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CULTURA E DESENVOLVIMENTO  1

ed.
27
CULTURA E
DESENVOLVIMENTO

Agenda 2030 e a cultura nos ODS:


conceitos, estratégias e indicadores

Sustentabilidade
a partir da cultura:
compreensões, reflexões
e inspirações

Inovação e equidade:
novas abordagens para
políticas culturais
2 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

No ano de 2015, a ONU estabeleceu


a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável, um plano de ações para
as pessoas, para o planeta e para
a prosperidade. A partir de 17 objetivos,
a agenda visa, no prazo de 15 anos,
fortalecer a paz universal, erradicar
a pobreza e buscar um desenvolvimento
que pense um mundo mais sustentável.
Orientações que remetem às esferas
econômica, social e ambiental.
A relação entre cultura e desenvolvimento
aparece frequentemente no campo
da gestão e das políticas. No entanto,
a cultura não esteve presente em
nenhum dos 17 ODS. A edição número
27 da Revista Observatório se propõe a
discutir como a cultura pode contribuir
para a Agenda 2030 e para um
desenvolvimento que caminhe em direção
à sustentabilidade e à equidade social.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO  3
CULTURA E DESENVOLVIMENTO
Memória e Pesquisa / Itaú Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural - N. 27 (abr. 2020/out. 2020) –


São Paulo : Itaú Cultural, 2007-.

Semestral

ISSN 1981-125X (versão impressa)


ISSN 2447-7036 (versão on-line)

1. Gestão cultural. 2. Impactos da cultura. 3. Cultura e sociedade.


4. Diversidade cultural. Desenvolvimento cultural. 6. Comportamento
cultural. I. Itaú Cultural

Bibliotecário Jonathan de Brito Faria CRB-8/8697


expediente
REVISTA Ilustração NÚCLEO
OBSERVATÓRIO André Toma OBSERVATÓRIO

Conselho editorial Supervisão de revisão Gerência


Alfons Martinell Sempere Polyana Lima Marcos Cuzziol
Luciana Modé
Rafael Figueiredo Revisão Coordenação
Karina Hambra Luciana Modé
Edição e Rachel Reis
Alfons Martinell Sempere (terceirizadas) Produção
Rafael Figueiredo
Preparação de textos Tradução
Ana Clemente Carmen Carballal
(terceirizada) (terceirizada) NÚCLEO DE
COMUNICAÇÃO E
Projeto gráfico RELACIONAMENTO
Marina Chevrand/ EQUIPE ITAÚ
Serifaria CULTURAL Gerência
Ana de Fátima Sousa
Design Presidente
Iara Pierro de Camargo Alfredo Setubal Coordenação editorial
Carlos Costa
Produção gráfica Diretor
Lilia Góes Eduardo Saron Curadoria de imagens
André Seiti
Ensaio artístico
Fernando Uehara Produção editorial
Luciana Araripe
Pamela Rocha Camargo
aos leitores
Cultura e desenvolvimento,
uma relação difícil

Esta edição da Revista Observatório trata partir do final da Segunda Guerra Mundial
de dois grandes conceitos amplamente re- e do estabelecimento de um contexto mul-
lacionados no campo da gestão e das polí- tilateral –, não se encontram evidências de
ticas culturais: cultura e desenvolvimento. inclusão efetiva da cultura na agenda polí-
Contextos com muitas definições e aprecia- tica do desenvolvimento nem da aceitação
ções difíceis de delimitar para se chegar a do desenvolvimento nas políticas culturais.
conclusões determinantes. Por essa razão, Existem algumas exceções ou períodos,
exigem do leitor certa tolerância intelectual mais ou menos transcendentais, mas não
para entender seus diferentes usos de acor- há resultados evidentes de uma integração
do com realidades variadas. Um assunto que entre cultura e desenvolvimento nas políti-
precisa ser analisado a partir de pontos de cas culturais em geral. Devemos valorizar
vista e perspectivas heterogêneos para que as iniciativas nas políticas locais ou nas
se entenda sua complexidade interna. É ne- ações dos cidadãos e da sociedade civil,
cessário um permanente exercício de con- que se destacam com resultados evidentes
textualização, como nos diz Edgar Morin, e mudanças significativas, evidenciando a
para trabalhar em um mundo globalizado e importância do local (proximidade) para o
interdependente. desenvolvimento.
Esse é um debate amplo e antigo, que A partir das instâncias nacionais, o
muitas vezes não encontra um desfecho tratamento da cultura responde a certos
satisfatório, mas do qual, por seus antece- grupos de pressão e ao formato clássico
dentes históricos, se pode apreciar a evo- do Estado-nação, em que a cultura desem-
lução nas discussões internacionais e nas penha uma função de consolidação de um
adaptações nacionais. projeto político. Essas posições não chegam
Apesar de as retóricas políticas de- a diferenciar o que entendem por cultura
fenderem “que não há desenvolvimento de Estado ou de nação, por cultura de pes-
sem cultura ou que a cultura é imprescin- soas, indivíduos ou coletivos e por direitos
dível para o desenvolvimento” – na análise culturais. Nessa diferenciação, podemos
das políticas nacionais e internacionais a encontrar algumas chaves para deduzir ou
10 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

identificar as causas dessa discordância excluído dessas dinâmicas, como se a cul-


entre cultura e desenvolvimento, que está tura não fosse convocada para esses pro-
nas próprias raízes da concepção de cada pósitos. Mas devemos destacar as grandes
um desses conceitos. contribuições da cultura para o desenvol-
As organizações tradicionais das polí- vimento, a paz, a convivência ou a solida-
ticas de desenvolvimento e combate à po- riedade, como nos casos da África do Sul
breza resistem efetivamente a considerar a na luta contra a Aids e do conflito nos Bál-
cultura como uma opção de desenvolvimento cãs. Da mesma forma, a cultura, a partir
e, principalmente, a situar as necessidades de demandas locais, contribui para criar
culturais em algum tipo de tratamento (não condições de convivência, vizinhança e
estamos falando de prioridade) em relação coesão social, como é demonstrado por
a outras necessidades ou problemáticas. Há experiências práticas.
mentalidades na abordagem do desenvolvi- Apesar das grandes orientações em
mento fundamentadas em uma visão que o nível internacional e das políticas nacio-
relaciona ao assistencialismo e que consi- nais de desenvolvimento, não podemos
dera a cultura como algo prescindível, um esquecer que a maioria das dinâmicas de
luxo ou, em alguns casos, uma frivolidade desenvolvimento humano ocorre em am-
ante situações de precariedade. biente local, em que a proximidade traz a
É evidente que o bem-estar e a riqueza percepção de melhoria, bem-estar e pro-
permitem uma vida cultural mais plena, mas gresso, sem esquecer que esses resultados
essa afirmação não implica considerar que podem estar condicionados por propostas
a pobreza não admite a cultura. A pobreza mais centrais.
econômica não é análoga à pobreza cultu- Nessa relação existem, porém, al-
ral. Aqui se abre um debate muito importante guns problemas fundamentais a ser con-
para situar a cultura na dinâmica do desen- siderados. Em primeiro lugar, nem tudo
volvimento e da luta contra a pobreza. que a cultura gera para a sociedade pode
Além das considerações gerais sobre ser assinalado como colaboração para o
cultura e desenvolvimento, devemos con- desenvolvimen­to. Há contextos da cultura
templar uma relação valiosa entre esses que são julga­dos como contribuições mais
dois conceitos e os direitos humanos e cul- diretas para o desenvolvimento, enquanto
turais, que formam o triângulo para pensar outros, mais intangíveis e subjetivos, não
o conceito de desenvolvimento humano são vistos como determinantes para tal.
sustentável. Com base nessa abordagem, Atualmente, temos que situar essa re-
as perspectivas são distintas e exigem a in- flexão no contexto da Agenda 2030 e dos
ter-relação de diferentes conceitos, como Objetivos de Desenvolvimento Sustentá-
liberdade cultural,1 diversidade cultural2 e vel (ODS), referências importantes para a
vida cultural.3 comunidade internacional e para todos os
O próprio setor cultural não de- agentes culturais de diferentes níveis terri-
monstrou muito interesse nem se sentiu toriais. Embora os ODS não incorporem um
CULTURA E DESENVOLVIMENTO  11

objetivo cultural,4 há todo um trabalho nessa “Indicadores de Cultura para a Agenda 2030”.
linha, como é possível ver nos diferentes ar- Pensar em termos de sustentabilida-
tigos com diferentes abordagens. de de futuro exige uma profunda mudança
No processo de edição desta publicação, na mentalidade tradicional do setor e das
o Fórum Mundial de Ministros da Cultura de políticas culturais em todos os níveis, que
Paris, Unesco (novembro de 2019), foi reali- devem configurar sua contribuição para
zado com a apresentação de um interessan- esse desafio mundial.
te documento, “Cultura e políticas públicas O conjunto de contribuições apresen-
para o desenvolvimento sustentável. Fórum tado por diferentes autores nesta edição nos
de Ministros da Cultura”, com uma atua- leva a um aprofundamento no campo da cul-
lização de reflexões e propostas de grande tura e do desenvolvimento5 e a debates em
interesse. Juntamente com a publicação dos acordo com a realidade atual.
12 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Notas

1 PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano 2004. Liberdade Cultural


num Mundo Diversificado. Nova York: PNUD, 2004.

2 UNESCO. A Nossa Diversidade Criativa: Relatório da Comissão Mundial de Cultura


e Desenvolvimento. Paris: Unesco, 1996. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.
org/images/0010/001055/105586sb.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2019.

3 MARTINELL, A. Vida Cultural, Vida Local. Agenda 21 for Culture – Committee on


Culture of United Cities and Local Governments (UCLG). Disponível em: <http://
www.agenda21culture.net/sites/default/files/files/documents/en/newa21c_
alfons_martinell_eng.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2019.

4 Ver MARTINELL, A. Cultura para el Desarrollo y Educación: Ciudadanos


Globales. In: E-DHC – Quaderns Electrònics sobre el Desenvolupament Humà i la
Cooperació, n. 5. Espanha: Universidade de Valência, 2015. Disponível em: <http://
www.uv.es/edhc/edhc005_martinell.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2019.

5 MARTINELL, A. El Desarrollo desde la Cultura In: Revista Española


de Desarrollo y Cooperación, n. 37. Madrid: Instituto Universitario de Desarrollo
y Cooperación, 2017.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO  13
9. Aos leitores 34. A cultura nos ODS:
Alfons Martinell perspectivas a partir da ação

1.
local e da Agenda 21 da Cultura
Jordi Baltà e Jordi Pascual
PERSPECTIVAS DA
CULTURA NO DESENVOLVIMENTO 46. Uma abordagem cultural
E NA AGENDA 2030 do desenvolvimento para
a gestão da cultura
21. A dimensão cultural Aarón Espinosa Espinosa
do desenvolvimento:
rumo à integração do 61. Indicadores de
conceito nas estratégias de Cultura da Unesco para o
desenvolvimento sustentável Desenvolvimento (IUCD)
Máté Kovács Guiomar Alonso
sumário

2. INSPIRAÇÕES E CAMINHOS
PARA A INTEGRAÇÃO DA CULTURA
119. As desigualdades culturais:
o ético, o étnico e a comunidade
Paula Moreno
NO DESENVOLVIMENTO
133. Diversidade e desenvolvimento.
83. O que entendemos por Agenda 2030: rumo à descolonização
sustentabilidade a partir da cultura? dos nossos mundos
Marta García Haro e Lucía Vázquez Lucina Jiménez

95. Cultura e desenvolvimento: 145. É a democracia, estúpido


existem resultados e impactos? Marta Porto

3.
Paulo H. Duarte-Feitoza

107. Rumo a uma abordagem LABORATÓRIO DE IDEIAS


cultural para o desenvolvimento: o PARA AS POLÍTICAS CULTURAIS
caso de Yopougon, na Costa do Marfim
Francisco d’Almeida, David Koné 160. Entrevista com
e Valeria Marcolin Ernesto Ottone Ramírez
Alfons Martinell

Os textos/entrevistas desta revista não


necessariamente refletem a opinião
do Itaú Cultural.
Fernando Uehara, arquiteto, designer e ilustrador.
Formado pela FAU/USP, trabalha em seu estúdio
com uma proposta de uma atuação multidisciplinar,
destacando-se pela diversidade de linguagens na
elaboração dos projetos. Responsável pela comunicação
visual do Museu da Imigração do Estado de São Paulo,
atualmente faz expografia e comunicação visual de
exposições para várias instituições de cultura do país.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO

A palavra “hamon”, no idioma japonês, designa as oscilações que se propagam por


todos os lados, a partir de um ponto, quando uma gota atinge a superfície d’água.
Partindo deste conceito, procuro refletir a respeito das consequências
dinâmicas que se originam a partir de um pequeno ponto.
As ações locais tendem a agir, como na milenar técnica da acupuntura,
não apenas sobre o local de sua origem, mas também na realidade de um entorno
maior, reverberando e ecoando sua existência e definindo um novo desenho
no território, tal qual faz a gota e seu subsequente “hamon”.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO
20 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

1.
PERSPECTIVAS
DA CULTURA NO
DESENVOLVIMENTO
E NA AGENDA 2030

21. A DIMENSÃO CULTURAL


DO DESENVOLVIMENTO: RUMO
À INTEGRAÇÃO DO CONCEITO
NAS ESTRATÉGIAS DE
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Máté Kovács

34. A CULTURA NOS ODS:


PERSPECTIVAS A PARTIR DA AÇÃO
LOCAL E DA AGENDA 21 DA CULTURA
Jordi Baltà e Jordi Pascual

46. UMA ABORDAGEM CULTURAL


DO DESENVOLVIMENTO PARA
A GESTÃO DA CULTURA
Aarón Espinosa Espinosa

61. INDICADORES DE
CULTURA DA UNESCO PARA
O DESENVOLVIMENTO (IUCD)
Guiomar Alonso
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Máté Kovács 21

A DIMENSÃO CULTURAL
DO DESENVOLVIMENTO:
RUMO À INTEGRAÇÃO DO
CONCEITO NAS ESTRATÉGIAS DE
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Máté Kovács

O conceito de dimensão cultural do desenvolvimento foi formulado há quase 50 anos, durante


a Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais na África (Africacult – Accra,
Unesco/OUA, 1975), que salientou que “o desenvolvimento cultural não é somente um cor-
retivo qualitativo do desenvolvimento, mas a verdadeira finalidade do progresso”.1 Mais de
quatro décadas depois, ainda estamos longe da aceitação e da aplicação generalizadas desse
princípio, mas é possível observar um inquestionável progresso em direção à compreensão
de suas complexas implicações, tanto teóricas quanto práticas.

Introdução

O
objetivo deste artigo é relembrar a Mais detalhes sobre a primeira etapa
evolução das abordagens da cultu- podem ser encontrados no artigo Evolução
ra e do desenvolvimento em nível das Abordagens da Cultura e do Desenvol-
internacional e, em particular, no âmbito vimento em Nível Internacional. Portanto,
dos diversos fóruns e iniciativas da Unesco. após recapitular rapidamente a primeira
Tentaremos recapitular as grandes etapas fase, concentramos o estudo no tema da in-
desse processo e estabelecer um balanço tegração da cultura na Agenda 2030 para o
crítico dos resultados alcançados e dos desenvolvimento sustentável.2
problemas encontrados nessa complexa
operação, a partir da definição do conceito Contexto e antecedentes
da dimensão cultural do desenvolvimento e A reflexão sobre cultura e desenvolvimento
até a sua integração nas estratégias de coo- tem sua origem na crítica ao conceito econo-
peração para o desenvolvimento. micista do desenvolvimento que permitiu ver
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

claramente, a partir do final dos anos 1960, conferências intergovernamentais sobre


que esse modelo não era sustentável em políticas culturais que destacaram a neces-
longo prazo. Na verdade, o balanço da Pri- sidade de reconhecer o papel que a cultura
meira Década Internacional para o Desen- deve desempenhar no desenvolvimento. Es-
volvimento das Nações Unidas (1988-1997) sas conferências foram acompanhadas por
mostrou os limites de um desenvolvimento um grande número de iniciativas, incluindo
fundado principalmente – se não exclusiva- consultas, reuniões de especialistas, proje-
mente – no crescimento econômico e eviden- tos de pesquisa e publicações que permitiam
ciou ser necessário adotar outro conceito, o especificar a definição dos conceitos sobre
de um desenvolvimento humano e sustentá- cultura, desenvolvimento e dimensão cul-
vel que garantisse o respeito ao meio ambien- tural do desenvolvimento.
te, às diversidades culturais e às aspirações Assim, em 1982, a Conferência Mun-
humanas por um futuro próspero, pacífico e dial sobre as Políticas Culturais (também
harmonioso, um desenvolvimento equitativo conhecida como Mondiacult, realizada
e solidário de todas as sociedades. no México), ao sintetizar esses esforços,
Afirmou-se a importância de considerar adotou uma ampla definição antropológica
não apenas os critérios de produtividade e de da cultura, constatando que “é constituída
necessidades básicas e materiais, mas tam- pelo conjunto dos diferentes traços, espi-
bém a identidade cultural em que se baseia rituais e materiais, intelectuais e afetivos
a visão do ser humano que deve ser ator e que caracterizam uma sociedade ou um
objeto do desenvolvimento. grupo social”.4
Em relação a isso, o grande teórico bra- Em relação ao conceito de desenvol-
sileiro do desenvolvimento Celso Furtado vimento, a Conferência Mundial sobre as
enfatizou, desde a década de 1970, a plurali- Políticas Culturais declarou que “a cultura
dade desse conceito, que deve ser endógeno constitui uma dimensão fundamental do
para ser eficaz e compatível com o contexto processo de desenvolvimento”, e, portan-
local. Ele considerou que o objetivo estratégi- to, “somente é possível garantir um desen-
co desse modelo é favorecer um desenvolvi- volvimento equilibrado por intermédio da
mento que resulte em um enriquecimento da integração dos fatores culturais nas estra-
cultura em suas múltiplas dimensões e que tégias para alcançá-lo”. 5
contribua de forma criativa para o progresso Como se tratava de novas ideias, cuja
das civilizações do planeta.3 promoção precisava de mobilização inter-
nacional e de esforço coordenado e de longo
Esforços realizados nas primeiras prazo, a Unesco lançou a Década Mundial
décadas entre 1975 e 2010 do Desenvolvimento Cultural (1988-1997),
Inspirada no espírito do Africacult, a Unesco sob a égide das Nações Unidas, com o prin-
se tornou um fórum de reflexão internacional cipal objetivo de obter o reconhecimento
sobre o assunto ao longo das últimas décadas, da importância de considerar a dimensão
particularmente no âmbito de uma série de cultural do desenvolvimento.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Máté Kovács 23

A Década, ao convidar Estados mem- Para a comissão, um desenvolvimento


bros, organizações internacionais, associa- dissociado de seu contexto humano e cul-
ções e indivíduos a empreender iniciativas tural é um crescimento sem alma. O papel
inovadoras para promover esse objetivo, da cultura não se reduz a ser um meio para
trouxe como resultado a realização de atingir fins, mas constitui a base social dos
1.200 projetos, incluindo reuniões inter- próprios fins.
nacionais, pesquisas, publicações, pro- A partir disso, o relatório centra-se na
dutos audiovisuais, exposições, cursos de descrição de diferentes questões relaciona-
capacitação e projetos-piloto que contri- das com a cultura e o desenvolvimento, foca-
buíram para a compreensão das interações lizando, por fim, a criação de um programa de
existentes entre a cultura ação sob o título de Agenda
e aspectos do problema do A Conferência Mundial Internacional.
desenvolvimento. sobre as Políticas Culturais Seguindo as recomen-
Entre as atividades declarou que "a cultura dações da comissão, a Unes-
lançadas no contexto da constitui uma dimensão co lançou várias iniciativas
Década, a criação da Co- fundamental do processo importantes, particular-
missão Mundial de Cultu- de desenvolvimento", mente uma nova edição da
ra e Desenvolvimento teve e, portanto, "somente Conferência, desta vez rea-
o maior impacto na evo- é possível garantir um lizada em Estocolmo, em
lução das abordagens do desenvolvimento equilibrado 1998, a fim de repensar polí-
tema. Constituída em 1992 por intermédio da integração ticas culturais em termos do
pela Unesco e pelas Nações dos fatores culturais nas reconhecido papel central
Unidas, sob a presidência estratégias para alcançá-lo". da cultura como fundação,
de Javier Pérez de Cuéllar, recurso e objetivo do desen-
ex-secretário-geral das Nações Unidas, a volvimento humano. Outra iniciativa foi a pu-
comissão fez uma importante contribuição blicação, em 1998 e 2000, de duas edições do
para o aprofundamento da reflexão durante Relatório Mundial sobre Cultura. Também
a redação de seu relatório final,6 intitulado foram realizados novos esforços de reflexão
A Nossa Diversidade Criadora. sobre os indicadores culturais do desenvol-
A análise desse relatório, que ainda é vimento, com o apoio da Agência Espanhola
muito atual, concentrou-se em como di- de Cooperação Internacional para o Desen-
ferentes formas de convivência afetam a volvimento (Aecid).7
ampliação das possibilidades abertas ao Entre os avanços ocorridos no âmbito da
ser humano. Enfatizou-se que as dimen- Década há também a pesquisa metodológi-
sões culturais da vida são consideradas ca realizada sobre conceitos, instrumentos
possivelmente mais essenciais do que o e métodos relacionados ao planejamento de
crescimento econômico, que não é um fim, projetos de desenvolvimento em uma abor-
mas um instrumento. Portanto, é necessá- dagem cultural. Essa importante atividade foi
rio transcender a economia sem omiti-la. implementada em cooperação com um grande
24 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

número de organizações e especialistas que setembro, quando era muito oportuno rea-
atuam no campo. Os resultados das investi- firmar a importância do diálogo intercultu-
gações foram publicados em obras como Cul- ral e rejeitar a tese do inevitável conflito de
tura e Desenvolvimento: para uma Abordagem culturas e civilizações. A Convenção sobre
Prática (1994) e Mudança na Continuidade a Proteção e Promoção da Diversidade das
– Conceitos e Instrumentos para uma Abor- Expressões Culturais10 (2005) não cobre
dagem Cultural do Desenvolvimento (2000). todos os aspectos da diversidade cultural,
A conferência constatou que as políticas como a declaração de 2001. Seu objetivo é
culturais devem estar ligadas a outras áreas da reforçar a diversidade das expressões cul-
vida e ser concebidas como um elemento de turais contidas nas atividades culturais e
relevância transetorial ou transversal do de- nos bens e serviços ao longo da cadeia, que
senvolvimento. Nessa perspectiva, foi adotado constituem criação, produção, distribuição/
um plano de ação8 com as diretrizes básicas disseminação, acesso e aproveitamento des-
da política cultural para o desenvolvimento. sas expressões.
O Plano de Ação de Estocolmo enfatizou Mais diretamente, a convenção enfatiza
a necessidade de considerar, nas políticas cul- a complementaridade dos aspectos econômi-
turais, simultaneamente os valores universais cos e culturais do desenvolvimento, uma vez
e as diversidades locais, harmonizando essas que a cultura é um dos principais recursos
políticas nacionais com o respeito ao plura- para a sustentabilidade.
lismo cultural. No tocante ao acompanhamento da evo-
Após a Conferência Intergovernamen- lução da situação, podemos citar o relatório
tal sobre Políticas Culturais para o Desen- mundial Investir na Diversidade Cultural
volvimento (Estocolmo, 1998), a atenção dos e no Diálogo Intercultural,11 publicado pela
Estados membros concentrou-se na questão Unesco, que analisa os desafios da diversi-
da diversidade cultural, considerada uma dade cultural e oferece uma contribuição
força motriz do desenvolvimento não apenas concreta para a agenda do desenvolvimento
para o crescimento econômico, mas também sustentável e da paz baseada no princípio da
para uma vida intelectual, emocional, moral “unidade na diversidade”.
e espiritual mais enriquecedora.
Considerou-se também que essa di- Ações para integrar a dimensão
versidade era um recurso indispensável cultural nas estratégias de
para reduzir a pobreza e alcançar a meta desenvolvimento
do desenvolvimento sustentável. Por isso, Quatro décadas após a Africacult, ainda es-
mostrou-se necessário apoiar a proteção e a tamos longe da aplicação generalizada da
promoção da diversidade cultural por meio abordagem cultural nas estratégias de desen-
de uma ação regulamentar. volvimento. Apesar disso, podemos identifi-
Numa primeira fase, foi aprovada a car tentativas que merecem ser lembradas.
Declaração Universal sobre a Diversidade Os primeiros esforços nesse sentido
Cultural, da Unesco,9 em 2001, após 11 de foram realizados a partir dos anos 1980,
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Máté Kovács 25

como a adoção da Declaração dos Aspec- • o acordo de cooperação entre a União


tos Culturais do Plano de Ação de Lagos, da Europeia e os países da África, do
Organização da Unidade Africana (OUA, Caribe e do Pacífico (ACP)12 (Acor-
1985), que infelizmente não teve implica- do de Cotonou, 2000), que em seu
ções práticas. 27 artigo sobre desenvolvimento
Nesse período, organizações não cultural declara que a ação prevista
governamentais bem estruturadas, em deve integrar a dimensão cultural na
contato direto com as comunidades bene- cooperação para o desenvolvimento;
ficiárias, como a Enda Tercer Mundo ou a • as diretrizes da South-East Asian
Oxfam, passaram a considerar as culturas Ministers of Education Organi-
e os modos de vida das populações com as zation – Regional Centre for Ar-
quais cooperavam. chaeology and Fine Arts (Seameo-
Na esfera pública, os países nórdi- -Spafa) (2004);
cos, juntamente com o Canadá e os Países • a Carta do Renascimento Cultural
Baixos, começaram a considerar as impli- Africano (2006), da União Africana;
cações das dimensões culturais do desen- • a Declaração sobre Cultura e De-
volvimento. senvolvimento13 e o relatório Colo-
Entre esses esforços, a experiência es- cando a Cultura em Primeiro Lugar
panhola merece atenção especial, por ser (2009),14 da Commonwealth.
a mais ambiciosa e completa. A partir de
2005, a Aecid assumiu a liderança na adoção Iniciativas para integrar a dimensão
da Estratégia de Cultura e Desenvolvimento cultural na estratégia das Nações
da Cooperação Espanhola, que defendia a Unidas para o desenvolvimento
integração da dimensão cultural em todas sustentável (2015-2030)
as intervenções realizadas no âmbito do pla- A partir do ano 2010, o debate sobre a rela-
no diretor da cooperação espanhola. ção entre cultura e desenvolvimento ganhou
Essa decisão veio acompanhada de ini- um novo ímpeto no contexto da preparação
ciativas de pesquisa, formação e informação da estratégia das Nações Unidas para o de-
que contribuíram para a dinamização dos senvolvimento sustentável para o período de
esforços no nível inter-regional. A Aecid, 2015 a 2030.
junto com o Programa das Nações Unidas Considerando as críticas sobre a ausên-
para o Desenvolvimento (PNUD) e a Unes- cia de uma referência direta à cultura nos
co, realizaram projetos experimentais para ODM e na estratégia das Nações Unidas de
fortalecer a integração da cultura, dimensão desenvolvimento para o período de 2000 a
negligenciada, na realização dos Objetivos 2015, os atores do setor cultural se mobili-
de Desenvolvimento do Milênio (ODM). zaram com grande otimismo e muita energia
No nível das estratégias internacionais para remediar a persistente desconsideração
e regionais, destaca-se a adoção de importan- do papel da cultura na nova agenda interna-
tes documentos, como: cional de desenvolvimento humano.
26 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A mobilização ocorreu em vários níveis para a solução de importantes questões mun-


e de múltiplas formas, incluindo reuniões, diais, como a pobreza, o meio ambiente e a
conferências, fóruns, resoluções, declara- inclusão social.
ções, convocações, criação de redes de apoio, Os resultados desses debates foram
campanhas de sensibilização internacional, sintetizados na Declaração de Hangzhou,
pesquisas, elaboração de indicadores e guias na qual os participantes do congresso insis-
metodológicos e disseminação de estudos e tiram no papel indispensável que deve ser ga-
materiais informativos. Dessas iniciativas, rantido à cultura nas estratégias públicas de
podemos mencionar apenas uma seleção li- desenvolvimento sustentável. A declaração
mitada que, a nosso ver, ilustra bem as preo- também enfatizou que a economia criativa
cupações dos atores culturais. pode ser uma reserva para o desenvolvimen-
Entre as reuniões, destacamos a Cú- to econômico e o bem-estar.
pula Mundial de Líderes Locais e Regionais Nesse espírito, a declaração propôs à co-
(Cidade do México, novembro de 2010), munidade internacional integrar a cultura
que adotou um documento de orientação como objetivo principal na nova agenda do
política intitulado A Cultura É o Quarto desenvolvimento sustentável, para além de
Pilar do Desenvolvimento Sustentável.15 2015, a fim de promover paz, reconciliação,
Esse documento propôs a modificação do direitos culturais, inclusão social, redução da
conceito de desenvolvimento sustentável pobreza, desenvolvimento urbano, coopera-
tradicionalmente articulado em torno de ção, proteção do meio ambiente e prevenção
três dimensões: crescimento econômico, de desastres naturais e mudanças climáti-
inclusão social e equilíbrio ambiental. cas. Destacou-se também a necessidade de
Recomendou-se adicionar a cultura a preservar a diversidade como patrimônio
esse modelo como um quarto pilar, já que cultural para as futuras gerações.
ela molda o que entendemos por desenvol- Outra reunião, não menos impor-
vimento e determina a forma como as pes- tante, foi o Terceiro Fórum Mundial da
soas agem no mundo. Essa integração deve Unesco sobre Cultura e Indústrias Cultu-
ser feita por meio de uma dupla abordagem: rais (Florença, 2014), no qual mais de 400
fortalecendo os próprios setores culturais e especialistas discutiram o tema Cultura,
reconhecendo a cultura em todas as políti- Criatividade e Desenvolvimento Sustentá-
cas públicas. vel – Pesquisa, Inovação, Oportunidades, e
Entre as grandes reuniões, menciona-se adotaram a Declaração de Florença,17 que
frequentemente o congresso internacional reafirmou a importância da cultura e das
ocorrido em Hangzhou,16 na China, com o indústrias culturais como fontes de criati-
tema Cultura: Chave para o Desenvolvimen- vidade e inovação, insistiu na necessidade
to Sustentável (2013), que discutiu a questão de quantificar o impacto econômico e so-
da integração da cultura na concepção, na cial da cultura e da criatividade, reconhecer
avaliação e na prática do desenvolvimento a cultura como facilitadora e impulsiona-
sustentável, assim como sua contribuição dora do desenvolvimento sustentável e que
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Máté Kovács 27

lhe deu a devida consideração na agenda de publicou vários relatórios internacionais


desenvolvimento pós-2015. que demonstraram com dados concretos
Nessa declaração, o fórum ocorrido que a cultura e as indústrias culturais não
em Florença também considerou os resul- apenas contribuem para a qualidade de
tados das consultas organizadas em 2014 vida, mas também representam um poten-
no contexto dos diálogos sobre cultura e cial considerável para o desenvolvimento
desenvolvimento pós-2015, coordenados econômico e social.
pela Unesco, UNFP (Fundo de População O Relatório das Nações Unidas sobre a
das Nações Unidas) e pelo PNUD. Esses Economia Criativa de 201319 examinou in-
diálogos permitiram reconhecer as vozes terações, especificidades e políticas locais,
da sociedade civil e dos agentes dos setores bem como de que modo a economia criativa
público e privado que se manifestaram so- é promovida na prática nos países em desen-
bre a necessidade de refletir explicitamente volvimento. Essa publicação argumenta que
o papel da cultura na agenda de desenvolvi- a criatividade e a cultura são processos ou
mento pós-2015. Em suas propostas, o fó- atributos intimamente ligados à imaginação
rum se baseou nos resultados da campanha e à geração de novas ideias, produtos ou for-
global “O futuro que queremos inclui a cul- mas de interpretar o mundo. O documento
tura”,18 impulsionada por organizações não contém informações sobre as experiências
governamentais de aproximadamente 120 realizadas no âmbito do Fundo Internacio-
países (#culture2015goal) e pelas conclu- nal para a Diversidade Cultural (FIDC), da
sões do Relatório das Nações Unidas sobre Unesco, e do Fundo do PNUD/Espanha para
a Economia Criativa 2013. a realização dos ODM, no contexto da janela
O fórum recomendou que os governos temática Cultura e Desenvolvimento.
garantam a introdução de metas e indicado- O documento de 2015 Re | pensar as
res explícitos sobre a contribuição da cultu- Políticas Culturais – Relatório Global da
ra na agenda de desenvolvimento pós-2015. Convenção de 2005, publicado pela Unesco
Também instou os governos, a sociedade em 2016,20 baseia-se em dados quantitativos
civil e o setor privado a apoiar a melhoria e qualitativos obtidos de fontes governamen-
das capacidades humanas e institucionais; tais e não governamentais.
dos ambientes jurídicos e políticos; dos no- Ao avaliar as experiências de dez anos
vos modelos de parceria e estratégias de in- de promoção da diversidade das expressões
vestimento inovadoras; e dos programas de culturais para o desenvolvimento, o relató-
apoio, das avaliações comparativas e dos in- rio analisou os resultados de acordo com os
dicadores de impacto para poder demonstrar quatro objetivos a seguir:
com dados quantitativos a contribuição da 1. apoiar sistemas sustentáveis de go-
cultura para o desenvolvimento sustentável. vernança cultural;
A fim de apoiar a inclusão da cultu- 2. equilibrar o fluxo de bens e serviços
ra como um elemento dinâmico para o culturais e a mobilidade dos atores
desenvolvimento sustentável, a Unesco culturais;
28 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

3. integrar a cultura em quadros de de- da ONU sobre cultura e desenvolvimento,


senvolvimento sustentável; que se baseia nas quatro anteriores, é o re-
4. promover os direitos humanos e as sultado de esforços internacionais conjun-
liberdades fundamentais. tos para reafirmar o papel da cultura como
facilitadora do desenvolvimento susten-
Em relação ao terceiro objetivo, o capítulo tável. A resolução incentiva todos os Esta-
8 do relatório analisa o impacto positivo da dos membros e outras partes interessadas
convenção em políticas, planos e programas relevantes a criar consciência sobre a im-
baseados no desenvolvimento cultural sus- portância da cultura no desenvolvimento
tentável. Apesar da notável evolução, ainda sustentável e garantir sua integração nas
há muito a ser feito em termos de integração políticas do setor. Especificamente, incen-
da dimensão cultural nos quadros de desen- tiva os Estados a “melhorar a cooperação
volvimento sustentável. O capítulo argumen- internacional para apoiar os esforços dos
ta que as indústrias criativas e culturais países em desenvolvimento para criar e
devem ser o principal foco de atenção para fortalecer as indústrias culturais, o turis-
as políticas voltadas para o desenvolvimento mo cultural e as microempresas relaciona-
econômico e culturalmente sustentável. das à cultura e para ajudar esses países a
A segunda edição do documento Re | desenvolver a infraestrutura e as compe-
pensar as Políticas Culturais, publicada pela tências necessárias, bem como o domínio
Unesco em 2018,21 após a adoção da Agenda das tecnologias da informação e da comu-
2030, concebida para acompanhar a aplica- nicação e o acesso às novas tecnologias em
ção da Convenção de 2005, fornece informa- condições mutuamente acordadas”. Convi-
ções sobre sua contribuição para a realização da, ainda, a “apoiar ativamente o surgimen-
dos objetivos da agenda das Nações Unidas. to de mercados locais de bens e serviços
Assim, novamente, no capítulo 8, rela- culturais e facilitar o acesso efetivo e lícito
tivo ao terceiro objetivo, são analisadas as desses bens e serviços aos mercados inter-
repercussões positivas da convenção nas nacionais, considerando a crescente gama
políticas, nos planos e nos programas rela- de produção e consumo cultural e, para os
cionados aos objetivos 4, 8 e 17 da Agenda Estados membros, as disposições da Con-
2030 para o Desenvolvimento Sustentável venção sobre a proteção e a promoção da
das Nações Unidas. diversidade das expressões culturais”.
A partir de 2010, a questão da cultura
e do desenvolvimento sustentável aparece Realizações e deficiências:
regularmente na agenda da Assembleia Geral um balanço
das Nações Unidas (Agnu). Todas essas iniciativas e esses esforços ter-
A Agnu adotou, em sua 70 sessão, minaram com um resultado ambíguo.
de 22 de dezembro de 2015, a resolução Em setembro de 2015, a Agnu apro-
A/Res/70/214,22 sobre cultura e desenvol- vou a resolução intitulada Transformar
vimento sustentável. A quinta resolução o Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Máté Kovács 29

Desenvolvimento Sustentável (A/Res/70/1), No que diz respeito ao desenvolvimento


a agenda das Nações Unidas para orientar os urbano (objetivo 11), é destacada a impor-
esforços para o desenvolvimento sustentá- tância de proteger o patrimônio cultural e
vel23 no período de 2015 a 2030. natural do mundo.
Essa estratégia inclui 17 Objetivos de De- Ao abordar o objetivo 12, relativo à sus-
senvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas tentabilidade do consumo e da produção, o do-
que estimularão, nos próximos 15 anos, ações cumento reitera a referência à importância da
nas esferas consideradas prioritárias. promoção das culturas e dos produtos locais.
Os objetivos preconizam ações para Ao examinar a Agenda 2030, podemos
enfrentar desafios ou resolver questões re- deduzir que a cultura é uma parte necessá-
lacionados a pobreza, fome, saúde, educa- ria em muitos outros campos de ação, em-
ção, igualdade de gênero, gestão de energia, bora o documento não faça uma referência
crescimento econômico, desenvolvimento explícita ao componente cultural de um pro-
de infraestrutura, inovação, desigualdade, blema ou à possível contribuição da cultura
desenvolvimento urbano, consumo e produ- para a sua solução.
ção sustentáveis, uso de recursos marinhos O documento do Cidades e Governos
e de ecossistemas terrestres, biodiversida- Locais Unidos (CGLU) intitulado A Cultura
de, paz, inclusão social e fortalecimento da nos Objetivos de Desenvolvimento Susten-
Aliança Mundial para o Desenvolvimento tável24 é um dos vários que tentam fazer um
Sustentável. inventário sistemático dos modos de ação
Embora a cultura não esteja entre os nos quais a cultura pode ou deve ser conside-
17 objetivos principais da agenda, na intro- rada como um recurso para a realização dos
dução do documento há uma referência ao objetivos e das metas de desenvolvimento.
princípio do respeito à diversidade cultural Para os autores da publicação, a ado-
(§ 8), e são reconhecidas todas as culturas ção dessa nova agenda é um pequeno passo
e civilizações que podem contribuir para o à frente na consideração dos aspectos cul-
desenvolvimento sustentável (§ 36). turais para o desenvolvimento sustentável.
Da mesma forma, nos objetivos se Segundo a diretora-geral da Unesco, a
nota a intenção de integrar aspectos cul- adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvi-
turais às ações previstas para atingir as mento Sustentável representa um grande
metas estabelecidas. avanço no reconhecimento do papel inte-
Assim, ao tratar da questão da educação gral da cultura em todos os ODS. Também
(objetivo 4), estamos falando da promoção de proporciona um novo incentivo aos Esta-
uma cultura de paz, da valorização da diver- dos membros para desenvolver políticas
sidade cultural e da contribuição da cultura e intervenções que considerem o papel da
para o desenvolvimento sustentável. cultura no desenvolvimento, e recomenda
Na questão do crescimento econômico/ a adoção de uma multiplicidade de modelos
turismo (objetivo 8), é mencionada a promo- de desenvolvimento que se adaptem ao con-
ção da cultura e dos produtos locais. texto local e coloquem a cultura no centro
30 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

das soluções de sustentabilidade (ver a in- Máté Kovács


trodução da edição de 2018 do documento Especialista húngaro em políticas culturais,
Re | pensar as Políticas Culturais – Relató- graduou-se nas línguas e literaturas húngara, fran-
rio Global da Convenção de 2005). cesa (1964) e espanhola (1965), assim como em
Ambas as partes têm razão, mas pode- filosofia (1972). É doutor em ciências da educação
mos dizer que a situação atual não corres- (1975) pela Universidad Eötvös Loránd, de Buda-
ponde ao resultado esperado pelos atores do peste. Trabalhou na Comissão Nacional húngara
setor cultural. da Unesco como especialista do programa de
Por ser realista, aceitamos melhor a educação e cultura (1964-1974) e, em seguida, foi
posição de Alfons Martinell formulada em secretário-geral adjunto (1975-1979). Em 1980, em
seu artigo Por que os ODS Não Incorporam Paris, ingressou no setor de cultura da Unesco, tra-
a Cultura? Um Teste de Interpretação:25 balhando como especialista (1980-1987) e como
“É evidente que esse documento da Cúpula chefe da seção de políticas culturais (1988-2001).
não considera a dimensão cultural no de- Foi responsável pelo projeto de investigação e
senvolvimento como um objetivo principal formação da Unesco/Unaids sobre o enfoque cul-
do desenvolvimento sustentável. Podería- tural da prevenção e do tratamento de HIV/Aids
mos permanecer em uma observação formal (2001-2002). Desde 2002, atua no Observatório
de falta de qualidade da escrita ou de negli- de Políticas Culturais na África (OCPA), em Mapu-
gência de seus autores, mas consideramos to, como coordenador de investigação e editor do
importante realizar um exercício de análise boletim eletrônico da instituição. É  autor, coautor
crítica dessa situação no contexto atual”. e editor de diversos estudos, documentos de tra-
E isso deve ser feito para que se tenha balho e informes, assim como de livros publicados
maior convicção e melhores argumentos pela Unesco e pela OCPA sobre questões relativas
para promover o pleno reconhecimento da a educação de adultos, desenvolvimento cultural e
contribuição da cultura para o desenvolvi- políticas culturais, cultura e desenvolvimento.
mento sustentável.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Máté Kovács 31

Notas

1 Relatório final, parte III, Relatório da Comissão II, p. 20, § 5-6. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0005/000525/052505sb.pdf>. Acesso em:
4 nov. 2019.

2 MARTINELL SEMPERE, A. (2010). Cultura y desarollo: un compromiso para la


libertad y el bienstar. ISBN 84-323-1481-1, 2010, p. 43-74. Disponível em: <https://
books.google.com.br/books?id=vZaPkSft4CIC&printsec=frontcover&hl=pt-
BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 4
nov. 2019.

3 Meeting of Experts on Philosophical Investigation of the Fundamental Problems


of Endogenous Development; UNESCO, Libreville; 1983, Furtado, Celso, Le
Concept d’endogénéité dans le contexte mondial actuel, Publ: 1983; 13 p.*; SS.83/
CONF.618/8; SS.83/CONF.618/COL.5., p. 11. Disponível em: <https:// unesdoc.
unesco.org/ark:/48223/pf0000056997?posInSet=11&queryId=afc 8e527-4d59-
4369-ba84-459299f2d4d5>.

4 Relatório final, parte IV. Declaração do México sobre as políticas


culturais, Prólogo. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0005/000525/052505sb.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019.

5 Relatório final, parte IV. Declaração do México sobre as políticas culturais, § 16.
Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0005/000525/052505sb.
pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019

6 Nossa diversidade criadora: relatório da Comissão Mundial de Cultura e


Desenvolvimento, p. 309 (1997). Disponível em: <https://unesdoc.unesco.org/
ark:/48223/pf0000129882?posInSet=1&queryId=5590f20d-a274-4fa7-9e1c-
354b012b4e51>.

7 Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/sites/creativity/files/iucd_


manual_metodologico_1.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019.

8 Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento


(Estocolmo, 1988). Relatório final, p. 7-20. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.
org/images/0011/001139/113935so.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019.

9 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160m.pdf>.


Acesso em: 4 nov. 2019.
32 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

10 Disponível em: <https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000149742?posInSet


=1&queryId=9d4dd33a-cedc-43d7-838a-391e36d545fb>. Acesso em: 4 nov. 2019.

11 UNESCO, 2009. Resumo disponível em:


<http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001847/184755S.pdf> e
<http://www.unesco.org/library/PDF/Diversidad.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019.

12 Partnership Agreement ACP-EU, Cotonou, 2000. Disponível em:


<https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex:22000A1215(01)>.
Acesso em: 4 nov. 2019.

13 Commonwealth statement on culture and development, 2009. Disponível em:


<https://en.unesco.org/creativity/sites/creativity/files/webform/article21_
document_files/commonwealth_culture_2009.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019.

14 Putting culture first: perspectives on culture and development. Commonwealth


Foundation, 2008. Disponível em: <http://www.maltwood.uvic.ca/cam/
publications/other_publications/PuttingCultureFirst_web21.pdf>.
Acesso em: 4 nov. 2019.

15 Disponível em: <http://www.agenda21culture.net/documents/culture-the-fourth-


pillar-of-sustainability>. Acesso em: 4 nov. 2019.

16 Disponível em: <http://www.lacult.unesco.org/docc/Hangzhou_


Declaration_2013_5_17_ESP.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019.

17 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002303/230394s.


pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019.

18 Disponível em: <www.culture2015goal.net>. Acesso em: 4 nov. 2019.

19 Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/publication/informe-sobre-


economia-creativa-2013>. Acesso em: 4 nov. 2019.

20 Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/global-report-2015>.


Acesso em: 4 nov. 2019.

21 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0026/002606/260678s.


pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Máté Kovács 33

22 Cultura e desenvolvimento sustentável. Disponível em: <http://www.un.org/es/


comun/docs/?symbol=A/RES/70/214>. Acesso em: 4 nov. 2019.

23 Disponível em: <http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/70/1>.


Acesso em: 4 nov. 2019.

24 Disponível em: <http://www.agenda21culture.net/sites/default/files/culturaods_


web_es.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019.

25 Disponível em: <http://www.alfonsmartinell.com/?p=326>. Acesso em:


4 nov. 2019.
34 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A CULTURA NOS ODS:


PERSPECTIVAS A PARTIR DA AÇÃO LOCAL
E DA AGENDA 21 DA CULTURA
Jordi Baltà e Jordi Pascual

Apesar da falta de referências explícitas à cultura no texto da Agenda 2030, o cumprimento


dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente em nível local, não
será viável sem a dimensão cultural. A “localização cultural” dos ODS em cada contexto
específico, o papel dos conhecimentos tradicionais e das práticas culturais para alcançar as
metas estabelecidas e o reconhecimento das atividades culturais como afirmação da digni-
dade humana são três eixos complementares que apontam para a necessidade de continuar
promovendo o reconhecimento da cultura nas abordagens do desenvolvimento sustentável.

Introdução
O papel marginal dos aspectos culturais no de 2004 do Relatório de Desenvolvimento
texto da Agenda 2030 para o Desenvolvimen- Humano (RDH), do Programa das Nações
to Sustentável e nos Objetivos de Desenvolvi- Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
mento Sustentável (ODS) que a concretizam que vinculava a liberdade cultural ao de-
foi uma decepção para ativistas, organiza- senvolvimento humano;1 a Convenção so-
ções, instituições e redes que durante anos bre a Proteção e Promoção da Diversidade
reivindicaram um maior reconhecimento da das Expressões Culturais, da Unesco, que
importância da cultura no desenvolvimen- se refere, entre outros, aos vínculos entre
to sustentável. A cultura, em suas diferentes cultura e desenvolvimento sustentável;2 as
configurações, era uma das grandes ausentes sucessivas edições do Relatório de Econo-
na Declaração do Milênio e nos Objetivos de mia Criativa publicadas pela Unctad, pelo
Desenvolvimento do Milênio (ODM) aprova- PNUD e pela Unesco, que destacavam o pa-
dos em 2000, mas, desde então, parece que pel da cultura no desenvolvimento econô-
cresceu o consenso sobre a necessidade de mico local, nacional e global;3 e a Janela de
incorporar a cultura nas abordagens contem- Cultura e Desenvolvimento promovida pela
porâneas do desenvolvimento sustentável. cooperação espanhola no âmbito do Fundo
Entre os passos registrados posterior- para a Realização dos ODM, com 18 progra-
mente, no período de 2000 a 2015, pode- mas nacionais que vinculavam a cultura ao
riam ser citados documentos como a edição alcance dos ODM.4
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Jordi Baltà e Jordi Pascual 35

Da mesma forma, a adoção da Agen- ligeiros avanços no que diz respeito aos ODM
da 21 da cultura em 2004, como resultado de 2000: como indicado no comunicado pu-
de um processo internacional de debate e blicado pela campanha #culture2015goal em
elaboração que reuniu governos locais, ati- setembro de 2015, “Há avanços, mas ainda há
vistas, acadêmicos e organizações interna- muito a ser feito”.8
cionais, representou o pressuposto de que Em parceria com outras organizações,
o desenvolvimento sustentável em nível lo- a CGLU vem trabalhando desde 2015 para
cal não poderia ser obtido sem considerar mostrar que, embora o texto da Agenda 2030
os aspectos culturais.5 Ao endossar a ideia nem sempre o expresse dessa forma, os as-
de Jon Hawkes de que a cultura (ou a “vita- pectos culturais desempenham um papel
lidade cultural”, em suas palavras) deveria essencial para o sucesso de toda a agenda.
ser o “quarto pilar” da sustentabilidade,6 e De acordo com a CGLU, isso ocorre porque
a partir das inúmeras evidências do traba- aspectos como os direitos culturais, o patri-
lho dos governos locais e das organizações mônio, a diversidade ou a criatividade são
da sociedade civil, que vinculavam a ação componentes centrais do desenvolvimento
cultural local e o desenvolvimento sus- humano e sustentável, mas também porque
tentável em cidades, povoados e regiões, o esses diferentes elementos inevitavelmente
trabalho da Comissão de Cultura das Ci- se entrecruzam com o restante dos aspectos
dades e Governos Locais Unidos (CGLU) que configuram o desenvolvimento susten-
promoveu e analisou, a partir de então, os tável.9 Essa linha de reflexão e trabalho se
vínculos entre a cultura e o desenvolvi- traduz em vários programas de ação da Co-
mento sustentável. missão de Cultura da CGLU, entre os quais
Esse conjunto de contribuições fez podemos destacar a elaboração do guia prá-
parte da campanha O Futuro que Queremos tico Cultura 21: Ações, para facilitar a autoa-
Inclui a Cultura (também conhecida como valiação e o desenho de políticas e medidas
#culture2015goal), na qual diferentes redes que integrem a cultura ao desenvolvimento
de organizações da sociedade civil e gover- sustentável local de forma abrangente;10 a
nos locais e nacionais, entre os quais a CGLU, promoção de programas de treinamento e
reivindicavam a inclusão de um objetivo aprendizagem entre pares que conectem os
dedicado à cultura nos ODS.7 O texto final governos locais, a sociedade civil e os cida-
da Agenda 2030 decepcionou os membros dãos; as colaborações com inúmeras redes,
da campanha, apesar de eles reconhecerem governos locais e nacionais, associações de
36 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

governos locais e instituições internacio- Na prática, essas três abordagens estão


nais; e a realização de atividades de pesqui- interligadas, obrigando a adoção de uma vi-
sa, comunicação e incidência política que são integrada e reforçando a necessidade de
busquem explorar e reafirmar os vínculos participação dos agentes culturais em qual-
entre a cultura e os ODS, traduzidas em pu- quer abordagem dos ODS.
blicações como o recente guia La Cultura en
los Objetivos del Desarrollo Sostenible (ODS): A “localização cultural” dos ODS
una Guía para la Acción Local (2018).11 A chamada “localização” dos ODS é o
Nos próximos tópicos, aprofundare- processo de considerar os contextos sub-
mos os argumentos e as evidências exis- nacionais 12 para a realização da Agenda
tentes com relação ao papel necessário da 2030, assumindo tanto o papel dos gover-
cultura nos ODS, com uma abordagem em nos locais e regionais quanto o fato de que
três eixos: os diferentes territórios e as prioridades,
as necessidades e os recursos de seus ha-
• qualquer estratégia de aplicação bitantes devem estar no centro do desen-
local dos ODS deve se basear no re- volvimento sustentável.13 Nesse sentido,
conhecimento da realidade cultu- é inevitável considerar os valores, as for-
ral local e envolver um processo de mas de identificação e as expressões da
adaptação ao contexto que conte com cultura no processo de “tradução” no ní-
a participação de todos os agentes- vel local dos objetivos estabelecidos nas
-chave, em modelos de governança agendas globais. Os governos locais, as
plurais e democráticos; organizações e os profissionais dos dife-
• os aspectos culturais facilitam o de- rentes setores da cultura têm a tarefa de
senvolvimento sustentável na medi- complementar a “frieza técnica” dos ODS
da em que fornecem conhecimentos com o calor das histórias, dos contextos e
específicos e se traduzem em ativida- das realidades locais, dando significado
des e recursos-chave para o alcance ao desenvolvimento sustentável na vida e
dos ODS; nas aspirações de pessoas concretas. Para
• as atividades e práticas culturais são isso, será necessário desenvolver mode-
indispensáveis como fatores de ex- los de governança plurais, participativos e
pressão, criatividade e contribuição democráticos, nos quais participem todos
para o exercício dos direitos cultu- os agentes relevantes do contexto local, in-
rais e a dignidade humana, consti- cluindo aqueles que representam as formas
tuindo assim uma parte intrínseca tradicionais de organização e governo.
do desenvolvimento sustentável. Os O processo de localização engloba
agentes e as infraestruturas cultu- o conjunto dos ODS.14 Em termos de sua
rais, portanto, desempenham um pa- dimensão cultural, a necessidade de com-
pel fundamental nos processos para preender o contexto cultural no qual são
alcançar os ODS. implementados políticas e programas
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Jordi Baltà e Jordi Pascual 37

vinculados ao desenvolvimento susten- políticas e programas que afetam a


tável é especialmente visível em aspectos vida cultural, entre outros.
como os seguintes:
A adaptação das estratégias à realidade cul-
• o objetivo 3, relativo à garantia da tural local deve ser feita de acordo com as
saúde e do bem-estar de todas as obrigações decorrentes do respeito aos direi-
pessoas, em todas as fases da vida, tos humanos. Como lembrou recentemente
envolve a adaptação de políticas e a relatora especial da ONU sobre os direitos
programas de saúde ao contexto cul- culturais, Karima Bennoune, reconhecer a
tural, levando em conta os costumes diversidade cultural e promover o exercício
locais e integrando os sistemas e os dos direitos culturais não contraria a ideia
agentes de saúde dos sistemas tra- da universalidade dos direitos humanos;
dicionais, quando ao contrário, a diversidade
apropriado; Os governos locais, cultural e a universalidade
• o objetivo 4, que as organizações e os se reforçam mutuamente, e
procura garantir profissionais dos diferentes o apelo aos fatores culturais
uma educação in- setores da cultura têm a não pode justificar qualquer
clusiva, equitativa tarefa de complementar a violação ou abuso dos direi-
e de qualidade e "frieza técnica" dos ODS com tos humanos.15 Essa mesma
promover oportu- o calor das histórias, dos ideia pode ser aplicada ao
nidades de apren- contextos e das realidades desenvolvimento susten-
dizagem ao longo locais, dando significado ao tável, uma vez que ele deve
da vida para todas desenvolvimento sustentável garantir o pleno exercício de
as pessoas, requer na vida e nas aspirações de todos os direitos humanos
incorporar uma pessoas concretas. para todas as pessoas.
abordagem cultural
em todas as estratégias educacionais, Os aspectos culturais como
por meio do uso dos idiomas locais e facilitadores do desenvolvimento
das aptidões relacionadas ao local, sustentável
além de promover a aprendizagem Em vários dos contextos incluídos na Agen-
de outros aspectos da diversidade da 2030, os conhecimentos e as práticas cul-
cultural e linguística; turais podem facilitar o alcance das metas
• para atingir o objetivo 16, que abor- estabelecidas pela comunidade internacio-
da, entre outras questões, a adoção nal. São questões nas quais, sem desempe-
de sistemas de tomada de decisão nhar um papel central na forma como os
inclusivos, participativos e repre- ODS e suas metas específicas foram defi-
sentativos, é necessário que os ci- nidos, os aspectos culturais fazem parte do
dadãos participem do planejamento, conjunto de recursos relevantes na mobili-
da implementação e da avaliação de zação e na implementação das estratégias.
38 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Entre outros, podem ser mencionados os todos, é necessário recordar o po-


seguintes exemplos: tencial dos chamados setores cultu-
• o escopo do objetivo 2, relacionado rais e criativos para gerar emprego,
com a luta contra a fome, o acesso à bem como incentivar criatividade
segurança alimentar e a promoção e inovação, tanto em suas próprias
da agricultura sustentável, pode se áreas produtivas quanto por inter-
beneficiar do uso dos conhecimen- médio de transferências para outros
tos tradicionais associados à diver- setores econômicos;
sidade genética de sementes, plan- • ainda dentro desse objetivo, a meta
tas cultivadas e animais de criação; 8.9, relativa à promoção de um tu-
• do mesmo modo, objetivos como o rismo sustentável que fomente a
6 (relacionado com a água e o sa- cultura e os produtos locais, indica
neamento), o 13 (combate às mu- o potencial de incluir os recursos
danças climáticas), o 14 (oceanos, culturais nas estratégias de turismo;
mares e recursos marinhos) ou o 15 será necessário garantir que isso
(ecossistemas terrestres) exigem o não envolva a descontextualização
reconhecimento de saberes tradi- de identidades, atividades e expres-
cionais ligados aos usos adequados sões culturais, e que os benefícios
e sustentáveis dos recursos naturais derivados dessas formas de turismo
e dos ecossistemas; possam ser reinvestidos no ecossis-
• o objetivo 7, que se refere ao acesso a tema cultural, especialmente em
energias acessíveis, seguras e susten- seus elementos menos comerciais;
táveis, pode reconhecer o potencial • o objetivo 10 propõe a redução das de-
dos processos criativos para promo- sigualdades, incluindo as desigualda-
ver novas abordagens para a produ- des de renda e as referentes a idade,
ção e o consumo de energia; gênero, deficiência ou origem. É bom
• no caso do objetivo 12, relativo ao lembrar que a participação cultural
consumo e à produção sustentá- pode contribuir para o empoderamen-
veis, deve-se lembrar do necessá- to e promover a inclusão de todas as
rio reconhecimento e valorização pessoas na esfera cultural, bem como
dos produtos tradicionais e locais, em outras esferas da vida social;
incluindo os próprios do artesanato, • da mesma forma, no âmbito do obje-
da gastronomia e outras tradições, tivo 3, pode-se recordar que a parti-
para promover formas de consumo cipação em atividades culturais pode
e produção sustentáveis; contribuir para a melhoria da saúde
• no âmbito do objetivo 8, sobre a pro- e do bem-estar.
moção de um crescimento econômi-
co mantido, inclusivo e sustentável, A atenção dada aos conhecimentos tra-
que estimule o trabalho digno para dicionais e à suposição de que existem
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Jordi Baltà e Jordi Pascual 39

relações muito diretas entre os conheci- da memória, da diversidade e da criati-


mentos e os aspectos naturais pertencen- vidade como elementos inerentes a uma
tes a um mesmo ambiente não implica concepção de desenvolvimento sustentá-
promover abordagens isoladas em termos vel centrada nas pessoas e que aposte na
da abrangência dos ODS. É necessário ampliação das liberdades e capacidades
equilibrar o reconhecimento dos saberes humanas, e que também estejam ligados
tradicionais de cada local ou ecossistema ao contexto de ação mais tradicional das
com as contribuições derivadas dos avan- políticas culturais, em que os governos
ços científicos, bem como com aquelas que locais têm um papel muito significativo.
possam resultar dos processos de coopera- Nesse contexto, vale destacar os se-
ção internacional. Essa cooperação pode guintes elementos dos ODS:
ser relacionada aos postulados do objetivo
17, que aposta, entre outras coisas, na pro- • o objetivo 1, que busca acabar com
moção de parcerias internacionais mais a pobreza em todas as suas formas,
sólidas, que devem incluir a cooperação propõe a necessidade de aumen-
cultural internacional em suas diferentes tar o acesso aos serviços básicos.
modalidades (bilateral, regional e multila- Conforme os direitos culturais são
teral), favorecedora de intercâmbios artís- estendidos a mais e mais pessoas,
ticos e culturais e também conhecedora de os serviços, relevantes em cada
suas potenciais conexões com as agendas contexto, devem ser garantidos em
de desenvolvimento. ambientes próximos à população e
acessíveis a todos. No âmbito do ob-
Práticas, atividades e fatores jetivo 4, relativo à educação, a meta
culturais como elementos 4.7 se compromete a garantir, entre
substanciais dos ODS outras propostas, uma educação que
Existem algumas áreas nas quais diferentes valorize a diversidade cultural e a
práticas, atividades e fatores culturais po- contribuição da cultura para o de-
dem ser considerados um elemento consubs- senvolvimento sustentável. É con-
tancial de como os ODS foram definidos. Em veniente interpretar que esse tipo de
alguns casos, o texto da Agenda 2030 expres- educação deve abranger conteúdos
sa explicitamente isso, enquanto em outros culturais, incluindo a apreciação
há formulações genéricas que podem ser e o conhecimento da diversidade
entendidas como abrangendo aspectos cul- cultural e linguística, bem como a
turais, incluindo os equipamentos culturais promoção da educação artística;
e o trabalho de agentes culturais (artistas, • o objetivo 5, que visa promover a
coletivos informais, associações, empresas, igualdade de gênero e empode-
instituições, universidades etc.). rar mulheres, inclui, entre outras
Trata-se dos contextos que reafir- ideias, o acesso à participação ple-
mam mais o papel dos direitos culturais, na e efetiva do sexo feminino em
40 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

todos os níveis de tomada de deci- de uma transferência de recursos econô-


são. É necessário garantir a plena micos, humanos e técnicos e de medidas
participação de mulheres na vida de formação e treinamento pertinentes,
cultural e dar maior visibilidade e bem como de âmbitos de cooperação inte-
reconhecimento às práticas cul- rinstitucional e governança participativa
turais realizadas principalmente e multinível.
por elas;
• o objetivo 9, que se refere, entre ou- Conclusões e acompanhamento
tras questões, à disponibilidade de A abordagem feita nos parágrafos anterio-
infraestruturas resilientes, de qua- res é ambiciosa e claramente supera a visão
lidade, confiáveis e sustentáveis, mais difundida entre os setores centrais na
deve incorporar a necessidade de implementação da Agenda 2030. É, de qual-
infraestruturas culturais que ofe- quer forma, uma possível interpretação dos
reçam acesso universal e equitativo ODS, que responde à convicção de que eles
à vida cultural e oportunidades de requerem a participação ativa da cultura se
participar dela; quiserem chegar a um bom porto. Acredita-
• por último, o objetivo 11, “Tornar as mos que essa interpretação é especialmente
cidades e os assentamentos huma- válida quando se trata de traduzir a Agenda
nos inclusivos, seguros, resilientes 2030 nos níveis nacional, regional e local.
e sustentáveis”, inclui a meta 11.4, Nesse sentido, a Comissão de Cultura da
sobre a proteção e a salvaguarda do CGLU se propõe a trabalhar nos próximos
patrimônio cultural e natural, que anos nas seguintes linhas:
deve envolver a adoção de políticas
e medidas em torno do patrimônio • análise das referências à cultura nos
em seus aspectos materiais e ima- documentos relativos à implementa-
teriais. Da mesma forma, a meta ção dos ODS (estratégias, relatórios
11.7 refere-se à disponibilização de periódicos etc.) publicados pelos
acesso universal a áreas verdes e es- governos em diferentes níveis, bem
paços públicos seguros, inclusivos como nos documentos de avaliação
e acessíveis, fato que deve incluir o elaborados pelas agências das Na-
reconhecimento explícito e ativo dos ções Unidas e por outras fontes;
espaços públicos como ambientes fa- • acompanhamento dos governos
vorecedores de acesso e participação locais e regionais nos processos de
na vida cultural. localização dos ODS, incluindo uma
dimensão cultural, tanto em sua con-
O desenvolvimento de políticas e medidas cepção quanto em sua implementa-
nesses contextos deve se apoiar em proces- ção e avaliação;
sos adequados de descentralização de com- • divulgação do documento La Cul-
petências em nível local, acompanhados tura en los Objetivos de Desarrollo
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Jordi Baltà e Jordi Pascual 41

Sostenible: una Guía para la Acción e Instituições Bibliotecárias (Ifla)


Local, eventual publicação de outros em relação ao acesso à informação
documentos similares e uso deles em (meta 16.10) e à cultura no âmbito
atividades de formação, assessoria e da Agenda 2030.17 A CGLU colabora
intervenção; com ambas as organizações e espera
• contatos e articulação de parcerias continuar esse diálogo no futuro;
e redes com outras organizações • apoio a outros processos de pes-
culturais e do campo do desenvolvi- quisa, reflexão e intervenção que
mento sustentável, assim como com busquem interpretar o desenvolvi-
organizações internacionais como a mento a partir de uma perspectiva
Unesco, a fim de promover um maior que incorpore fatores culturais, com
reconhecimento da dimensão cul- ou sem vínculo direto com os ODS,
tural dos ODS (por meio de ações entendendo que eles, apesar de sua
de pesquisa, avaliação importância, representam
e intervenção, entre As dificuldades apenas uma determinada
outras propostas) e fo- encontradas para tornar interpretação das formas de
mentar uma inclusão a dimensão cultural desenvolvimento e vida de-
mais explícita da cul- mais explícita no sejáveis.
tura nas futuras agen- texto da Agenda 2030 As dificuldades encontradas
das internacionais indicam que não será para tornar a dimensão cul-
de desenvolvimento. um caminho fácil, mas tural mais explícita no tex-
É possível destacar estamos convencidos to da Agenda 2030 indicam
iniciativas em curso, de que é imprescindível que não será um caminho
como o trabalho cons- avançar nessa direção. fácil, mas estamos conven-
tante do Conselho In- cidos de que é imprescindí-
ternacional de Monumentos e Sítios vel avançar nessa direção, estabelecendo
(Icomos) em torno da meta 11.4 e ou- parcerias mais amplas e plurais, buscando
tros aspectos que relacionam o patri- novas linguagens, narrativas e exemplos
mônio cultural e o desenvolvimento e envolvendo mais detentores de direitos
sustentável;16 e o trabalho da Fede- e interessados em um desenvolvimento
ração Internacional de Associações mais humano e sustentável.
42 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Jordi Baltà
Possui licenciatura em ciências políticas e administração pela Universidade Autôno-
ma de Barcelona, é mestre em política cultural europeia e administração pela Universidade
de Warwick e pós-graduado em cooperação cultural internacional pela Universidade de
Barcelona – Interarts. Trabalha como investigador, consultor e formador em políticas cul-
turais e relações internacionais, com interesse especial em diversidade cultural, políticas
culturais locais e cultura no desenvolvimento sustentável. Desde 2014, colabora como
assessor de cultura e cidades sustentáveis na Comissão de Cultura das Cidades e Governos
Locais Unidos (CGLU). Faz parte do grupo de especialistas para a implementação da Con-
venção da Unesco sobre a Diversidade das Expressões Culturais e colabora regularmente
em outras organizações, como a Asia-Europe Museum Network (Asemus). É consultor
e tutor de mestrado em gestão cultural (Universidade Aberta da Catalunha, Universida-
de de Girona, Universidade das Ilhas Baleares) e professor associado na graduação em
relações internacionais da Universidade Ramon Llull. Entre 2001 e 2014, trabalhou como
investigador e coordenador de projetos na Fundação Interarts.

Jordi Pascual
Coordenador e fundador da Comissão de Cultura das Cidades e Governos Locais Uni-
dos (CGLU), que tem como objetivo o progresso da Agenda 21 da cultura (<www.agenda-
21culture.net>). É um dos promotores da campanha mundial <www.culture2030goal.net>,
sobre o papel dos temas culturais na Agenda 2030 e nos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS), das Nações Unidas. Escreveu livros, artigos e informes sobre relações
culturais internacionais, governança da cultura e o papel da cultura na sustentabilidade,
traduzidos para mais de 20 idiomas. Membro do júri da capital europeia da cultura nos
anos 2009, 2010, 2011 e 2016, é também professor de direitos culturais e mundialização
na Universidade Aberta da Catalunha.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Jordi Baltà e Jordi Pascual 43

Notas

1 FUKUDA-PARR, S. (Dir.). Informe sobre desarrollo humano 2004: la libertad


cultural en el mundo diverso de hoy. Nova York, Madri: PNUD; Mundi-Prensa,
2004. Disponível em: <http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_2004_
es.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2019.

2 UNESCO. Convención sobre la Protección y Promoción de la Diversidad de las


Expresiones Culturales, 2005. Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/
convention/texts>. Acesso em: 12 nov. 2019.

3 Com relação à dimensão local, veja especialmente: UNESCO; PNUD (2013),


Informe sobre la economía creativa. Edición especial 2013: ampliar los cauces
de desarrollo local. Nova York; Paris: PNUD; Unesco. Disponível em:
<http://www.unesco.org/culture/pdf/creative-economy-report-2013-es.pdf>.
Acesso em: 12 nov. 2019.

4 Para mais informações, consulte: <http://www.mdgfund.org/es/content/


cultureanddevelopment>.

5 Cidades e Governos Locais Unidos. Agenda 21 da cultura. Um Compromisso das


Cidades e dos Governos Locais para o Desenvolvimento Cultural. Barcelona:
CGLU, 2004. Disponível em: <http://www.agenda21culture.net/sites/default/
files/files/documents/multi/ag21c_pt.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.

6 HAWKES, J. The fourth pillar of sustainability: culture’s essential role in public


planning. Melbourne: Cultural Development Network (Vic), 2001. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/200029531_The_Fourth_Pillar_of_
Sustainability_Culture’s_essential_role_in_public_planning>. A CGLU aprovou
posteriormente um documento de orientação política que assume essa ideia:
CGLU. La cultura es el cuarto pilar del desarrollo sostenible, 2010. Disponível
em: <http://www.agenda21culture.net/sites/default/files/files/documents/es/
zz_cultura4pilards_esp.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.

7 Para mais informações, veja: <http://www.agenda21culture.net/es/abogacia/la-


cultura-como-meta-en-el-post-2015>. Acesso em: 14 nov. 2019.

8 Comunicado: A cultura no documento final dos ODS: há avanços, mas ainda há


muito a ser feito. O futuro que queremos inclui a cultura, 23 set. 2015. Disponível
em: <http://agenda21culture.net/sites/default/files/files/pages/advocacy-
page/4-preSDG_outcomedoct_SPA.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.
44 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

9 A CGLU refletiu essa visão em uma publicação recente, que amplia as reflexões
incluídas neste relatório: La cultura en los Objetivos de Desarrollo Sostenible:
guía práctica para la acción local. Barcelona: CGLU, 2018. Disponível em:
<http://www.agenda21culture.net/sites/default/files/culturaods_web_es.pdf>.
Acesso em: 14 nov. 2019.

10 Cultura 21: ações. Compromissos relativos ao papel da cultura em cidades


sustentáveis. Barcelona: CGLU, 2015. Disponível em: <http://www.
agenda21culture.net/sites/default/files/files/documents/multi/c21_015_pt_1.pdf>.
Acesso em: 14 nov. 2019.

11 Veja: <https://www.uclg.org/es/media/noticias/la-cultura-en-los-objetivos-del-
desarrollo-sostenible-ods-una-guia-para-la-accion>.

12 Esse termo é usado para designar os governos e níveis de uma escala territorial
inferior à dos Estados reconhecidos pelas Nações Unidas.

13 Veja: <https://www.local2030.org/>.

14 Veja: Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: o que os governos devem saber.


Barcelona: CGLU, 2015. Disponível em: <https://www.local2030.org/>.

15 Em relação a isso, veja: Universalidad, diversidad cultural y derechos culturales.


Relatora especial da ONU sobre os direitos culturais, A/73/227, 2018. Disponível
em: <http://undocs.org/es/A/73/227>. Acesso em: 14 nov. 2019.

16 Veja: <https://www.icomos.org/en/focus/un-sustainable-development-goals>.

17 Veja: <https://www.ifla.org/libraries-development>.

Referências

CGLU. Agenda 21 da cultura. Um compromisso das cidades e dos governos locais para
o desenvolvimento cultural. Barcelona: CGLU, 2004. Disponível em: <http://www.
agenda21culture.net/sites/default/files/files/documents/multi/ag21c_pt.pdf>.
Acesso em: 14 nov. 2019.
______. La cultura es el cuarto pilar del desarrollo sostenible, 2010. Disponível em:
<http://www.agenda21culture.net/sites/default/files/files/documents/es/zz_
cultura4pilards_esp.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Jordi Baltà e Jordi Pascual 45

______. Cultura 21: ações. Compromissos relativos ao papel da cultura em


cidades sustentáveis. Barcelona: CGLU, 2015. Disponível em: <http://www.
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pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.
______. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: o que os governos devem saber.
Barcelona: CGLU, 2015. Disponível em: <http://localizingthesdgs.org/library/
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para la acción local. Barcelona: CGLU, 2018. Disponível em: <http://www.
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FUKUDA-PARR, S. (Dir.). Informe sobre desarrollo humano 2004: la libertad cultural
en el mundo diverso de hoy. Nova York, Madri: PNUD; Mundi-Prensa, 2004.
Disponível em: <http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_2004_es.pdf>.
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HAWKES, J. The fourth pillar of sustainability: culture’s essential role in public planning.
Melbourne: Cultural Development Network (Vic), 2001. Disponível em: <https://
www.researchgate.net/publication/200029531_The_Fourth_Pillar_of_
Sustainability_Culture’s_essential_role_in_public_planning>. Acesso em: 14 nov.
2019.
O FUTURO que queremos inclui a cultura. A cultura no documento final dos ODS: há
avanços, mas ainda há muito a ser feito. Comunicado, 23 set. 2015. Disponível em:
<http://agenda21culture.net/sites/default/files/files/pages/advocacy-page/4-
preSDG_outcomedoct_SPA.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.
RELATORA ESPECIAL da ONU sobre os direitos culturais. Universalidad, diversidad
cultural y derechos culturales, A/73/227, 2018. Disponível em: <http://undocs.org/
es/A/73/227>. Acesso em: 14 nov. 2019.
UNESCO. Convención sobre la Protección y Promoción de la Diversidad de las
Expresiones Culturales, 2005. Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/
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UNESCO; PNUD. Informe sobre la economía creativa. Edición especial 2013: ampliar los
cauces de desarrollo local. Nova York; Paris: PNUD; Unesco, 2013. Disponível em:
<http://www.unesco.org/culture/pdf/creative-economy-report-2013-es.pdf>.
Acesso em: 14 nov. 2019.
46 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

UMA ABORDAGEM CULTURAL


DO DESENVOLVIMENTO PARA
A GESTÃO DA CULTURA
Aarón Espinosa Espinosa

O artigo discute a pertinência de propor uma abordagem cultural do desenvolvimento, re-


ferência conceitual e metodológica que concebe o desenvolvimento como um processo
multifacetado e contextualizado. Baseia-se nas abordagens de capacidades e direitos e é
construído com as aprendizagens deixadas pela execução de projetos de pesquisa-ação e
intervenções orientadas, em diversos países e regiões, e pela geração de capacidades em
campos como empreendimentos, educação e direitos e políticas culturais.

Valores e princípios
orientadores da abordagem

A
Abordagem Cultural do Desen- A dimensão cultural se evidencia no
volvimento (ACD) se configura fato de que os valores culturais e os modos
em um campo de análise teórico de vida contribuem para os processos de de-
e conceitual emergente, de ordem metodo- senvolvimento, assim como a expressividade
lógica e de gestão em diferentes níveis, que e a criatividade contribuem para a inovação
visa destacar a dimensão cultural do desen- e a mudança social (MARTINELL, 2013).
volvimento e as diferentes contribuições Esse aspecto cultural do desenvolvimento
da cultura para a geração de capacidades e também se traduz na chamada transversa-
oportunidades humanas. A ACD tomou for- lidade da cultura, entendida como articula-
ma após a drástica reavaliação da noção e da ção funcional, interdependência e interação
gestão do desenvolvimento nas últimas déca- dinâmicas com outras dimensões e áreas
das, diante da necessidade de responder aos que compreendem a economia, a educação,
problemas da pobreza e da vulnerabilidade, a saúde e o meio ambiente. Da mesma for-
“ao desenvolvimento sustentável e às políti- ma, significa que a cultura é um meio que
cas de cooperação internacional para o de- “apoia e fortalece as intervenções em áreas
senvolvimento” (L+iD, 2013, p. 6). Como um de desenvolvimento” (UNESCO, 2011, p. 5)1
elemento-chave, a ACD visa compreender a e atua como uma peneira de estímulos pro-
natureza condicional e potencializadora dos venientes de múltiplos sistemas (políticos,
contextos locais e regionais. econômicos, educacionais).
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 47

O papel da cultura como geradora de capa- garantam análises e ações de maior


cidades é demonstrado nos campos da educação proximidade com os processos e as
cultural (CARBÓ, 2017), no acesso ao conhe- decisões individuais e comunitárias.
cimento e na valorização dos ativos sociais Consequentemente, a gestão locali-
frequentemente utilizados por comunidades zada do desenvolvimento – e sua
a partir de estratégias para enfrentar o risco e a dimensão cultural – é baseada em
incerteza (L+iD, 2017; STEIN e MOSER, 2014), visões “locais”;
assim como o seu indiscutível papel como ge- • todos têm o direito de participar da
radora de meios de vida – capacidade básica do vida cultural, conforme o artigo 15 do
desenvolvimento humano – no mundo atual.2 Pacto Internacional sobre Direitos
O que chamamos aqui de “abordagem” Econômicos, Sociais e Culturais e
envolve um exercício de identificação e recomendações posteriores. A ACD
priorização das dimensões analíticas mais entende que a vida cultural se mani-
relevantes.3 festa em diferentes formas, ações,
Alguns dos princípios orientadores pro- linguagens, comportamentos, siste-
postos pela ACD são: mas e contextos. Para a abordagem,
a vida cultural é o espaço em que a
• a cultura, em todas as suas expres- geração de capacidades e a qualidade
sões e dimensões, representa uma de vida são mais bem evidenciadas
esfera da vida social e política com e a gestão dos direitos culturais é
amplo potencial de influência dire- viabilizada. Nesse sentido, a ACD
ta e indireta no desenvolvimento. A concorda com abordagens que enfa-
gestão cultural deve identificar esses tizam que os direitos fazem parte de
pontos de influência para determinar um conjunto mais amplo de capaci-
o impacto de suas ações; dades (NUSSBAUM, 2011);
• o desenvolvimento é um proces- • a cultura é indispensável para alcan-
so contextualizado, construído em çar os ODS4 e contribui para o con-
diferentes níveis, mas que ocorre senso internacional de luta contra a
principalmente em nível local, en- pobreza. No entanto, no âmbito da
volvendo a readequação de estrutu- gestão, seu papel não é instrumen-
ras conceituais e metodológicas que tal para a sustentabilidade, mas é
48 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

constitutivo dela. Por isso, sua pro- No entanto, essa tarefa pressupõe a
moção aponta para a expressivida- criação e a ampliação de um conjunto de ca-
de e a criatividade, não para o mero pacidades agregadas à gestão, em particular,
conservacionismo cultural;5 de conhecimento e ação cultural, que pode
• a ACD se baseia na interdiscipli- ser implementado dentro e à margem dos
naridade, aceitando a integração mercados, no setor público ou fora dele, em
de outros postulados e princípios conexão com políticas públicas, ou orientado
conforme as características da vida para a mudança social comunitária.
cultural de cada contexto, num qua- Dessa forma, a ACD se configura como
dro de reconhecimento dos direitos um campo de confluência conceitual e prá-
fundamentais. Essa integração é tica para a gestão cultural, que, centrada na
oferecida entre disciplinas como díade capacidades-oportunidades, permitirá
economia, antropologia e educação, colocar em prática a dimensão cultural do
podendo ser estendida a outras em desenvolvimento. Entre as referências que
torno de categorias de consenso em constituem a ACD, destaca-se, em primeiro
pesquisa e gestão, como o bem-es- lugar, a abordagem de capacidades propos-
tar6 (L+iD, 2013a, p. 7). ta pelo economista e filósofo Amartya Sen,
ampliada nos últimos 15 anos pela filósofa
Capacidades e direitos para a gestão política Martha C. Nussbaum.
Em primeiro lugar, deve-se destacar que a A extensão mais conhecida dessa abor-
abordagem concebe a gestão cultural como dagem, a do desenvolvimento humano sus-
uma tarefa social em diferentes níveis – co- tentável do Programa das Nações Unidas
munitário, sociedade civil e governamental para o Desenvolvimento (PNUD), melhorou
–, cujo compromisso está a compreensão dos proces-
relacionado com a geração Os gestores são agentes sos de desenvolvimento e
de bem-estar e o aprovei- de mudança, mediadores de seu oposto essencial, a
tamento eficaz de recursos de políticas com funções pobreza humana, graças
disponíveis. Os gestores são complexas que vão desde à introdução de um méto-
agentes de mudança, me- a análise da realidade do de análise, uma agenda
diadores de políticas com (contexto) e a promoção de incidência política (por
funções complexas que vão da participação cultural até exemplo, ODM, ODS) e um
desde a análise da realida- outras mais específicas, conjunto de categorias de
de (contexto) e a promoção como a auto-organização. análise que melhoram sua
da participação cultural até compreensão (crescimento
outras mais específicas, como a auto-orga- econômico inclusivo, vulnerabilidade, traba-
nização. Os gestores são, em essência, estru- lho decente).
turadores de demandas sociais, culturais e O conceito de capacidades está intrin-
educacionais geralmente vinculadas (MAR- secamente ligado ao bem-estar individual.
TINELL, 2001). As capacidades são definidas como “aquilo
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 49

que as pessoas realmente podem fazer e ser” ocorrem os processos de desenvolvimento,


ou, em sentido mais específico, como combi- que pode ter uma intervenção favorável da
nações alternativas de funcionamentos (ou gestão e das políticas públicas culturais.
realizações) que geram estados de bem-estar. Os processos de gestão e implementa-
Para além de seu valor definidor, na ACD, as ção de políticas no campo cultural devem
capacidades constituem uma poderosa fer- estar voltados para influenciar o meio am-
ramenta de diagnóstico, bem como um qua- biente e expandir as capacidades culturais e
dro de ação de projetos culturais que permite correlatas, e não somente satisfazer necessi-
repensar e gerir vários problemas sociais em dades pontuais, como geralmente é proposto
escalas mais próximas (Figura 1). por políticas, programas e projetos culturais
Para Nussbaum, as capacidades com- em muitos casos da América Latina. Seguin-
preendem as habilidades das pessoas e, do as abordagens de Sen e Nussbaum, a ACD
igualmente, as liberdades substanciais ou formula, com base na experiência, uma lista
oportunidades criadas pela “combinação de capacidades culturais7 intimamente liga-
dessas faculdades pessoais com o ambiente das às capacidades básicas (conhecimento e
político, social e econômico” (NUSSBAUM, renda) e adaptáveis a diferentes contextos,
2012, p. 40). Por essa razão, ela propõe a no- que procura preencher as lacunas concei-
ção de capacidades combinadas como um tuais e gerenciais dos projetos culturais em
agregado de capacidades internas e con- termos de desenvolvimento (L+iD, 2013).
dições ambientais. A ACD assimila essas As capacidades culturais – individuais,
condições ambientais ao contexto em que coletivas-comunitárias, organizacionais ou

FIGURA 1:
Relação das capacidades (básicas e culturais) com o desenvolvimento humano e os projetos culturais
a partir da Abordagem Cultural do Desenvolvimento (ACD)

Capacidades básicas

Contexto Desenvolvimento humano

Capacidades culturais

Fonte: elaboração própria com base em trabalho do Laboratório de Pesquisa e Inovação em Cultura e Desenvolvimento (L+iD), 2013.
50 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

político-institucionais – podem e devem ser são apenas sujeitos de necessidades, e salienta


geradas de forma específica,8 desenvolvem- que a sua garantia envolve o reconhecimento
-se com base em outras capacidades e, no e a criação de condições para assegurar o seu
campo da gestão, devem gerar conhecimento exercício. Nesse contexto, não é menos impor-
estruturado sobre o desenvolvimento e suas tante o compromisso do Estado em implemen-
ações (Figura 1). De certa forma, as capaci- tar políticas voltadas para restabelecê-los – de
dades culturais propostas pela abordagem forma imediata ou mediata – caso sejam vio-
foram formuladas para ajudar a superar o lados (CORREDOR, 2010, p. 47).
viés de generalidade – inerente ao seu ca- Como traduzir esse princípio orienta-
ráter universalista – da lista de capacidades dor para o campo da ação social dos gestores?
básicas definidas por Nussbaum (2012). A abordagem requer contemplar os olhares
Outro elemento constitutivo da ACD é a populacional e territorial nas interações
abordagem de direitos, que orienta a concepção dos grupos de interesse. O populacional se
e a aplicação de políticas públicas e interven- refere ao fato de que as características dos
ções sociais. As novas referências enfatizam sujeitos culturais devem ser consideradas
os direitos das pessoas como objetivo final do de acordo com seu ciclo de vida, condição de
desenvolvimento, e os acordos internacionais gênero, etnia ou deficiência, bem como com
entre os países promovem a ressignificação dos suas diferentes situações: pobreza, empre-
direitos nas políticas públicas. go, deslocamento. E a perspectiva territorial
A abordagem de direitos se baseia no fato possibilita a identificação de potencialidades
de que as pessoas são agentes de mudança, não e limitações locais, para além de favorecer a

FIGURA 2:
Esquema de aplicação da Abordagem Cultural do Desenvolvimento (ACD)
à gestão cultural do empreendimento

Abordagens de capacidades
trabalho aplicado de
capacidades de Nussbaum,
Sen e L+iD – PNUD (2013)

Estratégias de desenvolvimento
Análise e incorporação do contexto
econômico inclusivo

Fonte: elaboração própria.


CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 51

participação e o empoderamento dos atores expressões da vida, que incluem não só arte,
em seu território (L+iD, 2014). literatura ou tradições, mas também o ponto
de vista político, social, econômico, tecnoló-
Vida cultural e contexto: gico e espiritual. Os direitos a educação, infor-
do conceitual ao prático mação, liberdade de opinião e expressão, livre
A ACD enfatizou o direito de participar da associação, participação e tomada de decisões,
vida cultural. O aspecto cultural faz parte do somente para citar alguns, são indispensáveis
corpo dos direitos humanos e afeta inúmeras para o desenvolvimento e para a vida cultural.

TABELA 1:
Dimensões e níveis de análise de contexto

SOCIAL ECONÔMICA CULTURAL INSTITUCIONAL

CONTEXTO TERRITORIAL Localização dos Macroprocessos Elementos para Organização


empreendimentos econômicos no a compreensão político-
no território e dos território local: histórica, social -administrativa
empreendedores crescimento, e cultural do (estrutura
igualdade ambiente como e normas)
e pobreza; recurso, contexto
distribuição da e ponto de
renda e dos ativos partida para os Órgãos e atores
empreendimentos público-privados
com influência no
Vulnerabilidades desenvolvimento dos
Processos que empreendimentos
envolvam o
aspecto cultural
e fomentem a
articulação dos
empreendimentos
com esses
processos

CONTEXTO POPULACIONAL Análise por faixa Nível de renda Características Instituições formais
etária, condição conforme a classe étnicas, e informais que
étnica e de gênero social e outras patrimoniais, influenciam na
e por situação características língua, costumes, interação social e no
de deslocamento celebrações, desenvolvimento do
e pobreza organização social empreendimento
Segurança da população
no trabalho, em que ocorre o
Análise social e outras empreendimento
demográfica características

Acesso a ativos

Fonte: L+iD (2014).


52 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A participação na vida cultural é, por- humana avança “não pela sofisticação, for-
tanto, entendida a partir da universalidade, malização e abstração, mas pela capacidade
indissolubilidade e interdependência com de contextualizar e globalizar”.
outros direitos fundamentais. Apenas para Na prática, foi demonstrado que a análise
mencionar o aspecto econômico desse di- de contexto é indispensável para identificar a
reito, não é possível gerar capacidades cultu- fonte das privações e as barreiras à inclusão
rais para determinados atores (por exemplo, social, política e econômica. Também é útil
empreendedores ou gestores) se não houver detectar recursos indispensáveis na geração
um avanço simultâneo na materialização de de capacidades, meios de subsistência e capi-
seus direitos econômicos para o trabalho e a tal social fundamentais para superar a pobre-
geração de renda, sem mencionar os consti- za e a vulnerabilidade (L+iD, 2017).
tutivos do mínimo vital.9 Para concretizar essas ideias sobre o pa-
E qual é o papel do contexto? A análise pel do contexto na geração de capacidades e
do contexto evidenciou que os vínculos entre oportunidades é apresentado, a seguir, o caso
capacidades e direitos não ocorrem no vá- de empreendimentos culturais de tipo indivi-
cuo, mas em campos culturais diferenciados. dual e comunitário localizados nos 32 estados
Morin (1994) aponta como “conhecimento colombianos.10 A experiência é apresentada
pertinente” aquele que contextualiza e des- graças à sistematização de mais de 2 mil inicia-
taca que o conhecimento que sustenta a ação tivas geridas em nível local, pelos municípios, e

TABELA 2:

Capacidades e oportunidades para os empreendedores culturais da Colômbia

REGIÃO SALÁRIO MÍNIMO SEM FORMAÇÃO NO TRABALHO EM TRABALHO


LEGAL CAMPO CULTURAL ATIVIDADES NÃO EM ESPAÇOS PÚBLICOS
CULTURAIS

CARIBE 55% 38% 54% 15%

PACÍFICO 45% 48% 43% 12%

ORINOQUIA 36% 41% 43% 17%

AMAZÔNIA 59% 53% 60% 12%

ANDINA 47% 23% 59% 12%

TOTAL 48% 41% 52% 14%


NACIONAL

Fonte: Mincultura – UTB (2014).


CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 53

nacional, pelo Ministério da Cultura desse país Com esse perfil de cada empreendedor e
(Tabela 2). Os resultados sugerem a neces- empreendimento, foram identificadas as bar-
sidade de reformular políticas culturais e ter reiras à inclusão produtiva, que consistem em:
uma nova visão da prática de gestão cultural. • violação dos direitos fundamentais,
Primeiramente, foi construído um especialmente ao trabalho e à pro-
perfil dos empreendedores e seu contexto, priedade;
composto de características pessoais e fa- • existência de baixos níveis de forma-
miliares, do trabalho cultural e não cultural, ção, geralmente herdados dos pais;
com um diagnóstico inicial das capacida- • exclusão econômica e social, mate-
des e do empreendimento cultural. Esse rializada em baixo nível de acesso a
perfil foi levantado nas dimensões social, bens públicos.
econômica, cultural e institucional, com
uma abordagem populacional e territorial, As barreiras à inclusão permitiram pro-
procurando documentá-las na direção indi- por a adequação das habilidades básicas para
cada (Tabela 1). Muitos desses empreendi- melhorar a renda e os níveis de formação e das
mentos culturais estão nas mãos de pessoas habilidades culturais na formação artística, na
provenientes do mundo rural, deslocadas à gestão cultural e na ação. Além disso, ampliar o
força pelo conflito armado e que se desen- acesso a ativos produtivos e oportunidades de
volvem no mundo urbano. geração de renda.

PAI ANALFABETO NÃO PERTENCE A NÃO TEM CONTRATO SEM CAPACITAÇÃO POR
ORGANIZAÇÃO, AGREMIAÇÃO FINANCIAMENTO
OU SINDICATO

23% 90% 82% 54%

29% 88% 85% 47%

29% 87% 84% 33%

23% 91% 83% 45%

22% 75% 80% 36%

25% 86% 83% 43%


54 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

TABELA 3:
Capacidades centrais e culturais propostas a partir da Abordagem Cultural
do Desenvolvimento (ACD)

CAPACIDADES SENTIMENTO, FILIAÇÃO CONTROLE SOBRE


CULTURAIS IMAGINAÇÃO E O AMBIENTE
PENSAMENTO

Formação: capacidades Capacidade de utilizar os Capacidade de comparti- Capacidade para conhecer e


refletidas no fazer e no sentidos para a criação a lhar o conhecimento e as compreender o contexto
ser, adquiridas com a partir de uma educação habilidades próprios, de Capacidade para interagir
aprendizagem e a adoção adequada. Isso implica compartilhá-los coletiva- com outros atores público-
de novo conhecimento e imaginar, pensar e racio- mente, e disposição para -privados e participar da
de técnicas no trabalho cinar para além da base aprender com os demais tomada de decisões, proces-
mínima adquirida com sos de controle, vigilância
a alfabetização e a forma- e prestação de contas de
ção básica matemática projetos de desenvolvimento
e científica em seu território

Ação: Capacidade de usar a Capacidade de viver com Capacidade de levar a ideia


Capacidades referentes imaginação e o pensa- outros, interesse pelo de empreendimento cultural
à natureza da atividade mento para experimentar trabalho associativo, à prática com um planeja-
do empreendimento e produzir obras interação social, justiça mento básico
(capacidade para realizar autoexpressivas e amizade
o trabalho cultural) Capacidade de participar
Capacidade de aprender Capacidade de exercitar em decisões políticas que
a partir da realidade e de a razão prática e manter governem sua vida e seu
incorporar o conhecimen- relações de reconhecimen- ambiente; ter liberdade de
to para a inovação em to mútuo com base expressão e associação
suas criações na autocrítica e no respei-
to à opinião alheia

Gestão: Capacidade de pensa- Capacidade de definir Estabelecer uma estraté­-


Capacidades relativas ao mento (político, artístico, e cumprir objetivos gia e uma política de
trabalho do empreen- religioso) livre coletivos desenvolvimento de
dedor mensuráveis no Capacidade de se adaptar Capacidade para dialogar, seu empreendimento
compromisso e na respon- às mudanças e de organi- interagir ou negociar com Desenvolver um conjunto
sabilidade profissional zação do trabalho instituições, agências ou de técnicas para o
(MARTINELL, 2011) Desenvolver resiliência empresas do setor público bom funcionamento
para tornar os processos ou privado relacionadas de uma organização
sustentáveis com o trabalho Combinar os recursos
Capacidade para interagir disponíveis: humanos,
com outras pessoas e en- econômicos, materiais, entre
tidades que lhe permitam outros, para aproveitar as
identificar e ter acesso a oportunidades ao seu redor
oportunidades Capacidade de se vincular
de financiamento e adaptar às mudanças na
cadeia de valor de seu setor

Fonte: Mincultura – L+iD (2014).


CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 55

Obs.: a tabela mostra o baixo nível de conseguiram isso graças às capacidades de


renda dos empreendedores culturais colom- formação geradas, melhoria que se estendeu
bianos, que, na melhor das hipóteses, che- àqueles que aplicaram o conhecimento mais
ga à metade de um salário mínimo mensal rapidamente (Mincultura – UTB, 2014).
nesse país. Da mesma forma, seu trabalho
precário (alta porcentagem não coberta por Conclusão
contrato de trabalho) e sua baixa capacidade Refletimos sobre a relevância da ACD, que,
de influência no contexto (baixo nível de as- ao se concentrar na tríade capacidades-opor-
sociatividade). Embora grande parte queira tunidades-conhecimento do contexto, per-
melhorar seu nível de qualificação artística, mite-nos avançar em diferentes direções.
é incapaz de financiá-la, constituindo uma Essas direções podem ser muito úteis para
típica armadilha de capacidades. fundamentar a gestão cultural e o desenho
As contribuições de Nussbaum permi- e a aplicação de políticas culturais.
tiram, assim, abordar a origem, a abrangên- Algumas das vantagens da abordagem
cia e o contexto em que as capacidades são são concretizadas no levantamento de infor-
alcançadas, além de dimensionar o papel da mações para conhecer o contexto, e, nele, as
cultura como elemento transversal da ação capacidades e a estrutura de oportunidades
cultural nas regiões colombianas.11 das pessoas e das comunidades envolvidas
À necessidade de gerar capacidades são identificadas e relacionadas, seguindo a
culturais específicas – de formação e ges- definição clássica de desenvolvimento hu-
tão – se somaram as capacidades para a mano. O mesmo acontece com a articulação
ação, que, além de fazer parte do corpus da gestão cultural com processos locais e na-
conceitual proposto pela ACD, podem ser cionais, a fim de aproveitar os recursos dispo-
avaliadas para determinar as realizações níveis, os mercados criados e o capital social
dos empreendedores culturais nos merca- acumulado. Por último, e como problemática
dos (Tabela 3). Como se observa, quando na qual se desenvolvem com frequência os
a gestão dos empreendedores e as políticas atores culturais, a abordagem permite iden-
culturais se concentram nas capacidades, é tificar a correspondência entre a geração de
possível definir com mais precisão as rotas capacidades em grupos sociais excluídos e
de interesse conforme o nível de realiza- em condições de desvantagem nos mercados
ções desejáveis (por exemplo, controlar o e a criatividade em processos e projetos que
ambiente), assim como o tipo de interações fortaleçam a identidade nos âmbitos do ser e
entre atores e tomadores de decisão. do fazer, melhorando ainda suas condições de
Por último, nas iniciativas avaliadas foi vida e de suas comunidades. Nesse sentido,
detectada uma estreita conexão entre capa- as experiências colombianas sugerem que a
cidades, oportunidades e qualidade de vida. criatividade é uma capacidade a ser gerada,
Em uma avaliação posterior desse projeto, cujo valor simbólico transcende a agregação
ficou evidente que os gestores/empreende- de valor e a sustentabilidade dos negócios cul-
dores que aumentaram visivelmente a renda turais (Mincultura – L+iD, 2014).
56 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Aarón Espinosa Espinosa


Professor pesquisador do Laboratório de Pesquisa e Inovação em Cultura e Desen-
volvimento (L+iD), da Universidade Tecnológica de Bolívar, núcleo de Cartagena das Índias.

Notas

1 Uma das poucas referências à ACD é fornecida pela Unesco no sentido plural.
Ela pressupõe a existência de “abordagens culturais para o desenvolvimento”
que “aumentam a relevância, a sustentabilidade, o impacto e a eficácia das
intervenções, uma vez que se ajustam aos valores, às tradições, práticas e crenças
locais” (UNESCO, 2011, p. 5).

2 Há uma detalhada exposição da cultura como recurso na série de estudos do


Convênio Andrés Bello sobre a contribuição cultural para a economia de países
como Colômbia, Chile, Peru e Equador.

3 Nota do tradutor: o termo “abordagem” foi traduzido da palavra em espanhol


“enfoque”. Em sua acepção mais conhecida, conforme o Dicionário da Real
Academia Espanhola, “enfocar” envolve a ação de “dirigir a atenção ou o
interesse para um assunto ou problema a partir de suposições prévias, para
tentar resolvê-lo corretamente”. Por isso, as “suposições prévias” são enunciadas
no contexto da ACD como um conjunto de princípios orientadores e referências
conceituais intimamente interconectados, tanto no campo das políticas quanto
no da gestão, mais do que como uma definição acabada.

4 Para ver a importância da cultura nos ODM e nos ODS, leia Alvis (2010) e
Martinell (2013).

5 Para ampliar a crítica sobre a noção instrumentalizada da cultura no


desenvolvimento sustentável e as consequências da “retórica do sustentável”
no debate cultural, veja Sen (1998).

6 A ACD propõe que não existe uma noção exclusiva e extensível de bem-estar,
mas muitas noções desse conceito, geralmente localizadas. Portanto, tem
interesse em determinar os espaços de avaliação da qualidade de vida, em que a
participação na vida cultural desempenha um papel determinante.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 57

7 Na ACD, propõe-se uma lista de capacidades a partir da sistematização


de 18 experiências no mesmo número de países da Janela de Cultura e
Desenvolvimento, do Fundo para a Realização dos ODM, realizada pelos núcleos
de Girona e Cartagena do Laboratório de Pesquisa e Inovação em Cultura e
Desenvolvimento (L+iD, 2013a). Esses projetos foram realizados em áreas como
indústrias culturais e criativas, patrimônio, criatividade e identidades, turismo
cultural, capital social e interculturalidade.

8 Para uma definição das capacidades individuais grupais/comunitárias,


organizacionais e político-institucionais, veja L+iD, 2013a, p. 12-13.

9 Nesse sentido, são considerados fundamentais os avanços no esclarecimento


jurídico e conceitual sobre a participação na vida cultural promovidos, desde
2009, pela figura da relatora especial para os direitos culturais das Nações
Unidas. Veja: <http://www.unescoetxea.org/dokumentuak/dchoscult_
docbasicONU.pdf>.

10 Trata-se do projeto Feria, Cosecha de Bienes y Servicios Culturales (Feira,


colheita de bens e serviços culturais), patrocinado pelos setores da educação,
público e de cooperação internacional, e do programa Emprende Cultura –
Cultura para la Prosperidad (Empreende Cultura – Cultura para a prosperidade),
gerido pelo Ministerio de Cultura y Colciencias. Ambos somam aproximadamente
2.100 empreendimentos em todo o território colombiano.

11 Em geral, a conceitualização das capacidades culturais pode ser constatada na


materialização da metodologia APL (aprendizagem a partir da experiência).
Disponível em: <http://www.apl-cultural.com>. Acesso em: 19 nov. 2019.

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Cooperação da Universidade de Girona; Universidade Tecnológica de Bolívar,
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CORREDOR, C. La política social en clave de derechos. Centro Editorial – Centro de
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de Ciências Econômicas, Bogotá, 2010.
58 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

L+iD. La dimensión cultural del desarrollo en la reparación de víctimas. El caso de San


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el desarrollo. Projeto Learning from Practical Experiences. Culture and
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MINISTERIO DE CULTURA – L+iD. Emprendimiento cultural en los años 2011 a 2013.
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Instituto Veracruzano de la Cultura. Procedência do original: Universidade do
Texas, digitalizado em: 1 jul. 2009. Disponível em: <https://www.unrc.edu.ar/
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STEIN, A.; Moser, C. Asset planning for climate change adaptation: lessons from
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Environment and Development (IIED), v. 26, n. 1, 2014, p. 166-183.
UNESCO. Marco Analítico de Batería de Indicadores Unesco en Cultura para el
Desarrollo, 2011. Disponível em: <http://www.unesco.org/new/fileadmin/
MULTIMEDIA/HQ/CLT/pdf/Conv2005_CDindicators_Analytical_es.pdf>. Acesso
em: 19 nov. 2019.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 59
60 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 61

INDICADORES DE CULTURA
DA UNESCO PARA O
DESENVOLVIMENTO (IUCD)
Guiomar Alonso

Ferramenta valorosa e eficaz diante da dificuldade de avaliar o impacto da cultura nos pro-
cessos de desenvolvimento, os Indicadores de Cultura da Unesco para o Desenvolvimento
(IUCD) são capazes de orientar, justificadamente, as ações políticas e programáticas desti-
nadas à conquista desses objetivos. É bom que se diga, porém, que os resultados fornecidos
pelos IUCD devem ser utilizados de forma bastante consciente, para que haja um pleno
entendimento da definição de seu perímetro, que limita a comparação internacional, em
razão das diferenças entre os contextos históricos, sociais e políticos de cada país.

A
nova Agenda 2030 e seus 17 Objeti- Os principais atores e responsáveis p​​ ela
vos de Desenvolvimento Sustentá- implementação das políticas vinculadas à
vel (ODS) integram e reconhecem Agenda 2030 se questionam até que ponto
explicitamente, pela primeira vez desde 1950, os sistemas educacionais valorizam e reco-
o papel positivo que a cultura pode desem- nhecem a diversidade cultural e o papel da
penhar na promoção do desenvolvimento cultura no desenvolvimento (meta 4.7); de
sustentável. Várias das 169 metas da agenda que forma concreta as políticas públicas de
mostram a estreita relação que múltiplos as- turismo sustentável promovem a cultura e os
pectos da cultura têm com diversos objetivos produtos locais (meta 8.9); como a proteção e
(educação, crescimento econômico, desen- a promoção do patrimônio cultural e natural
volvimento urbano, mudança climática, bio- contribuem para a melhoria do habitat (meta
diversidade, paz, justiça). Desse modo, volta 11.4); e qual é o impacto da luta contra o trá-
à linha de frente da atualidade o debate sobre fico de bens culturais na construção de so-
a conceitualização e modelização dessa in- ciedades mais justas e pacíficas (meta 16.4),
terdependência entre cultura e processos de para citar apenas algumas das perguntas que
desenvolvimento, sobre uma metodologia de voltam a ser feitas atualmente.
mensuração quantitativa que seja capaz de Se medir a cultura é reconhecidamente
fornecer cifras e indicadores confiáveis d​​ essa uma tarefa complexa, mais ainda é avaliar
relação e, portanto, do nível de realização dos sua contribuição efetiva para o desenvolvi-
próprios ODS. mento. A prova tangível dessa realidade é a
62 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

notável ausência da cultura nos principais diferentes tentativas de responder à questão


instrumentos de mensuração do desenvol- de como abordar e medir metodologicamen-
vimento, sejam eles os do Banco Mundial, te as relações entre cultura e desenvolvi-
o Índice de Desenvolvimento Humano, do mento. A Unesco é historicamente um dos
Programa das Nações Unidas para o De- principais atores para liderar esse debate,
senvolvimento (PNUD), ou os indicadores além de fazer importantes contribuições,
de progresso da Organização para a Coo- tanto teóricas e conceituais quanto metodo-
peração e o Desenvolvimento Econômico lógicas e de referência prática: o Relatório
(OCDE). Em um ambiente em que os indi- da Comissão Mundial de Cultura e Desen-
cadores mostram os padrões das políticas volvimento (1996), os Relatórios Mundiais
de desenvolvimento a seguir, a ausência de da Cultura (1998, 2000), o Relatório Mun-
ferramentas confiáveis c​​ apazes de produzir dial sobre a Diversidade Cultural (2009) e
indicadores que avaliem eficazmente o papel os Indicadores de Cultura da Unesco para
da cultura representa uma grave desvanta- o Desenvolvimento (IUCD), de que trata-
gem, particularmente em um momento em remos em detalhe neste artigo, em razão
que a comunidade internacional está se pre- de sua atualidade e relevância particular
parando para implementar a nova agenda de no contexto da Agenda 2030.
desenvolvimento.
No entanto, apesar dos inúmeros fato- Projeto e contexto
res que dificultam a pesquisa e o processo A Unesco concebeu os IUCD em 2009, como
de construção de conhecimento nessa área, um projeto de pesquisa aplicada com o ob-
desde a década de 1980, especialistas e ins- jetivo de expressar em dados empíricos e
tituições têm feito esforços para oferecer tangíveis o abundante discurso teórico e

IUCD: FASES

2009 2010 2011 2012 2013

Revisão da literatura Desenvolvimento Fase de teste I Fase de teste II Índice composto


e projetos da metodologia (6 países) (6 países) – revisão de patrimônio
35 indicadores de indicadores
Encomenda de 10 do- Consultas com Harmonização dos
cumentos de trabalho especialistas, Segunda consulta Criação de índices resultados (5 países)
serviços estatísticos com os especialistas compostos: gênero
Desenvolvimento Finalização do
– outubro de 2011 e governança
do quadro teórico OCDE/Escritórios Manual Metodológico
e analítico Nacionais de Revisar indicadores,
Estatística estabelecimento de
Primeira consulta
condições para
com os especialistas
a implementação
– dezembro de 2009

Desenvolvimento do
conceito de bateria
de indicadores
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 63

político relacionado à importância da cul- ferramenta inédita capaz de medir o papel que
tura no desenvolvimento dos países. A ideia a cultura desempenha nos processos de de-
era poder demonstrar aos atores culturais, senvolvimento de um país.
e principalmente a outros atores do cresci- A principal especificidade dos IUCD é
mento, a valiosa contribuição da cultura, que a abordagem pragmática e flexível, adaptada
a torna, mais do que um instrumento, uma às realidades estatísticas nacionais de países
finalidade do desenvolvimento. de média/baixa renda – caracterizadas pela
O projeto contou com o apoio da Agên- escassez de dados disponíveis e por capaci-
cia Espanhola de Cooperação Internacional dades limitadas de tratamento estatístico. Os
para o Desenvolvimento (Aecid), que entre IUCD transcendem as carências e as dificul-
2009 e 2014 disponibilizou para a Unesco os dades tradicionais ligadas a países “pobres”
recursos necessários para explorar, inovar e em informações e estatísticas. Privilegiam
produzir essa nova bateria de 22 indicadores. a adaptação de fontes de informação pró-
O projeto fez parte das primeiras experiências prias do país de estudo, o uso de proxys e
de aplicação da Convenção da Unesco sobre a indicadores alternativos caso não possam
Proteção e Promoção da Diversidade das Ex- ser construídos os indicadores centrais. A
pressões Culturais, particularmente de seu metodologia de construção dos IUCD gera
artigo 13. Assim, após um exaustivo processo um diálogo entre atores de desenvolvimento
de pesquisa colaborativa,1 de rigorosa expe- e atores culturais que chama a atenção para
rimentação prática, ajuste e validação em 12 a cultura e produz dados confiáveis, q​​ ue re-
países (que durou cinco anos) e duas fases sultam na apropriação e na sustentabilidade
de teste, a Unesco apresentou os indicadores dos processos, favorecendo a adoção de no-
IUCD à comunidade internacional como uma vas estratégias e políticas.

2014 2015 2016 2017 2018

Elaboração do Guia Difusão e apresenta- Armênia, Geórgia Tradução para o rus- IUCD como base
de Implementação ção de resultados, e Ucrânia lançaram so; revisão do méto- para os indicadores
– Desenvolvimento lançamento a implementação do de apresentação temáticos da cultura
Visual dos IUCD. México dos indicadores na Agenda 2030 –
Finalização de fer-
experimenta a nacional e urbano
Tradução para o ramentas, tradução Apresentação dos in-
implementação
francês e o espanhol para o árabe dicadores do sudeste
em escala urbana
europeu e México
Publicação, promo- (somente em três
ção e criação estados: Guerrero, Lançamento dos
Colima e Cidade indicadores para
Plataforma web do México) a Agenda 2030
64 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Quadro analítico comportamento coletivo. Da mesma forma,


Neste artigo, apresentarei brevemente a em seu sentido restrito (setorial), como um
abordagem teórica e metodológica em que setor de atividade que organiza as diferentes
se baseia a concepção e o desenvolvimento manifestações da criatividade intelectual e ar-
dos 22 indicadores IUCD, incluindo alguns tística – tanto passada como presente – e que
exemplos práticos de uso e análise obtidos inclui indivíduos, organizações e instituições
em diferentes estudos nacionais, e termi- envolvidos em sua transmissão e renovação.
narei com uma reflexão sobre as conquistas No que diz respeito ao desenvolvimen-
alcançadas nesses nove anos. to, os IUCD propõem sua definição como o
A primeira tarefa metodológica con- processo de mudança e transformação das
sistiu em definir a estrutu- sociedades e a expansão das
ra conceitual e analítica na A matriz IUCD coloca liberdades, para que os in-
qual deveriam se sustentar a cultura como catalisador divíduos e as comunidades
os indicadores propostos. e motor do desenvolvimento, possam acessar a vida que
Cultura e desenvolvimen- ou seja, como fator de valorizam e que têm razões
to são conceitos difíceis de progresso econômico para valorizar. Nessa pers-
delimitar e para os quais e social, e também como pectiva, o desenvolvimento
um objetivo do próprio
existe uma gama de defini- é um processo voltado para
desenvolvimento, oferecendo
ções, cujas diferenças, com a melhoria da qualidade de
uma visão sistêmica do
base em várias razões (de desenvolvimento na qual vida dos indivíduos e im-
ordem semântica, intelec- a cultura tem um papel plica a geração de oportu-
tual, política), garantem a a desempenhar. nidades que permitam que
total ausência de consen- os indivíduos usufruam de
so. Somam-se a isso as particularidades de liberdades fundamentais, bem como que pro-
cada situação e contexto social, histórico ou movam a defesa dos direitos e deveres que
político de um país, que tornam ainda mais possibilitam sua expansão.
difícil medir seus aspectos mais intangíveis
e constituem obstáculos fundamentais para Matriz e indicadores
poder produzir dados estatísticos interna- As relações entre cultura e desenvolvimento
cionalmente comparáveis. A partir do reco- são multidimensionais e complexas. Os IUCD
nhecimento dessa complexidade, os IUCD não pretendem cobrir toda essa complexidade,
propõem definições de trabalho comuns que e, da mesma forma que delimitam as defini-
servem de base para todos os indicadores. ções de cultura e desenvolvimento, a opção é
Nesse contexto, a cultura é definida se concentrar em sete dimensões consideradas
em dois sentidos: primeiro, em seu sentido relevantes para explicar como a cultura – ou
amplo (antropológico), como o conjunto de seja, os valores que norteiam a ação humana,
normas, valores, saberes, crenças, modos o patrimônio e a criatividade – contribui para
de vida e práticas simbólicas que orientam criar valor econômico, social e ambiental, aju-
o comportamento individual e organizam o dando as pessoas e as comunidades em suas
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 65

escolhas de vida e, ainda, a se adaptarem às de estatística, do mundo acadêmico, das agên-


mudanças.2 As sete dimensões da matriz dos cias de desenvolvimento e da sociedade civil. O
IUCD estão organizadas em 22 indicadores processo de implementação participativa foi
simples ou compostos. E os indicadores es- crucial para garantir a apropriação nacional
tão organizados em indicadores de referência dos resultados e o uso futuro dos IUCD no ní-
(benchmark) ou descritivos (de natureza con- vel político. Finalmente, todos os resultados
textual), abordando aspectos tangíveis, intan- técnicos e as interpretações da implementa-
gíveis, objetivos e subjetivos relacionados às ção dos IUCD foram compilados nos relatórios
condições de recursos, insumos e processos técnicos e analíticos para cada um dos países.
culturais em determinado país. Após o trabalho de harmonização e
A matriz IUCD coloca a cultura como análise dos dados de 12 países foi possível
catalisador e motor do desenvolvimento, ou elaborar o DNA nacional da cultura para o
seja, como fator de progresso econômico e desenvolvimento, realizar leituras cruzadas
social, e também como um objetivo do pró- que permitiram fazer análises comparativas
prio desenvolvimento, oferecendo uma visão aprofundadas – apesar de os dados nacionais
sistêmica do desenvolvimento na qual a cul- dos indicadores não estarem padronizados –
tura tem um papel a desempenhar. A análi- e compilar os dados no banco de dados dos
se resultante desse sistema de indicadores IUCD, normalizando os indicadores entre 0
permite estabelecer laços entre a cultura e e 1. A experiência dos IUCD durante as fa-
outros setores, a serviço do desenvolvimento ses de teste permitiu o desenvolvimento de
econômico e social inclusivo, da sustentabi- ferramentas complementares para facilitar
lidade ambiental, bem como da paz e da se- a implementação eficaz dos indicadores em
gurança. Essa contribuição para a produção outros países de forma autônoma.5
de valor econômico, social e cultural exige A partir de 2015, com financiamento pró-
a gestão de longo prazo dos recursos cultu- prio ou de outros doadores, 11 países lançaram
rais, a gestão de expectativas relacionadas ao a implementação dos IUCD, experimentando
acesso inclusivo e equitativo à vida cultural, também sua adaptação em nível federal (três
bem como a salvaguarda e defesa dos direitos estados do México) e em escala urbana.
humanos e das liberdades fundamentais.
Entre 2009 e 2015, o primeiro protótipo O sistema de indicadores IUCD
dos IUCD foi testado em seis países.3 O segun- Em seguida, tomando como referência o Ma-
do protótipo foi testado em sete outros países.4 nual Metodológico, descreverei brevemente
A metodologia definitiva dos IUCD foi formali- as sete dimensões já apresentadas e seus res-
zada no Manual Metodológico, publicado, assim pectivos indicadores, acrescentando, como
como o restante das ferramentas em francês, exemplo, alguns dos resultados obtidos em
inglês e espanhol, em 2015. Foram organizados países da América Latina que, sem dúvida,
24 workshops para refinar e validar os resul- contribuem para um melhor entendimento
tados, que reuniram inúmeros participantes das possibilidades de contextualização ofe-
vindos de ministérios, de institutos nacionais recidas em nível nacional.
66 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

DIAGRAMA INDICADORES

Dimensão indicadores Contribuição das atividades culturais Emprego


Economia para o PIB/valor agregado cultural

descrição Contribuição das atividades culturais Porcentagem de pessoas com empregos


privadas e formais para o PIB culturais em relação ao total da população
ativa empregada

indicadores Educação Educação


inclusiva multilíngue

Dimensão
Educação descrição Índice de escolaridade média Porcentagem de horas de instrução dedicadas
da população entre 17 e 22 anos à promoção do multilinguismo em relação
ajustado em função das desigualdades ao total de horas de instrução dedicadas ao
ensino de línguas (7º e 8º anos)

indicadores Quadro regulamentar em cultura Quadro político e institucional em cultura

Dimensão
Governança descrição Índice de desenvolvimento do quadro Índice de desenvolvimento do quadro
regulamentar para a proteção e promoção regulamentar e institucional para a proteção e
da cultura, dos direitos culturais promoção da cultura, dos direitos culturais e
e da diversidade cultural da diversidade cultural

indicadores Participação em atividades culturais fora Participação em atividades culturais


do domicílio fortalecedoras da identidade
Dimensão de
Participação
Social descrição Porcentagem da população que participou Porcentagem da população que participou
pelo menos uma vez em uma atividade pelo menos uma vez em uma atividade
cultural fora do domicílio nos últimos 12 meses cultural identitária nos últimos 12 meses

indicadores Desigualdades entre Percepção da igualdade


homens e mulheres de gênero
Dimensão
Igualdade
de Gênero descrição Índice de diferenças na situação de mulheres Níveis de avaliação positiva
e homens nos campos político, educacional e da igualdade de gênero
trabalhista e em legislações específicas sobre (abordagem subjetiva)
equidade de gênero (abordagem objetiva)

indicadores Liberdade de expressão Acesso e uso da internet

Dimensão
Comunicação descrição Índice de liberdade da imprensa escrita, Porcentagem de pessoas que usam a internet
rádio e televisão e dos meios
de comunicação baseados na internet

indicadores Sustentabilidade
do patrimônio
Dimensão
Patrimônio
descrição Índice de desenvolvimento de um
quadro multidimensional para a
sustentabilidade do patrimônio
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 67

Despesas domiciliares
com cultura

Porcentagem da despesa de consumo final


domiciliar com bens e serviços culturais com
relação ao total da despesa domiciliar

Educação Formação dos profissionais


artística do setor cultural

Porcentagem de horas de instrução dedicadas Índice de coerência e cobertura


à educação artística em relação ao total do sistema de ensino técnico
de horas de instrução (7º e 8º anos) e superior no campo da cultura

Acesso/distribuição Participação da sociedade civil


de infraestruturas culturais na governança cultural

Distribuição das infraestruturas culturais Índice de promoção da participação dos


selecionadas em relação à distribuição representantes dos profissionais da cultura e
da população nacional nas unidades político- das minorias nos processos de formulação e
-administrativas imediatamente execução de políticas, medidas e programas
inferiores ao nível estatal culturais que lhes dizem respeito

Tolerância intercultural Confiança interpessoal Livre determinação

Grau de confiança em relação às pessoas Grau de confiança interpessoal Resultado médio da livre
com diferentes origens culturais determinação percebida

Diversidade de conteúdos
de ficção na televisão

Proporção de tempo dedicado anualmente à


difusão de programas televisivos de ficção na-
cionais com relação ao tempo total dedicado
anualmente à difusão de ficção, nos canais de
televisão públicos abertos

Indicadores de referência

Indicadores descritivos
68 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

IUCD: INDICADORES DE CULTURA DA UNESCO PARA O DESENVOLVIMENTO (2009-2018)


Fase piloto 2009-2015: 12 países
Desenvolvimento 2015-2018: 11 países, 3 estados e 2 cidades

América Latina Sudeste e Leste Leste da África Países árabes


Colômbia Europeu Burquina Faso Jordânia*
Equador Albânia* Costa do
Peru Armênia*** Marfim**
Sudeste Asiático
Uruguai Bósnia-Herzegovina Gana
Camboja
Estados de Colima, Croácia*
Vietnã
Guerrero, Puebla e Geórgia***
Sul da África
México* (México) Montenegro
Namíbia
Cidades de Moldova* Suazilândia
Medellín* (Colôm-
bia) e México* Romênia* Zimbábue*
Sérvia*
Ucrânia***

*Implementados pelos Escritórios Regionais da Unesco em Amã, Harare, México e Veneza com fundos extraorçamentários.

**Implementados por consultores Cids, com o apoio da Unesco. Financiamento nacional ou de terceiros.

***União Europeia/Associação Oriental – Cultura e Criatividade financiadas pela UE.

Economia Uma multiplicidade de fatores contribui


Com essa dimensão, procura-se demonstrar para a complexidade metodológica que im-
a contribuição instrumental do setor cultural plica a medição exata e completa da contri-
para o crescimento econômico por meio de buição do setor cultural por meio desses três
três indicadores centrais: indicadores. Podemos citar, entre outros, a
• a contribuição das atividades cul- dificuldade de identificar com precisão o se-
turais para o produto interno bruto tor cultural, os códigos estatísticos e as clas-
(PIB) dos países; sificações estatísticas nacionais, bem como
• o emprego gerado pelas atividades o alto grau de informalidade em que essas
culturais; atividades são desenvolvidas na maioria
• a demanda por bens e serviços cul- dos países-alvo. A metodologia IUCD não
turais por intermédio das despesas pretende uma mensuração exaustiva des-
domiciliares. sas variáveis, mas adota voluntariamente
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 69

uma postura pragmática de abordagem do que possibilita comparações entre os paí-


fenômeno. Seu método e sua abrangência ses. Podemos citar o caso do Equador,6 em
não cobrem todo o setor e, em particular, que os IUCD geraram um dado inédito
não cobrem o setor informal ou os efeitos sobre a importante contribuição do setor
indiretos ou induzidos em outros setores cultural para o PIB em 2010 (4,76% do PIB
da economia da cultura. total), com 42,6% provenientes de ativida-
No entanto, e apesar dessas limi- des culturais de equipamento e apoio – ou
tações, podemos afirmar que os IUCD seja, de indústrias que permitem ou facili-
oferecem resultados conclusivos sobre a tam a criação, a produção e a distribuição
contribuição da cultura em termos de de- de produtos culturais –, enquanto 57,4%
senvolvimento econômico, pela primeira vêm de atividades culturais centrais.
vez, na maioria dos países de rendas mé- Assim, pode-se afirmar que as indús-
dia e baixa onde foram aplicados. Ao tomar trias produtivas diretamente relacionadas
como referência a base de dados global à criação, à produção, à distribuição e ao
IUCD, a contribuição da cultura para a eco- usufruto de conteúdos culturais represen-
nomia nacional é significativa e representa taram uma contribuição de 2,73% para o
entre 1,5% e 5,7% do PIB, empregando até PIB em 2010. Essa cifra representa uma
4,7% da população ativa. Os IUCD forne- contribuição similar à de setores como o
cem uma contribuição inovadora e ofere- cultivo de banana, café e cacau (2,6%), e su-
cem uma referência metodológica comum perior à produção de produtos da refinaria

PORCENTAGEM DA CONTRIBUIÇÃO DAS ATIVIDADES


CULTURAIS PRIVADAS E FORMAIS PARA O PIB

4,76% 42,6%
Atividades
de apoio

57,4%
Atividades
centrais

Fonte: Censo Econômico, Inec (2010). | Metodologia: IUCD-Unesco


70 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

PORCENTAGEM DAS DESPESAS DE CONSUMO FINAL DOS DOMICÍLIOS EM ATIVIDADES,


BENS E SERVIÇOS CULTURAIS, CONFORME OS QUINTIS DE RENDA

5%
7%
Quintil 1

12% Quintil 2

54% Quintil 3

Quintil 4

Quintil 5

22%

Fonte: Enquete Nacional de Renda e Despesas, Dane (2007). | Metodologia: IUCD-Unesco

de petróleo (2,0%). Esse dado, que por si a demanda. Por exemplo, na Colômbia, em
só já é significativo, representa apenas a 2007, o consumo cultural domiciliar foi de
ponta do iceberg da contribuição global do 2,75%. Esse porcentual varia muito conforme
setor. De fato, e como já indicado, os IUCD o nível de renda domiciliar: mais da metade
não incluem, por definição, contribuições do total das despesas culturais anuais (54%)
como as atividades realizadas em esta- foi feita pelos domicílios no quintil mais alto,
belecimentos culturais do setor informal enquanto apenas 5% foram realizadas pelo
nem as atividades culturais não comerciais quintil mais baixo. E há uma diferença sig-
oferecidas por órgãos públicos ou por ins- nificativa entre o consumo dos domicílios
tituições sem fins lucrativos, que são de urbanos (1,14%) e rurais (0,30%). Tanto essas
grande importância no Equador. Também desigualdades como a predominância de des-
não estão incluídas nessa cifra outras ati- pesas com equipamento/apoio merecem ser
vidades-chave fortemente vinculadas à consideradas na formulação e na aplicação
cultura, como a renda de hotéis, restauran- das políticas e medidas para promover um
tes e transportes associados a atividades acesso mais inclusivo à vida cultural.7
ou locais culturais e patrimoniais.
O indicador de consumo domiciliar Educação
fornece informações valiosas sobre as prá- Com essa dimensão, procura-se analisar a
ticas de consumo cultural e para analisar prioridade estabelecida pelas autoridades
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 71

públicas para desenvolver um sistema edu- como a avaliação e compreensão da


cacional que valorize a interculturalidade, a diversidade cultural);
diversidade cultural e a criatividade; promo- • o indicador sobre a educação artística
ver a valorização da cultura entre o público; no ensino secundário (abordagem dos
produzir a criação de públicos informados; níveis de fomento da criatividade e da
e influenciar o empoderamento cultural de formação de públicos informados);
seus cidadãos e a promoção de uma classe • o índice de coerência e cobertura
criativa competitiva. Essa dimensão é com- dos sistemas de formação técnica e
posta de quatro indicadores: superior em áreas relacionadas com
a cultura.
• o índice de implementação do direi-
to cultural à educação e de formação O indicador de uma educação inclusiva –
de capital humano (ensino primário uma escolaridade completa, inclusiva e in-
e secundário entre os jovens de 17 tegradora – representa, para o Equador, uma
a 22 anos, ajustado em função das cifra de 0,97 de um máximo possível de 1.
desigualdades); Esse resultado evidencia o esforço realizado
• o indicador do multilinguismo no pelas autoridades públicas (Plano Nacional
ensino secundário (como uma abor- para o Bem Viver) em prol de uma educação
dagem para a análise dos níveis de completa, equitativa e integradora, por meio
fomento da interculturalidade, bem de iniciativas como a adoção de medidas em

ÍNDICE DE ESCOLARIDADE MÉDIA DA POPULAÇÃO ENTRE 17 E 22 ANOS


AJUSTADO EM FUNÇÃO DAS DESIGUALDADES
Resultado final: 0,97/1

1,0
0,9
0,8
0,7
0,6 0,97/1
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0,0
Bósnia-Herzegovina Vietnã Equador Gana Colômbia

Fonte: Censo de População e Domicílio, Inec (2010). | Metodologia: IUCD-Unesco


72 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

favor da conclusão de estudos ou da intro- Governança e institucionalidade


dução de reformas para a melhoria progres- Essa dimensão analisa e avalia os mecanis-
siva da qualidade da educação. O indicador mos de regulamentação políticos e institucio-
mostra que o número médio de anos de nais capazes de favorecer os direitos culturais,
escolaridade da população-alvo com idade promover a diversidade e fomentar a cultura
entre 17 e 22 anos é de 11,1 anos. A maioria como parte essencial do desenvolvimento.
dos jovens cidadãos equatorianos usufrui, Os compromissos e resultados em termos
portanto, do direito cultural à educação e de governança e institucionalidade cultural
participa dos espaços-chave de construção são abordados por meio do nível de ação das
e transmissão de valores, competências e autoridades públicas na formulação e na im-
atitudes culturais, assim como do empode- plementação de quadros regulamentares, po-
ramento pessoal e social, que são o ensino líticos e institucionais. Essa dimensão inclui a
primário e secundário. disponibilização de infraestruturas culturais
Os 3% restantes da população-alvo con- e, portanto, o acesso da população, bem como
siderada estão em situação de dificuldade os mecanismos para participar em processos
educacional, ou seja, têm menos de quatro por meio dos quais as políticas culturais são
anos de escolaridade. Isso evidencia a per- formuladas e implementadas.
sistência de iniquidades e lacunas no usu- Essa dimensão é composta de quatro
fruto do direito cultural à educação que ainda indicadores:
devem ser preenchidas, particularmente no • o índice composto do grau de desen-
que se refere à população afro-indígena, que, volvimento do quadro regulamentar;
considerando todas as faixas etárias, apre- • o índice composto do contexto políti-
senta os índices mais baixos de escolaridade co e institucional em cultura;
quando comparados aos da população bran- • o indicador sobre a distribuição ter-
ca/mestiça. ritorial das infraestruturas culturais;
O Equador como um todo está próxi- • o índice de participação da sociedade
mo do máximo relativo desse indicador em civil e das minorias nos processos de
relação a outros cinco países que também o formulação e execução de políticas,
implementaram.8 Ao tomar como referência medidas e programas culturais que
o banco de dados global IUCD, nota-se que lhes dizem respeito.
ainda há muito a ser feito para que os siste-
mas educacionais formem futuros públicos Os índices e indicadores dessa dimensão fo-
abertos ao diferente e com senso crítico. As ram recém-criados e nos permitem fornecer
horas dedicadas à educação artística, que re- informações inéditas nos países-alvo para
presentam de 2,4% a 17% das horas de ensino monitorar a implementação dos objetivos
secundário, e as oportunidades limitadas de nacionais estabelecidos e identificar os de-
formação profissional mostram deficiências safios. Normalmente, os países com dados
no atendimento às necessidades dos setores dos IUCD mostram que, embora tenham
culturais em expansão. políticas e estruturas jurídicas completas,
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 73

DISTRIBUIÇÃO DAS INFRAESTRUTURAS CULTURAIS SELECIONADAS EM RELAÇÃO À DISTRIBUIÇÃO


DA POPULAÇÃO NACIONAL NO SEIO DAS UNIDADES POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS IMEDIATAMENTE
INFERIORES AO NÍVEL ESTATAL (DESVIO-PADRÃO)

Eixo Y = Distribuição das infraestruturas culturais


Eixo X = Distribuição da população
Quanto mais acima da linha ótima, maior a concentração de equipamentos culturais em relação à população local.

Museus Espaços de exibição Bibliotecas Linha ótima


Prov. Const. del Callao

Madre de Dios
Huancavelixa

Lambayeque
La Libertad

San Martín
Moquegua
Cajamarca
Amazonas

Ayacucho
Apurímac

Arequipa

Huanuco

Tumbes
Ancash

Ucayali
Loreto
Cusco

Pasco

Tacna
Junin

Puno
Piura
Lima
Ica

Fonte: Atlas de Patrimônio e Infraestrutura Cultural das Américas: Peru (2011). | Metodologia: IUCD-Unesco

o acesso equitativo à vida cultural continua Participação social


sendo um obstáculo para a maioria. Assim, Essa dimensão mede os níveis de partici-
a distribuição média da infraestrutura re- pação da população na vida cultural nacio-
vela profundas desigualdades no acesso e nal com a intenção de avaliar e abordar o
na concentração de equipamentos culturais nível de vitalidade cultural, a apropriação
nas principais áreas urbanas. É o caso mar- social das atividades culturais e as fratu-
cante da Colômbia, do Equador e do Peru. ras ou exclusões existentes no seio de uma
Nesses países, a cifra obtida com esse in- sociedade. A liberdade e a possibilidade de
dicador e a visualização das disparidades acesso às atividades e ao consumo de bens
focalizaram as prioridades políticas e a alo- e serviços culturais, bem como o desenvol-
cação de recursos, como pode ser observado vimento de práticas culturais, têm o poten-
no caso peruano (veja acima). cial de influenciar a qualidade de vida dos
74 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

indivíduos e, portanto, o desenvolvimento. meta prioritária para que toda a população


Nesse sentido, a dimensão aborda até que possa usufruir de liberdades sem sofrer dis-
ponto as sociedades são capazes de promo- criminação. Os valores e as aptidões cultu-
ver a liberdade de participar da vida cultu- rais podem influenciar tanto a persistência
ral e viver como desejam de acordo com os como a redução e o desaparecimento da dis-
motivos que valorizam. Aborda também o criminação contra as mulheres.
nível de confiança, abertura à diversidade Com base nesse postulado, a dimensão
e tolerância da população, procurando pro- da igualdade de gênero examina as correla-
porcionar uma compreensão das aptidões ções ou lacunas existentes entre a promo-
para a cooperação indispensáveis à conse- ção e a valorização da igualdade de gênero
cução do desenvolvimento. por meio de políticas e ações concretas, as-
Essa dimensão é composta de cinco in- sim como as percepções da igualdade. Em
dicadores, que abrangem as seguintes áreas: suma, mede-se até que ponto as políticas e
estratégias nacionais de desenvolvimento
• os níveis de participação em atividades promovem o respeito aos direitos humanos
culturais fora do domicílio – próprias e favorecem a construção de uma sociedade
do setor cultural convencional – e em aberta e inclusiva.
atividades culturais fortalecedoras da Essa avaliação resulta de dois indicado-
identidade – ligadas, na maioria dos res compostos que refletem:
casos, a formas e expressões do patri-
mônio intangível; • as diferenças em termos de resul-
• as relações entre cultura e capital so- tados entre homens e mulheres em
cial e confiança, por meio de três indi- domínios-chave, como a educação
cadores, que se enquadram no âmbito ou o acesso ao mundo do trabalho,
dos valores subjetivos declarados: entre outros;
• os níveis de tolerância baseados no • até que ponto as atitudes e percep-
grau de confiança diante da popu- ções individuais são favoráveis ​​à
lação com diferentes origens cul- igualdade de gênero.
turais;
• os níveis de confiança interpessoal, Assim, a análise das correlações ou lacunas
determinantes do capital social; entre os resultados objetivos em termos de
• o nível de percepção da liberdade de igualdade de gênero e os resultados sub-
autodeterminação dos indivíduos. jetivos ligados ao papel atribuído às mu-
lheres na sociedade gera uma abordagem
Gênero das inter-relações entre políticas, meios
A igualdade de gênero é um dos aspectos e valores culturais e atitudes que fornece
centrais do desenvolvimento sustentável. informações muito úteis para influenciar
A igualdade de oportunidades sociais, eco- positivamente a conquista da igualdade de
nômicas, políticas e culturais constitui uma gênero.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 75

Comunicação modos de comunicação entre as


Essa dimensão examina até que ponto uma pessoas, bem como das formas de
interação positiva entre a comunicação e acesso, criação, produção e difusão
a cultura é promovida por meio da avalia- das ideias, das informações e dos
ção do direito à liberdade de expressão, das conteúdos culturais;
oportunidades existentes para acessar novas • a diversidade de conteúdos de ficção
tecnologias (NTIC) e o conteúdo que essas na televisão pública, a fim de avaliar
tecnologias transmitem, e, finalmente, da ofer- a existência de condições que favore-
ta de produção nacional na televisão pública: çam uma participação cultural dis-
cricionária com base em opções, bem
• o respeito e a promoção do direito à li- como o acesso a espaços de radiodi-
berdade de expressão, entendida como fusão, em particular para produções
pilar do desenvolvimento de socieda- e conteúdos locais.
des participativas e abertas e condição
de um ambiente favorável para a criati- O indicador relativo à diversidade de con-
vidade e a diversidade cultural; teúdos de ficção oferecidos pela televisão
• a promoção do acesso às tecnologias pública mostra que, em 2011, 6% do tempo
digitais e, em particular, à internet, de transmissão dedicado a programas de
como fatores de transformação dos ficção televisiva na televisão pública aberta

PROPORÇÃO DE TEMPO DEDICADO ANUALMENTE À DIFUSÃO DE FILMES DE FICÇÃO


NACIONAIS EM RELAÇÃO AO TOTAL DE TEMPO DEDICADO ANUALMENTE À DIFUSÃO
DE FILMES DE FICÇÃO NOS CANAIS DE TELEVISÃO PÚBLICOS ABERTOS

0,2%
Nacional

Internacional

94% 5,8% Coprodução

Fonte: Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (2011). | Metodologia: IUCD-Unesco


76 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

no Equador9 foram dedicados a programas nos domicílios, revelando uma demanda sig-
de ficção nacional. Isso indica uma baixa nificativa e uma oportunidade de expandir a
porcentagem de ficção nacional incluída na oferta de conteúdos locais.
programação pública, abaixo da média de to-
dos os países que implementaram os IUCD, Patrimônio
de 25,8%. O aumento do apoio à difusão de Em suas diversas formas – natural, cultu-
programas de ficção nacionais aumentaria ral, tangível, intangível, móvel e imóvel –,
a variedade da programação e também po- o patrimônio é tanto um produto como um
deria contribuir para informar questões de processo que fornece às sociedades recursos
relevância cultural, fortalecer identidades “frágeis” que exigem políticas e modelos de
e promover a diversidade cultural. A inter- desenvolvimento para preservar e respei-
pretação desse indicador se inter-relaciona tar sua diversidade e singularidade, já que,
facilmente com dois dos indicadores econô- depois de perdidos, não são renováveis. Os
micos, que sugerem baixos níveis de criação IUCD propõem um índice de desenvolvimen-
de produtos e serviços culturais nacionais e, to de uma estrutura multidimensional para
ainda, o consumo de bens e serviços culturais a proteção, a salvaguarda e a promoção da

ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO DE UM QUADRO MULTIDIMENSIONAL


PARA A SUSTENTABILIDADE DO PATRIMÔNIO
Resultado final: 0,75/1

Registros e inscrições: 0,77/1 Proteção, salvaguarda Transmissão e mobilização


e gestão: 0,73/1 de apoios: 0,78/1
1,0
0,9
0,8
0,7
0,6
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0,0
Nível Nível Conservação, Criação de Participação Sensibilização Estimulação
internacional nacional valorização capacidades da comunidade e educação do apoio
e gestão e conhecimentos

Fonte: consultas a contrapartes (2013). | Metodologia: IUCD-Unesco


CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 77

sustentabilidade do patrimônio. Esse índice Nesses dez anos, a implementação dos


integra aspectos como: IUCD apresentou provas tangíveis de sua efi-
cácia, gerando dados inéditos em países onde
• os “registros e inscrições”, que for- até hoje os dados e as análises estatísticas re-
necem uma indicação estrutural do lacionados à cultura e áreas afins eram precá-
grau de prioridade atribuído à prote- rios ou até mesmo inexistentes. A produção de
ção do patrimônio; indicadores e sua análise geraram impactos
• a “proteção, salvaguarda e gestão em pelo menos três áreas. Em primeiro lugar,
do patrimônio”, que permite anali- facilitaram e estruturaram o diálogo entre ins-
sar até que ponto a vontade pública tituições e atores. Foi o caso do Equador, com
– refletida por meio de registros e a introdução de objetivos ligados à cultura no
inscrições – se traduz em políticas Plano Nacional de Desenvolvimento, ou da
e medidas concretas de proteção, Namíbia, em que os IUCD levaram à introdu-
salvaguarda e valorização do patri- ção da cultura no Quadro das Nações Unidas
mônio, incluindo a promoção de uma para Assistência ao Desenvolvimento para
gestão sustentável, o reforço de capa- 2014-2018. Mais recentemente, serviram de
cidades e o fomento à participação base de discussão na Armênia, na Ucrânia e
das comunidades; na Geórgia. Em segundo lugar, informaram
• a “transmissão e mobilização de políticas e decisões em escala nacional. Foi
apoios”, elementos indispensáveis o caso da Colômbia, onde os IUCD nos per-
para um melhor entendimento da mitiram visualizar um desafio conhecido por
sociedade sobre o valor e o sentido do todos, a desigualdade de acesso entre as re-
patrimônio e sua transmissão para as giões, e acompanharam a nova abordagem de
gerações futuras. desconcentração. Um terceiro efeito é o refor-
ço das capacidades dos sistemas estatísticos
Com um resultado de 0,75/1, o exemplo do para coletar dados e interpretar as estatísticas
Uruguai mostra o alto nível de prioridade ligadas à cultura. Nos últimos anos, a meto-
dada à proteção, salvaguarda e promoção da dologia IUCD ganhou vida própria e evoluiu,
sustentabilidade do patrimônio pelas auto- adaptando-se às necessidades daqueles que
ridades públicas. Grande parte do esforço desejam ter uma visão geral da situação e dos
público é dedicada a registros e inscrições, à dados que lhes permitem situar-se em relação
participação da comunidade e ao estímulo ao a outros países.
apoio entre a sociedade civil e o setor priva-
do. Ainda existem lacunas na sensibilização, Conclusão
na criação de capacidade, na conservação e A Agenda 2030 e seus Objetivos de Desenvol-
na gestão, fatores em que são necessárias vimento Sustentável (ODS) mostram, mais
ações adicionais. O Equador apresenta um uma vez, o papel positivo que a cultura pode
resultado de 0,84/1, a Colômbia de 0,86/1 e e deve desempenhar na consecução desses
o Peru de 0,65/1. objetivos. Diante da patente dificuldade de
78 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

apreender e avaliar o impacto tangível da cul- favoráveis ​​q ue permitem a sua


tura nos processos de desenvolvimento, os renovação e a introdução de mu-
Indicadores de Cultura da Unesco para o De- danças positivas na vida dos in-
senvolvimento (IUCD) são uma ferramenta divíduos e das sociedades. Seria
eficaz e comprovada, capaz de esclarecer conveniente aprofundar essa linha
esse impacto e, portanto, apoiar e orientar de pesquisa;
de forma justificada as ações políticas e • os IUCD são orientados prioritaria-
programáticas propícias para a consecução mente aos países de renda média e
desses objetivos. baixa, onde a disponibilidade de da-
No entanto, os resultados fornecidos dos e a capacidade de seu tratamento
pelos IUCD devem ser utilizados de forma são limitadas. A abordagem partici-
totalmente consciente, ou seja, com pleno pativa que possibilita sua construção
entendimento da definição precisa de seu fortaleceu as capacidades na produ-
perímetro, que limita a comparação inter- ção e na manipulação de dados.
nacional em razão das diferenças intrínsecas
entre os países e seus contextos históricos, A possível evolução exigiria uma atua-
sociais e políticos. lização das abordagens e dos padrões
utilizados, a capacitação de mais espe-
Gostaria também de enfatizar alguns aspec- cialistas na metodologia e o fortaleci-
tos relacionados aos IUCD: mento da troca dos materiais com outras
agências e redes, enfatizando a comuni-
• a natureza pragmática de sua me- cação de resultados e a publicação de pes-
todologia, cujo objetivo consiste em quisas. A metodologia dos IUCD poderia
avançar na quantificação de um cam- ser melhorada ampliando as dimensões,
po de estudo historicamente sujeito especialmente a urbana e patrimonial,
a múltiplas discussões intelectuais simplificando alguns cálculos desneces-
que se estendem por décadas sem sariamente complexos e fortalecendo a
resultados tangíveis; leitura transversal dos dados.
• os IUCD são simplesmente um Em suma, e ainda sem poder se tor-
primeiro ponto de apoio para nar uma referência absoluta das situações
construir posteriormente fases de particulares de cada país, pode-se afirmar
desenvolvimento e aperfeiçoamen- que os IUCD constituem um sólido ponto
to. A segunda fase poderia aplicar, de partida para essa análise. Também é
em diferentes áreas e dimensões, um fato que a maioria dos países partici-
a abordagem para a construção de pantes de seu desenvolvimento e aplica-
novos indicadores; ção os considera uma ferramenta eficaz e
• os IUCD abriram o caminho para valiosa para o diagnóstico de suas respec-
modelar as relações entre os re- tivas políticas públicas e a interpretação
cursos culturais, os ambientes de suas realidades.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 79

Guiomar Alonso
Conselheira regional de cultura no escritório da Unesco em Sahel (Dakar), na África
Ocidental, Guiomar estudou no Institut des Hautes Études de Défense Nacionale, em
Paris, na University at Albany, em Nova York, e na Universidad Complutense de Madrid,
na capital espanhola.

Notas

1 Durante cinco anos, sob a direção de Guiomar Alonso Cano e com Melika
Medici como chefe do projeto, mais de 150 especialistas provenientes de
administrações públicas nacionais, institutos de estatística, organizações
da sociedade civil, bem como do mundo acadêmico, contribuíram para o
desenvolvimento dos IUCD. A equipe da Unesco era composta de jovens
pesquisadores de econometria e desenvolvimento: Naima Bourgault,
Guillaume Cohen, Annya Crane, Keiko Nowacka e Molly Steinlager.

2 Essa escolha foi inspirada no relatório da Comissão Mundial de Cultura e


Desenvolvimento Nossa Diversidade Criadora, de 1996. No entanto, ao longo do
projeto, houve necessidade de incluir outras dimensões, como saúde ou meio
ambiente, que interagem muito estreitamente com a cultura.

3 Bósnia-Herzegovina, Colômbia, Costa Rica, Gana, Uruguai e Vietnã.

4 Burkina Faso, Camboja, Equador, Montenegro, Namíbia, Peru e Suazilândia.

5 A caixa de ferramentas dos IUCD inclui o Manual Metodológico, que oferece


uma metodologia de acompanhamento detalhado para coleta de dados,
cálculos e elaboração e análise de indicadores; o Guia de Implementação, com
uma análise detalhada do processo de elaboração; o checklist de requisitos
para a implementação; planilhas de Excel criadas para oferecer um quadro
comum de tratamento de dados em nível nacional; e o banco de dados global
dos IUCD. Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/>. Acesso em: 17
nov. 2019.

6 Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/sites/creativity/files/cdis/


resumen_analitico_ecuador_0_1.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2019.

7 Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/sites/creativity/files/cdis/


resumen_analitico_iucd_-_colombia_0_1.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2019.
80 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

8 Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/sites/creativity/files/cdis/


resumen_analitico_ecuador_0_1.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2019.

9 Disponível em: <https://es.unesco.org/creativity/sites/creativity/files/cdis/


resumen_analitico_ecuador_0_1.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2019.

Referências

Unesco IUCD – Caixa de Ferramentas


Tabelas e banco de dados
<https://es.unesco.org/creativity/indicadores-de-desarrollo/caja-de-
herramientas>
Guia de Implementação
<http://www.lacult.unesco.org/docc/Guia_Implement_IUCD_es.pdf>
Manual Metodológico
<https://es.unesco.org/creativity/sites/creativity/files/iucd_manual_
metodologico_1.pdf>

Unesco IUCD – Relatórios por País


Bósnia-Herzegovina, Burkina Faso, Camboja, Colômbia, Equador, Gâmbia, Montenegro,
Namíbia, Peru, Uruguai e Montenegro (2009-2015).
Resumos analíticos: <https://es.unesco.org/creativity/cdis>

Albânia (2016)
<http://www.unesco.org/new/en/unesco/events/albania/?tx_browser_
i1%5BshowUid%5D=33285&cHash=62d817a640>

Armênia (2017)
<https://www.culturepartnership.eu/en/article/cdis-armenia>
Resumo analítico:
<https://www.culturepartnership.eu/upload/editor/2017/Policy%20
Briefs/171128%20CDIS%20Armenia%20Analytical%20Report%20English.pdf>

Geórgia (2017)
<https://www.culturepartnership.eu/en/article/cdis-georgia>
Resumo analítico:
<https://www.culturepartnership.eu/upload/editor/2017/Policy%20Briefs/
CDIS%20Georgia%20Analytical%20and%20Technical%20Report.pdf>
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 81

México (2013-2018)
Estados de Colima, Guerrero, Puebla e México, México DF
<http://www.unesco.org/new/es/mexico/press/news-and-articles/content/
news/la_oficina_de_la_unesco_en_mexico_entrega_el_sistema_de_ind/>

Ucrânia (2017)
<https://www.culturepartnership.eu/en/article/culture-for-development-
indicators>

Resumo analítico:
<https://www.culturepartnership.eu/upload/editor/2017/2017/CDIS%20_%20
Analytical%20Brief%20_%20ENG%20(1).pdf>
2.
82 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

INSPIRAÇÕES E CAMINHOS
PARA A INTEGRAÇÃO
DA CULTURA NO
DESENVOLVIMENTO

83. O QUE ENTENDEMOS POR


SUSTENTABILIDADE A PARTIR DA CULTURA?
Marta García Haro e Lucía Vázquez

95. CULTURA E DESENVOLVIMENTO:


EXISTEM RESULTADOS E IMPACTOS?
Paulo H. Duarte-Feitoza

107. RUMO A UMA ABORDAGEM


CULTURAL PARA O DESENVOLVIMENTO:
O CASO DE YOPOUGON, NA COSTA DO MARFIM
Francisco d’Almeida, David Koné
e Valeria Marcolin

119. AS DESIGUALDADES CULTURAIS:


O ÉTICO, O ÉTNICO E A COMUNIDADE
Paula Moreno

133. DIVERSIDADE E
DESENVOLVIMENTO. AGENDA 2030: RUMO À
DESCOLONIZAÇÃO DOS NOSSOS MUNDOS
Lucina Jiménez

145. É A DEMOCRACIA, ESTÚPIDO


Marta Porto
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta García Haro e Lucía Vázquez 83

O QUE ENTENDEMOS
POR SUSTENTABILIDADE
A PARTIR DA CULTURA?

Marta García Haro e Lucía Vázquez

Este artigo oferece uma viagem através da história da cultura no âmbito da sustentabili-
dade. Analisaremos por que a cultura não foi incluída nos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS). Em seguida, refletiremos sobre como a cultura pode se apropriar da
Agenda 2030. A formação do setor cultural, a integração dos ODS e casos inspiradores são
alguns dos assuntos a serem desenvolvidos. A conclusão, a título de resumo, sintetiza o que
é tratado neste artigo.

Por que a cultura não foi incluída nos


Objetivos de Desenvolvimento Sustentável?

A
Agenda 2030 e seus Objetivos de No entanto, a cultura não é um ele-
Desenvolvimento Sustentável mento central na Agenda 2030 ou nos ODS.
(ODS) compõem o roteiro global Algumas metas a mencionam, mas não há
assumido por todos os países do mundo para um objetivo específico da cultura. Quando
tornar este planeta mais próspero, mais justo a agenda pós-2015 estava sendo desenvol-
e mais respeitoso com o meio ambiente até o vida, organizou-se uma campanha global
ano 2030. A agenda foi aprovada em setem- chamada O Futuro que Queremos Inclui a
bro de 2015 na Assembleia Geral das Nações Cultura.1 Apesar do apoio que recebeu de
Unidas, e, desde então, todos os setores da so- organizações, da sociedade civil e de es-
ciedade foram acionados para implementá- pecialistas de mais de 120 países, nenhum
-la e para atingir esses objetivos ambiciosos. objetivo incorporou a dimensão cultural no
É uma tarefa que envolve todos os níveis de desenvolvimento sustentável.
governo, universidades, empresas, a socieda- Do artigo “Cultura para el desarrollo y
de civil e, claro, o mundo da cultura. educación: ciudadanos globales”,2 de Alfons
84 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Martinell, publicado em 2015, destacamos 5. A cultura como veículo. Visão um


algumas interpretações: tanto materialista da cultura a serviço
de outras disciplinas ou outros seto-
1. A relutância dos Estados em res (turismo, cidade, educação), e não
aceitar a diversidade cultural como um valor em si.
existente em seu território. Diante do
caminho fácil da homogeneização e da Como o mundo da cultura pode se
gentrificação de territórios e das cul- apropriar da Agenda 2030 e ajudar a
turas, a dimensão social e inclusiva da transformar o nosso mundo?
sustentabilidade passa por assumir, No contexto descrito anteriormente,
aceitar e celebrar essa diversidade. como a sustentabilidade afeta, então, o
2. “A hierarquia das necessidades” setor cultural e criativo? Como nos afeta
deve estabelecer prioridades no de- e o que podemos fazer como gestores cul-
senvolvimento: fome, pobreza, saúde turais, artistas ou curadores? Que papel a
e educação. Entre elas, a cultura cos- arte e a criatividade podem desempenhar?
tuma estar ausente, quase como se Sem dúvida, precisamos de uma mudança
fosse um luxo incompatível com as de rumo, e a responsabilidade é de todos,
demais necessidades, mais urgentes. ninguém pode fazer isso sozinho ou isola-
Não é considerada um fator impres- damente. Não se trata mais de uma minoria
cindível para se alcançar o desenvol- seleta de cidadãos processar a necessária
vimento sustentável. transformação social, mas que ela seja
3. A invisibilidade da cultura no substituída por uma maioria ética de cida-
produto interno bruto. Apesar de dãos dispostos às mudanças sociais. Como
sua considerável contribuição para destacado pelo antigo secretário-geral da
o PIB, não é contemplada. Isso se ONU, Ban Ki-moon, os ODS são o novo
deve à abordagem mais tradicional contrato social global. Nesse contexto, os
do desenvolvimento econômico, que agentes culturais, tradicionalmente afasta-
geralmente não contempla essas con- dos das questões de sustentabilidade, têm
tribuições tangíveis e outras intan- muito a contribuir.
gíveis (coesão social, construção de Estamos convencidas de que, se os pro-
comunidade, transmissão de valores). fissionais do setor cultural se apropriarem
4. O significado de sustentabilida- do espírito da Agenda 2030 e trabalharem
de. Esse conceito, proveniente das com a abordagem multidisciplinar, inter-
ciências naturais, parece estranho e conectada e colaborativa proposta pelos 17
distante em contextos culturais. Há Objetivos de Desenvolvimento Sustentável,
muitos profissionais que ainda não farão melhorar o funcionamento das insti-
encontraram as conexões entre cul- tuições e sua resiliência, e o mundo da cul-
tura e sustentabilidade, e é sobre isso tura encontrará inspiração e, talvez, novos
que falaremos mais adiante. horizontes para a arte.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta García Haro e Lucía Vázquez 85

Muitos argumentarão que a arte é au- braços cruzados diante da situação do


tônoma e que temem qualquer tipo de ins- mundo: a cultura pode fazer algo para
trumentalização; outros dirão que o desafio torná-lo melhor. As instituições cultu-
é grande demais e que estão sozinhos diante rais têm um poder simbólico positivo e
dele. Que existe uma parte muito precária no um alto grau de confiabilidade. É uma
campo cultural que não pode assumir esse oportunidade para abordar novas temá-
desafio; ou que não há manuais de inicia- ticas que se conectam com a realidade,
ção e não sabem por onde começar. Outros com o que interessa à população.
encontrarão resistência de chefes, colegas
ou equipes, não dispostos a gastar tempo ou Aquilo que é sustentável
esforços para ser mais sustentáveis. é mais caro?
Aqui propomos uma breve lista de per- Não, aquilo que é sustentável é mais
guntas frequentes e argumentos para con- eficiente e, em longo prazo, compensa.
vencer os indecisos. Nem sempre é mais caro. Além disso,
ao ser sustentável, abre novos canais de
Por onde começo? financiamento (subsídios, patrocínios)
Devemos começar dizendo que existe que valorizam organizações alinhadas
uma comunidade interessada em criar à sustentabilidade.
redes de apoio e aprendizado mútuo. Co-
nectar e compartilhar são a base. Os agentes culturais estão dispostos a agir
e contribuir para tornar este mundo me-
Existem ferramentas lhor, mas o desafio é imenso e ainda faltam
ou toolkits? informações e ferramentas. Para começar
Existem muitos manuais gratuitos a preencher essa lacuna e oferecer um guia
disponíveis na internet para começar de como iniciar a transformação, em 2017, a
a pensar em uma gestão mais sustentá- Revista Conectando Audiencias, especializa-
vel (veja recursos em <www.reds-sdsn. da em gestão cultural, publicou o primeiro
es/recursos>). número monográfico sobre arte e desenvol-
vimento sustentável,3 lançado em versão
Como enfrento as resistências internas? digital para a Espanha e a América Latina.
E a concorrência entre instituições? Além disso, desde 2017, a Rede Espanhola
Devemos procurar novas formas de para o Desenvolvimento Sustentável (Reds),
trabalhar, ter mais coordenação. Em capítulo regional da Sustainable Develop-
parceria, podem ser identificados, por ment Solutions Network, das Nações Uni-
exemplo, novos canais de programação das, organiza anualmente as Jornadas sobre
coletiva ou financiamento conjunto. Sustentabilidade e Instituições Culturais4
para criar um espaço de encontro entre os
Mas quem se interessa por essa questão? profissionais do setor criativo interessados​​
É uma obrigação moral não ficar de em uma prática mais sustentável.
86 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Como incluir o mundo da cultura ambiental para museus, intitulada Mu-


no desenvolvimento sustentável? seums’ Environmental Framework, que
A contribuição do setor cultural e criativo a plataforma #CulturaSostenible tradu-
para se ter uma sociedade mais sustentável ziu para o espanhol.6 É um guia que inclui
passa por diversas vias. Uma delas é pro- uma visão geral dos diferentes níveis de
mover uma gestão cultural sustentável, práticas ambientais em museus do Reino
ou seja, melhorar a práxis em nossas ins- Unido, exemplos inspiradores, uma lista
tituições e em nossa atividade cotidiana e de recursos e ferramentas úteis, bem como
integrar o paradigma da Agenda 2030 para um painel com os passos a serem dados pe-
o Desenvolvimento Sustentável ao cerne da las instituições museológicas que queiram
instituição. Para além disso,introduzir em se manter ambientalmente sustentáveis. É
seus conteúdos as múltiplas questões que uma ferramenta muito prática e facilmente
abordam os ODS e apoiar seu conhecimen- adaptável a outros contextos.
to e divulgação. Outra forma de abordar o desenvolvi-
Outra contribuição fundamental é a mento sustentável a partir do setor cultural,
conservação do patrimônio cultural ma- com ambições mais amplas, é incorporá-lo
terial e imaterial que herdamos e que é ao DNA da instituição, ou seja, alinhar os
incluído como meta específica do ODS 11 ODS com sua missão, visão e ação.
(Cidades e Comunidades Sustentáveis). A
esse respeito, a Unesco trabalha a partir Como incorporar a abordagem
da perspectiva dos ODS na proteção desse sustentável à instituição cultural
patrimônio.5 No campo do desenvolvimen- A fim de obter uma transformação de nossas
to sustentável, está sendo construído um instituições e de nossas formas de fazer e
novo conceito de patrimônio cultural, que pensar, é preciso ir além de uma mudança
inclui florestas, paisagem ou conservação leve aplicada somente à ação climática, pois,
da memória coletiva – uma concepção in- como vimos, além dos objetivos ambientais,
tegral do patrimônio. o desenvolvimento sustentável incorpora as-
Com relação às medidas para tornar pectos sociais, econômicos e de governança.
a gestão cultural sustentável, os avanços Nessa jornada rumo ao desenvolvimento
mais visíveis têm sido aqueles que colocam sustentável, propomos alguns passos a se-
em prática medidas que reduzem o “déficit rem dados: identificação, formação, apro-
ecológico” de infraestruturas e atividades. As priação e integração.
ações voltadas para a mitigação do impacto Primeiro, é necessário que sejam iden-
ambiental são relativamente fáceis de aplicar tificados os desafios da cultura em torno da
e têm alto retorno sobre o investimento, uma sustentabilidade. Uma espécie de diagnós-
vez que propiciam economias significativas tico para conscientizar o setor cultural so-
nos custos de manutenção. bre a necessidade de alinhar seu trabalho
A organização britânica Julie’s Bi- com a sustentabilidade. Para isso, é preciso
cycle desenvolveu uma estrutura de ação criar um quadro de referência próprio que
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta García Haro e Lucía Vázquez 87

estabeleça parcerias entre organizações e Às vezes, é difícil encontrar, à primeira


instituições culturais para implementar a vista, as diferenças entre cultura e susten-
Agenda 2030. É necessário que a agenda tabilidade. A esse respeito, há um magnífico
influencie as práticas culturais. Igualmen- artigo de Jasper Visser intitulado Museums
te essencial é a reformulação das políticas and the SDGs. Where to Make a Difference,7
públicas culturais, que devem incorporar no blog do Museum of the Future, que ana-
os ODS. lisa as metas dos ODS ligadas à missão e à
Em seguida, é imprescindível realizar visão dessas instituições. E, embora o texto
um treinamento sobre desenvolvimento sus- se concentre exclusivamente em museus,
tentável adaptado ao campo cultural. Não muitas das metas apontadas são comuns a
necessariamente centrado em estatísticas e qualquer iniciativa cultural. Um exemplo é
cifras, mas que inclua a origem e o conteúdo a meta 4.7 dos ODS 4 (Educação e Qualida-
da Agenda 2030 e o contexto no qual os ODS de), que diz: “Até 2030, garantir que todos os
foram criados, ou uma visão geral de suas alunos adquiram os conhecimentos teóri-
169 metas. Isso parece óbvio, porém, mui- cos e práticos necessários para promover o
tas vezes encontramos pro- desenvolvimento sustentável,
fissionais da cultura que não No campo do entre outras coisas, através
conhecem o próprio conceito desenvolvimento da educação para o desenvol-
holístico de desenvolvimen- sustentável está sendo vimento sustentável e estilos
to sustentável, confundindo-o construído um novo de vida sustentáveis, direitos
com ser “mais verde”. conceito de patrimônio humanos, igualdade de gêne-
Outro ponto é a necessi- cultural, que inclui ro, promoção de uma cultura
dade de haver uma apropria- florestas, paisagem de paz e não violência, cida-
ção. Apropriar-se significa ou conservação da dania mundial e valorização
“tornar algo seu”. E, para que memória coletiva — da diversidade cultural e da
essa ação seja feita, devemos uma concepção integral contribuição da cultura para
nos conectar com aquilo que do patrimônio. o desenvolvimento sustentá-
desejamos, acreditar nisso, vel”. Ou a meta 11.4 do ODS 11
para que sintamos tamanha motivação que (Cidades Sustentáveis), que diz: “Redobrar
queiramos incorporá-lo em nossa vida. os esforços para proteger e salvaguardar o
Quando entendemos a natureza ho- patrimônio cultural e natural do mundo”. A
lística e colaborativa do desenvolvimento meta 12.8 do ODS 12 (Produção e Consumo
sustentável, sua visão integradora de um Responsável) também diz que: “Até 2030,
mundo mais justo, pacífico e respeitoso com garantir que as pessoas do mundo todo te-
o meio ambiente, entendemos também que nham informações e conhecimentos rele-
não há como voltar atrás. É nesse momento vantes para o desenvolvimento sustentável
que procuramos colocar a experiência pro- e estilos de vida em harmonia com a natu-
fissional e pessoal em consonância com essa reza”. Por fim, as metas 9, 16 e 17 do ODS
ideia transformadora. 17 (Parcerias para Alcançar os Objetivos)
88 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

nos desafiam a criar capacidades, fortalecer Quais são os ODS que a minha
os meios de implementação e revitalizar a instituição quer priorizar?
Aliança Mundial para o Desenvolvimento É necessário selecionar os objetivos de
Sustentável. acordo com a natureza da entidade ou do
Todos esses tópicos, traduzidos para trabalho. Haverá locais onde alguns ODS
o mundo cultural, têm a ver com organiza- serão mais enfatizados que outros. Talvez
ções que assumem um papel ativo na sensi- um museu de ciências naturais esteja mais
bilização e na formação do desenvolvimento alinhado com os objetivos relacionados ao
sustentável, associam-se a outros e tomam planeta, e uma associação cultural de bairro
consciência de seu papel central como um pode se concentrar mais naqueles que têm a
elo em comunidades e sociedades. ver com as pessoas.
Finalmente, é preciso existir a integra-
ção do novo paradigma da sustentabilidade Quais ferramentas tenho
em nossa práxis. Cada profissional, gestor, para realizar os ODS?
espaço, centro ou instituição cultural deve Essas ferramentas serão econômicas, huma-
explorar as conexões existentes entre os ODS nas e materiais. E devem incluir colaborações
e seu contexto profissional a partir de uma com outras instituições, associações, escolas
perspectiva transversal. A e agentes culturais – todos os
forma mais simples de che- Todos nós que atores que estejam em sintonia
gar a esse resultado é estar trabalhamos no setor com os objetivos que nos pro-
familiarizado com os ODS e cultural percebemos pusemos a implementar.
convencido de que esse é o que a possibilidade de Todos nós que traba-
caminho a seguir. Uma vez propor mudanças na lhamos no setor cultural
que esses requisitos sejam gestão adotando critérios percebemos que a possibi-
cumpridos, a integração é de sustentabilidade, ou lidade de propor mudanças
conquistada na prática. Para o momento de propor na gestão adotando crité-
realizá-la, podemos fazer as ações e programação rios de sustentabilidade, ou
três perguntas a seguir. relacionadas a essas o momento de propor ações
questões, tem sido e programação relacionadas
Do que precisaríamos para muito limitada. a essas questões, tem sido
cumprir os ODS? muito limitada. Felizmente,
É necessária uma análise da missão, da há uma mudança de atitude e uma enorme
visão e da programação da instituição. O receptividade a essa nova proposta.
mais eficaz é estabelecer objetivos em um Cada vez mais agentes e centros cultu-
contexto local, no ambiente onde a ativi- rais estão abertos para discutir essa temática
dade desse centro, espaço ou gestor é de- e incorporar em sua programação os desa-
senvolvida. Os ODS são metas globais que fios globais enfrentados pela humanidade,
convocam para a ação local. Pense global- como a crise ecológica, a migração e as de-
mente, aja localmente. sigualdades. Esses agentes trabalham nas
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta García Haro e Lucía Vázquez 89

intersecções entre arte, cultura e desenvol- Unidas sobre Mudança do Clima, em que os
vimento sustentável a partir de diferentes Acordos de Paris foram aprovados.
contextos: gestão, programação, políticas O International Council of Museums
culturais ou ativismo. Eles nos dão visões, (Icom) se juntou recentemente a esse mo-
compartilham aprendizados, são criadores, vimento por intermédio da criação de um
gestores culturais ou responsáveis ​​por mu- grupo de trabalho sobre museus e sustenta-
seus, teatros, centros de exposições e festi- bilidade, com membros do mundo todo, para
vais que entenderam que devem empreender discutir como promover o progresso em seu
uma mudança em direção à sustentabilidade. campo de ação.
Na América Latina também encontra-
Casos inspiradores mos exemplos de referência desse binômio
Há um número crescente de atores do se- cultura-sustentabilidade. Em Medellín, o
tor cultural e criativo no mundo que estão Parque Explora faz parte da rede cultural
trabalhando nas intersecções entre arte e com a qual a cidade se destacou como exem-
desenvolvimento sustentável. Na Europa, plo de superação de um passado de violên-
destacamos duas entidades que servem de cia e insegurança. É um museu de ciências
inspiração. Primeiramente, a Julie’s Bicycle, e tecnologia que integrou em seu discurso,
entidade britânica sem fins lucrativos que missão, visão e programação o conceito de
opera desde 2008 para tornar o setor mais sustentabilidade, com ações como Colombia,
sustentável a partir de uma abordagem am- País de Agua (Colômbia, País da Água). Fez
biental. E, graças a uma parceria estratégi- também parceria com associações comuni-
ca com o Arts Council England, conseguiu tárias para realizar programas de conscien-
transformar todo o setor cultural por meio de tização em sustentabilidade.
uma mudança nos requisitos para a obtenção Ainda na Colômbia, existem várias ini-
de apoio público (exigindo, por exemplo, a ciativas que unem arte e sustentabilidade
apresentação de um relatório de sustenta- promovidas pela ONG Fondo Acción. Entre
bilidade). Essa entidade também organizou, elas, destacamos Maletín de Relatos Pací-
em 2018, o Season of Change, o maior festival ficos (Portfólio de Relatos Pacíficos), que
artístico dedicado à mudança climática no reúne 23 narradores do Pacífico colombiano
Reino Unido. para relatar sobre matas, florestas e territó-
Outro exemplo inspirador é o da Coali- rio, e que representa um ponto de encontro,
tion pour l’Art et le Développement Durable por meio da literatura, de interesses am-
(Coal), associação francesa que mobiliza bientais e culturais. Há também o Prêmio
curadores e profissionais da cultura em torno CambiARTE, concurso de arte e mudança
dos desafios do desenvolvimento sustentá- climática que visa conscientizar a opinião
vel. A Coal concede anualmente um prêmio pública sobre a necessidade de mobilizar
de prestígio em arte e meio ambiente e, em recursos para o financiamento sustentável
2015, projetou a programação ArtCOP21, de ações de mitigação e adaptação diante
que acompanhou a Convenção das Nações das mudanças climáticas.
90 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Outro caso inspirador fica no Brasil: o sustentabilidade. A partir dos setores artís-
Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, é de- tico, criativo e cultural, vemos o enorme de-
finido como um lugar de “ciências aplicadas safio que devemos assumir, mas também uma
que explora as oportunidades e os desafios oportunidade de criar parcerias com outros
que a humanidade será obrigada a enfrentar setores (como, por exemplo, o da educação),
nas próximas décadas a partir da perspectiva aumentando sua presença e visibilidade. O
da sustentabilidade e do convívio”. O discur- desenvolvimento sustentável é, sem dúvida,
so expositivo encoraja os visitantes a refletir uma necessidade para as políticas culturais
sobre a era do Antropoceno, sobre seu pró- de todos os governos, que devem integrá-lo de
prio papel como parte dele forma transversal e coeren-
e seu poder transformador. Os Objetivos de te. E é a única resposta pos-
Fora do campo estrita- Desenvolvimento Sustentável sível para a atual situação
mente artístico, a Rede de nos fornecem um sistema mundial. Os Objetivos de
Soluções para o Desenvolvi- de valores universal. A Desenvolvimento Susten-
mento Sustentável (SDSN), cultura é transmissora de tável nos fornecem um sis-
das Nações Unidas, acolhe valores e constrói a nossa tema de valores universal.
a iniciativa juvenil Arts identidade como espécie. A cultura é transmissora de
Twenty Thirty, projeto Juntos, constituem o valores e constrói a nossa
promovido por jovens da binômio perfeito para a identidade como espécie.
organização que reúne ar- necessária transformação Juntos, constituem o binô-
tistas do mundo todo para social no caminho para o mio perfeito para a necessá-
promover os ODS. desenvolvimento sustentável. ria transformação social no
caminho para o desenvolvi-
Conclusão mento sustentável.
Que sistema cultural queremos ter no ano de Sem desenvolvimento sustentável não
2030? A cultura tradicionalmente tem olha- há futuro. Isso significa repensar o nosso
do para o passado, para a tradição. A visão modo de viver neste mundo, significa re-
de longo prazo é desconhecida para nós e, no pensar como fazemos as coisas e aceitar a
entanto, o desenvolvimento sustentável nos nossa responsabilidade para com as futuras
leva a esse horizonte de 2030. gerações. Não é difícil convencer os agentes
A cultura humaniza e é um veículo para culturais sobre isso quando o que está em
as emoções. É o instrumento mais podero- jogo é a nossa sobrevivência. É um desafio
so para divulgar e canalizar a mensagem da complexo, mas não impossível.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta García Haro e Lucía Vázquez 91

Marta García Haro


Desde 2015, é responsável pelo escritório espanhol da Rede de Soluções Susten-
táveis​​(SDSN), rede internacional patrocinada pelas Nações Unidas para promover o
desenvolvimento sustentável global. Dirige a atividade e coordena os membros da Red
Española para el Desarrollo Sostenible (Reds), nome pelo qual a organização é conhe-
cida na Espanha. Anteriormente, desenvolveu sua carreira profissional no setor cultural,
quando dirigiu e coordenou projetos para a Fundação Museu Picasso Málaga e para o
Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, entre outras instituições. Colaborou desde
sua criação com a Fundação Intra, uma ONG que trabalha pela inserção ocupacional
de pessoas em risco de exclusão social, e dirige as jornadas anuais Sustentabilidade e
Instituições Culturais. É formada em ciências econômicas e história da arte pela Univer-
sidade de Valência (Espanha) e mestra em gestão e comunicação de políticas culturais
pela Universidade Lumsa (Itália).

Lucía Vázquez
Historiadora da arte, educadora e especialista em cultura e sustentabilidade e di-
retora do projeto Educación y Sostenibilidad (<https://www.educacionysostenibilidad.
com/>), foi também chefe do Departamento de Educação do Museu Picasso Málaga de
2008 a 2016. É membro do comitê científico da International Conference on Sustainable
Development, organizada pelo Earth Institute da Universidade de Columbia e pela Sus-
tainable Development Solutions Network, e colaboradora da Reds.
92 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Notas

1 A campanha foi promovida por Ifacca, IFCCD, Agenda 21 for Culture (UCLG),
Culture Action Europe, Arterial Network, IMC – International Music Council,
Icomos, Ifla e Latin American Network of Art for Social Transformation.
Manifesto The Future We Want Includes Culture disponível em: <http://www.
agenda21culture.net/advocacy/culture-as-a-goal-in-post-2015>. Acesso em:
18 nov. 2019.

2 MARTINELL, A. Cultura para el desarrollo y educación: ciudadanos globales. In:


E-DHC, Quaderns Electrònics sobre el Desenvolupament Humà i la Cooperació,
n. 5, Universidade de Valência, 2015. Disponível em: <http://www.uv.es/edhc/
edhc005_martinell.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2019.

3 Arte y sostenibilidad – impulsando una cultura más sostenible. Revista


Conectando Audiencias, n. 12, 2019. Disponível em: <www.asimetrica.org/
publicaciones>. Acesso em: 18 nov. 2019.

4 Mais informações sobre as Jornadas sobre Sustentabilidade e Instituições


Culturais em <www.reds-sdsn.es>.

5 Veja: <http://unesdoc.unesco.org/images/0026/002646/264687e.pdf>.

6 Disponível em: <www.juliesbicycle.com>. Acesso em: 18 nov. 2019.

7 Disponível em: <https://themuseumofthefuture.com/2018/07/18/museums-and-


the-sdgs-where-to-make-a-difference/>. Acesso em: 18 nov. 2019.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta García Haro e Lucía Vázquez 93
94 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paulo H. Duarte-Feitoza 95

CULTURA E DESENVOLVIMENTO:
EXISTEM RESULTADOS E IMPACTOS?

Paulo H. Duarte-Feitoza

A gestão cultural no campo das relações entre cultura e desenvolvimento é muito ampla e, às
vezes, dominada por certa retórica com pouca concretude em seus resultados e efeitos. Este
artigo apresenta resultados e impactos na cultura e no desenvolvimento a partir da discussão
e da análise da janela temática do Fundo para o Alcance dos Objetivos do Milênio (F-ODM),
um dos programas internacionais mais ambiciosos e inovadores das últimas décadas.

Contexto de referência

A
Organização das Nações Unidas amplamente reconhecida como elemento
(ONU) assinou, em setembro de estrutural para alcançar os objetivos tão
2000, a Declaração do Milênio,1 almejados pela comunidade internacio-
cujo objetivo principal é garantir direitos nal. De forma sucessiva, em 2010 e 2011, a
humanos básicos e contribuir de forma efe- ONU aprovou duas resoluções sobre cultura
tiva para a superação da pobreza extrema. e desenvolvimento (65/166 e 66/208) que
Fruto desse histórico acordo internacio- tinham como meta fortalecer e impulsio-
nal foram os oito Objetivos de Desenvolvi- nar globalmente o enfoque cultural para o
mento do Milênio (ODM),2 que deveriam desenvolvimento.3 É preciso ressaltar que
ter sido alcançados em 2015: erradicar a tanto as políticas quanto os projetos cultu-
pobreza extrema e a fome (ODM1); alcan- rais contribuíram muito positivamente para
çar o ensino primário universal (ODM2); alcançar os ODM.
promover a igualdade de gênero e o empo- Em dezembro de 2006, o Programa
deramento das mulheres (ODM3); reduzir das Nações Unidas para o Desenvolvimento
a mortalidade infantil (ODM4); melhorar a (PNUD) e o governo da Espanha assinaram
saúde materna (ODM5); combater o HIV/ um importante acordo de cooperação inter-
Aids, a malária e outras doenças (ODM6); nacional, de aproximadamente 900 milhões
garantir a sustentabilidade ambiental de dólares, como meio de estimular que esse
(ODM7); e gerar uma parceria global para propósito fosse conquistado. Com os recursos
o desenvolvimento (ODM8). foi criado o Fundo para o Alcance dos Obje-
Ainda que não mencionada de for- tivos do Milênio (F-ODM),4 que financiou
ma explícita nos oito ODM, a cultura era projetos nos quais se integraram as diferentes
96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

agências das Nações Unidas, os governos na- agenda internacional o fortalecimento das
cionais, os governos locais e as comunidades. indústrias criativas e da proteção natural e
É importante destacar que o F-ODM foi um cultural como instrumentos eficazes de de-
elemento-chave da política espanhola de coo- senvolvimento econômico. A Janela de Cul-
peração multilateral para o desenvolvimento tura e Desenvolvimento foi uma inovação
na primeira década do novo século. dentro das abordagens clássicas do PNUD
O F-ODM, segundo dados oficiais, apoiou e das Nações Unidas no âmbito da coope-
130 programas interagenciais em 50 países, de ração internacional ao desenvolvimento, já
cinco continentes, beneficiando de forma dire- que abria novas perspectivas de luta contra
ta mais de 9 milhões de pessoas.5 Os programas a pobreza. Representou também um desafio
foram divididos em oito janelas temáticas: para o próprio sistema de agências da ONU,
que não tratava a cultura como campo prio-
• Infância, Segurança Alimentar ritário na cooperação internacional para o
e Nutrição; desenvolvimento. E permitiu, ainda, a re-
• Igualdade de Gênero e cuperação das identidades culturais como
Empoderamento das Mulheres; expressão de coesão social, memória histó-
• Meio Ambiente e Mudanças rica e patrimônio cultural a partir de uma
Climáticas; perspectiva integral.
• Juventude, Emprego e Migração; Viu-se na cultura um ativo singular para
• Governança Econômica o desenvolvimento sustentável e indispensá-
Democrática; vel para a redução da pobreza. Com um or-
• Desenvolvimento e Setor Privado; çamento de 95,6 milhões de dólares, a Janela
• Prevenção de Conflitos de Cultura e Desenvolvimento possibilitou a
e Construção da Paz; realização de 18 programas em todo o mundo:
• Cultura e Desenvolvimento. África (5), América Latina (5), Ásia (2), Esta-
dos Árabes (3) e Leste Europeu (3).
Assim, conjuntamente, esses programas Foi no documento Termos de Referên-
contribuíram para o progresso e o alcance cia da Janela de Cultura e Desenvolvimento
dos ODM, estimulando a participação nacio- que se desenharam e delimitaram as propos-
nal das iniciativas por parte dos países onde tas a ser consideradas para o financiamento.
eram realizados. Visava-se apoiar a implementação e a ava-
liação de políticas públicas efetivas que pro-
A janela temática em cultura movessem ações sociais e a inclusão social,
e desenvolvimento e seus termos facilitando, assim, a participação política e
de referência a proteção de direitos. Nesse marco de atua-
Uma das grandes inovações do F-ODM foi ção, a janela temática procurava impulsionar
a inclusão de uma janela temática dedicada as indústrias culturais e criativas centradas
exclusivamente à cultura e ao desenvolvi- em políticas de diversidade, cultura e desen-
mento, com a qual foi possível introduzir na volvimento. É importante listar e observar os
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paulo H. Duarte-Feitoza 97

elementos ilustrativos dos Termos de Refe- regulamentos legais nos níveis na-
rência, que pretendiam alcançar os objetivos cional, regional e local, destinados a
principais e também evidenciar a amplidão facilitar a inclusão de minorias cul-
do campo das relações entre cultura e desen- turais em cargos públicos;
volvimento. Os Termos de Referência ser- • desenvolver, implementar e mo-
vem para formular a pergunta sobre o que nitorar políticas de igualdade de
pretendia a janela temática. Essa questão é oportunidades no recrutamento
importante porque é a expressão do desejo e na promoção de minorias cultu-
de inovação nas abordagens clássicas das rais e outros grupos excluídos por
propostas de desenvolvimento. Agrupados razões culturais no setor público
em três grandes blocos, alguns dos Termos (i), inclusive em escritórios desig-
de Referência procuravam:6 nados, no serviço civil e nas forças
de segurança locais, regionais e na-
1. Formulação, implementação e monitora- cionais; (ii) em parlamentos eleitos,
mento de políticas públicas social e cultu- em assembleias subnacionais e em
ralmente inclusivas: cargos ministeriais; e (iii) no Poder
Judiciário e nos tribunais.
• apoiar o diálogo, as iniciativas trans-
culturais e os intercâmbios educa- 2. Concretizar o potencial econômico e so-
cionais destinados a promover a cial do setor cultural e fortalecer as indús-
compreensão e a tolerância entre trias culturais e criativas, incluindo:
diferentes comunidades culturais;
• construir a capacidade institucional • desenvolver recomendações de po-
em órgãos, departamentos e agên- líticas para melhorar o ambiente
cias oficiais responsáveis pela im- institucional e regulatório em se-
plementação de políticas e práticas tores específicos da indústria cul-
culturais que promovem a igualdade tural e criativa, como música, novas
de oportunidades; mídias, design, artesanato, jornais,
• apoiar o interculturalismo e o mul- televisão e livros;
ticulturalismo nas políticas sobre • desenvolver capacidades desenhadas
direito regular, pluralismo jurídico com o intuito de melhorar a gestão
e leis sobre línguas oficiais; de bens culturais, as habilidades em-
• proteger os sistemas de conheci- preendedoras e as práticas de gestão
mento tradicional, reconhecendo de negócios entre empreendedores
sua contribuição para a proteção culturais, empresas iniciantes e ar-
ambiental e a gestão de recursos na- tistas autônomos, tanto na economia
turais, saúde e educação; formal quanto na informal;
• desenvolver, implementar e mo- • apoiar a criação de empresas culturais
nitorar políticas, procedimentos e locais, desenvolvendo “incubadoras
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de empresas criativas” para homens das melhores práticas em coleta


e mulheres empreendedores que ope- de dados, em pesquisas e no uso de
ram nesse setor; indicadores nos níveis nacional e
• desenvolver atividades de treina- internacional, incluindo coopera-
mento em gestão cultural bem como ção Sul-Sul, por meio de seminários,
programas de intercâmbio para intercâmbios e workshops de trei-
construir e expandir a capacidade namento técnico entre funcionários
de gestores culturais locais; do governo e institutos de pesquisa
• apoiar a preservação do patrimônio educacional, empresas de pesquisa
material e imaterial e promover seu de mercado do setor privado e think
valor social; tanks não governamentais;
• recuperar bens culturais empobre- • expandir a capacidade institucio-
cidos ou destruídos, identificando e nal local para projetar, gerenciar e
analisando ativos pelo seu valor pa- implementar pesquisas, incluindo
trimonial e sua contribuição poten- técnicas de amostragem e orga-
cial para a regeneração e a reconstru- nização do trabalho de campo de
ção do tecido social; pesquisa;
• elaborar e implementar políticas • expandir a cobertura geográfica e
específicas para o desenvolvimen- de séries temporais nos principais
to de micro e pequenas indústrias levantamentos transnacionais de
relacionadas à produção de artes e atitudes, valores e comportamentos
artesanato industriais; culturais nos países selecionados,
• enfocar a viabilidade econômica como a Pesquisa Mundial de Valo-
de criar produtos culturais con- res (World Values Survey), o Global
temporâneos; Barometer, a Pesquisa Gallup Mun-
• coletar dados e desenvolver indi- dial e o International Social Survey
cadores relevantes e confiáveis na Programme;
área das indústrias criativas a fim • construir e aprofundar a capacidade
de construir políticas apropriadas. dos institutos nos países em desen-
volvimento para coletar dados esta-
3. Gerar informações, monitorar e avaliar a tísticos relevantes sobre a diversi-
eficácia das políticas culturais, incluindo: dade cultural e os direitos culturais,
conduzir pesquisas científicas e so-
• desenvolver a capacidade local na ciais, influenciar seu design e inter-
análise estatística e na divulgação pretar os resultados;
de dados existentes relevantes para • produzir indicadores sobre cultura
monitorar a diversidade cultural; e desenvolvimento no contexto do
• incentivar o intercâmbio de co- Índice de Desenvolvimento Huma-
nhecimentos e a disseminação no (IDH).
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paulo H. Duarte-Feitoza 99

Na análise dos Termos de Referência, de interculturalidade e de paz por meio da


pode-se observar o nível de elaboração e educação, em que participaram, sempre de
concretização das contribuições da cul- forma interagencial, atores governamen-
tura para o desenvolvimento. Da mesma tais, sociedade civil e setor privado, entre
forma, é evidente a evolução dos conceitos outros. Os programas conjuntos reafirma-
que relacionam políticas culturais com as ram a importância da cultura como agente
de desenvolvimento, como a superação da de desenvolvimento, promovendo a inclusão
crítica tradicional do papel da e a coesão social, a criação de
cultura no desenvolvimento Os programas emprego e a melhoria de vida
e a luta contra a pobreza e a conjuntos reafirmaram dos coletivos mais vulneráveis
fome, quando existem outras a importância da da sociedade.
necessidades consideradas cultura como agente Os 18 programas conjun-
prioritárias. E, às vezes, sem de desenvolvimento, tos estão listados a seguir.8
consultar a própria comuni- promovendo a inclusão
dade sobre seus interesses ou e a coesão social, • Na África: aproveitamento
necessidades. A abordagem a criação de emprego da diversidade para promover
dos Termos de Referência é e a melhoria de vida o desenvolvimento sustentável
concreta, observável e ava- dos coletivos e a mudança social na Etiópia;
liável em sua contribuição mais vulneráveis legado, tradição e criatividade
para o desenvolvimento hu- da sociedade. para o desenvolvimento sus-
mano, e isso é uma inovação e tentável na Mauritânia; forta-
um avanço diante de outras considerações lecimento das indústrias culturais e
sobre cultura no desenvolvimento. É tam- criativas e das políticas inclusivas
bém um exemplo, para a gestão, de como a em Moçambique; turismo cultural
cultura pode ser orientada futuramente na sustentável na Namíbia; promoção
Agenda 2030. de iniciativas e indústrias culturais
no Senegal.
Os 18 programas • Na América Latina: políticas inter-
conjuntos e suas ações culturais para a inclusão e a geração
A totalidade dos programas realizados teve de oportunidades na Costa Rica; de-
como eixos estruturais e transversais os senvolvimento e diversidade cultural
direitos culturais, a inclusão social, o im- para a redução da pobreza e a inclu-
pulso do patrimônio cultural e o potencial são social no Equador; criatividade e
turístico dos países, com o objetivo claro de identidade cultural para o desenvol-
reduzir a pobreza e aumentar o emprego de vimento local em Honduras; revita-
qualidade vinculado à cultura. Buscava-se lização cultural e desenvolvimento
melhorar as oportunidades dos segmentos produtivo criativo na Costa Caribe
mais frágeis e marginalizados da sociedade. 7
da Nicarágua; fortalecimento das
Além disso, procurou-se fortalecer processos indústrias culturais e melhoria do
100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

acesso aos bens e serviços culturais • apoio à preparação de estratégias e


no Uruguai. aos quadros jurídicos que facilitam
• Na Ásia: programa de apoio às indús- a harmonização com as convenções
trias criativas no Camboja; marco de internacionais existentes;
associação para a cultura e o desen- • assistência técnica para a elaboração
volvimento na China. de planos de sustentabilidade eco-
• Nos Estados Árabes: mobilização do nômico-financeiros para pequenas
patrimônio mundial Dahshur para empresas culturais;
a cultura e o desenvolvimento da • formação e capacitação em diversas
comunidade no Egito; patrimônio áreas temáticas para servidores pú-
cultural e indústrias criativas como blicos e líderes comunitários na in-
instrumentos de desenvolvimento no terculturalidade e em ciências etno-
Marrocos; cultura e desenvolvimen- gráficas; workshops (grupos focais);
to no território palestino ocupado. • criação de laboratórios de formação
• Leste Europeu: transformação cultu- para a alfabetização em novos meios
ral na Albânia, do isolamento à partici- tecnológicos e audiovisuais;
pação; melhoria da compreensão cul- • desenho e elaboração de um sistema
tural na Bósnia-Herzegovina; alianças de indicadores culturais;
para o turismo cultural na Região da • diagnóstico de oferta e demanda do
Anatólia Oriental, na Turquia. turismo cultural;
• elaboração de análises de marcos
Como se pode observar, os programas con- regulatórios vigentes, de estudos
juntos têm por objeto, majoritariamente, sobre capacidades de produtos cul-
patrimônio, legado tradicional, criativida- turais locais para a mercantiliza-
de, indústria cultural, aspectos da cultura ção nacional e internacional, assim
para o desenvolvimento, interculturali- como de programas que recuperam
dade/diversidade, participação e acesso à e difundem o patrimônio cultural, de
cultura, e transversalidade da cultura com seminários sobre temáticas culturais
outros setores. Os campos de atuação le- importantes para os setores e de pla-
varam em conta as realidades locais para nos estratégicos;
que houvesse um desenvolvimento cultural • estudos, sistematização e difusão da
mais abrangente. cultura popular e urbana;
Ao analisar os documentos oficiais de • mapeamento do setor cultural e das
todos os programas, pudemos ordenar algu- indústrias relacionadas para identifi-
mas das atividades realizadas, com o objetivo car potenciais econômicos e sociais;
de obter um resumo das ações produzidas mapeamento e inventariado de patri-
nessa janela, assim como para observar ten- mônio material e imaterial;
dências na maneira de intervir e gerenciar • produção e publicação de documentos
a cultura e o desenvolvimento. Foram elas: que permitam visualizar a situação
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paulo H. Duarte-Feitoza 101

de grupos minoritários e contribuam contribuição para a governança e a criação


na tomada de decisões com base em de políticas culturais).
evidências; De forma resumida, os resultados mais
• realização de mesas de diálogo inter- imediatos e quantitativos da janela temática
culturais; foram: 2,3 milhões de pessoas beneficiadas
• renovação e planos de ação para mu- por novas e/ou renovadas infraestruturas
seus nacionais; culturais; 12,3 mil empreendedores culturais
• revisão de políticas em cultura, edu- que aumentaram sua renda; 50 inventários
cação, saúde e agricultura a partir da criados para proteger o patrimônio cultural
interculturalidade; atualização de e natural, com adição de novos lugares à lista
legislações existentes em áreas que de Patrimônio Mundial da Unesco; e 1,4 mil
afetam a cultura; suporte nacional instituições públicas e 14,2 mil funcionários
às autoridades locais para a imple- que ampliaram suas capacidades por meio
mentação das convenções da Unesco dos programas do F-ODM,9 reforçando a
(2003 e 2005). governabilidade e a institucionalidade da
cultura em defesa do papel do Estado como
As ações realizadas em diferentes campos garantia do interesse geral.
nos mostram o quão complexas elas podem Entre os resultados mais relevantes
ser. Demonstram também como a Janela de está a capacitação para o desenvolvimen-
Cultura e Desenvolvimento tende a ser am- to, assim como recursos que possibilitaram
pla e diversificada. E mostram, ainda, quais a produção, a distribuição e o consumo de
foram as linhas de ação na primeira década produtos culturais. Na esfera do patrimônio
do século XXI. Essas linhas propõem pro- cultural, os programas conjuntos contribuí-
jetos que são a expressão da especificidade ram para o mapeamento, a identificação e a
que a cultura está adquirindo nas políticas valorização do patrimônio material e ima-
de desenvolvimento, adaptando-se aos con- terial, assim como para o desenho de planos
textos contemporâneos. de administração com a intenção de preser-
var o patrimônio e atrair o turismo cultu-
Resultados e lições para o futuro ral. Nesse âmbito, é importante destacar a
As atividades realizadas nos programas inclusão do patrimônio cultural do Senegal
conjuntos da janela temática renderam na lista da Unesco.
resultados importantes para o futuro so- A educação esteve presente, prin-
bre o modo de incorporar a cultura no de- cipalmente, na promoção e na sensibili-
senvolvimento. Alguns desses resultados zação da compreensão intercultural no
estão diretamente relacionados com os contexto educativo; também no desenho
ODM (redução da pobreza, educação, saú- de estratégias educativas com conteúdo
de e meio ambiente) e outros indicam de cultural para integrar grupos desfavore-
que maneira alcançá-los (desenvolvimento cidos e minorias no sistema educativo, as-
e fortalecimento da capacidade cultural, sim como fomentar respeito e tolerância
102 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

intercultural. Assistimos, ainda, a resul- • mostrou-se necessário apoiar formas


tados significativos no desenvolvimento e e expressões culturais que não visam
no fortalecimento da capacidade cultural; ao mercado, mas contribuem para a
muitas das atividades visavam adotar e preservação e a transmissão de va-
implementar novas leis, políticas e mode- lores, a inclusão social e o fortaleci-
los de governança com o objetivo de criar mento das identidades individuais
infraestruturas culturais (legais e físicas). e coletivas;
Criaram-se também novos sistemas de in- • foram mais bem-sucedidas as inter-
formação cultural, base de dados especia- venções em que houve cooperação
lizada e estudos de base que são pontos de entre diferentes atores, o que de-
partida para gerir e promover o patrimônio monstra a importância da colabo-
cultural local. ração entre eles e em todos os níveis
Além de resultados objetivos e empíri- possíveis;
cos, a janela nos deixou uma série de lições • mostrou-se que os programas cultu-
na hora de desenhar novos programas, como rais alcançam resultados respeitá-
demonstrou o Informe de Avaliação Específi- veis nas áreas de desenvolvimento
co da Janela de Cultura e Desenvolvimento:10 humano e sustentável, o que eviden-
cia a importância de as autoridades
• ficou patente a importância de re- públicas encarregadas de assuntos
duzir a ambição e a complexidade culturais estarem em pé de igualdade
dos programas; com outros departamentos, para que
• é fundamental integrar uma aborda- haja uma integração ampla;
gem intercultural para a conscienti- • ficou evidente que é preciso ter
zação e a construção de políticas em maior conscientização sobre os
países com diversidade étnica, lin- conceitos culturais e sua relevância
guística e religiosa muito marcada; para que os objetivos do programa
• é evidente a necessidade de se con- possam ser atingidos;
centrar em noções de cultura menos • devem ser consideradas, em avalia-
politizadas, sobretudo em países que ções futuras, as dificuldades de me-
sofrem com conflitos culturais. Tam- dir certos impactos qualitativos (e
bém é melhor trabalhar as indústrias outros que só são visíveis em médio
culturais em vez de identidade, etnia e longo prazo).
e religião;
• destacou-se que a principal contri- Conclusões
buição da janela foi a prestação de Analisados os Termos de Referência da
serviços de capacitação, assistência Janela juntamente com as ações e os re-
técnica e assessoria empresarial, que sultados apresentados no marco dos 18
permitiram que os beneficiários ge- programas conjuntos, podemos apontar
rassem novas fontes de renda; algumas conclusões:
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paulo H. Duarte-Feitoza 103

• o campo de trabalho em cultura e de- pôde observar na mobilização que


senvolvimento é muito amplo, como houve quando da incorporação de
bem nos demonstrou o documento um objetivo cultural para os Obje-
Termos de Referência; tivos de Desenvolvimento Susten-
• o conceito de cultura e desenvolvimen- tável (ODS).11
to é interpretável contextualmente;
• a proposta da janela é feita com o A experiência mostra, em razão de sua
intuito de inovação e, portanto, não amplitude e extensão continental, que a
parte de um conhecimento consoli- incorporação cultural para o desenvolvi-
dado sobre cultura e desenvolvimen- mento contribui com novos e importantes
to dos ODM. O objetivo era abrir esse resultados e impactos na perspectiva das
campo à cooperação cultural inter- propostas dos ODS na Agenda 2030. Em ou-
nacional e torná-lo um dos progra- tras palavras, o desenvolvimento sustentá-
mas mais importantes da história do vel será alcançado fornecendo-se todas as
desenvolvimento dedicado à cultura; dimensões possíveis e abrindo-se a alianças
• quando se trabalha com tantos atores amplas com setores que não são usuais na
e de níveis diferentes, as ações tor- cooperação internacional para o desenvol-
nam-se muito complexas, mas, ao vimento. Esses projetos mostram que, se
mesmo tempo, obtém-se um banco existe uma vontade política e uma definição
de provas que fomenta um modo de conceitual, processos inovadores podem ser
trabalho mais amplo e transversal; gerados na dinâmica do desenvolvimento
• na formulação dos projetos, ob- em diferentes contextos.
servam-se diferentes interpreta- Essa janela é um dos projetos internacio-
ções de cultura, evidenciando um nais mais extensos já realizados no enfoque da
tema pendente para a cooperação; dimensão cultural para o desenvolvimento. Os
e a grande variedade de propostas resultados e os impactos mostram sua alta efi-
demonstra que o setor cultural é ciência e abrem outras dimensões para a dinâ-
bastante diverso; mica clássica do desenvolvimento – uma das
• apesar de existirem boas intenções, valiosas lições aprendidas com essa experiên-
observa-se uma incapacidade de cia. A cultura não é um luxo ou algo dispensá-
encontrar ferramentas específicas vel, mas sim algo que pode estar integrado a
para alcançar os objetivos dos pro- estratégias globais de desenvolvimento sus-
jetos. Isso é resultado da falta de sis- tentável. É importante destacar que um dos
tematização da cultura no âmbito do programas internacionais mais importantes
desenvolvimento; em cultura e desenvolvimento começou na
• a prática desses projetos, suas refle- década do desenvolvimento mundial, sendo
xões e sua gestão do conhecimento notabilizado entre 1986 e 1996, com múltiplas
evidenciam que a janela gerou um conferências e declarações que se refletiram
processo de sensibilização, como se em nível internacional.
104 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Essa experiência mostra que, quando Paulo H. Duarte-Feitoza


existe uma abordagem política e conceitual Doutor em ciências humanas e cultura pela
bem definida, há resultados que superam Universidade de Girona (2017), mestre em comu-
o uso tradicional da cultura no desenvol- nicação e estudos culturais (2012) e licenciado em
vimento, desde posições muito retóricas e história da arte (2010) pela mesma universidade.
pouco aplicadas até o tratamento da cultura É ex-diretor da Cátedra Unesco de Políticas Cul-
como elemento identitário e populista, que turais e Cooperação da Universidade de Girona.
emergem em muitos entornos. A cultura, Atualmente é professor-colaborador no mestrado
quando combinada com a abordagem de interuniversitário em gestão cultural da Universitat
direitos humanos e liberdades políticas, é Oberta de Catalunya (UOC-UdG). Tem experiência
uma ferramenta essencial para o desenvol- na área de gestão cultural e artes, com ênfase na
vimento sustentável. época contemporânea.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paulo H. Duarte-Feitoza 105

Notas

1 Disponível em: <http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/library/ods/


declaracao-do-milenio.html>. Acesso em: 17 dez. 2018.

2 Disponível em: <https://www.un.org/millenniumgoals/>. Acesso em: 17 dez. 2018.

3 Recursos sobre cultura e desenvolvimento. Disponível em: <http://www.unesco.


org/new/es/culture/achieving-the-millennium-development-goals/resources/
culture-and-development-resources/>. Acesso em: 17 dez. 2018.

4 Disponível em: <http://www.mdgfund.org/>. Acesso em: 17 dez. 2018.

5 Disponível em: <http://www.mdgfund.org/>. Acesso em: 17 dez. 2018.

6 O documento completo está disponível em: <http://www.mdgfund.org/sites/default/


files/MDGFTOR_Culture_FinalVersion%2017May%20200>. Acesso em: 17 dez. 2018.

7 A recém-aprovada Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das


Expressões Culturais, da Unesco, em 2005, havia reconhecido a importância do
setor criativo na cooperação para o desenvolvimento. Disponível em: <https://
unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000150224>. Acesso em: 17 dez. 2018.

8 Disponível em: <http://www.mdgfund.org/es/content/cultureanddevelopment>.


Acesso em: 17 dez. 2018.

9 Os resultados podem ser encontrados na página do F-ODM: <http://www.


mdgfund.org>. No entanto, é preciso destacar três documentos importantes:
Resumo Executivo da Janela de Cultura e Desenvolvimento (<http://www.
mdgfund.org/sites/all/themes/custom/undp_2/docs/thematic_studies/
Spanish/Cultura_y_Desarrollo_Estudio_Tematico_5-pager_Link.pdf>), Informe
de Avaliação Específico da Janela de Cultura e Desenvolvimento (<http://www.
mdgfund.org/sites/all/themes/custom/undp_2/docs/thematic_studies/English/
full/Culture_Thematic%20Study.pdf>) e Informe de Avaliação Final, Global e
Temática do F-ODM (<http://www.mdgfund.org/sites/default/files/Fondo_
ODM_Evaluacion.pdf>).

10 Disponível em: <http://www.mdgfund.org/sites/all/themes/custom/undp_2/


docs/thematic_studies/English/full/Culture_Thematic%20Study.pdf>. Acesso
em: 17 dez. 2018.

11 MARTINELL, Alfons S. ¿Por qué los ODS No Incorporan la Cultura?, 2015. Disponível
em: <http://www.alfonsmartinell.com/?p=326>. Acesso em: 5 nov. 2019.
106 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Francisco d’Almeida, David Koné e Valeria Marcolin 107

RUMO A UMA ABORDAGEM


CULTURAL PARA O
DESENVOLVIMENTO:
O CASO DE YOPOUGON, NA COSTA DO MARFIM

Francisco d’Almeida, David Koné e Valeria Marcolin

Yopougon, município da Costa do Marfim, experimentou um grande desenvolvimento eco-


nômico e cultural por ocasião de um projeto modernista de urbanização. A crise econômica
dos anos 1990 e a crise política e militar na década de 2000 ameaçaram sua coesão social.
Para reconstruir o município e atender às necessidades de sua juventude, um grupo de atores
culturais associativos, em conjunto com a prefeitura, promoveu mudanças na abordagem
da cultura, orientando-a para o desenvolvimento econômico, social e cultural, por meio de
programas centrados na coesão social e na revitalização dos serviços públicos a partir de
infraestruturas polivalentes.

Y
opougon é o maior município da culturais que atuam sobre o conteúdo das
Costa do Marfim e um dos 13 que políticas desse campo.
compõem o distrito de Abidjan, que Com uma população de 1,071 milhão
foi, até 1983, a capital do país e ainda hoje é de habitantes,2 Yopougon abriga uma zona
considerado a capital econômica. Localizado industrial que atraiu pessoas que lá se ins-
ao norte da Lagoa Ébrié, que separa os bair- talaram sob o efeito do êxodo rural interno
ros do sul e do norte do distrito, Yopougon foi e dos fluxos migratórios na África Ociden-
criado na década de 1970 como parte de um tal, durante o boom econômico da Costa do
projeto urbano “modernista” para equilibrar Marfim. Essas pessoas contribuem para sua
a expansão de Abidjan.1 diversidade cultural.
Ele é composto de um mosaico de Considerado também como um ponto
áreas residenciais e atividades econômi- de lazer, pela densidade de sua malha de res-
cas que absorveu as aldeias tradicionais taurantes e locais de espetáculos e entrete-
sem desmobilizar sua organização socio- nimento, Yopougon é o principal foco da vida
política e cultural. Essas aldeias permitem cultural de Abidjan. Artistas e uma infini-
que ele permaneça ancorado nas tradições dade de associações e de empreendedores
108 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

culturais residem ali e desempenham um cultura. Além disso, os Objetivos de Desen-


papel importante em sua dinâmica. volvimento Sustentável (ODS) e a Agenda
Entre 2002 e 2010, Yopougon foi um dos 2030 nem sempre são conhecidos – e, quan-
centros urbanos cuja coesão social foi mais do o são, considera-se que sejam abstratos e
significativamente ameaçada pelas duas crises distantes das realidades locais, caracteriza-
político-militares da Costa das pela escassez de finan-
do Marfim. Apesar do retor- A legitimação política da ciamento público e pela
no da paz e da estabilidade proposta formulada pelos falta de recursos humanos
política, a coesão social con- atores culturais reunidos capazes de traduzir esses
tinua fragilizada, em razão em torno da prefeitura e do objetivos em estratégias e
do desemprego entre os jo- Departamento de Assuntos realizações tangíveis.
vens, o que cria dificuldades Socioculturais (Dasc) foi um É por esse motivo que
para sua integração cívica trunfo decisivo, podendo ser a legitimação política da
na vida do município. considerada o verdadeiro proposta formulada pelos
Por seu dinamismo e ponto de partida do processo atores culturais reunidos
sua criatividade, o Conse- atualmente em curso. em torno da prefeitura e do
lho Municipal optou por Departamento de Assuntos
considerar esses jovens um dos principais Socioculturais (Dasc) foi um trunfo decisivo,
alvos das ações de seu mandato. Dessa forma, podendo ser considerada o verdadeiro ponto
o Departamento de Assuntos Socioculturais de partida do processo atualmente em curso.
estabeleceu como base o componente cultu- Em um contexto em que todos os seto-
ral do programa na juventude e na governan- res de desenvolvimento são considerados
ça participativa do setor. prioritários, os cidadãos tendem a favorecer
aqueles que satisfazem as suas necessida-
Uma iniciativa fundamental des básicas imediatas: habitação, trabalho,
realizada por atores culturais transporte, produção econômica, educação
da sociedade civil e saúde. Mais que tomadores de decisões
O ponto de partida da nova abordagem para políticas, os moradores consideram a cul-
tornar a cultura um fator de mudança social e tura e a criação como atividades de lazer,
econômica está na ação de um grupo de atores sem nenhuma outra função além do entre-
culturais do distrito de Abidjan que trabalhou tenimento. Para eles, trata-se de uma área
para que a cultura fosse um objeto de política que não requer políticas públicas ou finan-
pública, a fim de contribuir para o desenvolvi- ciamentos públicos. É nesse ponto que a le-
mento econômico e social do município. gitimação política do processo iniciado em
Apesar da existência de textos oficiais Yopougon é de grande importância.
relativos à transferência de competências
culturais para as comunidades locais, poucas Os pilares da mudança de abordagem
dispõem de documentos de política ou de es- A mudança de abordagem que foi em-
tratégia de desenvolvimento local baseada na preendida tem por base vários fatores.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Francisco d’Almeida, David Koné e Valeria Marcolin 109

Em primeiro lugar, contou com alianças território que promoveu a construção e a


sociopolíticas e técnico-institucionais es- reforma de infraestruturas educacionais e
tabelecidas entre as diferentes partes inte- socioculturais.
ressadas. Atores culturais se reuniram em Essa modalidade é sintomática da vi-
torno do Departamento de Assuntos So- são da cultura das partes interessadas em
cioculturais, que fez um trabalho de cons- um contexto no qual a sua natureza imate-
cientização das comunidades tradicionais rial obscurece a percepção das diferentes
por intermédio de seus líderes. Em seguida, formas de sua contribuição para o proces-
juntamente com os atores culturais, asso- so de mudança econômica e social. Nessas
ciou ao processo o conselho municipal dos circunstâncias, a construção com vocação
jovens, que agrupa suas associações nos cultural faz a política cultural ou é ela mesma
diferentes bairros do município. a política cultural. Visível aos olhos dos habi-
O alcance político dessa dupla aliança tantes, o edifício mostra-lhes concretamente
foi percebido pelo Conselho Municipal, que que as autoridades públicas agem para me-
validou a iniciativa dos atores culturais e lhorar suas condições de vida, respondendo
possibilitou a implementação do Plano Es- às necessidades culturais.
tratégico de Promoção e de Valorização do Além desses três fatores, a estrutura
Potencial Sociocultural de Yopougon. organizacional do Departamento de Assun-
O segundo fator de mudança de abor- tos Socioculturais – composta de departa-
dagem da cultura em uma perspectiva de mentos encarregados ao mesmo tempo da
desenvolvimento social e econômico reside cultura, do turismo, da juventude, do lazer,
na visão do prefeito e também deputado do do esporte e da vida comunitária – possibili-
município, Gilbert Kafana Koné. tou a transversalidade e a intersetorialidade,
Ao considerar os jovens de seu municí- atingindo um amplo espectro de habitantes.
pio como o principal alvo das ações econô-
micas, sociais e políticas a ser tomadas para Múltiplos atores
o desenvolvimento de Yopougon, ele e sua A esses fatores internos, na base do proces-
equipe optaram por valorizar o dinamismo so de transformação da ação municipal no
e a criatividade dessa faixa da população, campo da cultura e do desenvolvimento em
uma vez que foi ela que, a partir da década Yopougon, somam-se elementos externos,
de 1980, contribuiu para construir a notorie- como a existência de uma dinâmica interna-
dade cultural do município e constitui uma cional de conscientização da importância da
fonte potencial de explosão social. cultura para o desenvolvimento, promovida
A modalidade de intervenção no setor pelos Ministérios da Cultura e da Adminis-
é o terceiro fator na mudança de abordagem tração Territorial da Costa do Marfim.
da cultura em suas relações com o desen- Para traduzir em realizações a visão
volvimento. A equipe municipal decidiu de representantes locais eleitos e de atores
renovar a ação pública apoiando-a em uma culturais, a contribuição técnica, normati-
estratégia de desenvolvimento cultural do va e financeira dos parceiros internacionais
110 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

tem sido decisiva. A Unesco, a Organização organizados na África e em Bruxelas sobre


Internacional da Francofonia e a Associação cultura e criação, em 2009, e os simpósios
Internacional de Prefeitos Francófonos, as- organizados em Abidjan4 pela União Africa-
sim como a Agenda 21 da Cultura, de respon- na, sobre o financiamento da cultura, e pela
sabilidade da organização mundial Cidades Unesco, sobre cultura e desenvolvimento
e Governos Locais Unidos (CGLU), contri- no programa da Nepad, têm despertado no
buíram financeiramente para a construção mundo cultural marfinense um interesse e
da visão e para a elaboração do plano estraté- uma demanda para a renovação das políticas
gico. A distinção desse plano como uma boa públicas de cultura.
prática pela Agenda 21 da cultura fortaleceu Foi o caso em Abidjan, onde atores cul-
a legitimidade do programa e contribuiu para turais e líderes comunitários locais, cons-
sua difusão. cientes do papel da cultura no processo de
A parceria com o programa Territórios desenvolvimento econômico e humano,
Associados – o Desenvolvimento Através da quiseram contribuir para a renovação das
Cultura, iniciada pela ONG internacional políticas locais. A disponibilidade dos res-
Cultura e Desenvolvimento, também parcei- ponsáveis da Universidade das Comunidades
ra do município de Yopougon, estabeleceu (Université des Collectivités)5 e da prefeitu-
um patrocínio para a busca de financiamento ra de Yopougon para se envolver no projeto
e para a implementação do programa de in- levou ao processo de consulta que resultou
fraestrutura cultural e capacitação de recur- no Plano Estratégico de Promoção e de Va-
sos humanos. lorização das Potencialidades Socioculturais
A convergência da ação de conscienti- de Yopougon.
zação em nível internacional, nacional e local Esse plano se articula em torno de seis
criou um contexto institucional favorável, eixos estratégicos, que dizem respeito à es-
que permitiu aos atores culturais iniciar uma truturação e ao desenvolvimento dos setores
dinâmica de mudança em Yopougon com o de música, ecoturismo, turismo cultural, la-
Programa Juventude e Cidadania Cultural, zer, diversificação e democratização do es-
nome genérico de uma série de iniciativas porte, profissionalização das associações e
em andamento desde 2010. Esse programa promoção do emprego cultural. Seu objetivo
coloca em prática a estratégia municipal de é “fazer de Yopougon um polo de atratividade
ação cultural para o desenvolvimento local e de desenvolvimento econômico e social em
voltada para os jovens, tendo sua origem na nível nacional e internacional, por meio da
iniciativa dos atores culturais. promoção e da valorização de seus recursos
e de suas potencialidades socioculturais”.6
Um ato fundamental: o plano Pesquisas realizadas7 sobre a coesão so-
estratégico para valorizar e promover cial no âmbito de um projeto dedicado ao seu
o potencial sociocultural de Yopougon fortalecimento demonstraram o dinamis-
A ratificação da Convenção da Unesco de mo dos jovens e revelaram a precariedade de
2005, assim como os diferentes simpósios3 suas condições de vida. Para atender às suas
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Francisco d’Almeida, David Koné e Valeria Marcolin 111

aspirações culturais, a prefeitura de Yopou- Yopougon, minando a solidariedade na-


gon realiza, desde 2013, um programa de ação cional e a coesão social. Isso levou a uma
e um plano de infraestrutura sociocultural grave deterioração da infraestrutura nas
– cuja implementação continua em anda- áreas de educação, saúde, saneamento e
mento –, nomeados Programa Juventude e cultura, além de enfraquecer o tecido social
Cidadania Cultural e Plano das Infraestrutu- e gerar desconfiança entre as comunidades.
ras Socioculturais para a Renovação Urbana. Em resposta, dois programas foram imple-
Deve-se notar que ambos também atendem a mentados entre 2013 e 2016: o Projeto de
todas as faixas etárias da população. Fortalecimento dos Municípios de Abobo
Por terem se conscientizado de que o e de Yopougon para a Promoção da Coesão
desenvolvimento sustentável requer a inte- Social (Cosay) e o Projeto de Apoio para a
gração das ações de várias secretarias mu- Reconciliação Através de Atividades Socio-
nicipais, a prefeitura e o Departamento de culturais (Parcs).
Assuntos Socioculturais fizeram parcerias
com secretarias municipais relacionadas a Os projetos Cosay e Parcs
saneamento, formação profissional, gover- Iniciado em 2013, o projeto Cosay teve por
nança e atividades socioculturais para o de- objetivo fortalecer as capacidades dos go-
senvolvimento urbano. vernos locais em uma
É por essa perspectiva Por terem se conscientizado abordagem participativa,
que a recuperação da de que o desenvolvimento mobilizando represen-
infraestrutura básica foi sustentável requer a integração tantes da população em
iniciada e as atividades das ações de várias secretarias torno de infraestruturas
culturais e esportivas fo- municipais, a prefeitura e o básicas para a consolida-
ram impulsionadas. Departamento de Assuntos ção de redes comunitá-
Essas medidas fo- Socioculturais fizeram parcerias rias por meio da criação
ram e continuam sendo com secretarias municipais de comitês de gestão en-
amplificadas por dois relacionadas a saneamento, volvendo, nos bairros, be-
eixos de trabalho, um formação profissional, governança neficiários dos diferentes
deles dedicado ao re- e atividades socioculturais para o grupos socioculturais em
forço da coesão social e desenvolvimento urbano. torno de quatro infraes-
o outro à renovação ur- truturas que foram reabi-
bana por intermédio de infraestruturas com litadas: uma estrada, duas escolas primárias
foco educativo, cívico e cultural, articuladas e um centro de saúde.
em torno dos responsáveis das redes para Ao mesmo tempo, iniciou-se o Parcs8,
cobrir o território do município. assim como um plano de infraestruturas
socioculturais. Com base em atividades
A coesão social, uma prioridade socioculturais e esportivas, o projeto era ar-
A crise pós-eleitoral de 2010 enfraque- ticulado em torno de um diagnóstico da coe-
ceu muito a administração municipal de são social e das necessidades de formação,
112 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de programas dedicados ao reforço das ca- Iniciado em 2016, o plano de infraes-


pacidades dos atores políticos e da socie- truturas socioculturais visa contribuir
dade civil, e da recuperação e instalação de para a diversificação da economia local,
infraestruturas socioculturais e desporti- enfocando o fortalecimento do sistema de
vas. Assim como no projeto Cosay, o Parcs ensino, com a formação técnica e profissio-
mobilizou os moradores do nal em profissões relaciona-
bairro em torno da recupe- Essa rede também apoia das a cultura e criação – como
ração de infraestruturas e a leitura nas escolas música e artes cênicas – e a
da organização de atividades e fornece informação técnicas digitais.
culturais e esportivas. técnica e profissional Em sua primeira fase, o
Os resultados satis- a jovens, artesãos e plano inclui a criação de uma
fatórios desses dois proje- comerciantes para sua rede de incentivo à leitura
tos levaram a prefeitura de orientação profissional. pública centrada em uma bi-
Yopougon a desenvolver es- blioteca de mídia – casa dos
paços públicos com recursos próprios e a saberes e da cidadania com o objetivo de
implementar, em longo prazo, o programa acompanhar a extensão do acesso à educa-
de infraestruturas socioculturais e de revi- ção e à informação para o desenvolvimento
talização de serviços públicos com vocação humano. Essa rede também apoia a leitura
cultural e educacional. nas escolas e fornece informação técnica e
profissional a jovens, artesãos e comercian-
Infraestruturas para o tes para sua orientação profissional. Outro
desenvolvimento cultural do de seus objetivos é facilitar o acesso a locais
território e a dinamização da ação de convívio para grupos desfavorecidos que
sociocultural municipal não sabem ler ou escrever e que desejam ser
Após o enfraquecimento dos serviços públi- alfabetizados.
cos, causado principalmente pelas reformas Em sua segunda fase, o plano leva em
realizadas em matéria de urbanismo, a aco- consideração o potencial da tecnologia di-
modação dos bairros em infraestruturas e a gital por meio do apoio ao fortalecimento de
sua manutenção foram abandonadas, levan- uma comunidade de inovadores reunidos em
do à deterioração. O retorno da paz permitiu torno de um projeto do Fab Lab: Yop.Crealab.
à prefeitura de Yopougon, em parceria com Com o objetivo de formar recursos hu-
a ONG Cultura e Desenvolvimento, lançar manos qualificados para contribuir na diver-
um programa com o objetivo de recuperar sificação da economia local e reconstruir o
os edifícios culturais e sociais existentes e vínculo social, o projeto busca responder
construir novos nos bairros desprovidos des- três objetivos essenciais: criar um ecossis-
sas estruturas. Ao fazê-lo, a meta é revitalizar tema empreendedor em torno de uma pla-
a ação de seus serviços públicos de animação taforma de serviços de profissionalização
sociocultural do território, aproximando-os de jovens; apoiar, por meio de uma incuba-
da população. dora, empresas de economia colaborativa,
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Francisco d’Almeida, David Koné e Valeria Marcolin 113

criando sinergias entre elas por intermédio municipal, atores culturais e organizações
do compartilhamento de recursos técnicos da sociedade civil.
e experiências para a melhoria do ambiente O Programa Juventude e Cidadania
de vida; e inovar na produção de objetos para Cultural tem relação com a Agenda 2030
empresas locais. para o Desenvolvimento Sustentável. Com
base na riqueza e na diversidade de suas ex-
Consideração dos Objetivos de pressões culturais, cria condições favorá-
Desenvolvimento Sustentável na veis à paz para uma população traumatizada
escala de um município marfinense por anos de divisão e violência políticas.
Essa visão geral de iniciativas, realizações Também pretende construir, com o au-
e projetos implementados pela prefeitura xílio de parcerias, uma relação de responsa-
de Yopougon com vários parceiros locais, bilidades compartilhadas com os jovens. Em
nacionais e internacionais é uma indica- razão de sua integração nos bairros e de sua
ção de que é possível considerar os ODS proximidade com os líderes comunitários,
nesse tipo de contexto. A os membros jovens do Con-
comunidade local iniciou O apoio à organização de selho Municipal favorecem
projetos plurianuais para competições e festivais a colaboração da prefeitura
reforçar a coesão social, culturais e artísticos com um grande número de
desenvolvendo atividades ajuda a incentivar a atores sociais.
e infraestruturas sociais e participação cultural O apoio à organização de
culturais, trabalhando para e a profissionalização competições e festivais cultu-
gerar colaboração entre os dos jovens, a fim de rais e artísticos ajuda a incen-
serviços públicos responsá- desenvolver em etapas os tivar a participação cultural e
veis pela cultura e a educa- setores culturais que lhes a profissionalização dos jo-
ção e apoiando iniciativas permitem viver de acordo vens, a fim de desenvolver em
da sociedade civil que asso- com seus talentos. etapas os setores culturais que
ciam saneamento ambiental lhes permitem viver de acor-
e criatividade para incentivar a criação de do com seus talentos. Por meio de atividades
modelos de produção sustentável. nos bairros, busca envolver o maior número de
Esses projetos, muitas vezes liderados habitantes em uma abordagem local, que tam-
por jovens, buscam fortalecer a posição dessa bém leve em conta a fragilidade de sua renda
parcela da população, assim como a de mu- monetária e favoreça sua participação cultural.
lheres e de grupos desfavorecidos associados A revitalização das instalações cultu-
nos processos de trabalho colaborativo. rais quer promover as expressões dos jovens
Os documentos de orientação da ação no setor, considerando as diversas comuni-
municipal elaborados na área de cultura dades, particularmente aquelas de pessoas
e desenvolvimento local foram desenvol- em situação de dificuldade, como analfabetos
vidos como parte de um processo parti- e migrantes. Finalmente, ações específicas
cipativo, que envolveu a administração são dedicadas à temática do gênero.
114 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A observação do atual processo destaca As dificuldades encontradas pelos di-


a importância de fatores que têm impacto ferentes atores do processo de mudança em
significativo na realização dos ODS: os re- curso em Yopougon mostram que a inclusão
cursos financeiros, os recursos humanos coerente da cultura em uma estratégia de
e as redes de habilidades especializadas, desenvolvimento local e sua articulação com
além do capital cultural. Finalmente, a outras políticas setoriais requerem uma auto-
abordagem transversal envolvida na imple- ridade capaz de mobilizar e casar diferentes
mentação dos ODS não é fácil. Esbarra na saberes, harmonizando seus tipos de inter-
diversidade de áreas e de procedimentos de venção e reunindo seus recursos de acordo
intervenção e na diversidade de know-how com os objetivos a serem atingidos para cada
profissional, bem como na falta de conhe- setor. Em resumo, a multidisciplinaridade e a
cimento dos pontos e das modalidades de integração, bem como a cooperação nos níveis
articulação da intervenção cultural com local, nacional e internacional, são princípios
outras políticas setoriais. a serem levados em conta.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Francisco d’Almeida, David Koné e Valeria Marcolin 115

Francisco d’Almeida
Franco-togolês graduado em ciências políticas e doutor em sociologia do desenvol-
vimento pela Sorbonne (Paris I), é especialista da Organização Internacional da Francofo-
nia (OIF) e membro do banco de especialistas da Unesco para a governança da cultura.
Codirige a ONG Culture et Développement (Cultura e Desenvolvimento) para a inclusão
da cultura nas políticas de cooperação para o desenvolvimento, além de ministrar cursos
de treinamento na Universidade Senghor para o desenvolvimento africano na Alexandria
(Egito) e no mundo francófono.

David Koné
Mestre-assistente em artes cênicas e atividades culturais na Universidade Félix
Houphouët-Boigny de Abidjan, na Costa do Marfim, atua como diretor do Departamento
de Assuntos Socioculturais (Dasc) da prefeitura de Yopougon, onde implementa projetos
de desenvolvimento cultural territorial com apoio técnico ou financeiro da Unesco, da
Organização Internacional da Francofonia (OIF), da União Europeia (UE) e da Associa-
ção Internacional de Prefeitos Francófonos (AIMF). Nesse contexto, lidera projetos para
fortalecer a coesão social por meio de atividades culturais e esportivas e de renovação
urbana. Como professor pesquisador, realiza estudos sobre o desenvolvimento cultural do
território. É membro do banco de especialistas da Unesco para a governança da cultura.

Valeria Marcolin
Especialista em elaboração, gestão e avaliação de projetos de cooperação cultu-
ral internacional, assim como no desenvolvimento de políticas e instrumentos culturais
adaptados ao contexto dos países em desenvolvimento. Codiretora da ONG Cultura e
Desenvolvimento, é consultora da Unesco, da OIF, da UE e de ministérios para programas
de treinamento sobre o papel da cultura nas políticas de desenvolvimento e a promoção
da diversidade das expressões culturais.
116 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Notas

1 Antes ocupado por vilas de pescadores e agricultores, o território de Yopougon


se urbanizou na década de 1970, com a construção, em 1972, dos primeiros
loteamentos por empresas imobiliárias públicas. Em 1979, uma via expressa leste-
-oeste melhorou sua ligação com o centro administrativo e econômico de
Abidjan, localizado no município de Plateau. Após a Lei nº 78-07, de 9 de
janeiro de 1978, que previu a criação dos municípios de pleno exercício na Costa
do Marfim, Yopougon tornou-se, em 1980, um município de pleno direito ao
iniciar um programa de infraestruturas urbanas, depois interrompido pela crise
econômica e sociopolítica que paralisou a economia marfinense até 2012.

2 Recenseamento Geral da População e da Habitação, 2014.

3 São exemplos a IV Reunião Ministerial da Francofonia para a Cultura, em Cotonu,


em junho de 2001, e a IV Conferência de Ministros da Cultura ACP, em Dakar, em
junho de 2003.

4 Simpósio sobre o financiamento da cultura organizado em 2000 pela União


Africana e workshop sobre cultura e desenvolvimento no programa da Nepad
(Nova Parceria para o Desenvolvimento da África, em português) organizado
em 2003 pelo Escritório da Unesco em Dakar. A Nepad incluiu um programa
destinado a revitalizar o setor da cultura e da criação, considerado pouco
explorado e subdesenvolvido.

5 Associação de utilidade pública que presta apoio técnico às autoridades locais


da Costa do Marfim.

6 Plano Estratégico de Promoção e de Valorização do Potencial Sociocultural


de Yopougon. 

7 Em cooperação com o Japão, a Costa do Marfim iniciou um projeto de


fortalecimento dos municípios para a promoção da coesão social da Grande
Abidjan, o Cosay, que permitiu a realização de numerosas pesquisas e do Estudo
Participativo e Inclusivo do Contexto Social, Econômico e Político dos Municípios
de Yopougon e Abobo. 

8 O projeto Parcs foi realizado de 2014 a 2016, com cofinanciamento da União


Europeia (UE).
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Francisco d’Almeida, David Koné e Valeria Marcolin 117
118 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 119

AS DESIGUALDADES CULTURAIS:
O ÉTICO, O ÉTNICO E A COMUNIDADE

Paula Moreno

Para abordar a relação entre cultura e desenvolvimento, é necessário aprofundar a com-


preensão dos sistemas de inclusão e exclusão que perpetuam as desigualdades estruturais.
Este artigo aborda essa discussão à luz do exemplo da corporação Manos Visibles [Mãos
Visíveis], organização sem fins lucrativos que procura, por meio de uma leitura crítica so-
ciocultural, desenvolver esquemas de empoderamento que facilitem a entrada de líderes
e organizações que estão fora das instâncias de poder e das elites tradicionais no contexto
colombiano. Neste exercício reflexivo, observam-se as relações centro-periferia, as tensões
raciais e as perspectivas territoriais do desenvolvimento.

Introdução tura sociocultural do desenvolvimento a partir


de uma instituição sem fins lucrativos e pela
“[...] somente ferimos os outros quando so- criação de um ecossistema local, nacional e
mos incapazes de vê-los e imaginá-los.” transnacional que influenciou a transforma-
Carlos Fuentes ção do olhar sobre a esfera étnica e comuni-

E
tária das periferias e a construção da paz na
ste artigo se concentra nas desigual- Colômbia. No final deste texto, são feitas re-
dades e exclusões culturais, a fim de flexões práticas sobre a gestão cultural para
abordar as relações e interdepen- reduzir as exclusões em países como o Brasil e
dências entre cultura e desenvolvimento. A a Colômbia, que ocupam os primeiros lugares
primeira parte se dedica a propor diferentes em desigualdades estruturais no mundo.
olhares e definições sobre cultura e desen- Espero que o leitor reflita comigo, em um
volvimento, em termos de inclusão efetiva a momento da maior relevância e urgência, para
partir de uma perspectiva de relações de poder. repensarmos o poder da cultura com a inten-
Na segunda parte, analisa-se o caso da Cor- ção de gerar significados, integrações e uma
poración Manos Visibles,1 um exercício de visão mais humana. Tentei fazer desta nar-
empoderamento sociocultural nas Américas, ração não somente um exercício conceitual,
ligado à diáspora africana. Manos Visibles foi mas um reflexo do processo da minha imer-
reconhecida pelo Fórum Econômico Mundial2 são sociocultural nos últimos dez anos, com
como uma das três organizações mais inova- uma perspectiva institucional, retomando a
doras do mundo, em grande parte por sua lei- minha experiência como ministra da Cultura
120 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

na Colômbia de 2007 a 2010, bem como meu o escritor norte-americano James Baldwin,
trabalho em agendas de desenvolvimento em desenvolver a linguagem e a reflexão para ten-
mais de 15 países; minha perspectiva como co- tar controlar e antecipar as circunstâncias.
lombiana no setor sem fins lucrativos; e uma
perspectiva global, como membro do conselho Cultura: um conceito de quem,
de administração da Fundação Ford. para quem e com quem?
Então, que este seja um texto para pro- Este artigo começa explorando o conceito
vocar-nos mutuamente e para sermos mais de cultura, uma vez que parte significativa
estratégicos e práticos diante de um mundo das exclusões e desigualdades é determi-
que nos desafia a cada momento, no qual, nada diariamente pelos significados, pelos
como bem disse a escritora britânica Zadie entendimentos e pelas categorias culturais
Smith, “O progresso nunca é permanente, atribuídos e transmitidos por diferentes se-
sempre estará ameaçado, por isso deve ser tores da sociedade. Essa afirmação se torna
redobrado, reafirmado e reimaginado”. 3 mais relevante quando são analisadas as re-
E hoje é o momento ideal lações de poder, ou seja,
para pensarmos sobre o E hoje é o momento ideal quando esses conceitos
progresso cultural de para pensarmos sobre o que parecem abstratos e
que as nossas socieda- progresso cultural de que as gerais, como o de cultura
des precisam, para nos nossas sociedades precisam, ou desenvolvimento, em
tornarmos seres huma- para nos tornarmos seres sua instrumentalização
nos e cidadãos melhores, humanos e cidadãos melhores, por um grupo social espe-
profundamente preocu- profundamente preocupados cífico, determinam quem
pados também com o também com o bem-estar está fora ou dentro de um
bem-estar dos demais, dos demais, compartilhando sistema, quem tem privi-
compartilhando os pri- os privilégios e, finalmente, légios ou quem é omitido
vilégios e, finalmente, assumindo posições para passar na conversa, quem é defi-
assumindo posições para de um conceito de equidade e nido como sujeito ou como
passar de um conceito bem-estar etéreo e ideal para um objeto e, a partir disso, de
de equidade e bem-estar que possibilite o avanço humano. qual equidade ou igualda-
etéreo e ideal para um de estamos falando.
que possibilite o avanço humano. Muitos A definição de cultura e desenvolvimen-
fatos nos apresentam essa contradição his- to é fundamental quando se procura ajudar a
tórica que o crítico francês Jean-Baptiste entender seu papel na redução das desigual-
Alphonse resume: “Quanto mais as coisas dades estruturais, que passa não somente por
mudam, mais continuam iguais”.4 Será que uma perspectiva de quem sofre condições de
isso é verdade? pobreza, privação ou violência, como também
É disso que trata este texto no qual na- por uma leitura crítica sobre os paradigmas
vegaremos juntos, em um momento em que que determinam essas posições. Como bem
é da maior transcendência, como bem disse disse Martin Luther King Jr., “A equidade
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 121

não é apenas uma questão de matemática e modos e manifestações; em outras ocasiões,


geometria, mas um assunto de psicologia”.5 tem sido o mecanismo de reivindicação.
Os conceitos e as leituras culturais mol- Assim, a cultura é contextual, no final
dam a noção de desenvolvimento; por isso, é sempre conjuntural e marcada pelo político.
fundamental entrar em uma análise semân- Trata-se, portanto, de um campo de negocia-
tica para poder dizer clara e intencionalmen- ção e de tensões permanentes, que reiteram
te o que pretendemos, e, assim, traduzir sua seu dinamismo.
relevância e urgência, para que não se caia na Após essa descrição mais macro, sistê-
percepção de que o papel da cultura é decora- mica e epistemológica da cultura, gostaria de
tivo ou secundário, segundo os estereótipos me atrever a entrar em uma análise a partir
que banalizam a sua influência. O que a cul- da minha perspectiva como engenheira –
tura significa em um contexto particular ou poderíamos chamar de engenheira cultural,
em um contexto mais geral? Como traduzir associando-a à palavra infraestrutura. Uma
a relevância cultural nas exclusões? infraestrutura que, na sociedade atual, res-
A cultura (ou as culturas) tem sido asso- ponde à dualidade contemporânea do tangí-
ciada aos processos de produção social e às vel e do intangível, essa infraestrutura que
relações sociais com as quais o mundo é or- gera as vias de compreensão e entendimento
ganizado, a partir de uma perspectiva de tem- de uma sociedade. Essa infraestrutura que
po e espaço e da definição do que é humano pode conectar ou isolar, esse fluxo criativo
e do que não é. Da mesma forma, tem sido a que precisa interagir, dinamizar-se, para ir
base para organizar a experiência, registrar a tecendo e repovoando um sistema de con-
memória, analisar que parte dessa memória teúdos que proporcionam sentidos indivi-
se torna história e, nessa história, quem são duais e coletivos. É perguntar-se, sobre as
os protagonistas, as vítimas ou os invisíveis, diferentes expressões culturais, “para quê”
algo que até hoje ainda é crítico nas desigual- e “por quê”. Essa conceitualização é funda-
dades cotidianas, na definição permanente mental à eficácia necessária na ação cultural,
da concentração da pobreza em grupos es- que transcende o simbólico para penetrar em
pecíficos por causa de suas condições e ava- sistemas e matrizes mais profundos. Pensar
liações identitárias, que marginalizam suas na dança, que libera o espírito, por exemplo,
oportunidades na sociedade. Essa definição e transmite através do corpo um discurso,
da cultura ligada aos limites, aos desafios, uma declaração; passando pela música, que
ao que é possível e ao que é considerado im- torna o cotidiano rítmico, convida a unir e
possível, ao que é tolerante e ao que não é, ao elevar as vozes com mensagens particula-
que é belo, legítimo, verdadeiro. Neste último res; até chegar à literatura, que cria mundos
item, a cultura tem desempenhado um pa- e permite viajar tanto para longe quanto para
pel por vezes opressor e da maior exclusão, perto da realidade mais humana e profunda,
rejeitando a diversidade de formas, modos sem esquecer da arte, que plasma o passado
e expressões, gerando categorias estéticas e o presente e traça um futuro possível na
que negam a humanidade em seus múltiplos diversidade das formas, abstrações e cores.
122 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Ler para quê? Escrever para quê? Dançar etnia, idade, posição social etc. Havia a necessi-
para quê? Cantar para quê? Muitas respostas dade, então, de tentar transcender por meio da
que poderiam passar pelo prazer da atividade palavra escrita, para que a minha experiência
e da vida cultural, mas que, em uma agenda de ou o que quero transmitir com a minha exis-
desenvolvimento, adquirem dimensões ainda tência não ficassem à mercê de interpretações.
mais profundas de sobrevivência e quase de Eu entendi que, a partir desses exercícios, as
existência, permanência e visibilidade, em um relações de poder mudam, como disse o grande
sistema que mantém certos grupos populacio- escritor africano Chinua Achebe: “Se você não
nais marginalizados nas periferias do poder. gosta da história do outro, escreva a sua pró-
Recentemente, publiquei um livro de pria história”.6 Fiz parte dos mais de 10 milhões
memórias, intitulado El Poder de lo Invisible de afrodescendentes na Colômbia e dos mais
[O Poder do Invisível]. Quando comecei a de 150 milhões nas Américas cuja história é
escrever, há dez anos, a minha intenção era narrada por outros, em que o papel principal
apostar no poder das palavras é sempre como vítima e não
escritas, que nos abrem para o Não é apenas combater como protagonista.
universo das experiências de a pobreza material, Gostaria de compartilhar
um modo particularmente mas a pobreza dos um exemplo pessoal da inten-
marcado por uma voz interior sentidos, que faz com que cionalidade cultural e do po-
que vai reagindo conforme o tenhamos uma sociedade der da cultura para mim como
escritor passa a barreira do tão desigual sem que isso indivíduo, como líder e como
leitor e decide começar uma nos incomode. comunidade. E, mais adiante,
viagem com ele, que acabará vou contá-lo a partir das vozes
sendo uma viagem para si mesmo. Então, ler das mãos visíveis. Escrever para curar, escrever
e escrever ou escrever e ler, para mim, tor- para existir, escrever para contar as experiên-
nou-se uma forma de existir, entender, fazer cias da diversidade que habita em mim e me
sentido, imaginar, negociar com as minhas conecta com milhões de pessoas no mundo,
lembranças, com os meus sonhos, e gerar criando um experimento de psicologia comu-
modos particulares de povoar o pensamen- nitária que enfatize a ruptura das narrativas
to, o sentimento e, no final, a consciência de de divisão, passando de um “vocês e nós” para
outros. No meu caso, como primeira mulher um “nós”, transformando o livro em um espe-
afrodescendente e a mais jovem a ocupar um lho de uma humanidade compartilhada que vai
cargo ministerial na Colômbia, e uma das além das categorias identitárias raciais, sociais
primeiras ministras negras das Américas, e geracionais. No final, todos somos um livro
sentia o peso de deixar um testemunho que e temos uma história para contar. O ponto é a
gerasse uma escola de referências, aprendi- intencionalidade dessa história.
zados e experiências. A cultura abriga as grandes conquistas e
As biografias culturais dos nossos países e também os conflitos, os desenvolvimentos po-
a ostentação dos principais locais de poder têm tenciais, as grandes incompreensões, os res-
categorias de identidade em termos de gênero, sentimentos e as frustrações mais profundos.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 123

Às vezes, as coisas mais evidentes, ou que es- O ponto de partida da definição de desenvolvi-
tão mais próximas da experiência de todos, mento, no caso da Manos Visibles, faz com que
são as mais difíceis de explicar e argumentar se assuma de uma vez um olhar que atravesse
como entram na agenda. Como aquilo articula tudo. Por exemplo, interessa-nos um desenvol-
um sentido de temporalidade mais extenso, vimento endógeno, que valorize e renove o que
como ali está a base do nosso universo cria- é próprio. Consequentemente, o nosso papel
tivo. No final, não é apenas combater a po- como organização-ponte e acompanhante é
breza material, mas a pobreza dos sentidos, complementar os ativos locais com as melho-
que faz com que tenhamos uma sociedade tão res ferramentas, nutrir ideias e gerar conexões
desigual sem que isso nos incomode. É nesse estratégicas que ajudem a mudar as relações de
ponto que a compreensão mais ampla da cul- poder. Assim, sabemos que o objetivo da nossa
tura aborda não só a necessidade da cultura agenda de desenvolvimento não se concentra
como infraestrutura de sentido individual e apenas em comunidades com níveis mais altos
coletivo, mas também seu papel na qualidade de violência ou pobreza, mas particularmente
e na dignidade do ser humano, o que implica nas elites acadêmicas, políticas, econômicas e
uma reflexão mais ética, que eu gostaria de culturais que tomam decisões, que não sabem,
conectar com o próximo segmento, que trata que omitem ou subvalorizam aqueles consi-
da concepção de desenvolvimento. derados outros em razão de suas condições de
vulnerabilidade. Consequentemente, o desen-
Desenvolvimento: a partir de que, volvimento não é o que é feito pelos outros, mas
com o que e para quem? o que é cultivado para que as transformações
Acredito que o conceito de desenvolvimento sejam realizadas de forma autônoma e estru-
está passando por uma profunda reflexão éti- turada pelos líderes e pelas organizações. Isso
ca. Na Manos Visibles, organização que dirijo mesmo: para nós, o desenvolvimento é um pro-
e cujos exemplos mencionarei mais adiante, cesso orgânico. Ao entender o desenvolvimento
tomamos a decisão de definir a nossa aborda- como um processo orgânico, nós nos movemos
gem de desenvolvimento da seguinte forma: na infinidade de nuances e dinâmicas que cor-
respondem aos contextos e às construções de
“Desenvolvimento não é apenas a distribui- cada local.
ção de recursos físicos. É o processo de cons- Isso significa que fortalecemos as ca-
truir a partir dos ativos das comunidades, pacidades que levam à autonomia, potencia-
apoiando a geração de capacidades, o acesso lizamos os relacionamentos estratégicos e
a oportunidades e o crescimento equitativo. entendemos que, se houver capacidade, ao
É o processo de gerar resultados profundos ganhar poder, existe a possibilidade de in-
e transformações na mentalidade, nas ca- fluenciar as decisões. Por isso, apostamos na
pacidades, na valorização e na melhoria das geração de ações repetidas que, em escala,
condições de vida. A pobreza não é somente provocam micromudanças que nos penetram
de recursos físicos, mas de esperança, de ex- e transformam os sistemas de exclusão. E
pressões próprias e de sentidos". cito três autores que ilustraram essa questão:
124 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Amartya Sen [professor de economia e filo- contínuo “eles e nós”. Uma acadêmica colom-
sofia indiano], que, com sua abordagem das biana resume isso de forma muito evidente,
capacidades, enfatiza o desenvolvimento cruzando uma visão de desenvolvimento não
como um meio que fomenta e propicia a ex- só instrumental, econômica ou social em pa-
pansão das liberdades individuais e coletivas drões básicos, mas profundamente cultural,
das sociedades; Martha Nussbaum [filósofa associada às discriminações e exclusões:
norte-americana], que sugere que, para en-
tender melhor o conceito de capacidades, “Às vezes, o ‘nós’ é formado por brancos-mesti-
é necessário ampliar o de dignidade. Ela a ços eurodescendentes, herdeiros da razão oci-
considera um dever que se tem com todas dental, verdadeiros colombianos, integrados à
as formas de vida, um reconhecimento da nação, guardiões da cultura nacional. Ao lado
importância do meio ambiente como um desse ‘nós’ é fabricado um ‘eles’: os afro-colom-
dos propósitos do desenvolvimento. E, final- bianos, retóricos, invisibilizados, autoinvisi-
mente, John Roemer [economista e cientista bilizados, vítimas obscuras necessitadas de
político norte-americano], que adverte que refletores burocráticos, pseudoinvisibilizados
a igualdade de oportunidades foi entendida que reproduzem hierarquias dentro da invisi-
de duas formas: “A primeira estabelece que a bilidade, não conhecedores dos desafios im-
sociedade deveria fazer todo o possível para postos hoje pela cultura hegemônica nacional”.
‘nivelar o campo do jogo’”.
Em outras palavras, a oportunidade de Manos Visibles: entender
fortalecer as capacidades pode ocorrer de for- e agir no mapa das exclusões
ma reativa, seja resolvendo as desigualdades do
sistema, seja com medidas progressistas des- “O efeito de uma bomba cultural é aniquilar as
tinadas a garantir igualdade de condições para crenças das pessoas em seus nomes, lingua-
todos. Essa é a tarefa que realizamos em Manos gens, ambiente, herança de esforço, unidade,
Visibles, nivelar com a melhor formação dispo- capacidades e, finalmente, em si mesmas. Isso
nível o terreno das exclusões conceituais, bem faz com que o passado pareça uma terra per-
como o terreno das exclusões culturais e políti- dida, um território infértil sem maiores con-
cas, que geram uma subvalorização no exercício quistas, que impele as pessoas a quererem se
da cidadania a partir de algumas comunidades distanciar de si mesmas.” (Ng g wa Thiong’o) 
em condições de pobreza e violência.
O que entendemos como desenvolvimen- “Desconstruir os discursos e as narrativas
to passa por um profundo questionamento que constituíram o sustento para justifi-
ético, que afeta a renovação do nosso estilo de carmos o injustificável. Assumir a causa
liderança. Para reconfigurar nosso poder, nos- daqueles considerados os outros; os empo-
sa influência e nosso foco, precisamos incubar brecidos, não os pobres; os invisibilizados,
essa liderança coletiva e colaborativa com base não os invisíveis; os marginalizados, não os
em um profundo apelo cultural, para mudar marginais. Com a finalidade de mudar ima-
especificamente as exclusões recorrentes, esse ginários que nos convidem a sair da nossa
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 125

zona de conforto e compartilhar os nossos lugares. Limitam-nos. E limitam milhares


privilégios... eu os convido a fazer isso.” de pessoas, reduzindo o seu acesso às opor-
[Deicsy Elena Bermúdez Hurtado, membro tunidades. Na Manos Visibles nos pergun-
da corporação Manos Visibles, em discurso tamos continuamente onde estão, quais são,
principal na formatura da segunda coorte do e, acima de tudo, como podemos reduzi-las.
mestrado em poder pacífico, em dezembro Dessas perguntas aparentemente simples –
de 2018, na Universidade Eafit (Medellín)] mas profundas e complexas quando se trata
de encontrar uma solução para elas – nas-
“A grande tarefa da afrodescendência é pas- cemos como organização. Surgimos desse
sar do poder da resistência para o poder da questionamento que nos levou a perguntar
transcendência.” [Edgard Gouveia Jr., mem- quem estava dentro e quem estava fora das
bro da Afroinnova – Manos Visibles (Brasil)] instâncias em que as decisões são tomadas.
De quem dependiam as mudanças, por que
O nome Manos Visibles [Mãos Visíveis] vem o acesso a elas era tão escasso e por que os
de um olhar alternativo sobre a teoria do filó- privilégios eram limitados.
sofo escocês Adam Smith, que argumentou Perguntamos, além disso, quem estava
que era o valor das mãos invisíveis na dinâ- disposto a compartilhar seu poder, quem es-
mica do mercado que determinava a ativida- tava disposto a aprender e a entregar o seu
de econômica. Quisemos ir além: a partir da saber aos demais. Da mesma forma, quem
perspectiva do desenvolvimento não estava. De quem dependem as
social e inclusivo, acreditamos Interessa-nos um mudanças. E quem as nega.
que as transformações ou as mu- desenvolvimento Essas perguntas de mão dupla
danças sociais não podem ficar endógeno, que nos permitiram entender como a
à mercê de fatos aleatórios, mas valorize e renove realidade funcionava nos territó-
devem responder a ações progra- o que é próprio. rios, quais eram as elites tradicio-
máticas. Ou seja, devem ser gera- nais e quem eram os líderes que
dos fatos que permitam formar e definir as transformam as realidades, muitas vezes em
estruturas das quais cada sociedade precisa silêncio. Pouco a pouco, fomos aprendendo
para o seu bem-estar, e que, ao mesmo tempo, como essas elites nacionais se conectam com
reduzam as desigualdades e mudem os fato- as regiões e os territórios locais para enten-
res estruturais de atraso. Da mesma forma, der quais interesses predominam e também
essas ações devem se concentrar nos locais para saber quais são os interesses de fundo
com maior necessidade, dando protagonismo que fazem com que os territórios excluídos
aos seus cidadãos. permaneçam nessa condição.
Quais são as exclusões? Pode parecer Para quem é interessante continuar
uma pergunta óbvia, mas às vezes estão com esse estado de coisas? São omissões ou
tão profundamente enraizadas no cotidia- acontecem de propósito? Quem é a maioria
no que nos sentimos incapazes de vê-las. e quem é uma minoria nesse contexto? O
Sabemos de uma coisa: estão em todos os que acentua essa maioria ou minoria e em
126 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

que momento ela começa, quais são os fun- histórias ou seus percursos são visíveis nos
damentos e conceitos que a mantêm, quais processos promovidos pela Manos Visibles,
são as matrizes que invisibilizam as pessoas? já que eles são o coração do nosso trabalho.
Entendemos que, no mapa dos territórios de Quem eram? Quem são? Quem serão? E qual
exclusão, existem variáveis ​​étnicas que coin- foi a influência desse caminho juntos? Sua
cidem com a dimensão da extrema pobreza. tarefa foi e será constituir uma elite reno-
Se a pobreza aumenta em territórios como o vada, marcada pela modificação do modo de
Pacífico colombiano, nós deveríamos, então, sentir, pensar e agir das suas próprias comu-
nos concentrar e fazer uma radiografia do nidades e narrativas predominantes.
lugar. Assim, a Manos Visibles poderia for-
necer uma perspectiva que transcendesse a Manos Visibles: lideranças
geografia local e dar-lhe um olhar transnacio- e ecossistemas de
nal. Essa perspectiva nos permitiu, em pouco transformação culturais
mais de oito anos de existência, ter 4 linhas
estratégicas e 13 programas, consolidando “Essas mãos não são tanto sobre mim, mas
uma rede de 2 mil líderes de comunidades sobre o meu país. Escolhi as mãos porque
excluídas, 100 tutores nacionais e internacio- são instrumentos poderosos, que podem
nais, membros das elites do país e do mundo, ferir ou curar, castigar ou elevar... em uma
bem como 30 organizações visíveis, referentes época de injustiças podem nos unir, ape-
à transformação coletiva. Até hoje, a Manos sar das diferenças, reconhecendo o poder
Visibles tocou e conectou mais de 200 mil do amor, da confiança e do valor da vida.”
pessoas e 400 organizações, em uma região da (Nelson Mandela)
Colômbia onde o isolamento e o esquecimento
são a regra, além de integrar líderes e organi- O exemplo que escolhemos da nossa rede de
zações em 11 países da África e sua diáspora, mais de 2 mil líderes, 400 organizações e 30 ini-
que são membros do programa Afroinnova. ciativas visíveis é a dança. Em um ecossistema
Manos Visibles, como o próprio nome de transformação cultural na dança, descreve-
diz, tem o poder de visibilizar e ajudar a sair remos apenas uma mão visível, mas temos um
daquilo que a escritora nigeriana Chima- ecossistema de música, audiovisual e dança.
manda Adichie chama de perigo da histó-
ria única. As histórias dos descendentes de Sankofa7
africanos, e de territórios como o Pacífico Dançamos para sermos ouvidos, mais do que
colombiano, não podem continuar sendo para sermos vistos!
contadas a partir da violência, da pobreza e
da catástrofe. Portanto, para terminar esta “A dança é o caminho que encontrei para dar
seção, gostaria de mencionar quatro casos de corpo ao sentimento e à reflexão que me in-
organizações que realizaram todo o processo tegram como artista e como afrodescenden-
com a Manos Visibles e hoje consolidam um te.” (Rafael Palacios, diretor e coreógrafo da
ecossistema de transformação. Aqui, suas Mãos Visíveis)
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 127

Sankofa é uma companhia de dança A Mentira Complacente – sobre


transnacional que encontra na arte a a Erotização dos Corpos Negros
oportunidade de questionar as tensões na
integração social, na discriminação e na “No palco, um corpo-caricatura que, com
exclusão. É também uma escola para cen- quadris, nádegas e pênis descomunais, bus-
tenas de jovens dançarinos no país. Três ca autoafirmar suas tradições por meio de
de seus títulos nos mostram sua posição, expressões como o mapalé ou a requintalla,
sua mensagem e seu conteúdo, para gerar e, ao mesmo tempo, parodiar os clichês que
não apenas uma encenação com dignidade, não conhecem o significado de suas mani-
mas também uma reflexão e uma formação festações artísticas e espirituais: não ser
profunda de seus membros e de seu públi- representado, mas autorrepresentado na
co. Uma mão visível que se nutre de proces- memória e na sabedoria de uma comunida-
sos formativos e da conexão com a África de.” (Rafael Palacios)
e a diáspora é fundamental, conceitua a
exclusão e tudo isso a torna uma declara- A Cidade dos Outros
ção-representação política, estética e poé-
tica, fortalecendo outros coletivos, como os “Em muitas ocasiões, longe de ser uma fonte
jovens criadores de Chocó, departamento de progresso, a cidade se torna um lugar de
da Colômbia. hostilidade, solidão e discriminação.” (Ra-
fael Palacios)

Fonte: http://sankofadanzafro.com/site/#!/2010/09/15/ciudaddelosotros/
128 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Data-Limite violência. Valorizar consiste em reconhecer


não só a partir de uma perspectiva retórica,
“Em nosso país, a guerra tem as cores das mas em termos de poder, com uma aposta
comunidades negras, indígenas e campesi- na autonomia, na igualdade real e no próprio
nas. É chegada a hora de desafiar o túmulo protagonismo.
coletivo que nos puxa nossos pés para a ine-
quidade social.” (Rafael Palacios) O poder cultural
O poder como categoria de análise é funda-
Conclusões mental na relação entre desenvolvimento e
A autoestima cultural cultura, para não cair em uma visão assis-
Na relação entre cultura e desenvolvimento, tencialista e paternalista, que não procura
é fundamental fortalecer os processos de va- mudar os sistemas e gerar uma inclusão
lorização daquilo que é próprio em contextos efetiva. É um olhar prático e tático da cul-
com condições de marginalidade, exclusão e tura, que requer uma abordagem a partir da

Fonte: https://issuu.com/manosvisibles/docs/anexo_8.2._agenda_encuentro_regiona
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 129

esfera política, econômica e dos caminhos Paula Moreno


para uma integração efetiva na tomada de Engenheira industrial colombiana formada
decisões, existindo para isso diferentes vias em língua e cultura italiana, possui mestrado em
e formas de poder. filosofia da gestão pela Universidade de Cambridge,
com estudos em planejamento urbano e liderança
As lideranças culturais no MIT e na Universidade de Yale. É ex-ministra da
De que tipo de lideranças precisamos e onde Cultura da Colômbia, a mais jovem da história do
elas devem atuar para o avanço integral? É fun- país, e primeira mulher afro-colombiana a ocupar
damental questionar o tipo de liderança indivi- um cargo ministerial. Recebeu vários reconheci-
dual e coletiva necessária às transformações, mentos, como a Ordem de San Carlos do governo
bem como propor mecanismos para cultivá-la da Colômbia; a Ordem da Águia Asteca do gover-
e dotá-la de ferramentas efetivas que comple- no do México; e o Prêmio de Excelência Fulbright.
mentem seus saberes sociais e culturais. Em 2013, foi reconhecida pela BBC como uma das
cem mulheres líderes no mundo e, em 2016, pelas
A inclusão cultural Nações Unidas como uma das cem líderes afrodes-
As agendas de desenvolvimento exigem pen- cendentes mais influentes.
sar em como reduzir as exclusões conceituais Em 2010, fundou a corporação Manos Visi-
e culturais, além de como igualar o reconheci- bles – presidindo-a desde então –, que empodera
mento, o ponto de partida e o acesso. líderes e organizações de comunidades excluídas,
particularmente afrodescendentes, a fim de mudar
as relações de poder. Atualmente, é membro do
conselho de administração da Fundação Ford. Em
2018, publicou um livro de memórias, El Poder de
lo Invisible, pela editora Penguin Random House.
130 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Notas

1 Manos Visibles: <www.manosvisibles.org.>.

2 Fórum Econômico Mundial de 2018, em Davos, na Suíça.

3 Texto original de Zadie Smith: “Progress is never permanent, will always be


threatened, must be redoubled, restated and reimagined if it is to survive”.

4 Texto original de Jean-Baptiste Alphonse: “Plus ça change, plus c’est la


même chose”.

5 Texto original de Martin Luther King Jr.: “Equality is not only a matter of
mathematics and geometry, but it’s a matter of psychology”.

6 Texto original de Chinua Achebe: “If you don’t like someone else’s story,
write your own”.

7 Veja: <www.sankofadanzafro.com>.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 131
132 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Lucina Jiménez 133

DIVERSIDADE E
DESENVOLVIMENTO
AGENDA 2030: RUMO À DESCOLONIZAÇÃO
DOS NOSSOS MUNDOS

Lucina Jiménez

A Agenda 2030 implica um esforço internacional de governos e empresas privadas para


reconhecer a diversidade cultural como força para o bem-estar, cuja gestão deve vir acom-
panhada de políticas baseadas em direitos humanos, especialmente direitos culturais. O
reconhecimento e a valorização de saberes, tecnologias e práticas dos povos e as novas formas
de gestão autônomas e colaborativas entre organizações artísticas, juvenis e da sociedade
civil devem se articular com políticas de acordo com a natureza e a escala da produção ar-
tística, cultural e tecnológica em um mundo global.

Do desenvolvimento e da homogeneidade
aos direitos culturais e à diversidade

D
urante os séculos XIX e XX, o pen- Os povos indígenas, como foram deno-
samento filosófico e as ciências minados internacionalmente, assim como
sociais e econômicas estabelece- as populações afro-americanas, foram li-
ram a indissolubilidade da relação entre de- quidados em vários países, enquanto, em
senvolvimento e homogeneidade cultural. outros, suas línguas, suas expressões cul-
A busca da “unidade nacional” em muitos turais, suas memórias e seus conhecimen-
países da América Latina, no fundo ligada tos foram negados. Os territórios culturais
à consolidação do capitalismo como regime foram expropriados e, em muitos casos, os
econômico, político e cultural dominante, habitantes se tornaram força de trabalho
implicava a generalização de elementos cul- ou foram exaltados como representantes de
turais como bases identitárias necessárias um passado glorioso, que no final das contas
para firmar o Estado-nação. A diversidade era passado.
étnica e cultural era vista como um obstá- As políticas culturais e educativas fo-
culo que impedia o desenvolvimento eco- ram, até certo ponto, funcionais ou se ade-
nômico e o bem-estar coletivo. quaram a essa proposta. Os referenciais
134 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

culturais impostos ou legitimados foram transformação, é uma condição para alcan-


aqueles construídos a partir das culturas çar um senso de universalidade.
europeias dominantes ou, no melhor dos O desenvolvimento do pensamento em
casos, aqueles aceitos como válidos pelos torno da economia do setor cultural, mes-
novos crioulos estabelecidos nos novos ter- mo em meio a muitas tensões de natureza
ritórios colonizados. Houve, no entanto, uma ideológica, permite-nos situar o debate entre
inevitável miscigenação, misturas resultan- desenvolvimento e diversidade em planos
tes da convivência prolongada, assimétrica e completamente diferentes daqueles impos-
desigual. Os ícones, as palavras, os remédios, tos durante o século XX.
as cosmovisões, as danças e as músicas ine- Nesse sentido, concordo com Paul To-
vitavelmente contagiosas, ou clandestinas, lila quando diz:
sobreviveram e se transformaram em um
prolongado e inigualável sincretismo. Pensar agora sobre a economia do setor cul-
A premissa era de que o desenvolvi- tural não constitui, de forma alguma, uma
mento estava associado a uma aspiração de derrota dos argumentos humanistas em
homogeneidade, que nunca se materializou. relação à cultura que todos conhecemos e
As culturas locais e de múltiplos grupos indí- defendemos. Não significa abandonar o
genas, mestiços e afro-americanos, resultado campo da luta em defesa do desenvolvimen-
das miscigenações e dos cruzamentos cultu- to cultural; ao contrário, significa ocupar um
rais, ganharam muita força, apesar das polí- campo complementar do qual o setor cul-
ticas culturais e dos esforços educacionais tural e seus principais atores desertaram,
voltados para a homogeneização. A força ter- deixando o terreno livre para as pressões
ritorial das diversidades culturais, com base negativas (TOLILA, 2007).
em suas respectivas cosmovisões, também
se tornou, mesmo dentro de um capitalismo Qualquer processo criativo, individual ou
cada vez mais destrutivo, uma condição de coletivo, para além do seu valor simbólico e de
existência e/ou resistência. construtor de significados e tramas de relações
Hoje, com o avanço do discurso dos sociais, éticas e estéticas, tem uma dimensão
direitos culturais, temos a possibilidade econômica que muda em relação ao seu valor
de transcender essa velha dicotomia entre de produção ou troca e ao contexto em que
universalismo e diversidade cultural, já que essa produção é gerada, circulada e inserida
o reconhecimento dos direitos culturais na vida das pessoas. A sustentabilidade dos
implica o reconhecimento da dignidade de processos artísticos e culturais, sejam eles de
pessoas, grupos e comunidades em seu legí- criação popular, de criação comunitária ou
timo direito de decidir sobre sua identidade profissional, não tem a ver apenas com o va-
cultural e exercer a liberdade criativa, bem lor econômico, mas com as possibilidades de
como seu direito cada vez mais importante inovação, apropriação social ou criatividade
de gerir seus próprios recursos culturais. A aplicada, com a forma como se relaciona com
identidade pessoal e coletiva, em constante a saúde do ambiente e dos próprios produtores
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Lucina Jiménez 135

e com o fato de que o aproveitamento dos re- deslocamento de milhões de pessoas para
cursos culturais utilizados para sua produção as cidades, transformando a migração no
não compromete o das gerações futuras, por motor de novos mapas de diversidade cul-
não haver superexploração. tural em todo o mundo, criando grandes
É por isso que a perspectiva do de- periferias e processos de centralização de
senvolvimento em relação à diversidade infraestruturas de todos os tipos, enquanto
cultural só pode ser garantida por meio do os mundos da diversidade cultural e linguís-
estabelecimento de políticas que articulem tica são o foco de antropólogos e etnólogos,
as dimensões social, educacional, econômi- mas não tanto das políticas públicas de de-
ca, ambiental, cultural e intergeracional. Daí senvolvimento ou de direitos. Já mencionei
sua complexidade e necessidade de que o for- em outros ensaios que a produção cultural,
talecimento dessa abordagem venha acom- as tecnologias tradicionais e os saberes an-
panhado da formação de novas capacidades cestrais, grande riqueza da diversidade, são
entre funcionários ou servidores públicos e produzidos por populações que vivem em
também entre produtores culturais, criado- condições de pobreza.
res, empresários, líderes comunitários, co- O crescimento econômico dos anos
letivos e integrantes da sociedade civil. No 1940-1960, inspirados na busca pela mo-
fundo, o que há por trás disso é a reconfigu- dernização e pelo universalismo, em alguns
ração da política pública e privada em relação casos significou a preeminência de visões
a uma perspectiva que pense sobre o próprio inspiradas por um antigo criollismo,1 enri-
desenvolvimento a partir da diversidade de quecido e transformado pelo olhar da moder-
cosmovisões que caracteriza a nossa reali- nidade e da produtividade. Uma nova divisão
dade contemporânea. internacional do trabalho situou os países
da América Latina como fornecedores de
Economia não é sinônimo de mão de obra e produtores em um cenário de
desenvolvimento; as pessoas ascensão da hegemonia dos Estados Unidos.
devem estar no centro dele Nos anos 1990, em plena ascensão da
A noção de desenvolvimento com base no globalização como DNA do capitalismo, após
crescimento econômico como objetivo pri- décadas de crise (1970 e 1980), a chamada
mordial vigente no século XX vem acompa- Cúpula da Terra questionou a subordina-
nhada de um fraco propósito de distribuição ção da vida no planeta às necessidades de
de renda, que é assumido a partir das rela- um desenvolvimento industrial que deixou
ções produtivas nas quais a concentração para trás um crescimento econômico pouco
da riqueza acaba tornando a América Latina sustentável, a ampliação das classes médias e
uma das regiões mais desiguais do mundo. também o empobrecimento das maiorias, em
O longo processo de proletarização e um clima de crescente deterioração do meio
incorporação da mão de obra na produção ambiente. Intensos movimentos ecologistas
fabril, do início até meados do século XX, conseguiram enfraquecer o senso de desen-
trouxe a desintegração do mundo rural e o volvimento econômico, considerado um fim
136 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

em si mesmo, e não em benefício das pessoas, cruzamento entre a diversidade cultural e


dos seres vivos e dos recursos bioculturais. os frutos da criatividade, que se transfor-
No início do século XXI, as organizações mam em bens e serviços e fazem parte dos
globais, especialmente a Unesco, promove- direitos humanos e das chamadas “indús-
ram o reconhecimento da diversidade cultu- trias culturais”. E quais seriam elas? São as
ral como um valor que não se contrapõe ao garantias exigidas por indivíduos, grupos e
desenvolvimento, entendido como cresci- comunidades para seguir sua própria rota ar-
mento econômico e também como estímulo tística e criativa como um direito que inclui
às capacidades dos cidadãos. liberdade de expressão e criativa e acesso ao
Uma longa batalha intelectual foi trava- conhecimento científico criado pela huma-
da no final dos anos 1970 na América Latina, nidade, para além da proteção e da promoção
sob o pensamento de Guillermo Bonfil Ba- dos bens e serviços que englobam conteúdos
talla (1935-1991) e a reivindicação do valor frutos de tal diversidade cultural.
das culturas populares urbanas por Carlos Isso é fundamental, pois pressupõe que
Monsiváis (1938-2010), para mencionar a política cultural se concentra na promoção
apenas dois de muitos pensadores. Tudo da criação como vinha sendo feita, para além
isso somado ao surgimento dos movimen- de uma abordagem ligada à sustentabilidade
tos de libertação nacional pós-coloniais na das práticas artísticas e culturais, uma nova
África, influenciados pelo pensamento de forma de estabelecer vínculos entre as políti-
Amílcar Cabral (1924-1973) e Frantz Fanon cas culturais e vários âmbitos das políticas de
(1925-1961). Ambos reconhecem na cultura desenvolvimento que influenciam decisiva-
a semente da resistência e da força capaz de mente no presente e no futuro da diversidade
abrir caminho para a libertação do colonia- das expressões culturais.
lismo europeu. Nesse sentido, os países que aderiram a
Assim, a Declaração Universal sobre a essa abordagem procuraram reorientar suas
Diversidade Cultural (2001), que reconhece políticas culturais pensando em cultura e de-
a legitimidade da pluralidade cultural, ganha senvolvimento a partir de uma nova valoriza-
força. A Agenda 21 (2004) aponta a impor- ção da diversidade cultural. Em seu relatório
tância de considerar a cultura como o quar- intitulado Investir na Diversidade Cultural e
to pilar do desenvolvimento, da diversidade no Diálogo Intercultural, publicado em 2009,
cultural e dos direitos culturais como fun- a Unesco propõe assumir a diversidade como
damento de qualquer política pública, além um campo de reconhecimento ético ou so-
da necessidade de avançar na construção de cial, como um valor digno de ser difundido e
uma nova governança para a cultura como promovido, e ainda como uma área de inves-
base do desenvolvimento humano susten- timento para melhorar a qualidade de vida
tável nos contextos locais. e possivelmente também a gestão do meio
A Convenção sobre a Proteção e Promo- ambiente, a partir do reconhecimento dos
ção da Diversidade das Expressões Culturais recursos, conhecimentos e sabedorias dos
(2005) adquire relevância porque aborda o povos nas estratégias de combate à pobreza.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Lucina Jiménez 137

Como resultado, a Unesco formulou relação desses déficits com a abordagem cul-
um documento cujo objetivo é fortalecer tural do desenvolvimento ainda é incipiente.
essa nova abordagem de política cultural. A transversalidade da cultura começa
No ano passado foi publicado o documento a estar presente nas políticas de desenvolvi-
Re | pensar as Políticas Culturais (2018), no mento voltadas para o combate à pobreza e
qual são fornecidos exemplos de boas práti- à desigualdade e para a busca do bem-estar.
cas e exercícios de redefinição de políticas Da mesma forma, a cultura passa a ser levada
públicas de cultura, desenvolvimento e di- em conta para sustentar a governabilidade,
versidade cultural nos países que aplicaram principalmente em áreas afetadas pelas vá-
a chamada Convenção de 2005. rias formas de violência. No entanto, como
O movimento vital de cidades e go- os direitos culturais são um direito humano,
vernos locais que for- assume-se que não devem
talecem a perspectiva É necessário trabalhar em uma estar disponíveis apenas
da política pública do nova abordagem da política para as populações que vi-
ponto de vista da Agen- cultural, capaz de estabelecer vem em condições de alta
da 21, que privilegia a novos arranjos institucionais e marginalidade, mas sim
diversidade cultural e jurídicos e uma governança que a toda a população, inde-
seu vínculo com o de- proponha vias de colaboração pendentemente de sua
senvolvimento huma- entre níveis e setores do diferença econômica, po-
no sustentável, reúne governo, da iniciativa privada e lítica, religiosa, de gênero,
um banco de boas prá- da sociedade civil organizada ideológica ou geracional.
ticas com abordagens ou comunitária, fazendo da vida A condição de vio-
de inclusão social, de cultural um espaço de encontro lência social dissemi-
geração de novas capa- e transformação social. nada exige a abertura de
cidades locais de análise muitos espaços culturais,
e gestão cultural, bem como de promoção dos artísticos, expressivos e comunicativos para
direitos culturais (<http://obs.agenda21cul- encontros, trocas e reformulação de memó-
ture.net/es/home-grid>). rias, a fim de que todos possam elaborar seu
próprio relato, em vez de terem acesso ape-
Os desafios culturais da Agenda nas à história de outra pessoa. A memória
2030: diversidade cultural e deve fazer parte da reelaboração do pre-
desenvolvimento para o bem viver sente com sentido de futuro, algo essencial
Embora a revisão mundial dos Objetivos para a formação de pessoas, comunidades
de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) e cidades resilientes.
realizada pelos países que compõem as O nosso tempo é marcado pelas tensões
Nações Unidas tenha abordado limitações criadas pelo triunfo de velhos e novos dis-
com relação ao que foi alcançado em nível cursos racistas, homofóbicos e nacionalistas,
internacional, como a redução da pobreza que beiram o chauvinismo. Por isso, é neces-
ou a igualdade de gênero, a compreensão da sário trabalhar em uma nova abordagem da
138 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

política cultural, capaz de estabelecer novos Em relação à diversidade cultural e ao


arranjos institucionais e jurídicos e uma go- cumprimento do objetivo 2 da Agenda 2030,
vernança que proponha vias de colaboração referente à Fome Zero e Agricultura Susten-
entre níveis e setores do governo, da inicia- tável, a Agenda 21 sugere o reconhecimento
tiva privada e da sociedade civil organizada e a manutenção “dos conhecimentos tra-
ou comunitária, fazendo da vida cultural um dicionais relacionados à preservação dos
espaço de encontro e transformação social. recursos genéticos existentes, incluindo a
A Agenda 2030 também não reconhe- diversidade genética das sementes, e deve
ceu explicitamente a importância da cultura ser promovida a participação equitativa nos
no cumprimento dos objetivos para os pró- benefícios resultantes”.
ximos 15 anos, exceto no caso do objetivo No México, o bem viver não significa
11.4, que inclui uma meta explicitamente para os povos o incentivo ao consumismo,
relacionada à necessidade de preservar e mas a possibilidade de autossuficiência ali-
proteger o patrimônio na- mentar, a preservação das
tural e cultural. O bem viver não significa espécies nativas, a expres-
Um esforço para preen- para os povos o incentivo são própria enriquecida
cher a lacuna da abordagem ao consumismo, mas pelo exercício do direito
cultural do desenvolvimento a possibilidade de cultural à diversidade cul-
humano sustentável em re- autossuficiência alimentar, tural e ao diálogo igualitário
lação a outros objetivos da a preservação das espécies e solidário com outras cul-
Agenda 2030 foi formulado nativas, a expressão própria turas, e o acesso ao conhe-
no documento La Cultura en enriquecida pelo exercício do cimento científico e técnico
los Objetivos del Desarrollo direito cultural à diversidade criado pela humanidade.
Sostenible – Guía Práctica cultural e ao diálogo Uma postura descoloniza-
para la Acción Local, edita- igualitário e solidário com dora, nesse sentido, requer
do pela comissão de cultura outras culturas. trabalhar em torno do diá-
da rede mundial Cidades e logo intercultural diante
Governos Locais Unidos (CGLU). Nele são dos enormes desafios que a migração em
reconhecidas as metas 4.7, sobre a educação massa representa atualmente.
para a cidadania baseada na valorização da Para que a Agenda 2030 avance de modo
diversidade cultural e na contribuição para a fortalecer as bases locais do desenvolvi-
o desenvolvimento sustentável; 8.3, sobre mento e as perspectivas do desenvolvimento
a promoção de políticas orientadas ao de- humano sustentável, é necessária uma pos-
senvolvimento de atividades produtivas, tura descolonizadora que reconheça o valor
incluindo as de criatividade e inovação; e dos conhecimentos e das práticas culturais
8.9 e 12.b, que falam da promoção do turis- e artísticas gerados nos níveis local e terri-
mo sustentável por meio da cultura e dos torial, independentemente de que sejam o
produtos locais, bem como dos instrumen- resultado histórico do sincretismo e de mis-
tos relevantes. turas que trazem riqueza à cultura e às artes
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Lucina Jiménez 139

como resultado da migração e da relação lo- e deixa os cidadãos na condição de com-


cal-global. pradores de ingressos mais ligados ao en-
Quando falo de recursos locais, incluo tretenimento. Embora o acesso aos bens e
a criação que emana dos povos e a criação serviços culturais faça parte dos direitos
artística local, regional e nacional, uma vez dos cidadãos, o direito à vida cultural ba-
que a liberdade criativa exige condições seado no princípio da liberdade criativa e
para seu desenvolvimento. Um olhar não da igualdade de oportunidades implicaria
colonial significa gerar fluxos internacio- um esforço governamental e dos cidadãos
nais criativos em condições de igualdade e mais enfático na educação artística, na
flexibilizar a mobilidade artística de profes- gestão do patrimônio cultural, nas culturas
sores e pesquisadores, a partir das estéticas audiovisuais, cinematográficas e digitais e
instituídas como dominantes, sejam elas de nos espaços de colaboração entre grupos,
qualquer corrente. comunidades e criadores.
Em particular, é fundamental apro-
veitar os novos recursos tecnológicos para Diversidade cultural, políticas de
fortalecer os processos de autonomia e os criatividade e direitos culturais
relacionados com a inovação e a criativida- As cidades contemporâneas se desenvolvem
de em processos locais, tanto comunitários em contextos variados em que há diversi-
quanto artísticos. As tecnologias digitais ao dades interconectadas. Refiro-me à diver-
alcance de produtores individuais e coleti- sidade linguística, geracional, de gênero,
vos podem apoiar a gestão de projetos au- estética, política, ideológica e cultural. A
tônomos e a geração de redes colaborativas globalização, hoje em dia, implica um novo
horizontais e de benefício comum, em vez protagonismo dos criadores e das criações
de somente reforçar o consumo homogêneo, culturais e artísticas, com singularidades
como acontece com frequência em alguns que podem ser reconhecidas no cenário in-
campos. Isso é possível se for fomentada ternacional. Na singularidade da diversida-
principalmente a produção de conteúdo. de e do diálogo intercultural se estabelece a
Acontece que, por trás das formas possibilidade de uma contundente presença
aparentemente mais horizontais de difu- internacionalizada.
são musical, somente para dar um exemplo, Portanto, hoje é necessário reorientar
existem esquemas de concentração tanto da as políticas culturais enfocando o desenvol-
economia musical quanto da exploração dos vimento e a diversidade. Essa política cul-
próprios artistas. Não é fácil para os cria- tural precisa conceber a si mesma de forma
dores independentes acessar as redes di- intersetorial, permitindo a estruturação de
gitais. O peso da indústria musical faz com uma nova governança para a cultura e o de-
que listas ditem o gosto em alguns gêneros senvolvimento sustentável, que reconheça
e repertórios. os sujeitos sociais individuais ou coletivos
O grande espetáculo das massas domi- como criadores, participantes e inovadores
na as esferas do chamado consumo cultural da vida cultural.
140 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Proponho, então, um conceito de polí- inclusive daqueles que aparentam ser iguais.
tica cultural como ações que atores indivi- Todos os espaços onde a vida transcorre de-
duais, institucionais, privados, comunitários vem considerar uma perspectiva que leve em
e da sociedade civil implementam para criar conta a diversidade de diversidades como
ecossistemas férteis em que as práticas cul- chave para a sua transformação e o sucesso
turais e a gestão de recursos culturais so- de suas missões.
cialmente reconhecidos possam florescer, Não se trata apenas de tomar medidas
desenvolver e inovar, a fim de promover uma simbólicas ou reais de reconhecimento, de
autêntica democracia cultural em contextos fomento e/ou de dignificação da diversida-
globais, territoriais e de diversidade. Esses de, questões completamente necessárias e
recursos podem estar relacionados a prá- urgentes, mas de considerar a dimensão eco-
ticas artísticas e tecnológicas e a saberes e nômica e de viabilidade futura das diferentes
conhecimentos simbólicos, ambientais ou formas de produção cultural, incluindo prá-
de qualquer outra natureza. ticas e saberes artísticos,
A abordagem ecos- Proponho, então, um conceito tecnologias tradicionais
sistêmica permite analisar de política cultural como e recursos biológicos e
a política cultural em seu ações que atores individuais, genéticos das populações.
habitat humano e em suas institucionais, privados, O direito de parti-
relações interculturais com comunitários e da sociedade cipar da vida cultural,
outras espécies, em um am- civil implementam para criar como um conceito-cha-
biente ou contexto especí- ecossistemas férteis em que as ve dos direitos culturais,
fico, em inter-relação com práticas culturais e a gestão precisa mudar as bases
todos os fatores que afetam de recursos culturais nas quais foi estabele-
o presente e o futuro de um socialmente reconhecidos cida a modernidade, em
recurso cultural, incluindo possam florescer, desenvolver relação à criação artísti-
sua dimensão econômica e e inovar, a fim de promover ca e seus vínculos com a
ambiental, e, assim, pensar uma autêntica democracia sociedade como espec-
em termos de sustentabi- cultural em contextos globais, tadora. Essa abordagem
lidade. Também permite territoriais e de diversidade. amplia as alternativas
identificar as pragas que para a arte como trans-
habitam o humo cultural e que é necessário formadora social, e reconhece esse poder
erradicar por meio de posturas descoloni- somente enquanto a arte em si é capaz de
zadoras: racismo, discriminação, classismo, romper essa relação entre produtores e
etnocentrismo, colonialismo, estigmatização, consumidores, abrindo-se à possibilidade
antropocentrismo, machismo, autoritarismo, da experiência coletiva, da cocriação e da
corrupção e diversas intolerâncias. Requer coprodução da vida cultural, com cidadãos
uma mudança de atitude diante da diversi- críticos, capazes de interagir a partir de
dade cultural, entendida como a condição suas próprias práticas artísticas e abertos à
na qual se desenvolve a cultura de todos, diversidade estética e cultural. Investir na
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Lucina Jiménez 141

diversidade cultural é avançar na formação Contudo, não nos esqueçamos de que


de capacidades cidadãs para a autogestão e o próprio conceito de comunidade tem sido
a coprodução, ou seja, para ter condições de questionado há décadas, já que nenhuma
participar, acessar e contribuir para a vida é homogênea, estável ou fechada nem está
cultural em um sentido amplo, que vai além isenta de estruturas de poder manifestadas
de múltiplas formas. Também não devemos
das áreas de acesso à infraestrutura cultural.
A promoção dos direitos culturais no perder de vista o estímulo ao surgimento de
sentido de fomentar a vida cultural inclui o marcas cuja base de marketing é a susten-
desenvolvimento de capacidades coletivas tabilidade, sendo ela fundamentada ou não.
para a gestão sustentável desse patrimônio. Nem todos os projetos coletivos ou
Nenhuma estratégia de combate à pobreza comunitários são igualitários nem neces-
funcionará profundamente se as políticas de sariamente constroem igualdade. Às vezes,
desenvolvimento não incluírem a dimensão operam a partir de arquiteturas nas quais a
cultural, sem uma discussão da comunidade colonialidade, a desigualdade e a explora-
sobre o que fazer com o patrimônio cultural ção dos recursos artísticos e culturais são
imaterial e material. reforçadas. É por isso que, nessa busca pelo
desenvolvimento humano sustentável, é im-
Desenvolvimento sustentável, portante distinguir as formas que o próprio
diversidade e economias capitalismo cria para comercializar as ex-
colaborativas periências comunitárias e privá-las de seu
As formas de colaboração culturais e ar- sentido transformador, seja para distinguir
tísticas atuais incluem entre seus compo- onde o próprio projeto de um povo, grupo
nentes mais desejáveis o ou coletivo afeta as bases
compromisso, a solidarie- Nenhuma estratégia ambientais, seja de outro
dade, a troca e a vontade de combate à pobreza tipo. O mercado do “comu-
de produzir e compartilhar funcionará profundamente nitário” fornece também
conhecimento de forma se as políticas de versões pouco sustentá-
colaborativa. Essa visão desenvolvimento não veis d
​​ e experiências nasci-
é, até certo ponto, alheia a incluírem a dimensão das em esferas populares,
uma versão individualista cultural, sem uma discussão incluindo a expropriação
e pensada a partir do cria- da comunidade sobre o transnacional ou nacio-
dor que baseia o sucesso que fazer com o patrimônio nal. Os processos de gen-
em sua entrada no mains- cultural imaterial e material. trificação, amparados pela
tream e nos mercados nos bandeira da “recuperação
quais se desenvolve. Mesmo os criadores urbana” ou da busca de viabilidade econô-
“bem-sucedidos”, no sentido do mercado mica, colocam-nos diante de novos alertas.
da arte, buscam experiências criativas que Nesse sentido, surgem iniciativas cidadãs
lhes permitam novas formas de conexão, ou empresariais que, a partir do “comunitá-
mobilidade, troca e diálogo. rio”, estabelecem mecanismos de comércio
142 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

alheios ao bem comum ou a um espaço de Lucina Jiménez


rentabilidade política pouco relacionada Especialista em cultura da Agenda 21 e da
com os próprios processos. rede mundial Cidades e Governos Locais Unidos
Esse é um campo que requer mais (CGLU), também é consultora internacional em
análise. No momento, não posso deixar políticas culturais e desenvolvimento sustentável,
de mencionar que o capitalismo verde e educação artística, cultura de paz, direitos culturais,
outras tendências similares estão encon- diálogo intercultural e gestão cultural, com atuação
trando novas formas de fazer negócios dis- nos setores público, privado e civil.
farçadas de sustentabilidade, mesmo que
passem por cima dos recursos bioculturais
de diversas populações.
O dogmatismo nesse campo não é um
bom conselheiro. Hoje, a abertura do pen-
samento e da criatividade para as formas de
gestão em um mundo onde a diversidade é
ampla permite a colaboração entre sistemas
de intercâmbio e entre sistemas tradicionais
ou não de economia de escala. Nesse sentido,
é importante destacar que a gestão da multi-
plicidade de diversidades não descarta qual-
quer forma de gestão dos recursos culturais,
mas exige esquemas de complementaridade.
O grande desafio da Agenda 2030 é re-
conhecer o papel da cultura em cada um dos
17 objetivos, para além do que foi propria-
mente formulado em relação ao patrimônio
cultural, e principalmente entender que a
gestão territorial e global dos processos de
desenvolvimento requer um componente li-
bertador da criatividade cultural das pessoas,
dos povos e das comunidades criativas.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Lucina Jiménez 143

Nota

1 O criollismo foi um movimento surgido no final do século XIX fortemente


influenciado pela relativa e recente independência das nações da América sob o
domínio da Espanha.

Referências

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práctica para la acción local, 2018. Disponível em: <http://www.agenda21culture.
net/sites/default/files/culturaods_web_es.pdf>. Acesso em: 4 dez. 2018.

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una perspectiva global. Espanha: Profit Editorial, 2013.

JIMÉNEZ, Lucina. Política y derechos culturales, hacia una nueva configuración. In:
CNDH, UNESCO, SEGOB. Derechos culturales y derechos humanos. México, 2018,
p. 79-84.

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TOLILA, Paul. Cultura e economia: problemas, hipóteses, pistas. 2007. Tradução


de Celso M. Paciornik. São Paulo: Itaú Cultural, 2007.

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<http://portal.unesco.org/es/ev.php-URL_ID=13179&URL_DO=DO_TOPIC&URL_
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expresiones culturales, 2005. Disponível em: <http://www.unesco.org/new/
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creativity/global-report-2018>. Acesso em: 17 jan. 2019.
144 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 145

É A DEMOCRACIA, ESTÚPIDO1
Marta Porto

Com a retomada da liberdade de expressão e do respeito aos direitos civis, os movimentos


culturais ganham forma e dão voz àqueles que pretendem ter um país mais democrático
e menos desigual. Há, porém, equívocos, como o que mantém a política cultural escorada
em leis de incentivo voltadas apenas para a produção e não para o processo da educação
artística. A falta de uma visão sistêmica implica a ausência da cultura como viga para
melhores cenários para o jovem brasileiro. Essas discussões fazem parte deste artigo,
assim como novas formulações de políticas culturais. E a autora ainda deixa uma per-
gunta no ar: “Cultura importa?”.

A institucionalidade não
entregou o prometido

S
empre acreditei que optar por tra- lugar onde moram as visões plurais de fu-
balhar com arte e cultura é algo turo, os conflitos e os consensos possíveis
que carrega uma crença. Da exis- que cada sociedade, a cada tempo, é capaz
tência de um lado mágico-transcendente de eleger para seguir em frente.
no percurso da vida, fruto da ideia de que Confiança, ética e compaixão são va-
homens e mulheres imaginam, criam, in- lores centrais na formação de uma cultura
ventam, e não estão fadados à repetição de cidadã que cimenta uma perspectiva de
um cotidiano já traçado. É uma crença que desenvolvimento humano capaz de colocar
nasce da paixão pela liberdade, e que não no centro o bem-estar dos indivíduos, seus
se dissocia nunca daqueles que trabalham direitos, suas oportunidades e seus desafios.
pela “ordem cultural”, assumindo o lado É esse desenvolvimento que deveria impor-
conservador do sistema como profissão tar àqueles que refletem e operam a partir
de fé. Creio – ótima palavra para tradu- da cultura ou de pressupostos culturais, e é
zir este sentido – que o valor da liberdade dele que irei me ocupar neste artigo.
está sempre presente em quem verdadeira- A década de 1980, quando vivi o início
mente opta por trabalhar pelas artes e pelo da juventude, é aquela em que o Brasil ama-
pensamento crítico. Um valor indissociá- nhece na esperança do retorno à democracia
vel para articular a relação entre cultura e e por eleições diretas, vivendo a expectativa
desenvolvimento, posto que a cultura é o de receber aqueles que estão no exílio e lutam
146 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

para retornar ao seu país para reinventá-lo. cultural, em que as manifestações popula-
As ruas assistem ao retorno das multidões res, indígenas e afro-brasileiras ganham,
que pedem por liberdade e respeito aos di- enfim, proteção legal e representatividade
retos civis e democráticos. No palco dessa institucional.
luta, os movimentos culturais e artísticos dão Antes disso, em 1984, Ouro Preto e
forma, espírito e narrativa aos protestos que Belo Horizonte realizam o Encontro Na-
se travam nas arenas políticas nacionais e cional de Política Cultural, “para reforçar
internacionais. São tempos de luta, nutridos a participação do povo nas decisões e nos
por valores como liberdade e democracia. objetivos de uma autêntica política cultu-
Nossa tribo são os artistas, os filósofos, os ral. […] e abrir os caminhos interrompidos
movimentos culturais de base e das igrejas por vinte anos de bloqueios autoritários”
progressistas que unem fileiras por direi- (OLIVEIRA, 1985).2 Iniciativa do Fórum
tos, liberdade de expressão e a favor da vida Nacional de Secretários e Dirigentes Esta-
e da igualdade de oportunidades. Da cena duais de Cultura, o encontro tinha como ob-
aguerrida da minha Porto Alegre natal, co- jetivo debater problemas e propostas para
necto-me com esse espírito que vê nas artes consolidar uma política cultural nacional,
a encarnação da vida livre, da cena desnuda conectada com o espírito de democrati-
e carnal que revela uma utopia desejada por zação do país. Estavam presentes nomes
um país democrático e menos desigual, em como Darcy Ribeiro, José Mindlin, Leonel
que desenvolvimento é sinônimo de justiça Kaz, Ferreira Gullar, Paulo Sérgio Pinheiro,
econômica e atenção às questões relaciona- Cláudio Abramo, Millôr Fernandes, Henfil,
das ao cotidiano dos cidadãos. Maria do Carmo Nabuco, Marcos Terena,
Os debates sobre a nova Constitui- Abdias Nascimento, Fernanda Montenegro,
ção Brasileira, aquela chamada depois de Ruth Escobar, Cecília Conde, Celso Fur-
Constituição Cidadã de 1988, que domi- tado, Eliana Yunes, Walter Zanini, Paulo
nam os encontros em cafés, bares e salas de Herkenhoff e mais uma dezena de políticos,
aula, inundam o país de esperança em um intelectuais e artistas. É um momento de
porvir no qual desenvolvimento é sinôni- celebração pela lenta, mas certa, retoma-
mo de cidadania e não apenas de progresso da da democracia no país após 20 anos de
econômico ou crescimento do PIB. A As- ditadura militar. Os anais desse encontro,
sembleia Nacional Constituinte mobiliza posteriormente publicados pela Secretaria
uma parte significativa da sociedade brasi- de Estado de Cultura de Minas Gerais, cujo
leira, e os temas da cultura, do patrimônio secretário era o futuro ministro da Cultura,
cultural e da memória são tratados em âm- José Aparecido de Oliveira, mostram um
bito constitucional nos artigos 215 e 216. O projeto ambicioso para a política cultural
reconhecimento da dimensão imaterial do brasileira, profundamente democrático em
patrimônio cultural, defendido em ambos seus princípios, amplo na busca de repre-
os artigos, é um avanço na luta democrá- sentatividade das várias matrizes culturais
tica amalgamado na noção de democracia brasileiras, preocupado com a educação
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 147

cultural e a formação técnica e artística, e A ausência de relevância no debate


um tanto ingênuo nas alternativas deba- nacional das artes e da cultura, porém, a
tidas de como financiar esse processo e partir dessa nova institucionalidade sobre
garantir sua estabilidade. os caminhos para o desenvolvimento so-
Um ano depois, quando o Ministério ciocultural, precariza a própria configu-
da Cultura (MinC) é criado por decreto ração institucional implantada em 1985.
(n 91.144, de 15 de março de 1985) por José O Ministério da Cultura e o ecossistema
Sarney, a fragilidade do último tópico sobre cultural edificado a partir dele, ou reminis-
a política cultural brasileira, o do finan- cente da década de 1970, não contribuem
ciamento e fomento às artes e à cultura, efetivamente para os grandes temas nacio-
ganha materialidade com uma estrutura nais que postulam o desenvolvimento do
sem recursos próprios, mas amparada em país: educação, comunicação, economia,
uma lei de incentivos que ganha o nome cidadania participativa e valores demo-
do titular da presidência, Lei Sarney. Os cráticos. Seu ecossistema se volta quase
anos posteriores vão mostrar o equívoco de que exclusivamente para ser um entrepos-
sustentar a política cultural do país em um to de projetos isolados, os mais diversos e
instrumento de marketing cultural voltado muitas vezes alheios à realidade nacional
unicamente para a produção, alienado da e às inquietações da sociedade, com pou-
ideia das artes como processo independen- co espaço para a produção de pensamento
te de institucionalidades e contrapartidas crítico independente e para a criação mais
e da cultura como pilar do desenvolvimen- experimental das artes, dos artistas e dos
to democrático. Há equívocos conceituais intelectuais como parte essencial dessa
também que se desdobram em equívocos visão de desenvolvimento que se inicia
de governança, como os que vinculam artes com a retomada da democracia. A institu-
e cultura em um mesmo cabide teórico e cionalidade pós-MinC e seu arcabouço de
de gestão, forçando soluções de fomento governança escondem o espírito do debate
genéricas, como o uso indiscriminado das cultural que lhes deu origem.
leis de incentivo para todo tipo de deman- Voltando ao tema inicial, a pedra angular
da e setores, mesmo aqueles que exigiriam que rege o espírito das artes e da cultura no
um olhar mais atento, como os da educa- Brasil da década de 1980 é elaborada a partir
ção artística e das artes ou de ampliação desse marco da luta pela democracia e pe-
das condições de acesso para a maioria da los direitos civis e políticos, assim como por
população brasileira. As instituições re- uma representatividade popular que amplia
velam uma fragilidade evidente para aten- a dimensão simbólica do desenvolvimento.
der às novas demandas culturais de uma Uma promessa validada pelos movimentos
sociedade revigorada diante da abertura comunitários de base e pelos movimentos de
política. O tema da democracia como eixo jovens, em especial das periferias urbanas,
do desenvolvimento cultural nem sequer que eclodem no início dos 1990 por intermé-
é mencionado. dio da música e do teatro, reivindicando um
148 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

novo espaço de visibilidade e de luta simbóli- as artes de forma transversal. É o primeiro


ca. É essa pedra angular que o Ministério da PPA que faz uma análise mais aprofundada
Cultura, edificado sobre um modelo de finan- da realidade brasileira, de sua vergonhosa de-
ciamento público-privado a projetos, ignora. sigualdade econômica, social e regional, do
O custo disso para o legado da cultura e sua avanço da violência urbana e dos desafios para
contribuição para o desenvolvimento brasilei- o crescimento econômico, o meio ambiente e
ro será sentido ao longo das décadas que virão. a cooperação internacional para o país criar
A título de exemplo, analisando as versões de condições estáveis de um desenvolvimento
2001 para cá da principal ferramenta de pla- sustentável progressivo. O crescimento eco-
nejamento de médio prazo da administração nômico associado a uma melhor distribuição
federal, o Plano Plurianual3 (PPA), fica claro de renda da população brasileira registrado no
que a cultura é tratada de forma marginal nas ciclo anterior (2004-2007) abre espaço para
metas prioritárias dos sucessivos governos a proposta de um novo ciclo, em que educa-
desde 1998, quando o PPA foi instituído por lei ção de qualidade (PDE) e investimentos pú-
pelo governo Fernando Henri- blicos em infraestrutura
que Cardoso. A cultura é men- Analisando as versões de e logística (PAC) sejam
cionada como meio para as 2001 para cá da principal priorizados pela adminis-
políticas sociais voltadas para ferramenta de planejamento tração pública, mantendo
os mais vulneráveis ou, de for- de médio prazo da as metas de inflação bai-
ma genérica, como elemento a administração federal, o xa, o aumento da produ-
ser valorizado na luta contra Plano Plurianual (PPA), fica tividade e o crescimento
a discriminação racial ou em claro que a cultura é tratada econômico progressivo. O
prol da “diversidade das ex- de forma marginal nas metas sistema cultural não é efi-
pressões culturais nacionais e prioritárias dos sucessivos caz em responder a esses
regionais” (2004-2007). A pa- governos desde 1998. avanços no planejamento
lavra “valorização” é utilizada público do Estado brasilei-
em quase a totalidade das diretrizes voltadas ro, mostrando uma incapacidade técnica de
para a cultura, fazendo um contraponto com dialogar com as macroestratégias de desen-
as palavras “garantir”, “implementar”, “am- volvimento do país e tangenciando suas dire-
pliar”, “impulsionar” e “alcançar” presentes trizes mais como ato de retórica do que como
nas metas relacionadas a ações objetivas ação objetiva a ser conquistada pelos ciclos
propostas em cada megaobjetivo traçado pela governamentais a cada quatro anos. A adoção
administração federal. O PPA 2008-2011, in- de um modelo de apoio a projetos isolados, da
titulado Desenvolvimento com Inclusão So- produção de ideias a produtos culturais sem
cial e Educação de Qualidade, que dá ênfase visão sistêmica, responde em grande parte por
ao Plano de Desenvolvimento da Educação essa ausência da cultura como eixo da cons-
(PDE) e ao Programa de Aceleração do Cres- trução de uma cidadania sociocultural demo-
cimento (PAC), em nenhum de seus dez ma- crática e vibrante, ou das artes e das indústrias
cro-objetivos nem mesmo cita a cultura ou culturais como pilar da inovação econômica,
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 149

da cooperação internacional e da ampliação nos programas de desenvolvimento. Ao se


das oportunidades de trabalho e renda para os analisar o quadro de dispêndios do Governo
jovens brasileiros. Mesmo com gestões mais Federal para o ciclo 2008-2011, a cultura e
valorizadas e com recursos em caixa maiores, o esporte são os setores com menor orça-
como na era Lula, com Gilberto Gil à frente mento, respectivamente R$ 4.042,97 e R$
do MinC, o planejamento das prioridades da 1.213,82.4 Para fazer um paralelo, os setores
administração pública não integra a cultura de direitos de cidadania (R$ 6.694,71), comu-
aos esforços de desenvolvimento do país. Os nicações (R$ 7.879,23) e relações exteriores
clichês de “valorização da diversidade cultural (R$ 7.664,07) são alguns dos últimos coloca-
brasileira” e “do acesso ao patrimônio cultu- dos no quadro de dispêndios alocados para o
ral do Brasil” são a tônica PPA 2008-2011, ainda as-
que se repete a cada ciclo A adoção de um modelo de apoio sim em posição superior
do planejamento gover- a projetos isolados, da produção à da cultura. Nos dados
namental. Considerando de ideias a produtos culturais agregados, o orçamen-
que o PPA é o instrumen- sem visão sistêmica, responde em to destinado à cultura
to que, ao definir priori- grande parte por essa ausência da aparece alocado com o
dades físicas e metas cultura como eixo da construção da educação, destinado
tangíveis, também aloca de uma cidadania sociocultural à implantação de 1.085
os recursos orçamen- democrática e vibrante, ou Pontos de Cultura, ação
tários necessários para das artes e das indústrias sem convergência com
implementá-las, temos culturais como pilar da inovação as metas do PDE de me-
um fato político-admi- econômica, da cooperação lhoria da qualidade da
nistrativo indiscutível: a internacional e da ampliação educação básica e am-
cultura não está presente das oportunidades de trabalho e pliação da rede de ensi-
nas diretrizes de desen- renda para os jovens brasileiros. no profissionalizante no
volvimento do Brasil, país. O apoio aos Pontos
nem na agenda econômica nem na agenda de Cultura foi a meta mais articulada que o
social, ambas incansavelmente citadas por MinC conseguiu apresentar no diálogo com
instituições e gestores culturais em suas de- as macroestratégias do governo brasileiro
fesas públicas da relevância da cultura para o para o ciclo de planejamento da administra-
desenvolvimento do país. ção federal. Em que pese a importância des-
A cultura (as artes não são mencio- se programa, ele jamais se consolidou como
nadas) faz parte do discurso abstrato dos uma estratégia desenhada para contribuir na
sucessivos governos, presente como ideia agenda de desenvolvimento do país. Os crité-
genérica de algo a ser respeitado e mencio- rios de seleção e análise e os indicadores de
nado ou como potencial longínquo, como resultados provam que os Pontos de Cultura
quando se fala da importância da economia foram mais um programa de fortalecimento
da cultura ou da economia criativa para o de iniciativas culturais plurais, respondendo
PIB do país, mas não ganha materialidade ao chamado de “valorização da diversidade
150 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

das expressões culturais e regionais bra- gerais do Estado brasileiro a política cultural
sileiras”, do que uma ação orientada para se organiza, se estrutura e avança?
identificar e elaborar políticas de inovação, São muitos os governos que irão pro-
empreendedorismo ou mesmo de promo- por o fim do MinC, de Collor a Jair Bolso-
ção de valores democráticos que pudessem naro. “Para que MinC?” é a questão que
servir de orientação para políticas voltadas vai e volta a cada crise e “enxugamento”
para as artes, a infância e a juventude5 e a da máquina pública. São muitas as razões,
gestão do patrimônio material e imaterial. algumas históricas e de formação política
O simples apoio às demandas de grupos e das elites que comandam os acórdãos do
aos setores culturais mais ou menos popu- país, mas não é difícil fazer o mea-culpa.
lares, sem a tarefa de elaborar macropolíticas Quando iremos começar?
para o Estado brasileiro, a partir dessa expe- Em resumo, o Brasil, no campo das po-
riência, capazes de dialogar com a matriz de líticas culturais, vai ser incapaz de elaborar
desenvolvimento, provocando reinvenções, macropolíticas que integrem ou renovem a
contrapontos e ideias diferentes, renovan- visão de desenvolvimento em uma sociedade
do a dinâmica da agenda socioeconômica a extremamente desigual e violenta. Vai tingir
partir da noção de cidadania cultural, legou essas políticas com expressões e programas
a esse e a outros programas culturais realiza- vagos, todos sob a alcunha “apoio a” uma
dos nesse grande ciclo democrático um papel ideia também vaga de desenvolvimento, e, o
marginal na agenda de desenvolvimento do principal, renunciar a uma agenda própria
país. A menção ao PPA é um recorte limitado que não se apegue a casuísmos econômicos
para oferecer uma análise mais aprofundada e sociais, na qual as artes e a literatura são
de como a administração federal, nos suces- importantes como ato e processo de criação
sivos governos desde 2001, trata a questão da livres e autorais, frutos da complexidade do
cultura nas diretrizes de desenvolvimento espírito humano que expressam, a cada tem-
– mas é básica e deve ser feita. As estraté- po, lugar e espaço, um etos próprio de país e
gias, as diretrizes, os objetivos e a alocação que dialogam com o mundo a partir dele. Não
especial de recursos que esse instrumento há nenhuma grande nação capaz de abrir
integra fazem parte de uma visão e de um mão de sua engenhosidade artística, seu pa-
acordo nacional sobre como caminhar para trimônio e sua memória culturais, de estar
alcançar o tão almejado desenvolvimento na vanguarda da produção de pensamento
sustentável. E o que ele mostra é uma disso- crítico e de experimentações de linguagens,
nância entre o pacto federativo firmado pe- gestos, sons e cores organizados por um ecos-
las administrações federais e a retórica dos sistema artístico-cultural potente. Em boa
agentes culturais nas principais agendas que parte, tais ações não implicam a geração de
elegeu para afirmar: cultura importa. A per- indicadores de economia criativa ou a pro-
gunta que fica é: a partir de que vetores estra- moção de contrapartidas sociais. É bom que
tégicos, de quais metas e diretrizes e de que seja assim. As artes, mais do que a cultura,
potencial de representação nas estratégias voltada para construir uma cidadania ativa
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 151

e provocar valores culturais, são a garantia criança, jovem e adulto valores que sustentam
de um desenvolvimento com alma, inspi- uma base comum de relação, que permite or-
rado e inspirador da criação humana livre, ganizar uma dimensão subjetivo-pessoal em
representação simbólica da pluralidade de que ameaça, medo e raiva não sejam os prin-
cada nação. É essa dimensão esquecida do cipais motores para a atitude social.
desenvolvimento que quero tratar na segun- Lourdes Arizpe já nos alertava, no In-
da parte deste artigo. forme Mundial sobre a Cultura 2000-2001
Chego aqui ao ponto que me interessa – Diversidade Cultural, Conflito e Pluralis-
mais. Discutir o presente e o futuro, com mo –, que a noção de diversidade não era
algumas ideias que parecem perdidas ou suficiente como categoria para orientar
fora de foco, joga luz em um terreno mi- políticas de enfrentamento aos conflitos
nado pela domesticação dos sentidos e culturais crescentes:
das “saídas de gestão” propostas até hoje.
O campo do imaginá- “Se a diversidade cultural é
rio cultural é que molda Talvez tenhamos passado uma manifestação irreprimí-
nossas visões de mundo, tempo demais ressaltando vel da criatividade do espírito
comportamentos sociais, nossas diferenças culturais humano, a criação das diferen-
rivalidades e conflitos na e falado pouco sobre aquele ças é igualmente inexorável, e
cena pública, e, por que substrato das coisas que não se deve tratar de apagá-la
não, a ideia de um futu- organiza um etos comum de ou reprimi-la. No entanto, o
ro comum baseado em convivência, voltado para a modo como tais diferenças
consensos pactuados, a valorização de uma abertura são definidas e manejadas pe-
esperança de edificar um para o encontro, o diálogo los governos e os costumes da
mundo comum. São ela- e a curiosidade. sociedade determinam se essa
borações que não tratam condução vai levar a uma maior
apenas do Brasil, mas se revelam pontos criatividade social ou a violência e a exclusão”
de reflexão para o debate atual de cultura (ARIZPE, 2002).
e desenvolvimento.
Vamos a elas. De lá para cá, extremismos cresceram, mais
Talvez tenhamos passado tempo de- muros foram erguidos, fronteiras foram
mais ressaltando nossas diferenças cultu- fechadas e o “outro” foi definido por dife-
rais e falado pouco sobre aquele substrato renças religiosas, cor de pele, origem social
das coisas que organiza um etos comum de ou econômica e lugar de nascença, alça-
convivência, voltado para a valorização de do à estranha posição de ameaça global. O
uma abertura para o encontro, o diálogo e a campo da diversidade cultural, étnica e re-
curiosidade. ligiosa se tornou o espaço privilegiado das
Aquela ação orientada para um aprendi- guerras culturais, da polarização simbólica,
zado que leva a um exercício prático e diário do ódio manifesto nas redes sociais e nas
de alteridade, que cimenta em cada indivíduo, ruas das grandes cidades do mundo. Novas
152 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

vulnerabilidades surgem de ordem simbóli- noções e crenças diferentes das que nos re-
ca, em que uma massa imensa de pessoas é gem hoje. Isso não é uma utopia, e sim mera
incapaz de reagir a estéticas que considera imitação de momentos-chave da história
agressivas e que percebe como algo que de- das civilizações em que homens e mulhe-
sorganiza o mundo tal qual o conhecia até res se perguntaram se aquela ordem à qual
então sem dar respostas aos problemas co- estavam submetidos era a adequada diante
tidianos que vivencia e resiste. das mudanças em curso. São as rupturas ne-
Combinado a esse cenário, que mistura cessárias para seguir em frente.
xenofobia com traços místico-religiosos e É o principal desafio das políticas cul-
ódio crescente, para além das reivindica- turais nos próximos anos.
ções e aspirações dos mais pobres, temos Todo esse mal-estar com o estado das
o aumento da desigualdade econômica e coisas pede aos que se dedicam às ciências
da concentração de renda, que se traduz humanas, aos estudos culturais e à formu-
em menos oportunidades de acesso a uma lação de políticas nesse campo que inovem.
educação de qualidade, às inovações trazi- Inovem investigando novas formas de pes-
das pela ciência, às novas tecnologias e a quisa, de categorias de análise, de formulação
conhecimento cultural. de indicadores e de referencial teórico para
Reside aí um caldo de inconformismo abordar o tema do desenvolvimento. Preci-
e revolta, aliado a uma crise nas formas de samos criar, sair da nossa zona de conforto
representação democrática, ao crescimento e arriscar mais. É o momento de orientar o
de rivalidades morais e à ampliação de con- nosso ecossistema de trabalho para três ei-
servadorismos que agem contra as liberda- xos centrais: democracia, sustentabilidade e
des individuais. liberdade incondicional para as artes e para
Há que se perguntar: em um mundo os artistas.
que se torna mais desigual a cada ano, como Sigo com estas três ideias, centralizan-
promover valores de prosperidade compar- do o que considero que possa ser a contribui-
tilhada, solidariedade, cooperação e mobi- ção maior das políticas culturais:
lidade? E como desenvolver e apoiar usinas
de inteligência que proponham soluções, • sobre a democracia: colaborar
ideias e imagens cujo propósito seja pro- para estimular o desenvolvimento
mover valores culturais plurais, inovações de um novo ecossistema para as ar-
em processos de aprendizagem, conteúdos tes e as culturas, integrando espaços
e linguagens para a comunicação de massa culturais, startups de empreende-
(publicidade, entretenimento, notícias) e dorismo, programas de estudos, de
novas plataformas de mídia (aplicativos, curadorias e para formação artísti-
jogos, internet), que funcionem como um ca, pesquisas científicas e centros
manifesto, uma declaração sistêmica que de ciências, que funcionem como
crie novas possibilidades de nos conectar- um laboratório e um consórcio de
mos uns com os outros e estabelecermos ideias para pesquisar e desenvolver
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 153

projetos, plataformas, arquiteturas, apresentada pela Agenda 21 durante


produtos editoriais e audiovisuais, a Rio+20, tem hoje relevância dian-
cujo único propósito é criar novas te de uma crescente resistência de
declarações de mundo, comunicar governos em cumprir os pactos já
valores que sustentem imagens de firmados. Mas é preciso se pactuar
criação, inovação, empatia e solida- também metas internas para o siste-
riedade. Que proponham formas de ma cultural, que considerem os itens
aprendizagens simbólicas, incenti- acima destacados: comprometer-se
vem a formação de subjetividades com os resíduos deixados por gran-
capazes de tornar as decisões futu- des eventos e equipamentos cultu-
ras mais benéficas para os 99% que rais, práticas que combatam o aque-
ainda esperam por fazer valer a sua cimento global e reduzam a emissão
trajetória humana na Terra. E que de CO 2, que diminuam o uso de
ampliem de maneira orientada os có- materiais poluentes e outras tantas
digos com que pessoas comuns con- ações já definidas nas Conferências
tam para imaginar outras realidades das Partes (COPs), na Agenda 2030
possíveis – culturais, sociais e econô- e nos acordos ambientais firmados
micas. Um laboratório global de coo- entre os países signatários;
peração em que ideias de invenção e • sobre a urgência de defender a
participação, representação e valores liberdade artística como pilar
sejam desenvolvidas à luz dos novos dos direitos culturais: defen-
desafios e dilemas que a disrupção der e apoiar a liberdade artística
com o atual sistema nos coloca. Um de forma incondicional, com sua
laboratório da imaginação para uma diversidade e suas maneiras trans-
nova ordem democrática preocupado gressoras e disruptivas de agir no
em gerar novos imaginários sociais e mundo contra qualquer oposição,
conectar pessoas e conhecimentos; censura e autocensura institucional
• acerca da sustentabilidade: qual perpetrada por museus, fundações,
a nossa contribuição para os debates institutos e centros culturais por
travados, desde o final da década de meio de suas direções e conselhos
1980, sobre desenvolvimento susten- curadores e de administração, ou
tável, mudanças climáticas, aqueci- as de ordem popular e religiosa que
mento global e consumo sustentável acabem impedindo mostras, expo-
e responsável? E como o sistema sições, peças, espetáculos teatrais
cultural vem ou não se comprome- e performances por meio judicial
tendo com as metas pactuadas na e pressão midiática. É preciso dar
comunidade internacional? A ideia respostas firmes à censura, ao co-
de um triple bottom line que ganhe modismo e à submissão a que as ar-
uma quarta dimensão, a cultural, tes estão subjugadas, em especial
154 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

em países em desenvolvimento – Hoje, diante dos impasses colocados


mas não somente. Apoiar artistas, pela onda conservadora e extremista a que
poetas, escritores, criadores perse- o mundo assiste, e neste momento que o
guidos ou sem apoio institucional Brasil em especial está vivendo, sinto que
para desenvolver sua arte, artistas precisamos imprimir um caráter de urgên-
novos, artistas estabelecidos, ama- cia à reinvenção das crenças culturais que
dores ou profissionais em nível glo- moldam o mundo neste cenário de senti-
bal. Resistir legalmente às formas mentos distópicos.
de censura institucional e legais. É Essa é a agenda, sob pena de as polí-
urgente institucionalizar a liber- ticas culturais e todo o arcabouço que as
dade das artes como um pilar da sustenta, como a pluralidade e os direitos
democracia política. Sem isso, não culturais, se tornarem cada vez mais irre-
haverá democracia cultural e am- levantes para o cidadão comum. E massa
biente favorável à experimentação de manobra para projetos políticos masca-
artística. As agências de fomento e rados sob o título de “cidadania” servirem a
de cooperação há muito já deveriam ideologias de extrema direita ou de extrema
ter se ocupado de criar programas esquerda que reduzem as vozes das mino-
de apoio com um grau de risco mais rias e das maiorias sem voz à marginaliza-
elevado, seguindo as agências de ção e à anomalia social.
fomento científico e tecnológico. Pela terceira vez desde que o Brasil re-
Arriscar-se em linguagens desco- tomou seu processo democrático, o MinC é
nhecidas, em curadorias degene- extinto (Fernando Collor, 1990; Michel Te-
radas, em formatos de criação que mer, 2016; Jair Bolsonaro, 2019) sem debate
provoquem choque e resistência. público, por mero ato de liberalidade do poder
Pergunto se é possível investir em governamental. E, desta vez, com uma estra-
massa em criações estéticas livres, nha junção com desenvolvimento social e
em pensamentos criativos que le- esporte, relegando a ideia que se tem do valor
vantem novas ideias, valores, lin- das artes e da cultura no país a uma função de
guagens e propostas, com a única mediadora de projetos sociais e de redução do
finalidade de perpetuar os signifi- tempo livre dos jovens. Quero sublinhar que
cados da criação humana, para algo esse discurso, agora oficializado pelo governo
sem função evidente, a não ser, lem- Bolsonaro, foi construído pelos próprios agen-
brando o poeta Paul Valéry, garantir tes culturais, que transitaram entre justificati-
que a poesia permaneça viva como vas como “cultura é um bom negócio” – slogan
um estatuto espiritual da passagem do governo FHC durante o longo período de
do homem pela Terra. E criar siste- Francisco Weffort (1995-2002) – e “cultura
mas globais concretos para proteger como mediadora de conflitos e remédio para
aqueles que são perseguidos ou vi- as mazelas sociais”, dos anos Lula e Dilma
vem em áreas ou situações de risco. (2003-2015). Parece simplista concluir anos
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 155

de gestões na cultura com dois aforismas, mas sociedade de memória escravagista que precisa
é certo dizer que o discurso ora econômico-li- se reinventar simbolicamente para ser civili-
beral, ora social-assistencial, com exigências zação e prosperidade igualitária. Uma institu-
de contrapartidas de marketing ou sociais, cionalidade capaz de interagir com elementos
tornou a agenda cultural um penduricalho potentes para colaborar com o diálogo constan-
de projetos cheios de boas ou más intenções, te com a comunidade internacional. Um debate
que dialogaram pouco com a massa da socie- aberto à experimentação, à criação artística in-
dade brasileira, em boa parte alheia a essas dependente, à antropofagia cultural oferecida
discussões. Relegadas ao campo da cidadania nos anos 1920 por Oswald de Andrade.
de mais baixa densidade, aquele que promove É hora também de escutar as ruas, não
a rede de proteção aos mais vulneráveis, mas só os movimentos sociais organizados, mas
que é incapaz de promover oportunidades de o cidadão comum, aquele que vive a vida nas
mobilidade social e participação ativa na vida grandes e nas pequenas cidades, com suas
política e econômica do mazelas e seus dissabo-
país, a cultura e as artes Relegadas ao campo da cidadania res cotidianos. É neces-
deixarão, por fim, o palco de mais baixa densidade, sário voltar aos livros, ao
institucionalizado das aquele que promove a rede de estudo e ao pensamento
lutas cidadãs, conquis- proteção aos mais vulneráveis, crítico, e reconhecer a
tado desde os anos 1980, mas que é incapaz de promover nossa memória de avan-
para entrar nas sombras oportunidades de mobilidade ços e fracassos. Mais do
da moral e do civismo e social e participação ativa na vida que nunca, é preciso ter
do nosso subdesenvolvi- política e econômica do país, a coragem de ousar.
mento intelectual que o cultura e as artes deixarão, por É essa a dimensão
Estado brasileiro acaba fim, o palco institucionalizado das central da contribuição
de legitimar. lutas cidadãs, conquistado desde da cultura e das políticas
Se há saídas, elas os anos 1980, para entrar nas que a conformam para o
estão fora de campanhas sombras da moral e do civismo desenvolvimento, am-
como “Fica, MinC”. É e do nosso subdesenvolvimento pliando as oportunidades
preciso voltar ao debate intelectual que o Estado brasileiro simbólicas de milhões de
mais profundo que reco- acaba de legitimar. cidadãos à espera de se
loca a pergunta: “Cultura inserir em um mundo
importa?”. Reinventar as noções que usamos que rejeita seus valores, seus códigos sociais
para refletir sobre os tempos que vivemos e e seu jeito comum de atuar na vida pública. É
elaborar novos processos políticos e de gestão o cimento da democracia, feita quando gen-
que façam sentido não só para produtores e te comum é reconhecida como cidadão e os
instituições, mas para artistas, intelectuais e artistas, os inventores e os criadores como
o povo brasileiro. Esse que merece ser trata- aqueles capazes de reinventar o espírito de
do não como público ou audiência, mas como cada tempo histórico, seus valores e as ima-
etos social, carne e espírito encarnados em uma gens que irão inspirar o futuro.
156 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Marta Porto
Jornalista e ativista cultural, atua como editora, ensaísta, curadora e consultora
de espaços, festivais e projetos artístico-culturais e de comunicação que experimentam
linguagens e associações de ideias para promover experiências que alterem códigos e
visões de mundo. Liderou projetos experimentais em espaços como escolas, museus,
bibliotecas, centros comunitários, prisões, plataformas digitais e em grandes eventos
internacionais, como Rio+20, Barcelona 2004, Objeto Urbano e Mostra Internacional
Arte sem Fronteiras, além de ter sido responsável por laboratórios, programas de
formação, coleções e séries editoriais, filmes, publicidade social e projetos de imersão,
todos voltados para discutir a relação entre arte, política, comunicação e imaginário
social. Como conferencista, tem participado das principais arenas internacionais de
debates sobre artes, cultura e políticas culturais. É autora de mais de 40 artigos e
ensaios de crítica cultural, políticas de cultura e comunicação, publicados em revistas
e coletâneas de vários países. Escreveu os livros Nós do Morro – 20 Anos, Olhares
Femininos, Mulheres Brasileiras, Comunicação no Centro da Mudança, Aids e Teatro
– 15 Dramaturgias de Prevenção e Juventude, Cultura e Cidadania. Recentemente,
organizou e editou a Revista Observatório Itaú Cultural 24 – Arte, Cultura e Educação
na América Latina.

Notas

1 Inspirado no slogan não oficial ditado por James Carville para a campanha
eleitoral de Bill Clinton em 1992, contra George Bush.

2 OLIVEIRA, José Aparecido. I Encontro Nacional de Política Cultural; sessões de


debates. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura, Imprensa Oficial, 1985.

3 O Plano Plurianual (PPA), criado em 1998 pelo governo FHC, é o principal


instrumento de planejamento previsto no artigo 165 da Constituição Federal
Brasileira, que estabelece as principais diretrizes, objetivos e metas da
administração pública federal. “O projeto de desenvolvimento consolidado no
PPA busca conciliar o crescimento econômico com a inclusão social.” Fonte:
<dados.gov.br/group/plano-plurianual>.

4 Recursos alocados em milhões de reais para o cumprimento das metas do PPA


2008-2011. Fonte: Ministério da Economia, Governo Federal.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 157

5 Sobre esse tema, publiquei artigos e entrevistas nos principais veículos de


comunicação do país desde 2011, a partir da minha experiência como secretária
de Cidadania e Diversidade Cultural do MinC (2011).

6 UNESCO. Informe mundial sobre a cultura 2000-2001 – diversidade cultural,


conflito e pluralismo, 2000.

7 OXFAM. Uma economia para os 99%; relatório anual, 2017.


158 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Valiati entrevista Arjo Klamer 159

3. LABORATÓRIO DE
IDEIAS PARA AS
POLÍTICAS CULTURAIS

160. ENTREVISTA COM


ERNESTO OTTONE RAMÍREZ
Alfons Martinell
160 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ilustração: André Toma


CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 161

UM PERSONAGEM QUE
TEM MUITO A ENSINAR
Entrevista com Ernesto Ottone Ramírez (EOR)

D
esde a sua criação, a Unesco liderou propostas e reflexões sobre cultu-
ra e desenvolvimento de acordo com as necessidades de seus países-
-membros. Alguns entendem a organização como um laboratório de
ideias para as políticas culturais e para os agentes culturais em nível mundial.
Para tratar desse assunto de maneira mais ampla, a Revista Observatório en-
trevistou Ernesto Ottone Ramírez, diretor-geral assistente para a cultura da
Unesco. Ele vem da gestão cultural prática e é chileno, um latino-americano
que pode fornecer uma visão particular de um continente que evoluiu mui-
to nas últimas décadas. Seu papel como ministro da Cultura, das Artes e do
Patrimônio do Chile lhe deu a experiência de gestão em políticas culturais,
uma coincidência entre o personagem e o conteúdo dos artigos desta edição.
162 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

REVISTA OBSERVATÓRIO: SÃO DESAFIOS não somente na meta 11.4, que se refere ex-
IMPORTANTES NA COMUNIDADE INTERNA- plicitamente à cultura no contexto urbano. A
CIONAL A AGENDA 2030 E OS OBJETIVOS DE cultura tem um valor intrínseco ligado à área
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (ODS). EM das políticas culturais e, ao mesmo tempo,
2015, SURGE A PREOCUPAÇÃO DE NÃO SE HA- é transversal a muitas outras dimensões do
VER CONSEGUIDO INTRODUZIR UM OBJETIVO desenvolvimento presentes nos 17 ODS. Ela é
ESPECÍFICO NOS ODS. EM SUA OPINIÃO, POR uma dimensão crítica para alcançar a maio-
QUE NÃO FOI POSSÍVEL INCLUIR A CULTURA ria dos ODS. Chegamos à conclusão de que a
COMO UM DOS ODS NAQUELE MOMENTO? cultura está presente em todos eles. O exer-
Ernesto Ottone Ramírez: Eu tenho que cício que tentei fazer internamente, e que é
separar em antes e depois. Uma questão é muito compartilhado com a diretora-geral, é
a de como eu percebia o processo de cons- começar a ler o subtexto da resolução.1 E, se
trução da Agenda 2030, no que diz respeito você examinar cada um dos objetivos, mes-
a questões culturais, e a vi- mo que eles não mencionem
são que tenho atualmente, A cultura tem um valor a palavra cultura, verá que
estando na Unesco, que é intrínseco ligado à área têm uma base sólida e que
muito diferente. Como mi- das políticas culturais e, ao cada um desses pontos do
nistro da Cultura do Chile, mesmo tempo, é transversal desenvolvimento susten-
nós acompanhamos a cons- a muitas outras dimensões tável envolve um trabalho
trução da Agenda 2030, vi- do desenvolvimento no espaço cultural. E é sur-
mos como se tentou intervir presentes nos 17 ODS. Ela é preendente, porque você
para que, de fato, um dos 17 uma dimensão crítica para trata do assunto com as
objetivos fosse a dimensão alcançar a maioria dos ODS. autoridades e todos reco-
cultural. Quando assumi nhecem que, hoje, a Agenda
minhas responsabilidades como diretor- 2030 tem um subcapítulo não escrito, mas
-geral assistente para a cultura da Unesco, implícito, que evoca a necessidade de avan-
percebi que a contribuição da cultura para çar em uma agenda que entre no desenvolvi-
o desenvolvimento sustentável é muito do- mento sustentável a partir de princípios que
minante, auxiliando na maioria dos ODS, e definem o andamento do espectro cultural.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 163

RO: COMO A CULTURA PODERIA SER INCOR- essa agenda com as ações que estão sendo
PORADA SEM UM OBJETIVO CONCRETO desenvolvidas pelos países de forma inter-
A PARTIR DAS METAS? governamental, localmente, e não apenas
EOR: Na Unesco, elaboramos um Rela- do ponto de vista nacional. É essencial nos
tório de Cultura na Agenda 2030 a partir propormos a retomar indicadores comuns,
dos diferentes programas que temos nesse fundamentados no trabalho dos Indicado-
campo, bem como de instrumentos como res de Cultura da Unesco para o Desenvol-
as convenções culturais da Unesco, que vimento (IUCD), com base em mais de dez
respondem a alguns pontos indicados na anos de trabalho de uma experiência única e
agenda. Na reestruturação que fizemos no com presença em todas as regiões do mundo,
setor cultural, criamos inclusive na Europa (do
uma entidade especiali- O meu propósito é sermos Leste), o que pode nos
zada em fazer justamen- capazes de cruzar essa agenda dar pistas para entender
te toda a coordenação com as ações que estão sendo como enfrentar hoje a
setorial, intersetorial e desenvolvidas pelos países necessidade de novos
interinstitucional das de forma intergovernamental, indicadores (alguns no-
Nações Unidas, para ver localmente, e não apenas do vos e outros iguais), mas
como podemos relatar ponto de vista nacional. É dentro da estrutura de
cada um dos incidentes essencial nos propormos a uma agenda global.
para alcançar os 17 ODS retomar indicadores comuns, Um dos nossos obje-
e demonstrar de forma fundamentados no trabalho dos tivos foi propor, durante
tangível como a cultura Indicadores de Cultura da Unesco a Conferência Geral da
contribui para comba- para o Desenvolvimento (IUCD). Unesco de 2019, o primei-
ter a pobreza e constrói ro encontro, em 20 anos,
a paz por meio do desenvolvimento social de ministros da Cultura, ocorrido paralela-
e econômico. mente à Conferência Geral, a fim de preparar
Eu não estou preocupado com o fato de o que será uma agenda comum dos Ministé-
a cultura não ter sido refletida nos ODS; o rios da Cultura. Constata-se aí um avanço
meu propósito é sermos capazes de cruzar extraordinário. Se há 20 anos menos de 52%
164 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

dos países tinham institucionalidade cultu- RO: A UNESCO SEMPRE FOI UMA REFERÊNCIA
ral (não estou dizendo ministerial, mas sim PARA MUITOS PAÍSES E ATORES, COM CON-
institucionalidade especializada em cultura), TRIBUIÇÕES, ESTRUTURAS CONCEITUAIS,
hoje são mais de 93% dos países-membros. ESTATÍSTICAS CULTURAIS E, ULTIMAMENTE,
Ou seja, existem 172 países com institucio- COM SEUS INDICADORES DE CULTURA PARA O
nalidade própria. DESENVOLVIMENTO (IUDC). ESSAS CONTRI-
O desenvolvimento de um país é um BUIÇÕES ESTAVAM PARADAS? SERIA NECES-
diálogo entre como podemos manter a sal- SÁRIO ADAPTAR-SE AOS ODS? A PRETENSÃO É
vaguarda da identidade cultural, do papel CONTINUAR ESSE TRABALHO?
das comunidades, do respeito pelas comuni- EOR: Existem problemas de financiamen-
dades indígenas etc. e não sermos um freio to, mas temos um projeto piloto de indicado-
para o desenvolvimento. Mais que ques- res preliminares que vamos desenvolver em
tionar por que não se conseguiu um ODS cinco regiões. Há muitas decisões em relação
para a cultura, deveríamos ver como somos ao desenvolvimento – urbanístico, por exem-
capazes de intervir para que essa Agenda plo – que têm a ver com os planos de gestão e
2030, em cujo subtexto está a cultura, seja organização nas cidades.
relevante para todos os Estados-membros. A Unesco deve retomar a sua função de
Esse é o nosso desafio! laboratório de ideias, que foi no passado e
deixou de ser, a serviço das necessidades dos
países-membros. Para além da entrega de
orientações, os países devem assumir a cons-
trução de políticas culturais em sintonia com
a agenda de desenvolvimento sustentável. As
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 165

organizações intergovernamentais devem se RO: E NAS REGIÕES ONDE


situar em um espaço neutro, que continuo EXISTEM CONFLITOS?
achando que é o da Unesco. Neutro no sen- EOR: Por diferentes razões, é muito difícil
tido de que fazemos um trabalho de diploma- trabalhar em alguns países. A nossa preocu-
cia cultural, mediação e ajuda nas tomadas pação é fortalecer as capacidades humanas
de decisão – entre Israel e Palestina, entre as nos países em conflito ou em situação difícil.
duas Coreias, entre o Japão e a Coreia, entre Ao mesmo tempo, é fundamental manter e
a Armênia e o Azerbaijão. Estamos falando fortalecer condições que permitam aos povos
de um laboratório para desempenhar um preservar seu patrimônio cultural em todas
papel importante, por meio do trabalho em as suas dimensões, incluindo a criatividade,
cultura, no diálogo de aproximação dos povos os objetos culturais, as expressões culturais e
e, se possível, alcançar o objetivo da Unesco, a transmissão de práticas culturais às novas
que é manter a paz. Acho que há oportunida- gerações. As convenções culturais da Unesco
des, mas para isso temos que deixar de ser nos permitem criar uma estrutura de refe-
apenas administradores de convenções – rência internacional para as nossas ações e
que acredito que era o papel da Unesco após para a capacitação dos países em situação
a última crise de 2011, principalmente por de conflito. De que modo podemos trabalhar
questões financeiras – e começar a trabalhar todo esse conhecimento que está fora desses
acumulando as boas práticas dos países e os países e influenciar no fortalecimento das ca-
projetos realizados pela Unesco. Precisamos pacidades humanas para que, quando houver
aproveitar todas as plataformas e redes espe- condições, não percamos três ou quatro anos
cializadas da Unesco, incluindo seus centros para reestruturar a inação cultural nas cida-
e institutos. des que foram destruídas? Quando falamos
166 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de destruição, não é apenas a destruição físi- RO: PARA ALÉM DAS DECLARAÇÕES E CON-
ca, mas a destruição cultural e intelectual, de VENÇÕES, QUE SÃO IMPORTANTES, HÁ UMA
conteúdos e patrimônio, como a queima de ABORDAGEM NA AMÉRICA LATINA, E TAM-
manuscritos. Devemos avançar contribuin- BÉM NA EUROPA, SOBRE O PAPEL QUE A ECO-
do com recursos de inteligência artificial a NOMIA CRIATIVA, OU A ECONOMIA LARANJA,
serviço da digitalização, da documentação e DEVE TER NA COLÔMBIA. COMO O SENHOR
do desenvolvimento de protocolos de emer- SITUA ESSA QUESTÃO NO ÂMBITO DA UNESCO
gência para o futuro, para garantir que esses NESTE MOMENTO?
bens estejam disponíveis para as gerações EOR: Quando assumi a responsabilidade
futuras (em referência ao triste incêndio no do cargo, tive uma longa conversa com a dire-
museu do Rio de Janeiro). Há urgências. O tora-geral, dizendo que a primeira coisa que
que antes considerávamos um trabalho para precisávamos fazer era trocar o conceito de
garantir a permanência do patrimônio das indústria criativa pelo de economia criati-
civilizações, hoje mudou muito de contexto. va. Ainda não estamos na economia laranja.
Se não aproveitarmos todos os instrumentos Temos uma oportunidade dentro da agenda
que temos para nos preparar para o que virá, de desenvolvimento, em que a economia não
ficaremos muito atrasados e perderemos a seja considerada apenas do ponto de vista de
possibilidade de garantir a transmissão de cifras. Cada vez que se fala de economia cria-
conhecimento para as novas gerações. Tra- tiva nos planos nacionais ou regionais, é pre-
balhamos para que essa transmissão seja ciso considerar três elementos. O primeiro
feita hoje, não esperamos até amanhã. deles é o quanto ela representa no emprego.
De fato, é a economia mundial que gera mais
emprego na faixa etária entre 19 e 26 anos;
portanto, é uma oportunidade histórica. Em
segundo lugar, o quanto gera e contribui para
o PIB de cada país. Há aqui uma diferença
de como é medida. E, finalmente, se é uma
economia que garante acesso a determina-
da parte da sociedade que estava excluída –
criadores, jovens e mulheres.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 167

Tudo isso deve ser levado em conta do como de potencial econômico, permitindo
ponto de vista econômico. Vejamos o que que novas gerações vivam de sua criação.
produz do ponto de vista social: significa re- Mas essa é uma área social, a partir de como
cuperar identidades locais ou impedir o de- se mede a economia criativa.
saparecimento de certas culturas e tradições Por isso, é importante situar esses ei-
ameaçadas. Por isso a questão das línguas in- xos da economia criativa no âmbito dos pa-
dígenas é tão importante para o ano de 2019. trimônios material e imaterial, não apenas
Em outra dinâmica, a necessidade de planos como um instrumento da Convenção sobre
de gestão que garantam a sustentabilidade a Proteção e Promoção da Diversidade das
das ações. A grande discussão é que as co- Expressões Culturais, de 2005, mas como
munidades que vivem em torno de patrimô- um elemento dentro da Agenda 2030. Quan-
nios possam viver com mais qualidade, e que do o secretário-geral das Nações Unidas, a
não seja simplesmente uma sobrevivência diretora-geral ou a Organização Mundial
econômica que o patrimônio possa gerar. E, do Turismo falam de economia criativa
então, os caminhos são o reconhecimento do como parte do desenvolvimento susten-
patrimônio vivo e o modo como somos ca- tável do turismo, não é mais um discurso.
pazes de gerar uma economia local em tor- Está evidente que foi integrado e aceito
no da criatividade, que não é só artesanato. como potencialidade política e social. Sur-
Antes falávamos de como os artesãos locais preendentemente, os países que você menos
podiam ter uma maior distribuição de seus imagina, porque têm outros problemas am-
produtos, hoje discutimos como fazer com bientais, já têm essa dimensão integrada em
que eles mesmos sejam empreendedores e sua agenda de desenvolvimento. Refiro-me
se organizem em instituições, como em coo- a países com problemas de ordem educacio-
perativas, que podem atuar de maneira mista nal, analfabetismo em níveis inimagináveis
ou privada, e que possam resolver a econo- e problemas relacionados à saúde. Porém,
mia das famílias em torno disso. E aqui entra essa questão aparece como sujeito de desen-
o turismo sustentável: é preciso conseguir volvimento local para as comunidades e de
um turismo controlado para que os locais do coesão social, resiliência, e parte integrante
patrimônio mundial não percam seu valor de como se faz uma agenda em educação e
universal excepcional e sejam reconhecidos se integra ao currículo.
168 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

RO: HISTORICAMENTE, A UNESCO, EM TODAS conflitos armados, embora estes sejam os


AS SUAS CONVENÇÕES, TEM SE PREOCUPADO que têm mais visibilidade. As últimas qua-
MUITO COM O PATRIMÔNIO DA HUMANIDA- tro intervenções que fizemos com especia-
DE. NESTE MOMENTO, HÁ LOCAIS VULNERÁ- listas foram por desastres naturais, não por
VEIS E
​​ M RAZÃO DE CONFLITOS DE TODOS OS conflito armado. Não há solução mágica, a
TIPOS. COMO A ORGANIZAÇÃO, QUE SE DEDI- nossa única possibilidade é trabalhar com o
COU TANTO A CONSERVAR O PATRIMÔNIO, VÊ capacity building. Hoje, estamos concentran-
OS CONFLITOS LOCAIS OU REGIONAIS USAN- do todos os nossos esforços na formação de
DO A DESTRUIÇÃO COMO FERRAMENTA PARA pessoas diretamente no território atingido.
ATACAR O INIMIGO? A Unesco não tem capacidade de assumir
EOR: Não apenas os conflitos, mas também os locais que são patrimônio da humanida-
os desastres naturais e as mudanças climá- de e não pode continuar listando-os se não
ticas representam as principais ameaças houver responsabilidade para a manutenção
ao patrimônio cultural em muitas regiões deles. E não digo nem financeiramente, mas
do mundo. Desde 2016, cerca de 50 países de capacitação de recursos humanos mesmo.
receberam apoio do Fundo de Emergência Qual é a nossa ideia? Montar, junto com es-
para o Patrimônio da Unesco, cujo objetivo é pecialistas, planos de gestão e segurança com
ajudar os países a proteger o patrimônio por os Estados-membros, para que eles possam
intermédio de missões de avaliação rápida e assumir a manutenção de modo integral.
assessoria, medidas urgentes de salvaguar- Realizamos missões para analisar
da, documentação e atividades de monitora- questões de sustentabilidade e chegamos à
mento. Isso reflete a ampla natureza desses conclusão de que não é apenas a manuten-
desafios. Diante dessa realidade, criamos um ção física, a salvaguarda, no conceito antigo.
fundo internacional que visa fazer uma inter- Ou seja, há uma declaração de cada local, e o
venção direta e atuar a partir de observações que o país precisa fazer é garantir que esses
e diretrizes para o desenvolvimento. compromissos sejam respeitados. E assim
Uma grande parte dos países tem mais entramos em conflito nos países em desen-
problemas com desastres naturais que com volvimento, que obviamente têm uma agenda
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 169

urbanística diferente da que imaginamos, Devemos ajudar a encontrar os instru-


porque começam a construir edifícios sem mentos para que essas comunidades que
planejamento urbano adequado. O resultado seriam beneficiadas economicamente, e
é que eles acabam sendo inseridos na lista do não socialmente, pelo desenvolvimento da
patrimônio mundial em perigo. E, para reti- construção da central elétrica possam ob-
rar um local dessa lista, pode demorar anos. ter outro meio de sustento. Estamos vendo
No entanto, temos exemplos de decisões como podemos, por meio da economia cria-
políticas voluntárias que fizeram diferença. tiva, agregar valor a essas comunidades que
Cito aqui dois casos. perderam uma fonte de renda. De que forma?
Em Belize, os corais estiveram na lista Destacar o que eles produzem ou são capa-
do patrimônio mundial em perigo duran- zes de produzir a partir da criatividade, da
te, aproximadamente, sete anos. Na última identidade, dos valores tradicionais de que
reunião do Comitê do Patrimônio Mundial, dispõem para a exploração de serviços, para o
em 2018, decidiu-se retirá-los dessa lista. turismo sustentável, para o inventário do seu
Foi o resultado de uma decisão política de patrimônio. É com tudo isso que deveríamos
dois governos sucessivos para impedir a nos preocupar, e a única forma de trabalhar é
exploração de petróleo. E, atualmente, te- entender que as convenções são um instru-
mos todo o processo realizado para cum- mento que precisa atuar em paralelo com as
prir essa recomendação. políticas públicas dos Estados-membros – e
O segundo caso é o da Costa Rica, cujo as convenções precisam dialogar entre si.
presidente da República nos informou sobre Atualmente, não se sustenta que um lo-
a paralisação da construção de um projeto de cal declarado patrimônio mundial não traba-
central elétrica que seria realizado em uma lhe o imaterial, mas temos duas convenções
área de um dos locais naturais reconhecidos que trabalham em separado. Todo o estado de
pela Unesco. É uma decisão política que ga- salvaguarda do patrimônio material mantém
rante a conservação dos valores que levaram relações com seu ambiente, elementos natu-
o local a ser reconhecido e catalogado como rais, portadores de tradições (especialmente
patrimônio mundial. os povos indígenas) e formas culturais, o que
170 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Valiati entrevista Arjo Klamer 171
172 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

não existia antes. Hoje, contamos com uma RO: SENDO UM LATINO-AMERICANO NA DIRE-
seleção e uma lista, o que significa indexa- ÇÃO DA CULTURA DA UNESCO – E ISSO É UMA
ção. Estamos fazendo a mesma coisa com o NOVIDADE, PORQUE HÁ MUITOS ANOS NÃO
patrimônio imaterial. A ideia é levar essa in- HAVIA ALGUÉM DO CONTINENTE –, COMO O
dexação para todas as convenções e fazer essa SENHOR VIVE A QUESTÃO LATINO-AMERICA-
conexão, primeiramente entre o setor cultu- NA E A QUESTÃO MULTILATERAL EM NÍVEL
ral e depois com outros setores. Percebemos MUNDIAL? COMO FOI TER QUE ASSUMIR, A
que trabalhamos a questão dos locais que são PARTIR DA POLÍTICA NACIONAL, UMA POLÍ-
patrimônio por um lado e, por outro, dos geo- TICA MULTILATERAL?
parques, das memórias do mundo etc., e todos EOR: Eu vivo essa questão como um desafio
trabalham em paralelo. Para poder apresentar extraordinário. Quando assumi a responsabi-
o diálogo das culturas, é preciso apresentar o lidade do cargo, disse que me sentia herdeiro
acervo inteiro como um pacote: ou seja, o país, da cultura com uma visão em torno da natu-
por meio de toda a sua cultura, tem sido capaz reza dos nossos povos originários. Isso tem a
de produzir cultura para a humanidade. E esse ver com a visão holística na qual os patrimô-
é o valor universal do local. Não são os valo- nios material e imaterial se complementam, e,
res individuais que contribuem para que seja portanto, não posso conceber um sem o outro.
patrimônio, mas a junção de cada um desses Quando ocupei o cargo de ministro da Cultura
elementos. Esse é um trabalho que quem vai do Chile, certifiquei-me de que seria o primeiro
fazer são as futuras gerações. O que estamos ministério a promover uma consulta indígena
fazendo agora é gerar as condições para que no Chile, e estou orgulhoso porque servimos de
uma organização como a Unesco, no século referência para outros ministérios. Fomos os
XXI, possa ser um instrumento para a agen- primeiros a criar um departamento de povos
da comum. Mas é um trabalho enorme e não originários que trabalham em torno das tradi-
podemos fazê-lo sozinhos, temos de contar ções e da transmissão de línguas – assuntos que
com o apoio dos Estados-membros, de todas me interessam. Mas o conceito é utilizado ho-
as nossas organizações acadêmicas e centros listicamente nas reuniões, o que antes era visto
de pesquisa. Por isso a importância de parti- como um conceito acadêmico, sendo a base do
cipar da reunião de ministros da Cultura em que queremos como desenvolvimento susten-
2019, e que a agenda seja levada pelos porta- tável. E na Agenda 2030 não se pode conceber
-vozes aos seus países. o desenvolvimento sustentável se não houver
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 173

essa percepção. Em uma época em que os de- RO: É O RESULTADO DE TODO O TRABALHO EM
safios que enfrentamos são globais, acredito CULTURA QUE TEM SIDO FEITO NOS PAÍSES LA-
que devemos nos concentrar o mínimo possível TINO-AMERICANOS NAS ÚLTIMAS DÉCADAS...
nas diferenças existentes entre países e regiões EOR: Sim. É incrível a quantidade de boas
e trabalhar juntos para criar o futuro que to- práticas que estão sendo desenvolvidas no
dos queremos. Devemos olhar constantemente mundo todo, mas ainda não há sistemas de
para o futuro e não apenas concentrar-nos no troca de conhecimento e informações que
passado. No campo da cultura, acredito que permitem que os países se beneficiem delas.
pode haver uma mudança estrutural positiva Recentemente, conversei com um ministro
no longo prazo. O norte e o sul têm que desa- da Cultura que estava iniciando um plano
parecer como conceitos, porque não acredito nacional de leitura em seu país e o lembrei
mais neles. Estamos no século XXI, em que os de que fui presidente da Cerlalc2 durante dois
conceitos são globais e os problemas também, anos. Os planos nacionais de leitura na Amé-
e, se não procurarmos soluções juntos, não a rica Latina, que são de grande abrangência,
partir da história que construímos, mas a partir poderiam ser trabalhados e adaptados em
do futuro que queremos criar em termos cultu- outros países com base na experiência e nos
rais, estaremos limitados, e isso é uma mudan- resultados que obtivemos. Então, há muito
ça estrutural. Da mesma forma, não levo tanto que ser valorizado.
em consideração o aspecto latino-americano,
mas sentir-me parte dessa herança, que hoje
me permite entrar em diálogo com ambas as
partes. Morei por mais de 20 anos na Euro-
pa, por razões especialmente políticas, então
essa é a minha formação. Mas, durante todos
os anos em que estive no Chile e no Uruguai,
pude aprender que há, de fato, um olhar mais
próximo daquilo que acredito que aspiramos
deixar para as gerações futuras.
174 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

RO: O SENHOR SE DEDICOU A FORMAR GES- Agora, estou convencido de que, quanto
TORES CULTURAIS. ESTA REVISTA É LIDA mais generalista você é, mais chances tem
POR MUITOS DELES. COMO VÊ A GESTÃO CUL- de se desenvolver profissionalmente.
TURAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Quando me perguntam qual é a função
A PARTIR DO LOCAL PARA O GLOBAL? QUAIS que falta em um museu, eu digo que é a de
SÃO OS DESAFIOS DA GESTÃO CULTURAL gestor cultural. Há pesquisadores, museó-
NESTE MOMENTO? logos, tudo o que você possa imaginar, mas
EOR: Comecei nos anos 1990 e não che- não vejo gestores culturais, porque isso tem
guei a esta profissão por acidente. Decidi a ver com uma dimensão de como nos co-
estudar gestão cultural em 1992, em um municamos, como fazemos as mediações,
Seminário Malraux em Santiago, no Chile, como trabalhamos no sistema educacio-
e analisar como foi montado o Ministério nal formal e informal, como procuramos
da Cultura na França. Eu disse: “É isso que novos públicos, algo fundamental, como
me interessa!”. E a decisão foi uma maneira tomamos decisões financeiras que sejam
de me transformar em uma ponte. Eu venho programáticas, e não somente uma coisa
do mundo da criação, e o mundo da gestão ou outra. Mas hoje percebo que esse valor
cultural mudou muito desde que comecei. generalista presente na figura de gestores
Naquele momento, havia uma tendência à culturais, função que falta nos museus, per-
especialização dentro da gestão cultural. mite uma atuação local e transformadora
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 175

em pequenas comunidades, e, ao mesmo campo, continua vigente. Quando falamos


tempo, uma atuação em grandes institui- de mediadores, pontes ou laços, entendemos
ções, auxiliando na formulação de políticas que a gestão cultural, aquilo que fazemos, é
públicas. Mas o grande valor tem a ver com relacionar uma demanda existente identi-
as empresas privadas. Um gestor cultural, tária com esses agentes transformadores
ou uma pessoa com formação em gestão da sociedade, capazes de produzir bens e
cultural, é um valor agregado para qualquer serviços culturais. E isso continua vigente
empresa que está tentando desenvolver sua e mais necessário do que nunca – essa é a
responsabilidade social, ou seja, não apenas minha convicção. Vejo que o trabalho local
a forma como ela age com os trabalhadores, tem uma influência muito maior do que há
mas como ela se relaciona com as comuni- 20 anos. Antes, o grande pensamento era
dades onde deseja entregar serviços ou ven- como estruturamos instituições e políti-
der produtos, porque seu interesse é esse. cas nacionais a partir de modelos. O bom é
A gestão cultural é uma função de que hoje em dia todo mundo sabe que não
mediação a partir de certas chaves para há mais modelos. A gestão cultural deve
entender como atuar sem ser um agente pu- trabalhar na comunidade para ter uma boa
blicitário, o que se acreditava que essa pro- prática, colocar-se a serviço e se adaptar a
fissão poderia se tornar. Essa ponte, que me novos contextos de mudança. Esse é o nosso
levou a tomar a decisão de me dedicar a esse grande desafio.

Notas

1 Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas. Transformando Nosso Mundo: a Agenda
2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

2 Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe.


176 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO  177
178 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO

eCultura – Utopia Final A Economia


Teixeira Coelho Artisticamente Criativa
Xavier Greffe

A Singularidade O Lugar do Público


Está Próxima Jacqueline Eidelman,
Raymond Kurzweil Mélanie Roustan e
Bernardette Goldstein

A Máquina Parou Identidade e Violência:


E. M. Forster a Ilusão do Destino
Amartya Sen

Com o Cérebro na Mão


Teixeira Coelho
CULTURA E DESENVOLVIMENTO  179

As Metrópoles Regionais e Cultura e Estado.


a Cultura: o Caso Francês, A Política Cultural na
1945-2000 França, 1955-2005
Françoise Taliano-des Garets Teixeira Coelho

Afirmar os Direitos Cultura e Educação


Culturais – Comentário à Teixeira Coelho (org.)
Declaração de Friburgo
Patrice Meyer-Bisch e
Mylène Bidault

Arte e Mercado Saturação


Xavier Greffe Michel Maffesoli
180 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O Medo ao Pequeno Número Leitores, Espectadores


Arjun Appadurai e Internautas
Néstor García Canclini

A Cultura e Seu Contrário A República dos


Teixeira Coelho Bons Sentimentos
Michel Maffesoli

A Cultura pela Cidade Cultura e Economia


Teixeira Coelho (org.) Paul Tolila
CULTURA E DESENVOLVIMENTO  181

SÉRIE RUMOS
PESQUISA

Os Cardeais da Cultura Por uma Cultura Pública:


Nacional: o Conselho Federal Organizações Sociais, Oscips
de Cultura na Ditadura e a Gestão Pública Não
Civil-Militar − 1967-1975 Estatal na Área da Cultura
Tatyana de Amaral Maia Elizabeth Ponte

Discursos, Políticas A Proteção Jurídica de


e Ações: Processos de Expressões Culturais
Industrialização do Campo de Povos Indígenas na
Cinematográfico Brasileiro Indústria Cultural
Lia Bahia Victor Lúcio Pimenta de Faria
182 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

AS REVISTAS

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 26 – Itaú Cultural No 22 –
Gestão de Pessoas em Memórias, Resistências
Organizações Culturais e Políticas Culturais
na América Latina

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 25 – Itaú Cultural No 21 –
Sertões: Imaginários, Política, Transformações
Memórias e Políticas Econômicas e Identidades
Culturais

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 24 – Itaú Cultural
Arte, Cultura e Educação No 20 – Políticas Culturais
na América Latina para a Diversidade:
Lacunas Inquietantes

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 23 – Itaú Cultural No 19 –
Economia da Cultura: Tecnologia e Cultura:
Estatísticas e Indicadores uma Sociedade em Redes
para o Desenvolvimento
CULTURA E DESENVOLVIMENTO  183

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 18 – Itaú Cultural No 15 –
Perspectivas sobre Cultura e Formação
Política e Gestão Cultural
na América Latina

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 17 – Itaú Cultural No 14 –
Livro e Leitura: A Festa em Múltiplas
das Políticas Públicas Dimensões
ao Mercado Editorial

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 16 – Itaú Cultural No 13 –
Direito, Tecnologia A Arte como Objeto
e Sociedade: uma de Políticas Públicas
Conversa Indisciplinar
184 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 12 – Itaú Cultural No 9 –
Os Públicos da Cultura: Novos Desafios da
Desafios Contemporâneos Cultura Digital

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 11 – Itaú Cultural No 8 –
Direitos Culturais: Diversidade Cultural:
um Novo Papel Contextos e Sentidos

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 10 – Itaú Cultural No 7 – Lei
Cinema e Audiovisual Rouanet. Contribuições para
em Perspectiva: Pensando um Debate sobre o Incentivo
Políticas Públicas e Mercado Fiscal para a Cultura
CULTURA E DESENVOLVIMENTO  185

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 6 – Itaú Cultural No 3 –
Os Profissionais da Valores para uma
Cultura: Formação Política Cultural
para o Setor Cultural

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 5 – Itaú Cultural No 2 –
Como a Cultura Pode Mapeamento de Pesquisas
Mudar a Cidade sobre o Setor Cultural

Revista Observatório Revista Observatório


Itaú Cultural No 4 – Itaú Cultural No 1 –
Reflexões sobre Indicadores e Políticas
Indicadores Culturais Públicas para a Cultura
186 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Realização

/itaucultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 fax 11 2168 1775 [email protected]


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