a utilidade ou inutilidade desta troca, o que foi
aprovado”.15 Feliciana do Espírito Santo, em 1816, oferecia ao

12
A documentação referente às alforrias se encontra transcrita nos Manuscritos
do Arquivo do Mosteiro de São Bento de Olinda, publicados na Revista do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, v. XLII, 1948-
1949 (1952). São atas de reuniões do Conselho Beneditino, formado pelo
Abade e demais monges do Mosteiro, entre 1793 e 1875. Para facilitar a
referência a esta fonte, indicaremos na nota de rodapé a data e a página
localizada na referida revista, precedida do termo “Manuscritos”.
13
Manuscritos (25 de setembro de 1845, p. 180-181).
14
Manuscritos (28 de setembro de 1798, p. 138).
15
Manuscritos (22 de agosto de 1798, p. 242).

160
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

Mosteiro (em troca de seu filho) “um moleque de nome João de


nação Angola”. O Conselho “resolveu que desse o escravo que
oferecia”.16
Não é possível responder quando e como se iniciou esta
prática entre as manumissões beneditinas. O certo é que parecia
ser um bom negócio para os dois lados. Para os monges, evitar os
possíveis transtornos na compra de um escravo desconhecido no
mercado escravista poderia ser uma opção alternativa. Além disso,
muitos cativos conseguiam valores diminutos para sua liberdade,
por motivos diversos (bons serviços, doença etc.), ao passo em
que a troca nunca seria por um escravo que não estivesse apto
ao trabalho, ou seja, que não fosse “útil” à Religião Beneditina.
Mas um bom negócio também para os escravos, pois muitos
conseguiram seus cativos através de heranças, deixadas por
parentes que haviam conseguido acumular alguns bens dentro do
próprio cativeiro beneditino, ou oferecidos por familiares desejosos
por sua liberdade, como veremos mais adiante.
Poderíamos considerar ainda que em alguns casos os
escravos tenham comprado um cativo só para aquele fim, ou
seja, para satisfazer a exigência do Mosteiro, a exemplo do que
afirma Schwartz (2001, p. 205-206): “O futuro liberto ou intercessor
adquiria um escravo do mesmo valor, que era então apresentado
ao senhor como substituto”. Mas não acreditamos que essa tenha
sido a regra. Isso porque a posse e manutenção de escravos pelos
cativos beneditinos parece ter sido, se não comum, pelo menos
possível, como veremos ao longo deste artigo.
Acreditamos também que, quando um escravo realizava tal
permuta, possivelmente não estava se desfazendo de todo o seu
patrimônio, pois seria pouco prudente abrir mão de um cativo para
viver precariamente na liberdade. É possível que os escravos que
possuíssem apenas um cativo tenham optado em juntar o dinheiro
para a manumissão, pois, uma vez libertos, poderiam utilizar o
trabalho de seu cativo para sobreviver. Como a grande maioria dos
alforriados continuava nas terras beneditinas (muitos, inclusive,

16
Manuscritos (14 de maio de 1816, p. 246).

161
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

sem pagar foro), ter um escravo à sua disposição significava um


importante salto como homem “livre”.
Outro ponto a ser destacado é que o substituto do alforriando
não precisava corresponder, necessariamente, aos mesmos
atributos físicos ou etários dos requerentes. Mas, evidentemente,
existia algum tipo de “cálculo” que os monges realizavam para
não perder na hora da troca. Em alguns casos, existia alguma
equivalência: Feliciana Camila, mãe de Francisco, de 12 anos,
deveria entregar ao Conselho, como pagamento da liberdade de
seu filho, “um moleque de 12 ou 14 anos”.17 Também aparecem
expressões que buscam valorizar a capacidade dos cativos
colocados em troca: “um negro [ou negra] para todo o serviço”; ou,
como apelara Alexandre, que pretendia dar por si um “escravo que
melhor que ele” pudesse “servir e ser útil à Religião no trabalho
da enxada”.18
Devemos destacar ainda a predominância feminina entre
os escravos senhores. Entre os 18 casos, 10 correspondem a
mulheres pedindo sua liberdade (ou de seu filho) em troca de outro
cativo, enquanto os homens somaram 8 dos pedidos. A diferença
é bem pequena, mas aponta novamente para presença da mulher
cativa como importante papel no processo de manumissão e
como proprietária de escravos. Este é um dado que corrobora
outros estudos que investigaram a vida dos escravos após a
manumissão.
Carlos Eugênio Soares (2010, p. 89) também destacou a
predominância das mulheres libertas sobre os homens como
proprietárias de escravos. Sheila Faria (2000, p.86), em seu
estudo sobre as mulheres forras em São João del Rei (Minas
Gerais, 1774-1806), constatou que “homens ‘brancos’ e mulheres
forras foram os que detiveram as condições mais favoráveis de
serem possuidoras dos maiores conjuntos de bens do período
escravista”.
Outro importante dado a se destacar refere-se ao papel

17
Manuscritos (28 de setembro de 1798, p. 147).
18
Manuscritos (30 de agosto de 1793, p. 237-238).

162
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

da família nos casos de substituição. Dos 18 casos, 12 estão


relacionados a arranjos familiares. Dois pais ofereceram escravos
em troca da liberdade de suas filhas, assim como duas mães.
Podemos citar ainda Quirino, que intercedeu por sua esposa, e
Joana, por seu marido.
Umbelina é um dos casos mais interessantes. É a única
que, na mesma petição (1809), pede a liberdade para si e para
sua filha, chamada Maria. Na primeira proposta, ofereceu como
pagamento da sua libertação “um negro para todo o serviço”,
e, para sua filha, “uma negrinha”. No final, preferiu pagar 50 mil
reis pela alforria de sua filha.19 Ou a “negrinha” não satisfez as
exigências do Conselho (o que não aparece na Resolução) ou
Umbelina preferiu ficar com a escrava ao invés de pagar um valor
relativamente baixo, se comparado aos possíveis ganhos com a
posse de um cativo. Teria ela outros escravos? Infelizmente, não
temos a resposta.
Considerando os dados até aqui apresentados e os números
gerais sobre os pedidos de alforria, fica fácil concluir que o
papel da família escrava no processo de libertação no interior
das propriedades beneditinas foi crucial. E, como podemos
perceber, a estratégia da substituição foi destacadamente um
atributo quase familiar. Mieko Nishida (1993, p. 257) também
percebeu a importância da família entre estes casos. A autora
afirma que apenas duas cartas revelaram como os escravos
haviam conseguido seus substitutos e, em ambos os casos,
houve a intervenção de parentes, que ofereceram seus cativos em
troca da liberdade de seus familiares. Este ponto fica ainda mais
evidente quando observamos outros casos em que aparecem
escravos senhores de escravos, como veremos a seguir. As
famílias, nas propriedades beneditinas, tiveram um amplo leque
de possibilidades de construir e manter um patrimônio próprio,
incluindo cativos.

19
Manuscritos (18 de janeiro de 1809, p. 244).

163
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

Negócios de família

Dois casos, que não estão diretamente relacionados com


processo de manumissão, nos dão uma boa dimensão do poder
de posse que alguns escravos possuíam dentro das propriedades
beneditinas e sua relação com a família. O primeiro caso refere-se
à escrava Micaela, que morreu no início de junho de 1811. A cativa
havia deixado alguns bens a serem divididos entre seus herdeiros.
Entre seu patrimônio estavam alguns escravos. Um deles, João
Vieira, de 50 anos de idade, havia prestado bons serviços à
“Religião até o final daquele ano”, por isso decidiu o Conselho
conceder-lhe a liberdade. Os beneditinos se comprometeram a
dar o valor do dito João Vieira aos respectivos herdeiros, “filhos
da defunta”, assim como “para eles se tirando de tudo a terça
parte para o sufrágio” dela.20
Um mês depois, a escrava Maria das Candeias, cativa
pertencente à “defunta” Micaela, acabou incorporada ao
patrimônio dos beneditinos, que decidiram ficar com ela mediante o
pagamento de seu valor aos respectivos herdeiros.21 Percebemos,
assim, que os monges também se utilizavam do trabalho desses
cativos, possivelmente pagando a seus escravos-senhores os
respectivos valores pelas atividades desempenhadas.
O segundo caso refere-se ao escravo José Vieira, que teria
morrido em janeiro de 1817, deixando uma dívida de 33$000 a
diversas pessoas. Mas, como havia deixado “uma negra”, avaliada
em 70 mil reis, “a qual de nada servia à Religião, por não ser de
serviço”, ficou acertado que um irmão do defunto pagaria o dito
valor pela escrava. O Conselho votou a favor da venda, firmando

20
Manuscritos (Junho de 1811, p. 156). Segundo Sandra Graham (2005, p.
65): “O direito brasileiro, seguindo o português, especificava que dois terços
dos bens de uma pessoa ou de um casal deveriam ser divididos em partes
iguais entre filhos ou netos ou, caso não houvesse herdeiros descendentes,
os bens reverteriam para os pais ou avós. A pessoa podia dispor do outro
terço como bem quisesse [...]; e, se não houvesse herdeiros necessários, a
pessoa podia deixar todo o espólio para um herdeiro de sua escolha”.
21
Manuscritos (05 de julho de 1811, 156-157).

164
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

que com o dinheiro se pagasse as ditas dívidas e o que sobrasse


fosse distribuído aos filhos do defunto, obrigando-os a dizer-lhe
“algumas missas” em nome do falecido.22
Como vimos anteriormente, legalmente o escravo não
possuía qualquer direito de posse (até 1871) sobre bens que por
ventura tivesse conseguido acumular, muito menos deixá-los
como legado para outras pessoas após a sua morte. Todavia,
aos senhores era facultado permitirem tais práticas. Segundo
Stuart Schwartz (2001, p. 101), “a posse de bens era amplamente
reconhecida porque proporcionava tranquilidade à administração
do sistema escravista”.
Foi o que aconteceu nas propriedades beneditinas. Os
monges poderiam livremente dispor dos bens deixados pelos
cativos que morriam, mas preferiram, possivelmente por princípios
religiosos e até mesmo como parte de sua política de “paz nas
senzalas”, conceder tais direitos aos escravos. Lembramos que
o modelo beneditino era fortemente influenciado pelos preceitos
religiosos, pautados principalmente nas Regras do Glorioso
Patriarca. Por isso, amparar seus servos era um dever não
apenas senhorial, mas também cristão. Mesmo quando havia
algum interesse em respectivo escravo deixado pelo “defunto”,
havia a preocupação em conceder aos herdeiros a parte que lhes
cabia, como nos casos de Micaela e José Vieira. São casos como
esses que nos ajudam a compreender (ou pelo menos refletir) a
complexidade das relações escravistas.
E uma importante reflexão seria sobre as possíveis estratégias
utilizadas pelos escravos para juntar dinheiro suficiente para sua
subsistência (e de sua família) e ainda comprar um cativo (ou
vários). Adentraremos esta questão para melhor compreender
a dinâmica interna das propriedades escravistas de São Bento.
Vários autores destacaram as possibilidades abertas dentro do
próprio cativeiro para acumularem pecúlio, inclusive no meio
rural, onde escravos juntavam dinheiro adquirido através de suas
“agências” (GOLDSCHMIDT, 2010, p. 120-121).

22
Manuscritos (17 de janeiro de 1817, p. 164).

165
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Os senhores reconheciam a importância de permitir certas


práticas que conferissem aos cativos alguma renda. Até porque
muitos proprietários se beneficiavam dos “negócios” abertos
por seus escravos ou cativos da vizinhança. Como já havíamos
afirmado, os beneditinos sempre preparavam escravos para a
realização de trabalhos especializados, como pedreiro, carpinteiro,
jangadeiro. Há indícios de que estes cativos realizavam trabalho
extra e conseguiam juntar certas quantias. O escravo Thomé
ladrilhou, em um domingo, a casa de uma liberta (ex-escrava
da Ordem) moradora na propriedade de Jaguaribe e recebeu
por seu serviço um “patacão23 e uma garrafa de vinho”, pagos
pelo Fr. Filipe, administrador da fazenda.24 Outras práticas, como
pequeno comércio de doces, produtos agrícolas etc., poderiam
incrementar a renda dos cativos de São Bento. Mas havia ainda
outras práticas, nem sempre lícitas.
O Fr. Galdino, em seu relatório trienal (1848), destacou a sua
grande preocupação com a prostituição. Segundo este Abade,
muitas escravas moças viviam deste meio, em busca de seu
sustento e de se vestirem “mais comodamente”.25 O Fr. Manoel
da Conceição Monte, em 1863, destacou o importante trabalho
realizado em seu governo, casando vários escravos das diversas
propriedades, evitando assim o concubinato e a prostituição.26
Apesar da preocupação dos monges, a prostituição garantia,

23
Moeda de prata.
24
Processo Crime: Autora: Rufina Maria Manoela. Réu: D. Abade do Mosteiro de
Olinda Fr. Manoel d Conceição Monte. 1862. Arquivo do Museu de Igarassu,
seção de Manuscritos, Série: Irmandades Religiosas, Cx.4: São Bento de
Jaguaribe.
25
Estados do Mosteiro de São Bento (1842-1845). Os Estados são relatórios
trienais produzidos pelos Abades sobre o período em que administraram o
respectivo Mosteiro. Consultamos tanto os Estados do século XVIII (fotocópias
dos originais que estão sob a tutela do Arquivo Distrital de Braga, Portugal,
e disponibilizados no Arquivo do Mosteiro de Olinda) e os do século XIX,
transcritos nos Manuscritos publicados na Revista do Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico Pernambucano, v. XLII, 1948-1949 (1952).
26
Estados do Mosteiro de São Bento (1860-1863). Manuscritos (1952).

166
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

a muitas cativas, oportunidades para a subsistência e, quem sabe,


para acumular dinheiro para a alforria. Sheila Faria destaca que
“as escravas dedicadas ao comércio e [...] à prostituição foram as
que mais condições tiveram de pagar por sua liberdade”. Segundo
a autora, “estavam elas, portanto, triplamente estigmatizadas
na sociedade que as cercava: pela cor da pele, relacionada
à escravidão, pelo ‘defeito mecânico’, condição vil, e pela
prostituição, repúdio religioso” (FARIA, 2000, p. 81).
Porém, acreditamos que, por se tratarem de propriedades
rurais, a principal fonte de recursos dos escravos beneditinos
foi a roça própria. Esta era uma prática antiga, encontrada em
várias regiões do Brasil escravista. Stuart Schwartz (2001, p.
99) destaca que muitos escravos utilizavam os dias livres que
lhes eram concedidos (domingos, feriados religiosos e dias de
descanso) para produzir em suas próprias roças, complementando
sua dieta com produtos de suas hortas. Além disso, poderiam
vender o excedente “nos mercados locais ou ao proprietário”,
guardando “o dinheiro ganho para fazer compras ou poupar para
acabar comprando a própria liberdade, ou de um ente querido”.
E novamente o papel da família se destaca. A constituição
de laços familiares dentro do cativeiro poderia proporcionar ao
escravo conseguir de seus senhores maiores privilégios em
relação aos cativos solteiros. Entre os prêmios, estavam um
espaço de moradia especial para os casados (mesmo que dentro
da senzala) e, claro, as roças. Estas possibilitavam aos cativos
realizarem negócios com a vizinhança, vendendo e comprando
produtos necessários à subsistência da família. Segundo Slenes
(1999, p. 196-197), “a renda monetária proveniente de todas estas
fontes, além de ampliar as possibilidades de ‘consumo’ e, dessa
forma, ajudar a viabilizar o projeto de vida e redes de solidariedade
dentro da escravidão, também podia possibilitar poupança”.
Para o autor, poupar poderia significar duas possibilidades
abertas através do acúmulo de recursos com a roça e a criação de
animais. De um lado, a poupança poderia ser utilizada como uma
“garantia da sobrevivência no futuro, em dias difíceis”. Ao mesmo
tempo, juntar dinheiro fazia parte do projeto de muitos daqueles

167
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 149-176, jul./dez. 2017

que buscavam sobreviver dentro dos limites da escravidão,


acumulando recursos suficientes que lhes permitissem “a compra
da liberdade” (SLENES, 1999, p. 196-197).
Evidentemente que o acesso a lavoura própria fazia parte
das estratégias senhoriais para manter os escravos sob controle.
Para aqueles que percebiam alguma possibilidade de “sucesso”
sem precisar enfrentar abertamente o senhor, poderia ser um bom
negócio desfrutar de certos espaços abertos dentro do cativeiro.
“Sucesso”, como nos dizem Florentino e Góes (1997, p. 173),
“naquela sociedade incrivelmente injusta, não precisava ser tanta
coisa. Comida, descanso, um pouco de sossego e, se possível,
roçados, alguns dias livres, divertimentos e família”.
Nicolau foi um caso à parte. Ele havia se beneficiado do
cargo de feitor, destinando para si grande parte das roças que
deveriam ser distribuídas a outros cativos, empregando parte de
seus escravos (num total de nove) no “serviço da enxada”, obtendo
lucros em detrimento dos outros.27 O escravo-feitor (e senhor)
havia acumulado poder e bens, como gado, cavalo e terras fora
das propriedades beneditinas.28
Porém, nem sempre a estratégia senhorial trazia os resultados
esperados. Segundo Fr. José Botelho, o escravo Júlio recebeu
“uma terra maneira e boa” para seu sustento. Todavia, o cativo
tinha dificuldades para formar alianças, e não conseguia um só
parceiro para dividir a roça. Sem raízes fincadas, sem “amarras”
familiares e, principalmente, sem a rede protetora necessária para
uma subsistência satisfatória e, até mesmo, para a liberdade, Júlio
utilizou a tática senhorial contra seus algozes, “ajuntou toda a sua
roupa em um saco” de farinha e fugiu.29 Mas esta não foi a regra.
A grande maioria ficou mesmo no cativeiro, jogando de acordo
com as regras beneditinas, jogando com as armas disponíveis.

27
Manuscritos (Março de 1822, p. 169).
28
Sobre esse escravo-senhor, cf.: Costa (2017).
29
Processos escravos, 1831-1871 (09 de setembro de 1863). Documentação
de natureza diversa, reunindo fontes sobre a escravidão, organizada em dois
volumes e localizado no Arquivo do Mosteiro de Olinda.

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Neste sentido, a Ordem de São Bento parece ter dado uma


atenção especial à questão do roçado. Mateus Ramalho Rocha
(monge beneditino), em seu estudo sobre os beneditinos do Rio
de Janeiro, confirma esta prática, afirmando que os escravos da
Ordem “possuíam pequenos lotes de terras nos quais habitavam
e retiravam sua subsistência e a de sua família” (ROCHA, 1991
apud RAMOS, 2007, p. 175). Esta prática ocorreu de forma mais
evidente nas terras de Jaguaribe, por se tratar de uma fazenda
destinada ao abastecimento do Mosteiro. Através da venda de
excedentes para os próprios monges e possivelmente para os
vizinhos, os escravos de São Bento conseguiram construir uma
importante rede de negócios que incluía diversas atividades,
inclusive a aquisição de escravos.

Considerações finais

Qual o significado, para um cativo, ser proprietário de


escravos? A questão não é nada fácil de responder. Até porque a
carência de estudos sobre o tema dificulta maiores interpretações.
O que temos em mãos são os estudos sobre os egressos do
cativeiro e os recursos que acumularam como libertos. Segundo
Carlos E. Soares (2010, p. 89), “ter escravos na Bahia da
primeira metade do século XVIII era algo absolutamente normal,
e os egressos da escravidão ambicionavam – como todos na
sociedade – a propriedade de pelo menos um cativo”.
Para Maria Inêz Cortez de Oliveira (1988, p. 41), “a vida de
cativeiro ensinara ao liberto que ser livre era ser senhor e ser
senhor era possuir escravos que trabalhassem para si. Tal era
a verdade do escravismo”. E continua: “não havia para o liberto,
fosse africano ou crioulo, nenhum constrangimento na assimilação
desta verdade, especialmente quando as rivalidades étnicas
eram tão profundas e tão cuidadosamente incentivadas [...]”.
(OLIVEIRA, 1988, p. 41).
Márcio Soares (2006, p. 278) afirma que ter um escravo era
um importante símbolo de mobilidade social, considerando que
muitas pessoas “tidas como brancas” não tiveram acesso à posse

169
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de cativos. Analisando testamentos em Campo dos Goitacases,


o autor afirma ainda que “a posse de escravos assumia uma
grande relevância no conjunto das fortunas inventariadas”, pelo
fato de tal posse representar recurso econômico e pelo caráter
político “que esse tipo de propriedade assumia nos processos
de hierarquização social, entre os próprios descendentes de
escravos”. Para o autor, este tipo de propriedade “singular”
contribuía, inclusive, para acelerar “o processo de distanciamento
do (ante) passado escravo, na medida em que transformava
pessoas, direta ou indiretamente egressas do cativeiro, em
senhoras de almas.” (SOARES, 2006, p. 278).
Sheila Faria destaca que, em vários estudos sobre a riqueza
no período escravista, “a posse de escravos é um indicativo
importante para inferir o grau de fortuna dos envolvidos”, além
do prestígio social que poderia ser alcançado. Todavia, apesar
do papel da posse nesta sociedade, “a aquisição de um escravo
não era fácil”. Comprar pelo menos um cativo exigia, da grande
parcela da população, um esforço econômico significativo. A
autora levanta uma questão interessante em torno da afirmação de
que a posse de um único escravo seria um indicativo da pobreza
de um proprietário. Faria discorda, afirmando que este dado não
pode ser considerado de forma absoluta, “principalmente porque a
grande maioria da população economicamente ativa da sociedade
escravista não tinha condições de ter nem mesmo um”. E diz
ainda: “Mulheres proprietárias de escravos, qualquer que tenha
sido sua condição social, não podem ser consideradas ‘pobres’,
no sentido econômico do termo.” (FARIA, 2000, p. 83).
Estas questões apontadas pelos autores nos intrigam ainda
mais, quando pensamos em escravos senhores de escravos. Se,
para um liberto, não havia qualquer “constrangimento” em possuir
escravos (até porque era algo legítimo na sociedade de então),
percebemos que o mesmo se aplicava aos cativos-senhores, o
que não deixa de ser algo no mínimo surpreendente. Pensar em
um cativeiro dentro do cativeiro assombraria os antigos defensores
da passividade dos escravos, e nos deixa mais perguntas do que
respostas.

170
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Um ponto importante está no fato de que grande parte


da população livre e liberta não tinha condições materiais de
comprar nem sequer um escravo, enquanto cativos beneditinos
tinham dois, três ou até nove escravos em seu poder. Poder,
eis uma questão que fazia parte do cotidiano destes sujeitos.
Prestígio social? Possivelmente. Apenas dentro ou também
fora das propriedades em que viviam? Como eram vistos estes
senhores pela vizinhança pobre e não-proprietária? Como se dava
o processo de hierarquização social? Ter a liberdade, mas ser
pobre, significava um status superior a um escravo proprietário?
Se ter um cativo, enquanto liberto, poderia significar um importante
passo no processo de distanciamento do (ante) passado escravo,
o que dizer daqueles que se mantiveram em cativeiro, mas como
senhores escravistas?
Concordamos com Vanessa Ramos quando afirma que
esses exemplos de transação pela liberdade entre senhores e
cativos “reforçam ainda mais a participação direta dos escravos,
caracterizando-os como agentes sociais que interagiam de forma
bem ativa na sociedade em que viviam.” (RAMOS, 2007, p. 34).

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da UNICAMP, Campinas, 2009.

Recebido em agosto de 2016.


Aprovado em setembro de 2017.

176
ARTIGOS
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/hep-v30n57-2017-7

HISTÓRIA, CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E UTOPIA


EM J. RÜSEN E A. HELLER:
REFLEXÕES PARA A DIDÁTICA DA HISTÓRIA

Luis Fernando Cerri*


Caroline Pacievitch**

RESUMO: O artigo discute as posições de Jörn Rüsen e de Agnes


Heller sobre consciência histórica e suas implicações possíveis
para a Didática da História. Consciência histórica é entendida como
um conjunto de processos para atribuir sentidos e significados
quanto ao tempo e que se expressam em diferentes cenários. A
argumentação se desenvolve cotejando as obras em que Rüsen
e Heller discutem especificamente suas noções sobre consciência
histórica, confrontados pelos desafios para a orientação temporal
na pós-modernidade. Conclui-se que tal reflexão é relevante
para a formação de historiadores e professores de história que
enfrentam as dificuldades em construir sentidos históricos na
pluralidade sem recorrer a explicações redentoras, mas ainda
defendendo valores como a razão, a verdade e a democracia.

PALAVRAS-CHAVE: Didática da história. Teoria da história.


Ensino de história.

ABSTRACT: This article discusses Jörn Rüsen and Agnes Heller


statements about historical consciousness and their possible
consequences to the History Didactics. Historical consciousness is
taken as a ensemble of processes to assign senses and meanings

* Professor do Departamento de História, Universidade Estadual de Ponta


Grossa, Programa de Pós-Graduação em História. Doutor em Educação.
** Professora do Departamento de Ensino e Currículo, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Doutora em Educação.

179
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

about time, which expresses themselves in different scenarios.


The argumentation is developed collating the works of Rüsen
and Heller in which they discuss specifically their notions about
historical consciousness, faced to the challenges to the temporal
orientation at post-modernity. It is concluded that such reflection
is relevant to the historians and history teachers training, who
front difficulties on building historical meanings in a pluralistic
way, without recurring to redeemer explanations, still considering
values as reason, truth and democracy.

KEYWORDS: History didactics. Theory of history. History teaching.

Introdução

Criticar o relativismo niilista e apostar em mundos melhores,


sem desbancar para soluções redentoras ou narrativas
homogeneizantes, pode ser uma forma de caracterizar os
pensamentos de professores e professoras de história sobre
sua profissão, pois evitam resumir suas perspectivas políticas
a um único parâmetro político ou ideológico, mas também se
recusam a afirmar que são neutros. Além disso, estão cientes
de que manter posicionamentos políticos que amparam suas
decisões profissionais e políticas não configura proselitismo
político. Os dilemas que afetam a formação e a atuação
profissional de professores de história não se resumem às
suas opções político-partidárias, mas sim nas formas como
atribuem sentido à profissão (formação, condições de trabalho,
compreensão sobre conhecimento histórico, etc.) e seus objetivos
mais amplos, conectados com o papel da escola e da história
para o futuro dos jovens. Picuinhas políticas reducionistas não
dão conta da complexidade que envolve o ensinar história na
contemporaneidade.
A pergunta que muitos professores se fazem pode ser
sintetizada em “qual é minha responsabilidade docente, perante

180
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

minhas utopias político-educacionais e as demandas diversas


expressas pelos jovens estudantes, por suas famílias, pela ciência
histórica, pelo mundo do trabalho, pelos direitos humanos, pelas
políticas públicas educacionais e por outras instâncias sociais?”.
Tal pergunta pode ser respondida de diversas formas, cada
vez que se tomam decisões ao longo do exercício profissional.
Professores trabalham com jovens que ainda estão formando
suas compreensões sobre o tempo, mas já se movem entre
opiniões, conceitos, juízos e projetos de futuro, sobre os quais o
conhecimento histórico pode interferir.
Por isso, julgamos relevante refletir, do ponto de vista
da Didática da História, sobre possibilidades de sistematizar
estas variáveis e lançar novas luzes sobre esta pergunta. Uma
forma de fazer isso é dialogar com pensadores dedicados ao
tema, comparando-os e submetendo suas ideias ao crivo dos
questionamentos específicos do ensinar e aprender história.
Neste artigo, escolhemos dialogar com Jörn Rüsen e Agnes Heller
por três razões principais: a) seus escritos foram dedicados, em
alguma medida, aos processos educativos, não diretamente por
eles, mas por seus intérpretes; b) são autores que se posicionam
pela democracia e apostam, de forma mais ou menos intensa,
no papel do intelectual como cidadão que deve contribuir para o
coletivo; c) suas ideias permitem aproximações e afastamentos
a partir de suas concepções de história, consciência histórica e
utopia, o que interessa diretamente à didática da história.
O conceito de consciência histórica ganhou destaque nos
trabalhos que se dedicam às articulações entre a teoria da
história e a didática da história, na última década no Brasil. Esse
movimento é documentado, por exemplo, por Barom (2012).
O principal autor referenciado nesse debate no Brasil é Jörn
Rüsen, embora ele esteja longe de ser o único a abordar e
discutir o conceito de consciência histórica (CERRI, 2001) e de
ser acatado indisputadamente (p. ex., LAVILLE, 2005). Rüsen,
como veremos adiante, filia-se a uma vertente de pensamento
que o conduz a uma determinada concepção de consciência
histórica que é distinta, por exemplo, daquela que Gadamer

181
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

(1998) sustenta, de consciência histórica como resultado de


uma tomada de consciência da historicidade do mundo típica
da modernidade ocidental. Rüsen pode ser contado entre os
tributários do pensamento de J. Habermas, por sua vez é um dos
debatedores de Gadamer. Em linhas gerais, para Jörn Rüsen, a
consciência histórica é um atributo humano, um componente da
sua consciência, que varia em termos de forma e de conteúdo
de acordo com a cultura em que se insere, mas tem sempre a
mesma função: atribuir sentido ao tempo, mapeando a realidade
e estabelecendo referenciais identitários a partir dos quais se
navega na dita realidade.
A característica humanista da perspectiva rüseniana sobre
a consciência histórica, em sentido amplo, ou seja, como
reconhecimento da horizontalidade nas diferenças entre as
culturas, permite um cotejamento com a perspectiva de Agnes
Heller sobre o mesmo conceito de consciência histórica e suas
consequências utópicas. Pensamos que esta análise comparada
permite tanto ampliar e aprofundar a compreensão sobre o
conceito, extrapolando o que seria a compreensão dele em
cada leitura feita isoladamente, quanto refletir sobre possíveis
implicações – nem sempre diretas – para o pensamento sobre o
ensino de história.
Pretendemos argumentar que Rüsen e Heller não só
participam de um paradigma científico comum como também
convergem no que se refere à atitude diante do processo de
transformação dos paradigmas. O próprio conceito de paradigma
científico, de T. Kuhn (1998), permite compreender as proximidades
e as coincidências do pensamento de dois autores de formações,
lugares e espaços epistemológicos distintos, e permite explicar as
aproximações entre suas teses como tentativas separadas de dar
respostas aos mesmos questionamentos postos pela realidade
contemporânea. Em ambos, estão presentes intersecções entre
filosofia e cultura.
Nesse texto, propomos um trajeto que parte de uma breve
contextualização do pensamento de Rüsen e de Heller, segue para
aproximações em torno do conceito de consciência histórica e uma

182
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

conclusão a partir dos desafios da consciência histórica diante


da pós-modernidade. Trata-se do modo genético de produção de
sentido, em Rüsen, e da responsabilidade planetária, em Heller.
Em ambos os conceitos, se vislumbra uma projeção esperançosa
diante do futuro, tema que consideramos essencial para o ensino
de história e a constituição profissional de seus professores.

Contextos: dois humanistas em diálogo com a pós-


modernidade

A obra de Heller transformou-se com o passar dos anos e dá


lugar a interpretações diversas (SEVILLA, 1998; TORMEY, 1998;
GRANJO, 2008). No Brasil, sua obra é conhecida, principalmente,
pela mobilização do conceito de cotidiano para a compreensão
de temas educacionais (GUIMARÃES, 2002; DUARTE, 2006).
Agnes Heller nasceu na Hungria e instruiu-se na tradição
marxista. Foi discípula de G. Luckács e mudou-se, em 1978, para
a Austrália e, depois, para os Estados Unidos, concomitantemente
ao seu progressivo afastamento, primeiro de Marx e depois do
próprio Luckács. Esse deslocamento, por outro lado, também se
liga às suas indagações radicais sobre a liberdade e a autonomia
diante da produção e reprodução das necessidades. Como sua
obra é diversa e multifacetada, adotou-se como base para este
artigo o livro “Uma teoria da história”, publicado originalmente em
1981 e traduzido para português brasileiro em 1993.
Nessa obra, a filósofa discute possibilidades de uma política
emancipadora e socialista, a partir da crítica a filosofias redentoras.
O objetivo do livro é a construção teórica de um projeto de ação
para transformação do mundo que não seja totalitário. O primeiro
passo – e uma das instâncias onde se expressa seu acolhimento
às críticas pós-modernas – é negar as filosofias da história que se
propõem redentoras e determinam o futuro como necessidade.
Heller propõe a substituição das filosofias da história por uma
teoria da história engajada nos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade.
Ela propõe o engajamento individual para o bem coletivo,

183
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

a fim de trabalhar por uma sociedade melhor, na qual nenhuma


vida humana sirva como meio para a satisfação de necessidades
de outros indivíduos, tampouco de projetos coletivos (HELLER,
1993). Heller denomina “responsabilidade planetária” o estágio da
consciência histórica em que é possível esse tipo de engajamento,
baseado na ideia de progresso e a valores humanistas.1
Agnes Heller pode ser compreendida como uma pensadora
radical, em busca de compreender o tempo presente e de refletir
sobre significados da existência humana. Ela debate os limites
da historiografia europeia ocidental; reafirma a possibilidade (e
não a necessidade) do socialismo; e valoriza liberdade, igualdade
e fraternidade vividas em espírito democrático e plural. O
compromisso individual com um projeto de futuro se reveste de
sentidos coletivos, mas também individuais, ligados à angústia
de viver num mundo injusto.
Embora seja frequente conectar utopia e educação (BACZKO,
1989), a escola não é tema considerado detidamente em sua obra,
muito menos o ensino de história. Entretanto, a noção de que é
preciso aprender com a história se mostra nas últimas páginas de
“Uma teoria da história”: “[...] O aprendizado com a história, com
o passado de nosso presente [...] significa aprender a selecionar
determinados objetivos e decidir quais, dentre esses, podem ser
compartilhados” (HELLER, 1993, p. 394-395).
Jörn Rüsen nasceu e desenvolveu sua carreira acadêmica

1
Compreende-se Humanismo conforme Marilena Chauí: “o humanismo, [...]
distanciando-se do teocentrismo medieval, [...] dá ao homem o lugar central.
Desenvolve a ideia de que o homem é dotado de capacidade e força não
só para conhecer a realidade, mas sobretudo para transformá-la, ideia que
transparece num adágio que será celebrizado por Francis Bacon: ‘o homem
é o arquiteto da Fortuna’, ou seja, o homem é senhor de sua sorte ou de seu
destino. [...] Essa ideia da racionalidade e do poder da vontade conduz a duas
outras ideias, essenciais para o surgimento das utopias: a de que os homens
valem por si mesmos, independentemente de privilégios de nascimento e
sangue, de maneira que a oposição entre ricos e pobres é injusta e fonte
das revoltas que destroem os Estados; e a de que é possível organizar um
Estado sereno, feliz, glorioso e perfeito, fundado na equidade e dirigido por
um verdadeiro príncipe.” (CHAUÍ, 2008, p. 8-9).

184
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

na Alemanha, e testemunhou sua divisão e unificação. Liga-se às


tradições do iluminismo e do historicismo alemão, sendo estudioso
do historiador oitocentista J. Gustav Droysen (ASSIS, 2010, p. 8).
Sua obra coloca-o como um nome de destaque dentro da tradição
alemã de reflexão sobre as ciências humanas. Atualmente, dedica-
se aos estudos sobre o humanismo no contexto da globalização.
A obra de Rüsen de maior conhecimento e difusão no Brasil
é a trilogia em que sintetiza suas considerações sobre a teoria
da história: “Razão História” (RÜSEN, 2001), “Reconstrução do
passado” (RÜSEN, 2007a) e “História viva” (RÜSEN, 2007b). Os
livros vieram a público originalmente na Alemanha dos anos 1980.
O sentido geral das obras é de dar conta, numa compilação e
síntese compreensiva da teoria da história, dos avanços teóricos
e metodológicos vividos pela disciplina até o final do século XX.
No que tange à didática da história, Rüsen participa de
um grupo de historiadores alemães que se preocuparam com
as articulações entre reflexão didática e teoria da história,
galvanizadas pelo conceito de consciência histórica. Schörken,
Bergmann, Pandel e Jeismann, segundo Saddi (2014), formam,
com Rüsen, os principais nomes dessa trajetória intelectual, que
procurou responder à crise de continuidade da cultura história
alemã, marcada pelo conflito geracional do final dos anos 1960.
A consciência histórica, nesse grupo de reflexão, é definida
em sentido amplo como o conjunto dos procedimentos mentais
pelos quais, individual e coletivamente, o passado é assimilado
e avaliado como experiência pessoal e experiência transmitida,
o presente é decifrado como campo das decisões e ações em
vista das expectativas definidas para o futuro. Em suma, trata-
se do modo pelo qual os grupos dão sentido ao tempo e agem
de acordo com este sentido. O que explica a proficuidade desse
conceito no enfrentamento das divergências intergeracionais,
assim como as questões da cultura histórica alemã em função
do enfrentamento do passado nacional referente ao holocausto
judeu. Rüsen qualifica essa virada na didática da História como
um elemento integrante da mudança de paradigma pela qual
o estudo da disciplina passou na então Alemanha Ocidental,

185
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

articulada pelos historiadores preocupados com a educação


(RÜSEN, 2006, p. 11).
Cardoso (2008) indica ainda que o conceito de consciência
histórica é uma referência fundamental para o trabalho de reflexão
que Rüsen desenvolve sobre a própria história, a historiografia e a
teoria da história. Isso se dá uma vez que a consciência histórica
é definida pelo autor alemão como o modo essencial da relação
humana com o tempo. Essa relação se desenvolve de várias
outras formas, sendo que a ciência da história nada mais é que
uma forma metodizada e altamente racionalizada daquela relação
essencial do homem com o tempo (CARDOSO, 2008, p. 161).
Rüsen enfrentará os dilemas postos pela pós-modernidade
para o campo da história e sua relevância social com uma postura
permeável à crítica, mas firmemente estabelecida em torno da
razão como princípio. Essa postura fica bem expressa na epígrafe
de um dos seus dois textos publicados no Brasil no calor das
discussões sobre a pós-modernidade, ensejados pelos amplos
efeitos da globalização e no exato contexto da queda do muro
de Berlim: “O sonho da razão produz monstros”. Presente em
uma das obras do pintor Goya, essa frase é epígrafe do texto
“Conscientização histórica frente à pós-modernidade” (RÜSEN,
1989). Outro artigo do autor num contexto parecido é “A história
entre a modernidade e a pós-modernidade” (RÜSEN, 1997). O
debate do autor com o linguistic turn, principalmente com Hayden
White, é sumarizado no volume “História viva” (RÜSEN, 2007b),
da trilogia publicada pela editora da UnB. A reafirmação da
possibilidade de razão por meio da ciência histórica, rediscutida
e condicionada pela crítica pós-moderna, aparece novamente no
conjunto de ensaios de Rüsen publicado recentemente no Brasil
(RÜSEN, 2014).
Quanto à crítica pós-moderna mais geral sobre a possibilidade
de razão na história, alinhavamos a seguir alguns pontos essenciais
da argumentação do autor na intenção de sumarizá-la, sem
pretensões de completude ou grande precisão. Essencialmente,
Rüsen rejeita as afirmações de uma pós-história, ao não aceitar
a própria ideia de fim da história; refuta a impossibilidade de a

186
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

história produzir orientação histórica com base na racionalidade;


reafirma a necessidade de uma representação mental da unidade
da experiência histórica, embora aceite a negação de uma história
única, universal, em favor da convivência de histórias diversas.
Por fim, aceita a superação da ideia de que as formas de vida do
passado evoluíram no sentido das formas de vida do presente,
concordando com a perspectiva de múltiplas possibilidades de
futuro que compõem as várias partes do passado e que não se
realizaram no presente.
Quanto à crítica específica do linguistic turn sobre a
impossibilidade de a história produzir discursos sobre o passado
que se diferenciem da literatura de ficção, a argumentação
de Rüsen, em resumo, devolve a crítica à própria concepção
inadequada de história que, para ele, sustenta o questionamento
de cariz pós-moderno. Aproximar historiografia de discurso literário
ficcional porque as fontes através das quais o historiador reconstrói
o passado não são o passado em si, mas representações dele,
implica assumir que há uma instância, ainda que inacessível
ou dificilmente acessível, de facticidade pura. Pelo contrário, a
reflexão histórica predominante na atualidade reconhece que há
uma dimensão interpretativa desde a própria seleção das fontes
e presente na reconstrução do passado que se sustenta nelas. Ao
assumir essa perspectiva, Rüsen reconhece que o componente
poético e retórico da narrativa histórica científica, embora tenha
sido desprestigiado na trajetória da disciplina ao longo do século
XX, não é incompatível com a reivindicação de cientificidade da
História. Pelo contrário, responder aos desafios atuais à história
passa, para o autor, pela reintegração teórica e prática destas
dimensões.
Em síntese, tanto Rüsen quanto Heller coincidem no
acolhimento a aspectos relevantes da crítica pós-moderna
sobre o conhecimento racional e sobre o projeto político-social
da modernidade. Esse acolhimento, que faz aceitar e incorporar
críticas aos postulados da modernidade nascidos, entre outras
tradições, no humanismo, não significa um abandono das
pretensões de racionalidade do conhecimento, tampouco das

187
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

promessas de liberdade, igualdade e fraternidade. Significa a


atualização, o redimensionamento e o aprofundamento desse
projeto científico e sociopolítico diante das profundas contradições
e dos radicais desafios introduzidos pela história do século XX.

Consciência histórica, um conceito comum

A consciência histórica é um dos conceitos que pertencem


à ordem de abstrações que procuram construir significado para
o próprio exercício humano de abstrair e construir significado.
Pertence ao grupo de conceitos que procura entender os
fenômenos do pensamento humano coletivo, do qual participam
também conceitos como imaginário, ideologia, mentalidade. Em
todos os casos, a definição e a delimitação do campo da realidade
ao qual os conceitos se referem são objeto de discussões e
da formação de diferentes linhas teóricas. Com o conceito de
consciência histórica não é diferente: há pelo menos dois grandes
grupos de interpretação, um que estabelece a consciência
histórica como recurso escasso ao qual se pode aceder mediante
determinadas condições e esforços, e outro que considera que a
consciência histórica é uma constante antropológica, uma condição
da existência humana.2
Jörn Rüsen e Agnes Heller, em condições e contextos diferentes,
pertencem ao grupo dos que definem a consciência histórica como
elemento inerente ao pensamento humano. Cotejar as diferenças e
semelhanças nas definições de ambos serve para verificar até onde
vai a compatibilidade entre suas definições e descrições do conceito,
bem como colaborar para compreendê-lo melhor. Avaliamos que
assim será possível identificar quais as contribuições dos autores
a uma reflexão teórica da História que se importa com a dimensão
didática, entendida amplamente como a disciplina de compreensão
de uma economia (produção, distribuição e consumo) ou uma
antropologia/epistemologia (CHEVALLARD, 2009) do conhecimento
histórico socialmente compartilhado.

2
Sobre o histórico do conceito e suas variações, ver: Cerri, 2001; Laville, 2005;
Cardoso, 2008.

188
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

A obra “Uma teoria da história”, em que se trabalha o conceito


de consciência histórica em busca da formulação de uma teoria
da história, é ponto de inflexão na obra de Heller. Apesar de
considerar que, para o século XIX, Marx elaborou uma filosofia
da História adequada, ela entende que a atualidade exige uma
postura crítica, propondo uma teoria da história que não imponha
o “dever ser”, mas o tome como escolha racional, possibilidade
e projeto. São igualmente rejeitadas perspectivas irracionais e
desesperançadas sobre o presente e filosofias da história que
postulariam a produção como variável independente da história.
Assim, ela reflete num sentido próximo ao de Hannah Arendt,
que também delineou sua crítica a Marx a partir do impedimento
ao Novo que poderia se desdobrar de seu pensamento. Heller
identifica que as ideias de progresso e de leis gerais da história são
uma criação da civilização moderna no final do século XVIII, não
uma lógica universal que se aplique a qualquer tempo (GRANJO,
2008, p. 18-20). Isso não significa que a noção de progresso seja
descartada de sua teoria da história.3 A longa reflexão sobre os
estágios da consciência histórica, na primeira parte de “Uma teoria
da história”, não tem um fim em si mesma, pois é a base para
seu próprio projeto de presente e de futuro. Na obra de Rüsen,
o conceito de consciência histórica tem um caráter transversal,
ocupando um espaço privilegiado entre outros conceitos-chave,
embora vá sofrendo pequenas orientações e ajustes ao longo
do processo de diálogo com outros autores e com diferentes
contextos sociopolíticos e culturais.
Para Agnes Heller, consciência histórica é a “[...] resposta à
pergunta - ‘De onde viemos, o que somos e para onde vamos’”
(HELLER, 1993, p. 15). Para Jörn Rüsen, a consciência histórica
pode ser definida como “[...] a suma das operações mentais com
as quais os homens interpretam sua experiência da evolução

3
Heller define progresso como todo tipo de ação cujos resultados são sempre
ganhos, sem perdas correspondentes, isto é, sem sofrimento humano.
Entretanto, ele é tido como ideia reguladora e não como realidade factual
(HELLER, 1993, p. 355 et seq.).

189
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam


orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” (RÜSEN,
2001, p. 57). Heller, interessada em construir propostas de ação
para a humanidade e Rüsen, preocupado com os rumos da
historiografia, tratam da mesma coisa: o fenômeno cultural pelo
qual pessoas e grupos dão sentido ao tempo e a si mesmos no
tempo. O conteúdo dessas respostas é construído por Heller e
Rüsen com estratégias e com substâncias distintas. Rüsen busca,
na caracterização da consciência histórica, uma estrutura de tipos
ideais progressivamente mais complexos, enquanto a estratégia
de Heller tem a ver com a conceitualização a partir de referências a
cenários históricos que, embora presos a uma sequência canônica
associada à grande narrativa da história ocidental, pretende ser
significativa para além dos casos particulares:

Esta é a razão pela qual, ao recapitularem-se os estágios da


consciência histórica, nenhuma tentativa foi feita para recapitular
qualquer período histórico, qualquer história. Sequer tentei
reconstruir períodos reais e a história real de cada um, ressaltei
apenas seu auto-entendimento como historicidade. Dentro da
estrutura dessa reconstrução, nenhum estágio de desenvolvimento
da consciência histórica poderia ser compreendido como o resultado
daquele que o antecedeu, posto que cada estágio de consciência
fui abstraído do desenvolvimento (ou “desdobramento”) efetivo
e das mudanças reais; de suas lógicas e motivações próprias.
(HELLER, 1993, p. 391).

Para ambos os autores, trata-se de afirmar e procurar montar


um quadro prévio de possibilidades para a diferenciação e a
dinâmica do fenômeno, sendo que o foco é a necessidade de
oferecer possibilidades de orientação em tempos de grandes
incertezas e ameaças antidemocráticas.
Em Rüsen, a consciência histórica aparece primeiramente
desagregada em quatro tipos: tradicional, exemplar, crítico e
genético. Mesmo advertindo que se tratam de ideais e não de
uma taxonomia de consciências encontráveis empiricamente, foi

190
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

comum que se pensasse em cada um dos tipos como essências


da consciência histórica de indivíduos concretos, estabelecendo
como objetivos educacionais a relativização dos tipos básicos
para a instauração dos tipos mais complexos ou sofisticados
(ver, p. ex., PARANÁ, 2008, p. 58-60). Posteriormente, Rüsen
adotará a nomenclatura modos de geração de sentido histórico,
referindo-se às narrativas (RÜSEN, 2007b) produzidas pelos
sujeitos. Entendemos esse deslocamento como um refinamento
da análise: da afirmação de essências do ser (inacessíveis à
investigação empírica) à afirmação de produtos (narrativas) da
ação dos sujeitos concretos, que tendem a ser mais complexos
do que a tipologia.
Os modos de geração de sentido histórico rüsenianos
denotam, a nosso ver, uma gramática pela qual as consciências
históricas se expressam. Em vez de essências (ainda que móveis)
dos seres, trata-se mais de prever/descrever logicamente os
modos de geração de sentido como uma espécie de vocabulário,
uma caixa de ferramentas linguística que fornece ao usuário
capaz de manejá-las a habilidade de dizer – portanto, entender
– a historicidade própria de seu mundo. Cada modo nasceu
em uma situação histórica diferente, daí a sua progressão em
termos de complexidade. O fato, entretanto, de que os contextos
que ensejaram o surgimento e funcionamento de cada modo de
geração de sentido não permite assumir que desapareceram
quando desaparece o respectivo conceito. Pelo contrário: como
as palavras, os modos de geração de sentido permanecem
disponíveis para as sociedades, para a produção de todo tipo de
narrativas, mesmo que seu uso seja limitado ou pouco frequente.
Num brevíssimo sumário, os modos de geração de sentido
histórico em Rüsen são quatro: tradicional (a narrativa anula o
tempo, com o que aumenta a força do passado no condicionamento
do presente, às vezes indiferenciando qualitativamente o passado
e o presente, ou “encapsulando-o” de modo que ele não seja
notado como passado); exemplar (a narrativa acolhe a diversidade
de passado e presente, torna o tempo abstrato ao eleger situações
universais em que, em geral, se repetem princípios, nos quais o

191
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

passado é tomado como exemplo para significar o presente e o


futuro); crítico (a narrativa nega os fundamentos e as condições
de validade das narrativas anteriores); e genético (a narrativa
“temporaliza” o tempo, ou seja, absorve a historicidade, a
relatividade e a mudança como condições do significado atribuído
ao tempo).
Os quatro modos variam, desde nossa perspectiva, a partir de
três pares de fatores: coletividade/indivíduo; passividade/atividade
do sujeito; passado/devir. Com isso, afirmamos que, nos primeiros
modos, a produção de sentido repousa na coletividade, e tende
a ser única ou monolítica, enquanto, nos últimos, a produção de
sentido pende para os indivíduos ou pequenos grupos, e por isso
fragmenta-se. Vai-se da maior passividade à maior atividade dos
sujeitos isolados, quando se transita do modo tradicional rumo
ao modo genético. Por fim, o centro de gravidade do sentido
produzido desloca-se sucessivamente do passado para o
futuro, conforme se transita do modo tradicional ao genético. Ao
conviver no presente, os quatro modos dão conta da diversidade
de situações nas quais os indivíduos e grupos significam-se e
significam o mundo no tempo, mas é lícito pressupor que as
pessoas e os grupos dominam (ou deixam de dominar) e usam (ou
deixam de usar) de forma desigual os quatro modos de geração
de sentido histórico.
Agnes Heller, por sua vez, trata de “estágios da consciência
histórica”. Para descrevê-los, utiliza uma sequência canônica
de contextos históricos que vai dos tempos primitivos à pós-
modernidade, associando a cada um deles um estágio da
consciência histórica. Vamos contra as aparências quando
sustentamos a interpretação de que não se trata de um esquema
evolucionista ou etapista, que de resto não seria consistente com
a fase do pensamento de Heller em que esta obra vem a público.
Ela reconhece que não escreveu sobre todas as representações
possíveis sobre o tempo, mas que se concentrou naquelas que
diziam respeito, em suas palavras, à “nossa história” (HELLER,
1993, p. 391), justamente para criticar seus limites e construir
outras possibilidades. Como visto, essas possibilidades não abrem

192
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

mão do compromisso individual por um ideal, que deve, entretanto,


se submeter aos valores de liberdade, igualdade, fraternidade,
democracia e pluralidade (HELLER, 1993, p. 367 et seq.).
A sequência de estágios não tem um valor ascendente,
mas termina em confusão e em possibilidade e não vai além do
presente daquele momento. Por isso, entendemos “estágios”
não como degraus, mas como contextos, cenários ou até mesmo
“palcos”, que seria uma tradução possível do termo em inglês,
stages, utilizado pela autora em seus originais. Nossa leitura
é a de que Heller recorre ao esquema de contextos históricos
típico da narrativa canônica da história ocidental em busca de
conjunturas históricas que permitam associar as variações na
consciência histórica às sucessivas respostas às perguntas “quem
somos, de onde viemos e para onde vamos”, que, ao mesmo
tempo, constituem a consciência histórica de um tempo e fazem/
produzem sentido dentro dele. Por isso, a tipologia de Heller não
tem a necessidade de ser exaustiva, já que sua função não é
explicar toda a história, mas teorizar a relação entre a historicidade
e as construções humanas e sociais do sentido do tempo.
A categorização de Heller para a consciência histórica é
baseada na noção de generalidade, que significa a condição pela
qual a origem do sistema de valores, modo de vida e instituições
de um grupo é associada – pelo grupo – à própria origem do
universo; é o oposto de universalidade, que é a condição pela
qual o grupo entende que todos os seres humanos partilham da
mesma origem, independentemente de seus valores, hábitos e
instituições. A generalidade pode ser não refletida e refletida:
no primeiro caso, a condição humana é entendida como restrita
ao clã ou tribo, e, no caso da generalidade refletida, a condição
humana é entendida como não-privativa da própria tribo ou clã.
Mais que explorar a terminologia criada por Heller para
tipificar os diferentes estágios da consciência histórica, cumpre
identificar as características de cada estágio com o contexto
histórico ao qual é associado, com o fim de compreender como
a autora descreve as características da consciência histórica em
cada um deles. Cumpre afirmar ainda que o quadro geral dos

193
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

estágios da consciência histórica de Heller é estruturado pela


ideia de identidade coletiva.
A ideia de generalidade não refletida pode ser pensada como
estrutura básica para o modo tradicional de geração de sentido
de Rüsen. Como tal, sobrevive na contemporaneidade sempre
que algum fator da cultura histórica desaparece do horizonte de
elementos históricos, isto é, passa despercebido, é tomado como
fora da história, isento de historicidade, sem tempo. O tradicional
está ligado a alguma forma de narrativa de origem que estrutura
ordens e comportamentos, mesmo dentro das sociedades
modernas e pós-modernas. Grosso modo, um exemplo poderia
ser o “descobrimento do Brasil pelos portugueses”, mito de origem
que permite ordenar-nos pela condição europeia. A autora admite
um estágio próximo a esse em que são reconhecidos outros
grupos humanos; mas permanece a ideia de que a origem do
universo está vinculada exclusivamente à origem do próprio grupo.
Trata-se do estágio da generalidade refletida da consciência
histórica. Neste estágio e no anterior, o tempo é praticamente
imóvel, passado, presente e futuro são indistintos.
As raízes do modo exemplar de produção de sentido de
Rüsen, a nosso ver, podem ser buscadas nas experiências
gerais compiladas por Heller em torno dos conceitos de estágio
da generalidade refletida em particularidade e universalidade
não refletida. Nesses dois estágios, o tempo se move, quer
dizer, o ontem deixa de ser igual ao hoje e ao amanhã. A
partir do registro escrito e do estabelecimento do Estado e
da sucessão de governantes e outros personagens que são
recordados, estabelece-se o movimento que torna possível o
tempo. O comportamento do indivíduo passa a ser bom se é
bom para o grupo, e, para isso, depende do conhecimento dos
registros históricos e das leis, para que os bons sejam imitados
e os maus (os que prejudicam o grupo) repelidos. O acesso
aos registros tem esse poder de produzir a imitação dos bons
porque o texto fundante não é passível de interpretação, não é
relativizável, ele encarna princípios universais. Apesar disso, ou
exatamente por isso, a ação individual ou coletiva é discutível,

194
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

é possível argumentar quanto ao valor ou à legitimidade das


ações, presentes ou passadas, a partir do referencial histórico
estabelecido. Este é, a nosso ver, o mecanismo básico do modo
exemplar de geração de sentido de Rüsen, ou seja, a seleção
entre o positivo e o negativo a partir de referências anteriores que
não estão em questão ou em discussão.
Ao invés de soterrados pelo tempo passado, esses estágios
da consciência histórica sobrevivem na atualidade por meio de
fenômenos antropológicos como o etnocentrismo (no sentido
mínimo de condição para a formação de grupos estáveis,
reconhecendo que o grupo ao qual pertencemos tem um algo
mais que justifica nosso pertencimento a ele). Toda a pedagogia
cívica das festas nacionais, nomes de ruas e panteões dos heróis
da pátria sustenta-se como permanência de modos exemplares
de geração de sentido. Podemos, por fim, lançar a hipótese de
que os fundamentalismos religiosos e os conservadorismos
comportamentais (a homofobia, por exemplo) são expressões
extremas de modos exemplares de geração de sentido, reagindo
a um contexto de mudanças constantes em que os referenciais
estão em movimento e transformação.
As estruturas básicas de pensamento e narrativa crítica
sobre a identidade no tempo estão presentes de formas distintas
nos estágios da particularidade refletida em generalidade (cujos
modelos são a renascença e o iluminismo) e da universalidade
refletida (contextos da revolução francesa e da revolução russa).
Para ambos os estágios, a narrativa histórica promove a negação
das estruturas da produção de sentido dominante, propondo
progressivamente outras bases de afirmação que buscam superar
a versão anterior. No estágio da particularidade refletida em
generalidade, estabelece-se que o grupo ao qual pertencemos
constitui a cultura particular mais adequada à condição humana:
o renascentista escolhe o passado clássico, o iluminista cerca-se
da razão e do conhecimento científico para elevar-se em meio à
superstição e ao tradicionalismo que combatem. No estágio da
universalidade refletida, a história é reconhecida como o palco
da ação de todos os grupos, que competem entre si a partir de

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

diferentes projetos de futuro. Em ambos os casos, deixa-se de


conceber a história como fado em função da ideia de história
como palco da ação de indivíduos e grandes coletividades que
podem alterar e dirigir seu rumo. Trata-se, afinal de contas, das
consciências históricas do homem moderno, finalmente separado
da natureza e buscando governá-la com gênio inventivo e trabalho,
movendo recursos e populações para moldar o progresso.
Diferentemente dos modos de geração de sentido histórico
de Rüsen, que por definição produzem sentido e orientação,
Heller concebe, na sua categorização de estágios da consciência
histórica, estágios que não produzem sentido e orientação, mas
sim confusão. Trata-se do contexto da modernidade tardia, em
que as promessas de racionalidade e liberdade criam sociedades
e economias que produzem o contrário desses princípios
prévios. Nesse quadro, constata-se que a racionalidade gera a
irracionalidade: guerras em nível industrial, extermínio, racismo,
destruição da cultura, possibilidade concreta da autoaniquilação
da humanidade. Diante da falência dos valores, as ideias
de verdadeiro e correto perdem sentido, e estabelece-se a
possibilidade de descrença com todos os ideais.
Após a arrogância da ideia de controle sobre a história, abate-
se o sentimento de impotência do homem diante da história e
o colapso simultâneo das filosofias da história. Por mais que se
aprofunde a racionalização no pensamento, ela é concomitante
com a irracionalidade das práticas. E o problema não está apenas
nos negadores da ciência, que fundamentam seus raciocínios em
conceitos fundamentalistas pré-modernos, mas nos próprios valores
da modernidade, que geraram interesses econômicos e impulsos de
consumo que não conseguimos, como coletividade, superar.
Heller nomeia três formas de filosofia da história que são típicas
da confusão da consciência histórica: o “Instituto de Pesquisa da
Factidade”, o “Grande Hotel do Abismo” e o “Hospital Psiquiátrico/
Radicalização do Mal”. O Instituto de Pesquisa da Facticidade
representa o neopositivismo e a rejeição das questões de fundo
em nome do pragmatismo. O Grande Hotel do Abismo representa
o conformismo com o horror e a impossibilidade de redenção

196
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

humana. Por fim, o Hospital Psiquiátrico e a Radicalização do


Mal representam a perspectiva de absorver como identidade os
processos que sofremos: entregar-se à violência, marginalização,
patologização, fundamentalismos místico-religiosos.
Heller propõe que o estágio atual de consciência histórica
seja pensado/construído como Responsabilidade Planetária, o
que só é possível abandonando a ideia de que o futuro foi pré-
estabelecido e, portanto, limita nossas ações (filosofia da história),
e adotando o futuro como projeto com espaço para a pluralidade, a
incerteza e o compromisso (teoria da história). Heller acredita que
sua reflexão sobre consciência histórica prepara para a proposta
maior: um projeto que é socialista porque baseado em liberdade,
igualdade e fraternidade (e não na produção ou no capital). A
partir daí, para ela, será possível atribuir sentido à história (por
meio da historiografia) com base nos valores com os quais nos
comprometemos.
Nessa interpretação, teoria da história e historiografia nunca
são neutras, são parciais porque se colocarão sempre ao lado dos
que mais sofrem. Isso permitirá encontrar regularidades entre as
diferentes narrativas históricas, mas nunca leis deterministas. O
progresso pode ser uma ideia reguladora que indica as decisões
corretas a tomar, isto é, aquelas que não implicam em sofrimento
humano.
Além disso, a manutenção do progresso como ideal mantém
a noção de descontentamento, o qual conduz à reivindicação
por liberdade e igualdade. Segundo a filósofa, perante o horror,
todos sentem angústia – não por serem responsáveis diretos
por ele, mas pelo sentimento de que poderiam ter feito algo para
evitá-lo. Tal sentimento é mobilizador de ações individuais que
podem motivar os demais e causar grandes impactos (HELLER,
1993, p. 366). A coragem cívica necessária para a mobilização
não se constrói no vazio, mas no compromisso com valores e
ideias que pareçam justos e racionais e, portanto, permitam a
adesão dos outros, pois “a humanidade nunca produz valores
que não possam ser observados e constantemente sustentados”
(HELLER, 1993, p. 368).

197
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

Nesse ponto, Heller recorre à noção de utopia. Como a teoria


da história não pode formular projetos de futuro obrigatórios,
precisa recorrer a “[...] uma imagem da universalização factual
e da concretização daqueles próprios valores enraizados na
segunda lógica da sociedade civil”4 (HELLER, 1993, p. 370).
Nota-se um esforço, por parte da autora, em conciliar ideais
abstratos à construção de novos futuros concretos (mais justos
e mais igualitários) com respeito à democracia e à liberdade de
engajamento. A realização da utopia implica num compromisso
com o princípio de que nenhum ser humano pode servir de
instrumento para nada. Quem assume tal compromisso sabe
que será combatido por aqueles que se beneficiam do uso das
pessoas para satisfação de suas próprias necessidades.
Para sair desse impasse, Heller recorre à argumentação
racional (citando Apel e Habermas) e à obrigação de propor
caminhos alternativos, que convidem os outros a partilhar da
utopia e obriga à aceitação da pluralidade de posturas. Esse
tipo de teoria da história não garantirá o êxito dos ideais, mas
sustentará a perseverança de agir por eles.

Tendo isso em mente, devemos estabelecer objetivos adequados


à ideia de uma utopia, não esperando o “acontecimento” desta
utopia, mas contribuindo para a construção de um mundo que
possa sustentar uma maior semelhança com ela do que este
no qual vivemos. Se fizermos tudo o que podemos para criar um
mundo, de algum modo, mais parecido com esta utopia do que
nosso, haveremos de ter cumprido nosso dever, quer obtenhamos
sucesso integral ou não. E, havendo cumprido o dever, poderemos
usufruir nossa vida, a única que temos. (HELLER, 1993, p. 370,
grifos originais).

Heller, portanto, reflete sobre consciência histórica para


construir um projeto de ação e de compromisso com o futuro que

4
Em Heller, a segunda lógica da sociedade civil é socialista e se fundamenta
nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

198
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

não cai nas armadilhas da modernidade iluminista, mas tampouco


abandona ideais que podem nos afastar do desespero e do
relativismo irresponsável. Nossa interpretação sobre os processos
de atribuição de sentido ao tempo sugeridos por Heller permite a
aproximação com utopias político-educacionais enunciadas por
professores de história em diversas pesquisas realizadas pelos
autores entre 2009 e 2016. Nessas pesquisas, utopias político-
educacionais ganham sentido concreto pela relação próxima com
as vidas dos jovens estudantes e pelo sentimento de haver feito
o certo e o possível para construir um mundo melhor, respeitando
a pluralidade e o engajamento de cada um.

Minha utopia é que ninguém tenha que colocar o menino na escola


particular para ter numa escola boa. Essa eu acho que é a maior
de todas. Eu quero que todas as escolas sejam boas.

Quando eu comecei eu queria mudar o mundo. [...] E ao longo do


tempo eu fui percebendo que [...] é meio que [...] semear [...] Eu
luto para que todos eles cheguem numa determinada porta.

Améliorer l’égalité des chances de tous les élèves. Les préparer au


mieux au monde de plus en plus complexe qui les entoure. Leur
donner un sens critique réel.

É uma sementinha que eu me sinto na obrigação de plantar {risos}.


Se isso vai influenciar ou não, como o espaço é curto, eu não
consigo perceber, mas eu consigo perceber avanços, mesmo que
seja sobre o conteúdo mesmo.

La relación que nos puede traer mejores consecuencias para


todos es el pensar cómo vive cada uno y cómo podemos vivir
conjuntamente, pero siendo mucho más empáticos, mucho más
tolerantes.

[Melhorar] a relação deles com o ensino. Porque o aluno de EJA


vem com uma autoestima muito baixa em relação à escola.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

Dans l’idéal, apporter des enseignements supplémentaires qui


permettent davantage l’émancipation des élèves, avec en tête
l’éducation à l’écologie/ la nature et l’éducation à la politique (et
pas seulement leur dire «il faut aller voter», qui n’est pas suffisant
pour pouvoir se dire citoyen).

Eu sempre faço uma discussão inicial sobre: “por que a gente


estuda história?” […] Pra ver que história não é só coisa velha,
que influencia no dia dele hoje. [...] É porque eu estou querendo
prepará-los para pensar.

Yo creo que es un compromiso, como es ser profesor de historia y


ciencias sociales, es un compromiso. Que adquieres con tu mundo,
con tu sociedad, con tu entorno, con … con tu presente, pues eso,
con tu presente y con tu futuro y con el futuro de los demás.
(Testemunhos de professores de história brasileiros, espanhóis e
franceses, recolhidos pelos autores entre 2011 e 2016).

Em Rüsen, essa concepção de um futuro aberto, que considera


que o devir, bom ou ruim, resulta basicamente do conjunto das
atitudes humanas e, portanto, passível de compromissos com
acordos construídos socialmente e de elaboração de utopias,
expressa-se com clareza na atitude abrangida pelo conceito de
modo genético de produção do sentido, como veremos a seguir.
Para Rüsen, ainda a utopia parece estar vinculada à própria
operação da consciência histórica, no movimento de articulação
entre a experiência interpretada do passado na ação do presente,
articulada pela expectativa projetada de futuro. A projeção do futuro
sempre traz um superávit de intencionalidade que é a estrutura
básica da utopia. Quando se trata do movimento cotidiano
da consciência histórica, a projeção de futuro é geralmente
“conservadora” e calcada apenas nas possibilidades interpretadas
como viáveis para a realidade entendida pelos sujeitos.
A utopia, por sua vez, vai além do que é visto como factível
no momento, é o exagero da representação do que deveria ou
poderia vir a ser (seja desejo, seja medo), para além do limite

200
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da plausibilidade, no sentido do inédito. Embora inviável no


presente, a utopia também pode orientar ações que se acredite
que promovam progressivamente sua a viabilidade.

A consciência utópica baseia-se num superávit de carências com


respeito aos meios dados de sua satisfação. Ela possui a função
vital de orientar a existência humana por representações que
vão, por princípio, além do que é, empiricamente, o caso. Utopias
funcionam como sonhos da consciência histórica sempre que se
trata de articular conscientemente (despertas), como orientadoras
do agir, representações de circunstâncias de vida desejáveis. As
utopias são, pois, os sonhos que os homens têm de sonhar com
toda a força de seu espírito, para conviver consigo mesmos e com
seu mundo, sob a condição da experiência radical da limitação da
vida. (RÜSEN, 2007b, p. 138).

A historicidade do mundo e a consciência da história como


responsabilidade planetária

Nos anos 1980, ainda em plena ameaça de uma guerra


nuclear entre norte-americanos e soviéticos, a série de televisão
Cosmos abriu as janelas do pensamento científico a meio bilhão de
terráqueos que assistiram à série. A série foi concebida e realizada
por Anne Druyan e Carl Sagan, este também o apresentador
dos episódios. No último deles, Sagan afirmava: somos nós que
respondemos pela terra, nós temos a responsabilidade, como
resultantes de todo o movimento e evolução oriundos do Cosmos,
de sobreviver e garantir que a nossa espécie continue a buscar
suas origens, em uma convivência cada vez mais saudável e
empática com os semelhantes, as demais formas de vida e com
o próprio universo. Parece-nos que é esse o espírito daquilo que
Heller chama de “responsabilidade planetária”, que só é possível
de construir no modo empático e relativista de produção de
sentido histórico que Rüsen batizou como “genético” e que Heller
soluciona com a utopia.

201
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

Quem ensina história, principalmente na escola, está envolvido


em relações temporais complexas. Como cidadão, procura
compreender seu mundo, posicionar-se, agir politicamente, tomar
decisões de ordem pessoal. De outro lado, é educador: trabalha
com jovens que são muito diversos. Elementos de futuro, de
esperança, de tradição e de renovação envolvem suas escolhas
profissionais. Por fim, é um educador que ensina história: a
organização do trabalho pedagógico específico do ensino de
história também passa pelas formas como cada professor combina
seus referenciais teórico-metodológicos, suas experiências com
os estudantes e suas utopias político-educacionais, entre outros
elementos.
A falência do projeto moderno e a recusa da confusão da
consciência histórica estabelecem, tanto para Heller quanto para
Rüsen, uma tarefa dupla: a compreensão da pós-modernidade,
por um lado, e a proposição de um modo de orientar-se nela.
Superadas, todas as doutrinas que propõem de algum modo a
suspensão do juízo a partir da adesão a qualquer código que
se ofereça como válido por estar fora ou acima do tempo ou da
historicidade, a esfinge se põe uma vez mais diante de nós e, em
especial, diante de quem pretende ensinar história na escola, em
que as demandas sociais de diversos grupos outrora excluídos
das narrativas oficiais se fazem ouvir e para as quais, por vezes,
a historiografia acadêmica não possui todas as respostas.
O estágio que surge na atualidade, segundo Heller, é a
generalidade refletida enquanto tarefa, quer dizer, a condição
humana, embora acessível a todos, tem sido restringida, pelas
nossas próprias ações como espécie, a uma parte apenas da
humanidade. Assim, a generalidade refletida só existe como
projeto que se constrói e se reconstitui continuamente. Caracteriza
este estágio de consciência de que a razão não é absoluta sem
valores, e que os valores devem ser construídos no diálogo e
sem imposição de pressupostos que não possam ser discutidos,
bem como o desejo de construir condições de vida em comum
respeitando as diferenças. A razão, assim como a verdade, não
é absoluta, nem inacessível coletivamente, ao ficar encerrada

202
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

em mundos particulares, mas sim relacional, ou seja, construída


sobre o alicerce dos consensos possíveis, ou segundo Rüsen,
“racional” no sentido do caráter argumentativo indissociável da
cientificidade (RÜSEN, 1989, p. 323). Com a consciência de
que a razão também produziu dominação, novas dependências
e insensatez, e portanto longe de um culto acrítico à ciência, é
possível identificar no modo genético de produção de sentido
alguns elementos comuns com aspectos caros à cientificidade: a
historicidade e a provisoriedade dos conhecimentos e enunciados,
a força do melhor argumento e o diálogo ou intersubjetividade na
definição dos consensos possíveis. O que Heller pode aportar,
num tom mais político, é que todo esse aparato faz sentido na
perspectiva de produzir consensos que evitem o sofrimento e
maximizem a felicidade possível.
Trata-se de uma perspectiva ao mesmo tempo esperançosa
e ciente/cética de sua frágil condição, dependente dos sucessos e
consensos construídos, compreensão em que se nota, mais uma
vez, a influência da concepção de política e de milagre de Arendt.
Embora tal pensadora evite o uso da palavra “utopia”, entendemos
que ela não recusa a necessária esperança de que futuros
possíveis sempre podem ser construídos, ao mesmo tempo em
que se preservam aqueles aspectos do mundo que ainda nos
são caros. Esta necessidade de preservação se expressa,
por exemplo, na recusa de Heller em excluir a democracia e a
pluralidade de seu pensamento.
Diante dos desafios da pós-modernidade, também Rüsen
busca suas respostas. Em seus textos publicados no Brasil,
respectivamente em 1989 e 1997, realiza um balanço parecido
entre a persistência da possibilidade da razão na História e
as encruzilhadas do pensamento pós-moderno. Além disso,
postulamos que o conceito de modo genético de produção de
sentido histórico seja equivalente, em grande parte, à ideia
helleriana de consciência da generalidade refletida como tarefa, ou
responsabilidade planetária. Percebe-se a incorporação da crítica
pós-moderna ao papel político e social da história – deslocamento
do paradigma sem abandonar a possibilidade de razão e verdade,

203
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 179-207, jul./dez. 2017

mas também sem negar o papel do não racional, afetivo e ficcional.


O modo genético de geração de sentido histórico reúne as
condições para a orientação temporal do sujeito no contexto
pós-moderno. Entende e aceita a mudança como o componente
essencial do tempo, compreende e assimila a historicidade de
todo discurso e de toda instituição como condições da leitura
do mundo e de sua escritura. Reticente a qualquer sistema que
estabeleça o monopólio da produção de verdades absolutas,
resiste também à confusão e à desorientação que resultam tanto
da negação da possibilidade de verdade quanto da fragmentação
da mesma para cada microcosmo identitário, espaços isolados
em que as verdades privadas encontram validade circunscrita.
Entretanto, Rüsen não estende suas considerações sobre o futuro
ou a utopia de forma tão incisiva quanto Heller, que reitera, em
sua teoria da história, que seu ponto de vista é ao lado dos que
mais sofrem. Além disso, ela convida os leitores a se mobilizarem
da mesma forma e expressa sua profissão de fé sobre um mundo
melhor do que hoje: “nosso século não há de terminar do mesmo
modo vergonhoso como começou e desenrolou-se” (HELLER,
1993, p. 366).

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Recebido em agosto de 2016.


Aprovado em junho de 2017.

207
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-8

O OFICIO DO HISTORIADOR:
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE PASSADO EM
SUAS DIMENSÕES SOCIAIS E HISTÓRICAS

João Paulo Pereira Coelho*


José Joaquim Pereira Melo**

RESUMO: O uso do passado como uma experiência legitimadora


de interesses e demandas do presente tem suscitado debates
por parte dos historiadores. Diante de tal questão, analisam-
se as diferentes formas de apropriação do passado pelos
homens, considerando-se os enfrentamentos sociais ocorridos
historicamente. Entende-se que essas lutas fazem com que
o passado seja objeto ora de negação, ora de reiteração no
presente. Tal antagonismo exprime a complexidade das relações
humanas, que são constituídas por meio da totalidade social
na qual o homem é formado. Cabe, portanto, ao historiador,
problematizar o entendimento que a sociedade faz a respeito do
passado e situá-lo para além das representações que os homens
fazem de si mesmos.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria da História. Formação Humana.


Historiografia.

ABSTRACT: Use the past as a legitimizing experience of interests

* Professor de História da Educação e Políticas Educacionais do Curso de


Pedagogia da Universidade Estadual do Paraná. Doutor em Educação:
História e Historiografia da Educação pela Universidade Estadual de Maringá.
Contatos: [email protected]; [email protected]
** Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa
de Pos-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá.
Doutor em Educação pela UNESP. Contatos: [email protected]

209
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

and actual demands has evoked debates by the historians. Faced


with this question, we analyze the different forms of past ownership
by men, regarding the social clashes occurred historically. It is
understood that these struggles make that the past be a denial
object and in other case a reiteration object in the present. Such
antagonism expresses the complexity of human relationships
that are made through the social totality in which the human
being is formed. So, it concerns to the historian to problematize
the understanding that society has about the past and to place
it beyond the representations that men make about themselves.

KEYWORDS: History Theory. Human Formation. Historiography.

Introdução

As reflexões sobre o sentido do passado para o ofício do


historiador implicam, inicialmente, uma abordagem do conceito
de tempo, o qual tem inquietado os historiadores indistintamente
de suas orientações teórico-metodológicas.
Analisando-se o conceito de tempo como uma representação
simbólica, e, portanto, distinta da expressão concreta da vida
humana e dos ciclos da natureza, observa-se que esse expediente
foi concebido tardiamente com o advento da indústria. O tempo
regulado pelo relógio e pelo calendário, aplicado de maneira
imperativa sobre a existência do homem, tinha como objetivo o
controle e a exploração do homem dentro e fora do espaço da
fábrica: “Assim, as máquinas do tempo (o relógio) abrem caminho
para a sociedade das máquinas” (ATTALI, 1985, p. 67).
À medida que o tempo se colocou como o referencial para
a mensuração da expropriação da força de trabalho, instaurou-
se um processo de transformações na forma de vida dos
trabalhadores. Estes foram submetidos a esse tempo relógio,
que sincroniza suas existências com as requisições temporais do
trabalho, suas vivências sociais com as obrigações decorrentes

210
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

dessa nova forma reguladora do tempo para a execução do seu


ofício no espaço de produção (HOBSBAWM, 2004). Conforme
o relato de um marceneiro britânico, que expõe em um bilhete
a um amigo as novas relações de trabalho a que foi submetido,
em 1848: “o tempo não mais nos pertence, por isso amanhã não
poderei ir à sua casa, mas se você puder vir à praça da Bolsa,
entre duas e duas e meia, nós nos encontraremos como sombras
miseráveis nas bordas do inferno” (PIKE, 1974, p. 67).
As novas articulações entre tempo e trabalho devem ser
consideradas nas vivências sociais do historiador do presente.
Este deve ter consigo o entendimento de que o conhecimento ou
a análise da História têm como base sua própria época, de forma
que, ao dialogar com o passado, ele contemple os embates e as
contradições que são próprias do seu presente.
Em outros termos, a pesquisa acadêmica não se desenvolve
de forma alheia às práticas sociais cotidianas dos homens, uma
vez que sua intencionalidade está, em parte, intimamente ligada
ao exercício do historiador.
Guardadas as devidas proporções e considerando as
identificações estabelecidas entre o historiador e sua época,
entende-se que, para que se possa realizar uma reflexão a respeito
do sentido do passado – referencial inerente a esse ofício –, é
necessário ir ao encontro de sua historicidade. “O tempo, como
categoria central da História”, ao ser analisado, “não se apresenta,
porém, como uma unidade, uma síntese”, mas deve ser “entendido
em seus momentos constitutivos” (CASTANHO, 2010, p. 63),
como resultado e produto das relações humanas, das práticas
sociais promovidas pelos homens em seus enfrentamentos e
embates, em suas lutas. Ou seja, o homem fazendo sua história.
Todavia, buscar o entendimento da forma como a sociedade
se apropria do passado é um exercício fundamental para o oficio
do historiador. Assim, passado e memória são conceitos que:
“apesar de oscilantes, são noções fundamentais para o trabalho
histórico, porque operam exatamente no coração da mudança”
(CASTANHO, 2010, p. 64).
Neste âmbito, os subsídios da memória à legitimação do

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

passado constituem-se uma discussão profícua. Por um lado, na


contemporaneidade caracterizada pelo tempo urbano e industrial,
o passado a ser conformado pela memória constituiu-se, por
vezes, como um instrumento para a legitimação da história dos
vencedores – pautada, por exemplo, por ideais nacionalistas e
de progresso. Por outro, a valorização da memória promovida por
grupos sociais minoritários, quando circunscrita à individualidade e
à subjetividade do sujeito, perde complexidade, desconectando-se
de experiências sociais em uma perspectiva cultural mais ampla.
Assim, não se pode desconsiderar que a definição de
passado é sempre instável, volátil e, em muitos casos, até mesmo
comprometida com interesses que se impõem pelo momento
histórico em que o historiador vive: legitimar a ordem posta,
em termos de produção e reprodução da vida, ou negar sua
excelência como referencial para a nova ordem social que se
pretende efetivar, visto que aquela já não atende às demandas
que se colocam para seu tempo.

O conceito de passado: considerações históricas e sociais

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que


vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas –
é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do
século XX. (HOBSBAWM, 2010, p. 13).

Faz parte do processo de construção da história humana a


compreensão de que o passado é expressão da vida dos homens
ao longo dos tempos. Esta consciência a respeito do tempo
passado pôde ser constituída com base nas vivências sociais,
em espaços compostos pelas experiências humanas de sujeitos
pertencentes a diferentes gerações.
A consciência do passado desenvolveu-se, portanto, por
meio de trocas sociais e culturais em períodos históricos em
que os mais velhos, como expressão maior das experiências
da vida comunitária em épocas pretéritas, constituíam-se como

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

mediadores entre o passado e o presente. Assim, formavam as


novas gerações para terem consciência de que eram membros
de uma comunidade, cuja dimensão era coletiva e social (MARX,
1986).
A defesa da continuidade cultural e social que compõe a
história humana, nesse sentido, não significa uma negação
do processo de mudanças que a humanidade vivencia e, por
extensão, transforma. Faz parte da busca pela preservação da
existência o comprometimento do homem com a reiteração da
cultura transmitida ao longo dos tempos (HOBSBAWM, 2004).
Foi a partir dela que se estabeleceu um novo tempo, uma nova
ordem social.

Em suma, [...] é possível concluir que o novo só se estabelece


na luta contra as velhas formas de comportamento, na utilização
de materiais, suportes e subsídios do passado para justificar ou
sedimentar os comportamentos emergentes. Por outro lado, isso
permite também identificar as marcas que o passado deixa nos
homens de outras épocas e em que circunstâncias isso acontece.
(PEREIRA MELO, 2010, p. 27-28).

Assim, as heranças do passado são as bases para a


manutenção e a sobrevivência das gerações vindouras, ou seja,
para a perpetuação de todo um legado social cultural produzido
e acumulado por um povo.
O sujeito é, portanto, expressão dessa complexidade social,
uma vez que, ao mesmo tempo em que vai ao encontro das novas
demandas impostas pelo momento histórico vivido, vivencia –
particularmente em sua cultura – experiências individuais que
reiteram seus laços com o passado (HOBSBAWM, 2010) e
garantem sua vigência e perenidade em outras gerações. Assim:
“Esse ‘ir e vir’, presente-passado, exige um ‘exorcismo’ das
influências e dos ‘preconceitos’ da dinâmica social do presente.
Para se projetar em momentos históricos distanciados no tempo,
[...] é necessário encontrar um modo peculiar de entender a
realidade. (PEREIRA MELO, 2010, p.22-23).

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

Isso é expressão do reconhecimento de que a consciência


de humanidade está revestida de singularidades, ainda que esse
valor seja constituído com base em toda a produção humana do
passado. O homem é um ser singular e, ao mesmo tempo, social
e histórico, inserido em uma totalidade sem fronteiras:

A memória individual constitui o fundamento da noção do eu,


daquilo a que chamamos identidade pessoal. Isso não significa que
seja isenta de aspectos da memória social do grupo ou da classe
social de que o indivíduo é originário. Pelo contrário; no indivíduo
subsistem os fundamentos de sua identidade pessoal com traços da
cultura em que ele foi formado, e em que continua sendo formado.
(CASTANHO, 2010, p. 57).

Diante dessa complexidade humana, o desafio que se


apresenta ao historiador de ofício é analisar o passado em sua
transformação e com base no movimento que esse próprio
passado apresenta (CASTANHO, 2009). Com isso, o retorno ao
passado implica tanto a busca pela conservação de suas heranças
culturais e sociais quanto a gênese de suas transformações.

A crença de que a “sociedade tradicional” seja estática e imutável


é um mito da ciência social vulgar. Não obstante, até um certo
ponto de mudança, ele pode permanecer tradicional: o molde do
passado continua a modelar o presente, ou assim se imagina.
(HOBSBAWM, 2004, p. 25).

A concepção de passado, portanto, não se reduz à ideia


de “conservação”, mas abrange a de que ele é um valor que
faz dos homens seres históricos, comprometidos com suas
heranças culturais e sociais, mesmo em contextos em que
já são identificadas rupturas em suas estruturas. É na busca
pelo entendimento dessa dinâmica que se pode compreender
o “coração da mudança” (CASTANHO, 2010, p. 64) que está
em curso, as circunstâncias nas quais a sociedade não tinha
precisado de maneira objetiva a si mesma e as transformações
que suas vivências já comportavam:

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

Mas sempre terá interstícios, ou seja, matérias que não participam


do sistema da história consciente na qual os homens incorporam,
de um modo ou de outro, o que consideram importante sobre a
sociedade. A inovação pode ocorrer nesses interstícios, desde que
não afete automaticamente o sistema e, portanto, não se oponha
automaticamente: “não é desse jeito que as coisas sempre foram
feitas”. (HOBSBAWM, 2004, p. 23).

É necessário considerar que essas transformações sociais


em curso, quando atingem um maior amadurecimento, um ponto
culminante, são externadas pelos sujeitos de maneira consciente.
Este estado de mudanças é resultado da maior complexidade que
as relações sociais vão adquirindo, complexidade esta que acirra
as contradições contidas no interior da sociedade (MARX, 1990).
Característica dessas novas demandas sociais e econômicas
advindas desses processos de mudanças já efetivadas – as quais
se desdobram em embates entre as classes sociais emergentes
e as práticas sociais e políticas que garantiam a manutenção da
ordem posta pelos setores sociais até então hegemônicos – foi
a Revolução Francesa.
O legado histórico do medievo, como o renascimento
do comércio e o desenvolvimento das cidades, havia criado
necessidades que o Estado monárquico francês não conseguiu
suprir (SAINT-JUST, 1996). Para a burguesia que se desenvolve
nos tempos modernos, e que atingia um alto grau desenvolvimento
econômico, tornava-se insustentável manter seus negócios
subordinados aos interesses do Estado absolutista, alinhado aos
privilégios da nobreza e do clero. Portanto, as contradições entre
o Antigo Regime e as necessidades do homem burguês tornaram
a estrutura social francesa vulnerável.
Apesar de ocupar um posto privilegiado, a situação da
nobreza não era confortável. A manutenção de seus títulos de
nobreza exigia altos investimentos. Ainda, como não tinham
experiência administrativa, não possuíam grandes habilidades
para gerenciar suas fortunas (SAINT-JUST, 1996). Diante destes
problemas enfrentados, recorreriam aos privilégios oferecidos

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

pelo Estado, na tentativa de manter seu status quo. Assim, os


cargos diplomáticos e administrativos que antes eram ocupados
pela burguesia – mais diligentes nas questões administrativas –
passaram a ser preenchidos pela nobreza.

Embora a burguesia não cessasse de crescer em número e em


riqueza, desde o início do século, era cada vez mais despojada das
grandes funções públicas. Ao passo que no século XVII a burguesia
havia fornecido ao Estado, ministros, como Colbert, a maioria dos
intendentes, vários magistrados aos parlamentos, oficiais à marinha
e ao exército, prelados a igreja, no século XVIII, todos esses postos
passaram a ser reservados a nobreza. (GODECHOT, 1976, p. 34).

A burguesia identificou na monarquia – com sua forma de


administrar para os privilegiados – valores que fomentavam os
entraves ao seu pleno desenvolvimento. Esta percepção a respeito
do Estado monárquico, ainda que em dimensões diferenciadas,
atingia tanto a burguesia como os trabalhadores. Neste sentido,
Michelet diria que “houve um acordo completo sem reserva, uma
situação simples, a nação de um lado, e o privilégio do outro”
(MICHELET, 1989, p. 95).
Desenvolveu-se um estado de enfrentamento que fez com
que os atores sociais promotores da mudança de então (a
burguesia) deixassem de orientar sua existência pelas práticas
sociais e culturais tidas como pretéritas (HOBSBAWM, 2010).
Estas, por seu turno, já que envelhecidas, não atendiam mais às
necessidades que se colocavam para os homens, o que levou a
burguesia à concepção de que o passado não era uma vivência
com articulações com o seu presente. Este antagonismo evidencia
que as transformações sociais se inserem em uma dinâmica de
demandas e preocupações, por vezes, contraditórias. Assim,
com “o estudo dessas relações, é possível observar que, em seu
bojo, emergem atores sociais que promovem a paulatina negação
do modelo envelhecido e, ao mesmo tempo, desencadeiam um
processo de elaboração do que seria o novo “(PEREIRA MELO,
2010, p. 27).

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

Nesse novo espaço de enfrentamentos, as transformações


desencadeadas pela burguesia no âmbito econômico passaram
a compor a estrutura, no caso, da sociedade francesa. A partir
de então, as forças sociais emergentes começaram a se
sobressair no último espaço de resistência da ordem social em
declínio: a política. Neste âmbito, as conquistas da burguesia
desencadearam, por fim, a defesa de uma ruptura sistemática
com os valores políticos que representavam esse passado a ser
superado.
Vale lembrar que os tempos que antecederam a Revolução
Francesa compuseram a gênese dos princípios de troca
capitalistas, os quais foram se efetivando ao longo da história
humana até se tornarem suficientemente organizados para
subsidiar um enfrentamento polarizado entre burguesia,
representante de uma “nova ordem social”, a aristocracia e o alto
clero, que capitaneavam a “velha ordem social” (MARX; ENGELS,
1990). Contudo, a revolução colaborou para que as experiências
constituídas em épocas anteriores deixassem de compor a base
na qual o homem burguês fundamentaria seu devir histórico.

Vimos, portanto, que os meios de produção e de troca, nos quais a


burguesia erigiu-se, foram geradas na sociedade feudal. Em um certo
estágio do desenvolvimento desses meios de produção e de troca,
as condições sob as quais a sociedade feudal produziu e trocou,
a organização feudal da agricultura e da indústria manufatureira,
resumindo, as relações de propriedade feudais, tornaram-se não mais
compatíveis com as forças produtivas já desenvolvidas. Tornaram-se
grilhões. (MARX; ENGELS, 1990, p. 18).

O entendimento de que o passado expressa diferenciações de


sentido relacionadas a rupturas com as questões econômicas não
significa inseri-lo em uma dinâmica de progresso (CASTANHO,
2009). A sociedade de cada época, em um dado momento, passa
a comportar um grau de amadurecimento e são seus embates
econômicos que oferecem ao historiador a possibilidade de
compreender tal processo de forma mais objetiva.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

Diante de transformações estruturais, é, portanto, infrutífera


qualquer tentativa de restabelecer o passado tal qual ele ocorreu,
ainda que seja recorrente, particularmente entre as classes sociais
em declínio, o clamor pela restauração de valores de uma ordem
pretérita jurídica e social.
No seio de uma nova ordem estabelecida, reiteram-se vozes
dissonantes revestidas de saudosismo de um tempo agonizante
ou já liquidado, muitas vezes romantizado, tendo em vista que
“a hegemonia de uma forma (mudança histórica) não exclui a
persistência, em diferentes meios e circunstâncias, de outras
formas de sentido do passado” (HOBSBAWM, 2004, p. 35).
Constitui-se, desta maneira, a concepção de que o passado
detém uma lição, arquivada no tempo e que não pode ser
esquecida, à qual se recorreria no momento em que se fizesse
necessária. A sociedade, ao não estabelecer este passado como
uma diretriz para o presente, retiraria a autoridade da história para
continuar operando em favor da “manutenção da ordem”.
Observa-se que o sentido do passado, defendido no seio das
classes que buscam sua conservação, apresenta-se revestido
de valores que pretensamente seriam essenciais à vida coletiva,
quando, de fato, essas classes, em primeira instância, lutam pela
manutenção de seu poder:

O passado é um elemento essencial, talvez o essencial nessas


ideologias. Se não há um passado satisfatório, sempre é possível
inventá-lo [...]. O passado legitima. O passado fornece um pano
de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito o que
comemorar. (HOBSBAWM, 2004, p. 17).

Como expressão de uma verdade essencial, o passado


é tido como detentor de uma grandiosidade ideal, sem
contradições, pois a contrariedade está em concordância com o
presente – esse sim, marcado pelas incertezas, inseguranças e
medos que caracterizam a nova ordem social, em processo de
estabelecimento ou até mesmo já estabelecida.
Diante da impossibilidade da recriação de relações sociais

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

e culturais que o passado comportou, observam-se, conforme já


referido, tentativas de reescrevê-lo, sempre tendo em vista buscar,
intencionalmente ou não, um referencial de excelência para
cumprir as necessidades sociais do presente. Essas tentativas
de reafirmar momentos do passado ocorrem especialmente
quando sua pretensa grandiosidade começa a se dissipar ou já
não apresenta caráter homogêneo.
Por vezes, o processo de ressignificação da história se
desenvolve com base na defesa de princípios nacionalistas, como
ocorreu, a exemplo, nos movimentos nacionalistas do século
XX, em particular na Alemanha. A composição da identidade
alemã, que passou por um período de amadurecimento ao longo
do século XIX, foi resultado, em grande medida, de seu vigor
econômico, político e cultural. Contudo, a Primeira Grande Guerra
(1914-1918) anunciou para a Alemanha um período de derrotas
que acabariam por abalar a autoconfiança que, construída ao
longo do passado (HOBSBAWM, 2010), dera ao povo alemão
a ideia de grandeza e superioridade diante dos demais povos.
Em 1918, com o fim da guerra, diante da derrota sofrida, a
prosperidade sem fronteiras culturais e políticas parecia sucumbir
e isso desconstruiu uma identidade cultural tecida historicamente
pela nação alemã ao longo do tempo. Acrescentam-se as
significativas perdas territoriais e a fragilização de uma identidade
nacional fundada em conquistas que fizeram dos alemães um
povo reconhecido e temido por seus feitos expansionistas.
O triunfo de Hitler, a partir de 1933, não teria tomado
contornos de um movimento mais amplo se o nacionalismo não
tivesse se constituído como um elemento basilar dos pretensos
princípios renovadores do estado alemão. Da mesma forma,
o exercício de “reescrever” a própria história alemã não se
sustentaria internacionalmente se o nacionalismo não fosse ao
encontro dos anseios de líderes de países europeus, que viam
no protagonismo internacional do nascente nazismo um caminho
para também trilharem (HOBSBAWM, 2010).
Sem essa busca comum por reinstituir no ocidente um
protagonismo histórico a partir de “revanches” de caráter

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

nacionalista, não seria razoável que líderes conservadores não


fascistas achassem que serem identificados como ligados à
Alemanha “pela mesma ideologia” – como afirmou Salazar, em
Portugal, em 1940 – fosse de fato algo agregador.
Assim, o estado nazista foi buscar na Idade Média uma
narrativa que legitimasse o III Reich, vigente entre 1933 a 1945,
bem como o império constituído por nações conquistadas. Esse
exercício tinha por fim passar à população alemã que o seu governo
representava a continuidade do Sacro Império Romano Germânico,
o I Reich. Dessa forma, punha-se em tela a superioridade e a
nobreza dos alemães frente aos povos europeus. Ao elaborar essa
narrativa, Hitler objetivava dar vigor à identidade e ao nacionalismo
da população e, assim, dar credibilidade ao III Reich,1 ao apresentá-
lo como o governo que estava recuperando um passado glorioso,
marcado por conquistas, que havia feito da nação alemã superior
e temida.

Mas que relação mantém então o presente, e, sobretudo, a moderna


cultura alemã, com o antigo mundo helênico? Após Winckelmann,
Lessing e o Homero de Voss, formou-se a ideia de que entre o espírito
helênico e o espírito alemão existia um “sagrado vínculo nupcial”,
uma relação e uma compreensão toda especial, como nenhum outro
povo europeu do ocidente moderno. (BURCKHARDT, 2010, p. 176).

Considerando esse processo de “recuperação” dos eventos


históricos, é de particular significado que, durante a Segunda
Grande Guerra (1939-1945), Hitler tivesse exigido que a França
assinasse sua carta de capitulação no reconhecido vagão de
trem em que a Alemanha havia assinado sua rendição em 1918
(HOBSBAWM, 2010). Ainda que esse fato possa ser concebido,
simbolicamente, como uma marca da retomada do sentimento de
orgulho nacional alemão, ele expressa também uma tentativa de
(re)instituir um passado glorioso para os alemães à altura de sua
tradição “helênica”.

1
Importa considera que a unificação alemã, em 1870, marca o surgimento do
II Reich, que se estendeu até o final da primeira guerra mundial.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

O que se evidencia nesses eventos, muito mais do que


qualquer sucesso na recriação do passado, é uma sobreposição
de eventos históricos, considerados capazes de atender à
necessidade de regeneração do orgulho nacional perdido. Um
novo fato, carregado de representações emocionais, é utilizado
para ressignificar, à luz do presente, um momento histórico do
passado que, todavia, não pode ser apagado nem refeito, pois
qualquer tentativa de restaurar a História só pode ser concebida
como farsa (MARX, 1997).
Cabe, então, considerar que a história como expressão
das transformações sociais, como resultado de um processo de
lutas, não se submente passivamente a manipulações, contudo
estão sujeitas a serem “manejadas” ao encontro de um ideário
em ascensão em determinados momentos históricos. A história,
neste contexto, pode ser esvaziada de complexidade, perdendo,
assim, vivacidade; uma vez que a pertença do sujeito aos “novos
tempos”, a saber, o tempo em prol da ressignificação do sentido
de cidadania e estado, passa a ser circunscrita ao que deve ser
reiterado ou suplantado de seu passado.

O retorno ao passado em suas diferentes finalidades

As tentativas de se fazer uso do passado para legitimar


valores sociais do presente são recorrentes, já que aparecem
em diferentes épocas históricas. Por mais que seus objetivos,
a princípio, pareçam paradoxais, elas transitam entre suplantar
o passado e se apropriar de suas tradições para atender às
demandas do presente.

Os novos burgueses buscam pedigrees, as novas nações ou


movimentos anexam a sua história exemplos de grandeza passadas
na razão direta do que sentem estar faltando dessas coisas em
seu passado real – quer esse sentimento seja ou não justificado. A
pergunta mais interessante relativa a tais exercícios genealógicos é
se ou quando tonam-se dispensáveis. (HOBSBAWM, 2004, p. 23).

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

Ainda que esse retorno tenha como motivação as articulações


existentes entre passado e presente, desconsidera-se, nesse
percurso, a historicidade dessas tradições (CASTANHO, 2010)
– mais do que sua história, busca-se uma identidade:

O que os marxistas modernos ganharam ou ganham com o


conhecimento de que havia rebeliões de escravos na Roma Antiga –
que, mesmo supondo-se que tivessem metas comunistas, estavam,
segundo a própria análise desses marxistas, fadadas ao fracasso ou
a produzir resultados que trariam escasso suporte às aspirações dos
comunistas modernos? É evidente que a sensação de pertencer a
uma tradição antiquíssima de rebelião fornece satisfação emocional.
(HOBSBAWM, 2004, p. 33).

A configuração da identidade de um grupo deriva da formação


de sua autoconsciência, da capacidade de seus integrantes
expressarem um conjunto de características tidas como próprias,
particulares, e, da mesma forma, de se sentirem pertencentes a
uma esfera social e histórica mais ampla. Nessa esfera, a tradição,
cujos valores são compostos pela memória coletiva, é convocada
a dar coesão ao tecido social que compõe a identidade dos
homens, principalmente nos momentos em que suas convicções
sobre os laços de pertencimento a determinada classe ou grupo
parecem incertas (HOBSBAWM, 2010).
Em um momento em que a constituição da identidade se
encontra em um estágio inicial, ou frágil, a tradição, por estar
essencialmente articulada à experiência e à sabedoria moral, é
utilizada para reforçar os laços de pertencimento dos homens a
um determinado grupo (CASTANHO, 2010).
Da mesma forma, a evocação das tradições por parte de
muitas nações não se caracteriza simplesmente pela busca do
passado, pela tentativa de apresentar as origens de seu povo.
O passado, ao se constituir como uma memória comum, é
particularmente fecundo quando expressa uma descendência
genealógica tida como nobre, que seja revestida de uma pretensa
pureza, linearidade e coesão, o que, se considerado da perspectiva
da lógica dos enfrentamentos sociais, não se sustentaria.

222
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

Aquilo que se chama de identidade nacional – ou, de modo genérico,


identidade social – assenta na memória de um passado comum,
ou pelo menos tido como comum. Por certo, o que é considerado
comum, localizável ou não – e nesse último caso temos o mito
fundador. (CASTANHO, 2010, p. 59).

Se, por um lado, considera-se que o passado conformado


pelas tradições é buscado como um padrão para o presente,
por outro, é necessário refletir sobre o caminho inverso: quando
o presente se estabelece como um padrão “coercivo” para o
entendimento do passado.
A busca por consolidar mudanças na sociedade faz com que,
por vezes, as classes sociais emergentes defendam o presente
como a expressão de toda mudança, porque o que se busca é o
afastamento sistemático do passado. Esses homens passam a
projetar no presente a transformação que as épocas anteriores
não teriam sido capazes de gerir e aplicar em sua realidade:

O problema de se rejeitar sistematicamente o passado apenas


surge quando a inovação é identificada tanto como inevitável quanto
como socialmente desejável: quando isso representa o “progresso”.
Isso levanta duas questões distintas: como a inovação em si é
identificada e legitimada, e como a situação que dela deriva será
explicada. (HOBSBAWM, 2004, p. 29).

Ainda que a ideia de progresso seja um valor que a sociedade


tende a adotar de forma muitas vezes desordenada, é necessário
considerar que esse conceito é primeiramente relacionado ao
âmbito das inovações tecnológicas que podem repercutir em uma
melhoria na vida prática das pessoas. Nesse sentido, a ideia de
mudança pode ser difundida no meio social primeiramente como
uma facilitação na vida prática e funcional das pessoas.
Essa concepção de progresso fortalece o discurso de que
toda mudança é sinônimo do tempo presente, o que, muitas vezes,
simplifica as imbricações entre passado e presente, reduzindo-as
a uma relação dicotômica: atraso/inovação (HOBSBAWM, 2004).

223
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

Contudo, quando se busca analisar o sentido de mudança


e transformação para além das questões que envolvem o uso
da tecnologia, a exemplo dos valores culturais e sociais, tal
simplificação (atraso/inovação) não se sustenta. Os valores
culturais de sociedades anteriores passam a ser incorporados
em meio aos embates que ocorrem no espaço social, na “arena
na qual se digladiam interesses opostos gerados na contínua luta
pela vida” (CASTANHO, 2010, p. 55).
Nesse âmbito, os conflitos sociais tornam-se mais intricados,
pois estão em jogo forças antagônicas. Esse embate pode
se estender por períodos indeterminados, pois a legitimação
das transformações na cultura e na sociedade é resultante de
enfrentamentos que amadureceram historicamente (MARX, 1990).
Diante de tais manifestações, o discurso em favor do progresso
que reveste o presente fica fragilizado e, em muitos dos casos,
esvaziado de conteúdos. Quando se tratam de transformações
sociais e culturais, para além de uma acomodação prática, exige-
se um posicionamento mais contundente diante de mudanças
tecnológicas, pois o que está em debate são transformações na
própria subjetividade, naquilo que historicamente faz do homem
um ser consciente de sua humanidade.

Temos conhecimento de resistência violenta a qualquer mudança


nos textos sagrados antigos, mas parece não ter havido nenhuma
resistência equivalente, digamos, ao barateamento de imagens e
ícones sagrados por meio de processos tecnológicos modernos,
tais como impressões tipográficas e oleográficas. (HOBSBAWM,
2004, p. 30).

Diante da impossibilidade de as mudanças tecnológicas


serem agentes de ruptura entre passado e presente, volta-se
então para uma defesa do presente como expressão de uma
“justa medida” que orientaria a crítica ao passado. Na defesa do
tempo presente, desconsideram-se as bases nas quais se funda
o historiador em sua análise, quais sejam as da historicidade
do objeto estudado (CASTANHO, 2010), desconsidera-se a

224
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

passagem do tempo como um processo que interfere na forma


de a sociedade se organizar, que transforma suas estruturas.
Ignorando-se os diferentes estágios de negociação que
caracterizam cada época em relação às suas heranças culturais,
desmembra-se a relação entre o acontecimento e o momento
histórico e considera-se cabível um julgamento moral a respeito
desse tempo pretérito:

O declínio da historicidade, ou da consciência da diacronia, leva


à centralidade do sincrônico, que, para Ragazzini, é o imediato, o
evento. E aí se coloca um problema epistemológico rigorosamente
sem solução: como estudar o acontecimento fora de suas relações
com outros eventos, como estudar uma posição ou estado de um
fenômeno fora de sua processualidade, de suas determinações?
(CASTANHO, 2010, p. 58).

Isolando o passado das dinâmicas sociais, políticas e


econômicas, faz-se dele uma análise sentenciosa (CASTANHO,
2009), delibera-se eticamente sobre a maneira de visitá-lo. Em
última instância, esse julgamento sentencioso pode dar origem
a regulamentações que tiram da sociedade o direto de ter
acesso a determinada memória do seu passado, especialmente
quando este está revestido de um pretenso “preconceito” ou
“desumanidade”.
Observa-se que, em sociedades com acirrados enfretamentos
sociais, as memórias a respeito do passado são objeto de disputa,
já que devem ser conformadas aos interesses do presente.
Desse modo, o exercício da memória, tendo em vista a
interdependência entre o individuo e a coletividade, traduz-se
como uma experiência particular, que é própria do ser humano.
Neste caso, entende-se que a memória, historicamente
constituída, foi condição fundamental para a humanização do
homem, não se reduzindo, portanto, à tarefa de se amoldar aos
interesses do presente.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

Passado e memória

Ao longo da história humana, a utilização da memória


colaborou em grande medida para a manutenção da sociedade
ocidental: foi um recurso fundamental para as trocas culturais
em tempos anteriores ao do pleno desenvolvimento da escrita. A
memória, portanto, constitui-se como uma prática indispensável
para a preservação da cultura.
Historicamente, o valor essencial da memória foi a sua
colaboração com a organização dos afazeres cotidianos,
provenientes da necessidade de manutenção da própria vida;
mediando a ação do sujeito sobre a realidade que o circunda.
Ela situa-se no campo das:

[...] necessidades mais autênticas da humanidade. Seja estreito ou


amplo o círculo que abarcam, elas jamais deixam o homem; Não
há comunidade humana possível sem memória; toda comunidade
tem, em seu devir e em sua história, uma imagem de seu ser – um
bem comum de todos os que nela participaram, e que só torna sua
comunhão mais sólida e íntima. (DROYSEN, 2010, p. 37).

Tal dimensão prática e coletiva da memória – insuperável


à condição humana – fez dela um recurso de excelência. Seu
uso para o entendimento do ritmo da natureza e dos diferentes
compassos que a ação humana pode tomar, historicamente, foi
uma formação necessária a todo sujeito (CASTANHO, 2010).
Acrescenta-se, assim, a complexidade conceitual que permeia
a memória, que perpassa a história humana de forma distinta
não só no âmbito da época a qual determinado sujeito pertence,
mas dos valores da cultura ou mesmo do espaço geográfico
em que está inserido – o que contribui para a permanência ou
para a ruptura com determinadas concepções de temporalidade
comportadas pela memória.
A exemplo, a importância da memória já era reconhecida
pelos gregos, que transformaram esse atributo em uma divindade
– Mnemosine –, a ela recorrendo diante da falha de suas

226
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

lembranças a respeito dos feitos de seus grandes heróis.


Dessa maneira:

É compreensível que povos extremamente bem dotados embelezem


suas recordações em sagas convertidas e tipos transmissores de
ideias para os quais se direciona o espírito do povo. É também
compreensível que sua crença se lhes transpareça e justifique
na forma de histórias sagradas nas quais o objetivo da crença é
apresentado como conteúdo real, e, assim, que o mito e a saga se
desenvolvam conjuntamente. (DROYSEN, 2010, p. 37).

É necessário considerar, portanto, que a memória foi


um recurso de preservação do passado épico grego, cujas
narrativas sobre deuses e heróis foram se constituindo como
uma memória coletiva, uma vez que passaram a ser socializadas
e “embelezadas” por diferentes gerações. À memória coletiva
Homero (VIII a. C.) recorreu para compilar em suas “Ilíada” e
“Odisseia” os valores heroicos do homem grego (MOSSÉ, 1994),
tendo em conta dignificar as virtudes cardeais do cidadão grego.2
Muitas vezes, observa-se a concepção de que a memória,
por também estar situada no âmbito da subjetividade humana,
seria de tal maneira fragmentada e parcial que se constitui como
um “retalho” e não como um “fio” que compõe o complexo “tecido”
social. As reflexões a respeito das delimitações objetivas e
subjetivas da memória devem ser orientadas com base em suas
dimensões culturais sem, contudo, reduzi-la a polarizações.
Ao se problematizar o passado a partir da memória, é

2
Não se quer com tal exemplificação entrar em discussão sobre os limites
do uso da literatura para a escrita da História, tão pouco se pretende
situar Homero como historiador de seu tempo – mesmo porque essa é
uma discussão direcionada pelos padrões metodológicos da historiografia
contemporânea. O que se pretendeu apontar é que, com o processo de
aperfeiçoamento do uso da memória ao longo dos tempos, ela pôde se
constituir como um campo em que se sustentam lembranças do passado de
maneira “mais objetiva e confiável do que se poderia supor” (CASTANHO,
2010).

227
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

necessário considerar que a mesma é seletiva e que, assim, pode


expressar anacronismos quando aplicada a uma determinada
realidade. É necessário considerar também as relações de poder
com base nas quais a memória se constitui, o que traz implicações
para o exercício de rememorar o passado, uma vez que isso pode
se constituir unicamente como um exercício romântico alheio à
realidade (CASTANHO, 2010).
Estas questões de ordem conceitual e teórica também se
apresentam no caso da escrita da História, pois, assim como se
pode diferenciar História e memória, podem-se identificar certas
aproximações: ambas partem de uma seleção.

Os fatos históricos não se constituem como tais de maneira cândida


como o positivismo quer inculcar. Ao revés, eles tornam-se “fatos
históricos” referendados pela memória cultural na medida em que
são conformados pela construção conflitiva da existência social,
essa arena na qual se digladiam interesses opostos gerados na
continua luta pela vida. (CASTANHO, 2010, p. 55).

A memória é requisitada não apenas por aqueles que narram


o passado sem um comprometimento teórico metodológico. Em
sua análise a respeito da realidade, o historiador também parte
de um conhecimento que, em última instância, estabelece diálogo
com a memória:

E na medida em que compilam e constituem a memória coletiva do


passado, as pessoas na sociedade contemporânea têm de confiar
neles (historiadores). O problema não é se elas confiam. É o que
exatamente esperam obter do passado, e, nesse caso, se é isso
que os historiadores deveriam lhes dar. (HOBSBAWM, 2004, p. 37).

É necessário considerar, portanto, que a escrita da História


passou por transformações de cunho teórico metodológico que
tornam possível problematizar tais questões que se apresentam ao
historiador. Este pode refletir para além dos valores que a memória
expressa por si mesma, superando suas intencionalidades

228
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

explícitas com base na confrontação com as demandas sociais


e políticas que sustentam essa lembrança. Isso não implica
desconsiderar os subsídios históricos com base nos quais essa
memória pode se constituir:

Da mesma forma que não se pode julgar um indivíduo pela idéia que
ele faz de si mesmo, não se poderia julgar uma época de transtornos
pela consciência que ela tem em si mesma; é necessário, ao
contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida
material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais
e as relações de produção. (MARX, 1977, p. 168).

Considerando o exposto, entende-se que a memória é uma


representação não científica do passado, o que não significa negar
que, por meio dela, o homem desse tempo tenha transmitido
para as gerações vindouras suas representações do mundo.
Desse modo, a memória não pode se entendida como se fosse
constituída pela simples individualidade, já que expressa os
valores sociais e culturais vivenciados pelo sujeito e com base
nos quais (CASTANHO, 2010) se faz homem.
Por ser coletiva e social, a memória também é uma vivência
do historiador, embora como estudioso. Nesse caso, seu papel
não é compatível com o livre exercício da memória praticado
por qualquer outro cidadão (HOBSBAWM, 2004), dados o seu
compromisso social e o comprometimento ao máximo com
a verdade histórica, mesmo quando se põe em dúvida sua
imparcialidade. O historiador deve se revestir da consciência de
que o fazer histórico se constrói pela constante vigilância teórica:
tais memórias podem estabelecer identificações com o estudioso,
que, por isso, é levado a se comprometer de tal forma com elas
que deixa de ser imparcial, acabando por assumir o discurso de
sua fonte.
A memória coletiva ou individual pode, por fim, constituir-se
como uma referência por meio da qual o historiador problematiza
determinada realidade social e histórica. No entanto, ele deve
compreender a tensão existente entre a afirmação da memória

229
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como um monumento à verdade e a desconstrução dessas


verdades por meio de sua análise, já que são as condições
concretas que dão subsídios a essas representações.

Considerações finais

O homem, com base na vida coletiva, adquire a consciência de


que sua origem faz parte de um processo que não se desenvolve
de maneira harmoniosa. Tem-se em vista que o sujeito faz parte de
um contexto de constantes enfrentamentos sociais, participando
de embates que transitam desde a sistemática negação de seu
passado até as negociações com suas tradições, que teimam em
ser perenes e efetivas. Dessa maneira, a forma como o passado
é concebido no seio da sociedade é constantemente afetada
pelo presente. Uma vez que, em cada época histórica, o homem
encontra novas exigências para a manutenção de sua existência
social e política, ele opera transformações nas formas de se inserir
no continuum da existência humana.
Essa dinâmica expressa a complexidade das relações
humanas e se constitui como um processo legítimo, embora
possam ocorrer tentativas de se “reconstruir” o passado em
momentos em que os enfrentamentos sociais se tornam mais
acirrados.
Resta, por fim, um alerta ao historiador: ao se voltar para o
estudo de períodos históricos marcados por profundos embates,
ele pode assumir as polaridades expressas pelos sujeitos em
questão: conservação/transformação. Por isso, primeiramente,
ele precisa compreender tais discursos com base em suas
condicionantes sociais e históricas.

Referências

ATTALI, Jacques. Historias del tempo. México: FCE, 1985.


BURCKHARDT, Jacob. História da cultura grega. In: MARTINS, Estevão
de Rezende (Org.). História pensada. São Paulo: Editora Contexto,
2010. p. 159-178.

230
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 209-232, jul./dez. 2017

CASTANHO, Sérgio. Reação ao declínio da consciência histórica:


comentários sobre o texto “Diacrônico/sincrônico e os paradoxos
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Dermeval (Orgs.). Navegando pela história da educação brasileira: 20
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Recebido em agosto de 2016.


Aprovado em junho de 2017.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-9

DAS RAÍZES À FORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO


BRASILEIRA:
OS SUBSÍDIOS DE PRIMITIVO MOACYR

Rosana Areal de Carvalho*

RESUMO: Primitivo Moacyr publicou seu primeiro livro em 1916,


já trazendo a marca dos demais volumes que viriam vinte anos
depois: a instrução como responsabilidade do Estado. Apresento
elementos visando compreender a publicação dessa obra, entre
os anos de 1936 e 1942, em meio a um complexo cenário político
e cultural. Dentre as interpretações existentes para esse período,
acato a de modernização do Estado brasileiro, com destaque
para a criação do Ministério da Educação e Saúde (1931) e do
Instituto Nacional de Pesquisas Pedagógicas (1937). Tomo de
empréstimo os ensaios de Sérgio Buarque de Holanda (1936),
Raízes do Brasil, e de Caio Prado Jr. (1942), Formação do Brasil
Contemporâneo, como contraponto para a obra de Moacyr: das
raízes da educação brasileira nos tempos imperiais à formação da
escola nova nos anos 1930, discutindo o ofício desse historiador.

PALAVRAS-CHAVE: Instrução pública. Primitivo Moacyr. História


da educação.

ABSTRACT: Primitivo Moacyr published his first book in 1916


already bringing the brand of other volumes that would come
twenty years later: education as a state responsibility. In this paper
I introduce elements aimed at understanding the publication of
this work, between 1936 and 1942, amid a complex political and

* Doutorado em Ciências Humanas pela USP, professora associada na


Universidade Federal de Ouro Preto, atuando na graduação e na pós-
graduação, com História e Historiografia da Educação Brasileira.

233
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

cultural scene. Among the existing interpretations of this period,


I choose the modernization of the Brazilian state, highlighting
the creation of the Ministry of Education and Health (1931) and
the National Institute for Pedagogical Research (1937). I borrow
the Sérgio Buarque de Holanda tests (1936), Raízes do Brasil,
and Caio Prado Jr. (1942), Formação Contemporânea do Brasil,
as a counterpoint to the work of Moacyr: the roots of Brazilian
education in imperial times to formation of the new school in the
30s, discussing the craft of this historian.

KEYWORDS: Public education. Primitivo Moacyr. The history of


education.

Norteia este trabalho o objetivo de compreender a publicação


da obra de Primitivo Moacyr, entre os anos de 1936 e 1942,
no interior de um cenário de elevada complexidade política
e cultural, como foram as décadas de 1930 e 1940 no Brasil.
Em conformidade com tal complexidade, as leituras e os
vieses explicativos sobre o período são variados, quando não,
divergentes. Dentre as leituras possíveis, acato a que toma os
anos 30 do século passado como um tempo no qual foram dados
passos largos em prol da modernização do Estado brasileiro. Em
razão do campo no qual se insere este trabalho, destaco a criação
do Ministério da Educação e Saúde (1931) e do Instituto Nacional
de Pesquisas Pedagógicas – INEP (1937).
Possivelmente como eco dessa mesma complexidade e o
natural desejo de compreender a realidade, entre os anos 1920
e 1950 foram publicadas obras basilares sobre o Brasil, sob o
estilo de ensaios, começando por Oliveira Viana e desaguando
em Raymundo Faoro. Estes e outros brilhantes ensaístas foram
reunidos sob o rótulo de “intérpretes do Brasil” por Santiago
(2002): “Ao planejar esta antologia, julgamos que seria importante
centrar a atenção dos leitores nos melhores ensaios escritos por
brasileiros sobre o Brasil, depois da independência do país”.

234
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

Construí o título deste texto tomando de empréstimo os


títulos dos ensaios de Sérgio Buarque de Holanda (1936),
Raízes do Brasil, e de Caio Prado Jr. (1942), Formação do
Brasil Contemporâneo, pois abarcam, em boa medida, o período
cronológico das publicações de Moacyr – pois tratam da educação
brasileira desde os tempos imperiais até as primeiras décadas
republicanas –, da temática das raízes da educação nacional
lançadas no período imperial e da sua formação, vislumbrada
durante a primeira metade do século XX.
Para esse mesmo período, os interesses educacionais
estavam voltados para os postulados escolanovistas1 que, ao
contrário do que vinha ocorrendo na Europa, encontrou no Brasil
educadores que buscaram aplicá-los nas escolas públicas.
Não por acaso, dentre aqueles que assinaram o Manifesto dos
Educadores da Escola Nova (1932), a maioria se alinhara às
fileiras do Estado Novo (1937-1945). O próprio Manifesto foi escrito
a partir de um convite do presidente Getúlio Vargas para que os
educadores presentes à IV Conferência da Associação Brasileira
de Educação apresentassem uma proposta para a educação
nacional consoante ao governo “revolucionário instalado”.
Neste exercício de análise e reflexão que ora compartilho,
insere-se o propósito de explicitar alguns elementos passíveis
de delinear a trama que configura o processo de modernização
estatal, que passa pela reconfiguração das agências do
Estado, tanto quanto pelos seus agentes e, por que não, pelo
entendimento de que a missão dada ao sistema educacional
era a de formar cidadãos para esse novo país. Ciente de que tal
entendimento extrapola os marcos possíveis para este trabalho,
porém movida pela instigante questão e pela possibilidade de
aporte de algumas reflexões, inscrevo este debate também no
campo da historiografia brasileira.

1
Refere-se aos educadores que assinaram o Manifesto dos Educadores da
Escola Nova, em 1932. Dentre estes, se destacam Fernando de Azevedo,
Anísio Teixeira, Lourenço Filho.

235
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

1. As raízes

Primitivo Moacyr desembarcou no Rio de Janeiro ainda


jovem, provavelmente nos primeiros anos republicanos. Não mais
a corte, agora a capital republicana continuava exercendo uma
forte atração sobre os jovens das províncias do Norte. Baiano de
Salvador, Moacyr teve seus primeiros contatos com a instrução
pública como professor de primeiras letras em Lençóis, no interior
da Província da Bahia. Em seguida, transferindo-se para Recife, a
convite do presidente da Província, trabalhou no Liceu de Recife.
Para coroar esse percurso evolutivo, provavelmente instigado
pelas experiências e pelo ambiente vivenciado no Liceu, seguiu
para o Rio de Janeiro, onde alcançou a condição de bacharel em
Direito. Os estudos desenvolvidos por Gondra e Marques (2011)
identificaram sua atuação como advogado, por meio de anúncios
publicados no Jornal do Commércio.
O início do século XX já o encontrou funcionário da Câmara
de Deputados. Inteiramente dedicado aos registros dos debates
parlamentares, dedicou-se com afinco ao trabalho que realizou
durante trinta e três anos. Não tendo sido objeto de maiores
trabalhos biográficos, são poucas as informações encontradas
sobre a trajetória de Primitivo Moacyr. Se poucas na quantidade,
são compensadas com os elogias, como o artigo de Francisco
Venâncio Filho, publicado numa edição da Revista Cultura
Política (1943), que reputa a Moacyr a iniciativa de publicação
dos volumosos Documentos Parlamentares, cujo objetivo era dar
publicidade aos debates dos mais variados temas ocorridos no
plenário da casa legislativa.
Tal mérito pode ser confirmado por uma segunda iniciativa:
a publicação, em 1916, do livro O ensino público no Congresso
Nacional. Breve notícia. Para Carvalho e Mesquita,

ao expor tal documentação, Primitivo Moacyr produziu elementos


para uma crítica contundente à produção legislativa brasileira, cuja
inoperância aparece em cada projeto, independente da qualidade e
acerto deste. Assim, é possível justificar e cultivar uma descrença
quanto ao futuro educacional se este dependesse, apenas, das
ações legislativas. (CARVALHO; MESQUITA, 2013, p. 52).

236
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

Esse livro inaugura uma trajetória de dimensão inigualável que


terá lugar entre os anos de 1936 e 1942 quando, já desfrutando
da aposentadoria, Moacyr dedicou-se inteiramente à escrita
educacional. Nesse curto espaço de seis anos, publicou quinze
livros, tratando da educação brasileira no período imperial e
republicano até os anos 1930, e mais dois trabalhos apresentados
em congressos organizados pelo Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro – IHGB.
Sobre o período imperial, Moacyr publicou seis volumes,
todos na série Brasiliana, da Biblioteca Pedagógica Brasileira,
sob a direção de Fernando de Azevedo, editados pela Companhia
Editora Nacional. Nestes seis volumes, consta o enigmático
subtítulo: subsídios para a história da educação brasileira.
Enigmático, porque inspira muitas perguntas para as quais as
hipóteses são fartas.
Fernando de Azevedo respondeu pelas bases sociológicas
do movimento dos renovadores educacionais e esteve à frente
de algumas reformas do ensino. Reputa-se a ele, também, a
autoria do texto do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
de 1932. Exímio observador da realidade brasileira, escreveu a
introdução ao Censo de 1940 – A cultura brasileira, publicado em
três volumes: no volume 1, Os fatores da cultura; no volume 2, A
cultura; e, no volume 3, A transmissão da cultura. Este volume teve
repercussão nacional e já alcançou inúmeras edições. Em estilo
ensaístico, curiosamente não aparece em nenhuma das listas
dos intérpretes do Brasil. Fixou sua base editorial na Companhia
Editora Nacional, criando a Biblioteca Pedagógica Brasileira, em
1931. Nesta “Biblioteca” constavam cinco coleções, dentre as
quais a Coleção Brasiliana, que ganhou maior destaque. Após
a Revolução de 1930, fixou residência em São Paulo. Segundo
Saviani, para Azevedo, “o ideal da Escola Nova envolvia três
aspectos: escola única, escola do trabalho, escola-comunidade.”
(SAVIANI, 2007, p. 211).
O prefácio de Afrânio Peixoto, amigo e natural de Lençóis,
Bahia, no primeiro volume de A instrução e o Império (1823-1853),
vindo a público em 1936, dá algumas pistas e destaca uma virtude

237
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

em Moacyr, referenciada também por Francisco Venâncio no


artigo Primitivo Moacyr e a história da educação (1943). Afirma
Peixoto que o autor, “modestamente”, pensa que os seus livros
contribuirão para “a futura história da educação brasileira”, no que
retruca o prefaciador, dizendo:

A futura história da educação brasileira, pensa o autor, modestamente,


poderá agora ser feita... Ela já está aqui, neste livro, novo, original,
prestante, e, às vezes, melancólico, sobre iniciativas, a sequência
de nossas ideias, a descontinuidade de nossas ações... O Brasil
é principalmente Brasil, em educação [...]. (PEIXOTO, 1936, p. 7).

Sobre a operação historiográfica, Afrânio afirma que “no Brasil


não se pesquisa. (...) A história nessas condições é repetição,
é comentado, é fantasia interpretativa.” (PEIXOTO, 1936, p. 7).
Diferentemente, fez Moacyr que,

sobre educação nacional, investigou, nos arquivos, nas bibliotecas,


nos livros, nos relatórios de governo e, de tudo, fez um livro objetivo,
sem comentários, nem conclusões. Portanto, obra rara que vai
produzir gerações de historiadores, que não o citarão... Que lhe
importará? Que lhe importará mesmo o maldigam, depois de copiá-
lo? (PEIXOTO, 1936, p. 7).

Uma carta de Anísio Teixeira abre o terceiro volume


(1854-1889), abordando os diversos níveis de ensino. Nesta
missiva ele acusa recebimento do segundo volume, que trata
especialmente das reformas educacionais (1854-1888), tece
algumas considerações e também elogia o trabalho de Primitivo
Moacyr. Teixeira faz uma leitura dos esforços inócuos no campo
da educação brasileira, caracterizado por “grandes planos
gerais, com grandes debates de princípios, chocando ideais
educativos”, ao invés de “estudar os problemas concretos”, de
“analisar as necessidades reais e típicas”, de forma a “examinar
as dificuldades e facilidades características de execução, de
realização” (TEIXEIRA, 1938, p. 11).

238
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

Afirma que o trabalho de Moacyr “é um primeiro passo


para o estudo intelectual da educação nacional. Com os seus
volumes, estamos a sentir ao vivo como nunca faltaram ideias...”
(TEIXEIRA, 1938, p. 11) Muito ao contrário, à abundância de
ideias contrapunha a inoperância generalizada. Conclui, dizendo:

Se ao lado dos seus quatro volumes de história das ideias


educacionais do Brasil, se fizer a história das realidades educativas
do Brasil, talvez não se consiga senão um volumezinho mofino
e franzino. Somos, assim esgalhados e frondosos em ideias, e
pecos e estéreis, em frutos. O seu grande serviço está sendo o de
nos mostrar isso e não apenas nos dizer isto. (TEIXEIRA, 1938,
p. 11-12).

Anísio Teixeira, natural da Bahia, já havia se afastado da vida


política, desgostoso com os rumos tomados desde 1935 e que
vieram a desembocar no Estado Novo, quando escreveu a carta a
Primitivo Moacyr. Foi um dos poucos pioneiros da Educação Nova
que não se alinhou com o governo ditatorial de Vargas. Esteve
à frente da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal
até o final de 1935, quando se demitiu e passou a se dedicar a
assuntos comerciais. Somente retornou ao Rio de Janeiro em
1951. Sua contribuição para a arquitetura do escolanovismo se
deu nas bases filosóficas e políticas da renovação escolar.
Sobre o período republicano, dois volumes ainda foram
publicados na mesma Coleção Brasiliana – A instrução pública no
Estado de São Paulo, abrangendo a primeira década republicana.
Os sete volumes de A instrução e a República foram editados
pela Imprensa Nacional, sob os auspícios do Instituto Nacional
de Pesquisas Pedagógicas – INEP, à época dirigido por Lourenço
Filho.
Deve-se a Lourenço Filho as bases psicológicas da Escola
Nova. Em 1931, assumiu a chefia de gabinete do Ministério da
Educação e Saúde e se instalou no Rio de Janeiro. Costume comum
à época entre os intelectuais, tinha também sua base editorial, na
Editora Melhoramentos. Dirigiu o INEP entre 1938 e 1946.

239
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

Aqui se completa a rede que colocou Moacyr próximo da


“trindade cardinalícia” (SAVIANI, 2007, p. 217), porta-voz do
movimento escolanovista no Brasil: Fernando de Azevedo, Anísio
Teixeira e Lourenço Filho. Cumpre destacar que Afrânio Peixoto,
amigo e conterrâneo, prefaciador do primeiro volume de 1936,
também foi um dos signatários do Manifesto dos Educadores da
Educação Nova (1932).
Segundo Venâncio Filho (1943), a publicação pela Imprensa
Nacional respondia à compreensão de Moacyr de que, afinal,
seus livros não representavam tanto interesse econômico. Há
outras hipóteses, como a que indica terem sido, esses volumes,
resultados da época em que colaborou como pesquisador no INEP.
Nesse trabalho, o autor dá especial atenção para as reformas
educacionais, tema central de cinco dos sete volumes. As fontes
que permitiram tamanha produtividade foram os documentos
do Estado, tanto da esfera legislativa quanto executiva. Para
Saviani (2004, p. 4), o termo fonte, em português, aponta para
dois significados.

Por um lado, significa o ponto de origem, o lugar de onde brota algo


que se projeta e se desenvolve indefinidamente e inesgotavelmente.
Por outro lado, indica a base, o ponto de apoio, o repositório dos
elementos que definem os fenômenos cujas características se
busca compreender. (SAVIANI, 2004, p. 4).

Não escapa, portanto, nesse conceito, a ideia de nascente,


de manancial. Entretanto, as fontes históricas são produções
humanas e, enquanto tal, apontam para a inesgotabilidade.
Porém, elas não são a origem do fenômeno histórico: “As fontes
estão na origem, constituem o ponto de partida, a base, o ponto de
apoio da construção historiográfica que é a reconstrução, no plano
do conhecimento, do objeto histórico estudado.” (SAVIANI, 2004,
p. 5). O autor observa ainda que os documentos, os vestígios,
indícios e toda a miríade de objetos produzidos pelo homem não
são fontes em si mesmos, mas se constituem enquanto tal pela
operação historiográfica, movida por uma questão, um problema.

240
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

Sendo assim, os documentos selecionados por Moacyr


tornam-se fontes, subsídios para a história da educação. Então,
as perguntas que não calam: qual teria sido o leit motiv de
Primitivo Moacyr? Por que escolheu a educação? O motivo era
dar visibilidade às ações parlamentares? Era um republicano?
Apoiou o movimento da Escola Nova?
À primeira vista, a concepção de história de Primitivo Moacyr
se aproxima muito de um historicismo atrelado a uma concepção
de verdade, ou a uma história oficial, perfilada nos artigos que
compõem a legislação educacional e nos resultados, justificativas
e propósitos componentes dos relatórios produzidos pela esfera
executiva. Desta forma, afasta-se do modelo preconizado
pelos grandes ensaístas contemporâneos. Porém, não raro
encontramos a presença do autor, seja no estilo levemente irônico,
seja lançando mão de recursos gráficos como o itálico e, não raro,
as reticências, reservando ao leitor a conclusão. Mas sempre de
forma discreta. Isso para não dizer que está presente na própria
escolha dos temas, nos recortes, naquilo que explicita e também
no que não dá voz.
No seu primeiro livro – O ensino público no Congresso
Nacional. Breve Notícia, publicado em 1916, por exemplo,
inicia e finaliza com o tema da “desoficialização” do ensino,
tomando a posição de homem de estado, bem como daquele que
compreende o ensino como responsabilidade governamental. São
traços assim que permitem a autores como Cardoso afirmarem
a preferência que Moacyr dá ao ensino primário em detrimento
do ensino superior.

Em relação ao ensino primário, a educação fundamental, Primitivo


Moacyr deixa claro ao longo de toda a sua obra, que o considerava
o mais importante nível de ensino e aquele ao qual o poder público
deveria dedicar maior atenção. Muitas vezes lamentou a pouca
atenção que os diferentes governos, tanto do Império quanto da
República, dispensaram ao ensino primário. (CARDOSO, 2002,
p. 918).

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

Para construir sua obra, Primitivo Moacyr lançou mão de


copiosa documentação oficial, dentre documentos parlamentares,
legislações, relatórios de presidentes de províncias, de diretores
da instrução pública e outros sujeitos envolvidos no cenário
educacional, particularmente no campo da administração escolar
em seus diversos níveis. Como homem de estado, Primitivo Moacyr,
em O ensino público no Congresso Nacional. Breve notícia (1916),
exaltou as ações do regime republicano para “as cousas do ensino
publico”, afirmando que “a sua operosidade tem sido copiosa”
(MOACYR, 1916, p. 5). Porém, isso não o impediu de expor os
acalorados e, por vezes, inúteis debates sobre o arquivamento
ou a inexequibilidade de inúmeras legislações. Assim, buscou dar
visibilidade às iniciativas do Estado em prol da instrução pública e
procurou evidenciar as tensões presentes no campo, usando-as
como subsídio para compreender o estágio educacional em que
se encontrava a nação brasileira: pré-requisito fundamental para o
avanço cultural, ou seja, o movimento de renovação educacional.
Não desconsidero o discurso valorativo implícito na
denominação “Estado Novo”, período no qual se insere o recorte
da análise aqui proposta. Tal denominação encerra um jogo de
forças, “um ato de poder, como os historiadores sabem por dever
de ofício”, como afirmam Gomes e Abreu (2009, p. 1). Porém, tenho
como hipótese que a publicação dos quinze volumes de Primitivo
Moacyr se inscreve nesse “ambicioso projeto político-cultural”,
conforme as mesmas autoras anunciam, que cercou as ações
governamentais (GOMES; ABREU, 2009, p. 2).

O Estado Novo e seus ideólogos conseguiram trazer para si todos


os méritos da criação de um país de todos, unificado política e
culturalmente, através da construção de um povo mestiço, em
termos festivos e musicais, tanto no samba e no carnaval, como
em diversas manifestações folclóricas de todas as partes do país.
O governo Vargas e a década de 1930 passaram a representar,
na memória nacional, um momento de ruptura do passado cultural
brasileiro. A valorização da música popular, do carnaval e até mesmo
da capoeira – tudo nos faz crer – precisava esperar esses novos
tempos. (GOMES; ABREU, 2009, p. 9).

242
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

Consoante a esse projeto, é notório o movimento de âmbito


nacional em defesa da escola pública a partir dos anos de
1930. E não se trata de mera coincidência a concomitância
com o desenvolvimento capitalista, articulando urbanização e
industrialização. A ampliação da estrutura produtiva implicava
em exigências no nível da superestrutura, dentre elas a
correspondência no campo educacional. Enfim, de quem
era a responsabilidade pela educação? Para Moacyr, esta
responsabilidade compete ao Estado, e o governo Vargas não se
negou a exercer essa função. Sanfelice observa “[...] um Estado
cada vez mais educador do povo” (SANFELICE, 2007, p. 544), a
começar pela Reforma Francisco Campos, passando pelas Leis
Orgânicas dos anos 1940, a Constituição de 1946, até desaguar
na LDB de 1961.
Por outro lado, que sujeitos estariam indicados para receber
essa educação? Quem, em nome do Estado, determinaria o tipo
e o grau de educação indicado para esta ou aquela população?
Para Sanfelice,

Os interlocutores essenciais da discussão, no âmbito das elites


econômicas ou culturais, representavam basicamente o velho e
o novo. O velho Brasil pré-1930 tinha como sua expressão maior,
em questões educacionais, a Igreja Católica. O novo, emergente a
duras penas no interior do velho, se fazia representar, grosso modo,
por intelectuais identificados genericamente como liberais e outros
homens da administração pública. (SANFELICE, 2007, p. 543).

2. A formação

A partir dos anos 1930, é possível verificar um intenso


movimento em prol da educação pública no Brasil, decorrente de
inúmeras ações que tiveram lugar na década anterior, como as
reformas educacionais promovidas por educadores vinculados ao
movimento escolanovista, a criação da Associação Brasileira de
Educação – ABE, em 1924, e as conferências por ela promovidas.

243
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

O processo de urbanização e industrialização em voga,


respondendo pelo desenvolvimento capitalista, também contribuiu
para a atividade educacional, duplamente. Por um lado, ao
estabelecer novos interesses a serem alcançados pela escola
no campo da formação; por outro lado, ao acelerar o processo
migratório, trazendo para as cidades uma população que, visando
o ingresso no mercado de trabalho em expansão, aumentava a
demanda pela escola pública.
Visto por esse ângulo, é perfeitamente compreensível a
criação do Ministério da Educação e Saúde (Decreto n. 19.444,
1930), dirigido por Francisco Campos, até 1932, e por Gustavo
Capanema, de 1934 a 1945, quando finda o Estado Novo.
O conjunto de reformas encabeçado por Francisco Campos
demonstra a disposição do governo Vargas em tratar a educação
como questão nacional. Também nessas reformas, um inusitado:
o ensino religioso retorna, por meio de decreto, à escola pública,
desencadeando uma tensão, que se avoluma nos anos seguintes,
entre os católicos, tido como conservadores, e os escolanovistas,
ou renovadores. Até então, compondo a Associação Brasileira
da Educação – ABE, os primeiros se afastam e constituem a
Confederação Católica Brasileira de Educação, em 1933.
Tratar a educação como uma questão nacional implicava em
medidas comuns a todo o território nacional. Otaíza Romanelli
afirma que

Efetivamente, credita-se-lhe, entre outros méritos, o de haver dado


uma estrutura orgânica ao ensino secundário, comercial e superior.
Era a primeira vez que uma reforma atingia profundamente a
estrutura do ensino e, o que é importante, era pela primeira vez
imposta a todo o território nacional. Era, pois, o início de uma ação
mais objetiva do Estado em relação à educação. (ROMANELLI,
2007, p. 131).

No entanto, como a própria autora destaca, as necessidades


do desenvolvimento capitalista não foram atendidas pela escola,
mesmo considerando uma excepcional expansão desta. Talvez,

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

um dos motivos esteja, justamente, no conjunto de reformas de


Francisco Campos, que priorizou o ensino secundário e o ensino
superior, ficando o ensino primário às expensas dos governos
estaduais.
A Constituição de 1934 deu continuidade ao federalismo
delineado pela Constituição de 1891, somado a alguns aspectos
inovadores, como “reflexo das mudanças ocorridas no país”
(FAUSTO, 1996, p. 351). Sobre a ordem econômica e social,
sobre a família e sobre a educação e a cultura versaram títulos
inexistentes nas constituições anteriores, no rol da ampliação dos
direitos civis e sociais. Estabelecia o princípio do ensino primário
gratuito e da frequência obrigatória, sendo facultativo o ensino
religioso, aberto a todos os credos.
Para Cury (2005), somente na Constituição de 1988 teremos
“um capítulo tão completo” sobre a educação, vista então como
“um direito social próprio da cidadania.”
Foram muitos os compromissos assumidos constitucionalmente
e, se nem todos foram efetivados, não estavam desprovidos de
valor:

E esses compromissos serão bandeiras de lutas em prol de uma


educação pública de qualidade mesmo quando o autoritarismo
ditatorial impôs sua marca explícita na sociedade brasileira. É o
caso de 1937 com o golpe do Estado implantando a ditadura do
Estado Novo. (CURY, 2005, p. 23).

A luta por uma educação pública de qualidade foi interrompida


durante o Estado Novo diante da censura política recorrente. A
Constituição de 1937, nas suas “Disposições finais e transitórias”,
concedia ao presidente o poder de governar por meio de decretos-
leis, suspendia as liberdades civis e autorizava o governo a
aposentar funcionários civis e militares por interesse do serviço
público ou mera conveniência do regime.
Para Cury, ocorre um retrocesso quanto ao papel do Estado,
colocando este como “subsidiário da família e do segmento
privado na oferta da educação escolar” (CURY, 2005, p. 23).

245
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

Venceram os conservadores católicos!? A exclamação e a


interrogação emparelham-se com a complexidade do cenário
político do Estado Novo. Complexidade porque a convivência
entre posições políticas diversas permanece; forças antagônicas
continuam presentes em postos chaves do governo.
Segundo Velloso, a contradição e o antagonismo estavam na
raiz do projeto educativo do Estado novo, presentes, em especial,
no Ministério da Educação, dirigido por Gustavo Capanema, e no
Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, sob a batuta de
Lourival Fontes.

Entre estas entidades ocorreria uma espécie de divisão do trabalho:


o ministério Capanema voltava-se para a formação de uma cultura
erudita, preocupando-se com a educação formal; enquanto que o
DIP buscava, através do controle das comunicações, orientar as
manifestações da cultura popular. (VELLOSO, 1987, p. 4).

Em torno do ministro Capanema reunia-se um grupo de


intelectuais ligados à vanguarda do movimento modernista, como
Carlos Drummond de Andrade, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer,
Mário de Andrade, Portinari. Na composição do DIP, outro grupo,
composto por Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e Cândido
Motta Filho, intelectuais caracterizados por um pensamento
centralista e autoritário, contribuindo para o rígido controle dos
meios de comunicação. Em comum, estabeleciam uma íntima
relação entre propaganda política e educação: “Apresentando-
se como o grupo mais esclarecido da sociedade, os intelectuais
buscam ‘educar’ a coletividade de acordo com os ideais
doutrinários do regime.” (VELLOSO, 1987, p. 4).
Desde 1834, convivia-se com a descentralização da oferta
dos serviços educacionais no Brasil nos níveis elementar e
secundário, tornando supérflua a existência de um órgão nacional
que tratasse das questões gerais do ensino. Entretanto, nos
primeiros anos da República, não foram poucas as vozes que
se manifestaram contrárias a essa situação, clamando por uma
solução de continuidade que só seria possível com a presença

246
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

mais firme do Estado brasileiro. Moacyr apresenta muitas dessas


vozes no trabalho de 1916.
Antes mesmo de 1889, Rui Barbosa já apresentava tal
propositura. Segundo Lourenço Filho: “Não desejava ele
apenas um órgão colegiado, mas outro também que servisse à
documentação e à difusão de novas ideias sobre o ensino, com
investigação de seus problemas na vida nacional.” (LOURENÇO
FILHO, 2005, p. 180). Respondia a essas mesmas necessidades,
ou seja, ampliar o conhecimento e a compreensão do percurso
educacional brasileiro, a criação da Diretoria Geral de Estatística
(DGE), cuja tarefa, “quase impossível”, era produzir os censos
decenais e as estatísticas da instrução (GIL, 2009).
Podemos observar, entretanto, que a ideia de um órgão
central, ou, numa outra dimensão, um centro de estudos, esteve
implícita em muitos eventos, como a Exposição Pedagógica, de
1883; a formação de organismos, como a Sociedade Promotora
de Instrução ou mesmo a Associação Brasileira de Educação, de
1923, que promoveu várias conferências nacionais nas primeiras
décadas do século XX. Assim foi a criação do Pedagogium: “um
órgão propulsor de reformas e melhoramentos de que carecesse
a educação nacional.” (LOURENÇO FILHO, 2005, p. 181).
Em meados dos anos 1930, em sintonia com a criação
do Ministério de Educação e Saúde, o então ministro Gustavo
Capanema preparou um projeto que deu origem à Lei n. 378, de
13 de janeiro de 1937, criando o Instituto Nacional de Pedagogia,
com a missão de “realizar pesquisas sobre os problemas do ensino
nos seus diferentes aspectos”. Em 1938, o Decreto Lei n. 580,
de 30 de julho, alterou o nome do órgão para Instituto Nacional
de Estudos Pedagógicos. No mesmo período, comemorava-se
o centenário do IHGB.
Lourenço Filho rememora o projeto de Capanema com o
excerto da exposição de motivos:

Não possui, ainda, o nosso país um aparelho central destinado


a inquéritos, estudos, pesquisas e demonstrações, sobre os
problemas do ensino, nos seus diferentes aspectos. É evidente a

247
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

falta de um órgão dessa natureza, destinado a realizar trabalhos


originais nos vários setores do problema educacional, e, ao mesmo
tempo, a recolher, sistematizar e divulgar os trabalhos realizados
pelas instituições pedagógicas, públicas e particulares. Além
disso, incumbir-se-á de promover o mais intenso intercâmbio no
terreno das investigações relativas à educação, com as demais
nações em que este problema esteja sendo objeto de particular
cuidado de parte dos poderes públicos ou das entidades privadas.
(LOURENÇO FILHO, 2005, p. 181).

Uma das funções do instituto era “organizar a documentação


relativa à história e ao estado atual das doutrinas e técnicas
pedagógicas”. Entretanto, não havendo técnicos suficientes para
cuidar dos assuntos propriamente pedagógicos, foi necessário
“ocupar pesquisadores externos”. A documentação que o INEP
começou a recolher abrangia dados estatísticos e um “ementário
geral da legislação sobre o ensino e educação, a partir dos
primeiros atos do Reino Unido”. E acrescenta:

O aspecto propriamente histórico encontrou um colaborador


espontâneo na figura do inesquecível pesquisador Primitivo
Moacyr, auxiliado, com rara dedicação, pelo Dr. Rui Guimarães de
Almeida, também infelizmente já desaparecido. A ambos se deve
a publicação da obra A Instrução e a República, em sete volumes,
que o Inep editou nos anos de 1941 e 1942. (LOURENÇO FILHO,
2005, p. 183).

Portanto, de acordo com Lourenço Filho, Moacyr foi um


prestimoso colaborador do INEP, o que lhe teria valido, então, a
publicação dos sete volumes de A instrução e a República pela
Imprensa Oficial. Quanto à coautoria, não disponho de outra
fonte que confirme esta informação. Por outro lado, é importante
mencionar que, simultaneamente à publicação pela Imprensa
Oficial, outros livros de Moacyr continuavam sendo publicados
pela Companhia Editora Nacional.

248
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

3. Os subsídios

Andréa Dantas, em sua tese de doutorado, ao tratar do projeto


editorial do INEP, discorre sobre o formato e o conteúdo do boletim
mensal, publicado com o título de Subsídios para a história da
educação brasileira, cujo objetivo era divulgar a legislação federal
da educação e informações gerais sobre o desenvolvimento da
educação no país e no estrangeiro, ampliada com a inclusão
das legislações estaduais (DANTAS, 2001, p. 128). Esse boletim
foi publicado de 1940 a 1944, sendo substituído pela Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos.
Até 1940, Moacyr havia publicado seis volumes pela
Companhia Editora Nacional e neles constava exatamente como
subtítulo subsídios para a história da educação no Brasil. A que se
deve tal coincidência? Pelos relatos de Lourenço Filho, por essa
época, Moacyr já era um pesquisador colaborador do INEP. Teria
sido dele a sugestão? Pelas descrições que Dantas faz sobre o
boletim, outras semelhanças e coincidências com os livros de
Moacyr podem ser identificados. Para a autora, a justificativa
para a criação dos “Subsídios”, ou seja, dos boletins, apoiava-se

na intenção de criar uma memória educacional do país centrada no


arrolamento de atos legais. A organização da memória legislativa
informa o leitor muito mais sobre as providências administrativas
tomadas pelo poder público, no âmbito federal e estadual, do que o
registro de ocorrências restritas ao campo pedagógico. (DANTAS.
2001, p. 131).

Ou seja, a forma de entender e apresentar a educação


brasileira numa linha evolutiva é semelhante aos livros organizados
por Primitivo Moacyr, tanto aqueles publicados pela Imprensa
Oficial, sob a tutela do INEP, como os volumes publicados na
Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional. No Boletim
n. 17, de 1942, Lourenço Filho relata “o esforço para coligir toda
a documentação referente à educação nos períodos anteriores à
República, além do preparo para a utilização destas informações”.
E continua dizendo da participação de Moacyr no INEP:

249
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

com a desinteressada colaboração do Dr. Primitivo Moacyr, a


quem já se deviam excelentes estudos sobre o ensino no império,
vêm este Instituto ultimamente publicando a obra “a Instrução e a
República”, de que já se tiraram quatro volumes, e que se tirarão
mais três (LOURENÇO FILHO, 1942 apud DANTAS, 2001, p. 131).

Para Dantas, Moacyr “não foi chamado para publicar uma


obra que já estava finalizada e que era de interesse do Instituto
divulgar”. O convite adveio de sua excelência na sistematização
de dados, pois o INEP possuía esses dados e era necessária
sua organização e ordenação. Reconhece que “a forma como os
registros presentes no boletim mensal ‘Subsídios para a História
da Educação Brasileira’ do Inep guardam muito do modo como
Primitivo Moacyr organiza os dados referentes às províncias”
(DANTAS, 2001); além da concomitância de nomenclatura, focada
nos subsídios.
Acrescenta, então, que tais “ocorrências educacionais” a
remete à hipótese de que, “ao dispor no boletim mensal do Instituto
as informações oriundas dos estados do mesmo modo como
estas são apontadas nas publicações organizadas por Primitivo
Moacyr, Lourenço Filho está referendando o formato com que o
primeiro produz história da educação”. (DANTAS, 2001, p. 133).
Francisco Venâncio Filho, em 1943, após a morte de Moacyr,
publicou na revista Cultura Política um pequeno, mas elogioso
artigo sobre o pesquisador. Sobre a publicação de seus livros, no
que tange à coleção A instrução e a República, comenta:

Escrupuloso, Primitivo Moacyr não quis continuar aí [Companhia


Editora Nacional] sua obra, por certo de reduzido interesse
econômico. Encontra na clarividência de educador do professor
Lourenço Filho o oferecimento oficial do Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos, que logo inicia a publicação do período
republicano. (VENÂNCIO FILHO, 1943, p. 96).

Os três primeiros volumes de A instrução e a República foram


publicados em 1941, tratando, respectivamente, da Reforma

250
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

Benjamin Constant, dos códigos Fernando Lobo e Epitácio


Pessoa, nos primeiros anos republicanos, cobrindo o período de
1890 a 1916. Considerando o interregno normal entre a entrega
de originais e a impressão, e que o período coberto pelos três
volumes coincide com o livro de 1916, parece-me que a tese de
Dantas não procede. Ou seja, Moacyr teria sido convidado pela
trajetória editorial que perseguia.
Porém, não resta dúvida que sua colaboração no INEP veio
contribuir, em sumo grau, para as posteriores publicações, muito
especialmente aos dois volumes sobre a instrução pública em São
Paulo, na primeira década da República. Segundo Venâncio Filho:

Graças à alta compreensão que tiveram, desde logo, o secretário de


Educação de Minas Gerais, Cristiano Machado, e seu digno auxiliar
João Gomes Teixeira, pôde Primitivo Moacyr deixar concluídos os
originais relativos a esse Estado. Preso sempre ao documento, só
desejava reunir o que fosse projeto, leis, regulamentos e programas,
base para as análises posteriores. (VENÂNCIO FILHO, 1943, p. 97).

Como pesquisador do INEP, Moacyr teve as portas abertas


aos acervos documentais estaduais e, provavelmente, os originais
sobre Minas Gerais ficaram nos arquivos do INEP. Como assinala
Venâncio Filho, o interesse do pesquisador era reunir as fontes
documentais para análise futura: eram os subsídios para a história
da educação no Brasil.
Inscrita numa historiografia bem próxima da corrente
valorizada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e
apadrinhada por instituições como a Companhia Editora Nacional
e o INEP, entendemos a produção de Primitivo Moacyr inserida
numa chave que estimula o conhecimento como requisito para
o desenvolvimento, ou seja, a ciência a serviço do progresso.
Nesse sentido, considerando os contatos de diferentes
intensidades com os componentes da “trindade cardinalícia” da
Escola Nova no Brasil, não é demais entender Moacyr como porta-
voz dos escolanovistas, signatários do Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova (1932), os quais, dentre outros pleitos,

251
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

defenderam no manifesto o “preparo intensivo das forças culturais


e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa”
como “fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma
sociedade”. Criticavam o “empirismo grosseiro” característico das
ações educativas do estado brasileiro até então, enaltecendo “o
tratamento científico dos problemas da administração escolar”.
Empirismo este que Moacyr não se cansou de exemplificar em
suas obras, que Anísio Teixeira tão bem resumiu – fartos em ideias
e pecos em realização – e a respeito do qual o próprio Afrânio
Peixoto também se expressou: “O Brasil é principalmente Brasil,
em educação” (PEIXOTO, 1936, p. 7-8).
Assim, compreendo que a produção bibliográfica de Primitivo
Moacyr não foi fortuita, ao contrário, acusa intencionalidade. Para
tanto, contribuíram, e muito, as sociabilidades possibilitadas
pelo trabalho desenvolvido na Câmara dos Deputados e a
familiarização com a documentação parlamentar e do Estado, bem
como o interesse pelos assuntos educacionais posto a público
com o livro de 1916 – O ensino público no Congresso Nacional:
Breve notícia –, que o aproximou, dentre outros motivos, de
intelectuais e educadores do calibre de Afrânio Peixoto, Lourenço
Filho e Anísio Teixeira.
Respondeu a um propósito, a um convite – mesmo que não
formulado oficialmente –, estimulado por aqueles com os quais
convivia, pelo ambiente que frequentava, pela percepção do
interesse que poderia suscitar a divulgação de uma coletânea
de documentos organizados, sistematizados, sobre o que já se
havia produzido sobre a história da educação. Daí, a confiança
expressa no subtítulo dos livros – “subsídios para a história
da educação no Brasil” – ou mesmo pela saudação de Afrânio
Peixoto no primeiro volume publicado. Não por acaso, o modelo
criado por Primitivo Moacyr, de apresentar a legislação brasileira
como subsídio para a história da educação no Brasil, foi tomada
por Lourenço Filho como exemplo para a memória educacional.
Primitivo Moacyr não pretendeu fazer uma “interpretação” do
Brasil. Não foi um ensaísta. Porém, não só estava atualizado
com a concepção historiográfica predominante em sua época – a

252
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

história documental –, como também foi um precursor no campo


da história da educação brasileira, ao dar visibilidade à profusa
e inoperante legislação educacional.

Fontes consultadas

Documentos
MANIFESTO dos Pioneiros da Educação Nova, 1932.

Obras de Primitivo Moacyr


MOACYR, Primitivo. O ensino público no Congresso Nacional: breve
noticia. Rio de Janeiro: s/ed, 1916
_______. A instrução e o Império: subsídios para a história da educação
no Brasil. 1823-1853. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936. v.
I. Série 5., Brasiliana, v. 66, Biblioteca Pedagógica Brasileira.
_______. A instrução e o Império: reforma do ensino: 1854-1888. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. v. II. (Série 5., Brasiliana, v.
87, Biblioteca Pedagógica Brasileira).
_______. A instrução e o Império: 1854-1889. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1938. v. III. (Série 5., Brasiliana, v. 121, Biblioteca
Pedagógica Brasileira).
_______. A instrução e as províncias: subsídios para a história da
educação no Brasil: 1834-1889: das Amazonas ás Alagoas. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1939. v. I. (Série 5., Brasiliana, v. 147,
Biblioteca Pedagógica Brasileira).
_______. A instrução e as províncias: subsídios para a história da
educação no Brasil: Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato
Grosso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. v. II. (Série 5.,
Brasiliana, v. 147A, Biblioteca Pedagógica Brasileira).

253
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 233-256, jul./dez. 2017

MOACYR, Primitivo. A instrução e as províncias: subsídios para a


história da educação no Brasil: Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1940. v. III. (Série 5., Brasiliana, v. 147B, Biblioteca Pedagógica
Brasileira).
_______. A instrução pública no estado de São Paulo: a primeira década
republicana: 1889-1893. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.
v. I. (Série 5., Brasiliana, v. 213, Biblioteca Pedagógica Brasileira).
_______. A instrução pública no estado de São Paulo: 1889-1900. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. v. II. (Série 5., Brasiliana, v.
213A, Biblioteca Pedagógica Brasileira).
_______. A instrução e a República, I: Reforma Benjamin Constant:
1890-1892. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1941.
_______. A instrução e a República, II: Código Fernando Lobo: 1892-
1899. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1941.
_______. A instrução e a República, III: Código Epitácio Pessoa: 1900-
1916. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1941.
_______. A instrução e a República, IV: Reformas Rivadávia e C.
Maximiliano. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1942.
_______. A instrução e a República, V: Reforma João Luís Alves-Rocha
Vaz. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1944.
_______. A instrução e a República, VI: Ensino Técnico Industrial: 1892-
1928. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1942.
_______. A Instrução e a República, VII: Ensino Agronômico: 1892-1929.
Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1942.

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Recebido em maio de 2015.


Aprovado em fevereiro de 2017.

256
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-10

LETRADOS E ESCRITA DA HISTÓRIA ESCOLAR:


SEBASTIÃO PARANÁ E O MANUAL O BRASIL E O
PARANÁ PARA USO NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS

Maria Aparecida Leopoldino*

RESUMO: O artigo apresenta resultados de pesquisa desenvolvida


no campo da História da Disciplina Escolar. Nele, o texto do
livro didático se apresenta como um elemento central para se
compreender as estratégias de conformação de uma disciplina
escolar que historicamente se articula com a organização
curricular, com o lugar social de seu autor e as práticas
pedagógicas instituídas na cultura escolar da sociedade brasileira.
Toma como objeto de estudo e fonte de pesquisa o manual O
Brasil e o Paraná para uso nas escolas primárias, publicado
ineditamente em 1903, pelo seu autor Sebastião Paraná (1864-
1938), por meio da instituição paranaense Ginásio Paranaense
e Escola Normal. O objetivo é perceber como o professor-autor
dialoga com um campo de saber em construção que agrega
sentido a uma “história regional” constituinte de um debate que,
no calor dos ideais republicanos, associa a representação de
nação com suas partes constituintes – os estados.

PALAVRAS-CHAVE: História da Disciplina. Ensino de História


Escolar. Sebastião Paraná. Manuais Escolares.

ABSTRACT: The article presents research results from the


History of School Discipline. In it, the texto the textbook is

* Professora de Didática e Metodologia do Ensino de História, Departamento


de Teoria e Prática da Educação, da Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Doutora em Educação pelo Programa História, Política, Sociedade
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

257
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

presented as a central element for understand in the forming


strategies of school discipline that historicall y articulated with the
curricular organization with the social position of its author and
the pedagogical practices instituted in thes chool culture Brazilian
society. It takes as objecto studyandre search sourcethe manual
“Brazil and Paraná for use in primary schools”, um precedentedly
published in 1903 by its author Sebastian Paraná (1864-1938),
through the Paraná institution Gym Paranaense and Normal
School. The understand how the teacher-author converses with
in construction that a “regional history” constituent of a debate
that in the heat of republicanideals, associates the nation of
representation with its constituent parts – the United.

KEYWORDS: History of her Discipline. School History Teaching.


Sebastião Paraná. Librostext.

Introdução

Não se celebra mais a nação, mas se estudam suas celebrações.


(NORA, 1993, p. 14).

Editado em 1903 pela Empreza Graphica Paranaense, o


manual intitulado O Brasil e o Paraná para uso nas escolas
primárias1, de autoria do intelectual Sebastião Paraná de Sá
Sottomar (1864-1938), foi considerado pela comissão que o
aprovou, naquele mesmo ano, como capaz de cumprir “a missão
cívica” de apresentar o “Estado do Paraná aos futuros professores
do ensino primário”. Muito elogiado pelos catedráticos do então
Ginásio Paranaense e Escola Normal de Curitiba, o livro contribuiu
para a criação de uma memória sobre o passado paranaense. Por

1
A edição utilizada neste trabalho é a 19ª edição: PARANÁ, Sebastião. O Brasil
e o Paraná: para uso das escolas primárias. 19. ed. melhorada. Curitiba:
Empreza Graphica Paranaense, 1929.

258
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

seu intermédio, elaborou-se uma tradição discursiva da Geografia


e da História do Paraná nas décadas iniciais da República que,
pelas inúmeras reimpressões que recebeu – 22ª edição em 1941
–, sugere o quanto suas ideias estavam em sintonia com os
conhecimentos considerados socialmente necessários à época.
Professor catedrático de Geografia e Corografia do Brasil,
desde 18 de abril de 1900, Sebastião Paraná regeu também, a
partir de 1906, a cadeira de História Universal na mesma instituição.
Nascido em Curitiba, realizou seus estudos preparatórios na
Província e, em 1883, seguiu para o Rio de Janeiro, onde se
diplomou em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de
Direito. Homem público, de volta à terra natal, traçou sua vida
vinculando-se ao universo dos letrados, atuando como político e,
mais especificamente, no meio educacional. Além de catedrático
da principal instituição de ensino secundário do Paraná à época,
foi também diretor do Museu Paranaense e Biblioteca Pública do
Paraná; em 1916, exerceu a Superintendência Geral do Ensino
do estado; chegou a ser diretor do Ginásio Paranaense em 1920;
e professor da Universidade Federal do Paraná.
Quando da aprovação de seu manual pela Congregação
do Ginásio Paranaense e Escola Normal, Sebastião Paraná
ocupava uma cadeira no Congresso Legislativo como deputado e
outra como membro do Conselho Superior do Ensino Público do
estado. Além de estar envolvido com a escola primária e o ensino
secundário, ele se encontrava atuante como membro de diversos
Institutos Históricos e Geográficos do país, além do Instituto
Histórico e Geográfico Paranaense. Situação que o posicionou
em meio aos debates que envolviam a escrita da história e o papel
da geografia para explicar a nacionalidade brasileira.
Com os conhecimentos da História Universal recebidos
na formação humanística que caracterizou os seus estudos,
preocupou-se com a Geografia e a História do estado, tendo
por terreno teórico os saberes históricos comprometidos com
os destinos da nação e a formação de cidadãos fiéis à Pátria. A
“causa educacional” o ocupou ao longo de sua vida, foi o lugar
social de onde tomou suas decisões profissionais e chegou à

259
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

compreensão do seu papel frente à ruptura política com o passado


nacional e os problemas a serem enfrentados no tempo presente.
Pertencente ao diminuto mundo letrado, Sebastião Paraná
gozava de prestigio junto às instituições culturais, o que possibilitou
sua atuação na pesquisa e no ensino para definir o discurso
histórico do espaço regional, temática que mobilizou não apenas
o universo econômico e político, mas também o simbólico-cultural,
diante da meta dos republicanos de expansão da urbanização e,
nela, de escolarização da sociedade paranaense.
Ao tratar do seu manual, este trabalho considera que o livro
escolar não é algo abstrato e com sentido em si mesmo, mas
consiste em um objeto cultural próprio da sociedade escolarizada,
vinculado à cultura escolar que lhe dá sentido e legitimidade.
A escrita de Sebastião Paraná tem, portanto, a marca de sua
historicidade e suas condições socioculturais de produção,
circulação e usos sociais. Situado desse modo, o livro e seu autor
são compreendidos em meio às atividades da instituição educativa
a que se vinculava, mas também relacionados com as demais
instituições culturais que lhes deram sustentação e existência2.
Entende-se, por essas razões, que o manual escolar
sinaliza para a problemática do processo de constituição de um
saber disciplinar regional no qual estariam envolvidos sujeitos,
instituições, políticas governamentais, práticas e lugares sociais
nos quais os conteúdos disciplinares foram discutidos, aceitos
ou rejeitados, produzidos e publicados para o ensino. Os livros
escolares, quando interrogados, permitem abordar as tramas
relacionais de uma época, uma vez que se ligam à maneira de
determinado grupo social significar o difuso passado ao qual se
referem, por meio de sua narrativa e organização textual.

2
As condições socioculturais estão pensadas conforme indica Chartier (1990).
Ou seja, identificadas no “modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER,
1990, p. 16-17). Nesse sentido, debruça-se sobre os esquemas intelectuais,
a narrativa, que orientam a apreensão do universo pelo autor e sobre “as
figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se
inteligível e o espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1990, p. 17).

260
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

Tomar o livro de Sebastião Paraná como fonte possibilita


visualizar tais dimensões e, ao mesmo tempo, reconhecer que
o texto didático está envolvido num movimento complexo das
relações internas e externas ao espaço educacional que se
liga, entre outros, ao processo de urbanização do estado no
início da República. Em sua elaboração, observa-se a estreita
relação estabelecida entre a política republicana para o ensino, a
ampliação de editoração de impressos, das estruturas escolares,
bibliotecas, livrarias e a organização de espaços de sociabilidades
entre os letrados que estavam imersos nas discussões sobre a
nação republicana.
Nesse contexto é que a produção didática recebeu um lugar
específico no amplo processo histórico e cultural da sociedade
paranaense. Tal manifestação oficial de produção de saberes
sobre o passado nacional e regional precisa ser estudada,
detalhando os sentidos de seu discurso, o significado de progresso
e de modernização destinado para a sociedade no período.
Entre os atores que estão envolvidos com a produção do
manual, neste artigo, ressalta-se o autor e sua obra no contexto
de sua elaboração. Sobre o período em análise, Circe Bitencourt
(2004), ao tratar da produção didática brasileira no período que
vai de 1810 a 1910, indica, nessa longa temporalidade, que, por
volta de 1827, é possível identificar autores preocupados com
o ensino primário e “esboçando algumas contribuições para o
ensino de primeiras letras”. Foi apenas a partir dos anos de 1880
que se tornou possível criar uma “literatura que, sem abandonar
o secundário, dedicaram-se à constituição do saber da escola
elementar” (BITTENCOURT, 2004, p. 480). De maneira que só no
final do século XIX e no século XX é que se verifica a ampliação
de letrados dispostos a publicar livros para as escolas primárias.
No caso deste trabalho, o objetivo é perceber como o
professor-autor dialoga com um campo de saber escolar em
construção, que agrega sentido a uma “história regional”
constituinte de um debate que, no calor dos ideais republicanos,
associa a representação de nação com suas partes constituintes
– os estados. Afirma-se, portanto, o caráter criativo dos sujeitos ao

261
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

produzirem fundamentos políticos e pedagógicos para a disciplina


escolar no processo de seleção, organização e didatização de
saberes figurados como socialmente necessários (CHERVEL,
1990).
Para tratar desses aspectos do manual, o texto foi dividido
em três momentos. Inicialmente, entendeu-se importante dar
visibilidade ao lugar institucional a que Sebastião Paraná estava
vinculado, quando da produção e da aceitação do seu escrito. Na
sequência, apresentou-se a narrativa construída sobre o Paraná
em sua relação com a produção de um conceito de região tal
como foi pensada na época, como partícipe de progresso e de
modernidade. Nas considerações finais, observou-se como o
projeto político, em que o manual exerceu um importante papel
na construção de saberes escolares, possibilitou que o autor
representasse o espaço e configurasse um campo disciplinar
para ensinar História e Geografia no ensino primário, ou seja,
para os anos iniciais do ensino fundamental tal como conhecemos
atualmente.

Letrados e ensino: Sebastião Paraná e o lugar institucional

Em 1903, na sede do Gymnasio Paranaense, a comissão3


designada para avaliar o livro de Sebastião Paraná – Emiliano
Perneta, Chichorro Junior, Dario Vellozo – publica o seguinte
parecer:

Cidadão Dr. Victor Ferreira do Amaral, D.D. Director da Instrucção


Publica do Paraná. A comissão abaixo assignada, por vós nomeada
para dar parecer sobre o livro do Dr. Sebastião Paraná – O Brasil e o
Paraná – escripto PARA USO DAS ESCOLAS PRIMARIAS, - tendo

3
Por intermédio da Congregação do Ginásio, os catedráticos tomavam
decisões sobre a organização pedagógica e o desenvolvimento das ações
administrativas da instituição. Era o conselho deliberativo sobre a adoção de
livros didáticos e sobre a emissão de pareceres a respeito de obras didáticas
encaminhadas para avaliação por meio de uma comissão de professores.

262
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

estudado convenientemente o trabalho do ilustre collega, entende


que o referido livro preenche com brilho os fins a que se propoz
o autor, devendo ser adoptado nas escolas publicas do Estado.
Escripto com amor pela terra natal – O Brasil e o Paraná – põe
em bello relevo, não só a Patria Brasileira, senão tambem, e
principalmente, este radioso Estado, digno de ser conhecido, para
que realize desde logo o bello destino para que o fadou a Natureza.
É conhecendo o berço que o homem aprende a amal-o. O Brasil e
o Paraná ensina-o sufficientemente, offerecendo rutilante exemplo,
communicativo, de veneração e civismo.
Coritiba, 1 de Outubro de 1903. (PARANÁ, 1929, p. 3).

Ao se eleger o livro de Sebastião Paraná como capaz de


cumprir a missão cívica de apresentar o estado para a comunidade
escolar, parte dos letrados – naquele momento representada por
Emiliano Perneta, Chichorro Junior e Dario Vellozo – encontrava-
se na direção de um projeto político e cultural de empreendimento
patriótico que incorporou no debate, presente desde a década de
1870, a instituição educacional.
A percepção do lugar social de produção do manual de
Sebastião Paraná permite visualizar a vinculação entre os letrados
próximos ao poder político e os autores das obras destinadas à
divulgação de saberes para instituições escolares. Do conjunto
de membros que compunham a Congregação, sobressaia um
núcleo de intelectuais constituído de indivíduos, em geral de
origens e laços sociais privilegiados, que participavam ativamente
da produção de conhecimentos literários e científicos e que,
em fins do século XIX e início do XX, buscavam também uma
representação discursiva e simbólica de região, diante dos
desafios de caracterizar o território nacional.
Tratava-se de empreender um conhecimento sobre a nação
que pudesse ser qualificado como uma “grande obra nacional”
que, na sua divulgação, propagasse as “glórias” regionais
fazendo-as disponíveis não apenas para o círculo de letrados,
mas a um maior número de pessoas possível, de modo a ser
capaz de produzir um discurso sobre identidades – nacional e

263
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

regional. Para alcançar tal intento, foram mobilizados esforços


e competências dos intelectuais envolvidos com o objetivo de
produzir tais conhecimentos sobre a realidade social. O esforço
passava também pela elaboração e publicação dos escritos para
uso nas instituições educacionais na forma de livros escolares.
Envolvido com tais questões estava Sebastião Paraná, que,
filho e neto de militar4, diplomado em Direito no município da Corte,
foi influente na produção de ideais que reforçavam a grandiosidade
nacional e a situação do estado diante da esperança, que a elite
sustentava, de um futuro promissor em direção à “civilização”.
Atuante nas questões educacionais, Sebastião escreveu vários
livros que pudessem expressar seus anseios patrióticos: Espaço
geográfico do Paraná (1889); Chorografia do Paraná (1899); O
Brasil e o Paraná para escolas primárias (1903); Os estados da
República (1911); Paizes da América (1922); Galeria Paranaense
(1922); Paizes da Europa (1926); Efemérides da Revolução de
Outubro de 1930 no estado do Paraná (1931).
Envolvido com as atividades das instituições governamentais,
o bacharel estava enredado nos debates que tratavam de
pensar sobre a escrita da história e o papel da geografia para
compreender a região, seja na fixação do objeto da Geografia,
seja na produção de uma narrativa histórica sobre o Paraná. De
maneira que, além de catedrático do Gymnasio Parananese e
da Escola Normal, Sebastião Paraná também estava vinculado
como sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro5, de vários institutos regionais (Instituto Histórico e
Geográfico Parahybano; Instituto Arqueológico e Geográfico
Alagoano; Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe; Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo; Instituto Histórico e
Geográfico Catarinense) e, ainda, ao Instituto Geográfico
Argentino e à Sociedade Geográfica de Lisboa6.

4
Filho do Capitão Inácio de Sá Sottomaior e neto do Coronel de milícias do
mesmo nome.
5
Sobre o IHGB, ver Guimarães (1988).
6
E mais: da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro; sócio efetivo do Centro

264
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

Suas referências institucionais indicam que em seus contatos


estavam, além dos diversos institutos históricos e geográficos do
país, grandes centros internacionais do universo científico, como
a Sociedade Geográfica de Lisboa. Em um momento no qual
as fronteiras dos conhecimentos científicos ainda não estavam
plenamente definidas, seus vínculos sugerem, ainda, o campo
que estava inclinado a seguir e o interesse que tinha na tarefa do
IHGP, de “coligir, estudar, publicar e arquivar os documentos que
sirvam à historiografia do Paraná, promovendo a difusão de seu
conhecimento pela imprensa e pela tribuna” (BIHGP, 1917, p. 22).
A inserção de Sebastião Paraná nas questões de seu tempo
se realizou, portanto, por meio de seu desempenho, amplamente
reconhecido, nas funções públicas realizadas em prol das causas
educacionais. É significativo, nesse aspecto, o registro de que seu
manual foi premiado com medalha de prata pelo Jury Superior da
Exposição Nacional em 1908.
Considerando a temporalidade da sua escrita, as informações
por ele utilizadas na construção de sua narrativa foram oriundas
de trabalhos de cronistas, narrativas de viajantes e de textos
divulgados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que
circulavam entre os letrados à época7. A apropriação que fez
dessas fontes ganhou corpo e força num cenário em que a
instituição de ensino paranaense alimentava discussões acerca
da construção da ideia de progresso, de modernidade, e ainda,
de identidade regional, para inaugurar uma ideia de nação, de
povo e de liberdade no cenário republicano.
Em um contexto de maior circulação de ideias, a criação
da imprensa paranaense8 ampliou o universo de leitores e as

de Letras do Paraná e da Academia de Letras do Paraná (PARANÁ, 1929,


p. 2).
7
É importante dizer que a obra de Romário Martins, História do Paraná,
publicada em 1899, circulava entre os intelectuais. Nela, Martins propunha
uma descrição dos seguintes aspectos: “meio físico”; “distribuição geográfica
das tribos indígenas”; “fatores étnicos fundamentais”. Ver: MARTINS,
Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. 3, 4.
8
Com a criação da “Impressora Paranaense”, em 1888, sob a gerência de

265
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

atividades dos intelectuais que estavam envolvidos com a tarefa


de escrever para os jornais e revistas locais, de participar de
clubes literários e exercer o magistério. Tais círculos sociais eram
importantes locais para divulgar suas ideias, discutir, opinar, criticar
e sugerir projetos de futuro para a sociedade. Nesses espaços,
discutiam com adversários e enalteciam seus colaboradores, bem
como reivindicavam apoio aos seus projetos.
Imerso nesses espaços de sociabilidade, Sebastião Paraná
convivia com grupos letrados em um cenário político no qual
a escola primária tornava-se o centro irradiador dos saberes
necessários a todos os cidadãos de uma república livre. O
aumento da produção didática para a escola primária se inseria
nessa conjuntura em que os conhecimentos de História, Geografia
e Língua Portuguesa passavam a exercer um papel importante
na consolidação do projeto educativo de difusão do patriotismo.
Na mesma medida em que o discurso institucional enfatizava a
elaboração de manuais e cartilhas escolares como uma missão
patriótica.
Boguszewski (2007) observa que o número de estabelecimentos
gráficos se multiplicou em Curitiba nas duas primeiras décadas
do século XX. O resultado dessas estratégias editoriais foi a
ampliação das possibilidades de divulgar textos impressos e sua
disponibilização para um maior número de leitores urbanos. Uma
realidade editorial que atingiu também a editoração dos livros
escolares e possibilitou a expansão do ensino primário para a
população até então sem acesso à escola elementar.
Denominada de Ginásio Paranaense e Escola Normal,
no tempo republicano, a instituição tornou-se, no contexto
paranaense, um lugar social de produção dos conhecimentos
necessários não apenas para a formação das elites locais que se
preparavam para ingressar nos cursos superiores, mas igualmente
para a formação de professores das escolas primárias. Criada

Jesuíno Lopes, a qualidade técnica de que ela dispunha possibilitou a


profissionalização da arte gráfica no Paraná e a ampliação ao acesso da
população letrada ao impresso em geral e ao livro em especial.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

no século XIX como Liceu, foi por muito tempo apenas uma
instituição de ensino secundário, por vezes funcionando com
poucas aulas destinadas aos cursos preparatórios. Na década de
1870, tornou-se Instituto de Preparatórios e recebeu a tarefa de
incorporar uma Escola Normal para formar professores do ensino
elementar (TOLEDO, 2005).
A existência da Escola Normal foi decisiva na formação de
um conjunto de práticas e possibilidades teóricas9 (CERTEAU,
2006, p. 65) para que a ideia de um nacionalismo republicano
estabelecesse sua tradição no cenário regional. Isso porque,
efetivamente, para que pudessem circular nas escolas, os
manuais, os compêndios e as cartilhas eram textos que precisavam
ser aprovados pelos membros institucionais. As editoras nacionais
se aproximavam dos letrados que a ela estavam vinculados,
confirmando o prestígio da instituição e de seus professores.
O final do século XIX e os anos iniciais do século XX foram
marcados, portanto, por um período em que os autores de
livros escolares para a escola primária eram letrados que, por
sua formação intelectual, produziam saberes escolares sem as
características, ainda, de um campo disciplinar formado, mas
em formação. As disputas e as divergências sobre a importância
dos conteúdos a serem ensinados estavam presentes, mas, ao
mesmo tempo, os letrados produziam para um público cada vez
mais heterogêneo, não limitado mais aos filhos dos grandes
proprietários rurais ou comerciantes. Tratava-se, isso sim, de
um público escolar diferenciado, composto por alunos de ensino
elementar com idades variáveis, o que impulsionava parte da elite
intelectual10 pensar o “ser paranaense” dentro de um contexto
maior, que era o “ser brasileiro”. Por intermédio da imprensa, dos
escritos dos letrados locais e da instituição escolar, a memória
e a identidade paranaense foram sendo criadas por meio de

9
No texto A escrita da história, Certeau considera que o fazer teórico e prático
está determinado pelo lugar “de onde falo e do domínio em que realizo uma
investigação”, sendo o lugar sua marca é indelével (CERTEAU, 2006, p. 65).
10
Sobre a formação da elite paranaense, ver Oliveira (2001).

267
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

diversos mecanismos para propagar a identidade regional por


eles construída.
Sebastião Paraná compreendia que, ao se servir dos
saberes históricos, não só localizaria as raízes de uma identidade
nacional, mas, também, encontraria as tradições de uma região
que deveria seguir na “vanguarda modernista”. Para tanto,
pareceu-lhe imprescindível buscar amparo na geografia e na
etnografia para traçar as fronteiras do território regional e inventá-
lo historicamente, na conjuntura de um tempo em que se buscava
definir progresso e modernização para o país.

Progresso e modernização na narrativa de Sebastião Paraná:


as figurações da história regional

Representante de um diminuto grupo, os homens de letras,


Sebastião empenhou-se em elaborar conhecimentos sobre o
Brasil e sobre o Paraná, animado por um desejo de anunciar a
grandiosidade de uma nação que, depois de um longo período
monárquico, tornava-se republicana. A descrição do espaço
paranaense por meio de sua formação geográfica e conteúdo
territorial manifestava a vontade coletiva das elites locais em
celebrar a possibilidade de difundir uma “identidade” grandiosa do
território paranaense.
A reorganização do espaço estava associada, frente às
transformações na vida econômica e política do país nos anos
iniciais da República brasileira, a modos específicos de ver e de
construir a realidade social. Como já apontou Gilberto Velho (1995),
ao se realizar por intermédio de novas visões do tempo, espaço
e indivíduos, a reorganização do espaço promove a luta teórica
por definir tais conceitos. Nesse aspecto, como já é conhecida
pela historiografia, a invenção histórica do Paraná, que inaugura
um discurso de região no cenário republicano, inicia-se com a
separação política de São Paulo, em 29 de agosto de 1853, para
tornar-se província.
Na série de acontecimentos que conduziu à emancipação

268
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

política do Paraná, Sebastião valorizou o dia 19 de dezembro de


1853, como ato fundador. Para ele, com a posse do presidente
da província, Zacarias de Góes e Vasconcellos, é que se “[...]
assignala a nossa entrada triumphal nos parametros do progresso
e da civilização”. (PARANÁ, 1929, p. 96). No escrito, foi a partir de
1853 que “começou o progresso da terra paranaense, a que estão
reservados grandes destinos. Plaga predestinada, escolhida para
centro da actividade de uma população numerosa e trabalhadora”.
(PARANÁ, 1929, p. 96).
Em seu texto, a força simbólica11 do marco de origem12 define
as fronteiras e demarca o território na representação de região
construída para o estado. Qualificar o espaço e oferecer um
quadro geral descritivo do território conhecido e a conhecer e, ao
mesmo tempo, difundir os conhecimentos “civilizadores” da ciência
moderna, tornou-se o esforço empreendido por Sebastião Paraná
ao conceituar a região no manual.
Limites e linhas divisórias, superfície, potamographia,
colpographia, nesographia, riqueza natural, industria agricula,
industria pastoril, industria fabril, industria extrativa, governo
do Estado, divisão administrativa, representação federal, força
publica, instrução popular, população, vias de comunicação, vias
férreas, cidades, vilas são os temas que compõem a representação
espacial e histórica do estado, no livro. Nele, a urbanização tornou-
se o objetivo dessas mudanças e o palco de desenvolvimento do
Paraná, resultando no progresso científico e social movido por meio
da ação política dos “ilustres homens” paranaenses.

11
Esse conceito se relaciona com o que Bourdieu denominou de “poder
simbólico”, que é “o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer
ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste
modo, a ação sobre o mundo.” (BOURDIEU, 1989, p. 14).
12
O conceito se aproxima da ideia de “mito de origem”. Marilena Chauí (2000)
trata deste conceito e esclarece que o mito, neste caso, não é só no sentido
etimológico, de narração de acontecimentos lendários, “mas também no
sentido antropológico, de solução imaginária para tensões; fundador por trazer
um vínculo com um passado de origem, do qual não há nunca desvinculação”.
(CHAUÍ, 2000). No caso deste trabalho, utiliza-se “marco” para reafirmar a
importância historiográfica da questão.

269
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

Uma vez criado o espaço político, caberia aos homens


ilustrados dar voz ao estado, de modo a fazê-lo presente nos
debates da época entre as grandes capitais, como convinha a
uma nação civilizada. Por esse discurso, a figura do paranaense
é representada, fundamentalmente, pelo homem culto e laborioso,
fruto dos colonos audazes, capazes de vencer a natureza bruta,
adentrar as matas “virgens”, os rios encachoeirados, apropriar-se
dos espaços “vazios” tomando posse do território para produzir
riquezas.
No manual, a determinação geográfica possibilitaria conhecer
o Paraná e sua história. Os rios receberam, nesse enredo,
importância na identificação dos limites, margens e fronteiras,
além de indicar o papel desempenhado pelos portos para o
desenvolvimento comercial da região. Os rios foram vistos como
as vias naturais fixas que levavam aos limites territoriais, permitiam
o conhecimento do espaço e, ao mesmo tempo, o avanço do
comércio. As referências aos roteiros navegáveis estão sempre
ligadas com o possível trânsito de mercadorias locais.

A barra de Guatauba acha-se balisada, podendo entrar nella navios


sem que haja receio dos perigos a que estavam sujeitos antes de
se effectuar esse importante melhoramento. É assignalada por um
pharol, assim como a de Paranaguá, indicada pelo pharol do morro
das Conchas, na extremidade oriental da ilha do Mel. (PARANÁ,
1929, p. 104).

Tornar as águas navegáveis, ampliar os contatos regionais


e nacionais fazia parte das melhorias que o governo, portanto,
deveria realizar para compor o cenário nacional de grandiosidade
na tarefa de civilizar o território.
Na sua narrativa, o espaço é território natural, a ser ocupado
e explorado cientificamente, de forma que a presença dos nativos
não está relacionada à utilização que faziam desses lugares, mas
à sua existência como componentes da paisagem natural. No
item “Nesographia”, encontra-se a seguinte menção aos índios:

270
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

Nesses sambaquis [colinas, formadas de grande quantidade


de cascas de crustáceos e molluscos], tambem vulgarmente
chamados ostreiras, teem se encontrado ossos humanos, cinzas,
carvão vegetal, fragmentos de louça de barro, espinhas de peixes,
machados de pedra e outros utensílios de que se utilizavam os
primeiros habitantes daquelles logares. (PARANÁ, 1929, p. 105).

Somente poucos comentários aparecem para fazer referência


à presença de índios na região, normalmente caracterizada como
um acontecimento que se realizou no passado. Os espaços
retratados como se estivessem vazios induzem à interpretação de
que a história desses rios, com sua utilização e sua transformação
humana, principia com a chegada do colono. Por isso, os índios
são vistos como componentes da natureza, sem protagonizar
suas histórias, na medida em que o ato fundador da História
Regional foi a transformação do espaço pelo agente civilizador.
Com um discurso voltado para a ocupação territorial, como se vê
ao destacar o que se considerava riqueza natural, o autor afirma:

O Paraná, Estado novo, de terras fertilíssimas e clima delicioso;


Estado onde não existem preconceitos de raças e de seitas;
Estado que dá generoso acolhimento aos extrangeiros, de cujo
concurso precisa para a sua prosperidade material, possui grandes
e admiráveis riquezas naturaes. É uma enorme officina aberta ao
trabalho, a todas as especulações industriaes. (PARANÁ, 1929,
p. 106).

O núcleo da intenção de Sebastião com estes temas (terras


férteis, clima propício, povo sem preconceito), para explicar as
características da região, vinculou-se à preocupação em recuperar
aspectos “promissores” do território e da política local, no que se
refere ao seu desenvolvimento comercial, às relações de trabalho
e à vivência social. Pressupunha o interesse em uma nova forma
de representar o território, vinculada à ideia de progresso e de
modernização. O que se mostraria na capacidade do estado
de instaurar novas regras e normas sociais fundamentadas

271
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

nos signos da modernidade científica como, por exemplo, na


capacidade dos colonos e imigrantes para alterar o ambiente
natural e as estruturas sociais com inovações tecnológicas na
produção industrial.
Sebastião Paraná, ao tratar com os sentidos de região e
história, construídos nos lugares institucionais aos quais se
vinculava, produziu conhecimentos que, em geral, contrastam
o espaço urbano com o campo ou o meio rural, objetivando
caracterizar o que significava a “modernização” da sociedade. No
esforço em apresentar como a situação geográfica paranaense
estava adequada ao desenvolvimento da indústria e do comércio
no estado, o autor destacou os produtos vegetais que se
encontravam nas suas terras. No excerto abaixo, o pinheiro
aparece como uma das madeiras que abundavam na região:

O reino vegetal é riquíssimo de madeiras excellentes para


construcção civil e naval e para fabricação de objectos de
marcenaria. Entre as madeiras mais estimadas que o Estado possue
em grande cópia, destacam-se a imbuia, o angico, o taruman, o
jacarandá, o Angelim, o carvalho, a cajarãna, a cabreuva, o ipê,
o jequitibá, o guaraperê, o balsamo, o jatahy, o cedro, o pinheiro,
uma das mais abundantes. (PARANÁ, 1929, p. 106).

Sobre esse cenário, Sebastião afirma, ainda, que o café


também era promissor:

[...] está se desenvolvendo animadoramente no Paraná. Já existe


notável plantação de café nos municípios do norte do Estado; canna
de assucar, algodão, fumo, mandioca, arroz, milho, feijão, centeio,
batata. Cebola, banana, uva, laranja e outras fructas. A exportação
de banana para o Estado do Prata augmenta dia a dia e é feita
pelos municípios do litoral, com excepção do de Guaratupa, que não
dispõe de meios fáceis de transporte. (PARANÁ, 1929, p. 107-108).

Entre a madeira e o café, o mate é marcado como o


impulsionador da vida econômica no estado, por tornar-se
principal produto ali desenvolvido na indústria extrativa:

272
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

A árvore do matte constitue o principal ramo da industria extractiva


paranaense. Milhares de arrobas de hervamatte são annualmente
exportadas, principalmente para Buenos Aires, Montevidéo e
Valparaiso. Pode-se, pois, dizer que o Paraná assenta a sua
riqueza em três grandes pedestaes: o matte, o pinheiro e o café.
(PARANÁ, 1929, p. 107, grifo meu).

Esses três elementos constituíram-se no símbolo da riqueza


natural paranaense presente no livro escolar. Enquanto, no
contexto nacional, o principal produto era o café, no Paraná, o
mate tratava-se de um “nicho econômico alternativo, que lhes
proporcionou uma atividade comercial intensa principalmente
com o mercado platino [...].” (CORRÊA, 2006, p. 33). Para
Sebastião Paraná, o progresso do comércio do mate seria
determinante na tão sonhada “modernização” do estado e numa
série de investimentos que, como se pensava, dariam origem ao
desenvolvimento urbano e a uma ampla produção cultural nas
suas principais cidades.
O mate, o pinheiro e o café tornaram-se os símbolos
representativos da história do Paraná13, formando um discurso
representativo na luta pela construção da identidade regional.
De modo que, na construção de um discurso que definiu essa
identidade, a abordagem econômica das elites tornou-se
dominante, como nas outras regionalidades que também se
construíam nesse contexto no cenário brasileiro:

É importante e consiste principalmente na extracção de pinho e


de herva-matte, o mais valoroso producto da industria extractiva
paranaense. Região nenhuma da America foi melhor aquinhoada
de hervaes do que o Paraná. Na zona de Serra-Acima existem

13
Saint-Hilaire, naturalista francês que viajou pelo país no século XIX, 1822,
já apontava em seus escritos que a natureza da região tinha sua síntese no
Pinheiro do Paraná. Para ele, “o pinheiro era a planta que carcaterizava a
região, não apenas por seu aspecto e intensidade de incidência da paisagem,
mas pela importância de sua madeira e do fruto, o pinhão, para os habitantes
dos Campos Gerais”. (PEREIRA; IEGELSKI, 2002, p. 52).

273
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

florestas nativas desta arvore preciosa do Brasil meridional, como


o são no norte a carnaubeira, a seringueira e a mangabeira, que
fornecem a cera e borracha. (PARANÁ, 1929, p. 110-111).

A ideia presente na narrativa é a de que o meio havia sido


o principal elemento impulsionador da conquista paranaense
do progresso, visando demonstrar a erva mate como o núcleo
irradiador de tal conquista. Os elementos simbólicos se definiram,
portanto, entre os produtos comerciais que eram dominantes nas
terras paranaenses, dentre os quais, “é, pois, o matte o ramo
preponderante da nossa industria, aquelle que até hoje tem
attrahido maior soma de braços e capitaes” (PARANÁ, 1929, p.111).
Na busca por figurar um discurso de construção identitária,
elegeu-se os elementos da produção agrícola, numa trama
discursiva capaz de incorporar o imigrante ao tratar do trabalho,
do cultivo da terra, nessa construção simbólica da identidade
regional. Por isso, Sebastião, ao tratar das relações de trabalho,
elaborou uma escrita que exaltava a “soma de braços” e a
existência de um possível interesse da população pela atividade
industrial e manufatureira:

Nesses pequenos centros de vida industrial, vê-se salutar a


agitação agrícola que impressiona agradavelmente o espírito. Ahi
se aprecia o esforço constante e sincero, o anhelo de progredir,
a applicação ao trabalho quotidiano e a confiança no meio onde
extrangeiros e seus descendentes labutam confiantes nos dias do
porvir. (PARANÁ, 1929, p. 108).

A propensão da índole do homem paranaense ao trabalho


é uma construção que acontece, no manual, quando o autor
enaltece o imigrante e seus descendentes no desenvolvimento
da vida industrial das cidades paranaenses. A visão republicana
de progresso revestiu-se, pois, no Paraná, da defesa do trabalho
livre e da urbanização, cuja noção precisava ser recuperada em
decorrência de um passado rural e escravista. Nesse pressuposto,
era fundamental para as elites identificar o trabalho livre com

274
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

riqueza, uma vez que se explicariam os progressos alcançados


também na atuação dos cidadãos laboriosos.
Nesse quesito, Sebastião Paraná esperava que os poderes
políticos fossem as forças propulsoras dos recursos financeiros
e mantenedores da ordem e do progresso social. Por isso, na
continuidade de seu texto, o autor passa a tratar dos aspectos
político-administrativos do estado. Descreve como o governo
era exercido, como se dividia a administração e os municípios e
sua representatividade junto ao governo da República. Na parte
final do livro, trata especificamente dos temas: “força publica”,
“instrução popular”; “população”, “vias de comunicação”; “vias
férreas”, “cidades”, encerrando com “vilas”.
O conceito de região, pensado como uma unidade de análise
territorial e da organização administrativa do espaço físico,
possibilitou localizar o “ponto zero” (HOBSBAWN; RANGER,
1984) que pudesse fazer com que os leitores do manual se
identificassem num passado comum. Nesse sentido, no livro
de Sebastião Paraná, geografia e história se relacionaram para
inventar o território e as tradições paranaenses. Pensada como
saber escolar, a geografia explicaria a identidade regional por
intermédio dos seus atributos naturais e dos produtos agrícolas
centrais, assim como a historiografia se tornaria um dos
instrumentos legitimadores de tal construção, identificando a
formação das vilas, a força do trabalho e o desenvolvimento dos
núcleos urbanos por meio das primeiras famílias colonizadoras
ali situadas.

Considerações finais

Apresenta-se neste artigo, um estudo sobre o livro didático


na perspectiva da História das Disciplinas, a partir da qual se
apresenta o manual escolar do intelectual paranaense Sebastião
Paraná. Na análise, observou-se que o autor, ao tratar do Brasil
e do Paraná, tornou o território um emblema da nação. Através
das suas linhas e do traçado das suas fronteiras, fez surgir a

275
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

região como um espaço pertencente ao território nacional. Aqui


reside um aspecto central trazido pelo artigo: reconhecer como
o conceito de região figurou nos livros escolares para a escola
primária nos anos iniciais da República paranaense.
Nesse aspecto, o livro de Sebastião Paraná divulga um
conceito de região tendo o território nacional e sua natureza como
paradigma para se conhecer o que era o Brasil e estabelecer
diagnósticos sobre os seus problemas para adentrar o conjunto
das nações civilizadas. No horizonte da construção desse conceito
estava o desejo das elites assentadas no poder de civilizar, ou
seja, de ocupar o território, de explorar a natureza, de urbanizar
o espaço conhecido e a conhecer.
Com o propósito de legitimar as fronteiras conquistadas pelo
estado, o manual é representativo – pelos elogios que recebeu,
pela premiação conquistada e pelas reimpressões recebidas –
de um projeto educativo que destaca as especificidades de uma
região e suas respectivas contribuições para a grandeza da nação,
como vistas à construção de um passado de tradições comuns. Da
história, se esperava entender a unidade nacional e, da geografia,
o desenvolvimento da região, numa mesma temporalidade e
progressão criada para explicar a história nacional.
A divisão hierárquica de Brasil e Paraná, ou nação e região,
presente no livro, implicou a definição de uma “História Regional”
e sua relação com a história nacional no decorrer do século
passado. Tal definição – região como subsistema do nacional –
ainda está presente nos livros didáticos atuais, cuja narrativa tem
por base o recorte político-administrativo e econômico. Narrativa
que se torna hegemônica no ensino escolar e excludente de outras
memórias, de outros grupos sociais.
O principal intento do artigo foi enfatizar, portanto, a
construção que Sebastião Paraná fez sobre o universo simbólico
da identidade regional baseada nos três elementos que formaram
as atividades econômicas da elite regional: o mate, o pinheiro e
o café. A geografia da região foi simbolicamente representada,
enfim, através do “espírito empreendedor” existente entre o grupo
ervateiro, representante das elites dominantes paranaenses

276
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 257-279, jul./dez. 2017

no início do século XX. A visão de modernidade e progresso,


construída e presente no manual escolar, incorporou, desse modo,
uma representação específica das elites políticas e econômicas
dominantes do final do século XIX e anos iniciais do século XX.
Em outras palavras, nos recantos privilegiados das elites
paranaenses, o peso da formação econômica na narrativa
sobre a memória e a identidade regional representa o esforço
exercido por essas elites na tarefa de criar o estado, discursiva e
simbolicamente, à sua semelhança. Por seu intermédio, construiu-
se a ideia de região, de identidade e se posicionou a história
regional como anexa à história nacional nas décadas iniciais do
século XX. E, ao mesmo tempo, marcou-se a definição do campo
disciplinar da História e da Geografia como disciplina escolar, no
contexto de uma vontade de atores históricos específicos – os
letrados – em celebrar a possibilidade de difundir uma “identidade
grandiosa” do território paranaense. Sebastião Paraná, por meio
de seu manual, contribuiu decisivamente para a construção
dessa memória do estado que é ensinada nas escolas de ensino
fundamental do Paraná até hoje.

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Recebido em junho de 2016.


Aprovado em junho de 2017.

279
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-11

INTELECTUAIS E EDUCAÇÃO:
O DEBATE BRASILEIRO EM TORNO DA LEI DE
DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL
(LEI Nº 4.024 DE 1961)

Maria Cristina Gomes Machado*


Mário Borges Netto**

RESUMO: A partir do projeto de lei acerca das Diretrizes e Bases


da Educação Nacional (LDB 4.024/61), problematizaremos
o modo como os intelectuais se utilizaram da imprensa para
divulgar projetos educacionais diversos e se inserir na disputa
pela hegemonia. O referido debate constitui o objeto de nosso
estudo, que investiga as lutas sociais travadas no Estado e na
sociedade civil brasileira sobre o processo de constituição e
consolidação da escola pública estatal. Nesse processo, diferentes
intelectuais polarizaram-se em dois grupos fundamentais, a
saber, os defensores da escola pública, denominados liberais,
e os privatistas, os quais passaram a disputar espaços no
Congresso Nacional, nas comissões parlamentares, nos círculos
de intelectuais e na imprensa.

PALAVRAS-CHAVE: História da Educação. Hegemonia.


Intelectuais.

ABSTRACT: From the law project concerning the Directories and

* Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Estadual de Maringá (UEM) e do Departamento de Fundamentos da Educação
da mesma universidade.
** Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor
do Curso de Graduação em Pedagogia da Universidade Federal do Tocantins
(UFT), campus universitário de Tocantinópolis.

281
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

Basis of the National Education (LDB 4.024/61), we will question


the way how the intellectuals used the press to divulge different
educational projects and insert themselves into the debate for
the hegemony. The referred debate constitutes the object of our
study, which investigates the social conflicts engaged in the State
and in the Brazilian civil society with regard to the constitution and
consolidation of the public state school. In this process, different
intellectuals separated into two fundamental groups, to wit, the
defenders of the public school, named liberals, and the supporters
of the private school, who came to dispute in the National
Congress, in the Parliamentary commissions, in the intellectual
circles and in the press.

KEYWORDS: History of Education. Hegemony. Intellectuals.


Press.

Considerações iniciais

Neste texto, problematizaremos o modo como os intelectuais


se utilizaram da imprensa para divulgar projetos educacionais
diversos e se inserir na disputa pela hegemonia. Para tanto,
tomamos como base material o debate educacional brasileiro em
torno do projeto de lei sobre as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB 4.024/61). O referido debate constitui o objeto de
nosso estudo, que trata das lutas sociais travadas no Estado e
na sociedade civil brasileira sobre o processo de constituição e
consolidação da escola pública estatal. Ganham centralidade
nesse debate as discussões referentes: 1) à natureza que
as escolas brasileiras deveriam assumir (caráter público ou
privado); 2) ao ensino religioso; e 3) à subvenção do Estado às
escolas privadas (BARROS, 1960). Nesse processo, intelectuais,
representantes de diferentes grupos sociais, polarizaram-se em
dois grupos fundamentais, a saber, os liberais, defensores da
escola pública (grupo composto principalmente por intelectuais

282
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

de tendências liberais e socialistas) e os privatistas (formados


pelos intelectuais da Igreja Católica e os proprietários das escolas
privadas), os quais disputaram espaços no Congresso Nacional,
nas comissões parlamentares, nos círculos de intelectuais e na
imprensa (BUFFA, 1979).
Para melhor compreendermos o debate educacional
supracitado, faremos uso das categorias intelectuais, imprensa
(enquanto aparelho privado de hegemonia) e hegemonia,
formuladas por Antonio Gramsci. Elencamos essas categorias por
entendermos que, na vida social, elas se imbricam e contribuem
para a compreensão das ações políticas de intelectuais envolvidos
com projetos educacionais de seu tempo e que se utilizaram da
imprensa como meio de divulgação e disputa.
O objeto de estudo aqui destacado, qual seja, o debate
educacional brasileiro em torno do projeto de LDB que tramitou
no Congresso Nacional entre os anos 1948 a 1961, patenteado
por intelectuais por meio da imprensa e analisado a partir dessas
três categorias por nós elencadas, demonstra que a relação
intelectual, imprensa e educação pode ser mediada pela categoria
da hegemonia. Isso implica considerar que o debate educacional
em tela extrapola o âmbito pedagógico e assume conotações
político-ideológicas, podendo ser entendido como uma expressão
da luta de classes. Nesse processo de disputa pela hegemonia,
as diferentes classes sociais recorreram aos intelectuais que
estavam ao seu serviço, os quais utilizaram a imprensa para
divulgar e defender projetos e propostas educacionais próprias
das classes a que estavam vinculados.
Por fim, defendemos que essas categorias são importantes
para a construção da história da educação porque nos permitem
depreender a ação política dos intelectuais enquanto resposta
às lutas reais travadas pelos homens de seu tempo na produção
da sua existência. Por conseguinte, possibilitam a apreciação do
intelectual e de suas ideias na relação com as suas ações políticas
no interior da luta de classes.

283
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

O cenário político-econômico brasileiro entre as décadas de


1930 e 1960

As transformações sociais que ocorreram no Brasil na


passagem do final do século XIX para o início do século
XX influenciaram as discussões sobre a modernização da
sociedade e a ampliação da oferta da educação nacional. Essas
transformações suscitaram debates sobre os rumos que o país
trilharia em termos econômicos e políticos, ao qual o debate sobre
a configuração do sistema de ensino era essencial. Neste texto,
tomaremos como referência os desdobramentos deste processo
até os anos de 1960.
A necessidade de reorganizar e regulamentar a educação
nacional pode ser entendida como uma das diversas demandas
das transformações sociais postas pelo processo acelerado de
industrialização brasileira, iniciado a partir de 1930. Em unidade à
industrialização, pretendia-se criar uma ordem social democrática,
por isso, tornou-se imperiosa a democratização das relações
políticas e sociais e as conquistas de direitos políticos e benefícios
sociais por parte da classe média e operária, dentre elas, a
expansão da oferta do ensino. Essas e outras transformações
institucionais foram importantes componentes da ruptura político-
econômica engendrada pelo país para ingressar na era da
civilização industrial, no seleto rol de economias desenvolvidas
(IANNI, 1968). Para José Luis Sanfelice,

Pode-se dizer que aquela emergente modernização trouxe consigo


a necessidade objetiva, pelo menos por parte de determinados
grupos e/ou classes sociais, de discutir e definir questões
supraestruturais para que essas pudessem, uma vez reformadas,
corresponder de forma mais adequada às novas características
estruturais. (SANFELICE, 2007, p. 543).

Para Octávio Ianni, o desenvolvimento econômico, político


e social vivido pelo Brasil, simbolizado pela industrialização
acelerada, foi o resultado da busca pela autonomia econômica

284
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

nacional. Para alcançar tal resultado, o país então vivenciou uma


série de rupturas políticas e econômicas internas e externas,
mesmo que parciais, que ocorreram entre as duas grandes
guerras mundiais e o golpe militar. Na perspectiva do autor,

Um país subdesenvolvido somente ingressa na era da civilização


industrial quando alcança a autonomia política e econômica. E a
autonomia somente ocorre mediante a ruptura político-econômica
com a sociedade tradicional e com o sistema internacional
dominante. (IANNI, 1968, p. 7).

De acordo com Ianni, essas rupturas podem se configurar


de dois modos: 1) revolucionária, quando ocorre a ruptura total,
quando altera a estrutura, os fundamentos da sociedade. Há
o rompimento drástico dos vínculos externos e com as formas
societárias tradicionais. Geralmente, é caracterizada pela
ascensão política e econômica de um grupo ou uma classe social;
2) reformista, ou parcial. Ocorre quando há mudanças sociais
sem alterações nos fundamentos, na estrutura da sociedade.
Não implica a substituição, mas a ascensão de outras frações de
classes ao poder, do que se pode verificar a recomposição das
forças políticas e econômicas de um país diante das mudanças
sociais.
No Brasil, as tentativas de rupturas estiveram presentes na
história republicana. Desde a sua origem, houve tentativas de
modernizar o país e romper com a sua estrutura social senhorial
escravocrata e com a economia internacional dominante. Contudo,
as forças sociais lideradas pela elite agrária conseguiram frear e
diminuir os avanços rumo à autonomia econômica e política do
país, caracterizando a ruptura vivida no Brasil como reformista,
ou parcial.
O ritmo lento e heterogêneo das mudanças sociais no Brasil
expressa a intensidade da correlação de forças vivenciadas no
país e caracteriza a sociedade brasileira da primeira metade do
século XX. Os grupos sociais vinculados aos valores e à ordem
social agrária e escravocrata não foram substituídos do poder por

285
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

aqueles que compartilhavam da concepção urbana e indústrial,


senão fizeram uma recomposição das forças sociais dominantes.
O padrão societário “tradicional” não foi neutralizado pela nascente
ordem social competitiva, mas compatibilizou a coexistência dos
valores e interesses agrário-coloniais com os urbano-industriais,
do arcaico com o moderno. Daí as dificuldades e a morosidade de
consolidar a ordem social competitiva e democrática, pois, no seu
interior, coexistiam as formas de viver e trabalhar de várias idades
históricas distintas, e, no mesmo sistema econômico, os modos
de produção pré-capitalista e capitalista (FERNANDES, 2008).
Em um momento de transição, isso se torna possível, pois
as mudanças não são mecânicas e automáticas. De acordo com
Florestan Fernandes, isso era possível, pois dois movimentos
de mudanças sociais que operavam “espontaneamente”,1 se
superpunham e, a partir de certo momento, se confundiam e se
fundiam. De um lado, ao mesmo tempo em que se saturavam as
potencialidades dinâmicas de status, relações e funções sociais
das instituições-chave, houve um processo de diferenciação da
ordem social escravocrata e senhorial que a manteve.

O modo de produção escravista, a estrutura estamental e de casta


das relações sociais, e a dominação patrimonialista concorriam
para preservar, [...] as estruturas econômicas, sociais e políticas
herdadas do período colonial, mantendo-se quase intacta.
(FERNANDES, 2008, p. 46-47).

Por outro lado, motivados pela eclosão de um mercado


capitalista moderno, expansão urbano-comercial e reorganização
político-administrativa do Estado, novos valores, novas técnicas e
instituições sociais foram implantados e difundidos. Buscava-se,
com isso, a desagregação da antiga ordem social, senhorial e

1
O significado conferido por Fernandes (2008) não é algo realizado pelo
acaso, por uma força sobre-humana ou por um “espírito absoluto”, mas
são os movimentos de mudanças sociais impulsionados pelas próprias
relações sociais e de produção cotidianas, porém, não provocadas por um
planejamento sistemático.

286
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

escravocrata, e a afirmação de uma ordem social que incorporasse


a economia interna ao mercado mundial, tornando os núcleos
urbanos o fulcro do crescimento de um mercado capitalista
moderno. No conjunto, os dois movimentos de mudanças
exprimiam todas as transformações correntes no país.
Esses movimentos de mudanças fizeram com que a transição
da ordem social senhorial escravocrata para a ordem social
democrática ocorresse de forma lenta e gradual. Diante disso,
setores sociais alinhados com o projeto societário urbano e
industrial centraram suas ações no confronto aberto contra as
heranças da ordem social senhorial escravocrata. De acordo com
Ianni, até o ano de 1945, os acontecimentos políticos no Brasil
estavam vinculados à necessidade de reduzir o poder político e
econômico dos grupos sociais vinculados aos setores agrário-
exportadores.

Assim, por um lado, estabelece-se o conflito entre as oligarquias


tradicionais e os setores urbanos nascentes, tais como a classe
média, a burocracia civil e militar, os incipientes grupos de
empresários industriais e o proletariado nascente. Por outro
lado, as lutas políticas estão relacionadas com o confronto
entre os diferentes projetos de modernização, democratização e
desenvolvimento econômico. (IANNI, 1968, p. 16).

Para Ianni, foi um período de avanços para o processo


de industrialização brasileiro, os quais foram possíveis pelos
esforços de alguns grupos sociais progressistas e pelo contexto
internacional favorável. As crises internacionais do capitalismo,
seus desdobramentos nas duas guerras mundiais e a crise de
1929 abriram espaço para as economias subdesenvolvidas
crescerem, pois modificaram as formas pelas quais as nações
hegemônicas se relacionavam com as colônias e os países
de economias dependentes. Os conflitos entre as nações
hegemônicas e o enfraquecimento de umas em face das outras
permitiram à sociedade brasileira realizar tímidas operações de
rupturas com a dependência externa e com a ordem social arcaica,

287
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

por meio do fomento ao processo de industrialização nacional,


abrindo novas perspectivas de desenvolvimento econômico e
social ao país.
A tabela abaixo retrata de forma resumida o crescimento da
produção industrial a partir das variações das participações da
agricultura e da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) entre os
anos de 1900 e 1960:

TABELA 1 –
Participação da agricultura e da indústria no Produto Interno Bruto (PIB)
brasileiro, a preços de 1949. (ABREU, 2006, p. 347).

ANO AGRICULTURA INDÚSTRIA


1900 44,6% 11,6%
1920 38,1% 15,7%
1940 29,4% 18,7%
1960 16,9% 29,9%

Dos dados, notamos que as ações políticas de desagregação do


setor agrário exportador obtiveram êxitos e que o desenvolvimento
econômico brasileiro lançava suas bases no crescimento do
setor industrial. A tabela demonstra as variações de valores
inversamente proporcionais. À medida que a agricultura diminuia
sua participação no PIB brasileiro, a indústria ampliava a sua
influência na economia nacional. Em seis décadas, a produção
industrial ampliou em 18,3% a sua participação no PIB do país,
ao passo que a participação da produção agrícola caiu 24,5%.
Com o fim da segunda grande guerra, nos anos de 1950,
manteve-se o crescimento industrial e o desenvolvimento
econômico e social brasileiros, porém em um contexto histórico
marcado por conflitos sociais internos influenciados pela
reorganização político-econômica externa. No governo do
presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1960), o Brasil
apresentou um crescimento econômico real e marcante. As altas
taxas de crescimento se deveram à combinação de circunstâncias
econômicas favoráveis – grande mercado interno e potencial
de produção em áreas-chave, como ferro e aço, maior do que

288
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

qualquer outro país latino americano – e o investimento do capital


internacional na economia brasileira, tudo isso mediado pela
habilidade política do governo brasileiro. O governo Kubitschek
se orientou por uma política nacional-desenvolvimentista, dirigida
para o mais rápido crescimento possível, encorajando a expansão
dos setores privado e público, em especial na área das indústrias
básicas.
Os estudos de Ianni permitem verificar a criação e crescimento
do setor industrial brasileiro, entre os anos de 1930 e 1964, cuja
figura central das políticas econômicas foi o Estado Nacional. De
acordo com o autor, a centralidade do Estado não estava somente
na formulação e na orientação da política econômica, mas na
execução de alguns pontos dos programas de desenvolvimento
estatal, materializados pelas empresas estatais.

A criação do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico


(BNDE), em 1952, da Petróleo Brasileiro Sociedade Anônima
(PETROBRÁS), em 1953, e da Superintendência do Desenvolvimento
do Nordeste (SUDENE), em 1959, simbolizam as direções em que
se lança o poder público, na dinamização da economia nacional.
(IANNI, 1968, p. 27-28).

Além da importância, em si, de um setor industrial, ele


foi importante por ter se tornado o motor do desenvolvimento
econômico e social, pelos seus efeitos dinâmicos sobre os outros
setores da economia e devido ao tipo de complementariedade
que se estabeleceu entre os componentes do sistema como um
todo. Com o desenvolvimento social promovido pelo crescimento
industrial, entraram em cena no processo político brasileiro, em
escala cada vez maior, as massas assalariadas em geral. Isto
significa que um proletariado cada vez mais numeroso, ao lado
de uma classe média numericamente crescente, passou a colocar
em jogo as aspirações de bem-estar social e de participação
nas decisões políticas da nação. “É ainda nesse período que
se multiplicam os grupos políticos de esquerda; e a juventude
universitária impõe-se ainda mais, como força política ativa e
organizada” (IANNI, 1968, p. 17).

289
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

Ianni nos revela que, apesar dos avanços no setor industrial,


a década de 1950 foi marcada por diversos conflitos sociais.
Como vimos, as forças sociais digladiavam para decidir os rumos
das mudanças sociais. Apoiado numa política populista, nos
trabalhadores e na classe média, os chefes de Estado conduziram
as transformações rumo a uma sociedade urbano-industrial,
contudo não sem resistências. O populismo entrava em colapso
e passou de base de sustentação do projeto societário a alvo
das críticas, reivindicações e ações políticas. Nas palavras de
Jacob Gorender,

O populismo foi a forma da hegemonia ideológica por meio da qual


a burguesia tentou – e obteve em elevado grau – o consenso da
classe operária para a construção da nação burguesa. A liderança
carismática e sem mediações formalizadas, adequadas a massas de
baixo nível de consciência de classe, constituiu a expressão peculiar
do populismo. [...] Na outra face, a industrialização pela via do
populismo adquiriu feição nacionalista. O populismo foi a variedade
dominante do nacionalismo durante trinta anos. Porque o espectro
ideológico do nacionalismo é mais abrangente, desdobrando-se em
um continuum que vai das tendências autoritárias e da inclinação
à conciliação com o imperialismo, características da ideologia
burguesa, até o extremo oposto das posições antiimperialismo e
do democratismo da ideologia pequeno-burguesa. Conforme as
conjunturas, o populismo se deslocou por este continuum, à direita
ou à esquerda. Por isso mesmo, sua trajetória foi acidentada, com
altos e baixos espetaculares. (GORENDER, 2003, p. 18-19).

Disso notamos que cada grupo social lidou de um modo com o


apogeu e crise do populismo. Para a burguesia industrial nacional,
a política populista que servira de lenitivo nas décadas de 1930
e 1940, já nos primeiros anos da década de 1950 perdia eficácia
diante da luta de classes. Os setores sociais ligados à ordem
social senhorial escravocrata sempre ofereceram resistências
e tentavam eliminar o ponto de apoio das políticas de Estado,
a política de massas. Os trabalhadores, apesar de apoiarem os

290
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

rumos trilhados pela industrialização, passaram a reivindicar mais


espaços na política e mais direitos sociais; aos trabalhadores
interessava ultrapassar o populismo.
Após o fim da segunda grande guerra, com a reconfiguração
geopolítica e a influência estadunidense na América Latina,
aumentaram as resistências internas ao projeto de industrialização
independente e economia autonôma sustentado pelas políticas
populistas. De acordo com Ianni, na década de 1950, sob forte
influência externa, as políticas populistas entram em crise.
Após o suicídio de Getúlio Vargas (considerado por muitos a
expressão dessas pressões externas e internas e da falência
de sua política), Kubitschek assumiu o governo com a proposta
desenvolver a economia e a indústria nacional por meio de capital
misto, possibilitando a entrada maciça de capital estrangeiro na
economia nacional (IANNI, 1968).
Mesmo diante desse cenário, “[...] para parte da sociedade,
era preciso insistir na consolidação destes novos tempos e
administrar o atendimento das suas necessidades objetivas”
(SANFELICE, 2007, p. 548). Em decorrência disso, as
correlações de forças nesse período ficaram bem estabelecidas.
Havia um grupo cuja proposta era dar continuidade ao projeto
de industrialização independente e economia autônoma e
outro grupo que reivindicava o desenvolvimento econômico e
industrial sustentado pela a associação de capitais, nacionais
e estrangeiros. E a crescente massa assalariada que, cada vez
maior, reivindicava melhor distribuição de recursos, expressos em
políticas públicas de cunho social e democratização do acesso
aos diversos setores e direitos, dentre eles, a educação.
É esse o cenário em que o debate educacional lança suas
raízes. O projeto de elaboração de uma LDB é a expressão da
correlação de forças das décadas de 1940 e 1950. O que estava
em jogo eram os questionamentos: que tipo de formação humana?
Para qual projeto societário? Pensar em um projeto educacional
para a nação era responder esses questionamentos. Os rumos da
sociedade brasileira eram alvo de uma acirrada disputa e o debate
educacional a acompanhou, arrastando-se desde 1948, quando
da elaboração do projeto original da LDB, até 1961, quando da
sua aprovação.

291
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

O debate educacional em torno da LDB: a hegemonia em


disputa

A proposta de elaboração da primeira Lei de Diretrizes e


Bases da Educação Nacional (LDB) advém da necessidade de
consolidar e dar unidade à regulamentação e estruturação da
educação no país. Esse empreendimento é o desdobramento
de iniciativas parciais e fragmentadas iniciadas em 1931-1932
com os decretos do Ministro da Educação, Francisco Campos2,
que se estende à década de 1940, com a promulgação das Leis
Orgânicas do Ensino, formuladas por Gustavo Capanema.3
Em vistas de dar respostas às transformações sociais
correntes no Brasil e atender o último dispositivo constitucional,
de 1946, Clemente Mariani, Ministro da Educação do Governo
de Eurico Gaspar Dutra, do Partido Social Democrático (PSD),
constituiu uma comissão para elaborar o anteprojeto da LDB. Sob
a presidência de Lourenço Filho, a comissão foi composta por
eminentes educadores brasileiros, cujos trabalhos foram iniciados
em 29 de abril de 1947 (SAVIANI, 2006). Essa comissão contou
com os principais nomes que estiveram envolvidos, direta ou
indiretamente, com o movimento renovador da educação e com
o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932: Lourenço
Filho, Carneiro Leão, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira.
De todos os membros da comissão, a maioria comungava com
a tendência pedagógica escolanovista, exceto dois que eram
representantes declarados dos educadores católicos, a saber:
Alceu Amoroso Lima e padre Leonel Franca.
A hegemonia dos escolanovistas na comissão refletiu-se
nas propostas resultantes dos trabalhos, dos quais resultou um
anteprojeto de inspiração liberal-democrata que deu origem ao
projeto de LDB, encaminhado à Câmara Federal em outubro de

2
Ministro de Estado do Governo Getúlio Vargas, do então criado Ministério da
Educação e Saúde Pública, no período de 1931 a 1932.
3
Ministro da Educação no período de 1934 a 1945, no governo de Getúlio
Vargas.

292
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

1948. O anteprojeto encontrou resistências que foram expressas


no parecer do relator Gustavo Capanema, em 1949. O impasse
se arrastou até o ano de 1951, quando o mesmo foi arquivado.
O debate sobre o anteprojeto tomou vulto novamente a partir de
19564 e voltou a ser discutido na Câmara em 1957.5 A partir de
então, o conflito escola pública versus escola privada reapareceu
e entrou na pauta do dia de intelectuais e políticos.
O debate iniciado em âmbito parlamentar saiu do Congresso e
alastrou-se pela sociedade civil organizada por meio da imprensa.
Os intelectuais passaram a se utilizar de revistas e jornais para
divulgar seus posicionamentos diante do debate. Os principais
veículos de comunicação utilizados foram, de um lado, a revista
Vozes, que se colocava na defesa dos interesses das escolas
privadas e confessionais, e, de outro, a revista Anhembi, na defesa
da escola pública.
Os privatistas acusavam os defensores da escola pública de
atentar contra a família no que se refere ao seu direito de “liberdade
de ensino”, ou seja, ao direito dos pais escolherem a educação
que julgassem mais adequada aos seus filhos. Por sua vez, os
defensores da escola pública, denominados genericamente pela
historiografia da educação brasileira por liberais, entendiam que
os privatistas buscavam a continuidade dos privilégios da Igreja
e daqueles que exploravam comercialmente a educação escolar,
ação essa que manteria a educação como um privilégio social.
O debate ilustrou também as páginas do jornal O Estado de
S. Paulo. No referido periódico, foram publicados dois manifestos
que expressaram as ideias de ambos os grupos, que não eram
homogêneos, pois congregavam intelectuais de diferentes

4
Em novembro de 1956, o deputado padre Fonseca e Silva pronuncia um
discurso acusando Anísio Teixeira e Almeida Júnior de se insurgirem contra os
interesses das escolas confessionais. Esse episódio irá promover um grande
debate entre aqueles que defendem a escola pública e os fautores da escola
privada, não pelo episódio em si, mas pelo que ele representou, o confronto
de ideias acerca dos rumos da educação nacional. Ver Buffa (1979).
5
Para maiores detalhes sobre o trâmite do anteprojeto e os debates em torno
do mesmo, conferir Saviani (2006).

293
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

vertentes teóricas e políticas, mas apresentavam unidade nos


respectivos discursos. Publicado em 1º de julho de 1959, o
Manifesto dos educadores, Mais uma vez convocados saiu em
defesa da escola pública; em 26 de julho de 1959, foi publicado o
Manifesto sobre as bases da educação, em resposta ao primeiro,
em que os educadores de tendência privatista defendiam as
famílias e a Igreja e suas instituições de ensino: as escolas
privadas e confessionais.
Redigido por Fernando de Azevedo e assinado por vários
signatários do Manifesto de 1932 6 e vários professores de
universidades públicas, o Manifesto dos educadores, Mais uma vez
convocados centrava-se na defesa da escola pública. Entendia-se
que a escola pública era a única capaz de subtrair as imposições
de qualquer pensamento sectário, político ou religioso e promover
uma educação de base liberal e democrática. Defendia-se uma
formação para o trabalho, para o desenvolvimento econômico e
para o progresso da ciência e da tecnologia, bases da civilização
industrial (MANIFESTO DOS EDUCADORES ..., 1959).
Uma visão de mundo orientava as análises e os
encaminhamentos contidos no documento em questão, afinada
com a concepção da modernização capitalista que o Brasil
vivenciava desde os anos de 1930. De acordo com Sanfelice,
essa visão modernizadora já se expressara na organização da
educação nas reformas Francisco Campos e as Leis Orgânicas
de Gustavo Capanema. Essas reformas refletiam as mudanças
almejadas para a educação no modelo de sociedade que nascia na
tentativa de distanciá-la daquela sociedade rural que a precedera.
Nessa perspectiva, a LDB consolidaria a ampliação do controle
do Estado sobre a educação, tornando-o provedor da educação
do povo. Diante disso, a liberdade de ensino se configuraria um
risco ao avanço conquistado no âmbito educacional, qual seja, a
expansão quantitativa da oferta de ensino.

6
Conhecido na historiografia por “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”.

294
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

O documento indica que, no Brasil, a liberdade de ensino já foi


experimentada, mas em um Brasil muito diferente do contexto
em que se colocavam os signatários do Manifesto de 1959 e
segundo eles mesmos expressavam: antes, um Brasil de economia
rural, organização patrimonialista, pouco diferenciado e com um
aparelhamento escolar simples, medíocre, constituído de dois
sistemas desarticulados. De um lado o ensino primário, normal e de
ofícios, incipientes, para os populares. De outro lado, para as elites,
as poucas escolas secundárias e superiores. Hoje, uma sociedade
baseada na economia industrial, de estrutura complexa, cada vez
mais diversificada sob a dinâmica da industrialização e urbanização,
com um conjunto educacional de estrutura complicada, mais
rica em escolas, graus e tipos, em fase crítica de crescimento e
reorganização. (SANFELICE, 2007, p. 549-550).

Por seu turno, os signatários do Manifesto sobre as bases


da educação defendiam o princípio da liberdade de ensino e a
família, enquanto grupo social fundamental e modelar dos demais
grupos e dos processos educacionais. De acordo com o Manifesto,

[...] seus representantes [das famílias], tais como as associações


de pais e seus delegados, [...] têm prioridade na escolha do
processo educacional. Portanto, a escola tem de ser instituição com
características assemelhadas à família e não à repartição pública.
(MANIFESTO SOBRE AS BASES DA EDUCAÇÃO, 1959, p. 21).

Atacava os liberais, acusando-os de “[...] através de uma


escola neutra e uniformizante, esvaziar de significado espiritual
a educação” (MANIFESTO SOBRE AS BASES DA EDUCAÇÃO,
1959, p. 21). De acordo com o documento em destaque, a defesa
da laicidade conduziu a civilização ao totalitarismo e ao desamparo
espiritual.
Conforme o Manifesto sobre as bases da educação, a
liberdade de ensino seria a possibilidade de se exprimirem, em
experiências pedagógicas, tipos de educação que atenderiam, na
sua flexibilidade e variedade, a diversidade dos grupos humanos.
Por isso, caberia ao Estado, não o monopólio da educação, mas

295
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

[...] o dever de estender a educação a todos. Cumpre-lhe, por


isto, facilitar e estimular a iniciativa dos indivíduos e dos grupos
sociais, sobretudo pela justa redistribuição dos recursos destinados
à educação pelos contribuintes. Quando necessário, deve abrir
escolas que, sem deixar de atender as minorias, sejam expressão
das aspirações da maioria. Só assim se satisfaz ao verdadeiro
conceito de escola pública. Não a que se identifica como escola
única para todos independentemente dos recursos financeiros de
cada um, a possibilidade de se realizar nas suas aptidões, nas suas
vocações e nos seus ideais. (MANIFESTO SOBRE AS BASES DA
EDUCAÇÃO, 1959, p. 21).

Nota-se o aspecto econômico da proposta privatista: recursos


públicos para as escolas de iniciativa privada. De acordo com os
educadores liberais, tratava-se de uma “[...] inversão radical e
pela qual o ensino público seria supletivo às instituições escolares
privadas, ficando essas com a garantia dos recursos dos cofres
públicos” (SANFELICE, 2007, p. 549).
Do exposto, notamos que o debate que se manifestava na
imprensa em torno do projeto de educação nacional era muito
mais profundo e extrapolava o âmbito educacional e pedagógico.
O conflito, na sua essência, se dava entre projetos societários
distintos que, por sua vez, possuíam suas manifestações
educacionais e pedagógicas.
De um lado, o grupo que defendia a necessidade de
insistir na consolidação do projeto modernizador vivenciado
pelo país desde 1930, que não se materializara totalmente nos
anos de 1950. Suas bases se edificavam sobre a proposta de
industrialização independente e economia autônoma, fundadas
nos princípios liberais-burgueses e nos modos de viver e trabalhar
capitalista. A educação escolar não podia ficar à margem deste
futuro. Confluente a essa proposta, defendia-se a escola pública
como expressão de uma “[...] educação democrática, escola
democrática e progressista, liberdade de pensamento e igualdade
de oportunidades para todos” (SANFELICE, 2007, p. 546-547).
De outro lado, havia aqueles que se opunham, que faziam
“[...] uma resistência à modernização, pelo menos de alguns

296
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

elementos e instituições da sociedade brasileira, aos favoráveis


e partícipes dela” (SANFELICE, 2007, p. 544). Projeto societário
cujas bases se lançavam sobre o capitalismo associado e/
ou independente (IANNI, 1968), sob a tutela norte-americana.
A proposta educacional desse projeto se manifestava nas
reivindicações dos privatistas, na defesa da liberdade de ensino
e das escolas privadas e confessionais.
Desse processo, notamos que a intencionalidade do debate
educacional era garantir que o Estado, por força de lei, fizesse
cumprir em todas as escolas do país a reprodução dos princípios,
ideias e valores que se fizessem hegemônicos. Temos como
referência o suposto que o Estado não é neutro, senão um
aparelho utilizado pelos grupos sociais hegemônicos para garantir
a hegemonia. A partir da teoria gramsciana, entendemos que, para
garantir o consenso das massas e a manutenção da sociedade, os
grupos hegemônicos fazem uso do aparato estatal e de todos os
aparelhos privados de hegemonia que estiverem à sua disposição.
Dessa forma, difundem valores, costumes e atitudes coerentes
com as necessidades do desenvolvimento econômico, criando,
portanto, um novo grau de civilização e um novo tipo de cidadão.

Se cada Estado tende a criar e a manter um certo tipo de civilização


e cidadão [...], tende a fazer desaparecer certos costumes e atitudes
e a difundir outros, o direito será o instrumento para esse fim (ao lado
da escola e de outras instituições e atividades) e deve ser elaborado
a fim de que seja conforme à finalidade, seja maximamente eficaz
e produtivo, de resultados positivos. [...] Na realidade, o Estado
deve ser concebido como “educador” enquanto tende exatamente
a criar um novo tipo ou nível de civilização.7 (GRAMSCI, 2007, p.
1570, tradução nossa).

7
“Se ogni Stato tende a creare e a mantenere un certo tipo di civiltà e di
citadino [...], tende a far sparire certi costumi e attitudini e a diffonderne
altri, il diritto sarà lo strumento per questo fine (accanto alla scuola ed altre
istituzioni ed attività) e deve essere elaborato affinché sia conforme al fine,
sia massimamente efficace e produttivo di risultati positivi. [...] In realtà lo
Stato deve essere concepito come <<educatore>> in quanto tende appunto
a creare un nuovo tipo o livello di civiltà”.

297
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

Do debate educacional em destaque neste texto, manifesto


pelo dualismo escola pública versus escola privada, destacamos
a relação entre as categorias intelectuais, educação e imprensa,
mediadas pela hegemonia. Do referido debate, nota-se que
intelectuais de diferentes montas, conservadores e/ou intelectuais
engajados em organizações políticas de esquerda, se debruçaram
sobre a análise dos problemas econômicos, políticos e educacionais
da sociedade brasileira. Interesses de diferentes grupos e as
disputas entre as diferentes classes sociais foram catalisados
por esses intelectuais que passaram a expressar e defender
na imprensa os projetos educacionais dos grupos que eles
representavam.
A partir da acepção gramsciana, por intelectuais entendemos
os sujeitos sociais que assumem papeis de mediadores entre
o mundo da produção e o complexo superestrutural (esferas
ideológica, cultural, política e jurídica) (GRAMSCI, 2007). São os
profissionais especializados capazes de desempenhar atividades
de direção cultural-ideológica que garantam o consentimento
ativo das massas. A relação entre os intelectuais e o mundo da
produção não é imediato, como acontece para os grupos sociais
fundamentais, mas é mediato, por todo o tecido social em diversos
níveis, pelo complexo superestrutural no qual os intelectuais
exercem suas funções.

Estas funções são precisamente organizativas e conectivas. Os


intelectuais são os funcionários especializados do grupo dominante
para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do
governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas
grandes massas da população ao encaminhamento empreendido à
vida social pelo grupo fundamental dominante, consenso que nasce
“historicamente” pelo prestígio (e consequentemente, pela confiança)
decorrente do grupo dominante pela sua posição e pela sua função no
mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que assegura
“legalmente” a disciplina daqueles grupos que não “consentem”
nem ativamente nem passivamente, mas é constituído por toda a
sociedade em prevenção dos momentos de crises no comando e

298
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

na direção no qual o consenso espontâneo é menor.8 (GRAMSCI,


2007, p. 1518-1519, tradução nossa).

Historicamente, as camadas intelectuais assumiram


importante papel político-ideológico no processo de disputa pela
hegemonia.9 De acordo com Gramsci, todas as classes sociais
que pretendem se fazer hegemônicas necessitam de uma
camada de intelectuais10. O referido pensador considera que a
hegemonia de um grupo social sobre outro se manifesta de duas
maneiras: como dominação e como direção intelectual e moral.
Nesse sentido, o que uma hegemonia estabelece é um complexo
sistema de relações e de mediações, cujo objetivo seja a direção
dos grupos subalternos pelos grupos hegemônicos. De acordo
com as palavras do autor,

8
“Queste funzioni sono precisamente organizzative e connettive. Gli
intellettuali sono i <<commessi>> del gruppo dominante per l’esercizio delle
funzioni subalterne dell’egemonia sociale e del governo politico, cioè: 1)
del consenso <<spontaneo>> dato dalle grandi masse della popolazione
all’indirizzo impresso alla vita sociale dal gruppo fondamentale dominante,
consenso che nasce <<storicamente>> dal prestigio (e quindi dalla fiducia)
derivante al gruppo dominante dalla sua posizione e dalla sua funzione nel
mondo della produzione; 2) dell’apparato di coercizione statale che assicura
<<legalmente>> la disciplina di quei gruppi che non <<consentono>> né
ativamente né passivamente, ma è costituito per tutta la società in previsione
dei momenti di crisi nel comando e nella direzione in cui il consenso spontaneo
vien meno”.
9
Por hegemonia entendemos a liderança cultural-ideológica de uma classe
social sobre as outras. Hegemonia é uma categoria muito cara para a teoria
gramsciana e os limites deste artigo não nos permite tratá-la de maneira
adequada. Por isso, indicamos a leitura dos cadernos 1, 4 e 10, compilados
em Quaderni del Carcere.
10
Os intelectuais não constituem uma classe autônoma, mas são sujeitos
vinculados a uma das duas classes sociais fundamentais, os detentores dos
meios de produção ou o proletariado. Gramsci nos alerta que a origem de
classe não garante o exercício e a luta política a favor da mesma, pois uma
classe pode recrutar dentre os integrantes de outros grupos sociais, a quem
confiar a atividade de direção e organização da cultura.

299
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

[...] a supremacia de um grupo social se manifesta de duas maneiras:


como “dominação” e como “direção intelectual e moral”. Um grupo
social é dominante dos adversários, que tende a ‘liquidar’ ou a
submeter, também, com a força armada; e é dirigente dos grupos
afins ou aliados.11 (GRAMSCI, 2007, p. 2010, tradução nossa).

Dessa forma, considera-se que, no capitalismo, não haveria


organização do poder somente pelo uso da força, pois o processo
envolve, além disso, um conjunto de atividades econômico-
produtivas, culturais e ideológicas que organiza o consenso e
permite o desenvolvimento da dominação e direção. Gramsci
confere à hegemonia um sentido de consenso ativo e direto, de
participação efetiva dos indivíduos nos projetos propostos pela
classe hegemônica.

A existência da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se


devem levar em conta os interesses e tendências dos outros
grupos sobre os quais a hegemonia deve se exercer, e que
certo compromisso de equilíbrio deve ser estabelecido, quer
dizer, que o grupo dirigente deve fazer sacrifícios de natureza
econômico-corporativa. Mas, não há dúvida alguma, que, apesar
da hegemonia ser ético-política, ela deve ser também econômica,
deve necessariamente estar baseada na função decisiva exercida
pelo grupo dirigente nos setores decisivos da atividade econômica.12
(GRAMSCI, 2007, p. 1591, tradução nossa).

11
“[...] la supremazia di un gruppo sociale si manifesta in due modi, come
<<dominio>> e come <<direzione intellettuale e morale>>. Un gruppo sociale
è dominante dei gruppi avversari che tende a <<liquidare>> o a sottomettere
anche con la forza armata ed è dirigente dei gruppi affini e alleati”.
12
“Il fatto dell’egemonia presuppone indubbiamente che sia tenuto conto degli
interessi e delle tendenze dei gruppi sui quali l’egemonia verrà esercitata,
che si formi un certo equilibrio di compromesso, che cioè il gruppo dirigente
faccia dei sacrifizi di ordine economico-corporativo, ma è anche indubbio che
tali sacrifizi e tale compromesso non possono riguardare l’essenziale, poiché
se l’egemonia è etico-politica, non può non essere anche economica, non può
non avere il suo fondamento nella funzione decisiva che il gruppo dirigente
esercita nel nucleo decisivo dell’attività economica”.

300
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

Como é possível perceber, nesse processo de direção


intelectual e moral, são utilizadas, para produção e divulgação
das visões de mundo, as instituições da sociedade civil (escola,
imprensa, igreja, sindicato, partido político), também denominadas
de “aparelhos privados de hegemonia” (GRAMSCI, 2007). No
pensamento de Gramsci, a sociedade civil se caracteriza como
o lugar onde se decide a hegemonia, o palco de disputa, onde
se confrontam diversos projetos de sociedade, até prevalecer
aquele que estabeleça o domínio e a direção geral na economia,
na política e na cultura.
Disso, notamos que, na materialidade, na disputa pela
hegemonia, as categorias intelectuais e a imprensa imbricam-se.
Por meio da imprensa, os intelectuais disputam a hegemonia,
difundem uma consciência coletiva elaborada no interior da
classe social que representam. A elaboração de uma consciência
coletiva homogênea demanda condições e iniciativas diversas.
Para Gramsci, a difusão de uma visão de mundo por um centro
homogêneo cultural é a condição principal, mas não deve e
não pode ser a única. É um erro pensar que uma ideia clara,
oportunamente difundida, se insira nas diversas consciências
singulares de forma mecânica e espontânea.
Daí a necessidade dos intelectuais no processo, já que
são eles que catalisam os discursos, os projetos de sociedade,
e os divulgam. Eles são centrais, pois são os profissionais
especializados da organização da cultura. Para se conquistar o
consenso não basta somente difundir de modo claro um conceito,
um modo homogêneo de pensar e agir, mas um trabalho intelectual
específico de adaptação das ideias às condições materiais dos
diferentes contextos sociais e culturais. Gramsci destaca a
necessidade da “repetição metódica” das ideias no processo.
A repetição paciente e sistemática é um princípio metódico
fundamental. Contudo, não se trata de uma repetição mecânica,
senão a contínua adaptação das concepções e conceitos às
diversas peculiaridades e tradições culturais presentes na
sociedade, apresentando-as em todos os seus aspectos positivos
e negativos. Para o autor,

301
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

O trabalho educativo-formativo que um centro homogêneo de


cultura desenvolve, a elaboração de uma consciência crítica que
ele promove e favorece sobre uma determinada base histórica que
contenha as premissas concretas para tais elaborações, não pode
se limitar à simples enunciação teórica de princípios “claros” de
método: esta seria pura ação dos “filósofos” dos Setecentos [século
XVIII]. O trabalho necessário é complexo e deve ser articulado e
graduado: deve ser a dedução e a indução combinadas, a lógica
formal e a dialética, a identificação e a distinção, a demonstração
positiva e a destruição do velho. Mas, não em abstrato, mas
em concreto, sobre a base do real e da experiência efetiva.13
(GRAMSCI, 2007, p. 2268, tradução nossa).

Para nós, fica claro que, na correlação de forças expressa


na sociedade capitalista, os dominados dão consentimento
ativo à dominação, que é construída e alimentada pelas classes
hegemônicas pelas ações dos intelectuais e por meio dos aparelhos
privados de hegemonia, dentre eles, a escola e a imprensa. Tendo
em vista o domínio dos grupos sociais adversários e a direção
geral da sociedade, por meio desses aparelhos, os intelectuais
transmitem um ponto de vista classista como se fosse universal,
de todos, de modo que todos os grupos sociais venham a aderir
a essa visão de mundo, que não lhe é própria, e passem a agir
de acordo com ela.
Vale dizer que a dominação não ocorre somente pelas vias
ideológicas e culturais, pelo contrário, ela possui bases materiais.
Em outras palavras, a hegemonia tem origem nas relações de

13
“Il lavoro educativo-formativo che un centro omogeneo di cultura svolge,
l’elaborazione di una coscienza critica che esso promuove e favorisce su
una detterminata base storica che contenga le premesse concrete per
tale elaborazione, non può limitarsi alla semplice enunciazione teorica di
principii <<chiari>> di metodo: questa sarebbe pura azione da <<filosofi>>
del Settecento. Il lavoro necessario è complesso e deve essere articolato
e graduato: ci deve essere la deduzione e l’induzione combinate, la logica
formale e la dialettica, l’identificazione e la distinzione, la dimostrazione
positiva e la distruzione del vecchio. Ma non in astratto, ma in concreto, sulla
base del reale e dell’esperienza effettiva”.

302
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

produção fundadas na cisão classista da sociedade e na divisão


social do trabalho, mas se manifesta nos campos político, cultural
e ideológico. Relembrando as palavras de Karl Marx, em Crítica da
Economia Política, Gramsci afirma que “[...] os homens tornam-se
conscientes dos conflitos que se verificam no mundo econômico
sobre o terreno das ideologias”.14 (GRAMSCI, 2007, p. 1592,
tradução nossa). Isso significa que, historica e politicamente, a
elaboração da autoconsciência crítica de determinada classe
social passa pela camada de intelectuais.

Em síntese ...

Neste texto, buscamos evidenciar que os projetos educacionais


em debate (defensores da escola pública versus privatistas) foram
a manifestação ideológica e cultural de projetos societários que
disputavam a hegemonia na sociedade brasileira. Dois grupos
sociais ligados à classe hegemônica debatiam os rumos da
economia e da industrialização nacional, dos quais a educação
não poderia ficar ausente. Um grupo insistia no caminho
trilhado entre os anos de 1930 e 1945, sustentado na ruptura
parcial conquistada pelo país diante das economias mundiais
dominantes, cujas bases seriam uma economia autonôma
centrada na industrialização independente. Para esse grupo, a
universalização da educação por meio da escola pública, estatal,
gratuita e laica fazia-se necessária. Outro grupo defendia um
desenvolvimento econômico e um projeto de industrialização
apoiados no capitalismo associado, ou seja, na parceria entre o
capital nacional e o investimento e financiamento internacionais.
Nessa perspectiva, a educação seria importante, porém o mais
importante seria garantir o principal baluarte da teoria liberal,
a liberdade, expressa na liberdade de ensino. Por isso, suas

14
“È da ricordare insieme l’affermazione di Engels che l’economia solo in
<<ultima analisi>> è la molla della storia [...] da collegarsi direttamente al
passo della prefazione della Critica dell’Economia politica, dove si dice che
gli uomini diventano consapevoli dei conflitti che si verificano nel mondo
economico sul terreno delle ideologie”.

303
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

propostas se materializariam nas escolas privadas e confessionais,


permitindo a escola estatal somente em nível complementar.
Disso, notamos que compreender um debate educacional
de uma época requer a sua análise à luz dos acontecimentos
históricos que movimentaram as bases materiais da sociedade.
Os estudos sobre a história da educação não podem perder
de vista as relações sociais e de produção que engendraram
as propostas educacionais de um contexto. Nesse sentido, o
debate educacional brasileiro em torno da LDB se revelou como
a manifestação superestrutural da luta de classe, a disputa dos
diferentes grupos sociais pela hegemonia. A partir da análise
do nosso objeto, cotejado com os escritos de Gramsci (2007),
elucidaram-se os esforços empreendidos pelos intelectuais na
imprensa e no Congresso Nacional. A finalidade do debate era
a conquista do consentimento ativo das massas, estabelecer
como hegemônico o projeto educacional de seu grupo e/ou
classe social, e, consequentemente, sedimentar o caminho para
a consolidação de um projeto societário pré-estabelecido pela
classe social dominante.
Outro ponto a destacar é que a conquista desse consentimento
ativo não é mecânica, senão contraditória, dialética, conforme
podemos verificar no debate educacional em torno da LDB de
1961. Na ocasião, houve uma disputa de projetos educacionais,
da qual a conciliação foi a saída mais adequada. Ou seja, por
se tratar de dois projetos de formação humana cujas raízes se
lançavam na mesma classe social, na ocasião representada
por grupos sociais diferentes, a LDB aprovada no Congresso
materializou propostas de ambos os grupos, liberais e privatistas.
Por isso, julgamos necessário ter cautela na análise dos
embates sociais, pois, apesar de classistas, as ideias que os
compõem não são monolíticas, mas um agregado de visões de
mundo, princípios e valores que variam de acordo com a classe e
os grupos sociais que as originaram. Não podemos tomar a luta de
classes de modo maniqueísta, pois ela se manifesta de diferentes
formas entre as frações de classes (grupos sociais). Basta
notar que, no debate educacional em torno da LDB, no grupo

304
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

denominado de liberais, pela historiografia, havia intelectuais


de tendências socialistas que não se orientavam pela visão de
mundo liberal-burguesa, entretanto compunham o grupo para
defender o que havia de mais avançado naquele momento para
o campo educacional, a proposta de educação pública, estatal,
gratuita e laica.
A nosso ver, isso não invalida o uso das categorias que aqui
expusemos, mas revela o quão contraditória e complexa é a
realidade objetiva. O real é contraditório, provisório e, por meio
da investigação científica, pode ser apreendido para além de
suas manifestações empíricas. Para que possamos conhecê-
lo para além da aparência, podemos fazer uso das categorias
analíticas aqui destacadas, pois elas nos permitem compreender
as regularidades e as tendências gerais das relações sociais e
de produção que engendram a sociedade e se manifestam na
educação.

Referências

ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil no século XX: a economia. In:


INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas
do século XX. Rio de Janeiro: IBGE, 2006.
BARROS, Roque Spencer Maciel de (Org.). Diretrizes e bases da
educação nacional. São Paulo: Pioneira, 1960.
BUFFA, Ester. Ideologias em conflito: escola pública e escola privada.
São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global,
2008.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. Edizione critica dell’Istituto
Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. Turim: Einaudi, 2007.
IANNI, Octávio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.

305
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 281-306, jul./dez. 2017

MANIFESTO DOS EDUCADORES, MAIS UMA VEZ CONVOCADOS.


O Estado de São Paulo, São Paulo, 1959.
MANIFESTO dos pioneiros da educação nova. Disponível em: <http://
www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf>. Acesso
em: 23 mar.2016.
MANIFESTO SOBRE AS BASES DA EDUCAÇÃO. O Estado de São
Paulo. São Paulo, 1959.
SANFELICE, José Luís. O manifesto dos educadores (1959) à luz da
história. Educação & Sociedade, v. 28, p. 542-557, maio/ago., 2007.
SAVIANI, Dermeval. Política e educação no Brasil: o papel do Congresso
Nacional na legislação do ensino. Campinas: Autores Associados, 2006.

Recebido em julho de 2016.


Aprovado em julho de 2017.

306
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-12

LENDO MANUSCRITOS COLONIAIS:


UMA ANÁLISE CRÍTICA DE TRÊS DOCUMENTOS
SETECENTISTAS SOBRE FESTAS PÚBLICAS NA
CAPITANIA DE PERNAMBUCO

Kalina Vanderlei Silva*

RESUMO: Este artigo se propõe a observar um tema caro à


historiografia colonialista, a festa, a partir da análise crítica e
paleográfica de três manuscritos. Partindo de sua transcrição,
discutimos a produção desses documentos, sua inserção em um
gênero textual específico – a correspondência administrativa – e
seu conteúdo: os meandros das festas públicas na Capitania de
Pernambuco entre o Seiscentos e o Setecentos. Considerando-
se tais festas como espaços privilegiados de demarcação de
status e prestígio para a elite açucareira colonial, o artigo discute
algumas possibilidades de estudo desse tema oferecidas pelos
documentos camarários coloniais.

PALAVRAS-CHAVE: Documentação. Capitania de Pernambuco.


Festas Coloniais.

ABSTRACT: This paper observes a prestigious thematic in


Brazilian colonial historiography, the festivity, through the reading of
three manuscripts. It analyses the paleographic elements of these
documents, considering their textual gender – the administrative
correspondence in the Portuguese Empire –, and the information

* Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


Professora Associada da Universidade de Pernambuco (UPE), Professora do
Mestrado Multidisciplinar em Hebiatria (UPE); e do Mestrado em História da
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Pesquisa financiada
pelo CNPq.

307
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

they provide in regard of the public celebrations in Seventeenth


and Eighteenth centuries Pernambuco. The paper observes those
celebrations as privileged spaces for status quo definition as well
as the analytical possibilities offered by manuscript documentation.

KEYWORDS: Colonial Documentation. Pernambuco’s Captaincy.


Colonial Celebrations.

Introdução – Para entender a produção dos manuscritos

Durante os séculos XVII e XVIII, a Capitania de Pernambuco


ocupou uma posição de prestígio dentro da América portuguesa,
dominada por senhores de engenho e, a partir do XVIII,
também por grandes comerciantes, assentados em câmaras
municipais, dentre as quais se sobressaia a de Olinda. Tal
situação privilegiada garantiu a essa elite uma atenção redobrada
por parte da Coroa, materializada em uma intensa troca de
correspondência administrativa entre o Conselho Ultramarino,
governadores, ouvidores e outros funcionários régios, além dos
próprios oficiais do Senado da Câmara de Olinda e de suas
congêneres em Igarassu e, após 1711, em Recife. E é justamente
essa correspondência administrativa que hoje possibilita aos
historiadores acesso aos mecanismos políticos e socioculturais
que nos Seiscentos e Setecentos interligavam essa capitania ao
Império Português, na medida em que os agentes administrativos
em diferentes lugares discutiam assuntos os mais diversos. Tal
relevância historiográfica expõe a pertinência de uma análise
crítica e paleográfica dessa prolífica documentação; uma análise,
entretanto, que atualmente tem sido relegada a segundo plano
por muitos historiadores sociais devido principalmente à constante
utilização de acervos, como o Arquivo Histórico Ultramarino (AHU),
cuja documentação já foi analisada a partir de diversos pontos de
vista, inclusive o diplomático.
Contudo, muitos acervos coloniais brasileiros carecem de

308
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

análises tão minuciosas. Apesar do imprescindível trabalho


de preservação e divulgação que vem sendo realizado por
grandes e pequenos arquivos brasileiros, na medida em que
cresce a prospecção em “novos” acervos, os historiadores se
veem constantemente confrontados com manuscritos que,
diferentemente daqueles do AHU, não são acompanhados de
ementas que explicam sua autoria, detalhes de produção e
elementos diplomáticos básicos. E esse confronto traz à luz o
importante papel que a crítica documental pode desempenhar
no trabalho historiográfico.
No caso específico da Capitania de Pernambuco, um acervo
em particular ainda resguarda manuscritos que exigem detalhadas
análises críticas antes de qualquer leitura conteudística. Esse
acervo é o Fundo de Registros de Provisões, Portarias e Editais
(1688 a 1905) do Arquivo Público Jordão Emerenciano, o APEJE,
no Recife. Um fundo cuja recorrente leitura ao longo de anos
nos despertou uma série de interrogações relativas ao processo
de produção de seus manuscritos. E é para tentar responder
a algumas dessas questões que nos propomos aqui a realizar
uma leitura crítica, com considerações filológicas e paleográficas
(QUEIROZ, 2011, p. 473-484), em três manuscritos pertencentes
ao fundo em questão: três registros camarários que discutem um
tema privilegiado pela historiografia especializada na América
portuguesa – as festas públicas.
Em trabalhos anteriores, tivemos a oportunidade de visitar
essa temática no cenário específico da Capitania de Pernambuco
nos séculos XVII e XVIII (SILVA, 2011a, p. 63-85; SILVA, 2011b,
p. 76-93; SILVA, 2009), o que gerou uma preocupação com a
monumentalidade desses documentos, uma vez que, ausente
qualquer análise diplomática ou crítica paleográfica, tais
manuscritos estavam sendo aceitos como retratos indiscutíveis
dos fatos e estruturas coloniais. Isso nos traz à leitura atual, através
da qual procuramos não apenas inquirir sobre as intenções por
trás da escrita dos três manuscritos selecionados, mas também
contextualizar seu “lugar de produção”, sendo esse lugar uma
das mais importantes questões a serem discutidas aqui, visto que

309
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

tais manuscritos possuem uma dupla datação, pois são cópias


setecentistas de manuscritos seiscentistas. Nossos documentos
se inserem naquela situação apontada por José D’Assunção
Barros, na qual a cronologia da produção de um documento
nem sempre se limita a um único “lugar”: ou seja, uma situação
presente quando o documento foi elaborado ou interferido ao
longo de um dado intervalo de tempo (BARROS, 2012, p. 407-
429). Tal interferência é percebida na produção desses nossos
manuscritos, o que levanta uma série de dúvidas acerca de seu
valor enquanto monumento às estruturas e fatos coloniais.

Quem escreve, quem copia – Sobre a autoria dos manuscritos


coloniais do APEJE

Hoje encadernados em um único volume, nossos três


manuscritos são cópias de uma correspondência mais antiga,
remetida pela Coroa portuguesa à Câmara de Olinda e procedente
do Conselho Ultramarino que, desde sua fundação, em 1642,
geria a maior parte dos negócios coloniais do Império português
(SALGADO, 1985, p. 42-43). Eles pertencem a um gênero
textual bem característico do mundo atlântico moderno e um
dos mais prolíficos nos séculos XVII e XVIII: a correspondência
administrativa imperial. O livro que os reúne, o Livro de registros,
cartas, provisões e ordens régias da Câmara municipal da Cidade
de Olinda de 1696, congrega, em suas 568 páginas manuscritas,
as cópias, elaboradas na segunda metade do século XVIII, de
ordens régias e de provisões enviadas à Câmara de Olinda, cujos
originais datam do final do século XVII. Isso sugere que o escrivão
em atividade nesse órgão na década de 1750 produziu uma
“segunda via” de um livro de registro mais antigo, hoje perdido, que
compilava a correspondência que a Câmara recebera da Coroa
no século anterior. Por isso, na maioria de suas páginas vemos,
abaixo dos dados relativos ao documento original seiscentista,
também os dados do escrivão que o copiou nos anos 1750. Essa
informação nos dá, na verdade, um autor autodeclarado para
nossos três manuscritos: Manuel Pinheiro da Fontoura, escrivão
da Câmara de Olinda em 1755.

310
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

O Livro de registros... reúne provisões, ordens e cartas régias


copiadas em sequência cronológica e em sucessão imediata, com
o primeiro registro transcrevendo um documento cujo cabeçalho
se perdeu, mas que ainda traz a data do original, 1663, e o último
registrando uma provisão de 1709; apesar de que, em seu interior,
ele também apresenta alguns registros datados da década de
1720. De forma geral, em bom estado de conservação, o livro está
completo, a não ser por duas folhas que foram substituídas por
cópias digitadas (LIVRO de registros, cartas, provisões e ordens
régias da Câmara municipal da Cidade de Olinda de 1696, p. 71,
73), e traz manuscritos relativamente legíveis, apesar do óxido de
ferro da tinta original estar corroendo letras em diversos lugares
e começando a manchar muitas das páginas. As cópias ocupam
as duas faces da folha, e os documentos têm tamanhos bastante
desiguais, variando entre aqueles com menos de 20 linhas que
ocupam meia página, dividindo-a com o documento seguinte, e
aqueles que se espalham por várias páginas, caso do Registro
do Regimento de Ordenanças expedido para esse governo, com
35 páginas (LIVRO de registros, cartas, provisões e ordens régias
da Câmara municipal da Cidade de Olinda de 1696, p. 263-280).
Por fim, ao final do tomo há um índice que ocupa as oito últimas
páginas, intitulado Index das principaes ordens, e Cartas régias
q[e] contem este Livro; índice, entretanto, incompleto.
A análise paleográfica inicial desses manuscritos nos
oferece elementos para uma descrição geral do contexto de sua
produção. Em primeiro lugar, é perceptível que os registros não
foram escritos por um único escriba, visto que o estilo de escrita
muda consideravelmente ao longo das folhas. Por outro lado,
apesar dos diferentes escrivães, os elementos paleográficos
extrínsecos e intrínsecos (DURANTI, 2015, p. 196) mantêm todos
os documentos dentro dos limites temporais estabelecidos por seu
conteúdo, inserindo-os nos séculos XVII e XVIII: não apenas o
material de suporte da escrita – por exemplo, a tinta manufaturada
com óxido de ferro – mas também a escrita em si (que pode
ser definida, de acordo com as regras paleográficas, como
humanista com letras cursivas e encadeadas) são elementos

311
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

bem característicos do período colonial (ANDRADE, 2008/2009,


p 152). Todas essas considerações, é claro, excluem as duas
páginas digitadas que foram visivelmente acrescentadas no final
o século XX, mas que não trazem informações sobre sua data
de produção ou de inclusão no livro.
Outros elementos significativos inserem o livro no contexto
de produção dos documentos oficiais coloniais: o uso excessivo
de abreviaturas (ACIOLI, 1994, p. 45-48); a ausência de clareza e
padronização nos traços cursivos das letras em muitas das folhas
(ANDRADE, 2008/2009, p. 158); a elaboração de vários de seus
textos no formato de um parágrafo único; a elaboração dos textos
segundo as convenções das cartas administrativas imperiais
portuguesas, cuja formatação incluía cabeçalho, saudação, fecho,
cargo do autor, local e data de produção, e assinatura do autor
(FONSECA, 2006, p. 571). Da observação da conjunção desses
elementos em manuscritos coloniais variados (principalmente o
excesso de abreviaturas e as letras fora de padrão), autores como
Andrade e Acioli deduzem um domínio irregular das técnicas de
escrita por parte dos escrivães responsáveis (ACIOLI, 1994, p.
45-48; ANDRADE, 2008/2009, p. 158). No entanto, não podemos
precisar se esse era o caso de Manuel Pinheiro da Fontoura, o
escrivão-autor dos três documentos aqui analisados, uma vez que
muito ainda há a ser estudado no que diz respeito à cultura escrita
no contexto específico da Capitania de Pernambuco e pouca ou
nenhuma informação biográfica foi até agora encontrada sobre
esse personagem.
Seja como for, a partir dessas considerações gerais,
procedemos à transcrição paleográfica e leitura crítica de nossos
três manuscritos, baseando-nos principalmente nas regras
ditadas por Acioli (1994), mas considerando também as reflexões
filológicas acerca da edição semidiplomática de documentos
manuscritos, como propostas por Vasconcelos (2005) e Barreto
e Queiróz (2011). Como consideração inicial, ressaltamos que
a autoria desses três registros selecionados vem declarada nos
mesmos: o escrivão Manuel Pinheiro da Fontoura. Além disso,
os três documentos compartilham a maioria dos elementos

312
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

paleográficos extrínsecos e intrínsecos com a notável exceção


da clareza na grafia, já que o segundo e o terceiro documentos
apresentam uma escrita muito mais homogênea, com letras mais
regulares do que o primeiro, e mesmo com um menor número
de abreviaturas. Também é significativo que apenas o registro da
provisão de 1726 faça referência clara ao Conselho Ultramarino.

Sobre o que se escreve – O conteúdo dos manuscritos do


Livro de registros, cartas, provisões e ordens régias da Câmara
Municipal da Cidade de Olinda de 1696

No que se refere ao conteúdo, os documentos do Livro de


registros, cartas, provisões e ordens régias da Câmara municipal
da Cidade de Olinda de 1696 tratam de assuntos os mais
diversos, principalmente discutindo o cotidiano da Câmara de
Olinda e sua relação com a Coroa em um momento em que a
dita câmara comandava a Capitania de Pernambuco. Razão pela
qual o livro compila resoluções sobre despesas diversas, sobre
abastecimento local, sobre nomeações para cargos públicos e
militares, além de discutir outras funções regulares da câmara,
como a organização das festas públicas.1 E foi a relevância política
e social dessas festas no contexto das disputas entre diferentes
grupos sociais em Pernambuco, entre o XVII e o XVIII, que nos
levou a explorar os conteúdos e os discursos dos manuscritos
desse livro em primeiro lugar, despertando diversas questões
sobre a autoria e o lugar de produção de documentos, como
os três que analisamos aqui: duas provisões e uma carta régia
que versam sobre as festas públicas sob responsabilidade da
Câmara de Olinda nas décadas de 1690 e 1720, cujos registros
foram copiados no Livro de registros... por Pinheiro da Fontoura
em 1755.
O primeiro dos nossos três manuscritos é o Registro da carta
de Sua Majestade, escrita à Câmara, sobre o Governador não
consentir que diante dele se assentarem cadeiras de espaldas.

1
Para as funções administrativas da Câmara de Olinda, cf. Lisboa, 2013.

313
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

Escrita a 13 de novembro de 1691. As datas de cópia e original


estão estabelecidas no próprio documento, respectivamente
1755 e 1691. Quanto à tipologia, é uma carta régia que responde
a uma correspondência anterior da Câmara de Olinda, cuja
data não é mencionada. E, quanto ao assunto, responde a uma
queixa dos oficiais dessa câmara relativa a determinada atitude
do governador de Pernambuco durante uma celebração pública.
O manuscrito está na página 63 verso do Livro de registros...,
dividindo-a com um segundo documento copiado na mesma data,
intitulado Registro da carta de sua majestade, escrita aos oficiais
da câmara na q[a] lhe dis mandar ordenar ao governador senão
intrometer nas eleições e os deixe servir q[to] le os tocar. Escrita
a 6 de dezembro de 1691, e os títulos de ambos já esclarecem
sua função enquanto cópias de uma documentação mais antiga.
Segue abaixo sua transcrição, com a grafia atualizada para o
português atual:

Registro da carta de Sua Majestade, escrita à Câmara, sobre o


Governador não consentir que diante dele se assentarem cadeiras
de espaldas. Escrita a 13 de novembro de 1691.

Oficiais da Câmara da Cidade de Olinda Eu El Rey vos envio muito


saudar, vendo o que me escreveste em carta de 10 de julho do ano
passado, sobre o governador Antônio Luiz Gonçalves da Câmara
Coutinho, vos não querer no tempo de seu governo consentir
que nos atos públicos em sua presença vos assentásseis em
cadeiras de espaldas senão em bancos os tendo [naposse] de vos
assentardes em cadeiras de espaldas em todas as ocasiões, que
em atos públicos e em festas reais, assistires em corpo de câmara,
em presença dos governadores, e só estando o Santíssimo exposto,
em bancos; e vendo também o que sobre esta matéria informou
(como lhe mandei ordenar), o Governador Antônio Felix Machado,
em carta de 12 de julho deste ano: me pareceu ordenar vos, que
ao mesmo governador se os observe que vos consinta naposa [sic]
de vos sentardes nos atos públicos, em cadeiras de espaldas, de
que vos aviso, para o terdes assim entendido: Escrita em Lisboa a

314
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

13 de novembro de 1691 = Rei = o Conde de Valadares = para os


oficiais da câmara de Pernambuco: era o que se continha na dita
carta, que eu Manuel Pinheiro da Fontoura, escrivão da câmara,
a fiz registrar, subscrevi, e assinei aos 32[sic] de janeiro de 1755
Manuel Pinheiro da Fontoura. (LIVRO de registros, cartas, provisões
e ordens régias da Câmara municipal da Cidade de Olinda de
1696. fl. 63v).

Nesse texto, o Conselho Ultramarino basicamente informa


à Câmara de Olinda qual a decisão régia tomada com referência
a uma reclamação anteriormente feita por aquele órgão. Apesar
de ser um texto curto e sucinto, deixa transparecer, entre outras
coisas, o processo administrativo por trás da recepção da queixa
e da subsequente tomada de decisão sobre a mesma. Indica, por
exemplo, a investigação feita junto aos representantes da Coroa
em Pernambuco, motivada pela recepção da correspondência que
primeiro relatou o episódio em discussão. Uma investigação que
implicava o envio de missivas consultivas para representantes
como o governador da capitania, Antônio Felix Machado.
Recebendo o parecer deste, o Conselho Ultramarino, através do
Conde de Valadares, decidiria sobre o problema e informaria a
decisão ao rei que, por fim, mandaria passar a ordem explicita
nessa carta régia.
Também a duração da investigação aparece na mensagem,
que fixa o tempo decorrido entre o recebimento da primeira
queixa e o envio da decisão régia sobre a mesma: a primeira
correspondência sobre o assunto, tendo sido recebida na Corte
em julho de 1690, e a ordem passada pelo rei, escrita em
novembro de 1691. Por fim, o documento é concluído com o
registro da assinatura do rei e do membro do Conselho Ultramarino
originalmente responsável por encaminhar a carta, nesse caso o
Conde de Valadares, e pelos dados do copista de 1755, o escrivão
Manuel Pinheiro da Fontoura.
Com relação ao assunto tratado pela carta régia de 1691,
a mesma aborda um tema caro à cultura cortesã ibérica, e, por
extensão, à sociedade colonial americana: a geografia de poder

315
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

nas cerimônias públicas.2 Nesse caso específico, a problemática


discutida girava em torno da disputa entre os oficiais do Senado
da Câmara de Olinda e o governador da capitania, então Câmara
Coutinho, acerca do tipo de assento que os oficiais poderiam
ocupar nas cerimônias públicas realizadas nas vilas da capitania:
enquanto os oficiais queriam sentar em cadeiras de espaldas
nas cerimônias mais importantes, aquelas com o Santíssimo
Sacramento exposto, o governador os obrigava a permanecer
em bancos simples.
A simplicidade, ou superficialidade, dessa discussão disfarça
profundas disputas políticas entre os senhores de engenho e os
representantes da Coroa portuguesa em Pernambuco, ecoando
uma queixa nada original, e mesmo bastante repetida ao longo dos
séculos XVII e XVIII. Isso porque na medida em que os festejos
públicos se configuravam como momentos privilegiados para que
os senhores, enquanto membros das câmaras, demarcassem
seu prestígio, as disputas pelos melhores posicionamentos
nas cerimônias se tornavam cada vez mais comuns (SILVA,
2009). Essas celebrações, que incluíam festas religiosas anuais
pertencentes ao calendário da Coroa e posses de autoridades
e festas extraordinárias de cunho político – casamentos,
nascimentos, exéquias – ordenadas pela Corte, apresentavam-
se como os momentos principais de exposição dos senhores
de engenho nas ruas das vilas da capitania. Logo, todas as
festividades processionais eram rigorosamente planejadas e
implicavam uma hierárquica distribuição de espaços que tornava
a geografia das cerimônias um assunto dos mais importantes
para esses senhores.

2
Trabalhamos com a noção de cultura cortesã como aquele sistema de
valores, em vigor entre a nobreza residente e atuante nas cortes da Europa
seiscentista, cujas complexas regras de conduta, segundo José António
Maravall, atingiram seu ápice na Espanha Habsburga, e que de lá se
espalharam para reinos e colônias conectados ou pertencentes ao domínio
Habsburgo. Para a cultura cortesã, cf. Maravall, 1997; Bennassar, 2006;
Oliveira, 2006. Em trabalhos anteriores, aprofundamos a relação dos senhores
de engenho da América portuguesa com essa cultura. Cf. Silva, 2013.

316
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

Como na hierarquia espacial dessas procissões, determinados


símbolos ocupavam posições mais destacadas, caso
principalmente do Santíssimo Sacramento, que era apresentado
apenas nas mais importantes celebrações. A presença eventual
desses símbolos acendia as disputas por espaços privilegiados
entre oficiais das câmaras, governadores, bispos e todas as outras
autoridades da capitania (SILVA, 2011b, p. 76-93).
E, de fato, a carta régia de 1691 implicava que a presença do
Santíssimo Sacramento na cerimônia em questão fora o estopim
do problema entre Câmara e governador acerca do lugar onde
os oficiais da primeira deveriam se sentar na festa. O fato de o
governador os ter obrigado a sentar em bancos simples, em uma
ocasião tão importante que exigia a exposição do Santíssimo,
levou esses indignados senhores de engenho, enquanto oficiais
camarários, a repassarem seu desgosto para o rei.
Essa não foi a primeira e tampouco a última vez em que
problemas políticos foram gerados na Capitania de Pernambuco
em torno da realização de festas públicas. Em primeiro lugar, é
preciso considerar a função básica dessas cerimônias: reafirmar
o poder do rei sobre os distantes súditos coloniais. Uma função
jamais esquecida e sempre enfatizada: em diferentes ocasiões
vemos governadores e câmara disputando o privilégio de
representarem o rei.3 Por outro lado, para além dessa função, a
própria condição colonial de existência criou uma outra igualmente
importante para os oficiais da câmara: aquela que dava às
festas o poder de definir publicamente hierarquias estamentais,
confirmando o prestígio de autoridades perante a capitania e
mesmo a Coroa.
Assim, cada festa pública tinha sua geografia estabelecida
minuciosamente, e os espaços nas procissões, nos sermões
e cerimônias, nas igrejas e nas danças das corporações eram

3
Cf. REGISTRO da carta de S. majestade escrita aos oficiais da câmara,
sobre ir, ou não o pendão da câmara nas procissões. Escrita a 18 de julho
de 1677. APEJE. LIVRO de registros, cartas, provisões e ordens régias da
Câmara municipal da Cidade de Olinda de 1696. Fl. 48, 48v.

317
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

cuidadosamente arranjados de forma a que indicassem aos


espectadores o status de seu ocupante.4 Nesse contexto, os
símbolos dessas cerimônias eram vitais, pois o prestígio poderia
ser estabelecido pelo lugar ocupado por um personagem em
relação a um desses símbolos: o pálio e o Santíssimo Sacramento
são os melhores exemplos (SILVA, 2009). Não que essa tão
bem arranjada distribuição espacial impedisse o surgimento de
problemas. Pelo contrário: as disputas surgiam e se tornavam mais
acaloradas quanto mais importante era a cerimônia em questão.
No caso específico da disputa apresentada pela carta de
1691, a Coroa terminou por dar razão à Câmara de Olinda
em detrimento do governador, resguardando assim o prestígio
dos senhores de engenho. Isso também não era raro, e, em
outras querelas suntuárias entre câmaras e governadores, a
Coroa afirmaria que também os oficiais dos senados eram seus
representantes, e por isso deveriam ser tratados com o devido
respeito e associados aos símbolos de poder público.5 Por outro

4
Para a análise das festas públicas na Capitania de Pernambuco, enquanto
eventos privilegiados para a observação da cultura política dos senhores
de engenho, trabalhamos com a sociologia weberiana e seus conceitos
elaborados para análise de grupos de status: conceitos tais como prestigio,
honra e status, esse último compreendido como o lugar simbólico ocupado
pelos senhores de engenho na estrutura hierárquica da capitania. O que essa
concepção teórica traz para a análise histórica da cultura política desses
senhores é a constatação do quanto, para aqueles indivíduos que compunham
o grupo de status dos senhores de engenho da capitania, a manutenção da
honra e o cultivo de prestígio eram fundamentais ferramentas de aquisição
de poder (WEBER, 2002, p. 687-688; QUINTANEIRO, 2002, p.114-119).
5
Um exemplo é a disputa entre o Vigário Geral da Sé de Olinda e a Câmara
desta cidade, em 1677, em torno do lugar que o pendão da Câmara deveria
ocupar nas procissões, em relação à posição do pálio. Nessa disputa, interveio
o então governador de Pernambuco, D. Pedro de Almeida, posicionando-se
contra o Senado. O que levou a Câmara a escrever ao rei uma reclamação
contra vigário e governador. O rei, por sua vez, nessa ocasião como em
outras, posicionou-se a favor da Câmara, afirmando: “que o governador não
representa mais minha pessoa do que a representa o senado: e assim não
havia de resolver que nas procissões que não fosse o pendão porque só
quando eu vou nelas deixa de ir, o pendão e nas mais começa do pendão

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

lado, no que diz respeito à distância temporal entre a carta original


e a cópia setecentista, é preciso ainda observar que tal distância,
com relação a esse tema específico, talvez não existisse. De fato,
as disputas por prestígio na Capitania de Pernambuco ainda eram
bastante comuns na segunda metade do século XVIII, tendo até
mesmo sofrido uma intensificação com a concorrência oferecida
pela fundação da Vila do Recife, em 1711. Isso fazia com que
os assuntos tratados na carta original fossem bastante atuais no
momento de sua cópia, fazendo sentido, assim, que, em 1755, a
Câmara se interessasse por registrar um documento antigo que
resguardasse seus direitos em querelas futuras.
Visto que as festas públicas ocupavam um papel dos mais
importantes nas vilas coloniais, funcionando como vitrines para
o rei distante e para as elites locais6, não é de se espantar
que ocupassem também as preocupações das câmaras, que
gastavam muito tempo discutido cotidianamente diversas questões

o corpo do senado da câmara, e nesta forma se deve observar daqui em


diante”. (REGISTRO da carta de S. majestade escrita aos oficiais da câmara,
sobre ir, ou não o pendão da câmara nas procissões. Escrita a 18 de julho
de 1677. APEJE. LIVRO de registros, cartas, provisões e ordens régias da
Câmara municipal da Cidade de Olinda de 1696. 48, 48v).
6
Atualmente, são numerosos os estudos que se debruçam sobre as elites
coloniais e sua relação com as câmaras municipais da América portuguesa.
Essa historiografia tem se esforçado para definir a noção de elite colonial – que
normalmente abarca os grupos que controlavam tanto os meios econômicos
quanto os poderes políticos locais em suas regiões específicas –, assim como
para entender a balança de poder entre esses poderes locais e aqueles das
autoridades coloniais e do próprio Estado português (NOGUEIRA, 2010.).
Essa historiografia é numerosa e abarca diferentes recantos da América
portuguesa, mas, em geral, segue consideravelmente influenciada pelas
teses primeiramente expostas no hoje clássico O Antigo Regime nos trópicos
(FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA, 2001). Para Pernambuco, especificamente,
a definição das elites camarárias foi feita por historiadores como George
Cabral, para quem as câmaras eram instituições hibridas de poder (SOUZA,
2007). Seguindo a mesma linha, Welber Carlos Andrade a Silva discute a
maleabilidade das elites coloniais, mas enfatizando a importância da posse
fundiária na definição dessas na Capitania de Pernambuco, pelo menos até o
XVIII, quando o comércio se tornou um fator também definidor da composição
dessas elites na capitania (SILVA, 2012, p. 26).

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

relacionadas a esses eventos, como as despesas envolvidas


em sua organização. Essas despesas eram sempre vultosas
e incluíam pagamentos de pintores e músicos, de sermões
especialmente encomendados, de cera para a iluminação pública,
além das propinas para os próprios oficiais do senado.7 Esse
tópico do financiamento das festas foi uma constante também
em Pernambuco, e é o tema de nosso segundo manuscrito: o
registro de uma provisão régia, originalmente datada de 1692.

Registro de uma provisão por que Sua Majestade manda se tirem


os 6 40, que a cada um dos juízes, vereadores da câmara de
Pernambuco se dá para varas, porém, que estas tenha o Senado
obrigação de lhas dar por sua conta passada a 19 de setembro
de 1692.

Eu El Rei, faço saber aos que esta minha provisão virem, que
mandando ver e examinar as dúvidas que o ouvidor geral da
Capitania de Pernambuco, José de Sá Mendonça, teve para não
levar em conta nas que viu e reenviou, por ordem do governador
D Antonio Felix Machado do tesoureiro do Senado da Câmara
Feliciano da Silva, algumas despesas, que os oficiais da dita
câmara costumam fazer sem provisão minha, e o que sobre
esta matéria me responderam os mesmos oficiais da câmara,
governador, e sindicante da dita capitania de Pernambuco, tendo
a tudo consideração e ao que respondeu o procurador da minha
fazenda ao que se deu vista: haja bem que se tirem os seis contos,

7
Camila Santiago compôs uma ótima reconstituição de todo o processo de
organização das festas públicas pelas câmaras, “desde a decisão por fazê-
las, acordada em reunião do conselho, passando pela contratação de oficiais
e sacerdotes – músicos, carpinteiros, padres, armadores – o gerenciamento
das contas públicas destinadas às celebrações, a convocação dos segmentos
sociais para tomarem seus lugares nas solenidades, a compra de materiais
necessários como cera e incenso etc.”. Seu objeto de estudo foram as festas
organizadas pela Câmara de Vila Rica, no XVIII, mas seu trabalho nos oferece
um bom parâmetro do funcionamento das mesmas nos núcleos urbanos
ultramarinos. Cf. Santiago, 2001, p. 13.

320
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

e quarenta réis, que a cada um dos juízes e vereadores da dita


câmara se dá em cada uma das festas para varas, porem que estas
terá o dito senado da câmara a obrigação de lhas dar por sua conta,
e despesa; e nesta conformidade mando se cumpra, e guarde esta
provisão inteiramente, como nela se contem, sem dúvida alguma,
a qual se lerá como carta, e não passará pela chancelaria, sem
embargo da ordenação do [Artigo ] [2º] [11º] 39 em contrário, e se
passou por [ ] Manuel Felipe da S[a], a fez em Lisboa, a 19 de
junho de 1692, o secretário.

O secretário André Lopes de Serra a fez escrever, Provisão por que


V. Majestade manda que se tirem os seiscentos e quarenta réis
que cada um dos juízes e vereadores da Câmara de Pernambuco
se dá em cada uma das festas por varas, porem que estas tenha
o dito Senado da Câmara a obrigação de lhas dar por sua conta
e despesas, como nesta se declara e não passa pela chancelaria,
haveis por dever para V. Maj. ver = é o que se conta na dita Carta
que eu Manuel Pinheiro da Fontoura, escrivão da Câmara o fiz
registrar, subscrevi e assinei em 8 de fevereiro de 1755. Manuel
Pinheiro da Fontoura. (LIVRO de registros, cartas, provisões e
ordens régias da Câmara municipal da Cidade de Olinda de 1696.
fl. 66).

Diferentemente de uma carta régia, dirigida pela Coroa a um


interlocutor específico sobre um tema em particular, uma provisão
era uma ordem de caráter mais geral; uma diferença que pode
ser percebida na comparação dos dois documentos anteriores,
pois enquanto a carta régia de 1691 foi dirigida especificamente
aos oficiais da Câmara de Olinda, resguardando um certo tom de
consulta, a provisão de 1692, por sua vez, não apenas foi dirigida
a todos os representantes régios da capitania, como também
apresentava um tom claro de ordem. Nela, a diretriz real impunha
uma mudança nas práticas da Câmara de Olinda, em resposta a
um problema anteriormente identificado nas contas da mesma.
A situação que motivou essa ordem aparece na provisão de
forma sintética: aparentemente seguindo ordens do governador

321
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

da capitania, então Felix Machado, o ouvidor geral da capitania


– funcionário encarregado da manutenção da Justiça Régia
– levantou dúvidas sobre a idoneidade das contas prestadas
pelo Tesoureiro da Câmara de Olinda, especificamente aquelas
relativas às despesas que, sem permissão régia, os oficiais
faziam nas festas. Uma vez tendo recebido essas dúvidas, a
Coroa ordenou uma sindicância, que foi realizada pelo procurador
da fazenda, que, por sua vez, apresentou seus resultados ao
Conselho Ultramarino; a partir desses resultados, foi elaborada
a provisão em questão.
Os gastos disputados nessa ocasião em particular eram
relativos ao pagamento de varas aos oficiais do Senado. Mais
especificamente ainda, ao pagamento de seis contos e quarenta
reis, um valor bem alto para a década de 1690, em varas para
cada uma das festas organizadas por aquela câmara no ano em
questão. E essas festas foram muitas...
Como prática costumeira no Império português, cabia às
câmaras das vilas mais influentes a organização das festas anuais
do calendário régio, ditado na Corte. Tais festas, das quais Corpus
Christi era a mais importante, eram celebrações religiosas com
um forte caráter de reafirmação do poder da monarquia e que
tomavam a forma de atos processionais, seguidos ou precedidos
de cerimônias nas igrejas, muitas vezes acompanhados pelos
terços do exército regular, e sempre guiados pelas autoridades
locais.
Essas festas custavam caro, pois exigiam, entre outras
coisas, a iluminação das ruas e igrejas, a contratação de músicos
e de padres pregadores, tudo devendo ser financiado pelas
câmaras, que também deveriam pagar as propinas e varas
devidas aos oficiais do senado por sua participação. Enquanto
as propinas eram pagamentos comuns a funcionários do império,
as varas, por sua vez, eram importantes símbolos associados às
celebrações públicas, no mesmo patamar do pendão da câmara.
Eram insígnias associadas às irmandades leigas, que deveriam
ser carregadas por seus mais importantes irmãos nas procissões

322
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

de seus santos padroeiros.8 E, a julgar pela provisão de 1692,


eram associadas também ao pagamento de um valor determinado
que deveria ser feito pela câmara a seus portadores.
Na década de 1690, as principais festas do calendário régio
organizadas pela Câmara de Olinda eram as anuais Corpus
Christi, São Sebastião, Anjo Custódio do Reino e a festa de Ação
de Graças pela Restauração da Capitania contra os Holandeses,
às quais se somavam as eventuais festas extraordinárias, tais
como a realizada em honra do nascimento da infanta em 1699
e as celebrações da “paz com Castela”, que renderia festas
ainda em 1713, 1715 e 1719. Interessante notar que, apesar do
calendário festivo ser o mesmo para reino e ultramar, a Câmara
de Olinda conseguiu que o rei transformasse uma celebração
local em festa anual, realizada apenas na vila: a festa de ação de
graças pela Restauração (SILVA, 2009). Além dela, o governador
de Pernambuco, então Aires de Souza, fez celebrar, nessa mesma
década, também festas extraordinárias de caráter local, em honra
à pretensa conquista do Quilombo de Palmares.9
Seja como for, a operação dessas festividades seguia
sempre um padrão pré-determinado, com procissões guiadas
por ruas selecionadas e devidamente enfeitadas para a ocasião,
com luminárias, repiques de sinos, salvas de artilharia, pregões
públicos e às vezes danças das corporações de ofício, e cuja
conclusão deveria se dar na Igreja Matriz, com missa solene na
qual era cantado o Te Deum e onde se expunha o Santíssimo
Sacramento naquelas festas mais prestigiosas, que eram
acompanhadas por tropas e assistidas pela plebe. Em tudo isso,
a participação das autoridades era devidamente organizada
segundo a rígida hierarquia espacial das festas coloniais (SILVA,
2011a, p. 63-85).
No caso que motivou a escrita dessa nossa provisão de 1692,

8
Para o pagamento de propinas e os significados das varas nas procissões
(SANTIAGO, 2001, p. 11; 19; 70; 96).
9
Dados acerca dessas festas estão nos documentos transcritos por Ennes
(1938, p. 31-32; 105-106).

323
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

as despesas que o ouvidor deixou sob suspeita contabilizavam um


gasto considerável que tinha saído dos cofres da Fazenda Real.
Aparentemente, o problema não era o pagamento das varas em
si, uma prática costumeira, mas o fato de que o mesmo estava
sendo realizado pelos fundos da Fazenda Real e não pela câmara,
como deveria ser o procedimento correto. Não que isso fosse
um fenômeno raro, sendo, na verdade, bastante comum que as
câmaras municipais luso-americanas abusassem de seu papel
de organizadoras das festas públicas e de seu direito legal de
receber pagamento pela participação nas mesmas, estipulando
altas somas para suas propinas.
Mas, além desse problema financeiro, esse curto manuscrito
é esclarecedor também de uma outra questão corriqueira naquele
cenário: a constante disputa de poder entre a Câmara de Olinda e
as autoridades régias na Capitania de Pernambuco. Assentados
nessa câmara estavam os senhores de engenho: um grupo
que, pelo menos desde a restauração em 1654, se arrogava
privilégios de mando sobre a capitania e mesmo além dela, e que
não poucas vezes se enfrentava aos altos representantes do rei,
especialmente os governadores que deveriam ser responsáveis
pela imposição da ordem imperial na região.
Há o caso, por exemplo, de uma disputa entre essa câmara
e o governador D. Manoel Rolim de Moura, em 1725, acerca da
obrigatoriedade, não cumprida, de o governador atender às festas
em Olinda (CARTA do governador da Capitania de Pernambuco ao
Rei sobre a ordem para que todos os ministros, oficiais de justiça e
fazenda, governador, Senado e todos os terços de Recife e Olinda
participem dos festejos da Restauração... Pernambuco, 18 de
julho de 1725). Nessa ocasião, reclamaram os oficiais de Olinda
que o governador não apenas não comparecera à festa de ação
de graças pela Restauração naquele ano, mas ainda impedira
que as tropas e outras autoridades da Coroa então assentadas
no Recife participassem da festa em Olinda, o que, segundo os
oficiais, diminuíra consideravelmente a pompa da ocasião. Ou
seja, tratava-se de uma disputa por pompa e por autoridade. Uma
disputa que também transparece na investigação das contas da

324
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

câmara instigada pelo governador Felix Machado no episódio


retratado pela provisão de 1692 copiada em nosso manuscrito. E
uma disputa, além disso, que ainda se fazia sentir na década de
1750, quando esse registro foi elaborado. Em 1740, por exemplo,
a disputa pelas festas públicas em Pernambuco se estendera a
ponto de incluir também a Câmara de Igarassu (CARTA dos oficiais
da câmara de Igarassú ao rei, d. João V, pedindo ordem para fazer
ação de graças pela Restauração da capitania de Pernambuco
do poder dos holandeses, como se faz anualmente em Olinda,
no dia 27 de janeiro...).
Todas essas querelas eram disputas por prestígio e, logo,
por poder. Mas é preciso ainda enfatizar que, como sugere a
provisão de 1692 ao discutir o problema do pagamento das varas,
a questão monetária era também um fator relevante.
Por fim, nosso terceiro documento, que copia um original de
1724, fala de um cenário político bem diferenciado daquele da
Capitania de Pernambuco na década de 1690. Apesar de que,
em termos da produção do manuscrito, o padrão já discutido se
mantenha: o tom de ordem condizente com o de uma provisão
se faz sentir e sua autoria é declarada, atribuída a Pinheiro da
Fontoura em 1755.

Registro da provisão em que Vossa Majestade não foi servido


deferir o requerimento feito por este Senado sobre a procissão que
queriam fazer dia da visão de Nossa Senhora.

Dom João por graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves,


daquém e dalém mar em África, senhor da Guiné etc. Faço saber
aos oficiais da Câmara da Cidade de Olinda, que se viu o que me
representastes em carta de 9 de março do ano de 1724 de que
entre as mais obrigações, que vos incumbia, é a de fazerdem [sic]
uma solene procissão no dia da visão de Nossa Senhora, e outra
no dia do Anjo Custódio, o que não haveis praticado por vossos
antecessores, e porque não havia ordem em contrário, vos constava
que nas vilas de Igarassú e Itamaracá se faziam estas solenidades
ficáveis deliberados a pô-las em praxe, e por me ser presente por

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

informação que neste particular mandei tomar que nestas vilas,


que referis, se não fazem as tais procissões, e as festas constam
de um sermão, e missa cantada. Me pareceu dizer-vos, observeis
neste particular o estilo: El Rey Nosso Senhor o mandou por
Antonio Roiz [Rodrigues] da Costa, e o Doutor José Gomes de
Azevedo, conselheiros do seu Conselho Ultramarino, e se passou
por 2 vias: Dionísio Cardoso Pereira as fez em Lisboa Ocidental,
a 21 de maio, de 1726 = o secretário Andre Lopes da Lavra a fez
escrever = Antonio Roiz da Costa = José Gomes de Azevedo =
Era o que se continha na dita Provisão que eu Manuel Pinheiro
da Fontoura, escrivão da câmara, fiz registrar, subscrevi e assinei
aos 7 de agosto de 1755. Manuel Pinheiro da Fontoura. (LIVRO de
registros, cartas, provisões e ordens régias da Câmara municipal
da Cidade de Olinda de 1696. Fl, 153).

A mudança está no contexto social e político do documento


original, principalmente porque Olinda deixara de ser vila,
passando a cidade em 1696, e, mais importante, deixara também
de abrigar a única câmara com poder de mando na região, desde
que o Recife se transformara em vila em 1711. Além disso, naquele
momento, a cidade precisava lidar também com o peso de outras
vilas, como Igarassu e Itamaracá.
Essa mudança política se faz sentir no conteúdo do
documento, que apresenta basicamente uma reprimenda do rei
relativa à realização de duas festas públicas, a procissão de Nossa
Senhora e a festa do Anjo Custódio, pela Câmara de Olinda. A
Coroa reprime os oficias da câmara não apenas pela realização
dessas procissões, mas pela informação incorreta que haviam
dado como justificativa para as festas em Olinda: a de que as
mesmas estavam sendo realizadas pelas câmaras de Igarassu
e Itamaracá. O rei não apenas desmente essa informação, como
ressalta o fato de que era obrigação de Olinda seguir a tradição
e se ater a seus deveres específicos.
Duas questões se tornam imediatamente notáveis nessa
discussão, principalmente quando comparadas a dos documentos
anteriores: em primeiro lugar, o esforço da Câmara de Olinda por

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

realizar festas que não eram mais reconhecidas como de sua


alçada; e, em segundo, a posição da Coroa contrária à câmara.
No caso da primeira questão, a insistência dos oficiais do
senado olindense em organizarem duas festas que em períodos
anteriores eram exclusividade de sua cidade é um forte indício da
mudança de status de sua câmara. Os oficiais queriam realizar
procissões, com todas as pompas inclusas – como as que eram
realizadas na década de 1690 –, e a Coroa insistia que eles se
restringissem à fórmula simples de sermão e missa cantada
para comemorar as ocasiões em questão. Interessante também
que os oficiais do Conselho Ultramarino tenham enfatizado a
necessidade de que aqueles da Câmara de Olinda preservassem
o “estilo”, ou seja, a tradição do modelo de realização das festas,
ignorando totalmente o fato de que menos de cinquenta anos
antes o modelo era o de festas estendidas com procissões. E
a segunda questão de nota é o fato de que, diferentemente de
várias situações anteriores, relativas às querelas provocadas por
Olinda em torno das festas, nessa ocasião específica, a Coroa se
posicionou contra a câmara. Tudo isso sugerindo a decadência
política de Olinda no período.
Por outro lado, é importante também ressaltar que, nesse
mesmo momento, a Câmara de Olinda estava envolvida em
uma disputa com a Câmara do Recife pela realização da festa
de Corpus Christi. Provocada pela intenção da nova Câmara
do Recife organizar sua própria festa de Corpus Christi, a mais
importante do império, essa disputa se estendeu por décadas
(SILVA, 2011b), uma vez que Olinda tudo fez para impedir que
tal intenção se concretizasse. Esse esforço do Senado de Olinda
por manter o monopólio sobre Corpus Christi e a relutância da
Coroa em lhe apoiar apena reforçam a dificuldade que essa
câmara estava encontrando, na década de 1720, para conseguir
permissão para realizar outras festas que classicamente sempre
estiveram em sua esfera de jurisdição, como a do Anjo Custódio
do reino, descrita na correspondência da década de 1690 como
uma das quatro mais importantes do calendário festivo régio.
E as autoridades do Conselho Ultramarino se posicionavam

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

favoráveis ao Recife na disputa por Corpus Christi. Uma situação


que reforçava tanto a decadência política da Câmara de Olinda
quanto a ascensão da do Recife.
Para além da mudança de cenário político dos senhores de
engenho de Olinda, essa provisão de 1726 também oferece pistas
para outras questões relativas à organização das festas públicas,
como, por exemplo, os próprios elementos que compunham uma
celebração régia. Nesse texto, vemos menção a missas cantadas
com sermão nas festas realizadas em Igarassu e Itamaracá e
ao fato de que a Câmara de Olinda não considerava que essas
missas fossem suficientes para uma festa importante, reclamando
da ausência de procissões. A queixa da Coroa era sobre o fato
de que Olinda fizera a festa com procissão, um tipo de evento
reservado para as mais importantes celebrações cortesãs
(FURTADO, 1997). E o fato de que a Coroa negava tal ferramenta
de prestígio à Câmara de Olinda é bastante indicativo da queda
dessa câmara das graças da Corte.
Já em consideração ao processo de produção do registro
dessa provisão pelo escrivão Manuel Pinheiro da Fontoura,
diferentemente de nossos dois primeiros documentos, a distância
temporal entre a elaboração da cópia e a provisão original é
muito menor. E não apenas a distância temporal, mas o próprio
contexto político era muito semelhante entre a década de 1720 e
a de 1750, com a crescente decadência das câmaras que antes
haviam sido bastiões dos senhores de engenho, como Olinda e
Igarassu, e a gradual ascensão da Câmara do Recife. Contudo, se
esses contextos sociopolíticos dessa cópia/original em particular
são análogos, o que dizer dos diferentes lugares de produção dos
dois documentos anteriores?
De forma geral, as cópias setecentistas observadas aqui são
representações de uma ponte entre o contexto político de 1690 e o
de 1750, visto que registram documentos seiscentistas que discutiam
questões ainda relevantes para o órgão que as elaborou na segunda
metade do século XVIII. Esses manuscritos são, assim, fontes para
os dois contextos, o da produção do original e o da produção da
cópia? Ou apenas para um ou outro desses momentos?

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 307-333, jul./dez. 2017

Seja como for, de certo temos apenas o fato de que o duplo


lugar de produção desses manuscritos não deve ser ignorado
pelos historiadores que se debruçam sobre eles em busca
de informações sobre as câmaras pernambucanas coloniais,
sobre festas, sobre abastecimento, sobre elites, sobre querelas
governamentais ou outro qualquer assunto. Acreditamos que, ao
reconhecermos o duplo lugar de produção dos manuscritos do
Livro de registros, cartas, provisões e ordens régias da Câmara
municipal da Cidade de Olinda de 1696 do APEJE, estamos
facilitando o processo de leitura e análise dessas fontes. E, de
forma geral, cremos que a análise particularizada dessa coleção
de documentos aqui selecionada pode ser entendida como um
exemplo dos benefícios da revisão, revitalização e reutilização
das ferramentas filológicas e paleográficas no manejo de fontes
manuscritas coloniais.
Isto é, a crítica documental básica, que observa e analisa
tanto os elementos diplomáticos extrínsecos quanto os
intrínsecos, ainda pode ser uma ferramenta válida para o estudo
da correspondência administrativa colonial arquivada em acervos
tais como o APEJE, principalmente por enfatizar a percepção
de que, em tais acervos, o historiador está tratando com cópias
elaboradas por câmaras locais, e não com a correspondência
régia original. Ela também enfatiza o fato de que não temos o
outro lado da conversa, as cartas escritas pelos órgãos coloniais
e que motivaram tais respostas régias; assim como o fato de
que estamos lidando com cópias produzidas por um escrivão
e agregadas em um único livro, ou seja, com uma seleção feita
por um burocrata setecentista e não com a coleção completa de
cartas originais; e, por fim, com elementos, esses e outros, que
podem dizer respeito mais ao lugar de produção da cópia do que
do original.
Todos esses elementos trazidos pela crítica documental
sugerem que a reflexão sobre a produção de fontes como esses
registros manuscritos de documentos coloniais pode ser uma ação
tão importante no trabalho com fontes oficiais coloniais quanto as
análises de conteúdo e de discursos. Assim, os historiadores que

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optarem pelo emprego de ferramentas filológicas e paleográficas


na abordagem de suas fontes podem começar por acrescentar
àquelas perguntas iniciais feitas ao documento (quem escreve,
para quem escreve, de onde escreve), outras definidas pelo
formato desses manuscritos específicos: quem copia, quando
copia, para que copia. Dessa forma, a leitura que oferecemos
dos três manuscritos aqui destrinchados, e do fundo documental
ao qual pertencem, procura funcionar como um estudo de caso
do tipo de abordagem crítica que acreditamos ser bastante
útil na leitura de documentos coloniais cuja autoria e lugar de
produção sejam dúbios, mas que continuam a ser frequentados
por historiadores em busca de pistas sobre a sociedade colonial.

Fontes manuscritas

CARTA do governador da capitania de Pernambuco ao Rei sobre a ordem


para que todos os ministros, oficiais de justiça e fazenda, governador,
Senado e todos os terços de Recife e Olinda participem dos festejos da
Restauração. Arquivo Histórico Ultramarino, AHU_ACL_CU_015, cx, 31,
D. 2849. Pernambuco, 18 de julho de 1725.
CARTA dos oficiais da câmara de Igarassú ao rei, d. João V, pedindo
ordem para fazer ação de graças pela Restauração da capitania de
Pernambuco do poder dos holandeses, como se faz anualmente em
Olinda, no dia 27 de janeiro. AHU_ACL_CU_015, cx, 59, D 5054.
LIVRO de registros, cartas, provisões e ordens régias da Câmara
municipal da Cidade de Olinda de 1696. Arquivo Público Jordão
Emerenciano – APEJE. D-III 1, fl. 48, 48v; 63v; 66; 71,73; 153; 263-280.

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Recebido em setembro de 2015.


Aprovado em junho de 2017.

333
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-13

DOENÇAS, MEDICINA POPULAR E SOCIEDADE


PROVINCIAL: ASPECTOS DO TRATAMENTO DE
DOENÇAS NA FAMÍLIA VIEIRA DOS SANTOS
(MUNICÍPIO DE MORRETES, PROVÍNCIA DE SÃO
PAULO, 1848-1851)

André Luiz Moscaleski Cavazzani*


Sandro Aramis Richter Gomes**

RESUMO: Neste artigo, é desenvolvido um estudo acerca da


natureza do tratamento das doenças do negociante português
Antônio Vieira dos Santos (1784-1854) e de seu filho José Vieira
dos Santos (1813-1850), de 1848 a 1851. Eles habitavam a vila
de Morretes, que na época pertencia à jurisdição da província
de São Paulo. O objetivo fundamental deste artigo é investigar a
natureza da terapêutica de uma família que pertencia à elite social
do aludido município. Nesse quadro, demonstra-se a coexistência,
na formulação dessa terapêutica, de recomendações da medicina
erudita, de sugestões de curandeiros e dos manuais de medicina
popular.

PALAVRAS-CHAVE: Doenças. Sociedades provinciais.


Terapêutica caseira.

ABSTRACT: In this paper we developed a study on the nature


of the treatment of diseases of the merchant Antônio Vieira dos
Santos (1784-1854) and his son José Vieira dos Santos (1813-

* Coordenador do Curso de História do Centro Universitário Internacional de


Curitiba (UNINTER). Possui doutorado em História Social pela Universidade de
São Paulo (2013). Realizou estágio de pós-doutorado junto ao Departamento
de História da Universidade Federal do Paraná nos anos de 2014 e 2015.
** Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (2017).

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

1850), between the years 1848 and 1851. They lived in the
municipality of Morretes, under the jurisdiction of the Province
of São Paulo. The objective of this article is to investigate the
nature of therapeutic of a family that belonged to the social elite of
Morretes. It is demonstrated the coexistence, in the formulation of
this therapy, of recommendations of erudite medicine, suggestions
of halers and manuals of popular medicine.

KEYWORDS: Diseases. Home therapy. Provincial societies.

Introdução

Neste artigo, é empreendida uma investigação acerca do


tratamento das enfermidades do português Antônio Vieira dos
Santos (1784-1854) e de seu filho José Vieira dos Santos (1813-
1850), entre os anos de 1848 e 1851. Eles residiam na vila
Morretes. Trata-se de um município litorâneo que naquela época
pertencia à jurisdição da província de São Paulo e presentemente
integra o território do estado do Paraná, cuja criação ocorreu no
ano de 1853.
Antônio Vieira dos Santos e seu filho, José Vieira dos Santos,
atuaram como negociantes de erva-mate. Pertenceram à geração
dos negociantes que vivenciaram o processo de crescimento
da produção do mate no litoral e no primeiro planalto do atual
estado do Paraná (PEREIRA, 1996), e integravam a elite social
de Morretes. Os ascendentes maternos de José Vieira dos Santos
estavam envolvidos na vida social e econômica desse município
desde o fim do século XVIII (CAVAZZANI, 2013).
Nascido na cidade portuguesa do Porto, Antônio Vieira dos
Santos transferiu-se para o Brasil em 1797. Após breve estada na
cidade do Rio de Janeiro, fixou residência na vila de Paranaguá,
no litoral sul da Capitania de São Paulo, em 1798, onde atuou
como comerciante varejista. Em 1814, enraizou-se na então vila
de Morretes, onde faleceu. Era casado com Maria Ferreira de

336
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Oliveira (1787-1840), filha do imigrante açoriano João Ferreira


de Oliveira (GOMES, 2012).
A presente abordagem consiste em uma análise acerca da
natureza dos tratamentos de saúde executados na pequena
sociedade provincial no contexto do Brasil monárquico. 1
Compete evidenciar a natureza e as implicações de um modelo
de tratamento de enfermidades marcado pela convergência
do acatamento de sugestões advindas da medicina oficial, de
curandeiros e de manuais de medicina popular. Recorrer aos
préstimos de indivíduos que dominavam artes populares da
cura era crucial para os aludidos moradores. Nesse contexto,
é sustentado o argumento segundo o qual, no âmbito de uma
sociedade do litoral sul da Província de São Paulo, o saber dos
médicos e o saber dos curandeiros estavam relacionados de
maneira estrita na formulação da terapêutica de doenças de
membros da elite local.
Este artigo enquadra-se, assim, na linhagem de estudos
que obteve especial desenvolvimento a partir dos anos 2000 e é
respeitante às formas de terapêutica aplicadas no Brasil do século
XIX.2 Demonstra o desenvolvimento de abordagens respeitantes
à natureza dos préstimos de indivíduos que dominavam as artes
populares de cura, salientando, ao mesmo tempo, que o estudo

1
Em 1853, foi criada província do Paraná. No ano seguinte, o presidente da
província, Zacarias de Góes e Vasconcelos, produziu um relatório no qual é
informado o contingente populacional dos municípios da nova província. A
análise dessas informações permite evidenciar que, em meados do século
XIX, a vila de Morretes, que fora elevada à condição de vila em 1841,
possuía uma população inferior à população dos municípios de Antonina
e Paranaguá. De acordo com o mencionado relatório, o contingente
populacional do litoral paranaense, em 1854, estava distribuído do seguinte
modo: Paranaguá – 6.533 habitantes; Antonina – 4.160 habitantes; Morretes
– 3.709 habitantes; Guaratuba – 3.564 habitantes; Guaraqueçaba – 3.475
habitantes (VASCONCELOS, 1854, p. 14).
2
A esse respeito, compete menção aos seguintes estudos: Armus; Hochman
(2004); Chalhoub (2003); Farias (2012); Ferretti (2004); Figueiredo (2002);
Pimenta (1998); Ribeiro (1997); Sampaio (2003); Viotti (2012); Witter (2001);
Witter (2007).

337
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

sobre as políticas públicas na área da saúde desenvolvidas no


Brasil monárquico tem contribuído para o entendimento acerca
da intervenção das elites políticas em fenômenos como a eclosão
de surtos epidêmicos.
Compete destacar o contemporâneo desenvolvimento, pela
historiografia, de uma compreensão sobre a rotina do tratamento
de doenças dos habitantes das províncias, tratando-se de uma
vertente de estudo que salienta a convergência de formas
terapêuticas vigentes naquele contexto. Assim, argumenta-se que
os textos memorialísticos de Antônio Vieira dos Santos contribuem
para a formulação dessa compreensão. Mais precisamente,
o estudo desses textos possibilita uma compreensão sobre o
ecletismo dos métodos terapêuticos de membros de elite social
de área interiorana, bem como permite reconhecer os efeitos da
adoção desses métodos.
No segundo estágio do artigo, elabora-se a análise acerca
do tratamento de enfermidades de José Vieira dos Santos, que
se estendeu entre os anos de 1848 e 1850. O estudo a respeito
desse tratamento possibilita demonstrar a natureza e os impactos,
no âmbito de uma vila do extremo sul da Província de São Paulo,
da terapêutica caseira empregada por membros de elite local,
ressaltando as formas de aglutinação, por tais membros, dos
saberes oriundos da medicina oficial e das artes populares de
cura.
O saber médico era requisitado pelos habitantes dessas
sociedades. Porém, tal inclinação para o contato com os
profissionais formados na medicina oficial não impedia membros
da elite da vila de Morretes de recorrer aos conhecimentos
fornecidos por curandeiros. Dessa maneira, será destacado que
os familiares dos enfermos da família Vieira dos Santos passavam
a demandar, de forma rotineira, os serviços de indivíduos que
não possuíam a formação da medicina erudita, que, em sua
maior parte, se enquadravam na condição de curandeiros. Na
vila de Morretes, em meados do século XIX, um tratamento de
saúde era marcado pela combinação entre orientações médicas
e recomendações dos cultores das artes populares de curar.

338
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Nesse quadro, o caso do tratamento de enfermidades


de membros da família Vieira dos Santos permite salientar a
aceitação, por integrantes de elite local do Brasil Meridional,
de recomendações terapêuticas emanadas de distintas fontes
– da medicina erudita e das artes populares de cura. Por outro
lado, demonstra-se que as dificuldades para o acesso rotineiro
aos médicos e aos curandeiros instaurava uma situação na
qual os membros da família Vieira dos Santos buscavam os
conhecimentos de leigos que pertenciam ao seu círculo de
relações sociais. Desse modo, para atestar o caráter multifacetado
de uma terapêutica de membros de família de elite local do Sul
do Brasil no século XIX, compete evidenciar a diversidade do
perfil dos indivíduos demandados a participar da elaboração e
rearranjos dessa terapêutica.
Ao longo desse estágio do artigo, salienta-se que, em virtude
das aludidas dificuldades, os próprios familiares ministravam
um tratamento aos enfermos, um tratamento paliativo destinado
apenas a abrandar padecimentos crônicos. O estudo sobre a
formulação desse tratamento caseiro permite reconhecer, para
o caso de uma área litorânea do Brasil Meridional de meados do
século XIX, a disseminação de manuais de medicina popular.
Mais precisamente, trata-se de salientar um caso da aceitação,
por membros de elite local, das recomendações inerentes a tais
manuais.
Este artigo ainda comporta a investigação acerca do
tratamento das doenças do comerciante Antônio Vieira dos
Santos. Nesse quadro, destacam-se dois elementos de tal
tratamento. Primeiro, demonstra-se que essa terapêutica fora
elaborada por meio da consulta a manuais de medicina popular,
os quais eram amplamente utilizados no Brasil monárquico. De
outra parte, será ressaltado que as características do tratamento
da doença de Antônio Vieira dos Santos evidenciam um caso do
interesse das elites locais pelos préstimos de curandeiros.
Por meio da leitura dos textos memorialísticos de Antônio
Vieira dos Santos, evidencia-se a completa ausência de auxílio
de médicos na formulação do tratamento das doenças desse

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

negociante. Ao mesmo tempo, eram episódicas as suas interações


com curandeiros. Cabe destacar, ainda, os efeitos da iniciativa de
um membro de elite local, em face dos obstáculos para o contato
frequente com médicos e curandeiros, arrogar para si a tarefa de
elaborar uma terapêutica de suas enfermidades.
A fonte empregada para o desenvolvimento deste artigo foi o
manuscrito memorialístico Memórias dos sucessos mais notáveis
acontecidos desde o ano de 1838, cuja redação foi encerrada pelo
citado Antônio Vieira dos Santos em 1851. Essa obra comporta
informações acerca do percurso do autor e de seus filhos na
sociedade de Morretes.3

Médicos, curandeiros e tratamento caseiro: a enfermidade


de José Vieira dos Santos

A narração elaborada por Antônio Vieira dos Santos a respeito


da enfermidade e tratamento de seu filho, José Vieira dos Santos,
não apresenta um preciso diagnóstico da doença. Há, apenas, a
menção de que seu filho sofria de espasmo, que, naquela época,
era encarado como a causa de ataques convulsivos. De fato, um
dos eventos descritos pelo memorialista Vieira dos Santos sobre o
tratamento de seu filho foi um ataque convulsivo ou apoplético. No
século XIX, um dos mais disseminados manuais de medicina do
Brasil, o Dicionário de Medicina Popular, empregava os vocábulos
apoplexia e espasmo como sinônimos de ataque convulsivo.4

3
Esse volume está sob a guarda do Círculo de Estudos Bandeirantes (Curitiba,
Rua XV de Novembro, 1050).
4
No século XIX, espasmo era um termo empregado comumente na literatura
médica da Europa em referência a convulsões. Em sua edição de 1890,
Diccionario de medicina popular e das sciencias acessórias para uso das
famílias, de Pedro Chernoviz, definiu espasmo do seguinte modo: “contração
involuntária dos músculos, principalmente dos que não obedecem à vontade,
taes como são os do estômago dos intestinos, da uretra, etc. Precede
frequentemente a convulsão, mas pode existir sem ella. Além d’isto o sentido
da palavra espasmo é mui vago: às vezes emprega-se como synonimo de
convulsão; frequentemente toma-se por ataque de nervos. Applica-se também
o nome de ar de espasmo à moléstia chamada tétano; e com o mesmo nome
se designa às vezes a apoplexia”. (CHERNOVIZ, 1890, p. 1028).

340
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Nesse quadro, o estudo acerca do tratamento de saúde de


José Vieira dos Santos, ocorrido entre os anos de 1848 e 1850,
evidencia a autoridade conferida aos curandeiros por integrantes
da elite mercantil de uma vila do Brasil Meridional, em meados
do século XIX. Compete destacar que os membros dessa elite
despendiam recursos para viajar ao encontro de médicos de vilas
adjacentes. Entretanto, esses membros não tinham condições
de manter rotineira comunicação com os médicos. Ao mesmo
tempo, verifica-se que também era circunstancial o contato com
curandeiros. No curso do tratamento de membros dessa família,
notadamente de Antônio Vieira dos Santos, nota-se a influência
dos manuais de medicina popular para o fornecimento de diretrizes
para o próprio enfermo formular seu tratamento.
Ao longo deste estudo é também evidenciado que os
membros dessa parentela realizavam procedimentos terapêuticos
sugeridos por leigos que pertenciam ao rol de amizades dos
aludidos enfermos. Ou seja, os integrantes do círculo de relações
sociais dos Vieira dos Santos interferiram, em distintos momentos,
na elaboração da terapêutica de enfermidades.
Segundo Antônio Vieira dos Santos, a enfermidade de José
Vieira dos Santos principiou em novembro de 1848. Nessa
oportunidade, esse indivíduo estava a realizar o beneficiamento
de erva-mate na região dos campos de Curitiba, no primeiro
planalto do atual estado do Paraná. José Vieira dos Santos
era casado com Joana Hilária Morocine Borba, filha de Vicente
Antônio Rodrigues Borba, que detinha a patente de Capitão de
Milícias de Curitiba (COSTA, 1988). Desse modo, José Vieira dos
Santos possuía conexões familiares com membros da elite social
do planalto curitibano.
Por consequência, esse negociante enquadrava-se na
condição de integrante de elite mercantil que em tese poderia
despender recursos para a consulta com médicos e a aquisição
de medicamentos. Entretanto, as dificuldades existentes na região
da vila de Morretes para a execução de um tratamento prescrito
por médicos tornava necessário buscar o auxílio de indivíduos
que não possuíam formação na medicina erudita.

341
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Em novembro de 1848, José Vieira dos Santos sofreu o


primeiro ataque convulsivo. Nessa ocasião, foi socorrido por
seu sogro. Conforme o relato de Antônio Vieira dos Santos, “Em
21 Terça a meia noite teve meu f° Joze hum ataque repentino
apopletico estando dormindo com sua Espoza e filhas e se não
fosse o Borba estar acordado certamte morreria” (SANTOS, 1851,
p. 113).
Nesse contexto, a ocorrência de um ataque apoplético
impeliu José Vieira dos Santos a regressar para Morretes. Em
seguida, ele procurou ajuda médica na cidade de Paranaguá,
distante cerca de trinta quilômetros daquela vila. Contudo, os seus
familiares também demandaram as orientações de indivíduos que
não possuíam formação em medicina, tais como curandeiros e
boticários.
As informações transcritas a seguir são referentes a
acontecimentos do mês de dezembro de 1848. Elas evidenciam
que, desde o seu início, o tratamento da enfermidade de José
Vieira dos Santos revestiu-se de um caráter multifacetado. Esse
caráter era decorrente do fato de que diversas pessoas foram
consultadas para a formulação de um tratamento para a moléstia
desse negociante ervateiro. Nesse âmbito, atente-se ao seguinte
excerto respeitante a episódios da terapêutica de José Vieira dos
Santos:

Em 2 Sabado depois do meio dia chegou meu filho Joze vindo das
Campinas. De noite se reprezentou no Theatro o Drama o Valido
Sanguinario e o Entemez do Sovina. Em 3 Domo de tarde foi meu
genro Agostinho com meu filho Joze a Paranagua consultar ao
Medico Allemão o Dr. Killer e na canoa lhe deu alguns ataques
passageiros de tal molestia dizendo o dito Medico ser Espasmo e
voltarão de Parana no dia 6. Em 19 Terça depois do meio dia deu
em meu filho Joze hum ataque repentino da molestia com repuxamto
de todos os membros e boca pa o lado direito q’ lhe aturou talves 15
minutos tornando depois ao seu natural. No dia 20 se lhe deu um
purgante de rum; e no dia 21 se tornou a escrever pa Paranagua
a consultar novamte o medico Allemão Dr. Killer e ao Boticario

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Carlos Augusto de Mello Franco. Em 25 Segunda consultei com


Joze Pedro Stanisláo da Sa sobre a molestia de meu filho Joze,
q’ mandou-lhe fazer fricções e banhos de pediluvios nas pernas.
(SANTOS, 1851, p. 114-115).

O excerto supracitado demonstra que, no princípio do


tratamento de José Vieira dos Santos, os seus familiares
reivindicaram o auxílio de três indivíduos, a saber, um médico,
um boticário e um membro da elite social de Morretes (José
Estanislau). Este integrante da elite local era o marido de Ana
Gonçalves Cordeiro, pertencente a uma família cujos membros
se dedicavam ao comércio de erva-mate naquela vila (REVISTA
GENEALÓGICA LATINA, 1956). Portanto, as informações
acerca de José Estanislau evidenciam a existência de um
compartilhamento de informações, entre indivíduos pertencentes
ao mesmo estrato social, acerca de formas caseiras de tratamento
de enfermidades.
Verifica-se, assim, que a formulação de uma terapêutica de
doenças, em uma vila do litoral sul paulista, era marcada pelo
acatamento das recomendações de médicos e boticários. Ao
lado dessas recomendações, as famílias dos enfermos também
conferiam legitimidade às sugestões de indivíduos que não
possuíam a formação na medicina erudita, mas também não se
enquadravam na qualidade de curandeiros e boticários. Antes,
eram leigos que possuíam informações úteis à execução de uma
terapêutica caseira. Este era o caso de José Estanislau.
A análise da narrativa de Antônio Vieira dos Santos demonstra
a presença de médicos de origem europeia nos municípios
litorâneos de Antonina e Paranaguá, na primeira metade do
século XIX. Duas décadas após os episódios estudados neste
artigo sobre o tratamento de enfermidades na família Vieira dos
Santos, os municípios do litoral paranaense ainda permaneciam
carentes de médicos.
Para corroborar esta afirmação, compete analisar o
Recenseamento Geral do Império de 1872. Nessa ocasião, o litoral
da Província do Paraná era composto por seis municípios. De

343
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

acordo com a fonte, no mencionado ano, três médicos habitavam


a cidade de Paranaguá. Na época, residiam nesse município dois
farmacêuticos. Em Guaraqueçaba, não havia médicos, cirurgiões
e farmacêuticos. Em Guaratuba, também não existiam médicos,
cirurgiões e farmacêuticos. No município de Antonina, por sua
vez, havia um médico e um farmacêutico. Em Morretes, residia
somente um médico. Nessa localidade, em 1872, não existiam
cirurgiões e farmacêuticos. No município de Porto de Cima, por
fim, havia apenas um médico. Contudo, ali não residiam cirurgiões
e farmacêuticos (RECENSEAMENTO DO BRAZIL EM 1872,
1874, p. 33-48).
Em síntese, o excerto abaixo reproduzido permite salientar
a natureza eclética de um tratamento de saúde executado por
membros de parentela pertencente à sociedade interiorana do
Brasil Meridional. Tal tratamento era marcado pelo contínuo
acatamento e abandono de sugestões provenientes de distintas
fontes.
As informações transcritas na sequência permitem salientar
que, na vila de Morretes de meados do século XIX, o emprego
de recomendações de curandeiros era realizado de modo
concomitante à utilização de prescrições de indivíduos que
praticavam a medicina oficial. Ao mesmo tempo, os conhecimentos
de um cultor da homeopatia foram demandados para a execução
do tratamento de um integrante da referida parentela. Desde
época anterior ao início do tratamento de Antônio e José Vieira
dos Santos, membros dessa parentela eram propensos a buscar
os conhecimentos dos cultores das artes populares de cura. A
busca por esses cultores ocorria simultaneamente à demanda
pelas prescrições médicas.5

5
Na vila de Paranaguá, a citada Maria Ferreira de Oliveira, esposa de Antônio
Vieira dos Santos, procurou pelo auxílio de uma curandeira em 1849. Nessa
ocasião, Maria Ferreira também consultara com um médico, Guilherme
Wyllie. Segundo Vieira dos Santos, a curandeira ministrou a Maria Ferreira
conhecimentos sobre a preparação de remédios: “[Em 16 de abril de 1840]
Quinta fra Santa de noite Ma [Ferreira de Oliveira] foi a Igrª Matriz ver o sermão
da Paixão e depois pacear plas ruas te foi a caza de hua mer curandeira pª
lhe ensinar alguns remédios.” (SANTOS, 1851, p. 366).

344
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Na vila de Morretes, Julião era o curandeiro que prestou


serviços tanto para José Vieira dos Santos quanto para Antônio
Vieira dos Santos. Leia-se, pois, as informações referentes ao
tratamento de José Vieira dos Santos ao longo dos meses de
janeiro e fevereiro de 1849:

Em 1 [de janeiro de 1849] Segunda escrevi ao medico de Parana o


Dr. Killer, esclarecendo as perguntas que elle exigia saber relativas
a molestia de meu filho Joze. Desde o dia 1º té 6 não teve nenhum
attaque. Em 7 Domo de m. teve meu fo Joze hum forte attaque e
foi chamado o homeopatha Francez Nicoláo Moye, e principiou
dando-lhe doses de diversos remedios como Cachomilla – Lachecis
– China – Sulfanor vomica – Belladona. E com este curativo levou
ate 4 de Fevro sem que meu fo experimetase melhoramtos pois q’
os attaques lhe repetião diarios, e varias vezes no dia e tambem
de noite. Em 27 de Janeiro Sabado se chamou um Medico Suisso
q’ mora na Va Antonina chamado Carlos Tobias Reichesteiner que
veio a Morres para o consultar. Em 2 [de fevereiro de 1849] Sesta
tomou meu fo Joze a lombrigueira preparada pello Medico Suisso
e nenhum effeito teve. Os ataques continuarão diarios: de manhã
a tarde e outras vezes de noite. Tratou-se então de consultar ao
Julião a fazer-lhe remedios contra lombrigas e asim em 8, 9 e 10
tomou banhos de clysteis de hua erva chamada Pacobá. (SANTOS,
1851, p. 116-117).

A referência à participação de Nicolau Moye no curso


do tratamento de José Vieira dos Santos consiste em uma
evidência, no âmbito do litoral sul da província de São Paulo,
que os conhecimentos da medicina oficial coexistiam com os
conhecimentos oferecidos pelas artes populares de cura e também
pela homeopatia. A atuação de Moye ocorreu no período que a
historiografia situa como a época inicial da difusão da homeopatia
no Brasil. O período de inserção do saber homeopático no Brasil
abrangeu as décadas de 1840 e 1850 (LUZ, 1996). Nessa
época, em distintas províncias do Império, houve indivíduos que
se ocuparam de desenvolver métodos terapêuticos a partir da
homeopatia (CHACON, 1983).

345
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Diante das dificuldades para o contato com o médico alemão


Killer, radicado em Paranaguá, Antônio Vieira dos Santos solicitou
os préstimos de outro médico, de origem suíça, Carlos Tobias
Reichestener, que residia no município de Antonina. O pai de
José Vieira dos Santos optou por demandar a orientação de um
profissional que atuava em uma vila mais próxima a Morretes,
Antonina6.
Em um cenário social marcado pela ausência de médicos
brasileiros, profissionais oriundos de outros países tinham os seus
serviços requisitados pela população de municípios do litoral do
atual estado do Paraná. Durante o século XIX, apenas um membro
da sociedade de Paranaguá obteve graduação em Medicina.
Formado no Rio de Janeiro, em 1873, Leocádio José Correia
(1848-1886) retornou no ano seguinte ao município natal para
clinicar (HOERNER JÚNIOR, 1979).7 Nessa época, persistia no
Brasil a carência de médicos tanto nas mais populosas cidades do
Império quanto em áreas do interior das províncias. O contingente
de graduados pelas faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e
de Salvador era insuficiente para suprir essa carência (SANTOS
FILHO, 1991).
Nesse quadro, o tratamento de José Vieira dos Santos
era marcado pela ingestão de chás, resultado da aplicação de
sugestões da homeopatia e de procedimentos como o clister.
Esse procedimento consiste na injeção de água no ânus para
realizar a limpeza intestinal. De outra parte, o emprego da técnica
do clister, por José Vieira dos Santos, é uma evidência da ampla
utilização desse método no Brasil. No princípio do século XX, tal
emprego mantinha-se comum nas orientações médicas sobre
lavagem intestinal (REZENDE, 2009).
No decorrer dos anos de 1849 e 1850, os textos memorialísticos
de Antônio Vieira dos Santos não registram novas consultas de

6
A distância entre o município de Morretes e o município de Antonina é de
cerca de quinze quilômetros.
7
Acerca da formação educacional e da atuação profissional desse médico,
ver Hoerner Júnior (1979).

346
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

seu filho com médicos que habitavam as sociedades de Antonina e


Paranaguá. Desse modo, o tratamento de José Vieira dos Santos
passou a ser orientado pelo curandeiro Julião.
Ao mesmo tempo, havia a solicitação ocasional para que um
sangrador participasse desse tratamento. Na vila de Morretes de
meados do século XIX, a prática da sangria era ainda encarada
como uma técnica eficaz para a purificação do organismo. Esse
procedimento era combinado com a ingestão de substâncias
que promoviam evacuações regulares. Assim, a tentativa de
purificação do organismo era o aspecto rotineiro da terapêutica
caseira de José Vieira dos Santos. Leia-se, pois, a referência à
contratação do serviço de um sangrador no curso do tratamento
desse comerciante, contratação que ocorreu no mês de fevereiro
de 1849:

Em 13 [de fevereiro de 1849] Terça tomou o remedio preparado


pello Julião contra as lombrigas e não teve nenhum ataque nos dias
14 e 15, mas dia Sesta 16 teve um fortissimo ataque que ate ficou
com a cor de rosto denegrido e continuou dando-lhe no dia 17 e
18. Em 19 Segunda se lhe deu hum purgante de Jalapa Ruibarbo
Manna Senne por receita do Julião contra a ma opinião e pr effeito
da irritação do mmo lhe deu 9 ataques fortissimos desde manhã ate
as 3 horas da madrugada. Ficou fraco abatido dezanimado e com
fortissima dor de cabeça. Em 20 Terça frª esteve meu fo Joze mto
dezanimado e sem querer comer nada. Consultei a Joze Pedro pa
que se sangrasse o que se fes no pé mas pouco sangue botou. Em
21 Quarta se sangrou no pé bastante sangue mto negro e a mma se
repetio no dia 22 Quinta e levou deitado com dores de cabeça e
rins.Em 23 Sesta dor de cabeça e rins vista turva e teve de tarde
hum forte ataque e hua indigestão.Em 24 Sabado dor de cabeça e
rins sem poder obrar nem ourinar tomou huns laxantes por bebida.
De noite se lhe botarão 6 bichas sobre os rins e 1 na testa que
extrairão mto sangue. (SANTOS, 1851, p. 117).

A utilização da técnica da sangria no tratamento de José Vieira


dos Santos evidencia que componentes da elite social de uma vila

347
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

paulista também faziam uso de métodos terapêuticos comumente


identificados com a população que ocupava uma posição inferior
na hierarquia social.8 De outra parte, havia ocasiões nas quais
os próprios familiares incumbiam-se da tarefa de prescrever um
tratamento para o enfermo. Uma dessas prescrições era o retorno
de José Vieira dos Santos para a região do planalto curitibano,
pois a mudança de ares era encarada como proveitosa para que
ele recuperasse sua saúde.
Em março de 1849, Antônio Vieira dos Santos recomendou
tal mudança como uma iniciativa derradeira para o tratamento da
moléstia de seu filho. O insucesso da terapêutica recomendada
por médicos, boticários e curandeiros exigia que os parentes
do enfermo realizassem mudanças no método curativo. A
esse respeito, cumpre transcrever as seguintes informações
apresentadas por Antônio Vieira dos Santos referentes a episódios
ocorridos em março de 1849:

Em 16 [de março de 1849] Sesta falei dezenganadamente a meu


fo [José Vieira dos Santos] pa subir a Coritiba e mudar de ares e
escrevi ao Borba duas cartas hua com dacta de 15 e outra de
16. Em 19 Segunda foi a carta pa o Borba a qual chegou no dia
Terça 20 a tarde. Em 21 Quarta das 9 pa as 10 horas da manhã
se foi embora meu fo Joze pa Cora indo a cavallo e acompanhado
por varias pessoas chegando as Campinas plas 4 horas da tarde
infelismte tendo no Campo hum peqno ataque cuja noticia recebi a
23. (SANTOS FILHO, 1851, p. 119).

8
Concernente à utilização dos serviços dos sangradores por membros das
camadas sociais populares no Brasil colonial, Maria Cristina Wissenbach
afirmou: “Assim, diante das profundas desigualdades sociais, acentuadas
ao limite pela escravidão, os produtos de botica, muitos deles provenientes
do reino, e profissionais e médicos eram quase que prerrogativas dos mais
ricos; remédios caseiros, fórmulas feitas com ervas e outros produtos de valor
medicinal, curandeiros e mezinheiros, barbeiros, sangradores e cirurgiões
era quilo com que podiam contar os setores remediados, pobres e escravos
da colônia.” (WISSENBACH, 2002, p. 118).

348
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

O tratamento de José Vieira dos Santos, até o momento


de seu falecimento, foi realizado por meio da aplicação das
recomendações de curandeiros. Em abril de 1850, por exemplo,
Antônio Vieira dos Santos apresentou a seguinte informação sobre
o tratamento de seu filho: “[Em 20 de abril de 1850] Principiou
o curador Antônio Franco da Trindade a curar meu filho Joze”
(SANTOS, 1851, p. 219).
Ao se verificar que o tratamento era também formulado a
partir de sugestões fornecidas por indivíduos que pertenciam
ao círculo de relações sociais da família dos Santos, mas não
atuavam como médicos, cirurgiões ou curandeiros, identificou-
se sugestão apresentada pelo sogro de José Vieira e anotada
por Antônio Vieira dos Santos: “Em 28 [de abril de 1850] Terça
chegou de Coritiba o [Vicente] Borba e ensinoume como era de
se fazer o remedio do queixo da cobra cascavel pa Joze tomar”
(SANTOS, 1851, p. 222).
Pertencente à elite local curitibana, Vicente Borba, em agosto
de 1850, providenciou a ida de um médico até a vila de Morretes,
com a finalidade de atender a José Vieira dos Santos. Tratava-
se da derradeira tentativa de ministrar a esse indivíduo uma
terapêutica para mitigar os efeitos do espasmo. Nessa ocasião,
o médico cujos préstimos foram demandados foi acolhido na
residência de um membro do grupo de negociantes de Morretes,
Modesto Gonçalves Cordeiro, que era uma liderança local do
Partido Conservador (ALVES, 2014). Acerca da participação do
médico de Curitiba no tratamento de José Vieira dos Santos,
leia-se o seguinte extrato memorialístico elaborado pelo pai do
enfermo:

Em 5 Segda, 6 Terça e 7 [de agosto de 1850] Quinta padecendo


os mmos ataques repetidos e iguaes martyrios. Neste ultimo dia de
manhã foi vezitallo hum Medico que veio de Coritiba a pedido do
Borba chamado Joze Joaqm Marques Sza o qual examinando me dice
achara o pulso abatido mas que inda bem lhe respondera a pergunta
que lhe fes com a palavra desgraça. Na tarde do mesmo dia fui
em caza do Tene Corel Modesto Gls Cordeiro vezitar ao mesmo

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Medico, e ate lhe dei por escripto hua circunstanciada expozição


do tratamento que se lhe tinha seguido em seus curativos desde
o principio ate ao prezente. Depois das 8 horas da noite o mesmo
medico me mandou hum receituario para no outro dia se entrar em
principio de hum curativo regular. (SANTOS, 1851, p. 224).

Entretanto, a terapêutica recomendada pelo aludido médico


não foi executada, visto que José Vieira dos Santos faleceu no dia
seguinte à visita desse profissional. Por meio das informações do
memorialista Antônio Vieira dos Santos, verifica-se que:

Neste dia [9 de agosto de 1850] de tarde e ate as 9 ou 10 horas da


noite soltou a voz, mais claramente comeu, cigarrou, só dizia que
não havia de amanhecer e lastimandose a cada momento no maior
dezespero de sua infelecidade e desgraça. Finalmente ficou em
socego sem haver maiores gemidos de suas dores e pensandose
que elle dormia socegadamente quando foi ma filha de manhã pa o
acordar e lhe dar de comer o achou morto e n’outra vida. Certamente
teve algum ataque repentino depois da meia noite e com elle acabou
seus soffrimentos e seu penar na madrugada da Quinta feira 7 de
Agosto. Em 8 Sesta de manhã pelas 7 pa as 8 horas me foi dada
esta triste noticia e imediatamente fui para caza de meu genro a dar
providencias e a dirigir o seu funeral. Despachandose hua canoa a
Parana a chamar ao Pe Agostinho Machado Lima pa se lhe fazerem
as ultimas exéquias. (SANTOS, 1851, p. 225).

O tratamento da enfermidade de José Vieira dos Santos


comporta evidências de que membros da elite social da vila de
Morretes, no fim dos anos 1840 e no início dos anos 1850, não
ansiavam somente pelos serviços de médicos. Eles também
demandavam os préstimos de boticários e acatavam as sugestões
de leigos que possuíam conhecimentos sobre técnicas caseiras
de tratamento de moléstias.
O excerto supracitado evidencia que Antônio Vieira dos
Santos formulou uma terapêutica caseira destinada à cura da
enfermidade de seu filho José. O tratamento de saúde, nessas

350
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

circunstâncias, assumia um aspecto multifacetado, visto que era


marcado pela aglutinação de recomendações oriundas de distintas
fontes. A medicina oficial e as sugestões de leigos que formavam o
círculo de relações sociais dos Vieira dos Santos foram decisivas
na condução do tratamento de José.
Trata-se de salientar que, em meados do século XIX,
componentes da elite social de Morretes também buscavam os
préstimos dos curandeiros. Eram esses indivíduos que mantinham
uma relação mais próxima com os enfermos em pequenas
sociedades do Brasil oitocentista, independentemente do grupo
social dos doentes. Concernente ao caso do litoral do atual
estado do Paraná, no contexto dos anos 1840, cabe destacar que
havia curandeiros em atividade nos municípios como Morretes e
Paranaguá. As referências aos casos de Maria Ferreira de Oliveira
e de Antônio e José Vieira dos Santos permitem corroborar esta
assertiva.
No estágio seguinte deste artigo, compete demonstrar o
argumento de que o pai de José Vieira dos Santos também era
inclinado a solicitar os serviços dos curandeiros. Em verdade, o
tratamento das moléstias do patriarca da família Vieira dos Santos
foi realizado sem a orientação médica: a consulta a curandeiros e
a manuais de medicina embasaram a construção da terapêutica
das doenças de Antônio Vieira dos Santos.

Curandeiros, medicina popular e as implicações de uma


terapêutica caseira: o tratamento de saúde de Antônio Vieira
dos Santos

A análise do tratamento das moléstias de Antônio Vieira


dos Santos demanda ser realizada em dois estágios. Primeiro,
é evidenciado que esse tratamento foi executado sem o auxílio
de médicos ou curandeiros. Antes, o enfermo desenvolveu um
método curativo marcado pela ingestão de purgantes. A forma de
utilizar esses purgantes foi aprendida em manuais de medicina
popular, notadamente o manual escrito pelo médico francês
Alphonse-Louis-Vicent Leroy (1742-1816). Compete salientar,

351
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

pois, a ampla circulação de manuais de medicina caseira nas


províncias do Brasil monárquico.
Segundo, demonstra-se que, na sociedade onde aquele
negociante residia, vigorava uma prática na qual os enfermos
tinham de improvisar um tratamento de saúde por meio da
elaboração de uma dieta alimentar. Em última análise, tal situação
levava os enfermos e seus familiares a elaborarem paliativas
formas de tratar as moléstias. Em geral, esse tratamento consistia
na execução de técnicas para amainar dores crônicas por meio
da aplicação de sugestões provenientes de manuais de medicina
popular.
O estudo dos textos memorialísticos de Antônio Vieira
dos Santos permite asseverar que ele sofria de uma moléstia
denominada de impigem, isto é, uma dermatose, moléstia que
atingiu as pernas do negociante português. O primeiro sintoma
dos padecimentos físicos desse comerciante é datado de março
de 1849. Nessa oportunidade, ele fora acometido por erisipela:
“Em 9 [de março] Sesta de tarde me deu hum principio de Ersypela
na perna direita com o q’ levei a dormir neste dia e no Sabado
seguinte 10” (SANTOS, 1851, p. 119).
A partir de janeiro de 1850, começou a se agravar a dermatose
nas pernas de Antônio Vieira dos Santos. Ao longo de sua narrativa
memorialística, esse negociante mencionou que a dermatose
estava presente nas duas pernas. Nesse quadro, ele formulou as
primeiras medidas para aplacar o desenvolvimento da moléstia.
O princípio do seu tratamento consistiu em pôr emplastros de
mandioca sobre a dermatose. O enfermo conjugava a ingestão de
remédios com o uso de medicamentos de uso externo, tais como
os emplastros. A respeito de episódios concernentes a janeiro de
1850, encontram-se as seguintes informações sobre o início do
tratamento: “Em 8 Terça de tarde, achandome com a ma perna
bastantemente inflammada com a impigem me retirei para caza
pondo nella emplastos de mandioca de Sm Pedrinho” (SANTOS,
1851, p. 216-217).
De outra parte, cabe ressaltar que Antônio Vieira dos Santos
aplicava em seu tratamento as recomendações presentes em

352
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

manuais de medicina, sobretudo o Manual prático de medicina


curativa de Leroy, do qual aquele negociante possuía um exemplar
(SANTOS, 1827, p. 252). Mais precisamente, o comerciante
português era assíduo consumidor do Purgante de Leroy. Tratava-
se de um medicamento aplicado, por exemplo, para aplacar a
pneumonia, a desinteira e a hidropisia, e também utilizado como
antídoto contra o envenenamento (COSTA, 1998).
No Brasil, os manuais de medicina caseira eram amplamente
comercializados e sua popularidade no país perdurou até o fim
do século XIX (GUIMARÃES, 2003).
Ao mesmo tempo, a terapêutica da dermatose de Antônio
Vieira dos Santos era marcada pelo emprego de recomendações
de um curandeiro, o citado Julião.
Durante os anos de 1850 e 1851, essa terapêutica não
conheceu substanciais modificações. Ao contrário, ela permaneceu
influenciada tanto por recomendações encontradas em manuais
de medicina quanto pelas sugestões e remédios produzidos pelo
aludido curandeiro, evidenciando o modo como Antônio Vieira dos
Santos aglutinava as recomendações extraídas dos manuais às
sugestões de um indivíduo que dominava as artes populares da
cura. Para tanto, atente-se ao seguinte excerto memorialístico,
referente aos meses de março e abril de 1850:

Em 21 [de março] Quinta feira voltei pa caza por estar com o pé mto
inflamado com a impigem onde estive recluzo té o dia 22 tomando
hum ou dois purgantes de Manna e Jalapa.
Em 23 Segunda frª principiei a tomar purgantes de la Roy, em 25
botei póz dejounnes com o que se augmentou a inflamação. De
noite se botou outro unguento ensinado por Julião té o dia 30.
Em Domo 24, Segunda 25 e Terça 26 tomei o la Roy.
Em 27 Quarta purgante de Sal amargo.
Em 28, 29 e 30 outros de la Roy principiouse com novo unguento
de semente de algodão.
Em 31 Domo dia de descanso.
Abril
Em 1 Segunda tomei outro purgante. Em 2 e 3 descanso, a impigem

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

declinou a melhora. Em 4 Quinta purgante Sal amargo. Em 5 e


6 purgantes de la Roy. Domo 7 descanso de n. fui a Igrª ao terço
de Sm Sebastião – nos dias 8, e 10 purgantes de la Roy – senti
a impigem com mais ardor talves pr ajuntar inxofre no unguento.
(SANTOS, 1851, p. 219).

Diante da ausência de resultados positivos no tratamento,


Antônio Vieira dos Santos empreendeu pequenas modificações
nos seus métodos curativos. Nos meses de abril e maio de 1850, a
dermatose agravou-se. Incontinenti, o referido negociante abdicou
do uso de unguentos em seu tratamento. Contudo, ele manteve a
ingestão de purgantes. Segundo o memorialista, essas medidas
não tiveram êxito. Ao contrário, houve o aumento da inflamação
e das dores.
Desse modo, o excerto transcrito a seguir consiste em um
indício a respeito do caráter improvisado da terapêutica efetuada
em sociedades do interior do Império. Nesse âmbito, restava ao
enfermo empreender pequenas e paliativas alterações nos seus
métodos curativos. As informações transcritas abaixo dizem
respeito a episódios ocorridos nos meses de maio e junho de 1850:

Em 19 pa 20 de Maio mostrou a impigem a querer secar, mas


na noite de 21 a 22 me veio extrenozamte com grande ardor e
resequidão da pelle e com grande resequidão da pelle e purgando
bastante.
Em 24 Sesta tomei hum purgaante de la Roy e me doeo bastante
a ma perna tanto de dia como de noite; e me deo a lembrança
de só usar pannos molhados com agoa fria sem mais unguento
nem folhas com este uzo apareceo melhora na inchação da pelle
principalmente.
Desde Sesta 24 de Maio té 31 pasei todas as noites em claro sem
poder dormir porque mal apenas me deitava hum ardor picante e
insuportavel acudia a pelle que só agoa fria a poderia abrandar té
sahindo vapor a maneira de fumaça.
Junho
Sabado 1º de tarde e noite inflamouse outra ves a perna com

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

bastantes dores mas no dia 3 em diante mostrou a declinação.


Nos dias 3 – 4 – 6 – 8 – 10 e 12 – 16 em todos estes dias tomei
purgantes de La Roy sem que houvese melhoras nas dores,
vermelhidão e inflammação.
Desde 18 té 26 pasei as noites bastantemente emcommodado sem
dormir. (SANTOS, 1851, p. 220-221).

Nos meses seguintes, Antônio Vieira dos Santos agregou


outras substâncias na produção de um método curativo. Em
fins de 1850, ele passou a utilizar, por exemplo, mercúrio e cal,
posicionando essas substâncias sobre a área da dermatose. Ao
mesmo tempo, o negociante permaneceu inclinado a buscar os
préstimos de indivíduos que dominavam as artes populares de
cura.
Em síntese, o tratamento desse indivíduo era marcado
por breves períodos de arrefecimento da dor. Entretanto, o
recrudescimento da inflamação e das dores impelia o enfermo a
promover pequenas mudanças no modo de tratamento. E, nessas
circunstâncias, ele arbitrava solitariamente sobre os rumos do
seu processo curativo.
No presente estágio do artigo, compete destacar que Antônio
Vieira dos Santos formulava isoladamente o destino de seu método
curativo. De forma ocasional, ele obtinha o auxílio de curandeiros
e amigos. Nesse contexto, cabe demonstrar que restava ao
enfermo realizar o emprego de sugestões que ele captava em
manuais de medicina caseira, bem como entre pessoas que
pertenciam ao seu círculo de amizades, conferindo autoridade às
sugestões de indivíduos que dispunham de conhecimento sobre
métodos populares de curar, mas não atuavam rotineiramente
como curandeiros.
O excerto reproduzido a seguir comporta informações
referentes aos meses de novembro e dezembro de 1850, que
demonstram a disposição de Antônio Vieira dos Santos para
contatar-se com indivíduos que possuíam informações sobre
técnicas populares de feitura de remédios:

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Desde 17 ou 18 [de novembro de 1850] principioume a inchar o pé


esquerdo bastantemente e o direito mto dolorido e inflamado com
grandes dores sem poder nem andar de xinellos e só em a pé no
chão e asim continuou ate 7 ou 8 de Dezembro e que declinou
a melhorar depois de ter uzado quotidianamente de mercurio e
cal lançado sobre a impigem. Havendo principiado em 14 Quinta
frª a tomar diariamte purgantes de Sippo como pr espaço de 6 ou
8 dias. [...] Em 14 [de dezembro] Sabado de noite fui em caza
da Pucica mer do Manoel de Siqueira consultar com ella sobre
ensinnarme remedios e curativo pa a ma perna. Em 15 Domo pasei
mto encommodado com dores fortes na perna por lhe botar pedra
hume queimada e o emplasto que a Pucica ensinou da massa da
farinha e vinagre. Em 16 Segunda de tarde em diante foi minorando
a inflamação algum tanto [...] Em 28 Sabado com os excessos
dos [meus] paceios dos dias antecedentes alternouse outra ves
a inffamação da Da perna, arrebentando diversas borbulhas e
doendome bastante desde manhã ate ao meio dia principalmente.
(SANTOS, 1851, p. 229-230).

O relato supracitado evidencia que Antônio Vieira dos


Santos era um enfermo que produzia os seus próprios remédios,
a partir da orientação de conhecedores de procedimentos
curativos populares. As informações apresentadas nos textos
memorialísticos desse imigrante português evidenciam que
um tratamento de saúde, em uma área interiorana do Brasil
oitocentista, era marcado pela contínua adoção e abandono de
métodos curativos. Eram tentativas sucessivas para encontrar
o remédio, geralmente um fitoterápico, que promovesse uma
diminuição dos padecimentos do enfermo. Porém, os resultados
desse remédio tinham apenas efeito paliativo, pois a sua principal
função era aplacar dores de forma momentânea.
Compete enfatizar, pois, que os amigos do enfermo
realizavam sugestões sobre métodos curativos. Dentre os amigos
de Antônio Vieira dos Santos, cabe mencionar o professor primário
Francisco da Silva Neves, que conhecia a técnica de preparo de
um unguento que o memorialista intentou empregar para combater
a sua dermatose:

356
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Em 1 [de janeiro de 1851] Quarta frª foi o 3º dia da tomada do


cozimento. A perna declinou a secar e a descascar a pelle das
ulceras, principiei a uzar de novo o unguento que o [Francisco
da Silva] Neves ensinou. Em 2 Quinta foi o 4º dia da tomada do
cozimento com a mesma declinação a quererse decascar apezar
da grande vermelhidão e dores. Em 3 Sesta foi o 5º dia da tomada
do cozimto como de tarde houve mto calor a coberta do unguento
na perna inflamou bastante mas tirando-o fora e banhando abateo
a inflamação e não botei mais unguento deixando as partes a ver
livre com o que mto moderou a vermelhidão e inflamação. Em 4
Sabado foi o 6º dia da tomada de cozimento neste obrei bastante e
mta sahiação; fiquei com a perna mto aliviada com hum aspecto de
grande melhora. De n. botei o unguento e não tirei. Em 5 Domo foi
o 7º dia da tomada do cozimento, obrei. Declinaçõens a melhoras.
Em 6 Segunda o 8º dia foi de manhã a ultima bebida do frasco,
mas de tarde continuei com cozimto da infuzão de Salia Senne que
tinha preparado pa isso. (SANTOS, 1851, p. 232).

Por meio do estudo do caso do tratamento de Antônio Vieira


dos Santos, nota-se que um dos objetivos centrais dos tratamentos
médicos, na vila de Morretes de meados do século XIX, era
propiciar a purificação do organismo. Nesse sentido, os enfermos
ingeriam substâncias que evitavam o problema da retenção de
fezes. Antônio Vieira dos Santos também adotava procedimentos
para a desintoxicação do fígado por meio da utilização de pós
antibiliosos.
No ínterim do tratamento de sua dermatose, Antônio Vieira
dos Santos realizou procedimentos de purificação do organismo.
Concernente a acontecimentos do mês de maio de 1851, o
memorialista apresentou as anotações transcritas a seguir. Elas
demonstram que a utilização de purgativos era o procedimento
mais usual em uma terapêutica caseira, no contexto de uma
sociedade interiorana do Brasil oitocentista:

Em 2 Sesta ou 3 Sabado principiou uma coceira pela mãos e corpo.


Em 4 Domingo engrossamento do rosto mto avermelhado e principio

357
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

de uma irrupção geral por todo o corpo. De n. mto encommodado


com a irrupção. Em 5 Segunda de manhã principiou a inchar o
rosto com mto comichão e grossura, orelhas coceira na cabeça,
e barba e em todo o corpo. De noite mto encommodado sem
dormir. Em 6 Terça a irrupção chegou a seu maior auge as faces
mto inchadas; as palpebras sem poder a abrir os olhos, fontes e
testa. De noite encommodado sem poder dormir. Em 7 Quarta de
tarde mostrei ao Joze Pedro receitou a infuzão de linhaça, agoa
de roza e da Colonia pa lavar o rosto, e purgante de Sal amargo.
De noite mto encommodado sem dormir. Em 8 Quinta de manhã
tomei o purgante do Sal amargo que obrei e lavagem a miudo do
rosto. De noite mto encommodado sem poder dormir. [...] Em 12
Segunda tomei hum purgante de Sal amargo sempre obrei. De n.
tive hum sonno. mas mto encommodado com a inflamação do pé
esquerdo subindo o calor a 16 gráos. Em 13 Terça de tarde principiei
a tomar os pós Antibiliozos. De n. mto encommodado sem poder
dormir com picadas lancinantes no pé esquerdo a cada instante e
grande inflammação. O rosto e as orelhas mais abatida da irrupção.
Em 14 Quarta começouse a banhar os pés com agoa de linhaça
moderação das dores nada de obrar. Depois do almoço dormi hum
pouco. (SANTOS, 1851, p. 242-243).

Outro método curativo utilizado por Antônio Vieira dos


Santos consistia na aplicação de emplastros sobre as pernas,
que constava entre as técnicas cuja utilização possibilitava
uma circunstancial melhora, de forma a evitar que o sono do
enfermo fosse perturbado pelas dores. Embora o resultado desse
procedimento fosse também paliativo, pois esse negociante
voltava a sofrer de modo intermitente com as dores e a inflamação
causadas pela dermatite, em um cenário social carente de
assistência médica, a conquista de sono regular era o principal
êxito da terapêutica caseira empregada por Antônio Vieira dos
Santos. A respeito de episódios ocorridos em junho de 1851, o
memorialista destacou:

Em 7 [de junho] Sabado de manhã tirei os emplastos e continuei

358
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

todo o dia a por pannos seccos sobre as partes affectadas estes


inflamarão as partes a um ponto excessivo com extraordinario
corrimento com mtas dores e picadas insuportáveis em ambos os
pés. De n. se botou os emplastos mas a inflamação não abrandou
no pé esquerdo pasando muito encommodado té as 10 horas da
n. e botandose o segundo sempre se abrandou algua coisa e pude
dormir o resto da noite (SANTOS, 1851, p. 248).

Nesse âmbito, as passagens derradeiras do texto


memorialístico de Antônio Vieira dos Santos evidenciam que a
rotina do tratamento das enfermidades desse negociante tinha
como objetivo central mitigar as dores e reduzir a inflamação
das pernas. Em última instância, a terapêutica caseira desse
indivíduo consistia em um conjunto de medidas para abrandar
circunstancialmente os sintomas da dermatose. Nos momentos
em que esse método paliativo malograva, o enfermo tinha o
sono afetado pelas dores. Assim, conter o avanço da inflamação
e impedir que ela causasse maiores distúrbios em sua fisiologia
era o objetivo crucial da terapêutica caseira executada pelo
mencionado negociante.
A informação transcrita a seguir evidencia que a falha do
método curativo causava malefícios tais como a insônia. Essa
falha criava uma situação na qual os incômodos físicos estavam
presentes em todos os momentos da rotina de Antônio Vieira
dos Santos. Leia-se, pois, a passagem do texto memorialístico
concernente a episódios que datam do mês de junho de 1851:

Em 13 [de junho de 1851] Sesta, desde m. ate ao ponto que a


Lua foi cheia as 3 da tarde estiverão bem doloridas as pernas
mas depois disso moderarão e dormi bem de noite. Neste dia
não tomei o cozimento da batata e sim limonadas de laranja por
cauza do defluxo. Em 14 Sabado, neste dia inda continuou alguns
corrimentos e latejamentos e como botase unguento no peito do
pé dirto este inflamouse e ate depois da meia noite não dormi com
dores e incommodado, e só hum bocado ao romper do dia. Em 15
Domingo inda continuarão os escorrimentos com os emplastos, e

359
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

banhos d’ágoa salgada, mas de noite pasei sofrivelmente quazi sem


dores e pouco corrimento Na noite deste dia pasei encommodado
ate depois da meia noite com inflamação do pé direito sem poder
dormir; e só soceguei um bocado ao amanhecer. (SANTOS, 1851,
p. 249-250).

Tais reminiscências consistem em indícios de que um


tratamento de enfermidade, na vila paulista de Morretes de meados
do século XIX, consistia na ingestão de remédios preparados à
base de plantas e na adoção de uma dieta alimentar, a qual era
modificada em virtude do não desaparecimento dos sintomas da
moléstia. Nesse quadro, verifica-se que a terapêutica empregada
por esse indivíduo era marcada por procedimentos caseiros,
tais como a feitura de emplastos e a ingestão de remédios
recomendados por médicos ou produzidos por curandeiros.
Porém, o consumo desses remédios era interrompido pelo próprio
enfermo diante do agravamento de seus padecimentos.
Assim, os métodos curativos empregados nessa sociedade
eram essencialmente paliativos, pois permitiam aos enfermos um
circunstancial abrandamento dos sintomas das suas doenças.
Em última análise, esses métodos curativos eram direcionados
a minorar dores crônicas. Ao mesmo tempo, outro objetivo dos
tratamentos caseiros era evitar que a enfermidade causasse
prejuízos à fisiologia. Por consequência, era amplamente
realizada a adoção de remédios purgativos.

Considerações finais

A historiografia tem dedicado atenção aos impactos das


epidemias nas províncias e às políticas formuladas em razão
dessas epidemias. Ao mesmo tempo, tem-se avançado na
produção de um conhecimento sobre as circunstâncias que
engendraram a criação de cursos de cirurgia e de medicina no
Brasil, do fim do período colonial ao princípio da época imperial.
Ainda, os estudos históricos reconhecem a disseminação das
artes populares de cura na formulação de métodos terapêuticos
no Brasil oitocentista.

360
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Contudo, a historiografia pouco avançou no estudo sobre


as implicações das terapêuticas caseiras empregadas do Brasil
no mencionado período. Assim, a investigação desenvolvida no
presente artigo teve a finalidade precípua de evidenciar, a partir
do caso de uma família de origem portuguesa radicada no litoral
do atual estado do Paraná, o aspecto difuso de uma terapêutica
caseira, os distintos agentes envolvidos na elaboração dessa
terapêutica e os impactos nas mudanças na condução de um
tratamento.
Em resumo, os textos memorialísticos de Antônio Vieira
dos Santos comportam evidências sobre as características e os
reveses dos métodos terapêuticos desenvolvidos pelos habitantes
das pequenas sociedades provinciais. Mais especificamente,
esses textos contêm evidências atinentes à terapêutica das
moléstias de membros de elites locais, que possuíam maiores
condições econômicas para obter o acesso regular aos serviços
dos médicos.
O estudo dos aludidos textos permite a sustentação de dois
argumentos. Primeiro, verifica-se que a busca pelos préstimos
dos médicos era realizada por membros de elites locais de área
litorânea do Brasil Meridional. Para tanto, eles empregavam os
seus recursos econômicos para consultar esses profissionais, bem
como para se deslocar até os municípios nos quais os médicos
atendiam.
Entretanto, essas elites não concediam primazia aos
conhecimentos desses profissionais em relação aos conhecimentos
oriundos das artes populares de curar. Antes, o método terapêutico
adotado de forma mais frequente pelos Vieira dos Santos era
marcado pela junção de saberes da medicina erudita e os saberes
de indivíduos que dominavam as formas populares de cura.
Nesse quadro, eram distintos os perfis sociais e econômicos
dos indivíduos que auxiliaram Antônio e José Vieira dos Santos
na elaboração de uma terapêutica caseira. Mais precisamente,
ambos os enfermos acataram sugestões fornecidas, por exemplo,
por indivíduos que atuavam como curandeiros, produtor de erva-
mate e alfaiate.

361
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 335-365, jul./dez. 2017

Segundo, compete salientar que havia ocasiões em que


o próprio enfermo era o árbitro principal do tratamento de sua
doença. Tal situação foi peculiar ao caso de Antônio Vieira dos
Santos. Ele detinha a prerrogativa de adotar ou abandonar
métodos terapêuticos, os quais eram aprendidos por meio da
leitura de manuais de medicina e contato com curandeiros
e amigos. O tratamento de saúde empreendido por aquele
português era marcado por contínuas tentativas de aplacar as
dores decorrentes de uma dermatose. Porém, o principal resultado
desse tratamento consistia em abrandar momentaneamente os
incômodos provocados pela moléstia.
Dessa maneira, uma característica da terapêutica caseira
adotada em sociedades provinciais era o ecletismo. A adoção
de remédios sugeridos por diferentes fontes e a irregularidade
da execução dos métodos curativos eram evidências desse
ecletismo. Os alívios episódicos dos padecimentos físicos
consistiram nos principais efeitos do tratamento ao qual Antônio e
José Vieira dos Santos foram submetidos. Contudo, a dificuldade
para atingir esses alívios implicava novas mudanças no método
terapêutico. Essas mudanças, portanto, consistem em uma
evidência do aspecto acidentado do desenvolvimento de uma
terapêutica caseira no contexto da sociedade litorânea do Brasil
oitocentista.

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Federal Fluminense, Niterói, 2007.

Recebido em julho de 2016.


Aprovado em outubro de 2017.

365
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-14

SEBASTIÃO:
O SANTO DARDEJADO EM TERRAS DE GOIÁS

Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira*


Maria Clara Tomaz Machado**

RESUMO: O presente trabalho busca a compreensão das


experiências dos sujeitos do interior goiano, em especial das
áreas rurais afetadas pela UHE Serra do Facão a partir das
práticas festivas religiosas tendo como santo homenageado São
Sebastião. O foco da análise serão as práticas e saberes rurais
perpassando pela religiosidade desses atores como expressão
de seus modos de vida para que possamos analisar como esses
fatores fazem emergir as relações de cooperação, vínculos
identitários, além de suas variadas formas de sociabilidades,
aquelas que são marcas culturais bastante significativas e
difundidas durante as comemorações, sejam elas devocionais
ou não.

PALAVRAS-CHAVE: Práticas festivas. Sociabilidade.


Religiosidade.

* Graduação em História pela Faculdade de Ciências Integradas do Pontal,


Universidade Federal de Uberlândia (FACIP/UFU). Mestre e doutorando em
História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS)
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Supervisor do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), Subprojeto História
(Campus Santa Mônica), da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
** Graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU),
mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo
(USP). Professora Titular do Instituto de História (INHIS) da Universidade
Federal de Uberlândia, integra a linha História e Cultura, do Programa de
Pós-Graduação em História da UFU. Coordena o Laboratório de Pesquisa
em Cultura Popular e Vídeo Documentário (DOCPOP).

367
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

ABSTRACT: This study seeks to understand the experiences of


subjects goiano interior, especially in rural areas affected by the
UHE Serra do Facão from religious festive practices having as
honored saint San Sebastian. The analysis of the focus will be
rural practices and knowledge permeating the religiosity of these
actors as an expression of their way of life so that we can analyze
how these factors make emerging cooperative relations, identity
links, and its various forms of sociability , those cultural brands
very significant and widespread during the celebrations , whether
or not devotional.

KEYWORDS: Holiday Practices. Sociability. Religiousness.

[...] ao viver em comunidade ou sociedade, os saberes e culturas


que permeiam essas relações são repassadas às gerações
seguintes mantendo, de certa maneira, a reprodução da vida em
sociedade, garantindo assim o sentido de viver em comunidade.
Sentidos os quais são culturais e são compartilhados entre famílias
e vizinhanças. (VENÂNCIO, 2008, p. 110).

Muitas das vezes nos levamos por uma interpretação


limitada da palavra compartilhar. Na vida rural, esse compartilhar
se confunde literalmente com a vida e o vivido de cada sujeito,
de cada família, de cada prática festiva ou momentos de dor e
sofrimento. Podemos dizer que os sentimentos de vazio e de
incerteza foram os mais compartilhados entre os moradores de
uma pequena região do sudeste goiano.
Naquele “pedaçinho de terra”, inúmeros trabalhadores
viram o suor de seu labor diário se perder em uma imensidão de
água em nome do progresso. Assistiram suas memórias e vidas
afundarem em águas profundas, até que de repente tudo aquilo
não passasse de meras lembranças que, quando acessadas,
levavam a momentos de lágrimas e emoções indescritíveis.
Durante um período aproximado de vinte e quatro meses de

368
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

realização do “Programa de preservação do patrimônio histórico-


cultural”, intitulado Caminhos da memória, caminhos de muitas
histórias1, uma iniciativa interdisciplinar envolvendo docentes da
Universidade Federal de Uberlândia (Campus Pontal – Ituiutaba-
MG e Campus Santa Mônica – Uberlândia-MG), percorremos
vielas e estradas à procura de respostas. No entanto, a cada
porteira aberta, éramos bombardeados por inquietações e
inconformismo. Nesse lugar, encontramos comunidades repletas
de uma riqueza cultural que permeia o mundo rural e com sujeitos
que construíam seus vínculos com o lugar, tendo justamente em
suas práticas culturais e religiosas o elo revigorante de múltiplos
sentimentos, entre eles o de pertencimento.
À medida que caminhávamos pelas “estradas vicinais” que
ligavam não só uma propriedade a outra, víamos entrelaçar vidas
e histórias, o sertão goiano foi se revelando familiar, instigante e
envolvente. Às margens do São Marcos, seja ao som do vento
balançando as folhas da vegetação, dos pássaros ouvidos
à distância ou ao embalo das águas que iam inundando de
incertezas a vida dos moradores, fomos reconstituindo, por meio
das vozes daqueles que se faziam presentes, as histórias do
lugar, as expectativas, os medos e as angustias de um futuro já
presente. E, no agora, os sentimentos fluíam, trazendo do fundo
do passado as histórias vividas e ressentidas.
Sentimentos presentes e evidentes que se tornaram marcas
na construção do livro e de um filme que revelaram as memórias
e as histórias dos sujeitos sociais da região (KATRIB, 2010), ao

1
O estudo se deu entre os anos de 2008 e 2010, nos municípios afetados
pela construção da barragem da Usina Hidrelétrica Serra do Facão, em
Goiás e Minas Gerais, a saber: Catalão, Campo Alegre de Goiás, Cristalina,
Davinópolis e Ipameri, em Goiás; e Paracatu, em Minas Gerais. Das várias
ações compensatórias, participamos, dentro do Grupo de Pesquisa, daquela
que trata da preservação do patrimônio histórico cultural da área atingida
pelo consórcio dessa usina, cujos produtos acadêmicos foram a produção de
um livro, de um filme, dos museus abertos, dos relatórios e da organização
documental inventariada com banco de dados de imagens, bibliografia,
história oral, assim como levantamento de espécies da flora e da fauna.

369
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

passo em que aqueles que até então estavam esquecidos ou


marginalizados por uma sociedade que privilegia o progresso
desmedido se tornam agentes de sua própria história,
rememorando, revivendo e muita das vezes desabafando como
se gritassem por socorro. Desta forma, tanto o livro quando o filme
se tornaram mais do que resultados de uma pesquisa histórica e
cultural, mas também um espaço de reflexão para entendermos
as imposições que se aplicam a sujeitos sociais sem o mínimo de
sua participação no projeto que se quer progressista, mas de fato
é a expulsão premeditada de suas terras. A negociação possível
é dada pelo preço de mercado plausível pelos interesses em
questão. As transformações sempre irão existir – e devem –, mas
a questão é respeitar o seu tempo, levando-se em consideração
os sentidos e as relações humanas que nelas se encontram
imbricadas.
Para este texto, como interlocutoras do viver em comunidade,
elegemos as práticas festivas, devocionais ou não. As práticas
festivas nos revelam as transformações e caminhos percorridos
por cada família e sujeito durante o período de construção da
Usina Hidrelétrica, porque, assim como a cultura, possuem um
sentido muito fluido. Elas se fazem bem mais que uma mera
comemoração dentro das várias representações culturais, pois
falamos de uma prática que entrelaça vivências, experiências,
entre muitos outros fatores que se englobam no que chamamos
de “festa”. Segundo Carlos Rodrigues Brandão, as festas vão
além do cotidiano, interpenetram-se na vida humana, tornando-
se parte dela, pois “cada vez mais a festa não quer tanto se opor
à rotina, ao trabalho produtivo, mas sim invadir a política, o lado
sério, as relações que entre si os homens trocam.” (BRANDÃO,
2010, p. 21).
No interior goiano, esse fator se torna claro na ótica desta
análise, principalmente nas áreas rurais, pois uma boa parte dos
moradores ainda sobrevive a partir de uma prática agropastoril
familiar. Sendo assim, essas práticas festivas se tornam cada vez
mais importantes para os sujeitos, para agradecer a boa colheita,
pedir chuva em um tempo de seca ou pedir que a produção do
ano seguinte seja melhor.

370
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

É neste sentido que a vida compartilhada ganha destaque


onde o compartilhar significa viver coletivamente os importantes
momentos e as comemorações pessoais. É por isso que as
práticas festivas constituem o laço que interliga os moradores
de um determinado lugar, estreitam as relações entre as famílias
e interrompem as labutas diárias e o “corre-corre” da lida
cotidiana. Durante as festas, os sujeitos participam ativamente
da organização do evento, das rezas, dos bailes, dos leilões;
e, ao frequentar esses espaços, reforçam com a comunidade
os laços de amizade, de solidariedade, de sociabilidades e de
compromisso com o sagrado, pois a fé, neste caso, compõe uma
religiosidade popular que se inova a cada instante sem perder
sua matriz “residual”. “Residual” porque

certas experiências, significados e valores que não se podem


expressar ou verificar substancialmente, em termos da cultura
dominante, ainda são vividos e praticados à base do resíduo –
cultural bem como social – de uma instituição ou formação social
e cultural anterior. (WILLIAMS, 1989, p. 125).

Dentre as relações presentes nas práticas festivas, é


válido ressaltar ainda a busca incessante pela visibilidade e
pela promoção social que se fazem presentes nos eventos,
configurando tais práticas ao mesmo tempo como um campo
de disputas, sejam elas políticas, econômicas ou sociais. É um
“jogo jogado” pelos atores sociais, em que geralmente o discurso
distancia-se da prática no mesmo momento em que o papel real
se confunde com o construído. São relações que ultrapassam os
limites da prática festiva e tornam-se parte do íntimo e pessoal,
surgem dentro da festa e passam a ser perceptíveis também fora
dela, durante as relações de convivência e trabalho. Na versão
de Bataille, “a festa é a fusão da vida humana. Ela é para a coisa
e o indivíduo o cadinho onde as distensões se fundem ao calor
intenso da vida íntima” (BATAILLE, 1992, p. 74).
Sendo a festa parte intrínseca da vida humana, as relações e
emoções constituídas e/ou vividas pelos sujeitos fazem parte de

371
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

um “jogo de sentidos”, no qual sentimentos são colocados à prova


e os seus diversos participantes no mesmo patamar de igualdade,
pois as festas revigoram energias, vidas. Elas proporcionam
momentos revigorantes para aqueles que labutam o ano todo
pelo seu sustento. As festas são a vida, ou melhor, a alegria de
viver! (KATRIB, 2009).
Marta Abreu nos lembra que há um grande risco de
trabalharmos com o conceito “religiosidade popular”, por
considerar que “traz um risco de se reduzir a complexidade do
fenômeno religioso, simplificando a análise das relações entre
religião e sociedade, religião e classes sociais, e finalmente
religião e história” (ABREU, 1994, p. 84). E ainda reconhece que:

As expressões/conceitos cultura popular e religiosidade popular


devem ser propostas em função de um reconhecimento evidente
que, no passado, as pessoas pobres, simples, comuns, escravos,
negros e imigrantes pobres, pensavam, agiam, criavam e
transformavam seu próprio mundo (valores, gostos, crenças) e tudo
o que lhes era imposto, em função da herança cultural que recebiam
e de sua experiência. Como agentes de sua própria história (cultura
e religião) homens e mulheres das camadas pobres criam, partilham
e se apropriam de valores, hábitos, atitudes, crenças, músicas e
festas religiosas (neste sentido, cultura popular e religiosidade
popular não são entendidas simplesmente como um conjunto de
objetos ou práticas originário dos setores populares). (ABREU,
1994, p. 85).

O fato é que, mesmo sendo uma prática religiosa (re)criada


pelos sujeitos e que difere dos ritos institucionais, mantém
características e ritos inerentes a esse catolicismo vertical, enfim
mantém-se um “residual” intrínseco. Ocorre o que podemos
chamar, neste momento, de uma hibridização religiosa a partir de
uma multiplicidade de pertencimentos, mas com características e
ações reinventadas, principalmente pelos moradores do interior
brasileiro. Neste viés, devemos levar em consideração que o
catolicismo oficial é muita das vezes apropriado pelos anônimos

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

sociais que praticam o chamado catolicismo popular/rústico/


rural, e aí, em vários momentos, os papeis se invertem. Nesta
perspectiva, Azzi confirma:

A religião popular enquanto catolicismo rural, herdado do instituto


do padroado e da noção de Cristandade, caracteriza-se pela
presença marcante dos leigos como estimuladores da vida religiosa
(irmandades, romarias, ermidas, devoções, procissões, festas),
entrando em conflito com a imposição da romanização, isto é, do
catolicismo tridentino, que privilegia a autoridade sacerdotal. (AZZI,
1997, p. 10).

A partir da maneira como esse catolicismo rústico e rural foi


se projetando ao longo de séculos no Brasil, percebemos uma
lógica própria de devotamento aos diferentes santos católicos se
fortalecendo de forma diversa em cada região do país, obedecendo
à diversidade étnica e cultural da população (CHAUÍ, 2007).
Mauro Passos vai além. Para ele, há um caminho natural
entre a prática religiosa “tradicional”, datada dos primeiros três
séculos, perpassando pelo surgimento de formas híbridas. Um
momento em que a cultura e a fé se expandem de uma forma
“reformada” até algo novo, em que ambas tentam coexistir, seria
uma forma “renovada” daquilo que denominamos como práticas
religiosas populares (PASSOS, 2002). Ainda, segundo ele, “a fé
pode ser lida como uma alternativa para expressar os sentimentos
e ativar a memória coletiva”, pois:

O catolicismo popular e as tradições populares, com suas diversas


formas de expressão festiva, são promessas de comunidade.
Correntes que unem os membros de um grupo. Labirintos da
saudade. [...] A festa memorada fertiliza os corpos para um coletivo
reunificador. Faz brotar o vigo da esperança. Partilha segredos e
desejos. Endereça caminhos no horizonte da espera. (PASSOS,
2002, p. 190).

Contudo, devemos tomar cuidado com a forma com que


abordamos este assunto, pois:

373
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

Penetrar na esfera da religiosidade popular é, para o historiador


acostumado com fontes documentais que atestam transformações,
mudanças, andar em terreno movediço. Religiosidade e fé são
práticas culturais observáveis, mas situam-se no âmbito da esfera
discursiva e não dos resultados. Desse ponto de vista, fé é uma
questão de se possuir, não de se provar. A temática não permite
possibilidade de análise através do saber científico construído.
Não há regras que garantam a produção do fenômeno, sua
repetição e verificação. Por isso, cabe a ressalva: se quisermos
compreendê-la, há necessidade de se desvencilhar dos modelos
oficiais, intelectualizados, que, de cima para baixo, a rotulam como
crendices e/ou superstições. (MACHADO, 1998, p. 113-114).

Nessa perspectiva, a religiosidade popular se abre como um


campo de investigação privilegiado para aqueles que a entendem
como práticas e representações culturais coletivas, presentes nas
experiências concretas de vida dos indivíduos e, portanto, parte
constitutiva do social, no qual uma teia complexa de relações as
inscreve. (MACHADO, 1998, p. 115).

Sendo assim, seria possível desvincular as práticas festivas


das práticas religiosas populares? Acreditamos que não, pois
estão inseridas em um universo em que Carlos Rodrigues Brandão
denomina enquanto “experiência religiosa e/ou experiências
simbólicas coletivas”, o que permite ressaltar que “a festa invade
a vida humana”, interpenetra-se na vida, tornando-se parte,
fundamental para a manutenção e para o sentido da mesma.
Para analisar tal discussão, podemos trazer neste momento
as festividades rurais no entorno do Rio São Marcos, no estado
de Goiás, em especial na comunidade rural de Mata Preta,
município de Catalão-GO, onde se cultua São Sebastião2 pelos

2
São Sebastião é um santo, cuja trajetória de vida se mistura com a proteção
do ser humano e do que o mantém vivo. É considerado por muitos protetor
contra pestes, fome e guerra. A devoção ao santo dardejado foi trazida ao
Brasil pelos lusos ainda durante o processo de colonização. Para saber mais,
consultar Anderson A. G. de Oliveira (2014).

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

mais variados motivos ou experiências vividas pelos sujeitos. O


apogeu da prática festiva religiosa encontra-se durante a reza – o
terço cantado –, momento em que as emoções transparecem e
cada um demonstra a fé à sua maneira.
O que pretendemos afirmar é que os moradores do interior
goiano, em especial da área pesquisada, possuem, como
protagonistas das festas, seus santos devocionais. São Sebastião
surge neste caso por ser um dos mais festejados, principalmente
pela região possuir como uma das características principais uma
economia familiar diretamente ligada à terra. A missa (um rito
praticamente fechado sem grandes modificações), rezada pelos
padres, nem sempre se torna o ápice desses dias festivos, onde
o importante são as práticas recriadas por esses sujeitos – como
o terço cantado –, as quais classificamos como religiosidade
popular, catolicismo rústico e/ou rural, entre outras nomenclaturas
usadas pela academia por se fazerem diferentes da prática
dominante (BRANDÃO, 2007).
As festividades em Goiás são expressões dessa pluralidade.
No sudeste goiano, o calendário festivo-devocional mantido pelas
comunidades transcorre independente da presença oficial do
clérigo, pois os rezadores da localidade assumem o papel de
interlocutores com o sagrado. São eles que atiçam o reavivar da
fé local e unem as pessoas em torno da realização dos festejos.
O destaque que damos a São Sebastião decorre de sua
peculiaridade, especialmente sua realização, a princípio, na área
rural. Recebe influência direta das Folias de Reis, tendo o mártir
como principal intercessor junto a Jesus Cristo. A região de Mata
Preta, situada a cerca de vinte quilômetros da área urbana do
município de Catalão-GO, recebe todos os anos a peregrinação
de fé dos foliões de São Sebastião.
Segundo a memória local, as festividades em relação ao
mártir se iniciaram entre os anos de 1950 e 1960, quando ainda
eram utilizados carros de boi para o transporte, mas, com o
passar dos anos e as modificações promovidas pelo progresso,
como a chegada do asfalto, tal meio de transporte foi proibido
nas rodovias, as quais cortam grande parte das estradas de

375
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

acesso às fazendas que compõem essa região. A rodovia, que


deveria beneficiar a região, tornou-se um marco divisor das
comunidades e das famílias devotas a São Sebastião. Este não
seria o primeiro obstáculo que a fé e a devoção dos moradores
da região enfrentariam. Mas, ao invés de esmorecer diante do
problema, terminaram por se adequar com novas formas de
deslocamento e acesso às demais fazendas que todos os anos
recebiam o santo em suas residências.
Os festejos na região da Mata Preta iniciam-se no fim de
semana mais próximo ao dia 20 de janeiro, todos os anos, com
o deslocamento dos foliões que moram na cidade para o campo
ainda na quinta-feira. Ali, um devoto e/ou devota já os aguarda
em sua residência, com uma farta e bela janta. Antes de saciarem
a fome, direcionam-se todos para o altar montado geralmente na
sala da residência e, ao som dos estouros do foguete, iniciam um
admirável e emocionado terço com a presença dos foliões, donos
das casas, vizinhos e convidados. Os participantes nos lembram
que, nesse momento, antes de tudo, seu compromisso é com São
Sebastião. Vários são os pedidos durante o terço, mas o principal
deles é que o mártir os ilumine nos dias seguintes durante sua
peregrinação de fé.3
Antes de se servir a janta, ocorre mais uma pausa, momento
de agradecer a refeição e pedir a São Sebastião que multiplique
o alimento daquela mesa, para que a família que os recepciona
nunca passe dificuldades, e que os livre da peste, da fome e da
guerra. E a noite não se encerra por aí. O santo (representado
por sua bandeira) dorme na casa em que o jantar foi oferecido,
enquanto os foliões se direcionam à casa do festeiro responsável
por sua estada ao longo dos dias festivos até a entrega da
bandeira.

3
Atualmente, em decorrência das transformações de tal prática, o ritual tem
um período de realização de três dias e se aproxima muito da Folia de Reis.
Contudo, apesar de possuir uma estrutura básica aos moldes daquela que
homenageia os Santos Reis, essa prática se modifica nas letras das ladainhas,
que quase sempre entoam pedidos de proteção e/ou pedidos diretamente
direcionados aos donos das residências, que por ventura tenham votos para
o santo dardejado ou que passaram por algum tipo de flagelo.

376
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

Com o raiar do sol no dia seguinte e o primeiro canto do galo,


lá estão todos de pé na casa onde o santo pousara e preparados
para seguirem com a folia. Antes de saírem, mais um pedido de
proteção, mais uma demonstração de fé. Diferentemente das
décadas de 1950 e 1960, quando os foliões se deslocavam em
carros de boi, agora eles se agrupam na boleia de caminhões
em direção à residência em que São Sebastião pousou. Após um
longo e farto café, a folia agradece a estada e segue percorrendo
um longo caminho, fazenda após fazenda, louvando e pedindo
proteção para as famílias, plantações e animais das casas
visitadas. Processo que se repete até à chegada do almoço,
onde a cantoria se estende, pedindo para que ali possam se
alimentar. Não é uma regra, mas quase sempre o jantar e o almoço
servidos aos foliões, assim como para qualquer pessoa que ali
quiser se alimentar, é fruto do pagamento de votos ou se faz em
atendimento à solicitação do festeiro. Percebe-se que poucas são
as alterações nos endereços em que se alimentam todos os anos
e, se há alguma regra, ela parece estar ligada à fartura.
Os dias subsequentes, até o domingo, dia da entrega da
bandeira, são da mesma forma, percorrendo os caminhos vicinais
de muitas histórias de fé e de emoção. Ali, no momento em que
o capitão apita e dá início à cantoria, a vida pessoal, em grande
parte de pessoas simples, se confunde com a prática festiva,
resultando em lágrimas e lembranças principalmente de pessoas
que já se foram. Como nos revela Dona Elza:

Uai, primeiramente que a gente é devoto, né? De São Sebastião e


que a gente gosta. [...] É igual que cês viu, eu chorei muito, porque
meu pai fazia parte de uma folia, né? Toda vez que eu vejo cantar
eu emociono, porque eu lembro dele e ele já faleceu. [...] Cunhado
folião, sobrinho. Igual meu pai, era doente, mais acompanhou, até
falecer ele acompanhava. Então a gente lembra muito dele nesses
momento, né? Que toda vez... assim, até no DVD que a gente vai
por pra assistir eu quase num gosto de colocar, porque eu lembro.
Aí, quando eu vejo cantano, assim, é o mesmo que eu visse ele
junto. Então, a gente fica emocionado. Não triste, é porque alembra,

377
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

e a gente emociona, né? Mais aí é muito bonito, a gente gosta muito.


Isso faz parte da vida da gente desde de pequeno, né? [...] Na hora
que começou a cantar aqui, agora, me marcou muito, porque eu
lembrei... reviveu tudo. Pensa tudo. Que... é que... como a gente
via ele, né? Cantano, acompanhano... Pra ele, aquilo era tudo,
porque ele amava andar assim, gostava demais. [...] Era a paixão
dele. Isso era a paixão dele, do meu pai. Deixava tudo que ele tava
fazendo pra acompanhar. Quando... quando tinha a folia da região,
ele deixava tudo e acompanhava. Mesmo doente, às vezes tinha
vez que saía da folia, ia pro hospital, internava, voltava, porque ele
tinha o problema, né? Inclusive faleceu por causa disso. E a gente
alembra muito!. (Entrevista realizada com Elza Francisca Braga de
Souza, região da Mata Preta, Catalão-GO, em janeiro de 2009).

Esse é um fato recorrente, principalmente por se tratar de


uma região em que todos se conhecem ou pertencem ao mesmo
núcleo familiar. Nesse viés, as histórias de vida e a Folia de São
Sebastião tornam-se o elo de ligação, pois, ainda que de modo
indireto, todos da comunidade fazem parte dessa prática festiva
religiosa, especialmente se levarmos também em consideração
que mais de 90% desses moradores possuem uma prática
agropastoril familiar.
Há vários anos consecutivos que o festeiro responsável pela
Folia de São Sebastião é o mesmo, o Senhor Cacildo Rodrigues
Duarte, pequeno proprietário na região da Mata Preta. Segundo o
próprio, ele não realiza a festa por voto ou obrigação, e sim pela
devoção que tem a São Sebastião. E é sua filha, Maria Helena,
quem geralmente recebe os foliões todas as quintas-feiras
que antecedem o início da peregrinação da folia em sua casa,
oferecendo-lhes um farto jantar e um pouso para São Sebastião.
Como festeiro, o Senhor Cacildo tem por obrigação fazer
o convite a toda a comunidade e angariar fundos ou doações
por meio de alimentos e/ou animais que possam ser utilizados
durante o jantar do domingo, após a entrega da bandeira e do
terço cantado. Para além disso, cabe a ele também organizar o
cronograma de fazendas que irão percorrer por dia e em quais
delas será o almoço e o jantar dos foliões.

378
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

Ela começou de voto, com um tal de Geraldim (Geraldo), ele era


um coitado [humilde]... Num tinha ela aqui no lugar não... [...] Ele
tinha uma doença e ele, acho que ele falou que, se sarasse, se
São Sebastião ajudasse que ele sarasse, que ele ia fazer a folia
de São Sebastião. Não tinha ela aqui nesse lugar. Aí, ele sarou
e fez... Aí, ele pediu um almoço. [...] Aí, eu cheguei no Senhor
Geraldim e perguntei que dia que era pra nóis dar o almoço ou a
janta. Ele era gago, né? Gaguejou lá e falou: “- É amanhã...” Eu
falei: “- É almoço ou janta?” Ele: “– É almoço...” Então, pode espera
ocêis? Pode... Aí, quando deu onze hora, eles chegou, o almoço
tava pronto. Era poquinha gente, só o terninho mesmo, capaz que
não tinha ninguém acompanhano... [Só os folião mesmo – voz de
Dona Maria] E o motorista... Eu não conhecia ninguém, a Maria
não conhecia... Aí... [...] Gabrielim (Gabriel – Capitão do terno na
época) almoço. Pôs doce, eles comeu. Pôs café, eles bebeu. Aí,
ele me chamou: “ – Vem cá!” Tinha um paiolzim alí, igual esse aqui,
só que era lá... “– Vem cá, ocê! Cê vem cá um poquim...” Foi ele e
o velho Bastião (Sebastião) que era o velho palhaço... “– Oh, aqui
não tem folia não?” Eu falei: “ – Não!” “ – Ocê vai pegar essa folia
pra fazer...” Eu falei: “– Eu?! “- É!” [É, nóis vai passar o ramalhete,
que naquele tempo era um gaim de flor – voz de Dona Maria] É,
era um galho de flor... Mas eu felei: “– Mas nóis num tem suficiência
pra isso não...” Ele falou: “– Cê tem fé?” Falei: “– Tenho!” “– Cê
tem devoção com o santo?...” “– Tenho!” Aí, nóis conversô lá um
poquim e ele falou: “- Chama a esposa...” Eu chamei a Maria, ela
veio, eles falou a mesma coisa... Aí, eu falei: “- Se ocêis vê que
nóis é suficiente... nóis faz...” é... Nóis saiu daqui e foi de a pé lá
perto daquela venda, do Geraldim, de a pé debaixo de chuva pegar
ramalhete... Aí, nóis fez ela e passou pro Divino aqui... Depois,
passô pro meu cunhado, que é o Zé, passou pro Juarez, passou pro
Ora... Aí... o Leandro Camilo fez... Foi no Aguinaldo, ele enterrou...
E óia aqui pr’ocê vê... Ele tomou castigo mais a muié... Aí, ela
ficou... é um ano ou dois? [Dois ano – Dona Maria] sem fazer... Aí,
o Arvim mais o tio Arcanjo, um barbudo que é meu tio [...], veio cá
num dia de serviço... “- Se ocê adivinha o que nóis vei fazê aqui...”
Eu falei: “- Passear...” “– Não, meio de semana nóis num passeia.”

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

Disse eles. Eu falei: “– Não, passeia! A gente passeia quarqué dia


na casa do amigo...” Brincano com eles... Aí, Maria arrumou café,
deu eles... Eles falou: “– Oh! nóis vei cá conversar com ocê e Dona
Maria pra pegar a folia de novo...” “– Mas como?” Aí, eles explicou
tudo... “– Ceis vai lá comigo?” “– Vo...” Chegou lá o home falou:
“– Não, eu não vou fazer, por causa que condição eu não tenho...
Mas eu entrego os trem...” E já merguiou pra dentro pra buscar os
trem. Ele (o capitão da folia) falou: “– Não! O senhor vai levar lá
na casa dele” [...] É igual aqui, aonde nóis almoçou, aquela outra
casa que nóis foi lá, aquele gordo [...] Ele falou assim pra mim...
Falou pra Maria que quer fazer ela um ano... É voto, num é Maria?
[É – Dona Maria] pois é... é de voto! Eu vou fala pra ele: “– Ocê vai
fazer?!” Se ele fala, eu vou... [Se ele for fazer, é só um ano] É... O
que eu puder te ajudar, eu te ajudo... E a Maria... O que cê precisar
de mim e tiver nos meus arcance, eu te ajudo... Mais, se ocê não
for fazer, quinze dia antes cê me devorve ela que eu vô fazer, Deus
ajudano... Com os poder de Deus, de São Sebastião e dos meus
amigo, eu faço... E outra... Agora, ocê que quer pagar seu voto...
cê pode fazer! E ajudou ele no que eu puder... Aí, nóis pega ela de
vorta... Aí, enquanto nóis guentar e Deus der força nóis vai fazer e
os amigo... [...] Aí, outro que quiser fazer de voto nóis passa pra ele.
[Enquanto a gente tive aguentando, né? Porque a gente vai ficano
véi, né – Dona Maria]. Aí, ele faz... Aí, ele faz e devorve pra nóis
de novo... [Deus ajudano enquanto a gente tivee... – Dona Maria]
Morre... Deus ajudano, enquanto nóis puder dá um coicim, nóis
num vai deixar ela morrer não... Eu tenho muita devoção com São
Sebastião! [...]. (Entrevista realizada com Senhor Cacildo Rodrigues
Duarte e Dona Maria Luiza Duarte4, em janeiro de 2013).

Como se percebe na fala do próprio Senhor Cacildo, a festa


passou pelas mãos de várias pessoas antes de ficar sob sua
responsabilidade e de Dona Maria, sua esposa, incumbidos de

4
Senhor Cacildo e Dona Maria são festeiros da Folia de São Sebastião há
vários anos e, segundo eles, o voto de realização da festa continuará sempre
respeitado por algum morador da região.

380
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

dar continuidade, em decorrência de uma quebra de corrente,


momento em que um membro da comunidade enterra a festa,
ou seja, não a realiza.
Em 2014, um pedido especial foi feito ao Senhor Cacildo.
Anos antes, Roberto havia solicitado um voto para realizar a
Folia de São Sebastião por um ano, mas vinha prorrogando o
pagamento de tal voto. Em conjunto com sua esposa, Nilda, e
a pedido de sua sogra, Dona Maria, irmã do Senhor Cacildo,
tornou-se responsável pelas festividades deste ano. Por capricho
do destino, Dona Maria veio a falecer ainda no ano de 2013. Tal
fato causou uma grande comoção durante o terço e a entrega
da bandeira no último dia das andanças da folia, pois, ao soar da
sanfona e os acordes do violão, um trecho do canto da folia foi
dedicado justamente a Dona Maria, aquela que sempre estava
presente de forma ativa e que foi de fundamental importância
para o pagamento da promessa de seu genro.

[...]
Vou cantar esse versinho (bis)
pra aquela que não está
Vou cantar esse versinho
pra aquela que não está

(retinta)

Ela está junto de Deus (bis)


lá de cima a nos olhar
Ela está junto de Deus
lá de cima a nos olhar

(retinta)

Foi ela quem te ajudou (bis)


agora ajuda a entregar
Foi ela quem te ajudou
agora ajuda a entregar
[...]

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

Mais uma vez, a emoção toma conta do espaço em forma


de lágrimas que escorrem nos rostos de pessoas simples e de
fé. Como um estalar de dedos, todos se transformam num todo,
numa unidade, onde, mesmo não conhecendo aquele que já se
foi, as pessoas partilham da dor daquela família e demonstram seu
carinho e respeito, estendendo sua mão amiga ou com um simples
silêncio acompanhado de um olhar lacrimejado. Infelizmente não
fora apenas a morte de Dona Maria que abalou a região. Desde
o ano de 2013, uma série de perdas humanas vem ocorrendo na
região, sejam de formas trágicas ou naturais.
Todos os anos, o último almoço é realizado na casa do Senhor
Sinoécio e de Dona Mariana. No fim do ano de 2013, essa família
foi marcada por uma tragédia, a morte de um de seus netos por
afogamento. A princípio, os foliões ficaram apreensivos, sem
saber se eles os receberiam, mas, ao ser questionado, o Senhor
Sinoécio fez questão da presença dos foliões, reforçando sua
devoção e demonstrando a força de sua fé perante o mártir São
Sebastião. Durante todas as refeições, o capitão Diogo sempre
puxava uma oração, agradecendo o alimento, pedindo fartura
e saúde para a família que os recebia, além de louvar a São
Sebastião, suplicando pela proteção contra a fome, a peste e
a guerra – o que também pode significar dificuldades a serem
enfrentadas e combatidas. Nessa ocasião, a oração para a família
do Senhor Sinoécio foi especial:

Senhor Sinoécio, Dona Mariana, pra nós é uma alegria estar aqui
hoje com a folia de São Sebastião. A gente quer pedir a Deus que
abençoe essa casa, abençoe essa família, abençoe esses alimentos
que vamos tomar... Pedimos a Deus que dê força, pra família toda.
A gente lamenta a perca que vocês tiveram, mas é Deus que dá
força, é Deus que dá o consolo pra vocês... Que São Sebastião
possa abençoar essa casa, essa família, que nunca falte o pão
de cada dia nessa mesa, livrando de toda peste, de todo flagelo,
de todo mau e de qualquer perigo... Em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo, Amém... Pai nosso, que estais no céu... [...]
Que o Senhor abençoe a nós e os alimentos em nome do Pai, do

382
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Filho e do Espírito Santo, Amém... Pelos secos e molhados [Deus


seja louvado – resposta dos demais foliões]... E a quem preparou
[Nosso muito obrigado – resposta dos demais foliões]... Viva a bela
mesa [Viva! – resposta dos demais foliões] [...]. (Diogo Gonçalves
Rezende, capitão da Folia de São Sebastião. Oração gravada
durante o almoço na casa do Senhor Sinoécio, em janeiro de 2014).

Logo após se alimentar, os foliões sempre pegam seus


instrumentos e tocam algumas modas, como forma de agradecer
a refeição e se divertir. Naquele ano, acanhados, evitaram repetir
esse gesto na casa do Senhor Sinoécio, o qual pediu ao capitão
que o fizessem, evidenciando mais uma vez a superação e o
agradecimento pela presença dos foliões em sua casa. É claro que
o clima não foi o mais festivo, mas, ainda que momentaneamente,
a dor deu lugar a um belo sorriso no rosto do Senhor Sinoécio,
ele que é calejado pela vida e forte pela fé.
Com o passar dos anos, as festas vêm se modificando, se
(re)criando dentro de (re)significações religiosas, econômicas,
políticas, entre outras, que influenciam diretamente no resultado
do que chamamos de festa. Por esta lógica, devemos levar em
consideração inúmeros fatores. Entre eles, o papel econômico
em relação ao lucro gerado durante os dias festivos; o político,
nos referindo à visibilidade popular e à autopromoção dentro
da sociedade em que se encontram inseridos; além do caráter
organizacional, características constantes e importantes nas
práticas festivas.
Partimos do princípio de que há uma divisão clara nas
formas de realização e na vivência das práticas festivas. No caso
especial da festa de São Sebastião do mundo rural, ela é fruto
de uma prática cultural que segue em ritual cuja essência é a
religiosidade. Porém, a festa conhece outra performance voltada
para o público urbano.
Festas “de” roça designamos aquelas em que as práticas
que as envolvem não sofreram uma transformação a ponto de
modificar as características tradicionais. Claro que as (re)criações
e (re)significações são constantes, pois acabam sendo naturais

383
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

em relação ao tempo vivido. Ou, por outro lado, utilizando-se do


bom português, o “de” levaria a pensar em algo característico
daquele espaço, daquele lugar, que pertence àquela região ou
lugar.
Já as festas “na” roça designamos aquelas em que fatores
externos, principalmente urbanos, influenciaram de maneira
profunda as transformações da prática, levando-a a perder várias
características que denominamos como tradicionais, desde o
sentido devocional ao profano. Aqui, ela se apresenta como uma
verdadeira válvula de escape da vida corrida dos centros urbanos,
uma forma de se distanciar, mesmo que momentaneamente, do
trabalho e das cidades, da rotina. É quase uma festa nostálgica.
Uma verdadeira reestruturação praticamente geral na prática
festiva, onde o “na”, neste caso, nos levaria a pensar em uma
festa que simplesmente é realizada naquele espaço rural, a
roça, banalizando o sentido original das práticas religiosas rurais,
principalmente seu caráter devocional, pois agora o ápice da festa
é a diversão simplesmente, não a troca e a coexistência da fé e da
sociabilidade. Desta forma, o profano supera o sagrado, o que a
descaracteriza quanto ao tradicional, nos levando a considerá-la
como algo passível de diferentes sentidos, como afirma Mônica
Chaves Abdala:

Saberes e práticas cotidianas são, portanto, reapropriados,


se tornam trabalhos, meios de ganhar vida, adequando-se
às exigências e preceitos institucionalizados no momento
contemporâneo. Como parte da dinâmica cultural de nossas
sociedades, essas são expressões dos sentidos de continuidade
para os atores envolvidos no processo, nas suas diferentes posições
como vendedores, consumidores, funcionários de órgãos públicos
que apoiam pequenos produtores, aqueles que organizam as
festas, os que delas participam e os que as apoiam como agentes
culturais ou pesquisadores. Possíveis continuidades nesse turbilhão
vertiginoso, verdadeiro caleidoscópio de identidades heteróclitas
que são o retrato desse nosso mundo “pós-moderno” [...]. (ABDALA,
2007, p. 107).

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Até o momento em que nos referimos em romper com o


cotidiano, as festas “de” e “na” roça praticamente encontram-se
em patamar distinto de sentidos. O santo é o mesmo, mas, a partir
daí, inúmeros fatores nos levam a colocá-las em lados opostos. O
primeiro ponto refere-se à organização. Durante a realização da
festa na roça, os festeiros remuneram aqueles que por ventura
trabalham nos dias festivos. Há uma área em que são cobradas
taxas em dinheiro para a utilização das mesas; por vezes são
disponibilizadas pulseirinhas ou listas para permitir a entrada
apenas daqueles que possuem o direito adquirido à mesa. Conta-
se, ainda, um número expressivo de pessoas que se deslocam
para os salões comunitários, onde sempre, após as missas e/ou
terços, o principal foco é a comida, a bebida, a dança, a paquera.
E o principal, nesta festa, é o valor arrecadado com a prática
festiva. Após retirar todo o custo da festa, apenas uma pequena
parte (isso quando acontece) é repassada para a comunidade e
para a Igreja. O restante fica a cargo dos próprios festeiros.
Já nas festas “de” roça, o ponto fundamental que se percebe
é o espírito de comunhão e partilha, quando todos aqueles que
trabalham durante os dias festivos não recebem nada além da
gratidão e do sentimento de devolver um pouco do que São
Sebastião proporcionou durante o ano todo. Não há separações
entre os sujeitos, independentemente de sua condição financeira.
Por vários anos, essas festas coexistiram praticamente no
mesmo espaço, sem a real percepção de que as diferenças
agora superam suas aproximações. Muitas vezes, os próprios
moradores do entorno das comunidades em que as festas são
realizadas e pessoas do centro urbano que se deslocam para
esses lugares nem se dão conta de que, em alguns momentos,
estão em uma festa como outra qualquer, se assim podemos
dizer, apenas sendo realizada em uma área rural. Uma verdadeira
teatralização: como se, ao colocar uma botina, um chapéu e
se deslocar para a roça, as pessoas pudessem romper com o
cotidiano e passar a pertencer, mesmo que momentaneamente,
àquela vida rural, àquela fé, àquela crença.
Tais modificações drásticas e o aumento considerável do

385
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

lucro festivo na festa “na” roça têm trazido alguns problemas,


principalmente em relação à partilha do valor arrecadado durante
os dias festivos. As características tradicionais já vinham se
perdendo com o tempo, e o valor pago à Igreja por grande
parte delas, em função da utilização do nome do santo, era
pequeno, pois era proporcional ao tamanho da prática festiva.
Com o decorrer do tempo, em paralelo ao aumento do número
de frequentadores, o aumento na arrecadação vem como algo
natural. Mas o valor repassado para a comunidade e para a
Igreja (quando há) ainda vinha se baseando nas primeiras festas,
aquelas de pequeno porte.
O lucro e as relações de “promiscuidade”, como foram vistas
pela Igreja durante as práticas festivas mais modernas (“na” roça)
de algumas regiões do interior goiano, em especial da área rural
de Catalão, acabaram fazendo com que o clero decidisse pelo
fim dessas festas em algumas comunidades ou adotando outra
medida. Já que os centros comunitários não possuem ligação
com a Igreja, caso decidissem realizar a festa, não poderiam
utilizar os nomes dos santos, o que não seria lucrativo, pois,
apesar de perder seu caráter tradicional, são os nomes santos
que levam grande parte das pessoas a se deslocarem, mesmo
não participando sequer das missas e/ou terços lá realizados
antes da festa propriamente dita.
A imposição da Igreja para a realização das práticas festivas
em tais comunidades a partir do ano de 2014 determinou
terminantemente a proibição da venda de bebidas alcoólicas e
uma censura nas músicas, que não poderiam apresentar nenhum
sinal de “promiscuidade” ou incentivo a situações que conflitassem
com os preceitos da Igreja. Levando-se em consideração que o
bar é uma das áreas mais lucrativas da festa, poderíamos dizer
que as festas “na” roça, em algumas comunidades de Catalão-
GO, encontram-se, portanto, em crise, o que pode determinar
até mesmo seu fim. As (re)criações e a grandiosidade que se
tornaram suas marcas acabaram sendo fundamentais tanto para
seu sucesso quanto para o decreto de sua extinção.
Contudo, independentemente das maneiras e dos formatos

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

em que os cultos e suas práticas festivas em devoção a São


Sebastião, Oxossi, santo flechado, mártir Sebastião e tantas
outras nomenclaturas são realizadas; se algumas são mais
tradicionais que as outras, se se encontram ou não dentro do
oficial, todas possuem um grau de importância no campo festivo
religioso nacional. São momentos em que o mártir parece estar
sempre presente, seja qual for seu formato ou lugar.
Em todos os anos em que a pesquisa foi realizada, durante
o ápice das práticas festivas, fosse nas festas de barraquinha
logo após a missa, na Folia durante a entrega da bandeira ou na
Umbanda5, durante a procissão, a chuva se fez presente, como
se São Sebastião demonstrasse gratidão pela manifestação de
fé. Como se aquelas gotículas fossem lágrimas de emoção pela
entrega e pela fé verdadeira encontrada nos olhos de cada uma
das pessoas durante seus pedidos de intercessão.
A chuva tão pedida e tão esperada. As plantações agora
balançam viçosas com o vento fresco, ainda molhadas pelas
gotículas de água que parecem cair milagrosamente do céu como
se agradecessem a oportunidade de florescerem belas e fortes. O
sorriso de uma criança ao correr pela chuva ou de um adulto ao
ver que sua plantação dará bons resultados. A água que parece
lavar não somente o chão, mas também a alma.
Na percepção dos crentes, ela, a chuva, é um evento natural
e fundamental para a vida humana. De norte a sul do Brasil, São
Sebastião se vê mergulhado em expectativas de sujeitos, quase
sempre simples, que entregam seus corações e sua fé, pois, em
grande parte das regiões, é essa devoção um dos pilares que
sustenta a base de sociedades inteiras. Do pequeno ao grande
fazendeiro, do urbano ao rural, todos se rendem aos mistérios
que ligam o santo flechado e os momentos em que o sol radiante
e o céu azul anil – apesar de belos mas que castigam a terra, a

5
A prática festiva em devoção ao santo dardejado não se restringe ao
catolicismo, é evidenciado que ela emerge em outras práticas religiosas,
como na Umbanda, nos mesmos dias em que os festejos cristãos, mas
com práticas diferentes, levando-se em consideração o hibridismo cultural e
religioso ali presente.

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plantação e os animais – dão lugar a uma chuva forte de uma


hora para outra, uma verdadeira tempestade de esperança.

A folia emociona muito, né, o cantar da folia... Ah, lá em casa, minha


mãe, minha mãe foi nascida na região entre Ipameri e Urutaí... Por
exemplo, meu avô recebia... Eles morava na fazenda, tinha pouso
de folia, janta, forró... Todo ano, meu avô saía com os foliões, tipo
guiando os foliões, o resto do dia, né?... Só que, na roça, era a
cavalo naquela época, né? Meu avô que levava: - Oh fulano, cê
aceita a folia aí? Oh fulano... E levava os folião nos vizim... [...] E
aí... Hora que começa a cantar, minha mãe desaba a chorar, minha
vó, minhas tias... Ah, falou assim, que a gente... Eu, pra te falar a
verdade... eu... eu mesmo, que sou folião assim, é... eu não posso
concentrar muito quando eu vejo assim a dona da casa, a pessoa
chorando, assim, que a gente parece que entra naquele mundo ali,
a gente acaba emocionado... Eu sou bem chorão... [...] Hora que cê
canta, que pede a São Sebastião benzer o seu terreiro, vem benzer
a sua casa, ele vem te abençoar, vem livrar da peste, da fome, da
guerra, do mal contagioso... então, acaba que, tipo assim, vai de
encontro com tudo aquilo que é o desejo da família [...]. (Entrevista
realizada com Diogo Gonçalves Rezende. em janeiro de 2013).

Percebe-se, pelos depoimentos, que não há espaço para


distinções. O que se percebe em todas as práticas, seja dentro
do catolicismo rústico/popular e/ou oficial, seja em práticas da
Umbanda, sejam ricos ou pobres, negros ou brancos, todos se
sentem agraciados e abraçados pela proteção esbanjada por
São Sebastião. O que enobrece ainda mais essas práticas que
possuem o santo flechado como protagonista é justamente essa
multiplicidade de cultos, pedidos, agradecimentos, devoções,
emoções. Seria válido relembrarmos que o mundo é um só,
porém repleto de indivíduos múltiplos que se diferem não apenas
na forma física ou no sexo, mas principalmente na maneira de
pensar e agir.
Mas a quantidade não resume os verdadeiros sentidos
partilhados por inúmeras famílias e sujeitos que irrompem o

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

dia e a madrugada em nome de uma sociabilidade que parece


satisfazer seus anseios. De uma maneira ou de outra, as práticas
festivas tradicionais e características do sudeste goiano – salvo as
ponderações que outras regiões interioranas do país também se
encaixam nesse momento – possuem contradições que teimam
em persistir. E felizmente isso ocorre, pois é essa multiplicidade
que torna cada uma dessas práticas rica em detalhes e significados
que podem ou não ser partilhados.
Durante o universo de possibilidades em que vários foram os
caminhos percorridos, pudemos reler as práticas e experiências
de sujeitos que vivem em comunidade, obtendo, como elo de
ligação, o santo Sebastião. Tornou-se perceptível ainda que o
santo dardejado, torna-se tal elo mesclando-se a um processo
transformador no qual outros fatores se inserem: o lugar, suas
memórias, as experiências vividas e construídas, os valores
culturais, políticos e sociais, mas principalmente seus vínculos
identitários afetivos, e porque não morais.
O mártir São Sebastião e as práticas festivas que o elegem
como protagonista se revelam envolventes. É um santo no plural
que emerge da mais profunda e variada forma de devoção e fé.
São práticas que, dentro de suas peculiaridades, se interpenetram
de uma forma instigante, interligando-se através de sentidos e
sentimentos múltiplos. Neste sentido, as práticas festivas são
fundamentais do ponto de vista de uma (re)organização social,
política, econômica e cultural das comunidades pesquisadas,
bem como, ainda, para a manutenção de vínculos afetivos e
identitários. A festa vai além, ela entremeia o vivido e o construído.
Ela nos transporta para um momento de rememoração, de
momentos felizes e também daqueles que se gostaria de esquecer
mas não o são e nem devem porque fazem parte de um processo
coeso e ao mesmo tempo contraditório, que mescla fé, diversão,
emoção, tensão, interesses privados e coletivos, entre outros
múltiplos sentidos que os sujeitos atribuem à festa ainda que
inconscientemente.
Contudo, sendo construída cotidianamente, quando
atentamos aos pontos acima citados, devemos ainda levar em

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

consideração que, mesmo momentaneamente e apesar das


disputas políticas e/ou pelas buscas de espaço de visibilidade
que se percebem implícitas, a festa torna-se um ponto de união.
De uma forma ou de outra, o conceito de comunidade que
conhecemos hoje perpassa pelas práticas festivas em seus mais
variados sentidos, pois são nelas que se perpetuam e se reforçam
os vínculos identitários, não apenas com o lugar, mas com tudo
aquilo que nele se encontra inserido, e, nesse processo, o sujeito
torna-se personagem principal. Para tanto, partilhamos das ideias
de Norberto Luiz Guarinello, ao afirmar que a:

Festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma ação


coletiva, que se dá num tempo e lugar definidos e especiais,
implicando a concentração de afetos e emoções em torno de um
objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é
a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma
determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das ações
sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes.
(GUARINELLO, 2001, p. 972).

Uma unidade que coexiste em torno das práticas festivas que


reforçam os laços de amizade e compadrio, tornando ainda mais
difícil separar a vida particular da festiva desses sujeitos. A festa,
bem como a sociedade em que está inserida, pretende continuar
a se (re)construir a partir de influências internas e externas,
renovando-se e (re)criando-se.
Nenhuma festa é igual, da mesma forma que nenhum sujeito
é. A festa não é perfeita, da mesma forma que o mundo e as
pessoas que nele vivem também não são. Mas podemos afirmar
que existe uma sensação de perfeição das relações humanas
que surgem em meio às próprias imperfeições das práticas e
dos homens que as cercam, pois, nelas (as práticas festivas),
deixamos transparecer todos os nossos sentimentos que afloram
naqueles três, seis, nove dias. E, da mesma forma que a festa
precisa de público, nós também necessitamos dela, como se
fizesse parte do que somos ou nos tornamos. Devocionais ou não.

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Sagradas ou profanas. Elas se fazem valer dentro do processo


transformador de uma sociedade ou região. Transformam-se na
ruptura e ao mesmo tempo na junção do antigo com o novo, do
que já foi com o que ainda está por vir. Estão aqui e acolá. Estão
onde todos nós estamos.
De Norte a Sul, de Leste a Oeste, dos Encantados aos terreiros
de Umbanda, o Brasil é cortado por São Sebastião. O que torna o
sudeste goiano especial em relação às práticas festivas religiosas
em louvor ao mártir é a forma e a capacidade de se (re)criarem
diante das mais variadas adversidades. Além de se tornarem
um espaço de resistência e permanência de tradições, mesmo
com as influências da modernidade. Existem inúmeras formas
de se demonstrar as pluralidades de sentidos e possibilidades
que envolvem as festas em louvor a São Sebastião, e esta é
apenas mais uma. Assemelho, então, esta pesquisa aos caminhos
vicinais percorridos pelos foliões durante a peregrinação de fé em
louvor a São Sebastião. Caminhos vicinais de histórias múltiplas
e envolventes. Estradas que desembocam no inesperado. Uma
verdadeira aventura ao percorrer caminhos sem destino certo,
apenas seguindo os rastros de muitas memórias.
Todavia, existe uma realidade concreta para as pessoas que
vivem nesta região de Goiás e que foram desterradas de seu lugar
de origem. A maior parte delas, de posse de suas indenizações, se
viram obrigadas a mudar para outras cidades, comprar pedaços de
terras distantes de onde viviam, buscar novas formas de trabalho
sem a necessária qualificação profissional. Muitos vínculos se
perderam, o sentimento de incerteza é enorme. Vizinhos de
gerações já não existem. Muitos afirmam que se sentem solitários,
desamparados, mesmo que em casas ou terras novas.
Fica aqui uma esperança de que as festas devocionais,
tais como a de São Sebastião, resistam a esse impacto social.
Sabemos que algumas iniciativas nesse sentido têm sido
buscadas. É preciso dar tempo ao tempo para que novos vínculos,
formas de compartilhar a fé, a ideia do coletivo e de comunidade
se reconstruam, mesmo que de maneiras diversas, posto que no
processo histórico os sujeitos sociais são capazes de transformar
suas vidas.

391
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 367-394, jul./dez. 2017

Referências

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Recebido em abril de 2016.


Aprovado em outubro de 2016.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.14393/HeP-v30n57-2017-15

CONFIGURAÇÕES INICIAIS DO ENSINO DE DESENHO


NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (1971-1977):
DO INSTITUTO DE MATEMÁTICA AO SETOR DE
CIÊNCIAS EXATAS

Adriana Vaz*
Rossano Silva**

RESUMO: Direcionamos o olhar para a forma como as disciplinas de


desenho foram formatadas na primeira década da Reforma Universitária,
tendo como objeto de estudo o Departamento de Desenho (DDES),
da Universidade Federal do Paraná, com o intuito de compreender
a matriz do ensino de desenho nessa fase e suas interdependências
com outras áreas de conhecimento. Os referenciais teóricos são Elias
com os conceitos de figuração e configuração social, Chervel que
trata da história das disciplinas e Hernández que aborda a história das
matérias curriculares. As fontes utilizadas são as atas das reuniões
departamentais. Em síntese, o ensino de desenho ofertado pelo DDES
atende aos conteúdos básicos dos Cursos de Engenharia, e, em paralelo,
o desenho integra a área de Artes, já que, em 1983, o Departamento
de Artes criou o Curso de Educação Artística com habilitação em Artes
Plásticas e Desenho, instituindo uma separação entre duas concepções
de ensino de desenho: a técnica e a artística.

PALAVRAS-CHAVE: Desenho. Educação artística. História da


educação.

ABSTRACT: We direct our look to the way how the drawing disciplines
have been formatted in the first decade of the University Reform, having

* Professora do Departamento de Expressão Gráfica da UFPR, mestre e doutora


em Sociologia pela UFPR.
** Professor do Departamento de Expressão Gráfica e do Programa de Pós-
Graduação em Educação: Teoria e Prática de Ensino da UFPR, mestre e
doutor em Educação pela UFPR.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

as the object of study the Department of Design - DDES of Federal


University of Paraná, aiming to understand the drawing teaching matrix
in this period and its interdependencies with other areas of knowledge.
The theoretical references are Elias with the concepts of figuration and
social configuration; Chervel that broaches the history of disciplines
and Hernández that broaches the history of curricular subjects. The
sources used are the minutes of the Department meetings. In summary,
drawing teaching offered by the DDES meets the basic content of the
Engineering Courses, and in parallel, drawing integrates the area of Arts,
as in 1983 the Arts Department created the Course of Arts Education
with qualification in Arts and Drawing, creating a separation between two
Drawing teaching concepts: the technical and the artistic.

KEYWORDS: Drawing. Art education. History of education.

Introdução

O período de 1967 a 1971 marca o início da Reforma


Universitária, em que a Universidade Federal do Paraná (UFPR)
se organizou em institutos e em faculdades.1 Em 1970, o reitor
Flávio Suplicy de Lacerda,

[...] ressalta o esforço que era realizado pela Universidade para


adaptar-se ao sistema organizacional e operacional decorrente
da Reforma Universitária, “com o novo Estatuto aprovado, se
estabeleceu a nova estrutura da Universidade, com a divisão do
ensino básico nos Institutos, e ensino profissional nas Faculdades,

1
“O Decreto n. 14.923, de 1º de abril de 1969, instituiu a comissão para tratar
da reforma no âmbito da Universidade Federal do Paraná prevista pela Lei n.
5.540/68”. (GLASER, 1988, p. 38). Pelo Estatuto da Universidade Federal do
Paraná, Decreto n. 66.615, de 21/05/1970, os Institutos foram organizados
em seis unidades: Matemática; Física; Geo-ciências; Biologia; Ciências
Humanas; Letras e Artes. In: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ.
Boletim Administrativo da Universidade Federal do Paraná, ano XV, n. 186,
nov. 1970, p. 27.

396
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

além de modificar os critérios de controle curricular, de formação e a


sistemática administrativa”. (LACERDA apud GLASER, 1988, p. 39).

Em consonância com as transformações referentes ao Ensino


Superior, em 1962, o Brasil ofertava 112 cursos de Engenharia,
sendo que, pela classificação feita em 1966, a profissão era
regulamentada nas seguintes modalidades: “engenheiro
aeronáutico, agrimensor, agrônomo, cartógrafo, civil, eletricista,
eletrônico, de comunicação, florestal, geólogo, mecânico,
metalurgista, de minas, naval, de petróleo, químico, industrial,
sanitarista, têxtil e de operação” (MEC, 2009, p. 9). Os currículos
mínimos, suas ênfases e habilitações foram regulamentados
em 1976, momento em que o país estava em crescimento, visto
que, no final dessa década, o Brasil viria a ampliar o número de
Engenharias para 363 cursos.
Ciente dessa ambiência no que tange à estruturação do
Ensino Superior e à ampliação das Engenharias, em hipótese,
a UFPR valoriza o ensino do Desenho como conhecimento
técnico que fundamenta a profissão do engenheiro. Sendo assim,
parte-se do pressuposto de que o Desenho estava vinculado a
estruturas distintas na Universidade: de um lado, fruto da matriz
institucional que separa o Ensino Básico do Ensino Profissional,
pela colocação de Lacerda; de outro, pela história do ensino do
Desenho polemizar uma vertente técnica e a outra artística.2
Com base em Norbert Elias, parte-se da microssociologia
e se adota como objeto de estudo o Departamento de Desenho
(DDES), que recebe essa denominação em 1974. Com o intuito
de traçar o que estava em pauta nessa fase inicial de estruturação
do ensino de Desenho no Setor de Ciências Exatas, bem como
compreender as interdependências que circunscreviam esse
universo e suas figurações delineadas a partir de sua origem no
campo da matemática, as principais fontes utilizadas são as atas
das reuniões do Departamento, no período de 1971 a 1977.
Metodologicamente, divide-se o estudo em duas partes:

2
Consultar os autores: Barbosa (2006), Nascimento (1994), Osinski (2002).

397
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

a primeira, em função da denominação inicial do próprio


Departamento que era conhecido como “Departamento de
Desenho e Geometria Descritiva do Instituto de Matemática”,
fase que abrange o período de 1971 a 1973; a segunda engloba
o período de setembro de 1973 a dezembro de 1977, nesse
interstício o Departamento passou por duas estruturações. Uma
delas se oficializou em dezembro de 1973, quando o Departamento
153, como também era designado, foi absorvido pelo recém-criado
e passou a ser vinculado ao Setor de Ciências Exatas3 e não mais
ao Instituto de Matemática. Outra estruturação se concretizou em
meados de junho de 1974 e se estendeu até setembro de 2008,
período em que foi batizado como Departamento de Desenho
(DDES), uma estrutura separada da área de Matemática.
O Departamento efetiva-se a partir de 1974, na constatação
de que seu núcleo de conteúdos disciplinares vigentes nesses
anos iniciais irá moldar o ensino de Desenho nessa unidade
administrativa, conteúdos voltados à formação básica dos Cursos
de Graduação em Engenharia. O que comprova a colocação de
Chervel quanto aos “efeitos da escolarização” e fundamentados
em Elias (2001) na ideia de figuração. A priori, entendemos que
esses conteúdos disciplinares interferirão nas demais práticas
vivenciadas pelos docentes – embora neste estudo não iremos
abordar as práticas de ensino.

Ensino de Desenho no Instituto de Matemática

De 15 de setembro de 1971 a 30 de agosto de 1973, o

3
Pela Resolução n. 19/73, do Conselho de Ensino e Pesquisa (CEP), de
26 de setembro de 1973, o Setor de Ciências Exatas é composto pelos
Departamentos de: Matemática; Matemática Aplicada e Desenho; Estatística
Geral e Aplicada; Química; Física Teórica; Física Experimental; Física
Aplicada. Além disso, o Setor foi constituído pelo Instituto de Matemática,
Física e a parte básica de Engenharia Química, de acordo com a Portaria
n. 10.397, de 5 de setembro de 1973. In: UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARANÁ. Boletim Administrativo da Universidade Federal do Paraná, ano
XVIII, n. 220, set. 1973, p. 5, 11.

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História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Departamento estava vinculado ao Instituto de Matemática da


Universidade4. Segundo Carlos Santos, a Resolução n. 6/70,
de 12/11/1970, do Conselho Universitário, para implantação do
Instituto, indica que “os docentes foram distribuídos em quatro
departamentos: 1) Álgebra e Geometria; 2) Análise Matemática;
3) Desenho e Geometria Descritiva; 4) Computação e Estatística”
(SANTOS, 2012, p. 37). Pela denominação do Departamento, em
hipótese, o Desenho e a Geometria Descritiva são compreendidos
como duas áreas distintas de conhecimento, “sendo o Desenho
a maneira pela qual se procede a expressão gráfica”, como
menciona o Prof. Dr. Orlando Silveira Pereira,5 na função de chefe
do Departamento.
Após destacar a importância desse ramo do saber, o professor
menciona que o Departamento necessita de infraestrutura
adequada para o seu funcionamento, e que, “pela reformulação
administrativa da Universidade, visa-se a congregar todas as
disciplinas afins do Ensino Básico, como pertinentes ao Desenho
e Geometria Descritiva, como parte distinta de órgãos similares
de uma estrutura” (UFPR, 1971a, s.p.). De imediato, nota-se que
o Desenho não é um conteúdo que faça parte dos exames para
o aluno ingressar no Ensino Superior, o que pela retórica dos
professores resulta na baixa qualidade do ensino, problemática
que se estende como tema de pauta das reuniões ao longo dos
anos iniciais de conformação do Departamento6 (UFPR, 1972b,
1972d, 1972g, 1973a, 1976c, s.p.).

4
De acordo com a Resolução n. 8/70, de 12 de novembro de 1970, o Instituto
de Matemática dispunha de 22 professores titulares, 23 professores adjuntos
e 56 professores assistentes. In: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ.
Boletim Administrativo da Universidade Federal do Paraná, ano XV, n. 186,
nov. 1970, p. 6.
5
Em 1954, para obtenção da cadeira de Desenho a Mão Livre, escreveu a tese
“Novo processo de perspectiva axonométrica” (UFPR, 1971a, s.p.; PEREIRA,
1954).
6
Rosilene B. Machado, ao tratar da história da disciplina de Desenho, tendo
como estudo de caso o Colégio de Aplicação da Universidade Federal
de Santa Catarina no período de 1960 a 2000, menciona que o fato de o
Desenho ter saído do vestibular é uma das causas apontadas pela autora
para a desvalorização dessa disciplina. (MACHADO, 2012, p. 98-99).

399
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Prosseguindo à leitura da ata, vê-se que a base inicial do


Departamento eram as disciplinas de Desenho, Geometria
Descritiva e Nomografia. Sobre essa questão, o professor Pereira
“reitera que devem ser nitidamente consideradas as partes: a)
do ciclo básico, que deverá ser geral e b) do ciclo de formação
profissional que, forçosamente, terá de ser específico aos diversos
ramos profissionais [...]” (UFPR, 1971a, s.p.).
Além das diferentes áreas de formação que o Desenho
atendia, observa-se que a Universidade ampliou o número de
alunos, o que, consequentemente, tornava necessário ampliar o
número de professores:

[...] tendo em vista o atual número de discentes com o acréscimo de


cento e vinte por cento, seja prevista a ampliação do Corpo Docente
bem como para atender ao ensino em turmas de cerca de 50 alunos
e, ademais, deverá ser considerado o curso de Licenciatura em
Desenho; [...]. (UFPR, 1971a, s.p.).

Conforme Luiz A. Cunha (2015), na primeira metade da


década de 1960, as universidades federais já estavam saturadas
em função do binômio cursos-cátedras e da expansão de
matrículas, o que cominava a reestruturação das universidades.
Mudanças implantadas pelo Decreto-Lei 53/66, que determinou os
princípios e as normas de organização das universidades federais,
e pela Lei da Reforma Universitária (5.540/68), que impunha às
universidades a organização do ensino superior.
O processo de ampliação das universidades federais não era
um caso isolado da UFPR. Além disso, o Departamento surge
indagando a necessidade de criar um Curso de Licenciatura
em Desenho7 e problematiza que a Universidade precisa se
adequar à ampliação de alunos. Sua estrutura se inicia com os

7
O que atenderia à demanda vigente na Lei n. 5692/71, “Art.30. Exigir-se-á
como formação mínima para o exercício do magistério: [...] c) em todo o
ensino de 1º e 2º graus, habilitação específica obtida em curso superior de
graduação correspondente a licenciatura plena”.

400
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

seguintes professores, conforme indicado na ata da 1ª reunião


departamental, realizada no dia 15 de setembro de 1971: Orlando
Silveira Pereira, chefe do departamento, Augusto Conte, Eurico
Dacheux de Macedo, Jorge Bernard, José Rodolfo de Lacerda,
Jurandyr Pavão, Leonilda Auriquio, Lourenço Mourão e Mila
Aguilar (UFPR, 1971a, s.p.).
Tomando como base as teses e os livros disponíveis no
sistema de bibliotecas da UFPR, do grupo de docentes que
integram o Departamento, sinalizam para uma trajetória acadêmica
os professores: Orlando Silveira Pereira, Leonilda Auriquio, Mila
Aguilar8, Jorge Bernard9 e Eurico Dacheux de Macedo10. Reitera-
se que, nesta fase do projeto “Abordagem histórica e social do
campo da expressão gráfica”11, para delinear a percurso inicial
dos docentes do Departamento foram consultados os livros e as
teses do sistema de bibliotecas da UFPR, assim como os Boletins
Administrativos da UFPR no período de 1970 a 1974, e os Fastos
Universitários da UFPR de 1975, 1976 e 1977; entretanto, ainda
precisam ser verificados os documentos existentes nos arquivos
do Departamento e outras instituições afins.
Quanto às disciplinas e aos conteúdos que deram origem
ao ensino de Desenho, interessa-nos o termo “disciplina” como
sinônimo de “conteúdos de ensino”, denominação que está
ausente em todos os dicionários do século XIX, como afirma

8
Em 1987, defende a tese para professora titular denominada “A universidade no
tempo da cibernética”. Em 1977, publica a tese de livre docência denominada
“O número de transporte”, e, em 1978, escreve a tese “Interpretação físico-
química das reações de Meigen”, também para professora titular.
9
Durante a década de 1970, escreve livros relacionados à perspectiva:
“Axonometria cilíndrica: perspectiva cavaleira” (1972) e “Perspectiva linear cônica:
um método gráfico, analítico e mecânico” (1976). Em 1981, defende a tese para
obtenção do grau de doutor na L’Université de Nice Geodesie Spatiale.
10
Em 1990, publica o livro “Caminhos para o Paraná do próximo milênio: 28
rotas de transportes” em coautoria com Rafael Greca de Macedo.
11
O projeto teve início em 2015, registrado no Banpesp: 2015018372. Compõem
a equipe, os professores: Adriana Vaz, Rossano Silva, Francine A. Rossi e
Emilio E. Kavamura.

401
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Chervel, visto que essa nova acepção da palavra está ligada


às renovações da finalidade do Ensino Primário e Secundário,
inserida em uma corrente de pensamento pedagógico que se
manifesta na segunda metade do século XIX, ou seja, “ela faz par
com o verbo disciplinar, e se propaga primeiro como um sinônimo
de ginástica intelectual [...]” (CHERVEL, 1990, p. 179).
A ideia de exercício intelectual aparece com o matemático
e filósofo Antoine Cournot, mas é com Félix Pécaut e demais
estudiosos da renovação pedagógica de 1880 que se propaga
como um dos temas fundamentais da nova instrução primária.
Portanto, disciplina, “passa a significar uma ‘matéria de ensino
suscetível de servir de exercício intelectual’ [...]” (CHERVEL,
1990, p. 179). Até 1902, para as Universidades, o modo de
formar os espíritos era por meio das “humanidades clássicas”,
logo, “uma educação que fosse fundamentalmente matemática
ou científica não deveria ser, antes do começo do século XX,
plenamente reconhecida como uma verdadeira formação do
espírito” (CHERVEL, 1990, p. 179-180).
Ainda a respeito das diferentes conotações do termo
“disciplina”, após a I Guerra Mundial, “torna-se uma pura e simples
rubrica que classifica as matérias de ensino, fora de qualquer
referência às exigências da formação do espírito” (CHERVEL,
1990, p. 180). Concordamos com esse autor, quando menciona
que “uma ‘disciplina’, é igualmente, para nós, em qualquer campo
que se a encontre, um modo de disciplinar o espírito, quer dizer
de lhe dar os métodos e as regras para abordar os diferentes
domínios do pensamento, do conhecimento e da arte” (CHERVEL,
1990, p. 180).
A história das disciplinas abrange um leque de questões que
se caracteriza pelo perfil dos seus alunos, dos estabelecimentos
de ensino, abarca também a qualidade dos docentes, envolve a
relação entre professores e alunos; no caso do Ensino Superior,
ela transmite diretamente o saber. Para Hernandez (2000, p.
60), o conhecimento de uma matéria curricular avança a partir
de estudos que permitem escrever sua história, considerando:
o seu papel no currículo escolar, as diversas versões adotadas

402
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

em decorrência das transformações sociais, as concepções


disciplinares e a função concebida pela educação vigente, entre
outros fatores. Ponderando o objeto de estudo em questão, o
Departamento de Desenho e Geometria Descritiva inicia sua
trajetória constituindo seus programas de ensino e estabelecendo
um núcleo de disciplinas que o represente, conforme será
detalhado na sequência.
Em 06 de janeiro de 1972, o tema principal da reunião do
Departamento era a aprovação da súmula dos programas para o
ano letivo de 1972. Os programas são divididos em cinco grupos
de disciplinas: Desenho Geométrico, Geometria Descritiva,
Desenho Técnico, Desenho Artístico e Nomografia. Inicialmente,
são descritos os conteúdos de Desenho Geométrico e Geometria
Descritiva. Esses dois grupos englobam as disciplinas de Desenho
Geométrico I e II, Geometria Descritiva I, II e III.12

Desenho Geométrico I – Construções geométricas fundamentais.


Triângulos. Polígonos regulares; inscrição na circunferência;
processos gráficos de traçado. Divisão e medida de ângulo.
Cônicas. Concordância. Traçado de curvas e arcos. Arcos
abatidos; arcos de cesto de 3, 5 e 7 centros. Falsa elipse. Oval
de Cassini. Óvolo. Curvas cíclicas. Evolvente da circunferência.
Senóide. Logarítmica. Quadratriz. Catenária. Conchoide: da
reta e da circunferência. Cissoide ortogonal. Espirais. Falsas
espirais. Voluta. Curvas não geométricas ou gráficas; tangentes e
normais. Equivalência. Desenho Geométrico II – Compensação
poligonal do setor circular e do segmento parabólico. Divisão
de áreas. Integração gráfica. Método de translação. Método
de rotação. Métodos de semelhança. Método de homologia.
Inversão. Estudo do desenho de ornamentação geométrica.

12
Para o estudo da geometria descritiva, conforme a Ata da reunião
departamental de 06 de janeiro de 1972, são indicados os autores: Cavallin
(Licões de geometria descritiva, Axonometria cilíndrica, Método de projeção
central, Perspectiva linear cônica); Crusat y Daurella (Geometria Descriptive);
G. Hawk (Série Schaum – Descriptive Geometry); Benjamin Carvalho
(Perspectiva) (UFPR, 1972a, s.p).

403
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Redes. Disposição ornamental. Ornatos correntes. Geometria


Descritiva I – Introdução, objetivos e notações. Homologia
plana. Dupla projeção ortogonal; representação dos elementos
fundamentais; problemas fundamentais de posição; operações de
rebatimento, rotação e mudanças de plano; problemas fundamentais
métricos; representação de poliedros. Sistema de projeções
cotadas: representação dos elementos fundamentais; condições
e problemas de perpendicularidade; operação de rebatimento;
problemas fundamentais métricos. Noções de perspectiva linear
cônica. Geometria Descritiva II – Representação de poliedros
convexos; secções planas. Interseções de poliedros. Axonometria:
princípio axonométrico e definição de elementos característicos.
Axonometria cilíndrica genérica. Axonometria ortogonal; fórmulas
e construções fundamentais. Graduação dos eixos axonométricos.
Representação dos elementos fundamentais em axonometria
cilíndrica. Perspectiva cavaleira; representação de poliedros.
Transformação de sistemas. Rebatimento de plano genérico sobre
o quadro. Traços verdadeiros de retas e planos em axonometria
ortogonal. Condições e problemas de perpendicularidade.
Geometria Descritiva III – Projeção central. Perspectiva linear
cônica. Emprego dos pontos medidores e das retas de medidas.
Processo axonométrico cônico. Perspectiva em quadro plano
inclinado. Representação de curvas. Geração, classificação e
representação das superfícies geométricas. Superfícies cônicas
e cilíndricas. Esfera. Superfícies de revolução. Teoria geométrica
das sombras. Sombra do cilindro, do cone, e da esfera. Sombra
na perspectiva. (UFPR, 1972a, s.p., negrito nosso).

Parte desses conteúdos ainda são ministrados pelo


Departamento.13 Chervel aponta algumas questões que explicam

13
Consultar as ementas vigentes para o ano letivo de 2017, das quais citamos
os seguintes códigos: CD014, CD020, CD027, CD028, CD032, CD033,
CD034, CD035, CD046, CEG003, CEG004, CEG005, CEG006, CEG012
– exceto as disciplinas do curso de bacharelado em Expressão gráfica. In:
DEPARTAMENTO DE EXPRESSÃO GRÁFICA (DEGRAF) – UFPR. Ementas
vigentes. Disponível em: <http://www.exatas.ufpr.br/portal/degraf/ementas-

404
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

a dificuldade de se realizar reformas curriculares e particulariza os


ensinos escolares: a) o fato de que a instauração das disciplinas
ou suas reformas é uma operação de longa duração, em que o
procedimento didático utilizado se manifesta após o término da
escolaridade do aluno – independentemente de sua qualidade;
b) a eternização dos postos e funções que cabe aos docentes;
c) a taxa de renovação do corpo docente e sua relação com a
evolução das disciplinas; d) a estabilidade de uma disciplina
que se consolida por uma experiência pedagógica já enraizada.
Quanto à experiência pedagógica, Chervel menciona:

[...] ela se prevalece dos sucessos alcançados na formação dos


alunos, assim como de sua eficácia na execução das finalidades
impostas. Fidelidade aos objetivos, métodos experimentados,
progressões sem choques, manuais adequados e renomeados,
professores tanto mais experimentados, quanto reproduzem com
seus alunos a didática que os formou em seus anos de juventude,
e, sobretudo, o consenso da escola e da sociedade, dos professores
e dos alunos: igualmente fatores de solidez e de perenidade para
os ensinos escolares. (CHERVEL, 1990, p. 198).

Problemática que nos permite articular a colocação de Chervel


com o que Norbert Elias (2001) define como figurações, o elo entre
sociedade e indivíduo, em que as mudanças pedagógicas são
decorrentes de uma situação social e dos indivíduos envolvidos
em suas formulações. Para Chervel:

[...] as leis que mudam as línguas, dizia um obscuro filósofo do


século XIX, são as leis que as criam. Dá-se o mesmo com as
disciplinas ensinadas. Sua transformação, como sua constituição
estão inteiramente inscritas em dois polos: o objetivo a alcançar e a
população de crianças e adolescentes a instruir. É aí que se devem
encontrar as fontes da mudança pedagógica. Pois é ao mesmo
tempo através de suas finalidades e através de seus alunos que elas

vigentes/>. Acesso em: 10 nov. 2017.

405
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

participam da cultura e da vida social de seu tempo. (CHERVEL,


1990, p. 198).

Relacionar as disciplinas, os cursos de graduação e os


professores responsáveis por tais conteúdos permite considerar
que o DDES é uma figuração – a ser retomada posteriormente
–, mesmo que, neste artigo, o objetivo seja registrar a matriz
dos conteúdos das disciplinas de Desenho ligadas ao Instituto
de Matemática, depois ao Setor de Ciências Exatas e suas
possíveis configurações com as Artes; e, em pesquisas futuras,
compreender como essa configuração inicial interfere na própria
história do Departamento.
No período de 1971 a 1977, dentre as funções descritas
nas atas departamentais e que competem aos professores14
tem-se: o ensino de graduação, a coordenação de disciplinas, a
representação nos colegiados de cursos, os cargos administrativos
e a participação em comissões e bancas de concursos. Em 1972,
constata-se que, na distribuição de turmas por professor, não
é possível identificar os encargos didáticos de cada docente,
contudo é possível observar que a maioria dos cursos vinculados
ao Departamento mantém em sua grade curricular três disciplinas:
Desenho Geométrico, Geometria Descritiva e Desenho Técnico.
Em Desenho Geométrico, temos quatro professores: Augusto
Conte, Hayton Silva, Jayme M. Cardoso e Leonilda Auriquio; em
Geometria Descritiva, assumem as turmas: Gilberto Azeredo
Lopes, José R. do Nascimento Jr., Jorge Bernard e Roberto
Portugal Alves, perfazendo quatro professores; o Desenho
Técnico tem três docentes responsáveis: Clion Dória, Jurandyr
Pavão e Orlando S. Pereira; havendo, ainda, mais três professores
que assumem os conteúdos de Desenho Técnico com Geometria
Descritiva: Jucundido da Silva Furtado, Lourenço da S. Mourão
e Mila Aguilar.

14
A carreira do magistério superior para os moldes do período foi regulamentada
pelo Ministro da Educação Jarbas Passarinho (1969-1974). Pela Lei n.
5.540/68, o magistério superior no modelo de cátedras foi extinto e se
implantaram as classes de titular, adjunto e assistente.

406
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Ainda referente às atividades de ensino e em comparação


à frequência na primeira reunião departamental, amplia-se o
número de professores, de nove para dezesseis, sendo que os
docentes José Rodolfo de Lacerda e Eurico Dacheux de Macedo
não assumem aulas na graduação. Em relação ao interesse na
produção acadêmica, estimado pelas publicações disponíveis na
biblioteca da UFPR, o intuito inicial era compreender a área de
pesquisa do docente na própria universidade em comparação com
as disciplinas ministradas na graduação. Também salientamos a
atuação dos professores: Clion Dória15, Jayme M. Cardoso16 e
José R. do Nascimento Júnior17.
Outra atividade realizada pelos professores era a de
coordenadores de disciplinas, que tinham como função resolver
os problemas relativos aos locais de aula e horários, para os
quais inicialmente foram nomeados os professores titulares e
suplentes por disciplina: José Cavallin18 e Jayme Cardoso, para
Geometria Descritiva; Clion Dória e Leonilda Auriquio, para
Desenho Geométrico; e Roberto Portugal Alves, para Desenho
Artístico, conforme reunião departamental realizada em 10 de
janeiro de 1972.
Transcorridas algumas reuniões, os coordenadores são

15
Escreve os livros: “Química tecnológica e analítica” (1952) e “Curso de
Perspectiva e Sombras” (1958).
16
Publica as teses de livre-docência: “A utilidade da representação de Monge
na composição e decomposição de forças no espaço” (1953) e “Espaços
finitos” (1960); e, para titular: “Sistemas de Projeção” (1977).
17
Em 1987, defende a tese para professor titular denominada “Graduação dos
eixos axonométricos, é necessário?”, referente às disciplinas de Geometria
Descritiva e Desenho Técnico.
18
Em 1948, escreve sua tese para cátedra da Faculdade de Engenharia do
Paraná, com o título: “O processo homológico e sua utilidade na representação
mongiana”. E publica os livros: “Lições de Geometria Descritiva: método
da dupla projeção ortogonal e de projeções cotadas” (1950), “Geometria
descritiva” (1958), “Método da projeção central: lições de geometria descritiva”
(1958), “Lições de geometria descritiva: axonometria mongeana ou sistemas
de projeções ortogonais de Monge” (1962), “Perspectiva linear cônica” (1964)
e “Axonometria cilíndrica ou paralela: lições de geometria descritiva” (1970).

407
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

renomeados, considerando-se a indicação da disciplina e dos


cursos:

O Prof. José Cavallin foi designado coordenador de Geometria


Descritiva, dos cursos de Arquitetura e de Engenharia Civil,
Mecânica e Eletricista. O Prof. Ildefonso Clemente Puppi foi
designado coordenador de Desenho Geométrico do curso de
Engenheiros Agrônomos e o Prof. Orlando Silveira Pereira como
coordenador de Desenho Técnico nos cursos de Engenheiros Civis,
Mecânicos e Eletricistas. (UFPR, 1972c, s.p.).

O coordenador da disciplina de Geometria Descritiva é


o único que permanece, na transição de janeiro para março
de 1972, sendo que as disciplinas elencadas correspondem
aos conteúdos ofertados no 1º semestre de 1972, ou seja, a
disciplina de Desenho Artístico é substituída por Desenho Técnico.
Comparando os coordenadores de disciplinas com os professores
que assumiram as aulas, o docente Orlando S. Pereira realiza
as duas funções e o professor Idefonso Clemente Puppi19 não
assume atividades de ensino. A mudança na nomenclatura da
disciplina de Desenho Artístico para Desenho Técnico mostra que
o Departamento direciona seu ensino para um viés mais técnico,
o que condiz com o perfil de formação dos professores que deu
origem ao Instituto de Matemática – a maioria era proveniente da

19
Em 1958, defende a tese “A imagem perspectiva sobre quadro inclinado”, para
cátedra da Escola Superior de Agricultura e Veterinária referente à cadeira de
Desenho de Aguadas: perspectivas e sombras. Em 1973, escreve a versão
preliminar do livro “Noções de estruturação das cidades”; e, em 1976, publica
a versão definitiva “A cidade salubre: noções de estruturação das cidades”.
Na mesma temática, publica “Estruturação sanitária das cidades” (1981). E,
em 1986, lança o livro “Fatos e reminiscências da faculdade”. Em 1971, é um
dos integrantes do Conselho Universitário da UFPR, como representante da
Congregação da Faculdade de Engenharia. Também participa do Conselho o
professor Jucundino da Silva Furtado, como representante da Congregação
da Faculdade de Economia e Administração. In: UNIVERSIDADE FEDERAL
DO PARANÁ. Boletim Administrativo da Universidade Federal do Paraná, ano
XVI, n. 193, jun. 1971, s.p.

408
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Faculdade de Engenharia20, questão a ser retomada a seguir. Isto


também sinaliza que os professores responsáveis por delinear
os conteúdos das disciplinas não necessariamente tinham a
vivência da sala de aula, pois desempenhavam outras funções
administrativas.
A terceira função do professor é representar o Departamento
nos colegiados. Na conjuntura em questão, a designação coube
a Olavo Del Claro, diretor do Instituto de Matemática, com os
seguintes representantes:

Prof. Augusto Conte – Faculdade de Floresta; Prof. Ildefonso


Clemente Puppi – Faculdade de Engenharia; Prof. Jorge Bernard
– Faculdade de Engenharia Química; Prof.ª Leonilda Auriquio –
Faculdade de Agronomia; Prof. Jayme Machado Cardoso – Instituto
de Matemática. (UFPR, 1972b, s.p.).

Até a presente data e com base na representação em


colegiado, o Departamento atende os cursos de Licenciado
em Matemática e em Ciências, Eletricista, Arquitetura e as
Engenharias: Florestal, Agronomia, Civil, Química, Mecânica.
Em continuidade às disciplinas que compõem o elenco do
Departamento, detalhamos o programa de Desenho Técnico I e II,
apresentado na reunião departamental de 06 de janeiro de 1972:

Desenho Técnico I – Desenho e suas espécies; importância como


língua técnica. Materiais de desenho. Instrumentos de desenho.
Processos de cópia. Reprodução de desenhos: aparelhos e
instalações. Transformação e divisão de áreas. Traçado de curva.
Concordância. Desenvolvimento de sólidos e superfícies. Interseção
de sólidos. Normas técnicas de desenho. Formatos e margens.
Dobragem. Letras e algarismos. Composição de Letreiros. Títulos
e Legendas. Letras ornamentais. Colorido. Tintas. Aerografia.
Figuração convencional. Escalas. Cotagem. Esboços. Croquis

20
In: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Boletim Administrativo da
Universidade Federal do Paraná, ano XVI, n. 194, jul. 1971, p. 5-6.

409
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

técnico. Sistemas de representação. Vistas principais. Vistas


auxiliares. Desenho Técnico II – Normas Brasileiras. Traços.
Letreiros. Legendas. Formatos e Margens. Dobragem. Axonometria
cilíndrica, oblíqua e ortogonal. Processos usuais de perspectiva
linear cônica. Sombras. Sombreados. Gráficos de Insolação.
Cortes. Secções. Meias secções. Violações. Desenho preliminar e
definitivo. Regras e convenções particulares de apresentação das
principais técnicas. Detalhes. Gráficos. Croquis técnicos. Desenho
de construção civil. Desenho de estruturas. Desenho topográfico.
(UFPR, 1972a, s.p., negrito nosso).

As disciplinas do Departamento balizam a divisão em grupos


de professores para a criação de comissões responsáveis
por elaborarem um novo plano de ensino e os programas das
disciplinas, que são eles: 1. Desenho Geométrico (Jayme M.
Machado, Leonilda Auriquio e Augusto Conte); 2. Geometria
Descritiva (José Cavallin, Jucundino Furtado e Ildefonso C. Puppi);
3. Desenho Artístico (Roberto P. Alves e Orlando S. Pereira); 4.
Desenho Técnico (Orlando S. Pereira e Lourenço Mourão); 5.
Desenho de Observação e Croquis (Augusto Conte e Hayton
Silva). Dos grupos formados, efetivam-se as alterações nas
disciplinas de Desenho Geométrico I e II, no entanto não se aprova
o programa de Desenho para Licenciatura em Ciências, com o
intuito de que a comissão elabore um programa semelhante para
Licenciatura em Ciências e Agronomia.
Mesmo que as demais disciplinas não tenham oficializado
suas alterações, pelo exemplo dos Cursos de Licenciatura em
Ciências e Agronomia podemos aferir sobre a funcionalidade do
Departamento, em que a padronização de conteúdos disciplinares
coloca em segundo plano as necessidades de cada graduação. A
ideia de normatização dos conteúdos também é percebida pela
condução das disciplinas de Nomografia21 e Desenho Geológico.

21
Plano de ensino de Nomografia: “Objeto e interesse da Nomografia.
Notações. Escalas métricas e funcionais. Representação das equações a
duas variáveis. Nomogramas cartesianos. Anamorfose. Nomogramas de

410
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Na primeira situação, o Departamento sugere a transferência da


disciplina de Nomografia para o Departamento 04 do Instituto de
Matemática; e, na segunda, o Departamento aconselha ao Curso
de Geologia duas disciplinas já existentes (Desenho Técnico I e
Geometria Descritiva I) e outra específica à área (UFPR, 1972d,
s.p.).
Entendemos que a descrição dos planos de ensino aqui
apresentados se justifica pelo valor histórico e documental
dos dados, que, em síntese, pela retórica do corpo docente do
Departamento e pelos conteúdos das ementas, apresenta uma
divisão entre conteúdos do ciclo básico e profissionalizante – o
desenho de construção civil, de estruturas e topográfico. Dentre
as atividades dos professores, foram problematizados os dados
disponíveis nas atas departamentais; no que diz respeito à
trajetória profissional dos docentes, foi pontuada sua produção
no âmbito das publicações disponíveis na própria Universidade
– interligando ensino e pesquisa, atividades que competem ao
docente do Ensino Superior nessa fase da instituição. Além da
organização dos conteúdos e das disciplinas que o Departamento
toma para si, consideramos que a permanência ou não de
determinadas disciplinas irá moldar a carreira profissional dos
professores de Desenho – conforme discussão no próximo tópico.

Conjunto das disciplinas do Departamento: grupos e


tipologias

O concurso de professor assistente aberto pelo Instituto


de Matemática da Universidade estava distribuído em cinco

escalas justapostas. Nomogramas de pontos alinhados. Representação


das equações a três variáveis. Nomogramas cartesianos sem anamorfose.
Nomogramas cartesianos com anamorfose. Nomogramas de retas
convergentes. Nomogramas de pontos alinhados para equações a três
variáveis. Classificação dos nomogramas. Construção dos nomogramas
de terceira classe. Gênero zero e um. Construção dos nomogramas dos
gêneros II e III. Representação das equações de quatro e mais variáveis,
por alinhamentos múltiplos. [...]”. (UFPR, 1972a, s.p.).

411
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

grupos de no mínimo duas disciplinas, em que predominavam


os conteúdos de Geometria Descritiva I, de acordo com a ata da
reunião departamental de 24 de maio de 1972:

[...] opção I: a) Geometria Descritiva I, b) Geometria Descritiva II;


opção II: a) Desenho Técnico I, b) Desenho Técnico II; opção III:
a) Desenho Geométrico I, b) Desenho Geométrico II; Opção IV:
Geometria Descritiva I, b) Desenho Artístico; opção V: a) Geometria
Descritiva I, b) Desenho de Observação e Croquis. (UFPR, 1972g,
s.p).

Em 14 de março de 1973, as disciplinas para o concurso


foram reagrupadas, mantendo-se os conteúdos de Desenho
Geométrico, Geometria Descritiva e Desenho Técnico e alterando-
se as demais:

Grupamento I – Desenho Geométrico I e Desenho Geométrico II;


Grupamento II – Geometria Descritiva I, Geometria Descritiva II
e Geometria Descritiva III; Grupamento III – Desenho Técnico I e
Desenho Técnico II; Grupamento IV – Desenho Artístico I, Desenho
Artístico II e Desenho de Observação e Croquis; Grupamento V –
Desenho Geométrico I e Nomografia. (UFPR, 1973c, s.p.).

No agrupamento IV, ficaram concentradas as disciplinas de


Desenho Artístico I e II e Desenho de Observação e Croquis, nas
quais estavam incluídos os seguintes conteúdos:

Desenho de Observação e Croquis – Objetivos e aplicações do


desenho nos cursos de Agronomia e Florestas. Materiais e técnicas
especiais. Títulos e legendas. Letreiros ornamentais. Processos de
reprodução e ampliação de desenhos. Processos e instrumentos
adotados no desenho de vegetais, insetos e microorganismos e
animais. Câmara clara, retro projetor e meios fotográficos. Aplicação
das formas geométricas planas às formas naturais das folhas como
estudo comparativo. Cópia por processos apropriados de assuntos
da flora e fauna. Cortes de caules, raízes e frutas. Reprodução de

412
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

lesões em geral. Diagrama de inflorescência. Tipos de enxertia.


Tipos de antenas de insetos. Órgãos e aparelhos de insetos.
Formas gerais de fungos. [...] Desenho Artístico I – Desenho
de observação, com o emprego de várias técnicas e envolvendo
o estudo das sombras própria e projetada, nos seguintes casos:
claro-escuro no baixo relevo em gesso; modelo simples e sólidos
geométricos; conjunto de modelos; sólidos geométricos regulares
e irregulares; objetos de uso doméstico, isolados e em conjunto;
objetos de uso comum, isolados e agrupados; conjunto de sólidos
geométricos. Desenho Artístico II – Desenho de observação, com
o emprego de várias técnicas e envolvendo o estudo das sombras,
própria e projetada, nos seguintes casos: claro-escuro de ornatos
em gesso ou não; o pé e a mão humanos em gesso; a cabeça e o
busto em gesso; o corpo humano em gesso, no todo ou em parte;
modelo vivo, envolvendo o busto, os pés e as mãos humanos;
animais e aves. (UFPR, 1972a, s.p., negrito nosso).

Comparando-se a de março de 1973 com as duas propostas


em janeiro e março de 1972, a tipologia das disciplinas por grupo
apresenta uma divisão mais clara entre os grupos I, II e III, em
relação aos grupos IV e V, tendo como base a versão de 1973.
Os três primeiros com uma vertente mais técnica e os dois
últimos com um direcionado ao desenho artístico e outro voltado
à programação.
Pelo perfil das disciplinas e seu agrupamento para os
concursos públicos, questionamos: qual vertente educacional
corresponde ao Desenho ensinado pelo Departamento?
Como operacionalizar a criação do Curso de Licenciatura em
Desenho, retórica constante nas atas departamentais, diante
da normatização dos conteúdos que prioriza as disciplinas de
Desenho Geométrico, Geometria Descritiva e Desenho Técnico
nessa fase embrionária do Departamento? O que configura o
Departamento em sua fase embrionária?
Até então foram expostos assuntos elementares do
Departamento. Em meados de 1973, tem-se o conjunto
de disciplinas já estruturado com códigos e pré-requisitos,

413
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

que permitem responder parte das indagações até aqui


problematizadas. Constata-se que as disciplinas são ofertadas
semestralmente e que atendem aos primeiros anos de formação
dos alunos de graduação da Universidade, dentre as quais não
têm pré-requisito as disciplinas: Desenho Geométrico I, Geometria
Descritiva I, Desenho Artístico I e Nomografia. Pautando as
disciplinas transcritas anteriormente com o conjunto do Quadro
1, vê-se que houve alteração de nomenclatura e de conteúdo.
A disciplina de Desenho de Observação e Croquis passa a ser
denominada de Desenho Técnico I – A, a qual atende ao curso
de Agronomia e Florestal.

Quadro 1 - Disciplinas do Departamento 153 do Instituto de Matemática –


UFPR. Agosto, 1973.
Código Disciplinas Semestre Teóricas Práticas Créditos Pré-requisito

153013 Desenho Geométrico I 1º 3 - 3 -

153023 Desenho Geométrico II 2º 3 - 3 153013

153034 Geometria Descritiva I 1º 3 2 4 -

153044 Geometria Descritiva II 2º 3 2 4 153034

153054 Geometria Descritiva III 3º 3 2 4 153044

153063 Desenho Artístico I* 1º - 6 3 -

153073 Desenho Artísitico II 2º - 6 3 153063

153084 Desenho Técnico I 2º 2 4 4 153034

153094 Desenho Técnico II 3º 2 4 4 153084

153104 Desenho Técnico I-A 3º 2 4 4 153013

153113 Nomografia 1º 3 - 3 -
* Correquisito: Desenho Geométrico I.
Fonte: UFPR, 1973a, s. p.

A alteração do título da disciplina foi sugestão do professor


Augusto Conte, conforme extrato da ata:

414
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

[...] passando o ‘Desenho de Observação e Croquis’ a ter a


denominação principal de ‘Desenho Técnico I-A’ código 153104,
como 4 créditos e a seguinte ementa: 153104. DESENHO TÉCNICO
I-A- DESENHO DE OBSERVAÇÃO E CROQUIS – Preliminares-
letras, letreiros, títulos e legendas. Dupla projeção ortogonal
e projeções cotadas. Elementos fundamentais-Rebatimento,
processo de cópia. Reprodução de desenhos. Escalas. Cotagens.
Esboços. Técnicas do desenho de vegetais, insetos e animais.
Aplicação das formas geométricas planas às formas naturais
das folhas. Cópia por processo apropriado de assunto da flora
e fauna. Cortes de caules, raízes, folhas e frutos. Diagramas de
inflorescência. Antenas de insetos e formas de insetos. Formas
gerais de fungos. PRÉ-REQUISITO: DESENHO GEOMÉTRICO I.
(UFPR, 1973a, s.p., negrito nosso).

Conte era membro da comissão responsável por elaborar o


novo plano de ensino. Ao comparar-se com a primeira versão da
disciplina, constata-se que foram acrescentados os conteúdos
de dupla projeção ortogonal e projeções cotadas, elementos
fundamentais do rebatimento, e excluídos os conteúdos de
câmara clara, retroprojetor e meios fotográficos, aproximando a
disciplina aos conteúdos trabalhados em Geometria Descritiva e
Desenho Técnico. A alteração da nomenclatura,22 no transcorrer
da história do Departamento, pode auxiliar na compreensão da
trajetória de diferentes grupos sociais envolvidos com o ensino do
Desenho, direcionado à formação de professores (Matemática e
Desenho) e ao exercício profissional dos Cursos de Engenharia.
Para Elias (2000), parte da pesquisa configuracional caracteriza-
se por meio de uma análise processual dos fatos, os quais ocorrem

22
Hernández menciona que, para compreender as mudanças nas concepções
e práticas da educação artística, deve-se recorrer à história do currículo.
Ele considera que o “nome” que a disciplina foi tendo em cada contexto
educacional sinaliza mudanças nas finalidades da educação em arte ou da
educação no âmbito em geral, “assim, não se fala da mesma coisa quando
são utilizadas denominações como desenho, expressão plástica, educação
estética, educação visual e plástica”. (HERNÁNDEZ, 2000, p. 40).

415
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

num tempo histórico e social determinado, categoria que será


aprofundada a seguir.

Ensino de Desenho no Setor de Ciências Exatas

Este tópico abrange duas partes: a primeira mostra o período


de transição dessa unidade administrativa, fase em que o antigo
Departamento de Desenho e Geometria Descritiva passa a ser
denominado de Departamento de Matemática Aplicada e Desenho;
e a segunda simboliza o início da sua fase de consolidação, no
qual passará a ser reconhecido como Departamento de Desenho
ao romper seu vínculo com o Departamento de Matemática.
O Departamento 153 de Desenho e Geometria Descritiva
foi absorvido pelo Departamento de Matemática Aplicada e
Desenho. A nova denominação do Departamento coincide com
o começo de suas atividades.23 Para pôr em funcionamento essa
estrutura, foram nomeados pro tempore, como chefe e subchefe,
os professores Orlando Silveira Pereira e Armando M. Teixeira de
Freitas, respectivamente.
O professor Orlando esclarece que “o Departamento de
Matemática Aplicada e Desenho ficou constituído pela soma do
Departamento de Desenho e Geometria Descritiva e parte do
Departamento de Computação e Estatística” (UFPR, 1973b, s.p.).
Quanto às disciplinas, na ata da reunião departamental de 12 de
dezembro de 1973, tem-se a nova conformação:

Desenho Geométrico I, Desenho Geométrico II, Geometria


Descritiva I, Geometria Descritiva II, Geometria Descritiva III,
Desenho Técnico I, Desenho Técnico I-A, Desenho Técnico II,
Nomografia, Introdução à Computação Eletrônica, Processamento
de Dados, Cálculo Numérico e Cálculo das Diferenças Finitas.
(UFPR, 1973b, s.p.).

23
Criado pelo Decreto n. 72717, de 29 de agosto de 1973.

416
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

E, referente ao quadro docente, os professores são elencados


de acordo com os seus planos de carreira, a saber:

TITULARES – José Cavallin, Jucundino da Silva Furtado, Orlando


Silveira Pereira e Theodocio Jorge Atherino24 (Magnífico Reitor da
UFPR); ADJUNTOS – Armando Muniz Teixeira de Freitas, Augusto
Conte, Clion Dória, Eurico Dacheux de Macedo, Jayme Machado
Cardoso, Jurandyr Pavão, Leonidas Aniceto de Souza e Lourenço
da Silva Mourão; ASSISTENTES – Gilberto Azeredo Lopes, Jorge
Bernard, Jose Ribeiro do Nascimento Junior, Leonilda Auriquio,
Mila Aguilar e Roberto Portugal Alves; AUXILIARES DE ENSINO –
Afonso Celso C. Teixeira de Freitas25, Carlos Jorge Zimmermann26,
Carlos Alberto Picanço de Carvalho27, Fernando Bley Vicente de
Castro28, Jurandyr Foltran, Ladislau Borges de Campos29, Manoel
Jorge da Silva Junior, Olavo Del Claro Junior, Osni Stricker, Paulo
Cesar Busnardo, Reynaldo Machado Bittencourt, Ronald Leal30,

24
Em 1965, apresentou sua tese para cátedra na Escola de Engenharia,
referente à Matemática III – Cálculo numérico, intitulada: “Nomogramas de
pontos alinhados: facilidade de sua construção e utilização”. Entre outras
publicações, citamos: “Matemática” (1970); “Introdução ao estudo da
linguagem FORTRAN” (1972), em coautoria com Eurico Dacheux de Macedo
e Akeo Tanabe; e “O fato e a fala” (1977).
25
Em 1986, defendeu sua dissertação: “Software empresarial qualidade ao
longo do desenvolvimento”, no Instituto Militar de Engenharia.
26
Em 1974, defende sua dissertação de mestrado intitulada “SIESTA – um
sistema integrado estatístico conversacional”, e, em 1984, publica o livro
“Processamento interativo: a linguagem de programação APL”.
27
Concluiu o mestrado em 1973, na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. A pesquisa tem como título “T-Automaton e particionamento
de matrizes de transição”. Finalizou o doutorado em 1979, na University of
Waterloo, com a pesquisa “On program analysis with inequations and binary
relation”.
28
Em 1975, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, finaliza a
dissertação “Utilização de linguagem com manipulação de fórmulas para
minimização de funções”.
29
Publica os livros: “Álgebra matricial” (1983) e “Cálculo numérico” (1983).
30
Em 1974, defende o mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de

417
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Renato Emilio Coimbra e Robson Scardua; REGENTES – Elato


Silva e Hayton Silva. (UFPR, 1973b, s.p., negrito nosso)31.

Nessa fase, o Departamento tem 34 professores, sendo que


Theodocio Jorge Atherino e Eurico Dacheux de Macedo possuem
cargos na Reitoria, Jayme Machado Cardoso e Carlos Alberto
Picanço de Carvalho prestam serviços em outros departamentos.
Essa configuração tem duração de seis meses, vigente de 12 de
dezembro de 1973 até 15 de junho de 1974. A partir de então, o
Departamento retoma seu molde inicial e recebe a denominação
de Departamento de Desenho.
O Departamento continua com a mesma denominação até
novembro de 2008, contudo o recorte aqui proposto aplica-se até
1977. Na conjuntura em questão, tanto as disciplinas, quanto os
professores modificam sua conformação, o que permite aplicar
o conceito de figuração de Norbert Elias, em que:

[...] uma Figuration é uma formação social, cujas dimensões podem


ser muitas variáveis (os jogadores de um carteado, a sociedade de
um café, uma classe escolar, uma aldeia, uma cidade, uma nação),
em que os indivíduos estão ligados uns aos outros por um modo
específico de dependências recíprocas e cuja reprodução supõe
um equilíbrio móvel de tensões. (ELIAS, 2001, p. 13).

Para Elias, o objeto de estudo da sociologia tem como questão


“saber de que modo e por que os indivíduos estão ligados entre
si, constituindo assim, figurações dinâmicas específicas” (ELIAS,

Janeiro, com o tema “Um modelo probabilístico para avaliação e análise de


desempenho de sistemas de programação”.
31
Considerando os titulares, os adjuntos e os assistentes, de acordo com as
unidades de origem, temos: 12 professores da Faculdade de Engenharia, 2
professores da Faculdade de Engenharia Química, 1 professor da Faculdade
de Agronomia, 1 professor da Faculdade de Química e 2 professores da
Faculdade de Filosofia. In: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Boletim
Administrativo da Universidade Federal do Paraná, ano XVI, n. 194, jul. 1971,
p. 5-6.

418
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

2001, p. 13). Sua sociologia se opõe às categorias idealistas do


indivíduo em si, o autor prefere pensar que a liberdade de cada
indivíduo está sujeita a uma rede de dependências recíprocas,
em que a ação de cada sujeito isolado depende de uma série de
outras, que, por sua vez, modificam o jogo social. O conceito de
figuração aparece em seu estudo sobre a sociedade de corte,
no entendimento de que uma figuração não é fruto de um único
indivíduo, mas se trata de como os indivíduos estão interligados e
como sua situação social os une de modo particular (ELIAS, 2001).
Adotar a categoria figuração para o estudo do Departamento
implica em que, nas análises das fontes, empreguemos o método
configuracional. Esse método se opõe à pesquisa estatística, ou,
muitas vezes, as análises quantitativas são a primeira etapa da
análise sociológica que faz uso da pesquisa configuracional, no
entendimento de que:

[...] a análise sociológica baseia-se no pressuposto de que


todos os elementos de uma configuração, com suas respectivas
propriedades, só são o que são em virtude da posição e função
que têm nela. Assim, a análise ou separação dos elementos é
meramente uma etapa temporária numa operação de pesquisa, que
requer a complementação por outra, pela integração ou sinopse dos
elementos, do mesmo modo que esta requer a suplementação pela
primeira; aqui, o movimento dialético entre a análise e a síntese
não tem começo, nem fim. (ELIAS, 2000, p. 58).

Neste estudo, o elo central da pesquisa configuracional


parte da função social que cada docente toma para si no DDES,
articulado em dois pontos: os conteúdos das disciplinas e sua
permanência ou não como matriz do ensino de Desenho; o
grupo de docentes que marca a fase embrionária dessa unidade
administrativa, ponderando suas atividades no ensino da
graduação e na pesquisa.32

32
Mapeou-se a produção acadêmica dos professores com base nas publicações
disponíveis no Sistema de Biblioteca da UFPR (SiBi/UFPR), incluindo

419
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Considerando os cursos e os professores, entre 1975 e 1977,


o Departamento presta serviço às graduações de Matemática,
Arquitetura e Urbanismo, Geologia, Licenciatura em Ciências,
Desenho Industrial e Comunicação Visual; e às engenharias Civil,
Química, Mecânica, Elétrica, Agronômica, Florestal e Cartográfica.
De acordo com a escala de férias de 1976, o corpo docente do
Departamento é constituído por 17 professores: Orlando S. Pereira,
Jucundino da Silva Furtado, Augusto Conte, Clion Dória, Jurandyr
Pavão, Lourenço da Silva Mourão, José R. do Nascimento Junior,
Leonilda Auriquio, Gilberto Azeredo Lopes, Jorge Bernard, Mila
Aguilar, Roberto Portugal Alves, Renato Emilio Coimbra, Hayton
Silva, Antonio Mochon Costa, Joaquim Mancio da Silva, Milton de
Macedo Cavalcanti.33 Ao comparar com a configuração anterior,
sistematizada pela união dos departamentos no início de 1974,
os professores Antonio Mochon Costa34 e Milton de Macedo
Cavalcanti iniciam suas atividades já nessa formatação.
Quanto às disciplinas, em 1975, há duas alterações em
relação ao modelo aprovado anteriormente: primeiro, a mudança
do nome da disciplina de Desenho de Observação e Croquis para
Desenho Técnico III e a alteração do seu conteúdo; segundo, a
adaptação das disciplinas de Desenho para Engenharia Civil,
denominadas de Expressão Gráfica I (Geometria Descritiva) e
Expressão Gráfica II (Desenho Técnico I e II).

mestrado, doutorado e livros.


33
Antonio M. Costa, Joaquim M. da Silva e Milton de M. Cavalcanti não
constavam na relação de professores lotados no Departamento em abril de
1975; no entanto, ainda faziam parte do grupo os docentes José Cavallin
e Jayme M. Cardoso. In: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA/
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Fastos Universitários. v. 1, n. 5,
maio 1975, p. 424-425.
34
Em 1976, apresenta a dissertação de mestrado “Métodos para a solução
do problema geodésico inverso mediante a representação esférica do
elipsoide”. De acordo com o Edital n. 01/77, o professor é aprovado no quadro
permanente da UFPR na categoria Assistente. No mesmo edital, também
foi aprovado o professor Roberto Alexandre Schelemm. In: MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO E CULTURA/UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Fastos
Universitários. v. 3, n. 7, jul. 1977, p. 3120.

420
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

A mudança da disciplina de Desenho Técnico III justifica-


se pela redução da carga horária semanal e pela falta de
equipamento. O novo programa é apresentado por Augusto Conte,
conforme extrato da ata da reunião departamental realizada em
21 de maio de 1976:

Explica o professor que o programa foi reduzido de uma carga


horária de seis horas semanais para quatro horas semanais, e que
permanecem no programa quatro pontos que exigem instrumental
especial como fotografia, compasso de redução, câmara clara.
Sem este aparelhamento é quase impossível dar aula, fazer
representações no quadro negro não satisfaz. Sugere então a
substituição destes quatro pontos por quatro outros de Desenho
Técnico, existentes no programa anterior de seis horas. (UFPR,
1976a, s.p.).

A professora Mila Aguilar sugere que se mantenha o programa


e que se explique que essa substituição de conteúdo é provisória,
até que se adquiram os instrumentos necessários, conforme
menção abaixo:

Dever-se-ia manter o programa original e colocar um adendo


mencionando que os pontos: a) Processos e instrumentos adotados
no desenho de vegetais e insetos, microorganismos e animais; b)
Câmara-clara, retroprojetor e meios fotográficos; c) Reproduções de
lesões em geral; d) Órgãos e aparelhos de insetos. Com exceção
de meio fotográfico, seriam substituídos pelos seguintes: a) Dupla
projeção ortogonal, representação dos elementos fundamentais;
b) Escalas, cotagem e esboço. Generalidade; escala natural
de redução e ampliação. Normas técnicas sobre cotas e linhas
auxiliares de cotas. Esboço técnico e artístico; c) Noções sobre
perspectiva cavaleira e isométrica, exercícios; d) Convenções
topográficas. (UFPR, 1976a, s.p.).

O embate entre a posição dos professores é aprovado na


reunião seguinte, em que o Departamento atende à sugestão de

421
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Augusto Conte. A legitimidade ou não do discurso proferido por


cada professor remete-nos à colocação de Hernández, ao se
fundamentar em Foucault para compreender como determinado
modelo educacional se efetiva como padrão, na conexão entre
formas de saber e estratégias de poder.

A legitimação se observa como expressão de um discurso por


parte dos saberes reguladores da ação individual e social que
age com a finalidade de representar e fixar a realidade mediante
o desdobramento, de maneira visível e invisível, de elementos de
controle da educação escolar, e, portanto, dos indivíduos. Para isso,
os saberes organizados se constituem com a dupla função de excluir
outros discursos (ao determinar o próprio) e fixar determinadas
práticas sociais (legitimando-as com seu discurso). (HERNÁNDEZ,
2000, p. 63).

Percebe-se que tanto essa alteração, quanto a que foi


realizada na disciplina de Desenho Técnico I-A sinalizam que
o Departamento prioriza os conteúdos teóricos e técnicos
da representação gráfica, condensados nas disciplinas de
Desenho Geométrico, Geometria Descritiva e Desenho Técnico,
consequentemente, os conteúdos do Desenho Artístico e as
particularidades dos cursos são padronizados em função do perfil
do Departamento. O posicionamento do Departamento de manter
um “padrão” de disciplinas também se aplica à abertura de um
conteúdo específico para o Curso de Geologia:

Outro assunto a seguir debatido foi a solicitação feita pela


Coordenadoria do Curso de Geologia através do Of. nº 132/76,
indagando a possibilidade de o Departamento oferecer a disciplina
de Desenho Geológico aos alunos do Curso de Geologia. Pergunta
o Professor Presidente se cabe criar curso aqui ou não? O Setor
de Ciências Exatas nada tem a ver com Desenho Geológico por
outro lado Desenho Técnico III – para os cursos de Engenharia
Agronômica e Florestal – já é uma exceção. (UFPR, 1976b, s.p.).

422
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

Prosseguindo a análise em função da demanda do ano de


1977,35 as disciplinas ofertadas incluem: Desenho Geométrico I
e II, Geometria Descritiva I e II, Nomografia, Desenho Técnico I,
Desenho Técnico III, Expressão Gráfica I e II. Retomando Chervel,
concluímos que esses três anos iniciais do DDES irão moldar a
prática do professor de Desenho, já que, de acordo com o autor,
as mudanças curriculares são processos lentos e se enraízam em
função de um “modelo pedagógico” já aceito. O modelo aceito é
o ensino de Desenho que atende aos cursos de Engenharia, cuja
ênfase é o conteúdo básico de Desenho. A categoria figuração e
o modelo configuracional de análise abrangem uma variedade de
fontes e recursos metodológicos, aqui articulados em dois eixos:
o ensino e a pesquisa. Concordando com Hernández, a presente
pesquisa visa contribuir com as novas práticas de pesquisa
histórica, ciente da função social e simbólica que o discurso
científico assume diante da materialidade dos fatos – o que
justifica a necessidade de materializar os conteúdos disciplinares
que marcam o ensino de Desenho no Setor de Ciências Exatas
em seus primeiros anos de gestão.

Considerações finais

Constatou-se que o DDES tinha seus professores originários


do Instituto de Matemática, sendo a maioria dos docentes
provenientes da unidade de Engenharia (SANTOS, 2012, p.
39-40). Também se percebe que a configuração proposta pelo
“Departamento de Matemática Aplicada e de Desenho” teve
uma duração temporária. E, por fim, o DDES, que inicia sua
trajetória institucional em 1974, atende três conteúdos: Desenho
Geométrico, Geometria Descritiva e Desenho Técnico.
Dentre os interlocutores que participaram dessa etapa da

35
Nesse ano, de acordo com o Regimento do Setor de Exatas, aprovado na
22ª reunião do Conselho Setorial, o Setor coordenava cinco departamentos,
a saber: Matemática, Desenho, Informática, Química e Física. In:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Regimento do Setor de Ciências
Exatas. p. 4.

423
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

história do Departamento, destaca-se a atuação dos professores:


Orlando Silveira Pereira, como chefe do Departamento; José
Cavallin36, por representar a sustentação teórica dos conteúdos de
Geometria Descritiva agregada aos livros produzidos nas décadas
de 1950 e 1970; Augusto Conte, que tinha representatividade nas
reuniões departamentais e conseguiu padronizar os conteúdos
disciplinares; além dos docentes com cargos administrativos, os
quais possuem volume de publicações, como Theodocio Jorge
Atherino, Eurico Dacheux de Macedo e Idefonso Clemente Puppi.
Enfim, constatou-se que existe uma hierarquização de
atividades entre os docentes e que a fase inicial do Departamento
traz o peso da Reforma Universitária. Em decorrência da Reforma,
tem-se uma retórica oficial que difere da ação habitual do professor.
Isto é, oficialmente, a carreira do Magistério Superior não é mais
regulamentada pelo regime de cátedra, no entanto ainda está
internalizado pelo grupo o valor agregado ao tempo de serviço na
instituição, indícios latentes: a) pela própria estruturação formal
das atas que marcam a posição de cada professor pela classe; b)
pela retórica constante entre os professores de que a existência
do conteúdo de Desenho no vestibular melhoraria a qualidade
dos alunos que ingressam no Ensino Superior; c) pelas lacunas
referentes aos encargos didáticos dos professores.
Sobre as concepções educacionais e pedagógicas, tem-se o
ensino de Desenho centrado numa vertente técnica direcionado
aos cursos de Engenharia, porém, em paralelo, o Desenho tem
um viés artístico. O Desenho como linguagem artística não é a
opção escolhida pelo grupo, já que a preocupação inicial de se
criar um Curso de Licenciatura em Desenho citada pelo corpo
docente do Departamento de Desenho e Geometria Descritiva
se efetiva pelo Departamento de Artes somente em 1983,37 com

36
Em 10 de março de 1976, a Universidade outorga o título de Professor
Emérito, saudação feita por José Bittencourt de Paula. In: MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO E CULTURA/UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Fastos
Universitários. v. 2, mar. 1976, p. 426-429.
37
In: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Conselho de Ensino e Pesquisa.

424
História e Perspectivas, Uberlândia (57): 395-428, jul./dez. 2017

a criação do Curso de Educação Artística com as habilitações


em Desenho e Artes Plásticas; pois, em 1975,38 é implantado
primeiramente o Curso de Licenciatura em Educação Artística,
de 1º grau, transferindo a esse Departamento a formação do
professor para o Ensino Básico.

Referências

BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva,


2006.
BRASIL. Lei n. 4.024 de 20 de dezembro de 1961. Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://presrepublica.
jusbrasil.com.br/legislacao/108164/lei-de-diretrizes-e-base-de-1961-
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BRASIL. Lei n. 5.540 de 28 de novembro de 1968. Disponível em: <http://
www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-5540-28-novembro-
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para o ensino de 1º e 2º graus. Disponível em: <http://presrepublica.
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Recebido em setembro de 2016.


Aprovado em dezembro de 2017.

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