Lilith A Lua Negra PDF
Lilith A Lua Negra PDF
Lilith A Lua Negra PDF
A Lua Negra
Roberto Sicuteri
Lilith
A Lua Negra
3ª Edição
Paz e Terra
Ao leitor
TH. REIK
Na aurora do mundo, Jeová Deus pensou em criar o homem para que pudesse se tornar
o coroamento da Criação. E Deus disse: "Façamos o homem, que seja a nossa imagem,
segundo a nossa semelhança".
Assim, Ele estendeu a sua mão sobre a superfície da Terra, talvez ali onde estava o
monte Moriah e, apanhando poeira fina, misturou-a com outra terra das quatro partes do
mundo, borrifada com água de cada rio e cada mar existente. Uma massa de epher, dam,
marah (pó, sangue e bile) que deu vida a Adão, o primeiro homem vivente. Jeová Deus
colocou Adão no Jardim do Éden para que lhe fizesse honra.
Qual era a natureza do primeiro homem? Conheceu ele a aspereza da solidão e da
própria singularidade? Talvez observasse tantos animais entre seus semelhantes — cavalos,
cabras, pássaros, répteis e peixes — que se admirava de se ver só.
Nós pensamos na primeira estrutura afetiva e sexual de Adão em termos
antropológicos, mas existe um mistério ainda mais obscuro que devemos encarar, quando se
fala da primeira companheira do homem, de sua primeira esposa. É a mitologia bíblica que
nos ajuda a imaginar Adão — em sentido psíquico — como um verdadeiro e real
androgginos, isto é, macho e fêmea. No Gênesis I, 27 é dito: "Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea o criou". É a passagem mais densa de
mistério, pois introduz o conceito da androginia no indivíduo segundo o supremo princípio da
harmonia total do Uno que é feito de Dois; mas é também conceito que consente em perpetuar
na terra — mediante a multiplicação da espécie na união do macho com a fêmea — a imagem
de Deus, pois o homem lhe é semelhante. Adão trazia em si, fundidos, o princípio masculino e
o princípio feminino e tais princípios só depois foram separados sucessivamente. Já está
implícita a resposta: Adão teve duas naturezas femininas, duas companheiras. Mas
procedamos com ordem ao analisar o mito da primeira esposa do homem. Muitas são as
fontes que permitem ver, nas aparentes contradições dos vários capítulos do Gênesis, uma
criação da mulher que respondia primeiro a motivações teológicas e, depois, a justificações
antropológicas. Adão era em si andrógino.
No Livro do Esplendor — o Sepher Ha-Zohar — é citada esta passagem:
Rabi Abba disse: O primeiro homem era macho e fêmea ao mesmo tempo
pois a escritura diz: E Elohim disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança
{Gên. I, 26). É precisamente para que o homem se assemelhasse a Deus que foi
criado macho e fêmea ao mesmo tempo.1
O enigma está no versículo citado do Gênesis onde é dito "... o criou" e logo após é
dito em vez "os criou". Adão teria sido, pois, para o Gênesis I, 26-27, dois em um, homem e
mulher. Ainda o Rabi Simeão, no Zohar, fala assim:
1
Il libro dello Zohar, org. por J. De Pauly, Atanor, 1978. 14
Está escrito — Os criou macho e fêmea — {Gên. V, 2). Estes dois versículos
do início do quinto capítulo do Génesis encerram grandes mistérios. Nas palavras "Os
criou macho e fêmea" é expresso o mistério supremo, que constitui a glória de Deus,
que é inacessível à inteligência humana e que constitui objeto de Fé. É por este
mistério que o Homem foi criado. Recordem que o homem foi criado pelo mesmo
mistério através do qual foram criados o céu e a terra — as Escrituras se servem da
expressão "eis a Gênese do céu e da terra", e para a criação do homem elas usam
expressão semelhante: "eis o livro da Gênese do Homem".
O Rabi Simeão ben Jochai prossegue sua fala, sempre sobre o mesmo tema:
2 Ibidem
3
Commento alla Genesi, Beresit Rabbâ, org. por T. Federia, U.T.E.T., Toríno,
1978, p. 70, I.
11. Macho e fêmea os criou (Gên. I, 27). Esta é uma das coisas que mudaram
para o rei Ptolomeu. O macho e seus orifícios criou.4
11. Macho e fêmea os criou. . . Deu-lhes quatro qualidades dos celestes e quatro dos
inferiores: come e bebe como o animal, expele excrementos como o animal; dos celestes tem a
posição ereta como os anjos do serviço divino, fala como os anjos do serviço divino. E o animal
não vê? Mas ele vê também de lado...7
Disse R. Ahà: Eu sou o Senhor (Is. 42,8) e este é o meu Nome com o qual me chamo
Adão. Tornou a lhe fazer passar à frente os animais em casais. Disse Adão: Cada um tem o seu
8
companheiro, mas eu não tenho companheiros.
e quando Enkidu encontra a companheira, a sua Eva, deita com ela por sete dias e sete
noites:
. . . depois que saciou seu fascínio
voltou o olhar para os animais.
As gazelas que repousavam viram Enkidu
os animais do campo se afastaram dele.
Enkidu se prostrou, se sentiu desfalecer
e seus membros se enrijeceram
não apenas os animais se foram.9
É claro que Adão-Enkidu — e nos parece justa a observação de Reik — se afastou das
práticas sexuais indiferenciadas quando conseguiu reconhecer a mulher. De resto, o Adão
bíblico pede uma companheira apenas porque estava insatisfeito.
O Gênesis diz: "Não é bem que o homem esteja só" {Gên. II, 18). Por isto este estado
de Adão aparece sucessivamente na primeira versão "E os criou macho e fêmea" (Gên. I, 27).
Nesta fase, isto é, quando proclama sua solidão, Adão ainda é andrógino, talvez em sentido
psíquico, mas ignora a alteridade sexual; é ainda animal. No Beresit-Rabba, como dissemos,
há a revelação desta natureza animal. Reportemos do texto crítico:
Seguramente a narração rabínica faz uma metáfora quando diz que Adão "deixará pai
e mãe" para unir-se à mulher. Assim fica velado o desinteresse da inferioridade animal em
orientar-se para uma companheira mais digna.
Jeová Deus não havia até então encontrado para Adão "Um ajudante que fosse
semelhante a ele" (Gên. II, 22). Como explicar de outra maneira o hábito dos primitivos de
figurar deuses e heróis com critérios teriomorfos ou parcialmente monstruosos, híbridos, se
não pela óbvia familiaridade natural que o primeiro homem tinha com a sexualidade animal?
Sabemos que os pastores, das perdidas e desérticas terras do Oriente Médio, tinham
seguramente a prática de se unir aos animais para descarregar o ímpeto arcaico de seu instinto
sexual. E a prova destas práticas nos vem das repetidas prescrições repressivas das Escrituras
cabalística e talmúdica. No Deuteronômio, XXVII, 21 os Levitas, entre outros, lançam
também esta maldição:
Assim, nessas três fases vemos aparecer o homem como indivíduo composto de duas
partes. O pronome que muda do singular ao plural é revelador do conceito de hermafroditismo
ou androginia, ou então se deve, com certeza, pensar que se tratava nem mais nem menos do
verdadeiro casal distinto, Adão e a "primeira companheira", isto é, Lilith. Voltaremos a isso
mais adiante.
Vejamos agora as outras fases, onde a criação de Adão aparece isolada, isto é, sem
caracteres femininos, e à qual se segue a criação de Eva como a "segunda companheira":
Nesta passagem bíblica é reconfirmado que Adão estava só e tinha dado nome aos
animais, isto é, os havia conhecido no acasalamento. Somente de tal modo havia
compreendido a necessidade da diferenciação. No texto são evidentes os traços obscuros de
uma remoção da bestialidade adâmica. É neste ponto exato do mito que Adão abandona o
caráter de identificação com o divino exprimido pela androginia e supera a sexualidade
animal como ser vivente. É o momento no qual é pedida a Deus a companheira mulher.
Mas — se perguntaram os exegetas da Bíblia — por que Deus não deu logo uma
mulher a Adão, ao invés de se decidir depois de lhe haver feito "conhecer" todos os animais?
Nesta enigmática parada, onde o nomear implica o desejo, Adão talvez pudesse reconhecer
11 Ibidem, p. 126
uma possível companheira? A resposta que nos oferece o Rabi Ahà no Beresit-Rabba é
indicativa:
E para o homem não achou uma ajudante semelhante a ele. E por que não a havia
criado primeiro? O Senhor, que Ele seja bendito, viu que Adão se teria lamentado dela, por
isso não a criou enquanto ele não a tivesse pedido; no momento que a pediu, logo: Fez cair o
Senhor Deus um sono profundo sobre Adão, etc. . .12
e nasceu a mulher, por desejo de Adão, que havia descoberto a própria solidão, mas
também a própria alma.
12 Ibidem, p. 136.
O MITO DE LILITH NAS VERSÕES BÍBLICAS
O mito de Lilith pertence à grande tradição dos testemunhos orais que estão reunidos
nos textos da sabedoria rabínica definida na versão jeovística, que se coloca lado a lado,
precedendo-a de alguns séculos, da versão bíblica dos sacerdotes. Sabemos que tais versões
do Gênesis — e particularmente o mito do nascimento da mulher — são ricas de contradições
e enigmas que se anulam. Nós deduzimos que a lenda de Lilith, primeira companheira de
Adão, foi perdida ou removida durante a época de transposição da versão jeovística para
aquela sacerdotal, que logo após sofre as modificações dos Pais da Igreja.
No Zohar, nos escritos sumérios e acadianos, nos testemunhos orais dos rabinos sobre
o Gênesis, encontramos tesouros preciosos e sugestões de extraordinário vigor para estimular
o nosso mundo imaginário. Quem abre pela primeira vez o Livro do Esplendor, ou aquele
precioso afresco que é o Beresit-Rabba, se sente repentinamente dominado por uma violenta
emoção e invadido de inquietude fascinante: é como se achar diante do testemunho ignoto da
verdade e da sabedoria, diante daquele que sabe dentro de cada um de nós, jacente no
inconsciente e que se reaviva e nos fala através de uma linguagem arcaica e potente escandida
na palavra hebraica.
Estes grandes testemunhos depositários da Torah (o Ensinamento) e dos Midrash (a
Procura) contidos na Misnach (coleção de Códigos) são certamente dos Rabis iluminados pelo
carisma e pela fé, mas são também os testemunhos de lendas, mitos, sagas, alegorias e usos
folclóricos populares, que os Rabis usavam como reflexão viva baseada em analogias para
estabelecer a verdade hermenêutica sobre as origens do mundo e do Homem. Nós acreditamos
poder dizer, hoje, que a sabedoria dos jeovistas e a leitura dos textos muito remotos nos
suscitam maiores energias e incitam à reativação dos arquétipos e mitos do inconsciente
coletivo, ao contrário do que o faz o depoimento sacerdotal.
A Torah assírio-babilônica e hebraica nos permite um jogo mais livre na interpretação
latente, nos restitui mundos imaginários que mais facilmente se subtraem à desconfiança
ditada pelo ceticismo racional, produto da sabedoria cristã e católica em particular. Não nos
interessa aqui, por exemplo, tentar a solução ou a sistematização da secular controvérsia entre
as duas versões ou criticar a destruição e as alterações consumadas nas Sagradas Escrituras
dos cristãos; o que nos guia não é o interesse teológico, mas o psicológico, pela redescoberta
da lenda de Lilith para agregá-la, como energia psíquica formadora do mito e do arquétipo, ao
núcleo concernente à história da relação entre Anima e Animus e para entender as origens
endo-psíquicas da cisão entre "instintivo" e "pensamento", para esclarecer, finalmente, o
grande equívoco do primado masculino sobre a mulher sentida como inferior. Toda a história
psicológica da relação homem-mulher, como diz James Hillman, é uma série de notas de
rodapé à história de Adão e Eva.13 Nada pode ser demonstrado racionalmente: a verdade sobre
a tradição primitiva e arcaica germinada na aurora do mundo não pode se achar nos pontos de
vista divergentes das duas escolas ou dos alinhamentos; a verdade está, para nós, além deles,
muito além, e num plano totalmente diferente. "Desde o início de sua criação, foi somente um
sonho", disse uma vez o Rabi Simon ben Laqish: e o sonho, para o homem, é a voz potente de
seu espírito e de sua profundidade interior.
No sonho não existe espaço para verdade ou inverdade, para a lógica ou a fantasia. No
sonho está o homem inteiro, com tudo aquilo que ele sabe conscientemente e com tudo aquilo
que ele não sabe e talvez possa não saber jamais. Se a criação e o próprio homem não são
13
Hillman, James, The Myth of Andyús, Evanston, Illinois, 1972, trad. bras., O mito
da análise, Paz e Terra, 1984.
nunca outra coisa que um sonho, então esta é a sua indestrutível verdade. E tudo existe, como
existe o homem. Porque existe o homem que sonha.
Eis, portanto, porque os textos hebraicos, sumérios e acadianos têm uma chave e um
dissuasor que privilegiamos: neles há mais sonho, há o contar, há o vivido, há o imaginado.
Tudo, aqui, provém principalmente da boca do Rabi ou dos sonhos dos discípulos do que do
pensamento e do documento. E Lilith, para nós, nasce, talvez. do sonho ou da narrativa dos
Rabis, nasce de uma necessidade ou de uma fantasia coletiva.
Examinemos onde, nas Escrituras, se pode buscar a presença de Lilith como primeira
companheira. Ao que parece, muitos estudiosos e exegetas do Gênesis se encarniçaram na
procura de "provas" e até T. Reik, seguidor de Freud, para justificar o seu enfoque de Lilith,
saiu-se com esta rápida observação a propósito das duas versões bíblicas:
No Gênesis I Adão foi macho e fêmea, como já sabemos; vimos que nos comentários
rabínicos aparece, embora velado, o segredo removido de que Adão vivesse sexualmente
promíscuo com animais. No Gênesis II aparece a fêmea, Eva. Ora, pensamos extrair os
testemunhos da existência de Lilith das passagens sutis, dos subentendidos e das alusões
analógicas que, segundo nos parece, existem nas páginas do Beresit-Rabba.
Lilith, sem dúvida, tem a ver com o Gênesis I. Se excluímos a androginia como
arquétipo celeste refletido no Adão terrestre, devemos necessariamente aceitar que se trata de
Adão com uma companheira feminina. E Deus os abençoou, recordemo-lo. Sem dúvida, na
versão jeovística, o primeiro homem e a primeira mulher estavam em estado animal, sua
sexualidade era indiferenciada, não havia disparidade entre os dois sexos. Eles eram informes:
"Criou-o como uma massa informe".15
Vamos em frente. No Génesis I, 24, isto é, ainda antes do versículo 26 referente ao
homem, está dito: "Produza a terra seres viventes segundo sua espécie: animais, répteis, etc..."
No comentário do Rabi Eleazar, ao contrário, se afirma:
Então Jeová Deus fez cair um sono profundo sobre o homem que
adormeceu; tirou-lhe uma das costelas e fechou a carne em seu lugar.
Jeová Deus construiu com a costela que havia tirado do homem formando
uma mulher, e a conduziu ao homem. Então o homem disse: — Desta vez é osso
dos meus ossos e carne da minha carne! (Gênesis II, 22-25).
R. Jehudah em nome de Rabi disse: No princípio a criou, mas quando o homem a viu
cheia de saliva e de sangue afastou-se dela, tornou a criá-la uma segunda vez, como está escrito:
18
"Desta vez. Esta e aquela da primeira vez".
E então, quem era esta mulher da primeira vez, descrita de maneira a provocar o
desgosto de Adão? Quem era esta primeira obra de Deus, cheia de saliva e sangue? Nós
pensamos em Lilith. A primeira companheira foi Lilith, cheia de sangue e saliva.
Detenhamo-nos neste momento particular porque é fundamental.
Deus a criou no princípio, isto é, no início da criação; mas como era esta fêmea? Era
tal que provocava em Adão uma sensação desagradável ou angustiante. O que significa este
sangue? O que significa esta saliva? Se associarmos, deixando livre a imaginação, pensamos
no sangue menstrual, aqui, talvez, usado como metáfora alegórica, para fazer perceber o
caráter carnal, fisiológico, vital, instintivo da mulher.
"... a viu cheia de sangue": pode-se pensar na experiência sexual livre de tabus e
proibições (pensa-se na repressão do desejo sexual e, em consequência, do coito durante o
ciclo menstrual, que vigora como tabu ainda em nossos dias) ou também aqui é dissimulada a
visão da mulher "lasciva". .. ?
A saliva que enchia ou cobria esta fêmea é um símbolo ainda mais indicativo. A
associação com um equivalente mágico da libido é evídentíssima. A saliva é um componente
claramente sexual possivelmente reconduzível, por via psicanalítica, à secreção erótica ou ao
transvasamento mágico da saliva no beijo profundo. Sangue e saliva pertencem à mulher da
primeira vez. Adão se afasta desgostoso, isto é, amedrontado — como veremos mais à frente
17 Ibidem, p, 137.
18 Ibidem, p. 142.
— com a realidade da primeira companheira. Tanto que Deus teve que fazê-la uma segunda
vez, e esta foi Eva.
A verdade é que aqui as interpretações abundam. Alguns dizem que a mulher da
primeira vez era aquela que Adão sonhou eroticamente, enquanto Eva é a materialização do
sonho. Mas a palavra "vez" significa também perturbação, paam em hebraico. Então pode-se
também inferir que a primeira mulher era capaz de instigar em Adão uma insustentável
perturbação. Outras fontes apresentam com mais clareza a criação de Lilith e de outras
companheiras antes de Eva.
Os comentários cabalísticos sobre o Pentateuco reunidos pelo Rabi Reuben ben
Hoshke Cohen citam uma nítida lenda do nascimento de Lilith. Reproduziremos o resumo que
nos dá Graves em seu texto:
Deus então criou Lilith, a primeira mulher, assim como havia criado Adão,
mas usando fezes e imundície ao invés de pó puro.19
A afirmação de que Lilith havia sido criada com pó negro e excrementos nos faz
refletir. Sabemos que em hebraico o verbo "criar" é semelhante ao verbo "meditar", por isso é
de se supor que Jeová Deus tivesse em mente a criação da mulher como uma criatura
predestinada a ser inferior ao homem. Seguramente aqui interveio a agressividade masculina
inserida na sociedade hebraica estruturada rigidamente em sentido patriarcal com
acentuação dos valores patrilineares. Na criação de Lilith está implícita a perda da unidade
mágico-religiosa dos dois sexos na pessoa única do "homem". A mulher, evidentemente,
enquanto reprimida e comprimida sob a autoridade do macho, tentava reconquistar, então, a
paridade. Lilith nasceu das mãos de Jeová Deus, impura, humana: um Adão, portanto.
Mas quando nasce Lilith? E qual a sua natureza? A fonte de Yalqut Reubeni diz
textualmente:
Da união de Adão com este demónio (isto é, Lilith) e com outro chamado
Naamah, irmã de Tubal Cain, nasceram Asmodeo e inumeráveis demónios que
ainda martirizam a humanidade.20
.
Lilith é então apontada não como mulher, mas como demônio, desde o início da
relação com Adão. E por quê? Há uma clara explicação, a nosso ver, que deriva do cômputo
do calendário hebraico que foi considerado pela tradição jeovística quando se tratou de fixar
os sete dias da criação. É em relação aos dias da Gênese que nós devemos indagar sobre o
"nascimento" de Lilith; e é neste lapso das Escrituras que se oculta a remoção patriarcal da
natureza de Lilith, primeira mulher! Em um certo sentido, é Lilith o produto simbólico de
uma distração formidável do Deus hebraico? Por isto — nos perguntamos — foi condenada a
partir? Eis a resposta, no Beresit-Rabba:
Então Lilith nasce com Adão, logo após Adão: répteis, demônios e Lilith foram as
últimas criações de Deus no sexto dia, exatamente nas horas do entardecer da Sexta-feira, ao
avançar das trevas, pouco antes de entrar o Sábado, dia sagrado para os hebreus.
A criação pára aqui, segundo o Gênesis I. Os dois protagonistas estão no palco do
mundo: Adão e Lilith, aquela que primeiro exprimia a seu homem algo de importante, de
fundamental no que dizia respeito à sua relação de criaturas viventes; de Homem e Mulher.
Mas o que aconteceu naquelas últimas horas do sexto dia? O que aconteceu entre o
homem e a mulher? Tudo aconteceu entre o sexto e o sétimo dia; se é verdade o que foi
escrito, a respeito de Adão:
e a luz divina existiu somente durante as poucas horas do sexto dia e de todo o Sábado.
Ao término do dia no qual Deus repousou, Adão já havia consumado sua relação com Lilith, e
portanto havia conhecido, nas trevas, uma tremenda verdade. Talvez a tentação, talvez uma
transgressão? Ou sentiu toda a potência do demônio se exprimir nas feições de Lilith? Neste
ponto digamos que o mito de Lilith representa certamente o arquétipo da relação homem-
mulher, ao nível mais primitivo no sentido evolucionista.
Lilith é um mito arcaico, seguramente anterior, na redação jeovística da Bíblia, ao
mito de Eva' por isto se pode dizer que Lilith foi a primeira companheira de Adão, É claro que
o conteúdo do mito de Lilith tem fortes paralelismos com o mito de Eva. Porém, parece-nos
útil pôr em relevo um particular: Lilith entra no mito já como demónio, uma figura de saliva e
sangue, um verdadeiro espírito deixado em estado informe por Deus; é uma companheira que
apresenta fortes traços de fatalidade. É interessante se perguntar por que no Génesis não
aparece nunca alguma informação relativa à criação dos demónios!
No Beresit-Rabba, vimos que eles aparecem com Adão e as serpentes. Também Lilith
então, como demónio, deveria ser recordada. Por que esta remoção? É necessário insistir nesta
pergunta: na resposta do Rabi Hamah b. Oshajjh supracitada parece implícita uma
identificação entre serpente-demônio-mulher (Eva). Lilith está, pois — na versão jeovística —
mais próxima do protótipo natural da mulher do que Eva. Mas isto, exatamente isto, é que era
refutado pela consciência hebraica que realizava uma constante repressão. Várias fontes
psicanalíticas vêem no mito de Adão e Eva o trauma de um incesto possível entre a Mãe dos
Homens e Adão, num fracasso dos papéis masculino e feminino (Freud, Rank), ou também,
na Queda, a representação simbólica de uma relação sexual proibida(Levy), seguramente o
acasalamento bestial, capaz de fazer perder a “razão”. Poderia tratar-se da primeira
experiência do orgasmo sexual em nível natural que teria desencadeado uma insuportável
angústia no homem, na medida em que a paixão sexual o fazia afastar-se da divindade, com
uma ameaça regressiva, da qual ainda tinha memória evolutiva. Outros vêem, no conflito de
Adão com Eva e o pecado desta, uma introjeção da divindade através da árvore totêmica
(Reik).
A remoção ou o lapso pairam entre as linhas do Gênesis: há o esforço de fazer ver que
"tudo era bom". Mas voltemos ao nosso casal, que nem ao menos por algum tempo foi capaz
de permanecer sob luz divina do Jardim do Éden. Quer se trate de Lilith ou de Eva, é todavia
Esta e aquela da primeira vez, porque é aquela que soará para mim como uma
campainha. . . ,23
parece mesmo que se trata de duas fases: esta e aquela da primeira vez.
Lilith é coberta de sangue e saliva, símbolo do desejo: "No momento em que foi criada
a mulher foi criado também Satã com ela".24 Este demónio também é mulher. Aquela que
perturbou a noite toda o sono de Adão. Dizem as Escrituras: "ele se perturbou todo", e o
sonho erótico emerge do inconsciente, apresenta a Adão toda a potência da energia vital. É
Lilith que lhe produz o sonho.
"Perguntaram ao Rabi Simon b. Laqish: — Por que nenhum sonho cansa? Respondeu:
— No início da sua criação não foi senão um sonho."23 Eis portanto o primeiro tormento: o
sonho erótico, o desejo de Lilith.
Foi criada bela como um sonho, a primeira de seu sexo, a tanto desejada. Aparece-lhe
no Jardim do Éden à sombra de uma alfarrobeira ou de um sicômoro, ornamentada com
preciosos colares, tantos quantos aqueles citados em Isaías. Jeová Deus a havia criado
não da cabeça para que não se assoberbasse; não do olho para que não fosse ansiosa de
ver; não da orelha para que não fosse curiosa em ouvir; não da boca para que não fosse
faladeira; não do coração para que não fosse ciumenta; não da mão para que não tocasse no
que estivesse ao alcance da mão; nem do pé para que não fosse andarilha: mas do lugar em
que o homem está escondido e quando o homem está nu, aquele lugar ainda está coberto.2"
Lilith se une ao homem; nenhuma criatura se acasalou antes, mas o Homem conhece e
faz conhecer pela primeira vez a relação sexual sentida como tal. Como podemos imaginar o
amor entre estas duas criaturas? Possivelmente total e intenso como nós sentimos o eros que
inunda o Cântico dos Cânticos (I, 15-17):
Como és bela, minha amiga, como és bela!
23. Ibidem, p. 142.
24. Ibidem, p. 137.
25. Ibidem, p. 142.
26. Ibidem, p. 141.
32
Os teus olhos são como pombas. Como és belo, meu dileto, como és suave. Nosso
leito é a relva, paredes de nossa casa os cedros, teto para nós os ciprestes.
Lilith é certamente a sedutora, aquela que mais tarde, nas épocas vindouras, como Eva
Mãe dos Homens e mulher, será considerada o instrumentum diaboli. Lilith é aquela que
sussurra e geme {Cânt. 1,5):
porque ferida de amor eu estou,
e é a mulher que oferece ao homem o fruto suave; e ele está perturbado, está abatido.
Um ofuscamento que nos fará recordar Eros e Thanatos;
Ponha-me como sinete em teu coração, como sinete em teu braço, porque potente
como a morte é o amor (Cânt. VIII, 6).
Como se amam o primeiro homem e a primeira mulher? Foi ensinado: Todos os seres
praticam o ato sexual com a cara de um voltada para as costas do outro, afora dois que se
unem dorso a dorso: camelo e cão, e afora três, que se unem cara a cara, porque a Presença
divina lhes falou, e são o homem, a serpente e o peixe.27
Os seus ímpetos são um incêndio
as suas são chamas divinas.
Águas copiosas não sabem apagar o amor
nem enchente arrastá-lo (Cânt. VIII, 6-7).
Podemos imaginar a intensidade deste amor na dimensão divina, onde tudo isto era
muito bom, ajudando-nos com o esplendor dos versos do Cântico dos Cânticos, ou de outros
textos bíblicos que
27. Ibidem, p. 157.
33
infernal, enquanto expressão de Satanás e das Bruxas, mas será também o símbolo da
Mãe má, junto ao orço das fábulas. Na imagem arcaica há uma mulher sentada sobre um
dragão: Jung vê nela Equidna, valendo-se da lembrança de um exemplar dos Evangelhos, do
século XIV, que se encontra em Bruges, onde, na miniatura, a mulher, bela como a mãe de
Deus, está com a metade inferior do corpo num dragão.
Neste ponto resta mencionar também as Erínies, mais comu-mente denominadas
Fúrias, para completar a representação do feminino negro.
As Erínies são três: Aleto, Tisífone e Megera. Mas, como nos outros casos, são
reunidas na figura una da deusa. Nascem da Mãe Terra na tremenda circunstância da
castração de Urano, o grande Céu que devorava os próprios filhos para não perder o trono. A
deusa Terra, sua esposa, convenceu o filho Cronos, e armou-o com uma foice para golpear o
pai. Assim narra Hesíodo o evento, na Teogonia:
Mãe, posso oferecer-me para fazer esta obra, porque não me importa o nosso pai
nefando; pois ele tramou primeiro obras indignas. Assim falou; exultou grandemente nas
entranhas a Terra prodigiosa; ela o escondeu, em tocaia, e colocou-lhe nas mãos a foice afiada
revelando-lhe o plano. Veio o Grande Céu, trazendo consigo a noite, e ao redor da Terra,
ávido de amor, sobrepairou estendendo-se a tudo; então seu filho, saindo de tocaia, estendeu a
mão esquerda, enquanto com a direita segurava fortemente a foice na mão, grande, de dentes
afiados, e, num instante, ceifou os genitais do pai, lançou-os longe, jogando-os para trás de si.
Mas este não tombou sob sua mão em vão: quantos salpicos de sangue respingaram, a todos a
Terra acolheu: assim, com o passar dos anos, ela gerou as poderosas Erínies. . .78
Nascidas do primeiro grande parricídio por defesa, no eterno drama competitivo que
prenuncia Édipo, as Erínies se revelam logo como Fúrias. Suas características se afastam das
que são fundamentais nos outros demónios femininos; sua tarefa específica era a de punir os
perjúrios e todos os que ofendiam a Deusa Mãe com ações ou promessas não cumpridas. De
fato, Hesíodo esclarece essas atribui-
78. Hesíodo, op. cit., vv. 173-185. 86
ções num trecho de As obras e os dias, onde indica os comportamentos oportunos
para evitar a desgraça:
Procure evitar cada quinto dia, porque é triste e nefasto; no quinto, dizem realmente
que as Erínies assistiram ao nascimento do Juramento, que a Contenda gerou como punição
para os perjúrios.79
Como as outras figuras femininas, as Erínies se transformavam em figuras
equivalentes na área cultural ateniense. Os adjetivos que recebiam eram: obscura, negra,
homicida. As Erínies vivem no Êre-bro, são mais antigas que Zeus. Incansáveis, punem os
transgressores dos costumes familiares; golpeiam os que pecam por ambiguidade e
duplicidade. Sua punição é pesada, infalível: de região em região, ásperas e furibundas. São
velhas horríveis, geralmente com cabeça de cão e um corpo negro, fuliginoso; sobre as costas,
grandes asas de morcego. Os olhos são injetados de sangue, fixos e indagadores. As Erínies
têm gestos impacientes e decididos. Nas mãos seguram terríveis aguilbões com afiadas pontas
de bronze. Se as vítimas são golpeadas, morrem entre atrozes sofrimentos. Tanto terror
produziam as Erínies que era costume jamais mencionar seus nomes, ou então eram chamadas
Eumênides. Esquilo, nas Eumênides, apresenta as Erínies: no primeiro episódio é Apoio que
sai do templo e, com o arco distendido, ameaça as Fúrias que estão paradas à sua frente,
ordenando-lhes que sumam daquele lugar; o deus as dá a conhecer em todo seu cru realismo:
Fora daqui, obedecei! Fora daqui, depressa. Sai dessa morada e que este santuário seja
de vós desembaraçado. Se não quiserdes que vos golpeie com minha alada serpente branca,
arremessada pela áurea corda de meu arco; e que eu vos faça vomitar em convulsões coágulos
de sangue, em borbotões de negra espuma, o sangue que haveis sugado dos homens que
matastes. A vós não é permitido avizinhar-vos desta morada. Ide para o lugar onde cortam
cabeças, onde arrancam olhos, onde degolam, lá onde destroem a semente de fecundidade e
flores de juventude envelhecem; lá onde são vistas mutilações e petrificações, onde se ouvem
mugidos e gemidos de gente trespassada pelas costas e fincada na terra por estacas, lá ê vossa
morada.
79. Hesíodo, op. cit., vv. 803-807.
87Escutai-me? Estas são as orgias que vos deliciam, toda vossa figura o diz; por isto,
nós os deuses vos amaldiçoamos. Antros de leões insaciáveis de morticínio vós deveis
habitar, não este lugar, e não espalhar sobre outros, neste templo fatídico, a
vossa sujeira.80
No teatro grego há outras expressões dessa terrível imagem. Se Apoio esclarece qual
é, na tragédia de Esquilo, o lugar onde devem ficar as Erínies, em outra tragédia, Orestes, de
Eurípedes, são descritas as tremendas inquietudes alucinatórias e o medo daquele que, no
delírio psíquico e no sono perturbado, sente e vê se agitarem ao seu redor os fantasmas e os
íncubos que o oprimem. Orestes, enfermo, está preso aos tormentos. Assiste-o Eletra, que
tenta confortá-lo, mas o momento de lucidez que invade o herói é dominado pela angústia: e
eis as Erínies que se aproximam de Orestes, que se debate para se defender:
Eletra — Piedade irmão, piedade, ai! O teu olhar está perturbado. Raciocina, e de
sábio que era, em um instante se torna louco!
Orestes — Oh, mãe, suplico-te, suplico-te, não arremesse contra mim as virgens de
cabelo hirto de serpentes e de olhos que sangram! Ei-las, ei-las! Estão aqui, lançam-se, tenho-
as em cima! Eletra — Oh, pobre querido, não te movas, permanece em teu leito, acalma-te!
Não vejas nada daquilo que a ti parece ser certo e que te faz pensar que sabes, É uma
aparição. Orestes — Febo, matar-me-ão as terríveis deusas subterrâneas, as sacerdotisas do
inferno, de olhos de Górgonas e de vulto de cadela.
Eletra — Eu não te deixo, agarrar-me-ei a ti, apertar-te-ei entre meus braços, impedirei
que tu, em teus sobressaltos, possa ferir-te.
Orestes — Não,- deixai-me! Sois uma das Erínies, e me mantendes na vida para atirar-
me ao Tártaro.81
Os demónios femininos, portanto, são aparições. Nada daquilo que parece certo é
verdadeiro, mas a imaginação faz o homem sofrer. As mulheres punitivas abundam na
mitologia helénica. Muitas
80. Eschilo, Eumenidi, in II teatro greco, te trageâie, Sansoni, Fírenze, 1970.
81. Euripidi, Oreste, in II teatro greco, le tragedie, op. cit.
vezes as Erínies eram confundidas com as Harpias, as filhas de Atamante. Elas
também são criaturas terrificantes, dotadas de asas e pés de animais; voam como pássaros que
lançam altos gritos, e arrebatam as vítimas para entregar às Erínies. É conhecida a prática
cultural de querer aplacar as Erínies insaciáveis. Era difícil fugir delas e muito mais difícil
diminuir-lhes a violência, A tradição narra que estas Fúrias só aceitavam oferendas de
narcisos: o seu perfume inebriante as tornava inofensivas. É a analogia entre as flores e
Narciso, a mítica criatura infeliz possuída pelo amor de si, no reflexo de Eco; mas nós
queremos lembrar que dessa delicada flor eram entrelaçadas as guirlandas de Deméter e
Perséfone; chamava-se também leirion ou açucena. Era consagrado à tríplice deusa lunar e às
Erínies era oferecido em guirlandas. É interessante lembrar a ameaça das Erínies — que não
queriam absolver o matricídio de Orestes — de derramar sobre a Ática o sangue jorrante de
seus corações. No mito, supõe Graves, está oculto um eufemismo através do qual há
referência ao sangue menstrual. Este é um mito arcaico de bruxaria onde se pretendia que,
para maldizer uma casa, ou um campo, as bruxas menstruadas deviam correr nuas muitas
voltas ao redor da zona a ser atingida com o sortilégio, na direção oposta à do sol, por nove
vezes. Esta maldição era considerada perigosíssima para as crianças, os animais e as colheitas,
se o rito ocorresse durante um eclipse da lua, ou na ausência da lua. Deveras catastrófico, se
executado por uma bruxa virgem menstruada.
Mas voltemos ao narciso, para recordar que é a flor colhida por Perséfone. Floresce no
fim do outono; é perfumado; oferece um óleo medicinal e narcótico, segundo uma antiga
lenda. Orestes, de fato, atormentado por remorsos, jaz entre guirlandas de narcisos e açucenas,
junto a uma fonte onde esperava purificar-se, depois de ter assassinado a mãe. Estas são
indicações úteis, pois nos permitem formular uma hipótese sobre a analogia entre o sono
induzido por narciso — sono considerado como queda, esquecimento, princípio de culpa ou
cegueira — e a fúria do demoníaco feminino que é aplacada pela oferenda de flores. O sono
equivale à noite, às trevas. Os demónios — lembremo-nos — foram criados depois do pôr-do-
sol, no começo da noite, isto é, durante o sono do homem. Outros componentes confirmam a
estrutura destas figuras patológicas: o "sangue" feminino, a bruxa, o perfume narcótico, o
sono. Toda a simbologia útil à formação inconsciente do incubo.
O fato da tríplice deusa lunar poder ser identificada com várias figuras, de significado
absolutamente oposto, desdobra o sentidointerno do mitologema: uma única ideia base, isto
é, a Lua, da fase "cheia" à lua "negra"; a mulher, de sua atitude benévola à vingativa, castrante
e ameaçadora. Talvez as próprias Erínies-Hárpias, apresentassem a "intimação materna"
moralista, o aspecto da governante ácida ou o olho da consciência que veta o ato de liberdade;
as três Fúrias mantêm a ordem no mundo e punem qualquer prevaricação. Com estas imagens
se completa o quadro mitológico da Lilith grega. Vimos, em substância, emergir o arquétipo e
a sua fragmentação. À medida que se desenvolvem a cisão e a remoção, o arquétipo reemerge
numa multiplicidade de aspectos e cada vez mais se condensa na Grande Mãe, que é
impossível de ser vivida na sua totalidade. Entre a Lua cheia e a Lua negra não há um salto:
LiKth permanece no exílio, mas para a alma grega a potência do instintual negado se
manifesta com toda a evidência na cisão e chega a sobrepujar o Eu. A consciência
desorientada diante do arquétipo que se representa sob forma sempre nova — ora como
energia ctônica, ora como demónio, ora como anjo do amor ou justiceiro terrível — acaba por
cair no jogo de ambivalências, de solicitações, atuações e recusas. Por isso os pólos se
afastam e tendem a se distanciarem cada vez mais, perdendo-se a memória da unidade
andrógina originária.
O pensamento teológico e a visão global, filosófica e moral, além da antropológica, da
área ocidental, exprimem uma trágica fenda. A civilização espiritual europeia saiu da fusão de
componentes bíblico-judaicos e da especulação grega, sustentada por fundamentos jurídicos
romanos. Mas tal encontro manteve a cisão do arquétipo da Unidade. É, sem dúvida, motivo
para arrepios sentir que o homem ocidental não tem olhos para ver nem ouvidos para ouvir. A
mediação entre Bíblia e Grécia não teve outro efeito a não ser aprofundar o equívoco e,
seriamente, a perda da alma total. Fílon, de Alexandria, é, num certo sentido, a testemunha
deste grande momento cultural. Ele viveu no século I da era cristã. Operou uma ligação entre
pensamento mosaico e pensamento helénico, mas mesmo ele, em sua exposição, reforça a
concepção patriarcal e o dever de transcender o "terrestre" e o "humano" imanente, para
realizar o agostiniano in te ipsum redi, como condição para ídentificar-se a Deus. Mais uma
vez, ao Pai.
Mais que entregarmo-nos a comentários ou interpretações, confiamos ao leitor este
trecho de Fílon, de Alexandria, extraído de sua obra A Criação do Mundo. Talvez nessas
páginas deste pensador hebreu-alexandrino, não seja difícil recolher o "fantasma", o "delito"
90
bíblico, a trágica mensagem da primeira rejeição, onde foi perdida aquela parte
companheira, aquele absolutamente "outro" que ainda é vivido como experiência de perda:
Mas como nada é estável entre as coisas que estão sujeitas ao devir, e aquilo que é
mortal necessariamente sofre modificações e mutações, era necessário que mesmo o primeiro
homem estivesse sujeito a algo de mal. E a mulher foí para ele o início de sua vida maculada
de culpa. Enquanto estava só, de fato, assemelhava-se por sua unidade ao mundo e a Deus, e
tinha impressos na alma os caracteres de uma e outra realidade, não todos, mas os que é
possível a uma constituição mortal conter. Quando também a mulher foi plasmada, o homem
viu maravilhado uma imagem irmã e uma figura sua congénere, exultou ante tal visão e foi ao
seu encontro, abraçando-a afetuosamente. A mulher, então, não vendo outro ser vivo que se
assemelhasse a ela mais que aquele, se alegrou e com timidez dirigiu-lhe, por sua vez, a
palavra. E sobreveio o amor quase juntando duas partes separadas em um único ser vivo,
reuniu-os num só, depois de haver colocado em cada um deles o desejo de se unir com o outro
para gerar um que se lhes assemelhasse. Este desejo, porém, fez nascer também o prazer do
corpo, que é fonte de todas as injustiças e de tudo que não é lícito, porque por ele os homens
trocavam a vida mortal e infeliz por uma vida imortal e feliz,82
Nesta mensagem está oculto o drama de Lilith. Os "prazeres do corpo" negados são a
testemunha de uma ofensa arcaica à natureza do homem e é a primeira violência feita à
mulher. Lilith, que se "alegrara" indo de encontro ao homem com timidez e amor, olhando
confiante no fundo de seus olhos, recebe em resposta uma rígida projeção defensiva, um
desprezo cheio de angústia, um desdém que produzirá raiva e cegueira em relação àquela que
tem somente "culpa" de ter feito conhecer o Amor, de ter sido apresentada ao homem como
sua igual e semelhante, divina ela também. O homem, portanto, não reconheceu como sua a
felicidade de ter corpo e sexo, espírito e alma fundidos numa só entidade. Lilith, corpo e alma,
foi julgada "fonte de toda injustiça" e mensageira do ilícito.
82. Filune d'Alessandria, La creazione dei Mondo, Le Atlegone delle Leggi, Rizzoli,
Milano, 1978.
91A tragédia está nessa falsificação da realidade psíquica. A vida imortal com Deus
Pai exigiu um preço: o deslocamento do mal sobre Lilith, a transferência da Dor e da Grande
Dúvida para a Mulher. Assim, o sorriso se extinguiu nos lábios de Lilith e seu regozijo de
amor se converteu, para sempre, em raiva e ódio de Adão "patrão".
Até agora consideramos cada uma das divindades femininas erigidas como figurações
infernais, todas derivadas da transformação ou identificação com a Deusa Lunar arcaica. Os
demónios femininos tiveram personificações singulares bem distintas, como vimos, mas todos
como expressão de uma energia vital negada. O feminino identificado com o diabo ou com a
morte. O prazer dos sentidos percebido como ameaça proveniente da animalidade terrena ou
das potências infernais. Lilith, num certo sentido, expulsa da porta do paraíso, retorna pela
janela durante a noite e pára nas encruzilhadas, arquitetando vinganças ou mortes.
Perguntemos agora: Lilith constrangida a "fazer tudo por si mesma", a sobreviver em
oposição ao macho e à lei do Pai, como reagiu após o primeiro desafio aos celestes? Como
reagiu em relação ao homem depois da "desobediência" à autoridade masculina? Uma
resposta poderia ser a realização de uma total competição com o homem ou uma elaboração
interna do tema da relação. Podemos encontrar um exemplo no mito das Amazonas. Elas, de
certa maneira específica, constituem a experiência arcaica daquilo que hoje é chamado, de
modo bastante impróprio, feminismo.
Temos menções das Amazonas como sacerdotisas da Lua. A palavra original "a-
mazona" significa "sem seio", mas não podemos excluir o significado, conveniente no nosso
caso, de "mulher-lua".
A figura do mito é Artêmis, pois as amazonas exprimem traços belicosos. Detenhamo-
nos nas informações dadas por fontes conhecidas, mas é certo que ninguém ainda pode
esclarecer completamente, com documentos verídicos, a existência ou a lenda dessa tribo que
na Grécia perpetuou uma experiência matriarcal, considerada de nível bárbaro pelos próprios
helénicos.
Concebidas também como filhas de Dánao, as Amazonas são criaturas de Ares e
Artêmis (que correspondem ao casal romano Marte e Diana caçadora). Talvez essas figuras
tenham saído da imaginação ou talvez da zona próxima ao Mar Negro. A tradição as coloca
ao longo do Termodonte e nas cercanias de Trebisonda. A dúvida sobre sua existência
histórica é corroborada pela ausência absoluta de testemunhos arqueológicos e falta de
documentos esculpidos.
92
Essas Amazonas viviam em grupos onde não era, de modo algum, admitida a presença
de homens. Suas regras de vida eram um verdadeiro concentrado de autonomia, identificado
aos comportamentos viris. Eram mulheres belíssimas, audazes e ferozes. A fantasia popular
quer que cada Amazona mutile um seio para ser mais livre para usar o arco, mas não existem
documentos que atestem este fato. Aqui, mais que nunca, é possível imaginar uma fantasia de
remoção das características sexuais rejeitadas.
Elas cresciam aprendendo a usar armas — a lança e o arco, em particular — e não
manifestavam certos sentimentos ternos. Para perpetuar a raça, iam, uma vez por ano, para
junto da população dos Gargáreos, e depois voltavam para suas cidades; quando os filhos
nasciam, conservavam as meninas, enquanto os meninos eram mortos ou então enviados para
junto dos gargáreos! Nesse rito cruel podemos facilmente observar uma analogia com a
tendência de Lilith, das Lâmias ou das Empusas, e dos outros demónios femininos de raptar
crianças ou matá-las. As crianças eram logo ensinadas a usar armas. Num comentário de
Sérvio a Virgílio {Eneida, XI, 659) e em Plutarco83, afirma-se que as Amazonas viviam no
rio Amazonas, depois chamado Tanai, nome do filho da amazona Lissipa. Esta ofendera
Afrodite com a recusa em nome das armas e da guerra, do casamento e do amor intenso.
Então Afrodite desencadeou sua vingança: fez com que Tanai se enamorasse da mãe. Tanai,
não querendo ser subjugado pela relação incestuosa, atirou-se ao rio, afogando-se. Lissipa,
atormentada por sua sombra, em vão procurou-o até o estuário do rio, no Mar Negro, e ali fez
erigir um templo. Lissipa — segundo fontes citadas por Graves84 — havia estabelecido que
os homens fossem subjugados e cuidassem dos afazeres domésticos, enquanto as mulheres
combatiam. Conta-se que quebravam as pernas e os braços dos meninos para torná-los
inválidos.
Os citas consideravam "anormais" essas mulheres guerreiras (Eorpata) que não tinham
nenhum senso de justiça, nem pudor. Essa questão do pudor é uma característica que se
repetirá sempre quando se fala de Lilith, dos demónios femininos, mais tarde, da bruxa, até,
finalmente, das psicopatologias da neurose histérica. O pudor — como é considerado na
cultura moral patriarcal — é transgredido como rito liberatório e de protesto, mas também
como uma acentuação da desejada desinibição do originário tabu bíblico. Por
83. Plutarco, Dei fiumi, XIV.
84. Arziano, Vrammento 58; Diodoro Siculo, II, 451; Erodoto, IV, 110.
93isso, a ausência de pudor nas Amazonas e a lascívia das bruxas não é outra coisa
que o testemunho daquilo a que o macho se nega ao nível dos instintos.
As guerreiras — segundo as descrições de Virgílio e Píndaro — carregavam arcos de
bronze pesados e pequenos escudos em forma de meia-lua. Elmo, vestes e cinturão eram
feitos com peles de animais ferozes. A fantasia dos pintores, do Renascimento ao
Neoclássico, se fartou de distinguir, em pinturas e afrescos, Dianas caçadoras, e é impossível
mencionar, ainda que brevemente, traços dessas figuras.
O elemento fundamental da psicologia das amazonas é: a rejeição ao homem e a
intolerância absoluta em relação ao amor e ao matrimónio.
São — como afirma Diel85 — as "mulheres assassinas de homens" que substituem os
homens e se tornam suas rivais, não suas aliadas, perdendo assim o valor da alma e as
vibrações de esposa
e mae.
Kerényi menciona que as Amazonas eram cinquenta, como as Nereidas e como
cinquenta eram as luas de um ciclo festivo de quatro anos, a metade do "grande ano". A
segunda metade dele tinha quarenta e nove luas, como tal pertencia às filhas de Dánao, as
Danaídes. Assim, no céu, as luas que se sucediam triunfavam sobre a noite obscura.86
Melhor do que em outras fontes mitológicas, é na obra de Esquilo, As Suplicantes, que
se pode compreender as Amazonas, nesta tragédia clássica, onde elas fogem dos tenebrosos
filhos do Egito e, embarcando para esquivar-se dos homens violentos, atracam em Argos, o
"país claro". Esquilo mostra os habitantes de Argos dispostos a proteger as Danaídes dos
perseguidores, e também a salvar seu pai, Dánao. Elas são as virgens que se recusam ao
matrimónio. Obrigadas a se casarem (este é o desenvolvimento do mito na trilogia inacabada
de Esquilo), as Danaídes, com uma exceção, mataram os respectivos maridos. Ipermista salva
Linceo aceitando seu amor. As outras irmãs, ao contrário, foram punidas com casamentos
obrigatórios. O sentido da tragédia é claro: as Amazonas são punidas, pelo imperturbável
Zeus, por haverem transgredido a ordenação cósmica; portanto, verdadeiras Liliths, desta vez
constrangidas a obedecer,
85. Diel, P., op. cit.
86. Kerényi, K., op. cit.
94
porém não ouvidas em suas invocações de liberdade! Em vão, Afrodite, a grande
mestra do amor, pregava que:
A terra pretende penetrar com o amor o céu puro. . . o desejo de amor possui a terra; a
chuva do céu torna-a fértil e ela então dá vida às plantas e aos animais, dos quais se nutrem os
homens.87
As Danaídes, voluntariosas, não compreendem esta mensagem de amor e assim
protestam iradas:
Não admitiremos jamais as violentas mãos dos machos. Fugiremos das núpcias
malignas sob o céu e as estrelas. . .88
Ao silêncio de Zeus invocado, as suplicantes ainda invocam, abatidas pelo terror das
iminentes núpcias:
Oh, monte, oh, terra justa e venerada, por que padecemos?
Para onde, nesta terra de Ápis, fugiremos, onde há um caminho
escuro? Quisera fôssemos fumaça negra que se confunde entre
as nuvens de Zeus, poeira que ali se dissolve.
A alma sente um calafrio, bate meu negro coração. A visão
das naves me foi furtada, de medo estou perdida. Quisera o
laço da corda da morte, antes que um dos malditos homens
tocasse de leve minha pele; que Hades primeiro de mim seja
proprietário.
Não há para nós um acento nos céus onde a úmída nuvem se
faz neve: ou um pedacinho de rocha suspensa que o olho não
apanha, solitária, obtido das cabras e dos abutres, e dali de
cima precipitar-nos sem retorno para testemunhar, antes das
núpcias que violentam o coração e que dilaceram?
Ser alimento dos cães e pássaros desta terra, nós aceitamos.
Porque a morte libera da dor que urra: venha a morte primeiro
do que o tálamo nupcial. Acharemos o caminho da fuga, ou
da liberação.89
Queremos recordar ainda o mito de Hipólita, rainha das Ama-
87. Eschilo, Le Danaidi, citado in Kerényi, op. cit.
88. Eschilo, Le Supplki, in II teatro greco, le tragedie, op. cit.
89. Eschilo, op. cit.
95zonas; a verdadeira guerra dos sexos aqui se faz manifesta e muito interessantes são
os matizes de sua conduta, atormentada pelo conflito.
O mito, segundo uma versão escolhida entre as várias que chegaram até nós, conta a
nona tarefa de Hércules: ele devia levar para a filha de Euristeo, Admeta, o cinturão de ouro
de Hipólita, recebido como presente de Ares. Hércules, juntamente com Teseu, Telamone e
outros heróis, alcança as Amazonas no rio Termodonte, na cidade de Temiscira. Hipólita,
atraída pelo vigor físico do gigantesco Hércules, estava disposta a ceder-lhe o cinturão, talvez
porque simpatizasse com ele. Uma pintura de vaso representa o herói sentado, calmo e
decidido, as Amazonas de calças, conforme o costume cita, oferecendo o precioso cinturão.
Mas, entre as Amazonas, disfarçada, vagava Hera, que instiga as viragos lançando suspeitas
malévolas a respeito dos homens. Diante disso, as Amazonas enfurecidas, temendo o rapto da
rainha, precipitam-se ao assalto da nave e dos heróis.
E assim estourou a guerra entre os homens e as mulheres belicosas. Elas,
decididamente, levaram a pior: suspeitando que Hipólita o traíra, Hércules mata-a, furta o
cinturão, as armas e seu machado. Assim, foram mortas uma a uma as Amazonas que
assediavam a nave e postas em fuga as outras. Hércules realizou sua nona tarefa e foi
reconfirmada a discórdia entre os sexos.
Segundo o ocultista Lanoe-Villene90, as Amazonas seriam, na ordem metafísica, um
símbolo das forças cósmicas psíquicas que giram em torno da "esfera" do Paraíso, para vigiar
as fronteiras. Nessa perspectiva, o famoso cinturão não seria outra coisa que o círculo mágico
de energia construído pelas Amazonas ao redor do Paraíso, que Hércules ameaçou com sua
insolência.
Elas são as guardiãs da vida e da morte. Sem dúvida foram, na origem, isto é, nas
fontes mitológicas, sacerdotisas do mistério lunar e feminino; sua lenda brota, talvez, das
figuras de mulheres armadas esculpidas na época clássica, sob o pedestal do Trono de Zeus,
em Olímpia, e também da representação do escudo de Atena no Templo de Teseu. Não se
exclui que em Éfeso estivessem presentes sacerdotisas armadas, relacionadas às três tribos
sacerdotais matriarcais.
Uma notável figura feminina, que podemos colocar no mesmo plano que as Amazonas
— para concluir a série de mitos gregos concernentes às deusas lunares — é, sem dúvida,
Circe. Como as
90. Lanoe-Villene, G., Le livre des symboles, Bordeaux, 1935. 96
Danaídes são temidas por sua paixão pelas armas, assim Circe é temida porque, longe
de ter aspectos ou atributos demoníacos ou infernais, apresenta traços femininos sensuais,
sedutores e devoradores. Também Circe, em confronto com Lilith, exprime a rejeição ao
"patronato" masculino e assim domina todo homem, subjugando-o com os próprios encantos.
Circe é, na lenda e no mito, o Absoluto Feminino que arrasta o homem à perdição, pois este,
incautamente, a obedece. Protótipo da bruxa medieval, Circe tem em si todos os poderes da
alma mais profunda que se manifesta num eros total e insustentável. Ela primeiro adula e atrai
irresistivelmente, e depois, uma vez obtido o domínio sobre o homem, o reduz a uma total
sujeição e servidão, tornando-o um escravo embrutecido. Com Circe não temos a figuração
inconsciente da libido sexual que se carrega de formações fóbicas como no caso de Hécate e
da Em-pusa, mas ela é, ao contrário, o objeto de amor mais convidativo e convincente, de tal
modo que nenhuma desconfiança e defesa é possível. Mas o engano, que se revela muito
tarde, quer significar o perigo e a destrutividade que se ocultam por trás da beleza e sedução.
Circe não se apresenta como incubo, mas sim como a possibilidade ideal de satisfação
absoluta; pode conceder o êxtase erótico, mas ao preço da perda da liberdade. Homero, em
particular, nos conta quem é Circe; ela tem outros complexos apelidos, como de resto convém
às deusas lunares. As fontes citam-na ora como Circe, ora como Pasifae. O apelido maga nos
faz perceber que Circe se dedicava à magia, mas, em sentido psicológico, devemos considerá-
la como a expressão lunar da Grande Mãe que atrai — regressivamente — para os silenciosos
reinos da anelante doçura incestuosa, oferecendo-se como mágica liberdade e plenitude,
libertação e lenimento. A magia de Circe é somente o encantamento dos sentidos e a eterna
sedução da parte jovem e aventureira. (Não é por acaso que Circe se exprime no confronto
mítico com Ulisses, aquele que quer viver e se tornar, a despeito do medo e das ciladas das
mães.) A deusa homérica é transformada em perseguidora, como uma Lâmia, porque freia o
desenvolvimento e a "viagem".de Ulisses e seus homens. Trata-se sempre de um valor da
alma, é claro, mas, dessa vez, este se apresenta com uma componente ignorada pelos machos,
os quais, todavia, se sentem fascinados porque é a lisonja do otium, da renúncia, para eleger a
mais doce segurança. Talvez Circe seja a figura feminina mais sonhada pela imaginação do
antigo grego: Circe, alta, bela, altiva, e sua encantadora ilha banhada por quentes mares. Circe
é o mistério do não-retorno. A satisfação e a perdição. O
97Odisseu homérico (aquele que chamamos mais comumente Ulisses) é levado, com
seu revés, ao encontro de Circe. Livre da fúria dos Lestrigões, Odisseu faz sua nave sair ao
largo,
E a ilha de Eéia chegamos: onde vivia
Circe de belas tranças, a deusa terrível dotada de palavra
[humana,
irmã gémea de Eeta, de coração cruel; ambas nascidas do Sol, que ilumina os mortais,
tendo por mãe Perse, filha do Oceano. Aí com a nave nos aproximamos de uma ponta, em
silêncio até dentro do porto levamos a nau; um deus nos guiava. Em seguida, tendo
desembarcado, dois dias e duas noites permanecemos deitados, roído o coração de fadiga e
tristeza.
Odisseu, com seus heróis, explora a ilha e faz a descoberta fatal:
. . .e vi uma fumaça elevar-se da terra de largos caminhos no palácio de Circe, entre
denso carvalhal e uma floresta.
Decidem quem primeiro deve ir fazer o reconhecimento do misterioso palácio. Toca a
sorte a Eurícolo. Ele encaminha-se, com a escolta de vinte e dois companheiros e, finalmente,
avista a fatal habitação:
Encontraram, num estreito vale, o palácio de Circe,
construído com pedra polida, em posição descoberta.
E, em volta, viam-se lobos monteses e leões,
que ela enfeitiçara, dando-lhes fatídicas drogas
[...]
Detiveram-se no vestíbulo da deusa de belas tranças
e Circe, cantando no interior com sua bela voz, escutaram
tecia ao tear uma grande tela imortal, como são os trabalhos
das deusas, sutis, esplêndidos e graciosos.
A descrição do poeta não podia ser mais convidativa: mais uma vez há a imagem da
mulher suave, cheia de graça, mas também o arquétipo da casa, do refúgio, do
desembarcadouro. Aqui se gira em torno do tema da regressão como paradoxal resolução de
todos os conflitos. Mas Circe não esconde o engano, que não escapa à sensibilidade de
Euríloco. O drama se desencadeia no momento em
98
que os homens exultantes se deixam seduzir pelo que vêem, sentem e buscam:
Amigos, ali dentro alguém que tece grande tela
suave canta, e toda a terra ressoa;
Mulher ou deusa. Já, sem tardar, chamemos!
e eis então a aparição de Circe:
Imediatamente ela, saindo, abriu a porta refulgente
e convidou-os; e todos, insensatos, a seguiram.
Mas Euríloco permaneceu fora, receando uma cilada.
Mandou-os sentarem-se em tronos e divãs
e para eles queijo, farinha de cevada e mel
no vinho de Pramno misturou: mas juntava na taça
funestas drogas para que esquecessem a terra pátria.
E apenas lhes deu e eles a beberam, eis que, de súbito,
toca-os com sua varinha e encerra-os nas pocilgas.
De porcos todos ficaram tendo a cabeça, e a voz
e o corpo: conservavam só o mesmo espírito que antigamente.
Assim eles choravam encerrados; e para eles Circe
atirava asinhas, bolotas e cornísolos
para comerem como comem os porcos
que se deitam no chão.91
Este é o primeiro sortilégio de magia que conhecemos operando com extraordinária
eficácia psicológica! O belo sonho se transforma de repente em alucinação com traços de
incubo. A simbologia deste feminino mágico e regressivo é tão rica que podemos somente
assinalá-la, deixando o campo à imaginação. Circe vive numa ilha, e o mar a cinge: símbolo
do Si Mesmo, a ilha de Eéia é, ao mesmo tempo, símbolo de um retorno à consciência do lado
de Sombra da Anima e do instinto. Aportar na ilha de Circe significa conhecer toda a
dimensão do próprio instinto (os homens transformados em porcos), o centro do tema, a ilha;
é separada da terra firme e, portanto, é um símbolo de qualquer coisa completamente separada
da vida consciente. Os companheiros do Odisseu, aqui, são os aspectos internos dele mesmo
que se privam do liame com o Eu para se
91. Omero, Odissea, libro X, 150 e passim, Einaudi, Torino, 1977; trad. bras. Homero,
Odisseia, São Paulo, Abril Cultural, 1978.
99precipitar na voragem da Anima obscura. Eles vencerão os feitiços de Circe
evitando sofrer o fascínio e trazendo a maga a uma integração parcial. De fato, Hermes, isto é,
o inteligente deus Mercúrio, ajuda Odisseu, informando-o a respeito da verdadeira natureza de
Circe, enquanto o herói se dirige para vê-la:
Então me veio ao encontro Hermes, o da varinha de ouro
quando estava chegando à mansão, na figura de um jovem herói,
em quem floresce o primeiro buço, belíssima é sua juventude.
Tocando-me a mão, exprimia palavras, dizia:
"Aonde vais, infeliz, sozinho por estas colinas
sem conheceres o local? Teus companheiros em casa de Circe
estão encerrados como porcos habitando pocilgas bem vedadas.
Vais acaso libertá-los? Digo-te
que nem mesmo tu regressarás, mas ficarás lá com os outros".
Assim Hermes, princípio de consciência racional, oferece a Odisseu uma erva secreta
capaz de dissolver os encantamentos e os filtros. O herói, com a erva da raiz negra e a flor
branca como o leite, cujo nome é moli, enfrenta a aventura com Circe. Ao poder da maga, o
herói homérico opõe a ajuda de Mercúrio: é sempre um apoio "divino" contra a
"periculosidade" da sedução feminina.
... e eu para a morada de Circe
dirigi-me; e muito batia meu coração.
Parei debaixo do pórtico da deusa de belas tranças
e, ali, de pé, gritei; a deusa ouviu minha voz
Acorreu imediatamente, abriu as esplêndidas portas,
e convidava-me; segui-a com o coração alceado.
Mas como me deu de beber e esvaziei a taça
— e não podia me enfeitiçar —
com a varinha me tocou e tomando a palavra, disse-me:
"Vai agora para a pocilga, deitar-se com seus companheiros".
Mas o veneno não tem efeito em Odisseu, ele está imunizado por seu próprio princípio
ativo mercurial. Pela alquimia sabemos que o mercúrio é o metal da transformação. Por que
Circe cumpre um ato mágico? Circe exprime os poderes naturais; Hermes, ao invés, exprime
aquilo que se diz dos "ciúmes" dos deuses. É o conflito: a maga assinala o transbordamento
dos instintos naturais que ameaçam a ordem perene das coisas. Mercúrio entra em jogo
100
exatamente para estancar este extravasamento. A intimatio do divino, do superior, se
repete aqui para dano do inferior, do terrestre. Uma vez ainda Adão-Odisseu se "alia" ao
princípio paterno-divino, para impedir a ordem natural que se manifesta em Lilith-Circe. É o
confronto entre as forças absolutas e o pensamento consciente. Circe quer romper a barreira
defensiva do pensamento racional de Odisseu. A esse respeito, W. Otto afirma acuradamente:
Toda verdadeira magia pressupõe, de um lado, a consciência humana e a concentração
de pensamento, do outro a existência de uma ordem natural rígida, mas não mecânica. O ato
realmente mágico é possível num estado de excitação particular. Esse excitamento, porém,
ocorre quando o ânimo tem a sensação que as veneradas regras da natureza sofreram uma
afronta.92
Circe exprime a maldição pela ofensa feita à natureza: as imprecações, Arai, que de
Lilith em diante se elevam contra os que ofenderam o "desejo" natural. O "não" de Adão é
ainda pago pelos companheiros de Odisseu transformados em porcos! Odisseu permanece um
ano inteiro com Circe e os mitógrafos atribuem a essa relação de amor dois nascimentos, ou
ao menos um, com certeza: Telégono ou Engamone. Circe é a Lilith que se vê e se sente
aceita: aqui a mediação Hermes-Mercúrio rompe o mágico e oferece a possibilidade de
verdade às duas partes. O pacto é respeitado: a maga é amada por aquilo que é, e Odisseu,
somente amando-a, a induz a deixar a magia: seus homens, de fato, retomam a forma humana
sem guardar a lembrança de terem sido porcos!
Num certo sentido é Circe que vê respeitada a "veneranda" regra da natureza, é por
isto que ama fervorosamente o herói e mais tarde ajuda-o com conselhos de muita sabedoria e
paixão. A tradição assinala várias versões para o mito de Circe. Uns a querem numa ilha junto
da Ática, enquanto os colonos gregos da Itália identificam sua estranha e maliciosa morada no
Mar Tirreno. Quem vai atual-niente ao Monte Circeo, tão pesado de emanações, reencontra
indícios da morada de Circe, de "belas tranças", filha do Sol, no cume do monte que se eleva
escuro nos pores-do-sol. Os amieiros, os álamos e ciprestes sagrados ornavam os jardins
arcanos onde amor e morte se entrelaçavam com o tecido e se ouviam os cantos de Circe e de
92. Otto, W., op. cit.
101suas criadas. Teofrasto e Virgílio asseguram que o culto foi exata-mente ali, no
Circeo. Apolônio de Rodes se refere a um bosque-cemitério de salgueiros — a quinta na
sequência das árvores sagradas — situado na Colquide, para o culto de Circe. Outras fontes
propõem a ilha de Eéia, a "gemente", no Adriático, perto da foz do Pó. E também aqui teriam
existido amieiros, árvores derivadas de transformação mágica da irmã de Fetonte. Lembremos
que Hécate preferia os álamos negros. Toda a simbologia do episódio homérico deve ser
analisada porque tudo lembra o mágico, eros, a morte, e cada elemento pode alimentar uma
interpretação psicológica. A tela que Circe trabalha é, uma vez mais, a trama do destino
individual e Circe, como deusa da Morte, tece incansável.
A transformação dos homens de Ulisses em porcos tem também um significado
decididamente religioso. Lembremos que o porco era o animal sagrado de certas divindades
gregas, e Frazer93 lembra que no folclore europeu o porco é uma encarnação comum do
espírito do grão, por isso este animal está intimamente ligado a Deméter. E nos perguntamos
se a grande deusa lunar originariamente não tinha, ela própria, a forma de porco. Frazer
admite uma Deméter sempre acompanhada de um porco; a ela eram oferecidos, nos ritos, os
porcos sagrados. Os ritos das Tesmoforie áticas eram festas outonais celebradas somente por
mulheres, em outubro, e parece que representavam, com ritos fúnebres, a descida de
Perséfone (ou da própria Deméter) ao mundo subterrâneo. Um dos ritos consistia em jogar
porcos, pão e ramos de pinheiro na "caverna de Perséfone", guardada por serpentes. A própria
Perséfone, na origem, era teriomorfa, talvez um porco. Nas Tesmoforie as mulheres comiam
carne suína, que representava — citamos Frazer — um sacramento, ou comunhão solene, no
qual os fiéis comiam um corpo divino. Portanto, devemos pensar, em oposição a todas as
interpretações moralísticas e esteticistas, que o gesto de Circe, ao transformar em porcos os
homens, era coisa muito diversa que uma magia bestial: representa, talvez, a "consagração"
dos instintos masculinos ao princípio lunar? Os companheiros de Odisseu, nesse caso,
representam o retorno ao princípio feminino. Circe equivale à Deméter Negra de Figalia; em
consequência, o "masculino" retoma a parte animal censurada.
O alimento dado às vítimas transformadas em porcos é constituído de corniso
vermelho de Cronos, uma planta que, com fre-
93. Frazer, James, II Ramo d'Oro, Borínghieri, Torino, 1965, vol. 2°; trad. bras., O
Ramo de Ouro, ed. abreviada, RJ, Zahar, 1982.
102
qiiência, ainda cresce em nossos lugares sagrados. Causa perplexidade o filtro dado
por Hermes-Mercúrio a Odisseu: o "moli" (outros traduzem "molu"). Alguns dizem que se
trata do ciclaminis selvagem, que é raro, tem flores brancas, bulbo escuro e resistente, e é
intensamente perfumado. Já outros classicistas chamam moli, ou malu, um tipo de alho de flor
amarela. Pode ser verdade, pois nesta analogia é conhecido seu significado apotropaico e de
exorcismo no vampirismo e na bruxaria.94
Parece que este alho cresce exatamente quando a lua está em seu último quarto,
portanto uma confirmação de que o alho protege da aproximação da Lua Negra e, logo, era
um talismã contra Hécate e suas perigosas manifestações. Tranças de alho, de resto, eram
penduradas fora de casa para manter distantes os demónios lascivos e as bruxas. O filtro de
Hermes pode ser um símbolo de esconjuro — exatamente o alho — contra Circe, rainha dos
encantamentos maléficos.
Algumas fontes supõem que se tratava de arruda selvagem, embora esta não
corresponda aos dados botânicos do poema. Neste caso, a analogia não se sustenta tão bem. A
arruda é emenagoga, isto é, favorece o ciclo menstrual e tem ação analgésica e vesicante:
como símbolo, há poucas referências ao uso que Hermes faz dele. Sobre os filtros de Circe
pouco se sabe; Homero menciona somente venenos funestos; "drogas sombrias". Certamente
podemos pensar em alucinógenos. Representações de Circe existem: a arte sempre se
comoveu ante este mito da mulher-maga. No Museu Arqueológico de Nápoles, há uma
pintura mural onde a deusa é representada com fortes características. No Museu de Oxford
existe uma cratera grega com a imagem de Circe. Mais próxima de nós é a famosa Circe
pintada por D. Dossi: no esplêndido quadro do final do século XVI, a maga aparece potente,
dominadora e bela, imersa em um contexto de símbolos, talvez excessivos, mas capazes de
perturbar. Assim como Odisseu parte de Eéia para voltar a ítaca sonhada e à sua Penélope, a
aventurosa alma muda de direção rumo a outras metas. Encontramos ainda figuras míticas no
extremo limite do mundo helénico: as Sereias, que são, desde sempre, um símbolo de sedução
erótica irresistível. A Sereia é a imagem mais inconsciente e terrível de Lilith, distante e
oculta da vista, pois reúne em si todas as características destrutivas. É a própria Circe, de
resto, quem descreve as temíveis ondinas a Odisseu:
Jones, E. op. cil.
103As Sereias primeiro verás, que aos homens
encantam, os que delas se aproximam.
Quem sem dar por isto delas se aproxima e escuta a voz de Sereia
nunca mais a esposa e os filhos pequeninos
de volta a casa se reunirão em torno dele,
pois as Sereias com canto harmonioso o enfeitiçaram,
seduzido num prado: amontoam-se em redor de esqueletos
humanos putrefatos; sobre os corpos a pele se desfaz.
Prossegue adiante sem parar e tapa os ouvidos de teus
[ companheiros ,95
Passemos a ver como se articula o mitologema de Lilith na área cultural de Roma e no
Império. Praticamente, em Roma continuam os cultos devidos às divindades gregas, agora
latinizadas, e com finalidades diversas. Os deuses permanecem como símbolos eficazes
mesmo junto ao realista mundo romano.
Mudam os nomes e certos atributos, mas a base da Kore, por exemplo, não é
modificada. A Perséfone helénica se torna, no culto romano, a temida e tenebrosa Prosérpina,
rainha e guia dos infernos. Contudo, o culto jamais se tornou relevante.
Deméter, como deusa lunar da fertilidade, se torna Cibele e o culto permanece
semelhante. A divina Artêmis, que caracteriza os traços amazônicos, será em Roma a Diana
caçadora e estará, com frequência, acompanhada de Marte, o deus belicoso e agressivo. É
exatamente em Roma que as figuras guerreiras de mulher se manifestam com traços mais
animosos. Hécate está presente com toda sua sinistra expressividade, talvez tendo reforçados
os caracteres mágicos, porque já é considerada, com Medeia, a sacerdotisa das bruxas. O culto
lunar está sempre ativo e não diminui, no espírito popular, o respeito por certo folclore que
procura manifestações cíclicas. Também para os romanos a noite e a lua têm um poder
indiscutível e, às vezes, de todo mágico. Entretanto, é aqui que vemos as divindades
assumirem traços mais mágicos e mais ligados à superstição. Para Horácio, de fato, Diana e
Prosérpina se distanciam do mitologema para tornarem-se padroeiras da magia e ele menciona
o mundo mágico e os rituais no Liber Carminum, isto é, no "livro dos encantamentos".
Algumas fontes — que devemos assumir com cautela — lembram certos rituais onde "se tira
a lua do céu".96
95. Omero, op. cit.
96. Vautrier, R., I poteri magici delia Luna, Dellavalle, Torino, 1971.
104
Em Temesa, uma cidadezinha da Calábria italiana, as pessoas batiam nos bronzes até
que a lua descesse do céu para manifestar-se entre os homens. Esta fantasia era absolutamente
mágico-supersti-ciosa, mas nos faz compreender como o mitologema da IMA-Anima desperta
novos temores de outra ordem. Os romanos, gente prática e dotada de bom senso, eram
alheios a práticas misteriosas e feitiços arcaicos nos quais não sentiam a "presença" de
demónios com a mesma intensidade que outras populações. Eram todavia muito
supersticiosos. Pode-se dizer que exatamente em Roma se abre aquela incrível história de
Bruxaria e de Bruxas, onde a mulher sofrerá — até a culminante carnificina imposta pela
Igreja — toda a violência da mais devastadora repressão sexual que o homem já realizou.
Svetonio, na Vite, nos mostra como as superstições dominam a história dos homens.
Mesmo nas obras de Plínio, o Velho, e Plínio, o Jovem, temos evidentes cenas de magia. E
são dois célebres magos da época, Simão Mago e sua mulher Selene, que inauguram as
práticas ocultas concentradas sobre o demoníaco, a sexualidade, a mulher e o exorcismo.
Apolônio de Tiana será depois o mago dos prodígios indescritíveis.97
A superstição implica algo que não é visível e não é percebido subjetivamente como
endógeno. Pode-se dizer que os romanos evitavam as personificações do divino e por isto
quase não tinham imagens de culto. As figuras femininas não eram exceção a esta orientação;
o romano nutria uma certa aversão pelo pensar através de imagens, ao contrário do que fazia o
grego. Disso deriva um certo desprezo pela mitologia no domínio do sagrado, ao menos nos
primórdios de Roma. Os romanos também não conheciam os deuses como abstra-ções
filosóficas, como conceitos teológicos. O pensamento não deixava lugar para tais coisas: o
divino não possuía cidadania em sentido filosófico-especulativo; antes de mais nada, o divino
era ação.9í Antes do deus, era mais vivo o númen, isto é, se sentia menos a "pessoa" e mais o
"poder".
O culto, em consequência, torna-se puro rito, onde se realizava o evocar e o nomear
numa estreita visão imanente. A relação entre os deuses e o Estado era muito objetiva. Claro
que criava amplo espaço para a superstição e a magia, porém esta era muito perseguida pela
lei romana. Mais domínio consciente, mas o que fugia ao
97. Filostrato, op. cit.
98. Introduzione alia Magia, org. pelo Gruppo di Ur., Mediterranee, Roma, 1971.
105racional se tornava, de imediato, incontrolável manifestação supersticiosa.
Por isso, na tradição romana, como já dissemos, não se encontram modificações e a
relação com a figura feminina vai orientar-se, no plano da sombra, em direção à bruxaria.
Ovídio fala de filtros mágicos; mas é Horácio, em particular, no V e XVI epodos, que se
refere a uma famosa bruxa, Canídia, e reencontramos, inteiramente, a imagem demoníaca
semelhante a Górgona. Assim, no XVII epodo, fala a bruxa:
E então eu te verei a cavalo sobre os ombros odiosos e todo mundo se inclinará ao
meu poder extraordinário. Talvez eu, que posso animar as imagens de cera, como tu mesmo
observastes na tua curiosidade, arrancar do céu, com meus cantos, a lua, ressuscitar os mortos
reduzidos à cinza e preparar filtros para despertar a sensualidade..."
No V epodo é mencionado o aspecto terrível da bruxa:
presa aos cabelos minúsculas víboras e desgrenhada a cabeça, ordena. . .
Firme em seu "viril" inflacionado, o romano deixa aberta a passagem para a
imaginação perversa que faz das mulheres, com frequência, a "bruxa". Sobre a mulher romana
como sobre a mulher que virá depois do advento da Igreja romana, se projetam ainda,
incansavelmente, as sombras de Hécate, de Medeia e Diana. Exata-mente Medeia, sacerdotisa
de Hécate, a trágica amante de Jasão que punirá, vingativa, o amado, matando-lhe os filhos,
ela, que na tragédia de Eurípedes será constrangida a dizer:
De todos os seres do mundo que têm alma e espírito, nós mulheres somos as criaturas
mais infelizes. Devemos antes de tudo, com dispêndio de dinheiro, comprar o marido dando
um patrão a nossa pessoa. . . 10°
E depois de preparar a atroz vingança para a rival e os filhos, Medeia é enfim um
"monstro", totalmente possuída pelo demónio que a faz invocar:
99. Orazio, Opere, gli Epodi, U.T.E.T., Torino, 1977, p. 85.
100. Euripídi, Medea, in // teatro greco, le tragedie, op. cit.
106
Peia deusa senhora que venero sobre todos os deuses, que escolhi para minha
associada, que tem sede no mais íntimo de meu lar, pela deusa Hécate, digo e juro: nenhum
destes poderá alegrar-se em contristar meu coração; enlutada e amarga farei suas núpcias. .
.lw
para chegar, enfim, ignorante da sombra, a revelar a inferioridade feminina que é,
ainda e sempre, consequência da sujeição na qual a impeliu o homem:
Pois nós, mulheres, mesmo se somos, por nossa natureza, capazes de bem fazer,
somos, entretanto, de cada mal fazer o artífice mais experimentado.
O próprio Ovídio exalta a noite escura como momento conveniente para todas as
empresas das bruxas e dos fantasmas femininos:
Oh, noite, tão fiel aos meus arcanos
e vós áureas estrelas
que ao fogo diurno sucedei
junto à lua!
Em Horácio, a Noite se une naturalmente a Diana que se revela maga mais que
amazona; e a invocação serve a Canídia para esconjurar os poderes lunares:
Oh, das minhas empresas
não infiéis testemunhas
Noite e Diana, vós que governais
em silêncio
nas horas dos mistérios!
Agora, agora, ajudai-me, agora
aos inimigos dirigi a raiva
e a vontade vossa! m
Todavia, malgrado os cultos terem se difundido amplamente em Roma — como
exemplo o de Prosérpina, do qual sabemos, por Verrone Lívio, que em 249 a.C, se
celebravam os Ludi Tarentini —,
!01. Eutipidi, op. cit. 102. Orazio, op. cit., v.
107foram perseguidas todas as manifestações mágicas e de bruxaria, seguramente por
razões de Estado. Mas isso, sem dúvida, não liberava o homem do profundo problema da
remoção.
A Medeia de Eurípedes representa a mulher que vive inteiramente a tensão em relação
à própria liberação do jugo patriarcal e das leis impostas pelo homem. Medeia, como Lilith,
primeiro triunfa e depois entra em contenda com o homem que a rejeita e a exclui. Assim,
como veremos mais adiante, quando as bruxas, às centenas de milhares, iam para a morte em
fogueiras acesas pela religião, sustentada e imposta pelos machos, operava ainda a mesma
ânsia, o mesmo impulso vital para libertar-se da mesma sujeição ao homem. Os
comportamentos das mulheres romanas, os recursos e as expressões de seu riquíssimo
psiquismo e mundo imaginai não podiam aparecer aos sacerdotes da história externa,
especialmente em Roma, totalmente manifestos nas ações, no direito e na arte formal, senão
como coisas obscuras, misteriosas, com frequência incompreensíveis, noturnas, lunares,
vibráteis, capazes de suscitar temores irracionais e, em consequência, superstições. Mas não
se compreendia — e não se compreenderá nem mesmo mais tarde no cristianismo medieval
— que se tratava somente do "mistério" ligado intimamente ao mistério da feminilidade.
Porque a feminilidade conhece de dentro; quase nunca a partir de fora, pois traz em si, no
próprio ventre — em sentido estrito e metafórico — a mais profunda experiência vital, e
permanece numa perene, indissolúvel união com sua criatura. Como escreve Vautrier;
A ciência da mulher não é a do macho, seu corpo conhece outras artes. Sua mente é
prenhe de outras dimensões. As descobertas que se devem às mulheres — a história o
confirma até onde se pode remontar — são essencialmente diversas daquelas dos homens,
mais próximas da natureza, que as dos machos, ten-dencialmente levadas a exaurir-se na
aplicação de técnicas que somente modificam as formas.103
O perigoso, para o homem, aquele perigo psicológico vivido como ardil e invasão e já
encontrado na imagem jâmbica de Horácio: a mulher que pode induzir o homem à própria
vontade, que lhe está por cima, a cavalo. Uma insustentável imposição para o macho. É ainda,
repetitiva e forçada, a rejeição agressiva de Lilith. Em conse-
103. Vautrier, op. cit. 108
niiência a mulher opera na imaginação a mais cruel desforra Combatida com a
exasperada sublimação religiosa e com a desdenhosa razão do homem, a Anima enquanto
"mulher" e totalidade de energia vital e por isso, esfera potentemente instintiva e criativa volta
a representar o conto, a protestar, a exigir resposta a sua dolorosa pergunta: "Por que me dizes
não? Não somos iguais? Nao sou eu
igual a ti?"
E assim chegaram as bruxas.
109LILITH NA IDADE MÉDIA: A BRUXA
No segundo século depois do ano Mil, um espectro surge e vagueia pela Europa: a
bruxa.
O incubo produzido pela psique se desenvolve e se faz mais constante, acabando por
exteriorizar-se: a hostilidade para com os conflitos sexuais, pertinazmente ignorados, vem ao
encontro da ciência e a altera. A partir deste momento a aversão pelos instintos será projetada
sobre "certas" mulheres, segundo específicos enquadramentos sócio-culturais e sócio-
econômicos. Elas se tornarão bruxas, personificações obsessivas dos fantasmas e das
superstições coercitivas, que no início da Idade Média se manifestavam no mundo objetivo.
Tem início aquele que foi definido como o romance do imaginário, onde a obsessão
masculina se abandona completamente ao delírio persecutório que logo se torna um rito
sangrento.
Deste modo, a contraposição entre alma e corpo não só será reconfirmada na era cristã,
mas será ampliada a brecha, com o predomínio do macho e a crença na inferioridade da
mulher. No vazio intermediário se ocultam os germes da angústia da idade moderna. Ao
surgir a Idade Média, o homem-Adão, arrastado pelo moto centrífugo do alargamento da
polaridade, tenderá sempre mais para a vida metafísica e a transcendência. A mulher será
rechaçada à condição de "periculosidade".
Nunca antes, como após o ano Mil, o homem lutou contra os componentes erótico-
sexuais que quer reprimir confinando-os ao sabá das manifestações satânicas. Nunca, como
nesta época, a mulher teve que pagar um preço tão trágico pelo ódio masculino à força
instintiva.
111Remetemos o leitor que queira conhecer o aspecto geral do tema para a literatura
sobre as bruxas e a bruxaria.104
Aqui queremos falar da bruxa como uma ulterior — e talvez a mais clamorosa —
personificação de Lilith que o homem jamais realizou.
Da França à Espanha, da Itália à Alemanha e Inglaterra, o espectro da bruxa se agitará
como uma doença, um delírio paranóico persecutório que resolverá a pressão das pulsões
destrutivas com a explosão da caça às bruxas, os processos da Inquisição e as condenações à
fogueira. Lentamente, esta explosão acumulará — sob a guia da Igreja — todas as "provas"
que serviram para repetir a condenação de Lilith e a perseguição de seus símbolos. Tais
"provas" são eloquentes em si e só podemos citar algumas para exemplificar, colhendo-as do
imenso repertório da cultura patriarcal ocidental. Estas "provas" permitiram radicar na
consciência masculina sentimentos tais que estes abriram caminho para aquela horrenda
carnificina física e psíquica que a história recorda assim:
Nunca os seres humanos se atiraram mais cegamente uns contra os outros, nunca o
cristianismo se desacreditou mais frente ao mundo inteiro, como nos processos contra as
bruxas.105
104. Para uma aproximação histórica, psicanalítica e sociológica ao tema das
Bruxas, sugerimos os seguintes textos:
Institoris, H-Sprenger, J., Malleus Maleficarum, trad. it. II martello delle
5/regèerMarsilio, 1978.
Lovandre, C. L., Sourcellerie, Paris, 1930.
Michélet, ]., La Strega, várias edições em italiano; original francês.
Riklin, F., Wunscherfullung und Symbolik im Mârchen, 1906.
Abraham, K., Trauma e mito, in Opere, Boringhieri, Torino, 1976.
Bodin, ]., De Ia Démonomanie des sorcières, Paris, 1953.
Jones, E., Psicoanalisi deWIncubo, Newton Compton, 1978.
Cavendish, R., La Magia Nera, vol. 2, Mediterranee, Roma, 1977.
Butler, M., Ritual Magic, Noonday Press, New York, 1959.
Murray, M., Witch-Cult in Western Europe, Clarendon, Oxford, 1929.
Murray, M., 11 dio delle streghe, Astrolábio, Roma, 1976.
Lea, H. C, Material Totvard a History of Witchraft, N. T., 1957.
Guaccio, F. M., Compendio delia stregoneria, Giordano, Milano.
Briggs, K. M., Pale Hecate's Team, Routledge Kegan, London.
Rodhes, H. T., The Satanic Mass, Citadel Press, New York.
Chocbod, Louis, Storia delia Magia, Dellavalle, Torino, 1971.
Freud, Sigmund, Opere, Boringhieri, Torino, 1979; trad. bras. Obras, RJ,
Imago, 1." ed., 1977.
Eymerici, N., Directorium inquisitorum, Roma, 1572.
105. Jones, E., op. cit.
112
Parte-se da convicção de que a mulher é biblicamente condenada nas considerações,
pois diz o Eclesiaste:
Não há pior veneno do que o das serpentes, não há pior ira do que a da mulher. Seria
mais agradável estar com um leão ou com um dragão do que morar com uma mulher má.
Sêneca recorda que a mulher ama ou odeia, excluindo outras eventualidades e, de
qualquer modo, diz, quando uma mulher pensa, pensa somente coisas malvadas. Também
para Cícero a mulher tem tendência a cometer todos os delitos em virtude de sua avidez.
Terên-cio (Hecyra, III, 1) proclama: "As mulheres são fracas de intelecto, quase como
crianças".
Não há também uma mínima confiança nas manifestações emotivas da mulher; ela não
recebe crédito nem de Catão, que afirma: "Quando chora, uma mulher trama ardis com suas
lágrimas. Quando chora, uma mulher está tramando um modo de enganar o homem".
É sempre na Bíblia (Provérbios, VII, 25-27) que ressoa a condenação mais profunda, a
que dará um pano de fundo para a caça antibruxas medieval:
Creio que a mulher é mais amarga que a morte porque é uma armadilha, seu coração
uma cilada, suas mãos cadeias; quem ama a Deus foge dela, quem é pecador é capturado por
ela.
No famoso Formicarius de Johan Nider, de 1430, é descrita pela primeira vez a
bruxaria, e somente em 1489 virá à luz aquele incrível texto de psicopatologia sexual
masculina escrito por Heinrich Institoris e Jakob Sprenger, intitulado Malleus Maleficarum m
onde se pode colher esta informação:
Porque, sem dúvida, se não existissem as iniquidades das mulheres, mesmo não
falando de bruxaria, atualmente o mundo permaneceria livre de inumeráveis perigos.
Mesmo não considerando as bruxas (e silenciando os malefícios), a mulher é um
flagelo para os inquisidores! Retorna-se ao pecado original, a Eva, para preparar o processo
contra a sensualidade feminina e, no Malleus Maleficarum, sustenta-se que o pecado,
106. Do Malleus Maleficarum existe hoje a trad. italiana cit. acima.
113que começou com a mulher, mata a alma. . . Por isto, a mulher é "um inimigo
brando e oculto" cuja concupiscência carnal é insaciável.
No famigerado texto se diz ainda que existem coisas insaciáveis na mulher, mas uma é
a pior: "a boca da vulva, através da qual elas se agitam com os diabos para satisfazer sua
lascívia. . ."
A armadilha psicológica dispara, como dissemos, graças também às perseguições
religiosas, porque por detrás da bruxaria havia o álibi da heresia.
A equação bruxaria e feminino é elaborada por G. Visconti, em 1460, em seu
Laminarium swe striarum opusculus, enquanto Vigna-ti, jurista, relaciona "excessos sexuais"
e adoração do diabo. Depois se passa a definir as bruxas como prostitutas do diabo. Conclui-
se, a propósito da perfídia, que na época ela é encontrada muito mais entre mulheres do que
entre homens e o Malleus Maleficarum, procurando a causa, pode acrescentar que assim como
as mulheres são privadas de todas as forças
tanto da alma quanto do corpo, não é de espantar que façam muitas bruxarias contra os
homens que elas querem imitar. E a razão natural de tudo isto é que a mulher é mais carnal
que o homem, como resultado de muitas imundícies carnais.107
A atitude psicológica dos inquisidores é inequivocamente condicionada pela obsessão
sexual. Logo, bruxa, sexo, heresia se entrelaçam para merecer uma só condenação:
Como consequência dizemos que a experiência ensina que para satisfazer essas
imundícies carnais tanto sobre si mesma quanto sobre pessoas poderosas no mundo. . .
operam inumeráveis bruxarias arrastando os espíritos para um amor de perdição do qual não
adianta nada tentar se dissuadir. , . Por isto, diariamente ameaçam a fé de destruição e de
perigo intolerável, dado que elas sabem transformar a tal ponto o ânimo de qualquer um que
este não permite que contra as bruxas se faça alguma coisa, nem de sua parte, nem de
outros.108
Vejamos então o que é essa criatura tida como tão absurda a ponto de atrair o homem
para amores de perdição.
O mitologema da bruxa medieval deve ser relacionado, sem dúvida, a Hécate e a
Artêmis-Diana. Dele se têm as origens psicológicas e simbólicas enquanto emanação funesta
da Lua. Nos primeiros séculos cristãos, Diana ainda sobreviverá como bruxa, se é verdade que
nesse mesmo século Cesario de Aries expulsou, do corpo de uma jovem atormentada, um
demónio que os camponeses chamavam Diana e, em 1318, como se sabe, o Papa João XXII
discutiu certas práticas de magia onde operavam demónios femininos chamados Dianaem
H. C. Lea refere-se a cavalgadas noturnas de bruxas guiadas pela deusa Diana, a quem
obedeciam cegamente.110
Segundo Burckhardt, a Diana latina era chamada também Ero-díade, a mortal
adversária de João Batista. Em 1115 João de Sa-lisbury já falava dela, afirmando que Diana
era considerada Rainha da Noite e convocava, para reuniões noturnas, homens e mulheres
para consumarem orgias.
No Canon Episcopi, entretanto, houve uma primeira tentativa de parar a onda
alucinatória a respeito das bruxas com a afirmação que tudo isto devia ser considerado fruto
da sugestão e da superstição.
A bruxa como mulher velha, sozinha, ou mulher feia de aspecto feroz, que chega no
meio da noite com seu cortejo infernal de diabos, cães, vampiros, anões, mulheres e se
apresenta com a tradicional gargalhada sardónica, pode derivar de Hécate ou de uma Empusa,
Górgona: neste caso, os símbolos têm o mesmo significado. Por sua vez, a bruxa como
mulher jovem, belíssima, atraente, a verdadeira "sereia" ou "víbora" da fantasia moderna,
aquela que podia seduzir com feitiços tidos como fogo do demónio assim como ser a alegria
vital dos sentidos, pode ser reconduzida à Circe homérica, enquanto beleza encantadora que
oferece aspectos enganadores. Qualquer que fosse a encarnação do demónio feminino, a
bruxa e suas seitas eram perseguidas como heresia religiosa, mas hoje dificilmente se pode
continuar a ocultar a verdadeira motivação dessas perseguições: isto é, o ódio pela mulher que
se manifestou como luta contra o pecado, por parte da Igreja celibatária que se identificava -
— como ecclesia mater — com o arquétipo da Mãe protetora e salvadora.
A bruxa vive numa dimensão oculta na sociedade dos séculos XIII e XIV. Ninguém as
conhece ou as vê, criaturas fantásticas, mas muitos estão prontos a jurar que conhecem seus
trabalhos e sua fu-
107. Ibidem, p. 90,
108. Ibidem.
109. Cavendish, R., op. cit.
110. Lea, H. C, op. cit., p. 178.
14
115nesta presença. Somente em plena Inquisição a bruxa se tornará — corpo e alma
— uma criatura do sexo feminino, pertencente preponderantemente às classes sociais
humildes, e consagrada ao demónio. Havia muitas bruxas; muitíssimas, segundo a tradição.
Tantas quantas os diabos que infestam o mundo, segundo as paranóicas estimativas dos beatos
da época. Sem dúvida nenhuma, em certa fase, voltou-se a conceber a bruxaria como
manifestação invisível de poderes ocultos que atiravam sobre pessoas, coisas, animais,
habitações, campos, etc. a sua maldição.
As bruxas mantinham três tipos de relações: uma com suas semelhantes, embora cada
bruxa pudesse livremente mimetizar-se e circular entre as pessoas comuns, que não tinham
indícios de nada. Uma outra relação, a mais significativa, era com o Diabo e implicava o
famoso "Pacto" que descreveremos mais adiante. Enfim, estavam em relação indireta com o
próprio Deus, tanto que os diligentes inquisidores colocavam questões deste tipo: "A
permissão divina contribui para a bruxaria?" E para estas interrogações se procuravam
respostas muito católicas como esta:
Todo mal que é praticado seja com culpa, seja com punição, seja com dano, Deus o
permite justamente em seguida a duas promessas feitas pela queda dos anjos e pela queda dos
pro-
111
genitores.
Uma obra-prima de estratégia psicológica que atinge dois alvos de um só golpe: as
bruxas eram necessárias como demonstração do pecado e da queda, da existência do Mal. E,
enquanto criaturas do Mal, era necessário destruí-las para afirmar o Bem, isto é, a santa
religião! Por isso as bruxas gozavam de uma espécie de não impedimento de Deus e da Igreja,
pois demonstravam a presença do Diabo e a necessidade de combatê-lo mediante processos,
confissões, torturas e rogos expiatórios e catárticos.
Elas operavam o terrível maleficum, que era praticamente um ato violento e enganador
de magia negra, onde se condensavam — graças à fértil fantasia popular da baixa Idade
Média — todas as manifestações terrificantes, transformativas, de sortilégio e destruição, até
mesmo as mais arcaicas.
A mulher bruxa exercia malefícios inumeráveis, que iam de banais incómodos
provocados no corpo ou no trabalho cotidiano
111. // martello delle Streghe, op. cit. 116
fl
concreto, até os males mais graves, aí compreendida a morte, em geral por acidente.
Frequentíssimos eram os malefícios operados na esfera sexual em relação à
impotência masculina e à frigidez da mulher.
O psicanalista E. Jones foi, sem dúvida, quem escreveu, em Psicanálise do incubo, o
capítulo mais convincente e penetrante sobre a bruxa, estudando-a, sob a ótica freudiana,
como símbolo de profundos conflitos sexuais.112
Este autor é de opinião que o terror coletivo do maleficium era o "basilar medo
humano de incapacidade ou insucesso no plano sexual".
Já mencionamos que as bruxas se ofereciam sexualmente ao demónio ou aos possessos
e davam à luz diabos. Além disso, tinham poder sobre o sexo. Eis algumas questões dos
inquisidores:
— Podem as bruxas impedir a potência geradora ou o ato sexual?
— Podem as bruxas operar tais prodígios de ilusão através dos quais parece que o
membro viril fica completamente destacado do corpo?
— Podem as bruxas agir sobre os homens de modo a transformá-los em bestas com a
arte dos prodígios?
Em seguida são indicados os remédios contra as bruxarias e aí também se fala de
impotência e frigidez.
Hansen afirma que a bruxaria considerava a relação sexual entre homem e mulher de
modo proeminente,113 entre todos os outros malefícios. O conceito é claro: as bruxas eram
figuras castrantes e o medo do homem, de que elas lhe arrancasse o pênis, era uma fantasia de
impotência ou castração. O diabo, através da bruxa, impedia a penetração na vagina, ou, se
isto ocorria, imediatamente se dava a depleção do membro viril. Do mesmo modo, o
enamorado podia improvisadamente enxergar a amada como abominável ou a ejaculação era
impedida, etc. Nas páginas do Malleus Male ficar um sentimos vibrar todas as angústias
possíveis, como se o homem devesse verdadeiramente combater os terríveis fantasmas,
sofrendo abertamente o terror do insucesso no coito:
112. Jones, E., op. cit.
113. Hansen, J., Zauberwabn, lnquisition und Hexenprozess im Mittelalter, Berlin,
1900.
117O diabo (...) pode reprimir a ereção do membro no ato da fecundação (...) pode
impedir o envio dos espíritos vitais (o esperma) a cada membro (...) por ex., obstruindo os
condutores seminais a fim de que o sémen não suba. . . nem remonte ou transborde ou seja
ejaculado. . . Os homens, neste ato, sofrem mais bruxarias que as mulheres... às vezes o
membro ereto pode esvaziar (...) Quando a vara não se move de nenhum modo, e nunca houve
uma relação, é sinal de frigidez. Ao contrário, quando se move e tem ereção mas não pode
concluir o ato, é sinal de bruxaria. . . Se faz bruxaria quando acontece que a mulher não
concebe ou aborta. . . Pergunta-se se as bruxas podem realmente levar embora o membro viril.
. . E deduz-se com argumentos a fortiori que o fazem verdadeira e realmente, . .114
O remédio, diz o Malleus, era a "purificação, o estado de graça de Deus, e, ao menos,
viver a sexualidade só para fins procriativos e dentro do matrimónio". É ainda a eleição da
Lua branca e o repúdio da Lua Negra. Honrando o mito bíblico, a Lilith medieval andava à
caça até de recém-nascidos e crianças ainda não batizadas, para arrastá-las para longe de casa,
matá-las e até devorá-las; tudo acontecia como nos rituais das Lâmias. Os sortilégios podiam
ter efeito à distância e, se uma pessoa ficava doente, havia sempre a suspeita de feitiçaria. (Os
campos e as colheitas eram também atingidos por malefícios).
A crença de que as bruxas provocavam a doença e a morte era, em voz baixa,
ampliada para as mulheres em geral, pois estas, embora aceitas e desfrutadas, eram-no com a
maior desconfiança, por causa dos sentidos e de "sua imundície". Não é por acaso que se
recordava a passagem bíblica: "Sobre aqueles que são escravos da sensualidade tem poder o
diabo".
Era ainda e sempre a luta contra as paixões da alma, que Fílon, de Alexandria,
comparava às bestas selvagens.
As bruxas trabalhavam com venenos, materiais ou incorpóreos, que, uma vez tendo
penetrado o corpo, produziam danos irreversíveis. Nas fórmulas de magia negra pode-se
encontrar os filtros e as poções usadas. Não raro, uma bruxa usava loções diabólicas à base de
terebentina, leite de cabra, falo de lobo, hera, vulva de baleia, rosas pulverizadas, amoníaco.
114. II martello delle Streghe, op. ctt 118
Ou então fórmulas deste tipo: extratos de ópio, betei, beladona, cânhamo indiano,
cantárida, hiociamina. Eram filtros capazes de produzir graves alterações psíquicas e
alucinatórias.
A bruxa, como diabo incubo ou súcubo, se arremessava durante a noite junto a alguém
que dormia e o assaltava com a técnica que conhecemos. Também nesse caso há um nexo
entre a visita da bruxa e a polução noturna resultante de sonhos eróticos ou pesadelos
ameaçadores. R. Burton, em 1826, observava
os homens adormecidos que se agitavam perturbados pelo incubo ou cavalgados por
uma bruxa. Jaziam deitados de costas, sonhavam que uma velha se estendia sobre eles a
cavalo caindo-lhes em cima com o peso do corpo todo, de maneira que eram sufocados por
falta de ar.115
Os homens podiam ser induzidos ao amor através de um filtro ou dos mais variados
amuletos.
As bruxas, graças a sua capacidade de voar, podiam conduzir um homem a sua amada
a cavalo numa vassoura ou numa cabra. Seligman diz que a bruxa curava os homens de
impotência dormindo uma noite no leito matrimonial. Mas, se aplicava o maleficium, era
implacável: com um pesadelo era capaz de tornar estéril uma mulher ou impotente um homem
perverso.
A característica que distinguia a bruxa era a sua relação com o Diabo. A acusação
principal nos processos por bruxaria era o "Pacto com o Diabo", que se efetuava mediante um
complexo cerimonial. Muitos autores inclinam-se para a tese de que o núcleo central do liame
com o Diabo era a relação sexual. A acusação já fora formulada por Nedar e pelo Malleus
Maleficarum, para quem a mulher-bruxa era portadora de uma sensualidade diabólica.
O pacto com o Diabo (que é o Satanás do cristianismo, e não deve ser confundido com
o demónio) representa o vínculo entre a instintividade feminina e a masculina em níveis
conscientemente censurados. O Diabo é, num certo sentido, a sombra de Deus e para o
homem é sua esfera instintiva mais obscura, aquela que nunca se decidiu a viver. De fato, o
Diabo será sempre sinónimo de tentação, luxúria e mal. Silberer define bem o Diabo em
termos freudianos:
115. Burton, R., The Anatomy of Melancholy, London, 1826.
119O Diabo e as sinistras figuras demoníacas dos mitos, no plano psicológico são
símbolos funcionais, personificações dos elementos reprimidos e não sublimados da vida
instintiva.116
Consideramos interessante, para nosso tema em geral, e para compreender o nexo
entre Lilith e o pacto com o Diabo, a conclusão desenvolvida por Jones que assevera que a
crença no Diabo representa, em grande parte, uma exteriorização de duas séries de desejos
que aparentemente se anulam e são derivados, indubitavelmente, do complexo edipiano:
primeiro, o desejo de imitar alguns aspectos da figura paterna; segundo, o desejo de desafiar o
pai. Se alteram então competição e hostilidade.117 O Diabo, senhor e dono das bruxas, seu
verdadeiro parceiro sexual, seria neste caso o animus de Lilith.
Examinemos o pacto com o Diabo, que hoje seria um pouco como o pacto que um
cliente inibido e escrupuloso firma com a prostituta, visto a partir de uma moral carola! Quase
todas as fontes concordam sobre o conteúdo sexual do pacto.118 O Diabo aparecia à mulher e
o encontro era imediatamente um conúbio. Dizem as testemunhas:
O Diabo foi ao seu encontro em forma de homem negro e prometeu que lhe daria tanto
que ele não teria mais nada a desejar se ela se tornasse sua serva. E ela se alegrou em
consentir.
Uma outra bruxa confessa aos inquisidores que:
Satã exige que sejas sua serva, ele que aceitaste com felicidade. . . e ainda:
116. Silberer, H., Phantasie und Mythos, "Psychoanalystiches Jahrbuch" Wien, 1910,
vol. 2.°.
117. Jones, E., op. cit.
118. A união sexual com o diabo como principal acusação contra as bruxas, com a
mais extensa descrição dos ritos sexuais, é tratada por uma vastíssima literatura. Uma possível
integração do tema Bruxaria está nas seguintes fontes: Wuttke, A., Der deutsche
Volksaberglaube der Gegenwart, 1900; Soldan, W. G., Geschicbte der Hexenprozess,
Munch, 1880; Ennemoser, J., Geschichte der Magie, Berlin, 1844; Roskoff, G., Geschicbte
des Temples, 1869; De Lancre, P., Tableau de Vinconstance des anges et des démons, Paris;
Freimark, H., Occultismus und Sexualitãt, Frankfurt s.d.; Haag, H., La credenza nel Diavolo,
Mondadori, 1976.
120
Satã te pede para ser sua serva e tu aceitaste com alegria e do mesmo modo te pede
para renunciar ao batismo e tu aceitas com alegria. . .119
e a assinatura com sangue confirma uma dependência absoluta. Sangue menstrual, diz-
se, (ou então se fazia uma incisão na pele do braço. Depois eram trocados os nomes; assim,
uma bruxa podia se chamar "Joana que dança bem", ou então "Bárbara dos flancos quentes", e
assim por diante. Sobre o corpo da mulher, o Diabo deixava sua marca com os dentes ou
então com as garras: um sinal azul, uma cruz, um arranhão horrendo. Murray transcreve a ata
de um processo:
Desnudaram a velha e atrás do ombro direito encontraram alguma coisa semelhante a
uma mama de ovelha, com dois mamilos para sugar, como duas grandes verrugas; um sob a
axila e outro a mais ou menos um palmo do ombro. Foi-lhe perguntado há quanto tempo tinha
tais mamilos. . . Depois examinaram A.G. e sobre seu ventre encontraram um furo do
tamanho de dois pences, fresco e ensanguentado como se uma grande verruga houvesse sido
dali cortada.120
Estes eram indubitavelmente os sinais de bruxaria diabólica. A fantasia dos juizes se
fartava: em geral se encontravam mamilos em muitas e várias partes do corpo: também
verrugas azuladas. Acontecia que estes mamilos eram encontrados em zonas nitidamente
erógenas: em trinta e nove casos os mamilos estavam assim distribuídos: trinta nos genitais,
três no ânus, dois nas costas, dois no abdome, um na nádega, um na axila.
A bruxa consagrava, portanto, corpo e alma ao Diabo em troca de poderes que recebia
na eterna luta contra Deus.
A partir do momento em que a mulher era tomada pelo Diabo, podia cometer qualquer
"crime" contra a religião, a moral, o sexo, o matrimónio e o homem.
Os rituais eram truculentos: comer crianças, promiscuidade obscena com animais —
predominavam os sapos, gatos e corujas — danças macabras e orgias sexuais que, mais tarde,
só Sade conseguirá imaginar.
119. Murray, M., Le Streghe neWEuropa Occidentale, Roma, 1974.
120. Murray, op. cit.
121Mas a característica mais impressionante das bruxas é sua possibilidade de
deslocar-se de um lugar para outro com grande facilidade e por qualquer meio. Ela pode voar
no ar, superando casas, campos, rios, colinas; pode cavalgar ou caminhar apressada e
taciturna.
Ninguém a reconhece, mas todos a evitam. Onde pode ir uma bruxa? Somente ao
encontro do Diabo.
Assim, a bruxa vai ao Sabá, a grandiosa epifania das forças vitais liberadas: o Sabá é
local e festa que repete o arcaico evento consumado nos desertos do Mar Vermelho. Ali,
Lilith, negada, revela com raiva e furor todo o sexual ferino. No Sabá, a bruxa renova seu
protesto.
O Sabá: a Noite das bruxas, a Noite de Valpurga, o Diabólico Congresso, o Diabólico
Festim, a Orgia das bruxas. De quantas maneiras foi definido o Sabá?
A bruxa vive assim o evento mágico: uma voz mensageira anuncia-lhe o convite.
Quem lhe fala? É o próprio Diabo — conta a bruxa Sampson:
entre as cinco e seis horas da tarde, enquanto caminhava sozinha pelos campos para ir
para casa, encontrei o Diabo em forma humana que ordenou que estivesse à noite na igreja de
North-Berwich.121
Ou então é uma coruja, um asno, um porco ou uma cabra que lhes indicam o lugar do
Sabá. É a festa que reevoca o dia sabático hebraico, mas aqui tudo é vivido com ódio a Adão e
ao Deus punitivo.
A bruxa se prepara para a viagem e é Lilith, é a Rainha da Noite, é Erodíade, é Diana,
é Hécate, ou então é Mormo, Gelo, ou Empusa; mas é também "Janet que dança bem", ou
"Mary, a torta", ou "Cristiane, a branca"; seja como for, é sempre a mulher que se projeta
inteira em direção ao desenfreamento instintual. Antes de tudo se esparge um unguento
particular no corpo, especialmente sobre o seio, sobre o ventre, coxas e sobre as nádegas. É
uma pomada mágica; há quem afirme que é preparada com gordura de crianças cozidas em
água, aipo, acônito, folhas de choupo e fuligem. Mas a receita varia: pode ser ácaro,
pentafilone, sangue de passarinho, gor-
121. De Murray, parafraseado. 122
dura de porco, solanum sonífero e óleo. O unguento é esfregado com muita força até
avermelhar e fazer queimar as partes do corpo; dilata também os poros para que a pele se
torne lisa e pronta para as carícias eróticas. Outros dizem que o unguento da bruxa é
esverdeado, tem odor acre: é o óleo e o espírito com o qual são untados a fronte e cada um dos
pulsos.
Enquanto a mulher faz isto, pronuncia inomináveis palavras obscenas ou blasfémias.
A excitação sexual tem início com estes preparativos. O unguento satânico mais
conhecido é composto de gordura humana, ou de porco, mais haxixe, ao qual é acrescentado
um punhadinho de flores de cânfora, de papoula, sementes de girassol esmagadas e raízes de
heléboro. O todo é escaldado e depois levado pela bruxa, que o esfrega dentro das orelhas, no
pescoço, ao longo da carótida, nas axilas e no tórax; muitas esfregam os seios embaixo dos
mamilos, depois as barrigas das pernas, as plantas dos pés, o póplite e o côncavo dos
cotovelos.
Piobb afirma que o unguento tem a propriedade de fazer assistir ao Sabá.122 Também
há quem afirme que se tratava de uma pomada alucinatória e o haxixe, segundo Paracelso, era
bem aceito pela bruxa.
Em seguida, a bruxa se encontrava fora da própria casa e de seu leito. É noite, quando
se encaminha para o Sabá. Ela pode ser uma esposa que aparentemente dorme — ao lado do
incauto marido. Pode ser uma virgem jovem, ou uma menina, que também dorme, talvez
inquieta. Ou uma anciã que acorda de improviso. Mas todas, se dirá, embora ficando com o
corpo em casa e no leito, vão ao Sabá com a alma e com sua luxúria. Reúnem-se dez, vinte,
até cem bruxas. Voam: cavalgam um cabo de vassoura, este também esfregado com o
unguento satânico. Sobre o bastão podia sentar-se o homem que acompanhava a mulher. Iam
abraçados uns aos outros. Jones menciona que o cabo da vassoura como cavalgadura era às
vezes fincado no traseiro de uma cabra. Outro meio para voar é o cavalo negro ou branco.
Podia-se observá-lo à noite.
A bruxa monta um símbolo claramente sexual e lascivo. O unguento, o bastão, o
cavalo, o vôo, levam-nos a pensar no frenesi sexual: a ereção, o esfregar os genitais, as
posições animais do coito,
122. Piobb, P., Formulário di Alta Magia, Ed. Atanor, Roma, 1971, trad. bras.
Formulário de Alta Magia, RJ, Francisco Alves.
123o voar como símbolo do êxtase do orgasmo, de poluções ou de masturbação.
Num cânone do Concílio de Ancira, do século IX, está escrito:
Certas mulheres perversas, tornadas escravas de Satã e seduzidas por imagens e
fantasias de demónio, acreditam e afirmam cavalgar nas horas noturnas com Diana, a Deusa
dos pagãos e com Erodíade e uma inumerável multidão de mulheres, sobre certas bestas.. .m
A bruxa pode voar na garupa de um porco, ou então de um carneiro negro. Algumas
dizem que vão ao Sabá a cavalo num homem subjugado aos seus desejos sexuais. Enfim,
presa por seu instinto, iluminada por uma razão obscura, voa para o encontro. Pode levar
consigo um menino enfeitiçado e transformar-se em animal, se necessário, para camuflar a
própria identidade, exatamente como faz o Diabo, que pode ser homem, bode negro, ovelha,
lobo ou talvez um pássaro estranho, ou um bestial conúbio de homem e bode.
A bruxa bebe várias misturas, talvez vinho, ou poções inebriantes que conferem
beatitude e o poder de Ananda; é a ambrósia e o néctar dos gregos, que Circe oferece aos
homens de Ulisses; é o ordreier dos nibelungos. Na verdade, o Sabá das bruxas talvez fosse o
ritual de reunião dos heréticos perseguidos pela Igreja. A fantasia popular, a auto-sugestao
com evidente fundamento psicótico cole-tivo, como também as manipulações e mistificações
do poder eclesiástico, transformaram fatos e costumes em flagelo paranormal com as
consequências conhecidas.
Ao Sabá acorrem bruxas veteranas e bruxas noviças, levando consigo os adeptos que
receberão do Diabo os poderes infernais.
Onde se realiza o Sabá? Em tantos lugares quantos citam as tradições locais.
Habitualmente o rito se desenvolve secretamente em igrejas sacrossantas, entre as ruínas de
casas abandonadas, ou então em feitorias ou currais em campo aberto. Várias crónicas se
referem a Sabás consumados em castelos e até cemitérios. Murray cita lugares como grutas e
prados onde eram dispostas pedras em círculos e no espaço interno realizavam-se ritos.
Recordemos as mais célebres Noites de Sabá: as de Vai purga na Alemanha no dia primeiro
de maio, a inglesa, Roodmas, em Candelor, no dia 2 de fevereiro e o primeiro de agosto na
França e na Inglaterra; na vigília
123. Murray, op. cit. 124
de Todos os Santos em vários países. As assembleias são um evento de excepcional
interesse psicológico e podemos tentar descrevê-las confiando na imaginação e nas crónicas
da época.
Abre-se a cena do Sabá. Mefistófeles — diz o poema de Goethe — convida Fausto a
conhecer os mistérios da noite que desce sobre Valpurga. O Diabo, envolto num manto, ri
zombeteiramente:
Não terás necessidade de um cabo de vassoura? Quanto a mim, gostaria de ter o
príncipe dos bodes. Nesta estrada estamos ainda longe da meta.
E os dois cavalgam para acorrer ao Sabá. Aqui Goethe nos recorda os dois grandes
símbolos de nosso tema: a Lua Negra e Lilith. É ainda Mefistófeles que fala, olhando em
torno:
. . .Como o disco espesso da Lua vermelha eleva triste seu clarão alumia tão mal que
se tropeça a cada passo numa árvore, numa pedra. . .
E o panorama noturno que se intui entre calafrios, nesta peregrinação diabólica,
contém todos os elementos de horror da bruxaria:
São corujas,
ainda acordadas? E nas
— longas pedras, ventres intumescidos —
são salamandras?. . .
...e oh,
o exército dos ratos
salpicados
por musgos e por urzes!
[...]
Tudo, tudo gira, ou assim parece:
rochas e árvores onde máscaras
escarnecem e fogos funestos
se multiplicam, tremulam.
Goethe, pela boca de Mefistófeles, em Fausto, talvez melhor do que qualquer outro
texto, oferece o espetáculo da chegada ao Sabá de toda uma multidão endemoniada:
125Os convivas barulhentos se avizinham, ouço-os Fausto: — Como o vento
turbilhona no ar
que pancadas desfere em minha nuca! Mefistófeles: — A névoa obscurece a noite
Escuta como os bosques gritam
Aterrorizados os mochos fogem.
Escuta como se estilhaçam as pilastras
dos palácios sempre verdes.
Gemem os galhos e se quebram.
Que abalo potente e os troncos.
que rangem as raízes
se fendem! Horrenda ruína,
[...]
Escutas vozes lá no alto?
Longe? Próximas? Sim, é um rio
retumbante de cantos mágicos que desliza
por toda a montanha.
E, finalmente, intervêm as bruxas em coro, a potente voz do demoníaco:
Vão juntas as bruxas ao Brocken.
O retolho é seco, verde a aveia.
Lá em cima se amontoa a multidão que se reúne.
O senhor Pinco está no cume.
Ofegantes as bruxas, cheirando a bode,
e entre os cepos e as pedras se vai.
As vozes endemoniadas se alteram no ensurdecedor coro e há uma sucessão de
imagens:
Eis no lombo de uma porca sozinha a velha Baubo!
Guia os outros! Um porco bem robusto, ela em cima: e as bruxas em cortejo! Por qual
caminho chegam?
126
Por Usentein!
Onde dei uma olhada no ninho
da coruja. Ai,
que olhos!
Por que tanta pressa?
Ela me mordeu, veja
que ferida!
A estrada é longa, longa é a estrada
Por que se apertam assim os passantes?
A forca que aguilhoa
Muitas vassouras que arranham:
sufoca a criança, se arrebenta a mãe.
E, ainda todos em coro, bruxas e bruxos:
Vamos na vassoura, vamos no bordão
sobre a forca e sobre o cabrão.
Quem hoje não se levanta está para todo o sempre perdido.
Fausto e Mefistófeles vêem passar a tropa maldita:
Se pisam, se chocam, se remexem, crepitam,
assobiam, giram, passam, tagarelam!
Relâmpagos, fagulhas, fedor, labaredas!
Para as bruxas, o seu elemento!
[...]
Aumenta o tumulto, é um turbilhão:
Acreditas estar empurrando para a frente e és empurrado.
Enfim, eis que aparece, aos olhos de Fausto, aquela que desde sempre é a Rainha da
Noite. Voltando-se para o Diabo, Fausto indica uma figura feminina que atrai sua atenção:
— Mas, quem é aquela?
Mefistófeles, na confusão do Sabá, reconhece a mulher bíblica e responde assim:
— Aquela, é Lilith!
127Até Fausto parece surpreso ao escutar aquele nome, pois cancelou a memória
arcaica do mito. Goethe não colocou por acaso uma dupla indagação:
— Quem?
E Mefistófeles responde de novo:
A primeira mulher de Adão. Acautela-te contra seus belos cabelos, aquele esplendor é
único a vesti-la. Com eles aprisiona um jovem e não o deixa escapar tão cedo.'
E a bela bruxa se apresenta no Sabá. A hora do convite oscila sempre entre onze horas
e meia-noite.
Todos os convidados, na sala, são atraídos por um eminente evento: entra o Diabo;
entra Satanás ou Belzebu como ele gosta de se denominar. Tem o pé bifurcado, como Pã, o
sátiro. Aparece com mais frequência ainda como bode: uma besta horrível, o Grande Buque,
de testa caprina, cornos de carneiro, orelhas de asno. Tem sobre a cabeça uma vela acesa. Os
braços são cabeludos, humanos, assim como o tronco. As coxas e os membros inferiores são
de asno ou carneiro. O Diabo, quando aparece, produz um frémito de prazer e temor: olha as
bruxas, os bruxos; olha o séquito de íncubos e sú-cubos, depois se senta no trono que pode ser
de pedra ou um altar profano: um leito, uma árvore seca. É um ser que incute terror, mas toda
a figura emana força erótica.
Com o olhar chama a si as pessoas. Estas se aproximam, se ajoelham diante dele e
fazem mesuras. O Diabo acena, exigindo mais familiaridade: quer ser beijado. O beijo
diabólico, o beijo obsceno. Escreveu-se muito a respeito, mas é um dado real que o Diabo se
faz beijar nas partes do corpo que mais deseja e sente como mais excitantes. É a expressão da
dedicação máxima para com aquele que pode engravidar psiquicamente a bruxa. Outras vezes
o Diabo aparece no Sabá sob a forma de gato preto; alguns autores sustentam que aparece sob
o disfarce de um porco metade homem.
A bruxa está ali, diante dele, freme seu corpo, untado com a pomada de alcalóides
alucinógenos, excitada.
Há o rito da homenagem, a saudação. Variado e saturado de significados. A bruxa se
ajoelha e beija as garras ou os dentes de seu infernal esposo ou lhe derrama saliva na boca.
Talvez uma bruxa
128
se decida pela fellatio, mas com maior frequência o Diabo oferece o traseiro para que
lhe seja beijado o ânus. Depois a bruxa beija as orelhas frias e o pênis. O Diabo, depois dos
atos de submissão, se recompõe e pede a cada um dos presentes para relatar todos os delitos,
vinganças, males e ritos realizados até aquele momento. Ouve-se um coro de respostas, as
mais exaltadas, que são uma oferta de amor ao Senhor, um sacrifício para receber o apreço do
Diabo.
A bruxa segura na mão uma vela negra; todas as bruxas agora passam em frente a
Satanás e acendem a própria vela na que ele tem acesa entre os chifres ou enfiada entre as
nádegas. Alguém testemunhou que o Diabo fazia reuniões na igreja, todo vestido de negro,
com um chapéu preto na cabeça, pregando do púlpito para as bruxas lá embaixo, formadas em
círculo, com as velas acesas. Mas as chamas são baixas e azuis, semelhantes a fogos-fátuos. O
vento as move, como se movem as bruxas com gestos do corpo ansioso de gozo.
A um certo sinal, todas as bruxas e os bruxos se alinham, em seguida formam um
círculo; depois a roda se move no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Esta é uma
particularidade do rito diabólico: tudo é realizado no sentido contrário ao habitual. Assim,
duas bruxas podem formar um par para dançar, mas se enlaçarão de costas sem poder se
olhar. Tudo é oposto do sentido corrente: o Mal e as Trevas são exaltados. É a prece que
introduz a Missa Negra.
As danças no Sabá se abrem no fim do primeiro dia. Carroceis desenfreados que
recordam os ritos de fertilidade; talvez alguma coisa análoga aos Mistérios de Elêusis ou às
orgias das Bacantes de Zagreo. Dança-se em volta do Diabo ou de uma pedra; as bruxas
gritam e correm perdendo o fôlego até o exaurimento das forças. O Diabo soa um instrumento
ou emite um grito, palavra obscena ou de violência. A dança é uma roda; corpos vestidos,
corpos desnudos, seios brilhando de suor e unguento, bocas estendidas de prazer; as bruxas
atiram-se à exaltação, costas contra costas, gritam saltando:
Har, bar, har, diabo, diabo dança aqui, dança aqui, toca aqui, toca aqui, sabá, sabá, har,
har!124
e, ao mesmo tempo, ao passar, imergem a mão esquerda na bacia de 124. Murray, op.
cit
129água "santa" que é, na verdade, urina do Diabo; fazem um sinal da cruz ao
contrário. O rodopio da dança é sempre mais desenfreado no esplendor das velas e dos corpos
em desalinho. A música vem de vários instrumentos: o berimbau, a flauta, principalmente a
flauta, que é tocada também pelo Diabo.
Finalmente o Diabo se ergue em toda sua estatura, se move lentamente para mostrar o
traseiro que não tem nádegas, mas sim o vulto de uma bela mulher 123, cuja boca é o
esfíncter anal que se dilata porque todos o beijam. O pênis — seguindo a regra demono-lógica
da inversão — está fincado posteriormente sobre o osso sacro. É um órgão terrível de se ver,
nem humano nem propriamente animal; é um sexo que produz dores penosas na bruxa no
momento do coito. A fantasia sempre o descreveu como um falo de inaudita potência.
Do corpo diabólico emana um mau cheiro infernal quase insuportável ao olfato.
O Sabá prossegue na incessante busca de prazer. Começa a paródia obscena de todos
os sentimentos: as cópulas são violências, estupros, abraços lascivos, amplexos contra a
natureza, aberrações. . .
O evento central, o rito absoluto do eros é a Missa Negra. A mais bela bruxa, eleita
rainha do Sabá, é escolhida, desnudada e oferecida aos olhares dos presentes em todo o
esplendor de sua carne. Ela serve de altar; estendida sobre o manto do Diabo, jaz imóvel.
Sobre seu púbis é colocada uma vela negra, sobre o ventre é pousado o cálice, um verdadeiro
ostensório que contém a Hóstia Amaldiçoada. Este sacramento diabólico era preparado sobre
as nádegas de uma bruxa, amassando-se uma mistura repugnante de fezes, sangue menstrual,
urina, saliva e vários refugos: é a confarreatio, o alimento do amor infame. A missa tem quase
o mesmo iter da sagrada.
Os intimados se prostram diante do celebrante, o qual asperge os fiéis com vinho tinto,
ou sangue ou esperma, gritando sanguis eius super nos et filios nostrosl Depois se eleva um
coro de injuriosas blasfémias contra Deus e Cristo.
Às vezes acontece se oferecer uma criança em sacrifício ou então o seu sangue. Os
diabos são invocados: Astaroth, Asmodeo, Belzebu, para acolherem a oferenda e concederem
as graças solicitadas. Sangue é tirado dos braços, nádegas e coxas das bruxas para que o
Diabo o sugue. A bruxa Issobel Gowdie conta:
125. Jones, E., op. cit 130
O Diabo me marcou sobre o ombro, me sugou o sangue do seio, cuspiu-o na mão e
aspergindo minha cabeça disse: Te batizo em meu nome.126
Outras bruxas contam que o diabo lhes entrega ossos afiados para picarem-se numa
parte qualquer do corpo e ele lhes chupar o sangue. Mesmo no cunnilincto praticado pelo
Diabo na mulher, há a mordida na vulva e o sugamento do sangue. Durante a Missa Negra
ocorrem coisas indescritíveis, enquanto as ofertas de sacrifícios continuam. Qualquer um
oferece, degolando, o próprio cão ou o gato.
Este oferece uma galinha, aquele outros animais de corte; uns oferecem os cabelos ou
a indumentária. Cruzam-se as fórmulas mágicas mais obscuras. A palavra beneàicte chama o
Diabo, a palavra malkpeblis o faz desaparecer, certas bruxas gritam Robin, e ele vem;As
transformações se sucedem. São, sem dúvida, efeitos dos alucinógenos: as bruxas se
"transformam" em gatos, lebres, cavalos. Mas isso não ocorre durante a Missa Negra. O rito
termina com orgias sexuais e depois o banquete. O Diabo se une às bruxas sem nenhuma
escolha precisa. A bruxa goza e sofre dramaticamente neste amplexo. Parece que a
experiência mais violenta era o contato com a frieza do Diabo. Frias, geladas, são certas
partes de seu bestial corpo. E — coisa muito sabida e incompreensível — as bruxas dizem que
o esperma é frio.
São muitas as explicações para este fato. Murray aceita em parte a motivação da
alucinação histérica, mas afirma também que durante a orgia sabática e o rito de fertilidade na
Missa Negra, provavelmente eram empregados falos artificiais. De Príapo aos cultos fálicos
greco-romanos, esta prática sempre permaneceu em evidência. Não se deve excluir que a alta
solicitação de prestações sexuais por parte das mulheres nas reuniões obrigasse os homens e o
"chefe" a recorrer — uma vez advinda a fadiga — a falos artificiais e vários objetos
penetrantes, todos substitutivos do pênis, mas com a função de excitar a mulher na vagina.
A fantasia erótica liberada nas reuniões deixa traços e lembranças que os documentos
recordam. E é sempre a descrição do membro viril que chama a atenção: Alexia Dragaea
confessa, em 1589, que seu amante (o Diabo) tinha sempre um membro duro e em ereção, era
como o cabo de um tiçoeiro mas desprovido de testículos. Clara indicação de um pênis
artificial. Uma outra bruxa diz que o membro do Diabo é, ao contrário, fino e adelgaçado
como o de um cão, certamente não como um humano, porém gelado como um objeto.
Outras dizem que o pênis diabólico é túrgido e coberto de escamas ásperas como as de
um peixe. Ou então se conta de um pênis muito longo, grosso, retorcido como uma serpente, a
glande aguçada; este é dentado e penetra a bruxa que sente dores tremendas. Ainda uma outra
bruxa testemunha ter recebido um pênis grosso como um braço. Uma bruxa francesa conta:
Le membre du Diable est long et gros environ Ia moitié d'une aulne de medíocre
grosseur, rouge, obscur, et tortu, fort rude
e come piquant.
128*
128. Murray, op. cit.
* "O membro do Diabo é longo e grosso, aproximadamente como a metade
132
Uma bruxa revela ter acolhido na vagina o pênis de ferro do Diabo; ou então o pênis é
feito de chifre.
Todas as bruxas sujeitam-se ao Diabo quando a Missa Negra e o banquete chegam ao
término. Elas sofrem não só os espasmos orgásticos mas também dores lacerantes de
dilaceração e ferimentos. Deixam-se cravar pelo terrível falo que as tortura e as sacrifica no
ato de suprema submissão. Lilith queima, no espasmo da experiência proibida, a própria dor
de não ser reconhecida pelo Homem. O masculino que é negado é recuperado no delírio
histérico. O eros negado é retomado no sonho, no pesadelo, até no adultério ou nos prazeres
condenados.
O Diabo é o instinto profundo, mas frio, recuperado na neurose que a Inquisição do
positivismo científico chamará histeria, auto-erotismo, perversão.
Assim, as bruxas gritam no Sabá, não só por masoquismo, mas também pela dor de
viver uma sexualidade substitutiva, patológica, ■ que produz frio, ao invés de calor humano.
Depois do Sabá, as mulheres contam: "Apareceu-me um Grande Bode Negro com uma vela
atrás do chifre. Conheceu-me carnalmente e me impôs grande dor". Uma outra bruxa diz que
o coito com o Diabo tinha sido desagradável pela fealdade e deformidade dele e por ter
sofrido uma atroz dor no ventre. Uma outra escapou ao amplexo porque não suportava a
penetração do membro escamoso. As bruxas ainda virgens deixavam atrás de si cruentas
hemorragias de sangue e voltavam para casa torturadas por espasmos. A viúva Bush, de
Barton, diz que o Diabo lhe apareceu e era mais frio e mais pesado que um homem e não
conseguia completar o ato como um homem; também Ianet e Issobel dizem que o Diabo é um
homem volumoso, vermelho e muito frio. Seu pênis é frio como a água da nascente. Enfim, a
Ultima Ceia, que encerrava a orgia. Assim Haag descreve o rito:
A refeição das bruxas que se seguia era uma contrafação da Ultima Ceia. Numa panela
jogavam sapos, víboras, corações de crianças não batizadas, ou pedaços de carne de pessoas
enforcadas e tudo era cozido junto. Eram especialmente preferidas as crianças ainda vivas.
Dos restos da refeição se fabricavam
de uma alna ** de tamanho médio, vermelho, escuro, e torto, muito rude e picante."
** Alna: vara, antiga medida francesa (NT).
133os venenos com os quais as bruxas procuravam fazer mal aos homens. . .I29
O Sabá então se dissolvia a uma ordem expressa do Diabo.
Qual o seu significado? Certamente todo simbólico. É necessário introduzir aqui uma
visão histórica do Sabá, como fizemos com o mitologema de Lilith. O Sabá não era a
manifestação do satanismo, nem a comprovação da perversa inferioridade da mulher-bruxa.
Pode-se condensar um parecer historiográfico, escolhido a título de exemplo, onde, ainda uma
vez, bruxaria e Sabá eram somente cerimónias e assembleias de pessoas heréticas ou mal
vistas pela Igreja oficial. A acusação surgia facilmente, tendo por base a "resistência" popular
espontânea, um substrato libido-sexual e costumes claramente desi-nibidos e
anticonvencionais. Citando Haag:
O problema da historicidade do Sabá das feiticeiras pode ser resolvido de algum
modo. É só no século XVI que o Sabá é atribuído às Bruxas. Sua origem pode ser situada na
França meridional, onde a tradição cabalística se misturava com a magia islâmico-moura e
com a cultura cristã. Algumas notícias vagas sobre usos e costumes dos cátaros levaram à
construção destas ideias, mais que as fantásticas sobre o Sabá das bruxas. Foi sobretudo o
consolamentum, no qual o noviço se ajoelhava frente ao Bispo, beijava um livro e recebia o
beijo dos confrades, que foi interpretado como uma adoração do diabo. O desprezo que os
cátaros tinham pelo matrimónio levava a acreditar que praticavam a homossexualidade entre
si e este fato era julgado de uma impudícia diabólica. Semelhantes acusações eram feitas aos
templários.130
Mas a Lilith da Idade Média, a bruxa, não tinha possibilidade de se fazer escutar. O
total das mulheres queimadas vivas como bruxas ou endemoniadas durante a Inquisição não
será jamais conhecido. A mulher, aquela que devia ser o espelho da alma e do corpo para o
homem, era ainda "amarga como a morte" porque colocava em evidência o nó que o orgulho
masculino não queria desatar. Intolerável, para a Inquisição, era a mulher ter fascínio e desejo
sexual; intolerável a ideia que tivesse — e como se discutia isso! —
129. Haag, Herbert, La credenza nel Diavolo, Mondadori, 1974.
130. Haag, op. cií.
134
uma alma. Razões sociais, demográficas, religiosas ou outras haviam, mas permanece
o fato da Lilith da Idade Média fazer sentir mais forte sua insatisfação e o desamor do
homem.
O resultado final foi — como escreve Jones — um sentimento de medo e de ódio
contra as mulheres. Contra aquelas mulheres que, ou eram dotadas de forte sexualidade ou
então eram elas mesmas transbordantes de ódio porque insatisfeitas, descuidadas e oprimidas
pelo homem patrão.
A bruxa sofria todos os males possíveis: era uma criatura acometida de psiconeurose,
com certeza, e depois de Freud é fácil reconhecer nas manifestações somáticas das mulheres
medievais, que participavam do Sabá, todos os sintomas de histeria de conversão. Assim,
Torquemada e os outros mil inquisidores podiam ver na Bruxa aquilo que Charcot ou Bleuler
viram, no século XIX, durante as aulas de medicina, na paciente histérica: sintomas
simbolizando o coito, e também bulimia, obstinação, anorexia nervosa, vómitos nos quais
apareciam com frequência corpos estranhos como agulhas etc; conversões histéricas, gravidez
histérica, tremores gerais, estupor catatônico, catalepsia, amnésias de todo tipo,
sonambulismo, narco-lepsia, mitomania, taedium vitae, pessimismo, despersonalização, cisão
endopsíquica, dislexia ou disfasia, coprolalia, escolalia, etc.
Todos sintomas que, segundo afirmaram recentemente Babinski e outros, não se
apresentam jamais, se não são criados artificialmente através do dressage de médicos fiéis à
tradição da Salpê-trière. A descrição dos ataques epiléticos com todo o acompanhamento dos
sintomas sucedâneos, tidos pelas monjas de Lonviers, coincide, em cada detalhe, com o relato
dos ataques histéricos que lemos nos modernos textos de medicina. . . '31
A partir da famosa Bula papal de Inocêncio VII, de 1484, e da publicação do Malleus
Malejicarum de Sprenger e Institoris, em 1489, desencadeou-se a caça às bruxas. Foram, na
verdade, três séculos de Lua Negra durante os quais os homens viveram na cegueira mais
absoluta! A estimativa de Vigt fala de nove milhões de mulheres queimadas. Soldan fala de
alguns milhões de vítimas.
Provavelmente só Torquemada mandou para a fogueira 10 2C0 bruxas no espaço de
dois decénios, enquanto fez enforcar ao menos cem mil delas.
131. Jones, E., op. cit.
135Um massacre como nunca antes se vira e que talvez tenha superado, pela
ferocidade, qualquer outra empresa sangrenta, só se igualando — talvez — ao confronto e
genocídio anti-semita da última guerra.
Foi a posição antinatural da Igreja nos confrontos com a questão sexual, unida ao
trabalho de transformação feudal, que determinou a ruína criminosa de tantas mulheres. A
epidemia se extinguiu lentamente.
As últimas mulheres julgadas bruxas foram mortas em 1836 na Alemanha e em 1850
na França. Na América do Norte as últimas bruxas foram queimadas vivas em 1877!
Por mais que nos espante, ainda existem bruxas e a consciência feminina de hoje as
reativa em nossa fantasia. As bruxas modernas estão mais escondidas e são mais ciumentas de
suas práticas. Há algum tempo se dizia que na Inglaterra eram ao menos dez mil. Suas
práticas ocultas parecem, todavia, voltadas para a magia branca e para inócuos objetivos
filantrópicos. Conservam a estrutura das assembleias e o ritual da dança em círculo, em torno
de um fogo aceso, nas noites sem lua. As bruxas e os bruxos se dão as mãos, dançam e gritam
palavras mágicas. Como na antiguidade, as modernas bruxas adoram Diana, Hécate e algum
deus solar. Acreditam na reencarnação de um deus dos Infernos que trará ao mundo a
verdadeira bruxaria. Este seria Lúcifer, chamado Sol Negro, que se unirá em matrimónio à
Lua Negra. Na base dessas concepções retorna o mito de Perséfone unido a tradições druidas.
As bruxas contemporâneas respeitam o calendário dos Sabás medievais: reúnem-se na
vigília do Primeiro de Maio, na vigília de Todos os Santos e a 2 de fevereiro, dia de
Candelor.132
Concluímos citando as palavras de Herbert Haag que talvez resumam a posição crítica
correta a se adotar diante do problema de Lilith-Bruxa. Palavras que valem por um
julgamento retrospectivo sobre a Idade Média, mas são úteis ainda hoje, para refletirmos
sobre certas manifestações da psicologia coletiva.
Na caça às bruxas também desempenha um papel muito importante aquilo que os
procedimentos descrevem continuamente como a "luta do coletivo contra uma minoria", cuja
fraqueza e falta de possibilidade de defender-se aviva a agressividade.
132. Cavendish, op. cit. 136
Não faz muito, O. Pfister, na análise que conduziu de uma bruxa do século XX,
chamou a crença nas bruxas de "uma péssima interpretação metafísica de concepções
adequadas no âmbito da psicologia e da psicologia profunda". Entre as bruxas havia, sem
dúvida, algumas mulheres histéricas, ou que sofriam de mania de perseguição, e, em algumas,
não se deve excluir um turvamento da consciência provocado por narcóticos. Ainda maior
importância deveria ter a análise do comportamento sexual patológico, assim como se
manifesta na caça às bruxas, e que, para dizer a verdade, é encontrado mais nos perseguidores
do que nas perseguidas... As orgias, as perversidades e a obscenidade da bruxa, reais ou
imaginárias, eram discutidas nos mínimos detalhes. Portanto, podiam oferecer aos cristãos e,
principalmente, aos celibatários e aos padres, uma certa satisfação substitutiva e
compensatória para os desejos sexuais que lhes eram proibidos. Mesmo a justiça exercida
através da tortura, do ponto de vista psicológico, deve ser colocada em relação ao medo que o
homem, tornado escravo dos preceitos da Igreja, experimentava diante da mulher sexualmente
atraente e que ele secretamente desejava. Este medo torna os homens sádicos.133
133. Haag, op. cit.
.1376
'■* LILITH NA CULTURA CONTEMPORÂNEA
Não foram suficientes as luzes da Razão, a partir do século XVIII, para apagar a
memória da grande remoção que se operou na consciência coletiva às custas do "feminino".
Lilith, vivida ainda como alma sombria e eros negativo, irrompe das grades do inconsciente e
retoma seu espaço psíquico na produção da cultura contemporânea; interroga o homem, ainda
uma vez, na carne e na psique. Pede a recuperação e coloca de maneira nova a evidente cisão
do arquétipo. O mitologema atravessa os campos do racional e não é sustado nem mesmo pela
mui fácil etiqueta de "irracionalidade", que o materialismo científico, por maniquéia defesa,
opõe a tudo aquilo que não é verificável no laboratório. Faz pouco tempo que se extinguiram
as fogueiras das bruxas e já Lilith retorna como amplificação dos mitos lunares, em conexão
com as temáticas sexuais.
Ela se manifesta ao surgir o século XX em campos criativos subtraídos ao domínio da
razão pura: exatamente nos campos onde o homem abre um novo caminho, fascinante e
desconhecido, para a pesquisa do próprio mundo interno nunca antes questionado em estratos
tão profundos. É aí que Lilith se faz encontrar. Na psicanálise freudiana, na psicologia
profunda junguiana, assim como na filologia liberta de estreitos limites, e também na arte,
onde Surrealismo e Dadaísmo dão passagem livre ao inconsciente. Lilith retorna ainda mais
evidentemente — como mito e simbologia — na pesquisa astrológica orientada pelo
sincronismo.
Vimos, até agora, Lilith, nas tradições, irromper como energia numinosa e experiência
do medo que o homem suportava passivamente como expressão de conflitos endopsíquicos
inexplicáveis. As várias divindades femininas eram temidas como forças internas
contrastantes e opressivas, polarizadas em grandes mitos lunares. Vimos
139Amazonas e Bruxas como símbolos de uma identificação ao animus em oposição
ao masculino. Assim, por volta da metade do século XIX, e em nosso século, vemos Lilíth
tornar a se propor, primeiro como alienação e, depois, como despertar da consciência
feminina, ressuscitando a tentativa de recuperar a unidade originária numa androginia
endopsíquica.
Mas a abordagem de Lilíth modificou-se a partir de Freud e Jung. Ela não é mais
compreendida como uma divindade exclusivamente ctônica, arcaica; Lilith é analisada como
significado arquetípico da alma dividida, reconduzida internamente ao mais originário
arquétipo da Grande Mãe urobórica bivalente, que reflete a repressão parcial dos instintos e a
censura das pulsões sexuais. Penetra-se mais a estrutura da polaridade Anima-Animus com o
corpus de estudos de Jung, Neumann e Hillman, depois que os pioneiros da psicanálise —
Jones, Silbere, Abraham — abriram o caminho para a análise dos mitos.134 Começa-se a
considerar toda a mitologia do feminino como testemunha de uma incansável luta que o
homem trava contra o instintivo, e sua consequente repressão. São questões atuais: é talvez a
história de um trauma na infância do homem? É uma transgressão somente moral à cultura
patriarcal seguida da destronizaçãc ua» Mães, ou se trata de uma catástrofe ontogenética? E,
constantemente, se repete o "não" ao gozo, ao prazer pulsional. A criatividade reflui. O objeto
do desejo, o ato de desejar e ser desejado são danificados pela censura e pela repressão e, para
conseguir este resultado — na véspera das grandes descobertas sobre o inconsciente — ainda
se atribuem às várias personificações da anima atributos, qualidades e formas as mais
desagradáveis ou destrutivas, a fim de conseguir a repulsa e a rejeição da experiência.
No século XX, Lilith retorna mas permanece protestando; a consciência do homem
que dorme é dilacerada pelo pesadelo, não mais pela voz implorante de Lilith, mas pelo
sussurro lúbrico, irónico e perverso dos monstros internos: é a voz do instinto negado, é o
prazer e o gozo do corpo enganados que se transformam em tormento de neurose e liturgia da
morte, enquanto a beleza do dionisíaco se transforma em torpeza, em um dramático sossobrar.
Assim, os sem-
134. Jung, C. G., Risposta a Giobbe, vol. xi, Boringhiere, Torino, 1980; trad. bras.
Resposta a ]ob, Petrópolis, Vozes, 1983. Neumann, E., Storia delle origini delia conscienza,
Astrolábio, 1979. Neumann, E., La Grande Madre, Astrolábio, Roma, 1980.
140
blantes delicados se transformam, uma vez mais, em formas bestiais ou costumes
"inconvenientes".
A separação de masculino e feminino entendida como ruptura da originária unidade
paritária se propõe junto à imagem de Lilith, justo quando o homem irracional se decide a
enfrentar a descida no próprio inconsciente e o explora não em nome do Pai e da Lei, mas em
nome do Si Mesmo e da Centroversão, no itinerário rumo a nova consciência, onde será
oportuna a soldadura da polaridade.
Se os psicanalistas referiram-se ao binómio Lilith-Eva dentro do tema consciente de
conflitos instintivos e indicaram as vias para a recanalização das pulsões reprimidas, os
psicólogos profundos enfrentaram bem mais extensamente toda a mitologia lunar partindo do
exame do arquétipo que, na cisão, se faz presente com dramática lucidez:
Ora, à esquerda há uma série negativa de símbolos, a Mae da morte, a Grande
Prostituta, a Bruxa, o Dragão, Moloch; à direita há uma série positiva, oposta, na qual
encontramos a boa mãe que, como Sofia ou a Virgem, dá à luz e nutre, conduz ao
renascimento e à salvação. Lá Lilith, aqui Maria. Lá o sapo, aqui a deusa, lá um pântano
cruento e devorador, aqui o Eterno Feminino."5
Estamos pois diante da interrogação última sobre a cisão. Estamos dentro do drama
psíquico e o raio da indagação analítica recai sobre esta dualidade, sobre este evento que
determinou o esfacelamento da individualidade. Dispor-se a empreender esta descida às
regiões obscuras onde vive e fala a nossa Lilith é ainda, uma vez, uma odisseia, uma busca
incansável da alma na tentativa de recomposição. Depois que a psicologia profunda nos fez
perceber como estão as coisas, o que se manifesta do "feminino" interno não se apaga mais,
não se torna partícipe ou cúmplice de um desenvolvimento integrativo endopsíquico e não nos
restitui aquela total liberdade de expressão que só pode celebrar o advento de uma epifania do
gozo.
Nos séculos posteriores à Caça às Bruxas, cada aspecto do mito-logema de Lilith
permaneceu excluído da consciência, confinado na Sombra coletiva como pólo negativo a ser
recusado e combatido,
135. Neumann, E., op. cit.
141exprimindo o Mal em sua acepção mais totalizadora. Assim, não havia ainda, nem
vagamente, a mínima reflexão sobre o tema, e a dicotomia lacerante, fonte de contínuas
fragmentações psicopatoló-gicas, permanecia ativa. O indivíduo dos últimos séculos reforçou
a identificação com o lado de luz, exaltando o pólo do Bem; porém, no conflito opositivo ao
instintual, era vivida a via heróica do "resgate" e a possível transcendência, enquanto o
arquétipo, na sombra, reforçava, em consequência dessa atitude, o apelo não ouvido,
produzindo neuroses e psicoses. Um exemplo comprobatório dessa dialética pode ser
encontrado na análise do fabulário europeu e de certa pedagogia do século passado!
Um primeiro sinal de superação dessa rígida contraposição e constelação parcial,
tivemos, repetimos, graças ao trabalho de des-vendamento psicanalítico. Podemos nos
permitir pensar que hoje a consciência individual está mais desenvolvida e a acreditamos
capaz de manter-se firme no caminho aberto.
Chamar Lilith de volta do Mar Vermelho significa aproximar do olhar a visão dessa
imagem arcaica do feminino, odiada e temida, incessantemente negada; e, enfrentando-a em
nós mesmos tentar um conturbado processo de reintegração no arquétipo total, sabendo que se
terá de superar imensas resistências.
Citamos Neumann a propósito, porque parece ter particularizado bem o ponto que hoje
alcançamos, também em sentido histórico. É, com efeito, uma escolha nítida e precisa da
angulação útil onde acontece estarmos. Não obstante estarmos firmes do lado luminoso, de
"saúde", dessa vez elegemos romper o pacto hipócrita, romper o disfarce, abolir as falsas
liturgias e nos colocarmos também — repetimos: também — do lado da primeira
companheira de Adão. Devemos ousar trazê-la de volta para perto de nós, afastá-la do
demónio, liberados do vínculo de dependência forçada ao Pai, amadurecidos. Coloquemo-nos
do lado do arquétipo reprimido, isto é, da "enfermidade", que é enfermidade criativa; não, de
novo, numa polarização unilateral opositiva soçobrada, mas defensores de uma fixação deste
pólo à luz.
O século atual viveu uma tentativa de recuperação simbólica do feminino na Assunção
dogmática de Maria aos Céus, mas faltava uma indicação correspondente no outro vetor, na'
direção vertical contrária, a Descida aos Infernos, para proclamar a realidade de Lilith. Nesse
momento, foi reconfirmada psicologicamente a fratura improdutiva que demanda enfim uma
correção: a serpente não será mais esmagada sob os pés da Boa Mãe, porque a serpente é a
própria
142
Eva. Mas se a encarássemos finalmente como Lilith-Lua Negra, talvez a serpente,
salva, nos restituísse a Sofia.
Mudando a abordagem, portanto, Lilith reaflorou na consciência de modo tão
prepotente nos últimos decénios que, atualmente, penetrou definitivamente nos hábitos de
massa como imagem folclórica da recuperação do feminino e símbolo da emancipação da
mulher.