Revista OBS27 - Final PDF
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ed.
27
CULTURA E
DESENVOLVIMENTO
Sustentabilidade
a partir da cultura:
compreensões, reflexões
e inspirações
Inovação e equidade:
novas abordagens para
políticas culturais
2 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Semestral
Esta edição da Revista Observatório trata partir do final da Segunda Guerra Mundial
de dois grandes conceitos amplamente re- e do estabelecimento de um contexto mul-
lacionados no campo da gestão e das polí- tilateral –, não se encontram evidências de
ticas culturais: cultura e desenvolvimento. inclusão efetiva da cultura na agenda polí-
Contextos com muitas definições e aprecia- tica do desenvolvimento nem da aceitação
ções difíceis de delimitar para se chegar a do desenvolvimento nas políticas culturais.
conclusões determinantes. Por essa razão, Existem algumas exceções ou períodos,
exigem do leitor certa tolerância intelectual mais ou menos transcendentais, mas não
para entender seus diferentes usos de acor- há resultados evidentes de uma integração
do com realidades variadas. Um assunto que entre cultura e desenvolvimento nas políti-
precisa ser analisado a partir de pontos de cas culturais em geral. Devemos valorizar
vista e perspectivas heterogêneos para que as iniciativas nas políticas locais ou nas
se entenda sua complexidade interna. É ne- ações dos cidadãos e da sociedade civil,
cessário um permanente exercício de con- que se destacam com resultados evidentes
textualização, como nos diz Edgar Morin, e mudanças significativas, evidenciando a
para trabalhar em um mundo globalizado e importância do local (proximidade) para o
interdependente. desenvolvimento.
Esse é um debate amplo e antigo, que A partir das instâncias nacionais, o
muitas vezes não encontra um desfecho tratamento da cultura responde a certos
satisfatório, mas do qual, por seus antece- grupos de pressão e ao formato clássico
dentes históricos, se pode apreciar a evo- do Estado-nação, em que a cultura desem-
lução nas discussões internacionais e nas penha uma função de consolidação de um
adaptações nacionais. projeto político. Essas posições não chegam
Apesar de as retóricas políticas de- a diferenciar o que entendem por cultura
fenderem “que não há desenvolvimento de Estado ou de nação, por cultura de pes-
sem cultura ou que a cultura é imprescin- soas, indivíduos ou coletivos e por direitos
dível para o desenvolvimento” – na análise culturais. Nessa diferenciação, podemos
das políticas nacionais e internacionais a encontrar algumas chaves para deduzir ou
10 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
objetivo cultural,4 há todo um trabalho nessa “Indicadores de Cultura para a Agenda 2030”.
linha, como é possível ver nos diferentes ar- Pensar em termos de sustentabilida-
tigos com diferentes abordagens. de de futuro exige uma profunda mudança
No processo de edição desta publicação, na mentalidade tradicional do setor e das
o Fórum Mundial de Ministros da Cultura de políticas culturais em todos os níveis, que
Paris, Unesco (novembro de 2019), foi reali- devem configurar sua contribuição para
zado com a apresentação de um interessan- esse desafio mundial.
te documento, “Cultura e políticas públicas O conjunto de contribuições apresen-
para o desenvolvimento sustentável. Fórum tado por diferentes autores nesta edição nos
de Ministros da Cultura”, com uma atua- leva a um aprofundamento no campo da cul-
lização de reflexões e propostas de grande tura e do desenvolvimento5 e a debates em
interesse. Juntamente com a publicação dos acordo com a realidade atual.
12 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Notas
1.
local e da Agenda 21 da Cultura
Jordi Baltà e Jordi Pascual
PERSPECTIVAS DA
CULTURA NO DESENVOLVIMENTO 46. Uma abordagem cultural
E NA AGENDA 2030 do desenvolvimento para
a gestão da cultura
21. A dimensão cultural Aarón Espinosa Espinosa
do desenvolvimento:
rumo à integração do 61. Indicadores de
conceito nas estratégias de Cultura da Unesco para o
desenvolvimento sustentável Desenvolvimento (IUCD)
Máté Kovács Guiomar Alonso
sumário
2. INSPIRAÇÕES E CAMINHOS
PARA A INTEGRAÇÃO DA CULTURA
119. As desigualdades culturais:
o ético, o étnico e a comunidade
Paula Moreno
NO DESENVOLVIMENTO
133. Diversidade e desenvolvimento.
83. O que entendemos por Agenda 2030: rumo à descolonização
sustentabilidade a partir da cultura? dos nossos mundos
Marta García Haro e Lucía Vázquez Lucina Jiménez
3.
Paulo H. Duarte-Feitoza
1.
PERSPECTIVAS
DA CULTURA NO
DESENVOLVIMENTO
E NA AGENDA 2030
61. INDICADORES DE
CULTURA DA UNESCO PARA
O DESENVOLVIMENTO (IUCD)
Guiomar Alonso
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Máté Kovács 21
A DIMENSÃO CULTURAL
DO DESENVOLVIMENTO:
RUMO À INTEGRAÇÃO DO
CONCEITO NAS ESTRATÉGIAS DE
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Máté Kovács
Introdução
O
objetivo deste artigo é relembrar a Mais detalhes sobre a primeira etapa
evolução das abordagens da cultu- podem ser encontrados no artigo Evolução
ra e do desenvolvimento em nível das Abordagens da Cultura e do Desenvol-
internacional e, em particular, no âmbito vimento em Nível Internacional. Portanto,
dos diversos fóruns e iniciativas da Unesco. após recapitular rapidamente a primeira
Tentaremos recapitular as grandes etapas fase, concentramos o estudo no tema da in-
desse processo e estabelecer um balanço tegração da cultura na Agenda 2030 para o
crítico dos resultados alcançados e dos desenvolvimento sustentável.2
problemas encontrados nessa complexa
operação, a partir da definição do conceito Contexto e antecedentes
da dimensão cultural do desenvolvimento e A reflexão sobre cultura e desenvolvimento
até a sua integração nas estratégias de coo- tem sua origem na crítica ao conceito econo-
peração para o desenvolvimento. micista do desenvolvimento que permitiu ver
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
número de organizações e especialistas que setembro, quando era muito oportuno rea-
atuam no campo. Os resultados das investi- firmar a importância do diálogo intercultu-
gações foram publicados em obras como Cul- ral e rejeitar a tese do inevitável conflito de
tura e Desenvolvimento: para uma Abordagem culturas e civilizações. A Convenção sobre
Prática (1994) e Mudança na Continuidade a Proteção e Promoção da Diversidade das
– Conceitos e Instrumentos para uma Abor- Expressões Culturais10 (2005) não cobre
dagem Cultural do Desenvolvimento (2000). todos os aspectos da diversidade cultural,
A conferência constatou que as políticas como a declaração de 2001. Seu objetivo é
culturais devem estar ligadas a outras áreas da reforçar a diversidade das expressões cul-
vida e ser concebidas como um elemento de turais contidas nas atividades culturais e
relevância transetorial ou transversal do de- nos bens e serviços ao longo da cadeia, que
senvolvimento. Nessa perspectiva, foi adotado constituem criação, produção, distribuição/
um plano de ação8 com as diretrizes básicas disseminação, acesso e aproveitamento des-
da política cultural para o desenvolvimento. sas expressões.
O Plano de Ação de Estocolmo enfatizou Mais diretamente, a convenção enfatiza
a necessidade de considerar, nas políticas cul- a complementaridade dos aspectos econômi-
turais, simultaneamente os valores universais cos e culturais do desenvolvimento, uma vez
e as diversidades locais, harmonizando essas que a cultura é um dos principais recursos
políticas nacionais com o respeito ao plura- para a sustentabilidade.
lismo cultural. No tocante ao acompanhamento da evo-
Após a Conferência Intergovernamen- lução da situação, podemos citar o relatório
tal sobre Políticas Culturais para o Desen- mundial Investir na Diversidade Cultural
volvimento (Estocolmo, 1998), a atenção dos e no Diálogo Intercultural,11 publicado pela
Estados membros concentrou-se na questão Unesco, que analisa os desafios da diversi-
da diversidade cultural, considerada uma dade cultural e oferece uma contribuição
força motriz do desenvolvimento não apenas concreta para a agenda do desenvolvimento
para o crescimento econômico, mas também sustentável e da paz baseada no princípio da
para uma vida intelectual, emocional, moral “unidade na diversidade”.
e espiritual mais enriquecedora.
Considerou-se também que essa di- Ações para integrar a dimensão
versidade era um recurso indispensável cultural nas estratégias de
para reduzir a pobreza e alcançar a meta desenvolvimento
do desenvolvimento sustentável. Por isso, Quatro décadas após a Africacult, ainda es-
mostrou-se necessário apoiar a proteção e a tamos longe da aplicação generalizada da
promoção da diversidade cultural por meio abordagem cultural nas estratégias de desen-
de uma ação regulamentar. volvimento. Apesar disso, podemos identifi-
Numa primeira fase, foi aprovada a car tentativas que merecem ser lembradas.
Declaração Universal sobre a Diversidade Os primeiros esforços nesse sentido
Cultural, da Unesco,9 em 2001, após 11 de foram realizados a partir dos anos 1980,
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Máté Kovács 25
Notas
1 Relatório final, parte III, Relatório da Comissão II, p. 20, § 5-6. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0005/000525/052505sb.pdf>. Acesso em:
4 nov. 2019.
5 Relatório final, parte IV. Declaração do México sobre as políticas culturais, § 16.
Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0005/000525/052505sb.
pdf>. Acesso em: 4 nov. 2019
Introdução
O papel marginal dos aspectos culturais no de 2004 do Relatório de Desenvolvimento
texto da Agenda 2030 para o Desenvolvimen- Humano (RDH), do Programa das Nações
to Sustentável e nos Objetivos de Desenvolvi- Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
mento Sustentável (ODS) que a concretizam que vinculava a liberdade cultural ao de-
foi uma decepção para ativistas, organiza- senvolvimento humano;1 a Convenção so-
ções, instituições e redes que durante anos bre a Proteção e Promoção da Diversidade
reivindicaram um maior reconhecimento da das Expressões Culturais, da Unesco, que
importância da cultura no desenvolvimen- se refere, entre outros, aos vínculos entre
to sustentável. A cultura, em suas diferentes cultura e desenvolvimento sustentável;2 as
configurações, era uma das grandes ausentes sucessivas edições do Relatório de Econo-
na Declaração do Milênio e nos Objetivos de mia Criativa publicadas pela Unctad, pelo
Desenvolvimento do Milênio (ODM) aprova- PNUD e pela Unesco, que destacavam o pa-
dos em 2000, mas, desde então, parece que pel da cultura no desenvolvimento econô-
cresceu o consenso sobre a necessidade de mico local, nacional e global;3 e a Janela de
incorporar a cultura nas abordagens contem- Cultura e Desenvolvimento promovida pela
porâneas do desenvolvimento sustentável. cooperação espanhola no âmbito do Fundo
Entre os passos registrados posterior- para a Realização dos ODM, com 18 progra-
mente, no período de 2000 a 2015, pode- mas nacionais que vinculavam a cultura ao
riam ser citados documentos como a edição alcance dos ODM.4
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Jordi Baltà e Jordi Pascual 35
Da mesma forma, a adoção da Agen- ligeiros avanços no que diz respeito aos ODM
da 21 da cultura em 2004, como resultado de 2000: como indicado no comunicado pu-
de um processo internacional de debate e blicado pela campanha #culture2015goal em
elaboração que reuniu governos locais, ati- setembro de 2015, “Há avanços, mas ainda há
vistas, acadêmicos e organizações interna- muito a ser feito”.8
cionais, representou o pressuposto de que Em parceria com outras organizações,
o desenvolvimento sustentável em nível lo- a CGLU vem trabalhando desde 2015 para
cal não poderia ser obtido sem considerar mostrar que, embora o texto da Agenda 2030
os aspectos culturais.5 Ao endossar a ideia nem sempre o expresse dessa forma, os as-
de Jon Hawkes de que a cultura (ou a “vita- pectos culturais desempenham um papel
lidade cultural”, em suas palavras) deveria essencial para o sucesso de toda a agenda.
ser o “quarto pilar” da sustentabilidade,6 e De acordo com a CGLU, isso ocorre porque
a partir das inúmeras evidências do traba- aspectos como os direitos culturais, o patri-
lho dos governos locais e das organizações mônio, a diversidade ou a criatividade são
da sociedade civil, que vinculavam a ação componentes centrais do desenvolvimento
cultural local e o desenvolvimento sus- humano e sustentável, mas também porque
tentável em cidades, povoados e regiões, o esses diferentes elementos inevitavelmente
trabalho da Comissão de Cultura das Ci- se entrecruzam com o restante dos aspectos
dades e Governos Locais Unidos (CGLU) que configuram o desenvolvimento susten-
promoveu e analisou, a partir de então, os tável.9 Essa linha de reflexão e trabalho se
vínculos entre a cultura e o desenvolvi- traduz em vários programas de ação da Co-
mento sustentável. missão de Cultura da CGLU, entre os quais
Esse conjunto de contribuições fez podemos destacar a elaboração do guia prá-
parte da campanha O Futuro que Queremos tico Cultura 21: Ações, para facilitar a autoa-
Inclui a Cultura (também conhecida como valiação e o desenho de políticas e medidas
#culture2015goal), na qual diferentes redes que integrem a cultura ao desenvolvimento
de organizações da sociedade civil e gover- sustentável local de forma abrangente;10 a
nos locais e nacionais, entre os quais a CGLU, promoção de programas de treinamento e
reivindicavam a inclusão de um objetivo aprendizagem entre pares que conectem os
dedicado à cultura nos ODS.7 O texto final governos locais, a sociedade civil e os cida-
da Agenda 2030 decepcionou os membros dãos; as colaborações com inúmeras redes,
da campanha, apesar de eles reconhecerem governos locais e nacionais, associações de
36 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Jordi Baltà
Possui licenciatura em ciências políticas e administração pela Universidade Autôno-
ma de Barcelona, é mestre em política cultural europeia e administração pela Universidade
de Warwick e pós-graduado em cooperação cultural internacional pela Universidade de
Barcelona – Interarts. Trabalha como investigador, consultor e formador em políticas cul-
turais e relações internacionais, com interesse especial em diversidade cultural, políticas
culturais locais e cultura no desenvolvimento sustentável. Desde 2014, colabora como
assessor de cultura e cidades sustentáveis na Comissão de Cultura das Cidades e Governos
Locais Unidos (CGLU). Faz parte do grupo de especialistas para a implementação da Con-
venção da Unesco sobre a Diversidade das Expressões Culturais e colabora regularmente
em outras organizações, como a Asia-Europe Museum Network (Asemus). É consultor
e tutor de mestrado em gestão cultural (Universidade Aberta da Catalunha, Universida-
de de Girona, Universidade das Ilhas Baleares) e professor associado na graduação em
relações internacionais da Universidade Ramon Llull. Entre 2001 e 2014, trabalhou como
investigador e coordenador de projetos na Fundação Interarts.
Jordi Pascual
Coordenador e fundador da Comissão de Cultura das Cidades e Governos Locais Uni-
dos (CGLU), que tem como objetivo o progresso da Agenda 21 da cultura (<www.agenda-
21culture.net>). É um dos promotores da campanha mundial <www.culture2030goal.net>,
sobre o papel dos temas culturais na Agenda 2030 e nos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS), das Nações Unidas. Escreveu livros, artigos e informes sobre relações
culturais internacionais, governança da cultura e o papel da cultura na sustentabilidade,
traduzidos para mais de 20 idiomas. Membro do júri da capital europeia da cultura nos
anos 2009, 2010, 2011 e 2016, é também professor de direitos culturais e mundialização
na Universidade Aberta da Catalunha.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Jordi Baltà e Jordi Pascual 43
Notas
9 A CGLU refletiu essa visão em uma publicação recente, que amplia as reflexões
incluídas neste relatório: La cultura en los Objetivos de Desarrollo Sostenible:
guía práctica para la acción local. Barcelona: CGLU, 2018. Disponível em:
<http://www.agenda21culture.net/sites/default/files/culturaods_web_es.pdf>.
Acesso em: 14 nov. 2019.
11 Veja: <https://www.uclg.org/es/media/noticias/la-cultura-en-los-objetivos-del-
desarrollo-sostenible-ods-una-guia-para-la-accion>.
12 Esse termo é usado para designar os governos e níveis de uma escala territorial
inferior à dos Estados reconhecidos pelas Nações Unidas.
13 Veja: <https://www.local2030.org/>.
16 Veja: <https://www.icomos.org/en/focus/un-sustainable-development-goals>.
17 Veja: <https://www.ifla.org/libraries-development>.
Referências
CGLU. Agenda 21 da cultura. Um compromisso das cidades e dos governos locais para
o desenvolvimento cultural. Barcelona: CGLU, 2004. Disponível em: <http://www.
agenda21culture.net/sites/default/files/files/documents/multi/ag21c_pt.pdf>.
Acesso em: 14 nov. 2019.
______. La cultura es el cuarto pilar del desarrollo sostenible, 2010. Disponível em:
<http://www.agenda21culture.net/sites/default/files/files/documents/es/zz_
cultura4pilards_esp.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Jordi Baltà e Jordi Pascual 45
Valores e princípios
orientadores da abordagem
A
Abordagem Cultural do Desen- A dimensão cultural se evidencia no
volvimento (ACD) se configura fato de que os valores culturais e os modos
em um campo de análise teórico de vida contribuem para os processos de de-
e conceitual emergente, de ordem metodo- senvolvimento, assim como a expressividade
lógica e de gestão em diferentes níveis, que e a criatividade contribuem para a inovação
visa destacar a dimensão cultural do desen- e a mudança social (MARTINELL, 2013).
volvimento e as diferentes contribuições Esse aspecto cultural do desenvolvimento
da cultura para a geração de capacidades e também se traduz na chamada transversa-
oportunidades humanas. A ACD tomou for- lidade da cultura, entendida como articula-
ma após a drástica reavaliação da noção e da ção funcional, interdependência e interação
gestão do desenvolvimento nas últimas déca- dinâmicas com outras dimensões e áreas
das, diante da necessidade de responder aos que compreendem a economia, a educação,
problemas da pobreza e da vulnerabilidade, a saúde e o meio ambiente. Da mesma for-
“ao desenvolvimento sustentável e às políti- ma, significa que a cultura é um meio que
cas de cooperação internacional para o de- “apoia e fortalece as intervenções em áreas
senvolvimento” (L+iD, 2013, p. 6). Como um de desenvolvimento” (UNESCO, 2011, p. 5)1
elemento-chave, a ACD visa compreender a e atua como uma peneira de estímulos pro-
natureza condicional e potencializadora dos venientes de múltiplos sistemas (políticos,
contextos locais e regionais. econômicos, educacionais).
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 47
constitutivo dela. Por isso, sua pro- No entanto, essa tarefa pressupõe a
moção aponta para a expressivida- criação e a ampliação de um conjunto de ca-
de e a criatividade, não para o mero pacidades agregadas à gestão, em particular,
conservacionismo cultural;5 de conhecimento e ação cultural, que pode
• a ACD se baseia na interdiscipli- ser implementado dentro e à margem dos
naridade, aceitando a integração mercados, no setor público ou fora dele, em
de outros postulados e princípios conexão com políticas públicas, ou orientado
conforme as características da vida para a mudança social comunitária.
cultural de cada contexto, num qua- Dessa forma, a ACD se configura como
dro de reconhecimento dos direitos um campo de confluência conceitual e prá-
fundamentais. Essa integração é tica para a gestão cultural, que, centrada na
oferecida entre disciplinas como díade capacidades-oportunidades, permitirá
economia, antropologia e educação, colocar em prática a dimensão cultural do
podendo ser estendida a outras em desenvolvimento. Entre as referências que
torno de categorias de consenso em constituem a ACD, destaca-se, em primeiro
pesquisa e gestão, como o bem-es- lugar, a abordagem de capacidades propos-
tar6 (L+iD, 2013a, p. 7). ta pelo economista e filósofo Amartya Sen,
ampliada nos últimos 15 anos pela filósofa
Capacidades e direitos para a gestão política Martha C. Nussbaum.
Em primeiro lugar, deve-se destacar que a A extensão mais conhecida dessa abor-
abordagem concebe a gestão cultural como dagem, a do desenvolvimento humano sus-
uma tarefa social em diferentes níveis – co- tentável do Programa das Nações Unidas
munitário, sociedade civil e governamental para o Desenvolvimento (PNUD), melhorou
–, cujo compromisso está a compreensão dos proces-
relacionado com a geração Os gestores são agentes sos de desenvolvimento e
de bem-estar e o aprovei- de mudança, mediadores de seu oposto essencial, a
tamento eficaz de recursos de políticas com funções pobreza humana, graças
disponíveis. Os gestores são complexas que vão desde à introdução de um méto-
agentes de mudança, me- a análise da realidade do de análise, uma agenda
diadores de políticas com (contexto) e a promoção de incidência política (por
funções complexas que vão da participação cultural até exemplo, ODM, ODS) e um
desde a análise da realida- outras mais específicas, conjunto de categorias de
de (contexto) e a promoção como a auto-organização. análise que melhoram sua
da participação cultural até compreensão (crescimento
outras mais específicas, como a auto-orga- econômico inclusivo, vulnerabilidade, traba-
nização. Os gestores são, em essência, estru- lho decente).
turadores de demandas sociais, culturais e O conceito de capacidades está intrin-
educacionais geralmente vinculadas (MAR- secamente ligado ao bem-estar individual.
TINELL, 2001). As capacidades são definidas como “aquilo
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 49
FIGURA 1:
Relação das capacidades (básicas e culturais) com o desenvolvimento humano e os projetos culturais
a partir da Abordagem Cultural do Desenvolvimento (ACD)
Capacidades básicas
Capacidades culturais
Fonte: elaboração própria com base em trabalho do Laboratório de Pesquisa e Inovação em Cultura e Desenvolvimento (L+iD), 2013.
50 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
FIGURA 2:
Esquema de aplicação da Abordagem Cultural do Desenvolvimento (ACD)
à gestão cultural do empreendimento
Abordagens de capacidades
trabalho aplicado de
capacidades de Nussbaum,
Sen e L+iD – PNUD (2013)
Estratégias de desenvolvimento
Análise e incorporação do contexto
econômico inclusivo
participação e o empoderamento dos atores expressões da vida, que incluem não só arte,
em seu território (L+iD, 2014). literatura ou tradições, mas também o ponto
de vista político, social, econômico, tecnoló-
Vida cultural e contexto: gico e espiritual. Os direitos a educação, infor-
do conceitual ao prático mação, liberdade de opinião e expressão, livre
A ACD enfatizou o direito de participar da associação, participação e tomada de decisões,
vida cultural. O aspecto cultural faz parte do somente para citar alguns, são indispensáveis
corpo dos direitos humanos e afeta inúmeras para o desenvolvimento e para a vida cultural.
TABELA 1:
Dimensões e níveis de análise de contexto
CONTEXTO POPULACIONAL Análise por faixa Nível de renda Características Instituições formais
etária, condição conforme a classe étnicas, e informais que
étnica e de gênero social e outras patrimoniais, influenciam na
e por situação características língua, costumes, interação social e no
de deslocamento celebrações, desenvolvimento do
e pobreza organização social empreendimento
Segurança da população
no trabalho, em que ocorre o
Análise social e outras empreendimento
demográfica características
Acesso a ativos
A participação na vida cultural é, por- humana avança “não pela sofisticação, for-
tanto, entendida a partir da universalidade, malização e abstração, mas pela capacidade
indissolubilidade e interdependência com de contextualizar e globalizar”.
outros direitos fundamentais. Apenas para Na prática, foi demonstrado que a análise
mencionar o aspecto econômico desse di- de contexto é indispensável para identificar a
reito, não é possível gerar capacidades cultu- fonte das privações e as barreiras à inclusão
rais para determinados atores (por exemplo, social, política e econômica. Também é útil
empreendedores ou gestores) se não houver detectar recursos indispensáveis na geração
um avanço simultâneo na materialização de de capacidades, meios de subsistência e capi-
seus direitos econômicos para o trabalho e a tal social fundamentais para superar a pobre-
geração de renda, sem mencionar os consti- za e a vulnerabilidade (L+iD, 2017).
tutivos do mínimo vital.9 Para concretizar essas ideias sobre o pa-
E qual é o papel do contexto? A análise pel do contexto na geração de capacidades e
do contexto evidenciou que os vínculos entre oportunidades é apresentado, a seguir, o caso
capacidades e direitos não ocorrem no vá- de empreendimentos culturais de tipo indivi-
cuo, mas em campos culturais diferenciados. dual e comunitário localizados nos 32 estados
Morin (1994) aponta como “conhecimento colombianos.10 A experiência é apresentada
pertinente” aquele que contextualiza e des- graças à sistematização de mais de 2 mil inicia-
taca que o conhecimento que sustenta a ação tivas geridas em nível local, pelos municípios, e
TABELA 2:
nacional, pelo Ministério da Cultura desse país Com esse perfil de cada empreendedor e
(Tabela 2). Os resultados sugerem a neces- empreendimento, foram identificadas as bar-
sidade de reformular políticas culturais e ter reiras à inclusão produtiva, que consistem em:
uma nova visão da prática de gestão cultural. • violação dos direitos fundamentais,
Primeiramente, foi construído um especialmente ao trabalho e à pro-
perfil dos empreendedores e seu contexto, priedade;
composto de características pessoais e fa- • existência de baixos níveis de forma-
miliares, do trabalho cultural e não cultural, ção, geralmente herdados dos pais;
com um diagnóstico inicial das capacida- • exclusão econômica e social, mate-
des e do empreendimento cultural. Esse rializada em baixo nível de acesso a
perfil foi levantado nas dimensões social, bens públicos.
econômica, cultural e institucional, com
uma abordagem populacional e territorial, As barreiras à inclusão permitiram pro-
procurando documentá-las na direção indi- por a adequação das habilidades básicas para
cada (Tabela 1). Muitos desses empreendi- melhorar a renda e os níveis de formação e das
mentos culturais estão nas mãos de pessoas habilidades culturais na formação artística, na
provenientes do mundo rural, deslocadas à gestão cultural e na ação. Além disso, ampliar o
força pelo conflito armado e que se desen- acesso a ativos produtivos e oportunidades de
volvem no mundo urbano. geração de renda.
PAI ANALFABETO NÃO PERTENCE A NÃO TEM CONTRATO SEM CAPACITAÇÃO POR
ORGANIZAÇÃO, AGREMIAÇÃO FINANCIAMENTO
OU SINDICATO
TABELA 3:
Capacidades centrais e culturais propostas a partir da Abordagem Cultural
do Desenvolvimento (ACD)
Notas
1 Uma das poucas referências à ACD é fornecida pela Unesco no sentido plural.
Ela pressupõe a existência de “abordagens culturais para o desenvolvimento”
que “aumentam a relevância, a sustentabilidade, o impacto e a eficácia das
intervenções, uma vez que se ajustam aos valores, às tradições, práticas e crenças
locais” (UNESCO, 2011, p. 5).
4 Para ver a importância da cultura nos ODM e nos ODS, leia Alvis (2010) e
Martinell (2013).
6 A ACD propõe que não existe uma noção exclusiva e extensível de bem-estar,
mas muitas noções desse conceito, geralmente localizadas. Portanto, tem
interesse em determinar os espaços de avaliação da qualidade de vida, em que a
participação na vida cultural desempenha um papel determinante.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Aarón Espinosa Espinosa 57
Referências
INDICADORES DE CULTURA
DA UNESCO PARA O
DESENVOLVIMENTO (IUCD)
Guiomar Alonso
Ferramenta valorosa e eficaz diante da dificuldade de avaliar o impacto da cultura nos pro-
cessos de desenvolvimento, os Indicadores de Cultura da Unesco para o Desenvolvimento
(IUCD) são capazes de orientar, justificadamente, as ações políticas e programáticas desti-
nadas à conquista desses objetivos. É bom que se diga, porém, que os resultados fornecidos
pelos IUCD devem ser utilizados de forma bastante consciente, para que haja um pleno
entendimento da definição de seu perímetro, que limita a comparação internacional, em
razão das diferenças entre os contextos históricos, sociais e políticos de cada país.
A
nova Agenda 2030 e seus 17 Objeti- Os principais atores e responsáveis p ela
vos de Desenvolvimento Sustentá- implementação das políticas vinculadas à
vel (ODS) integram e reconhecem Agenda 2030 se questionam até que ponto
explicitamente, pela primeira vez desde 1950, os sistemas educacionais valorizam e reco-
o papel positivo que a cultura pode desem- nhecem a diversidade cultural e o papel da
penhar na promoção do desenvolvimento cultura no desenvolvimento (meta 4.7); de
sustentável. Várias das 169 metas da agenda que forma concreta as políticas públicas de
mostram a estreita relação que múltiplos as- turismo sustentável promovem a cultura e os
pectos da cultura têm com diversos objetivos produtos locais (meta 8.9); como a proteção e
(educação, crescimento econômico, desen- a promoção do patrimônio cultural e natural
volvimento urbano, mudança climática, bio- contribuem para a melhoria do habitat (meta
diversidade, paz, justiça). Desse modo, volta 11.4); e qual é o impacto da luta contra o trá-
à linha de frente da atualidade o debate sobre fico de bens culturais na construção de so-
a conceitualização e modelização dessa in- ciedades mais justas e pacíficas (meta 16.4),
terdependência entre cultura e processos de para citar apenas algumas das perguntas que
desenvolvimento, sobre uma metodologia de voltam a ser feitas atualmente.
mensuração quantitativa que seja capaz de Se medir a cultura é reconhecidamente
fornecer cifras e indicadores confiáveis d essa uma tarefa complexa, mais ainda é avaliar
relação e, portanto, do nível de realização dos sua contribuição efetiva para o desenvolvi-
próprios ODS. mento. A prova tangível dessa realidade é a
62 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
IUCD: FASES
Desenvolvimento do
conceito de bateria
de indicadores
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 63
político relacionado à importância da cul- ferramenta inédita capaz de medir o papel que
tura no desenvolvimento dos países. A ideia a cultura desempenha nos processos de de-
era poder demonstrar aos atores culturais, senvolvimento de um país.
e principalmente a outros atores do cresci- A principal especificidade dos IUCD é
mento, a valiosa contribuição da cultura, que a abordagem pragmática e flexível, adaptada
a torna, mais do que um instrumento, uma às realidades estatísticas nacionais de países
finalidade do desenvolvimento. de média/baixa renda – caracterizadas pela
O projeto contou com o apoio da Agên- escassez de dados disponíveis e por capaci-
cia Espanhola de Cooperação Internacional dades limitadas de tratamento estatístico. Os
para o Desenvolvimento (Aecid), que entre IUCD transcendem as carências e as dificul-
2009 e 2014 disponibilizou para a Unesco os dades tradicionais ligadas a países “pobres”
recursos necessários para explorar, inovar e em informações e estatísticas. Privilegiam
produzir essa nova bateria de 22 indicadores. a adaptação de fontes de informação pró-
O projeto fez parte das primeiras experiências prias do país de estudo, o uso de proxys e
de aplicação da Convenção da Unesco sobre a indicadores alternativos caso não possam
Proteção e Promoção da Diversidade das Ex- ser construídos os indicadores centrais. A
pressões Culturais, particularmente de seu metodologia de construção dos IUCD gera
artigo 13. Assim, após um exaustivo processo um diálogo entre atores de desenvolvimento
de pesquisa colaborativa,1 de rigorosa expe- e atores culturais que chama a atenção para
rimentação prática, ajuste e validação em 12 a cultura e produz dados confiáveis, q ue re-
países (que durou cinco anos) e duas fases sultam na apropriação e na sustentabilidade
de teste, a Unesco apresentou os indicadores dos processos, favorecendo a adoção de no-
IUCD à comunidade internacional como uma vas estratégias e políticas.
Elaboração do Guia Difusão e apresenta- Armênia, Geórgia Tradução para o rus- IUCD como base
de Implementação ção de resultados, e Ucrânia lançaram so; revisão do méto- para os indicadores
– Desenvolvimento lançamento a implementação do de apresentação temáticos da cultura
Visual dos IUCD. México dos indicadores na Agenda 2030 –
Finalização de fer-
experimenta a nacional e urbano
Tradução para o ramentas, tradução Apresentação dos in-
implementação
francês e o espanhol para o árabe dicadores do sudeste
em escala urbana
europeu e México
Publicação, promo- (somente em três
ção e criação estados: Guerrero, Lançamento dos
Colima e Cidade indicadores para
Plataforma web do México) a Agenda 2030
64 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
DIAGRAMA INDICADORES
Dimensão
Educação descrição Índice de escolaridade média Porcentagem de horas de instrução dedicadas
da população entre 17 e 22 anos à promoção do multilinguismo em relação
ajustado em função das desigualdades ao total de horas de instrução dedicadas ao
ensino de línguas (7º e 8º anos)
Dimensão
Governança descrição Índice de desenvolvimento do quadro Índice de desenvolvimento do quadro
regulamentar para a proteção e promoção regulamentar e institucional para a proteção e
da cultura, dos direitos culturais promoção da cultura, dos direitos culturais e
e da diversidade cultural da diversidade cultural
Dimensão
Comunicação descrição Índice de liberdade da imprensa escrita, Porcentagem de pessoas que usam a internet
rádio e televisão e dos meios
de comunicação baseados na internet
indicadores Sustentabilidade
do patrimônio
Dimensão
Patrimônio
descrição Índice de desenvolvimento de um
quadro multidimensional para a
sustentabilidade do patrimônio
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 67
Despesas domiciliares
com cultura
Grau de confiança em relação às pessoas Grau de confiança interpessoal Resultado médio da livre
com diferentes origens culturais determinação percebida
Diversidade de conteúdos
de ficção na televisão
Indicadores de referência
Indicadores descritivos
68 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
*Implementados pelos Escritórios Regionais da Unesco em Amã, Harare, México e Veneza com fundos extraorçamentários.
**Implementados por consultores Cids, com o apoio da Unesco. Financiamento nacional ou de terceiros.
4,76% 42,6%
Atividades
de apoio
57,4%
Atividades
centrais
5%
7%
Quintil 1
12% Quintil 2
54% Quintil 3
Quintil 4
Quintil 5
22%
de petróleo (2,0%). Esse dado, que por si a demanda. Por exemplo, na Colômbia, em
só já é significativo, representa apenas a 2007, o consumo cultural domiciliar foi de
ponta do iceberg da contribuição global do 2,75%. Esse porcentual varia muito conforme
setor. De fato, e como já indicado, os IUCD o nível de renda domiciliar: mais da metade
não incluem, por definição, contribuições do total das despesas culturais anuais (54%)
como as atividades realizadas em esta- foi feita pelos domicílios no quintil mais alto,
belecimentos culturais do setor informal enquanto apenas 5% foram realizadas pelo
nem as atividades culturais não comerciais quintil mais baixo. E há uma diferença sig-
oferecidas por órgãos públicos ou por ins- nificativa entre o consumo dos domicílios
tituições sem fins lucrativos, que são de urbanos (1,14%) e rurais (0,30%). Tanto essas
grande importância no Equador. Também desigualdades como a predominância de des-
não estão incluídas nessa cifra outras ati- pesas com equipamento/apoio merecem ser
vidades-chave fortemente vinculadas à consideradas na formulação e na aplicação
cultura, como a renda de hotéis, restauran- das políticas e medidas para promover um
tes e transportes associados a atividades acesso mais inclusivo à vida cultural.7
ou locais culturais e patrimoniais.
O indicador de consumo domiciliar Educação
fornece informações valiosas sobre as prá- Com essa dimensão, procura-se analisar a
ticas de consumo cultural e para analisar prioridade estabelecida pelas autoridades
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 71
1,0
0,9
0,8
0,7
0,6 0,97/1
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0,0
Bósnia-Herzegovina Vietnã Equador Gana Colômbia
Madre de Dios
Huancavelixa
Lambayeque
La Libertad
San Martín
Moquegua
Cajamarca
Amazonas
Ayacucho
Apurímac
Arequipa
Huanuco
Tumbes
Ancash
Ucayali
Loreto
Cusco
Pasco
Tacna
Junin
Puno
Piura
Lima
Ica
Fonte: Atlas de Patrimônio e Infraestrutura Cultural das Américas: Peru (2011). | Metodologia: IUCD-Unesco
0,2%
Nacional
Internacional
no Equador9 foram dedicados a programas nos domicílios, revelando uma demanda sig-
de ficção nacional. Isso indica uma baixa nificativa e uma oportunidade de expandir a
porcentagem de ficção nacional incluída na oferta de conteúdos locais.
programação pública, abaixo da média de to-
dos os países que implementaram os IUCD, Patrimônio
de 25,8%. O aumento do apoio à difusão de Em suas diversas formas – natural, cultu-
programas de ficção nacionais aumentaria ral, tangível, intangível, móvel e imóvel –,
a variedade da programação e também po- o patrimônio é tanto um produto como um
deria contribuir para informar questões de processo que fornece às sociedades recursos
relevância cultural, fortalecer identidades “frágeis” que exigem políticas e modelos de
e promover a diversidade cultural. A inter- desenvolvimento para preservar e respei-
pretação desse indicador se inter-relaciona tar sua diversidade e singularidade, já que,
facilmente com dois dos indicadores econô- depois de perdidos, não são renováveis. Os
micos, que sugerem baixos níveis de criação IUCD propõem um índice de desenvolvimen-
de produtos e serviços culturais nacionais e, to de uma estrutura multidimensional para
ainda, o consumo de bens e serviços culturais a proteção, a salvaguarda e a promoção da
Guiomar Alonso
Conselheira regional de cultura no escritório da Unesco em Sahel (Dakar), na África
Ocidental, Guiomar estudou no Institut des Hautes Études de Défense Nacionale, em
Paris, na University at Albany, em Nova York, e na Universidad Complutense de Madrid,
na capital espanhola.
Notas
1 Durante cinco anos, sob a direção de Guiomar Alonso Cano e com Melika
Medici como chefe do projeto, mais de 150 especialistas provenientes de
administrações públicas nacionais, institutos de estatística, organizações
da sociedade civil, bem como do mundo acadêmico, contribuíram para o
desenvolvimento dos IUCD. A equipe da Unesco era composta de jovens
pesquisadores de econometria e desenvolvimento: Naima Bourgault,
Guillaume Cohen, Annya Crane, Keiko Nowacka e Molly Steinlager.
Referências
Albânia (2016)
<http://www.unesco.org/new/en/unesco/events/albania/?tx_browser_
i1%5BshowUid%5D=33285&cHash=62d817a640>
Armênia (2017)
<https://www.culturepartnership.eu/en/article/cdis-armenia>
Resumo analítico:
<https://www.culturepartnership.eu/upload/editor/2017/Policy%20
Briefs/171128%20CDIS%20Armenia%20Analytical%20Report%20English.pdf>
Geórgia (2017)
<https://www.culturepartnership.eu/en/article/cdis-georgia>
Resumo analítico:
<https://www.culturepartnership.eu/upload/editor/2017/Policy%20Briefs/
CDIS%20Georgia%20Analytical%20and%20Technical%20Report.pdf>
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Guiomar Alonso 81
México (2013-2018)
Estados de Colima, Guerrero, Puebla e México, México DF
<http://www.unesco.org/new/es/mexico/press/news-and-articles/content/
news/la_oficina_de_la_unesco_en_mexico_entrega_el_sistema_de_ind/>
Ucrânia (2017)
<https://www.culturepartnership.eu/en/article/culture-for-development-
indicators>
Resumo analítico:
<https://www.culturepartnership.eu/upload/editor/2017/2017/CDIS%20_%20
Analytical%20Brief%20_%20ENG%20(1).pdf>
2.
82 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
INSPIRAÇÕES E CAMINHOS
PARA A INTEGRAÇÃO
DA CULTURA NO
DESENVOLVIMENTO
133. DIVERSIDADE E
DESENVOLVIMENTO. AGENDA 2030: RUMO À
DESCOLONIZAÇÃO DOS NOSSOS MUNDOS
Lucina Jiménez
O QUE ENTENDEMOS
POR SUSTENTABILIDADE
A PARTIR DA CULTURA?
Este artigo oferece uma viagem através da história da cultura no âmbito da sustentabili-
dade. Analisaremos por que a cultura não foi incluída nos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS). Em seguida, refletiremos sobre como a cultura pode se apropriar da
Agenda 2030. A formação do setor cultural, a integração dos ODS e casos inspiradores são
alguns dos assuntos a serem desenvolvidos. A conclusão, a título de resumo, sintetiza o que
é tratado neste artigo.
A
Agenda 2030 e seus Objetivos de No entanto, a cultura não é um ele-
Desenvolvimento Sustentável mento central na Agenda 2030 ou nos ODS.
(ODS) compõem o roteiro global Algumas metas a mencionam, mas não há
assumido por todos os países do mundo para um objetivo específico da cultura. Quando
tornar este planeta mais próspero, mais justo a agenda pós-2015 estava sendo desenvol-
e mais respeitoso com o meio ambiente até o vida, organizou-se uma campanha global
ano 2030. A agenda foi aprovada em setem- chamada O Futuro que Queremos Inclui a
bro de 2015 na Assembleia Geral das Nações Cultura.1 Apesar do apoio que recebeu de
Unidas, e, desde então, todos os setores da so- organizações, da sociedade civil e de es-
ciedade foram acionados para implementá- pecialistas de mais de 120 países, nenhum
-la e para atingir esses objetivos ambiciosos. objetivo incorporou a dimensão cultural no
É uma tarefa que envolve todos os níveis de desenvolvimento sustentável.
governo, universidades, empresas, a socieda- Do artigo “Cultura para el desarrollo y
de civil e, claro, o mundo da cultura. educación: ciudadanos globales”,2 de Alfons
84 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
nos desafiam a criar capacidades, fortalecer Quais são os ODS que a minha
os meios de implementação e revitalizar a instituição quer priorizar?
Aliança Mundial para o Desenvolvimento É necessário selecionar os objetivos de
Sustentável. acordo com a natureza da entidade ou do
Todos esses tópicos, traduzidos para trabalho. Haverá locais onde alguns ODS
o mundo cultural, têm a ver com organiza- serão mais enfatizados que outros. Talvez
ções que assumem um papel ativo na sensi- um museu de ciências naturais esteja mais
bilização e na formação do desenvolvimento alinhado com os objetivos relacionados ao
sustentável, associam-se a outros e tomam planeta, e uma associação cultural de bairro
consciência de seu papel central como um pode se concentrar mais naqueles que têm a
elo em comunidades e sociedades. ver com as pessoas.
Finalmente, é preciso existir a integra-
ção do novo paradigma da sustentabilidade Quais ferramentas tenho
em nossa práxis. Cada profissional, gestor, para realizar os ODS?
espaço, centro ou instituição cultural deve Essas ferramentas serão econômicas, huma-
explorar as conexões existentes entre os ODS nas e materiais. E devem incluir colaborações
e seu contexto profissional a partir de uma com outras instituições, associações, escolas
perspectiva transversal. A e agentes culturais – todos os
forma mais simples de che- Todos nós que atores que estejam em sintonia
gar a esse resultado é estar trabalhamos no setor com os objetivos que nos pro-
familiarizado com os ODS e cultural percebemos pusemos a implementar.
convencido de que esse é o que a possibilidade de Todos nós que traba-
caminho a seguir. Uma vez propor mudanças na lhamos no setor cultural
que esses requisitos sejam gestão adotando critérios percebemos que a possibi-
cumpridos, a integração é de sustentabilidade, ou lidade de propor mudanças
conquistada na prática. Para o momento de propor na gestão adotando crité-
realizá-la, podemos fazer as ações e programação rios de sustentabilidade, ou
três perguntas a seguir. relacionadas a essas o momento de propor ações
questões, tem sido e programação relacionadas
Do que precisaríamos para muito limitada. a essas questões, tem sido
cumprir os ODS? muito limitada. Felizmente,
É necessária uma análise da missão, da há uma mudança de atitude e uma enorme
visão e da programação da instituição. O receptividade a essa nova proposta.
mais eficaz é estabelecer objetivos em um Cada vez mais agentes e centros cultu-
contexto local, no ambiente onde a ativi- rais estão abertos para discutir essa temática
dade desse centro, espaço ou gestor é de- e incorporar em sua programação os desa-
senvolvida. Os ODS são metas globais que fios globais enfrentados pela humanidade,
convocam para a ação local. Pense global- como a crise ecológica, a migração e as de-
mente, aja localmente. sigualdades. Esses agentes trabalham nas
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta García Haro e Lucía Vázquez 89
intersecções entre arte, cultura e desenvol- Unidas sobre Mudança do Clima, em que os
vimento sustentável a partir de diferentes Acordos de Paris foram aprovados.
contextos: gestão, programação, políticas O International Council of Museums
culturais ou ativismo. Eles nos dão visões, (Icom) se juntou recentemente a esse mo-
compartilham aprendizados, são criadores, vimento por intermédio da criação de um
gestores culturais ou responsáveis por mu- grupo de trabalho sobre museus e sustenta-
seus, teatros, centros de exposições e festi- bilidade, com membros do mundo todo, para
vais que entenderam que devem empreender discutir como promover o progresso em seu
uma mudança em direção à sustentabilidade. campo de ação.
Na América Latina também encontra-
Casos inspiradores mos exemplos de referência desse binômio
Há um número crescente de atores do se- cultura-sustentabilidade. Em Medellín, o
tor cultural e criativo no mundo que estão Parque Explora faz parte da rede cultural
trabalhando nas intersecções entre arte e com a qual a cidade se destacou como exem-
desenvolvimento sustentável. Na Europa, plo de superação de um passado de violên-
destacamos duas entidades que servem de cia e insegurança. É um museu de ciências
inspiração. Primeiramente, a Julie’s Bicycle, e tecnologia que integrou em seu discurso,
entidade britânica sem fins lucrativos que missão, visão e programação o conceito de
opera desde 2008 para tornar o setor mais sustentabilidade, com ações como Colombia,
sustentável a partir de uma abordagem am- País de Agua (Colômbia, País da Água). Fez
biental. E, graças a uma parceria estratégi- também parceria com associações comuni-
ca com o Arts Council England, conseguiu tárias para realizar programas de conscien-
transformar todo o setor cultural por meio de tização em sustentabilidade.
uma mudança nos requisitos para a obtenção Ainda na Colômbia, existem várias ini-
de apoio público (exigindo, por exemplo, a ciativas que unem arte e sustentabilidade
apresentação de um relatório de sustenta- promovidas pela ONG Fondo Acción. Entre
bilidade). Essa entidade também organizou, elas, destacamos Maletín de Relatos Pací-
em 2018, o Season of Change, o maior festival ficos (Portfólio de Relatos Pacíficos), que
artístico dedicado à mudança climática no reúne 23 narradores do Pacífico colombiano
Reino Unido. para relatar sobre matas, florestas e territó-
Outro exemplo inspirador é o da Coali- rio, e que representa um ponto de encontro,
tion pour l’Art et le Développement Durable por meio da literatura, de interesses am-
(Coal), associação francesa que mobiliza bientais e culturais. Há também o Prêmio
curadores e profissionais da cultura em torno CambiARTE, concurso de arte e mudança
dos desafios do desenvolvimento sustentá- climática que visa conscientizar a opinião
vel. A Coal concede anualmente um prêmio pública sobre a necessidade de mobilizar
de prestígio em arte e meio ambiente e, em recursos para o financiamento sustentável
2015, projetou a programação ArtCOP21, de ações de mitigação e adaptação diante
que acompanhou a Convenção das Nações das mudanças climáticas.
90 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Outro caso inspirador fica no Brasil: o sustentabilidade. A partir dos setores artís-
Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, é de- tico, criativo e cultural, vemos o enorme de-
finido como um lugar de “ciências aplicadas safio que devemos assumir, mas também uma
que explora as oportunidades e os desafios oportunidade de criar parcerias com outros
que a humanidade será obrigada a enfrentar setores (como, por exemplo, o da educação),
nas próximas décadas a partir da perspectiva aumentando sua presença e visibilidade. O
da sustentabilidade e do convívio”. O discur- desenvolvimento sustentável é, sem dúvida,
so expositivo encoraja os visitantes a refletir uma necessidade para as políticas culturais
sobre a era do Antropoceno, sobre seu pró- de todos os governos, que devem integrá-lo de
prio papel como parte dele forma transversal e coeren-
e seu poder transformador. Os Objetivos de te. E é a única resposta pos-
Fora do campo estrita- Desenvolvimento Sustentável sível para a atual situação
mente artístico, a Rede de nos fornecem um sistema mundial. Os Objetivos de
Soluções para o Desenvolvi- de valores universal. A Desenvolvimento Susten-
mento Sustentável (SDSN), cultura é transmissora de tável nos fornecem um sis-
das Nações Unidas, acolhe valores e constrói a nossa tema de valores universal.
a iniciativa juvenil Arts identidade como espécie. A cultura é transmissora de
Twenty Thirty, projeto Juntos, constituem o valores e constrói a nossa
promovido por jovens da binômio perfeito para a identidade como espécie.
organização que reúne ar- necessária transformação Juntos, constituem o binô-
tistas do mundo todo para social no caminho para o mio perfeito para a necessá-
promover os ODS. desenvolvimento sustentável. ria transformação social no
caminho para o desenvolvi-
Conclusão mento sustentável.
Que sistema cultural queremos ter no ano de Sem desenvolvimento sustentável não
2030? A cultura tradicionalmente tem olha- há futuro. Isso significa repensar o nosso
do para o passado, para a tradição. A visão modo de viver neste mundo, significa re-
de longo prazo é desconhecida para nós e, no pensar como fazemos as coisas e aceitar a
entanto, o desenvolvimento sustentável nos nossa responsabilidade para com as futuras
leva a esse horizonte de 2030. gerações. Não é difícil convencer os agentes
A cultura humaniza e é um veículo para culturais sobre isso quando o que está em
as emoções. É o instrumento mais podero- jogo é a nossa sobrevivência. É um desafio
so para divulgar e canalizar a mensagem da complexo, mas não impossível.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta García Haro e Lucía Vázquez 91
Lucía Vázquez
Historiadora da arte, educadora e especialista em cultura e sustentabilidade e di-
retora do projeto Educación y Sostenibilidad (<https://www.educacionysostenibilidad.
com/>), foi também chefe do Departamento de Educação do Museu Picasso Málaga de
2008 a 2016. É membro do comitê científico da International Conference on Sustainable
Development, organizada pelo Earth Institute da Universidade de Columbia e pela Sus-
tainable Development Solutions Network, e colaboradora da Reds.
92 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Notas
1 A campanha foi promovida por Ifacca, IFCCD, Agenda 21 for Culture (UCLG),
Culture Action Europe, Arterial Network, IMC – International Music Council,
Icomos, Ifla e Latin American Network of Art for Social Transformation.
Manifesto The Future We Want Includes Culture disponível em: <http://www.
agenda21culture.net/advocacy/culture-as-a-goal-in-post-2015>. Acesso em:
18 nov. 2019.
5 Veja: <http://unesdoc.unesco.org/images/0026/002646/264687e.pdf>.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO:
EXISTEM RESULTADOS E IMPACTOS?
Paulo H. Duarte-Feitoza
A gestão cultural no campo das relações entre cultura e desenvolvimento é muito ampla e, às
vezes, dominada por certa retórica com pouca concretude em seus resultados e efeitos. Este
artigo apresenta resultados e impactos na cultura e no desenvolvimento a partir da discussão
e da análise da janela temática do Fundo para o Alcance dos Objetivos do Milênio (F-ODM),
um dos programas internacionais mais ambiciosos e inovadores das últimas décadas.
Contexto de referência
A
Organização das Nações Unidas amplamente reconhecida como elemento
(ONU) assinou, em setembro de estrutural para alcançar os objetivos tão
2000, a Declaração do Milênio,1 almejados pela comunidade internacio-
cujo objetivo principal é garantir direitos nal. De forma sucessiva, em 2010 e 2011, a
humanos básicos e contribuir de forma efe- ONU aprovou duas resoluções sobre cultura
tiva para a superação da pobreza extrema. e desenvolvimento (65/166 e 66/208) que
Fruto desse histórico acordo internacio- tinham como meta fortalecer e impulsio-
nal foram os oito Objetivos de Desenvolvi- nar globalmente o enfoque cultural para o
mento do Milênio (ODM),2 que deveriam desenvolvimento.3 É preciso ressaltar que
ter sido alcançados em 2015: erradicar a tanto as políticas quanto os projetos cultu-
pobreza extrema e a fome (ODM1); alcan- rais contribuíram muito positivamente para
çar o ensino primário universal (ODM2); alcançar os ODM.
promover a igualdade de gênero e o empo- Em dezembro de 2006, o Programa
deramento das mulheres (ODM3); reduzir das Nações Unidas para o Desenvolvimento
a mortalidade infantil (ODM4); melhorar a (PNUD) e o governo da Espanha assinaram
saúde materna (ODM5); combater o HIV/ um importante acordo de cooperação inter-
Aids, a malária e outras doenças (ODM6); nacional, de aproximadamente 900 milhões
garantir a sustentabilidade ambiental de dólares, como meio de estimular que esse
(ODM7); e gerar uma parceria global para propósito fosse conquistado. Com os recursos
o desenvolvimento (ODM8). foi criado o Fundo para o Alcance dos Obje-
Ainda que não mencionada de for- tivos do Milênio (F-ODM),4 que financiou
ma explícita nos oito ODM, a cultura era projetos nos quais se integraram as diferentes
96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
agências das Nações Unidas, os governos na- agenda internacional o fortalecimento das
cionais, os governos locais e as comunidades. indústrias criativas e da proteção natural e
É importante destacar que o F-ODM foi um cultural como instrumentos eficazes de de-
elemento-chave da política espanhola de coo- senvolvimento econômico. A Janela de Cul-
peração multilateral para o desenvolvimento tura e Desenvolvimento foi uma inovação
na primeira década do novo século. dentro das abordagens clássicas do PNUD
O F-ODM, segundo dados oficiais, apoiou e das Nações Unidas no âmbito da coope-
130 programas interagenciais em 50 países, de ração internacional ao desenvolvimento, já
cinco continentes, beneficiando de forma dire- que abria novas perspectivas de luta contra
ta mais de 9 milhões de pessoas.5 Os programas a pobreza. Representou também um desafio
foram divididos em oito janelas temáticas: para o próprio sistema de agências da ONU,
que não tratava a cultura como campo prio-
• Infância, Segurança Alimentar ritário na cooperação internacional para o
e Nutrição; desenvolvimento. E permitiu, ainda, a re-
• Igualdade de Gênero e cuperação das identidades culturais como
Empoderamento das Mulheres; expressão de coesão social, memória histó-
• Meio Ambiente e Mudanças rica e patrimônio cultural a partir de uma
Climáticas; perspectiva integral.
• Juventude, Emprego e Migração; Viu-se na cultura um ativo singular para
• Governança Econômica o desenvolvimento sustentável e indispensá-
Democrática; vel para a redução da pobreza. Com um or-
• Desenvolvimento e Setor Privado; çamento de 95,6 milhões de dólares, a Janela
• Prevenção de Conflitos de Cultura e Desenvolvimento possibilitou a
e Construção da Paz; realização de 18 programas em todo o mundo:
• Cultura e Desenvolvimento. África (5), América Latina (5), Ásia (2), Esta-
dos Árabes (3) e Leste Europeu (3).
Assim, conjuntamente, esses programas Foi no documento Termos de Referên-
contribuíram para o progresso e o alcance cia da Janela de Cultura e Desenvolvimento
dos ODM, estimulando a participação nacio- que se desenharam e delimitaram as propos-
nal das iniciativas por parte dos países onde tas a ser consideradas para o financiamento.
eram realizados. Visava-se apoiar a implementação e a ava-
liação de políticas públicas efetivas que pro-
A janela temática em cultura movessem ações sociais e a inclusão social,
e desenvolvimento e seus termos facilitando, assim, a participação política e
de referência a proteção de direitos. Nesse marco de atua-
Uma das grandes inovações do F-ODM foi ção, a janela temática procurava impulsionar
a inclusão de uma janela temática dedicada as indústrias culturais e criativas centradas
exclusivamente à cultura e ao desenvolvi- em políticas de diversidade, cultura e desen-
mento, com a qual foi possível introduzir na volvimento. É importante listar e observar os
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paulo H. Duarte-Feitoza 97
elementos ilustrativos dos Termos de Refe- regulamentos legais nos níveis na-
rência, que pretendiam alcançar os objetivos cional, regional e local, destinados a
principais e também evidenciar a amplidão facilitar a inclusão de minorias cul-
do campo das relações entre cultura e desen- turais em cargos públicos;
volvimento. Os Termos de Referência ser- • desenvolver, implementar e mo-
vem para formular a pergunta sobre o que nitorar políticas de igualdade de
pretendia a janela temática. Essa questão é oportunidades no recrutamento
importante porque é a expressão do desejo e na promoção de minorias cultu-
de inovação nas abordagens clássicas das rais e outros grupos excluídos por
propostas de desenvolvimento. Agrupados razões culturais no setor público
em três grandes blocos, alguns dos Termos (i), inclusive em escritórios desig-
de Referência procuravam:6 nados, no serviço civil e nas forças
de segurança locais, regionais e na-
1. Formulação, implementação e monitora- cionais; (ii) em parlamentos eleitos,
mento de políticas públicas social e cultu- em assembleias subnacionais e em
ralmente inclusivas: cargos ministeriais; e (iii) no Poder
Judiciário e nos tribunais.
• apoiar o diálogo, as iniciativas trans-
culturais e os intercâmbios educa- 2. Concretizar o potencial econômico e so-
cionais destinados a promover a cial do setor cultural e fortalecer as indús-
compreensão e a tolerância entre trias culturais e criativas, incluindo:
diferentes comunidades culturais;
• construir a capacidade institucional • desenvolver recomendações de po-
em órgãos, departamentos e agên- líticas para melhorar o ambiente
cias oficiais responsáveis pela im- institucional e regulatório em se-
plementação de políticas e práticas tores específicos da indústria cul-
culturais que promovem a igualdade tural e criativa, como música, novas
de oportunidades; mídias, design, artesanato, jornais,
• apoiar o interculturalismo e o mul- televisão e livros;
ticulturalismo nas políticas sobre • desenvolver capacidades desenhadas
direito regular, pluralismo jurídico com o intuito de melhorar a gestão
e leis sobre línguas oficiais; de bens culturais, as habilidades em-
• proteger os sistemas de conheci- preendedoras e as práticas de gestão
mento tradicional, reconhecendo de negócios entre empreendedores
sua contribuição para a proteção culturais, empresas iniciantes e ar-
ambiental e a gestão de recursos na- tistas autônomos, tanto na economia
turais, saúde e educação; formal quanto na informal;
• desenvolver, implementar e mo- • apoiar a criação de empresas culturais
nitorar políticas, procedimentos e locais, desenvolvendo “incubadoras
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Notas
11 MARTINELL, Alfons S. ¿Por qué los ODS No Incorporan la Cultura?, 2015. Disponível
em: <http://www.alfonsmartinell.com/?p=326>. Acesso em: 5 nov. 2019.
106 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Francisco d’Almeida, David Koné e Valeria Marcolin 107
Y
opougon é o maior município da culturais que atuam sobre o conteúdo das
Costa do Marfim e um dos 13 que políticas desse campo.
compõem o distrito de Abidjan, que Com uma população de 1,071 milhão
foi, até 1983, a capital do país e ainda hoje é de habitantes,2 Yopougon abriga uma zona
considerado a capital econômica. Localizado industrial que atraiu pessoas que lá se ins-
ao norte da Lagoa Ébrié, que separa os bair- talaram sob o efeito do êxodo rural interno
ros do sul e do norte do distrito, Yopougon foi e dos fluxos migratórios na África Ociden-
criado na década de 1970 como parte de um tal, durante o boom econômico da Costa do
projeto urbano “modernista” para equilibrar Marfim. Essas pessoas contribuem para sua
a expansão de Abidjan.1 diversidade cultural.
Ele é composto de um mosaico de Considerado também como um ponto
áreas residenciais e atividades econômi- de lazer, pela densidade de sua malha de res-
cas que absorveu as aldeias tradicionais taurantes e locais de espetáculos e entrete-
sem desmobilizar sua organização socio- nimento, Yopougon é o principal foco da vida
política e cultural. Essas aldeias permitem cultural de Abidjan. Artistas e uma infini-
que ele permaneça ancorado nas tradições dade de associações e de empreendedores
108 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
criando sinergias entre elas por intermédio municipal, atores culturais e organizações
do compartilhamento de recursos técnicos da sociedade civil.
e experiências para a melhoria do ambiente O Programa Juventude e Cidadania
de vida; e inovar na produção de objetos para Cultural tem relação com a Agenda 2030
empresas locais. para o Desenvolvimento Sustentável. Com
base na riqueza e na diversidade de suas ex-
Consideração dos Objetivos de pressões culturais, cria condições favorá-
Desenvolvimento Sustentável na veis à paz para uma população traumatizada
escala de um município marfinense por anos de divisão e violência políticas.
Essa visão geral de iniciativas, realizações Também pretende construir, com o au-
e projetos implementados pela prefeitura xílio de parcerias, uma relação de responsa-
de Yopougon com vários parceiros locais, bilidades compartilhadas com os jovens. Em
nacionais e internacionais é uma indica- razão de sua integração nos bairros e de sua
ção de que é possível considerar os ODS proximidade com os líderes comunitários,
nesse tipo de contexto. A os membros jovens do Con-
comunidade local iniciou O apoio à organização de selho Municipal favorecem
projetos plurianuais para competições e festivais a colaboração da prefeitura
reforçar a coesão social, culturais e artísticos com um grande número de
desenvolvendo atividades ajuda a incentivar a atores sociais.
e infraestruturas sociais e participação cultural O apoio à organização de
culturais, trabalhando para e a profissionalização competições e festivais cultu-
gerar colaboração entre os dos jovens, a fim de rais e artísticos ajuda a incen-
serviços públicos responsá- desenvolver em etapas os tivar a participação cultural e
veis pela cultura e a educa- setores culturais que lhes a profissionalização dos jo-
ção e apoiando iniciativas permitem viver de acordo vens, a fim de desenvolver em
da sociedade civil que asso- com seus talentos. etapas os setores culturais que
ciam saneamento ambiental lhes permitem viver de acor-
e criatividade para incentivar a criação de do com seus talentos. Por meio de atividades
modelos de produção sustentável. nos bairros, busca envolver o maior número de
Esses projetos, muitas vezes liderados habitantes em uma abordagem local, que tam-
por jovens, buscam fortalecer a posição dessa bém leve em conta a fragilidade de sua renda
parcela da população, assim como a de mu- monetária e favoreça sua participação cultural.
lheres e de grupos desfavorecidos associados A revitalização das instalações cultu-
nos processos de trabalho colaborativo. rais quer promover as expressões dos jovens
Os documentos de orientação da ação no setor, considerando as diversas comuni-
municipal elaborados na área de cultura dades, particularmente aquelas de pessoas
e desenvolvimento local foram desenvol- em situação de dificuldade, como analfabetos
vidos como parte de um processo parti- e migrantes. Finalmente, ações específicas
cipativo, que envolveu a administração são dedicadas à temática do gênero.
114 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Francisco d’Almeida
Franco-togolês graduado em ciências políticas e doutor em sociologia do desenvol-
vimento pela Sorbonne (Paris I), é especialista da Organização Internacional da Francofo-
nia (OIF) e membro do banco de especialistas da Unesco para a governança da cultura.
Codirige a ONG Culture et Développement (Cultura e Desenvolvimento) para a inclusão
da cultura nas políticas de cooperação para o desenvolvimento, além de ministrar cursos
de treinamento na Universidade Senghor para o desenvolvimento africano na Alexandria
(Egito) e no mundo francófono.
David Koné
Mestre-assistente em artes cênicas e atividades culturais na Universidade Félix
Houphouët-Boigny de Abidjan, na Costa do Marfim, atua como diretor do Departamento
de Assuntos Socioculturais (Dasc) da prefeitura de Yopougon, onde implementa projetos
de desenvolvimento cultural territorial com apoio técnico ou financeiro da Unesco, da
Organização Internacional da Francofonia (OIF), da União Europeia (UE) e da Associa-
ção Internacional de Prefeitos Francófonos (AIMF). Nesse contexto, lidera projetos para
fortalecer a coesão social por meio de atividades culturais e esportivas e de renovação
urbana. Como professor pesquisador, realiza estudos sobre o desenvolvimento cultural do
território. É membro do banco de especialistas da Unesco para a governança da cultura.
Valeria Marcolin
Especialista em elaboração, gestão e avaliação de projetos de cooperação cultu-
ral internacional, assim como no desenvolvimento de políticas e instrumentos culturais
adaptados ao contexto dos países em desenvolvimento. Codiretora da ONG Cultura e
Desenvolvimento, é consultora da Unesco, da OIF, da UE e de ministérios para programas
de treinamento sobre o papel da cultura nas políticas de desenvolvimento e a promoção
da diversidade das expressões culturais.
116 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Notas
AS DESIGUALDADES CULTURAIS:
O ÉTICO, O ÉTNICO E A COMUNIDADE
Paula Moreno
E
tária das periferias e a construção da paz na
ste artigo se concentra nas desigual- Colômbia. No final deste texto, são feitas re-
dades e exclusões culturais, a fim de flexões práticas sobre a gestão cultural para
abordar as relações e interdepen- reduzir as exclusões em países como o Brasil e
dências entre cultura e desenvolvimento. A a Colômbia, que ocupam os primeiros lugares
primeira parte se dedica a propor diferentes em desigualdades estruturais no mundo.
olhares e definições sobre cultura e desen- Espero que o leitor reflita comigo, em um
volvimento, em termos de inclusão efetiva a momento da maior relevância e urgência, para
partir de uma perspectiva de relações de poder. repensarmos o poder da cultura com a inten-
Na segunda parte, analisa-se o caso da Cor- ção de gerar significados, integrações e uma
poración Manos Visibles,1 um exercício de visão mais humana. Tentei fazer desta nar-
empoderamento sociocultural nas Américas, ração não somente um exercício conceitual,
ligado à diáspora africana. Manos Visibles foi mas um reflexo do processo da minha imer-
reconhecida pelo Fórum Econômico Mundial2 são sociocultural nos últimos dez anos, com
como uma das três organizações mais inova- uma perspectiva institucional, retomando a
doras do mundo, em grande parte por sua lei- minha experiência como ministra da Cultura
120 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
na Colômbia de 2007 a 2010, bem como meu o escritor norte-americano James Baldwin,
trabalho em agendas de desenvolvimento em desenvolver a linguagem e a reflexão para ten-
mais de 15 países; minha perspectiva como co- tar controlar e antecipar as circunstâncias.
lombiana no setor sem fins lucrativos; e uma
perspectiva global, como membro do conselho Cultura: um conceito de quem,
de administração da Fundação Ford. para quem e com quem?
Então, que este seja um texto para pro- Este artigo começa explorando o conceito
vocar-nos mutuamente e para sermos mais de cultura, uma vez que parte significativa
estratégicos e práticos diante de um mundo das exclusões e desigualdades é determi-
que nos desafia a cada momento, no qual, nada diariamente pelos significados, pelos
como bem disse a escritora britânica Zadie entendimentos e pelas categorias culturais
Smith, “O progresso nunca é permanente, atribuídos e transmitidos por diferentes se-
sempre estará ameaçado, por isso deve ser tores da sociedade. Essa afirmação se torna
redobrado, reafirmado e reimaginado”. 3 mais relevante quando são analisadas as re-
E hoje é o momento ideal lações de poder, ou seja,
para pensarmos sobre o E hoje é o momento ideal quando esses conceitos
progresso cultural de para pensarmos sobre o que parecem abstratos e
que as nossas socieda- progresso cultural de que as gerais, como o de cultura
des precisam, para nos nossas sociedades precisam, ou desenvolvimento, em
tornarmos seres huma- para nos tornarmos seres sua instrumentalização
nos e cidadãos melhores, humanos e cidadãos melhores, por um grupo social espe-
profundamente preocu- profundamente preocupados cífico, determinam quem
pados também com o também com o bem-estar está fora ou dentro de um
bem-estar dos demais, dos demais, compartilhando sistema, quem tem privi-
compartilhando os pri- os privilégios e, finalmente, légios ou quem é omitido
vilégios e, finalmente, assumindo posições para passar na conversa, quem é defi-
assumindo posições para de um conceito de equidade e nido como sujeito ou como
passar de um conceito bem-estar etéreo e ideal para um objeto e, a partir disso, de
de equidade e bem-estar que possibilite o avanço humano. qual equidade ou igualda-
etéreo e ideal para um de estamos falando.
que possibilite o avanço humano. Muitos A definição de cultura e desenvolvimen-
fatos nos apresentam essa contradição his- to é fundamental quando se procura ajudar a
tórica que o crítico francês Jean-Baptiste entender seu papel na redução das desigual-
Alphonse resume: “Quanto mais as coisas dades estruturais, que passa não somente por
mudam, mais continuam iguais”.4 Será que uma perspectiva de quem sofre condições de
isso é verdade? pobreza, privação ou violência, como também
É disso que trata este texto no qual na- por uma leitura crítica sobre os paradigmas
vegaremos juntos, em um momento em que que determinam essas posições. Como bem
é da maior transcendência, como bem disse disse Martin Luther King Jr., “A equidade
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 121
Ler para quê? Escrever para quê? Dançar etnia, idade, posição social etc. Havia a necessi-
para quê? Cantar para quê? Muitas respostas dade, então, de tentar transcender por meio da
que poderiam passar pelo prazer da atividade palavra escrita, para que a minha experiência
e da vida cultural, mas que, em uma agenda de ou o que quero transmitir com a minha exis-
desenvolvimento, adquirem dimensões ainda tência não ficassem à mercê de interpretações.
mais profundas de sobrevivência e quase de Eu entendi que, a partir desses exercícios, as
existência, permanência e visibilidade, em um relações de poder mudam, como disse o grande
sistema que mantém certos grupos populacio- escritor africano Chinua Achebe: “Se você não
nais marginalizados nas periferias do poder. gosta da história do outro, escreva a sua pró-
Recentemente, publiquei um livro de pria história”.6 Fiz parte dos mais de 10 milhões
memórias, intitulado El Poder de lo Invisible de afrodescendentes na Colômbia e dos mais
[O Poder do Invisível]. Quando comecei a de 150 milhões nas Américas cuja história é
escrever, há dez anos, a minha intenção era narrada por outros, em que o papel principal
apostar no poder das palavras é sempre como vítima e não
escritas, que nos abrem para o Não é apenas combater como protagonista.
universo das experiências de a pobreza material, Gostaria de compartilhar
um modo particularmente mas a pobreza dos um exemplo pessoal da inten-
marcado por uma voz interior sentidos, que faz com que cionalidade cultural e do po-
que vai reagindo conforme o tenhamos uma sociedade der da cultura para mim como
escritor passa a barreira do tão desigual sem que isso indivíduo, como líder e como
leitor e decide começar uma nos incomode. comunidade. E, mais adiante,
viagem com ele, que acabará vou contá-lo a partir das vozes
sendo uma viagem para si mesmo. Então, ler das mãos visíveis. Escrever para curar, escrever
e escrever ou escrever e ler, para mim, tor- para existir, escrever para contar as experiên-
nou-se uma forma de existir, entender, fazer cias da diversidade que habita em mim e me
sentido, imaginar, negociar com as minhas conecta com milhões de pessoas no mundo,
lembranças, com os meus sonhos, e gerar criando um experimento de psicologia comu-
modos particulares de povoar o pensamen- nitária que enfatize a ruptura das narrativas
to, o sentimento e, no final, a consciência de de divisão, passando de um “vocês e nós” para
outros. No meu caso, como primeira mulher um “nós”, transformando o livro em um espe-
afrodescendente e a mais jovem a ocupar um lho de uma humanidade compartilhada que vai
cargo ministerial na Colômbia, e uma das além das categorias identitárias raciais, sociais
primeiras ministras negras das Américas, e geracionais. No final, todos somos um livro
sentia o peso de deixar um testemunho que e temos uma história para contar. O ponto é a
gerasse uma escola de referências, aprendi- intencionalidade dessa história.
zados e experiências. A cultura abriga as grandes conquistas e
As biografias culturais dos nossos países e também os conflitos, os desenvolvimentos po-
a ostentação dos principais locais de poder têm tenciais, as grandes incompreensões, os res-
categorias de identidade em termos de gênero, sentimentos e as frustrações mais profundos.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 123
Às vezes, as coisas mais evidentes, ou que es- O ponto de partida da definição de desenvolvi-
tão mais próximas da experiência de todos, mento, no caso da Manos Visibles, faz com que
são as mais difíceis de explicar e argumentar se assuma de uma vez um olhar que atravesse
como entram na agenda. Como aquilo articula tudo. Por exemplo, interessa-nos um desenvol-
um sentido de temporalidade mais extenso, vimento endógeno, que valorize e renove o que
como ali está a base do nosso universo cria- é próprio. Consequentemente, o nosso papel
tivo. No final, não é apenas combater a po- como organização-ponte e acompanhante é
breza material, mas a pobreza dos sentidos, complementar os ativos locais com as melho-
que faz com que tenhamos uma sociedade tão res ferramentas, nutrir ideias e gerar conexões
desigual sem que isso nos incomode. É nesse estratégicas que ajudem a mudar as relações de
ponto que a compreensão mais ampla da cul- poder. Assim, sabemos que o objetivo da nossa
tura aborda não só a necessidade da cultura agenda de desenvolvimento não se concentra
como infraestrutura de sentido individual e apenas em comunidades com níveis mais altos
coletivo, mas também seu papel na qualidade de violência ou pobreza, mas particularmente
e na dignidade do ser humano, o que implica nas elites acadêmicas, políticas, econômicas e
uma reflexão mais ética, que eu gostaria de culturais que tomam decisões, que não sabem,
conectar com o próximo segmento, que trata que omitem ou subvalorizam aqueles consi-
da concepção de desenvolvimento. derados outros em razão de suas condições de
vulnerabilidade. Consequentemente, o desen-
Desenvolvimento: a partir de que, volvimento não é o que é feito pelos outros, mas
com o que e para quem? o que é cultivado para que as transformações
Acredito que o conceito de desenvolvimento sejam realizadas de forma autônoma e estru-
está passando por uma profunda reflexão éti- turada pelos líderes e pelas organizações. Isso
ca. Na Manos Visibles, organização que dirijo mesmo: para nós, o desenvolvimento é um pro-
e cujos exemplos mencionarei mais adiante, cesso orgânico. Ao entender o desenvolvimento
tomamos a decisão de definir a nossa aborda- como um processo orgânico, nós nos movemos
gem de desenvolvimento da seguinte forma: na infinidade de nuances e dinâmicas que cor-
respondem aos contextos e às construções de
“Desenvolvimento não é apenas a distribui- cada local.
ção de recursos físicos. É o processo de cons- Isso significa que fortalecemos as ca-
truir a partir dos ativos das comunidades, pacidades que levam à autonomia, potencia-
apoiando a geração de capacidades, o acesso lizamos os relacionamentos estratégicos e
a oportunidades e o crescimento equitativo. entendemos que, se houver capacidade, ao
É o processo de gerar resultados profundos ganhar poder, existe a possibilidade de in-
e transformações na mentalidade, nas ca- fluenciar as decisões. Por isso, apostamos na
pacidades, na valorização e na melhoria das geração de ações repetidas que, em escala,
condições de vida. A pobreza não é somente provocam micromudanças que nos penetram
de recursos físicos, mas de esperança, de ex- e transformam os sistemas de exclusão. E
pressões próprias e de sentidos". cito três autores que ilustraram essa questão:
124 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Amartya Sen [professor de economia e filo- contínuo “eles e nós”. Uma acadêmica colom-
sofia indiano], que, com sua abordagem das biana resume isso de forma muito evidente,
capacidades, enfatiza o desenvolvimento cruzando uma visão de desenvolvimento não
como um meio que fomenta e propicia a ex- só instrumental, econômica ou social em pa-
pansão das liberdades individuais e coletivas drões básicos, mas profundamente cultural,
das sociedades; Martha Nussbaum [filósofa associada às discriminações e exclusões:
norte-americana], que sugere que, para en-
tender melhor o conceito de capacidades, “Às vezes, o ‘nós’ é formado por brancos-mesti-
é necessário ampliar o de dignidade. Ela a ços eurodescendentes, herdeiros da razão oci-
considera um dever que se tem com todas dental, verdadeiros colombianos, integrados à
as formas de vida, um reconhecimento da nação, guardiões da cultura nacional. Ao lado
importância do meio ambiente como um desse ‘nós’ é fabricado um ‘eles’: os afro-colom-
dos propósitos do desenvolvimento. E, final- bianos, retóricos, invisibilizados, autoinvisi-
mente, John Roemer [economista e cientista bilizados, vítimas obscuras necessitadas de
político norte-americano], que adverte que refletores burocráticos, pseudoinvisibilizados
a igualdade de oportunidades foi entendida que reproduzem hierarquias dentro da invisi-
de duas formas: “A primeira estabelece que a bilidade, não conhecedores dos desafios im-
sociedade deveria fazer todo o possível para postos hoje pela cultura hegemônica nacional”.
‘nivelar o campo do jogo’”.
Em outras palavras, a oportunidade de Manos Visibles: entender
fortalecer as capacidades pode ocorrer de for- e agir no mapa das exclusões
ma reativa, seja resolvendo as desigualdades do
sistema, seja com medidas progressistas des- “O efeito de uma bomba cultural é aniquilar as
tinadas a garantir igualdade de condições para crenças das pessoas em seus nomes, lingua-
todos. Essa é a tarefa que realizamos em Manos gens, ambiente, herança de esforço, unidade,
Visibles, nivelar com a melhor formação dispo- capacidades e, finalmente, em si mesmas. Isso
nível o terreno das exclusões conceituais, bem faz com que o passado pareça uma terra per-
como o terreno das exclusões culturais e políti- dida, um território infértil sem maiores con-
cas, que geram uma subvalorização no exercício quistas, que impele as pessoas a quererem se
da cidadania a partir de algumas comunidades distanciar de si mesmas.” (Ng g wa Thiong’o)
em condições de pobreza e violência.
O que entendemos como desenvolvimen- “Desconstruir os discursos e as narrativas
to passa por um profundo questionamento que constituíram o sustento para justifi-
ético, que afeta a renovação do nosso estilo de carmos o injustificável. Assumir a causa
liderança. Para reconfigurar nosso poder, nos- daqueles considerados os outros; os empo-
sa influência e nosso foco, precisamos incubar brecidos, não os pobres; os invisibilizados,
essa liderança coletiva e colaborativa com base não os invisíveis; os marginalizados, não os
em um profundo apelo cultural, para mudar marginais. Com a finalidade de mudar ima-
especificamente as exclusões recorrentes, esse ginários que nos convidem a sair da nossa
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 125
que momento ela começa, quais são os fun- histórias ou seus percursos são visíveis nos
damentos e conceitos que a mantêm, quais processos promovidos pela Manos Visibles,
são as matrizes que invisibilizam as pessoas? já que eles são o coração do nosso trabalho.
Entendemos que, no mapa dos territórios de Quem eram? Quem são? Quem serão? E qual
exclusão, existem variáveis étnicas que coin- foi a influência desse caminho juntos? Sua
cidem com a dimensão da extrema pobreza. tarefa foi e será constituir uma elite reno-
Se a pobreza aumenta em territórios como o vada, marcada pela modificação do modo de
Pacífico colombiano, nós deveríamos, então, sentir, pensar e agir das suas próprias comu-
nos concentrar e fazer uma radiografia do nidades e narrativas predominantes.
lugar. Assim, a Manos Visibles poderia for-
necer uma perspectiva que transcendesse a Manos Visibles: lideranças
geografia local e dar-lhe um olhar transnacio- e ecossistemas de
nal. Essa perspectiva nos permitiu, em pouco transformação culturais
mais de oito anos de existência, ter 4 linhas
estratégicas e 13 programas, consolidando “Essas mãos não são tanto sobre mim, mas
uma rede de 2 mil líderes de comunidades sobre o meu país. Escolhi as mãos porque
excluídas, 100 tutores nacionais e internacio- são instrumentos poderosos, que podem
nais, membros das elites do país e do mundo, ferir ou curar, castigar ou elevar... em uma
bem como 30 organizações visíveis, referentes época de injustiças podem nos unir, ape-
à transformação coletiva. Até hoje, a Manos sar das diferenças, reconhecendo o poder
Visibles tocou e conectou mais de 200 mil do amor, da confiança e do valor da vida.”
pessoas e 400 organizações, em uma região da (Nelson Mandela)
Colômbia onde o isolamento e o esquecimento
são a regra, além de integrar líderes e organi- O exemplo que escolhemos da nossa rede de
zações em 11 países da África e sua diáspora, mais de 2 mil líderes, 400 organizações e 30 ini-
que são membros do programa Afroinnova. ciativas visíveis é a dança. Em um ecossistema
Manos Visibles, como o próprio nome de transformação cultural na dança, descreve-
diz, tem o poder de visibilizar e ajudar a sair remos apenas uma mão visível, mas temos um
daquilo que a escritora nigeriana Chima- ecossistema de música, audiovisual e dança.
manda Adichie chama de perigo da histó-
ria única. As histórias dos descendentes de Sankofa7
africanos, e de territórios como o Pacífico Dançamos para sermos ouvidos, mais do que
colombiano, não podem continuar sendo para sermos vistos!
contadas a partir da violência, da pobreza e
da catástrofe. Portanto, para terminar esta “A dança é o caminho que encontrei para dar
seção, gostaria de mencionar quatro casos de corpo ao sentimento e à reflexão que me in-
organizações que realizaram todo o processo tegram como artista e como afrodescenden-
com a Manos Visibles e hoje consolidam um te.” (Rafael Palacios, diretor e coreógrafo da
ecossistema de transformação. Aqui, suas Mãos Visíveis)
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 127
Fonte: http://sankofadanzafro.com/site/#!/2010/09/15/ciudaddelosotros/
128 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Fonte: https://issuu.com/manosvisibles/docs/anexo_8.2._agenda_encuentro_regiona
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 129
Notas
5 Texto original de Martin Luther King Jr.: “Equality is not only a matter of
mathematics and geometry, but it’s a matter of psychology”.
6 Texto original de Chinua Achebe: “If you don’t like someone else’s story,
write your own”.
7 Veja: <www.sankofadanzafro.com>.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Paula Moreno 131
132 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Lucina Jiménez 133
DIVERSIDADE E
DESENVOLVIMENTO
AGENDA 2030: RUMO À DESCOLONIZAÇÃO
DOS NOSSOS MUNDOS
Lucina Jiménez
Do desenvolvimento e da homogeneidade
aos direitos culturais e à diversidade
D
urante os séculos XIX e XX, o pen- Os povos indígenas, como foram deno-
samento filosófico e as ciências minados internacionalmente, assim como
sociais e econômicas estabelece- as populações afro-americanas, foram li-
ram a indissolubilidade da relação entre de- quidados em vários países, enquanto, em
senvolvimento e homogeneidade cultural. outros, suas línguas, suas expressões cul-
A busca da “unidade nacional” em muitos turais, suas memórias e seus conhecimen-
países da América Latina, no fundo ligada tos foram negados. Os territórios culturais
à consolidação do capitalismo como regime foram expropriados e, em muitos casos, os
econômico, político e cultural dominante, habitantes se tornaram força de trabalho
implicava a generalização de elementos cul- ou foram exaltados como representantes de
turais como bases identitárias necessárias um passado glorioso, que no final das contas
para firmar o Estado-nação. A diversidade era passado.
étnica e cultural era vista como um obstá- As políticas culturais e educativas fo-
culo que impedia o desenvolvimento eco- ram, até certo ponto, funcionais ou se ade-
nômico e o bem-estar coletivo. quaram a essa proposta. Os referenciais
134 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
e com o fato de que o aproveitamento dos re- deslocamento de milhões de pessoas para
cursos culturais utilizados para sua produção as cidades, transformando a migração no
não compromete o das gerações futuras, por motor de novos mapas de diversidade cul-
não haver superexploração. tural em todo o mundo, criando grandes
É por isso que a perspectiva do de- periferias e processos de centralização de
senvolvimento em relação à diversidade infraestruturas de todos os tipos, enquanto
cultural só pode ser garantida por meio do os mundos da diversidade cultural e linguís-
estabelecimento de políticas que articulem tica são o foco de antropólogos e etnólogos,
as dimensões social, educacional, econômi- mas não tanto das políticas públicas de de-
ca, ambiental, cultural e intergeracional. Daí senvolvimento ou de direitos. Já mencionei
sua complexidade e necessidade de que o for- em outros ensaios que a produção cultural,
talecimento dessa abordagem venha acom- as tecnologias tradicionais e os saberes an-
panhado da formação de novas capacidades cestrais, grande riqueza da diversidade, são
entre funcionários ou servidores públicos e produzidos por populações que vivem em
também entre produtores culturais, criado- condições de pobreza.
res, empresários, líderes comunitários, co- O crescimento econômico dos anos
letivos e integrantes da sociedade civil. No 1940-1960, inspirados na busca pela mo-
fundo, o que há por trás disso é a reconfigu- dernização e pelo universalismo, em alguns
ração da política pública e privada em relação casos significou a preeminência de visões
a uma perspectiva que pense sobre o próprio inspiradas por um antigo criollismo,1 enri-
desenvolvimento a partir da diversidade de quecido e transformado pelo olhar da moder-
cosmovisões que caracteriza a nossa reali- nidade e da produtividade. Uma nova divisão
dade contemporânea. internacional do trabalho situou os países
da América Latina como fornecedores de
Economia não é sinônimo de mão de obra e produtores em um cenário de
desenvolvimento; as pessoas ascensão da hegemonia dos Estados Unidos.
devem estar no centro dele Nos anos 1990, em plena ascensão da
A noção de desenvolvimento com base no globalização como DNA do capitalismo, após
crescimento econômico como objetivo pri- décadas de crise (1970 e 1980), a chamada
mordial vigente no século XX vem acompa- Cúpula da Terra questionou a subordina-
nhada de um fraco propósito de distribuição ção da vida no planeta às necessidades de
de renda, que é assumido a partir das rela- um desenvolvimento industrial que deixou
ções produtivas nas quais a concentração para trás um crescimento econômico pouco
da riqueza acaba tornando a América Latina sustentável, a ampliação das classes médias e
uma das regiões mais desiguais do mundo. também o empobrecimento das maiorias, em
O longo processo de proletarização e um clima de crescente deterioração do meio
incorporação da mão de obra na produção ambiente. Intensos movimentos ecologistas
fabril, do início até meados do século XX, conseguiram enfraquecer o senso de desen-
trouxe a desintegração do mundo rural e o volvimento econômico, considerado um fim
136 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Como resultado, a Unesco formulou relação desses déficits com a abordagem cul-
um documento cujo objetivo é fortalecer tural do desenvolvimento ainda é incipiente.
essa nova abordagem de política cultural. A transversalidade da cultura começa
No ano passado foi publicado o documento a estar presente nas políticas de desenvolvi-
Re | pensar as Políticas Culturais (2018), no mento voltadas para o combate à pobreza e
qual são fornecidos exemplos de boas práti- à desigualdade e para a busca do bem-estar.
cas e exercícios de redefinição de políticas Da mesma forma, a cultura passa a ser levada
públicas de cultura, desenvolvimento e di- em conta para sustentar a governabilidade,
versidade cultural nos países que aplicaram principalmente em áreas afetadas pelas vá-
a chamada Convenção de 2005. rias formas de violência. No entanto, como
O movimento vital de cidades e go- os direitos culturais são um direito humano,
vernos locais que for- assume-se que não devem
talecem a perspectiva É necessário trabalhar em uma estar disponíveis apenas
da política pública do nova abordagem da política para as populações que vi-
ponto de vista da Agen- cultural, capaz de estabelecer vem em condições de alta
da 21, que privilegia a novos arranjos institucionais e marginalidade, mas sim
diversidade cultural e jurídicos e uma governança que a toda a população, inde-
seu vínculo com o de- proponha vias de colaboração pendentemente de sua
senvolvimento huma- entre níveis e setores do diferença econômica, po-
no sustentável, reúne governo, da iniciativa privada e lítica, religiosa, de gênero,
um banco de boas prá- da sociedade civil organizada ideológica ou geracional.
ticas com abordagens ou comunitária, fazendo da vida A condição de vio-
de inclusão social, de cultural um espaço de encontro lência social dissemi-
geração de novas capa- e transformação social. nada exige a abertura de
cidades locais de análise muitos espaços culturais,
e gestão cultural, bem como de promoção dos artísticos, expressivos e comunicativos para
direitos culturais (<http://obs.agenda21cul- encontros, trocas e reformulação de memó-
ture.net/es/home-grid>). rias, a fim de que todos possam elaborar seu
próprio relato, em vez de terem acesso ape-
Os desafios culturais da Agenda nas à história de outra pessoa. A memória
2030: diversidade cultural e deve fazer parte da reelaboração do pre-
desenvolvimento para o bem viver sente com sentido de futuro, algo essencial
Embora a revisão mundial dos Objetivos para a formação de pessoas, comunidades
de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) e cidades resilientes.
realizada pelos países que compõem as O nosso tempo é marcado pelas tensões
Nações Unidas tenha abordado limitações criadas pelo triunfo de velhos e novos dis-
com relação ao que foi alcançado em nível cursos racistas, homofóbicos e nacionalistas,
internacional, como a redução da pobreza que beiram o chauvinismo. Por isso, é neces-
ou a igualdade de gênero, a compreensão da sário trabalhar em uma nova abordagem da
138 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Proponho, então, um conceito de polí- inclusive daqueles que aparentam ser iguais.
tica cultural como ações que atores indivi- Todos os espaços onde a vida transcorre de-
duais, institucionais, privados, comunitários vem considerar uma perspectiva que leve em
e da sociedade civil implementam para criar conta a diversidade de diversidades como
ecossistemas férteis em que as práticas cul- chave para a sua transformação e o sucesso
turais e a gestão de recursos culturais so- de suas missões.
cialmente reconhecidos possam florescer, Não se trata apenas de tomar medidas
desenvolver e inovar, a fim de promover uma simbólicas ou reais de reconhecimento, de
autêntica democracia cultural em contextos fomento e/ou de dignificação da diversida-
globais, territoriais e de diversidade. Esses de, questões completamente necessárias e
recursos podem estar relacionados a prá- urgentes, mas de considerar a dimensão eco-
ticas artísticas e tecnológicas e a saberes e nômica e de viabilidade futura das diferentes
conhecimentos simbólicos, ambientais ou formas de produção cultural, incluindo prá-
de qualquer outra natureza. ticas e saberes artísticos,
A abordagem ecos- Proponho, então, um conceito tecnologias tradicionais
sistêmica permite analisar de política cultural como e recursos biológicos e
a política cultural em seu ações que atores individuais, genéticos das populações.
habitat humano e em suas institucionais, privados, O direito de parti-
relações interculturais com comunitários e da sociedade cipar da vida cultural,
outras espécies, em um am- civil implementam para criar como um conceito-cha-
biente ou contexto especí- ecossistemas férteis em que as ve dos direitos culturais,
fico, em inter-relação com práticas culturais e a gestão precisa mudar as bases
todos os fatores que afetam de recursos culturais nas quais foi estabele-
o presente e o futuro de um socialmente reconhecidos cida a modernidade, em
recurso cultural, incluindo possam florescer, desenvolver relação à criação artísti-
sua dimensão econômica e e inovar, a fim de promover ca e seus vínculos com a
ambiental, e, assim, pensar uma autêntica democracia sociedade como espec-
em termos de sustentabi- cultural em contextos globais, tadora. Essa abordagem
lidade. Também permite territoriais e de diversidade. amplia as alternativas
identificar as pragas que para a arte como trans-
habitam o humo cultural e que é necessário formadora social, e reconhece esse poder
erradicar por meio de posturas descoloni- somente enquanto a arte em si é capaz de
zadoras: racismo, discriminação, classismo, romper essa relação entre produtores e
etnocentrismo, colonialismo, estigmatização, consumidores, abrindo-se à possibilidade
antropocentrismo, machismo, autoritarismo, da experiência coletiva, da cocriação e da
corrupção e diversas intolerâncias. Requer coprodução da vida cultural, com cidadãos
uma mudança de atitude diante da diversi- críticos, capazes de interagir a partir de
dade cultural, entendida como a condição suas próprias práticas artísticas e abertos à
na qual se desenvolve a cultura de todos, diversidade estética e cultural. Investir na
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Lucina Jiménez 141
Nota
Referências
JIMÉNEZ, Lucina. Política y derechos culturales, hacia una nueva configuración. In:
CNDH, UNESCO, SEGOB. Derechos culturales y derechos humanos. México, 2018,
p. 79-84.
É A DEMOCRACIA, ESTÚPIDO1
Marta Porto
A institucionalidade não
entregou o prometido
S
empre acreditei que optar por tra- lugar onde moram as visões plurais de fu-
balhar com arte e cultura é algo turo, os conflitos e os consensos possíveis
que carrega uma crença. Da exis- que cada sociedade, a cada tempo, é capaz
tência de um lado mágico-transcendente de eleger para seguir em frente.
no percurso da vida, fruto da ideia de que Confiança, ética e compaixão são va-
homens e mulheres imaginam, criam, in- lores centrais na formação de uma cultura
ventam, e não estão fadados à repetição de cidadã que cimenta uma perspectiva de
um cotidiano já traçado. É uma crença que desenvolvimento humano capaz de colocar
nasce da paixão pela liberdade, e que não no centro o bem-estar dos indivíduos, seus
se dissocia nunca daqueles que trabalham direitos, suas oportunidades e seus desafios.
pela “ordem cultural”, assumindo o lado É esse desenvolvimento que deveria impor-
conservador do sistema como profissão tar àqueles que refletem e operam a partir
de fé. Creio – ótima palavra para tradu- da cultura ou de pressupostos culturais, e é
zir este sentido – que o valor da liberdade dele que irei me ocupar neste artigo.
está sempre presente em quem verdadeira- A década de 1980, quando vivi o início
mente opta por trabalhar pelas artes e pelo da juventude, é aquela em que o Brasil ama-
pensamento crítico. Um valor indissociá- nhece na esperança do retorno à democracia
vel para articular a relação entre cultura e e por eleições diretas, vivendo a expectativa
desenvolvimento, posto que a cultura é o de receber aqueles que estão no exílio e lutam
146 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
para retornar ao seu país para reinventá-lo. cultural, em que as manifestações popula-
As ruas assistem ao retorno das multidões res, indígenas e afro-brasileiras ganham,
que pedem por liberdade e respeito aos di- enfim, proteção legal e representatividade
retos civis e democráticos. No palco dessa institucional.
luta, os movimentos culturais e artísticos dão Antes disso, em 1984, Ouro Preto e
forma, espírito e narrativa aos protestos que Belo Horizonte realizam o Encontro Na-
se travam nas arenas políticas nacionais e cional de Política Cultural, “para reforçar
internacionais. São tempos de luta, nutridos a participação do povo nas decisões e nos
por valores como liberdade e democracia. objetivos de uma autêntica política cultu-
Nossa tribo são os artistas, os filósofos, os ral. […] e abrir os caminhos interrompidos
movimentos culturais de base e das igrejas por vinte anos de bloqueios autoritários”
progressistas que unem fileiras por direi- (OLIVEIRA, 1985).2 Iniciativa do Fórum
tos, liberdade de expressão e a favor da vida Nacional de Secretários e Dirigentes Esta-
e da igualdade de oportunidades. Da cena duais de Cultura, o encontro tinha como ob-
aguerrida da minha Porto Alegre natal, co- jetivo debater problemas e propostas para
necto-me com esse espírito que vê nas artes consolidar uma política cultural nacional,
a encarnação da vida livre, da cena desnuda conectada com o espírito de democrati-
e carnal que revela uma utopia desejada por zação do país. Estavam presentes nomes
um país democrático e menos desigual, em como Darcy Ribeiro, José Mindlin, Leonel
que desenvolvimento é sinônimo de justiça Kaz, Ferreira Gullar, Paulo Sérgio Pinheiro,
econômica e atenção às questões relaciona- Cláudio Abramo, Millôr Fernandes, Henfil,
das ao cotidiano dos cidadãos. Maria do Carmo Nabuco, Marcos Terena,
Os debates sobre a nova Constitui- Abdias Nascimento, Fernanda Montenegro,
ção Brasileira, aquela chamada depois de Ruth Escobar, Cecília Conde, Celso Fur-
Constituição Cidadã de 1988, que domi- tado, Eliana Yunes, Walter Zanini, Paulo
nam os encontros em cafés, bares e salas de Herkenhoff e mais uma dezena de políticos,
aula, inundam o país de esperança em um intelectuais e artistas. É um momento de
porvir no qual desenvolvimento é sinôni- celebração pela lenta, mas certa, retoma-
mo de cidadania e não apenas de progresso da da democracia no país após 20 anos de
econômico ou crescimento do PIB. A As- ditadura militar. Os anais desse encontro,
sembleia Nacional Constituinte mobiliza posteriormente publicados pela Secretaria
uma parte significativa da sociedade brasi- de Estado de Cultura de Minas Gerais, cujo
leira, e os temas da cultura, do patrimônio secretário era o futuro ministro da Cultura,
cultural e da memória são tratados em âm- José Aparecido de Oliveira, mostram um
bito constitucional nos artigos 215 e 216. O projeto ambicioso para a política cultural
reconhecimento da dimensão imaterial do brasileira, profundamente democrático em
patrimônio cultural, defendido em ambos seus princípios, amplo na busca de repre-
os artigos, é um avanço na luta democrá- sentatividade das várias matrizes culturais
tica amalgamado na noção de democracia brasileiras, preocupado com a educação
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 147
das expressões culturais e regionais bra- gerais do Estado brasileiro a política cultural
sileiras”, do que uma ação orientada para se organiza, se estrutura e avança?
identificar e elaborar políticas de inovação, São muitos os governos que irão pro-
empreendedorismo ou mesmo de promo- por o fim do MinC, de Collor a Jair Bolso-
ção de valores democráticos que pudessem naro. “Para que MinC?” é a questão que
servir de orientação para políticas voltadas vai e volta a cada crise e “enxugamento”
para as artes, a infância e a juventude5 e a da máquina pública. São muitas as razões,
gestão do patrimônio material e imaterial. algumas históricas e de formação política
O simples apoio às demandas de grupos e das elites que comandam os acórdãos do
aos setores culturais mais ou menos popu- país, mas não é difícil fazer o mea-culpa.
lares, sem a tarefa de elaborar macropolíticas Quando iremos começar?
para o Estado brasileiro, a partir dessa expe- Em resumo, o Brasil, no campo das po-
riência, capazes de dialogar com a matriz de líticas culturais, vai ser incapaz de elaborar
desenvolvimento, provocando reinvenções, macropolíticas que integrem ou renovem a
contrapontos e ideias diferentes, renovan- visão de desenvolvimento em uma sociedade
do a dinâmica da agenda socioeconômica a extremamente desigual e violenta. Vai tingir
partir da noção de cidadania cultural, legou essas políticas com expressões e programas
a esse e a outros programas culturais realiza- vagos, todos sob a alcunha “apoio a” uma
dos nesse grande ciclo democrático um papel ideia também vaga de desenvolvimento, e, o
marginal na agenda de desenvolvimento do principal, renunciar a uma agenda própria
país. A menção ao PPA é um recorte limitado que não se apegue a casuísmos econômicos
para oferecer uma análise mais aprofundada e sociais, na qual as artes e a literatura são
de como a administração federal, nos suces- importantes como ato e processo de criação
sivos governos desde 2001, trata a questão da livres e autorais, frutos da complexidade do
cultura nas diretrizes de desenvolvimento espírito humano que expressam, a cada tem-
– mas é básica e deve ser feita. As estraté- po, lugar e espaço, um etos próprio de país e
gias, as diretrizes, os objetivos e a alocação que dialogam com o mundo a partir dele. Não
especial de recursos que esse instrumento há nenhuma grande nação capaz de abrir
integra fazem parte de uma visão e de um mão de sua engenhosidade artística, seu pa-
acordo nacional sobre como caminhar para trimônio e sua memória culturais, de estar
alcançar o tão almejado desenvolvimento na vanguarda da produção de pensamento
sustentável. E o que ele mostra é uma disso- crítico e de experimentações de linguagens,
nância entre o pacto federativo firmado pe- gestos, sons e cores organizados por um ecos-
las administrações federais e a retórica dos sistema artístico-cultural potente. Em boa
agentes culturais nas principais agendas que parte, tais ações não implicam a geração de
elegeu para afirmar: cultura importa. A per- indicadores de economia criativa ou a pro-
gunta que fica é: a partir de que vetores estra- moção de contrapartidas sociais. É bom que
tégicos, de quais metas e diretrizes e de que seja assim. As artes, mais do que a cultura,
potencial de representação nas estratégias voltada para construir uma cidadania ativa
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 151
e provocar valores culturais, são a garantia criança, jovem e adulto valores que sustentam
de um desenvolvimento com alma, inspi- uma base comum de relação, que permite or-
rado e inspirador da criação humana livre, ganizar uma dimensão subjetivo-pessoal em
representação simbólica da pluralidade de que ameaça, medo e raiva não sejam os prin-
cada nação. É essa dimensão esquecida do cipais motores para a atitude social.
desenvolvimento que quero tratar na segun- Lourdes Arizpe já nos alertava, no In-
da parte deste artigo. forme Mundial sobre a Cultura 2000-2001
Chego aqui ao ponto que me interessa – Diversidade Cultural, Conflito e Pluralis-
mais. Discutir o presente e o futuro, com mo –, que a noção de diversidade não era
algumas ideias que parecem perdidas ou suficiente como categoria para orientar
fora de foco, joga luz em um terreno mi- políticas de enfrentamento aos conflitos
nado pela domesticação dos sentidos e culturais crescentes:
das “saídas de gestão” propostas até hoje.
O campo do imaginá- “Se a diversidade cultural é
rio cultural é que molda Talvez tenhamos passado uma manifestação irreprimí-
nossas visões de mundo, tempo demais ressaltando vel da criatividade do espírito
comportamentos sociais, nossas diferenças culturais humano, a criação das diferen-
rivalidades e conflitos na e falado pouco sobre aquele ças é igualmente inexorável, e
cena pública, e, por que substrato das coisas que não se deve tratar de apagá-la
não, a ideia de um futu- organiza um etos comum de ou reprimi-la. No entanto, o
ro comum baseado em convivência, voltado para a modo como tais diferenças
consensos pactuados, a valorização de uma abertura são definidas e manejadas pe-
esperança de edificar um para o encontro, o diálogo los governos e os costumes da
mundo comum. São ela- e a curiosidade. sociedade determinam se essa
borações que não tratam condução vai levar a uma maior
apenas do Brasil, mas se revelam pontos criatividade social ou a violência e a exclusão”
de reflexão para o debate atual de cultura (ARIZPE, 2002).
e desenvolvimento.
Vamos a elas. De lá para cá, extremismos cresceram, mais
Talvez tenhamos passado tempo de- muros foram erguidos, fronteiras foram
mais ressaltando nossas diferenças cultu- fechadas e o “outro” foi definido por dife-
rais e falado pouco sobre aquele substrato renças religiosas, cor de pele, origem social
das coisas que organiza um etos comum de ou econômica e lugar de nascença, alça-
convivência, voltado para a valorização de do à estranha posição de ameaça global. O
uma abertura para o encontro, o diálogo e a campo da diversidade cultural, étnica e re-
curiosidade. ligiosa se tornou o espaço privilegiado das
Aquela ação orientada para um aprendi- guerras culturais, da polarização simbólica,
zado que leva a um exercício prático e diário do ódio manifesto nas redes sociais e nas
de alteridade, que cimenta em cada indivíduo, ruas das grandes cidades do mundo. Novas
152 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
vulnerabilidades surgem de ordem simbóli- noções e crenças diferentes das que nos re-
ca, em que uma massa imensa de pessoas é gem hoje. Isso não é uma utopia, e sim mera
incapaz de reagir a estéticas que considera imitação de momentos-chave da história
agressivas e que percebe como algo que de- das civilizações em que homens e mulhe-
sorganiza o mundo tal qual o conhecia até res se perguntaram se aquela ordem à qual
então sem dar respostas aos problemas co- estavam submetidos era a adequada diante
tidianos que vivencia e resiste. das mudanças em curso. São as rupturas ne-
Combinado a esse cenário, que mistura cessárias para seguir em frente.
xenofobia com traços místico-religiosos e É o principal desafio das políticas cul-
ódio crescente, para além das reivindica- turais nos próximos anos.
ções e aspirações dos mais pobres, temos Todo esse mal-estar com o estado das
o aumento da desigualdade econômica e coisas pede aos que se dedicam às ciências
da concentração de renda, que se traduz humanas, aos estudos culturais e à formu-
em menos oportunidades de acesso a uma lação de políticas nesse campo que inovem.
educação de qualidade, às inovações trazi- Inovem investigando novas formas de pes-
das pela ciência, às novas tecnologias e a quisa, de categorias de análise, de formulação
conhecimento cultural. de indicadores e de referencial teórico para
Reside aí um caldo de inconformismo abordar o tema do desenvolvimento. Preci-
e revolta, aliado a uma crise nas formas de samos criar, sair da nossa zona de conforto
representação democrática, ao crescimento e arriscar mais. É o momento de orientar o
de rivalidades morais e à ampliação de con- nosso ecossistema de trabalho para três ei-
servadorismos que agem contra as liberda- xos centrais: democracia, sustentabilidade e
des individuais. liberdade incondicional para as artes e para
Há que se perguntar: em um mundo os artistas.
que se torna mais desigual a cada ano, como Sigo com estas três ideias, centralizan-
promover valores de prosperidade compar- do o que considero que possa ser a contribui-
tilhada, solidariedade, cooperação e mobi- ção maior das políticas culturais:
lidade? E como desenvolver e apoiar usinas
de inteligência que proponham soluções, • sobre a democracia: colaborar
ideias e imagens cujo propósito seja pro- para estimular o desenvolvimento
mover valores culturais plurais, inovações de um novo ecossistema para as ar-
em processos de aprendizagem, conteúdos tes e as culturas, integrando espaços
e linguagens para a comunicação de massa culturais, startups de empreende-
(publicidade, entretenimento, notícias) e dorismo, programas de estudos, de
novas plataformas de mídia (aplicativos, curadorias e para formação artísti-
jogos, internet), que funcionem como um ca, pesquisas científicas e centros
manifesto, uma declaração sistêmica que de ciências, que funcionem como
crie novas possibilidades de nos conectar- um laboratório e um consórcio de
mos uns com os outros e estabelecermos ideias para pesquisar e desenvolver
CULTURA E DESENVOLVIMENTO Marta Porto 153
de gestões na cultura com dois aforismas, mas sociedade de memória escravagista que precisa
é certo dizer que o discurso ora econômico-li- se reinventar simbolicamente para ser civili-
beral, ora social-assistencial, com exigências zação e prosperidade igualitária. Uma institu-
de contrapartidas de marketing ou sociais, cionalidade capaz de interagir com elementos
tornou a agenda cultural um penduricalho potentes para colaborar com o diálogo constan-
de projetos cheios de boas ou más intenções, te com a comunidade internacional. Um debate
que dialogaram pouco com a massa da socie- aberto à experimentação, à criação artística in-
dade brasileira, em boa parte alheia a essas dependente, à antropofagia cultural oferecida
discussões. Relegadas ao campo da cidadania nos anos 1920 por Oswald de Andrade.
de mais baixa densidade, aquele que promove É hora também de escutar as ruas, não
a rede de proteção aos mais vulneráveis, mas só os movimentos sociais organizados, mas
que é incapaz de promover oportunidades de o cidadão comum, aquele que vive a vida nas
mobilidade social e participação ativa na vida grandes e nas pequenas cidades, com suas
política e econômica do mazelas e seus dissabo-
país, a cultura e as artes Relegadas ao campo da cidadania res cotidianos. É neces-
deixarão, por fim, o palco de mais baixa densidade, sário voltar aos livros, ao
institucionalizado das aquele que promove a rede de estudo e ao pensamento
lutas cidadãs, conquis- proteção aos mais vulneráveis, crítico, e reconhecer a
tado desde os anos 1980, mas que é incapaz de promover nossa memória de avan-
para entrar nas sombras oportunidades de mobilidade ços e fracassos. Mais do
da moral e do civismo e social e participação ativa na vida que nunca, é preciso ter
do nosso subdesenvolvi- política e econômica do país, a coragem de ousar.
mento intelectual que o cultura e as artes deixarão, por É essa a dimensão
Estado brasileiro acaba fim, o palco institucionalizado das central da contribuição
de legitimar. lutas cidadãs, conquistado desde da cultura e das políticas
Se há saídas, elas os anos 1980, para entrar nas que a conformam para o
estão fora de campanhas sombras da moral e do civismo desenvolvimento, am-
como “Fica, MinC”. É e do nosso subdesenvolvimento pliando as oportunidades
preciso voltar ao debate intelectual que o Estado brasileiro simbólicas de milhões de
mais profundo que reco- acaba de legitimar. cidadãos à espera de se
loca a pergunta: “Cultura inserir em um mundo
importa?”. Reinventar as noções que usamos que rejeita seus valores, seus códigos sociais
para refletir sobre os tempos que vivemos e e seu jeito comum de atuar na vida pública. É
elaborar novos processos políticos e de gestão o cimento da democracia, feita quando gen-
que façam sentido não só para produtores e te comum é reconhecida como cidadão e os
instituições, mas para artistas, intelectuais e artistas, os inventores e os criadores como
o povo brasileiro. Esse que merece ser trata- aqueles capazes de reinventar o espírito de
do não como público ou audiência, mas como cada tempo histórico, seus valores e as ima-
etos social, carne e espírito encarnados em uma gens que irão inspirar o futuro.
156 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Marta Porto
Jornalista e ativista cultural, atua como editora, ensaísta, curadora e consultora
de espaços, festivais e projetos artístico-culturais e de comunicação que experimentam
linguagens e associações de ideias para promover experiências que alterem códigos e
visões de mundo. Liderou projetos experimentais em espaços como escolas, museus,
bibliotecas, centros comunitários, prisões, plataformas digitais e em grandes eventos
internacionais, como Rio+20, Barcelona 2004, Objeto Urbano e Mostra Internacional
Arte sem Fronteiras, além de ter sido responsável por laboratórios, programas de
formação, coleções e séries editoriais, filmes, publicidade social e projetos de imersão,
todos voltados para discutir a relação entre arte, política, comunicação e imaginário
social. Como conferencista, tem participado das principais arenas internacionais de
debates sobre artes, cultura e políticas culturais. É autora de mais de 40 artigos e
ensaios de crítica cultural, políticas de cultura e comunicação, publicados em revistas
e coletâneas de vários países. Escreveu os livros Nós do Morro – 20 Anos, Olhares
Femininos, Mulheres Brasileiras, Comunicação no Centro da Mudança, Aids e Teatro
– 15 Dramaturgias de Prevenção e Juventude, Cultura e Cidadania. Recentemente,
organizou e editou a Revista Observatório Itaú Cultural 24 – Arte, Cultura e Educação
na América Latina.
Notas
1 Inspirado no slogan não oficial ditado por James Carville para a campanha
eleitoral de Bill Clinton em 1992, contra George Bush.
3. LABORATÓRIO DE
IDEIAS PARA AS
POLÍTICAS CULTURAIS
UM PERSONAGEM QUE
TEM MUITO A ENSINAR
Entrevista com Ernesto Ottone Ramírez (EOR)
D
esde a sua criação, a Unesco liderou propostas e reflexões sobre cultu-
ra e desenvolvimento de acordo com as necessidades de seus países-
-membros. Alguns entendem a organização como um laboratório de
ideias para as políticas culturais e para os agentes culturais em nível mundial.
Para tratar desse assunto de maneira mais ampla, a Revista Observatório en-
trevistou Ernesto Ottone Ramírez, diretor-geral assistente para a cultura da
Unesco. Ele vem da gestão cultural prática e é chileno, um latino-americano
que pode fornecer uma visão particular de um continente que evoluiu mui-
to nas últimas décadas. Seu papel como ministro da Cultura, das Artes e do
Patrimônio do Chile lhe deu a experiência de gestão em políticas culturais,
uma coincidência entre o personagem e o conteúdo dos artigos desta edição.
162 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
REVISTA OBSERVATÓRIO: SÃO DESAFIOS não somente na meta 11.4, que se refere ex-
IMPORTANTES NA COMUNIDADE INTERNA- plicitamente à cultura no contexto urbano. A
CIONAL A AGENDA 2030 E OS OBJETIVOS DE cultura tem um valor intrínseco ligado à área
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (ODS). EM das políticas culturais e, ao mesmo tempo,
2015, SURGE A PREOCUPAÇÃO DE NÃO SE HA- é transversal a muitas outras dimensões do
VER CONSEGUIDO INTRODUZIR UM OBJETIVO desenvolvimento presentes nos 17 ODS. Ela é
ESPECÍFICO NOS ODS. EM SUA OPINIÃO, POR uma dimensão crítica para alcançar a maio-
QUE NÃO FOI POSSÍVEL INCLUIR A CULTURA ria dos ODS. Chegamos à conclusão de que a
COMO UM DOS ODS NAQUELE MOMENTO? cultura está presente em todos eles. O exer-
Ernesto Ottone Ramírez: Eu tenho que cício que tentei fazer internamente, e que é
separar em antes e depois. Uma questão é muito compartilhado com a diretora-geral, é
a de como eu percebia o processo de cons- começar a ler o subtexto da resolução.1 E, se
trução da Agenda 2030, no que diz respeito você examinar cada um dos objetivos, mes-
a questões culturais, e a vi- mo que eles não mencionem
são que tenho atualmente, A cultura tem um valor a palavra cultura, verá que
estando na Unesco, que é intrínseco ligado à área têm uma base sólida e que
muito diferente. Como mi- das políticas culturais e, ao cada um desses pontos do
nistro da Cultura do Chile, mesmo tempo, é transversal desenvolvimento susten-
nós acompanhamos a cons- a muitas outras dimensões tável envolve um trabalho
trução da Agenda 2030, vi- do desenvolvimento no espaço cultural. E é sur-
mos como se tentou intervir presentes nos 17 ODS. Ela é preendente, porque você
para que, de fato, um dos 17 uma dimensão crítica para trata do assunto com as
objetivos fosse a dimensão alcançar a maioria dos ODS. autoridades e todos reco-
cultural. Quando assumi nhecem que, hoje, a Agenda
minhas responsabilidades como diretor- 2030 tem um subcapítulo não escrito, mas
-geral assistente para a cultura da Unesco, implícito, que evoca a necessidade de avan-
percebi que a contribuição da cultura para çar em uma agenda que entre no desenvolvi-
o desenvolvimento sustentável é muito do- mento sustentável a partir de princípios que
minante, auxiliando na maioria dos ODS, e definem o andamento do espectro cultural.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 163
RO: COMO A CULTURA PODERIA SER INCOR- essa agenda com as ações que estão sendo
PORADA SEM UM OBJETIVO CONCRETO desenvolvidas pelos países de forma inter-
A PARTIR DAS METAS? governamental, localmente, e não apenas
EOR: Na Unesco, elaboramos um Rela- do ponto de vista nacional. É essencial nos
tório de Cultura na Agenda 2030 a partir propormos a retomar indicadores comuns,
dos diferentes programas que temos nesse fundamentados no trabalho dos Indicado-
campo, bem como de instrumentos como res de Cultura da Unesco para o Desenvol-
as convenções culturais da Unesco, que vimento (IUCD), com base em mais de dez
respondem a alguns pontos indicados na anos de trabalho de uma experiência única e
agenda. Na reestruturação que fizemos no com presença em todas as regiões do mundo,
setor cultural, criamos inclusive na Europa (do
uma entidade especiali- O meu propósito é sermos Leste), o que pode nos
zada em fazer justamen- capazes de cruzar essa agenda dar pistas para entender
te toda a coordenação com as ações que estão sendo como enfrentar hoje a
setorial, intersetorial e desenvolvidas pelos países necessidade de novos
interinstitucional das de forma intergovernamental, indicadores (alguns no-
Nações Unidas, para ver localmente, e não apenas do vos e outros iguais), mas
como podemos relatar ponto de vista nacional. É dentro da estrutura de
cada um dos incidentes essencial nos propormos a uma agenda global.
para alcançar os 17 ODS retomar indicadores comuns, Um dos nossos obje-
e demonstrar de forma fundamentados no trabalho dos tivos foi propor, durante
tangível como a cultura Indicadores de Cultura da Unesco a Conferência Geral da
contribui para comba- para o Desenvolvimento (IUCD). Unesco de 2019, o primei-
ter a pobreza e constrói ro encontro, em 20 anos,
a paz por meio do desenvolvimento social de ministros da Cultura, ocorrido paralela-
e econômico. mente à Conferência Geral, a fim de preparar
Eu não estou preocupado com o fato de o que será uma agenda comum dos Ministé-
a cultura não ter sido refletida nos ODS; o rios da Cultura. Constata-se aí um avanço
meu propósito é sermos capazes de cruzar extraordinário. Se há 20 anos menos de 52%
164 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
dos países tinham institucionalidade cultu- RO: A UNESCO SEMPRE FOI UMA REFERÊNCIA
ral (não estou dizendo ministerial, mas sim PARA MUITOS PAÍSES E ATORES, COM CON-
institucionalidade especializada em cultura), TRIBUIÇÕES, ESTRUTURAS CONCEITUAIS,
hoje são mais de 93% dos países-membros. ESTATÍSTICAS CULTURAIS E, ULTIMAMENTE,
Ou seja, existem 172 países com institucio- COM SEUS INDICADORES DE CULTURA PARA O
nalidade própria. DESENVOLVIMENTO (IUDC). ESSAS CONTRI-
O desenvolvimento de um país é um BUIÇÕES ESTAVAM PARADAS? SERIA NECES-
diálogo entre como podemos manter a sal- SÁRIO ADAPTAR-SE AOS ODS? A PRETENSÃO É
vaguarda da identidade cultural, do papel CONTINUAR ESSE TRABALHO?
das comunidades, do respeito pelas comuni- EOR: Existem problemas de financiamen-
dades indígenas etc. e não sermos um freio to, mas temos um projeto piloto de indicado-
para o desenvolvimento. Mais que ques- res preliminares que vamos desenvolver em
tionar por que não se conseguiu um ODS cinco regiões. Há muitas decisões em relação
para a cultura, deveríamos ver como somos ao desenvolvimento – urbanístico, por exem-
capazes de intervir para que essa Agenda plo – que têm a ver com os planos de gestão e
2030, em cujo subtexto está a cultura, seja organização nas cidades.
relevante para todos os Estados-membros. A Unesco deve retomar a sua função de
Esse é o nosso desafio! laboratório de ideias, que foi no passado e
deixou de ser, a serviço das necessidades dos
países-membros. Para além da entrega de
orientações, os países devem assumir a cons-
trução de políticas culturais em sintonia com
a agenda de desenvolvimento sustentável. As
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 165
de destruição, não é apenas a destruição físi- RO: PARA ALÉM DAS DECLARAÇÕES E CON-
ca, mas a destruição cultural e intelectual, de VENÇÕES, QUE SÃO IMPORTANTES, HÁ UMA
conteúdos e patrimônio, como a queima de ABORDAGEM NA AMÉRICA LATINA, E TAM-
manuscritos. Devemos avançar contribuin- BÉM NA EUROPA, SOBRE O PAPEL QUE A ECO-
do com recursos de inteligência artificial a NOMIA CRIATIVA, OU A ECONOMIA LARANJA,
serviço da digitalização, da documentação e DEVE TER NA COLÔMBIA. COMO O SENHOR
do desenvolvimento de protocolos de emer- SITUA ESSA QUESTÃO NO ÂMBITO DA UNESCO
gência para o futuro, para garantir que esses NESTE MOMENTO?
bens estejam disponíveis para as gerações EOR: Quando assumi a responsabilidade
futuras (em referência ao triste incêndio no do cargo, tive uma longa conversa com a dire-
museu do Rio de Janeiro). Há urgências. O tora-geral, dizendo que a primeira coisa que
que antes considerávamos um trabalho para precisávamos fazer era trocar o conceito de
garantir a permanência do patrimônio das indústria criativa pelo de economia criati-
civilizações, hoje mudou muito de contexto. va. Ainda não estamos na economia laranja.
Se não aproveitarmos todos os instrumentos Temos uma oportunidade dentro da agenda
que temos para nos preparar para o que virá, de desenvolvimento, em que a economia não
ficaremos muito atrasados e perderemos a seja considerada apenas do ponto de vista de
possibilidade de garantir a transmissão de cifras. Cada vez que se fala de economia cria-
conhecimento para as novas gerações. Tra- tiva nos planos nacionais ou regionais, é pre-
balhamos para que essa transmissão seja ciso considerar três elementos. O primeiro
feita hoje, não esperamos até amanhã. deles é o quanto ela representa no emprego.
De fato, é a economia mundial que gera mais
emprego na faixa etária entre 19 e 26 anos;
portanto, é uma oportunidade histórica. Em
segundo lugar, o quanto gera e contribui para
o PIB de cada país. Há aqui uma diferença
de como é medida. E, finalmente, se é uma
economia que garante acesso a determina-
da parte da sociedade que estava excluída –
criadores, jovens e mulheres.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 167
Tudo isso deve ser levado em conta do como de potencial econômico, permitindo
ponto de vista econômico. Vejamos o que que novas gerações vivam de sua criação.
produz do ponto de vista social: significa re- Mas essa é uma área social, a partir de como
cuperar identidades locais ou impedir o de- se mede a economia criativa.
saparecimento de certas culturas e tradições Por isso, é importante situar esses ei-
ameaçadas. Por isso a questão das línguas in- xos da economia criativa no âmbito dos pa-
dígenas é tão importante para o ano de 2019. trimônios material e imaterial, não apenas
Em outra dinâmica, a necessidade de planos como um instrumento da Convenção sobre
de gestão que garantam a sustentabilidade a Proteção e Promoção da Diversidade das
das ações. A grande discussão é que as co- Expressões Culturais, de 2005, mas como
munidades que vivem em torno de patrimô- um elemento dentro da Agenda 2030. Quan-
nios possam viver com mais qualidade, e que do o secretário-geral das Nações Unidas, a
não seja simplesmente uma sobrevivência diretora-geral ou a Organização Mundial
econômica que o patrimônio possa gerar. E, do Turismo falam de economia criativa
então, os caminhos são o reconhecimento do como parte do desenvolvimento susten-
patrimônio vivo e o modo como somos ca- tável do turismo, não é mais um discurso.
pazes de gerar uma economia local em tor- Está evidente que foi integrado e aceito
no da criatividade, que não é só artesanato. como potencialidade política e social. Sur-
Antes falávamos de como os artesãos locais preendentemente, os países que você menos
podiam ter uma maior distribuição de seus imagina, porque têm outros problemas am-
produtos, hoje discutimos como fazer com bientais, já têm essa dimensão integrada em
que eles mesmos sejam empreendedores e sua agenda de desenvolvimento. Refiro-me
se organizem em instituições, como em coo- a países com problemas de ordem educacio-
perativas, que podem atuar de maneira mista nal, analfabetismo em níveis inimagináveis
ou privada, e que possam resolver a econo- e problemas relacionados à saúde. Porém,
mia das famílias em torno disso. E aqui entra essa questão aparece como sujeito de desen-
o turismo sustentável: é preciso conseguir volvimento local para as comunidades e de
um turismo controlado para que os locais do coesão social, resiliência, e parte integrante
patrimônio mundial não percam seu valor de como se faz uma agenda em educação e
universal excepcional e sejam reconhecidos se integra ao currículo.
168 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
não existia antes. Hoje, contamos com uma RO: SENDO UM LATINO-AMERICANO NA DIRE-
seleção e uma lista, o que significa indexa- ÇÃO DA CULTURA DA UNESCO – E ISSO É UMA
ção. Estamos fazendo a mesma coisa com o NOVIDADE, PORQUE HÁ MUITOS ANOS NÃO
patrimônio imaterial. A ideia é levar essa in- HAVIA ALGUÉM DO CONTINENTE –, COMO O
dexação para todas as convenções e fazer essa SENHOR VIVE A QUESTÃO LATINO-AMERICA-
conexão, primeiramente entre o setor cultu- NA E A QUESTÃO MULTILATERAL EM NÍVEL
ral e depois com outros setores. Percebemos MUNDIAL? COMO FOI TER QUE ASSUMIR, A
que trabalhamos a questão dos locais que são PARTIR DA POLÍTICA NACIONAL, UMA POLÍ-
patrimônio por um lado e, por outro, dos geo- TICA MULTILATERAL?
parques, das memórias do mundo etc., e todos EOR: Eu vivo essa questão como um desafio
trabalham em paralelo. Para poder apresentar extraordinário. Quando assumi a responsabi-
o diálogo das culturas, é preciso apresentar o lidade do cargo, disse que me sentia herdeiro
acervo inteiro como um pacote: ou seja, o país, da cultura com uma visão em torno da natu-
por meio de toda a sua cultura, tem sido capaz reza dos nossos povos originários. Isso tem a
de produzir cultura para a humanidade. E esse ver com a visão holística na qual os patrimô-
é o valor universal do local. Não são os valo- nios material e imaterial se complementam, e,
res individuais que contribuem para que seja portanto, não posso conceber um sem o outro.
patrimônio, mas a junção de cada um desses Quando ocupei o cargo de ministro da Cultura
elementos. Esse é um trabalho que quem vai do Chile, certifiquei-me de que seria o primeiro
fazer são as futuras gerações. O que estamos ministério a promover uma consulta indígena
fazendo agora é gerar as condições para que no Chile, e estou orgulhoso porque servimos de
uma organização como a Unesco, no século referência para outros ministérios. Fomos os
XXI, possa ser um instrumento para a agen- primeiros a criar um departamento de povos
da comum. Mas é um trabalho enorme e não originários que trabalham em torno das tradi-
podemos fazê-lo sozinhos, temos de contar ções e da transmissão de línguas – assuntos que
com o apoio dos Estados-membros, de todas me interessam. Mas o conceito é utilizado ho-
as nossas organizações acadêmicas e centros listicamente nas reuniões, o que antes era visto
de pesquisa. Por isso a importância de parti- como um conceito acadêmico, sendo a base do
cipar da reunião de ministros da Cultura em que queremos como desenvolvimento susten-
2019, e que a agenda seja levada pelos porta- tável. E na Agenda 2030 não se pode conceber
-vozes aos seus países. o desenvolvimento sustentável se não houver
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 173
essa percepção. Em uma época em que os de- RO: É O RESULTADO DE TODO O TRABALHO EM
safios que enfrentamos são globais, acredito CULTURA QUE TEM SIDO FEITO NOS PAÍSES LA-
que devemos nos concentrar o mínimo possível TINO-AMERICANOS NAS ÚLTIMAS DÉCADAS...
nas diferenças existentes entre países e regiões EOR: Sim. É incrível a quantidade de boas
e trabalhar juntos para criar o futuro que to- práticas que estão sendo desenvolvidas no
dos queremos. Devemos olhar constantemente mundo todo, mas ainda não há sistemas de
para o futuro e não apenas concentrar-nos no troca de conhecimento e informações que
passado. No campo da cultura, acredito que permitem que os países se beneficiem delas.
pode haver uma mudança estrutural positiva Recentemente, conversei com um ministro
no longo prazo. O norte e o sul têm que desa- da Cultura que estava iniciando um plano
parecer como conceitos, porque não acredito nacional de leitura em seu país e o lembrei
mais neles. Estamos no século XXI, em que os de que fui presidente da Cerlalc2 durante dois
conceitos são globais e os problemas também, anos. Os planos nacionais de leitura na Amé-
e, se não procurarmos soluções juntos, não a rica Latina, que são de grande abrangência,
partir da história que construímos, mas a partir poderiam ser trabalhados e adaptados em
do futuro que queremos criar em termos cultu- outros países com base na experiência e nos
rais, estaremos limitados, e isso é uma mudan- resultados que obtivemos. Então, há muito
ça estrutural. Da mesma forma, não levo tanto que ser valorizado.
em consideração o aspecto latino-americano,
mas sentir-me parte dessa herança, que hoje
me permite entrar em diálogo com ambas as
partes. Morei por mais de 20 anos na Euro-
pa, por razões especialmente políticas, então
essa é a minha formação. Mas, durante todos
os anos em que estive no Chile e no Uruguai,
pude aprender que há, de fato, um olhar mais
próximo daquilo que acredito que aspiramos
deixar para as gerações futuras.
174 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
RO: O SENHOR SE DEDICOU A FORMAR GES- Agora, estou convencido de que, quanto
TORES CULTURAIS. ESTA REVISTA É LIDA mais generalista você é, mais chances tem
POR MUITOS DELES. COMO VÊ A GESTÃO CUL- de se desenvolver profissionalmente.
TURAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Quando me perguntam qual é a função
A PARTIR DO LOCAL PARA O GLOBAL? QUAIS que falta em um museu, eu digo que é a de
SÃO OS DESAFIOS DA GESTÃO CULTURAL gestor cultural. Há pesquisadores, museó-
NESTE MOMENTO? logos, tudo o que você possa imaginar, mas
EOR: Comecei nos anos 1990 e não che- não vejo gestores culturais, porque isso tem
guei a esta profissão por acidente. Decidi a ver com uma dimensão de como nos co-
estudar gestão cultural em 1992, em um municamos, como fazemos as mediações,
Seminário Malraux em Santiago, no Chile, como trabalhamos no sistema educacio-
e analisar como foi montado o Ministério nal formal e informal, como procuramos
da Cultura na França. Eu disse: “É isso que novos públicos, algo fundamental, como
me interessa!”. E a decisão foi uma maneira tomamos decisões financeiras que sejam
de me transformar em uma ponte. Eu venho programáticas, e não somente uma coisa
do mundo da criação, e o mundo da gestão ou outra. Mas hoje percebo que esse valor
cultural mudou muito desde que comecei. generalista presente na figura de gestores
Naquele momento, havia uma tendência à culturais, função que falta nos museus, per-
especialização dentro da gestão cultural. mite uma atuação local e transformadora
CULTURA E DESENVOLVIMENTO ENTREVISTA COM ERNESTO OTTONE RAMÍREZ 175
Notas
1 Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas. Transformando Nosso Mundo: a Agenda
2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
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