Curupira - Ensaio Sobre Tradução e Dívida Colonial
Curupira - Ensaio Sobre Tradução e Dívida Colonial
Curupira - Ensaio Sobre Tradução e Dívida Colonial
Resumo
78
Alexandro Silva de Jesus
Abstract
By going through a set of documents that, from the 16th to the 20th centuries, have
produced narratives on the curupira, the pages that follow explore the fundamental
role of translation in colonial theoretical thought. Considering each of these
narratives in their own dispersion, the aim is to demonstrate the way in which the
language of the colonizer becomes primary, and how its canonical value in
communicating experiences supports the assumption of the debt of colonized
subjects and cultures. In order to do so, I have highlighted parallelisms between the
mode of unravelling of colonization and the impressions that, turn by turn, were
produced on the curupira. Even though my analysis has been developed from
narratives on curupira, their sewing together here does not amount to its history.
Hence, from the very beginning I will refer to more than one force, thus marking
the several ways through which these narratives, differentiated and dispersed
among themselves, could be caught by those impressions from the many
regionalisms (courupira, curupira, currupira) of one significant.
Keywords: forces there, outside and before the text, translation, anteriority on
language, colonial debt.
1. Introduo
79
Alexandro Silva de Jesus
2. Impresso cristiana
Demnio era seu primeiro nome. No fora essa a ocasio de negar que houvesse
alguma coisa l, fora e antes do texto, manifestante nos bosques, serras e matas, ou
de duvidar que se estivesse as voltas, a, com fora terrvel, violenta, causa de
tormentos e mortfera; tudo isso se podia asseverar (deste facto so testemunhas alguns
de nossos irmos, que algumas vezes tiveram occasio de vr os assassinados por eles). O
que padre Anchieta recusava a essa fora era que sua captura na e pela linguagem se
efetuasse a partir de palavra ou conceito prprio aos Brazis ([...] ha certos demonios,
que os Brazis chamam de Corupira [...]). E essa recusa produz um arrombamento no
horizonte da experincia indgena: supunha-se, ento, que aquele seu crculo de
realidade quase sempre invisvel estivesse sob a regncia de foras estrangeiras,
80
Alexandro Silva de Jesus
vindas de outra parte pois o demnio funcionava, ali, como ndice de Outro
mundo possvel.
1
O exemplo sobre esssa compreenso limitante da noo de escritura e, consequentemente, do
conceito de leitura , chega, aqui, embaraado a uma crtica. Ele se autoesclarece: Os Nhambiquara
o sujeito da Lio da escritura seriam, portanto, um destes povos sem escritura. No dispem
daquilo que ns denominamos escritura no sentido corrente. Isto , em todo caso, o que nos diz Levi-
Strauss. [Entretanto,] se se deixa de entender a escritura em seu sentido estrito de notao linear e
fontica, deve-se poder dizer que toda sociedade capaz de produzir, isto , obliterar seus nomes
prprios e de jogar com a diferena classificatria, pratica a escritura em geral. expresso de
sociedade sem escritura no corresponderia, pois, nenhuma realidade nem nenhum conceito
(Derrida 1973, 136).
81
Alexandro Silva de Jesus
paralela que Alfredo Bosi (1992, 65), com razo, atribuiu condio singular que a
experincia colonial engendra. E mesmo quando essa sua terceira via emerge, ela
no deixa de acusar, em si mesma, o desejo de anterioridade, na linguagem, de uma
lngua ou idioma.
Guaixar chamado mas se passava o mesmo com o Corupira ou, antes, diabo
conceituado. Minha aposta que a diferena instituda entre o conceito (ser
conceituado), capaz de dizer o ser das coisas, e o chamado que funciona, a, como
uma espcie de encobrimento ou degenerao da funo do conceito deve ser
pensada como paradigmtica em relao ao deslocamento produzido pelo gesto
colonial. O rastro de sua violncia acusa, desde sua origem e em todo seu percurso,
uma lgica binria que dispe, de forma opositiva, nome prprio e apelido, naquilo
em que este signifique como expresso de uma denominao inapropriada
(chamamento). E, conquanto esse aspecto implique no desinvestimento de uma
textura metafrica com a qual se possa dizer o mundo e a experincia, penso que a
emergncia dessa dobra paralela na linguagem e que produz em seu interior nova
zona de contato acusa-se como efeito da transformao de uma lngua ou idioma
em apelido.
Pressente-se desde j os efeitos da jurisdio colonial sobre os modos de
expressar a experincia. Pois, se tudo se passa, a, como se o idioma ou lngua-apelido
no pudesse engendrar relao com a existncia seno na forma de uma
inapropriao ou irresponsabilidade, ento, a interveno colonial enquanto exerccio
de mediao de um outro idioma que faz as vezes de nome prprio, deve significar
para o colonizado , a um s tempo, a garantia de apropriao adequada do
mundo e da experincia e que a razo colonial supe que o outro se achasse
expropriado , e a aquisio de uma dvida.
Por isso mesmo, o outro aspecto que passarei a mencionar tinha apenas,
como se ver, aparncia de novidade. E para demonstr-lo, preciso saber que a
produo do trao sobre a fora que se manifestava l, fora e antes do texto de
Anchieta, se dera para que aqueles que se achassem fora da colnia geogrfica e
culturalmente soubessem o que dela lhes pudessem causar admirao ou
fossem desconhecidas. Nesses termos, o trao corupira, juntada a outros traos, o
igupiara e o batat, por exemplo deveria assumir aquela funo e lgica dos
objetos de coleo tal como Krzysztof Pomian analisou, e cuja funo consiste em
assegurar a comunicao entre dois mundos nos quais se cinde o universo (Pomian, 1984,
66).
Entretanto, ao desterritorializar o corupira, fazendo dele um dos tantos
apelidos pelos quais o demnio se deixava chamar, Jos de Anchieta no pde
82
Alexandro Silva de Jesus
oferecer outra coisa aos que estavam fora daqui seno mais do que eles j
experimentavam como seu mesmo. Entende-se, assim, porque naquelas coisas que
costumam assustar os ndios, houvesse, ento, pouco a acrescentar: na condio
colonial um dos idiomas com os quais o mundo nomeado deve ser deslocado ou
tornar-se raro em efeito (perda de atualidade). Quero insistir nesse ponto
retomando Pomian na altura de sua considerao sobre o papel que a linguagem
desempenha para que os mundos comuniquem uns aos outros e, tambm, na
relao ente o visvel e o invisvel.
83
Alexandro Silva de Jesus
2 Sobre essa falsa suposio da falta de arquivo entre os selvagens, a antropologia poltica de Pierre
Clastres decisiva. Usarei seu pensamento na altura em que ele precisou pensar o discurso sobre a
servido voluntria. O que se segue desdobra as consequncias da recusa primitiva de submisso:
A seus filhos a tribo proclama: sois todos iguais, nenhum de vs vale mais que o outro, nenhum
vale menos que o outro, a desigualdade proibida pois ela falsa, ruim. E, para que no se perca a
memria da lei primitiva, ela inscrita, em marcas dolorosamente recebidas, no corpo dos jovens
iniciados ao saber dessa lei. No ato inicitico, o corpo individual, como superfcie de inscrio da lei,
o objeto de um investimento coletivo desejado [...] (Clastres 2011, 156).
84
Alexandro Silva de Jesus
encontro, mas, efetivamente, a entrada num outro, em relao aos demais idioma
que s se desencobre no e pelo percurso colonial.
Quero registrar outro aspecto da impresso cristiana. Sua edio prescindiu de
qualquer experincia com a fora que ali foi marcada: o que desta se sabia no se
assentava num face a face que se tivesse com ela travado, mas do voto daqueles que
tiveram acesso somente aos resultados de sua manifestao (so testemunhas alguns
de nossos irmos, que algumas vezes tiveram occasio de vr os assassinados por eles). De
qualquer modo, as outras foras l, fora e antes do texto, no se deixavam ver pelo
estrangeiro.
Tambm h outro, nos rios, aos quaes egualmente matam os ndios. Perto de ns
ha um rio, habitado pelos Christos, o qual antigamente os ndios costumavam
atravessar em pequenas embarcaes, [...] antes de para ahi se dirigirem os
christos, e que muitas vezes eram por aquelles submergidos (Anchieta 1900, 48).
[...] muitas vezes atacam os indios, nos bosques, aoutam, atormentam, e matam
[corupira].
[...] e que muitas vezes eram por aquelles [igupiara] submergidos;
[...] ataca rapidamente os ndios, e mata, como o corupira [batat];
[...] tanto o medo que lhe tm, que s de imaginarem nelle morrem, como
aconteceu j muitas vezes [corupira, taguaigba, macachera, anhanga] (Idem, 47-8);
Em Jagoarigpe sete ou oito lguas da Bahia se tm achado muitos; em o anno de
oitenta e dois indo hum ndio pescar, foi perseguido de hum [igpupira]; o modo
que tm de matar he: abrao-se com a pessoa to fortemente beijando-a, e
apertando-a comsigo que a deixo feita toda em pedaos [...] e largando-a fogem;
e se levo alguns comem-lhes somente os olhos, narizes, e pontas os dedos dos
ps e mos, e as genitlias, e assi os acho de ordinario pelas praias com estas
cousas menos [homens marinhos, monstros do mar] (Cardim 1925, 90).
85
Alexandro Silva de Jesus
Ora, o deslocamento3 produzido por sua impresso, rasura aquela que fora urdida entre
os sculos dezesseis e dezessete. verdade que, do mesmo modo que antes, o que quer
que fossem as foras l, fora e antes do texto, a nova impresso continuou a marcar
o lxico do colonizador como anterior na linguagem. Ela tambm imprimiu,
semelhana da que lhe antecedera, obscurantismo s crenas indgenas. Entretanto,
enquanto que, para Ferno Cardim, a obscuridade era produzida base de uma
suposta ausncia de memria prottica que garantisse coerncia e uniformidade s
narrativas sobre as crenas indgenas, Von Martius fazia obscuro o ato mesmo de
acreditar em espritos malignos, em nada importando se curupiras ou demnios
perseguidores (crena ttrica/suposto demnio)4. Da a ausncia de registro sobre
3 Insistirei neste ponto: primeira, segunda ou mais impresses, no dizem o ato de imprimir
somente, mas, sobretudo, os modos de captura das foras l, fora e antes dos textos, prprios a cada
impresso. Disto, os textos de Antnio Vieira e Ferno Cardim formam, aqui, a primeira impresso,
na medida em que compartilham de uma perspectiva comum. Em relao a esses, os escritos de Spix
e Martius constituem uma segunda impresso.
4 Esse desejo de rasura se encontra, inclusive, nas reedies que o sculo dezenove promoveu dos
documentos do sculo dezesseis. Eis uma nota de rodap na Carta de So Vicente: No de admirar
que Anchieta, homem de grande piedade, desse credito a certos delrios dos ndios, quando em muito doutos
escriptores de todos os tempos se encontram, a cada passo, casos horrveis de espectros, de bruxas, de lmurer, e
de demnios. E, antes, esse desejo de rasura aprece num subttulo que antecede o trecho da Carta
referente ao curupira, a saber, NO TEMPO EM QUE ESTAS COISAS FORAM ESCRIPTAS,
JULGAVAM QUE OS DEMNIOS PODIAM PRODUZIR A MORTE, OU FERIMENTO NOS
INDGENAS. Coisa semelhante ocorre com a reedio do Tratados da terra e gente do Brasil, ao
comentar a crena em monstros marinhos. Para o editor da traduo franceza do livro de Gandavo na
colleco de Henri Termaux, o monstro provedor das assaltadas, que narram os autores citados, seria
provavelmente alguma phoca de tamanho extrordinario; para Varnhagen, o comentador de Gabriel Soares,
seriam ellas obra de tubares, ou de jacars, uma vez que no consta haver phocas no litoral brasileiro.
86
Alexandro Silva de Jesus
encontros fatais com a fora manifestante l, fora e antes dos textos; a prpria ideia
de que se pudesse ter um encontro se tornava impossvel.
Ocorre muito mais que isso. No se tratava mais, como no dezesseis, de saber
alguma coisa sobre o que fossem as foras l, fora e antes dos textos, mesmo se
tratando de saber sobre sua inexistncia recorrendo a testemunho duplamente
indireto, reportado, de um lado, a um terceiro como fiador (so testemunhas alguns de
nossos irmos [...]/Em Jogoarigpe sete ou oito lguas da Bahia se tm achado muitos), e, de
outro, a traos que se davam a ler, a partir dos corpos que se achavam aqui e ali,
como arquivo morto do encontro ([...] que algumas vezes tiveram occasio de vr os
assassinados por eles/e se levo alguns comem-lhes somente os olhos, narizes, e pontas os
dedos dos ps e mos, e as genitlias, e assi os acho de ordinario pelas praias com estas
cousas menos). Na nova impresso, o testemunho se efetuou na primeira pessoa ([...]
quando uma vez [...] levei comigo, numa excurso pela mata [...]), e a presena do
curupira, ou, nos termos do deslocamento que o dezenove operou, a suposio de
sua presena se deduzia a partir das afeces nos corpos dos vivos (Desse momento
em diante, o ndio perdeu de todo a cabea. Aiqu tima aiqu curupira, murmurou ele entre
os dentes/tremia-lhe o corpo todo).
Tudo isso denuncia o desejo, manifesto nos oitocentos, de que a impresso
curupira revelasse uma forma de saber onde as coisas e suas causas inclusive
aquelas que no se podia ver, porque invisveis ou apenas iluses , se
apresentassem de forma plenamente objetiva. E de uma maneira que cada sinal da
presena do curupira desencobrisse um fenmeno prprio ao mundo natural.
Retomarei o relato sob esta nova considerao, para destacar seus momentos.
Ora, concentrando a anlise [do que ocorria] nessa leitura das causas naturais
que, lidas de outra maneira, engendravam no ndio a crena de que estivesse em
presena do curupira, quero reafirmar os jogos de traduo mesmo que se trate,
como o caso desse relato que acabei de por em citao, de traduo epistemolgica
como um dos problemas sobre o fundamental que a anlise sobre a condio
colonial deve se ver s voltas. Isso me sugerido no fato de que a impresso curupira
87
Alexandro Silva de Jesus
tenha riscado um zig zag entre duas epistemologias sobre o que se manifestava l,
fora e antes do texto (Nuvens carregadas de trovoadas, que passavam, refrescavam a
atmosfera, e fizeram um lagarto entorpecido cair sobre as minhas costas/Aterrava-o um
galho qualquer retorcido, ou tronco de rvore morta, qualquer tranado de cip), ainda que
o trao da leitura nativa se desse para seu prprio apagamento.
Penso que esse movimento de costura - que consistiu no somente em
leituras diferenciadas sobre as foras, mas em conceitos diferentes para pr o que
elas fossem como inerente a qualquer circunstncia que se d o encontro com o
outro. O que, ento, fazia aquela impresso funcionar como parte de um aparato
colonial era a subordinao que ela operava de uma traduo sobre a outra (suposto
demnio/suas fantsticas vises aterradoras eram efeito de estmago vazio), demonstrada,
como se ver, na impossibilidade de deixar o outro entregue, na linguagem,
singularidade prpria a seu fantasma.
Mas utilizei, imediatamente antes, a expresso suposto demnio para indicar
na condio colonial a hierarquia produzida entre duas tradues que se fazia do
mundo e de sua experincia. O termo suposto deveria indicar, assim, a edio que se
erigiu como primeira na linguagem pois o suposto , justamente, o dispositivo pelo
qual o sentido indgena abalado , conquanto a palavra demnio fizesse as vezes de
uma impresso nativa. Usar esse ltimo termo dessa forma, pode parecer
contrassenso, uma vez que j mostrei que era com ele que o sculo dezesseis
rasurava o significante indgena. Entretanto, ele sofreu uma reinscrio no oitocentos.
Esse deslizamento apenas refora que a impresso curupira, levada a cabo pelo
oitocentos, respondia a um momento novo na experincia colonial, onde os
significantes de fora j se achavam ser reinvestidos pelos indgenas que, a essa
altura do tempo j no eram somente os ndios , e passam a compor o lxico dos
termos que lhes figurassem prprios. Contudo, necessrio observar que neste
caso esse seu novo destino aconteceu no momento de sua rasura ou, no mnimo,
um deslocamento l no lxico onde ela fora buscada. Seu uso, portanto, dizia
sobre uma entrada defasada ou precria na lngua do outro, mas suficiente para pr
a leitura do mundo e das coisas em dia. Isso o que sustenta, na lgica colonial, o
pressuposto sobre a dvida.
Ora, essa passagem e apropriao da e pela linguagem ocorre no momento de
um esforo de integrao da colnia. J no havia, como no dezesseis, Brazis (A
palavra jurupari encontra-se mais generalizada em todo o Brasil...), e desde o setecentos, o
desejo de fazer responder os ndios mediante o idioma portugus em detrimento de
sua lngua geral, alcana a forma de lei. Mas no me utilizo da palavra esforo por
acaso; as tentativas desse deslocamento da lngua e que tem seu lugar tpico na
Lei do Diretrio dos ndios fracassam; ainda no sculo dezenove a palavra jurupari
encontrava-se mais generalizada, em todo o Brasil, que a palavra estrangeira,
88
Alexandro Silva de Jesus
substituta em significao (...onde o uso desse idioma foi abandonado, emprega-se o termo
portugus demnio).
Quero retomar o desejo oitocentista de resolver as coisas do mundo e sua
experincia a partir de um desencobrimento objetivo. Ele faz da epistemologia dos
povos da mata, uma experincia noturna:
5 Teoria negativa bem expressa no trecho a seguir: Em toda sociedade existe o elemento costumeiro, o
elemento dos hbitos e das tradies, da tcnica de adaptao ao meio; talvez fosse possvel empregar para este
elemento um termo particular, cultura por exemplo... Este elemento assimila completamente as
sociedades humanas s sociedades dos animais inferiores [...]. Este elemento ope-se ao progresso e tende
a imobilizar toda a forma social. o elemento antropolgico de toda a civilizao, o resduo do passado da
sociedade... (Lavroff & Lecrerc 1973, 28-9).
89
Alexandro Silva de Jesus
Quero fazer notar que se tinha muito mais a se dizer sobre as foras l, fora e antes
dos textos, numa impresso que buscou, sem hesitao, neg-las, do que naquela,
quinhentista, crdula sobre sua existncia, dentro e fora do Brazis. No suponho,
por isso, que essa nova prensa dispusesse de mais descries ou informaes sobre
o que fossem essas foras do que aquela forjada na altura dos quinhentos. Pois, se,
de fato, esta pouco acrescentou sobre as mesmas, sabe-se, tambm, que o que ali foi
registrado estava longe de esgotar seu arquivo ([...] nem de admirar que, com estas e
outras coisas, que seria longo enumerar). Seria muito simples e, mais que isso, pouco
pertinente , por outro lado, afirmar que se tratou, a, de uma diferena produzida
no deslocamento de uma perspectiva teolgica, para outra, do sculo. Os termos da
resposta esto dispersos no que j fiz chegar, aqui, dessas impresses.
Eu j havia dito que a breve descrio do curupira e seus congneres na
impresso quinhentista, se deveu ao carter translocal ou transespecfico que as foras
l, fora e antes daquele texto, foram revestidas. No haveria, ento, razo para
enumerar longamente o que se manifestava como encobrimento realizado, desde
esse ponto de vista, na clivagem entre entes do mundo e denominao indgena de
algo que lhe fosse prprio. Impresso sob outra presso no comeo do oitocentos,
essas foras perderam no somente uma localizao especfica como deixavam de
existir, para seu impressor, como realidade mesma. E essa sada de cena produzia,
em seu prprio deslocamento, nova entrada: neomortas, aquelas foras adquiriam o
estatuto de documento de uma diferena entre as culturas, e de uma maneira que a
concesso de realidade s foras l, fora e antes desses textos, pde ser tomada, para
determinada imaginao do sculo dezenove, por prova de uma unidade
conceitual prpria e extensiva a todo um estado da cultura, e, por isso mesmo,
capaz de singulariz-la (o estado primitivo). Coisa muito diferente do que fora feito
no dezesseis, qual seja, qualific-las como foras cristianas.
Entretanto e isso mais uma hiptese a ser demonstrada do que um trao a
se registrar , nunca se esteve, a, s voltas com fora unvoca: essas operaes no
dizem ou pem a mesma fora: o dezesseis produziu trao para uma ideia-fora que
s existe em seu efeito (os assassinados por elle...), posto que no se dava para as
90
Alexandro Silva de Jesus
4. Prensa mestia
Se o de fora no fora capaz de re-conhecer a realidade das foras l, fora e antes dos
textos e em mais de um encontro , isso no impediu que seu olhar, supostamente
fixado em um lugar vazio, produzisse o modo de saber que tomou parte do
dispositivo de verdade predominante no oitocentos, a saber, a taxonomia dessas
foras, e de uma maneira que, costurando de partida uma articulao entre as
crenas ttricas que se tinha nelas, permitiu, no mais adiantado daquele sculo,
experincia de observao etnogrfica retom-las em um quadro que supunha
desencobrir a religio indgena. Em 1876, Couto de Magalhes, em seu TRABALHO
PREPARATORIO PARA O APROVEITAMENTO DO SELVAGEM E DO SOLO
POR ELLE OCCUPADO NO BRAZIL, j podia apresentar os elementos da
theogonia aborgene.
91
Alexandro Silva de Jesus
Os deuses submitidos a Jacy, ou lua, que a mi geral dos vegetaes, so: O Saci
Cerr, o Mboitt, o Urutu e o Curupira.
O Curupira o deus que protege as florestas. As tradies representam-no como
um pequeno tapuio, com os ps voltados para trz, e sem os orificios necessarios
para as secrees indispensaveis vida, pelo que a gente do Par diz que elle
mussio. O Curupira ou Curru-pira, como ns o chamamos no sul, figura em
uma infinidade de lendas, tanto no norte como no sul do Imprio. No Par,
quando se viaja pelos rios ouve-se alguma pancada longingua no meio dos
bosques, os remeiros dizem que o Curupira que est batendo nas saponemas, a
ver se as arvores esto sufficientemente fortes para sofrerem a aco de alguma
tempestade que est prxima. A funco do Curupira proteger as florestas.
Todo aquelle que derriba, ou por qualquer modo estraga inutilmente as arvores,
punido por ele com a pena de errar tempos immensos pelos bosques, sem
poder atinar com o caminho da casa, ou meio algum de chegar entre aos seus
(Magalhes 1876, 138-9).
Ora, o que essa edio acusava, era uma fora (o Corrupira) absolutamente Outra em
relao s outras cujos registros fiz chegar at aqui (do Corupira e mesmo do Curupira,
seu antecessor imediato em impresso). Pois trata-se, antes de tudo, de faz-la
submissa (a Jacy, ou lua) e, por isso mesmo, responsvel em sua vigncia divina ( o
deus que protege as florestas). Sua ao de retirar o rumo e o eixo (fazer errar tempos
immensos pelos bosques), justificada pelo benefcio a um meio ambiente (Todo aquelle
que derriba, ou por qualquer modo estraga inutilmente as arvores, punido por ele). E, j in-
corporada as tradies indgenas e no, somente, dos ndios , o que dela tambm
se pde imprimir, foi sua representao (As tradies representam-no como um
pequeno tapuio, com os ps voltados para trz, e sem os orificios necessarios para as secrees
indispensaveis vida, pelo que a gente do Par diz que elle mussio).
92
Alexandro Silva de Jesus
Nas historias que narram ha quasi sempre um homem que persegue uma certa
ordem de creao, e a esse homem, que persegue essa ordem de creao, que o
deus apparece fazendo algum mal; o mal portanto, feito a tal homem, no um
mal, uma punio justa e merecida, segundo as idias dos selvagens.
Essa concluso abre para um dos quatro aspectos que considero importante
marcar sobre a impesso corrupira. J se podia pressentir que sua edio se
colocava em desacordo com as anteriores, no por que determinadas
religiosa ou cientificamente pois ela mesma produz sua urdidura se
deslocando de campo (antropolgico) em campo (da f crist), mas, tambm,
cruzando um e outro , mas por passarem ao largo do ponto de vista
(ecolgico) dos ndios. Tratava-se, pois, de uma impresso interessada em
reparar os prejuzos antigos.
93
Alexandro Silva de Jesus
Com essa inteno retificadora na cabea inteno que, como se ver, me utilizarei
para dar conta de outros aspectos dessa mesma impresso , medir impresses
poder ser bastante elucidativo sobre o modo como essa edio de Magalhes se
efetua Limitar-me-ei, aqui, em parear a impresso corrupira com a que lhe fora
imediatamente anterior, primeiro, em suas percepes sobre o jurupari.
Nesse caso, v-se bem que a retificao no foi mais que uma limitao, posto que
consistiu, somente, na restrio do horizonte de ao do jurupari que, at ali
aparecido em todas as desgraas (Epidemias, feras devoradoras, influxos nocivos dos
elementos), via sua fugacidade e fantasmagoria se restringir ao universo onrico (um
ente que de noite cerra a garganta das creanas ou mesmo dos homens, para trazer-lhes
afflices e mos sonhos). Mas o que se queria mesmo demonstrar (que o prprio
jurupari no se contava entre os entes cuja misso se pudesse dizer que era toda mal),
no encontrou seu termo. Pelo menos a, a rasura no se consumara.
Irei, agora, acusar outro problema mais grave, certamente, e mais prenhe
de consequncias para a consecuo que se queria desse desejo de correo, a partir
do pareamento entre o Curupira e o Currupira, disposto abaixo.
94
Alexandro Silva de Jesus
Quando uma vez, em Barra do rio Negro, levei comigo, numa excurso pela
mata, um ndio campons (que tinha vindo dos campos do Rio Branco para aqui),
le, acostumado desde a infncia nas plancies, perdeu o caminho na escurido
da selva, e andamos perdidos, para c e para l, durante horas, com que o
selvagem cada vez mais se angustiava. Nuvens carregadas de trovoadas, que
passavam, refrescavam a atmosfera, e fizeram um lagarto entorpecido cair sobre
as minhas costas. Desse momento em diante, o ndio perdeu de todo a cabea.
Aiqu tima aiqu curupira (Aqui no h segurana, o curupira), murmurou ele
entre os dentes, e olhava-me aterrado, pois me via guardar o suposto demnio na
minha caixa de herborizao [...] espirito pirracento das matas, que topa com os
ndios sob uma forma qualquer, at conversa com eles, despertando ou
mantendo inimizade entre indivduos, e goza, com malignidade, da desventura
ou da desgraa dos homens.
(impresso curupira).
O Curupira o deus que protege as florestas. As tradies representam-no como
um pequeno tapuio, com os ps voltados para trz, e sem os orificios necessarios
para as secrees indispensaveis vida, pelo que a gente do Par diz que elle
mussio. O Curupira ou Currupira, como ns o chamamos no sul, figura em uma
infinidade de lendas, tanto no norte como no sul do Imprio. No Par, quando se
viaja pelos rios ouve-se alguma pancada longingua no meio dos bosques, os
remeiros dizem que o Curupira que est batendo nas saponemas, a ver se as
arvores esto sufficientemente fortes para sofrerem a aco de alguma
tempestade que est prxima. A funco do Curupira proteger as florestas.
Todo aquelle que derriba, ou por qualquer modo estraga inutilmente as arvores,
punido por ele com a pena de errar tempos immensos pelos bosques, sem
poder atinar com o caminho da casa, ou meio algum de chegar entre aos seus
(impresso corrupira).
95
Alexandro Silva de Jesus
como ns o chamamos no sul.../os remeiros dizem que o Curupira que est batendo nas
saponemas).
J insinuei, nessa tpica, dois outros traos diferenciais da impresso currupira.
O primeiro deles acusa, se se leva em conta a procedncia do arquivo de que a
impresso se serviu, que se tratou de uma impresso mestia. Acabei de mostrar: a
fora que se imprimiu foi aquela que a tradio representara, ou segundo a maneira
que se via chamada (por um ns) no sul; manifesta tal e qual ela acontecia na
compreenso da gente do Par (dos remeiros, por exemplo). Nesse contexto, pertencer
tradio indgena deve significar ao menos duas coisas. Que ela deve ser
desencoberta, pela anlise, como mitologia paralela (para memria: nem a teologia
crist nem a crena tupi, mas uma terceira esfera simblica). Essa sua forma de quedar
bastante explcita na altura em que a prpria impresso, em desacordo explcito,
desencobre a con-fuso que abre para a tradio.
Dizem os que negam boas aces aos deuses selvagens: Anhanga, Curupira,
Cahipora (allis Cahapora), so apenas conservados nas tradies dos brasileiros
como entes que podem fazer mal ao homem, sem lhes poder fazer bem algum.
96
Alexandro Silva de Jesus
pessoas, basta para acusar essa insuficincia. Em todo caso, imaginar as vias pelas
quais essas astcias se desdobraram no tempo colonial j permite supor a theogonia
aborgene como efeito etnogrfico.
Ser impresso mestia quer dizer tambm que, nela, j no fora possvel manter
estritamente separados subjetividade arquivante e subjetividade arquivvel. No que
no houvesse esforo para estabelecer essa diferena. Alis, essa vontade se
materializa quase sempre a partir do pressuposto sobre distncia que a observao
etnogrfica supe.
97
Alexandro Silva de Jesus
6 A experincia de Fred Murdock, etngrafo borgeano que com seu silncio anuncia o fim da
antropologia, d exemplo disso: Ms de dos aos habit en la pradera, entre muros de adobe o a la
intemperie. Se levantaba antes del alba, se acostaba al anochecer, lleg a soar en un idioma que no era el de sus
padres. Acostumbr su paladar a sabores speros, se cubri con ropas extraas, olvid los amigos y la ciudad,
lleg a pensar de una manera que su lgica rechazaba (Borges 1984, 989).
98
Alexandro Silva de Jesus
Esses termos abrem para o equvoco que preside a lgica colonial, qual seja, de que
o mau encontro que sua experincia inaugura inevitvel (extermnio ou essa outra
morte a partir da linguagem: sem lugar para o desvio ou qualquer esforo para
barrar o encontro), o que, ali, era o mesmo que dizer que ele (o encontro) no faz
parte de uma deciso, que se est entregue ao destino (a historia demonstra que por
toda parte e em todos os tempos.../a raa civilisada [que] se vio forada...) ou a Lei: da
perfectibildade humana, que, dizia a impresso, to inflexivel como a lei physica da
gravitao dos corpos. O pressuposto sobre essa lei deve compor qualquer anlise
genealgica sobre a ideia de dvida que foi colada, desde o comeo, ao sujeito
colonizado.
Havendo encontro, a traduo se tornava, ento, o destino melhor que se
podia ter: a diferena entre extermnio e in-corporao, fazia do ensino de uma lngua
a conquista pacifica da intelligencia. Bem se v que tudo se passava como se a
traduo estivesse apartada da materialidade a partir da qual o extermnio, a cada
99
Alexandro Silva de Jesus
vez, aplicasse sua fora, e isso apesar de todo o aparato belicoso de que a traduo
iria depender (ela s seria possvel com um corpo de interpretes organizado com praas do
exercito e armada que fallem ambas as lnguas), e da vizinhana entre a traduo e esse
aparato, enquanto recursos do constructo colonial na impresso, a colnia militar, o
intrprete e o missionrio so consignados como os seus meios prticos.
Nos termos da impresso, o programa de pr em traduo a inteligncia
da civilizao que o idioma recolhia, fazia do lngua (intrprete marcado pela
disciplina militar, falante tanto da lngua civilizada como as dos indgenas) aquele
que abria, para os ndios, a possibilidade de sua in-corporao. Sua importncia
estratgica pode ser atestada pela sugesto de que, em sua ausncia, a eficcia de
um de seus meios prticos estaria comprometida ou sequer chegaria a se cumprir
[...] de que serve o missionario, com a santidade das leis da religio, se elle no tem
lingua por onde ensine a regeneradora moral do christianismo? (Magalhes, op.
cit., X) , e pelo cruzamento complexo que essa teoria da traduo colonial urdiu
entre o lingustico e o religioso, de maneira que o lugar que a impresso currupira
reservou para a traduo no constructo colonial, j se encontrasse prefigurado pelo
contexto do qual o mito sobre a dispensao da f crist se apresenta como
cumprimento.
No foi por ventura o proprio Christo que, com o mandamento de espalhar sua
doutrina pelo mundo, disse aos apostolos que, antes de fazel-o, o Espirito Santo
descseria sobre elles e lhes daria o dom das linguas?
No querer isso dizer que o interprete cousa to importante entre uma raa
christ e uma raa barbara, que, sem elle, impossivel ser trazer aquella a
assimilar-se com esta? (Magalhes, op. cit., X)
100
Alexandro Silva de Jesus
101
Alexandro Silva de Jesus
..., e l pelo fim, sua histria dir de outro encontro e de um lugar de encontro, que
essas foras experimentaram, e que, impossveis de serem desenvolvidos aqui,
deixo-os de qualquer modo indicados, j que, a um s tempo, produzem e
testemunham sua morte. Elas so encontradas, primeiro, na tradio popular.
V-se bem, pela citao, que esse seu encontro no popular j aparece desencoberto
por outro, mais fatal, daquelas foras como o folclore, como se para que tivesse sua
natureza finalmente revelada.
Lembradas, a partir de ento, como piada de povos da mata, mas que j se sabe e j se
conta na cidade que institui, no catlogo, o limite do raio de ao das foras , sua
morte folclo-gloriosa desencobre a impresso, geral por se desencobrir de impresso
em impresso: a de que aquelas foras l, fora e antes dos textos, no puderam
nunca contra o estrangeiro.
102
Alexandro Silva de Jesus
Bibliografia
Anchieta, Jos de. 1900. Carta fazendo a descripo das innumeras coisas naturaes que se
encontram na provincia de S. Vicente hoje S. Paulo. So Paulo: Typ. Da Casa
Eclectica.
Borges, Jorge Luis. 1984. Obras completas (1923-1972). Buenos Aires: Emec Editores.
Cardim, Ferno. 1925. Tratado da terra e gente do Brasil. Rio de Janeiro: Editores J.
Leite & Cia.
Derrida, Jacques. 2001. Mal de Arquivo: uma impresso freudiana. Rio de Janeiro:
Relume Dumar.
Spix, Johann Baptiste von; Martius, Carl Friedrich Phillip von. 1968. Viagem ao Brasil
(1817-1820). 2a. edio. So Paulo: edies Melhoramentos. Vol. III.
103