Ori Nikan
Ori Nikan
Ori Nikan
RESUMO
O propósito deste texto é apresentar alguns versos dos oráculos iorubas que mostram a
independência de Orí em relação aos Òrìsà, atendendo assim o aspecto filosófico do tema. No
aspecto litúrgico, apresentaremos um rito de bori registrado por Pierre Verger na década de 1950,
que mostram na prática ritual esta independência. Finalizaremos com algumas observações
filosóficas sobre a perca do conceito de Orí como Òrìsà individual , e a reinvenção do rito.
INTRODUÇÃO
A intenção teste texto pode parecer redundância para alguns centros religiosos mais
centralizados, entretanto, não o é para outros segmentos mais regionalizados e afastados das
regiões tidas como centros afro-religiosos.
Não será propósito deste trabalho o estudo da Noção de Pessoa propriamente dita, embora
esteja intimamente relacionada com o monoteísmo de Orí. Sim, Orí é um culto e rito monoteísta,
ele é único para cada pessoa. Em seu monoteísmo estão embutidos, subentendidos e resumidos,
os conceitos de ìpín-odù (destino), ìdílé (clã), èmí (espírito eterno), enìkejì (protetor espiritual),
okàn (individualidade, alma), ìwa (caráter), ìpilèsè (origem) egbé-òrun (sociedade espiritual),
àlàbò'run (protetor espiritual), ipòrí (origem ancestral), ebí (família) etc. 1
Para nosso propósito, Orí será tratado como um aglutinador e concentrador de todas estas
“qualidades”. Sobre a individualidade de Orí, vejamos o que diz Abimbola (1975, pg. 114-6):
“ […] Os iorubas reconhecem Orí como um dos deuses de seu panteão. De fato, num certo sentido, Orí
pode ser considerado como o deus mais importante sobre todos os outros [exceto Olódùmarè]. O Orí
de todo ser humano é reconhecido como seu deus pessoal, do qual espera-se que seja o mais preocupado
com seus interesses, muito mais que os outros deuses que são considerados como pertencentes a todos.
Como um deus, Orí é cultuado e propiciado pelos iorubas, [e] os deuses, eles mesmos tem seu próprio
Orí dirigindo seus afazeres diários da vida. Assim como os humanos, os deuses conhecem os desejos
de seu Orí através da consulta de Ifá; [e] Òrúnmìlà, ele próprio, consulta seus instrumentos divinatórios
para conhecer os desejos de seu Orí […]
Neste tema sobre Orí podemos encontrar mitos que explicam o processo de seleção de Orí no òrun para
o sucesso ou falência individual na terra. Estes mitos também enfatizam o ponto que Orí é maior que
qualquer outro deus e que cada pessoa deveria levar todos os seus problemas primeiro para seu Orí
[…].”
1 Estes conceitos foram estudados nas edições anteriores da Revista Olorun (http://www.olorun.com.br).
2
Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Assim como os Òrìsà, Orí também possui cânticos e louvações destinados apenas a ele.
Os iorubas dedicam a Orí muitas canções e poemas, cujas súplicas e louvações sempre buscam
um bom destino no mundo. Um canto para Orí recolhido por Salami (2008, p. 58), enaltece as
qualidades de Orí:
1. Orí ló dá mi
2. Èèyàn kó o
3. Olórun ni
4. Orí ló dá mi
5. Orí Agbe ló dágbe; ló dágbe
6. Àtàrí àlùkò ló sì dálùkò
7. Èniyàn kó
8. Elédàá mi ló dá mi
9. Èèyàn kó o
10. Eledàá mi ló dá mi
Outro canto, agora recolhido por Omidire (2004, p. 127) também enfatiza Orí como dono
e responsável do destino pessoal:
3
Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Orí Loníse
Orí loníse, yé o!
Orí loníse èdá l'àyànmó ò
Oba òkè tó gbé wa níyì, ló gbé wa ga
Orí loníse èdá l'àyànmó ò
Um cântico do músico iorubá King Sunny Ade, também recolhido por Omidire (2004, p.
130) vem esclarecer ainda mais a filosofia de Orí como Òrìsà pessoal:
Jà fúnmi!
Orí mi yé o,
Jààà, já fúnmi!
Èdá mi iye o,
Jààà, já fúnmi!
Orí bàbá mi,
Jààà, já fúnmi!
Orí mi má mà gbàgbé já fúnmi!
4
Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Me socorra, me proteja!
Meu Orí, não se esqueça de me socorrer!
1. ORÍ NÌKÀN
Dos versos de Ifá que falam de Orí, queremos destacar o léselése2 Orí Nìkàn (Orí, o único),
pois nenhum é tão significativo para os iorubas, e ao mesmo tempo tão revolucionário para nós,
afro-brasileiros.
Ao refletirmos sobre profundidade deste poema, chegamos a tomá-lo à guisa de uma
reforma religiosa, que talvez tenha ocorrido em algum momento imensurável do caminhar
espiritualista do antigo povo nagô, hoje unificados sob o nome internacional de iorubas. Este
poema do odù Ògúndá Méjì foi coletado em pesquisa de campo por Abimbola (1976, pg. 158),
publicado pela Unesco.3
Resumo: 4
“Ifá perguntou a vários Òrìsà, inclusive Òrúnmìlà, qual deles poderia acompanhar seu
devoto numa longa viagem, sem retornar. Um de cada vez, todos Òrìsà responderam que sim, que
poderiam.
Então Ifá perguntou o que eles fariam se, antes da viagem, visitassea a terra natal, e lá
fossem recebidos com festa, e lhe oferecessem todas as comidas e bebidas de que eles mais
gostavam. Todos os Òrìsà, inclusive Òrúnmìlà, responderam que primeiro comeriam e beberiam
até ficarem fartos, e depois iriam para suas casas.
Ifá disse-lhes que nenhum dos Òrìsà, inclusive Òrunmìlà, não poderiam acompanhar seu
devoto numa longa viagem, sem retornar. Os babalaôs pediram então a Ifá que lhes dissesse quem
2
Poema. Literalmente, “uma lista de ...”, no caso, versos. (CMS, 2001, pg. 153).
3
A tradução é nossa, a partir do inglês, com consultas aos dicionários de ioruba, quando necessárias.
4 Segundo Abimbola, o bàbáláwo informante deste e outros poemas do livro é Alawonifa Animasaum Oyedele Isola,
48 anos (na época), Ilé Beesin, Pakoyi, Òyó, entre 1963 e 1970; método de pesquisa: gravação e escrita; local da
coleta: Baàsì e Onsà campus, Òyó.
5
Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
poderia acompanhar seu devoto para onde ele fosse. Ifá respondeu que Orí é o único que pode
acompanhar ser devoto para uma longa viagem, sem retornar.”
Ògúndá méjì 5
Orí Nìkàn 6
(Orí é o único)
5
Um dos dezesseis principais signos divinatórios de Ifá, chamados Ojú Odù.
6
A versão e adaptação do texto é nossa, como também o título dado, que foi tomado por empréstimo de um dos versos
finais do próprio poema, na sua versão em ioruba.
7 “Reunião de Òrìsà, reunião de Ifá”. Inserimos este verso para melhor adequação do texto, sem prejuízo do contexto.
6
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Um ese do odù ògúndá, recitado pelo Bàbálórìsà Salako de Òyó, coletado e publicado por
Bascom (1993, pg. 451), mostra que Iyemoja cultuou seu Orí para conseguir ter filhos.
Resumo:
“Iyemoja consultou o oráculo porque não tinha filhos. Foi dito a ela que ela deveria fazer
uma oferenda para seu Orí. Ela seguiu a receita do oráculo, e ofereceu tudo para seu Orí. Depois
que ela fiz isso, ela passou a gerar muitos filhos, inclusive, Dàda, Sàngó e Egúngún.”
Ògúndá8
8
O terceiro signo do jogo de buzios.
9
A versão e adaptação do texto é nossa.
13
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10
Advérbio quantitativo (CMS, 2001, pg. 155).
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O próximo ese pertencente ao odù òyèkú méjì e publicado por Abimbola (1976 b, p. 143),
mostra que Ifá não pode atender os desejos dos babalaôs. Eles foram orientados a cultuarem Orí,
para conseguirem todas as coisas boas da vida.
Resumo:
“ Os babalaôs consultaram Ifá a respeito de suas próprias vidas, pois estavam passando
necessidade de tudo. Mas o que eles desejavam, Ifá não queria. Òrúnmìlà disse-lhes que eles
fossem queixar com Èsù. Eles foram. Èsù, disse-lhes que eles fossem queixar-se com Orí. Eles
fizeram isso. Depois que eles foram falar com Orí, a vida deles melhorou, e eles começaram a
conquistar todas as coisas boas da vida.”
Òyèkú-Méjì
Ifá diz que os babalaôs devem pedir o que querem para eles, a Orí
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O poema a seguir pertence odù Ejìogbè no èrìndínlógún, narrado por Salako, e publicado
por Bascom (1993, p. 141). Ele mostra-nos como Orí lutou com os Òrìsà, e os venceu.
Resumo:
“Os Òrìsà estavam indo para uma reunião na casa de Olofin, e Orí também estava com
eles. No meio da caminho, uma mulher que trazia dois obì11 na mão, passou por eles e não os
cumprimentou.
Sàngó pediu-lhe satisfação, mas não conformado, tomou-lhe os obì, comeu um, e pegou o
outro para levar a Olofin. Quando lá chegaram, todos Òrìsà saudaram Olofin e deram-lhe
presentes. Sàngó ofereceu-lhe o obì que havia tomado da mulher. Orí então perguntou quem havia
tomado obì da mulher no caminho, e Sàngó respondeu que foi ele. Orí disse a Sàngó que ele era
um estúpido, no que Sàngó retrucou. Eles começaram a lutar. Orí levantou Sàngó e o lançou para
Koso. Os outros Òrìsà vieram ajudar Sàngó, mas Orí levantou cada um deles e os lançou para suas
cidades. Assim Orí venceu a todos.
Tempos depois, os Òrìsà reuniram-se novamente e disseram que a questão com Orí não
estava resolvida. Eles iriam lutar de novo, e foram para a casa de Orí. Mas Orí havia consultado
antes e foi dito para ele que tivesse muita comida e bebida na sua casa. Eles fez isso.
Quando os Òrìsà chegaram, eles o chamaram para lutar, mas Orí perguntou a cada um
deles, se eles estavam bem nas cidades que ele, Orí, os havia lançado. Eles responderam que sim,
eram cultados e tinham todas as coisas boas da vida. Então Orí disse que se não fosse por ele, eles
não teriam nada disso. Orí mandou-os entrar e serviu-lhes muita comida e bebida. Todos comeram,
cantaram e dançaram. Assim Orí superou a todos Òrìsà.”
11
Noz de Cola. Cola Acuminata.
17
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Ejiogbè12
1. Oluwárá Okun13
2. Abori le kókó bi serín
3. “Aquele que tem a cabeça dura como ferro”
4. Eku Osanyin wo òòrun ma la
5. “As sementes de Osanyin14, o sol bate mas não as racha”
6. Alawo nwon ni bimo tipatile
7. “Uma mulher briguenta dá à luz com dificuldade”
8. Jogo para Orímojajuwon15
9. Filho de Magala16, que usa ade’wo17
10. Quando os Òrìsà queriam lutar com ele, para domina-lo.
11. Foi dito para Orí que ele deveria ter sempre em casa,
12. Muitos tipos de comida,
13. E muitos tipos de bebida,
14. Orí ouviu, ele fez assim.
15. Sim! Ali estava Orí
16. Ali também estava Ajé18
17. Ajé não tinha marido para conversar, o que ela deveria fazer?
18. Eles disseram que ela deveria pegar dois obì
19. E ir falar com Orí
20. Quando Ajé pegou os dois obì e estava no caminho
21. Ela encontrou os dezesseis Òrìsà
22. Ela passou entre eles sem os saudar
23. Sàngó disse:
12
Também chamado Ejìonilè
13
Nome de um sacerdote de Ifá.
14
Deus dos remédios feitos com ervas (fitoterapia), que conhece os poderes das ervas.
15
“Orí é a melhor defesa”
16
Sem identificação.
17
Coroa de búzios.
18
Deusa do dinheiro.
18
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24. “Você mulher, que está passando, por que não nos saudou?”
25. Ela disse:
26. “Eu? Quando? Eu não os vi.”
27. Sàngó levantou-se, e tomou os obì das mãos de Ajé
28. Ele pegou um obì e comeu-o inteiro,
29. E outro ele guardou para levar a Olofin.
30. Eles foram.
31. Quando Orí estava sentado com Olofin
32. Sàngó veio, saudou Olofin, e lhe deu o outro obì
33. Olofin agradeceu-o.
34. Orí disse:
35. “Quem tomou obì de Ajé?”
36. Sàngó disse: “Fui eu”.
37. Orí disse:
38. “Isto mostra justamente como você é estúpido por toma-lo”
39. Sàngó disse: “Eu? Lakio?”19
40. Ele disse:
41. “Orí, o que você pode fazer?”
42. Eles começaram a lutar,
43. Orí pegou Sàngó e lançou-o para Kòso
44. Òrìsà Oko disse: “Ha! meu amigo.”
45. Orí o pegou e lançou-o para Irawo
46. Ifá disse: “Ha! Meu irmão caçula.”
47. Orí o pegou e lançou-o para Ado
48. Ele pegou Oya e lançou-a para Ira
49. E lançou Eégún para Oje
50. Sànpànná disse: “Ha! Quem é você para me lançar.”
51. Ele pegou Sànpànná e lançou-o para Egùn
52. Ele pegou Elégbára e lançou-o para Iworo
19
Sem tradução.
19
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20
Uma referência ao fato de Òrúnmìlà ser pequeno e fraco, mas vive da sabedoria que adquiriu. Um ìtàn do jogo de
búzios coletado por Bascom fala que Obàtálá deu a ele a função de divinador por ele ser fraco e não ter como
sobreviver (Bascom 1993, p. 18).
20
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21
O adivinho.
21
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22
Todas as coisas boas.
23
Oferenda ao Orí.
22
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24
O título sugestivo é nosso.
23
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“Eis uma breve descrição de uma primeira cerimônia de iniciação ao culto dos Òrìsà da nação
nagô Ketu, realizada na Bahia, Brasil, em fevereiro de 1951. Consiste no borí e oferendas à cabeça.
1. Preliminares
Na véspera, na terça-feira, por volta das sete horas, após tomar um banho frio, o futuro iniciado
vai para o aposento vizinho ao peji ou ilé Òrìsà (local onde se encontra os altares dos Òrìsà).
Está vestido de branco, e senta-se diante da parede divisória do peji, isolado do solo unicamente
através de um lençol branco estendido sobre a esteira. Não tem nada sobre a cabeça, apresentase
descalço, com as pernas esticadas e as mãos espalmadas, colocadas sobre o joelho.
Um tecido branco está pregado na parede, atrás dele, e seus ombros estão cobertos por um véu
branco. O bàbálórìsà senta-se diante dele em um banquinho. Sobre a esteira e em volta dele acham-se
dispostos recipientes que contém:
1. água
2. azeite de dende
3. mel
4. sal
5. obì
6. àkaràje (akara no Dahmey)
7. akassá
8. dinheiro
9. uma grande cuia vazia
10. velas
11. uma faca
12. duas galinhas de angola
13. dois pombos, vivos, com as pernas amarradas.
24
Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Imagem: Olóòrìsà, escritos sobre a religião dos orixás, p. 37, Carlos Eugênio Marcondes de Moura (Org.) São Paulo,
Editora Ágora, 1981. (o contraste é nosso)
25
Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
O bàbálórìsà invoca:
Àgò Irúnmólè
Permissão quatrocentos Òrìsà
Àgò Igbamólè
Permissão duzentos Òrìsà
Àgò mojúbà
Permissao eu saúdo
Àgò mojúbà òrun
Permissão eu saúdo o céu
Àgò mojúbà ilè
Permissão, eu saúdo a terra
Àgò mojúbà ewé
Permissão, eu saúdo as folhas
Àgò mojúbà omi
Permissão, eu saúdo a água
Àgò mojúbà bàbá
Permissão, eu saúdo o pai
Àgò mojúbà iya
Permissão, eu saúdo a mãe
Àgò mojúbà elédàá mi
Permissão, eu saúdo meu criador
Em seguida, canta:
Orí mo pè je
Eu chamo a cabeça para comer
Orí mo pè mu
Eu chamo a cabeça para beber
Orí pè je, o pè mú
Chamamos a cabeça paracomer beber
26
Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Apresenta então à cabeça do noviço, pousando sobre ela por alguns momentos, os pratos de
akarajé, akassa, dinheiro, azeite, mel, sal, água das quartinhas, as duas galinhas de Angola, e os dois
pombos, cantando:
Awure fu wú're
Boa sorte, boa sorte
Kolobo se
?
Awa júbà se kolobo
Nós louvamos ?
A assistência responde :
Àse !
Amém !
Recomenda então ao noviço: “pense e deseje tudo que quiser [de bom]”.
3. Adivinhação
O babalòrìsà toma um obì importado da África, divide-o em quatro e, após passar sobre a cabeça
do noviço, procede à adivinhação por meio de quatro pedaços jogados no chão.
Na primeira vez, dois pedaços caíram com a parte concava voltados para cima:
– favorável.
Na segunda vez, três pedaços caíram com a parte côncava voltada para cima:
– desfavorável.
Na terceira vez, os quatro pedações caíram com a parte côncava voltadas para cima:
- Totalmente favorável -Alàáfia: exclamações de alegria da assistência.
O bàbálórìsà toma um pedaço de obì e mastiga-o, misturando com pimenta (ata), a fim de dar
força às suas palavras, e coloca uma parte dele sobre a cabeça do futuro iniciado. Após encher a boca
com um pouco de água, vaporiza, soprando sobre na cuia igbá-orí (cuia da cabeça). Estabeleceu-se assim
a comunicação mística entre o Orí (cabeça) e o igbá-orí.
4. Sacrifícios:
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Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Esta cantiga refere-se à Ògún, pois este Òrìsà é o senhor do ferro, e é preciso invocá-lo, a
propósito da faca. Pede que lhe deem a primeira galinha de angola (etù), coloca uma folha na mão, coloca
nela azeite e mel, e juntamente com a faca, cobre a cabeça da galinha de Angola, cortando-a, cantando,
acompanhando pelos presentes:
Bí bi o bí bi etù
Nasceu, você nasceu da galinha de angola
Etù éiyekéiye
a galinha de angola
Bí bi bíbi etù
Nasceu, nasceu da galinha de angola
Orí o bíbi etù
Orí, você nasce da galinha de angola
Faz o sangue correr na cuia (igbá-orí), apresenta o pescoço da galinha decapitada ao futuro
iniciado e manda que ele lamba três vezes o sangue com a ponta da língua. Em seguida o marca com o
sangue, apertando o pescoço da ave em sua cabeça, testa, têmporas, nuca, interior das mãos esquerda
e direita, o dedo grande do pé direito, e faz novamente o sangue correr na cuia. No caso presente, o
sangue é colocado apenas no dedão do pé direito, que simboliza o pai morto, e não no dedão do pé
esquerdo, pois a mãe do noviço ainda vive. Se ambos os pais ainda vivessem, seus pés não receberiam
sangue; caso contrário, ambos os pés receberiam as marcas.
A segunda galinha d'angola é sacrificada, obedecendo ao mesmo rito, e os dois pombos são
também sacrificados, mas suas cabeças, ao invés de serem cortadas, são presas entre o dedo maior do
pé e os demais, sendo assim arrancadas. Na cantiga, a palavra eiyele (pombo) irá substituir a palavra etu
(galinha de angola).
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Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
O bàbálórìsà pega as quatro cabeças que estavam junto aos corpos dos animais sacrificados, e
coloca-as no igbá-orí, cantando:
Esè etù kò o ma te u
Pé da galinha de angola, ele não pisará [em nada ruim]
Esè eiyelé kò o ma te u
Pé do pombo, ele não pisará [em nada ruim]
Ki ko ro má ra iyò
O sal não comprará nada amargo
Canta para o mel (oyin):
Deposita esta mistura na cuia igbá-orí, e sobre os diversos pontos da cabeça (Orí) e do corpo
(ara), já marcandos com sangue, colocando em seguida as penas maiores das aves em torno (mas dentro)
da cuia, à guisa de coroa, canta:
29
Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Coloca as penas menores sobre os diversos pontos marcados com sangue, azeite e mel,
reservando as mais brancas para a cabeça, e em seguida, formula os seguintes votos:
Kò o máà kú
Não haverá morte
Kò o máà àrún
Não haverá doenças
Kò o máà se ijá
Não haverá brigas
Kò o máà se òfò
Não haverá prejuízos
Bárìn dé dé wa
Entre nós
Coloca algumas penas pequenas sobre o igbá-orí, cobre a cabeça do futuro iniciado com um pano
em forma de turbante, e cobre também a cabeça e o corpo com um outro véu, deixando de fora apenas
um rosto imóvel, no qual avultam os olhos muito abertos.
O bàbálórìsà canta:
Orí ebo
Oferenda à cabeça
Olórò mbo
Adoramos o dono da riqueza
Bá awa ati mi
Nós e você
Orí awa ri asíkì awa di agba
Nosso orí envelhecerá com prosperidade
Emi pe Orí
Eu chamo Orí
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Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Faz com que ele beba água dos dois recipientes, e coloca-os perto do igbá-orí, cobrindo-os com
um pano branco. Retira-se, seguido da assistência, e o futuro iniciado permanece sozinho no aposento,
vigiado por uma ìyawó.
O corpo dos animais sacrificados são levados para a cozinha e preparados, com exceção da
cabeça, dos pés e dos miúdos, os quais, por se tratar de oferendas à cabeça, não são cozidos, mas
servirão, uma vez secos e triturados, para fazer isé (trabalhos).
5. A cabeça come
Por volta das onze horas da noite, os véus que cobrem o futuro iniciado são removidos. Todos os
alimentos cozidos, bem como os pratos de àkarà e de akasa, são apresentados à cabeça, pelo bàbálórìsà,
que diz:
Orí mi ire o!
Meu orí, boa sorte para você!
Coloca parte do akasa na cuia igba-orí, e passa à distribuição da comida. Põe de lado o àse
(miúdos): pescoço, ponta das asas, coração, fígado, moela e carne de peito, faz com ele bolinhas
colocadas na cuia igbá-orí e, em parte, sobre a cabeça do futuro iniciado, cantando:
Orí jé loni
Orí come hoje.
A assistência também come. É uma refeição comunitária com a “cabeça”. Caso alguém recusasse
a comida, a “cabeça” ficaria ofendida. Todos os ossos são reunidos em torno do igbá-orí. O bàbálórìsà
bebe água, fala das crianças que vão nascer hoje, faz o futuro iniciado beber água dos dois recipientes,
desejando:
Omi tútù
Água fresca
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Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Koma kú
Que não haja morte
Koma run
Que não haja doenças
Koma já
Que não haja brigas
Koma fo
Quer não haja prejuízos
Arin dedewa
Entre todos nós
O bàbálórìsà canta:
Orí apere
Cabeça que atrai felicidade
Orí emi emi emi
Cabeça minha
Orí gbogbo l'òrun o
Cabeça interia no céu
Orí eje eje eje
Cabeça sangue
Orí wú u u u
Cabeça aumenta
Orí mo gbo
O x.................... o fu
(nome) em seguida
O x.................... o fu
(nome) em seguida
O x.................... o fu
(nome) em seguida
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Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Ofu aniyaga
Em seguida?
Ao ouvir o terceiro apelo, o iniciado levanta-se. Nasceu para a seita, e a assistência aplaude. O
futuro iniciado agora pode falar, vem pedir a benção do bàbálórìsà. Diz “boa noite” e é assim que se inicia
simbólicamente sua educação como criança. Volta a deitar-se. O bàbálórìsà e a assistência se retiram. Já
é quase meia-noite.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas áreas mais distantes, nos extremos do Brasil, temos a perca de um conceito importante,
que é o conceito de Orí como Òrìsà individual, independente do conceito de Òrìsà coletivo. A
perca da individualidade do Orí, e do seu culto desatrelado do Òrìsà, refletiram diretamente no
rito do borí. Nessas regiões mais afastadas dos grandes centros afro-religiosos, ao invés de
praticarem uma liturgia de culto e oferenda ao Orí, tal qual os iorubas, ao contrário, fazem do ìborí
uma pré-iniciação de Òrìsà, com cânticos e representações rituais relativas ao Òrìsà, e não ao Orí.
Sabemos que os vários segmentos das religiões afro-brasileiras foram formados,
adaptados e resgatados no Brasil a partir das matrizes das religiões tradicionais africanas, e que
isso gerou diferenças regionais. Mas, algumas dessas “adaptações e resgates” conflitam
diretamente com os conceitos originais da Religião Tradicional Iorubá, numa via de duas mãos
entre a adaptação e a reinvenção.
No estudo das religiões afro-brasileiras não podemos desconsiderar a influência dos
escritos acadêmicos, “num campo de estudo que se encontra cada vez mais sufocado pelo
academicismo problemático” (Niyi Afolabi)25
Quando estes escritos, e por consequência a readaptação do rito, vão de encontro à matriz
africana, não há nenhuma crítica, pois trata-se de um resgate verdadeiro, um retorno às origens. A
crítica se faz é quando modificam o rito distanciando-se da origem, ou mesmo, contrapondo-se a
ela, apenas para satisfazer a vaidade intelectual do escritor. Essa transcrição e produção de textos
sobre africanidade, é assim observada por Brumana (2007):
25
Niyi Afolabi, Universidade do Texas, USA. Prefácio para o livro “Dos Yorùbá ao Candomblé Kétu” , Aulo Barretti
Filho (Org.), Edusp, São Paulo, 2010.
33
Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
Se por um lado, alguns segmentos afastados perderam o conceito do rito do borí ao realizá-
lo como uma pré-iniciação de Òrìsà, por outro, a reafricanização protagonizada por sacerdotes
intelectuais incluiram objetos ritualísticos estranhos ao rito do borí tradicional iorubá e
afrobrasileiro, entre eles, uma pedra (ota) que não existe no igbá-orí ioruba, o qual, aliás, nem
sequer é necessário.26 Segundo Aulo Barretti, a reafricanização não tem um padrão (comunicaçao
pessoal).
Segundo Nathan Lugo, consultado (2011) por nós sobre o assunto os iorubas não utilizam
pedra (ota) no Ilé-Orí, em nenhum tipo de rito, sob nenhum pretexto.
Convém lembrar que o candomblé tradicional não realiza o assentamento de igbá-orí,
como pudemos ver no texto de Verger, de maneira que o elemento pedra (ota) não está presente
no rito do borí registrado por Verger, conforme transcrevemos.
Enquanto o candomblé tradicional não faz assentamento de Orí, o Batuque do R.S. o
conservou sob o nome popular de “borido” ou ainda “cremeira”, com rito próprio e diferenciado
do que foi aqui descrito.
No conceito ioruba o significado do Ilé-Orí vai muito além do que simplesmente “cabeça”,
pois aglutina em uma única palavra diversos conceitos relativos à espiritualidade, origem, destino
e imortalidade e individualidade.
O estudo de Orí está obrigatoriamente atrelado ao estudo da Noção de Pessoa, isto é, aquilo
que o ser humano acredita ser ele próprio, cuja noção está implícita no rito do borí. Nele (Orí) está
26
Elégùn Sàngó Aláàfin Òyó, Sàngódele Ibuowo, Youtube, Canal Àsà Òrìsà Aláàfin Òyó. Acessado em 15/03/2018.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PJhk1w9fwtQ&t=10s. Para a entrevista de Nathan Lugo, ver
http://iledeobokum.blogspot.com/2011/06/erick-wolff8-sao-paulo-07062011-outro.html.
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Orí Nìkàn - Luiz L. Marins
o nosso destino e nossa ancestralidade. Os textos míticos mostram Orí como superior até mesmo
aos Òrìsà, pois é cultuado também por eles.
Na religião tradicional iorubá, nenhum Òrìsà exerce poder sobre o Ilé-Orí (quando ele
existe), evidenciando assim não só a individualidade de Orí no campo das ideias, como também a
independência do rito do borí, desatrelado do Òrìsà, no campo da liturgia.
Sem querer fazer liturgia, mas já fazendo, enfatizamos que não há cantigas de Òrìsà no
borí, e as religiões afro-brasileiras regionalizadas “nos pontos mais meridionais” registrada por
Herskovits, realmente precisam rever seus ritos.
Concluímos: “O rito do borí não é para Òrìsà, é para Orí.”
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