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Lilith

A Lua Negra
Roberto Sicuteri

Lilith
A Lua Negra

Tradução: Norma Telles e J. Adolpho S. Gordo

3ª Edição

Paz e Terra
Ao leitor

Neste livro é contada a história de Lilith, a primeira companheira bíblica de Adão,


cujos traços a consciência coletiva apagou, distraidamente, no tempo incomensurável em que
se representa a história do homem.
É a história de um incubo, de um sonho, ou então é a história da mais inquietante
imagem derivada do arquétipo da Grande Mãe. Em todas as épocas o homem interroga a Lua;
chegou mesmo a tocá-la com as mãos. Não obstante, não desvendou, para si mesmo, o
mistério inconsciente, incluído em figurações e mitos que em certas épocas fazem-lhe apelo
— do interior — com seu fascínio e com uma mensagem obscura que, seguramente, fala da
alma e da carne, do amor e da morte. Isto porque fala da mulher.
Lilith, a Lua Negra, é o céu vazio e tenebroso no qual se projetam indagações e
possíveis respostas de um diálogo que não tem nada a ver com o racional e, muito menos,
com o sistemático-clínico: é o diálogo que o homem entretém com a própria alma, vivida em
sua totalidade, ou numa cisão-dolorosa.
É uma fantasia, um trabalho de imaginação ardente, que o autor lhes apresenta sem, de
nenhum modo, propor regras de leitura. Pode-se perceber que uma longa análise junguiana
ensina, com surpreendente simplicidade, a transformar uma neurose, inteiramente vivida na
dimensão sulfúrea da classificação nosográfica, numa enfermidade "criativa" onde a
imaginação recupera seu próprio espaço e instaura sua festa.
Assim, uma reflexão sobre o "feminino", sobre o instintivo, sobre as remoções e as
cisões do arquétipo da anima, pode ser empreendida por um caminho que, embora não
previsível, está bem distante da ars medica que quer encerrar novamente o imaginal
naquela dimensão positivista-racional, apertada, da qual tanto nos custou poder sair.
O texto só pretende narrar, restituir imagens, solicitar emoções. Deseja testemunhar
uma viagem pelo inconsciente pessoal e coletivo através de várias épocas. Não há nenhuma
resposta e nenhuma necessidade de verificação.
Evocada, Lilith está aqui, em sua realidade de Sombra. E interroga cada um de nós.
R.S.
O MITO DE LILITH E AS SUAS FONTES

Desde o início de sua criação, foi somente um sonho.


RABI SIMON BEN LAQISH
1. ADÃO, O ANDRÓGINO

A ausência de satisfação faz com que os objetos de


amor surjam aos nossos olhos como envoltos em um
mágico véu, e tenham aquela aparência de periculosidade
que constitui o seu fascínio.

TH. REIK

Na aurora do mundo, Jeová Deus pensou em criar o homem para que pudesse se tornar
o coroamento da Criação. E Deus disse: "Façamos o homem, que seja a nossa imagem,
segundo a nossa semelhança".
Assim, Ele estendeu a sua mão sobre a superfície da Terra, talvez ali onde estava o
monte Moriah e, apanhando poeira fina, misturou-a com outra terra das quatro partes do
mundo, borrifada com água de cada rio e cada mar existente. Uma massa de epher, dam,
marah (pó, sangue e bile) que deu vida a Adão, o primeiro homem vivente. Jeová Deus
colocou Adão no Jardim do Éden para que lhe fizesse honra.
Qual era a natureza do primeiro homem? Conheceu ele a aspereza da solidão e da
própria singularidade? Talvez observasse tantos animais entre seus semelhantes — cavalos,
cabras, pássaros, répteis e peixes — que se admirava de se ver só.
Nós pensamos na primeira estrutura afetiva e sexual de Adão em termos
antropológicos, mas existe um mistério ainda mais obscuro que devemos encarar, quando se
fala da primeira companheira do homem, de sua primeira esposa. É a mitologia bíblica que
nos ajuda a imaginar Adão — em sentido psíquico — como um verdadeiro e real
androgginos, isto é, macho e fêmea. No Gênesis I, 27 é dito: "Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea o criou". É a passagem mais densa de
mistério, pois introduz o conceito da androginia no indivíduo segundo o supremo princípio da
harmonia total do Uno que é feito de Dois; mas é também conceito que consente em perpetuar
na terra — mediante a multiplicação da espécie na união do macho com a fêmea — a imagem
de Deus, pois o homem lhe é semelhante. Adão trazia em si, fundidos, o princípio masculino e
o princípio feminino e tais princípios só depois foram separados sucessivamente. Já está
implícita a resposta: Adão teve duas naturezas femininas, duas companheiras. Mas
procedamos com ordem ao analisar o mito da primeira esposa do homem. Muitas são as
fontes que permitem ver, nas aparentes contradições dos vários capítulos do Gênesis, uma
criação da mulher que respondia primeiro a motivações teológicas e, depois, a justificações
antropológicas. Adão era em si andrógino.
No Livro do Esplendor — o Sepher Ha-Zohar — é citada esta passagem:

Rabi Abba disse: O primeiro homem era macho e fêmea ao mesmo tempo
pois a escritura diz: E Elohim disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança
{Gên. I, 26). É precisamente para que o homem se assemelhasse a Deus que foi
criado macho e fêmea ao mesmo tempo.1

O enigma está no versículo citado do Gênesis onde é dito "... o criou" e logo após é
dito em vez "os criou". Adão teria sido, pois, para o Gênesis I, 26-27, dois em um, homem e
mulher. Ainda o Rabi Simeão, no Zohar, fala assim:

1
Il libro dello Zohar, org. por J. De Pauly, Atanor, 1978. 14
Está escrito — Os criou macho e fêmea — {Gên. V, 2). Estes dois versículos
do início do quinto capítulo do Génesis encerram grandes mistérios. Nas palavras "Os
criou macho e fêmea" é expresso o mistério supremo, que constitui a glória de Deus,
que é inacessível à inteligência humana e que constitui objeto de Fé. É por este
mistério que o Homem foi criado. Recordem que o homem foi criado pelo mesmo
mistério através do qual foram criados o céu e a terra — as Escrituras se servem da
expressão "eis a Gênese do céu e da terra", e para a criação do homem elas usam
expressão semelhante: "eis o livro da Gênese do Homem".

O Rabi Simeão ben Jochai prossegue sua fala, sempre sobre o mesmo tema:

. . . Além disso, para a criação do céu e da terra, as Escrituras se servem do


termo behibaream (= quando foram criados), e para a criação do homem as Escrituras
se servem da expressão análoga beyom hibaream (— no dia em que eles foram
criados). As Escrituras dizem: "os criou macho e fêmea". Nós deduzimos que cada
figura, que não apresenta em si o macho e a fêmea, não se assemelha à figura celeste.
Este mistério já foi explicado. Recorde-se que o Senhor . . . não permanece onde o
macho e a fêmea não estão unidos. Ele cobre com suas bênçãos somente o lugar onde
o macho e a fêmea estão unidos. É por isto que as Escrituras dizem "os abençoou e
deu a eles o nome de Adão". Pois as Escrituras não dizem: o abençoou e lhe deu o
nome de Adão, visto que Deus só abençoa quando o macho e a fêmea estão unidos. O
macho não merece o nome de homem, enquanto não está unido à fêmea; é por isto
que as Escrituras dizem: "E deu a eles o nome de homem" (I, 55b).2

É evidente aqui a referência à imagem das núpcias místicas, a verdadeira e profunda


alquimia dos contrários, a coincidentia oppositorum dos princípios antagônicos e
complementares de Sol e Lua, que C. G. Jung analisou no comentário ao Rosarium
Philosophorum.
No Zohar, o Rabi Abba repete ainda que, no momento da criação, Deus fez o homem à
imagem do mundo do alto e à daquele de baixo; ele era a síntese do todo, a imagem do todo;
nele estavam todos os Sephiroth, isto é, todas as modalidades cifradas das manifestações de
Deus no humano. A luz de Adão se expandia em todo lugar da terra e tinha duas classes
compostas de macho e fêmea. Por isto Adão tinha duas faces.
Na tradição talmúdica, na Torah e nos Midrash, se encontram os mais extensos
comentários ao Gênesis. No Midrash aramaico do Beresit-Rabba (Rabi Oshajjah)
encontramos outras indicações que não deveriam ser esquecidas pelos estudiosos,
especialmente os psicanalistas (pense-se na tese de T. Reik, da qual falaremos mais adiante),
que muito superficialmente superam a hipótese mais ampla de uma forma andrógina do Adão
bíblico. Pois bem, o Beresit-Rabba comenta, a propósito do versículo de Gênesis I, 26, de
modo a não deixar dúvidas. Citemos integralmente:

I. E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. (Gên. I,


26). R. Johanan principiou: De costas e de frente você me abraça (Sl.. 139,5). Disse
R. Johanan: Se o homem o merece goz;i de dois mundos.
. . . Disse R. Jirmejah b. Eleazar: Quando o Senhor, Ele seja bendito, criou o
homem, o criou hermafrodita, como é dito: Macho e fêmea os criou e chamou o nome
deles "Adão". Disse R. Shemuel b. Nahman: Quando o Senhor, Ele seja bendito,
criou o homem, o criou bifronte, dividiu-o e resultaram dois dorsos, um aqui e um
ali.3

Em uma passagem ulterior do mesmo capítulo comenta-se assim:

2 Ibidem
3
Commento alla Genesi, Beresit Rabbâ, org. por T. Federia, U.T.E.T., Toríno,
1978, p. 70, I.
11. Macho e fêmea os criou (Gên. I, 27). Esta é uma das coisas que mudaram
para o rei Ptolomeu. O macho e seus orifícios criou.4

Na nota ao texto é explicado que o termo "orifícios" é escrito em hebraico com as


mesmas letras do termo "fêmea".
Não insistamos nas citações rabínicas e passemos a considerar que também em Platão,
no Banquete (189d a 190d), é mencionado claramente o mito do primitivo homem
hermafrodita. Para nós é interessante esta hipótese, porque em nosso estudo queremos ver
como se separou o feminino do masculino.
Fontes mais próximas de nós oferecem um estudo onde se atribuem também aos
babilónicos opiniões relativas à androginía do primeiro homem.5
Fílon de Alexandria teve uma intuição análoga, sobre um Adão bifronte ou
hermafrodita com uma estrutura que evoca os "irmãos siameses". Também Benz segue o mito
do andrógino, dos gnósticos até os místicos modernos.6 Theodor Reik, na sua Psicanálise da
Bíblia, cita outros autores que seguiram esta hipótese: Judah Abravanel de 1525, depois o
Misterium Magnum de Jacob Böhme (1630), o próprio Swedenborg, o russo Berdjaiev e o
filósofo espanhol Leão Hebreu na sua obra Dialoghi d'Amore. Esta androginia de Adão é o
semblante simbólico de Deus, mas o hermafroditismo, no que concerne à organização sexual
e afetiva de Adão, faria pensar em uma completa harmonia do ser? Não havia ainda nenhuma
negação possível? É uma coisa obscura. Aqui, em realidade, não se concilia o significado
teológico rabínico do andrógino, como semelhança da totalidade do divino, com o fato de que
o primeiro Adão tinha, evidentemente, uma sexualidade de todo indiferenciada. Mesmo no
Génesis bíblico coloca-se em evidência um comportamento sexual que parte de uma
perversão.
Este Adão tinha os cabelos semelhantes aos de uma mulher, com espessas ondas: um
esplêndido herói parecido a Enkidu, o épico homem do Poema de Gilgamesh. Como era este
Adão? O Comentário ao Gênesis de Beresit-Rabba responde:

11. Macho e fêmea os criou. . . Deu-lhes quatro qualidades dos celestes e quatro dos
inferiores: come e bebe como o animal, expele excrementos como o animal; dos celestes tem a
posição ereta como os anjos do serviço divino, fala como os anjos do serviço divino. E o animal
não vê? Mas ele vê também de lado...7

Mais uma confirmação da singularidade corpórea de Adão:

Disse R. Ahà: Eu sou o Senhor (Is. 42,8) e este é o meu Nome com o qual me chamo
Adão. Tornou a lhe fazer passar à frente os animais em casais. Disse Adão: Cada um tem o seu
8
companheiro, mas eu não tenho companheiros.

Eis a mais interessante indicação de uma natureza semi-animal do primeiro Adão. O


Gênesis não é explícito sobre este particular, mas a sabedoria rabínica coloca um problema
evolutivo bem claro. Para nós isto serve para demonstrar a originária harmonia psicosse-xual
do homem, na medida em que Adão exprimia certamente uma sexualidade em estado
primário, acasalando-se com os animais que encontrava. Não é possível que se trate somente

4 Ibidem, p. 76, II.


5 Jeremiah, Alfred, The Old Testament in the Light of The Ancient East, London, 1911
6 Benz, Ernst, Adam, s.e., Mónaco, 1955.
7 Commento alla Genesi, ibidem.
8 Ibidem.
de fantasias inconscientes removidas em germinação no folclore hebraico, porque os traços
dessas experiências sexuais bestiais dos primeiros homens existem. Enkidu vivia com
as gazelas e se acasalava com outros animais selvagens perto das margens dos rios. E é
possível — como sustentou Morris Jastrow — que em Enkidu fosse projetada, pelos
babilônicos, a imagem do primeiro Adão. Enkidu era certamente hirsuto, de proporções e
força excepcionais, e vivia com os animais,

. . . comendo a relva com as


gazelas
bebendo nos córregos como os bois
brincando com as criaturas da água,

e quando Enkidu encontra a companheira, a sua Eva, deita com ela por sete dias e sete
noites:
. . . depois que saciou seu fascínio
voltou o olhar para os animais.
As gazelas que repousavam viram Enkidu
os animais do campo se afastaram dele.
Enkidu se prostrou, se sentiu desfalecer
e seus membros se enrijeceram
não apenas os animais se foram.9

É claro que Adão-Enkidu — e nos parece justa a observação de Reik — se afastou das
práticas sexuais indiferenciadas quando conseguiu reconhecer a mulher. De resto, o Adão
bíblico pede uma companheira apenas porque estava insatisfeito.
O Gênesis diz: "Não é bem que o homem esteja só" {Gên. II, 18). Por isto este estado
de Adão aparece sucessivamente na primeira versão "E os criou macho e fêmea" (Gên. I, 27).
Nesta fase, isto é, quando proclama sua solidão, Adão ainda é andrógino, talvez em sentido
psíquico, mas ignora a alteridade sexual; é ainda animal. No Beresit-Rabba, como dissemos,
há a revelação desta natureza animal. Reportemos do texto crítico:

10. E o homem se torna um ser vivente. R. Jehudah disse: Ensina-nos que


lhe fez o rabo como um animal, depois o tirou dele para seu decoro. . .10

Seguramente a narração rabínica faz uma metáfora quando diz que Adão "deixará pai
e mãe" para unir-se à mulher. Assim fica velado o desinteresse da inferioridade animal em
orientar-se para uma companheira mais digna.
Jeová Deus não havia até então encontrado para Adão "Um ajudante que fosse
semelhante a ele" (Gên. II, 22). Como explicar de outra maneira o hábito dos primitivos de
figurar deuses e heróis com critérios teriomorfos ou parcialmente monstruosos, híbridos, se
não pela óbvia familiaridade natural que o primeiro homem tinha com a sexualidade animal?
Sabemos que os pastores, das perdidas e desérticas terras do Oriente Médio, tinham
seguramente a prática de se unir aos animais para descarregar o ímpeto arcaico de seu instinto
sexual. E a prova destas práticas nos vem das repetidas prescrições repressivas das Escrituras
cabalística e talmúdica. No Deuteronômio, XXVII, 21 os Levitas, entre outros, lançam
também esta maldição:

Maldito aquele que deita com qualquer animal.

9 Reik, Theodor, Psicoanalisi delia Bibbia, Garzantí, 1978


10 Commento alla Genesi, p. 120
No cap. XV do Comentário do Beresit-Rabba existem outras indicações que excluem a
hipótese de um equívoco semântico, onde "animal" pudesse ser entendido também como
"vivente", porque aqui se fala de homem e de animal:
Observa como está escrito:

Se uma mulher se encostar em um animal para acasalar-se com ele,


matarás a mulher e o animal (Lev. XX, 16). Se o homem pecou, que pecado
cometeu o animal? Isto é para que o animal não passe pela estrada e digam: Este é o
animal por cuja causa foi lapidado o homem...11

No sentido cronológico evolutivo é pois possível chegar à conclusão de que no


Gênesis I, 1-28 nos aparece um Adão andrógino, composto em si dos princípios masculino e
feminino, enquanto no espaço entre o Gênesis I e o II, se pode deduzir que Adão manifestasse
a sexualidade acasalando-se com os animais. É somente no Gênesis II que o primeiro homem
aparece dotado de alma e capaz de conhecer a necessidade de mulher. Recapitulando as várias
fases expostas no Génesis, em ordem cronológica:

1 — Gênesis I, 26: "Deus disse: façamos o homem à nossa imagem,


segundo a nossa semelhança. . ."
2 — Gênesis I, 27: "Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de
Deus o criou; macho e fêmea os criou".
3 — Gênesis I, 28: "Deus os abençoou e Deus lhes disse: crescei e
multiplicai-vos".

Assim, nessas três fases vemos aparecer o homem como indivíduo composto de duas
partes. O pronome que muda do singular ao plural é revelador do conceito de hermafroditismo
ou androginia, ou então se deve, com certeza, pensar que se tratava nem mais nem menos do
verdadeiro casal distinto, Adão e a "primeira companheira", isto é, Lilith. Voltaremos a isso
mais adiante.
Vejamos agora as outras fases, onde a criação de Adão aparece isolada, isto é, sem
caracteres femininos, e à qual se segue a criação de Eva como a "segunda companheira":

1 — Gênesis II, 7-8: "Então Jeová Deus modelou o homem com pó do


chão, e soprou nas suas narinas um hálito de vida, assim o homem se tornou um ser
vivente..."
2 — Gênesis II, 18: "Depois Jeová Deus disse: Não é bem que o homem
esteja só: quero lhe fazer uma ajudante a ele correspondente".
3 — Gênesis II, 20: ". . .Assim o homem conferiu nomes a todos os
animais, a todos os voláteis do céu e a todos os animais selvagens. Mas para o
homem não achou uma ajudante que fosse semelhante a ele".

Nesta passagem bíblica é reconfirmado que Adão estava só e tinha dado nome aos
animais, isto é, os havia conhecido no acasalamento. Somente de tal modo havia
compreendido a necessidade da diferenciação. No texto são evidentes os traços obscuros de
uma remoção da bestialidade adâmica. É neste ponto exato do mito que Adão abandona o
caráter de identificação com o divino exprimido pela androginia e supera a sexualidade
animal como ser vivente. É o momento no qual é pedida a Deus a companheira mulher.
Mas — se perguntaram os exegetas da Bíblia — por que Deus não deu logo uma
mulher a Adão, ao invés de se decidir depois de lhe haver feito "conhecer" todos os animais?
Nesta enigmática parada, onde o nomear implica o desejo, Adão talvez pudesse reconhecer

11 Ibidem, p. 126
uma possível companheira? A resposta que nos oferece o Rabi Ahà no Beresit-Rabba é
indicativa:
E para o homem não achou uma ajudante semelhante a ele. E por que não a havia
criado primeiro? O Senhor, que Ele seja bendito, viu que Adão se teria lamentado dela, por
isso não a criou enquanto ele não a tivesse pedido; no momento que a pediu, logo: Fez cair o
Senhor Deus um sono profundo sobre Adão, etc. . .12
e nasceu a mulher, por desejo de Adão, que havia descoberto a própria solidão, mas
também a própria alma.

12 Ibidem, p. 136.
O MITO DE LILITH NAS VERSÕES BÍBLICAS

O mito de Lilith pertence à grande tradição dos testemunhos orais que estão reunidos
nos textos da sabedoria rabínica definida na versão jeovística, que se coloca lado a lado,
precedendo-a de alguns séculos, da versão bíblica dos sacerdotes. Sabemos que tais versões
do Gênesis — e particularmente o mito do nascimento da mulher — são ricas de contradições
e enigmas que se anulam. Nós deduzimos que a lenda de Lilith, primeira companheira de
Adão, foi perdida ou removida durante a época de transposição da versão jeovística para
aquela sacerdotal, que logo após sofre as modificações dos Pais da Igreja.
No Zohar, nos escritos sumérios e acadianos, nos testemunhos orais dos rabinos sobre
o Gênesis, encontramos tesouros preciosos e sugestões de extraordinário vigor para estimular
o nosso mundo imaginário. Quem abre pela primeira vez o Livro do Esplendor, ou aquele
precioso afresco que é o Beresit-Rabba, se sente repentinamente dominado por uma violenta
emoção e invadido de inquietude fascinante: é como se achar diante do testemunho ignoto da
verdade e da sabedoria, diante daquele que sabe dentro de cada um de nós, jacente no
inconsciente e que se reaviva e nos fala através de uma linguagem arcaica e potente escandida
na palavra hebraica.
Estes grandes testemunhos depositários da Torah (o Ensinamento) e dos Midrash (a
Procura) contidos na Misnach (coleção de Códigos) são certamente dos Rabis iluminados pelo
carisma e pela fé, mas são também os testemunhos de lendas, mitos, sagas, alegorias e usos
folclóricos populares, que os Rabis usavam como reflexão viva baseada em analogias para
estabelecer a verdade hermenêutica sobre as origens do mundo e do Homem. Nós acreditamos
poder dizer, hoje, que a sabedoria dos jeovistas e a leitura dos textos muito remotos nos
suscitam maiores energias e incitam à reativação dos arquétipos e mitos do inconsciente
coletivo, ao contrário do que o faz o depoimento sacerdotal.
A Torah assírio-babilônica e hebraica nos permite um jogo mais livre na interpretação
latente, nos restitui mundos imaginários que mais facilmente se subtraem à desconfiança
ditada pelo ceticismo racional, produto da sabedoria cristã e católica em particular. Não nos
interessa aqui, por exemplo, tentar a solução ou a sistematização da secular controvérsia entre
as duas versões ou criticar a destruição e as alterações consumadas nas Sagradas Escrituras
dos cristãos; o que nos guia não é o interesse teológico, mas o psicológico, pela redescoberta
da lenda de Lilith para agregá-la, como energia psíquica formadora do mito e do arquétipo, ao
núcleo concernente à história da relação entre Anima e Animus e para entender as origens
endo-psíquicas da cisão entre "instintivo" e "pensamento", para esclarecer, finalmente, o
grande equívoco do primado masculino sobre a mulher sentida como inferior. Toda a história
psicológica da relação homem-mulher, como diz James Hillman, é uma série de notas de
rodapé à história de Adão e Eva.13 Nada pode ser demonstrado racionalmente: a verdade sobre
a tradição primitiva e arcaica germinada na aurora do mundo não pode se achar nos pontos de
vista divergentes das duas escolas ou dos alinhamentos; a verdade está, para nós, além deles,
muito além, e num plano totalmente diferente. "Desde o início de sua criação, foi somente um
sonho", disse uma vez o Rabi Simon ben Laqish: e o sonho, para o homem, é a voz potente de
seu espírito e de sua profundidade interior.
No sonho não existe espaço para verdade ou inverdade, para a lógica ou a fantasia. No
sonho está o homem inteiro, com tudo aquilo que ele sabe conscientemente e com tudo aquilo
que ele não sabe e talvez possa não saber jamais. Se a criação e o próprio homem não são

13
Hillman, James, The Myth of Andyús, Evanston, Illinois, 1972, trad. bras., O mito
da análise, Paz e Terra, 1984.
nunca outra coisa que um sonho, então esta é a sua indestrutível verdade. E tudo existe, como
existe o homem. Porque existe o homem que sonha.
Eis, portanto, porque os textos hebraicos, sumérios e acadianos têm uma chave e um
dissuasor que privilegiamos: neles há mais sonho, há o contar, há o vivido, há o imaginado.
Tudo, aqui, provém principalmente da boca do Rabi ou dos sonhos dos discípulos do que do
pensamento e do documento. E Lilith, para nós, nasce, talvez. do sonho ou da narrativa dos
Rabis, nasce de uma necessidade ou de uma fantasia coletiva.
Examinemos onde, nas Escrituras, se pode buscar a presença de Lilith como primeira
companheira. Ao que parece, muitos estudiosos e exegetas do Gênesis se encarniçaram na
procura de "provas" e até T. Reik, seguidor de Freud, para justificar o seu enfoque de Lilith,
saiu-se com esta rápida observação a propósito das duas versões bíblicas:

O folclore encontrou um modo engenhoso para pôr as duas versões em


acordo: se, numa versão, Deus criou o homem como macho e fêmea, e na outra a
mulher foi formada da costela de Adão, o nosso primeiríssimo ancestral deveria ser
um viúvo ou um divorciado, quando o Senhor lhe conduziu Eva. Ou talvez Adão
teve contemporaneamente duas mulheres. Isto poderia harmonizar as duas versões
bíblicas.14

No Gênesis I Adão foi macho e fêmea, como já sabemos; vimos que nos comentários
rabínicos aparece, embora velado, o segredo removido de que Adão vivesse sexualmente
promíscuo com animais. No Gênesis II aparece a fêmea, Eva. Ora, pensamos extrair os
testemunhos da existência de Lilith das passagens sutis, dos subentendidos e das alusões
analógicas que, segundo nos parece, existem nas páginas do Beresit-Rabba.
Lilith, sem dúvida, tem a ver com o Gênesis I. Se excluímos a androginia como
arquétipo celeste refletido no Adão terrestre, devemos necessariamente aceitar que se trata de
Adão com uma companheira feminina. E Deus os abençoou, recordemo-lo. Sem dúvida, na
versão jeovística, o primeiro homem e a primeira mulher estavam em estado animal, sua
sexualidade era indiferenciada, não havia disparidade entre os dois sexos. Eles eram informes:
"Criou-o como uma massa informe".15
Vamos em frente. No Génesis I, 24, isto é, ainda antes do versículo 26 referente ao
homem, está dito: "Produza a terra seres viventes segundo sua espécie: animais, répteis, etc..."
No comentário do Rabi Eleazar, ao contrário, se afirma:

Produz a terra almas viventes (Gên. I, 24). Esta é a alma de Adão,16

e é referente a tudo aquilo que vive na dimensão do natural, alma-animal.


No Gênesis II, 21 existe finalmente a descrição da criação da mulher.
Também aqui a versão bíblica sacerdotal é muito sucinta. Diz:

Então Jeová Deus fez cair um sono profundo sobre o homem que
adormeceu; tirou-lhe uma das costelas e fechou a carne em seu lugar.

e aqui há um comentário do Rabi Shemuel muito obscuro, que devemos tentar


interpretar por analogia, também referente à existência do casal. Diz o Rabi:

14 Reik, op. cit.


15 Commento alla Genesi, p. 71.
16 Ibidem, p. 71
Um osso entre as duas costelas. Não está escrito no lugar dele, mas: no
lugar deles;17
isto não se refere de modo manifesto ao osso ou às costelas, ainda que seja simbólico.
"No lugar dele" refere-se, ao contrário, a Adão como singular, e a correção do rabino é no
plural, aparece deles. Por isso a parte que foi tomada devia ser a resultante dos dois, isto é,
"dois em uma carne só."
A costela (ou o osso) aqui é o símbolo da nova entidade que nasce deles, isto é, o
casal. É evidente que isto quer dizer que o casal já existia antes do "nascimento" de Eva! A
prova está implícita no Gênesis V, 2 que — se necessário — complica ainda mais o enigma:

No dia em que Deus criou Adão o fez à semelhança de Deus; e macho e


fêmea os criou, os abençoou e os chamou homens no dia em que os criou.

E, para esclarecimento, seguindo passo a passo a citação bíblica:

Jeová Deus construiu com a costela que havia tirado do homem formando
uma mulher, e a conduziu ao homem. Então o homem disse: — Desta vez é osso
dos meus ossos e carne da minha carne! (Gênesis II, 22-25).

Como não perceber o assombro e a alegria de Adão, como se fosse, finalmente,


reanimado e se reconciliasse com Deus porque "desta vez" o presente de uma fêmea é certo e
belo! Há nesta exclamação a confirmação de uma "primeira vez", referindo-se a uma mulher
precedente. Ou indicaria que "desta vez" se trata de uma fêmea humana e não de uma fêmea
animal que Adão já havia repudiado? De qualquer modo somente o Comentário do Beresit-
Rabba nos ajuda a compreender:

R. Jehudah em nome de Rabi disse: No princípio a criou, mas quando o homem a viu
cheia de saliva e de sangue afastou-se dela, tornou a criá-la uma segunda vez, como está escrito:
18
"Desta vez. Esta e aquela da primeira vez".

E então, quem era esta mulher da primeira vez, descrita de maneira a provocar o
desgosto de Adão? Quem era esta primeira obra de Deus, cheia de saliva e sangue? Nós
pensamos em Lilith. A primeira companheira foi Lilith, cheia de sangue e saliva.
Detenhamo-nos neste momento particular porque é fundamental.
Deus a criou no princípio, isto é, no início da criação; mas como era esta fêmea? Era
tal que provocava em Adão uma sensação desagradável ou angustiante. O que significa este
sangue? O que significa esta saliva? Se associarmos, deixando livre a imaginação, pensamos
no sangue menstrual, aqui, talvez, usado como metáfora alegórica, para fazer perceber o
caráter carnal, fisiológico, vital, instintivo da mulher.
"... a viu cheia de sangue": pode-se pensar na experiência sexual livre de tabus e
proibições (pensa-se na repressão do desejo sexual e, em consequência, do coito durante o
ciclo menstrual, que vigora como tabu ainda em nossos dias) ou também aqui é dissimulada a
visão da mulher "lasciva". .. ?
A saliva que enchia ou cobria esta fêmea é um símbolo ainda mais indicativo. A
associação com um equivalente mágico da libido é evídentíssima. A saliva é um componente
claramente sexual possivelmente reconduzível, por via psicanalítica, à secreção erótica ou ao
transvasamento mágico da saliva no beijo profundo. Sangue e saliva pertencem à mulher da
primeira vez. Adão se afasta desgostoso, isto é, amedrontado — como veremos mais à frente

17 Ibidem, p, 137.
18 Ibidem, p. 142.
— com a realidade da primeira companheira. Tanto que Deus teve que fazê-la uma segunda
vez, e esta foi Eva.
A verdade é que aqui as interpretações abundam. Alguns dizem que a mulher da
primeira vez era aquela que Adão sonhou eroticamente, enquanto Eva é a materialização do
sonho. Mas a palavra "vez" significa também perturbação, paam em hebraico. Então pode-se
também inferir que a primeira mulher era capaz de instigar em Adão uma insustentável
perturbação. Outras fontes apresentam com mais clareza a criação de Lilith e de outras
companheiras antes de Eva.
Os comentários cabalísticos sobre o Pentateuco reunidos pelo Rabi Reuben ben
Hoshke Cohen citam uma nítida lenda do nascimento de Lilith. Reproduziremos o resumo que
nos dá Graves em seu texto:

Deus então criou Lilith, a primeira mulher, assim como havia criado Adão,
mas usando fezes e imundície ao invés de pó puro.19

A afirmação de que Lilith havia sido criada com pó negro e excrementos nos faz
refletir. Sabemos que em hebraico o verbo "criar" é semelhante ao verbo "meditar", por isso é
de se supor que Jeová Deus tivesse em mente a criação da mulher como uma criatura
predestinada a ser inferior ao homem. Seguramente aqui interveio a agressividade masculina
inserida na sociedade hebraica estruturada rigidamente em sentido patriarcal com
acentuação dos valores patrilineares. Na criação de Lilith está implícita a perda da unidade
mágico-religiosa dos dois sexos na pessoa única do "homem". A mulher, evidentemente,
enquanto reprimida e comprimida sob a autoridade do macho, tentava reconquistar, então, a
paridade. Lilith nasceu das mãos de Jeová Deus, impura, humana: um Adão, portanto.
Mas quando nasce Lilith? E qual a sua natureza? A fonte de Yalqut Reubeni diz
textualmente:

Da união de Adão com este demónio (isto é, Lilith) e com outro chamado
Naamah, irmã de Tubal Cain, nasceram Asmodeo e inumeráveis demónios que
ainda martirizam a humanidade.20
.

Lilith é então apontada não como mulher, mas como demônio, desde o início da
relação com Adão. E por quê? Há uma clara explicação, a nosso ver, que deriva do cômputo
do calendário hebraico que foi considerado pela tradição jeovística quando se tratou de fixar
os sete dias da criação. É em relação aos dias da Gênese que nós devemos indagar sobre o
"nascimento" de Lilith; e é neste lapso das Escrituras que se oculta a remoção patriarcal da
natureza de Lilith, primeira mulher! Em um certo sentido, é Lilith o produto simbólico de
uma distração formidável do Deus hebraico? Por isto — nos perguntamos — foi condenada a
partir? Eis a resposta, no Beresit-Rabba:

5 . . . E fez Deus os animais selvagens da terra (Gên. I, 25) . . . Disse o


Rabi Hamah b. Oshajjh. Seres viventes nomeia quatro, mas quando foram criados
eram três: Animais domésticos segundo sua espécie; animais selvagens segundo sua
espécie e todos os répteis da terra segundo a sua espécie. O Rabi disse: O quarto(ser)
se refere aos demônios, dos quais o Senhor, Ele seja abençoado, criou a alma, mas
quando ia criar o corpo, estava para começar o Sábado, e por isso não o criou, para
ensinar os bons usos aos demônios [. . . ] Aquele que falou, e existiu o mundo, se

19 Graves, R. — Patai, R.: I miti ebraici, Longanesi, 1977. 28


20 Ibidem.
ocupava da criação do universo, criou as almas dos demónios, mas quando ia criar
seus corpos, chegou o Sábado e não os criou.21

Então Lilith nasce com Adão, logo após Adão: répteis, demônios e Lilith foram as
últimas criações de Deus no sexto dia, exatamente nas horas do entardecer da Sexta-feira, ao
avançar das trevas, pouco antes de entrar o Sábado, dia sagrado para os hebreus.
A criação pára aqui, segundo o Gênesis I. Os dois protagonistas estão no palco do
mundo: Adão e Lilith, aquela que primeiro exprimia a seu homem algo de importante, de
fundamental no que dizia respeito à sua relação de criaturas viventes; de Homem e Mulher.
Mas o que aconteceu naquelas últimas horas do sexto dia? O que aconteceu entre o
homem e a mulher? Tudo aconteceu entre o sexto e o sétimo dia; se é verdade o que foi
escrito, a respeito de Adão:

Ao findar o Sábado foi-lhe tirado seu esplendor e foi expulso do Jardim do


Éden. . . ,22

e a luz divina existiu somente durante as poucas horas do sexto dia e de todo o Sábado.
Ao término do dia no qual Deus repousou, Adão já havia consumado sua relação com Lilith, e
portanto havia conhecido, nas trevas, uma tremenda verdade. Talvez a tentação, talvez uma
transgressão? Ou sentiu toda a potência do demônio se exprimir nas feições de Lilith? Neste
ponto digamos que o mito de Lilith representa certamente o arquétipo da relação homem-
mulher, ao nível mais primitivo no sentido evolucionista.
Lilith é um mito arcaico, seguramente anterior, na redação jeovística da Bíblia, ao
mito de Eva' por isto se pode dizer que Lilith foi a primeira companheira de Adão, É claro que
o conteúdo do mito de Lilith tem fortes paralelismos com o mito de Eva. Porém, parece-nos
útil pôr em relevo um particular: Lilith entra no mito já como demónio, uma figura de saliva e
sangue, um verdadeiro espírito deixado em estado informe por Deus; é uma companheira que
apresenta fortes traços de fatalidade. É interessante se perguntar por que no Génesis não
aparece nunca alguma informação relativa à criação dos demónios!
No Beresit-Rabba, vimos que eles aparecem com Adão e as serpentes. Também Lilith
então, como demónio, deveria ser recordada. Por que esta remoção? É necessário insistir nesta
pergunta: na resposta do Rabi Hamah b. Oshajjh supracitada parece implícita uma
identificação entre serpente-demônio-mulher (Eva). Lilith está, pois — na versão jeovística —
mais próxima do protótipo natural da mulher do que Eva. Mas isto, exatamente isto, é que era
refutado pela consciência hebraica que realizava uma constante repressão. Várias fontes
psicanalíticas vêem no mito de Adão e Eva o trauma de um incesto possível entre a Mãe dos
Homens e Adão, num fracasso dos papéis masculino e feminino (Freud, Rank), ou também,
na Queda, a representação simbólica de uma relação sexual proibida(Levy), seguramente o
acasalamento bestial, capaz de fazer perder a “razão”. Poderia tratar-se da primeira
experiência do orgasmo sexual em nível natural que teria desencadeado uma insuportável
angústia no homem, na medida em que a paixão sexual o fazia afastar-se da divindade, com
uma ameaça regressiva, da qual ainda tinha memória evolutiva. Outros vêem, no conflito de
Adão com Eva e o pecado desta, uma introjeção da divindade através da árvore totêmica
(Reik).
A remoção ou o lapso pairam entre as linhas do Gênesis: há o esforço de fazer ver que
"tudo era bom". Mas voltemos ao nosso casal, que nem ao menos por algum tempo foi capaz
de permanecer sob luz divina do Jardim do Éden. Quer se trate de Lilith ou de Eva, é todavia

21 Commento alla Genesi, p. 69.


22 Ibidem, p. 100. 30
sempre uma tragédia de eros e sexo que se consuma no Gênesis. É a totalidade libidinal de si
que o homem jogou pela primeira vez, em um preciso momento filogenético: e isto se torna
tabu.
Como era Lilith? Aqui estamos num mistério absoluto, porque nos testemunhos da
Torah temos a descrição da primeira mulher que, subentendida no Gênesis, deveria ser Eva.
Mas há aquela passagem do Beresit-Rabba onde se fala de uma outra mulher, aquela cheia de
saliva e sangue, que perturba Adão; de Eva, ao contrário, se descrevem as belezas e os
ornamentos. Somos da opinião de que a descoberta de Lilith, com a reação que conhecemos,
de recusa, e a segunda exclamação ("Desta vez são ossos dos meus ossos", etc.) são uma só
experiência psicológica de aproximação onde poderíamos ver uma condensação de duas
experiências: a primeira — o conhecimento carnal — é censurada e removida; a segunda, ao
contrário, exprime a aceitação da imagem "boa", externa, da companheira, aquela que é mais
agradável ao Pai e à Lei, mas que será, também esta, inexoravelmente fonte de pecado. Tratar-
se-ia, pois, de uma experiência libídica profunda distinta em duas fases, com um princípio
implícito de ambivalência.
Assim, tentamos interpretar a figura de Lilith respeitando a condensação: o vivido com
Lilith é também o vivido com Eva. Na similaridade dos dois mitos pode-se descobrir a
contradição dos comportamentos de Adão, como também a complexidade das reações
emotivas e sexuais diante da mulher em relação ao Deus pai. Será que a censura sobre a
feminilidade erótica "coberta de sangue e saliva" encontra sua superação por meio da
feminilidade que faz exclamar: "desta vez"? De definitivo, temos a soma de duas imagens,
porque o Rabi Jehudah comenta:

Esta e aquela da primeira vez, porque é aquela que soará para mim como uma
campainha. . . ,23
parece mesmo que se trata de duas fases: esta e aquela da primeira vez.
Lilith é coberta de sangue e saliva, símbolo do desejo: "No momento em que foi criada
a mulher foi criado também Satã com ela".24 Este demónio também é mulher. Aquela que
perturbou a noite toda o sono de Adão. Dizem as Escrituras: "ele se perturbou todo", e o
sonho erótico emerge do inconsciente, apresenta a Adão toda a potência da energia vital. É
Lilith que lhe produz o sonho.
"Perguntaram ao Rabi Simon b. Laqish: — Por que nenhum sonho cansa? Respondeu:
— No início da sua criação não foi senão um sonho."23 Eis portanto o primeiro tormento: o
sonho erótico, o desejo de Lilith.
Foi criada bela como um sonho, a primeira de seu sexo, a tanto desejada. Aparece-lhe
no Jardim do Éden à sombra de uma alfarrobeira ou de um sicômoro, ornamentada com
preciosos colares, tantos quantos aqueles citados em Isaías. Jeová Deus a havia criado
não da cabeça para que não se assoberbasse; não do olho para que não fosse ansiosa de
ver; não da orelha para que não fosse curiosa em ouvir; não da boca para que não fosse
faladeira; não do coração para que não fosse ciumenta; não da mão para que não tocasse no
que estivesse ao alcance da mão; nem do pé para que não fosse andarilha: mas do lugar em
que o homem está escondido e quando o homem está nu, aquele lugar ainda está coberto.2"
Lilith se une ao homem; nenhuma criatura se acasalou antes, mas o Homem conhece e
faz conhecer pela primeira vez a relação sexual sentida como tal. Como podemos imaginar o
amor entre estas duas criaturas? Possivelmente total e intenso como nós sentimos o eros que
inunda o Cântico dos Cânticos (I, 15-17):
Como és bela, minha amiga, como és bela!
23. Ibidem, p. 142.
24. Ibidem, p. 137.
25. Ibidem, p. 142.
26. Ibidem, p. 141.
32
Os teus olhos são como pombas. Como és belo, meu dileto, como és suave. Nosso
leito é a relva, paredes de nossa casa os cedros, teto para nós os ciprestes.
Lilith é certamente a sedutora, aquela que mais tarde, nas épocas vindouras, como Eva
Mãe dos Homens e mulher, será considerada o instrumentum diaboli. Lilith é aquela que
sussurra e geme {Cânt. 1,5):
porque ferida de amor eu estou,
e é a mulher que oferece ao homem o fruto suave; e ele está perturbado, está abatido.
Um ofuscamento que nos fará recordar Eros e Thanatos;
Ponha-me como sinete em teu coração, como sinete em teu braço, porque potente
como a morte é o amor (Cânt. VIII, 6).
Como se amam o primeiro homem e a primeira mulher? Foi ensinado: Todos os seres
praticam o ato sexual com a cara de um voltada para as costas do outro, afora dois que se
unem dorso a dorso: camelo e cão, e afora três, que se unem cara a cara, porque a Presença
divina lhes falou, e são o homem, a serpente e o peixe.27
Os seus ímpetos são um incêndio
as suas são chamas divinas.
Águas copiosas não sabem apagar o amor
nem enchente arrastá-lo (Cânt. VIII, 6-7).
Podemos imaginar a intensidade deste amor na dimensão divina, onde tudo isto era
muito bom, ajudando-nos com o esplendor dos versos do Cântico dos Cânticos, ou de outros
textos bíblicos que
27. Ibidem, p. 157.
33

fazem compreender como a tradição hebraica não tinha preconceitos particulares


contra a sexualidade. O Adão do paraíso terrestre canta as belezas de sua mulher:
Como és bela, minha amiga
como és bela.
Os teus olhos são como pombas
atrás de teu véu;
a tua é coma de um rebanho de cabras
que desce do monte de Galaad.
Os teus dentes são como ovelhas a tosar,
quando saem do banho:
vão todas emparelhadas
e ninguém está sem companheiro.
Como nastro de púrpura os teus lábios
a tua boca é um convite;
gomo de romã são as tuas faces
atrás de teu véu.
O teu colo é como torre de David
construída para dominar o vale:
mil escudos estão pendurados em ti,
todos armaduras de valentes.
Os teus seios são como dois veados
dois gémeos de gazela
que pastam entre as anémonas.
Quando expirar o dia e
se difundirem as sombras,
irei de novo ao monte da mirra
e à colina do incenso. . . (Cânt. IV, 1,6)
tudo isto indica a grande intimidade afetiva entre o homem e seu Criador; a mulher é a
personificação do sentimento que liga o homem da antiga tradição a seu Deus.
A tradição, particularmente nas duas versões, aramaica e hebraica do Alfa Beta28,
conta que o amor entre os dois começa a ser perturbado quase imediatamente. Deste momento
em diante, pensamos que se estabelece uma estreita analogia entre o simbolismo do mito de
Lilith e o de Eva, por isto tentaremos cruzar as modalidades
28. Alpha Beta, cit. por Graves-Patai. 34
das experiências e os valores simbólicos, assim como os levantamos nos comentadores
do Génesis. Eis o mito de Lilith.
O amor de Adão por Lilith, portanto, foi logo perturbado; não havia paz entre eles
porque quando eles se uniam na carne, evidentemente na posição mais natural — a mulher
por baixo e o homem
por cima__Lilith mostrava impaciência. Assim perguntava a Adão:
«__ por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me
sob teu corpo?" Talvez aqui houvesse uma resposta feita de silêncio ou perplexidade
por parte do companheiro. Mas Lilith insiste:
"__Por que ser dominada por você? Contudo eu também fui feita
de pó e por isso sou tua igual". Ela pede para inverter as posições sexuais para
estabelecer uma paridade, uma harmonia que deve significar a igualdade entre os dois corpos
e as duas almas. Malgrado este pedido, ainda úmido de calor súplice, Adão responde com
uma recusa seca: Lilith é submetida a ele, ela deve estar simbolicamente sob ele, suportar o
seu corpo. Portanto: existe um imperativo, uma ordem que não é lícito transgredir. A mulher
não aceita esta imposição e se rebela contra Adão. É a ruptura do equilíbrio. Qual é a ordem e
a regra do equilíbrio? Está escrito: "O homem é obrigado à reprodução, não a mulher".
O Rabi Johanan b. Beroqah disse:
Seja o homem, seja a mulher. . . Foi dito: o homem obriga a mulher a não sair, porque
cada mulher que sai, no final cai. E esta é a supremacia do homem sobre a mulher!
De novo, nós encontramos perguntas e respostas do Rabi Jehoshua: "Por que o homem
solicita a mulher e a mulher não solicita o homem?" Pois bem, esta é a clamorosa resposta do
Rabi a tal pergunta: "A coisa é semelhante a alguém que tenha algo, ele procura aquilo que
perdeu, mas aquilo que perdeu não o procura"}9 É como dizer que a mulher é algo de
inanimado ou de irresponsável ou infiel por princípio; um total objeto!
Mas ouçamos outras perguntas que achamos no Beresit-Rabba:
Por que nos funerais as mulheres vão sempre na frente do morto? Respondeu: Porque
trouxeram a morte ao mundo, elas precedem o féretro ... Por que foi dado à mulher o preceito
29. Graves-Patai, op. cit.
35relativo à menstruação? Respondeu: Porque verteu o sangue de Adão. . .
. . .Por que lhe foi dado o preceito do lume do Sábado? Porque apagou a alma de
Adão.30
Temos já bastante para compreender em que conta era tida a mulher na cultura
rabínica e patriarcal! Legítima, no plano psicológico, era a reivindicação de Lilith. À recusa
de Adão em conceder a inversão das posições no coito, ou seja, recusa em conceder a
paridade significativa à companheira, Lilith pronuncia irritada o nome de Deus e, acusando
Adão, se afasta.
Enquanto isto sucede, Adão é colhido por uma sensação angustiosa de abandono. É a
hora em que o Sol se põe e estão descendo as primeiras trevas da noite de Sábado. Lilith se
afastou. O homem havia oposto um "não" à sua mulher. E vêm as trevas; pela segunda noite
vem o escuro, o mesmo escuro da Sexta-feira na qual Jeová Deus criou os demónios. É o
momento do sono profundo, mais uma vez. O sono é o princípio da queda. "Ninguém viu,
ninguém soube, ninguém acordou" {Sam. I, XXVI, 12).
Que tipo de sono era aquele? Que sopor invade Adão que se obstina na recusa, em não
ver Lilith? É o sopor da profecia, ou o sopor da loucura?
Diz o Rabi Nezirah: Trinta e seis horas serviu aquela luz, 12 da vigília do Sábado, 12
da noite do Sábado e 12 do Sábado. Quando o Sol se pôs na saída do Sábado, a escuridão
começou a aumentar."
Adão tem medo, sente que a escuridão o oprime. Sente que as coisas, todas as coisas
boas, se estragam. Acorda, certamente olha em torno, e não acha Lilith na enxerga. Adão
pensa que a companheira desobedecera mais uma vez seu mandamento. Dirige-se a Jeová
Deus, como filho que confia na experiência e na autoridade paterna. "Procurei em meu leito, à
noite, aquela que é o amor de minha alma; procurei e não a encontrei" (Cant. III, 1).
Agora há o desespero, o amargor por haver perdido Lilith. Pergunta ao Pai e o Pai quer
saber a causa do litígio e compreende que a mulher desafiou o homem e, portanto, o divino.
30. Ibidem.
31. Ibidem.
36
Não a criei da cabeça, mas ela se assoberbou. . . Nem do olho, mas ela é ansiosa por
ver. Nem do ouvido, mas ela é ansiosa por ouvir. Nem da boca, mas ela é faladeira. Nem do
coração, mas ela é invejosa. Nem da mão, mas ela toca tudo. Nem do pé, mas ela é andarilha.
Enfim, Lilith voou para longe, em direção às margens do Mar Vermelho, depois de
haver profanado o nome de Deus pai.
No momento crucial, o que aconteceu? Lilith — afirmou-se — é um demónio. Ora,
sabemos pelas Escrituras que também a serpente é um demónio; portanto, Lilith é o veículo
do pecado, da transgressão.
A serpente-demônio, ou o próprio demoníaco que existe em Lilith, impele a mulher a
"fazer algo" que o homem não permite: em Lilith há o pedido da inversão das posições
sexuais equivalentes aos papéis, enquanto em Eva há o ato de transgressão da árvore, em
obediência à serpente. A serpente, no mito de Lilith, pode ser equivalente à manifestação do
instintivo codificado pela pergunta: "Por que devo sempre deitar-me embaixo de ti? Também
eu fui feita de pó e por isso sou tua igual". Adão, ao contrário, afasta de si a ameaça.
Como está escrito no Zohar: "A minha alma te deseja". Mas alma é nephesch, isto é, a
alma no sono, quando o sono constitui um perigo, o princípio da queda. Nephesch é o grau
inferior, é a base do corpo que nutre; só pode existir unido ao corpo e este existe somente em
virtude de nephesch. Acima desta alma está ruach, ou seja, o espírito. Eles devem ser
sobrepostos para alcançar a totalidade que é expressa pelo Neshama, a ordem divina. O Zohar
continua assim:
Nephesch é um pedestal que serve a Ruah e ruah serve por sua vez de pedestal a
Neshama. . . Recorda-te que nephesch é o grau inferior do corpo, como a parte inferior da
chama de uma vela, cuja cor é escura, fica sempre presa ao pavio e só pode existir unida a
este. Quando esta chama escura fica atada ao pavio, ela se torna pedestal para a parte superior
da chama que é de cor branca e quando estas duas partes da chama se unem,
32. Ibidem.
37elas dão lugar à chama superior e imperceptível que repousa sobre a chama
branca.33
Portanto, podemos ver Lilith como nepbesch e Adão como ruah: a sua união
alquímica, mais do que coniunctio oppositorum, é neshama.
Lilith é a parte inferior da chama de uma vela, aquela que fica presa ao pavio (a parte
que é mais enraizada à terra), enquanto Adão é a parte branca da chama. Assim completa ela
emana luz. Esta é uma meditação que define a ordem vertical dos graus da expressão vital.
Existe um comentário do Rabi Jehudah b. Shimon que pode fazer-nos entender a
motivação colocada na base do protesto de Lilith e da sua competitividade ativada pela
autoconservação:
Aquele que foi criado por ordem de tempo depois de seu companheiro, domina seu
companheiro: o céu no primeiro dia e o firmamento no segundo, e este não traz aquele sobre
si! O firmamento no segundo e os vegetais no terceiro, aquele ministra a estes a água! Os
vegetais no terceiro e os astros no quarto: não são estes que fazem maturar os frutos daqueles?
Os astros no quarto e os pássaros no quinto [. . . ] O homem foi criado por último para
dominar a todos: Apressai-vos a comer antes que (Deus) crie outros mundos e eles dominem
sobre vós, como está escrito: E observou a mulher que era bom [.. . ] Foi persuadida pelas
palavras da serpente.34
Parece, pois, uma lei natural que se tente prevaricar para não se submeter ao domínio
do homem. Lilith pede para ser considerada igual, Eva pensa que não há morte ao assumir a
sabedoria proibida. Lilith desobedece à supremacia de Adão, Eva desobedece à proibição.
Ambas assumem um risco, mediante um ato.
Depois, tudo é diferente.
Mas voltemos a Lilith. No momento crucial no qual Adão lhe negou o desejo, ela
fugiu em direção ao Mar Vermelho, agora odiosa a seu esposo. Jeová Deus proferiu sua
ordem: "O desejo da mulher é para o marido. Volta para ele".
Lilith não responde com a obediência mas com a recusa: "Eu
33. II libro dello Zohar, op. cit., p. 74.
34. Commento alia Gene si, p. 149.
38
não quero mais ter nada a ver com meu marido". Jeová Deus insiste: "Volta ao desejo,
volta a desejar teu marido".35
Mas a natureza de Lilith mudou no momento em que blasfemou contra Deus, e não
existe mais obediência.
Então Jeová Deus manda em direção ao Mar Vermelho uma formação de Anjos. Eles
alcançam Lilith: acham-na nas charnecas desertas do Mar Arábico, onde a tradição popular
hebraica diz que as águas chamam, atraindo como imã, todos os demónios e espíritos
malvados. Lilith se transforma: não é mais a companheira de Adão. É o demoníaco manifesto,
está rodeada por todas as criaturas perversas saídas das trevas. Está num lugar maldito, onde
se produzem espinhos e abrolhos (Gên. III, 18); mosquitos, pulgas, moscas malignas infectam
os seres; urtigas e cardos ferem o pé, covis de chacais se confundem com as pedras, cães
selvagens se encontram com hienas e os sátiros se chamam uns aos outros em lascivas
seduções orgiásticas (Isaías XXXIV, 13-15).
Os anjos com a chama e a espada fulgurante gritam a Lilith a ordem de voltar para
junto de Adão pois, se não o fizer, será afogada. Mas Lilith, no fundo, está amarga como a
losna, afiada como a espada com corte duplo {Prov. V, 4) e responde: "Como posso voltar
para junto de meu homem e viver como uma esposa, depois deste meu gesto e de viver
aqui?"36 Mas não há lugar para a dúvida e a hesitação: os anjos proclamam ainda: "Se
desobedeces e não voltas, será a morte para ti".
E fortíssima a tensão dramática neste evento. O confronto é total, as forças do céu se
medem com as forças da terra e das trevas. Uma suspensão onde há de um lado, ameaça a
autoridade celeste, aò destino sobranceiro; do outro, se decerra a flor venenosa do escárnio e
da afronta. Lilith se posiciona no conflito sabedora do próprio papel:
E como poderei morrer, se Deus mesmo me encarregou de me ocupar de todas as
crianças nascidas homens, até o oitavo dia de vida, a data de sua circuncisão, e das mulheres
até os seus vinte anos?37
Da narrativa da tradição, ao que parece, emerge uma discor-
35. Ibidem, p. 161.
36. Graves-Patai, op. cit
37. Ibidem.
39dância entre a mensagem dos anjos e a vontade divina — Liiith jj tem seu dever
demoníaco por vontade de Jeová Deus e por issof deve permanecer na região do Mar
Vermelho. Por que os anjogl propõem uma outra solução?
;
Uma resposta está na identidade revelada por Liiith: uma iden-l tificação com o
próprio lado demoníaco. É já a simbología da serpente! que a faz dizer estas palavras. Foi
Deus mesmo quem deu a ela o deverí de fazer aos recém-nascidos o que diremos mais tarde.
Um dever,, um destino ingrato, o de Liiith: a sua natureza é, portanto, astuta,' como a serpente
(Gên. III, 1-2), a sua sabedoria de demónio é grande, mas por isso grande é também o seu
sofrimento. Somando conhecimento, Liiith soma sofrimento, que, em seguida, aceita. Liiith se
recusa a seguir os três anjos e lhes diz: "Se eu vir os vossos três nomes ou seus semblantes
sobre um recém-nascído como um talismã, prometo poupá-lo".
|
Os anjos, de certo modo, aceitam de bom grado a má sorte e 1 aceitam pelo menos a
concessão parcial de Liiith. Eles voltam ao '\ Éden, mas Jeová Deus já havia decidido punir
Liiith exterminando seus filhos.
Quem eram eles? Sempre no Alfa Beta de ben Shira lemos que Liiith, acasalando-se
com os diabos, gerava cem demónios por dia, os quais eram chamados Lillim, um nome
próximo a Liiith, que deriva do sumérico LU e em suas várias definições acadianas significa
"multidões" ou então "tolo". Estes pequenos diabos eram conhecidos também na redação
bíblica sacerdotal porque no Targum Je-rushalami, a bênção sacerdotal dos Números VI, 26
contém esta versão: "O Senhor te abençoe em todo ato teu e te proteja dos Lillim!"
Os pequenos demónios foram mortos pela mão implacável de Jeová Deus. A este
cruento extermínio, verdadeira guerra entre o Criador e suas criaturas, se opõe uma vingança
de Liiith: ela mesmo enfurece seus próprios filhos, ou melhor, ajudada por um outro demónio
feminino, segue por todo lugar estrangulando de noite as crianças pequenas nas casas, ou
surpreende os homens no sono induzindo-os a mortais abraços.
Assim é apresentada na tradição hebraica a história de Liiith. Não há uma conclusão:
Liiith permanece na própria liberdade, ende-moniada, quem sabe rainha no palácio do
Demónio, como seu espírito feminino. Do momento em que declara guerra ao Pai, e o Pai a
sujeita ao papel, desencadeia a sua força destrutiva e desde aquele dia não há mais paz para o
homem.
40
LLITH NA TRADIÇÃO SUMÉRIO-ACADIANA
São escassas as fontes que mencionam o nome Liiith. É certa a raiz suméria LIL que
aparece na formação do nome de várias divindades assírio-babilônicas e de espíritos maus,
por exemplo Enlil, Ninhil, Mulil, Anlil.
Na tradição sumério-acadiana se conhece um deus Lillu que literalmente significa
"parvo", irmão de Egime, a "princesa dos me", do qual se tem poucas notícias.38 Na liturgia
acadiana e mesopotâmica se apresentam — como citaremos adiante — preces e esconjuros
apresentando os nomes de Lilitu, Lilu, como figuras malignas de demónios e potências
malignas. Em 2000 a.C. parece que o nome se transformou em Lillake; a propósito, Graves
cita uma tabuleta sumérica de Ur que conta a história de "Gilgamesh e o salgueiro".
Aqui, Lillake seria, também ela, uma figura feminina demoníaca que habita dentro do
tronco de um salgueiro, que era religiosamente guardado pela deusa Inanna, a Senhora do
Céu, equivalente à nossa Vénus, deusa do amor e da guerra, análoga a Ishtar. Há uma
etimologia hebraica difundida que fazia derivar o nome da bíblica Liiith de "Layl" ou ainda
"Laylah", ou seja, "noite" no significado de espírito da noite.
Mas os autores modernos tendem a ligá-lo à sumérica "Lulu", que significa
"libertinagem". Liiith seria, pois, um verdadeiro demónio noturno que excita a volúpia.3'
Como veremos, o nome sofre profundas transformações, mas passa conceitualmente
para o mundo grego mediado pelas Lâmias,
38. Testi Sumerici e Accadia, org. de G. Castellino, U.T.E.T., Torino, p. 325.
39. Cohen, A., II Talmud, Ed. Forni, 1935.
41as Erínies, Hécate ou Empusa, ou seja, sempre como nome de demónios femininos
ou entidades maléficas.
Já no panteão assírio-babilônico das inumeráveis divindades inferiores, como
anteriormente na época sumério-acadiana, Lilith era vista como demónio feminino, um génio
do mal.
Lilith-Lilitu-Lulu é a variável do demoníaco na área hebraica do Oriente Médio,
expressão da paixão turva da sexualidade desenfreada que pode insidiar e submeter o homem.
Aquilo que se afastava da Torah era quase sempre expressão do demónio.
Lilith aparece já na época sumérica representada em um baixo-relevo (ver ilustração
na capa) que achamos reproduzido no texto de E. Neumann.40 Trata-se de uma figura híbrida
disposta em pé, frontalmente, que mantém os braços abertos, os cotovelos dobrados em
direção aos flancos, em ato de oração, as mãos abertas, dedos unidos.
O vulto tem uma evidente conformação rotunda, olhos grandes bem delineados e nariz
regular. A boca está disposta em um grande sorriso, com um frémito imperativo, de
provocação sensual; toda a expressão faz pressagiar a modalidade plástica grega arcaica:
impenetrável, severa, potente e inefável.
O penteado dos cabelos é impressionante, segundo o esquema mesopotâmico ou proto-
assírio: da nuca partem quatro serpentes sobrepostas formando um cone, cujas cabeças,
erguidas em evidente posição fálica, convergem à maneira de um repartido.
A sitnbologia recorda a Kundalini emergente na realização total, como também as
figuras gorgônidas. Das costas de Lilith descem, abertas em ângulo reto, duas asas esculpidas
com exatidão. A energia humana parece concentrada precisamente nas costas e no peito, onde
os seios se protendem amplos e muito redondos com evidente, sombria função sedutora.
Junto ao vulto, são estes traços que conferem à figura uma notável qualidade lunar.
O corpo é robusto, muito feminino até a ampla bacia e o púbis.
As pernas, que pouco a pouco se adelgaçam em direção aos joelhos, perdem a
plasticidade feminina e se fazem animalescas, potentes; antes que pés, são horrendas e
poderosas garras de abutre que despontam dos assustadores dedos rugosos.
40. Neumann, Erich, The Great Mother, Routledge, London, 1976. 42
Os maléolos toscos e lenhosos fazem pensar nas extremidades rugosas da epiderme de
elefantes e rinocerontes! A disposição das garras é simétrica, vertente, com um acento de
domínio; toda a energia poderosa parece afluir e se descarregar sobre as bestiais patas que
pousam sobre o corpo de uma fera bicéfala, que parece uma leoa, agachada. Nas mãos, Lilith
segura dois amuletos que recordam vagamente os dois sinais hieroglíficos da Balança, cetros
de potência, iniciação e justiça. Nos lados, embaixo, um pouco ameaçando a fera de duas
cabeças, estão dispostas duas aves, esculpidas à maneira proto-assíria, cujas cabeças lembram
a águia ou a coruja ou os felinos egípcios; estão em posição frontal, imóveis, as patas unidas,
rígidas, em tudo semelhantes àquelas de Lilith.
São animais vigilantes que rematam a representação.
A escultura está gravada em um triângulo equilátero, cujos vértices inferiores são as
cabeças das duas feras e o vértice superior está na cabeça de Lilith; o escandir geométrico se
funde com o numérico, onde temos os números — começando da base em direção ao alto —
4, 2, 3, 1, expressos na composição dos corpos e das cabeças; Lilith representa o Uno absoluto
que domina sobre 2 feras grandes e 2 pequenas, e por duas vezes se forma o 3.
Pensamos que esta ordem não seja casual, mas exprima um significado cabalístico.
Toda a figuração do baixo-relevo está carregada de energia agressiva concentrada e
vibrante, na estaticidade verdadeiramente enregelante. A expressão de Lilith, reforçada pela
dos focinhos bestiais, é demoníaca, infernal.
Esta escultura, pois, já é uma alegoria, uma escritura fantástica do mito de Lilith: na
consciência popular, a primeira companheira de Adão não é mais uma criatura confiável.
Quando lemos que o demónio Lilith fugiu para o Mar Vermelho em meio a tropéis de
diabos, devemos pensar que o centro de origem do mundo, o mito do Jardim do Éden, o céu
de Jeová Deus, se encontrava na região mesopotâmio-babilônica do Tigre com o Eufrates;
zona compreendida entre a Palestina e o Golfo Pérsico.
O Mar Vermelho ficava, seguramente, fora de todo centro de civilização, além do
terrificante deserto da Arábia, a oeste da Babilónia. Lilith, segundo a imaginação humana,
tendo fugido do Éden, conseguira superar as infernais plagas desérticas desabitadas, e é ali
que inicia o reino de todos os Diabos.
43O tempo que Lilith passa naqueles lugares pode corresponder ao comentário sobre a
Génese:
Durante todo o período de cento e trinta anos durante o qual Adão viveu longe de Eva,
os espíritos masculinos se enamoraram de Eva e ela teve filhos deles e os espíritos mulher se
enamoraram de Adão e tiveram filhos dele. Ou ainda: Durante todos os anos que esteve sob
banimento, Adão gerou espíritos, demónios e diabos da noite. . .
Os demónios têm uma origem muito controversa. As versões sobre sua criação são
variadas e aqui damos, em síntese, algumas.
A primeira versão, que já descrevemos, quer os demónios criados por Deus na noite do
sexto dia. A segunda versão considera os demónios como almas malvadas transformadas por
Deus em espíritos malignos. A terceira quer os demónios multiplicados em seguida a relações
sexuais entre um espírito malvado e o primeiro casal humano (o incesto?). A quarta versão,
evolucionista, citada por A. Cohen, diz:
A hiena macho depois de sete anos se torna um morcego; o morcego depois de sete
anos se torna um vampiro; o vampiro depois de sete anos se torna uma urtiga; a urtiga depois
de sete anos se torna uma abrunheira; a abrunheira depois de sete anos se torna um
demónio.41
Pode-se explicar a transformação corpórea de Lilith, uma vez transformada em
demónio, com esta crença em demónios: "Possuem a faculdade de mudar seu aspecto e
podem enxergar enquanto eles mesmos são invisíveis".
Toda a realidade era impregnada de espíritos malignos e se o olho humano tivesse a
faculdade de vê-los, nenhum homem poderia viver por causa dos espíritos malignos.
Possivelmente, também para Lilith, já terrível, havia um meio de descobri-la e vê-la. O
Beresit-Rabba cita esse expediente:
Quem deseja ver suas pegadas, pegue cinza peneirada e a espalhe em torno do próprio
leito. De manhã vereis algo parecido às pegadas de um galo. Quem deseja vê-la, deve pegar a
placenta de uma gata negra filha de uma gata negra. . . a toste no fogo, a transforme em pó,
encha os olhos e verá.
41. Cohen, op. cit. 44
Recordemos a escultura sumérica de Lilith, as suas garras podem fazer-nos lembrar as
pegadas de um galo, considerado animal das
trevas.
Diabos lillim, Lilith aí compreendida, habitam, como se viu, os lugares sombrios,
sujos e perigosos; entre as pedras, no deserto, entre as ruínas; mas particularmente próximo à
água.
No Talmud, os lugares de refúgio dos demónios são os rios, os lagos, os mares, as
casas em completa ruína, as fontes escondidas ou as nascentes ocultas nos bosques; os
banheiros, os fornos e até as latrinas, os sórdidos mictórios. Por isso, as pessoas — cita
Cohen42 — quando entram neste último lugar ou vão pegar um balde de água na fonte, dizem
"Com licença", ou mesmo: "Com licença, abençoado", e caso entrem numa latrina, fazem
preceder esta frase de uma súplica ao divino. Mas nas ruínas há um perigo maior de acharmos
espíritos perversos, e se é um demónio feminino, o caso é ainda mais perigoso.
A água é o refúgio preferido. Um Rabi conta que um espírito lhe havia sugerido a
presença de um demónio junto à fonte da aldeia.
Para vencê-lo, todos os habitantes, ao alvorecer, deviam golpear com pás e enxadas a
superfície da fonte dizendo "a vitória é nossa". Depois do que, aparecia na superfície um
horrível coágulo de sangue. O Talmud exorta o cuidado com os líquidos mantidos expostos
nas casas: Lilith podia corrompê-los.
Um espírito maligno desce sobre os alimentos e sobre as bebidas mantidas sob o leito,
mesmo que se encontrem em recipientes de ferro.
Uma outra admoestação nos reconduz ao clima que se instaurava naquelas épocas:
Não convém derramar na estrada pública a água que ficou exposta de noite, nem se
regar o piso de uma casa, nem usá-la para fazer cal, nem dá-la de beber aos próprios rebanhos,
nem se lavar nela as mãos e os pés.43
Ainda mais cru é este conselho:
42. Ibidem.
43. Ibidem.
45Ninguém deve beber água na noite de Quarta-feira ou de Sábado; se bebe, o seu
sangue recairá em sua cabeça por causa do perigo. Qual perigo? Um espírito maligno.
Uma advertência particular valia para certas categorias de pessoas sujeitas aos ataques
de Lilith: os homens, as crianças, os inválidos, os recém-casados. De Lilith, uma certa
tradição pensa que tivesse cabelos longos e escorridos; evidentemente uma imagem de mulher
sensual e perigosa. Dela a tradição diz:
Nenhum homem pode dormir só em uma casa; quem quer que durma só em uma casa,
será pego por Lilith (Shab. 1516 — cit. Cohen).
No folclore hebraico tardio, segundo R. C. Thompson, Lilith se torna para os semitas
uma figura terrífica para as parturientes e as crianças, porque os rapta.
A imaginação popular dos tempos babilónicos era marcada pela virulência de Lilith.
Dizia-se que ela não ficava nunca parada em um lugar; nunca em repouso, nem de dia, nem de
noite, sempre dedicada a desafogar sua fúria contra Deus e os homens.
Possivelmente circundada pelos lillim e outros espíritos, se atirava no silêncio da noite
aos cruzamentos dos povoados e por tudo em volta, qualquer pessoa sentia-lhe a presença.
Contam, os testemunhos, de tais demónios encabeçados por Lilith:
. . . eles vão de casa em casa — porque a porta não os segura, a trava não os rechaça,
mas eles rastejam como uma serpente sob a porta; eles se insinuam como o ar entre as frestas
dos batentes. Eles arrebatam a esposa dos braços do esposo; eles tiram a criança do peito do
pai, eles expulsam o homem da casa de sua família.44
Para não gerar confusão entre as várias figuras da demonologia na qual se inclui
também Lilith, damos uma descrição aproximada da hierarquia demoníaca dos tempos
babilônico-suméricos.
Deve-se ter presente que os diabos interagiam e tinham encargos precisos, atribuídos a
eles pela literatura hierática caldéia.
44. Bassi, Domenico, Mitologia Babilonese Assira, Hoepli, Milano. 46
Os demónios, no entanto, não tinham sido todos concebidos
m o mesmo grau de perversidade. Os demónios mais ínfimos da
cultura acadiana, como veremos nos testemunhos das orações, eram
os utukku ou utuk; estes se dividiam em vários grupos, entre os
quais os alu ou alad, diabos muito destrutivos.
Depois haviam os ekimmu ou gigim-gikim, enquanto os rabisú eram diabos guerreiros
e belicosos, que tendiam a emboscar os seres humanos. Masculinos e femininos, eram
teriomorfos, dotados de todos os atributos humanos; os seus traços, como se viu por Lilith em
particular, exprimiam fielmente seu caráter perverso e feroz. Mais frequente era a
personificação monstruosa além de toda imaginação: se conservam no Louvre, no Museu
Britânico, no Museu de Berlim baixos-relevos, cilindros, estatuetas e outras obras onde
podemos ter o impressionante testemunho da demonologia sumério-aca-diana e babilônico-
assíria.
Os diabos eram vistos como dragões imensos com as fauces escancaradas, corpos
híbridos compostos mais frequentemente de membros humanos e partes de leões, tigres,
panteras, hienas, touros, bodes, águias, serpentes, escorpiões, cães, peixes, feras, com bicos e
garras; frequentemente, também cabras aladas e cobertas de horrendas escamas rugosas.
Quase todos estes diabos eram figurados em ato de assaltar, de morder, armar ciladas,
capturar.
Às vezes os demónios aparecem armados de lanças, punhais ou cetros mágicos. Diz-se
de um demónio monstruoso, o mais monstruoso de todos, verdadeiramente repugnante,
chamado demónio "do Vento do Sudoeste", que tinha corpo de cão, patas de rapinante, braços
humanos com garras de leão, cauda de escorpião, cabeça assustadora de um esqueleto com
pedaços de carne e os olhos ainda salientes em profundas órbitas, encimada por cornos de
bode; finalmente quatro grandes asas fechadas. As horrendas e asquerosas figuras eram às
vezes tão insuportáveis de se ver que causavam medo mesmo entre elas! Deve-se notar que
em certos casos os nomes dos diabos — como ekimmu, gallu, anunna — valiam também para
os espíritos bons.
Em certos textos Lilith vem descrita como principal demónio feminino, com um corpo
prorrompente de sensualidade, olhos fulgurantes, braços brancos cobiçantes; a boca e a vagina
vibram como ventosas macias emanando vertiginosos perfumes de prazer, do ,?S usam
"Lilith" com o mesmo significado de "espírito
vento ; em tal caso ela era identificada, especialmente pelas
47populações nómades, com o desapiedado Vento do Sudoeste que sopra, quente e
perturbador, dos profundos desertos da Arábia e sobe em direção ao Norte e ao Oriente, nas
regiões da bacia do Eufrates e do Tigre com uma ação ruinosa especialmente no clima da
Caldéia, onde era com certeza capaz de enfraquecer a vida humana.
Lilith era transportada ou envolvida neste furor elemental. Nos cruzamentos parava
para se orientar e decidir em direção a que casa irromper, através de portas e janelas; em todo
caso, lá onde podia encontrar-se um homem só, ou crianças pouco vigiadas, mulheres sós.
Lembrando da maldição de Jeová Deus e de sua ameaça, Lilith agia de surpresa até
através do ardil.
Para todos, ela era "Lil", isto é, o incubo e a vítima se tornava "Lilit", isto é, o súcubo,
assim como súcuba foi a mulher nas comparações de Adão.
O incubo, quando aparecia na proximidade das casas, dos poços, dos estábulos, gerava
angústia e súbitos despertares do pesado e encharcado sono.
Conta-se que certos homens se sentiam, subitamente, de noite, oprimidos pela
angustiante figura que os cobria com o próprio corpo quente e os abraçava com tal abraço
furioso que nenhum deles conseguia se libertar a tempo, porque Lilith os fazia precipitar
dentro do frenesi da ereção e de um orgasmo demolidor.
Mas certas tradições orais diziam que estes homens morriam ou adoeciam de profunda
melancolia. Outros voltavam quase desfalecidos e exangues da boca de Lilith. Para fugir da
visão do demónio que ameaçava, a vítima fechava os olhos, urrando, mas a terrificante Lilith,
com sua força sexual e psíquica, continuava a fazer sentir sua presença.
Se, ao contrário, a vítima desvia o olhar para não ver a tremenda mulher com seus
seios rutilantes, as escamas, o ventre, as coxas iminentes no demoníaco conúbio, então é
envolta pela respiração gélida e pelo murmúrio escarnecedor, até ser constrangido a voltar de
novo os olhos de maneira a ficar cara a cara com o vulto de Lilith, cujos olhos terrificantes
fixavam a vítima com luz inumana.
Às vezes os homens eram surpreendidos nus no sono, com o sexo em ereção e de
chofre a incubo da monstruosa mulher acocorada sobre seu peito, muda, imóvel e malvada, o
constrangia à penetração abrasante, mas o peso insuportável tirava a respiração. Em todo caso
existe, nestes ataques de Lilith, a recordação de uma sensação de opressão torácica horrível,
uma sensação de impotência absoluta, onde os indivíduos não se sentiam livres, pelo
contrário,
48
ercebiam logo a ameaça de uma feitiçaria. A vítima era subjugada Pelo demónio que
podia fazer-lhe qualquer coisa. O despertar destas vítimas súcubas era sempre penoso, um
grito, o pânico ainda persistindo no gesticular descomposto, as mãos que tentavam arrancar
aquilo que oprime o peito ou a garganta; a mão passa muitas vezes sobre o rosto ou sobre a
boca quase a querer limpar uma invisível «ensação de nojo e impressão viscosa. Há um suor
frio por todo o corpo que se contrai em espasmos ou ânsias por haver sofrido o abraço atroz; a
palpitação cardíaca é paroxística, silvos nos ouvidos que quereriam apagar o sussurro da
horrenda voz de Lilith, persuasiva e perversa. No dia seguinte os homens tocados por Lilith
no sono tinham um profundo mal-estar, sensação de peso, depressão profunda, desconfiança e
choro súbito com dores de cabeça e moleza
nas pernas.
É pois de se notar, nestas descrições, a experiência de Angst, que é a combinação de
pavorosa opressão, terror, pânico, ânsia, susto, que juntos formam a emoção do incubo. À
Lilith é, indubitavelmente, atribuída também a qualidade de vampiro. Desta informação temos
só uma fonte: Ernst Jones, que diz textualmente:
Como os íncubos sugam os fluidos vitais, levando a vítima à consunção, também os
vampiros, frequentemente, pousam sobre o peito da vítima, sufocando-a. A Lilith hebraica,
que Iohannes Wejer chamou princesa dos Súcubos, descendia da babilónica Lilitu, conhecido
vampiro.45
Jones, que por outro lado vê no vampiro o símbolo de desejos sexuais incestuosos
transferidos, diz também que o nome Lilitu deriva de "lulti", que significa lascívia, e não da
palavra hebraica que quer dizer noite.
Foi encontrado um parentesco de Lilith com Alp e Mara, dois espíritos malvados que
sugam o sangue com rituais sexuais.
Era absolutamente importante evitar o contato corpóreo e para isso nem sempre
bastava a astúcia pessoal da vítima — que raramente podia se salvar — mas eram necessários
complicados rituais de esconjuros, fórmulas apotropaicas, rezas e invocações. A liturgia
sumério-acadiana e também a babilônico-assíria reúnem muitas orações e rituais onde a
importância de Lilith como demónio maligno é sempre sublinhada.
45. Jones, Ernst, Psicoanalise áeWincubo, Newton Compton, Roma, 1978.
49Nos textos que chegaram até nós encontramos sempre citado seu nome entre os
principais espíritos do mal, dos quais era necessário se defender. Existe uma suilla sumérica,
ou seja, uma assim chamada oração de "mão erguida", dirigida ao deus Marduk, um dos mais
importantes deuses solares de sabedoria infalível, astro saído do abismo das águas, para
iluminar o mundo e levar aos homens os decretos da sabedoria eterna. Marduk tinha em
particular o sumo poder de manter afastados os demónios dos homens e de curar de qualquer
modo as suas enfermidades; as invocações tinham sempre presente os perigos que provinham
das ameaças noturnas de Lilith.
Reportamos o texto integral da oração que tem estrutura de hino, porque em seu todo é
possível ter-se uma ideia da potência de Marduk no embate com os demónios:
Oração de "mão erguida" a Marduk
(Esconjuro Grande Senhor) do país, rei de todas as regiões,
(Filho primogénito de Ea), que prima no céu e na terra.
(Marduk), Grande Senhor do país, rei de todas as regiões,
. . . deus dos deuses.
(Primeiro) no céu e na terra, que não tem rivais,
que governa as decisões de Ane e de Enlil.
O mais misericordioso entre os deuses,
misericordioso que se compraz em dar vida ao morto,
Marduk, rei do céu e da terra;
Rei de Babel, rei da Esagila,
rei da Ezida, rei da Emathila.
O céu e a terra te pertencem,
as plagas todas do céu te pertencem.
O esconjuro que (garante) a vida te pertence,
a saliva de vida te pertence,
a fórmula mágica de Apsu te pertence.
Os viventes, a turba dos chefes negros,
os animais, quantos se conheçam por nome e vivam sobre a terra,
as quatro regiões inteiras,
os Igigi do universo celeste quantos sejam,
estendem o ouvido para ti.
Tu és o seu deus,
tu és o seu génio protetor,
tu és quem os sustenta na vida,
tu és o seu benfeitor.
50
Misericordioso entre todos os deuses,
misericordioso, que se compraz em dar vida ao morto.
Invoquei o teu nome, declarei tua grandeza,
e louvarei a invocação do teu nome (entre a) dos deuses,
celebrarei tua loa.
Quanto ao doente, saia seu mal!
Namtar, Asakku, Samana,
Espírito mau, Alú mau, espectro mau,
Gallú mau, deus mau, Rabissu mau,
Lamastu Labasu Abbazu,
Lilú, Lilitu, serva de Lilitu,
Namtar mau, Asakku maligno, doença maligna,
trabalhos maus, sujeira, afecção de pele;
(...) febre, icterícia, má cara, língua má,
saiam de sua casa.46
Nos versos 31-36 são relacionados todos os maiores espíritos malignos — os utukkâ
limnutu — entre os quais Lilú e Lilitu, que sem dúvida são referentes à Lilith. O vocábulo
"serva de Lilitu", segundo nos parece, queria provavelmente indicar a prostituta, a meretriz,
ou genericamente a mulher que pudesse, de alguma maneira, estar com indícios de
malignidade demoníaca. As servas de Lilith eram seguramente adoradoras de Anath, "mãe de
todas as coisas", emanações femininas de Ame; era também soberana das trevas, ou seja,
propriamente do além-túmulo.
Os rituais eram baseados na valorização das coisas carnais e terrenas, opostas ao céu.
Muitas mulheres de Canaã eram devotadas ao meretrício a serviço do demónio feminino, mas
seus ganhos eram ofertados ao templo. A prática foi depois banida.
"Entre as filhas de Israel não existirá nenhuma prostituta sagrada..." (Deuter. XXIII,
18)
Lilith aparece entre certos demónios que têm funções precisas e encargos destrutivos.
Vejamos seu significado, acompanhando-os na ordem, para compreender como sua obra se
entrelaçava à de Lilú e Lilitu. Namtar, o primeiro espírito citado na oração, era um utukku da
categoria alú, ou seja, um destruidor.
46. Testi Sumerici e Accadici, p. 334.
51Namtar ameaçava a vida com a peste e a ele eram confiadas as almas danadas.
Essas almas tomadas por Namtar não têm mais nada de humano, mas muito de animal:
cabeças de leões, corpos de chacais, garras de águias e caudas de peixe. Tal demónio estava
unido a Nergal, o deus "destruidor". Destes ou de Namtar se conserva na coleção Le Clerq em
Paris uma tabuleta em baixo-relevo, talvez assíria, onde está esculpido este assombroso
demónio. Assim o descreve Bassi:
. . .Um monstro com quatro asas: duas, as maiores, abaixadas. As outras duas
estendidas. O monstro de corpo esbelto, cuja cabeça é uma glande, se ergue sobre as patas
posteriores, que são de ave de rapina, e pousa as patas anteriores felinas na borda da tabuleta.
Sua cabeça, da qual só se vê, naturalmente, a parte de trás, sobressai da própria borda e
avança do outro lado. Virando a tabuleta se nos apresenta, como primeira coisa, o focinho do
monstro também de caráter felino; as fauces escancaradas, como a emitir um profundo rugido;
os olhos proeminentes e ameaçadores; do conjunto exala uma ferocidade que incute terror. .
.47
O segundo demónio citado na suilla é Asakku, análogo, na hierarquia, a Namtar para a
custódia de Aralu, o além-túmulo. Asakku provocava a "febre da cabeça", isto é, a loucura.
Junto à peste, a loucura gerava o maior medo e pedia muitas fórmulas de esconjuro. Às vezes,
diz a tradição de incerta fonte, podia acontecer que um homem fosse por muitas noites
reduzido à sácubo de Lilith e, depois de uma série de incubos, a vítima era tomada pela
loucura, — por certo as síndromes psicóticas comuns — e agora sim a consideravam
dominada por Asakku, com "febre, doença maligna".
Samana é um demónio de significado incerto, talvez seja inserido no grupo àú, como é
especificado no verso 32.
Gallú é o grupo de demónios guerreiros que, juntamente com os Rabisu, se soltavam
em campanha aberta, nas estradas, nas gargantas escuras das montanhas, fazendo emboscadas
a quem passava pelas trilhas. O primeiro género de demónios, Gallú, produzia horríveis
pragas ou mutilações nas mãos; Rabisu ao contrário (a quem pertence também uma variante
de Namtar) era o grupo de demónios
47. Bassi, op. cit. 52
que em suas incursões queimavam ou dilaceravam a pele ou a infectavam com
pestilências atrozes,
Lamastu, mais que um demónio, é considerado um fantasma, junto com Labasu, o
espectro maligno. Evidentemente eles agiam com a mesma dinâmica dos incubos.
São finalmente citadas na oração, na ordem habitual em todos os hinos, Lilú, Lilitu e a
serva de Lilitu das quais já falamos. Não é absurdo pensar que os demónios, na sugestão e no
psiquismo popular, agissem associados.
Um alú podia se apresentar com os traços de Lamastu, depois assumir o papel de
incubo como Lilitu ou uma prostituta qualquer; o conúbio com a vítima podia provocar, em
agindo Asakku e Namtar, fendas e delírios psíquicos, a seguir a sífilis ou outra "afecção de
pele" como diz a oração. Se a vítima morria, era consignada a Namtar, para ir para o inferno.
Mais uma oração de "mãos erguidas" a "Samas contra o mal causado por sortilégios"
apresenta o esconjuro contra Lilith numa fórmula quase igual. Transcrevemo-na no trecho
central, do verso 27:
L...J
A causa do oprimido e da desprezada tu julgas,
resolves as suas questões.
Eu N.N. filho de N.N., cansado, me prostro,
porque pela ira de deus e de deusa um sortilégio me amarrou:
Utukku, Rabisu, Etemmu. Lilú paralise
as convulsões, o enrugar-se da carne em desvario,
artrite, insânia, me sopesaram
e todos os dias me provocam convulsões.48
Aqui, a relação das enfermidades e das somatizações se faz mais ampla e
particularizada; Lilith provoca fenómenos nervosos de origem claramente histérica.
Em alguns textos cuneiformes sumérios, cujos originais estão no Museu Britânico,
encontra-se Lilith designada entre os "espectros da família". Ela, com outros espectros, podia
atacar um ou mais membros da família. A oração intitulada "Outros espectros da mesma
família" contém um esconjuro que visava afastar o espectro do indivíduo ao qual se havia
prendido, oferecendo-lhe "suborno" de
•48. lesti Suntenci e Accadici, p. 563.
53comidas e bebidas, tufos de cabelo e tiras da sua roupa, além de um fetiche
substitutivo para manter afastados os etemmu, os espectros:
Esconjuro-te, espectro, que não tens ninguém
para te sepultar, cuidar de ti;
de quem ninguém conhece o nome,
mas o conhece Samas que governa,
seja homem, que como homem,
seja mulher, que como homem (se comporta)
Diante de Samas, os Anunnaki,
ao espectro de minha família,
hás recebido um dom, foste favorecido com um presente. . .
Agora escuta isto que te digo!
Seja um espírito mau, ou um mau Alú, ou um espectro mau,
seja Lamastu, ou Labasu, Ahhazu, Lilú, Lilitu a serva de Lilú;
ou "Qual seja maligno", que não tem nome,
que se apossou (de mim, me atormenta)
está preso ao meu corpo, às minhas carnes
às minhas fibras, não se desprende. . ,49
Provavelmente neste exemplo se pode imaginar que Lilith representasse,
simbolicamente, uma situação afetiva inconveniente numa família, ou era criticado o hábito
de um parente de frequentar as prostitutas. No caso em que um homem tivesse uma amante,
pensava-se logo em uma ação de Lilith como "espectro de família".
É interessante, ainda, observar que Lilith era considerada um demónio maligno capaz
de causar doenças. Na concepção mesopo-tâmica, de fato, as doenças eram frequentemente
aceitas como efeito de infestação de espíritos malignos, que enxameavam sob as ordens de
alguma divindade, ofendida com ações voluntárias ou casuais, ou mesmo por intrigas de
magos e feiticeiros.
Para curar, devia-se reconciliar o deus ofendido, ou lançar encantamentos e sortilégios.
Na oração a um deus solar Nusku protetor, o esconjurador trabalhava com ingredientes rituais
compostos de sal, óleo, álcali, recitando a oração da qual citamos uma parte:
Esconjuro. Nusku, rei da noite que clareia as trevas, avanças na noite e escutas os
homens; sem ti não se prepara a mesa no Ekur.
49. Ibidem, p. 605.
54
Sedu, o "Espião", armadilha que captura o Demónio mau,
Gallú, Rabisu, deus mau, Espectro (Utukku), Lilú;
Lilitu se escondem em lugar secreto.
Diante de tua luz faça com que saia o "portador de desgraça",
enxota o espectro, atinja o mal,
Sulak, que vagueia na noite, cujo toque é morte;50
aqui a fantasia se sofreou no relacionar todos os demónios e a intenção é de desalojar o
mais rápido o portador de desgraça, enquanto se augura que o demónio feminino se esconda à
vista.
Podemos imaginar que a ação dos demónios fosse repentina, maciça e oprimente;
Lilith, misturada com os outros, assalta um homem e o agarra. Eis um esconjuro onde nos
damos conta da penetração de um demónio em um corpo. Esta oração é talvez uma das mais
vistosas e dramáticas, mas nos reportamos somente aos versos significativos, remetendo o
leitor ao texto. Aqui a mulher perigosa é nomeada na habitual tríade. Feriu um homem e:
Tomou o coração, a cabeça, o pescoço, o rosto, tomou meus olhos, que viam, tomou
meus pés, que andavam, tomou meus joelhos, que se moviam, ■ tomou meus braços, que
eram ativos.
A um morto me consignaram,
me fizeram ver (tempos) difíceis.
O Utukku mau, o Alú mau, ou o Etemmu mau
o Gallú mau ou o deus mau, ou o Rabisu mau;
Lamastu ou Lamasu, ou Ahhazu
Lilú, ou Lilitu ou a serva de Lilú;
ou a febre montanhesa,
epilepsia, raça de Sulpacea,
ou mesmo anta — sub — ba, "deus mau"
ou também "mão de deus", "mão de deusa"
ou "mão de espectro", "mão de Utukku",
ou "mão de homem" ou Lamastu
ou qual seja mal que não tem nome 50. Ibidem, p. 615.
55Mais ou menos por todo o decurso da civilização neo-assírica com Assurbanipal, a
queda de Nínive em 612 a.C. e, depois, na fase do império neobabilônico com
Nabucodonosor II, até a dominação persa, permanecem ainda vivos traços dos rituais
sumários e acadia-nos, onde se conservam alguns costumes e fórmulas referentes aos
esconjuros contra Lilith. Depois desta fase, provavelmente o arquétipo do feminino rebelde
sofre uma ulterior elaboração passando para o folclore e para o ritual egípcio e grego,
perdendo em parte o caráter de figuração irracional de um terror mágico, anímico, invadido
por cargas apotropaicas que faziam uma expressão ctônica natural. Mais tarde, pelo contrário,
Lilith se estrutura como arquétipo e símbolo das proibições colocadas ao desejo sobre as quais
vão se agregar influências religiosas de culto e psicológicas, transformando-a em verdadeiro
tabu.
Deduzimos que esta passagem, no plano de representação simbólica, veda a
transformação de Lilith de demónio terrestre em figuração astral centrada na Lua. No conceito
de Grande Mãe entra também Lilith. A projeção do mitologema se realiza desta vez no céu, e
é na Lua que o feminino encontra, de agora em diante, o contexto psicológico de uma
cosmogonia interna-externa, onde o sincronismo da astrolatria e depois da astrologia tem sua
função proeminente. Lilith, em um certo sentido, sofre uma cisão; de um lado permanece
como espírito maligno terrestre evoluindo no símbolo da bruxa, de outro lado se torna uma
divindade astral ligada à Lua, dando assim corpo à imagem da Lua Negra.
Sigamos pois a história de Lilith nas duas vertentes, paralelamente, mas tenhamos
presente o processo evolutivo. As mais longínquas populações não tinham a mínima
percepção do mundo interior subjetivo e psicológico; o homem da época de Ur, para dar um
exemplo histórico, tinha apenas noção da realidade concreta bem separada do mundo inferior,
o reino dos espíritos. A vida subjetiva era ainda de todo inconsciente. O mito havia
incorporado Lilith, seguramente dando-lhe uma forma cristalizada em bem precisas imagens
antropomorfizadas (pensa-se na "serva de Lilú" que era com certeza a prostituta, por
antonomásia). Os diabos eram vistos como seres viventes e eram revestidos de atributos
humanos e também eram as concretizações de coisas que aconteciam aos seres viventes.
Sabemos agora que estas atribuições, as figurações, as personificações eram apenas
um limite da correspondência psicológica que se realizava entre sujeito e objeto internalizado.
Assim, os mitos que crescem ao redor de um fenómeno natural representam a percepção
58
de uma verdade exclusivamente subjetiva que vem projetada no ambiente externo ou
também diretamente compreendida como existente no próprio ambiente. Os antigos não
sabiam isso nem conheciam os mecanismos da projeção psicológica: se limitavam a viver o
que ouviam e viam, mas sua correspondência, na relação entre homem e demónio, entre
homem e divindade, entre homem e evento, realizava sempre uma transferência graças ao
processo de simbolização previamente concretizado.
Assim, na grande passagem da concepção da Lua como deus masculino para aquela
onde a Lua se torna finalmente o arquétipo e o "objeto" do princípio feminino e da Grande
Mãe, se verifica também todo um desvio do mitologema ligado a Lilith.
Seguindo atentamente a evolução dos mitos lunares, nós nos encontramos ainda em
presença de uma androginia que se divide. O lunar Sin, que nós vimos invocar nos esconjuros
contra os demónios na liturgia babilónica, é pouco a pouco suplantado por Ishtar, a grande
deusa lunar, mulher descrita vez por outra como Mãe ou Filha da Lua.
Será a correspondente da fsis egípcia. Depois surgirão Shamas e Ra, os deuses solares
masculinos, para completar a nítida separação. Quando a Lua se torna objeto da projeção
coletiva da imaginação inconsciente do feminino, então Lilith sai da demonologia para
assumir caracteres hierofânticos. A Lilith egípcia e grega aparece projetada na Lua.
594
LILITH NA TRADIÇÃO EGÍPCIA E GRECO-ROMANA
A formação do mito da Lua Negra associada a Lilith tem sua raiz típica e específica no
ciclo da Lua, com suas fases. Lua crescente e Lua cheia correspondem à Grande Mãe. Com a
Lua resplandescente no céu, era vivida, analogicamente, a plenitude da fertilidade e do
influxo benéfico em toda a natureza, especialmente na psique feminina. Quando a Lua,
concluída a última fase, desaparece, realiza-se, analogicamente, a dramática Lua Negra, a
"ausente": o demónio da obscuridade.
O homem das épocas egípcia e grega assume uma atitude consequente frente a este
evento astral sincrônico. Com o crescer da Lua, o homem nela projeta a imagem boa do herói
lunar, do rei generoso e sábio. Quando, ao contrário, a Lua desaparece, vive-se
dramaticamente a derrota do rei. Os demónios femininos, o dragão das trevas, tragam o
homem e esterilizam a terra. A história típica de base é, portanto, a experiência das fases
lunares.
Com a projeção do tema interno na lua, Lilith assume um caráter numinoso e religioso,
manifestando assim o lado feroz das divindades femininas. E isto ocorre, supõe-se, com uma
energia ainda mais potente porque, como disse Jung, os deuses são princípios ou núcleos
energéticos que funcionam prescindindo de nossa vontade e de nossa defesa consciente e, sem
dúvida alguma, o homem deve sempre inclinar-se diante do deus, de seu mana, de sua
emanação psíquica. Tenhamos presente que os adoradores dos deuses da área pré-cristã viam
no deus a duplicidade na unidade, para eles bem e mal se fundiam na mesma divindade, coisa
inconcebível para nós cristãos, que temos a grande cisão entre Deus como Bem e Diabo como
Mal. Como era esta deusa Lunar? Ela possuía uma natureza dupla que:
61Na fase de esplendor correspondente à lua cheia, ela é boa, complacente, benévola.
Na outra fase, correspondendo ao tempo durante o qual a lua está obscura, ela é cruel,
destrutiva, maligna. Não é que essas deusas sejam indiferenciadas ou inatendíveis. De fato, a
partir do primeiro dia em que aparece no céu a delgada foice da lua, pode-se ter certeza que
crescerá em grandeza e esplendor, noite após noite, até a lua cheia e, portanto, que decrescerá
até que o brilho da lua "seja engolido" pela lua obscura; assim a deusa apresenta aos homens
primeiro seu aspecto benéfico e depois seu aspecto irado.54
Para sermos claros, estabeleceremos a ordem de comparação da deusa Lua, na cena da
mitologia lunar.
A primeira é Ishtar, a famosa mãe de Tamuz, adorada na Babilónia em 3000 a.C. A
segunda deusa lunar é Astarté (ou Ashtart), adorada por Hebreus, Fenícios e Cananeus, de
acordo com a liturgia acadiana. O seu culto é citado já em 1478 a.C. Depois há a grande ísis
do Egito, presente na área cultural mediterrânea desde 1700 a.C. No último século antes de
Cristo, na Frigia, há, enfim, Cibele. Por sua vez, a deusa lunar celta é Anu (ou Annis), cujo
culto alcança a Europa. Cibele foi posteriormente identificada com as deusas gregas, Rea,
Gea, Demêter, e com suas equivalentes romanas, Tellus, Ceres e Maia. Em cada religião há
também figurações secundárias, mas aqui não é o lugar para citá-las todas. E, frente a esta
deusa Lua, o homem sente-se revivendo a história arcaica de Adão. Um lado desta divindade,
desta "mulher sagrada" não é bom, não se manifesta, assim se recusa a ser vista, foge do céu,
se esconde ou — pior — se rebela. Bem, o homem que contemplava a lua no grande céu
árabe ou egípcio, que a vivia com seus próprios olhos e em seu coração através do culto,
como reagia ele quando a última fase da lua exígua acelerava-se rumo ao horizonte para não
reaparecer mais a não ser após dias e noites sem luar? Ele reagia com espanto e até mesmo
pânico. Provavelmente, é o mesmo tipo de reação do primeiro Adão diante do
desaparecimento de Lilith: uma real e verdadeira crise de abandono, uma angústia de
separação inacalmável.
54. Absolutamente indispensável para o conhecimento do mito lunar e da consciência
feminina são as obras: Neumann, E., La psicologia dei Veminile, Astrolábio, 1975; Neumann,
E., Storia delle origini delia conscienza, Astrolábio, 1978; mais analítico no confronto do
mito: Harding, E., I místeri delia donna, Astrolábio, 1973.
62
Como Lilith fugiu do Éden deixando uma mensagem de rancor e ódio, assim a deusa
Lua "foge" do céu e se faz negra, isto é, vingativa e irritada. E o homem, da terra onde se
sente confinado e dominado, tenta diminuir a pressão da angústia exorcizando a lua ausente.
Aquilo que não se vê não constitui problema. Sem dúvida, mas também: aquilo que não se vê
age sorrateiramente. Ora, é na religião grega que encontramos o exemplo mais frisante de
mudança de um aspecto para outro na Lua. Mas, antes de apresentar a vasta mitologia das
divindades gregas que simbolizam aspectos de Lilith, voltemos a considerar a natureza dupla,
branca e negra, da deusa lunar nas mais primitivas figurações egípcias e nas da área do
Oriente Médio. Pelos documentos — preces, hinos que nos são hoje acessíveis — sabemos
que a deusa Lua era exaltada em suas boas qualidades, mas também temida em sua ira;
algumas preces e invocações que pronunciavam nos ritos noturnos tinham por finalidade a
propiciação da deusa. É o poder maléfico o que mais perturba, mas mesmo a lua branca não
era isenta de arrogância. Se lermos, por exemplo, uma oração do período helenístico, onde
Ishtar se apresenta, vemos que a deusa fala de si na primeira pessoa e se gaba das próprias
prerrogativas num tom quase estouvado, de virago, onde os atributos masculinos ainda se
misturam fortemente com o feminino. Revela-se também, nos versos do texto encontrado por
Reísner, o aspecto primitivo da deusa que assinalará, daqui para a frente, o lado obscuro lunar,
núcleo do mitologema de Lilith. Assinalemos os trechos mais indicativos:
3 Eu sou divina, a senhora do céu, eu exerço a senhoria;
pequenos e grandes eu arrebato de sua estabilidade.
Quando estou no céu à noite
eu (como) luz do céu estou alta no céu 5 [...]
Quando estou em plena peleja
eu sou o coração do cotejo, eu sou o braço do heroísmo. 15 Quando marcho na
retaguarda
eu sou a destruição que assalta maligna. 21 [...]
Quando entro numa rixa
não sou mulher que se insulte. 25 [...]
Quando me sento na porta da taberna
eu sou a cortesã que conhece o amor
63(variante: sou uma ladra). [...]
eu sou uma armadilha
eu sou a melhor pessoa, no seio um punhal afiado. Quando à noite estou no céu eu sou
a senhora que preenche os confins do céu. O meu aspecto nos céus inspira sujeição ante meu
esplendor divino se conturbam os peixes nos
[ abismos .55
Ishtar era calorosamente evocada com preces de forte intensidade emocional e ações
súplices. Evidentemente, a deusa era generosa e benigna, mas também capaz de "virar o
rosto" e, portanto, mostrar-se irritada e punitiva ao esconder-se. Eis uma súplica da qual
citamos a segunda parte. Toda a composição, que tem a estrutura da suilla acadiana, se
destaca de outras semelhantes por seu notável nível artístico. O suplicante, aqui, tenta aplacar
a deusa e implora a restituição de favores:
Eu te evoco, imóvel e exaurido, sofredor, teu escravo; guarda-me, senhora, acolhei
minha prece, considera-me, benigna, ouve minha súplica. Piedade! pronuncia por mim, o teu
ânimo está desenfreado Piedade! para o meu corpo (todo um) gemido, desmaiado e
[confuso;
Piedade! por meu coração enfermo, cheio de lágrimas e suspiros; Piedade! por meus
pressentimentos atormentados, atrapalhados
[e confusos;
Piedade! por minha casa em apreensão, que geme em pranto; Piedade! por meu ânimo
em contínuas lágrimas e suspiros. Ishtar, leão furioso, teu coração se aplaque; touro furente,
teu ânimo se acalme. Teus olhos benignos pousem sobre mim, com teu rosto sorridente, olha-
me benigna, afasta os males perversos de meu corpo e eu veja a tua clara luz
[...]
Agito-me como a onda que um vento encorpa, maligno; voa e esvoaça o meu coração
como o pássaro no ar; gemo como pomba dia e noite.
55. Testi Sumerici e Accadici, p. 94. 64
Encolerizo-me em pranto amargo, entre ai de mim! e ai! se desfaz o meu espírito. Que
mais fiz eu, meu deus e minha deusa? Por que, como se não temesse meu deus e minha deusa,
sou
[tratado?
Cai sobre mim o mal, a hemicrania, a destruição e a ruína Arremessa-se sobre mim a
confusão, deus esconde-me sua face e lança a ira raivosa; Vi, senhora, dias sombrios, meses
tristes e anos de ânsia, Vi, senhora, catástrofes, desordens e violência; abrande-me a morte e a
situação perigosa. Em desolado silêncio está meu templo, em desolado silêncio está meu
santuário, sobre minha casa, bairro e campo caiu um silêncio mortal. O meu deus para outra
parte tem a face voltada, a minha parentela está dispersa, o meu abrigo está em pedaços. Eu
espero, minha senhora, a ti estão presos meus ouvidos, rogo-te, eh! desata meu vínculo, apaga
meu pecado, minha culpa, a minha transgressão e a minha falta. Esquece a minha
transgressão, acolhe minha súplica, afrouxa as minhas cadeias, torna-me livre, mantenha retos
os meus passos e sorridente, entre os senhores, entre os vivos possa eu andar pelos caminhos.
Comanda, e à tua ordem, o deus irado se reconcilia, a deusa, que comigo estava zangada,
retorna. Do meu braseiro, tornado negro e fumoso, a chama de novo se reaviva, o meu archote
gasto torne a encher; a minha parentela dispersa de novo se reúna, aumentem-se as ovelhas,
alarguem-se as paragens. Acolhe minha prostração, escuta a minha prece, Olha-me benigna,
acolhe minha súplica.
Até quando, senhora, ficarás zangada e manterás virado teu
[rosto?
Até quando durará a tua ira, o teu ânimo estará indignado? Ergue o regaço que tens
voltado contra mim, mostra o rosto à palavra graciosa; como água libera-me o rio, o teu
ânimo se acalme.56
56. Ibidem, p. 359.
65Como já dissemos, é a contínua referência à deusa que esconde o rosto irado. A Lua
Negra era interpretada simbolicamente como um inclinar o rosto: a deusa recusava-se a se
manifestar. Numa prece do rei Assurbanipal I, é mencionada a imagem da deusa lunar Ishtar
que vira a cabeça:
Isbtar, cuja natureza é de curar,
insónias, quanto sofro, trago diante de ti:
às minhas palavras cansadas, inclina teus ouvidos,
à minha fala aflita, teu ânimo se aplaque.
Olha-me senhora, porque ao teu estar voltada
o coração de teu servo se entristece.
[ . . . ] 57
No culto babilónico, a lua tem, portanto, atributos muito benignos; estamos ainda
longe da demonização da deusa lunar grega. Ishtar fica zangada em algumas situações, fica
irritada, mas não é destrutiva. A deusa, nestes exemplos, é, antes de mais nada, chamada a
interceder junto a outros deuses irados. No Egito, um valor análogo era atribuído a ísis, a
notável esposa de Osíris. Porém, ela depois assumiu, rapidamente, o significado de imago
mater. ísis, mais que outras divindades, mostrava toda a complexidade do feminino. A rede de
ísis, os véus de ísis são símbolos da fascinação que exercia nas fases, mesmo quando estava
oculta (analógica à viagem aos infernos para reencontrar Osíris). Considerada o Logos, a
sophia, ísis era capaz de regenerar a vida e restituir o amor ao homem, mas mesmo ela tinha
seu "lado negro". Conhecem-se estátuas onde ísis é representada negra.
Harding é de opinião que algumas Virgens Negras, de certos santuários, são uma
evolução da estátua erigida à ísis Negra.58 Pode talvez ísis, vestida de luto por Osíris, fazer-
nos presumir atribuições de Lua Negra? Plutarco faz um paralelo entre a lua minguante e a
ísis Negra. O conceito, neste caso, foi reforçado mesmo na cultura grega dos primeiros
séculos depois de Cristo. Deve-se considerar que nos cultos egípcios prevalecia o
teriomorfismo, pois ainda persistia a identificação com os arquétipos. Os atributos matriarcais
da lua, simbolizados por ísis, se emparelhavam com os atributos de instintividade mais
indiferenciada, e por isso era compreensível que
57. Ibtdetn, p. 465.
58. Harding, E., / misteri delia donna, Astrolábio, Roma, 1973.
66
as imagens não correspondessem mais às conceítuações conscientes, mas fossem
investidas de possibilidades representativas subumanas, até mesmo arcaicas. Os seres
"divinos" egípcios eram, em parte, humanos, e, em parte, animais. Como diz Jung, o modo
como se apresentavam essas figuras dependia da atitude da consciência. Percebe-se de
imediato que uma atitude negativa, de culpa, ira e perversidade, fizesse apresentar, nas
divindades, o lado animal; no outro caso, diante do positivo, se apresentava o lado humano.
Tanto mais terrível era o primeiro quanto mais queria punir-se o suplicante.
Assim, vemos que no sincretismo helenístico, Équidna, uma personificação de Lilith
da qual adiante falaremos mais, era considerada como uma derivação da mãe ísis. No Livro
dos Mortos do Antigo Egito, surgem aspectos da deusa lunar correspondendo à experiência da
morte. Nas preces, encontramos demónios femininos verossimilmente correspondentes às
figuras demoníacas já examinadas para a época suméria. O demónio é metade mulher e
metade serpente, na parte superior. Eis aqui um texto:
Oh tu, da cabeça de Serpente, olha!
Eu sou a chama que brilhará nos milhões de anos por vir!
Eis a divisa de meu estandarte:
"O porvir floresce ao meu encontro"
Pois que sou a deusa da testa de Lince.3
Uma outra invocação, citada na mesma obra, se refere ainda a um demónio serpente-
mulher com a intenção de barrar-lhe o caminho e a obra funesta:
Pare Rerek, para trás demónio da cabeça de Serpente! Olha: eis Shu e Keb que te
barram o caminho. Não te movas! permanece onde estás!
O símbolo da Lua e da meia-Lua Negra aparece constantemente nas representações e
estátuas do culto egípcio. Fora as numerosas representações onde aparece a Lua Negra no seu
quarto minguante, encontramos na arte decorativa egípcia a representação de ísis no símbolo
negro da Lua.
59. II Libro dei Morti degli Antíchi Egiziani, Ceschina, 1953, trad. bras. O
Livro dos Mortos do Antigo Egito, Pensamento, 1985.
67Parece-nos muito interessante uma pintura que representa o deus Sin como senhor
do céu, regente do mundo luminoso e do reino tenebroso. Sin é representado em pé, ornado
com a rica vestimenta real; tem na mão esquerda o "trevo". A figura sagrada está encerrada no
círculo da Lua, em cujo interior, disposta embaixo sob o Rei, como uma barca, está a grande
meia-Lua Negra. Claramente está dominada pelo princípio ativo. Naturalmente a lua é, às
vezes, substituída pela figura de ísis. Marcantes são também as moedas mesopotâmicas de
Megara, onde a Lua Negra — Lilith, já aparentada com Hécate triforme — é representada por
três meias-Luas Negras que giram ao redor de um centro, quase prenunciando o motivo da
suástica. fsis numa estátua de vários materiais tem, numa estatueta arcaica sobre a testa, a
meia-lua negra.
No Livro dos Mortos do Antigo Egito encontramos encantamentos e esconjuros em
forma de hinos que serviam para afastar os Espíritos de cabeça de crocodilo, muito maléficos
e destrutivos. Não excluamos que tais criaturas teriomorfas exprimissem o lado obscuro do
feminino. Jung menciona o símbolo do crocodilo, monstro negro dos infernos, como
transposição da Kore jovem de Demé-ter para o aspecto de Hécate: estamos em presença,
mais uma vez, de Lilith.
Através do Mediterrâneo e da Palestina, muitas figuras divinas dos cultos religiosos
hebraicos e egípcios chegaram à Grécia. Assim vemos no mundo helénico instaurar-se a ideia
base da conexão entre Lua e Mulher. É, de fato, na psicologia dos gregos que encontramos
expressa em grau máximo toda a potência e o alcance do mito de Lilith — Lua Negra. A lua
domina, desde a fase das culturas primitivas, toda a vida religiosa, mas é vivida como objeto
externo, além e sobre-humano, investido de poderes mágicos e atributos que,
necessariamente, permitem o domínio sobre o homem. Existia uma forte identificação entre o
Sol e a Lua e o Rei ou os grandes sacerdotes. Na Grécia, ao invés, ocorre uma tomada de
consciência mais ampla sobre o mundo psicológico humano e as divindades são consideradas
como criaturas vivas nas quais se podia acreditar, operando através de projeções e
identificações. Como diz Kerényi,60 as divindades gregas podem ser compreendidas como
figuras eternas, como grandes realidades do mundo, e seu poder expressivo se deve à verdade
que nelas estava contida. Digamos sem mais delongas que
60. Kerényi, Karol, Prolegomeni alio studio critico delia mitologia, Boringhieri,
Torino, 1964.
68
essas divindades carregavam arquétipos e símbolos num grau excepcional, e
eram constitutivas do inconsciente coletivo grego. A verdade destes deuses ê sempre uma
realidade que se insinua à alma. As figuras divinas gregas, diz Kerényi:
"podem ser comparadas a fórmulas que exprimem com clareza e precisão o equilíbrio
de desmedidas forças cósmicas, fórmulas que sintetizam o mundo em cada um de seus
aspectos, como numa situação-limite, apresentando-o ao espírito de modo a fazer pensar que o
mínimo deslocamento daquele equilíbrio pode provocar a ruína do universo."
As divindades gregas são ideias, ou símiles das ideias. Apresentam-se ao espírito
humano como aspectos do mundo e do cosmos. Como tal, portanto, subsumem, e com
extrema violência, os aspectos mais contrastantes; tais contrastes estão contidos num incrível
equi-líbrio-limite, que constitui a mais evidente característica da psicologia religiosa grega.
Porém, a divindade e a figura grega não são estáticas e imutáveis no tempo como em outros
cultos. Faz parte da estrutura do deus helénico uma realidade psíquica que tem um devir,
modifica-se com uma intensidade semelhante às modificações psicológicas e
comportamentais dos homens. Ora, o que Kerényi chama equilíbrio derivado da situação-
limite, na deusa grega (protótipo: Artêmis), coagula-se ao redor de uma zona liminar, onde os
contrários estão mesclados como um buque de flores. Os opostos extremos se implicam,
como se pode imaginar, são correlatos, ligando entre si, na unidade, os núcleos antagónicos de
uma única ideia. Portanto, a figura divina grega tem em si a ideia como experiência espiritual.
A ideia paradoxal de Kerényi parece rica de verdade: é a ideia mitológica da qual se pode
prever todos os desenvolvimentos possíveis. Desse modo, encontra-se motivada a aparição de
deuses e deusas que exprimem, com enorme diversidade, toda a gama de sentimentos, e no
positivo se mescla o negativo, no homem mal se funda a harmonia do bem, e assim por
diante.
Esta introdução era necessária para fazer compreender como nas divindades helénicas
está expresso o abismo do mundo individual. A Lua Negra não é mais um totem significativo
de uma relação primária onde a subjetividade não é ainda uma noção consciente. Na Grécia,
ela se torna criatural. O demónio se insinua na alma do homem grego e o faz conhecer todo o
horror, sem limite algum, da catástrofe vivida pelo casal bíblico, que se acende na
consciência
69grega como um angustiante trauma reintegrado. Aquilo que na mulher havia sido
visto como proibição, transgressão, imposição dogmática, torna-se, com a aparição de Hécate,
conhecimento do mal implícito na natureza humana. Por razões óbvias não encararemos
extensamente o argumento da Kore e de toda a trama das ampliações do mitologema lunar.
Esboçaremos somente uma síntese, para poder confrontar, diretamente, as iconografias
divinas que personificam Lilith-Lua Negra.
A Lua grega pré-helênica inspira um terror supersticioso devido à singularidade
inexplicável, para a mentalidade arcaica, de sua mudança periódica. No início, as três fases
lunares, Lua crescente (primeiro quarto), Lua cheia (plena), Lua minguante (último quarto)
espelham as três fases da vida segundo a tríade referida à vida da mulher. Virgem corresponde
ao primeiro quarto, Ninfa, à Lua cheia, Velha ao último quarto. Posteriormente a deusa foi
identificada com a variação das estações, ligando-se, assim, ao conceito mulher-lua. Depois a
lua como Mãe Terra, evidente conexão com a fertilidade e a produção vegetal sazonal. Enfim,
surge a tríade hierática: a Virgem do ar, a Ninfa da terra e a Velha do Mundo subterrâneo.
Estas são representações, respectivamente, de Selene, Afrodite e Hécate, como figuras
fundamentais que aclaram o arquétipo da Kore. Para conhecer em detalhes as atribuições e os
numerosos transportes dos nomes, sugerimos aos estudiosos a consulta de obras específicas
sobre o assunto.61 Atenhamo-nos ao esquema essencial. Estas três deusas constituíam, ao
mesmo tempo, uma pessoa una e trina.
Ao seu redor a trindade básica se repetia em múltiplos até o número nove, enquanto
cada uma das deusas-fase era "trina e una" numa só deusa. Desta estrutura derivou depois o
calendário de tempo; ano, meses e semanas.
A figura fundamental é Kore como protótipo da deusa jovem centrada no arquétipo
lunar. Essa é uma matriz mitologêmica e
61. A literatura mitográfica e crítico-histórica sobre a Deusa Lunar grega e a selva de
personificações é muito extensa, não é incólume a imprecisões e aproximações. Como textos
exemplares sugerimos: Kerényi, K., Gli Dei e gli Eroi delia Grécia, II Saggíatore, Milano,
1972; Kerényi-Jung, Prolegomeni alio studio scientifico delia mitologia, Boringhíeri, 1968;
Otto, W., Gli Dei delia Grécia, La Nuova Itália, Firenze, 1961; Graves, R-Patai, R., / tniti
greci, Longanesi, 1978; em alemão há um autor, talvez o mais importante, que hoje merece
ser revisitado com atenção: Roscher, W. H., Ausfuhrliches Lexicon der griech. und rôm.
Mythologie, Berlin, 1884.
70
exprime, em seu nome, a ideia mitológica primordial de onde partem sucessivamente,
todas as germinações de deusas jovens, ninfas, virgens, etc. É de se supor que Kore é a
primeira figura para os gregos que exprime a Alma.
Nas fases sucessivas Kore se torna Mãe e Filha, mas o núcleo conserva seus
componentes de Masculino e Feminino juntos: será Atenas Partenos a deusa derivada, imune
a paixões, enquanto Artê-mis será a deusa que exprime todas as paixões. A Kore, em sentido
absoluto, será, porém, Perséfone, filha de Deméter, e aquela que para nós rege o fundamento
mitologêmico de Lilith e da Lua Negra, na medida em que se distingue das características de
Atena e de Artêmis que estão fora de qualquer atribuição feminina (isto é, manter uma relação
com o homem e a mãe), enquanto Perséfone exprime, como afirma Kerényi,
"estas referências como duas formas de existência em seu limite extremo: num
equilíbrio no qual uma dessas formas de existência (a jovem junto à mãe), aparece como vida,
a outra (a jovem junto ao homem), como morte62
Esta Kore, nas alegorias gregas, é simbolizada pela Lua Branca e pela Lua Negra: o
equilíbrio está na mudança; ser e perder-se; vir e ir embora. Kore-Perséfone conhece o limite
que além do qual é o precipitar-se nas trevas do Hades. Ela se distanciará sempre mais, no
ritual, das características de Atená, Artêmis, da própria Deméter, para identificar-se
totalmente com a Kore-Hécate, irrevogavelmente esposa do deus infernal, Hades, rainha do
Tártaro, guardiã do Mundo Subterrâneo.
O que se percebe, então, nesta nova, complexa personificação
de Lilith?
Percebe-se que Kore é a deusa jovem ainda íntegra, como um buque de flores,
portanto é a Alma em sua totalidade, mas não ainda experienciada em sentido
fenomenológico. Kore está ainda diante de um destino desconhecido, sem consciência do
possível acontecer. Corresponde, portanto, ao conceito, à noção de Lua; a Lua não ainda
distinta e conhecida em suas fases. Perséfone, por sua vez, é a ruptura do equilíbrio, não é
mais a virgo intacta, a Lua, mas sim o último quarto da fase lunar. Kore-Perséfone, que está
no jardim, se prepara para enfrentar o próprio destino; na situação
62. Kerényi, op. cit.
71narrada pelo mito, na qual está colhendo flores e não se apercebe do deus que está
pronto a raptá-la, Perséfone representa a última fase lunar, aquela sutil nesga do astro que
ainda está no céu, numa extrema tensão do significado, do equilíbrio; está próxima ao
horizonte, pode desaparecer e ainda não o faz, mas este é o evento que se prepara. A
permanência no limite ocorre e depois não está mais ocorrendo: o último raio de lua
desaparece, torna-se, assim, Lua ausente, a Lua Negra, a noite imersa nas trevas absolutas;
morte, perigo e queda. Torna-se Lilith que recebe o não de Adão e por isso foge para longe, se
torna ausente do Éden. O extremo limite é superado, a tensão do equilíbrio é infringida: Kore-
Perséfone cingida nos braços poderosos de Hades, arrastada de sua morada e da associação
com a mãe. Aqui se realiza a descida aos infernos, onde Perséfone perde a lembrança das
flores que tinha nas mãos e conhece as trevas mais profundas onde reina a morte. É Lilith no
Mar Vermelho, esposa do diabo. A totalidade está perdida e em seu lugar há a dualidade que
se abre: Kore-Deméter tende à luz, enquanto Perséfone tende às trevas. Usando a terminologia
junguiana, diríamos que é a personalidade extraordinária que deve mensurar-se com os
componentes antagónicos e complementares. Mas Perséfone é ainda a parte que a psique
consciente não consegue aceitar, reconhecer como o resultado de uma remoção que se
perpetua no tempo e é vivida como "mal" e "morte", projetada no folclore. Mas Perséfone é
também "terra mãe", segundo Jung, por isto tem caráter ctônico; e a terra, no processo
estrutural do mito, é correlata à lua porque concerne aos ciclos da natureza vegetal.
Como esta série de transformações realizadas pela Kore parecem paradoxais com
respeito à ideia base! Da figura arquetípica se derivam os vários aspectos que encontram,
todos eles, uma explicação. Mesmo as núpcias de Perséfone e Hades constelam a morte;
"morte" para uma vida, rumo a outra vida; perda de um estado para encontrar um outro.
Conhecemos os complexos aspectos do mito de Deméter relativos à fecundidade, à loucura e
à morte (luto de Deméter; sua dor louca pela perda da filha e a carência decorrente da recusa
da deusa em germinar o grão); esses estão intimamente relacionados ao ritual lunar. A lua
negra simboliza a morte e a esterilidade.
É interessante, parece-nos, ter insistido sobre a figura de Perséfone, porque, nas
variantes sobre o tema mitológico, ela é estreitamente aparentada com Hécate. Na Grécia,
Hécate se torna, talvez,
12
a figura mais representativa do mito de Lilith. Depois dela, será a Feiticeira medieval
que herdará todas as conotações.
Deixemos, pois, de lado o nome de Perséfone para abordar aquele que corresponde
melhor ao esboço que fizemos de Lilith, isto é, o de Hécate, deusa dos infernos.
O nome Perséfone provoca, ele próprio, calafrios: de "phero-phonos", portadora de
destruição. Em Roma torna-se Prosérpina, a temível. Todavia, Hécate é que concentra a carga
imaginai mais destrutiva e aterrorizante. Kerényi define Hécate como a deusa grega mais
intimamente relacionada à Lua. Outros autores sustentam a analogia de Hécate e Selene e, em
Teócrito, há um fragmento, Fattura, onde ela é cantada assim:
. . .oh fulgente rainha imortal, divina Selene,
Mene dos cornos taurinos, errante peregrina do céu,
oh luminosa que ama os cavalos. . .;
Neste trecho órfico sincretista, a deusa é chamada também de Mene e encontramos as
ressonâncias simbólicas do cavalo, típico símbolo, em certos contextos, do demónio noturno;
aqui já se entrevê o símbolo de Hécate-Lilith.63
Figura notável é esta deusa quando surge na mitologia pré-olímpica. No primeiro
momento recebe uma forte projeção popular e o culto se difunde, embora não ao nível da
religião oficial, mas na alma coletiva. Hécate não é percebida logo como parte obscura e
símbolo do proibido. Ao contrário, é louvada, tanto que Hesíodo a exalta em sua Teogonia:
Que gerou Hécate, a quem mais
Zeus Cronida honrou e concedeu esplêndidos dons,
ter parte na terra e no mar infecundo: também do
Céu constelado partilhou a honra
e é muito honrada entre os celestes
e pelos homens. . m
63. Para estas informações e citações, cf. Stella, L., Mitologia greca, U.T.E.T.,
Torino, 1956; Inni Orfici, org. por Faggin, M.; Prampolini, G., La mitologia nella vita dei
popoli, Torino, 1937.
64. Hesíodo, Teogonia, trad. en versi de Faggella M., Senato, Roma; trad. bras.
Hesíodo, Teogonia, a origem dos deuses, trad. de J. Torrano, SP, Massao Ohno-
Roswitha Kempf, 1981.
73No Hino a Deméter somos informados que Hécate é a testemunha do rapto
inesperado da jovem virgem por Hades (ou Plutão), que surge dos abismos terrestres numa
carruagem puxada por cavalos negros. O culto de Hécate apresenta-a primeiro como figura
trimorfa, na Tessália, em seguida nas ilhas da Samotrácia e Lemo, para propagar-se depois,
lentamente, em direção à Ática e à ilha de Egina. Homero nunca menciona a deusa infernal e,
no início do culto, seguramente ela era confundida com Artêmis. Hécate se torna "infernal" na
época histórica e só então receberá o título de Kyon melaina, isto é, "cadela negra". A
transformação da deusa permanece obscura, mas devemos argumentar que ela deve ser
procurada na relação mãe-filha, como já afirmamos. A descida aos infernos da mãe que vai
em busca de Perséfone pode ser o momento mito-logémico onde Kore se transforma em
entidade ctônica. Kerényi afirma claramente que Hécate e Deméter eram uma só figura.
É interessante observar a representação de Hécate na arte e na literatura folclórica
helénica. Antes de mais nada, é uma figura triforme e isso cria uma analogia simbólica com as
três fases lunares expressas numa só, que é a Lua Negra. Certamente não se pode excluir que
o número três, aqui, se referisse à interpretação cósmica de Hesíodo: Hécate como senhora do
céu, do mar e da terra. Uma orientação tripartida um tanto rígida, ligada à harmonia cósmica.
É, ao contrário, um período no qual Hécate se exprime num verdadeiro polimorfismo,
enquanto — como deduz Kerényi — na concepção perfeita, os gregos deixavam lugar até
para a quarta dimensão que é a esfera caótica representada pelo mundo dos infernos.
Quando um Deus ou uma Deusa "morrem", não são mais vistos, não são mais
percebidos; tornam-se, como divindades, "mortos" sobre a terra. A não-presença é morte, é
um outro mundo. A divindade penetra então no segredo do reino dos mortos (as noites sem
luz, pesadas de angústia, similares na imaginação ao sombrio tártaro) e ali se transforma:
Hécate-Kore se torna Hécate dos Infernos. Os dois aspectos se antagonizam.
A imaginação dos gregos fixa um aspecto preciso desta nova figura de Lilith. O nome
Hécate pode remontar a Hekation, que quer dizer "cem". Parece que cem eram os meses
lunares durante os quais o trigo crescia e era colhido com rituais dedicados a Hécate. Não
existe ainda a figura típica dos íncubos e dos Demónios até agora descritos; esta Hécate-Lua
Negra é antes de grande beleza; talvez devêssemos imaginá-la como a Circe homérica.
74
Baquílide, o lírico grego de Ceo (520-450 a.C.) que se define como o "rouxinol de Ceo
da língua de mel", num epnício cita a deusa chamando-a "portadora da tocha, filha da Noite
de negro regaço". E o maior deles, Píndaro, descreve a imagem de Hécate chamando-a:
"graciosa moça dos pés purpúreos"
Um esplêndido cálice-cratera ático com figuras vermelhas, atribuído ao ano 440 a.C,
conservado no Metropolitan Museum de Nova York, mostra a encantadora Perséfone, que
salta fora da terra, do Averno; e extenuada, trémula, protegida por Hermes, volta para a mãe,
Deméter. Precede-a, no itinerário, representada com forte ênfase, a figura central de Hécate. A
deusa está desenhada com traços de grande leveza, corpo flexionado e, enquanto o passo se
decide para a frente, os ombros e a cabeça se inclinam para trás: Hécate olha Perséfone com
grande intensidade, quase a arrastá-la imperiosamente para fora dos profundos receios
infernais; entre as mãos tem duas tochas, o facho inextinguível que lhe fez ser atribuído o
epíteto de Hekate Phosphoros. Na figura está concentrada grande energia e se percebe
claramente a função de guia dos infernos.
Hécate aparece esvoaçante e mais agressiva, na cena do "Apoio citarista nas núpcias
de Tétis", onde é esboçada de perfil, a clássica cabeleira presa, apertando nos punhos, de um
lado, o archote, do outro, a espada. A cena está pintada numa cratera ática, também essa com
figuras vermelhas, que se encontra no Museu di Spina em Ferrara. Uma outra representação
de Hécate, talvez a mais impressionante, pode ser vista no Altar de Pérgamo, que foi erigido
na Acrópole da cidade por Eumena II, em 180 a.C. Hoje, muitos fragmentos desta obra
imponente se encontram no museu de Berlim Oriental.
Na cena da gigantomaquia está representada Hécate como uma ousada figura tríplice
que, auxiliada por cães infernais, ao mesmo tempo ataca e defende, com seus três pares de
braços. Toda a obra e muito viva e exprime o choque da energia liberada. Conhecemos, ainda
no museu berlinense, uma ânfora de mármore sustentada por Hécate, vista aqui em sua
passagem de Artêmis a Hécate infernal. Kepete-se o motivo das três figuras lunares dispostas
em vértice, de costas; bem ereta e altiva, a figura assume características quase
15guerreiras. Cada uma tem na mão o archote, o cântaro, as chaves. Há o detalhe do
cão, acocorado ao lado da figura que tem o cântaro, revelando, mais uma vez, o nexo entre
lua-mulher-cão-mãe. Aqui, os traços são humanos e há ecos da Kore. Mas não escapa do
testemunho artístico a versão polimorfa folclórica de Hécate. Num fragmento de Sófocles, do
drama Rhizotomoi, quase inteiramente perdido, lê-se que a deusa preside os "trívios sacros"
das cidades gregas, é coroada com ramos de carvalho e tem serpentes em lugar dos cabelos.
O Hino Órfico já prenuncia a transformação do mitologema de Hécate-Lua Negra.
Hécate perde os traços de luz pura e total, fundindo-se com os traços tenebrosos. De fato, o
Hino une os atributos de Hesíodo, "celeste, terrestre e marinha" aos de "trívia sepulcral e
noturna". Mas a alma popular se apodera plenamente da figura enigmática e acompanha seus
episódios tumultuosos e variados. Talvez por isso nós vejamos em Hécate a representação
mítica de uma projeção pouco elaborada sobre o plano objetivo e religioso; ativa no
inconsciente e na fantasia, com todos os encargos afetivos e emocionais que desencadeava —
clara testemunha do dinamismo erótico removido — uma memorável lembrança que se
aparenta com a experiência sumério-acadiana-egípcia. Em Roma, no Museu do Palazzo dei
Conservatori, há uma estátua figurando Hécate. Esta é composta por três mulheres, coladas
entre si pelas costas e dispostas como vértices exatos de um triângulo. Cada figura está
vestida com peplo e tem uma coroa. Na mão, as três figuras têm látegos, cordas, archotes,
espadas, serpentes. De tudo emana uma força agressiva. Sucessivamente Hécate perde os
caracteres antropomórficos e se torna teriomorfa e híbrida. Os helénicos logo deram
proeminência à força destrutiva de Hécate, em prejuízo da força criativa. E é nesse ponto que
se identifica à Lilith hebraica companheira dos diabos. É horrível; atrai para a própria imagem
as emoções mais violentas, desencadeia os sentimentos de pânico mais terrificantes. Agora é
uma mulher com três cabeças: uma de cão raivoso, uma de vaca e uma de leão. Apolônio de
Rodes chama-a rainha das feiticeiras e Ovídio (Metamorfoses, XIV, 405) a descreve com
aspectos terríveis. Seu nome já é impronunciável, ao lado do das Erínies que eram chamadas
Eumênides, e do próprio Hades a quem se preferia chamar Plutão: isto provocava menos
medo. A figura assim descrita faz reviver a hipótese de que o amor já significava morte,
exatamente porque está entrelaçado com eros e com o demoníaco. A tricéfala se torna sempre
mais repelente pelas características que
76
assume. Sua estátua era escura, muitas vezes negra; ficava habitualmente localizada na
encruzilhada de três caminhos (trivium), onde era cultuada. Hécate, portanto, aparecia nas
estradas e seu poder aumentava e se manifestava plenamente depois do pôr-do-sol, quando as
trevas desciam sobre o povoado e as estradas permaneciam
desertas.
No fim de cada mês, talvez ao término do ciclo lunar, eram-lhe oferecidos sacrifícios
animais, com frequência ovelhas negras. Certas
£ontes __ o próprio Jung, falando da deusa ctônica — mencionam
até sacrifícios de sangue e de crianças. Retorna, assim, o mito arcaico que quer que as
crianças sejam as vítimas preferidas de Lilith. Hécate era voraz, insaciável. A referência à
oralidade sexualizada é evidente. Na sucessão das fases do culto, incrementa-se o caráter
mágico e supersticioso da deusa infernal. Tudo nela se cerca de mistério, angústia, odor de
morte, terror, embriaguez patológica que beira o prazer histérico. Para as estátuas de Hécate
eram levadas
__ como rito propiciatório — alimentos vermelhos à base de ovo,
cebola e peixe. Eram colocados em pratos ou cestos depositados aos pés da deusa. É
curioso notar que tais alimentos, naturalmente fáceis de se deteriorarem pela exposição, eram
consumidos durante a noite por cães vadios ou por pobres mendigos promíscuos, talvez junto
com prostitutas e ladrões; todas as figuras marginais, em suma, que já então constituíam o
mundo noturno das larvas humanas, que sofriam o fascínio-proteção da Senhora da Noite.
Aquele era o famoso "Hekates déipnon", o pasto de Hécate, e desse costume deriva a frase
popular Hekateia Katesthíein, isto é, comer os alimentos oferecidos a Hécate. O rito nasceu,
pois, com um componente não cultural e o caráter noturno deriva, certamente, da prática de
cumprir estes furtos sacrílegos! Essas oferendas tinham o objetivo de aplacar Hécate,
dissuadi-la de suas más intenções e desviar o mal que suscitava em suas terríveis aparições.
No trigésimo dia após o falecimento de um homem, usava-se oferecer-lhe, com grande
temor, os sacrifícios já especificados: eram degolados cordeiros negros e cães novos. Outras
fontes falam de oferendas de leite, mel, menta e rosmarino. Os ritos se concentravam em
grande número nos dias de lua nova. Todavia, malgrado essas cerimónias obscuras nas
encruzilhadas e a disseminação de estátuas ekateion, o culto nunca adquiriu autoridade oficial,
permanecendo mais no domínio do privado.65 Secundário nas regiões
65. Prampolini, op. ai.
77importantes, tal forma de culto beirava, muito frequentemente, a superstição mais
manifesta. A fantasia popular muitas vezes se excitava nessa direção, e nos símbolos de
Hécate se coagulava evidentemente uma série de sugestões e fantasias autopunitivas.
Contudo, nem sempre Hécate era percebida como a deusa dos infernos, ávida de mortes e
dores; algumas vezes era vista como bruxa, como mulher perversa e lasciva, que enfeitiçava
suas vítimas. As aparições inesperadas de Hécate eram repentinas e imprevisíveis. Parece que,
do fundo da noite, a deusa comparecia à terra, parando exatamente nos trívios (donde se
derivou o termo "trivial"): era precedida pelos cães do Estinge, o odiado rio infernal; talvez
até por Cérbero, a espantosa besta tricéfala que a obedece, ladrando para provocar horror nos
súcubos e advertir os moribundos. Fala-se também de uma matilha de cães, multidão de
fantasmas, espectros e, em particular, demónios femininos que constituíam a corte diabólica
de Hécate.
Sua presença era pressentida mesmo em lugares bem protegidos, mas suas principais
vítimas continuavam sendo os míseros viandantes, que nas encruzilhadas eram atacados por
ela e, confusos, perdiam a orientação e o caminho certo. A fantasia obscurece eventos
possíveis: ou a experiência orgiástica com prostitutas e figuras imundas, ou reaçÕes de pânico
diante da tremenda escuridão, com fugas ou quedas desastrosas. Em certas representações
Hécate tem cabeça de cavalo; tal símbolo nos recorda, como diz Jung, a libido fixada na Mãe
e o cavalo é, muitas vezes, associado à bruxa, ao feminino perverso. É conhecida a
experiência angustiante de um rumor de cascos de animal que se aproxima no silêncio da
noite. Seguramente havia tochas que clareavam o trívio mas isto aumentava ainda mais o
pânico. Harding assim descreve Hécate:
É a Deusa Triforme da Encruzilhada que desencaminha o viandante e, como Rainha
dos Fantasmas, viaja na noite seguida de horrível séquito de espíritos que a cercam em toda
parte e de cães ladrando (até na Idade Média se "viam" bruxas voando pelo céu noturno
guiadas pela própria Hécate). É a Deusa das tempestades, das destruições, dos terrores da
noite. "De fato — como diz Plutarco — a lua crescente é de boa índole, mas a lua minguante
traz doença e morte".6*
66. Harding, op. cit. 78
Tenhamos presente que é a época em que Sófocles nos conta o mito de Édipo. O
drama da relação entre masculino e feminino, portanto, se dilata na terrível tragédia do laço
edipiano. Na Grécia, a mãe é potencialmente negativa, pois é percebida como obstáculo à
integração viril. O grego consignava todas as pulsões instintivas à imagem de Hécate: as
obscuridades do inconsciente vagamente percebido eram identificadas com a dissolução e a
morte. E o prazer era a própria morte, o desconhecido. Hécate se torna maga, bruxa, demónio
noturno, megera, que provoca doenças e morte. Na Ática, o mitologema explode como
manifestação máxima, em nosso entender, do conflito entre tendências incestuosas edipianas
reprimidas e o impulso para a separação da mãe. Mas, hoje, em psicologia, se diz que o
removido volta à carga através de um reforço da destru-tividade e do sintoma, exatamente
para extremar o conflito ou o impedimento. Por isso, Hécate aparece no folclore não só como
aspecto diabólico da Mãe impositiva, mas também como tentação irascível, concubiscência
irrefreável de eros. Disso deriva a conexão tanatogênica e patogênica: na noite, aquele que
percebia o longínquo uivar dos cães à lua minguante, ou o estrépito de cascos de animais, os
gemidos do vento, das criaturas perdidas no escuro diante da estrada deserta, acordava —
homem ou menino que fosse — assustado e em pânico, o olhar perdido ainda detido em
imagens horrendas de prazer e morte, desejando expulsá-las, mas indicando que ainda
estavam ali, sobre o tórax, opressivas, trémulas, comprimindo coração e pulmão. O pânico
que desencadeava não era facilmente controlável. Todos os homens procuravam propiciar a
deusa. Já mencionamos o rito mais usual da oferenda de alimentos. Mas outros costumes são
lembrados. Tung cita a famosa estaca da tortura que na Grécia se chamava, precisamente,
hekète e à qual eram atados os condenados ou pendurados os justiçados. A atribuição do
nome da deusa a este instrumento de tortura é associável ao conceito da "Mãe da Morte ' e aos
assassinos que eram executados nas noites sem lua.'1' A estaca era, de preferência- colocada
nos trívios. A personificação da deusa lunar negativa se ampliou depois do século VI a.C:
aparecem as figuras das Empusas, as Erínies, a feroz Équidna, as Fúrias. As passagens e as
interpolações mitologêmicas não podem ser encontradas em fontes históricas. Conhecem-se,
entretanto, rituais precisos chamados "Mistérios de Hécate", que deixaram pou-
67. Jung, Cari Gustav, Simboli delia trasformazione, Boringhieri, Torino, trad. hras.
Símbolos de Transformação, Petrópolis, Vozes, 1982.
79cos traços literários. É lembrado que Diocleciano instituiu o culto em Antióquia
onde, numa gruta subterrânea — a qual se tinha acesso descendo trezentos e sessenta e cinco
degraus (o ciclo solar anual) — eram celebrados os mistérios de Hécate.
Em Roma houve uma certa difusão dos mistérios de Hécate por volta do século IV
a.C. Nessas cerimónias, era costume quebrar uma vara chamada leukophyllos, planta de
folhas brancas. Essa vara protegia as virgens, em honra da origem de Hécate, que fora, ela
também, uma Kore. Parece que essa mesma vara tinha o poder de enlouquecer quem a
tocasse.68 A propósito, diz-se que o demónio feminino — fosse ele Hécate ou Empusa ou
outro — gozava até do triste privilégio de provocar a loucura. Este dado é importante, porque
claramente a superstição tem origem na suposição de que a lua provocava crises
neurastênicas, acessos de epilepsia e delírios. De resto, sempre foi sabido que certas
belíssimas meretrizes ou mulheres de prazeres conseguiam tirar o juízo dos homens que se
envolviam com elas. Nas versões positivas, ao contrário, a Deusa lunar podia provocar visões,
alucinações e fantasias místicas. As visões noturnas, por outro lado, penetravam na
psicopatologia do pesadelo e dos delírios provocados por ataques de angústia.
Hécate tem seu reino no Tártaro, e o ingresso a ele se faz por um bosque de álamos
brancos sempre movidos por uma forte brisa. Ficava na confluência dos rios malditos que
nossa memória bem recorda: o Estinge, o Aqueronte, o Averno, o Lete. Dante também os
nomeia, quando fala dos reinos infernais. Mais além de tais confins se encontra a pradaria de
asfódelos e o palácio, onde vivem Hades e Perséfone. Hécate lhes faz companhia, ela que tem
o poder de conceder aos mortais qualquer coisa que desejem. Fontes mais tardias confundiram
Hécate com Cérbero, considerando que a Deusa tinha também os encargos de guia e guardiã.
A morada de Hécate era cercada de álamos negros e ciprestes. Mas Hécate vinha à terra com
muito maior frequência que Hades ou Perséfone: precisamente há cada vinte e oito dias. Por
isso, em suas aparições, essa Lilith grega espalha terror: é aquela que fere de longe, a seu bel-
prazer.
Se não é sua presença que se desencadeia com violência, então são as Empusas ou as
Fúrias a se fartar quando surgem durante a noite. Essas numerosas filhas eram chamadas
servas de Hécate, ou "cadelas negras". Esta figuração da mitologia é talvez a mais terrível
criação da imaginação grega. A Empusa, que literalmente significa
68. Ibidetn. 80
"aquela que se introduz à força", é o demónio feminino que obedece à Senhora Negra
da Noite. Em tudo semelhante, em sentido mitológico, à Lilith hebraica, dela difere pelo
aspecto corpóreo.
A Empusa é uma mulher com cabeça e tórax humano; em lugar dos cabelos, tem
serpentes retorcidas e sibilantes; os braços são animalescos. Sua característica mais
repugnante é a presença de nádegas de asno, cinzas e ásperas; as pernas são, uma de asno, a
outra de bronze pesado. Os pés, um humano, e o outro uma garra de águia ou um casco
equino. A acentuação dos traços equinos se deve à simbologia do asno, que o faz emblema de
obscuridade, das tendências satânicas, e, às vezes, indica luxúria e imoderação sexual. É um
símbolo de Saturno, na acepção tríplice de luxúria, avareza e morte. A Empusa, segundo as
fontes clássicas — de Aristóteles a Filostrato —, calça uma sandália dourada, exatamente
como Hécate, que usava sandálias de ouro, prerrogativa de Afrodite, para distinguir a origem
olímpica de Kore. Segundo certas versões transmitidas através do tempo, a Empusa aparecia
de improviso aos quadrívios e trívios das habitações, levada por uma carruagem puxada por
cães que ladravam, e toda envolta por uma vesícula cheia de sangue e de matéria fétida, com
um sorriso desdenhoso e sedutoramente irresistível. A Empusa representa o ataque de
fantasias e desejos que em vão são censurados. A sua irrupção — mesmo essa noturna — na
consciência de alguém que dorme ou do viandante é sempre um violento frenesi lúgubre para
seduzir os homens.
Embora no sincretismo simbólico ela seja confundida com a própria Hécate, a Empusa
aparece na esfera imaginai como algo mais vívido e implacável, porque tem uma vibração
mais demoníaca e é capaz de fazer explodir terrores mais arcaicos e incontro-láveis. A
aparição deste demónio estava sempre relacionada com situações sexuais, transgressões da
moral matrimonial ou perversões secretas. Sua atividade está explicitada em seu nome: entra à
força nas casas, assalta em locais tenebrosos os moços e as mulheres, aterroriza os homens.
Graves69 diz que a Empusa costuma agredir de improviso, mas é possível enxotá-la gritando
em sua direção, e na de seu obsceno séquito, impropérios, esconjuros e cruentas blasfémias
mágicas. A Empusa, em tais apuros, afasta-se com altos gritos estridentes. Entretanto, muitas
vezes o demónio tem transformações extremamente complicadas, conforme as manipulações
introduzidas pela superstição popular e pelas pressões psicológicas derivadas do
69. Graves-Patai, op. cit.
81costume local. Assim, vemos a Empusa assumir o aspecto de cadela, de vaca, mas
também de jovem sensual belíssima e portadora de poderes capazes de seduzir à distância.
Ocorre-nos imaginá-la como a mulher de O pecado, a branca e desnuda criatura sinistra,
pintada por Franz Stuck (Museu de Mónaco da Baviera), capaz de perturbar com seu erotismo
carnal, envolta no negro manto de pítons. Se as Empusas se apresentam como mulheres,
penetram então no quarto onde dorme um homem e se esmagam contra ele, sobre seu corpo,
sugando-lhe todas as forças vitais. Depois o extenuam com tremendos abraços aos quais a
vítima não consegue subtrair-se. Aqui deve-se observar a qualidade lunar da Empusa, porque
somente em virtude dela lhe é possível assumir aspectos de beleza humana e também de
sedutora.
Naturalmente não perdemos de vista o fato de Hécate ser uma deusa que participa de
todas as decisões do Olimpo, que possui poderes no céu e na terra e é tida em grande conta
por Júpiter.
Agora que conhecemos uma outra figura demoníaca, passemos a considerar as outras
"irmãs" ou "servas" de Hécate, também elas derivadas de Lilith. Falamos das Lâmias, das
Fúrias, de Équidna. Deste modo se completa o excepcional quadro de manifestações da Deusa
obscura.
Lâmia é a belíssima filha de Belo; no mito, é considerada deusa governante da Líbia.
Conta-se que Zeus, para confirmar seus méritos, concedeu-lhe o singular poder de tirar os
olhos das órbitas e recolocá-los à vontade. Dão-nos a notícia Diodoro Sículo, Plutarco e
Estrabão. Lâmia gerou alguns filhos de Zeus, entre os quais Scila, terrível criatura destrutiva.
Mas a grande Hera ficou possuída por ciúmes profundos desta preferida e, para vingar-se,
estrangulou todos os seus filhos, com exceção de Scila. A reação de Lâmia — conta o mito —
foi tremenda e imprevista: começou a matar todos os filhos das outras e, em seu furor cego,
perdeu os traços da própria beleza até o ponto de seu rosto se transformar numa máscara de
incubo. Desde então, Lâmia se arrasta para onde haja crianças, pérfida e desapiedada; rapta-
as, esconde-as, mata-as, insaciável. Por isto, ajuda dignamente Hécate e podemos considerá-la
o demónio feminino mais difuso e perigoso.
Para Graves '°, Lâmia devia corresponder à deusa líbia Neith, soberana do amor e da
guerra, porque neste sentido Platão identificou Atená. Na Grécia assumirá os traços
belicosos, mas o culto
70. Ibiden 82
havia decaído de tal modo que permanecia somente uma figura-espantalho, agitada por
mulheres e por amas como castigo para crianças inquietas. O nome de Lâmia pode derivar de
Lamyros, Lai-mos, isto é, "garganta". O sentido que se deve apreender é certamente o de
cobiçosa, ávida, luxuriante ou depravada. Jung acrescenta a possível versão caverna, abismo,
voragem, referindo-se ao motivo de Lâmia como Mãe devoradora ou do grande peixe voraz
lembrado por Frobênio.
Como é imaginada Lâmia? Ela tem um aspecto horrível e terrível, às vezes
absolutamente repelente. As fontes reportam com alto grau de concordância a característica de
Lâmia: possuir uma máscara profilática da Górgona. Esta, como se sabe, era uma deusa que
assustava um pouco os navegantes (Homero menciona-a na Odisseia, XI, Ò53-35).
Os olhos da máscara são flamejantes e fixos, numa tal expressão agressiva que suscita
pânico. Da boca sai uma língua túrgida deformada, maior que o recinto dos dentes
longuíssimos. O objetivo dessa máscara era fazer qualquer pessoa retroceder de um lugar,
enquanto as Lâmias usavam essa máscara durante os mistérios onde se consumavam
sacrifícios de crianças. É interessante mencionar a ideia de Aristófanes, segundo a qual a
Lâmia possuía características hermafroditas porque tinha também um phallos. Segundo
Kerényi, pode-se falar delas no plural — e por isso Lâmias —, o que se justifica pelo fato de
ela poder se transformar em mais de uma figura ao mesmo tempo. Até lhe era concedido
assumir o semblante de Hécate ou transformar-se em mula, novilha, com mais frequência em
cadela ou até numa mulher belíssima.71
Também as Lâmias acorriam aos trívios e, durante a noite, se uniam às Empusas para
consumar as mesmas empresas nefastas. Preferiam deitar-se com os jovens em amplexos
devoradores, ou sugavam seu sangue. O detalhe do vampirismo das Lâmias pode ser visto
como a readvação, na psique grega, de fantasias canibais ou ideias de relação sadomasoquista
(Incubos-Súcubos). H. Freimark, citado por Jones, escreve o seguinte:
"As Lâmias gregas e romanas são, ao mesmo tempo, demónios lascivos e vampiros.
Procuram fazer com que os jovens belos e fortes se enamorem, e casem com elas. Depois os
matam, sugan-do-lhes o sangue." n
71. Kerényi, K.; Gli Dei e gli Eroi delia Grécia, vol. I, p. 42.
72. Jones, E., op, cit., p. 111.
83A lenda de Lâmia se entrelaça com a da Empusa, e em comum têm o vampirismo
que conduz a vítima à morte.73 Sem dúvida, devemos tomar esse elemento do folclore como
um dado simbólico: na relação psíquica que o sujeito mantinha com a Lâmia, produzia-se uma
perturbação sexual também em sentido autoerótico. É conhecida na tradição a crença que a
masturbação ou o excesso adoecem o corpo, "destroem a carne", etc. A mesma
"concupiscência" era vivida como perda da vitalidade. A temática das Lâmias é semelhante à
de Lilith: isto é, a liberdade e a paridade na relação amorosa com o macho. Aquilo que foi
recusado à Lilith hebraica, de fato, é retomado e imposto — quase por uma lei de contra-
passo — pelas Lâmias. Nos amplexos sexuais, as Lâmias submetem o homem, que fica
embaixo enquanto o demónio o cavalga. Existem baixos-relevos áticos onde são
representadas Lâmias cavalgando viajantes adormecidos. A posição tinha duplo sentido: uma,
para o coito propriamente dito, a Lâmia se agachava com a vagina sobre o membro ereto do
homem; noutro sentido, esmagava-o com os joelhos apoiados sobre o tórax, oprimindo-o no
sono com excitações oníricas e polução, com a violência da Mormolyceia.
Através de Apuleio, sabemos que, segundo a cultura daquelas regiões, a mulher podia
ser considerada como meretriz e, portanto, como desprezo ao significado natural do amor,
era-lhe atribuída, no coito, a posição "por cima" que, na tradição, havia sido recusada a Lilith.
Na escultura helenística temos algumas representações de Lâmia. Na Lícia, com
população não grega e de civilização jónica no século IV-V a.C, foi erigido, em Xantos, o
famoso monumento às Harpias. Nessa apreciada obra, cujos fragmentos estão hoje no Museu
Britânico, os relevos apresentam cenas funerárias onde os mortos são heróis. Os relevos se
estendem no alto como um ornato ao redor da câmera funerária de pilastra; neles estão
representados homens e mulheres sentados, antepassados heroicizados que recebem oferendas
dos vivos. Ao lado estão demónios, justamente as Lâmias, que inteiramente distendidas na
corrida, aladas e com horríveis artes de volatizar, levam embora, apertado nos braços, um
menino, vítima de sua avidez. A figura do demónio incute angústia: as asas estendidas, os
cabelos presos com uma caveira, o corpo gorducho, parece, quase,
73. Filostrato, Vita de Apollonio de liana, Adelphi, Milano, 1978. 84
uni enorme gafanhoto. O procedimento sugere um evento enganador e
desventurado.74
Uma outra figuração do demónio feminino emerge da imaginação grega: Équidna. Ela
nasceu da Terra e é irmã das Górgonas. Seu nome pode significar "víbora". Na mitologia é
considerada a esposa de Tífon, o irredutível inimigo de Zeus. Do conúbio Équidna gerou
filhos horrendos: Cérbero, o cão infernal de três cabeças; Hidra, a serpente marinha de cem
cabeças que vivia em Lema; e Ortro, outro cão infernal. Neste caso, outras fontes criam certa
confusão. Parece que Ortro teve uma relação sexual com a mãe de Équidna gerando a
Quimera e a Esfinge. Équidna é assim descrita por Hesíodo:
E nasce um outro indomável monstro, que não é homem nem de nenhum mortal tem a
forma; dentro de uma gruta cava, a divina feroz Équidna: metade dela se assemelha a uma
graciosa e jovem virgem, e metade a serpente terrível e enorme. Arrasta-se, ávida de sangue,
pelos remotos abismos da terra e é vasta sua caverna no côncavo de um penhasco, onde longe
dos homens e- das divindades, os imortais lhe deram para habitar soberbo palácio.75
Descrevem-na Homero {Ilíada II, 783) e Apolodoro. Todos fazem-na parente de
Hécate e seguramente Équidna é o demónio mais manifesto no pesadelo. Ela, mais que o
vampiro, mostra o lado canibalesco e:
o desejo terrestre e carnal vaidosamente exaltado contra os valores do espírito. . . a
exaltação sentimental que combate o espírito; o nervoso. . .7"
Para jung, Équidna tem um valor basilar enquanto mãe da Esfinge, que constela todo o
problema da libido fixada na Mãe e no incesto. Mais difusamente, nós encontramos em
Équidna o modelo da prostituição apocalíptica da corporificação. Por isso, será o protótipo
mais marcante da Bruxa medieval, ligada ao dragão.77
O dragão, realmente, assumirá na Idade Média um valor ctônico,
74. Springer-Ricci, Storia deli'Arte, Arti Grafiche, Bergamo, 1910.
75. Hesíodo, op. cit., p. 23.
76. Diel, Paul, Le symbolisme dans Ia mytologie grecque, Paris, 1966. 77- Jung, C.
G., op. cit., p. 215.
85

infernal, enquanto expressão de Satanás e das Bruxas, mas será também o símbolo da
Mãe má, junto ao orço das fábulas. Na imagem arcaica há uma mulher sentada sobre um
dragão: Jung vê nela Equidna, valendo-se da lembrança de um exemplar dos Evangelhos, do
século XIV, que se encontra em Bruges, onde, na miniatura, a mulher, bela como a mãe de
Deus, está com a metade inferior do corpo num dragão.
Neste ponto resta mencionar também as Erínies, mais comu-mente denominadas
Fúrias, para completar a representação do feminino negro.
As Erínies são três: Aleto, Tisífone e Megera. Mas, como nos outros casos, são
reunidas na figura una da deusa. Nascem da Mãe Terra na tremenda circunstância da
castração de Urano, o grande Céu que devorava os próprios filhos para não perder o trono. A
deusa Terra, sua esposa, convenceu o filho Cronos, e armou-o com uma foice para golpear o
pai. Assim narra Hesíodo o evento, na Teogonia:
Mãe, posso oferecer-me para fazer esta obra, porque não me importa o nosso pai
nefando; pois ele tramou primeiro obras indignas. Assim falou; exultou grandemente nas
entranhas a Terra prodigiosa; ela o escondeu, em tocaia, e colocou-lhe nas mãos a foice afiada
revelando-lhe o plano. Veio o Grande Céu, trazendo consigo a noite, e ao redor da Terra,
ávido de amor, sobrepairou estendendo-se a tudo; então seu filho, saindo de tocaia, estendeu a
mão esquerda, enquanto com a direita segurava fortemente a foice na mão, grande, de dentes
afiados, e, num instante, ceifou os genitais do pai, lançou-os longe, jogando-os para trás de si.
Mas este não tombou sob sua mão em vão: quantos salpicos de sangue respingaram, a todos a
Terra acolheu: assim, com o passar dos anos, ela gerou as poderosas Erínies. . .78
Nascidas do primeiro grande parricídio por defesa, no eterno drama competitivo que
prenuncia Édipo, as Erínies se revelam logo como Fúrias. Suas características se afastam das
que são fundamentais nos outros demónios femininos; sua tarefa específica era a de punir os
perjúrios e todos os que ofendiam a Deusa Mãe com ações ou promessas não cumpridas. De
fato, Hesíodo esclarece essas atribui-
78. Hesíodo, op. cit., vv. 173-185. 86
ções num trecho de As obras e os dias, onde indica os comportamentos oportunos
para evitar a desgraça:
Procure evitar cada quinto dia, porque é triste e nefasto; no quinto, dizem realmente
que as Erínies assistiram ao nascimento do Juramento, que a Contenda gerou como punição
para os perjúrios.79
Como as outras figuras femininas, as Erínies se transformavam em figuras
equivalentes na área cultural ateniense. Os adjetivos que recebiam eram: obscura, negra,
homicida. As Erínies vivem no Êre-bro, são mais antigas que Zeus. Incansáveis, punem os
transgressores dos costumes familiares; golpeiam os que pecam por ambiguidade e
duplicidade. Sua punição é pesada, infalível: de região em região, ásperas e furibundas. São
velhas horríveis, geralmente com cabeça de cão e um corpo negro, fuliginoso; sobre as costas,
grandes asas de morcego. Os olhos são injetados de sangue, fixos e indagadores. As Erínies
têm gestos impacientes e decididos. Nas mãos seguram terríveis aguilbões com afiadas pontas
de bronze. Se as vítimas são golpeadas, morrem entre atrozes sofrimentos. Tanto terror
produziam as Erínies que era costume jamais mencionar seus nomes, ou então eram chamadas
Eumênides. Esquilo, nas Eumênides, apresenta as Erínies: no primeiro episódio é Apoio que
sai do templo e, com o arco distendido, ameaça as Fúrias que estão paradas à sua frente,
ordenando-lhes que sumam daquele lugar; o deus as dá a conhecer em todo seu cru realismo:
Fora daqui, obedecei! Fora daqui, depressa. Sai dessa morada e que este santuário seja
de vós desembaraçado. Se não quiserdes que vos golpeie com minha alada serpente branca,
arremessada pela áurea corda de meu arco; e que eu vos faça vomitar em convulsões coágulos
de sangue, em borbotões de negra espuma, o sangue que haveis sugado dos homens que
matastes. A vós não é permitido avizinhar-vos desta morada. Ide para o lugar onde cortam
cabeças, onde arrancam olhos, onde degolam, lá onde destroem a semente de fecundidade e
flores de juventude envelhecem; lá onde são vistas mutilações e petrificações, onde se ouvem
mugidos e gemidos de gente trespassada pelas costas e fincada na terra por estacas, lá ê vossa
morada.
79. Hesíodo, op. cit., vv. 803-807.
87Escutai-me? Estas são as orgias que vos deliciam, toda vossa figura o diz; por isto,
nós os deuses vos amaldiçoamos. Antros de leões insaciáveis de morticínio vós deveis
habitar, não este lugar, e não espalhar sobre outros, neste templo fatídico, a
vossa sujeira.80
No teatro grego há outras expressões dessa terrível imagem. Se Apoio esclarece qual
é, na tragédia de Esquilo, o lugar onde devem ficar as Erínies, em outra tragédia, Orestes, de
Eurípedes, são descritas as tremendas inquietudes alucinatórias e o medo daquele que, no
delírio psíquico e no sono perturbado, sente e vê se agitarem ao seu redor os fantasmas e os
íncubos que o oprimem. Orestes, enfermo, está preso aos tormentos. Assiste-o Eletra, que
tenta confortá-lo, mas o momento de lucidez que invade o herói é dominado pela angústia: e
eis as Erínies que se aproximam de Orestes, que se debate para se defender:
Eletra — Piedade irmão, piedade, ai! O teu olhar está perturbado. Raciocina, e de
sábio que era, em um instante se torna louco!
Orestes — Oh, mãe, suplico-te, suplico-te, não arremesse contra mim as virgens de
cabelo hirto de serpentes e de olhos que sangram! Ei-las, ei-las! Estão aqui, lançam-se, tenho-
as em cima! Eletra — Oh, pobre querido, não te movas, permanece em teu leito, acalma-te!
Não vejas nada daquilo que a ti parece ser certo e que te faz pensar que sabes, É uma
aparição. Orestes — Febo, matar-me-ão as terríveis deusas subterrâneas, as sacerdotisas do
inferno, de olhos de Górgonas e de vulto de cadela.
Eletra — Eu não te deixo, agarrar-me-ei a ti, apertar-te-ei entre meus braços, impedirei
que tu, em teus sobressaltos, possa ferir-te.
Orestes — Não,- deixai-me! Sois uma das Erínies, e me mantendes na vida para atirar-
me ao Tártaro.81
Os demónios femininos, portanto, são aparições. Nada daquilo que parece certo é
verdadeiro, mas a imaginação faz o homem sofrer. As mulheres punitivas abundam na
mitologia helénica. Muitas
80. Eschilo, Eumenidi, in II teatro greco, te trageâie, Sansoni, Fírenze, 1970.
81. Euripidi, Oreste, in II teatro greco, le tragedie, op. cit.
vezes as Erínies eram confundidas com as Harpias, as filhas de Atamante. Elas
também são criaturas terrificantes, dotadas de asas e pés de animais; voam como pássaros que
lançam altos gritos, e arrebatam as vítimas para entregar às Erínies. É conhecida a prática
cultural de querer aplacar as Erínies insaciáveis. Era difícil fugir delas e muito mais difícil
diminuir-lhes a violência, A tradição narra que estas Fúrias só aceitavam oferendas de
narcisos: o seu perfume inebriante as tornava inofensivas. É a analogia entre as flores e
Narciso, a mítica criatura infeliz possuída pelo amor de si, no reflexo de Eco; mas nós
queremos lembrar que dessa delicada flor eram entrelaçadas as guirlandas de Deméter e
Perséfone; chamava-se também leirion ou açucena. Era consagrado à tríplice deusa lunar e às
Erínies era oferecido em guirlandas. É interessante lembrar a ameaça das Erínies — que não
queriam absolver o matricídio de Orestes — de derramar sobre a Ática o sangue jorrante de
seus corações. No mito, supõe Graves, está oculto um eufemismo através do qual há
referência ao sangue menstrual. Este é um mito arcaico de bruxaria onde se pretendia que,
para maldizer uma casa, ou um campo, as bruxas menstruadas deviam correr nuas muitas
voltas ao redor da zona a ser atingida com o sortilégio, na direção oposta à do sol, por nove
vezes. Esta maldição era considerada perigosíssima para as crianças, os animais e as colheitas,
se o rito ocorresse durante um eclipse da lua, ou na ausência da lua. Deveras catastrófico, se
executado por uma bruxa virgem menstruada.
Mas voltemos ao narciso, para recordar que é a flor colhida por Perséfone. Floresce no
fim do outono; é perfumado; oferece um óleo medicinal e narcótico, segundo uma antiga
lenda. Orestes, de fato, atormentado por remorsos, jaz entre guirlandas de narcisos e açucenas,
junto a uma fonte onde esperava purificar-se, depois de ter assassinado a mãe. Estas são
indicações úteis, pois nos permitem formular uma hipótese sobre a analogia entre o sono
induzido por narciso — sono considerado como queda, esquecimento, princípio de culpa ou
cegueira — e a fúria do demoníaco feminino que é aplacada pela oferenda de flores. O sono
equivale à noite, às trevas. Os demónios — lembremo-nos — foram criados depois do pôr-do-
sol, no começo da noite, isto é, durante o sono do homem. Outros componentes confirmam a
estrutura destas figuras patológicas: o "sangue" feminino, a bruxa, o perfume narcótico, o
sono. Toda a simbologia útil à formação inconsciente do incubo.
O fato da tríplice deusa lunar poder ser identificada com várias figuras, de significado
absolutamente oposto, desdobra o sentidointerno do mitologema: uma única ideia base, isto
é, a Lua, da fase "cheia" à lua "negra"; a mulher, de sua atitude benévola à vingativa, castrante
e ameaçadora. Talvez as próprias Erínies-Hárpias, apresentassem a "intimação materna"
moralista, o aspecto da governante ácida ou o olho da consciência que veta o ato de liberdade;
as três Fúrias mantêm a ordem no mundo e punem qualquer prevaricação. Com estas imagens
se completa o quadro mitológico da Lilith grega. Vimos, em substância, emergir o arquétipo e
a sua fragmentação. À medida que se desenvolvem a cisão e a remoção, o arquétipo reemerge
numa multiplicidade de aspectos e cada vez mais se condensa na Grande Mãe, que é
impossível de ser vivida na sua totalidade. Entre a Lua cheia e a Lua negra não há um salto:
LiKth permanece no exílio, mas para a alma grega a potência do instintual negado se
manifesta com toda a evidência na cisão e chega a sobrepujar o Eu. A consciência
desorientada diante do arquétipo que se representa sob forma sempre nova — ora como
energia ctônica, ora como demónio, ora como anjo do amor ou justiceiro terrível — acaba por
cair no jogo de ambivalências, de solicitações, atuações e recusas. Por isso os pólos se
afastam e tendem a se distanciarem cada vez mais, perdendo-se a memória da unidade
andrógina originária.
O pensamento teológico e a visão global, filosófica e moral, além da antropológica, da
área ocidental, exprimem uma trágica fenda. A civilização espiritual europeia saiu da fusão de
componentes bíblico-judaicos e da especulação grega, sustentada por fundamentos jurídicos
romanos. Mas tal encontro manteve a cisão do arquétipo da Unidade. É, sem dúvida, motivo
para arrepios sentir que o homem ocidental não tem olhos para ver nem ouvidos para ouvir. A
mediação entre Bíblia e Grécia não teve outro efeito a não ser aprofundar o equívoco e,
seriamente, a perda da alma total. Fílon, de Alexandria, é, num certo sentido, a testemunha
deste grande momento cultural. Ele viveu no século I da era cristã. Operou uma ligação entre
pensamento mosaico e pensamento helénico, mas mesmo ele, em sua exposição, reforça a
concepção patriarcal e o dever de transcender o "terrestre" e o "humano" imanente, para
realizar o agostiniano in te ipsum redi, como condição para ídentificar-se a Deus. Mais uma
vez, ao Pai.
Mais que entregarmo-nos a comentários ou interpretações, confiamos ao leitor este
trecho de Fílon, de Alexandria, extraído de sua obra A Criação do Mundo. Talvez nessas
páginas deste pensador hebreu-alexandrino, não seja difícil recolher o "fantasma", o "delito"
90
bíblico, a trágica mensagem da primeira rejeição, onde foi perdida aquela parte
companheira, aquele absolutamente "outro" que ainda é vivido como experiência de perda:
Mas como nada é estável entre as coisas que estão sujeitas ao devir, e aquilo que é
mortal necessariamente sofre modificações e mutações, era necessário que mesmo o primeiro
homem estivesse sujeito a algo de mal. E a mulher foí para ele o início de sua vida maculada
de culpa. Enquanto estava só, de fato, assemelhava-se por sua unidade ao mundo e a Deus, e
tinha impressos na alma os caracteres de uma e outra realidade, não todos, mas os que é
possível a uma constituição mortal conter. Quando também a mulher foi plasmada, o homem
viu maravilhado uma imagem irmã e uma figura sua congénere, exultou ante tal visão e foi ao
seu encontro, abraçando-a afetuosamente. A mulher, então, não vendo outro ser vivo que se
assemelhasse a ela mais que aquele, se alegrou e com timidez dirigiu-lhe, por sua vez, a
palavra. E sobreveio o amor quase juntando duas partes separadas em um único ser vivo,
reuniu-os num só, depois de haver colocado em cada um deles o desejo de se unir com o outro
para gerar um que se lhes assemelhasse. Este desejo, porém, fez nascer também o prazer do
corpo, que é fonte de todas as injustiças e de tudo que não é lícito, porque por ele os homens
trocavam a vida mortal e infeliz por uma vida imortal e feliz,82
Nesta mensagem está oculto o drama de Lilith. Os "prazeres do corpo" negados são a
testemunha de uma ofensa arcaica à natureza do homem e é a primeira violência feita à
mulher. Lilith, que se "alegrara" indo de encontro ao homem com timidez e amor, olhando
confiante no fundo de seus olhos, recebe em resposta uma rígida projeção defensiva, um
desprezo cheio de angústia, um desdém que produzirá raiva e cegueira em relação àquela que
tem somente "culpa" de ter feito conhecer o Amor, de ter sido apresentada ao homem como
sua igual e semelhante, divina ela também. O homem, portanto, não reconheceu como sua a
felicidade de ter corpo e sexo, espírito e alma fundidos numa só entidade. Lilith, corpo e alma,
foi julgada "fonte de toda injustiça" e mensageira do ilícito.
82. Filune d'Alessandria, La creazione dei Mondo, Le Atlegone delle Leggi, Rizzoli,
Milano, 1978.
91A tragédia está nessa falsificação da realidade psíquica. A vida imortal com Deus
Pai exigiu um preço: o deslocamento do mal sobre Lilith, a transferência da Dor e da Grande
Dúvida para a Mulher. Assim, o sorriso se extinguiu nos lábios de Lilith e seu regozijo de
amor se converteu, para sempre, em raiva e ódio de Adão "patrão".
Até agora consideramos cada uma das divindades femininas erigidas como figurações
infernais, todas derivadas da transformação ou identificação com a Deusa Lunar arcaica. Os
demónios femininos tiveram personificações singulares bem distintas, como vimos, mas todos
como expressão de uma energia vital negada. O feminino identificado com o diabo ou com a
morte. O prazer dos sentidos percebido como ameaça proveniente da animalidade terrena ou
das potências infernais. Lilith, num certo sentido, expulsa da porta do paraíso, retorna pela
janela durante a noite e pára nas encruzilhadas, arquitetando vinganças ou mortes.
Perguntemos agora: Lilith constrangida a "fazer tudo por si mesma", a sobreviver em
oposição ao macho e à lei do Pai, como reagiu após o primeiro desafio aos celestes? Como
reagiu em relação ao homem depois da "desobediência" à autoridade masculina? Uma
resposta poderia ser a realização de uma total competição com o homem ou uma elaboração
interna do tema da relação. Podemos encontrar um exemplo no mito das Amazonas. Elas, de
certa maneira específica, constituem a experiência arcaica daquilo que hoje é chamado, de
modo bastante impróprio, feminismo.
Temos menções das Amazonas como sacerdotisas da Lua. A palavra original "a-
mazona" significa "sem seio", mas não podemos excluir o significado, conveniente no nosso
caso, de "mulher-lua".
A figura do mito é Artêmis, pois as amazonas exprimem traços belicosos. Detenhamo-
nos nas informações dadas por fontes conhecidas, mas é certo que ninguém ainda pode
esclarecer completamente, com documentos verídicos, a existência ou a lenda dessa tribo que
na Grécia perpetuou uma experiência matriarcal, considerada de nível bárbaro pelos próprios
helénicos.
Concebidas também como filhas de Dánao, as Amazonas são criaturas de Ares e
Artêmis (que correspondem ao casal romano Marte e Diana caçadora). Talvez essas figuras
tenham saído da imaginação ou talvez da zona próxima ao Mar Negro. A tradição as coloca
ao longo do Termodonte e nas cercanias de Trebisonda. A dúvida sobre sua existência
histórica é corroborada pela ausência absoluta de testemunhos arqueológicos e falta de
documentos esculpidos.
92
Essas Amazonas viviam em grupos onde não era, de modo algum, admitida a presença
de homens. Suas regras de vida eram um verdadeiro concentrado de autonomia, identificado
aos comportamentos viris. Eram mulheres belíssimas, audazes e ferozes. A fantasia popular
quer que cada Amazona mutile um seio para ser mais livre para usar o arco, mas não existem
documentos que atestem este fato. Aqui, mais que nunca, é possível imaginar uma fantasia de
remoção das características sexuais rejeitadas.
Elas cresciam aprendendo a usar armas — a lança e o arco, em particular — e não
manifestavam certos sentimentos ternos. Para perpetuar a raça, iam, uma vez por ano, para
junto da população dos Gargáreos, e depois voltavam para suas cidades; quando os filhos
nasciam, conservavam as meninas, enquanto os meninos eram mortos ou então enviados para
junto dos gargáreos! Nesse rito cruel podemos facilmente observar uma analogia com a
tendência de Lilith, das Lâmias ou das Empusas, e dos outros demónios femininos de raptar
crianças ou matá-las. As crianças eram logo ensinadas a usar armas. Num comentário de
Sérvio a Virgílio {Eneida, XI, 659) e em Plutarco83, afirma-se que as Amazonas viviam no
rio Amazonas, depois chamado Tanai, nome do filho da amazona Lissipa. Esta ofendera
Afrodite com a recusa em nome das armas e da guerra, do casamento e do amor intenso.
Então Afrodite desencadeou sua vingança: fez com que Tanai se enamorasse da mãe. Tanai,
não querendo ser subjugado pela relação incestuosa, atirou-se ao rio, afogando-se. Lissipa,
atormentada por sua sombra, em vão procurou-o até o estuário do rio, no Mar Negro, e ali fez
erigir um templo. Lissipa — segundo fontes citadas por Graves84 — havia estabelecido que
os homens fossem subjugados e cuidassem dos afazeres domésticos, enquanto as mulheres
combatiam. Conta-se que quebravam as pernas e os braços dos meninos para torná-los
inválidos.
Os citas consideravam "anormais" essas mulheres guerreiras (Eorpata) que não tinham
nenhum senso de justiça, nem pudor. Essa questão do pudor é uma característica que se
repetirá sempre quando se fala de Lilith, dos demónios femininos, mais tarde, da bruxa, até,
finalmente, das psicopatologias da neurose histérica. O pudor — como é considerado na
cultura moral patriarcal — é transgredido como rito liberatório e de protesto, mas também
como uma acentuação da desejada desinibição do originário tabu bíblico. Por
83. Plutarco, Dei fiumi, XIV.
84. Arziano, Vrammento 58; Diodoro Siculo, II, 451; Erodoto, IV, 110.
93isso, a ausência de pudor nas Amazonas e a lascívia das bruxas não é outra coisa
que o testemunho daquilo a que o macho se nega ao nível dos instintos.
As guerreiras — segundo as descrições de Virgílio e Píndaro — carregavam arcos de
bronze pesados e pequenos escudos em forma de meia-lua. Elmo, vestes e cinturão eram
feitos com peles de animais ferozes. A fantasia dos pintores, do Renascimento ao
Neoclássico, se fartou de distinguir, em pinturas e afrescos, Dianas caçadoras, e é impossível
mencionar, ainda que brevemente, traços dessas figuras.
O elemento fundamental da psicologia das amazonas é: a rejeição ao homem e a
intolerância absoluta em relação ao amor e ao matrimónio.
São — como afirma Diel85 — as "mulheres assassinas de homens" que substituem os
homens e se tornam suas rivais, não suas aliadas, perdendo assim o valor da alma e as
vibrações de esposa
e mae.
Kerényi menciona que as Amazonas eram cinquenta, como as Nereidas e como
cinquenta eram as luas de um ciclo festivo de quatro anos, a metade do "grande ano". A
segunda metade dele tinha quarenta e nove luas, como tal pertencia às filhas de Dánao, as
Danaídes. Assim, no céu, as luas que se sucediam triunfavam sobre a noite obscura.86
Melhor do que em outras fontes mitológicas, é na obra de Esquilo, As Suplicantes, que
se pode compreender as Amazonas, nesta tragédia clássica, onde elas fogem dos tenebrosos
filhos do Egito e, embarcando para esquivar-se dos homens violentos, atracam em Argos, o
"país claro". Esquilo mostra os habitantes de Argos dispostos a proteger as Danaídes dos
perseguidores, e também a salvar seu pai, Dánao. Elas são as virgens que se recusam ao
matrimónio. Obrigadas a se casarem (este é o desenvolvimento do mito na trilogia inacabada
de Esquilo), as Danaídes, com uma exceção, mataram os respectivos maridos. Ipermista salva
Linceo aceitando seu amor. As outras irmãs, ao contrário, foram punidas com casamentos
obrigatórios. O sentido da tragédia é claro: as Amazonas são punidas, pelo imperturbável
Zeus, por haverem transgredido a ordenação cósmica; portanto, verdadeiras Liliths, desta vez
constrangidas a obedecer,
85. Diel, P., op. cit.
86. Kerényi, K., op. cit.
94
porém não ouvidas em suas invocações de liberdade! Em vão, Afrodite, a grande
mestra do amor, pregava que:
A terra pretende penetrar com o amor o céu puro. . . o desejo de amor possui a terra; a
chuva do céu torna-a fértil e ela então dá vida às plantas e aos animais, dos quais se nutrem os
homens.87
As Danaídes, voluntariosas, não compreendem esta mensagem de amor e assim
protestam iradas:
Não admitiremos jamais as violentas mãos dos machos. Fugiremos das núpcias
malignas sob o céu e as estrelas. . .88
Ao silêncio de Zeus invocado, as suplicantes ainda invocam, abatidas pelo terror das
iminentes núpcias:
Oh, monte, oh, terra justa e venerada, por que padecemos?
Para onde, nesta terra de Ápis, fugiremos, onde há um caminho
escuro? Quisera fôssemos fumaça negra que se confunde entre
as nuvens de Zeus, poeira que ali se dissolve.
A alma sente um calafrio, bate meu negro coração. A visão
das naves me foi furtada, de medo estou perdida. Quisera o
laço da corda da morte, antes que um dos malditos homens
tocasse de leve minha pele; que Hades primeiro de mim seja
proprietário.
Não há para nós um acento nos céus onde a úmída nuvem se
faz neve: ou um pedacinho de rocha suspensa que o olho não
apanha, solitária, obtido das cabras e dos abutres, e dali de
cima precipitar-nos sem retorno para testemunhar, antes das
núpcias que violentam o coração e que dilaceram?
Ser alimento dos cães e pássaros desta terra, nós aceitamos.
Porque a morte libera da dor que urra: venha a morte primeiro
do que o tálamo nupcial. Acharemos o caminho da fuga, ou
da liberação.89
Queremos recordar ainda o mito de Hipólita, rainha das Ama-
87. Eschilo, Le Danaidi, citado in Kerényi, op. cit.
88. Eschilo, Le Supplki, in II teatro greco, le tragedie, op. cit.
89. Eschilo, op. cit.
95zonas; a verdadeira guerra dos sexos aqui se faz manifesta e muito interessantes são
os matizes de sua conduta, atormentada pelo conflito.
O mito, segundo uma versão escolhida entre as várias que chegaram até nós, conta a
nona tarefa de Hércules: ele devia levar para a filha de Euristeo, Admeta, o cinturão de ouro
de Hipólita, recebido como presente de Ares. Hércules, juntamente com Teseu, Telamone e
outros heróis, alcança as Amazonas no rio Termodonte, na cidade de Temiscira. Hipólita,
atraída pelo vigor físico do gigantesco Hércules, estava disposta a ceder-lhe o cinturão, talvez
porque simpatizasse com ele. Uma pintura de vaso representa o herói sentado, calmo e
decidido, as Amazonas de calças, conforme o costume cita, oferecendo o precioso cinturão.
Mas, entre as Amazonas, disfarçada, vagava Hera, que instiga as viragos lançando suspeitas
malévolas a respeito dos homens. Diante disso, as Amazonas enfurecidas, temendo o rapto da
rainha, precipitam-se ao assalto da nave e dos heróis.
E assim estourou a guerra entre os homens e as mulheres belicosas. Elas,
decididamente, levaram a pior: suspeitando que Hipólita o traíra, Hércules mata-a, furta o
cinturão, as armas e seu machado. Assim, foram mortas uma a uma as Amazonas que
assediavam a nave e postas em fuga as outras. Hércules realizou sua nona tarefa e foi
reconfirmada a discórdia entre os sexos.
Segundo o ocultista Lanoe-Villene90, as Amazonas seriam, na ordem metafísica, um
símbolo das forças cósmicas psíquicas que giram em torno da "esfera" do Paraíso, para vigiar
as fronteiras. Nessa perspectiva, o famoso cinturão não seria outra coisa que o círculo mágico
de energia construído pelas Amazonas ao redor do Paraíso, que Hércules ameaçou com sua
insolência.
Elas são as guardiãs da vida e da morte. Sem dúvida foram, na origem, isto é, nas
fontes mitológicas, sacerdotisas do mistério lunar e feminino; sua lenda brota, talvez, das
figuras de mulheres armadas esculpidas na época clássica, sob o pedestal do Trono de Zeus,
em Olímpia, e também da representação do escudo de Atena no Templo de Teseu. Não se
exclui que em Éfeso estivessem presentes sacerdotisas armadas, relacionadas às três tribos
sacerdotais matriarcais.
Uma notável figura feminina, que podemos colocar no mesmo plano que as Amazonas
— para concluir a série de mitos gregos concernentes às deusas lunares — é, sem dúvida,
Circe. Como as
90. Lanoe-Villene, G., Le livre des symboles, Bordeaux, 1935. 96
Danaídes são temidas por sua paixão pelas armas, assim Circe é temida porque, longe
de ter aspectos ou atributos demoníacos ou infernais, apresenta traços femininos sensuais,
sedutores e devoradores. Também Circe, em confronto com Lilith, exprime a rejeição ao
"patronato" masculino e assim domina todo homem, subjugando-o com os próprios encantos.
Circe é, na lenda e no mito, o Absoluto Feminino que arrasta o homem à perdição, pois este,
incautamente, a obedece. Protótipo da bruxa medieval, Circe tem em si todos os poderes da
alma mais profunda que se manifesta num eros total e insustentável. Ela primeiro adula e atrai
irresistivelmente, e depois, uma vez obtido o domínio sobre o homem, o reduz a uma total
sujeição e servidão, tornando-o um escravo embrutecido. Com Circe não temos a figuração
inconsciente da libido sexual que se carrega de formações fóbicas como no caso de Hécate e
da Em-pusa, mas ela é, ao contrário, o objeto de amor mais convidativo e convincente, de tal
modo que nenhuma desconfiança e defesa é possível. Mas o engano, que se revela muito
tarde, quer significar o perigo e a destrutividade que se ocultam por trás da beleza e sedução.
Circe não se apresenta como incubo, mas sim como a possibilidade ideal de satisfação
absoluta; pode conceder o êxtase erótico, mas ao preço da perda da liberdade. Homero, em
particular, nos conta quem é Circe; ela tem outros complexos apelidos, como de resto convém
às deusas lunares. As fontes citam-na ora como Circe, ora como Pasifae. O apelido maga nos
faz perceber que Circe se dedicava à magia, mas, em sentido psicológico, devemos considerá-
la como a expressão lunar da Grande Mãe que atrai — regressivamente — para os silenciosos
reinos da anelante doçura incestuosa, oferecendo-se como mágica liberdade e plenitude,
libertação e lenimento. A magia de Circe é somente o encantamento dos sentidos e a eterna
sedução da parte jovem e aventureira. (Não é por acaso que Circe se exprime no confronto
mítico com Ulisses, aquele que quer viver e se tornar, a despeito do medo e das ciladas das
mães.) A deusa homérica é transformada em perseguidora, como uma Lâmia, porque freia o
desenvolvimento e a "viagem".de Ulisses e seus homens. Trata-se sempre de um valor da
alma, é claro, mas, dessa vez, este se apresenta com uma componente ignorada pelos machos,
os quais, todavia, se sentem fascinados porque é a lisonja do otium, da renúncia, para eleger a
mais doce segurança. Talvez Circe seja a figura feminina mais sonhada pela imaginação do
antigo grego: Circe, alta, bela, altiva, e sua encantadora ilha banhada por quentes mares. Circe
é o mistério do não-retorno. A satisfação e a perdição. O
97Odisseu homérico (aquele que chamamos mais comumente Ulisses) é levado, com
seu revés, ao encontro de Circe. Livre da fúria dos Lestrigões, Odisseu faz sua nave sair ao
largo,
E a ilha de Eéia chegamos: onde vivia
Circe de belas tranças, a deusa terrível dotada de palavra
[humana,
irmã gémea de Eeta, de coração cruel; ambas nascidas do Sol, que ilumina os mortais,
tendo por mãe Perse, filha do Oceano. Aí com a nave nos aproximamos de uma ponta, em
silêncio até dentro do porto levamos a nau; um deus nos guiava. Em seguida, tendo
desembarcado, dois dias e duas noites permanecemos deitados, roído o coração de fadiga e
tristeza.
Odisseu, com seus heróis, explora a ilha e faz a descoberta fatal:
. . .e vi uma fumaça elevar-se da terra de largos caminhos no palácio de Circe, entre
denso carvalhal e uma floresta.
Decidem quem primeiro deve ir fazer o reconhecimento do misterioso palácio. Toca a
sorte a Eurícolo. Ele encaminha-se, com a escolta de vinte e dois companheiros e, finalmente,
avista a fatal habitação:
Encontraram, num estreito vale, o palácio de Circe,
construído com pedra polida, em posição descoberta.
E, em volta, viam-se lobos monteses e leões,
que ela enfeitiçara, dando-lhes fatídicas drogas
[...]
Detiveram-se no vestíbulo da deusa de belas tranças
e Circe, cantando no interior com sua bela voz, escutaram
tecia ao tear uma grande tela imortal, como são os trabalhos
das deusas, sutis, esplêndidos e graciosos.
A descrição do poeta não podia ser mais convidativa: mais uma vez há a imagem da
mulher suave, cheia de graça, mas também o arquétipo da casa, do refúgio, do
desembarcadouro. Aqui se gira em torno do tema da regressão como paradoxal resolução de
todos os conflitos. Mas Circe não esconde o engano, que não escapa à sensibilidade de
Euríloco. O drama se desencadeia no momento em
98
que os homens exultantes se deixam seduzir pelo que vêem, sentem e buscam:
Amigos, ali dentro alguém que tece grande tela
suave canta, e toda a terra ressoa;
Mulher ou deusa. Já, sem tardar, chamemos!
e eis então a aparição de Circe:
Imediatamente ela, saindo, abriu a porta refulgente
e convidou-os; e todos, insensatos, a seguiram.
Mas Euríloco permaneceu fora, receando uma cilada.
Mandou-os sentarem-se em tronos e divãs
e para eles queijo, farinha de cevada e mel
no vinho de Pramno misturou: mas juntava na taça
funestas drogas para que esquecessem a terra pátria.
E apenas lhes deu e eles a beberam, eis que, de súbito,
toca-os com sua varinha e encerra-os nas pocilgas.
De porcos todos ficaram tendo a cabeça, e a voz
e o corpo: conservavam só o mesmo espírito que antigamente.
Assim eles choravam encerrados; e para eles Circe
atirava asinhas, bolotas e cornísolos
para comerem como comem os porcos
que se deitam no chão.91
Este é o primeiro sortilégio de magia que conhecemos operando com extraordinária
eficácia psicológica! O belo sonho se transforma de repente em alucinação com traços de
incubo. A simbologia deste feminino mágico e regressivo é tão rica que podemos somente
assinalá-la, deixando o campo à imaginação. Circe vive numa ilha, e o mar a cinge: símbolo
do Si Mesmo, a ilha de Eéia é, ao mesmo tempo, símbolo de um retorno à consciência do lado
de Sombra da Anima e do instinto. Aportar na ilha de Circe significa conhecer toda a
dimensão do próprio instinto (os homens transformados em porcos), o centro do tema, a ilha;
é separada da terra firme e, portanto, é um símbolo de qualquer coisa completamente separada
da vida consciente. Os companheiros do Odisseu, aqui, são os aspectos internos dele mesmo
que se privam do liame com o Eu para se
91. Omero, Odissea, libro X, 150 e passim, Einaudi, Torino, 1977; trad. bras. Homero,
Odisseia, São Paulo, Abril Cultural, 1978.
99precipitar na voragem da Anima obscura. Eles vencerão os feitiços de Circe
evitando sofrer o fascínio e trazendo a maga a uma integração parcial. De fato, Hermes, isto é,
o inteligente deus Mercúrio, ajuda Odisseu, informando-o a respeito da verdadeira natureza de
Circe, enquanto o herói se dirige para vê-la:
Então me veio ao encontro Hermes, o da varinha de ouro
quando estava chegando à mansão, na figura de um jovem herói,
em quem floresce o primeiro buço, belíssima é sua juventude.
Tocando-me a mão, exprimia palavras, dizia:
"Aonde vais, infeliz, sozinho por estas colinas
sem conheceres o local? Teus companheiros em casa de Circe
estão encerrados como porcos habitando pocilgas bem vedadas.
Vais acaso libertá-los? Digo-te
que nem mesmo tu regressarás, mas ficarás lá com os outros".
Assim Hermes, princípio de consciência racional, oferece a Odisseu uma erva secreta
capaz de dissolver os encantamentos e os filtros. O herói, com a erva da raiz negra e a flor
branca como o leite, cujo nome é moli, enfrenta a aventura com Circe. Ao poder da maga, o
herói homérico opõe a ajuda de Mercúrio: é sempre um apoio "divino" contra a
"periculosidade" da sedução feminina.
... e eu para a morada de Circe
dirigi-me; e muito batia meu coração.
Parei debaixo do pórtico da deusa de belas tranças
e, ali, de pé, gritei; a deusa ouviu minha voz
Acorreu imediatamente, abriu as esplêndidas portas,
e convidava-me; segui-a com o coração alceado.
Mas como me deu de beber e esvaziei a taça
— e não podia me enfeitiçar —
com a varinha me tocou e tomando a palavra, disse-me:
"Vai agora para a pocilga, deitar-se com seus companheiros".
Mas o veneno não tem efeito em Odisseu, ele está imunizado por seu próprio princípio
ativo mercurial. Pela alquimia sabemos que o mercúrio é o metal da transformação. Por que
Circe cumpre um ato mágico? Circe exprime os poderes naturais; Hermes, ao invés, exprime
aquilo que se diz dos "ciúmes" dos deuses. É o conflito: a maga assinala o transbordamento
dos instintos naturais que ameaçam a ordem perene das coisas. Mercúrio entra em jogo
100
exatamente para estancar este extravasamento. A intimatio do divino, do superior, se
repete aqui para dano do inferior, do terrestre. Uma vez ainda Adão-Odisseu se "alia" ao
princípio paterno-divino, para impedir a ordem natural que se manifesta em Lilith-Circe. É o
confronto entre as forças absolutas e o pensamento consciente. Circe quer romper a barreira
defensiva do pensamento racional de Odisseu. A esse respeito, W. Otto afirma acuradamente:
Toda verdadeira magia pressupõe, de um lado, a consciência humana e a concentração
de pensamento, do outro a existência de uma ordem natural rígida, mas não mecânica. O ato
realmente mágico é possível num estado de excitação particular. Esse excitamento, porém,
ocorre quando o ânimo tem a sensação que as veneradas regras da natureza sofreram uma
afronta.92
Circe exprime a maldição pela ofensa feita à natureza: as imprecações, Arai, que de
Lilith em diante se elevam contra os que ofenderam o "desejo" natural. O "não" de Adão é
ainda pago pelos companheiros de Odisseu transformados em porcos! Odisseu permanece um
ano inteiro com Circe e os mitógrafos atribuem a essa relação de amor dois nascimentos, ou
ao menos um, com certeza: Telégono ou Engamone. Circe é a Lilith que se vê e se sente
aceita: aqui a mediação Hermes-Mercúrio rompe o mágico e oferece a possibilidade de
verdade às duas partes. O pacto é respeitado: a maga é amada por aquilo que é, e Odisseu,
somente amando-a, a induz a deixar a magia: seus homens, de fato, retomam a forma humana
sem guardar a lembrança de terem sido porcos!
Num certo sentido é Circe que vê respeitada a "veneranda" regra da natureza, é por
isto que ama fervorosamente o herói e mais tarde ajuda-o com conselhos de muita sabedoria e
paixão. A tradição assinala várias versões para o mito de Circe. Uns a querem numa ilha junto
da Ática, enquanto os colonos gregos da Itália identificam sua estranha e maliciosa morada no
Mar Tirreno. Quem vai atual-niente ao Monte Circeo, tão pesado de emanações, reencontra
indícios da morada de Circe, de "belas tranças", filha do Sol, no cume do monte que se eleva
escuro nos pores-do-sol. Os amieiros, os álamos e ciprestes sagrados ornavam os jardins
arcanos onde amor e morte se entrelaçavam com o tecido e se ouviam os cantos de Circe e de
92. Otto, W., op. cit.
101suas criadas. Teofrasto e Virgílio asseguram que o culto foi exata-mente ali, no
Circeo. Apolônio de Rodes se refere a um bosque-cemitério de salgueiros — a quinta na
sequência das árvores sagradas — situado na Colquide, para o culto de Circe. Outras fontes
propõem a ilha de Eéia, a "gemente", no Adriático, perto da foz do Pó. E também aqui teriam
existido amieiros, árvores derivadas de transformação mágica da irmã de Fetonte. Lembremos
que Hécate preferia os álamos negros. Toda a simbologia do episódio homérico deve ser
analisada porque tudo lembra o mágico, eros, a morte, e cada elemento pode alimentar uma
interpretação psicológica. A tela que Circe trabalha é, uma vez mais, a trama do destino
individual e Circe, como deusa da Morte, tece incansável.
A transformação dos homens de Ulisses em porcos tem também um significado
decididamente religioso. Lembremos que o porco era o animal sagrado de certas divindades
gregas, e Frazer93 lembra que no folclore europeu o porco é uma encarnação comum do
espírito do grão, por isso este animal está intimamente ligado a Deméter. E nos perguntamos
se a grande deusa lunar originariamente não tinha, ela própria, a forma de porco. Frazer
admite uma Deméter sempre acompanhada de um porco; a ela eram oferecidos, nos ritos, os
porcos sagrados. Os ritos das Tesmoforie áticas eram festas outonais celebradas somente por
mulheres, em outubro, e parece que representavam, com ritos fúnebres, a descida de
Perséfone (ou da própria Deméter) ao mundo subterrâneo. Um dos ritos consistia em jogar
porcos, pão e ramos de pinheiro na "caverna de Perséfone", guardada por serpentes. A própria
Perséfone, na origem, era teriomorfa, talvez um porco. Nas Tesmoforie as mulheres comiam
carne suína, que representava — citamos Frazer — um sacramento, ou comunhão solene, no
qual os fiéis comiam um corpo divino. Portanto, devemos pensar, em oposição a todas as
interpretações moralísticas e esteticistas, que o gesto de Circe, ao transformar em porcos os
homens, era coisa muito diversa que uma magia bestial: representa, talvez, a "consagração"
dos instintos masculinos ao princípio lunar? Os companheiros de Odisseu, nesse caso,
representam o retorno ao princípio feminino. Circe equivale à Deméter Negra de Figalia; em
consequência, o "masculino" retoma a parte animal censurada.
O alimento dado às vítimas transformadas em porcos é constituído de corniso
vermelho de Cronos, uma planta que, com fre-
93. Frazer, James, II Ramo d'Oro, Borínghieri, Torino, 1965, vol. 2°; trad. bras., O
Ramo de Ouro, ed. abreviada, RJ, Zahar, 1982.
102
qiiência, ainda cresce em nossos lugares sagrados. Causa perplexidade o filtro dado
por Hermes-Mercúrio a Odisseu: o "moli" (outros traduzem "molu"). Alguns dizem que se
trata do ciclaminis selvagem, que é raro, tem flores brancas, bulbo escuro e resistente, e é
intensamente perfumado. Já outros classicistas chamam moli, ou malu, um tipo de alho de flor
amarela. Pode ser verdade, pois nesta analogia é conhecido seu significado apotropaico e de
exorcismo no vampirismo e na bruxaria.94
Parece que este alho cresce exatamente quando a lua está em seu último quarto,
portanto uma confirmação de que o alho protege da aproximação da Lua Negra e, logo, era
um talismã contra Hécate e suas perigosas manifestações. Tranças de alho, de resto, eram
penduradas fora de casa para manter distantes os demónios lascivos e as bruxas. O filtro de
Hermes pode ser um símbolo de esconjuro — exatamente o alho — contra Circe, rainha dos
encantamentos maléficos.
Algumas fontes supõem que se tratava de arruda selvagem, embora esta não
corresponda aos dados botânicos do poema. Neste caso, a analogia não se sustenta tão bem. A
arruda é emenagoga, isto é, favorece o ciclo menstrual e tem ação analgésica e vesicante:
como símbolo, há poucas referências ao uso que Hermes faz dele. Sobre os filtros de Circe
pouco se sabe; Homero menciona somente venenos funestos; "drogas sombrias". Certamente
podemos pensar em alucinógenos. Representações de Circe existem: a arte sempre se
comoveu ante este mito da mulher-maga. No Museu Arqueológico de Nápoles, há uma
pintura mural onde a deusa é representada com fortes características. No Museu de Oxford
existe uma cratera grega com a imagem de Circe. Mais próxima de nós é a famosa Circe
pintada por D. Dossi: no esplêndido quadro do final do século XVI, a maga aparece potente,
dominadora e bela, imersa em um contexto de símbolos, talvez excessivos, mas capazes de
perturbar. Assim como Odisseu parte de Eéia para voltar a ítaca sonhada e à sua Penélope, a
aventurosa alma muda de direção rumo a outras metas. Encontramos ainda figuras míticas no
extremo limite do mundo helénico: as Sereias, que são, desde sempre, um símbolo de sedução
erótica irresistível. A Sereia é a imagem mais inconsciente e terrível de Lilith, distante e
oculta da vista, pois reúne em si todas as características destrutivas. É a própria Circe, de
resto, quem descreve as temíveis ondinas a Odisseu:
Jones, E. op. cil.
103As Sereias primeiro verás, que aos homens
encantam, os que delas se aproximam.
Quem sem dar por isto delas se aproxima e escuta a voz de Sereia
nunca mais a esposa e os filhos pequeninos
de volta a casa se reunirão em torno dele,
pois as Sereias com canto harmonioso o enfeitiçaram,
seduzido num prado: amontoam-se em redor de esqueletos
humanos putrefatos; sobre os corpos a pele se desfaz.
Prossegue adiante sem parar e tapa os ouvidos de teus
[ companheiros ,95
Passemos a ver como se articula o mitologema de Lilith na área cultural de Roma e no
Império. Praticamente, em Roma continuam os cultos devidos às divindades gregas, agora
latinizadas, e com finalidades diversas. Os deuses permanecem como símbolos eficazes
mesmo junto ao realista mundo romano.
Mudam os nomes e certos atributos, mas a base da Kore, por exemplo, não é
modificada. A Perséfone helénica se torna, no culto romano, a temida e tenebrosa Prosérpina,
rainha e guia dos infernos. Contudo, o culto jamais se tornou relevante.
Deméter, como deusa lunar da fertilidade, se torna Cibele e o culto permanece
semelhante. A divina Artêmis, que caracteriza os traços amazônicos, será em Roma a Diana
caçadora e estará, com frequência, acompanhada de Marte, o deus belicoso e agressivo. É
exatamente em Roma que as figuras guerreiras de mulher se manifestam com traços mais
animosos. Hécate está presente com toda sua sinistra expressividade, talvez tendo reforçados
os caracteres mágicos, porque já é considerada, com Medeia, a sacerdotisa das bruxas. O culto
lunar está sempre ativo e não diminui, no espírito popular, o respeito por certo folclore que
procura manifestações cíclicas. Também para os romanos a noite e a lua têm um poder
indiscutível e, às vezes, de todo mágico. Entretanto, é aqui que vemos as divindades
assumirem traços mais mágicos e mais ligados à superstição. Para Horácio, de fato, Diana e
Prosérpina se distanciam do mitologema para tornarem-se padroeiras da magia e ele menciona
o mundo mágico e os rituais no Liber Carminum, isto é, no "livro dos encantamentos".
Algumas fontes — que devemos assumir com cautela — lembram certos rituais onde "se tira
a lua do céu".96
95. Omero, op. cit.
96. Vautrier, R., I poteri magici delia Luna, Dellavalle, Torino, 1971.
104
Em Temesa, uma cidadezinha da Calábria italiana, as pessoas batiam nos bronzes até
que a lua descesse do céu para manifestar-se entre os homens. Esta fantasia era absolutamente
mágico-supersti-ciosa, mas nos faz compreender como o mitologema da IMA-Anima desperta
novos temores de outra ordem. Os romanos, gente prática e dotada de bom senso, eram
alheios a práticas misteriosas e feitiços arcaicos nos quais não sentiam a "presença" de
demónios com a mesma intensidade que outras populações. Eram todavia muito
supersticiosos. Pode-se dizer que exatamente em Roma se abre aquela incrível história de
Bruxaria e de Bruxas, onde a mulher sofrerá — até a culminante carnificina imposta pela
Igreja — toda a violência da mais devastadora repressão sexual que o homem já realizou.
Svetonio, na Vite, nos mostra como as superstições dominam a história dos homens.
Mesmo nas obras de Plínio, o Velho, e Plínio, o Jovem, temos evidentes cenas de magia. E
são dois célebres magos da época, Simão Mago e sua mulher Selene, que inauguram as
práticas ocultas concentradas sobre o demoníaco, a sexualidade, a mulher e o exorcismo.
Apolônio de Tiana será depois o mago dos prodígios indescritíveis.97
A superstição implica algo que não é visível e não é percebido subjetivamente como
endógeno. Pode-se dizer que os romanos evitavam as personificações do divino e por isto
quase não tinham imagens de culto. As figuras femininas não eram exceção a esta orientação;
o romano nutria uma certa aversão pelo pensar através de imagens, ao contrário do que fazia o
grego. Disso deriva um certo desprezo pela mitologia no domínio do sagrado, ao menos nos
primórdios de Roma. Os romanos também não conheciam os deuses como abstra-ções
filosóficas, como conceitos teológicos. O pensamento não deixava lugar para tais coisas: o
divino não possuía cidadania em sentido filosófico-especulativo; antes de mais nada, o divino
era ação.9í Antes do deus, era mais vivo o númen, isto é, se sentia menos a "pessoa" e mais o
"poder".
O culto, em consequência, torna-se puro rito, onde se realizava o evocar e o nomear
numa estreita visão imanente. A relação entre os deuses e o Estado era muito objetiva. Claro
que criava amplo espaço para a superstição e a magia, porém esta era muito perseguida pela
lei romana. Mais domínio consciente, mas o que fugia ao
97. Filostrato, op. cit.
98. Introduzione alia Magia, org. pelo Gruppo di Ur., Mediterranee, Roma, 1971.
105racional se tornava, de imediato, incontrolável manifestação supersticiosa.
Por isso, na tradição romana, como já dissemos, não se encontram modificações e a
relação com a figura feminina vai orientar-se, no plano da sombra, em direção à bruxaria.
Ovídio fala de filtros mágicos; mas é Horácio, em particular, no V e XVI epodos, que se
refere a uma famosa bruxa, Canídia, e reencontramos, inteiramente, a imagem demoníaca
semelhante a Górgona. Assim, no XVII epodo, fala a bruxa:
E então eu te verei a cavalo sobre os ombros odiosos e todo mundo se inclinará ao
meu poder extraordinário. Talvez eu, que posso animar as imagens de cera, como tu mesmo
observastes na tua curiosidade, arrancar do céu, com meus cantos, a lua, ressuscitar os mortos
reduzidos à cinza e preparar filtros para despertar a sensualidade..."
No V epodo é mencionado o aspecto terrível da bruxa:
presa aos cabelos minúsculas víboras e desgrenhada a cabeça, ordena. . .
Firme em seu "viril" inflacionado, o romano deixa aberta a passagem para a
imaginação perversa que faz das mulheres, com frequência, a "bruxa". Sobre a mulher romana
como sobre a mulher que virá depois do advento da Igreja romana, se projetam ainda,
incansavelmente, as sombras de Hécate, de Medeia e Diana. Exata-mente Medeia, sacerdotisa
de Hécate, a trágica amante de Jasão que punirá, vingativa, o amado, matando-lhe os filhos,
ela, que na tragédia de Eurípedes será constrangida a dizer:
De todos os seres do mundo que têm alma e espírito, nós mulheres somos as criaturas
mais infelizes. Devemos antes de tudo, com dispêndio de dinheiro, comprar o marido dando
um patrão a nossa pessoa. . . 10°
E depois de preparar a atroz vingança para a rival e os filhos, Medeia é enfim um
"monstro", totalmente possuída pelo demónio que a faz invocar:
99. Orazio, Opere, gli Epodi, U.T.E.T., Torino, 1977, p. 85.
100. Euripídi, Medea, in // teatro greco, le tragedie, op. cit.
106
Peia deusa senhora que venero sobre todos os deuses, que escolhi para minha
associada, que tem sede no mais íntimo de meu lar, pela deusa Hécate, digo e juro: nenhum
destes poderá alegrar-se em contristar meu coração; enlutada e amarga farei suas núpcias. .
.lw
para chegar, enfim, ignorante da sombra, a revelar a inferioridade feminina que é,
ainda e sempre, consequência da sujeição na qual a impeliu o homem:
Pois nós, mulheres, mesmo se somos, por nossa natureza, capazes de bem fazer,
somos, entretanto, de cada mal fazer o artífice mais experimentado.
O próprio Ovídio exalta a noite escura como momento conveniente para todas as
empresas das bruxas e dos fantasmas femininos:
Oh, noite, tão fiel aos meus arcanos
e vós áureas estrelas
que ao fogo diurno sucedei
junto à lua!
Em Horácio, a Noite se une naturalmente a Diana que se revela maga mais que
amazona; e a invocação serve a Canídia para esconjurar os poderes lunares:
Oh, das minhas empresas
não infiéis testemunhas
Noite e Diana, vós que governais
em silêncio
nas horas dos mistérios!
Agora, agora, ajudai-me, agora
aos inimigos dirigi a raiva
e a vontade vossa! m
Todavia, malgrado os cultos terem se difundido amplamente em Roma — como
exemplo o de Prosérpina, do qual sabemos, por Verrone Lívio, que em 249 a.C, se
celebravam os Ludi Tarentini —,
!01. Eutipidi, op. cit. 102. Orazio, op. cit., v.
107foram perseguidas todas as manifestações mágicas e de bruxaria, seguramente por
razões de Estado. Mas isso, sem dúvida, não liberava o homem do profundo problema da
remoção.
A Medeia de Eurípedes representa a mulher que vive inteiramente a tensão em relação
à própria liberação do jugo patriarcal e das leis impostas pelo homem. Medeia, como Lilith,
primeiro triunfa e depois entra em contenda com o homem que a rejeita e a exclui. Assim,
como veremos mais adiante, quando as bruxas, às centenas de milhares, iam para a morte em
fogueiras acesas pela religião, sustentada e imposta pelos machos, operava ainda a mesma
ânsia, o mesmo impulso vital para libertar-se da mesma sujeição ao homem. Os
comportamentos das mulheres romanas, os recursos e as expressões de seu riquíssimo
psiquismo e mundo imaginai não podiam aparecer aos sacerdotes da história externa,
especialmente em Roma, totalmente manifestos nas ações, no direito e na arte formal, senão
como coisas obscuras, misteriosas, com frequência incompreensíveis, noturnas, lunares,
vibráteis, capazes de suscitar temores irracionais e, em consequência, superstições. Mas não
se compreendia — e não se compreenderá nem mesmo mais tarde no cristianismo medieval
— que se tratava somente do "mistério" ligado intimamente ao mistério da feminilidade.
Porque a feminilidade conhece de dentro; quase nunca a partir de fora, pois traz em si, no
próprio ventre — em sentido estrito e metafórico — a mais profunda experiência vital, e
permanece numa perene, indissolúvel união com sua criatura. Como escreve Vautrier;
A ciência da mulher não é a do macho, seu corpo conhece outras artes. Sua mente é
prenhe de outras dimensões. As descobertas que se devem às mulheres — a história o
confirma até onde se pode remontar — são essencialmente diversas daquelas dos homens,
mais próximas da natureza, que as dos machos, ten-dencialmente levadas a exaurir-se na
aplicação de técnicas que somente modificam as formas.103
O perigoso, para o homem, aquele perigo psicológico vivido como ardil e invasão e já
encontrado na imagem jâmbica de Horácio: a mulher que pode induzir o homem à própria
vontade, que lhe está por cima, a cavalo. Uma insustentável imposição para o macho. É ainda,
repetitiva e forçada, a rejeição agressiva de Lilith. Em conse-
103. Vautrier, op. cit. 108
niiência a mulher opera na imaginação a mais cruel desforra Combatida com a
exasperada sublimação religiosa e com a desdenhosa razão do homem, a Anima enquanto
"mulher" e totalidade de energia vital e por isso, esfera potentemente instintiva e criativa volta
a representar o conto, a protestar, a exigir resposta a sua dolorosa pergunta: "Por que me dizes
não? Não somos iguais? Nao sou eu
igual a ti?"
E assim chegaram as bruxas.
109LILITH NA IDADE MÉDIA: A BRUXA
No segundo século depois do ano Mil, um espectro surge e vagueia pela Europa: a
bruxa.
O incubo produzido pela psique se desenvolve e se faz mais constante, acabando por
exteriorizar-se: a hostilidade para com os conflitos sexuais, pertinazmente ignorados, vem ao
encontro da ciência e a altera. A partir deste momento a aversão pelos instintos será projetada
sobre "certas" mulheres, segundo específicos enquadramentos sócio-culturais e sócio-
econômicos. Elas se tornarão bruxas, personificações obsessivas dos fantasmas e das
superstições coercitivas, que no início da Idade Média se manifestavam no mundo objetivo.
Tem início aquele que foi definido como o romance do imaginário, onde a obsessão
masculina se abandona completamente ao delírio persecutório que logo se torna um rito
sangrento.
Deste modo, a contraposição entre alma e corpo não só será reconfirmada na era cristã,
mas será ampliada a brecha, com o predomínio do macho e a crença na inferioridade da
mulher. No vazio intermediário se ocultam os germes da angústia da idade moderna. Ao
surgir a Idade Média, o homem-Adão, arrastado pelo moto centrífugo do alargamento da
polaridade, tenderá sempre mais para a vida metafísica e a transcendência. A mulher será
rechaçada à condição de "periculosidade".
Nunca antes, como após o ano Mil, o homem lutou contra os componentes erótico-
sexuais que quer reprimir confinando-os ao sabá das manifestações satânicas. Nunca, como
nesta época, a mulher teve que pagar um preço tão trágico pelo ódio masculino à força
instintiva.
111Remetemos o leitor que queira conhecer o aspecto geral do tema para a literatura
sobre as bruxas e a bruxaria.104
Aqui queremos falar da bruxa como uma ulterior — e talvez a mais clamorosa —
personificação de Lilith que o homem jamais realizou.
Da França à Espanha, da Itália à Alemanha e Inglaterra, o espectro da bruxa se agitará
como uma doença, um delírio paranóico persecutório que resolverá a pressão das pulsões
destrutivas com a explosão da caça às bruxas, os processos da Inquisição e as condenações à
fogueira. Lentamente, esta explosão acumulará — sob a guia da Igreja — todas as "provas"
que serviram para repetir a condenação de Lilith e a perseguição de seus símbolos. Tais
"provas" são eloquentes em si e só podemos citar algumas para exemplificar, colhendo-as do
imenso repertório da cultura patriarcal ocidental. Estas "provas" permitiram radicar na
consciência masculina sentimentos tais que estes abriram caminho para aquela horrenda
carnificina física e psíquica que a história recorda assim:

Nunca os seres humanos se atiraram mais cegamente uns contra os outros, nunca o
cristianismo se desacreditou mais frente ao mundo inteiro, como nos processos contra as
bruxas.105
104. Para uma aproximação histórica, psicanalítica e sociológica ao tema das
Bruxas, sugerimos os seguintes textos:
Institoris, H-Sprenger, J., Malleus Maleficarum, trad. it. II martello delle
5/regèerMarsilio, 1978.
Lovandre, C. L., Sourcellerie, Paris, 1930.
Michélet, ]., La Strega, várias edições em italiano; original francês.
Riklin, F., Wunscherfullung und Symbolik im Mârchen, 1906.
Abraham, K., Trauma e mito, in Opere, Boringhieri, Torino, 1976.
Bodin, ]., De Ia Démonomanie des sorcières, Paris, 1953.
Jones, E., Psicoanalisi deWIncubo, Newton Compton, 1978.
Cavendish, R., La Magia Nera, vol. 2, Mediterranee, Roma, 1977.
Butler, M., Ritual Magic, Noonday Press, New York, 1959.
Murray, M., Witch-Cult in Western Europe, Clarendon, Oxford, 1929.
Murray, M., 11 dio delle streghe, Astrolábio, Roma, 1976.
Lea, H. C, Material Totvard a History of Witchraft, N. T., 1957.
Guaccio, F. M., Compendio delia stregoneria, Giordano, Milano.
Briggs, K. M., Pale Hecate's Team, Routledge Kegan, London.
Rodhes, H. T., The Satanic Mass, Citadel Press, New York.
Chocbod, Louis, Storia delia Magia, Dellavalle, Torino, 1971.
Freud, Sigmund, Opere, Boringhieri, Torino, 1979; trad. bras. Obras, RJ,
Imago, 1." ed., 1977.
Eymerici, N., Directorium inquisitorum, Roma, 1572.
105. Jones, E., op. cit.
112
Parte-se da convicção de que a mulher é biblicamente condenada nas considerações,
pois diz o Eclesiaste:
Não há pior veneno do que o das serpentes, não há pior ira do que a da mulher. Seria
mais agradável estar com um leão ou com um dragão do que morar com uma mulher má.
Sêneca recorda que a mulher ama ou odeia, excluindo outras eventualidades e, de
qualquer modo, diz, quando uma mulher pensa, pensa somente coisas malvadas. Também
para Cícero a mulher tem tendência a cometer todos os delitos em virtude de sua avidez.
Terên-cio (Hecyra, III, 1) proclama: "As mulheres são fracas de intelecto, quase como
crianças".
Não há também uma mínima confiança nas manifestações emotivas da mulher; ela não
recebe crédito nem de Catão, que afirma: "Quando chora, uma mulher trama ardis com suas
lágrimas. Quando chora, uma mulher está tramando um modo de enganar o homem".
É sempre na Bíblia (Provérbios, VII, 25-27) que ressoa a condenação mais profunda, a
que dará um pano de fundo para a caça antibruxas medieval:
Creio que a mulher é mais amarga que a morte porque é uma armadilha, seu coração
uma cilada, suas mãos cadeias; quem ama a Deus foge dela, quem é pecador é capturado por
ela.
No famoso Formicarius de Johan Nider, de 1430, é descrita pela primeira vez a
bruxaria, e somente em 1489 virá à luz aquele incrível texto de psicopatologia sexual
masculina escrito por Heinrich Institoris e Jakob Sprenger, intitulado Malleus Maleficarum m
onde se pode colher esta informação:
Porque, sem dúvida, se não existissem as iniquidades das mulheres, mesmo não
falando de bruxaria, atualmente o mundo permaneceria livre de inumeráveis perigos.
Mesmo não considerando as bruxas (e silenciando os malefícios), a mulher é um
flagelo para os inquisidores! Retorna-se ao pecado original, a Eva, para preparar o processo
contra a sensualidade feminina e, no Malleus Maleficarum, sustenta-se que o pecado,
106. Do Malleus Maleficarum existe hoje a trad. italiana cit. acima.
113que começou com a mulher, mata a alma. . . Por isto, a mulher é "um inimigo
brando e oculto" cuja concupiscência carnal é insaciável.
No famigerado texto se diz ainda que existem coisas insaciáveis na mulher, mas uma é
a pior: "a boca da vulva, através da qual elas se agitam com os diabos para satisfazer sua
lascívia. . ."
A armadilha psicológica dispara, como dissemos, graças também às perseguições
religiosas, porque por detrás da bruxaria havia o álibi da heresia.
A equação bruxaria e feminino é elaborada por G. Visconti, em 1460, em seu
Laminarium swe striarum opusculus, enquanto Vigna-ti, jurista, relaciona "excessos sexuais"
e adoração do diabo. Depois se passa a definir as bruxas como prostitutas do diabo. Conclui-
se, a propósito da perfídia, que na época ela é encontrada muito mais entre mulheres do que
entre homens e o Malleus Maleficarum, procurando a causa, pode acrescentar que assim como
as mulheres são privadas de todas as forças
tanto da alma quanto do corpo, não é de espantar que façam muitas bruxarias contra os
homens que elas querem imitar. E a razão natural de tudo isto é que a mulher é mais carnal
que o homem, como resultado de muitas imundícies carnais.107
A atitude psicológica dos inquisidores é inequivocamente condicionada pela obsessão
sexual. Logo, bruxa, sexo, heresia se entrelaçam para merecer uma só condenação:
Como consequência dizemos que a experiência ensina que para satisfazer essas
imundícies carnais tanto sobre si mesma quanto sobre pessoas poderosas no mundo. . .
operam inumeráveis bruxarias arrastando os espíritos para um amor de perdição do qual não
adianta nada tentar se dissuadir. , . Por isto, diariamente ameaçam a fé de destruição e de
perigo intolerável, dado que elas sabem transformar a tal ponto o ânimo de qualquer um que
este não permite que contra as bruxas se faça alguma coisa, nem de sua parte, nem de
outros.108
Vejamos então o que é essa criatura tida como tão absurda a ponto de atrair o homem
para amores de perdição.
O mitologema da bruxa medieval deve ser relacionado, sem dúvida, a Hécate e a
Artêmis-Diana. Dele se têm as origens psicológicas e simbólicas enquanto emanação funesta
da Lua. Nos primeiros séculos cristãos, Diana ainda sobreviverá como bruxa, se é verdade que
nesse mesmo século Cesario de Aries expulsou, do corpo de uma jovem atormentada, um
demónio que os camponeses chamavam Diana e, em 1318, como se sabe, o Papa João XXII
discutiu certas práticas de magia onde operavam demónios femininos chamados Dianaem
H. C. Lea refere-se a cavalgadas noturnas de bruxas guiadas pela deusa Diana, a quem
obedeciam cegamente.110
Segundo Burckhardt, a Diana latina era chamada também Ero-díade, a mortal
adversária de João Batista. Em 1115 João de Sa-lisbury já falava dela, afirmando que Diana
era considerada Rainha da Noite e convocava, para reuniões noturnas, homens e mulheres
para consumarem orgias.
No Canon Episcopi, entretanto, houve uma primeira tentativa de parar a onda
alucinatória a respeito das bruxas com a afirmação que tudo isto devia ser considerado fruto
da sugestão e da superstição.
A bruxa como mulher velha, sozinha, ou mulher feia de aspecto feroz, que chega no
meio da noite com seu cortejo infernal de diabos, cães, vampiros, anões, mulheres e se
apresenta com a tradicional gargalhada sardónica, pode derivar de Hécate ou de uma Empusa,
Górgona: neste caso, os símbolos têm o mesmo significado. Por sua vez, a bruxa como
mulher jovem, belíssima, atraente, a verdadeira "sereia" ou "víbora" da fantasia moderna,
aquela que podia seduzir com feitiços tidos como fogo do demónio assim como ser a alegria
vital dos sentidos, pode ser reconduzida à Circe homérica, enquanto beleza encantadora que
oferece aspectos enganadores. Qualquer que fosse a encarnação do demónio feminino, a
bruxa e suas seitas eram perseguidas como heresia religiosa, mas hoje dificilmente se pode
continuar a ocultar a verdadeira motivação dessas perseguições: isto é, o ódio pela mulher que
se manifestou como luta contra o pecado, por parte da Igreja celibatária que se identificava -
— como ecclesia mater — com o arquétipo da Mãe protetora e salvadora.
A bruxa vive numa dimensão oculta na sociedade dos séculos XIII e XIV. Ninguém as
conhece ou as vê, criaturas fantásticas, mas muitos estão prontos a jurar que conhecem seus
trabalhos e sua fu-
107. Ibidem, p. 90,
108. Ibidem.
109. Cavendish, R., op. cit.
110. Lea, H. C, op. cit., p. 178.
14
115nesta presença. Somente em plena Inquisição a bruxa se tornará — corpo e alma
— uma criatura do sexo feminino, pertencente preponderantemente às classes sociais
humildes, e consagrada ao demónio. Havia muitas bruxas; muitíssimas, segundo a tradição.
Tantas quantas os diabos que infestam o mundo, segundo as paranóicas estimativas dos beatos
da época. Sem dúvida nenhuma, em certa fase, voltou-se a conceber a bruxaria como
manifestação invisível de poderes ocultos que atiravam sobre pessoas, coisas, animais,
habitações, campos, etc. a sua maldição.
As bruxas mantinham três tipos de relações: uma com suas semelhantes, embora cada
bruxa pudesse livremente mimetizar-se e circular entre as pessoas comuns, que não tinham
indícios de nada. Uma outra relação, a mais significativa, era com o Diabo e implicava o
famoso "Pacto" que descreveremos mais adiante. Enfim, estavam em relação indireta com o
próprio Deus, tanto que os diligentes inquisidores colocavam questões deste tipo: "A
permissão divina contribui para a bruxaria?" E para estas interrogações se procuravam
respostas muito católicas como esta:
Todo mal que é praticado seja com culpa, seja com punição, seja com dano, Deus o
permite justamente em seguida a duas promessas feitas pela queda dos anjos e pela queda dos
pro-
111
genitores.
Uma obra-prima de estratégia psicológica que atinge dois alvos de um só golpe: as
bruxas eram necessárias como demonstração do pecado e da queda, da existência do Mal. E,
enquanto criaturas do Mal, era necessário destruí-las para afirmar o Bem, isto é, a santa
religião! Por isso as bruxas gozavam de uma espécie de não impedimento de Deus e da Igreja,
pois demonstravam a presença do Diabo e a necessidade de combatê-lo mediante processos,
confissões, torturas e rogos expiatórios e catárticos.
Elas operavam o terrível maleficum, que era praticamente um ato violento e enganador
de magia negra, onde se condensavam — graças à fértil fantasia popular da baixa Idade
Média — todas as manifestações terrificantes, transformativas, de sortilégio e destruição, até
mesmo as mais arcaicas.
A mulher bruxa exercia malefícios inumeráveis, que iam de banais incómodos
provocados no corpo ou no trabalho cotidiano
111. // martello delle Streghe, op. cit. 116
fl
concreto, até os males mais graves, aí compreendida a morte, em geral por acidente.
Frequentíssimos eram os malefícios operados na esfera sexual em relação à
impotência masculina e à frigidez da mulher.
O psicanalista E. Jones foi, sem dúvida, quem escreveu, em Psicanálise do incubo, o
capítulo mais convincente e penetrante sobre a bruxa, estudando-a, sob a ótica freudiana,
como símbolo de profundos conflitos sexuais.112
Este autor é de opinião que o terror coletivo do maleficium era o "basilar medo
humano de incapacidade ou insucesso no plano sexual".
Já mencionamos que as bruxas se ofereciam sexualmente ao demónio ou aos possessos
e davam à luz diabos. Além disso, tinham poder sobre o sexo. Eis algumas questões dos
inquisidores:
— Podem as bruxas impedir a potência geradora ou o ato sexual?
— Podem as bruxas operar tais prodígios de ilusão através dos quais parece que o
membro viril fica completamente destacado do corpo?
— Podem as bruxas agir sobre os homens de modo a transformá-los em bestas com a
arte dos prodígios?
Em seguida são indicados os remédios contra as bruxarias e aí também se fala de
impotência e frigidez.
Hansen afirma que a bruxaria considerava a relação sexual entre homem e mulher de
modo proeminente,113 entre todos os outros malefícios. O conceito é claro: as bruxas eram
figuras castrantes e o medo do homem, de que elas lhe arrancasse o pênis, era uma fantasia de
impotência ou castração. O diabo, através da bruxa, impedia a penetração na vagina, ou, se
isto ocorria, imediatamente se dava a depleção do membro viril. Do mesmo modo, o
enamorado podia improvisadamente enxergar a amada como abominável ou a ejaculação era
impedida, etc. Nas páginas do Malleus Male ficar um sentimos vibrar todas as angústias
possíveis, como se o homem devesse verdadeiramente combater os terríveis fantasmas,
sofrendo abertamente o terror do insucesso no coito:
112. Jones, E., op. cit.
113. Hansen, J., Zauberwabn, lnquisition und Hexenprozess im Mittelalter, Berlin,
1900.
117O diabo (...) pode reprimir a ereção do membro no ato da fecundação (...) pode
impedir o envio dos espíritos vitais (o esperma) a cada membro (...) por ex., obstruindo os
condutores seminais a fim de que o sémen não suba. . . nem remonte ou transborde ou seja
ejaculado. . . Os homens, neste ato, sofrem mais bruxarias que as mulheres... às vezes o
membro ereto pode esvaziar (...) Quando a vara não se move de nenhum modo, e nunca houve
uma relação, é sinal de frigidez. Ao contrário, quando se move e tem ereção mas não pode
concluir o ato, é sinal de bruxaria. . . Se faz bruxaria quando acontece que a mulher não
concebe ou aborta. . . Pergunta-se se as bruxas podem realmente levar embora o membro viril.
. . E deduz-se com argumentos a fortiori que o fazem verdadeira e realmente, . .114
O remédio, diz o Malleus, era a "purificação, o estado de graça de Deus, e, ao menos,
viver a sexualidade só para fins procriativos e dentro do matrimónio". É ainda a eleição da
Lua branca e o repúdio da Lua Negra. Honrando o mito bíblico, a Lilith medieval andava à
caça até de recém-nascidos e crianças ainda não batizadas, para arrastá-las para longe de casa,
matá-las e até devorá-las; tudo acontecia como nos rituais das Lâmias. Os sortilégios podiam
ter efeito à distância e, se uma pessoa ficava doente, havia sempre a suspeita de feitiçaria. (Os
campos e as colheitas eram também atingidos por malefícios).
A crença de que as bruxas provocavam a doença e a morte era, em voz baixa,
ampliada para as mulheres em geral, pois estas, embora aceitas e desfrutadas, eram-no com a
maior desconfiança, por causa dos sentidos e de "sua imundície". Não é por acaso que se
recordava a passagem bíblica: "Sobre aqueles que são escravos da sensualidade tem poder o
diabo".
Era ainda e sempre a luta contra as paixões da alma, que Fílon, de Alexandria,
comparava às bestas selvagens.
As bruxas trabalhavam com venenos, materiais ou incorpóreos, que, uma vez tendo
penetrado o corpo, produziam danos irreversíveis. Nas fórmulas de magia negra pode-se
encontrar os filtros e as poções usadas. Não raro, uma bruxa usava loções diabólicas à base de
terebentina, leite de cabra, falo de lobo, hera, vulva de baleia, rosas pulverizadas, amoníaco.
114. II martello delle Streghe, op. ctt 118
Ou então fórmulas deste tipo: extratos de ópio, betei, beladona, cânhamo indiano,
cantárida, hiociamina. Eram filtros capazes de produzir graves alterações psíquicas e
alucinatórias.
A bruxa, como diabo incubo ou súcubo, se arremessava durante a noite junto a alguém
que dormia e o assaltava com a técnica que conhecemos. Também nesse caso há um nexo
entre a visita da bruxa e a polução noturna resultante de sonhos eróticos ou pesadelos
ameaçadores. R. Burton, em 1826, observava
os homens adormecidos que se agitavam perturbados pelo incubo ou cavalgados por
uma bruxa. Jaziam deitados de costas, sonhavam que uma velha se estendia sobre eles a
cavalo caindo-lhes em cima com o peso do corpo todo, de maneira que eram sufocados por
falta de ar.115
Os homens podiam ser induzidos ao amor através de um filtro ou dos mais variados
amuletos.
As bruxas, graças a sua capacidade de voar, podiam conduzir um homem a sua amada
a cavalo numa vassoura ou numa cabra. Seligman diz que a bruxa curava os homens de
impotência dormindo uma noite no leito matrimonial. Mas, se aplicava o maleficium, era
implacável: com um pesadelo era capaz de tornar estéril uma mulher ou impotente um homem
perverso.
A característica que distinguia a bruxa era a sua relação com o Diabo. A acusação
principal nos processos por bruxaria era o "Pacto com o Diabo", que se efetuava mediante um
complexo cerimonial. Muitos autores inclinam-se para a tese de que o núcleo central do liame
com o Diabo era a relação sexual. A acusação já fora formulada por Nedar e pelo Malleus
Maleficarum, para quem a mulher-bruxa era portadora de uma sensualidade diabólica.
O pacto com o Diabo (que é o Satanás do cristianismo, e não deve ser confundido com
o demónio) representa o vínculo entre a instintividade feminina e a masculina em níveis
conscientemente censurados. O Diabo é, num certo sentido, a sombra de Deus e para o
homem é sua esfera instintiva mais obscura, aquela que nunca se decidiu a viver. De fato, o
Diabo será sempre sinónimo de tentação, luxúria e mal. Silberer define bem o Diabo em
termos freudianos:
115. Burton, R., The Anatomy of Melancholy, London, 1826.
119O Diabo e as sinistras figuras demoníacas dos mitos, no plano psicológico são
símbolos funcionais, personificações dos elementos reprimidos e não sublimados da vida
instintiva.116
Consideramos interessante, para nosso tema em geral, e para compreender o nexo
entre Lilith e o pacto com o Diabo, a conclusão desenvolvida por Jones que assevera que a
crença no Diabo representa, em grande parte, uma exteriorização de duas séries de desejos
que aparentemente se anulam e são derivados, indubitavelmente, do complexo edipiano:
primeiro, o desejo de imitar alguns aspectos da figura paterna; segundo, o desejo de desafiar o
pai. Se alteram então competição e hostilidade.117 O Diabo, senhor e dono das bruxas, seu
verdadeiro parceiro sexual, seria neste caso o animus de Lilith.
Examinemos o pacto com o Diabo, que hoje seria um pouco como o pacto que um
cliente inibido e escrupuloso firma com a prostituta, visto a partir de uma moral carola! Quase
todas as fontes concordam sobre o conteúdo sexual do pacto.118 O Diabo aparecia à mulher e
o encontro era imediatamente um conúbio. Dizem as testemunhas:
O Diabo foi ao seu encontro em forma de homem negro e prometeu que lhe daria tanto
que ele não teria mais nada a desejar se ela se tornasse sua serva. E ela se alegrou em
consentir.
Uma outra bruxa confessa aos inquisidores que:
Satã exige que sejas sua serva, ele que aceitaste com felicidade. . . e ainda:
116. Silberer, H., Phantasie und Mythos, "Psychoanalystiches Jahrbuch" Wien, 1910,
vol. 2.°.
117. Jones, E., op. cit.
118. A união sexual com o diabo como principal acusação contra as bruxas, com a
mais extensa descrição dos ritos sexuais, é tratada por uma vastíssima literatura. Uma possível
integração do tema Bruxaria está nas seguintes fontes: Wuttke, A., Der deutsche
Volksaberglaube der Gegenwart, 1900; Soldan, W. G., Geschicbte der Hexenprozess,
Munch, 1880; Ennemoser, J., Geschichte der Magie, Berlin, 1844; Roskoff, G., Geschicbte
des Temples, 1869; De Lancre, P., Tableau de Vinconstance des anges et des démons, Paris;
Freimark, H., Occultismus und Sexualitãt, Frankfurt s.d.; Haag, H., La credenza nel Diavolo,
Mondadori, 1976.
120
Satã te pede para ser sua serva e tu aceitaste com alegria e do mesmo modo te pede
para renunciar ao batismo e tu aceitas com alegria. . .119
e a assinatura com sangue confirma uma dependência absoluta. Sangue menstrual, diz-
se, (ou então se fazia uma incisão na pele do braço. Depois eram trocados os nomes; assim,
uma bruxa podia se chamar "Joana que dança bem", ou então "Bárbara dos flancos quentes", e
assim por diante. Sobre o corpo da mulher, o Diabo deixava sua marca com os dentes ou
então com as garras: um sinal azul, uma cruz, um arranhão horrendo. Murray transcreve a ata
de um processo:
Desnudaram a velha e atrás do ombro direito encontraram alguma coisa semelhante a
uma mama de ovelha, com dois mamilos para sugar, como duas grandes verrugas; um sob a
axila e outro a mais ou menos um palmo do ombro. Foi-lhe perguntado há quanto tempo tinha
tais mamilos. . . Depois examinaram A.G. e sobre seu ventre encontraram um furo do
tamanho de dois pences, fresco e ensanguentado como se uma grande verruga houvesse sido
dali cortada.120
Estes eram indubitavelmente os sinais de bruxaria diabólica. A fantasia dos juizes se
fartava: em geral se encontravam mamilos em muitas e várias partes do corpo: também
verrugas azuladas. Acontecia que estes mamilos eram encontrados em zonas nitidamente
erógenas: em trinta e nove casos os mamilos estavam assim distribuídos: trinta nos genitais,
três no ânus, dois nas costas, dois no abdome, um na nádega, um na axila.
A bruxa consagrava, portanto, corpo e alma ao Diabo em troca de poderes que recebia
na eterna luta contra Deus.
A partir do momento em que a mulher era tomada pelo Diabo, podia cometer qualquer
"crime" contra a religião, a moral, o sexo, o matrimónio e o homem.
Os rituais eram truculentos: comer crianças, promiscuidade obscena com animais —
predominavam os sapos, gatos e corujas — danças macabras e orgias sexuais que, mais tarde,
só Sade conseguirá imaginar.
119. Murray, M., Le Streghe neWEuropa Occidentale, Roma, 1974.
120. Murray, op. cit.
121Mas a característica mais impressionante das bruxas é sua possibilidade de
deslocar-se de um lugar para outro com grande facilidade e por qualquer meio. Ela pode voar
no ar, superando casas, campos, rios, colinas; pode cavalgar ou caminhar apressada e
taciturna.
Ninguém a reconhece, mas todos a evitam. Onde pode ir uma bruxa? Somente ao
encontro do Diabo.
Assim, a bruxa vai ao Sabá, a grandiosa epifania das forças vitais liberadas: o Sabá é
local e festa que repete o arcaico evento consumado nos desertos do Mar Vermelho. Ali,
Lilith, negada, revela com raiva e furor todo o sexual ferino. No Sabá, a bruxa renova seu
protesto.
O Sabá: a Noite das bruxas, a Noite de Valpurga, o Diabólico Congresso, o Diabólico
Festim, a Orgia das bruxas. De quantas maneiras foi definido o Sabá?
A bruxa vive assim o evento mágico: uma voz mensageira anuncia-lhe o convite.
Quem lhe fala? É o próprio Diabo — conta a bruxa Sampson:
entre as cinco e seis horas da tarde, enquanto caminhava sozinha pelos campos para ir
para casa, encontrei o Diabo em forma humana que ordenou que estivesse à noite na igreja de
North-Berwich.121
Ou então é uma coruja, um asno, um porco ou uma cabra que lhes indicam o lugar do
Sabá. É a festa que reevoca o dia sabático hebraico, mas aqui tudo é vivido com ódio a Adão e
ao Deus punitivo.
A bruxa se prepara para a viagem e é Lilith, é a Rainha da Noite, é Erodíade, é Diana,
é Hécate, ou então é Mormo, Gelo, ou Empusa; mas é também "Janet que dança bem", ou
"Mary, a torta", ou "Cristiane, a branca"; seja como for, é sempre a mulher que se projeta
inteira em direção ao desenfreamento instintual. Antes de tudo se esparge um unguento
particular no corpo, especialmente sobre o seio, sobre o ventre, coxas e sobre as nádegas. É
uma pomada mágica; há quem afirme que é preparada com gordura de crianças cozidas em
água, aipo, acônito, folhas de choupo e fuligem. Mas a receita varia: pode ser ácaro,
pentafilone, sangue de passarinho, gor-
121. De Murray, parafraseado. 122
dura de porco, solanum sonífero e óleo. O unguento é esfregado com muita força até
avermelhar e fazer queimar as partes do corpo; dilata também os poros para que a pele se
torne lisa e pronta para as carícias eróticas. Outros dizem que o unguento da bruxa é
esverdeado, tem odor acre: é o óleo e o espírito com o qual são untados a fronte e cada um dos
pulsos.
Enquanto a mulher faz isto, pronuncia inomináveis palavras obscenas ou blasfémias.
A excitação sexual tem início com estes preparativos. O unguento satânico mais
conhecido é composto de gordura humana, ou de porco, mais haxixe, ao qual é acrescentado
um punhadinho de flores de cânfora, de papoula, sementes de girassol esmagadas e raízes de
heléboro. O todo é escaldado e depois levado pela bruxa, que o esfrega dentro das orelhas, no
pescoço, ao longo da carótida, nas axilas e no tórax; muitas esfregam os seios embaixo dos
mamilos, depois as barrigas das pernas, as plantas dos pés, o póplite e o côncavo dos
cotovelos.
Piobb afirma que o unguento tem a propriedade de fazer assistir ao Sabá.122 Também
há quem afirme que se tratava de uma pomada alucinatória e o haxixe, segundo Paracelso, era
bem aceito pela bruxa.
Em seguida, a bruxa se encontrava fora da própria casa e de seu leito. É noite, quando
se encaminha para o Sabá. Ela pode ser uma esposa que aparentemente dorme — ao lado do
incauto marido. Pode ser uma virgem jovem, ou uma menina, que também dorme, talvez
inquieta. Ou uma anciã que acorda de improviso. Mas todas, se dirá, embora ficando com o
corpo em casa e no leito, vão ao Sabá com a alma e com sua luxúria. Reúnem-se dez, vinte,
até cem bruxas. Voam: cavalgam um cabo de vassoura, este também esfregado com o
unguento satânico. Sobre o bastão podia sentar-se o homem que acompanhava a mulher. Iam
abraçados uns aos outros. Jones menciona que o cabo da vassoura como cavalgadura era às
vezes fincado no traseiro de uma cabra. Outro meio para voar é o cavalo negro ou branco.
Podia-se observá-lo à noite.
A bruxa monta um símbolo claramente sexual e lascivo. O unguento, o bastão, o
cavalo, o vôo, levam-nos a pensar no frenesi sexual: a ereção, o esfregar os genitais, as
posições animais do coito,
122. Piobb, P., Formulário di Alta Magia, Ed. Atanor, Roma, 1971, trad. bras.
Formulário de Alta Magia, RJ, Francisco Alves.
123o voar como símbolo do êxtase do orgasmo, de poluções ou de masturbação.
Num cânone do Concílio de Ancira, do século IX, está escrito:
Certas mulheres perversas, tornadas escravas de Satã e seduzidas por imagens e
fantasias de demónio, acreditam e afirmam cavalgar nas horas noturnas com Diana, a Deusa
dos pagãos e com Erodíade e uma inumerável multidão de mulheres, sobre certas bestas.. .m
A bruxa pode voar na garupa de um porco, ou então de um carneiro negro. Algumas
dizem que vão ao Sabá a cavalo num homem subjugado aos seus desejos sexuais. Enfim,
presa por seu instinto, iluminada por uma razão obscura, voa para o encontro. Pode levar
consigo um menino enfeitiçado e transformar-se em animal, se necessário, para camuflar a
própria identidade, exatamente como faz o Diabo, que pode ser homem, bode negro, ovelha,
lobo ou talvez um pássaro estranho, ou um bestial conúbio de homem e bode.
A bruxa bebe várias misturas, talvez vinho, ou poções inebriantes que conferem
beatitude e o poder de Ananda; é a ambrósia e o néctar dos gregos, que Circe oferece aos
homens de Ulisses; é o ordreier dos nibelungos. Na verdade, o Sabá das bruxas talvez fosse o
ritual de reunião dos heréticos perseguidos pela Igreja. A fantasia popular, a auto-sugestao
com evidente fundamento psicótico cole-tivo, como também as manipulações e mistificações
do poder eclesiástico, transformaram fatos e costumes em flagelo paranormal com as
consequências conhecidas.
Ao Sabá acorrem bruxas veteranas e bruxas noviças, levando consigo os adeptos que
receberão do Diabo os poderes infernais.
Onde se realiza o Sabá? Em tantos lugares quantos citam as tradições locais.
Habitualmente o rito se desenvolve secretamente em igrejas sacrossantas, entre as ruínas de
casas abandonadas, ou então em feitorias ou currais em campo aberto. Várias crónicas se
referem a Sabás consumados em castelos e até cemitérios. Murray cita lugares como grutas e
prados onde eram dispostas pedras em círculos e no espaço interno realizavam-se ritos.
Recordemos as mais célebres Noites de Sabá: as de Vai purga na Alemanha no dia primeiro
de maio, a inglesa, Roodmas, em Candelor, no dia 2 de fevereiro e o primeiro de agosto na
França e na Inglaterra; na vigília
123. Murray, op. cit. 124
de Todos os Santos em vários países. As assembleias são um evento de excepcional
interesse psicológico e podemos tentar descrevê-las confiando na imaginação e nas crónicas
da época.
Abre-se a cena do Sabá. Mefistófeles — diz o poema de Goethe — convida Fausto a
conhecer os mistérios da noite que desce sobre Valpurga. O Diabo, envolto num manto, ri
zombeteiramente:
Não terás necessidade de um cabo de vassoura? Quanto a mim, gostaria de ter o
príncipe dos bodes. Nesta estrada estamos ainda longe da meta.
E os dois cavalgam para acorrer ao Sabá. Aqui Goethe nos recorda os dois grandes
símbolos de nosso tema: a Lua Negra e Lilith. É ainda Mefistófeles que fala, olhando em
torno:
. . .Como o disco espesso da Lua vermelha eleva triste seu clarão alumia tão mal que
se tropeça a cada passo numa árvore, numa pedra. . .
E o panorama noturno que se intui entre calafrios, nesta peregrinação diabólica,
contém todos os elementos de horror da bruxaria:
São corujas,
ainda acordadas? E nas
— longas pedras, ventres intumescidos —
são salamandras?. . .
...e oh,
o exército dos ratos
salpicados
por musgos e por urzes!
[...]
Tudo, tudo gira, ou assim parece:
rochas e árvores onde máscaras
escarnecem e fogos funestos
se multiplicam, tremulam.
Goethe, pela boca de Mefistófeles, em Fausto, talvez melhor do que qualquer outro
texto, oferece o espetáculo da chegada ao Sabá de toda uma multidão endemoniada:
125Os convivas barulhentos se avizinham, ouço-os Fausto: — Como o vento
turbilhona no ar
que pancadas desfere em minha nuca! Mefistófeles: — A névoa obscurece a noite
Escuta como os bosques gritam
Aterrorizados os mochos fogem.
Escuta como se estilhaçam as pilastras
dos palácios sempre verdes.
Gemem os galhos e se quebram.
Que abalo potente e os troncos.
que rangem as raízes
se fendem! Horrenda ruína,
[...]
Escutas vozes lá no alto?
Longe? Próximas? Sim, é um rio
retumbante de cantos mágicos que desliza
por toda a montanha.
E, finalmente, intervêm as bruxas em coro, a potente voz do demoníaco:
Vão juntas as bruxas ao Brocken.
O retolho é seco, verde a aveia.
Lá em cima se amontoa a multidão que se reúne.
O senhor Pinco está no cume.
Ofegantes as bruxas, cheirando a bode,
e entre os cepos e as pedras se vai.
As vozes endemoniadas se alteram no ensurdecedor coro e há uma sucessão de
imagens:
Eis no lombo de uma porca sozinha a velha Baubo!
Guia os outros! Um porco bem robusto, ela em cima: e as bruxas em cortejo! Por qual
caminho chegam?
126
Por Usentein!
Onde dei uma olhada no ninho
da coruja. Ai,
que olhos!
Por que tanta pressa?
Ela me mordeu, veja
que ferida!
A estrada é longa, longa é a estrada
Por que se apertam assim os passantes?
A forca que aguilhoa
Muitas vassouras que arranham:
sufoca a criança, se arrebenta a mãe.
E, ainda todos em coro, bruxas e bruxos:
Vamos na vassoura, vamos no bordão
sobre a forca e sobre o cabrão.
Quem hoje não se levanta está para todo o sempre perdido.
Fausto e Mefistófeles vêem passar a tropa maldita:
Se pisam, se chocam, se remexem, crepitam,
assobiam, giram, passam, tagarelam!
Relâmpagos, fagulhas, fedor, labaredas!
Para as bruxas, o seu elemento!
[...]
Aumenta o tumulto, é um turbilhão:
Acreditas estar empurrando para a frente e és empurrado.
Enfim, eis que aparece, aos olhos de Fausto, aquela que desde sempre é a Rainha da
Noite. Voltando-se para o Diabo, Fausto indica uma figura feminina que atrai sua atenção:
— Mas, quem é aquela?
Mefistófeles, na confusão do Sabá, reconhece a mulher bíblica e responde assim:
— Aquela, é Lilith!
127Até Fausto parece surpreso ao escutar aquele nome, pois cancelou a memória
arcaica do mito. Goethe não colocou por acaso uma dupla indagação:
— Quem?
E Mefistófeles responde de novo:
A primeira mulher de Adão. Acautela-te contra seus belos cabelos, aquele esplendor é
único a vesti-la. Com eles aprisiona um jovem e não o deixa escapar tão cedo.'
E a bela bruxa se apresenta no Sabá. A hora do convite oscila sempre entre onze horas
e meia-noite.
Todos os convidados, na sala, são atraídos por um eminente evento: entra o Diabo;
entra Satanás ou Belzebu como ele gosta de se denominar. Tem o pé bifurcado, como Pã, o
sátiro. Aparece com mais frequência ainda como bode: uma besta horrível, o Grande Buque,
de testa caprina, cornos de carneiro, orelhas de asno. Tem sobre a cabeça uma vela acesa. Os
braços são cabeludos, humanos, assim como o tronco. As coxas e os membros inferiores são
de asno ou carneiro. O Diabo, quando aparece, produz um frémito de prazer e temor: olha as
bruxas, os bruxos; olha o séquito de íncubos e sú-cubos, depois se senta no trono que pode ser
de pedra ou um altar profano: um leito, uma árvore seca. É um ser que incute terror, mas toda
a figura emana força erótica.
Com o olhar chama a si as pessoas. Estas se aproximam, se ajoelham diante dele e
fazem mesuras. O Diabo acena, exigindo mais familiaridade: quer ser beijado. O beijo
diabólico, o beijo obsceno. Escreveu-se muito a respeito, mas é um dado real que o Diabo se
faz beijar nas partes do corpo que mais deseja e sente como mais excitantes. É a expressão da
dedicação máxima para com aquele que pode engravidar psiquicamente a bruxa. Outras vezes
o Diabo aparece no Sabá sob a forma de gato preto; alguns autores sustentam que aparece sob
o disfarce de um porco metade homem.
A bruxa está ali, diante dele, freme seu corpo, untado com a pomada de alcalóides
alucinógenos, excitada.
Há o rito da homenagem, a saudação. Variado e saturado de significados. A bruxa se
ajoelha e beija as garras ou os dentes de seu infernal esposo ou lhe derrama saliva na boca.
Talvez uma bruxa
128
se decida pela fellatio, mas com maior frequência o Diabo oferece o traseiro para que
lhe seja beijado o ânus. Depois a bruxa beija as orelhas frias e o pênis. O Diabo, depois dos
atos de submissão, se recompõe e pede a cada um dos presentes para relatar todos os delitos,
vinganças, males e ritos realizados até aquele momento. Ouve-se um coro de respostas, as
mais exaltadas, que são uma oferta de amor ao Senhor, um sacrifício para receber o apreço do
Diabo.
A bruxa segura na mão uma vela negra; todas as bruxas agora passam em frente a
Satanás e acendem a própria vela na que ele tem acesa entre os chifres ou enfiada entre as
nádegas. Alguém testemunhou que o Diabo fazia reuniões na igreja, todo vestido de negro,
com um chapéu preto na cabeça, pregando do púlpito para as bruxas lá embaixo, formadas em
círculo, com as velas acesas. Mas as chamas são baixas e azuis, semelhantes a fogos-fátuos. O
vento as move, como se movem as bruxas com gestos do corpo ansioso de gozo.
A um certo sinal, todas as bruxas e os bruxos se alinham, em seguida formam um
círculo; depois a roda se move no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Esta é uma
particularidade do rito diabólico: tudo é realizado no sentido contrário ao habitual. Assim,
duas bruxas podem formar um par para dançar, mas se enlaçarão de costas sem poder se
olhar. Tudo é oposto do sentido corrente: o Mal e as Trevas são exaltados. É a prece que
introduz a Missa Negra.
As danças no Sabá se abrem no fim do primeiro dia. Carroceis desenfreados que
recordam os ritos de fertilidade; talvez alguma coisa análoga aos Mistérios de Elêusis ou às
orgias das Bacantes de Zagreo. Dança-se em volta do Diabo ou de uma pedra; as bruxas
gritam e correm perdendo o fôlego até o exaurimento das forças. O Diabo soa um instrumento
ou emite um grito, palavra obscena ou de violência. A dança é uma roda; corpos vestidos,
corpos desnudos, seios brilhando de suor e unguento, bocas estendidas de prazer; as bruxas
atiram-se à exaltação, costas contra costas, gritam saltando:
Har, bar, har, diabo, diabo dança aqui, dança aqui, toca aqui, toca aqui, sabá, sabá, har,
har!124
e, ao mesmo tempo, ao passar, imergem a mão esquerda na bacia de 124. Murray, op.
cit
129água "santa" que é, na verdade, urina do Diabo; fazem um sinal da cruz ao
contrário. O rodopio da dança é sempre mais desenfreado no esplendor das velas e dos corpos
em desalinho. A música vem de vários instrumentos: o berimbau, a flauta, principalmente a
flauta, que é tocada também pelo Diabo.
Finalmente o Diabo se ergue em toda sua estatura, se move lentamente para mostrar o
traseiro que não tem nádegas, mas sim o vulto de uma bela mulher 123, cuja boca é o
esfíncter anal que se dilata porque todos o beijam. O pênis — seguindo a regra demono-lógica
da inversão — está fincado posteriormente sobre o osso sacro. É um órgão terrível de se ver,
nem humano nem propriamente animal; é um sexo que produz dores penosas na bruxa no
momento do coito. A fantasia sempre o descreveu como um falo de inaudita potência.
Do corpo diabólico emana um mau cheiro infernal quase insuportável ao olfato.
O Sabá prossegue na incessante busca de prazer. Começa a paródia obscena de todos
os sentimentos: as cópulas são violências, estupros, abraços lascivos, amplexos contra a
natureza, aberrações. . .
O evento central, o rito absoluto do eros é a Missa Negra. A mais bela bruxa, eleita
rainha do Sabá, é escolhida, desnudada e oferecida aos olhares dos presentes em todo o
esplendor de sua carne. Ela serve de altar; estendida sobre o manto do Diabo, jaz imóvel.
Sobre seu púbis é colocada uma vela negra, sobre o ventre é pousado o cálice, um verdadeiro
ostensório que contém a Hóstia Amaldiçoada. Este sacramento diabólico era preparado sobre
as nádegas de uma bruxa, amassando-se uma mistura repugnante de fezes, sangue menstrual,
urina, saliva e vários refugos: é a confarreatio, o alimento do amor infame. A missa tem quase
o mesmo iter da sagrada.
Os intimados se prostram diante do celebrante, o qual asperge os fiéis com vinho tinto,
ou sangue ou esperma, gritando sanguis eius super nos et filios nostrosl Depois se eleva um
coro de injuriosas blasfémias contra Deus e Cristo.
Às vezes acontece se oferecer uma criança em sacrifício ou então o seu sangue. Os
diabos são invocados: Astaroth, Asmodeo, Belzebu, para acolherem a oferenda e concederem
as graças solicitadas. Sangue é tirado dos braços, nádegas e coxas das bruxas para que o
Diabo o sugue. A bruxa Issobel Gowdie conta:
125. Jones, E., op. cit 130
O Diabo me marcou sobre o ombro, me sugou o sangue do seio, cuspiu-o na mão e
aspergindo minha cabeça disse: Te batizo em meu nome.126
Outras bruxas contam que o diabo lhes entrega ossos afiados para picarem-se numa
parte qualquer do corpo e ele lhes chupar o sangue. Mesmo no cunnilincto praticado pelo
Diabo na mulher, há a mordida na vulva e o sugamento do sangue. Durante a Missa Negra
ocorrem coisas indescritíveis, enquanto as ofertas de sacrifícios continuam. Qualquer um
oferece, degolando, o próprio cão ou o gato.
Este oferece uma galinha, aquele outros animais de corte; uns oferecem os cabelos ou
a indumentária. Cruzam-se as fórmulas mágicas mais obscuras. A palavra beneàicte chama o
Diabo, a palavra malkpeblis o faz desaparecer, certas bruxas gritam Robin, e ele vem;As
transformações se sucedem. São, sem dúvida, efeitos dos alucinógenos: as bruxas se
"transformam" em gatos, lebres, cavalos. Mas isso não ocorre durante a Missa Negra. O rito
termina com orgias sexuais e depois o banquete. O Diabo se une às bruxas sem nenhuma
escolha precisa. A bruxa goza e sofre dramaticamente neste amplexo. Parece que a
experiência mais violenta era o contato com a frieza do Diabo. Frias, geladas, são certas
partes de seu bestial corpo. E — coisa muito sabida e incompreensível — as bruxas dizem que
o esperma é frio.
São muitas as explicações para este fato. Murray aceita em parte a motivação da
alucinação histérica, mas afirma também que durante a orgia sabática e o rito de fertilidade na
Missa Negra, provavelmente eram empregados falos artificiais. De Príapo aos cultos fálicos
greco-romanos, esta prática sempre permaneceu em evidência. Não se deve excluir que a alta
solicitação de prestações sexuais por parte das mulheres nas reuniões obrigasse os homens e o
"chefe" a recorrer — uma vez advinda a fadiga — a falos artificiais e vários objetos
penetrantes, todos substitutivos do pênis, mas com a função de excitar a mulher na vagina.
A fantasia erótica liberada nas reuniões deixa traços e lembranças que os documentos
recordam. E é sempre a descrição do membro viril que chama a atenção: Alexia Dragaea
confessa, em 1589, que seu amante (o Diabo) tinha sempre um membro duro e em ereção, era
como o cabo de um tiçoeiro mas desprovido de testículos. Clara indicação de um pênis
artificial. Uma outra bruxa diz que o membro do Diabo é, ao contrário, fino e adelgaçado
como o de um cão, certamente não como um humano, porém gelado como um objeto.
Outras dizem que o pênis diabólico é túrgido e coberto de escamas ásperas como as de
um peixe. Ou então se conta de um pênis muito longo, grosso, retorcido como uma serpente, a
glande aguçada; este é dentado e penetra a bruxa que sente dores tremendas. Ainda uma outra
bruxa testemunha ter recebido um pênis grosso como um braço. Uma bruxa francesa conta:
Le membre du Diable est long et gros environ Ia moitié d'une aulne de medíocre
grosseur, rouge, obscur, et tortu, fort rude
e come piquant.
128*
128. Murray, op. cit.
* "O membro do Diabo é longo e grosso, aproximadamente como a metade
132
Uma bruxa revela ter acolhido na vagina o pênis de ferro do Diabo; ou então o pênis é
feito de chifre.
Todas as bruxas sujeitam-se ao Diabo quando a Missa Negra e o banquete chegam ao
término. Elas sofrem não só os espasmos orgásticos mas também dores lacerantes de
dilaceração e ferimentos. Deixam-se cravar pelo terrível falo que as tortura e as sacrifica no
ato de suprema submissão. Lilith queima, no espasmo da experiência proibida, a própria dor
de não ser reconhecida pelo Homem. O masculino que é negado é recuperado no delírio
histérico. O eros negado é retomado no sonho, no pesadelo, até no adultério ou nos prazeres
condenados.
O Diabo é o instinto profundo, mas frio, recuperado na neurose que a Inquisição do
positivismo científico chamará histeria, auto-erotismo, perversão.
Assim, as bruxas gritam no Sabá, não só por masoquismo, mas também pela dor de
viver uma sexualidade substitutiva, patológica, ■ que produz frio, ao invés de calor humano.
Depois do Sabá, as mulheres contam: "Apareceu-me um Grande Bode Negro com uma vela
atrás do chifre. Conheceu-me carnalmente e me impôs grande dor". Uma outra bruxa diz que
o coito com o Diabo tinha sido desagradável pela fealdade e deformidade dele e por ter
sofrido uma atroz dor no ventre. Uma outra escapou ao amplexo porque não suportava a
penetração do membro escamoso. As bruxas ainda virgens deixavam atrás de si cruentas
hemorragias de sangue e voltavam para casa torturadas por espasmos. A viúva Bush, de
Barton, diz que o Diabo lhe apareceu e era mais frio e mais pesado que um homem e não
conseguia completar o ato como um homem; também Ianet e Issobel dizem que o Diabo é um
homem volumoso, vermelho e muito frio. Seu pênis é frio como a água da nascente. Enfim, a
Ultima Ceia, que encerrava a orgia. Assim Haag descreve o rito:
A refeição das bruxas que se seguia era uma contrafação da Ultima Ceia. Numa panela
jogavam sapos, víboras, corações de crianças não batizadas, ou pedaços de carne de pessoas
enforcadas e tudo era cozido junto. Eram especialmente preferidas as crianças ainda vivas.
Dos restos da refeição se fabricavam
de uma alna ** de tamanho médio, vermelho, escuro, e torto, muito rude e picante."
** Alna: vara, antiga medida francesa (NT).
133os venenos com os quais as bruxas procuravam fazer mal aos homens. . .I29
O Sabá então se dissolvia a uma ordem expressa do Diabo.
Qual o seu significado? Certamente todo simbólico. É necessário introduzir aqui uma
visão histórica do Sabá, como fizemos com o mitologema de Lilith. O Sabá não era a
manifestação do satanismo, nem a comprovação da perversa inferioridade da mulher-bruxa.
Pode-se condensar um parecer historiográfico, escolhido a título de exemplo, onde, ainda uma
vez, bruxaria e Sabá eram somente cerimónias e assembleias de pessoas heréticas ou mal
vistas pela Igreja oficial. A acusação surgia facilmente, tendo por base a "resistência" popular
espontânea, um substrato libido-sexual e costumes claramente desi-nibidos e
anticonvencionais. Citando Haag:
O problema da historicidade do Sabá das feiticeiras pode ser resolvido de algum
modo. É só no século XVI que o Sabá é atribuído às Bruxas. Sua origem pode ser situada na
França meridional, onde a tradição cabalística se misturava com a magia islâmico-moura e
com a cultura cristã. Algumas notícias vagas sobre usos e costumes dos cátaros levaram à
construção destas ideias, mais que as fantásticas sobre o Sabá das bruxas. Foi sobretudo o
consolamentum, no qual o noviço se ajoelhava frente ao Bispo, beijava um livro e recebia o
beijo dos confrades, que foi interpretado como uma adoração do diabo. O desprezo que os
cátaros tinham pelo matrimónio levava a acreditar que praticavam a homossexualidade entre
si e este fato era julgado de uma impudícia diabólica. Semelhantes acusações eram feitas aos
templários.130
Mas a Lilith da Idade Média, a bruxa, não tinha possibilidade de se fazer escutar. O
total das mulheres queimadas vivas como bruxas ou endemoniadas durante a Inquisição não
será jamais conhecido. A mulher, aquela que devia ser o espelho da alma e do corpo para o
homem, era ainda "amarga como a morte" porque colocava em evidência o nó que o orgulho
masculino não queria desatar. Intolerável, para a Inquisição, era a mulher ter fascínio e desejo
sexual; intolerável a ideia que tivesse — e como se discutia isso! —
129. Haag, Herbert, La credenza nel Diavolo, Mondadori, 1974.
130. Haag, op. cií.
134
uma alma. Razões sociais, demográficas, religiosas ou outras haviam, mas permanece
o fato da Lilith da Idade Média fazer sentir mais forte sua insatisfação e o desamor do
homem.
O resultado final foi — como escreve Jones — um sentimento de medo e de ódio
contra as mulheres. Contra aquelas mulheres que, ou eram dotadas de forte sexualidade ou
então eram elas mesmas transbordantes de ódio porque insatisfeitas, descuidadas e oprimidas
pelo homem patrão.
A bruxa sofria todos os males possíveis: era uma criatura acometida de psiconeurose,
com certeza, e depois de Freud é fácil reconhecer nas manifestações somáticas das mulheres
medievais, que participavam do Sabá, todos os sintomas de histeria de conversão. Assim,
Torquemada e os outros mil inquisidores podiam ver na Bruxa aquilo que Charcot ou Bleuler
viram, no século XIX, durante as aulas de medicina, na paciente histérica: sintomas
simbolizando o coito, e também bulimia, obstinação, anorexia nervosa, vómitos nos quais
apareciam com frequência corpos estranhos como agulhas etc; conversões histéricas, gravidez
histérica, tremores gerais, estupor catatônico, catalepsia, amnésias de todo tipo,
sonambulismo, narco-lepsia, mitomania, taedium vitae, pessimismo, despersonalização, cisão
endopsíquica, dislexia ou disfasia, coprolalia, escolalia, etc.
Todos sintomas que, segundo afirmaram recentemente Babinski e outros, não se
apresentam jamais, se não são criados artificialmente através do dressage de médicos fiéis à
tradição da Salpê-trière. A descrição dos ataques epiléticos com todo o acompanhamento dos
sintomas sucedâneos, tidos pelas monjas de Lonviers, coincide, em cada detalhe, com o relato
dos ataques histéricos que lemos nos modernos textos de medicina. . . '31
A partir da famosa Bula papal de Inocêncio VII, de 1484, e da publicação do Malleus
Malejicarum de Sprenger e Institoris, em 1489, desencadeou-se a caça às bruxas. Foram, na
verdade, três séculos de Lua Negra durante os quais os homens viveram na cegueira mais
absoluta! A estimativa de Vigt fala de nove milhões de mulheres queimadas. Soldan fala de
alguns milhões de vítimas.
Provavelmente só Torquemada mandou para a fogueira 10 2C0 bruxas no espaço de
dois decénios, enquanto fez enforcar ao menos cem mil delas.
131. Jones, E., op. cit.
135Um massacre como nunca antes se vira e que talvez tenha superado, pela
ferocidade, qualquer outra empresa sangrenta, só se igualando — talvez — ao confronto e
genocídio anti-semita da última guerra.
Foi a posição antinatural da Igreja nos confrontos com a questão sexual, unida ao
trabalho de transformação feudal, que determinou a ruína criminosa de tantas mulheres. A
epidemia se extinguiu lentamente.
As últimas mulheres julgadas bruxas foram mortas em 1836 na Alemanha e em 1850
na França. Na América do Norte as últimas bruxas foram queimadas vivas em 1877!
Por mais que nos espante, ainda existem bruxas e a consciência feminina de hoje as
reativa em nossa fantasia. As bruxas modernas estão mais escondidas e são mais ciumentas de
suas práticas. Há algum tempo se dizia que na Inglaterra eram ao menos dez mil. Suas
práticas ocultas parecem, todavia, voltadas para a magia branca e para inócuos objetivos
filantrópicos. Conservam a estrutura das assembleias e o ritual da dança em círculo, em torno
de um fogo aceso, nas noites sem lua. As bruxas e os bruxos se dão as mãos, dançam e gritam
palavras mágicas. Como na antiguidade, as modernas bruxas adoram Diana, Hécate e algum
deus solar. Acreditam na reencarnação de um deus dos Infernos que trará ao mundo a
verdadeira bruxaria. Este seria Lúcifer, chamado Sol Negro, que se unirá em matrimónio à
Lua Negra. Na base dessas concepções retorna o mito de Perséfone unido a tradições druidas.
As bruxas contemporâneas respeitam o calendário dos Sabás medievais: reúnem-se na
vigília do Primeiro de Maio, na vigília de Todos os Santos e a 2 de fevereiro, dia de
Candelor.132
Concluímos citando as palavras de Herbert Haag que talvez resumam a posição crítica
correta a se adotar diante do problema de Lilith-Bruxa. Palavras que valem por um
julgamento retrospectivo sobre a Idade Média, mas são úteis ainda hoje, para refletirmos
sobre certas manifestações da psicologia coletiva.
Na caça às bruxas também desempenha um papel muito importante aquilo que os
procedimentos descrevem continuamente como a "luta do coletivo contra uma minoria", cuja
fraqueza e falta de possibilidade de defender-se aviva a agressividade.
132. Cavendish, op. cit. 136
Não faz muito, O. Pfister, na análise que conduziu de uma bruxa do século XX,
chamou a crença nas bruxas de "uma péssima interpretação metafísica de concepções
adequadas no âmbito da psicologia e da psicologia profunda". Entre as bruxas havia, sem
dúvida, algumas mulheres histéricas, ou que sofriam de mania de perseguição, e, em algumas,
não se deve excluir um turvamento da consciência provocado por narcóticos. Ainda maior
importância deveria ter a análise do comportamento sexual patológico, assim como se
manifesta na caça às bruxas, e que, para dizer a verdade, é encontrado mais nos perseguidores
do que nas perseguidas... As orgias, as perversidades e a obscenidade da bruxa, reais ou
imaginárias, eram discutidas nos mínimos detalhes. Portanto, podiam oferecer aos cristãos e,
principalmente, aos celibatários e aos padres, uma certa satisfação substitutiva e
compensatória para os desejos sexuais que lhes eram proibidos. Mesmo a justiça exercida
através da tortura, do ponto de vista psicológico, deve ser colocada em relação ao medo que o
homem, tornado escravo dos preceitos da Igreja, experimentava diante da mulher sexualmente
atraente e que ele secretamente desejava. Este medo torna os homens sádicos.133
133. Haag, op. cit.
.1376
'■* LILITH NA CULTURA CONTEMPORÂNEA
Não foram suficientes as luzes da Razão, a partir do século XVIII, para apagar a
memória da grande remoção que se operou na consciência coletiva às custas do "feminino".
Lilith, vivida ainda como alma sombria e eros negativo, irrompe das grades do inconsciente e
retoma seu espaço psíquico na produção da cultura contemporânea; interroga o homem, ainda
uma vez, na carne e na psique. Pede a recuperação e coloca de maneira nova a evidente cisão
do arquétipo. O mitologema atravessa os campos do racional e não é sustado nem mesmo pela
mui fácil etiqueta de "irracionalidade", que o materialismo científico, por maniquéia defesa,
opõe a tudo aquilo que não é verificável no laboratório. Faz pouco tempo que se extinguiram
as fogueiras das bruxas e já Lilith retorna como amplificação dos mitos lunares, em conexão
com as temáticas sexuais.
Ela se manifesta ao surgir o século XX em campos criativos subtraídos ao domínio da
razão pura: exatamente nos campos onde o homem abre um novo caminho, fascinante e
desconhecido, para a pesquisa do próprio mundo interno nunca antes questionado em estratos
tão profundos. É aí que Lilith se faz encontrar. Na psicanálise freudiana, na psicologia
profunda junguiana, assim como na filologia liberta de estreitos limites, e também na arte,
onde Surrealismo e Dadaísmo dão passagem livre ao inconsciente. Lilith retorna ainda mais
evidentemente — como mito e simbologia — na pesquisa astrológica orientada pelo
sincronismo.
Vimos, até agora, Lilith, nas tradições, irromper como energia numinosa e experiência
do medo que o homem suportava passivamente como expressão de conflitos endopsíquicos
inexplicáveis. As várias divindades femininas eram temidas como forças internas
contrastantes e opressivas, polarizadas em grandes mitos lunares. Vimos
139Amazonas e Bruxas como símbolos de uma identificação ao animus em oposição
ao masculino. Assim, por volta da metade do século XIX, e em nosso século, vemos Lilíth
tornar a se propor, primeiro como alienação e, depois, como despertar da consciência
feminina, ressuscitando a tentativa de recuperar a unidade originária numa androginia
endopsíquica.
Mas a abordagem de Lilíth modificou-se a partir de Freud e Jung. Ela não é mais
compreendida como uma divindade exclusivamente ctônica, arcaica; Lilith é analisada como
significado arquetípico da alma dividida, reconduzida internamente ao mais originário
arquétipo da Grande Mãe urobórica bivalente, que reflete a repressão parcial dos instintos e a
censura das pulsões sexuais. Penetra-se mais a estrutura da polaridade Anima-Animus com o
corpus de estudos de Jung, Neumann e Hillman, depois que os pioneiros da psicanálise —
Jones, Silbere, Abraham — abriram o caminho para a análise dos mitos.134 Começa-se a
considerar toda a mitologia do feminino como testemunha de uma incansável luta que o
homem trava contra o instintivo, e sua consequente repressão. São questões atuais: é talvez a
história de um trauma na infância do homem? É uma transgressão somente moral à cultura
patriarcal seguida da destronizaçãc ua» Mães, ou se trata de uma catástrofe ontogenética? E,
constantemente, se repete o "não" ao gozo, ao prazer pulsional. A criatividade reflui. O objeto
do desejo, o ato de desejar e ser desejado são danificados pela censura e pela repressão e, para
conseguir este resultado — na véspera das grandes descobertas sobre o inconsciente — ainda
se atribuem às várias personificações da anima atributos, qualidades e formas as mais
desagradáveis ou destrutivas, a fim de conseguir a repulsa e a rejeição da experiência.
No século XX, Lilith retorna mas permanece protestando; a consciência do homem
que dorme é dilacerada pelo pesadelo, não mais pela voz implorante de Lilith, mas pelo
sussurro lúbrico, irónico e perverso dos monstros internos: é a voz do instinto negado, é o
prazer e o gozo do corpo enganados que se transformam em tormento de neurose e liturgia da
morte, enquanto a beleza do dionisíaco se transforma em torpeza, em um dramático sossobrar.
Assim, os sem-
134. Jung, C. G., Risposta a Giobbe, vol. xi, Boringhiere, Torino, 1980; trad. bras.
Resposta a ]ob, Petrópolis, Vozes, 1983. Neumann, E., Storia delle origini delia conscienza,
Astrolábio, 1979. Neumann, E., La Grande Madre, Astrolábio, Roma, 1980.
140
blantes delicados se transformam, uma vez mais, em formas bestiais ou costumes
"inconvenientes".
A separação de masculino e feminino entendida como ruptura da originária unidade
paritária se propõe junto à imagem de Lilith, justo quando o homem irracional se decide a
enfrentar a descida no próprio inconsciente e o explora não em nome do Pai e da Lei, mas em
nome do Si Mesmo e da Centroversão, no itinerário rumo a nova consciência, onde será
oportuna a soldadura da polaridade.
Se os psicanalistas referiram-se ao binómio Lilith-Eva dentro do tema consciente de
conflitos instintivos e indicaram as vias para a recanalização das pulsões reprimidas, os
psicólogos profundos enfrentaram bem mais extensamente toda a mitologia lunar partindo do
exame do arquétipo que, na cisão, se faz presente com dramática lucidez:
Ora, à esquerda há uma série negativa de símbolos, a Mae da morte, a Grande
Prostituta, a Bruxa, o Dragão, Moloch; à direita há uma série positiva, oposta, na qual
encontramos a boa mãe que, como Sofia ou a Virgem, dá à luz e nutre, conduz ao
renascimento e à salvação. Lá Lilith, aqui Maria. Lá o sapo, aqui a deusa, lá um pântano
cruento e devorador, aqui o Eterno Feminino."5
Estamos pois diante da interrogação última sobre a cisão. Estamos dentro do drama
psíquico e o raio da indagação analítica recai sobre esta dualidade, sobre este evento que
determinou o esfacelamento da individualidade. Dispor-se a empreender esta descida às
regiões obscuras onde vive e fala a nossa Lilith é ainda, uma vez, uma odisseia, uma busca
incansável da alma na tentativa de recomposição. Depois que a psicologia profunda nos fez
perceber como estão as coisas, o que se manifesta do "feminino" interno não se apaga mais,
não se torna partícipe ou cúmplice de um desenvolvimento integrativo endopsíquico e não nos
restitui aquela total liberdade de expressão que só pode celebrar o advento de uma epifania do
gozo.
Nos séculos posteriores à Caça às Bruxas, cada aspecto do mito-logema de Lilith
permaneceu excluído da consciência, confinado na Sombra coletiva como pólo negativo a ser
recusado e combatido,
135. Neumann, E., op. cit.
141exprimindo o Mal em sua acepção mais totalizadora. Assim, não havia ainda, nem
vagamente, a mínima reflexão sobre o tema, e a dicotomia lacerante, fonte de contínuas
fragmentações psicopatoló-gicas, permanecia ativa. O indivíduo dos últimos séculos reforçou
a identificação com o lado de luz, exaltando o pólo do Bem; porém, no conflito opositivo ao
instintual, era vivida a via heróica do "resgate" e a possível transcendência, enquanto o
arquétipo, na sombra, reforçava, em consequência dessa atitude, o apelo não ouvido,
produzindo neuroses e psicoses. Um exemplo comprobatório dessa dialética pode ser
encontrado na análise do fabulário europeu e de certa pedagogia do século passado!
Um primeiro sinal de superação dessa rígida contraposição e constelação parcial,
tivemos, repetimos, graças ao trabalho de des-vendamento psicanalítico. Podemos nos
permitir pensar que hoje a consciência individual está mais desenvolvida e a acreditamos
capaz de manter-se firme no caminho aberto.
Chamar Lilith de volta do Mar Vermelho significa aproximar do olhar a visão dessa
imagem arcaica do feminino, odiada e temida, incessantemente negada; e, enfrentando-a em
nós mesmos tentar um conturbado processo de reintegração no arquétipo total, sabendo que se
terá de superar imensas resistências.
Citamos Neumann a propósito, porque parece ter particularizado bem o ponto que hoje
alcançamos, também em sentido histórico. É, com efeito, uma escolha nítida e precisa da
angulação útil onde acontece estarmos. Não obstante estarmos firmes do lado luminoso, de
"saúde", dessa vez elegemos romper o pacto hipócrita, romper o disfarce, abolir as falsas
liturgias e nos colocarmos também — repetimos: também — do lado da primeira
companheira de Adão. Devemos ousar trazê-la de volta para perto de nós, afastá-la do
demónio, liberados do vínculo de dependência forçada ao Pai, amadurecidos. Coloquemo-nos
do lado do arquétipo reprimido, isto é, da "enfermidade", que é enfermidade criativa; não, de
novo, numa polarização unilateral opositiva soçobrada, mas defensores de uma fixação deste
pólo à luz.
O século atual viveu uma tentativa de recuperação simbólica do feminino na Assunção
dogmática de Maria aos Céus, mas faltava uma indicação correspondente no outro vetor, na'
direção vertical contrária, a Descida aos Infernos, para proclamar a realidade de Lilith. Nesse
momento, foi reconfirmada psicologicamente a fratura improdutiva que demanda enfim uma
correção: a serpente não será mais esmagada sob os pés da Boa Mãe, porque a serpente é a
própria
142
Eva. Mas se a encarássemos finalmente como Lilith-Lua Negra, talvez a serpente,
salva, nos restituísse a Sofia.
Mudando a abordagem, portanto, Lilith reaflorou na consciência de modo tão
prepotente nos últimos decénios que, atualmente, penetrou definitivamente nos hábitos de
massa como imagem folclórica da recuperação do feminino e símbolo da emancipação da
mulher.

A mudança de abordagem não é, na verdade, inexplicável, mesmo sendo supérfluo


perguntarmo-nos por que certos conteúdos reprimidos reemergem em dado momento
histórico mais que em outros. Deve-se a mudança a novas e mais estimulantes modalidades
com as quais os psicólogos analistas confrontam, em geral, o mito também a nível de mito-
poiesis? Veja-se, para exemplificar sinteticamente, a indicação de Hillman sobre o confronto
entre filologia e mito:
A moderna filologia académica condena o raio muito amplo de ação das hipóteses. . .,
desaprova o estudo comparado dos motivos, o que, ao contrário, é um princípio basilar da
psicologia profunda. Os académicos insistem em competências específicas: um mito, um
motivo, uma figura devem ser estudados em seu contexto histórico, cultural, textual,
linguístico, económico, formal, sociológico e assim por diante. É algo execrável confrontar
um motivo ou uma figura mítica com as de um outro período, área ou cultura, ou mesmo
considerar um mito, um motivo ou uma figura como relevante para a psique humana e sua
imaginação. Para a psicologia profunda. . . temas e personagens da mitologia não são simples
objetos de conhecimento. São realidades vivas do ser humano, que existem como realidade
psíquica. A psicologia profunda se volta para a mitologia não tanto para aprender sobre os
outros no passado, quanto para compreender
136
a nos mesmos no presente.
É claro que essa nova modalidade de observação — e acreditamos tê-la assumido no
presente trabalho — permitiu romper resistências e esquematismos, desbloqueando censuras
culturais a respeito do mitologema de Lilith, de modo a permitir à imaginação ativar as
vibrações psíquicas em torno desta história, que é a história de um incubo, que tem muito a
ver com a história da anima. Além disso, uma contribuição ainda mais ativa à abordagem
psíquica em
136. Hillman, J., Saggio su Pa», Adelphi, Milano, 1979.
143questão mostra-se na importância do modo mais vivo e criativo de entender
instinto e, portanto, toda a instintividade. Pensa-se o instinto mais como uma metáfora e
também como uma espécie de deus da natureza dentro de nós (Hillman). Jung tornou possível
sair de uma avaliação muito rígida da dinâmica do instinto, subtraindo-a à teorização e
combinando, reunidos, o modelo coato arcaico e as imagens arquetípicas. Institui-se assim
uma interação altamente criativa; o instinto age e plasma uma imagem de sua ação. São então
as imagens com suas potentes cargas energéticas que desencadeiam as ações ou determinam
representações ou personificações; por isso, parece que as ações são modeladas por imagens.
Em consequência, vemos que cada transformação das imagens incide nitidamente sobre os
comportamentos.
Imaginando portanto a história de Lilith, seja psiquicamente mediante as fantasias, os
extratos do mito, os sonhos, seja como a representação sincrônica astrológica, remontamos ao
instinto através da ação. O processo de transformação operado pelo imaginado induzirá
modificações comportamentais exatamente porque terá modificado o instinto em seu agir.
Este é o caminho para indagar sobre o mito reprimido e, provavelmente, conseguiremos saber
mais sobre nossa anima se soltarmos a imaginação.
Numa transposição que, todavia, a abrange, Hillman estuda no Grande deus Pã a
mesma psicologia de Lilith enquanto um discurso sobre a natureza, instinto e festa pânica,
onde é consentido viver até a experiência patológica como meio para retornar finalmente
àquela parte de nós entregue ao esquecimento, a que não ousamos reconhecer.
Na cultura ocidental nos assenhoreamos do mistério que governa o sonho e o
pesadelo; temos bastante familiaridade com o delírio e conhecemos-lhe os códigos
simbólicos. Mediante a análise profunda se levou ainda mais adiante o diálogo com a sombra
coletiva na descoberta de verdadeiros tesouros sepultados. E ali está Lilith, a Lua Negra.
Assim se explica também o despertar da consciência feminina que propõe novamente
ao homem a sua interrogação: "Por que devo ficar por baixo de ti, se fui criada tua igual?"
Não pensamos ser útil exemplificar aqui todas as manifestações do mitema de Lilith
que hoje estão presentes na consciência individual e coletiva, tentamos também evitar o risco
de uma análise insuficiente por falta de documentação; mas sabemos que Lilith "circula" na
consciência, escreve-se sobre Lilith, os teatros encenam
144
o drama de Lilith, ouvimos ecoar um único slogan: "Tremei, tremei, as bruxas
voltaram!" E, enquanto a mulher está empenhada no processo de ampliação da própria
consciência, deixando cada vez mais transparecer o arquétipo da mensagem bíblica, não é
inteiramente por acaso que na cultura "masculina" ressurjam dois grandes temas: o amor e a
morte.
Lilith ainda está aqui: como Lua Branca e Lua Negra. E o macho trabalha em torno do
amor e da morte escutando Lilith. Ainda reagindo com o eros e castração, mas com mais
frequência, parece, com uma mais autêntica escuta liberatória e uma intenção mais consciente
de encontro amoroso.
Enquanto a pesquisa psicológica sensibiliza o arquétipo subjacente a Lilith, vemos um
interessante retorno seu, no opus astroló-gico, onde Lilith-Lua Negra representa em toda sua
significação simbólica o tema mitológico bíblico e o problema psicológico, enquanto é lida
como a "parte" do feminino destrutivo e demoníaco, em oposição aos valores de luz da Lua,
planeta tradicional, sobre o qual é projetada a representação "boa" da mulher. É no Zodíaco,
depois dos anos trinta, que a imaginação humana procura, embora com atitude unilateral, o
mitologema de Lilith, e pensamos ser útil referirmo-nos substancialmente a ele, porque o opus
astrológico, não fazendo, certamente, um uso divinatório nem terapêutico, consente em
participar do processo imaginativo do qual falamos acima.
O mito da primeira companheira de Adão entrou na astrologia em épocas remotas, mas
não encontramos nenhum documento que permita uma datação histórica. É certa a presença
de Lilith-Lua Negra até a alta Idade Média, pois — seguindo o processo sexual repressivo da
época — ela foi censurada e depois removida pelos cultores da astrologia, embora as
pesquisas não tenham sido abandonadas de todo. No início de nosso século, reafloraram os
estudos teóricos para procurar, no espaço astronómico, o satélite, quer como entidade
astrofísica, quer como local simbólico de projeção endopsíquica do mito, segundo a lei da
sincronicidade, em torno da qual também Jung conduziu estudos.
O discurso astrológico sobre Lilith tem por fundamento uma antiga suposição sobre a
Lua: é possível que a Lua tenha uma ou mais "irmãs"? Por longo tempo, este presumido
segundo satélite lunar tem sido o exemplo da tentativa de materializar o mito de Lilith-Lua
Negra sob o impulso de um positivismo científico totalmente estranho às experiências do
processo imaginai. Em outros momentos, o "segundo satélite" foi identificado com a outra
face
145da Lua. Os astrólogos continuam a procurar o planeta no céu com a maior
seriedade científica, mas, sem dúvida alguma, este é um satélite interior à psique profunda,
projetado no Zodíaco, em cujas constelações se encontram retraçados os locais astronómicos.
Pois Lilith-Lua Negra age como todos os outros planetas-símbolos da astrologia. Os egípcios
já haviam formulado hipóteses sobre um segundo satélite lunar, atribuindo-lhe um nome que
permaneceu incerto: Nephtys, nitidamente correlato à mitologia lunar. Ao redor de 1625, o
astrónomo Giovanni Battista Riccioli, de Ferrara, informou ter descoberto um astro negro
como satélite lunar, mas não temos fontes seguras a respeito. As teorizações sucessivas
permaneceram todas vagas e nenhum estudioso hoje pode assumir a responsabilidade de uma
palavra definitiva a respeito de uma real entidade do satélite Lua Negra. Todos aqueles que
quiseram discorrer e argumentar sobre a questão, tentando mesmo um esclarecimento dos
significados Lilith-Lua Negra, não caminharam prudentemente muito além de uma sagaz
exposição das vicissitudes.
Raros observadores, em seguida, retomaram o argumento: o pequeno planeta seria
invisível durante o seu percurso no espaço, mas seria notado, ou poderia ter sido notado,
durante o plenilúnio, sob a forma de um pontinho recortado sob a luminosidade lunar. . . Esta
aparição se daria a cada oito anos, aproximadamente. Conta-se que um astrónomo de
Greenwich, numa noite escura do ano de 1900, notou uma sombra negra sobre a Lua. Por
volta de 1920, Max Valier mencionou o assunto e por volta de 1950, foi a vez do professor La
Paz, diretor do Instituto para pesquisas de meteoritos do Novo México. Pesquisas com
resultados incertos são atribuídas ao astrónomo alemão Walterlath e ao matemático V. Norot.
Enfim, em 1961, o astrónomo V. Kordylewskij fez notar que, como se encontram os
planetinhas gregos e troianos no sistema Sol-Júpiter, nas proximidades dos dois pontos de
"liberação" (ditos pontos de Lagrange), assim, no sistema Terra-Lua foram observados, em
qualquer um dos dois pontos de liberação, duas fracas nebulosidades luminosas, mas sobre
sua real existência subsistem notáveis dúvidas. As "quatro luzes" são contidas por nuvens de
partículas de substância de cometas e, se confirmado, constituiriam, com a Lua, cinco satélites
naturais de nosso planeta.137
137. Capone, F., Luna Nera-Lilith, Torino, 1979. 146
Prezados ainda são os estudos conduzidos sobre a Lua Negra por pesquisadores como
R. Desmoulins, R. Ambelain, L. Millat, Don Neroman, F. Capone, J. Vernal, M. Bustros e
outros.138 Eles estão de acordo sobre a necessidade de esclarecer as definições. Assim,
depois de uma discussão sobre os termos — Lilith ou Lua Negra, ou então uma fusão dos dois
— chegaram à situação atual, onde a Lua Negra é referida como Lilith imaterial constituída
do segundo buraco negro da órbita astronómica lunar. Sobre este argumento específico não é
aqui o lugar para nos prolongarmos, mas afirmamos que é com base em tais teorizações que
existem as efemérides astronómicas de Lilith. Nós queremos deixar aberta a questão aos
especialistas, enquanto repetimos que é oportuno acolher o dado do fato realmente psíquico:
Lilith-Lua Negra existem enquanto símbolos e significados astrológicos projetados no
Zodíaco, e estes funcionam na psique inconsciente de quem elabora um horóscopo de
nascimento com uma específica atitude psicológica e, portanto, constitui um fator
psicodinâmico. Aquilo que devemos manter fixo é o pressuposto mitológico e a função
simbólica da Lua Negra; a
138. Citamos todos os textos mais acessíveis relativos a Lilith-Lua Negra.
Millat, Louis, Essai sur les luminaires noirs, in Almanach Chacornac, Editions
Traditionelles, Paris, 1970.
Bustros, Michel, Pour les amateurs de Lilith, in Les Cabiers Astrologiques.
n. 142, Paris, 1969.
Scribe, Les dossiers des deux Lilitb, in Les Cahiers Astrologiques, n. 144.
Paris, 1969.
Vernal, Jean, La Lune Noire exist-t-elle? ibidem, 1969.
Duval, Max, Oui, Ia Lune Noire existe, ibidem, 1970.
Graces, Andrein, Lilith, in Destin, riv. nn. 5-6-Genebra, 1970.
De Gravelaine, J-Aimé, J., Sotto il segno degli astri, Dellavalle, Torino, 1970.
Desmoulins, R.-Ambelain, R., Lilith, secondo satellite delia terra, Ed. Niclaus.
Paris, 1937.
Hades, Soleil et Lune Noire ou les états angéliques et lieux infernaux, Ed.
Niclaus Bussiére, Paris, 1978.
Autori Vari, Piccolo trattato di Astrologia, Ed. Capone, Torino, 1972.
Colona, Maria Teresa, Lilitb, Ia prima tnoglie de Adamo: un mito ritrovato,
in Giorn. Stor. Psicol. Din., 5, 1978.
Sicuteri, Roberto, Astrologia e mito, Astrolábio, Roma, 1978.
Sicuteri, Roberto, Per un approccio ai mitologema di Lilith-Luna Nera, in
Zodíaco, n. O, Bologna, 1979.
Ricciardi, Ermanno, Sincronicità e causa-efjetto nel contesto astrologjco, Ed.
Capone, Torino, 1979.
Capone. Federico, Lilith-Luna Nera, Ed. Capone, Torino, 1979.
Del Bello. Alfonso. Astrochiromanzia, Dall'Oglio, Milano, 1940.argumentação
astrológica vem em segundo plano e nasce da energia psíquica inconsciente aplicada ao
núcleo arquetípico.
De acordo com nossa proposta, que mantém a validade e a "existência" do segundo
satélite lunar somente no plano psíquico do indivíduo, é verdade que ele é subjetivamente
experienciado. Para a Lua Negra astrológica podemos dizer o mesmo que J. C. Baroja disse a
propósito das bruxas: "A bruxa só existe enquanto existe alguém que acredita firmemente nos
efeitos de sua ação". Isto nos parece sugestivo e importante para a psicodinâmica. O homem é
também aquilo que sente e experiência subjetivamente e todo este património de experiência
lhe pertence mesmo se vier a faltar uma verificação objetiva que do exterior codifique o
endosso daquilo que é ou não aceito. Considerando a astrologia um mecanismo sincrônico
correlato a um complexo de analogias e correspondências de signi-ficados-significantes,
podemos permitir-nos experimentar se existe ao menos uma correspondência de sentido entre
a Lua Negra que conhecemos das efemérides dos astrólogos e a realidade psíquica do mito
bíblico que faz parte do inconsciente coletivo.
Se examinamos brevemente algumas interpretações da Lua Negra nas tradições,
formamos de imediato uma ideia psicológica de quanto ela reflete de modo sólido — na
consciência comum — o tabu mítico e a repulsa em relação a este astro "negro", símbolo da
feminilidade perigosa! O que explica bastante como estão as coisas, no plano imaginai,
quando se tem em frente um símbolo do arquétipo cindido referente a Lilith. Eis um trechinho
de prosa realmente negra, que èm sua truculenta eloquência — o texto é de 1940 — oferece
um verdadeiro repertório à psicologia profunda:
Faz alguns séculos os astrónomos descobriram um segundo satélite de nosso planeta.
Foi chamado Lilith porque é escuro como o Estinge dos antigos e porque o nome Lilith é o
atribuído à primeira e cruel mulher de Adão. . . Não é uma sombra, mas um astro errante. A
lua infernal, que não precisamos confundir com Hécate, tem uma influência maligna. Sua cor
fuliginosa dá uma ideia de nuvem negra, de um vampiro. É uma rainha demoníaca, patrona
dos necromantes, provocadora de desgraças. É semelhante às noites de ansiedade com sua
legião de fantasmas. É inegavelmente arriscado atribuir aos astros recém-desco-bertos uma
influência a priori. Só as constatações da experiência permitem defini-lo depois de longas
comparações. Alguns autores asseguram que Lilith, provocando uma forte excitação inte-
148
lectual, causa uma sensualidade excessiva, que pode chegar à depravação, à loucura,
ao suicídio e até mesmo ao delito sádico.139
Aqui é evidente um fantasma cultural ainda girando em torno da repressão, que nos
recorda o Malleus Maleficarum; reencontramos intactos os elementos do folclore: a
"malignidade" de Lilith, o negro, o vampirismo, o domínio dos demónios e o aspecto noturno.
É a mesma posição psicológica de negação. Esta rainha da noite age, portanto, na astrologia
do século XX, como um fator psicossexual patológico e de desvio comportamental. A
tradição opositiva ao instinto se mantém inalterada porque a Lua Negra é ainda a espada nos
flancos do timorato de Deus; é ainda o espantalho diabólico dos instintos que arrastam para
"baixo". A consciência coletiva se defende da fuliginosa Lilith com definições de condenação
e fuga. Assim, as interpretações de Lilith brotam ainda de comportamentos agressivos
inconscientes a serviço do Eu contra as solicitações da libido sexualizada. É fácil perceber
nisto um mecanismo de defesa, porque a atitude dos intérpretes é acima de tudo uma reação à
angústia e um eficiente acobertamento desta, mediante racionalizações. É óbvio que todas as
virtudes permanecem identificadas com a Lua "boa", aquela que resplandece no céu,
especialmente quando está cheia! Eis um florilégio sintético de interpretações tradicionais
referentes aos setores dos horóscopos: "Lilith na Casa I: sujeito mentiroso, dado a luxúria com
sensualidade perigosa e complexa"; "Casa II: ganhos provindos do vício ou de coisas amorais
ou imorais"; "Casa III: relações imorais com indivíduos pervertidos em ambientes nefastos,
com orgias;" "Casa IV: histórias ilícitas na família, adultério;" "Casa V: sexualidade violenta,
perversa, de imaginação. Prazer em amores complicados, companheiros dissolutos.
Libertinagem;" "Casa VII: união escandalosa, torpe. Possível concubinato ou adultério. Pais
perversos, desgraça no casamento;". E assim por diante. No signo de Escorpião, a presença da
Lua Negra faz um astrólogo reprimido dizer "Excessos sexuais que abreviam a vida. Se Lilith
está em má posição ocorre doença venérea mortal. Perigos de envenenamento ou morte por
epidemia •micróbica". Outros afirmam: "A Lua Negra provoca tentações misteriosas, possível
ação de súcubo ou incubo". Esta é a codificação de sombra mais ameaçadora que resistiu há
até poucos anos. Algo diverso mostra-se na astrologia de nossos dias. O mitologema não está
mais operando como símbolo terrível
139. Del Bello, A., op. cit.
149argumentação astrológica vem em segundo plano e nasce da energia psíquica
inconsciente aplicada ao núcleo arquetípico.
De acordo com nossa proposta, que mantém a validade e a "existência" do segundo
satélite lunar somente no plano psíquico do indivíduo, é verdade que ele é subjetivamente
experienciado. Para a Lua Negra astrológica podemos dizer o mesmo que J. C. Baroja disse a
propósito das bruxas: "A bruxa só existe enquanto existe alguém que acredita firmemente nos
efeitos de sua ação". Isto nos parece sugestivo e importante para a psicodinâmica. O homem é
também aquilo que sente e experiência subjetivamente e todo este património de experiência
lhe pertence mesmo se vier a faltar uma verificação objetiva que do exterior codifique o
endosso daquilo que é ou não aceito. Considerando a astrologia um mecanismo sincrônico
correlato a um complexo de analogias e correspondências de signí-ficados-signifícantes,
podemos permitir-nos experimentar se existe ao menos uma correspondência de sentido entre
a Lua Negra que conhecemos das efemérides dos astrólogos e a realidade psíquica do mito
bíblico que faz parte do inconsciente coletivo.
Se examinamos brevemente algumas interpretações da Lua Negra nas tradições,
formamos de imediato uma ideia psicológica de quanto ela reflete de modo sólido — na
consciência comum — o tabu mítico e a repulsa em relação a este astro "negro", símbolo da
feminilidade perigosa! O que explica bastante como estão as coisas, no plano imaginai,
quando se tem em frente um símbolo do arquétipo cindido referente a Lilith. Eis um trechinho
de prosa realmente negra, que èm sua truculenta eloquência — o texto é de 1940 — oferece
um verdadeiro repertório à psicologia profunda:
Faz alguns séculos os astrónomos descobriram um segundo satélite de nosso planeta.
Foi chamado Lilith porque é escuro como o Estinge dos antigos e porque o nome Lilith é o
atribuído à primeira e cruel mulher de Adão. . . Não é uma sombra, mas um astro errante. A
lua infernal, que não precisamos confundir com Hécate, tem uma influência maligna. Sua cor
fuliginosa dá uma ideia de nuvem negra, de um vampiro. É uma rainha demoníaca, patrona
dos necromantes, provocadora de desgraças. É semelhante às noites de ansiedade com sua
legião de fantasmas. É inegavelmente arriscado atribuir aos astros recém-desco-bertos uma
influência a priori. Só as constatações da experiência permitem defini-lo depois de longas
comparações. Alguns autores asseguram que Lilith, provocando uma forte excitação inte-
148
lectual, causa uma sensualidade excessiva, que pode chegar à depravação, à loucura,
ao suicídio e até mesmo ao delito sádico.139
Aqui é evidente um fantasma cultural ainda girando em torno da repressão, que nos
recorda o Maileus Maleficarum; reencontramos intactos os elementos do folclore: a
"malignidade" de Lilith, o negro, o vampirismo, o domínio dos demónios e o aspecto noturno.
É a mesma posição psicológica de negação. Esta rainha da noite age, portanto, na astrologia
do século XX, como um fator psicossexual patológico e de desvio comportamental. A
tradição opositiva ao instinto se mantém inalterada porque a Lua Negra é ainda a espada nos
flancos do timorato de Deus; é ainda o espantalho diabólico dos instintos que arrastam para
"baixo". A consciência coletiva se defende da fuliginosa Lilith com definições de condenação
e fuga. Assim, as interpretações de Lilith brotam ainda de comportamentos agressivos
inconscientes a serviço do Eu contra as solicitações da libido sexualizada. É fácil perceber
nisto um mecanismo de defesa, porque a atitude dos intérpretes é acima de tudo uma reação à
angústia e um eficiente acobertamento desta, mediante racionalizações. É óbvio que todas as
virtudes permanecem identificadas com a Lua "boa", aquela que resplandece no céu,
especialmente quando está cheia! Eis um florilégio sintético de interpretações tradicionais
referentes aos setores dos horóscopos: "Lilith na Casa I: sujeito mentiroso, dado a luxúria com
sensualidade perigosa e complexa"; "Casa II: ganhos provindos do vício ou de coisas amorais
ou imorais"; "Casa III: relações imorais com indivíduos pervertidos em ambientes nefastos,
com orgias;" "Casa IV: histórias ilícitas na família, adultério;" "Casa V: sexualidade violenta,
perversa, de imaginação. Prazer em amores^complicados, companheiros dissolutos.
Libertinagem;" "Casa VII: união escandalosa, torpe. Possível concubinato ou adultério. Pais
perversos, desgraça no casamento;". E assim por diante. No signo de Escorpião, a presença da
Lua Negra faz um astrólogo reprimido dizer "Excessos sexuais que abreviam a vida. Se Lilith
está em má posição ocorre doença venérea mortal. Perigos de envenenamento ou morte por
epidemia inicróbica". Outros afirmam: "A Lua Negra provoca tentações misteriosas, possível
ação de súcubo ou incubo". Esta é a codificação de sombra mais ameaçadora que resistiu há
até poucos anos. Algo diverso mostra-se na astrologia de nossos dias. O mitologema não está
mais operando como símbolo terrível
139. Del Bello, A., op. cit.
149de expiação e repressão, mas sim como voz de uma energia parcial correlata aos
instintos que quer ser integrada. A referência à sexualidade é ainda dominante e se cometem
assim confusões entre conceitos de "feminino", instinto e sexualidade. Os autores
contemporâneos deslocam completamente o significado de Lilith-Lua Negra no plano da
psicologia profunda e restituem ao mitologema, como símbolo astrológíco, todo seu valor
originário. Eis o tom de certas interpretações atuais: "Lilith produz uma sensualidade viva que
ativa o empenho na vida cotidiana; o sujeito pode exprimir uma forte passionalidade;" "A Lua
Negra é uma possível manifestação negativa para a família, mas pode estimular o sujeito a
uma experiência comunitária fora de esquemas convencionais." Ainda mais liberadora é esta
interpretação: "Em Escorpião, Lilith representa a potência do sexo e do erotismo, a qual pode
manifestar-se com grande passionalidade. O karma, em tal configuração, pode impor uma
experiência autodestrutiva em qualquer sentido, para dar lugar a uma ressurreição. As
sublimações têm um caráter muito criativo". Para nós é interessante constatar como para os
astrólogos a relação de "aspecto" entre Lua Negra e Lua ou Vénus é — no caso negativo —
procurada nos neuróticos obsessivos e fóbicos assim como nos temas dos artistas,
evidentemente "doentes criativos". Alguns autores hoje colocam em evidência dificuldades
psíquicas legadas e o casal genitor, quando Lilith tem uma relação negativa com o Sol e a
Lua. O caminho correto para recuperar o pólo lunar obscuro está pois especificado. Ele não é
mais uma energia totalmente destrutiva mas sim uma obscura força a ser compreendida e
integrada, não obstante romper com os modelos comportamentais tradicionais.
Os espaços projetivos do mito
150Depois de haver percorrido todo o itinerário mitológico e antropológico da
figuração de Lilith nas áreas culturais mediterrâneas, ocidentais e do Oriente Médio, onde o
arquétipo do "feminino", em sua polaridade cindida, teve notáveis transformações, fixamos
sua imagem no objetivo de uma breve análise psicológica, que representa um tributo da
cultura atual que encara o tema com novas modalidades. Agora nos resta verificar onde Lilith
se exprime ativa-mente como verdadeira e real imagem interna.
Como, francamente, julgamos difícil que Lilith apareça na esfera consciente, como
figura legível, é necessário seguir a única modalidade indicada, ainda uma vez, pelo
imaginário: aportarmos no mítico Mar Vermelho interior, em cada um de nós, para procurar
em quais recônditos segredos de nossa psique está ela escondida e oculta sua mensagem. A
seguir, procuraremos os espaços projetivos do mito no qual Lilith é ainda vital, tranquila
como símbolo, ativa como provável núcleo dinâmico, capaz de solicitar toda a dimensão
arquetípica.
Assim nos pareceu que o espaço eletivo para uma análise inter-pretativa da figura
mítica, como expressão do lado obscuro do "feminino", é, ainda uma vez, o sonho e o
pesadelo. O fantasma persecutório da Bruxa, da Diaba, ou mesmo da prostituta agressiva, da
sedutora cândida ou da mulher devoradora, nós o encontramos habitualmente na prática
analítica, nos sonhos referentes ao processo de integração da polaridade, onde um dos
aspectos pode tender a sujeitar o outro, no jogo da sombra.
Aqui são apresentados alguns sonhos e pesadelos, a título de exemplo, onde a figura
feminina poderia ser vista como personificação de Lilith.
153O incubo é a típica resposta à experiência de medo e angústia inconsciente
provocados pela irrupção, a maior parte das vezes, do arquétipo, nas suas manifestações
arcaicas. Pode ser interessante elaborar o incubo e o medo deixando as habituais vias
interpretativas, para dar, ao contrário, consenso e validade terapêutica à experiência do
terrífico e, de tal maneira, reconhecer o ativo papel de Lilith, antes de sujeitá-la à oposição
passiva, na recusa esquemática da "mãe má" que em tal caso volta constantemente a reforçar a
agressividade. Concorda-se, nesta hipótese, com o que Jung observou de válido e legítimo na
experiência do medo.
Se Lilith-Lua Negra, como vimos nos numerosos ritos cultuais, era fonte de terror, de
pânico, devia ser também fonte de uma experiência psíquica transformativa e de
enriquecimento do mundo interior, conduzido para diante do deus e dos nascentes segredos da
vida. O medo, como o amor, diz Hillman, pode se tornar um apelo para a consciência;
permanecendo em contato com o medo, encontra-se o inconsciente, o desconhecido, o
numinoso e incontrolável. Por isso, não nos desagrada, hoje, que a Lua Negra provoque ainda
medo e, por que não, nos seduza!
Pensamos que um outro lugar onde é possível perceber Lilith é na tradição da fábula e
do conto popular, com sua imensa simbologia de mitologia encantada. Aqui são mencionadas
brevemente algumas indicações gerais para traçar eventuais caminhos de pesquisa. Na fábula,
sabe-se, são sempre representadas situações arcaicas, modelos de sucessivas representações
da realidade psíquica. Se os contos são "verídicos", é verídico também o impressionante
património de arquétipos que nos propõem, na linguagem metafórica da narrativa, uma
verdadeira explicação geral da vida. Aqui, Lilith está presente na eterna dicotomia entre o
bem e o mal, inferno e paraíso, bruxas e fadas, pombas e lobos ferozes; e na truncada
exclusão das "madrastas" e dos maus pensamentos. Nas fábulas, a luta entre instinto e alma se
torna ainda mais evidente e refletimos sobre o modo como age, em nível profundo, na
organização da psique infantil.
Enfim, último espaço projetivo levado em consideração, encontramos Lilith-Lua
Negra — como já escrevemos amplamente — na pesquisa astrológica; pelo contrário, é
exatamente no Zodíaco que ela hoje é reencontrada, e com extraordinários significados. Se
compreendemos a astrologia como uma especulação transcendente e, também ela, como
diálogo transformativo com o próprio inconsciente, podemos então conceder valor à presença
e ação, no horóscopo, do
154
símbolo-sinal de Lilith-Lua Negra, referente à temática do "feminino". Portanto aqui
são representadas três elaborações de análise astrológica que querem ser apenas indicativas ao
menos no plano metodológico.
155O SONHO E O INCUBO
Desde quando o homem apareceu na terra conserva memória, lembra,
indubitavelmente, de sonhar quando descem as trevas e o sono o faz fechar os olhos.
Já na Bíblia conhecemos o valor atribuído aos sonhos. Significados religiosos, de
fatalidade, de destino, mensagens dos deuses e dos demónios, de saúde e de doença. Tudo isto
pertence ao sonho, a esta incrível aventura figurada que todo homem experimenta no sono.
Hesíodo, na Teogonia, nos oferece a imagem mais bela, mítica, do que é o sonho:
A Noite então gerou a Sorte odiosa e a negra Kere, e a Morte; gerou o Sono, gerou
toda a estirpe dos Sonhos. ..
E este filho da noite, desde sempre, desce sobre a terra para visitar as criaturas
humanas e se hospeda no seu inconsciente. Hypnos é o momento, o lugar no qual o Sonho se
manifesta imprimindo sua mensagem na consciência e na memória.
Cada homem convive com as outras criaturas humanas — na vigília — a experiência
do universo real, mas no sono toda criatura faz a experiência do próprio universo subjetivo
através dos sonhos; os seus sonhos lhe pertencem. Heráclito afirma isto nesta passagem:
O universo de quem vela é uno e comum, mas no sono cada um retorna ao seu próprio.
157Para cada criatura o sonho fala segundo sua própria linguagem. A tradição,
especialmente a hebraica e a grega, nos faz compreender a importância do sonho — do grande
sonho de Abraão àquele de Nabucodonosor, ao de Penélope ou de Cliptemnestra, para não
falar do incubus típico da Idade Média, até o soerguimento do véu da Maia onírica feito por
Freud — importância que, agora sabemos, é fundamental à conservação, ou não, da saúde
psíquica e espiritual daquele que sonha. Não queremos nos alongar aqui, falando do sonhar e
do sonho na sua especificidade e remetemos o leitor à literatura, em particular à psicanalítica,
toda vez que deseje conhecer a fundo a realidade psíquica do sonho e o processo onírico nos
seus múltiplos aspectos.
Fixemos todavia algumas definições extraídas das várias épocas e opiniões, para que
possamos compreender, além disso, o valor e o significado de certos conteúdos oníricos que
citaremos aqui, relacionados ao tema Lilith-Lua Negra.
O sonho é um movimento ou uma invenção multiforme da alma, que assinala os bens
ou os males futuros, segundo Artemídoro, que foi a maior autoridade em matéria de sonhos
no século II d.C.1 Em Homero existe a famosa afirmação {Odisseia, XIX, 560) feita por
Penélope:
Hóspede, os sonhos são vãos, inexplicáveis;
nem todos se realizarão, infelizmente, para os homens.
Duas são as portas dos sonhos inconsistentes:
uma tem os batentes de chifre, a outra de marfim:
aqueles que saem do cândido marfim,
rodeiam de enganos a mente, palavras vãs trazendo;
aqueles ao contrário que saem do luzidio chifre,
verdade os coroa, se um mortal os vê.
Lucrécio verá nos sonhos uma satisfação dos desejos, enquanto muito mais tarde
Paracelso dirá: "aquilo que o sonho revela é a sombra da sabedoria existente no homem, ainda
que durante a vigília ele não tenha consciência".
Descoberta a dimensão do Inconsciente, Freud definirá o sonho como a via mestra de
acesso à psique inconsciente e sonhar será apagar os desejos inibidos ou reprimidos.
Para Jung é diferente a essência dos sonhos, que compensam
1. Artemidoro: // libro dei sogni, Adelphi, Milano, 1978. 158
aquilo que o consciente sente faltar. Os sonhos são fragmentos da atividade psíquica
involuntária e participam na composição daquele grande mosaico que é o processo evolutivo.
Embora os sonhos permitam, com os freudianos, o acesso aos complexos e sejam também a
chave para outras escolas analíticas, para entrar no inconsciente, nós os sentimos sempre
como a linguagem daquela nossa personalidade profunda que nos permanece obscura no
estado de vigília.
É na linguagem onírica que Lilith se manifesta. Ela aparece com o filho da Noite e se
manifesta com aquele particular e dramático acontecimento que é geralmente o incubo.
Pretendemos apresentar aqui uma série de sonhos onde nos parece manifesto o símbolo da
Lua Negra e de Lilith, seja como imagem direta, seja como expressão do mitologema.
Outrossim citamos algumas descrições do incubo como fenómeno neuropsicológico, visto que
parece que Lilith verdadeiramente se apresenta, na cena do sonho, com caracteres totalmente
correspondentes à horripilante figura estruturada no inconsciente e na imaginação durante as
épocas da civilização. Lilith volta, dissemos; volta a perturbar o sono e os sonhos do homem
que nas várias épocas e culturas reagiu de modo diferente, mas sempre vivendo com
sofrimento esta dolorosa experiência noturna. Quando a anima Lilith transformada em energia
negativa irrompe no sonho, seja com os traços de Hécate ou da bruxa, ou mesmo de um
monstruoso ser, ou de uma bela mas terrível mulher, parece que o sonho assume as
características do incubo. Quando lemos certas descrições clássicas do incubo, encontramos
analogias surpreendentes à descrição que a mitologia e a tradição cultural fazem do encontro
de Lilith com o viandante durante a noite ou com o adormecido; já descrevemos esses
episódios na primeira parte. Aqui é Lilith no incubo que queremos conhecer:
Em geral o incubo ataca os adormecidos pelas costas e frequentemente tem início com
sonhos espantosos imediatamente seguidos de dificuldades respiratórias, de uma forte
opressão no peito [. . . ] Neste estado, os adormecidos suspiram, se lamentam, emitem sons
inarticulados e permanecem como que entre as fauces da morte [...].
As formas do incubo são infinitas, mas um elemento está sempre presente: um
profundo e incompreensível terror. Às vezes a vítima é envolvida nas espirais de um viscoso e
horrível monstro, cujos olhos têm o fulgor fosforescente do sepulcro, cujo hálito não é menos
venenoso que o paul de Lerna. Tudo aquilo
159que de horrível, de nauseabundo, de aterrorizante existe no mundo físico ou moral,
lhe é colocado na frente, assustadoramente aumentado: e as serpentes sibilam, os demónios o
torturam [. . . ] os sobrenaturais e agudos gritos e os insensatos rosnados de feiticeiros, bruxas
e espíritos malignos a circundam [. . . ] De repente pode sentir ao lado um demónio maligno:
para fugir à visão de uma imagem tão assustadora, fechará os olhos, mas a terrificante criatura
continuará a fazer sentir a própria presença; o seu hálito gélido se difundirá no vulto da
vítima, que saberá igualmente que se encontra cara a cara com ele. Se levanta o olhar, vê
olhos terrificantes que o olham, uma criatura diabólica escarnece dela com perfídia mais que
infernal, ou percebe uma monstruosa bruxa acocorada em seu peito, muda, imóvel e malvada,
uma encarnação do espírito do mal, cujo insuportável peso lhe tolhe a respiração, cujo olhar
fixo, implacável, incessante, a petrifica no horror, fazendo-lhe odiosa a própria vida.2
Esta esplêndida descrição pertence a Macnish, autor do século passado, e já contém
toda a sugestiva série de imagens que nos reconduzem a Lilith. É o motivo central que chama
a atenção: a criatura terrificante que agride o adormecido e o esmaga. Ainda uma outra fonte,
citada por Jones, oferece um quadro análogo:
Enquanto está imerso no sono, o adormecido é colhido subitamente por um profundo
mal-estar, se sente sufocar, faz esforços vãos para inspirar o ar que lhe falta. [. . . ] A sensação
que é mais comum é aquela de um corpo pesado que comprime o epigástrio [. . . ] O incubo
tem início com uma verdadeira alucinação; o ser que te saltará ao peito o surpreende já no
quarto, tu o vês se aproximar e querias poder fugir-lhe, mas a imobilidade já é total. Esta
pessoa salta na cama, tem os seus traços alterados por um horrível requebro; avança, e quando
se apossa do corpo da vítima, o incubo alcança o ápice da intensidade.
A opressão, o sentimento de culpa arcaico, as mais violentas emoções reprimidas se
desencadeiam quando a imagem penosa e horrenda salta em cima do adormecido deitado.
2. Jones, E., op. cit., p. 18. 160 "
Acontece pensar-se em uma analogia com as reações de angústia do primeiro Adão
quando Lilith quer tentar "ficar por cima" dele, oprimindo-o com seu prazer e o "peso" da sua
iniciativa iminente. E se se tratasse de uma memória arcaica que se reativa exatamente no
incubo, onde o homem se sentiu súcubo?
No incubo, como na experiência do terror, o indivíduo perde toda a energia e
capacidade de defesa e reação. Não acontecia assim também com aqueles que encontravam
Lilith, Hécate, uma Empusa ou a temida Prosérpina?
Em cada hora da noite, aquele que sonha sente que sua respiração está impedida. Uma
criatura qualquer, pelo menos um hirsuto animal, ou uma repugnante forma humana,
comprime o peito do adormecido ou imobiliza sua garganta procurando estrangulá-lo. O terror
aumenta com a asfixia, toda tentativa de defesa é impossível pois todos os membros estão
paralisados, quase que por mágico poder. Estes são em resumo os sintomas do incubo: a
sensação de sufocamento, o terror, a sensação de um corpo pesando sobre o peito e a
impossibilidade de qualquer defesa.
Nos íncubos existe sempre um componente fortemente sexual e é sugestivo pensar que
se manifestem instintos que pertencem aos estratos mais inferiores do inconsciente. Sigamos
as citações de Jones: Boerner afirma que junto à angústia, no incubo, se manifesta também
uma profunda voluptuosidade, especialmente nas mulheres, as quais crêem haver tido um
coito com o inimigo. Os homens têm às vezes poluções. Delassus descreve assim um incubo:
Uma imensa angústia oprime a pessoa que percebe a aproximação do incubo ou do
súcubo. A garganta se aperta, tem início um princípio de sufocamento e ao mesmo tempo
todas as mucosas são acariciadas por voluptuosos titilamentos. O gozo é louco, terrível o
dispêndio de energias.
Mais moderna, a voz de A. M. Macario informa que existe uma variedade de incubo,
no qual monstros horríveis e uma velha repugnante se aproximam do adormecido e se apoiam
em seu peito com todo o peso de seus corpos. O desaventurado sofre então todas as
161penas mais tremendas. Também Simon,3 a propósito do incubo, afirma que o
espectro é uma mulher amante, voluptuosa, ou ainda um ser repugnante, um demónio, um ser
disforme, uma velha asquerosa cujos beijos são sobremodo motivo de horror. Se, com
Abraham, Rank e outros, consideramos que o sonho é o mito do indivíduo, podemos dizer que
também o mito de Lilith é o sonho ou o incubo do indivíduo.
Como bem sabemos, são considerados frequentes os sonhos onde se exprimem
complexos inerentes ao feminino simbolizado por Lilith, ou impulsos também reconduzíveis a
este símbolo. Evidentemente, os símbolos mais transparentes aparecem nos sonhos arque-
típicos onde irrompem enormes cargas afetivas e emocionais e aqui o mitologema pode
realmente ser personificado pelas figurações arquetípicas, formadas pelo inconsciente
coletivo.
Artemídoro de Éfeso, em seu monumental Livro dos Sonhos, nos apresenta um sonho
onde aparece Hécate:
Os deuses que são percebidos com os sentidos são símbolo de medos, de perigos e de
dificuldade; de fato, quando se apresentam de dia provocam tais reações [. . . ] Assim, ver
Hécate com três vultos colocada em seu pedestal indica movimentos e viagens, quando é
chamada deusa das estradas. Se sonha-se com ela com um vulto só, é mau sinal para todos, e
em geral revela que os problemas virão de um país estrangeiro. Remove sempre o que sonha
da situação presente e não permitas que permaneça em seus lugares, sob qualquer aspecto que
ela apareça. Se a deusa se move ou vem ao seu encontro, indica que os êxitos corresponderão
à sua figura.4
Citemos um sonho onde o elemento feminino erótico é reconheci vel como símbolo de
uma libido invertida de modo ambivalente; pertence a uma crónica datada por volta de 1050:
Por volta do fim do ano mil vivia na Galiléia, na vila de Vertus, no Condado de
Chalons, um homem do povo de nome Leutar-do [. . . ] um emissário de Satanás. A sua
temerária loucura começou a se manifestar do seguinte modo. Achava-se um dia só em um
campo, ocupado em algum trabalho de cultivo. Devido ao cansaço adormeceu e aconteceu
que um grande enxame
3. Simon, M., Le monde des rêves, Paris, 1882.
4. Artemidoro, op. cit., p. 142.
162
de abelhas lhe penetrasse no corpo pelo secretum suum naturale foramen; depois lhe
saíram pela boca com um forte zumbido e o atormentaram com frequentes picadas. Depois de
ter sido longamente atormentado por seus ferrões, lhe pareceu que falassem e lhe ordenassem
fazer muitas coisas impossíveis aos homens.5
A referência a Satanás, como ligação dos impulsos de tonalidade claramente sexual,
indica no homem uma situação conflitante com o próprio eros. Ele reprime aquilo que parece
"impossível fazer".
Em uma lenda do Trecento existe alguma coisa que Jones, em seu livro sobre o
incubo, teria citado com muito prazer: é a explícita identificação de valências diabólicas e
paternas; identificação que Jones e outros freudianos dão somente por via de interpretação e
decifração onírica. A lenda, da qual é extraído este sonho, se refere à vida de um certo
Guilherme que viveu entre os séculos XI e XII. Este é o sonho:
Aconteceu uma noite, que o cavaleiro de Cristo, Guilherme, estando em oração no dito
Monte Prumo, vem Satanás, inimigo da natureza humana, com tal multidão de demónios que
nem se poderia dizer [. . . ] E começaram a se aproximar do dito servo de Deus. Depois veio
Satanás e tomou a forma do pai do dito São Guilherme e começou a chamar com grande
piedade e com agradáveis vozes, imitando e assemelhando a voz de seu pai, de Guilherme. E
dizia: ó Guilherme, filhinho meu. . .
No antigo Egito, certos sonhos de conteúdo sexual eram com certeza considerados
negativos, indício da sedução que ataca o adormecido fazendo-o participar em experiências
capazes de produzir a impureza da mente e do coração. Assim, se uma mulher sonhava ser
coberta e penetrada violentamente por um cavalo fogoso, a interpretação corrente indicava a
presença, na mulher, de desejos diabólicos e a considerava violenta com o próprio marido.
Mais lascivo e inquietante era considerado o sonho no qual a mulher tinha um coito com um
asno, porque em tal caso se julgava a mulher uma verdadeira ameaça, com seus insaciáveis
desejos sexuais. O intérprete, para puni-la, lhe dizia que depois de tal sonho ela teria expiado
uma grande culpa.
5. Rulphi Glaberi, Historiarum libri quinque, Prou, Paris.
163E aqui está, mais que o necessário, transparente a tentativa redutiva e o objetivo de
controlar a sexualidade feminina.
O sonho no qual a mulher se abandonava ao coito violento e arrebatante com um bode
recebia — sempre no Egito — a mais dura censura e era predita a morte de quem tinha
sonhado: a ameaça, também aqui, era trazida pelas intenções lascivas da mulher e a "morte"
era sinónimo de eliminação de um perigo sexual. No livro do Zohar se indica o
comportamento da Anima durante a noite. Ela tende a subir em direção a Deus deixando em
parte o corpo daquele que dorme. Mas se a alma é impura — sacudida por sonhos eróticos e
corrompida — é então detida pelas potências impuras, diabos e mulheres demoníacas (Lilith),
e então o tormento mais cruel atinge o indivíduo e ò despertar pode ser súbito e doloroso.
A repressão sexual, no homem e na mulher, produz alucinações, sonhos ou íncubos.
Mas são notados também sonhos de olhos abertos e deles estão cheias as crónicas e as
biografias de personagens famosas. A remoção do instintual induzia Santa Teresa d'Avila às
mais cruéis tentações; seu lado Lilith caía então em poder do demónio, opondo-se à função
transcendente. Estas são algumas narrativas autobiográficas de Santa Teresa:
Encontrava-me no oratório e o demónio me apareceu do lado esquerdo com um
aspecto abominável; olhei especialmente a boca porque me falou e me pareceu assustadora.
Parecia que do corpo lhe saísse uma grande chama, clara e sem sombra. Disse-me em tom
assustador que me haviam, é verdade, me libertado de suas mãos, mas que ele me prenderia
de novo. Eu tive um grande terror e fiz o sinal da cruz.6
Em suas visões noturnas aparecem os símbolos do conflito com o masculino:
Uma noite pensei que os demónios me sufocassem, me esmagando, e quando jogaram
muita água benta vi uma multidão deles fugir, como quem se precipita num despenhadeiro.
São tão numerosas as vezes em que estes malditos me atormentam [. . . ] Outras vezes via
uma grande multidão de demónios ao meu redor e me parecia que existia um grande clarão
que me
6. S. Teresa d'Avila, // libro delia sua vita, U.T.E.T., Torino, 1826. 164
circundava completamente, não lhes permitindo se aproximar
de mim [. . . ]
Santa Teresa nos deixou, com certeza, sua experiência do inferno como manifestação
alucinatória do instintual:
Um dia, de repente, me achei, sem saber como, com uma sensação de estar no Inferno.
Compreendi que o Senhor queria que visse o lugar que os demónios me haviam preparado lá e
que eu havia merecido por meus pecados [. . . ] A entrada me parecia semelhante à de um
beco muito longo e estreito, semelhante a um forno muito baixo, escuro e apertado, o chão me
parecia de uma água lamacenta muito suja e com odores pestilentos e nela muitos animais
nojentos; no.fundo havia uma cavidade escavada na parede, como um nicho, no qual me vi
aprisionada muito apertadamente. . .
A narrativa continua assumindo os tons da descrição de um verdadeiro incubo e de um
ataque de angústia:
Senti um fogo na alma que eu não consigo entender de que maneira se possa explicar.
As dores do corpo eram insuportáveis; contudo eu as havia sofrido nesta vida gravíssimas e,
segundo dizem os médicos, as mais graves que se podem padecer neste mundo (porque meus
nervos se contraíram todos quando fiquei paralisada, sem contar muitas outras dores que tive
de diversas maneiras e ainda outras, como disse, causadas pelo demónio), mas tudo nada é em
confronto àquilo que ali senti mesmo porque via que deveriam ser eternas e incessantes. E isto
nada é em confronto com a agonia da alma: uma opressão, um sufocamento, um tormento tão
sensível e tão desesperado, e um desconforto, um desgosto que eu não saberei como explicar.
Direi que é como se a alma fosse inexaurivelmente arrancada, mas é pouco dizer assim
porque na terra parece que nos tiram a vida enquanto aqui é a própria alma que se dilacera. E
eu não sei como possam aumentar aquele fogo interior e aquela angústia gravíssima de ser
superior a tantos gravíssimos tormentos e dores. Eu não via quem me atormentava, mas me
sentia queimar e despedaçar, segundo me parece e repito que aquele fogo e aquele desespero
interior eram a pior coisa. Estando em um lugar tão grandemente pestilento e de tal maneira a
165não poder esperar consolo, não há onde se possa sentar, acocorar e nem mesmo há
espaço para fazê-lo, ainda se fosse colocada naquela espécie de buraco da parede porque estas
paredes que apavorantes de se ver apertam elas mesmo, e tudo sufoca. Não há luz, tudo não é
senão treva impenetrável.7
Ora, de um antigo registro citamos um sonho típico, sempre com cará ter de incubo:
No quarto completamente deserto, no silêncio das trevas no-turnas, eu via um agitar-se
de formas incertas, amedrontadoras, que se moviam do alto em direção a mim, por cima da
alcova. Mas ainda antes de ver o que era, um corpo todo fremente e suado de mulher, ou
viciosa e quente besta animal lasciva, me havia caído sobre o corpo de maneira a quase me
esmagar e uma boca, uma boca quentíssima me buscava e me era impedida qualquer recusa e
movimento. Não podia urrar e a natureza me ardia como nunca.8
Recordemos também as visões e os sonhos de certos santos: as tentações, onde as
figuras femininas eróticas se apresentavam aos santos, aos místicos e aos ascetas como
expressão da vida instintiva que ameaçava a sublimação religiosa. As iconografias, as
pinturas, todas, mais ou menos, nos representam o homem ameaçado pelo demónio do
erotismo no semblante de mulheres ou bruxas; enquanto na mulher aparecem as figuras de
bodes, faunos, silenos, diabos ou bruxos. A pintura de Bosch, por exemplo, nos conduz ao
reino das formações oníricas e imaginais mais indicativas.
Nas crónicas dos séculos passados se encontram descrições de sonhos e visões
alucinantes onde retorna o tema da ameaça erótica e as tentativas para sufocá-la. Não apenas
nas crónicas de vida dos religiosos e dos santos, mas também nas dos homens comuns que,
como se diz, têm o que fazer com problemas de consciência ou são dominados por
superstições. Assim, os sonhos e os íncubos no tempo da Feitiçaria tinham comumente esta
estrutura de base:
Uma mulher de aspecto sensual e lascivo penetra em minha
7. S. Teresa d'Avila, op. cit.
8. Muller, Johannes, Uber die phantastichen Gesichserscheinungen, Munchen, 1826.
166
cama. Sinto que é uma presença horrível, me provoca angústia porque nela está
encoberto um perigo para minha alma. Mas as fofças me abandonam; este corpo quente e
violento me assalta, me cobre de tal maneira que não posso fazer nenhum movimento: me
esmaga com todo seu peso. Urro, a voz não sai, choro, imploro. É inútil.9
Para a mulher, a sedução especular é representada pelo demónio ou por qualquer alma
de homem defunto ou, no caso de religiosas, também o conteúdo de práticas litúrgicas se
transformava nos sonhos em uma investida sexual:
Na mente da priora, o novo ódio por Grandier não havia destruído, e nem ao menos
mitigado, os antigos e obsecantes desejos. O herói imaginado nos sonhos noturnos e naqueles
de olhos abertos permaneceu o mesmo; mas ele não era mais o príncipe azul para o qual se
deixa aberta a janela, mas um incubo inoportuno que se deliciava em infligir à sua vítima o
ultraje de um desagradável mas irresistível prazer [. . . ] Irmã Jeanne sonhou em diversas
ocasiões que o velho tinha voltado do Purgatório para implorar de suas antigas penitentes
ajuda nas orações. Mas enquanto ele se lamentava, eis que tudo mudava: e não era mais a
pessoa de seu antigo confessor, mas o vulto e as feições de Urbain Grandier, o qual,
alternando as palavras e os modos com a figura, lhe falava de amor, a aviltava com carícias
não menos insolentes que impudicas, e lhe solicitava conceder-lhe aquilo que não era mais
seu direito dispor, aquilo que por voto ela havia consagrado ao Esposo divino.10
É célebre a famosa pintura do pintor suíço Fússli, O incubo, de 1782.11 Nele o artista
retratou uma jovem mulher adormecida, emborcada no leito em uma posição determinada
pela intuível angústia; descomposta e percorrida por evidente energia negativa que a mantém
sufocada.
Do fundo da cena, no escuro requadro fora do cortinado, irrompe a horrível figura de
um cavalo enfurecido, força primitiva desen-
9. Simon, M., op. cit.
10. Huxley, Aldous, I diavoli di Lodun, Mondadori, Milano, 1968.
11. Para uma original avaliação da obra de Fiissli, sugerimos o texto de Jean
Starobinsky, Tre furori, Garzanti, Milano, 1978.
167cadeada que está por se emborcar no corpo da jovem. No lado esquerdo aflora a
imagem de um monstro ou de um demónio. É o clássico incubo, e Fússli deu o que fazer a
muitos analistas e intérpretes até que se revelasse o segredo oculto neste quadro. Esse é talvez
o único e mais verídico testemunho pictórico de um sonho descrito pelo Eu sonhador e
também aqui temos os símbolos daquelas energias instintivas que tentam emergir no sono, se
precipitando no corpo daquele que dorme.
Ainda mais indicativa para a pesquisa do mitologema de Lilith nos parece muita
produção poética e literária do Ottocento e do Decadentismo. É exatamente no Romantismo
alemão e no francês, em particular, que emerge do imaginário a obsedante figura do
andrógino e o mito da Mulher Fatal, no qual tornam a se personificar as figurações da Mulher
Vampiro, da Mulher Víbora, etc, em uma nova confirmação do conflito e de uma mais
aproximada relação ambivalente com a parte reprimida do feminino. Da interminável
literatura, não podemos fazer outra coisa que escolher alguns modestos exemplos, como
esboço de uma mais vasta pesquisa nesta direção.
Os românticos se aproximaram com muita participação e intensidade do mito, e o
demoníaco abordava também a figura da mulher, mais uma vez conferindo-lhe aspectos de
fatalidade e de grave sensualidade.
Deter-nos-emos, antes de tudo, próximo àquela sugestiva, perturbada mina de
símbolos e explosões imaginárias que é a obra de Gérard de Nerval, o lunar, criativo
romântico francês, cuja arte — como disse Artaud — é uma formidável expansão para o
exterior da escuridão de uma consciência inocente, onde o sonho se desdobra, quase em forma
de magia, na vida real.
Uma pesquisa do mito de Lilith, em Nerval, pode ser extremamente profícua,
particularmente se lermos com uma certa chave as novelas mais indicativas que exaltam, em
uma complexa e misteriosa representação onírico-simbólico-mitológica, o tema do eterno
femi-nino-materno-diabólico, dilacerado pelas contraposições e pelos con-
frontosvimpossíveis. Nas figuras de Sílvia, de Otávia, ísis, Pandora e Aurélia u — para citar
as mais importantes — reencontramos a verdadeira personificação do "feminino" dividido,
endemoniado ao
12. De Nerval, Gérard, Le figlie dei fuoco, trad. O. Macrl, Adelphi, Milano, 1979.
Todos os trechos citados daqui para frente relativos à obra são referências desta edição.
168
negativo, calado, das complexas mitologias inconscientes nervalianas, dentro do
abismo arquetípico, que em medida suficiente já tratamos. Podemos citar aqui somente
pequenos fragmentos de narrativa-sonho, onde é buscada a imagem da mulher que viveu nos
anos clássicos da experiência psíquica: do arquétipo materno desencadeado diante da negação
do Pai ou a castração, até a mulher que impede qualquer possível investimento narcísico, até a
mulher-bruxa-demô-nio, pura sombra e total regressão mortífera. Assim, em Sílvia vemos o
símbolo da Mãe amada-odiada, ora anjo, ora demónio que solicita temas de culpa e
genuflexões reparativas que deslocam a libido para as figuras sucessivas de Otávia e Aurélia-
Pandora.
Angelismo, fuga, fogo transformativo, eros e inferno constituem a cadeia de
simbologias que estruturam a psique de Nerval no impossível tema romântico da procura da
bela alma, onde Lilith, ainda uma vez, permanece oculta na sua obscura recusa e o homem
não consegue paz. Otávia ou a morte que leva aos infernos, aquela que é "coroada de rosas
pálidas", se transforma depois na ísis mítica e imaginada, na qual Nerval encontra a Mãe
onipotente que prepara para a expiação. Mais ainda, Lilith assume sua imagem terrífica
definitiva em Pandora ou Aurélia, nas quais se encontram, mesmo como vestígios oníricos
ocultos e esquecidos, Hécate e Perséfone. Toda uma tradição gnóstico-alquímica, um
misticismo anímico fantasmá-tico, nos reconduz, com Gérard de Nerval, à grande
representação pré-adâmica e pós-bíblica.
Eis algumas passagens onde sonho e narrativa nos levam à presença das figuras
inquietantes que ainda hoje permanecem um mistério da psique nervaliana, esmagando-nos
sob o enigmático conflito entre salvação e satanismo, oculto no magma mitográfico da sua
obra.
Em Sílvia está a descrição da simbiose com a mulher-mãe:
Eu me sentia viver nela e ela vivia só para, mim. O simples sorriso me enchia de uma
beatitude infinita; a vibração de sua voz tão doce, todavia com um timbre forte, me fazia
estremecer de alegria e de amor. Ela reunia a meus olhos todas as perfei-ções, respondia a
todos os meus entusiasmos, a todos os meus caprichos.. .
E depois vem o sonho onde a imagem feminina dramaticamente se cinde e introduz o
conflito, no qual o amor e a sedução da mulher
169convidam a superar o puer e a adolescência ainda embebida em sonho. Aqui
Adriana exprime o aspecto sacrificial do eros:
Imaginava um castelo do tempo de Henrique IV com seus telhados aguçados de
ardósia, a fachada um tanto encarnada rendilhada de pedras angulares amarelecidas, uma
grande praça verde circundada de olmos e de tílias das quais o Sol, ao se pôr, trespassava a
folhagem com seus dardos inflamados. Algumas jovens dançavam em círculo no prado,
cantando velhas árias aprendidas com as mães, em um francês tão naturalmente puro, que nos
sentíamos realmente vivos naquela antiga terra do Va-lois, onde por mais de mil anos pulsou
o coração da França.
Eu era o único rapaz naquela roda, à qual havia conduzido Sílvia, minha muito jovem
companheira, uma jovenzinha do vilarejo vizinho, tão viva e fresca, com seus olhos negros, o
perfil regular e a pele ligeiramente bronzeada!. . . Até aquele momento só amava a ela! Havia
apenas notado, na roda que dançava, uma moça loura, alta e bela, que se chamava Adriana.
Em um certo ponto, seguindo as regras da dança, Adriana veio a encontrar-se só comigo no
centro do círculo. As nossas estaturas eram iguais. Nos foi ordenado que nos beijássemos, e a
dança e o coro giravam sempre mais animadamente. Dando-lhe o beijo, não pude abster-me
de pegar-lhe a mão. Os longos anéis de seus cabelos de ouro me roçavam as faces. Naquele
instante, uma desconhecida perturbação se apoderou de mim. A jovem devia cantar para ter o
direito de voltar à dança. [. . . ] em um momento enquanto cantava, a sombra descia das
grandes árvores, e o clarão nascente da Lua caía somente sobre ela, isolada no meio do nosso
círculo, atento em escutá-la [. . . ] Adriana se levantou. Mostrando-se arrojada, nos fez uma
graciosa saudação e entrou correndo no castelo. . . Naquele dia de festa lhe haviam permitido
juntar-se aos nossos jogos; nós não devíamos mais revê-la, porque no dia seguinte, voltou
para um convento onde era educada.
Quando voltei para perto de Sílvia, percebi que chorava. A coroa dada por minhas
mãos à bela cantora era a razão de suas lágrimas. Ofereci colher-lhe outra; mas me disse que
não a queria, porque não a merecia. Tentei inutilmente defender-me, não me dirigiu uma só
palavra enquanto a acompanhava até seus pais.
170
Na situação de perda e luta, subleva-se a regressão e aparece Otávia, figura ambígua e
pseudo-anima desintegrante, que tenta consolar o homem-menino com as próprias artes
místicas-maléficas, verdadeira emanação do arquétipo materno arcaico que usa magicamente
o inconsciente do homem-filho, até conduzi-lo à tentação do suicídio:
Morrer, grande Deus! Por que este pensamento me volta em toda ocasião, como se
permanecesse somente minha morte a constituir o equivalente à felicidade que vós
prometestes? A morte! não obstante esta palavra não difunda nada de obscuro em minha
mente. Ela se mostra a mim coroada de pálidas rosas, como no fim de um banquete; às vezes
sonhei que ela me esperava sorridente na cabeceira de uma mulher adorada, depois da
felicidade, depois da embriaguez, e que me dizia: — Vamos, meu rapaz, tu recebeste toda tua
parte de alegria neste mundo. Agora vem dormir, vem repousar nos meus braços. Eu não sou
bela, mas sou boa e auxiliadora, e não dou prazer mas a calma eterna [. . . ]
O quarto no qual entrei tinha algo de místico, fosse por acaso ou pela escolha singular
dos objetos reunidos nele [. . . ] E de repente se pôs a falar em uma língua que eu nunca tinha
ouvido. Eram sílabas sonoras, guturais, gorjeios encantadores, talvez uma língua primitiva;
hebraico, sírio, não sei. Ela sorriu de meu assombro, depois caminhou para a cómoda, da qual
tirou ornamentos de pedras falsas, colares, braceletes, grinal-das [. . . ]
Eu me desvencilhava daquele fantasma que me seduzia e me amedrontava ao mesmo
tempo [. . . ] Não ser amado e não ter esperança de sê-lo jamais! Foi então que fui tentado a ir
pedir contas a Deus de minha estranha existência. Havia só um passo a dar: no ponto em que
me encontrava a montanha era cortada como um recife, o mar rumorejava ao fundo, azul e
puro; haveria sofrimento por um só instante. Ó, o atordoamento desse pensamento foi uma
coisa terrível. Duas vezes tentei jogar-me, e não sei que força me jogou vivo à terra que
abracei.
Naturalmente, a noite da vida e a tentação tanatógena levam Gérard de Nerval a ísis,
que é evocada em seu significado cultual: Natureza e Lua, a criadora, a mãe, a nutriz de tudo e
tam-
171bem a Destruidora, aquela que medeia a passagem aos infernos. E depois aparece
Pandora, o "feminino" negado; a prova, para o homem, da integridade perdida. Ela já está
carregada de afetos negativos; procurada e repelida, e recebe as projeções mais agressivas. É a
"maligna", a "sedutora", fria Pandora-Hécate, o pólo-sombra negro; mãe terrível, a "caixa
cheia de malícias", ela, Pandora-Lilith, a "criatura depravada", "bailadeira com pés de
serpente". Entra no sonho de Nerval e explode o incubo:
Enxergava-a ainda dançar com dois cornos de prata cinzelada, enquanto agitava a
cabeça empenachada e fazia ondear o colete de rendas aplicadas nas pregas da veste de
brocado.
Como era bela em sua indumentária de seda e púrpura levantina, enquanto fazia
brilhar orgulhosamente as costas brancas untadas de suor das pessoas. Refreei-a pendurando-
me deses-peradarnente em seus cornos e me pareceu reconhecer nela a outra Catarina,
imperatriz de todas as Rússias. Eu era o príncipe de Ligne, e ela não teve dificuldade em me
conceder a Criméia e a região do antigo templo de Toante. Encontrei-me de repente
suavemente sentado no trono de Istambul.
— Mulher funesta! — lhe disse —, estamos perdidos por tua culpa e o mundo está
para acabar! Não sentes que aqui não se pode mais respirar? O ar está infectado por teus
venenos e a última vela, que ainda nos ilumina, treme e empalidece ao sopro impuro de nosso
sopro [...].
Estava engolindo bagos de romã. Uma sensação dolorosa se seguiu em minha garganta
a esta distração. Estava estrangulado. Cortaram-me a cabeça que foi exposta à porta do
serralho, e estaria morto de verdade se um papagaio, que passava em vôo despregado, não
tivesse engolido alguns bagos de romã que eu havia rejeitado.
A seguir, Nerval tem o encontro determinante, que fecha o cerco da experiência fatal.
Encontra Aurélia:
Daí a pouco, abaixando os olhos, me vi diante de uma mulher de colorido desmaiado,
com os olhos cavos, que me parecia tivesse os traços de Aurélia. Disse-me: — Aqui está
anunciada a sua morte ou a minha!
É na verdade Lilith que subjuga agora. É o indistinto sexual
172
demoníaco, talvez a loucura, a perda de identidade. Uma sensação fria, diante deste
sonho:
Aquela noite tive um sonho que confirmou meu pensamento. — Errava por um vasto
edifício composto por muitas peças, algumas das quais eram destinadas ao estudo, outras à
conversa e às discussões filosóficas. Detive-me com curiosidade em uma das salas, onde
acreditei reconhecer meus antigos mestres e condiscípulos. As lições se desenvolviam sobre
autores gregos e latinos, com o monótono sussurro que parece uma reza à deusa Mnemosine.
— Passei para uma outra sala, onde se ministravam conferências filosóficas. Participei por
algum tempo, depois saí para procurar meu quarto em uma espécie de hospedaria com escadas
imensas, cheia de viajantes atarefados.
Perdi-me muitas vezes nos longos corredores frios e, atravessando uma das galerias
centrais, fui atingido por um estranho espetáculo. Um ser de tamanho desmesurado — homem
ou mulher, não saberia dizer — esvoaçava fatigado no espaço superior e parecia mexer-se em
meio a densas nuvens. Diminuindo-se-lhe o fôlego e a força, cai afinal em meio ao pátio
escuro, depois de ter berrado e lacerado as asas contra os tetos e os balaústres. Pude
contemplá-lo um instante. Era colorido com tintas purpúreas e as asas brilhavam com mil
reflexos cambiantes. Coberto com uma veste longa pregueada à antiga, se assemelhava ao
anjo de Melancolia de Albrecht Dúrer. — Não pude evitar soltar urros de terror, que me
acordaram em sobressalto.
A queda do núcleo psíquico vital é consecutiva ao modelo racional vivido
depressivamente. É a perda da anima, a amedronta-dora contemplação da androginia perdida
para sempre, neste agitar de asas em ferida de morte. Contudo o homem tenta, de maneira vã,
realizar o sonho de amor e totalidade: persegue a mulher dentro do incubo e na alucinação.
Mas ela desaparece, deixa-o no drama não resolvido, quase pagando para sempre a
recusa de Adão. Assim, desiludido, fracassado seu projeto de realização e centroversão, o
homem perde o contato com o real: agora é a experiência da morte possível, das febres
malignas, do delírio regressivo, onde se precipita para trás, no estado arcaico, quase um
angustiante déjà veçu:
173A mulher que eu seguia, exibindo seu corpo lançada em um movimento que fazia
cintilar as pregas de sua veste de tafetá cambiante, circundou graciosamente com seu braço nu
um longo raminho de malva-rosa, depois este começou a crescer sob um vívido raio de luz, de
tal forma que pouco a pouco o jardim tomava sua forma, e os canteiros e as árvores se
transformavam nos florões e nos festões de sua veste: até que seu vulto e seus braços
imprimiram seus contornos nas nuvens purpúreas do céu. Perdia-a de vista assim que se
transfigurava, pois que parecia desaparecer em sua própria grandeza. — Ó! não fuja. ..! —
gritei. — A natureza morre contigo!
Pronunciando estas palavras, eu caminhava penosamente através de sarças, como para
agarrar a sombra aumentada que me fugia, mas bati num pedaço de muro arruinado, aos pés
do qual estava emborcado um busto de mulher. Ao levantá-lo tive a certeza que era o seu. . .
Reconheci um vulto amado e, estendendo o olhar a meu redor, vi que o jardim havia tomado o
aspecto de um cemitério. Algumas vozes diziam: — O universo está na noite! [. . . ]
Pareceu-me ser transportado para um planeta escuro no qual se agitavam os primeiros
germes da criação. Do seio da argila ainda mole se erguiam palmeiras gigantescas, eufórbios
venenosos e acantos torcidos ao redor de cactos; os perfis áridos dos rochedos se pretendiam
como esqueletos daquele projeto de criação e horríveis répteis rastejavam, se esticavam ou se
enrolavam no meio da inextrincável rede de uma vegetação selvagem. A pálida luz dos astros
era a única a clarear as perspectivas azuladas daquele estranho horizonte; no entanto, assim
que tais criações se formavam, uma estrela mais luminosa atingia os germes da luz...
Depois os monstros mudaram de forma e, despindo-se de seus primeiros pêlos, se
erguiam mais possantes nas garras gigantescas; a enorme massa de seus corpos rompia os
ramos e a relva e na desordem da natureza se engajavam em combates dos quais eu também
participava, já que eu tinha um corpo não menos monstruoso que o deles.
Somente alcançado este estágio, que é também a descida aos infernos, onde está a
Psique, a anima primordial, Gérard de Nerval tem a última revelação sobre o mistério:
descobre o duplo, que é o conhecimento consciente de um papel sexual identificado; igual à
174
Anima-Animus, que são complementares, formam o inteiro, de natureza andrógina:
aquele inteiro que foi rompido no primeiro Adão e sobre o qual Lilith interroga:
Vem-me uma ideia terrível: — o homem é duplo — me disse —, "sinto em mim dois
homens" escreveu um Pai da Igreja. O concurso de duas almas pousou como um germe misto
em um corpo que também ele apresenta à vista duas partes semelhantes reproduzidas em
todos os órgãos de sua estrutura [. . . ] Aderentes ambos a um mesmo corpo por afinidade
material, um, talvez, destinado à glória e à felicidade, o outro ao aniquilamento ou ao
sofrimento eterno —. Um fatal esplendor atravessou repentinamente a escuridão. . . Aurélia
não era mais minha!
A sombra envolve, aos olhos do homem, aquela sua parte e figura que se perde nas
trevas do remorso. Aurélia assume outras, e ainda outras, feições em mulheres que se fazem
sempre mais perversas, dolentes ou ameaçadoras na romântica luz lunar.
Recordemos agora a feroz Vénus d'Ille de Prosper Mérimée: em sua obra encontramos
uma Lilith. A figura da mulher fatal que é muito significativa, especialmente no episódio onde
ela sufoca, em um tremendo abraço, o jovem esposo que tinha — segundo uma antiga lenda
medieval retomada sob uma capa romântica — ousado colocar-lhe no dedo o anel nupcial.
Em todo o acontecimento paira uma atmosfera ameaçadora de vampirismo demoníaco
e morte. Vénus é descrita assim:
Todos os traços estavam ligeiramente contraídos, os olhos um pouco oblíquos, a boca
levantada dos lados, as narinas dilatadas. Desdém, ironia, crueldade se fundem em seu vulto
de uma incrível beleza. Em verdade, mais se olha esta admirável estátua, mais se experimenta
o sentimento penoso que uma tão maravilhosa beleza possa aliar-se à ausência total de
sensibilidade.13
Psicologicamente, aqui reencontramos, no homem, a experiência do fascínio e do
medo.
Também em Theóphile Gautier temos belíssimas descrições do sujeito e o vampirismo
que prevalece quando são desenhadas as figuras femininas nos recorda os míticos modelos
gregos:
13- Praz, Mário, La carne, Ia mortç, il diavolo, Sansoni, Firenze, 1968.
175Fui empurrada fora da tumba para procurar o bem que me foi arrebatado, para
amar ainda o homem já perdido e para sugar-lhe o sangue do coração. Quando ele morrer, eu
devo passar aos outros e os jovens sucumbem ao meu furor.14
Sempre na sua obra A morte amorosa, Gautier apresenta na figura de Clarimonde a
ampliação da mulher perversa e demoníaca emprestada da clássica imagem medieval, que
arremessa o homem em uma angustiada confusão, a ponto de lhe fazer dizer:
Eu não sei que mórbida e corrompida forma de serpente e de demónio
que o beija obscuramente no pescoço e ainda:
. . . arranhando, depois de haver beijado como uma besta selvagem, no ventre, sua
vítima.
Também em Baudelaire há a exaltação do eterno feminino ambivalente e terrível. Um
pouco em toda a obra do grande poeta adeja a simbologia de Lilith e quando ele olha a
mulher, frequentemente acontece descrevê-la assim:
Mas mais veneno destilam teus olhos,
os teus olhos verdes, lagos onde se espelha e emborcado
treme meu coração, abismos amargos onde em tropel descem para beber os sonhos.
Prodígio mais tremendo é a saliva
de tua boca, que corrói, que a alma afunda
sem remorso no esquecimento e a ponto de vertigem, a arremessa
às margens dos mortos.15
Das figurações de Lilith na área cultural alemã já falamos a
14. Praz, M., op. cit.
15. Baudelaire, Charles, Opere, Mondadori, Milano, 1977.
176
propósito do Fausto goetheano que nos deu a mais imponente sim-bolização da
bruxaria. Também no inglês Swinburne existe a imagem recorrente da Mulher Fatal.
Pensemos em sua Rosamunda do drama
juvenil:
Sim, eu achei a mulher de todas as narrativas, o vulto que sempre se surpreende no
vulto da história:... eu Cressida beijei a boca dos homens de tal modo que eles adoeceram ou
enlouqueceram, aguilhoando-os no cérebro.16
Ainda na obra Chastelard, a figura feminina é retratada com os mais resolutos
atributos míticos:
Existe uma outra ilha a Norte, no Oceano, onde habitam mulheres de natureza muito
cruel e malvada, e elas têm pedras preciosas nos olhos e são de tal sorte, que se olham um
homem, o matam imediatamente;
e sua Mary Stuart encarna exatamente o aspecto venusiano de uma Lilith que renova o
ritual de sangue e morte:
. . .Esta Vénus não está aplacada, mas está rubra de sangue de homens ao redor da
boca. . .
Assim também para todo o Decadentismo retorna o mito, e na poesia não se afasta
absolutamente da ideia base que procuramos ilustrar aqui.
íncubos, onde figurações de Lilith ou a imagem arquetípica da Lua Negra aparecem
com notável transparência, encontramos depois também em nossa prática analítica e portanto
citamos de bom grado algumas.
Um paciente de trinta e dois anos com neurose obsessiva e problemas sexuais teve
estes dois sonhos:
Encontro-me na Biblioteca da Faculdade de Letras. Estou consultando alguns livros na
preparação de um exame. Vejo-me mais jovem, com a mesma idade de quando era estudante
na universidade. Enquanto leio, sinto que se aproxima dentro de mim um estranho mal-estar;
um instintivo gesto de defesa me
16. Praz, M., op. cit.
Illforça a levantar e a fugir. A angústia agora me segue, é como uma pessoa que me
quer capturar. Caio em uma massa gelatinosa e viscosa, estou nu, não arrisco mais fazer
qualquer movimento. Queria gritar mas não posso e vejo que duas mulheres gordas
escarnecedoras estão abrindo as pernas para pular sobre mim; contra minha vontade tenho
uma ereção. Acordo de repente.
Aqui aparece bastante evidente o conflito entre a esfera racional e o instintivo que
seduz negativamente. O paciente associava ao estudo a possibilidade de se "elevar" e realizar
o triunfo do intelecto sobre os aspectos "inferiores" de sua vida. O instintivo apresenta a
resposta típica no simbólico erótico "pecaminoso" ou vulgar: o arquétipo de Lilith vibra nas
figuras das duas mulheres lascivas que emboscam o intelectual. Um sonho análogo se repete
com certa distância de tempo:
Falo com amigos de projetos muito interessantes para as férias. Penso que teremos
tarefas importantes, cálculos a fazer, manter vários encontros de alto nível. Aí se encontram
outras pessoas, homens de espírito, etc. Sinto-me no centro das atenções especialmente
quando em uma sala ouço uma conferência que diz respeito a certas inovações nas
construções em cimento armado. Olho o orador mas é como se de repente substituísse o
homem uma figura de mulher belíssima mas estúpida. Sinto medo e surpresa, olho em volta,
mas os outros parecem calmos e alheios. A mulher agora me olha, seus olhos me escrutam.
Tenho medo como se se tratasse de uma alucinação. Muda a cena: encontro-me amarrado, a
mulher belíssima está me excitando, me provoca. Estou aterrorizado porque sinto que as
pessoas na sala agora estão falando de mim e do que acontece aqui. Sucumbo a um tremendo
abraço.
Aqui é interessante a evolução: a ameaça do feminino obscuro é mais aparente e
substitui o núcleo consciente dominante; finalmente o caráter de incubo leva o sujeito frente à
própria situação profunda que deverá elaborar.
Um outro sonho, mais rico de símbolos, nos foi contado por uma jovem mulher:
Estou dormindo profundamente quando uma voz próxima me
178
sussurra qualquer coisa. O som da voz, não ainda as palavras, me desperta. Surpresa,
olho em volta: encontro-me em um jardim estranho, inquietante pela espessa vegetação
inculta e a presença de estranhas árvores de tronco tosco e largo. Há uma luz antelucana,
depois, assim que se alça o Sol, ouço alguns rumores. Em frente a mim há uma rústica porta
de pedras, me recorda Tirinto, a porta dos Leões. Uma serpente passa pouco distante de mim e
se esconde dentro da estátua oca de uma Vénus Anadiomene (é uma lembrança do Liceu, me
parece). Levanto, pois estava ainda em um prado e caminho para perceber em que lugar estou.
Ouço alguém rir, depois chamamentos, como se quisessem troçar de mim. Do alto vejo descer
estranhamente uma pomba que vai pousar perto de um leão esculpido, em atitude de
majestade e repouso. É uma coluna, talvez dórica ou egípcia, não consigo ver direito. Estou
vestindo uma roupa que reconheço: é o guarda-pó que uso no laboratório todo dia. Vêm-me
ao encontro duas mulheres que se chamam Lua e vestem um casacão negro. Quando estou
perto delas, quase com um gesto de simpatia e calor humano, tenho como que um violento
estremecimento e grito: o vulto delas está inflamado, incandescente, os olhos são como
globos negros. Mas o que me sufoca o grito na garganta é o fato que as mãos delas não são
mãos, são verdadeiras garras de rapinante. Agarram-me pelo púbis quase num peremptório
gesto erótico.
O tema de Sombra aflora no sentido puramente sexual. A Lua Negra é evidente nas
duas figuras que explicitam uma mensagem libidinosa dilacerante. Citamos agora este sonho
tido por outra pessoa, no qual emerge claramente Lilith como símbolo manifesto,
positivamente:
Eu vagueava por um lugar desconhecido onde em certo ponto senti uma grande
necessidade de fazer coco. Lembrava-me estar em um lugar aberto e amplo, mas feito também
como uma imensa gruta. Procurava me libertar, quando percebi a presença de G. que me
olhava; com ele vi outras pessoas, procurei assim me segurar mas agora me era sempre mais
difícil: percebi de repente que o coco saía sozinho, sem que eu quisesse. Sentia uma grande
ansiedade por causa da presença dessa gente e procurava também, escondido, limpar-me com
as mãos. Agora a merda estava em minhas mãos, não sabia como fazer e o que fazer,
179percebia que me importava muito menos com a presença desses estranhos. No
entanto, sem que me desse conta, minhas mãos haviam modelado qualquer coisa com esse
material. Sentia indiferença pela presença dessa gente e uma sensação inefável por aquilo que
tinha nas mãos. Olhava para aquilo, e só de repente entendi e me ouvi dizer:
— "Esta é Lilith". Era belíssimo, e eu experimentava uma sensação de imensa
felicidade. Eu olhava o objeto e apercebia-me de sua forma estranha: um quadrado negro,
atrás do qual, no alto, aparecia uma meia-lua negra e mais atrás ainda e sempre no alto, um
Sol negro. E todas as três formas estavam dispostas em três planos de profundidade.
Uma outra pessoa nos apresentou este sonho:
Encontro-me em um lugar desconhecido sem casas ou vegetação, mas sinto que não
está deserto porque por todo lado existe um tipo de atmosfera encantada. Olhando melhor,
vejo ao longe, na escuridão, delinear-se um casal. Se faz noite. É uma claríssima noite
estrelada e me sinto só, eu queria a companhia de uma mulher. Então, curiosamente, tomo por
uma escada muito longa — mas é inverossímil que possa existir! —, e depois de tê-la subido
sem grande fadiga, a apoio na Lua que entrementes apareceu no céu resplendente, em seu
último quarto. Penso querer subir até lá e não sinto nenhuma surpresa ao imaginar tal
experiência. Lembra-me mesmo de uma gravura de William Blake, que vi recentemente em
um texto: existe um homem que quer subir até a Lua mediante uma escada. É uma das visões
do poeta. Enquanto subo alegremente a escada e me dirijo ao céu, vejo a Lua se fazer mais
ténue e há um movimento como que para se preparar para se pôr. Penso, com súbita angústia,
que a escada poderia agora escorregar da Lua e que eu me precipitaria no vazio! Estou agora
no espaço, subo, e a Lua se faz sempre mais sutil, desce em direção ao horizonte. Enfim ela
desaparece de minha vista e nem ao menos vejo mais a escada em frente a mim. É como se a
Lua se tornasse alguma coisa de negro, um escuro absoluto. Incapaz de fazer qualquer
movimento, urro em vão. Na direção em que se encontrava a Lua, vejo somente trevas e uma
presença negra, ameaçadora, incognoscível. Parece-me ouvir uma estranhíssima voz de
mulher.
180
Esta pessoa, em associação, não manifestou conhecer qualquer coisa de Lilith ou da
Lua Negra. Trata-se então de traços arquetípiccs da Lua Negra: o sonhador revive o terror
arcaico do desaparecimento da Lua e a ausência do símbolo materno-feminino o coloca em
pânico, da mesma maneira que poderia acontecer a um primitivo.
Também no campo da arte, na pintura, temos testemunhos — já se viu a propósito de
Fússli — do tema de Lilith na qualidade de tentação. Pensemos nas várias obras que ilustram
as tentações de Santo António de Pádua. O tema, por exemplo, foi pintado em 1583 por
Cigoli, e nele o Santo, com a bela cabeça encanecida absorta e com uma expressão serena no
vulto, está lendo quiçá as orações, circundado por cinco figuras: três mulheres belíssimas das
quais uma, à sua esquerda, nua, lhe oferece uma bebida, talvez vinho ou um afrodisíaco; no
outro lado uma mulher murmura qualquer coisa de sedutor; uma outra ainda, embaixo,
emerge sorridente. Nos lados extremos um gato com grandes olhos e um diabo faunesco
indicam as tentações espirituais. Eros e inferno então se unem.
No Gabinetto delle Stampe, em Roma, existe uma obra de M. Scongauer que lembra
certas iconografias de Bosch. O artista desenhou um Santo António dramaticamente
equilibrado e arrastado no ar por uma verdadeira coroa de assustadores diabos-monstros que o
puxam por todo lado, batem nele, o seviciam e parece que lhe gritam coisas violentas.
Também no tema do auto-erotismo psíquico, de poluções notur-nas — qUe para os
religiosos é um problema relacionado ao pecado —, há sempre uma relação entre a castidade,
o impulso sexual que se descarrega durante o sono mediante sonhos ou íncubos, e as figuras
femininas que aparecem sempre com aspectos sedutores ou terrificantes. Recordemos o caso
citado por Havelock Ellis:
Citarei agora a experiência de um anónimo, um homem de trinta anos, vigoroso e
casto. Em seus sonhos apareciam seguidamente pernas e flancos, raramente, ao contrário,
partes sexuais e, em tal caso, se tratava, na maioria das vezes, de órgãos masculinos.
Existiram somente dois casos de coito. Os protagonistas eram normalmente mulheres e moças
que, na maioria das vezes, eram os agressores. Às vezes se tratava de mulheres suas
conhecidas. Por outro lado, às vezes também lhe eram de todo desconhecidas.
O orgasmo tem lugar no momento mais erótico e mais sugestivo do sonho, nascendo
constantemente de um episódio
181 bosque, ela também opalescente, vaga, e ao meu redor avançam mulheres e
homens nus. As mulheres têm seios que resplendem como que iluminados do interior.
Alguma coisa porém, de viscoso, pende de seus púbis. Estranho, parece que têm pênis. Em
um lapso alço os olhos e, numa árvore, de lado para a Lua, vejo sentada uma jovem mulher,
estranha, antiga, sem possíveis definições, parece de mármore ou pó. É bonita ou feia? Não
sei, mas sinto que me incute grande medo. Penso nas divindades maternas destrutivas e então
a mulher ri, mas é quase um poderoso bafejo de tigre. Recuo, mas os pelados me detêm, não
com força, mas com uma severa participação para um ritual que ignoro. A mulher que ora
vejo como uma Circe desce da árvore; ainda está longe, eu recuo, queria subtrair-me de seu
influxo, mas antes que eu possa fazer um gesto — a cena assume um ritmo rapidíssimo — me
pula em cima como uma fúria: sua boca ardente está em meu rosto e a mão me aperta o sexo.
Grito, mas me vejo correndo para cima, em direção a uma escadaria molhada e, assim que
subo, abre-se em frente a mim uma porta negra enorme, sempre maior.
Narramos um outro sonho extraído de uma casística psiquiátrica, pertencente a um
sujeito que atravessa uma -fase paranóica:
Existe uma praça completamente redonda. É a Lua e eu caminho sobre ela. É a Lua
tapete, muito bonita. Faz-me cócegas sob os pés. Alguém me amarra a um pau e eu começo a
chorar. Há uma mulher vestida de vermelho que se põe à minha frente, me desnuda e, com
uma faca, sinto que quer me extrair o coração e o pênís. Enquanto está fazendo isso, eu canto
um hino religioso, Veni creator Spiritus. A mulher pendura meu coração e meus órgãos
genitais em seu pescoço. Agora dança, dança. Eu choro desesperadamente.
Ainda mais surpreendente é este sonho que nos foi contado por um homem em sessão
analítica:
Encontro-me sentado em uma poltrona diante de uma mulher madura que não vejo,
mas sinto claramente. Talvez se trate de S., também ela sentada numa poltrona diante de mim.
É uma mulher que tem um enorme poder psíquico sobre mim, um verdadeiro mana, obscuro e
demolidor. Eu escuto e obedeço
183
completamente dominado pela atmosfera um pouco tenebrosa que há no cómodo, que
é o quarto-estúdio de S. Sua misteriosa, persuasiva voz me ordena ver e ouvir de uma certa
maneira. Eu, então, produzo figuras femininas — as desenho, ou melhor, as penso e as projeto
em personificações. A mulher me ordena, com insistência psíquica, vê-las mais e mais! Ela
move figuras femininas que estão fazendo coisas diferentes mas não as percebo. Escuto a voz
da mulher sentada, que dá as ordens; essas ordens são mágicas, de bruxa, de Mulher Negra.
Quer me fazer experimentar a Mulher Voluptuosa sem minha vontade. Depois, de repente,
como se tivesse sido inconscientemente evocada, irrompe e avança em minha direção, rápida,
uma violenta imagem de mulher: vejo todo o rosto e meio busto. É escura, nem bela, nem
feia, tem um olhar alucinado, ela é estropiada, bizarra, louca. É uma verdadeira Lâmia ou
Incubo. Seu olhar me fixa com irredutível atitude de provocação escar-necedora e destrutiva,
até me pôr em pânico.
A irrupção desta imagem se realiza temporalmente em um instante. Meu despertar é
penosíssimo.
A presença da figura de Lilith aqui é indiscutível pois este homem vive uma delicada e
difícil relação com sua anima parcial reprimida, compreendida como perigosa e cujo
malogrado confronto vai em detrimento da integração viril.
No sonho seguinte, citado por E. Fromm, seria interessante salientar analiticamente a
ausência da experiência do lado Lilith-Lua Negra no sujeito, que foi reduzido a súcubo pelo
casal genitorial e por um modelo feminino convencional que o devora, plasmando-o a seu
prazer, petrificado em uma existência cinza e conformista. Uma espécie de Eva supinamente
aceita.
Enfim, o haver esmagado a própria anima criativa provoca a reatividade destrutiva à
qual tenta subtrair-se regressivamente. Somente a tomada de consciência final de que o
genitorial não ajuda mais o salva e o fará procurar a figura alternativa àquela personificada
pela escultora:
Assisto a uma experiência. Um homem foi transformado em pedra. Depois uma
escultora extraiu da pedra uma figura. Repentinamente a estátua se anima e se dirige
ameaçadoramente em direção à escultora. Com horror vejo que mata a escultora. Volta-se
então contra mim, e eu penso que, se consigo conduzi-la
184
para a sala onde estão meus pais, estou salvo. Lutando com ela, consigo levá-la para a
sala. Lá estão meus pais com alguns amigos seus. Mas eles quase não me olham, enquanto eu
estou lutando pela vida. Penso: bem, há tempo já deveria saber que eles não se preocupam
comigo. Sorrio triunfante.18
Uma jovem mulher em análise nos deu, em consulta, esta sua fantasia escrita que
revela uma temática muito sugestiva. Citamos a parte mais pertinente ao assunto:
Meu amor me havia feito virar bruxa
quando me leva de noite à cidade
à procura de vítimas, de mãos dadas
a rir, escarnecedores.
Bruxa e demónio sou ambas fracamente
porque temo a luz:
quem nos ensinou tanto medo?
Meu amor não escreveu nada de bom
no grande Sol de Apoio
permanecendo no país da Lógica,
porque perdeu a grande luta entre amor e vontade
onde o primeiro é sacrifício e a segunda Satanás.
Quanta areia, amor, quanta areia.
De ambos nasceu um filho desconhecido
maltratado, sem pátria, claudicante
que chora porque se sente mal.
Meu amor chama de demónio o instinto de viver
no círculo negro que se torna desejo de morte
porque não o deixam viver
no triste país da Lógica.
Aqui há uma feminilidade que pede para se exprimir fora da dimensão estritamente
lógico-racional e protegida do homem, ele, recusando este plano, faz emergir a bruxa e o
azedume depressivo não pode senão gerar "filhos" tristes. É singular aqui a presença de
simbologias bíblicas concernentes a Lilith.
Quando o confronto com o aspecto feminino relegado à sombra pelo seu contrário tem
sucesso, e o homem se dispõe a integrar
18. Fromm, Erich, II linguaggio dimenticato, Garzanti, Milano, 1962, trad. bras., A
linguagem esquecida, RJ, Zahar, 1* ed., 1960.
185
harmoniosamente também seus instintos, a simbologia de Lilith se apresenta com
interessantes metamorfoses:
Encontro-me só em uma zona solitária, numa colina coberta em parte com um bosque
e em parte com um prado. Há um belíssimo sol matutino. Movo-me com um grande
sentimento de paz interna, penso em coisas agradáveis, na verdade queria escrever uma
poesia. Enquanto caminho, estou me enfiando, com surpresa, dentro do bosque que se torna
sempre mais denso. Agora, verdadeiramente, existe penumbra, tenho arrepios como se tivesse
sensação de frio. Atravessa-me o desejo de me masturbar, excitado por me encontrar só
naquela dimensão natural, misteriosa, que me enreda. Estou para realizar meu desejo mas
naquele momento ouço me chamarem: diante de mim há uma moça que me sorri sacudindo a
cabeça. Enrubeço temendo que me haja visto. Mas não, ela está alheia. Aproxima-se de mim e
eu instintivamente recuo. Agora ela entra em uma espécie de cova no chão que tem palha,
relva e uma coberta vermelha. Olho melhor a mulher e com susto vejo que tem o rosto
bexiguento, o seio e as costas são cobertos de cicatrizes e pequenas úlceras. Lanço um grito
mas ela me agarra o braço puxando-me para baixo. É uma luta extenuante: quero me libertar
mas tudo é inútil. Caio sobre ela dentro da cova. Ri, agora está completamente nua. Voltando
os olhos para o alto vejo algumas figuras femininas — moças que conheço — que nos
observam caladas, sem expressão. Depois de um dramático momento de hesitação sinto
necessidade de proteger esta terrível moça que me retém. Abraço-a vencendo minha
resistência e lembro haver temido — enquanto a beijava — que estivesse infeccionada. Ela
responde com grande entusiasmo ao meu beijo e fazemos amor. É noite, estamos ainda dentro
da cova abraçados. Não vejo os traços da moça, mas sinto que está acontecendo algo de
bonito, quase inefável. Novamente me deixo abraçar e enquanto o sono está para me vencer,
ela me murmura algumas palavras que me dão grande felicidade. Agora muda a cena: um
amigo me vem ao encontro no prado e me diz que está muito contente de ver que finalmente
achei minha verdadeira companheira. Volto-me surpreso e à minha esquerda está a mesma
moça de antes, mas agora é extraordinariamente jovem e bonita, quase perfeita!
186
A FABULA E O CONTO POPULAR
Em muitas fábulas clássicas encontramos expressa, em forma primordial, a temática
arquetípica que age constantemente na dialé-tica da oposição: o bem de um lado, o mal de
outro, antagonistas de uma irredutível luta.
No fruir da mensagem da fábula, é frequente a identificação ao bem, enquanto a parte
malvada é irremediavelmente confinada à sombra. É sabido que desse modo são silenciadas
as angústias mais variadas, mediante a incondicionada participação no aspecto positivo. Esse
mecanismo defensivo, que esteve na base de toda uma pedagogia, é bem conhecido e foi
amplamente discutido. Mas, se escutarmos as fábulas como linguagem metafórica da anima,
então é possível retraçar a imagem originária e parcial que estrutura o mito de Lilith.
Na fábula, mais ainda que no mito, encontramos o simbólico-infantil entendido como
infância do homem, estratificado na psique arcaica, e é possível fazer agir a imaginação nos
confrontos com a parte negligenciada que mantém a cisão.
E necessário, entretanto, uma pesquisa semântica nesta direção, que torne possível
refletir sobre o significado dos símbolos-signos recorrentes de modo fixo nos textos e que
aponte novas indicações.
Tomemos então a história típica: temos a madrasta como imago da mãe negativa
substituta da verdadeira mãe. Uma, ou mais, filhas da madrasta que invariavelmente são
perversas, ciumentas, tolas, tagarelas e sádicas, muitas vezes aparentadas às bruxas. O
correspondente demoníaco masculino desta gama é muitas vezes o Diabo, o Orço, o
Salteador, o Lobo ou o Rei malvado, que está associado às mulheres más para perseguir as
impecáveis boas enteadas e gatas borralheiras, as princesas ingénuas ou infelizes. Esta é a
metáfora
187
obsessiva que constela todo o lado excluído, dialeticamente sucum-bente, confinado
na psicopatologia. No pólo oposto estão as boas mães, as Rainhas sábias, os Príncipes audazes
e enamorados, os bons animais, gnomos e assim por diante. Nesta relação, a polaridade está
sempre cindida, mas é dialética. O lado negro é, portanto, o aspecto Lilith sempre reprimido
no inconsciente; raramente é recuperado e reconhecido. O mal permanece o mal e o bem,
identificado a si mesmo, permanece sempre o bem, que consente em "viver cem anos feliz e
contente". A mentira endopsíquica é evidente no ato de remoção da parte que sucumbe: a
lógica está toda do lado branco, enquanto o fazer prelógico está todo na magia do lado negro.
Há uma excelente fábula dos irmãos Grimm que nos mostra o tema em toda a sua
evidência, exatamente como simbologia da contraposição: A esposa branca e a esposa negra.
Daremos um resumo livre:
Uma viúva vivia com uma filha negra e uma enteada às margens do bosque. As brigas
eram frequentes entre as duas jovens e a pobre enteada era muito dócil. Um dia, passa um
viajante e pergunta o caminho para chegar ao povoado. A viúva e a negra respondem mal,
enquanto a boa enteada indica, com cortesia, o caminho ao homem. Ele, tocado por tanta
gentileza, pede à jovem que formule qualquer desejo.
— Gostaria de ser bela.
— Serás — responde o homem.
— Gostaria de ter uma algibeira cheia de dinheiro.
— Terás.
— Gostaria de viver de modo a merecer o Paraíso.
— Recorda sempre este teu último desejo e te comporta como ele exige e terás o
Paraíso.
E assim se despediram. A jovem tornou a sofrer os vexames das duas mulheres. Mas
ela tinha um irmão pintor que havia feito seu retraio e o guardava em seu quarto, no palácio
do Rei, onde tinha o cargo de cocheiro. Agradando-se da bela imagem, o Rei pediu ao pintor
que conduzisse a irmã ao palácio para esposá-la e fazê-la Rainha, se o merecesse. Assim, ele
correu a buscá-la, mas na carroça subiram também a madrasta e a negra ciumenta. Durante a
viagem, com hábil sortilégio — pois era também bruxa —, a velha obscureteu a visão do
pintor e a mente da enteada, para induzi-la a ceder as vestimentas e os ornamentos à filha
negra. Feita a troca, a infeliz jovem, ao
188
transitar sobre uma ponte, foi atirada para fora e, caindo no
rio, se transformou num pato branco.
Mas no palácio real, o Rei, vendo a negra esposa, sentiu aversão
e ordenou que as duas mulheres fossem reconduzidas para casa.
Aconteceu que a carroça — exatamente na ponte — virou e as
duas mulheres acabaram afogadas no rio.
Enquanto isso, o pato branco ia todas as tardes ao palácio real
para perguntar sobre as mulheres malvadas e o que ocorrera
com a esposa negra.
— Foram mandadas para casa — foi-lhe respondido.
__ Deus o perdoe, Deus o perdoe! — comentou o patinho.
O Rei vem a saber dessa curiosa visita, segue um servo, uma tarde, espera o pato e
atravessa-o com uma espada. Mas, ao toque da lâmina, se rompe o encantamento e a jovem
voltou à vida em toda sua beleza. — Eis minha esposa branca! — exclamou feliz o Rei.
Assim a fez alimentar, secar e vestir como uma rainha. Depois, contou-lhe todos os reveses
das duas infelizes e do pintor, que havia encarcerado.
A jovem pediu graça para todos. Assim, foi restituída a mesquinha vida à velha e à
negra e o irmão foi libertado. O Rei e a Rainha viveram desde então uma longa e feliz
existência.
O aspecto negro da filha negra se liga diretamente à Mãe negativa, e é totalmente
rejeitado pelo Rei, que conota o masculino. É interessante refletir sobre a função do
encantamento e a troca de papéis, aos quais a negra recorre para poder aproximar-se da figura
do Rei orientado, já, a priori, na direção da beleza da esposa branca. Interessante é também o
momento — psicológico — no qual se realiza a ausência das duas esposas: naquele momento
o homem está só e num certo sentido a anima é tomada por um encantamento . . . Somente o
retorno da esposa branca concede, no conto, uma parcial reintegração dos dois aspectos. A
ressurreição das duas mulheres, todavia, reforça a separação dos pólos e a esposa negra
permanece sem futuro, fixada no perene papel de excluída.
Outra história dos irmãos Grimm, A Lua, parece conter, na sua delicada estrutura,
muitos símbolos que ecoam os temas da lua no seu ciclo mensal, a lua infernal, a angústia
com o desaparecimento do astro do céu noturno e a necessidade de gozar a luz da lua. Nesta
fábula está bem clara a ideia da boa lua branca, contraposta à lua que, arrastada ao inferno por
homens egoístas, se torna fonte de desordens, enquanto aclara a pseudovida dos mortos.
189
Subjacente também está o princípio vital de iluminação, que o indivíduo disputa à
consciência coletiva e a solução final da intangi-bilidade do arquétipo lunar. Evidente também
a mensagem específica: o valor lunar branco não pode ficar nas trevas infernais. O gesto de S.
Pedro repete, num certo sentido, aquele dos anjos bíblicos no Mar Vermelho: reconduzir
Lilith ao céu. É surpreendente essa analogia de simbolismos que estabelece uma recorrência
não casual de motivos que já vimos nas várias tradições. Eis a história:
Era uma vez um país onde à noite era sempre escuro e o céu se estendia sobre a terra
como um pano negro, porque nunca surgia a lua e nem mesmo uma estrela brilhava nas
trevas. Durante a Criação fora suficiente a luz noturna. Certa vez, quatro jovens deixaram o
país para andar pelo mundo e chegaram a um outro reino onde, à noite, quando o sol
desaparecia por detrás dos montes, havia sobre um carvalho uma bola luzente, que irradiava
para todos os lados uma luz suave. E, podia-se enxergar bem e discernir todas as coisas,
embora aquela luz não resplandecesse como o sol. Os caminhantes pararam e perguntaram a
um camponês, que passava ali com sua carroça, que luz era aquela. — É a lua! — respondeu
ele. — O nosso chefe de aldeia comprou-a por três escudos e pendurou-a no carvalho. Todos
os dias deve poli-la e derramar-lhe óleo, para que arda sempre clara. Para isto lhe damos um
escudo por semana.
Quando o camponês se foi, disse um dos quatro:
— Esta lâmpada nos poderia servir: em nosso país, temos um carvalho grande como
este, onde poderemos pendurá-la. Que beleza se de noite não precisássemos andar às
apalpadelas no escuro!
— Sabe o que mais? — disse o segundo. — Vamos pegar uma carroça e cavalos e
levaremos embora a lua. Aqui podem comprar uma outra. — Eu sou perito em subir em
árvores — disse o terceiro —, e a trarei para baixo. O quarto foi pegar o carro com os cavalos;
e o terceiro trepou na árvore, fez um buraco na lua, passou uma corda e a trouxe para baixo.
Quando a bola luzente estava na carroça, cobriram-na com um pano, para que ninguém desse
pelo furto. Levaram-na sem contratempos para seu país e a colocaram sobre um alto carvalho.
Velhos e jovens se alegraram quando a lâmpada nova começou a expandir
190
luz sobre todos os campos e a preencher cantos e cantinhos. Os anões saíram para fora
das fendas e os pequenos gnomos, com suas jaquetinhas vermelhas, dançaram a ciranda nos
prados.
Os quatro companheiros reabasteciam a lua de óleo, limpavam-na, e a cada semana
recebiam seu escudo. Mas ficaram velhos; e quando um deles ficou doente e sentiu avizinhar-
se a morte, ordenou que um quarto da lua fosse enterrado com ele como sua propriedade.
Quando morreu, o chefe da aldeia subiu na árvore e com uma tesoura grande cortou fora um
quarto da lua, que foi posto no ataúde. A luz da lua diminuiu, mas imper-ceptivelmente.
Quando morreu o segundo, foi-lhe dado um segundo quarto, e a luz diminuiu mais. Tornou-se
ainda mais fraca depois da morte do terceiro, pois também ele pediu sua parte; e quando foi
sepultado o quarto, retornou a antiga obscuridade. À noite, se as pessoas saíam sem lanternas,
chocavam-se umas com as outras.
Mas quando as quatro partes da lua se reuniram de novo no inferno, onde sempre
havia reinado a escuridão, os mortos ficaram inquietos e despertaram de seu sono.
Maravilharam-se de poder enxergar: a eles bastava a luz da lua, porque seus olhos haviam
enfraquecido tanto que não suportavam mais o esplendor do sol. Levantaram-se todos alegres
e retomaram os antigos hábitos. Alguns brincavam e dançavam, e fazendo barulho e gritando,
no fim levantavam os bastões e se espancavam. A balbúrdia foi aumentando até que chegou
ao céu.
São Pedro, o porteiro do paraíso, pensou que o inferno estava em revolta; reuniu as
tropas celestes, para que rechaçassem o Inimigo, se, com seus companheiros, tivessem tentado
assaltar a morada dos beatos. Mas como não chegavam nunca, montou a cavalo e, pela porta
do paraíso, desceu ao inferno. Lá, tranquilizou os mortos, fê-los deitar-se de novo em suas
tumbas, e levou embora a lua, que pendurou no céu.19
Na coletânea de contos chassídicos organizada por Martin Buber, há uma breve
história da escola do Rabi Marduqueo de Neshiz, onde encontramos, sem dúvida nenhuma, a
Lilith real e verdadeira da tradição hebraica. É um texto que se deve à sapiência rabínica dos
19. Grítnm, Fiabe, Einaudi, Torino, 1979.
191
T
"tzadiquim" *: nesta história parece evidente a particular relação que havia entre o
homem e o demónio feminino, centrada sobre o ódio e a angústia. Aqui, a astúcia é necessária
para debelar o poder do demónio. No conto, que citamos inteiramente, reencontramos a
estrutura do incubo e o cerimonial transmitido da tradição egípcia-grega, que diz respeito às
específicas astúcias apotropaicas:
Conta-se: Um homem que Lilith havia tornado possesso partiu para Neshiz, para
suplicar ao Rabi Mardoqueo que o libertasse. O Rabi sentiu no coração que ele estava a
caminho e espalhou por toda a cidade a ordem de fecharem a porta de casa à noite e de não
deixarem entrar ninguém. À noite, quando o homem chegou à cidade, não encontrou quem o
abrigasse e teve de estender-se sobre um monte de feno. De repente, apareceu Lilith e lhe
disse: — Venha já para mim. Ele lhe perguntou: — Por que pedes isto? Habitualmente és
sempre tu que vens a mim. Lilith disse: — No feno, onde jazes, há uma erva que me impede
de aproximar-me de ti.
— Qual é? — perguntou o homem. Vou jogá-la fora e então poderás vir a mim. Ele
lhe mostrou uma erva após outra até que ela exclamou: — É esta! Então ele prendeu a erva
sobre o peito e se libertou dela.20
1 LUA NEGRA EM F. NIETZSCHE, G. SAND, A. RIMBAUD
* Tzadiquim, plural de tzadik, que em hebraico signiíica "homem justo". Título dado a
uma pessoa notável por sua fé. Este conceito é de importância central no Chassidismo, tipo de
ortodoxia da Europa Oriental, seguida por judeus Askenazy. Os chassidim consideravam o
tzadik como o intermediário entre Deus e o homem. (NT) 20. Buber, Martin, I racconti dei
Chassidim, Milano, 1979.
192
No tema natal de Friedrich Nietzsche, a Lua Negra assume um valor excepcional e é
extremamente reveladora, pois diz respeito à relação com o Feminino, a Anima, a Mulher.
Esta configuração faz-nos perceber em Nietzsche uma tendência espiritual, religiosa,
com um acentuado respeito pelas formas legais, convencionais, mas também a disposição
para uma vida aventurosa no que diz respeito ao pensamento e ao mundo moral. A relação
evolutiva da Anima em Nietzsche é, todavia, assinalada pelo contraste entre aspiração ideal, a
sublimação e as demandas do cotidiano concreto. A Lua dominante é a W'eltanscbauung de
Nietzsche, que cria nele o caráter tão instável, mutável, diríamos feminil e intuitivo. O aspecto
insidioso que a Lua, símbolo do Feminino, determina com Vénus, símbolo da afetividade,
provoca um deslocamento da afetividade entre objeto real e imagem sublimada. Eis a
necessidade de realizar um Feminino insólito e não conformista, onde a sensibilidade se choca
nos conflitos interpretativos da vida.
Mas o drama do "feminino" em Nietzsche se evidencia e realiza na Lua Negra, que se
encontra na Casa VII no signo de Gémeos, em oposição à Lua e em relação negativa com
Vénus. Nietzsche tem os três vértices simbólicos da afetividade situados nas mais importantes
zonas do horóscopo: a subjetividade (ASC), o Outro, a relação com o parceiro (Casa VII) e a
esfera de evolução superior (Casa IX). Lua, Vénus e Lua Negra estão em contraste, violento e
funesto, entre si em tais zonas.
Lilith em Gémeos assume um significado particular: representa uma sensualidade que
se refina e quer se espiritualizar; Lilith aqui esta em contato com o valor mercurial de
Gémeos, o puer inocente pronto a intelectualizar desloca o demonismo erótico para o plano
193
mental através da transformação. Esta Lua Negra é — por si só — bastante
superficial, um pouco frívola, mas está constantemente dominada pelo raciocínio, pela
influência "geminai" na Casa VII. É de tal signo ambivalente e dúbio que Nietzsche cai
vítima; quer dizer, do Mercúrio mentiroso e ladrão e do puer hábil e embusteiro. Sendo assim,
Lilith se torna mais ambígua. Podemos vê-la, nesta fase, realizada por Nietzsche na relação
com Lou Salomé e Paul Rée, na época da "Santíssima Trindade", onde exprime uma
prepotente necessidade de viver o erotismo não no casal, mas no "Triângulo" (Casa VII com
Lilith!): um quebrar as regras, pois, e conceder-se aventuras indizíveis. A duplicidade de
Gémeos é reconhecível no "duplo" masculino Nietzsche-Rée; a feminina Lua Negra só
poderia ser a companheira "perversa", amante de experiências reprovadas pela opinião
pública da época: exatamente Lou Salomé, que acreditava no desregramento dionisíaco.
Dionísio-Nietzsche com Lou-Lilith. Mas a instintividade é freada por Mercúrio intelectual
e falta o desassossego, porque em Nietzsche prevalece a mente, o pensamento e a abstração.
Entre o gesto e o ideal, prevalece o sacrifício. Lilith aqui se torna a destruição da anima
manifesta; não só não se realiza a "trindade", mas abala cada possível encontro concreto e
corpóreo entre Nietzsche e Lou. Os Gémeos mercuriais arrastam esta Lilith para a sublimação
que implica um doloroso sacrifício, o amor se torna assim impossível de ser vivido na vontade
da carne, só é possível na abstração.
Por outro lado, a Lua Negra se encontra dramaticamente em oposição à Lua: é
realizado assim em Nietzsche o tema de fuga da mulher e de sublimação. Porém, há também
rancor e renúncia em relação ao Feminino, e se compreende porque Nietzsche escreve o
aforisma: "Quando vais ter com as mulheres leva o açoite". Sadismo inconsciente, hostilidade
para com a mulher que não se concede, necessidade de sublimar o impulso erótico. Lilith nele
é o reclamo obsessivo à mulher, mas lhe é impossível vivê-lo na dimensão normal,
costumeira; deve transformá-lo, deve vivê-lo na poesia do Assim falou Zaratustra e do Ecce
Homo.
A Lua Negra o faz encontrar, mais que o amor inocente, a prostituta que o contagia
ainda jovem, em Leipzig e Vénus, na Casa IX, tão mal colocada, será a significação "venérea"
patológica (sentido de Virgem, sexto signo zodiacal, o das enfermidades) porque
"contagiada", um maléfico influxo de Lilith. A alma de Nietzsche será pois bacante,
orgiástica, e ele a descreve em suas páginas, uma alma que se opõe ao equilíbrio apolíneo,
pois Lilith, no setor do
194
horóscopo da relação com o parceiro, açula as sugestões eróticas ao
máximo grau.
Quais são, de fato, depois de Lou Salomé, os amores ou afetos de Nietzsche? São a
irmã Elizabeth e as prostitutas, talvez mais estas, vividas obscuramente nos peregrinos
itinerários italianos, e não mais na Alemanha depois de Leipzig.
Lilith oposta à Lua concentra em cheio a relação mórbida de Elizabeth pelo grande
irmão. Um turbado sentimento, uma ameaçadora necessidade afetiva sadomasoquista liga a
irmã histérica ao irmão "faunesco". Na sua relação sempre houve um aspecto destrutivo. É
suficiente observar a grande Lua no Ascendente que recebe a pesada projeção de Lilith do
pólo oposto, para ter uma ideia completa de quão absoluto, trágico, indispensável, obsessivo e
inconscientemente "anormal" era a relação entre Nietzsche e a irmã, que o tiranizou com
chantagens eróticas (o ciúme de Lou ou outros interesses afetivos do irmão) mas que, também
ela, foi sempre irremediavelmente vítima. Este clamoroso aspecto do horóscopo é a revelação
de um verdadeiro incesto psíquico e de uma identificação quase total, onde Elizabeth,
tornando-se herdeira da obra e erigindo o Arquivo Nietzsche, "incorporou", num certo
sentido, o génio poético do irmão e se identificou com suas criações filosóficas, dando-se,
deste modo, a ele, num "amplexo" que durou toda a vida.
Para Nietzsche, portanto, o destino amoroso no real cotidiano passa através de relações
que não podem ser vividas nem realizadas, mas que todavia permeiam o seu hábito erótico e
excitam sua fantasia numa trágica ambivalência construtiva-destrutiva. Lou e a irmã eram
indispensáveis, mas percebidas também como fatalidade, assim como as prostitutas, como já
afirmamos.
Mas há ainda uma outra significação, a mais sugestiva e inquie-tante, que podemos
encontrar no complexo simbólico Lua-Lua Negra-Vênus negativa em Nietzsche. Os três
planetas estão em três signos de realização altamente criativa: Virgem, Gémeos e Sagitário: o
Eu — o Outro — a obra de arte (ou amor sublimado). Bem, nos três signos estão — repetimos
— os três valores femininos. Pensamos em Zaratustra, o grande "masculino" sapiente, o
Super-homem, o dionisíaco que deixa as mesquinhas planícies para dominar, do alto, a
cidade, a "vaca sarapintada". Zaratustra ama, sabemos e percebemos em cada página do
poema, ama intensamente, de modo desenfreado, com "alma poderosa", ama com uma
voluptuosidade ilimitada, além do bem e do mal, mas as criaturas por ele amadas não são
mulheres, não são deusas suaves ou ninfas, ou mesmo mulheres
195
angélicas e lânguidas com as quais se habituara o Romantismo. Lilith transforma, com
sua força de demónio, a alma de Zaratustra: dos traços comuns a Eva, eis que, nas páginas
nietzschenianas, surgem as verdadeiras companheiras de amor que parecem, nem mais nem
menos, paridas por Lilith, como muitas Lillim. Zaratustra ama as bestas: répteis, leões,
pássaros, ursos, águias, camelos. Seu áspero e solitário universo é povoado de animais. Ora,
Zaratustra fala e dialoga com eles e os animais são. .. seu parceiro. Tudo é expressão de um
modo primitivo, arcaico, originário; há um demoníaco, or-giástico dionisíaco que não conhece
limitações. Faz-nos pensar que os animais de Zaratustra são as partes constitutivas da alma do
Super-homem, símbolo de um novo Adão, de um Adão reencontrado. E os animais são a
expressão do animismo, do Eros em quadratura com a Lua Negra. De fato, na mitologia
sumério-acadiana, como vimos, Lilith é um corpo feminino não antropomórfico, reconhecível
na morfologia humana, embora constituído de aspectos animais.
A figura material do demónio (Lilith súcubo) exprime um caráter feroz, violento, de
potência superior (correspondente ao valor superior místico instintivo das criaturas de
Zaratustra), mas assumindo traços bestiais. Nas numerosas divindades femininas que
encontramos em nosso excursus — as Liliths, as Hécates, as Empu-sas, as várias Kores
negativas — nós reencontramos os animais criados por Nietzsche (isto é, por sua Anima-
Lilith sublimada no retorno ao arquétipo anímico-animal). Eles recordam precisamente a
hierofa-nia de Zaratustra onde sabedoria e potência se misturam a um dionisíaco instintual
animalesco. A terracota de Lilith, o baixo-relevo sumério já descrito (e reproduzido na capa),
parece conter um quê de bárbaro, de raivoso e arcaico: exatamente aquilo que se depreende
das páginas de Zaratustra, com seu cortejo de bestas, áreas solitárias desérticas, aura religiosa
e demoníaca. A dimensão teriomorfa tem analogia simbólica nas imagens de Nietzsche: ele
não tem discípulos humanos, mas animais. A sua Lilith na Casa VII cria esta extraordinária
regressão ad absurdum ao nível arquetípico! Em substância, Nietzsche dialoga com os
instintos, quase como se sua anima, a sua feminilidade, estivesse identificada com eles. E, esta
é a manifestação da Lua Negra, não a destrutiva, certamente, mas a exaltante. Podemos dizer
que em Nietzsche a Lua Negra em Gémeos opõe à mulher real, à alma encarnada em forma
suave, uma feminilidade negra: a irmã de um lado e as amadas bestas de outro.
Na obra de Nietzsche podemos encontrar ainda um outro valor de Lilith. Como vimos,
a Lua e Vénus negativa no horóscopo têm o
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sentido de erotismo profundo e recebem o aspecto maléfico de Lilith; e é exatamente
aqui que esta se exprime também no sentido bíblico mitológico pleno. Lilith é a revolta contra
Deus e contra Adão; ela tenta re-fundar uma nova moral sexual e uma nova ética da relação
entre criatura humana e Deus, entre mulher e homem. Ela exprime uma nova dimensão do
amor. Bem, podemos ver em Zaratustra-Nietzsche, e também no Anticristo, exatamente a
simbolização da grande rebelião da alma contra Deus. É Nietzsche que grita "Deus está
morto", e Zaratustra foge do consórcio civil e vai para o deserto com os animais; como Lilith,
que pronuncia o nome Jeová e foge para o Mar Vermelho com os seus demónios. É Nietzsche
que em seu Anticristo escreve as terríveis e famosas palavras:
Esta eterna acusação contra o cristianismo quero escrever em todas as paredes, donde-
quer que haja muros. . . Defino o cristianismo como a única grande maldição, a única grande e
mais íntima depravação, o único grande instinto da vingança, para o qual nenhum meio é
suficientemente venenoso, furtivo, subterrâneo, mesquinho — defino-o como a única mancha
imortal de infâmia da humanidade. Computámos o tempo a partir daquele dies nefastus com o
qual tem início esta fatalidade — do primeiro dia do Cristianismo! — e por que não, ao
contrário, do seu último dia?
É fácil, de acordo com nosso tema, observar nessa posição de Nietzsche a
reivindicação de uma a-centralidade ateísta, ver um equivalente à "maldição" de Lilith que em
sua recusa e em sua raiva quer computar um tempo novo da Anima e do Amor. Uma outra
significação da Lua Negra aparece na concepção de amor em Nietzsche; para ele há amor fati,
que se opõe à mesquinha dimensão afetiva dos filisteus e dos burgueses. Ele prefere ser um
sátiro a ser um santo (cf. Prólogo de Ecce Homo), pois é um discípulo de Dionísio. Também
Lilith, a sua Lua Negra, prefere ser um demónio a obedecer ao divino e sujeitar-se a Adão.
Por isso, vemos na mitologia de Lilith uma identificação reativa da Anima com o
Animus (Deus-Adão): em Zaratustra, igualmente, vemos uma identificação reativa negativa
ao Deus-Cristo através do Anticristo e de Dionísio.
A tragédia de Lilith é não ser compreendida em sua totalidade; em sua necessidade de
paridade nos confrontos com a imago pater é com o Animus. A tragédia de Nietzsche-Super-
homem é não ser
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compreendido em sua polaridade apolíneo-dionisíaca, em sua necessidade de grandeza
nos confrontos com Deus-Cristo e a Anima-Sombra. Assim como Lilith reage protestando e
fazendo-se demónio contra o Pai e o Esposo, Nietzsche reage rebelando-se e fazendo-se
Anticristo contra Cristo e Deus e culpando a Anima alemã odiada, com a sua filosofia "feita a
martelo".
Podemos aventurar uma hipótese acerca da loucura de Nietzsche, considerando-a
como uma identificação com Lilith, isto é, com a anima-sombia vivida em conflito com o
Superego invisível, onde, enfim, o Eu cedeu sob a pressão do grande despertar de Dionísio-
Kundalini-Lilith?
Seu verdadeiro nome era Armandine Lucie-Aurore Dupin, nascida em Paris em 1804.
Na arte, esta mulher peculiaríssima e brilhante, mudou o referente anagráfico para George
Sand: signo de uma vontade subjetiva, tenaz e da necessidade de autogerir tudo aquilo que
nela era sua vida interna e externa.
Fala-se que George Sand é recordada hoje muito mais por sua estranheza
comportamental e por seus amores, do que por suas obras e sua atuação intelectual; esta é uma
esquematização fácil que deve ser logo desmentida, porque em George Sand pensamento
criativo, escrita, erotismo, visão social e vida cotidiana se fundiam numa discreta harmonia,
dando corpo a uma personalidade excêntrica, mas portadora de um Karma individual de alto
valor e de um novo e pioneiro modo de ser mulher.
Nasce sob o signo de Câncer com ascendente em Aquário; um horóscopo que denota
uma tipologia introvertida receptiva à função sentimento, intuitiva e fantástica. A Lua Negra
de Sand se impõe de imediato à atenção, pela excepcional relevância na dinâmica psi-
cossexual: está situada no signo de Escorpião na Casa VIII, em forte conjunção com Netuno,
que aqui aparece como símbolo vibrante do ascendente e, por isso, da vida intrapsíquica. Tal
conjunção cria, ao mesmo tempo, uma nítida quadratura com Vénus, que se encontra no signo
de Leão, na Casa VI, e uma oposição a Marte, colocado em Touro na Casa II. Eis aqui uma
possível definição: a feminilidade profunda de George Sand se encontra, por destino,
precocemente investida do tema da Sombra. Se Marte diz respeito ao masculino fálico, ao
"viril" e à libido mais inconsciente e primária aqui se encontra em oposição decisiva ao
significado lunar de Lilith-Lua
Negra; da Casa das primeiras fases organizadoras de eros-sexo (a Casa II do
horóscopo) à Casa da realização autónoma de eros: os dois pólos masculino e feminino se
antagonizam, com um incessante retorno de hostilidade sobre Vénus, em contraste com a Lua
Negra como expressão de dificuldade, desarmonia e anticonformismo. Se, além disso,
considerarmos Plutão, planeta de Escorpião, que no horóscopo domina a Casa I, e é capaz
de impregnar com seu eros obscuro a Weltanschauung de George Sand, eis que temos o
quadro completo e impressionante da delicada e difícil feminilidade desta mulher em quem, é
certo, os valores de Animus eram maciços, realmente difundidos (o Sol se encontra em
Câncer na Casa V, a dos valores afetivos!) e carregados de energias afetivas e vitais
assinalados por valores indubitavelmente masculinos. Ora, esta vistosa dimensão do Animus
em Sand torna mais pesado o lado lunar, inquinando-o, e por isso não mais ativando a Lua (a
qual se situa em Aries, o mais masculino dos signos) mas sim a Lua Negra como feminino
reativo rebelde, trazendo-o à luz em mal-sucedidas tentativas de integração. Resulta uma
feminilidade — no sexo e nos afetos — agressiva, muito materna, com frequência tirânica,
substancialmente frígida, mas densa de cupidez, tensões ardentes, busca do insólito; tudo
aquilo que poderia sair da norma da lunaridade linear para que Lilith-Lua Negra pudesse
opor-se, reespelhando a disputa mitológica, sob influência de Marte-Sol (enquanto a Lua
Negra está oposta aqui a Marte). Plutão é o "esposo infernal" que em Peixes cria uma
explosão místico-delirante que se encaixa psicologicamente à dimensão Netuno-Lua Negra,
para propor a sublimação. E Sand, definitivamente, procurou — no ideal romântico — a
sublimação sexual, projetando o ideal "desencarnado" sobre homens idealizados e geniais,
com os quais viveu a inclinação criativa de tanta libido cere-bralizada.
Sand, com efeito — como escreveu sua filha Solange —, possuía uma "imaginação"
flamejante e um temperamento frio", e nela "o ardor da alma paralisava a potência dos
sentidos antes de tê-la despertado". Era capaz de "furores cerebrais, não obstante sentisse o
sangue gélido".
Lilith nela é, sem dúvida, a variável constante de uma reação: como mulher que se
sente rejeitada na singularidade de seu destino, apresenta a Lilith da transgressão como seu
lado reprimido. George Sand será, portanto, "mãe excelente e adorada pelos filhos", mas se
mostra e vive "como um homem", como disse dela Balzac.
Da época de Luiz Felipe até o segundo Império, a figura de
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Sand — já usando o nome masculino e calças compridas — era verdadeiramente uma
figura cruel e pouco suportada. Mas nela a mulher defendia a oposição ao poder exagerado do
masculino, simplesmente assumindo-o numa identificação projetiva. Não havia, para ela,
outra possibilidade psíquica, quando se observam no horóscopo as configurações que já
ilustramos, mas este animus ela o vivia, a nível intrapsíquico, com determinação. Estava
também sempre em busca do "natural", do simplesmente humano. Nutria desprezo por quem
degradava a sexualidade a uma "miserável necessidade", porque via a relação sexual como o
verdadeiro milagre, a única possibilidade de se sentir divinamente aquilo que os animais, as
plantas e os metais sentiam como material e experimentava uma "atração elétrica que sempre
se transformava em atração consciente". Dizia, "Deste modo de separar o espírito da carne
derivou a necessidade de conventos e prostíbulos". Parece-nos que esta afirmação de Sand é a
mais clara demonstração do significado de Lilith-Lua Negra em seu tema astral. Como
tentativa de superação da dinâmica e composição do conflito, ela "agia" a feminilidade no
"masculino" mais manifesto, assumindo-o em ritual quase de transvestimento.
A Lua Negra colocada em Escorpião é, para Sand, a expressão de um eros demoníaco
e parcialmente destrutivo das formas manifestas costumeiras e hipócritas, para aderir a uma
proposta "subversiva" e provocativa.
Seus amores foram muitos, mas todos ilusórios, porque o mecanismo projetivo não
concedia uma resolução no real, mas pedia, como uma possível solução do conflito Marte-Lua
Negra, a transformação da dimensão sexual afetiva não vivida em modalidades criativas
intelectuais. Sua vida de mulher foi, sem dúvida, complexa: fracassará o casamento,
fracassarão — jamais contentando-a — os amores com Mérimée, De Musset, Pagallo, e
fracassarão as grandes amizades-sublimações com os Flaubert, e os Mazzini, Dume, Gauter e
os Goncourt.
Nunca renunciou à luta ideal; escreveu muito e foi um espírito dominante na vida
cultural parisiense. Soube amar o grande Chopin — seu mais célebre amor —, não obstante a
tortuosidade da mortificação romântica; em outras situações a rebelião de Lilith à violência
masculina se faz presente, como necessidade de esquivar-se de ser um objeto súcubo do
homem. Sand impunha o mesmo código sexual para o homem e a mulher, opondo-se à
filistéia dupla moral do eterno Adão. Era, definitivamente, uma verdadeira diaba incontinenti
e provocante, sempre a ponto de transpor os limites do lícito; a sua
Vénus era aventureira e indigesta para os bem-pensantes; era sedutora e briguenta.
Podemos concluir que neste horóscopo a Lua Negra é a expressão típica do conflito
mitológico vivido no corpo e na alma por parte do "feminino"; um exemplo típico de
identificação com o animus que se exprime em atitude masculina hostil. Todavia, em seu
comportamento "psicopatológico", podemos ver uma tentativa de integração numa totalidade,
para realizar propriamente uma bissexuali-dade intrapsíquica.
Também a Lua Negra de Arthur Rimbaud é muito significativa em seu horóscopo,
pois informa sobre a estrutura da personalidade e permeia toda sua vida criativa. Nascido sob
o signo de Balança com ascendente nos últimos graus de Aries, no qual está Plutão, o poeta
de Iluminações e Uma estação no inferno recebe cedo uma hereditariedade bem pesada: não
conhece o pai, que abandona a família. A mãe se revela uma mulher muito inquieta e pouco
afetiva, a ponto de se tornar, mais tarde, intolerante e despótica nos confrontos com o pequeno
Arthur que, entretanto, a procurará, amando-a com a fúria de uma não compreendida relação
edipiana.
Podemos de imediato observar no tema natal que Rimbaud, o "grande adolescente"
brilhante e criativo, permaneceu preso em sua dimensão de puer aeternus e em sua absoluta
infância através da simbólica da Lua Negra. Esta está colocada na Casa III que assinala as
primeiras relações intelectíveis com o ambiente e os estados evolutivos; está em trígono com
o Sol, do qual, indiretamente, recebe a influência da oposição de Plutão. Lilith age no signo
de Gémeos que possui caráter mercurial e se apresenta "duplo" em suas expressões dinâmicas.
Portanto, um destino já marcado na infância, um destino de homem errante, em perpétuo
movimento (sentido de Gémeos com Lilith, Urano na Casa I, oposto a Mercúrio na Casa VII,
Escorpião; Júpiter na Casa X, próximo ao Médium Coeli, em Capricórnio). Aos dezesseis
anos, Rimbaud foge de casa pela primeira vez e se lança à descoberta de Paris, na tentativa de
evadir-se da rude Charleville, cidadezinha de província. Mas logo se mete em enrascadas com
a lei e isto revela a motivação mais profunda desta fuga: o protesto afetivo ambivalente em
relação à mãe que parece ignorá-lo, a necessidade de emergir e afirmar a própria crise de
originalidade e realizar a aproximação ao "viril". Mas a tentativa é vã para o puer
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é a vontade criativa do poeta que prometeicamente quer opor-se à violência da ordem
constituída — isto sim, fonte da patologia — para restituir ao homem a sua natural plenitude
criativa.
Na vida parisiense, Rimbaud experimenta todos os valores de Lilith; ela o imerge no
mar de visões místicas, inconscientes, arrasta-o para fantásticos paraísos onde sua mente pode
ousar todos os jogos proibidos, enquanto a sexualidade fragmenta-se em uma irradiação
regressiva. Tudo é sexualizado pois diz respeito a cada operação intelectual ou afetiva.
Todavia, repetimos, em Rimbaud os instintos são fortemente inibidos porque ele os coloca
claramente na sombra, vivendo tudo como reação e revolução pessoal.
O poeta testemunha um particularíssimo exemplo de identificação criativa com aquela
Sombra pessoal e arquetípica que ele continuamente alimentou e provocou, solicitando-a em
si a cada nível. Toda a lírica de Arthur Rimbaud nos sugere esta interpretação da Lua Negra.
Aos vinte e um anos, Rimbaud, já corrompido, seriamente possuído pelo complexo de
"nigredo" demoníaco, indissoluvelmente ligado à sua Lua Negra, começa a escrever a Saison
en enfer e tem a primeira ruidosa ruptura com Verlaine, que retribui dando-lhe um tiro de
pistola. Ainda poesia, sexo e cárcere; o poeta errante vive todo o tema dos Gêmeos-Saturno
nestes seus tormentosos deslocamentos de um país a outro, impelido pela inexaurível busca de
si, preso a sua vidência, que o fará pressagiar os tormentos da humanidade futura gritando:
"Eis chegados os tempos dos assassinos!"
A sua biografia escande as estâncias de um verdadeiro, de um grande malade errante.
Depois dos trinta anos, Rimbaud "prepara" silenciosamente a própria morte; exatamente na
época em que se ativa a simbólica idade do Sol, que no tema se restringe ao trígono com a
Lua Negra. Finalmente ele proclama:
Basta, chorei demais! As alvoradas são dilacerantes.
Cada lua me é atroz e cada sol amargo:
O amor acre me enche de estupefante torpor.
E parte para a África, não mais um poeta, reduzido ao silêncio interior. Para a África,
lá embaixo, exatamente nas praias do Mar Vermelho. Simbolismo não casual, sem dúvida;
sincronismo mitolo-gêmico, ou talvez um obscuro, inquietante encontro com sua Lilith?
Rimbaud traficou com armas e talvez tenha feito tráfico de escravos. Sem nenhum escrúpulo.
Conheceu o ódio, a miséria, e o
horror das latitudes desérticas evocadas anos antes em sua poesia. Viveu entre ladrões,
mercadores e ras *. Depois é atingido pelo câncer e lhe amputam uma perna. Somente então
retorna à mãe e à irmã.
Morre assim o adolescente vidente; Lilith enfim o deixa livre na eternidade.
Lilith derrotou nele o homem, mas deixou o poeta.
Chefe ou governador de província na Abissínia. (NT)
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Glossário dos termos mais usados no texto
ANIMA — Termo da psicologia junguiana que exprime um determinado e
circunscrito complexo de funções. No inconsciente de cada homem existe um elemento
feminino que nos sonhos é personificado por figuras ou imagens femininas. Anima é uma
palavra latina que significa também "sopro vital" que tem função de "animar". As imagens da
anima variam e podem ser projetadas pelo homem sobre uma ou mais mulheres reais. Fontes
da anima: além da influência materna, é a imagem herdada, como ideia de mulher própria de
uma raça. Manifestação típica desta figura é a animosidade que produz estados de ânimo
ilógicos. A anima faz parte do par supremo de opostos. A realização da anima leva à
harmonia individual.
ANIMUS — Termo da psicologia junguiana que exprime um processo semelhante
àquele descrito para a anima. No inconsciente de cada mulher existe um elemento masculino
que é personificado por figuras ou imagens masculinas. Tem função e valor correspondente à
anima na dinâmica da relação dos opostos. O processo de individuação para a mulher passa
pelo reconhecimento e a realização do próprio animus.
ARQUÉTIPO — Forma a priori do inconsciente coletivo que estrutura modos típicos
de compreensão e de comportamento. Equivale ao conceito etológico de "modelo de
comportamento".
COAÇÃO — A REPETIÇÃO — É um processo de origem inconsciente pelo qual o
sujeito se coloca ativamente em situações penosas, repetindo velhas experiências, sem ter a
consciência da motivação.
COLETIVO — Conteúdos psíquicos como conceitos, opiniões e sentimentos e
também as funções psicológicas que não são peculiares a um só indivíduo mas
contemporaneamente de muitos indivíduos, expressos em sociedade, povo, humanidade. O
seu termo oposto é "individual".
COMPLEXO — Reagrupamento de representações psíquicas conscientes e
inconscientes dotadas da mesma tonalidade afetiva.
CONIUNCTIO OPPOSITORUM — Imagem a priori conhecida na psicologia
profunda e derivada da alquimia. Indica o processo de integração de elementos opostos na
unidade. A união dos contrários é observável na evolução do homem e da natureza. Típica
imagem da coniunctio são os "esponsais de Sol e Lua", descritos por Jung.
DIFERENCIAÇÃO — Processo psicológico que indica o desenvolvimento de
diferenças entre as várias funções; separação de partes de um todo que pode ser o
indiferenciado. Na diferenciação se reduz a ambivalência e se distinguem as tendências
objetivas das funções singulares.
FANTASIA — Emanação da atividade criadora do espírito que evidencia uma
combinação de elementos psíquicos carregados de energia. A fantasia pode ser um fantasma,
isto é, um complexo de representações bem distinto sem correspondência na realidade
externa, ou é uma atividade imaginativa, expressão direta da atividade psíquica vital em forma
de imagens e símbolos.
FASE MATRIARCAL — Na obra de E. Neumann, faz parte da hipótese sobre quatro
fases de desenvolvimento da psicologia feminina. Aqui se reconhece a identificação da filha
com a mãe no primeiro estádio, enquanto falta a percepção das diferenças relacionais e vigora
a exclusão do pai como elemento masculino.
FASE PATRIARCAL — Segunda fase do desenvolvimento da psicologia feminina na
qual é levada a termo a diferenciação da mãe e ocorre o reconhecimento do masculino
mediante a aceitação-identificação do pai. A superação desta fase realiza a "mulher" na
própria totalidade psíquica.
IDENTIDADE — Fenómeno inconsciente que determina, como sinónimo, a
consciência de si como entidade distinguível de todas as outras; equivalente subjetivo do Eu.
IDENTIFICAÇÃO — Processo psicológico inconsciente no qual a pessoa funde ou
confunde a própria identidade em ou com qualquer outra pessoa, assumindo-lhe a identidade
parcial ou total, substituindo-a à própria. A identificação com o pai, por exemplo, significa a
adoção de modos, maneiras e conteúdos do pai como se o filho fosse igual a ele e não uma
distinta personalidade individual.
IMAGEM — Concepção proveniente da linguagem poética, como imagem fantástica
que se refere às vezes só indiretamente à percepção do objeto externo. Deve ser considerada
como uma produção da atividade fantástica e não como substituta da realidade concreta.
Imagem arcaica é a projeção por parte dos primitivos de objetos internos no espaço real e diz
respeito à mitologia.
IMAGEM DA ANIMA — Produzida pelo inconsciente, a anima é representada
mediante determinadas figuras femininas que possuem as qualidades correspondentes da
anima.
INCONSCIENTE — Conceito exclusivamente psicológico que cobre todos aqueles
conteúdos ou processos psíquicos que não são conscientes, isto é, referidos ao Eu. O
inconsciente pessoal compreende as aquisições da existência pessoal, coisas esquecidas,
pensadas e sentidas sob a consciência, enquanto o inconsciente coletivo assume experiências
que não provêm de aquisições pessoais e dizem respeito à hereditariedade, mesmo remota,
como as mitologias, etc.
INDIVIDUAÇÃO — Processo de formação e de caracterização do indivíduo singular
como desenvolvimento do indivíduo psicológico distinto da generalidade e da psicologia
coletiva; implica a diferenciação e a superação das normas coletivas mediante a função
transcendente.
INSTINTUAL — Que pertence ao instinto entendido como impulso para ação inata e
biologicamente determinada capaz de subtrair-se à consciente intenção voluntária. Alguns
processos psíquicos inerentes aos afetos lhe pertencem.
KUNDALINI — Imagem das disciplinas orientais que definem a energia vital como
uma serpente que está enrolada na base da coluna vertebral, no períneo, em estado de letargia.
Seu despertar indica o movimento de ascensão rumo ao Todo.
LÁPIS — Pedra angular; conceito referente à totalidade reunida e realizada. Na
Alquimia indica a Pieira Filosofale (Lápis Philoso-phorum), último plano de existência
espiritual e integração psíquica analógico ao processo de transformação dos metais na Opus
alchemicum e, portanto, superação dos estádios psicológicos parciais.
LIBIDO — Energia psíquica cujo valor psicológico é estabelecido com base em sua
força determinante.
MANDALA — Círculo mágico, diagrama dentro do qual é projetado um panteão
simbólico. Concerne um movimento simbólico no processo de individuação a nível
endopsíquico e representa a unidade psíquica.
NIGREDO — Estágio inicial do processo de transformação da matéria na Alquimia;
simboliza a "morte" como passagem de fase; estágio psicológico inferior e inicial no discurso
simbólico.
PROJEÇÂO — Mecanismo de defesa que permite atribuir a qualquer um, no próprio
ambiente, sentimentos para consigo mesmo que derivam de objetos externos incorporados. Na
projeção são "passados" para outras pessoas conteúdos penosos e incompatíveis ou valores
positivos reprimidos subjetivamente inacessíveis.
REMOÇÃO — Mecanismo de defesa. Consiste em uma manobra psicológica
inconsciente executada para cancelar da consciência conteúdos afetivos ou situacionais
retidos, desagradáveis, penosos ou insuportáveis por razões várias. O removido, como
produto da remoção, é o património de experiências não vividas e negadas, empurradas para
baixo da consciência e esquecidas.
SOMBRA — Definição junguiana do local psíquico onde se concentra a totalidade das
experiências que não são tornadas conscientes pelo Eu, e por ele reunidas. Pode-se considerar
o conjunto de valores e experiências que o sujeito percebe segundo esquemas de julgamentos
rígidos capazes de fazer sentir a Sombra como um obstáculo, ameaça ou personalidade parcial
irrealizável.
UROBOROS __ Símbolo amplamente usado por E. Neumann em
sua pesquisa psicológica, que exprime a auto-representação simbólica de um estado
primitivo significando a condição infantil, seja da humanidade, seja da criança. É um símbolo
fundado no Inconsciente Coletivo e presente na psique humana; age como fator transpessoal
presente como grau psíquico do ser. É representado figurativamente, como uma serpente que
morde a própria cauda, perfeita circularidade, energia fluente em círculo; encontro perene de
céu e terra, yin e yang, preto e branco, vida e morte, expressão dos opostos.

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