Martha Robles - MULHERES, MITOS E DEUSAS

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Mulheres, Mitos e Deusas

o feminino através dos tempos


Mulheres, Mitos e Deusas
o feminino através dos tempos

Martha Robles

Tradução

William Lagos

Débora Dutra Vieira

EDITORA
ALEPH
Copyright © 1996 Fondo de Cultura Econômica Título Original:
Mujeres, Mitos y Diosas

CRÉDITOS

CAPA: Thiago Ventura e Luiza Franco


sobre o quadro The women of Amphissa,
de Lawrence Alma-Tadema
(óleo sobre tela, 1887)
TEXTOS DE CAPA E ORELHAS: Layla Blummer e Débora Dutra Vieira
REVISÃO: Hebe Ester Lucas
PROJETO GRÁFICO: Neide Siqueira
EDITORAÇÃO E FOTOLITOS: Join Bureau

2006
Todos os direitos da edição em língua portuguesa adquiridos junto ao
Fondo de Cultura Econômica - Carretera Picacho-Ajusco 227, CP. 14200,
México, D.F. por:

Aleph Publicações e Assessoria Pedagógica Ltda.


R. Dr. Luiz Migliano, 1110 - cjs. 301/302
05711-001 - São Paulo - SP - Brasil
Telefone: (11)3743-3202
www.editoraaleph.com.br
[email protected]
Tiragem desta edição: 1,500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Robles, Martha
Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos /
Martha Robles ; tradução William Lagos, Débora Dutra Vieira. - São
Paulo : Aleph, 2006.

ISBN 85-7657-019-X

1. Feminilidade 2. Literatura mexicana 3. Mulheres - Aspectos


sociológicos 4. Mulheres - Histórias 5. Mulheres - Mitologia I. Título.

06-2487 CDD-305.42

Índice para catálogo sistemático:


1. Mulheres : História : Sociologia 305.42
Sumário

Nota à edição brasileira


Prólogo
Diotima e o amor

AS ORIGENS
Nix
Lilith
Eva
Ísis
Hera
Alcmena
Deméter
Coré
Afrodite
As Górgonas
Eris e as Erínias
As Moiras

DA TRAGÉDIA À HISTÓRIA
Circe
Medéia
Antígona
Cassandra
Safo
Olímpia
Estatira
Sisigambis
Cleópatra
Hipátia de Alexandria
O AMOR
Dalila
Sherazade
Isolda
Heloísa
Margarida

AS FADAS
Fadas e bruxas
Merlin e a Dama do Lago
A Dama de Shalott
Cinderela

RAINHAS
Catarina de Medici
Elizabeth I em sua agonia
Cristina da Suécia

CAMINHO DE DEUS
Malinche
Virgem Maria
Nossa Senhora das Mercês
Nossa Senhora de Guadalupe
Nossa Senhora dos Remédios
Santa Maria de Izamal
Nossa Senhora de São João
Nossa Senhora de Zapopan
Nossa Senhora da Saúde
Teresa de Jesus
Soror Juana lnés de la Cruz

NOSSO TEMPO
Virgínia Woolf
Djuna Barnes
Isadora Duncan
Maria Izquierdo
Simone de Beauvoir
Marguerite Yourcenar
Maria Zambrano
Nota à edição
brasileira

Martha Robles escreveu Mulheres, mitos e deusas em 1996, ocaso de um


século emblemático na luta pelos direitos da mulher. Mas esta não é
uma obra datada, sectária, tampouco panfletária. Feminina, sem
dúvida. Escrita por uma mulher, sobre mulheres e sua subjacência na
história; mas não se dirige somente a elas. Narra e discute a grande
aventura humana sob a óptica particular do olhar feminino.
Buscando interpretar, e ela mesma entender, o papel social da
mulher, a escritora mexicana elege algumas personagens célebres para
criar um mosaico da condição feminina através do tempo. Ainda que
obedeça à cronologia histórica, seu trabalho é atemporal: visita Lilith, a
lua negra dos tempos imemoriáveis; as deusas gregas, as entidades
míticas e as personalidades marcantes da Antigüidade e da Idade Média;
destaca rainhas como Catarina de Medici e as várias faces da Virgem
Maria, que simbolizaram o poder e a piedade da Renascença à
Modernidade; e finda sua viagem na primeira metade do século, XX,
berço de verdadeiros ícones da liberdade, da irreverência e da
inteligência feminina, como Virginia Woolf e Simone de Beauvoir. E
dentre tantas protagonistas, dá visibilidade também a figuras pouco
conhecidas fora de seu país natal.
Em um primeiro momento, as referências a Malinche, às
invocações marianas de Zapopan ou de Izamal ou à pintora Maria
Izquierdo podem causar estranheza ao leitor brasileiro, mas este
espanto inicial logo se transforma em acolhimento e em oportunidade
única para entrar em contato com um universo cultural rico e
diversificado.
Através delas, Robles nos desvenda a alma de um México que,
semelhante ao Brasil, se equilibra entre a tragédia e a esperança, a
riqueza cultural e a aculturação, a opulência e a pobreza, a fé e a
desesperança. E através delas acabamos percebendo que nossas
trajetórias têm mais afinidades do que diferenças.
Para elucidar esse aspecto singular, a segunda metade do livro é
dotada de várias notas explicativas, não apenas para facilitar a leitura
como um todo, mas para travar um diálogo mais íntimo com esse
"novo mundo".
Prólogo

Antes de mais nada, declarou Platão, temos de conhecer a natureza


humana e suas vicissitudes, uma vez que nossa índole primitiva não era
como a conhecemos agora, mas diferente. Em primeiro lugar, existiam
três sexos, e não dois. O andrógino, ainda que participasse das
características do masculino e do feminino, era um gênero
independente, tanto em forma como em nome, príncipe de ambos os
sexos, masculino e feminino, e não um ser submetido ao desprezo e à
infâmia, como foi considerado depois.
Em segundo lugar, a forma de cada indivíduo era totalmente
arredondada, seus ombros e suas costas formavam um circulo. Tinha
quatro braços e quatro pernas, bem como dois órgãos sexuais, dois
rostos distintos e opostos, com suas respectivas orelhas em uma única
cabeça apoiada em um pescoço circular. Caminhava em posição ereta,
tanto para a frente como para trás; porém, caso desejasse correr, girava
em forma de sino, assim como fazem os acrobatas, apoiando os braços
e as pernas contra o solo até retornar à posição vertical, o que lhe dava
grande velocidade, de forma semelhante à maneira como a adquirem
as rodas em movimento.
Eram três os sexos assim constituídos, pois no princípio o
macho foi descendente do Sol, a fêmea foi gerada pela Terra e aquele
que participava de ambos os sexos provinha da Lua, inseparável dos
dois anteriores. Os homens foram feitos circulares à semelhança de
seus criadores, terríveis por seu vigor. Sua grande arrogância levou-os
a tentar escalar o Olimpo para lá desafiarem os deuses que, hesitando
entre fulminá-los com raios e destruir-lhes a linhagem - como já
haviam feito com os gigantes - ou modificá-los para não perderem os
sacrifícios com que eles os honravam, acorreram a Zeus em busca de
uma resposta. Perspicaz, o Pai Celeste decidiu separar cada um deles em
dois para debilitá-los, para lhes podar a ousadia e, ao mesmo tempo,
multiplicar seu número a fim de angariar mais devotos. "Doravante eles
caminharão eretos sobre as duas pernas" - disse ele ã assembléia dos
olímpicos -, "mas se persistirem em sua arrogância, de novo os cortarei
em dois, para que andem em uma perna só, saltando como pernetas."
A cada homem que Zeus fragmentava, Apolo recompunha-lhe o
rosto na metade do pescoço, no sentido do corte, e sanava suas feridas.
Em seguida, o deus curador esticava-lhe a pele aos puxões, de cima
para baixo e de lado a lado até juntá-la à altura do ventre e, como
sobrava uma pequena bolsa de pele, selava a sobra de modo a formar o
que chamamos de umbigo. Depois, alisava a maior parte das rugas que
sobravam e, finalmente, moldava os peitos com um escalpelo. Apesar
de todos os seus labores, os deuses imortais descobriram que sua obra
fracassava, pois cada parte, ao perceber sua solidão e sentir-se perdida
sem a proteção daquela que lhe faltava, aventurava-se na busca de
sua outra metade. Remendadas, parindo como cigarras, com os
órgãos genitais na parte de trás e a cabeça na da frente, aquelas
criaturas experimentaram a solidão mais profunda. Desamparadas, se
abraçavam com tamanha ansiedade que não comiam e não faziam
nada mais, a fim de não se separarem. Quando uma das metades
morria de tristeza ou de inanição, a remanescente procurava outra
qualquer e se unia novamente, sem se importar se a nova criatura
escolhida fosse homem ou aquilo que agora chamamos mulher. Os
seres que triunfavam sobre a fome deixavam de se reproduzir, pois
sentiam tanta saudade e angústia que apenas se abraçavam ao novo
parceiro, cheios de medo; desse modo, aquela humanidade inicial
começou a extinguir-se, em vez de se multiplicar.
Compadecido desse trágico antecedente do destino humano,
Zeus concebeu outro plano para que, se no abraço sexual o varão se
unisse a uma mulher, eles concebessem e perpetuassem sua raça; e,
no caso de uma união entre machos, houvesse pelo menos fartura,
que eles repousassem e voltassem sua atenção para o trabalho e para
as demais coisas da existência. O que ele fez, então, foi mudar a posição
da genitália masculina para a parte dianteira, determinando que por
meio dela ocorresse a geração de outros seres semelhantes a si
mesmos, através da união do macho com a fêmea, o que os obrigava a
se movimentar e a contrair responsabilidades.
Reunificador de sua antiga natureza, o amor se fez natural
entre os seres humanos e símbolo de uma eqüidade que não podia
ser maculada nem rejeitada por nenhuma das seções, a menos que
estivessem dispostas a se expor novamente ao castigo de sua extinção.
Apolo ensinou-lhes a força curativa da unidade; mas, não obstante
todos os esforços da laboriosa e volúvel Afrodite, os demais imortais
nunca conjeturaram sobre como encontrar ajusta metade, talvez por
temer a força que é alcançada por um par perfeito que, ao fundir-se em
amor e piedade, suscita o desejo da virtude, reanima o provedor de
heroísmo e desperta uma urgência de moralidade que permita aos
homens valorizar a divindade que neles habita.
O equivocar-se quanto à contra-senha implícita à escolha de uma
mulher ou de um homem tem provocado as mais profundas
inquietações. As más alianças, longe de serem curativas, geram ódios
e multiplicam a injustiça ancestral. Apesar de sua óbvia
infecundidade, os enlaces entre homens que percebiam afinidades
entre si criaram, no dizer de Platão, uma maravilhosa sensação de
amizade, de intimidade e de amor que os deixava fora de si e os
impedia de se separar por um instante sequer, talvez porque neles
permanecia um remanescente de perturbação ou de espera angustiosa
superior ao surgimento de uma luz própria que lhes permitisse vencer
seu estado de prostração. Estes eram os que passavam a vida inteira
em companhia mútua, consolando-se da nostalgia imemorial por seu
outro eu e apegados, de certo modo, pelo temor da solidão que
sentiram as unidades recém-fragmentadas que andavam como
perdidas, imersas em sua confusão imperiosa, sem rumo preciso nem
clara consciência de seu sentido de ser. Acometidos por uma sensação
de incompletude que não sabiam como definir, jamais alcançavam o
sentimento de integridade que caminha lado a lado com a grandeza,
nem experimentavam a harmonia que antecede a plenitude. Com o
passar do tempo, tais casais não conseguiam definir o que realmente
desejavam uns dos outros, tampouco o que buscavam dentro de si
mesmos, exceto que não eram os prazeres afrodisíacos a única causa
de sua complacência, mas que aspiravam ao reconhecimento da exata
eqüidade a fim de alimentar uma ânsia de solicitude que
freqüentemente se desvirtuava, durante a maturidade e o
envelhecimento, na perseguição insaciável a jovens, numa tentativa de
assim preencher o vazio de suas almas.
Se aceitamos o mito das metades exatas, a natureza foi provida de
mulher e homem dotados de idêntica inteligência sobre atributos
distintos; no entanto, em vez de explorar o potencial de suas respectivas
diferenças, houve tempo suficiente para que executassem por sua
própria iniciativa uma obra correlata à de fragmentação empreendida
pela mão do deus. O homem, por exemplo, concentrou seu interesse em
alguns aspectos da realidade, enquanto as mulheres ampliaram sua
perspectiva a fim de considerar, de maneira simultânea, o imediato e o
necessário a partir de sua função maternal - inclinada a proteger e
desenvolver a vida -, na qual fincavam seu sentido de ser.
Consultando as teorias orientais concebidas há milhares de anos,
podemos crer que a feminilidade consiste em uma vigilante continuidade
vital que, mesmo de maneira simbólica, na explosão dos sentidos ou nas
perversões que a impulsionam a praticar o desprezo, compromete seu
poder desde a fonte íntima da criação. Uma criação que era inicialmente
exclusiva do poder absoluto de Deus que, ao repensar o processo
reprodutivo da humanidade, compartilhou-o conosco, mulheres, a fim
de que participássemos de sua essência na dupla tarefa de preservar a
espécie ao sermos fecundadas pelos homens e inspirar o movimento
para o despertar racional, como claramente se exemplifica no Gênesis
com a expulsão do primeiro casal do Paraíso. Esse privilégio,
considerado instrumento de redenção na cultura judaico-cristã, nos
permite pensar, agir e nos aperfeiçoar intuitivamente. A individualidade
se fortalece, portanto, na medida em que uma mulher compreende as
habilidades múltiplas de seu intelecto, sua graça equilibradora e seu
afã em servir.
Nada ilustra melhor a missão feminina que a passagem da
escuridão para a luz. Delineada para a reprodução, seu temperamento
é dinâmico, enquanto o masculino tende a contemplar e se mover
pela inspiração divina encarnada pela companheira. A nossa
divindade é vigilante, legada à mulher para acentuar a natureza do ser
e participar dessa forma primordial de criatividade, que é aquela
própria da arte e da história. Se, por definição, a aliança heterossexual
acentua a identidade mútua e consolida o despertar para a claridade, o
liame homossexual, por outro lado, padece o mais terrível dos
sofrimentos: o de ser enigmático.
Ser um enigma e viver como tal, conforme pensou María
Zambrano, "só é próprio daquele que, sendo uno, ou pretendendo sê-
lo, está aprisionado na multiplicidade e sujeito a padecer seus próprios
estados". Os deuses não sofrem dessa condição porque se bastam a si
mesmos e se encontram além do princípio de contradição; isso ocorre
aos seres humanos, quando, em sua ânsia de evitar padecimentos e
eximir-se do imperativo da mudança ou do movimento, multiplicam o
próprio eu no anelo de se aceitar, o que implica uma negação e é a
chave dos anseios de fuga que os imobiliza, justamente de maneira
oposta a que buscavam seus desejos.
Poderíamos supor que o transtorno experimentado ao
reacomodar as metades dispersas se converteu em caos e em uma
sanção unívoca que produziu a infâmia que nutriu de vícios a
humanidade. Ao fracassarem os homens em sua batalha contra os
deuses, optaram pelo caminho mais simples: dominar as mulheres e,
mais tarde, outros homens mais fracos mediante práticas cada vez mais
abjetas, inseparáveis da idéia de pecado que sobreveio, primeiro, através
de Lilith, e depois através de Eva e de toda a sua estirpe. Quanto mais
primitiva a índole dos casais reunidos pelo apetite sexual, por
submissão ou pelo ímpeto para a guerra, tanto maior a inclinação para
a injustiça, até tipificar-se o desprezo. Tais foram os triunfos da
incoerência: a injustiça e a brutalidade; em conseqüência, a conquista
progressiva da harmonia converte-se na única coisa que nos permite
ascender a partir do reconhecimento do outro que é nosso
complemento. Sem o preenchimento de tal requisito, tornam-se
impossíveis a tolerância e a partilha eqüitativa de direitos e obrigações,
que em nossos dias consagram a democracia.
No eterno combate entre os atributos relativos a cada sexo, a
hostilidade aumenta em conseqüência das contradições. Desse modo,
afligidos pela obsessão de poder e não poder, os homens guerreiam das
formas mais diversas e se concentram em uma única tarefa, seja
prática ou racional. As mulheres, por sua vez, continuam a expressar
sem grande alarde sua aptidão para preservar a vida como uma figura
divinizada, a menos que se deixem empolgar por perversões que as
desviem de seu compromisso. Graças à sua intuição amorosa, desde
tempos imemoriais governam disfarçadamente a ordem presente e
futura da consciência. Com peculiaridades que, em dadas ocasiões,
separam a mulher das deusas e que podem levá-la a desvirtuar sua
missão de aperfeiçoamento interior, segundo o caráter de cada povo, a
aprendizagem e a sedimentação de cada cultura, surgem as Heras
doentes pelo ciúme de seu Zeus luxurioso, as Afrodites em busca do
amor; uma Circe feiticeira, senhora de seus domínios, tão versada na
arte da palavra como hábil para transformar homens em porcos; há
também Cassandras portadoras do dom da profecia, ainda que
condenadas a que nunca se acredite nelas; Atenas combativas, esposas
que atacam 05 maridos com um machado e incorrem na síndrome de
uma Clitemnestra sem recurso de salvação; Medéias matricidas,
enlouquecidas pelo desamor e pelo abandono; ou Ledas ingênuas que,
sentadas em seus banquinhos ao pé da lareira, são seduzidas por um
cisne que as penetra depois de deslizar ao longo de seus peitos.
Por sobre a fascinante galeria das sacerdotisas brotam os
furores de Olímpias insaciáveis e cruéis intercalados no drama inaudito
de Sisigambis, no declínio obscuro de uma Estatira que morre parindo
e chorando, como ocorrera ao império persa ao ser conquistado por
Alexandre o Grande, e que depois se incorpora ã história como vítima
dos comandos inconstantes que mutilaram o porvir esperançoso de
sua estirpe.
Há Jocastas trágicas, suicidas por sua dor e geradoras de uma
Antígona heróica, que desafia a lei do tirano para preservar tanto a
honra familiar como a lei dos deuses; há também, disseminadas pelo
mundo como sementes variegadas do universo criador, virgens imóveis
e arquétipos da piedade que são veneradas por sua paciente solicitude
ou, como no caso da Guadalupana, consagradas pela maternidade
absoluta na misericórdia perfeita em favor dos homens. Existem
donzelas emudecidas, Marias interpostas entre a espada e a cruz,
amantes confinadas na paixão conventual, Heloísas radiantes que
repreendem a Deus por sofrerem tão infinita crueldade, Isoldas
confusas, Dalilas intrépidas, Cleópatras que oscilam entre o ímpeto
redentor da pátria, o acicate da imortalidade e uma entrega amorosa
tingida pelo impossível sonho imperial que, em determinadas ocasiões,
as aproxima do melhor que existe em si mesmas e, em outras, as
impele a ceder à tentação do abismo e a dar um ponto final a suas
aspirações afundando os dedos em um cesto cheio de figos habitado
pela áspide portadora da morte.
Não faltam as Hipátias insolentes por seu vigor racional nem as
mulheres de nosso tempo que, em meio a grande confusão provocada
pelo acúmulo de equívocos de uma humanidade que pretendeu
tornar-se deidade material, decidiram romper o cerco da obscuridade
e finalmente se atreveram a declarar em alto e bom som que sim,
nossa feminilidade é a condutora do atributo criador, o enlace entre a
vida, o impulso para a morte e a esperança de redenção. Suas
primeiras empresas, no entanto, absorveram aquelas características
que são próprias de nossa época: apetite pela informação, avidez de
conhecimentos, urgência de competir nos jogos de poder, ânsia por
glória e prazer e também, às vezes, contaminação daquilo que se
acreditavam liberdades por horas de ódio social, de rupturas
espirituais diante de novos domínios religiosos e de desvarios
infiltrados pelo pavor da morte.
Mulheres de certa maneira quebrantadas, elas padeceram as
capitulações e conseqüências das guerras mundiais que vieram a
consolidar a desordem mediante a violência do conservadorismo e de
sua contraparte natural, a transgressão. Sentiram a necessidade de
buscar algo distinto, de romper as amarras que as marginalizavam
das atividades da cultura mais seleta, privilégio até então dos homens
e, muito especialmente durante as décadas centrais do século XX, as
mais audazes provaram o sabor acre da frustração. Enquanto
despontavam publicamente por meio de suas obras de vanguarda, na
intimidade decaíam como se obedecessem a um estigma secreto, o
mesmo anteriormente observado em relação às mênades.
Como as liberdades que vieram depois delas, e que hoje nos
perturbam, aquelas não eram senão liberdades envoltas em fumaça,
invariavelmente tramadas de vileza e dissolução que, por desgraça,
experimentaram com maior ou menor intensidade algumas das que se
consideravam grandes talentos da arte da palavra, como Djuna Barnes,
Virginia Woolf, Jane Bowles ou Anaïs Nín, filhas da desesperança e do
cansaço de ser, reprodutoras daquela divisão primordial que - se nas
páginas que escreviam era ironizada com tamanha lucidez - ao
violentar seus destinos e não saber o que fazer com suas vidas, se
voltava contra sua própria natureza até mergulhá-las em uma
depressão tão atroz que, em sua inconsciência, perderam os limites do
impulso suicida, a que algumas sucumbiram.
Simone de Beauvoir chamou a atenção para os desmandos da
injustiça alicerçada nas diferenças sexuais, mais e piormente praticada
onde predominam os autoritarismos políticos, os credos únicos e a
intolerância racial. Corajosamente, ela emitiu um grito de alerta,
sacudiu a consciência das mulheres ocidentais, revelou os indícios de
uma escravidão ancestral e convocou "o segundo sexo" para essa sua
primeira denúncia, à maneira de um testemunho internacional, que
imediatamente seria acompanhada de focos de rebeldia, movimentos
libertadores, protestos contra a desigualdade feminina e demandas que
enlaçaram antigas e novas lutas, seculares ou súbitas, a fim de
reconquistar, dentro de um mundo totalmente entregue à turbulência, a
dignidade através da qual nós, as mulheres, haveremos de recobrar o
sentido do ser, se é que neste século que se inicia as gerações irão
valorizar o verdadeiro significado unificador da sobrevivência em nosso
planeta.
Mulheres e deusas, compartilhamos do mesmo destino
entrançado com a fatalidade. Não importa quando nem como um
membro de nosso sexo se subleve, sonhe ou batalhe, sempre irá se
deparar com o invariável desafio da subcondição de debilidade que lhe
é atribuída pelos homens, quiçá porque tenha sido tão lenta e
acidentada nossa própria aceitação do compromisso que sela o poder
de criar, outrora atribuído somente a Deus. Não que devamos
modificar a essência moral, nem que tenhamos de reinventar aquilo
que, durante milênios, foi sendo lentamente depurado como norma de
convivência familiar e social, mas se demonstra cada vez mais
iminente a necessidade de recobrar a forma de alicerçar o fundamento
da concórdia. Nesse sentido, não existe modéstia maior do que aceitar
o valor dessa graça feminina, que é tão nossa quanto unívoca da
feminilidade, e honrá-la sem soberba no pronto cumprimento de
nossa missão. Uma missão regulada pela bondade, envolvida pela
virtude, da mesma forma que pela grandeza e, muito especialmente,
pelo amor em sua qualidade original, como um liame unificador
daquilo que foi disperso e aviltado.
Se o amor anima, fortalece e impulsiona, é o pensamento que
decifra seu esforço gerador. Separar o amor em humano e divino,
conforme postula María Zambrano, marca a transição, sela a diferença e
favorece a continuidade entre o amor como potência cósmica e o amor
em sua expressão terrestre, cuja história segue as leis do ser humano
e por meio de sua distinção em sexos complementares engendra a
realidade quando põe em movimento a inteligência, ao passo que a
energia amorosa celeste se desvela daquilo que é verdadeiramente
divino, absoluto e evidente por si mesmo.
Até parece própria de um certo atavismo a preferência dos
homens por substituir com falsas dominações permeadas de
despotismo a criatividade feminina que provém da mítica divisão
primordial; contudo, está visto que onde impera a injustiça a partir
dessa divisão de direitos por gêneros, que marginaliza as mulheres em
prol dos homens, formam-se culturas propensas à baixeza e a repetir a
abjeção, como claramente se observa na América Latina, na África e,
naturalmente, nas teocracias muçulmanas.
Não é por acaso que, emudecidas e temerosas como nós,
mexicanas, temos sobrevivido durante séculos, nesse contexto
somente se destaque a soror Juana Inés de la Cruz, um verdadeiro
portento da época do vice-reinado. Até mesmo em nossos dias, há
poucas mulheres que se atrevem a reconhecer seu próprio poder, que
levantam seu espírito e brandem com a voz, com a pena, com suas
obras e seus atos como um princípio purificador. Tal foi o imperativo
inseparável do crescimento intuitivo e da razão excepcional da monja
jerônima, que não somente exigiu a valorização do pensamento, mas
misturou a aflição a seu processo esclarecedor e, não obstante a
perseguição eclesiástica que a fez abjurar de sua indubitável conquista
sobre a imobilidade, desenvolveu por si mesma uma poderosa
feminilidade que se achava até então encoberta, amordaçada pela
Colônia, condenada ao silêncio e, talvez, autocomplacente em sua
resignação estéril.
Depois dessa sua vitória, obtida através de perpétua vigília,
outra vez recaiu sobre as mexicanas o perigo do jugo e seu retorno a
um silêncio tão tenebroso que atua, no mínimo, como elemento de
retrocesso e signo de vacuidade, já que a mulher não está
predestinada a ser nem a estender seu poder na escuridão. Este é o
símbolo criador e a fortaleza que representa uma Juana Inés de la
Cruz, que saboreou sua libertação por meio de uma renúncia
aparente e que, ao prefigurar as possibilidades criativas de sua
palavra, reconheceu que a nenhuma mulher, por mais excepcional que
seja, é facultado salvar-se, sequer perder-se, sozinha. Resulta daí a sua
atualidade e a fascinação que suscita sua vigorosa individualidade, tão
contrastante quanto complementar à personalidade da mística Teresa
de Jesus.
Poderá ser dito que as soberanas repetiram os vícios do poder
material que se acreditava exclusivos dos homens; que ao
desencadearem sua crueldade vão aos maiores extremos e se deixam
cair em um inferno sem limites, arrastando consigo gerações inteiras
em conseqüência de seus erros e que, como poderá ser lido em alguns
exemplos incluídos nesta obra, não se subtraem em absoluto dos
defeitos próprios da natureza humana; mas se deve insistir no fato de
que, se os seus desvios se manifestam de forma tão aberrante, isto se
deve precisamente a que, ao longo dessa decadência, a mulher vem
violentando a sua própria essência, e que uma mesma experiência
repetida durante milhares de anos, apesar dos preconceitos e da
assombrosa informação que em nossa época confunde o
entendimento, afasta a intuição e nos distancia da sabedoria para a
qual somos chamadas como seres pensantes.
À condição feminina não se permite nenhuma possibilidade
intermediária: é-se mulher ou não; assume ou nega seu compromisso;
valoriza ou desvirtua sua graça; afirma-se no movimento intrínseco à
sua natureza ou cede à tentação do abismo e leva consigo o homem e
todos os seres que a acompanham.
Intuitivamente, as gerações reconhecem aquela que é
realmente mulher daquela que não o é. "Uma grande mulher", reza o
lugar-comum quando se percebe uma personalidade radiante ao
redor da qual se respira a autoridade que prodigaliza uma
feminilidade consumada no alto reconhecimento de si mesma em
benefício e a serviço dos demais. E chama-se a ela mulher talvez sem
reparar na leveza vigorosa que inspira sua graça ou na elegante
harmonia que, mesclada de dor e de alegria, difunde tanto o
questionamento crítico de sua realidade como o saldo de esperança
que anima sua certeza vital.
Se uma mulher se realiza enquanto tal por meio de seu
entendimento intrínseco, empreende seu despertar e se afirma em
seus atributos de misericórdia e de bondade; por outro lado, se nega
e abomina a porção de divindade que lhe foi outorgada, incorre nas
piores baixezas, com o agravante de que, em sua queda, arrasta tudo
consigo, já que ela, por sua própria característica essencial, forma,
deforma ou destrói o homem. Resulta daí a secreta conseqüência de
um machismo que não existiria se as mães, as amantes, as esposas,
as irmãs ou as amigas não inspirassem essa negação de si mesmas,
quiçá por temor, por olvido de seu sentido de ser ou, o que é ainda
pior, por renunciar ao alto dever de se conduzirem como instrumentos
da esperança.
E foi este o propósito que busquei ao escrever Mulheres, Mitos e
Deusas: participar de uma aventura em direção à própria libertação,
compartilhar com vocês este relato que, ainda que breve e talvez
limitador por ser pouco representativo, ao menos contribua para
entender os recônditos de uma feminilidade que, sem distinção de
época ou de língua, demonstra uma única experiência: quando cede à
tentação da queda, a mulher manifesta o pior de sua natureza; por
outro lado, ao se aceitar como expressão do divino, ascende até a
claridade e completa sua missão com alegria. Aquela que entende e
compartilha, redobra sua esperança de continuidade digna em um
mundo que já não mais nos oferece oportunidade de erro, pois já
atentamos cabalmente contra os princípios fundamentais, inclusive
contra a vida.
Através do caminho da criatividade entendi que a resignação
passiva é pior do que o medo do desconhecido ou do que o autodesprezo
que costuma assaltar algumas mulheres que ignoram seu próprio
potencial. Assombrada ante o poder que se reconhece ao vigor feminino
em certas filosofias orientais, escutei de Siri Singh Sahib que a mulher
desencadeia uma verdadeira tragédia quando, ao contemplar-se frente
a um espelho, abre mão de sua natureza radiante em troca da aceitação
das mentiras externas de uma suposta beleza que a reduziu a uma
máscara ou a uma caricatura da divindade. O verdadeiramente belo da
feminilidade irradia com a integridade essencial, que é própria da
harmonia consigo mesma e com o universo.
No entendimento e na aceitação da própria graça enraízam-se as
liberdades e o direito de exigir em resposta a cortesia e o respeito
masculinos. Se qualquer uma de nós, sem distinção de cultura ou de
idade, não se considera bela, competente e capaz de mover o mundo
mediante seu impulso vital, sua graça se volta contra as demais e
assim se torna cúmplice da dramática confusão que caracteriza nosso
tempo.

Tlalpán
Dezembro de 1995
Diotima e
o amor

Platão é o criador da forma filosófica do simpósio. Utilizando esse


recurso do diálogo, organizou tanto a vida social de sua Academia
como a interpretação de suas preocupações fundamentais, quase
sempre relacionadas à sugestiva figura de Sócrates, que conduz a
célebre discussão à mesa de Agaton em que Fedro, o primeiro orador de
O banquete, empreende a tarefa de fazer o elogio de Eros, o que, depois
de cerradas discussões sobre os apetites e funções do amor desde a
perspectiva de Pausânias - que distingue eras vil e eros nobre -, dará
ocasião ao sofista para expor sua doutrina mediante o relato de sua
suposta conversação com Diotima, uma sacerdotisa de Mantinéia, real
ou inventada como um recurso retórico, de quem só sabemos que
celebrou um sacrifício aos deuses por meio do qual afastou a peste de
Atenas durante dez anos.
A ela Sócrates atribuiu a semente de uma concepção de amor que
foi transformada em corrente didática que supera o costume espartano e
ateniense da pederastia ou da amizade masculina inspiradas ou
sancionadas por Eros, proveniente da vida nos acampamentos
guerreiros da época migratória das tribos.
Ao menos como ideal ético vinculado ao signo criador do "eu",
que só pode ser efetivamente superado ao se relacionar com um
"você", o discurso de Diotima completa as sugestões apresentadas
pelas intervenções dos demais convivas sobre a função amorosa, as
quais, em seu conjunto, oferecem aspectos cambiantes e
complementares daquilo que, em síntese, se reuniria no "ideal
platônico". A rica e aprazível leitura de O banquete permite concluir que
o eros nasce, com efeito, do anseio metafísico do homem por uma
totalidade do ser, definitivamente inexeqüível à natureza dos
indivíduos. Tal desejo inato converte-o em simples fragmento evocativo
do mito das metades, exposto inicialmente por Aristófanes e descrito no
Prólogo, que suspira por voltar a se unir com sua parte correspondente
durante todo o tempo em que leva uma existência isolada e ao
desamparo. Dessa maneira, a reunião afortunada torna-se a meta do
eros e o instrumento mais eficaz para formar a personalidade e
empreender o processo de aperfeiçoamento com o qual o homem
haverá de restaurar o sentimento de plenitude harmoniosa que fora
perdido ao ser quebrantado em sua unidade pelos deuses.
Platão elege o discurso idealista do jovem Agaton como
fundamento para a incorporação da reflexão dialética do mestre
Sócrates, caracterizado por sua busca da verdade, inseparável da
beleza e, neste caso, apoiado nas sábias palavras de Diotima para
finalizar satisfatoriamente sua célebre intervenção. Agaton personifica
Eros como potência divina que necessita adquirir qualidades humanas;
é jovem, refinado e demonstra tamanha leveza que, ao possuir todas
as virtudes, torna-se o melhor dos deuses. Habita somente lugares
floridos e perfumados. Seu reino é o da vontade e dele derivam a
justiça, a sabedoria, a prudência e a valentia. É, além disso, um grande
poeta, e ensina os outros a sê-lo. Suaviza o portento olímpico com a
beleza perfeita e ainda ensina suas faculdades à maioria dos imortais.
A postura adotada por Sócrates é intermediária, situando Eros
entre o belo e o feio, entre o imperfeito e a perfeição absoluta, entre o
mortal e o imortal, entre a sabedoria e a ignorância; portanto não
pode ele ser um deus, pois não participa da bem-aventurança
característica das entidades celestes. Eros é antes um grande demônio
ou um "furor" que age como intérprete entre os homens e os deuses. É
ele que preenche o abismo entre o terrestre e o divino e mantém unido
o universo. Descendente da riqueza e da pobreza, seu atributo
característico é a dualidade; e pode florescer, morrer e ressuscitar em
uma só jornada, já que sua índole consiste em ocupar e se espalhar.
Sem saber nada, acredita saber tudo: intui, adivinha, suspeita e
também desvirtua a realidade, apesar de ser, em sua essência, o
condutor perfeito até a verdade.
Nesse ponto, a sábia Diotima explica a busca pela beleza como
um aspecto da aspiração do homem pela felicidade. O sofista se vale da
recriação dessa sacerdotisa de Mantinéia - única mulher a quem
reconhece sapiência e, inclusive, considera sua mestra - para expor
seu ideal erótico como um princípio entre a filosofia e a religião, já
que, segundo recordou o sofista, era difícil para ele falar por si
mesmo daquilo que não conhecia. Desse modo, refere-se à felicidade
como uma ânsia inerente à natureza humana e, portanto, deve ser
canalizada e modelada de maneira criativa e com toda a consciência.
Para Diotima, a relação de eros harmoniza a difícil situação entre o
pensamento e a vida, uma vez que engloba tanto a referência como a
expectativa de um bem perfeito.
Em sua insuperável obra Paidéia, Werner Jaeger, com grande
perspicácia, observou que, graças à referência de Diotima,

o eros se converte, de um simples caso específico de vontade, na expressão


mais visível e mais convincente daquilo que constitui o ponto fundamental de
toda a ética platônica, a saber: que o homem não pode nunca desejar aquilo
que não considere seu bem. Segundo Platão, o fato de a linguagem, apesar de
tudo, não denominar de eros ou erân toda manifestação da vontade, mas
reservar esse substantivo e esse verbo para designar certos anseios, encontra
certo paralelo em outras palavras como poiesis, "poesia", que, mesmo
significando simplesmente "criação", foi sendo progressivamente destinada,
através do uso, para designar apenas um determinado tipo de atividade
criadora.

Não só por sua revolucionária originalidade, mas pelo fato


inusitado dessa interpretação ter sido atribuída a uma mulher
singular, consideramos importante transcrever um fragmento daquele
discurso que, perante este breve desfile que mostra a situação da
mulher no mundo em diferentes épocas e concepções, nos permite
completar uma idéia da feminilidade como sendo inseparável do
princípio criador de eros que, em nossa época de tribulação, recobra
uma vigorosa atualidade se consideramos que, somente mediante uma
profunda modificação da consciência do bem e de nossa missão
unificadora no mundo, nós, mulheres, podemos participar da
reconquista indispensável da harmonia entre o pensamento, a vida e o
sentido purificador da arte como caminho a ser trilhado na busca da
verdade e do belo.

[...] pois bem, se tens a convicção de que o amor, por natureza, versa sobre
aquilo com que concordamos tantas vezes, não te espantes. Neste caso, pela
mesma razão, a natureza mortal busca, dentro do possível, existir sempre e
tornar-se imortal; e somente pode consegui-lo por meio da procriação, pois
deixa sempre um novo ser no lugar do velho. Mas nem sequer durante esse
período, no qual se diz que vive cada um dos viventes, e que é idêntico a si
mesmo, o ser humano reúne sempre as mesmas qualidades; assim, por
exemplo, diz-se que um indivíduo, desde sua primeira infância até a velhice,
é a mesma pessoa. Porém, embora se diga que é a mesma pessoa, esse
indivíduo jamais reúne as mesmas coisas dentro de si mesmo, senão que está
permanentemente se renovando em aparência e, ao mesmo tempo, se
destruindo, em seu cabelo, em sua carne, em seus ossos, em seu sangue e na
totalidade de seu corpo.
E isto não ocorre somente no corpo, mas também na alma, cujos hábitos,
costumes, opiniões, desejos, prazeres, sofrimentos e temores, todas e cada uma
dessas coisas, jamais permanecem as mesmas em cada um dos indivíduos,
senão que umas nascem e outras perecem. Mas ainda muito mais estranho do
que isto é o fato de os conhecimentos não somente nascerem de uma forma e
perecerem de outra dentro de nós - de tal sorte que não somos idênticos a nós
mesmos nem sequer nos conhecimentos que adquirimos -, mas sim que
também acontece o mesmo a cada um deles. Com efeito, o que se chama
"repassar" só ocorre porque um determinado conhecimento pode nos
abandonar, pois o esquecimento é o espaço de um conhecimento, e o repasse,
ao criar dentro de nós uma nova lembrança em troca daquela que perdemos,
conserva o conhecimento, de modo que pareça ser o mesmo de antes.
É dessa forma que se conserva todo o mortal, não por ser completamente e
sempre idêntico a si mesmo, como ocorre com os seres divinos, mas pelo fato
de que o ser que se foi ou que envelheceu deixa após si um outro ser novo,
similar àquilo que ele era. Por esse meio, Sócrates, o mortal participa da
imortalidade, tanto em seu corpo como em tudo o mais; o imortal, por sua
vez, participa da imortalidade por um outro processo bastante diferente. Não
te admires, pois, se todo ser preza, por natureza, aquilo que é um renovo de
si mesmo, porque é a imortalidade a razão pela qual todo ser é acompanhado
por essa solicitude e por esse amor.
Tome por certo, Sócrates, que assim é se desejas lançar um olhar sobre a
ambição dos homens, a não ser que tenhas em mente uma idéia daquilo que
te disse, ficarias assombrado de sua insensatez ao pensar em que terrível
estado os lança o amor para se tornarem célebres e deixarem no futuro uma
fama imortal. Para alcançar esse objetivo estão dispostos a correr todos os
perigos, mais ainda do que o fariam por seus filhos, a gastar dinheiro, a
suportar qualquer fadiga e a sacrificar a própria vida. Pois então acreditas
que Alceste se deixaria morrer por causa de Admeto, ou Aquiles para vingar
Pátroclo, ou mesmo vosso Codro para salvaguardar a dignidade real de seus
filhos, se não estivessem convencidos de que permaneceria após eles essa
recordação imortal de suas virtudes, tal como a celebramos agora? Nem
mesmo pela hipótese mais remota. É para imortalizar sua virtude, segundo
creio, e para conseguir tal renome, que todos concentram seus esforços, e
com tão maior afinco quanto melhores forem, porque aquilo que mais amam
é justamente o perdurável.
Assim, pois, os que são fecundos no corpo se dirigem especialmente às
mulheres, sendo esta a maneira pela qual se manifestam suas inclinações
amorosas, porque, segundo crêem, garantem para si, através da procriação de
filhos, imortalidade, memória de si mesmos e felicidade para todo o tempo
futuro. Por outro lado, existem aqueles que são fecundos na alma... pois
existem homens que concebem nas almas, mais ainda que nos corpos, aquilo
que pertence ã alma conceber e dar à luz. E o que é que lhe pertence?
A sabedoria moral e as demais virtudes, aquelas de que são progenitores
precisamente todos os poetas e todos os artífices de quem se diz que são
inventores. Todavia, a maior e mais bela forma de sabedoria moral é, de longe,
o ordenamento das cidades e das comunidades, cujo nome é moderação e
justiça. Assim, quando alguém se encontra prenhe dessas virtudes em sua
alma desde menino, inspirado como se está pela divindade, ao chegar à idade
conveniente deseja parir e procriar, e também ele, segundo creio, se dedica a
buscar em torno de si a beleza por meio da qual possa engendrar, pois no feio
jamais o fará. Sente, desse modo, maior apego aos corpos belos do que aos
feios, em razão mesma de seu estado de prenhez; e quando neles encontra
também uma alma bela, nobre e bem-dotada, mostra extraordinária afeição
pelo conjunto e prontamente encontra ante esse ser humano uma profusão
de razões a propósito da virtude e de como deve ser o homem bom, as coisas
a que deve se aplicar e, desse modo, buscará educá-lo. E é por ter, segundo
creio, contato e trato com o belo, que ilumina e dá vida ao que havia concebido
anteriormente; a seu lado ou separado dele, recorda-se sempre desse ser, e
com sua ajuda cria em comum o fruto de sua procriação, de tal modo que
aqueles que experimentam entre si tal condição formam uma comunidade
muito maior do que a dos filhos, e têm um afeto muito mais firme, já que
geraram em comum filhos mais belos e mais imortais. E mais, todo homem
preferiria ter filhos de tal índole a tê-los humanos, se dirige seu olhar a
Homero, a Hesíodo e a todos os demais grandes poetas e contempla com
inveja a descendência que deixaram de si mesmos, que lhes garante memória
e fama imortal uma vez que essa descendência também é famosa ou imortal.
Ou se quiseres - acrescentou ela - poderão ter filhos iguais àqueles que
deixou Licurgo na Lacedemônia, que se tornaram salvadores da Lacedemônia
e, por assim dizer, de toda a Hélade. Também entre vós Sólon é honrado por
ter dado vida às leis, do mesmo modo que muitos outros homens o são em
outras partes, tanto entre os gregos como no meio dos bárbaros, por
haverem realizado muitas e belas obras e gerado virtudes de todos os
gêneros. Em honra a tais homens, e por haverem tido tais filhos, já são muitos
os cultos instituídos; por outro lado, até hoje não se presta culto e
homenagem a ninguém por ter tido apenas filhos humanos. Esses são os
mistérios do amor, Sócrates, mistérios nos quais inclusive tu poderias ser
iniciado. [...]*

Como dissera Aristófanes, o amor não se projeta somente em


direção à outra metade de nosso ser, tampouco sobre sua totalidade, a
menos que por tal se entenda o bom e o perfeito. E se Diotima nos
proporcionou o instrumento para interpretar um anseio inerente ao
bem, graças à posterior Ética Nicomaquéia, de Aristóteles, podemos
inferir que o amor, apanágio unívoco da condição feminina, é a forma
mais acabada da perfeição moral e, portanto, um impulso de cultura,
no mais profundo sentido desta palavra.

* Platão, O banquete ou sobre o amor, Obras completas, tradução do grego,


preâmbulos e notas de Maria Araújo, Francisco Garcia Yágüe, Luis Gil, José Antonio
Miguez, Maria Rico, Antonio Rodríguez Huescar e Francisco de Paula Samaranch;
Introdução a Platão, por José Antonio Miguez, (2. ed. Madri: Aguilar, 1966; e 2.
reimp. 1979, p. 586 e seguintes). [Nota da Autora]
As origens
Nix

Longe de ser perfeito, como nas passagens que lemos no Gênesis, o


princípio criador entre os gregos não proveio de uma idéia de
eternidade nem do sopro vital de um deus todo-poderoso que extrai a
luz do caos e com ela empreende o resto de sua obra, até coroar com a
criação do homem as transformações dos céus e do mundo natural.
Em seu primeiro dia, segundo a narrativa bíblica, Deus fez a luz, ainda
que não houvesse nada para ser iluminado. O universo era um caos
informe e, sobre a face do abismo, reinava a noite. "Haja luz", disse
Ele, e a luz existiu. Então, o Deus judeu-cristão chamou à luz dia e às
trevas denominou noite. Passou-se uma tarde, passou-se uma manhã
e, ao escurecer, separou as águas das águas e criou uma abóbada
intermediária, que foi a abóbada celeste. No segundo dia, ordenou que
as águas se juntassem por baixo do céu e fez aparecer os continentes.
Chamou de mar a massa líquida e de terra os continentes. Reverdeceu
a terra a fim de que gerasse as sementes segundo suas espécies e as
árvores frutíferas. No terceiro dia, Deus criou dois luminares no céu,
regentes da noite e das estrelas, para marcar os ciclos do dia e da
escuridão e para assinalar as festas e a contagem dos anos e dos dias.
No quarto dia, criou os animais. A água conheceu a flutuação da vida;
a terra, o andar e o movimento e, um pouco mais além, sob o teto dos
céus, surgiram as aves fundadoras da dinâmica do vôo. "Crescei e
multiplicai-vos" - ordenou-lhes. "Enchei as águas do mar; e que as aves
se reproduzam sobre a terra." No dia seguinte, deu prosseguimento à
sua obra criando as feras da terra, os animais domésticos e
abundantes répteis, também separados por espécies. "Façamos o
homem à nossa imagem e semelhança" - disse ao final de tudo. "Que
ele domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos e todos os répteis". Criou macho e fêmea, deu-lhes sua
bênção e exclamou: "Olhai, eis que vos ofereço as ervas que dão
sementes sobre a face da terra; e as árvores frutíferas que geram
semente vos servirão de alimento. E a todos os animais da terra, a
todas as aves do céu, aos répteis - a todo ser vivente - a erva verde
lhes servirá de alimento."
Ao ver sua obra consumada ao sexto dia, Deus deixou transcorrer
mais uma tarde e mais uma manhã. Outra vez, na escuridão do
silêncio, revisou como ficavam concluídos os céus e a terra e suas
multidões de vegetais, de animais e de gente. Então, consagrando o
sétimo dia, descansou Deus de sua tarefa, A dinâmica do mundo
adquiriu seu próprio ritmo e se estabeleceram para sempre os ciclos da
vida e da morte.
Os antigos gregos não compartilharam dessa idéia da Criação.
Sua concepção de ordem surgiu com o silêncio desde o abismo
primordial, fonte do movimento e da vida. Segundo Hesíodo, do Caos
nasceram Érebo e a negra Nix, a Noite; e da Noite surgiram Éter e
Hemera, frutos de seus amores com Érebo. Ainda que fosse mãe da
Luz, Nix não gerou deuses de luz nem de justiça, pois estes provieram
de Gaia, a Terra, mãe, como ela, de monstros e de homens. De seio
farto, Gaia serviu de sólida matriz para mortais e imortais, até que Eros
fosse incubado pela Noite no ovo primordial. Foi assim que o amor se
enraizou nas trevas e, por meio dele, a escuridão adquiriu a capacidade
da união fecundante. Assim também foram engendradas as sementes
imortais, a matéria que compõe os deuses e seu reino olímpico.
Complexa como é, essa cosmogonia mediterrânea não eleva a
Noite à categoria de deusa, tampouco considera a primeira geração de
entidades como provinda de atos supremos de vontade. O ser animado
nasceu do próprio Caos. Nix é o princípio, o impulso criador, como o
inferno, a terra e o céu. E como cada um destes, criou sua própria
descendência, não à maneira do Gênesis, mas por uma lógica de
fecundidade secreta, por obra da potência multiforme.
Os protogregos eram tribos arianas vindas do norte que vieram
a se instalar às margens do Mediterrâneo. Traziam consigo antigas
crenças e não se sabe onde começou o mistério que durante séculos
cultivaram sobre a origem das coisas. Finalmente assentados em
cidades, organizaram seus mitos e seus cultos; mas não seria senão no
fim do século VIII e na primeira metade do século VII anteriores à
nossa era que, com o advento da escrita, Hesíodo produziria uma
genealogia da criação. Nessa obra, junto com outras potências
estritamente míticas, a Noite se destaca como depositária de um saber
elemental, aparentemente constituído para recordar as limitações de
nossa condição humana. Tanto Melésio como Lamisco, o Sábio,
afirmaram que aquilo que foi produzido no princípio existe agora e
existirá no futuro, como a terra, o céu e a Noite; o bem e o mal; a
dúvida que sobrevém à obscuridade e a lucidez que lhe faz o contraste.
Por essa razão a Noite é uma referência essencial no decurso do ser,
pois é ela que torna possível que tudo apareça e possa ser distinguido
através da claridade.
A maioria da progênie noturna é composta por abstrações,
símbolos terríveis que nos intimidam talvez para ordenar os ciclos da
vida e da morte. Tal como a linhagem da Terra, Nix foi pródiga em sua
fecundidade de criaturas do bem e do mal. Em sua Teogonia, Hesíodo
afirma que são seus filhos: Moiro, de quem pouco se ocupou a mitologia;
a negra Kera e Tânatos, todos os três vinculados à morte. Também
pariu Hipno e deu à luz a tribo dos Sonhos. Depois, sem deitar-se com
ninguém, pariu Momo, o doloroso lamento e as Hespérides, aos
cuidados de quem foram entregues as famosas maçãs de ouro, que
Hera recebeu por ocasião de seus esponsais com Zeus.
A Noite engendrou ainda as Moiras, provedoras do bem e do mal,
a quem os mortais chamaram Cloto, Láquesis e Átropos; e as Keres,
vingadoras impiedosas que, em sua cólera sagrada, perseguem sem
cessar aos mortais e mesmo aos imortais que cometeram delitos, a fim
de infligir-lhes castigos exemplares.
Finalmente, a funesta Noite pariu Nêmese [a Vingança], açoite de
todos os mortais, e encerrou sua descendência dando à luz o Engano,
as Paixões, a terrível Velhice e, logo depois, a violenta Éris [a Discordia]
que, por sua vez, seria mãe do Esquecimento, da Fadiga, da Fome, das
Dores que provocam o pranto, das Batalhas, dos Assassinatos, dos
Massacres de seres humanos, bem como das Brigas, das Falsidades,
dos Discursos, das Ambigüidades, das Leis Injustas, da Ofuscação,
dos Amigos íntimos, das Cumplicidades e de Orco, aquele que maiores
desgraças causa aos mortais quando alguém comete perjúrio de forma
voluntária.
E à Noite que se refere a primeira lição moral sobre a qual se
fundamentaria nossa civilização contemporânea. A ela também
corresponde o desafio da razão criadora, associado por Platão ao célebre
Mito da Caverna; e através dos avatares de sua ampla descendência
compreendemos que, para os gregos, era o belo que interessava acima
de tudo. Sua intenção estética explica o sentido de espaço que
atribuíram ao Caos, um espaço amoldável, disposto a dinâmica da
ordem e, em caso algum, condenado a ser desfigurado.
Segundo Aristófanes, quando a Terra, o Ar e o Céu ainda não
existiam, a Noite engendrou um ovo no seio infinito de Érebo, e foi
desse ovo que saiu Eros, o Amor, ou mais exatamente o princípio de
atração que permitirá às criaturas juntarem-se entre si para crescer,
se multiplicar e participar da luz e da beleza. Somente esta referência
já dotaria de divindade a potência noturna, já que, saído do ovo
primordial, Eros se uniu de noite ao Caos alado no vasto Tártaro e fez
nascer a raça dos pássaros, a primeira das espécies viventes que vieram
a aparecer. Desse modo, antes mesmo que o Amor unisse todos os
elementos, e ainda antes que existissem os imortais, as aves povoaram
o universo, talvez para acentuar a importância do vôo, a liberdade na
qual se resume a sua condição.
Muito bonito, se é que existe, esse vínculo noturno de Eros
com os pássaros contrasta com a estirpe tenebrosa dos açoites que
afligem a todos os mortais. A Noite pariu o Destino, mas também
trouxe à luz o Sono e os Sonhos. Avó das Dores, teve por filha a
Rivalidade, ainda que já estivesse o Amor no mundo para enobrecer os
trabalhos de suas irmãs nefastas. Sem Nix a luz careceria de sentido,
e o símbolo solar de Apolo jamais reinaria ao lado da esperança. É das
trevas que surgem os prenúncios da leveza e da realidade. Atrás dela
caminha a luz prometedora que chega depois de uma angustiante
espera. A escuridão inflige um gemido, mas também antecipa a nova
ordem de deuses, semideuses, heróis e homens portadores de uma
transparência que opõe a Tânatos [ou à Morte] a fascinação da
aurora.
Lilith

Um demônio noturno, a paixão da noite, anjo exterminador das


parturientes, assassina de recém-nascidos, sedutora dos
adormecidos, uma prostituta voluntariosa ou, para um juízo mais
são, uma vontade poderosa que não se dobra diante da pressão
masculina e prefere a transgressão à vassalagem. Lilith é ímpeto
sexual, mulher emancipada e em fuga, sombra maligna por se haver
considerado em pé de igualdade com os homens; é igualmente a mais
remota concepção feminina, que transmigrou para o judaísmo pós-
bíblico a partir da mitologia da antiga Suméria como a primeira
mulher de Adão, como ele criada do pó e insuflada com o sopro divino
para fundar nossa espécie sem que houvesse aparente superioridade
do homem sobre a mulher, até enfrentar no leito o desafio de sua
submissão, o que provocou uma retificação mitológica por meio da
suposta debilidade de Eva.
Sabemos pouco, muito pouco do que poderia ser considerado o
antecedente mítico de um feminismo condenado desde o princípio,
demonizado por pretender certa satisfação sexual e marcado por
idêntico desprezo na Babilônia, nas tábuas da lei dos hebreus ou na
tradição legendária que alcança a Cabala e o Hermetismo da Idade
Média. Alguns descrevem Lilith como um ser alado e de cabelos longos,
bastante semelhante à representação dos querubins; outros a
apresentam com caninos ferozes e lhe dão por marido o demônio
Sama'el. Chamam-na Rainha do Mundo Inferior por suas aspirações
pecaminosas, ou esvaziam seus atos reivindicatórios considerando-a
instigadora dos amores ilícitos. O cabalista do século XIII Yitshaq ha-
Cohen e seus sucessores separam-na em duas: Lilith a Velha, esposa de
Sama'el, e a Jovem Lilith, unida a Asmodeos, outro dos principais
demônios, também conhecido como Ashmed'ai; tampouco faltam
associações com os vampiros que se alimentam de sangue para reviver,
no reino das trevas, o seu poderio.
Seja qual for a origem dessa imagem, o resultado é o mesmo em
quase todas as culturas que reconhecem nas mulheres uma potência
sexual de periculosidade inequívoca, sobretudo no momento em que
as tribos transitaram para o estabelecimento de um patriarcado que,
para se legitimar, tinha de desqualificar a autoridade feminina,
considerando-a, no mínimo, a perturbadora do leito conjugal. Lilith
ensina que, antes mesmo que Eva reconhecesse a beleza do corpo, a
mulher já estava preparada para assumir seu erotismo com o mesmo
vigor com que impunha sua presença em um mundo totalmente
submetido aos ditames divinos. Tal mundo era assinalado pelo poder
de criar, característico das mulheres. Disso decorre que, ao serem
estabelecidas as primeiras leis humanas, à imagem e semelhança de
Deus, Lilith tinha de ser censurada a fim de ceder seu simbolismo
fundador a uma Eva nascida da costela de Adão, inferior por sua
debilidade, ainda que igualmente responsável pela perda da inocência
humana.
Em geral, as versões coincidem com o registrado no século XVII
no Alfabeto de Ben Sira, cujos comentários bíblicos aludem à disputa
pela igualdade entre Lilith e Adão, que culminaria com a expulsão do
Jardim do Éden evocada no livro do Gênesis. Ao criar Adão, Deus
também extraiu a mulher do barro para que o homem não ficasse
solitário sobre a Terra; e a chamou Lilith, que, na língua suméria,
corresponde a "alento" [o sopro divino]. Porém, assim que os dois se
juntaram, começaram a discutir, pois ela se opunha a permanecer por
baixo do homem durante o ato da cópula. Aferrada à sua convicção de
igualdade, Lilith exigiu de Adão que modificasse sua postura para que
ela também desfrutasse do prazer do amor. Indignado, Adão se negou,
alegando que era próprio do homem deitar-se sobre a mulher e
afirmando que não acederia a seus desejos. Ferida em seu orgulho,
Lilith pronunciou o inefável nome de Deus e, enfurecida pela atitude
do marido, abandonou-o para sempre.
"Nós dois somos iguais" - disse-lhe Lilith antes de iniciar sua
carreira endemoninhada -, "uma vez que saímos do mesmo barro." Não
obteve justiça nem foi atendida por Adão em suas necessidades, motivo
pelo qual dessa disputa se originou a primeira cisão do laço
matrimonial e as conseqüentes vinganças mútuas que acabaram por
produzir crimes de sangue. Adão queixou-se a Deus e, para satisfazer as
demandas de seu servo, a divindade enviou três anjos à Terra, para
trazer Lilith de volta ao lar, com a ameaça de que, caso não concordasse,
mandaria matar cem de seus filhos a cada dia.
Os mensageiros Sennoi, Sansanui e Samangaluf saíram em sua
busca pelas planícies, montanhas e rios até que acabaram por
encontrá-la no Mar Vermelho. Ali imploraram a Lilith que concordasse
em regressar, que se submetesse aos caprichos de Adão e, com sua
obediência, evitasse a cólera de Seu Criador. Como ela persistisse em
se opor, os anjos advertiram-na de que recairia de forma inevitável o
castigo supremo sobre ela e sobre seus filhos. Humilhada no mais
profundo de seu ser, Lilith, ou a primeira Eva - como a chamariam
indistintamente os intérpretes da Bíblia -, jurou vingança fazendo o
mesmo a todos os recém-nascidos que encontrasse em sua passagem.
Se fossem meninos, podia degolá-los desde o momento de seu
nascimento até o oitavo dia, contingência coincidente com a data
determinada para a cerimônia da circuncisão. No que se refere às
meninas, sua ameaça de morte se prolongava até o vigésimo dia após
seu nascimento, o que sugere uma alusão a algum ritual semelhante
ou equivalente às múltiplas formas de mutilação feminina ainda
praticadas nas comunidades muçulmanas até hoje. Seu juramento,
contudo, deixou em aberto uma esperança de salvação, pois prometeu
não destruir as criaturas que portassem um amuleto com os nomes
dos três anjos, cuja proteção se estenderia também às mulheres
grávidas durante o parto.
A idéia de uma mulher boa e outra má, encarnadas por Eva e
Lilith, permaneceu até nossos dias, embora recaia também sobre Eva a
maldição atribuída a seu pecado de orgulho. E é este orgulho que
congrega todas as superstições vinculadas à sedução feminina e que,
através dos mitos, se manifesta a partir do simples desejo de
igualdade até os encantamentos da feiticeira que persuade a vontade
dos homens por meio de procedimentos ilícitos.
A imagem do demônio noturno que desliza para o leito daquele
que dorme incauto é, entretanto, a preferida das religiões modernas. O
exemplo de uma instigadora inclinada para o mal é o que melhor
expressa os preconceitos que predominaram em relação à função
perturbadora das mulheres, eternas responsáveis pelo pecado original
que levou os homens a perderem a sua pureza, a se envergonharem
do próprio corpo e a atentar contra os ditames divinos ao aspirarem à
imortalidade.
Refundida com sua pretensão de igualdade, diz-se que Lilith
habita as profundezas dos oceanos desde tempos imemoriais, e que ali é
mantida pelos guardiões supremos por meio de reiteradas censuras, a
fim de que não volte a perturbar a vida dos homens e de outras
mulheres. Todavia, sua sombra ressurge de tempos em tempos, quando
o clamor pela reciprocidade se infiltra na discussão de direitos e de
liberdades e cada vez que uma mulher descobre o significado mais
recôndito de sua criatividade.
Lilith, porém, não é somente a abandonada, sem leito próprio, que
viaja pelo mundo em busca de vingança com as mãos tingidas de
sangue jovem; também representa a mulher suplantada por outra que
lhe é inferior e submissa, pela simples costela do homem dominador,
pela esposa que renuncia a seu próprio erotismo em troca da
segurança conjugal. A mão de Lilith é percebida nas brigas
matrimoniais, nos desejos insatisfeitos, na separação dos casais, na
emancipação frustrada e nos castigos que recaem sobre as mulheres
que desafiam as normas sociais.
Eterna inconformada, sua discrepância essencial a vincula ao
demônio, à inadaptação e ao rancor. É por isso que se encontra ali,
atirada ao abismo, desaparecida nas profundezas do oceano,
atormentada por seus desejos; firme, porém, em sua vontade superior e
sempre à margem de regras que não aceita nem consegue modificar.
Lilith segue carregando a marca de sua perversão libidinosa,
condenada a gerar criaturas demoníacas, seres fantásticos, noturnos
como são ela e seus sonhos destratados. Sempre renovada e infatigável,
Lilith se aloja em cada mulher que imagina ser possível a verdadeira
eqüidade, em cada mulher que perturba os sonhos e devaneios dos
homens, naquela que menciona o inefável nome de Deus não para
acatar seus desígnios, mas para salientar o alento transformador de
sua própria criatividade.
Lilith é, por tudo isso, a paixão da noite, a criatura mais temida e
o anjo que vaga com a esperança de restaurar a ordem transtornada,
apesar de toda dor e de todo esquecimento.
Eva

A uma herança ancestral de mulheres batalhadoras, sensuais e de


sugestiva fecundidade, que antecipava na mitologia remota uma
esperança libertadora, a tradição religiosa de nossa era agregou - e
reforçou - a personalidade culpada de uma Eva que, em sua
irreflexão, é levada pelo diabo a pecar. Uma Eva que, ao comer do
fruto da árvore da sabedoria, seduz Adão e desencadeia o processo que
culmina com a expulsão do casal do Paraíso, marcando o princípio de
uma condição caracterizada pela dor, pelo trabalho e pela morte para
toda a humanidade.
A dor, esse castigo que aflige a consciência humana desde que a
Deusa deixa de ser deusa para se converter em filha e esposa de Adão,
prossegue com a sensação de vergonha que sofrem os dois por se
haverem apartado de Deus e provocado a queda em conseqüência de seu
descobrimento de eros, ou seja, de seu desejo de governar a própria
sexualidade. A mulher, desde então, arrasta consigo o tríplice
preconceito de haver cedido ao chamado do diabo; de se atrever a
incitar ao pecado não a qualquer homem, porém ao mais inocente e
puro de todos - àquele que, havendo resistido ao poder da serpente
maligna, é seduzido, por sua própria inclinação, a sucumbir ante a
imagem perfeita de seu Criador -; e, finalmente, de ser a culpada pela
perda do Paraíso. Uma imagem controvertida, é verdade, pois, apesar
de tudo, na presumida debilidade implícita de Eva caminha a liberdade
de tomar suas próprias decisões. É ela, em seu renascimento como a
primeira mulher representativa, quem explora uma experiência
espiritual vivificante e profana, mas autenticamente sua. É Eva
também que carrega a peculiaridade de dispor de um caráter
pensante que, mesmo predisposto ao emprego de artimanhas e com
poder suficiente para escolher por sua própria força moral, desobedece a
ordenação divina e assume o direito de viver entre o bem e o mal,
entre o risco de se equivocar e o de refletir com uma emancipação
geradora da nova ordem e do porvir humano dentro de sua plenitude
racional.
Segundo o mito do Gênesis, Adão é a prefiguração da excelência.
Sua vontade triunfa sobre o Maligno porque, sendo mais temeroso do que
Eva, não se atreve a atacá-lo; de antemão reconhece sua inferioridade e
não transgride as leis. Sua soberba surge com a sedução da mulher.
Diante da firmeza feminina demonstra-se uma vítima fácil, talvez
porque o demônio reconhece na queda da deusa que assume sua
humanidade uma característica semelhante à de sua própria condição,
aquela mesma que levou a ele, que fora um anjo postado à destra do
Pai, a invejar a onipotência infinita e, ao chegar o seu momento,
encarnar o mal absoluto através de sua rebelião.
Em um dos mitos mais complexos e duradouros, o da fundação da
espécie, se enredam os elementos da relação conjugal a partir daquilo
que Santo Agostinho qualificou de vaidade feminina, a porção
realmente instável no entendimento de sua suprema responsabilidade;
ou seja, aquela expressada pela soberba que é, desde sempre, o mais
abominável de todos os pecados, segundo os dogmas modernos. Santo
Agostinho se refere ao amor segundo seu próprio poder, ao orgulho
característico do anjo que persuade Eva de que, comendo o fruto
proibido, adquirirá uma divindade semelhante à de seu belo corpo e,
com ela, o poder de converter em reis do mundo a si mesma e a seu
esposo.
Se nos ativéssemos à mensagem dogmática, estaríamos diante da
definição feminina da luta pelo poder absoluto. Trata-se de uma ânsia
de domínio muito complicada, que surge da curiosidade do ser criado
pela perfeita criação do Criador, já que Deus moldou Adão do barro e o
animou com seu sopro divino, enquanto Eva foi formada de uma das
costelas de Adão. Isso pressupõe uma inteligência feminina engendrada
de carne e osso, impossível de se manifestar no barro primordial,
embora a carga de virtude plena se concentrasse na modéstia natural
masculina, em tudo satisfeita com os dons que lhe foram
prodigalizados no Éden.
Até parece que, desde suas origens, a mulher fosse incapaz de
suportar a felicidade completa, de ser outra coisa que não filha e
esposa do homem, do Deus Pai, e o centro da dinâmica do pecado e de
sua redenção. Por sua tendência a rebelar-se por meio da sensualidade,
a maioria dos teólogos ainda associou a ela a cobiça, leia-se também a
preexistência do impulso para a mudança, essa necessidade
tipicamente humana da esperança que nos leva a supor que existe
algo mais, diferente e melhor do que conhecemos e que, talvez,
obtenhamos à guisa de recompensa por revelar um mistério: neste
caso, o mistério da árvore do bem e do mal, que foi plantada por Deus
no Paraíso sabendo Ele muito bem que, mais cedo ou mais tarde, suas
criaturas provariam de seu fruto e que, uma vez condenadas ao
trabalho com esforço, participariam do desenvolvimento do mundo
parindo entre dores e redimidas pelo prazer; portanto novamente
legitimadas em intervalos de grandeza e de declínio, de razão e de
irracionalidade.
Sujeita a maiores interpretações do que as suscitadas pela figura
mais passiva de Adão, Eva inspira as duas posturas opostas do
raciocínio: em uma, comum entre teólogos antigos e modernos, é
atraída pela serpente porque carece de força moral e somente obedece
aos ditames de sua sensualidade; na outra, adotada pelo feminismo
psicanalítico, Eva é a deusa ante a morte de Deus na consciência
humana. Deixou-se seduzir pelo demônio precisamente porque contava
com um raciocínio eletivo superior ao do companheiro, ainda que, nas
religiões contemporâneas, seu mérito seja substituído por uma
deidade masculina e única - o Deus Pai -, aquele que cria e que age
por si mesmo.
É provável que o impulso pela mudança proviesse de sua
consciência primordial de fecundidade, já que a mulher fora talhada
para isso desde o início, ou seja, para criar ou gerar vida, o que
eqüivale a existir para o movimento e, como se sabe, a condição de
uma atividade civilizadora é a mudança de um estado para outro, fato
que, de todas as maneiras, explica a existência de seu espírito
transgressor.
Desde o ponto de vista do Gênesis, do Novo Testamento, do
Talmude, do Alcorão, do hadith e da mariologia1, a mulher é a menos
racional, a mais profana do casal e a culpada pela queda da
humanidade. Responsável pelo pecado original e herdeira do poderoso
caráter das deusas pagãs, inspira uma doutrina que somente adquire
sentido através da expiação purificadora. Eva, além disso, é a portadora
do signo perverso da palavra, já que tudo indica que a serpente falava
e que a linguagem resultou de uma conspiração entre o réptil com
Cabeça e língua masculinas e a sedutora criada para ser a ajudante e
serva dos desígnios de Deus por meio do homem. Sua sexualidade é a
preocupação essencial da tradição ocidental, da qual se desprende o
preconceito em relação à feminilidade perversa que estigmatizou as
fraquezas masculinas provocadas pelas mulheres.
Deusa edênica, a costela de Adão não ignorou o símbolo fálico da
serpente nem se apartou dos encantamentos característicos da
sensualidade profana. Eva diabólica, ao ingerir o fruto proibido seduz ao
pai-amante porque está imbuída dos poderes malignos; esposa de Adão,
reconhece nos regalos sensuais o doloroso preço do prazer, mas
também a piedade e a comunhão humana e redentora que a reconcilia
com a esperança, base inequívoca da criação; deusa-mãe, é a criada
criadora, consciente de sua fertilidade sucessiva e inclinada à
compreensão de outras debilidades pelas quais há de continuar sua
batalha paradisíaca entre o infinito absoluto e a mortalidade
cambiante, entre a irracionalidade da inocência perfeita e a
racionalidade responsável, sempre dinâmica e libertadora apesar do
temor da queda. Restauradora, Eva engendra a vida e suas leis
ordenadoras, quiçá como reação a fim de moderar seu próprio poder,
talvez como a forma exigida pelo ser humano para harmonizar a
lembrança do que foi perdido, a realidade que se sofre "com o suor do
rosto" e o desejo de restauração da excelência imutável protagonizada
por um Adão idílico que surge, floresce e se esfuma em sua evidente
infecundidade.
A história de Eva é, afinal de contas, a história de uma idéia que
representa a vida e o mundo. É também a referência iluminadora da
palavra, semente das ideologias mais sugestivas e instrumento dual
entre a luz e a escuridão. Desejo e remorso, gozo carnal, imaginação
fundadora e força libertadora: ela é a mulher, a deusa, a mãe e a
amante, a abnegada parideira de homens que atravessa os séculos
trazendo o símbolo da queda; mas trazendo também a consciência
eletiva de quem se atreveu a desvelar o mistério mais elevado: o da
sabedoria que estava entranhada na árvore proibida, imaginado por
Deus para que os homens sonhassem com sua própria divindade,
mesmo a preço de aniquilar sua suposta semelhança com o Criador.
Eva é, em síntese, o talento culpado que se arrepende de sua
escolha racional, um pensamento gerador de contradições e a primeira
tentativa de enriquecer o gozo herdado com o sonho da divindade,
consumada no ato da criação.
Com a humanização de Eva, o mundo realizou a etapa da morte
de Deus e o renascimento racional por meio da paixão e do
esquecimento. Eva está encarnada em cada mulher que pensa. Eva
renasce naquela que, por seu talento criador, repete os ciclos da queda,
da culpabilidade castigada e da restauração da ordem de uma
fecundidade que não pode ser detida.

1 Hadith é o registro narrativo das palavras ou costumes de Maomé e de seus


discípulos diretos, o corpo coletivo das tradições relativas ao Profeta e a seus
companheiros primitivos; Mariologia, termo cunhado em 1857, é o estudo da Virgem
Maria ou o corpo de doutrinas e dogmas a ela referentes. Não deve ser confundido
com a veneração ou adoração da Virgem, que é a mariolatria, designação em uso
desde o século XVI. [N.T.]
Ísis

De permeio à noite dos tempos, mais além do alcance da memória e do


esplendor construtivo de templos piramidais, os egípcios fundaram
uma crença a partir da idéia da morte e da vida que se encontra mais
além da vida. Sagrada e eterna, aquela visão universal dos defuntos
dominou o pensamento mítico de um povo que soube olhar para o Nilo
e nele contemplar o primeiro palpitar do pensamento. Sob a dupla
figura da ordem delimitada por ciclos de luz e de escuridão, inundação
e seca ou matéria e espírito, identificaram a existência de um equilíbrio
permanente entre a flutuação e o abismo e, a partir dessas idéias,
derivaram um conceito de Estado e de cultos regidos por reis-
sacerdotes cuja autoridade absoluta, concebida em função das
necessidades da agricultura, só prestava tributo às forças naturais e,
muito especialmente, às deusas mães. Brota daí a fonte da transmissão
do cetro faraônico pela linha feminina e a fidelidade a uma idéia religiosa
da família que, durante milhares de anos e centenas de governantes
distribuídos em dezenas de dinastias, reproduziu o modelo fundado
pelos irmãos Ísis e Osíris, pais de Hórus, cujo mito demonstra a
proeminência assumida pelo deus masculino sobre a deusa fecunda.
A origem do panteão egípcio é uma das mais obscuras, porém
invariavelmente está ligada ao símbolo da luz, ou Rá, consagrado
desde sempre como o princípio regente e criador. Longe de apagar sua
memória, o tempo deu origem a uma vasta família de deuses que, desde
os dias em que somente existia o oceano, de cujo ovo proveio o Sol,
cresceram e multiplicaram seus atributos a fim de prover de
divindades não somente o curso dos negócios humanos, mas as
concepções mais complexas do Além, sintetizadas pelo espírito viajante
do Bá.1
Solar em todos os seus aspectos, até em seu complemento, a
treva, essa civilização cresce em torno de um conceito rigoroso da
família que marca o poder com a imagem de rivalidades irmãs que
lutam entre si até a morte, como o fizeram também os faraós até a
queda final da dinastia ptolemaica às mãos dos romanos. Os gregos
tomaram de empréstimo aos egípcios os elementos fundamentais de
seus mitos, e foi neles que se inspirou a vertente dos mistérios na qual
se abeberaram numerosos credos. Ísis em especial, inclusive até
nossos dias, permaneceu como uma sombra benéfica na auscultação
do saber, talvez por seus dons esotéricos, por sua zelosa missão de
manter a legalidade e por seu afã protetor dos iniciados que
perscrutam as raízes profundas das evoluções humanas.
Únicos detentores da verdade, guardiões secretos das escrituras e das
mudanças espirituais, os sacerdotes do Nilo ensinavam que, no
princípio de tudo, o Sol gerou por si mesmo Geb, Shu, Tefnut e Nut, e
que ao se derramar sobre os três primeiros fez com que eles erguessem
os braços e elevassem sua irmã Nut até o céu para que ela
empreendesse sua jornada de transmutações criativas. Geb foi a Terra
que se estendeu sem demora acima do nível das águas para
prodigalizar sua semente. Enquanto ela enchia seu ventre com novas
vidas, Shu e Tefnut manifestaram-se na atmosfera com o vento
mediador, e Nut multiplicou-se com os astros no teto celeste até
formar, em conjunto, o universo adequado para abrigar a vida e a morte
na precisa ordem do movimento, que vai do material ao espiritual e da
passagem do espírito à concepção infinita da alma, que é
recompensada segundo as sentenças da balança reguladora do bem e
do mal.
Céu e Terra, chamados também Nut e Geb, geraram os quatro
deuses rivais, irmãos e amantes que fundaram a história política do
legendário Nilo. Da complexidade passional entre Osíris, Ísis, Néftis e
Set provieram as lutas do bem e do mal, a vida e a morte, a idéia de
Oriente e de Ocidente e uma rígida doutrina, inseparável do mundo
visível e do mundo inferior, que veio determinar os ciclos de alianças e
de perseguições que aparecem em todas as atividades divinizadas e
assinaladas pelo poder.
Casado com Ísis, o sábio Osíris governou sobre Busíris, cidade
do Baixo Egito, até que Set, premido pela inveja e coerente com sua
invariável perversidade, deu morte a seu irmão de uma forma tão
brutal que, como resultado de uma conspiração, destroçou seu
cadáver em catorze pedaços e ocultou-os nos lugares mais recônditos
para que ninguém pudesse reuni-los a fim de devolver-lhes a vida.
Depois disso, por sua vez entronizado, Set espalhou durante anos todo
o mal de que era capaz e não desperdiçou lugar nem ocasião para
hostilizar os domínios das duas irmãs que lhe restavam, as quais não
tardaram a escapar para um lugar distante a fim de evitar maiores
calamidades.
O mito de Ísis floresce então com a aventura de resgatar os
fragmentos de seu amado. Primeiramente, aliou-se com sua irmã
Néftis para buscar e reunir os pedaços, já que, segundo as crenças dos
povos do Nilo, sem corpo nem sepultura a alma do morto estava
condenada a vaguear em vez de gozar do eterno repouso do mundo
inferior; depois celebrou ritos amorosos com o cadáver, por intervenção
de seus atributos mágicos, até reanimar a essência de sua divina
fecundidade.
Velada e semi-oculta à luz da lua, Ísis escavou o deserto até o
fundo das areias, empenhada em reaver o corpo de Osíris. Auxiliada por
Anúbis, o deus-chacal guardião dos cemitérios, reuniu as pernas, os
braços, o tronco, o pescoço e a cabeça com tal minuciosidade que,
ainda que se notassem os talhos pequenos e grandes entre as partes, a
figura do deus surgiu quase completa ao pé de sua sepultura.
Talvez porque tenha sido violentamente esquartejado, Ísis jamais
encontrou o falo, o que significava que Osíris não poderia recuperar no
outro mundo sua antiga fertilidade. No entanto, realizou o prodígio da
gravidez de Ísis e esta deu à luz Hórus, o poderoso regente que haveria
de vingar seu pai em uma feroz batalha contra as forças do mal; logo,
o gérmen de Hórus assumiu a forma do falcão simbólico, que passou a
ser imediatamente invocado como "o olho de Rá", porque, ao desafiar
seu tio Set, este lhe arrancou um olho, que dividiu em oito pedaços.
Thot encontrou apenas sete deles, que foram integrados ao grupo dos
mistérios regentes que aparecem nas sepulturas, nos templos, nas
muralhas e nos sinetes do alto e do baixo Egito. Através da complexa
combinação de oito vezes oito, que resultava 64, número tido como
emblema da perfeição, os sacerdotes cifraram um difícil guia do
destino, que regulava o saber e os princípios morais nos quais se
alicerçava sua religião.
A propósito, pode-se recordar que também são 64 os
hexagramas do I Ching, o livro chinês da sabedoria, e que oito vezes
oito eqüivalia em geral tanto à expressão da experiência mundana
como à pluralidade entranhada no destino. Vislumbrar o destino era
precisamente um dos atributos das sacerdotisas consagradas a Ísis,
as quais, assim como Isa, a pitonisa da era dos atlantes, tinham de
usar véus até a altura das sobrancelhas para cobrir a cintilação que
provinha de seu olhar.
Ísis, por sua vez, aferrada à dignidade real que lhe outorgou seu
pai Geb, confirmou que foram 72 os cúmplices do invejoso Set e que
todos haviam participado conjuntamente do esquartejamento de
Osíris para instaurar no delta uma ordem opositora que seguramente
modificou o antigo regime tribal. Enamorada, Ísis inquiriu em vão a
respeito dos pormenores do crime; juntamente com sua irmã, em vão
procurou o membro perdido, chegando até o porto de Biblos, mas,
condoída, teve de deixar Osíris mutilado. Seu amor, não obstante,
infundiu no cadáver uma vida nova e Osíris, através de sua legendária
ressurreição, abre aos homens o caminho para a sobrevivência
espiritual na vida de além-túmulo.
Ao se instaurar o culto de Osíris, as religiões egípcias se
ampliam e dilatam graças à consciência que Ísis desperta nos
homens ao expor-lhes o problema do bem e do mal. Além de seu
simbolismo solar, este mito é a origem dos princípios morais e, ao
elevar-se à condição de juiz e regente do mundo destinado aos mortos,
Osíris cria a primeira figura jurídica instituída em uma civilização.
Inseparáveis desde remotos acontecimentos históricos, Ísis,
Osíris e Hórus abandonaram seu caráter de mito agrário para se
assenhorear do emblema político da família real, particularmente em
torno dos governos monárquicos estabelecidos nas cidades do delta
associados à descoberta e à exploração das minas de ouro. É também
dessa época a invenção da escrita egípcia, a criação das artes - ambas
realizações de Thot - e a versão legendária de que, no vigésimo oitavo
ano de seu reinado, um certo Osíris monárquico é vítima de uma
conjura comandada por Set, que o atira ao Nilo com o auxílio de 72
conspiradores. Quando Ísis encontra o cadáver, Set mutila o corpo
esquartejando-o em quatorze pedaços que serão repartidos entre seus
cúmplices. Reunificados por Ísis, com exceção do falo, Osíris a
fecunda milagrosamente, sem intervenção da carne, e ela dá à luz
Hórus, o futuro conquistador do Egito, vingador de Osíris e semente do
mito que seria conservado e reproduzido nos símbolos reais de todos
os faraós.
Osíris, deus e juiz do Oeste, transfigurou-se, para todos os
tempos, em modelo do processo da ressurreição que transita da luz
solar para a luz noturna, da vida material para a vida do espírito, da
temporalidade para a atemporalidade e dos cultos de fertilidade
presididos pela ampla linhagem de deidades que governam a vida
depois da vida para o ocultismo que alcança a cabala. Osíris, além
disso, completou o poder jurídico de sua esposa Ísis, a manifestação
de maior simbolismo no ritual feminino da conservação dos cetros.
Misteriosa, deusa mãe e transmissora do símbolo real, Ísis esteve
sempre dotada de atributos lunares. É a entidade que resguarda os
acontecimentos noturnos da mesma maneira que guia o oculto do
pensamento à luz, no duplo sentido de conduzir os falecidos pelos
caminhos do mundo inferior e, durante o despertar da inteligência,
para o mundo da claridade. É a regente dos poderes mágicos, dos quais
se valeu para ressuscitar o marido. É a mãe real e a grande maga,
adorada em sua terra até a ascensão do helenismo e, nos tempos de
Roma, uma das maiores divindades, conforme relatam Apuleio e
Plutarco. Velada durante a celebração dos ritos, Isa foi a expressão do
sacerdócio de Ísis no Templo do Sol e da Lua, que se localizava entre os
pés da Esfinge.

1.Os egípcios acreditavam que cada ser humano possuía duas almas: o Ká, ou
Duplo, que acompanhava o corpo em sua tumba e vigiava sua própria múmia; e o Bá,
que partia para o mundo dos espíritos, viajando na barca do Sol até comparecer
perante Osíris e enfrentar o seu julgamento. [N.T.]
Hera

O arquétipo de Hera perdura em cada mulher que se casa acreditando


que o matrimônio é a consumação da satisfação feminina. Fiel, apesar
dos maus-tratos de Zeus, ciumenta infatigável que vaga pelos recantos
a fim de coletar evidências da lascívia de seu marido, Hera é a deusa
privada de todos os seus atributos, exceto do dom da profecia, que
exerce através da boca de humanos e de animais para se vingar dos
filhos e das muitas amantes de Zeus, muito particularmente de
Héracles, o mais odiado de todos. À primeira vista, seu vínculo
matrimonial parece uma relação de amor e ódio; porém, na realidade,
cultiva a posse com a argúcia das mulheres que, escudadas em seus
direitos, espiam, humilham, vigiam, perseguem e chantageiam os
homens mediante pressões que começam com prantos sutis e vão-se
transformando em ciclos de fúria e recriminações, até coroar com o
rancor uma suposta debilidade atribuída à traição.
Padroeira das mulheres casadas, seu mundo adquire sentido em
função do esposo. Sobre Hera recaem as virtudes e superstições do
protótipo que sustenta o lar com o ideal do marido bem-sucedido,
reconhecido por seu poder e notável em seu trabalho. Convencida de
que a união matrimonial é sagrada, Hera vive em cada mulher que
permanece à sombra do marido, rendida a seus laços indivisíveis,
obcecada, magoada e furiosa. Manipuladora, exerce seu mando como
adversária na cama, mas ao sofrer a aspereza moral frente a paisagem
devastadora provocada por seus ciúmes, suporta o castigo muito mais
além do que exigiria o respeito, ainda quando Zeus reconhece sua
astúcia para cegá-lo diante de um erro evidente, como ocorre com
relação aos heróis homéricos na Ilíada. Sagaz e espertíssima, lança
palavras furiosas, jura, promete, ameaça ou afronta com altivez sem
par; os outros deuses julgam-na ou intervém em seu relacionamento,
seja a favor, seja contra, e sempre acaba rendida à poderosa vontade
de seu marido. Contra sua natureza impulsiva, inferior à do belicoso
Ares ou à da batalhadora Atena, inferior inclusive à natureza do
vigoroso Héracles, Hera opõe uma atitude compreensiva, em
conformidade à sua hierarquia, e não é raro encontrá-la representando
um papel de intermediadora social, até mesmo quando adota as piores
monstruosidades de Equidna ou Tífon, que no momento apropriado
seriam utilizadas contra Héracles.
Hesíodo lhe atribui a criação do Leão de Neméia, um monstro
invulnerável, nascido dos mesmos Equidna e Tífon, assim como da
perversa Hidra, a venenosa serpente aquática de muitas cabeças que
vivia nos pântanos de Lema, perto de Argos, a qual, por sua vez daria à
luz a Quimera, uma criatura tricéfala de pés ágeis, violenta e tão enorme
quanto terrível. Cada vez que uma cabeça da Hidra era cortada, brotava
do coto outra ainda pior. Tanto ela como o leão seriam vencidos por
Héracles e Iolau, seu companheiro de armas, como parte dos Doze
Trabalhos. Iolau queimava em vão os cotos da Hidra com tições
ardentes, enquanto Héracles, longe de se dar por vencido, molhava suas
flechas no próprio sangue da inimiga a fim de tomar incuráveis suas
feridas e derrotá-la junto com o caranguejo que a auxiliava por ordem
da deusa. Esmagado pelos pés do herói, o caranguejo acabaria sendo
transformado na constelação de Câncer. Quimera, por sua vez, seria
mais tarde abatida por Pégaso, colaborando com o valente
Belerofonte.
Diferentemente da criminosa Medéia, que assassinou sua rival e
a seus próprios filhos antes de abandonar para sempre o marido, Hera
se confinava na obscuridade a ruminar seus fracassos ou empreendia
longas viagens a fim de recuperar a confiança perdida em
conseqüência de suas torpezas. De volta a seu assento mítico, ali ficava
outra vez, entronizada, ciumenta de seus domínios, cuidadosa e
furibunda, governando disfarçadamente o marido, conjeturando para
confirmar suspeitas, endurecendo as regras de um jogo doméstico
astucioso, ofuscada em sua posição e guiada pelos preconceitos da
vida em comum, ainda que os fatos provassem que suas atitudes eram
a rota mais segura para sua própria infelicidade.
Filha mais velha de Cronos e Réia, Hera nasceu na ilha de Samos,
onde Cronos devorava vivos a seus filhos assim que saíam do ventre
sagrado, para que nenhum deles pudesse obter a dignidade real que ele
ostentava sobre os imortais. Seu pai, o estrelado Urano, e sua mãe, a
Terra, haviam profetizado que um de seus descendentes o destronaria.
Em seu destino já estava pré-traçada a condenação de sucumbir pelas
mãos de Zeus e, sempre ã espreita e com a mente astuta, o Tempo
devorava um após o outro seus filhos assim que Réia os dava à luz, até
que, antes de parir o último deles, o grande Zeus, a deusa buscou a
proteção de seus pais para salvá-lo. Abrigada pelo cair da noite, Réia
foi enviada por Urano e Gaia à terra de Licto, onde nenhuma criatura
projeta sombras, para que pudesse parir e ocultar o recém-nascido em
uma caverna escarpada rodeada por árvores, nas faldas do monte
Egeu, de onde se atingiam as entranhas da Terra.
Ali, depois de ser banhado no rio Neda, o pequeno Zeus
permaneceu em Creta, vigiado pela avó, onde foi criado com leite e mel
em um berço de ouro pela ninfa-cabra e pela ninfa-freixo, ao lado do
cabrito Pan, seu aliado e irmão adotivo. Sua infância transcorreu em
meio a hábeis artimanhas para que seu pai não o encontrasse, e dali
só saiu quando finalmente se achava preparado para vencê-lo.
Vítima da argúcia de Réia, Cronos engoliu uma pedra envolta
em lençóis crendo, assim, que triunfaria sobre os ditames do Destino.
Porém, descobriu o logro e pôs-se a perseguir o menino durante o
mítico rastreio que não chegou a um término até que Zeus, disfarçado
de seu copeiro e seguindo os conselhos de Métis, misturou sal e
mostarda à sua bebida doce para que vomitasse, ilesa, a multidão de
filhos que o Tempo conservava em seu estômago. Foi essa pedra
emblemática, antes mesmo que seus irmãos e irmãs mais velhos, a
primeira coisa a ser expelida por Cronos durante sua legendária
náusea, e a que definiu a posterior batalha contra os Titãs, que
entronizou os olímpicos, a segunda e mais perdurável geração de
deuses.
Logo a seguir, por haver libertado os ciclopes que Cronos havia
confinado no Tártaro, estes recompensaram a Zeus com o trovão, o
relâmpago e o raio, até então ocultos entre as "rugas da Terra", ou de
Gaia. Hades deu-lhe o elmo da invisibilidade e Poseidon ofereceu um
tridente àquele que viria a ser o Pai do Céu. Os gigantes de cem
braços, no mais aceso da batalha, lançaram pedras contra os demais
titãs, e os gritos do cabrito Pan puseram-nos em fuga para selar a
vitória.
Desterrados para uma ilha longínqua, os titãs nunca mais
vieram perturbar a Hélade, porque Atlas, seu general, foi condenado a
carregar o firmamento nas costas, um castigo exemplar. Zeus, por sua
parte, apoiou-se em seus dons supremos a fim de governar sobre
mortais e deuses, e fez venerar a pedra sagrada no santuário de
Delfos, onde se afirma que permanece até o dia de hoje.
Onde termina o mito de Cronos - que eleva o de Zeus -,
começa o de uma Hera que não era ninguém até que se casasse com
o Pai dos Céus. Dela se diz que suas amas foram as estações do ano e
que, na Arcádia, foi educada por Temeno, o filho da terra Pelasgo, ou
Antigüidade. Talvez tenha sido em Cnossos, ou no cume do Thornax,
na Argólida, que Zeus a tenha cortejado, disfarçado de cuco, uma ave
trepadora que costuma colocar seus ovos nos ninhos de outros
pássaros. Ardiloso e matreiro, tal como perdiz arrastava-se
graciosamente sobre o solo, ocasião em que ela acalentava-o em seu
seio. Hera conversava com ele e lhe confiava seus sonhos até que, de
repente, Zeus assumiu sua verdadeira forma para violá-la, enchendo-
a de vergonha e desespero.
No caso típico da jovem que, em meio a atrozes conflitos
sentimentais tem de se casar para compensar a perda de sua
virgindade, Hera, uma donzela idealista, se converte em esposa e mãe
por excelência. Apesar da fúria de Réia, que previa muito bem a luxúria
de seu futuro genro e que, por opor-se à união, foi também violentada
por Zeus - desta vez sob a forma de uma serpente -, todos os deuses
vieram com presentes para participar dos esponsais. De Gaia, recebeu
a célebre árvore das maçãs de ouro, que Hera plantou em seu jardim,
no monte Atlas, para ser vigiada pelas Hespérides. Foi devido a uma
dessas maçãs, atirada com raiva por Éris entre as deusas rivais, que
surgiu a expressão "pomo da discórdia", citada pela primeira vez nos
cantos de Homero, em um dos episódios centrais da Guerra de Tróia.
Hera e Zeus passaram sua noite de núpcias na ilha de Samos.
Foi uma longa noite de trezentos anos, semeada de altercações, intrigas
e humilhações recíprocas, da qual Hera saiu para se banhar, buscando
recuperar a virgindade na fonte de Canatos, que ficava nas proximidades
de Argos, onde foi erguida uma estátua em que aparecia sentada em
um trono de ouro e de marfim. Em meio a certas dúvidas sobre a
origem verdadeira da gravidez de Hera, o mito a atribui ao fato de a
deusa ter tocado em uma determinada flor; dela nasceram Ares, o deus
da guerra, e talvez também sua irmã gêmea, Éris, a Discórdia. Daí
também nasceu Hefestos, o padroeiro dos ferreiros, caldeireiros e
oleiros, que mais tarde aprisionou sua mãe Hera em um engenhoso
trono, com braços que se fechavam a seu redor, porque não acreditou
que ela o houvesse gerado sozinha, sem a intervenção direta de Zeus.
A deusa permaneceu em cativeiro até que Dionísio embriagasse o coxo
Hefestos e o levasse de volta ao Olimpo para que libertasse Hera e se
tornasse seu aliado a partir de então. E nasceu ainda Hebe, a mais
moça e associada, por sua concepção peculiar, a uma alface, que foi
copeira dos olímpicos até casar-se justamente com Héracles.
Cansada dos petulantes excessos de Zeus, Hera conspirou
contra ele com Poseidon, Apolo e os demais olímpicos, com exceção de
Héstia, acreditando-se superior ao Pai dos Céus tanto em argúcia
como em autoridade. Surpreendendo Zeus adormecido em seu leito, os
rebeldes imobilizaram-no amarrando-o cem vezes com cordas de couro
cru, pretendendo dar um golpe de Estado. Tendo dominado e escondido
o raio, celebraram seu triunfo com insultos e troças, sem dar escuta às
ameaças do Pai dos Céus. Mas enquanto deliberavam sobre o nome de
quem deveria tornar-se seu sucessor, a discussão foi ficando cada vez
mais acalorada, os ânimos da família divina foram-se exaltando e
sobrevieram contendas tão ferozes que chegaram a fazer tremer o
Olimpo. A prudente Tétis previu o estourar de uma guerra civil e, para
evitar a catástrofe, correu em busca de Briareu, um dos gigantes, para
que viesse em seu socorro e empregasse simultaneamente seus cem
braços a fim de desamarrar o cativo antes que os demais deuses
pudessem acorrer para impedi-lo.
Por haver encabeçado a conspiração, Zeus pendurou Hera no
firmamento com um bracelete de ouro em cada pulso e uma bigorna
pendente de cada tornozelo. Apesar de seus gritos lancinantes,
ninguém se atreveu a intervir para não exacerbar a cólera de seu chefe
que, com raio ou sem ele, era perfeitamente capaz de distribuir
castigos aqui e acolá. Condenados a construir a cidade de Tróia,
Poseidon e Apolo foram enviados a servir ao rei Laomedonte, e Hera só
pôde ser libertada quando os demais olímpicos, a contragosto e entre
as habituais pendengas da família divina, juraram fidelidade e
obediência a Zeus.
A história de Hera se dissipou, desde então, nos pequenos
assuntos com os quais cada mulher repete na intimidade os ciclos de
vingança e revolta marital que, finalmente, dariam margem ao
estabelecimento do patriarcado característico de nossa cultura.
Alcmena

Os antigos deuses se apaixonavam como os homens, mas não


batalhavam, nem se divertiam como eles. Concluído o ato da criação,
os mais hábeis venceram os atlantes e, uma vez instaurada a ordem
olímpica, se entregaram ao ócio durante a Idade do Bronze, enquanto
o fogo, o ar, a água e a terra estabeleciam seus próprios domínios e a
linguagem se convertia em uma das maiores defesas das comunidades
tribais. Para a história do ser e da cultura, esse seria um dos capítulos
mais intensos do pensamento mítico. Afora o fato de as divindades
começarem a se intrometer caprichosamente até nos pormenores dos
assuntos dos mortais, o mundo clássico respondeu ao desafio da
sobrevivência com façanhas que deram início à glorificação dos heróis.
Era a hora dos portentos, da ascensão dos vigorosos e dos
semideuses gerados com o ímpeto desmedido dos criadores. Entre os
povos, as aventuras heróicas deram margem a que os deuses
demonstrassem suas preferências ou extravasassem suas desforras.
Multiplicaram-se as provas para honrar os homens e os ventres de
algumas mulheres experimentaram a gestação de uma nova raça de
ninfas, donzelas, faunos, guerreiros, heróis ou sátiros que
prodigalizaram a matéria sublime sobre o restante da existência
humana até alcançarem a geração de artistas, governantes, filósofos e
sábios; que empreenderam a aventura humana da criação ao
reconhecerem em seus espíritos o imenso prazer de entender, construir
e elaborar coisas belas, as quais engrandeceram seu sentido de ser no
mundo.
A argúcia era o único estágio da razão valorizado durante a idade
dos mitos. O importante era vencer a índole rude de um tempo
anterior às leis e à ordem civilizadora. Pela força ou por meio de ardis,
demonstrava-se a superioridade de uns sobre os outros. Salvo pelo
descomedimento na utilização dos atributos supremos, não existia
grande diferença entre os eventos do Olimpo e a vida dos mortais.
Estupradores, vigaristas ou oportunistas, os deuses enganavam uns
aos outros do mesmo modo que se valiam dos homens para instigar
ou desenvolver aptidões a seu bel-prazer. Zeus, sobretudo, aproveitava
sua fascinante facilidade para transfigurar-se de ave em réptil, de
serpente em águia ou para transmutar-se de perdiz em ganso, não para
fazer o bem, mas para satisfazer sua luxúria. Também se valia do raio,
interpunha nuvens carregadas aos dias mais claros, incitava ao ataque
monstros adormecidos ou permitia a seus subalternos praticarem
qualquer tipo de tropelias. Chefe supremo, oscilava entre a ordem e o
caos, o que acabou por provar que, em questões de autoridade,
ninguém está isento das tentações do abuso.
Os imortais eram campeões da dissimulação. Não menosprezavam
a mais desprezível das manobras quando se tratava de intrigar ou de
satisfazer um capricho. Zeus, dominador persistente, não se furtava ao
menor estratagema até consumar exitosamente a aventura pretendida.
Tampouco economizava energia, imaginação ou faculdades divinas
para cortejar deusas, ninfas, mulheres casadas ou donzelas, ainda que
seja digno de nota que jamais conseguiu persuadir a nenhuma sob
sua forma real, nem conheceu reciprocidade amorosa dentre a
multidão de mulheres que possuiu com violência e sempre encoberto
por uma infinidade de mentiras e logros que, se bem não ajudaram a
conservar ou fortalecer a ordem do mundo, enriqueceram a fantasia
com sua torrente de prodígios.
Atreveu-se até mesmo a interromper o curso do tempo para, por
exemplo, possuir Alcmena em um instante equivalente a três noites.
Alcmena, enaltecida em sua virtude desde que havia jurado a
Anfitrião, seu marido, que não se deitaria no tálamo nupcial até que
ele vingasse seus oito irmãos assassinados por Pterelau, o rei dos
telebeus, via passar com indiferença os cortejos obsessivos de Zeus; e
nem o desejo de Anfitrião conseguia abrandar o ódio com que
suportava a prolongada carga de sua virgindade, motivo das
contendas que provocaram a posse do gado e sua posterior expulsão
da Argólida para Tebas.
No momento em que ficou a par de que o aguerrido Anfitrião
havia exterminado finalmente os últimos dos telebeus, que confiscara
a taça de ouro do recém-decapitado Pterelau como divisa de sua vitória
e que empreendia o retorno ao lar ensaiando doces palavras de amor, o
Pai do Céu ficou aturdido por uma paixão tal que o deixara totalmente
cego. "Somente com ela" - declarou aos outros deuses -, "serei capaz
de gerar o melhor de todos os homens, aquele que, por meio de sua
força, há de dignificar meu nome e se elevará por suas façanhas acima
do resto dos mortais."
Desse modo, Zeus decidiu assumir a aparência do incauto
Anfitrião, que de nada suspeitava, e possuir assim sua esposa
mediante um elaborado artifício. Antes de apresentar-se na alcova de
Alcmena com a impostura do triunfo, Hermes, por ordem de seu amo,
fez com que Hélio apagasse os fogos solares, deteve a Lua, desatrelou os
cavalos do Tempo da carruagem das Horas e ordenou a Morfeu que
adormecesse os homens durante três dias e três noites para que
ninguém se pudesse interpor ã consecução da infame tarefa de Zeus,
porque uma criatura tão grande como o filho que ele pretendia gerar não
poderia ser concebida às pressas.
Consumado o desejo divino, o dia amanheceu com normalidade. As
Horas se atrelaram novamente ao carro e o Tempo seguiu seu curso. O
episódio ocorrido com Alcmena foi o único que não compartilhou da
premeditada paralisia. Quase ao mesmo instante, quando se
apresentou o verdadeiro Anfitrião perante ela, a cena transcorrida se
repetiu, exceto que agora com os verdadeiros protagonistas. Anfitrião
saudou a amada com o relato de suas façanhas, enquanto ela piscava
os olhos, perturbada. Como seria de esperar, ao mostrar-lhe a taça de
ouro saqueada, o marido envolveu-a com doces pedidos, convidando-a
a cumprir sua promessa.
- Mas como não estás satisfeito? - indagou-lhe. - Recomeças o
relato como se fosse uma novidade, como se não me tivesses descrito
uma por uma as mortes dos inimigos e tal como se minha resposta no
leito tampouco te bastasse. Mal consigo me mover de tanto que me
amaste durante esta noite, a mais longa que nos concederam os
deuses...
- Mas que é isto que me dizes, esposa minha? Aqui estão os
homens que me acompanharam, aqui está meu escravo Sósia e a teus
pés os despojos que evidenciam o cumprimento de minha vingança...
Piso os umbrais da casa depois de uma longa viagem e nenhuma outra
coisa senão o desejo irá satisfazer meus anseios...
Nem bem acabava de surpreender-se com o que lhe contava a
virtuosa Alcmena, quando um raio se interpôs entre eles, fazendo com
que Anfitrião se desse conta de que ninguém menos do que Zeus se
havia adiantado a ele. Ao consultar o adivinho Tirésias, este lhe
confirmou a suspeita de que o próprio Pai do Céu lhe havia colocado
chifres. Reconstituindo a artimanha, perceberam que também Hermes
havia participado da farsa fazendo-se passar por Sósia, o escravo
enviado até a alcova para comunicar a vitória de seu amo, e quem, em
uma das numerosas versões do mito do nascimento de Héracles,
protagoniza o diálogo fundador da idéia de duplo que é definida por
seu nome até nossos dias
- Quem é você? - perguntou Hermes ao escravo com fúria
dissimulada.
- Sou Sósia, enviado por meu amo Anfitrião para anunciar a
vitória à sua esposa.
- Sósia? Mas o que você está fazendo diante de meu portão? Sósia
sou eu, o escravo do senhor desta casa.
- Isso é impossível! - protestou o verdadeiro escravo. - Eu sou
Sósia!...
- Mas como você se atreve a me dizer que se chama Sósia,
quando eu me chamo Sósia e sou o próprio Sósia? - disse-lhe o deus,
aparentemente zangado, perante o que o infeliz, bastante
desconcertado, só pôde indagar:
- Mas se você é eu e se você é Sósia, então, quem sou eu?
- Você não é ninguém; não enquanto eu for Sósia. Quando eu me
cansar de ser Sósia, então lhe darei permissão de ser novamente o
escravo que foi e chamar-se Sósia outra vez.
Reconstruindo os acontecimentos, deram-se conta de que o
amo, a taça, o escravo, todos os participantes haviam se duplicado por
obra e graça de Zeus, com exceção da desonrada Alcmena. Consciente
de que contra o deus não era possível empreender qualquer vingança,
alguns acreditam que Anfitrião se apressou a engravidar a esposa,
ainda que esta compreendesse imediatamente que já se movia em seu
ventre a matéria deixada pelo deus.
Nove meses depois, Alcmena deu à luz gêmeos, Héracles e Íficles;
o primeiro era produto de suas relações com Zeus; o segundo era filho
de Anfitrião. Antes que lhe dessem o nome de Héracles, que significa
"glória de Hera", ele foi chamado Triseleno, ou filho da lua triplicada
pelo deus para exaltar a força do menino que, segundo Diodoro, desde
antes de seu nascimento já se convertera no maior orgulho do Pai dos
Céus e, portanto, em objeto dos ciúmes incontidos de Hera, que nunca
relaxou seus esforços para destruí-lo desde o momento em que seu
marido anunciou à assembléia do Olimpo que aquele que nascesse ao
despontar da aurora, acima de todos os descendentes de Perseu, seria
o chefe dos argivos.
Héracles, nexo entre a rivalidade dos deuses e as aspirações de
todos os mortais, transformou-se a partir de então no herói por
excelência, quem não somente derrota todos os artifícios de Hera, mas
se faz digno da imortalidade, que lhe é conferida em recompensa por
seus trabalhos.
Alcmena, Hera e Héracles formam um triângulo simbólico no
cenário helênico. Mulher, deusa e herói fisicamente superdotado
reúnem entre si o repertório de qualidades e defeitos que antecedem o
estado de consciência que permite a todos os seres circunscrever sua
situação no Olimpo e no mundo. Em que pesem suas diferenças, são
unidos pela mesma confusão de funções com respeito ao ideal de
humanidade apenas elucidado através dos mitos, e ao processo
espiritual mediante o qual os gregos chegaram a construir uma
poderosa civilização a partir da idéia de destino, desde seus estados
mais primitivos até a experiência organizada da educação, por meio da
qual elevaram suas capacidades a um grau muito superior. Em razão
daquilo que envolve o nascimento e posterior desenvolvimento de
Héracles, ou Hércules - como foi modificado seu nome mediante o filtro
latino -, percebemos que a veia de curiosidade que sobreveio na mais
alta conquista da lógica e da abstração filosófica procede da luta
essencial entre o poder da vontade, a vontade de atuar e o poder de
modificar os elementos primários da conduta e da adversidade,
indivisíveis da dupla figura da sobrevivência e da morte. Parte daí a
carga vital, criadora e plástica que encerra os mitos, a verdadeira fonte
de nosso pensamento inclinado à busca de uma grandeza inseparável
da vontade altíssima de um povo que aprendeu a esculpir seu destino a
partir de um sentimento de dignidade profundo e quase instintivo.
Alcmena é a mulher seduzida por um deus que carece de vontade
para determinar seu destino; Hera tampouco consegue governar
plenamente o seu, nem mesmo com sua divindade, pois sua história
transcorre entre desvarios de seus ciúmes humanizados e penhores
divinos, quase sempre submetidos às ações de Zeus, seu marido e
regente supremo; e Héracles, um dos maiores heróis da Antigüidade,
precisa de uma força sobre-humana para vencer as provas que o
tornarão digno não do controle de sua própria vida, mas da
imortalidade, por meio da qual honrará para sempre com fidelidade o
Pai dos Céus que o gerou.
O tempo dos mitos, anterior ao da tragédia - quando os homens
aprenderam a lutar com todas as forças da alma contra o destino e a
reconhecer sua própria potência -, nos lega a lição de como se trama a
vida a partir das profundezas do medo. E o medo foi a primeira coisa
que os heróis se atreveram a desafiar antes de pretender igualarem-se
às entidades superiores e muito antes de qualquer germe de inteligência
educada. Experimentavam um medo diferente daquele padecido por
nossas mentalidades mais complexas; era algo muito mais apegado ao
instinto e desprovido de expectativas, que agora se tingem de
melancolia. A necessidade de lutar para viver alijava-os não somente
de padecimentos imaginários, mas canalizava sua enorme energia para
imaginar acontecimentos e personagens extraordinários. A natureza
acolhia-os mas também os intimidava por sua profusão de tormentas,
raios, centelhas, secas, furacões e eclipses, assim como pela
abundância de feras e de elementos desconhecidos, contra os quais
tinham de se bater mesmo que auxiliados pela magia ou pela bondade
dos deuses.
E é isto que mais se ressalta na figura do herói e de sua força:
magia, proteção divina e os feitos de valentia temerária, atributos que
fizeram de Héracles um modelo de arrojo para qualquer guerreiro. Um
modelo que, em seu caso, começou a se manifestar desde antes de seu
nascimento quando, por causa do orgulho manifestado por Zeus
diante dos outros olímpicos, Hera enlouqueceu de ciúmes e ideou um
ardil para impedir que o filho de Alcmena nascesse na aurora e se
tornasse, segundo o anunciado, o chefe de todos os argivos. Conseguiu
de Zeus a promessa de que, se na casa de Perseu nascesse algum
príncipe antes do anoitecer, seria este o rei supremo, ainda que o deus
tivesse anunciado o cetro em favor do filho de Alcmena.
Em um abrir e fechar de olhos Hera deixou o cume do Olimpo,
conforme registrou Homero na Ilíada, chegando a Micenas, onde sabia
que em casa de Perseu estava Nicipa, esposa de Esteleno, em seu
sétimo mês de gravidez; induziu-lhe o parto para que o prematuro se
adiantasse ao produto de Zeus e governasse por direito próprio o povo
de Argos, já que era, tanto por via materna como paterna, descendente
direto do nobre Perseu. Logo a seguir correu a Tebas a fim de sentar-se
de pernas cruzadas defronte a alcova de Alcmena, amarrou toda a sua
roupa com uma série de nós e lhe entrelaçou todos os dedos a fim de
dificultar o trabalho de llítia, a deusa do parto, até que o prematuro
Euristeus, filho de Nicipa e Esteleno, já estivesse dormindo
placidamente em seu berço.
Cheio de desgosto porque o nascimento de Héracles fora assim
atrasado, Zeus não teve outro remédio senão cumprir sua promessa, a
fim de mitigar o furor de Hera. Agarrou pela cabeleira sua filha mais
velha, Ate, quem lhe impedira de descobrir as manobras de sua
esposa, e a fez girar pela cabeça até lançá-la à Terra enquanto gritava
irado que, como castigo, nunca mais lhe permitiria pisar outra vez no
Olimpo. Em uma das versões do mito, para não violar a palavra
empenhada, Zeus convenceu sua esposa de que seu filho Héracles
ascenderia à divindade caso realizasse doze trabalhos, os quais
seriam indicados pelo próprio Euristeus quando passasse a reinar
sobre todos os povos argivos. Uma outra interpretação assegura que,
ao ser acometido por um violento acesso de loucura, Héracles
assassinou a esposa e os filhos e acorreu a Delfos em busca de uma
forma de apaziguar o remorso. O oráculo lhe disse que, a fim de expiar
seus crimes, deveria realizar as doze memoráveis tarefas impostas por
Euristeus, nas quais se alicerçou a lenda de sua imortalidade.
Qualquer que seja a versão mais acertada, o inegável é que
Alcmena repudiou Héracles desde o instante de seu nascimento; seu
irmão gêmeo Íficles, ao contrário, amou por ser filho do matrimônio,
abandonando o primeiro por trás das muralhas de Tebas. Vigilante
desde seu trono no Olimpo, Zeus espreitava minuto a minuto todos os
movimentos do menino. Vingador e matreiro, fez com que Hera fosse
dar um passeio ao redor dos limites de Tebas em companhia da já
instruída Atena, a fim de que, aparentemente por causalidade, se
deparassem com a criança. "Olhe, querida Hera, que criança saudável e
robusta!" - disse Atena a sua maternal companheira que, em vez de
simplesmente lamentar o abandono da criança, tomou-a ao peito
para amamentá-la. Héracles chupou o seio com tanta força que a
deusa atirou-o de seus braços, atravessada pela dor. Expeliu então um
jorro de leite tão vigoroso que ascendeu ao firmamento para finalmente
se converter na Via Láctea. Foi então que percebeu o ardil de Zeus, e ali
mesmo o menino recebeu seu novo nome em louvor a Hera, porque esta,
a despeito de si mesma, lhe havia transmitido com o leite o alento
imortal.
Condenada a participar de sua criação, Hera teve de recolher o
pequeno à chamada "planície de Héracles" e aceitar o estratagema de
Zeus, embora isso não mitigasse seu rancor pelo herói, pois desde
então o perseguiu de todos os modos para descarregar, através das
obras que lhe eram impostas, todo o ciúme que a incitava contra Zeus.
Alcmena, por sua parte, depois de amamentar os meninos,
reforçou a divindade do gêmeo Héracles quando, adormecidos os
meninos cada um sobre seu próprio escudo de bronze recoberto com
velos macios, foram ameaçados por um par de serpentes de escamas
azuladas que Hera lançara desde o umbral da porta, com a intenção
de provocar-lhes a morte. Íficles chorou de medo ao notar que os olhos
dos ofídios lançavam chamas enquanto escorria veneno de suas presas.
Héracles, por sua vez, esperou calmamente que as cobras se
aproximassem o suficiente para agarrá-las, segurando uma em cada
mão e estrangulando as duas mediante um único aperto.
Diante da cena, não duvidou mais Anfitrião: Íficles era seu próprio
filho, enquanto Héracles era filho de Zeus. Pelo menos reconheceu que o
deus não possuíra Alcmena com violência, ainda que as considerações
amorosas que teve com ela ao assumir-lhe a própria figura não se
devessem a nenhuma amabilidade, senão ao interesse de gerar o
primeiro homem que ascenderia à imortalidade por seus próprios
méritos. E se Zeus a escolhera, fora justamente por ser virtuosa e firme
em suas convicções, porque assim como sua vontade era
inquebrantável, também cumpria sua palavra, como seria devido mesmo
se se tratasse do melhor dos deuses.
Das numerosas relações entre os deuses e os mortais,
nasceram os fundadores míticos das linhagens helênicas. Hesíodo
cantou em seus versos que aquelas mulheres, as melhores de todos
os tempos, abriram seus cintos a fim de se unirem aos deuses.
Alcmena, por seu aspecto físico e por sua personalidade, seria a mais
insigne de todas, não somente devido a seu vínculo com Zeus, mas
também pelo nascimento de Hércules, "o defensor de homens e deuses
contra a destruição". Em sua rápida aparição através do mito,
Alcmena sugere o substrato moral e religioso que já se forjava na Idade
do Bronze. Na virtude que rege sua vida individual se lêem os indícios
estruturais de uma sociedade camponesa que, com o heroísmo de seus
melhores homens, empreendeu uma longa carreira até atingir a
expressão mais elevada do pensamento humano.
Deméter

Ainda que inferior em hierarquia a Afrodite, Atena, Ártemis ou Hera,


Deméter gozava de uma posição especial no Olimpo, não por sua beleza
ou inteligência, mas por representar a primavera, o que a transformara
na padroeira das colheitas. Como Hera e Héstia, a deusa do lar
doméstico, a deusa dos campos de cevada foi devorada ao nascer por
seu pai Cronos e resgatada do ventre do Tempo por Zeus e sua mãe
Réia. De sua relação incestuosa com Zeus, teve uma filha que,
enquanto donzela, foi chamada Coré, e depois Perséfone, ao ser
raptada nas colinas de Elêusis por seu tio Hades, o deus dos infernos.
Alguns dizem que Deméter pariu Dionísio, filho de Zeus; outros
que foi Perséfone quem o concebeu no Tártaro, fecundada por Hades
transmutado em serpente. No entanto, qualquer relação que se estabeleça
entre Dionísio e Dione, a deusa do carvalho, com Io ou com a própria
Deméter, deusa dos cereais, ou ainda com Perséfone, deusa da morte,
justifica-se facilmente na medida em que o mito dionisíaco originou-se
do protótipo de um rei consagrado que era abatido ritualmente pela
deusa armada de um raio para ser devorado pela sacerdotisa, durante
as cerimônias anuais que se celebravam em sua honra.
A despeito desse provável vínculo com a deidade dos prazeres e
do vinho, atribuem-se a Deméter alguns namoros deliciosos, como o
que foi protagonizado com Poseidon quando, chorosa e desalentada,
vagava em busca de sua filha e ele, transfigurado em um veloz corcel,
correu atrás dela não exatamente para lhe proporcionar consolo, mas
antes para desfrutar de sua reconhecida paixão.
Sabe-se que Deméter, cansada de indagar aqui e ali sobre o
paradeiro da jovem, esqueceu-se de todos os seus flertes e casos
amorosos com titãs ou com deuses e pôs-se a pastar, transformada
em égua, junto ao gado de um certo Onco, supostamente descendente
de Apolo, que reinava em um lugar da Arcádia chamado Onceium.
Sendo Poseidon o segundo inventor dos arreios, depois de Atena, o
protetor dos eqüinos e o indubitável precursor das corridas de cavalos,
não teve dificuldades para reconhecê-la e imediatamente a cobriu sob a
forma de um vigoroso garanhão. Dessa união forçada, como quase
todas as empreendidas pelos deuses, nasceram a ninfa eqüina Despena
e Árion, o célebre cavalo selvagem que se costuma associar a Pégaso e
aos mananciais de água, ainda que outra versão diga que Pégaso foi
gerado por Poseidon com Medusa. Impetuosa como era, a cólera da
ultrajada Deméter foi de tais proporções que, desde então, foi adorada
na região sob o epíteto de "Deméter Erínia", o que significa em nossa
língua "Deméter Furiosa".
Pouca importância teria adquirido Deméter, a mulher de cabeça de
égua, se não tivesse sofrido na pessoa de sua filha a agressão de Hades,
também membro da primeira geração de olímpicos, gerado por Cronos e
Réia, e que, de um dia para outro, decidiu que precisava de uma
esposa e, sem deter-se diante de ninguém, tomou a inocente Coré a fim
de entronizá-la no Tártaro, o que eqüivalia a interromper sua
existência para fazê-la rainha dos mortos,
A figura de Deméter, apesar do símbolo de fecundidade que a
envolve, está rodeada de complicados mistérios. Está relacionada com as
fases da lua, com a sucessão das estações e com a consolação da
maternidade sofredora. Seus iniciados celebravam ritos em sua honra,
talvez associados com os ciclos de fertilidade e como uma forma de
desafio às trevas, algo parecido a uma luta incessante contra a morte
mediante o reinicio da vida. Hesíodo lhe atribui um filho chamado
Pluto, o símbolo da riqueza, fruto de seus amores silvestres com o
gigante Iásio, o que fez supor aos mitógrafos que os gregos
atribuíssem precisamente à agricultura a única e mais autêntica
origem da riqueza.
Deméter, apesar de sua evocação sensual como égua
apaixonada e de seus romances campestres com titãs e deuses,
encarna uma maternidade tão temerosa e possessiva que até parece
não ter sido seu irmão Hades o responsável por sua desolação e por
suas maiores vicissitudes, mas sim o fato isolado de que sua filha
empreendesse uma aventura sexual com seu tio, sem restrições ao
lugar onde finalmente se celebraria o casamento, e que dessa aventura
ela decidisse voluntariamente permanecer junto ao amado. O destino
fizera Hades reinar no Tártaro, e o amor estava proscrito para ele. Mas o
deus já se queixara de que não havia no mundo ou no Olimpo deusa,
ninfa ou mulher que concordasse, por bem ou por mal, em
compartilhar das profundezas do além-túmulo.
O fascínio de Hades pela donzela de formosos tornozelos quando
esta bailava graciosamente sobre as pradarias floridas com suas amigas,
as filhas do Oceano, é uma imagem até certo ponto comum nas fábulas
gregas. Homero anta em seu Hino a Deméter que as donzelas
brincavam contentes, colhiam ramos de açafrão, formosas violetas,
lírios, jacintos, rosas e narcisos que a terra havia produzido por
vontade de Zeus a fim de cativar as garotas de rostos corados. O que
existe de diferente aqui, e o episódio que fortalece o mito, é a atitude da
mãe, dessa deusa aparentemente feliz assentada em sua cadeira de
ouro, exultante durante suas andanças ocasionais, sempre fecunda e
sem tribulações até a hora em que algo íntimo, seu fruto mais precioso,
não só lhe é arrancado como raptado da superfície da Terra em uma
apavorante carruagem puxada por corcéis negros para transportá-lo
aos infernos onde habitavam os mortos.
Chorava Coré em seu cativeiro sombrio, saudosa da vida, e
chorava a mãe enquanto a procurava por cada rincão do mundo. As
duas jejuavam e chamavam uma pela outra até que, no intuito de
prendê-la no Tártaro para o bem de seu amo, o jardineiro iludiu-a e fê-
la comer os grãos nefastos da romã dos mortos, os quais a levariam a
enamorar-se de Hades até incendiar-se de amor, ainda que o efeito do
inferno fosse precisamente o de transformar seu coração em gelo.
Quando a deusa soube que sua garotinha havia desaparecido -
assim narrou Homero -, partiu o diadema que usava sobre sua
cabeleira divina, recobriu os ombros com um xale sombrio e lançou-
se como um pássaro, por terra e por mar, em busca de sua filha
perdida. Envelhecia de tristeza, mas ninguém lhe quis contar a
verdade. Ninguém se atrevia a confessar que era o deus da morte quem
havia raptado a jovem. Não houve pássaro que se dispusesse a levar-lhe
uma mensagem consoladora e, desse modo, ela errou durante nove dias
e nove noites, erguendo fachos ardentes para iluminar as profundezas
das cavernas até que, finalmente, encontrou-se com Hécate que, cheia
de compaixão, acabou por sussurrar-lhe a verdade. "Tua filha foi rapta-
da", disse-lhe com voz trêmula. "Por quem?" - indagou a mãe
desesperada. "Por Hades", respondeu-lhe a velha e, a princípio,
Deméter não a acreditou. "Ele é meu irmão, jamais me faltaria ao
respeito de tal maneira."
Para confirmar a notícia, Hécate aconselhou-a a consultar Hélio,
o Sol, que tudo vê e tudo recorda desde seu trono no teto dos céus.
Convencida finalmente, Deméter se apresentou perante Zeus para
reclamar-lhe justiça; mas Hades já se havia adiantado com rogatórias e
súplicas perante a assembléia do Olimpo e, a maneira dos políticos de
todos os tempos, alegou perante seus irmãos Zeus e Poseidon que
também ele merecia ter uma esposa. "Diferentemente de vocês,
deidades solares, eu estou condenado a viver nos confins mais obscuros
e ali encontro somente mulheres destruídas pela dor. Vocês repartiram
entre os dois o céu e o mar. Vocês escolhem à vontade e se divertem com
donzelas e com deusas. Eu, ao contrário, reino sobre a paisagem
desolada das penumbras e suporto meu cetro em gélida solidão."
Responsável pela justiça, ordenador dos assuntos do Olimpo e
do mundo, apresenta-se a Zeus um dilema terrível. Coré é sua filha,
Hades seu irmão e Deméter, sua amante, a mãe sofredora; e com
nenhum dos três desejava inimizar-se. Confiando na orientação do
destino, primeiro enviou Hermes com a missão de fazer com que Hades
compreendesse que teria de encontrar outra jovem para desposar, sem
provocar tantas contrariedades; logo depois, conversou com Deméter e
pediu-lhe compreensão para colocar nas mãos do acaso os argumentos
que solucionariam o enredo com equidade. Quanto à sua filha,
mandou-a chamar de volta mediante a condição de que não tivesse
provado do alimento dos mortos, que Ascálafo, o jardineiro do Tártaro,
a tinha feito morder no instante de sua despedida, já nos portões do
mundo inferior.
O desfecho ou a chave mítica encontra-se no momento em que
Deméter aceita o trato com Zeus e com Hades, depois de se inteirar de
que sua Coré já se transformara em Perséfone, apaixonada por Hades e
virtual rainha do inferno, pois, a seu próprio pesar, havia comido dos
grãos fatais. E foi desse modo que, ainda magoada, a deusa jurou
estender sobre o mundo uma paisagem desoladora, reflexo do vazio que
sentia na alma, de sua sensação de despojamento, de sua maternidade
agredida. Deméter cria o inverno para espelhar sua tristeza. Assombra
a Terra com a angústia de árvores sem folhas, campos ressequidos,
flores emurchecidas, e multiplica as cenas de homens e animais
morrendo esfaimados porque nada pode crescer contra a sua vontade.
Assim, antes que os deuses consigam persuadi-la a bendizer
outra vez a Terra a fim de devolver-lhe a fertilidade e o ciclo das
colheitas, Deméter vaga como a sombra de sua sombra, banhada em
lágrimas e macerada em razão de seu prolongado jejum. Deméter erra
pelos campos estéreis, sem rastro de sua frescura nem vestígio de sua
fascinante jovialidade. Mãe amargurada, durante seu pesar reprime
sua antiga sensualidade; ela mesma se transforma em Hécate e está
agora muito distante de se parecer com a amante que agradara a Zeus.
Deméter torna-se uma pobre sofredora, encanecida e profundamente
marcada pela sensação de impotência que a domina. Em seu rastro,
deixa as marcas desoladoras da pena e, tal como se proferisse uma
oração, todos a escutam murmurando que nada, salvo o retorno de
Coré, seria capaz de reanimá-la.
Sempre carregando um archote, é assim que a mítica Deméter
presta seu tributo à morte de Coré e entra em acordo com Zeus que,
para agir com plena justiça, decide que a jovem deverá repartir seu
tempo entre o mundo dos vivos e o Tártaro. Como pagamento por ver
Coré outra vez a seu lado, ainda que somente por alguns meses ao ano,
tal como determinara o Pai dos Céus a fim de compensar sua
infelicidade, Deméter se compromete a devolver o verdor da Terra
durante esse período, tempo suficiente para que possam crescer as
sementes; e concorda em fazer dos cultivos o recipiente exato dos ciclos
de vazio e de vida. Os meses restantes, quando Perséfone volta a reinar
sobre a mansão dos mortos, correspondem à estação hibernal, o
período do frio em que o mundo se torna sombrio e desesperançado.
No momento em que Perséfone retorna às pradarias, explode a
primavera, florescem as plantas e tudo se dispõe para uma nova
colheita. O mito conta ainda que, em testemunho de gratidão por
haver recobrado sua filha, Deméter presenteou ao rei de Elêusis, filho
de Triptólemo, com uma espiga prodigiosa cujas virtudes ele deveria
transmitir, viajando em um carro alado, a fim de revelar o segredo de
como domesticar a vegetação e difundir a arte da agricultura. Dessa
forma, Elêusis, a capital da Ática, foi consagrada a Deméter, porque,
segundo o mito, foi de um de seus prados que Hades roubou Coré e
donde a própria deusa jurou se vingar criando o inverno e a
semeadura da morte, caso os deuses não lhe devolvessem a filha.
Segundo outra versão, Deméter se encontrou com Hécate, a
deusa-lua, e juntas foram ver o deus-sol, o poderoso Febo ou Hélio,
para que este lhes descrevesse os pormenores do rapto. Ainda que o
Sol tenha admitido que testemunhara o feito, não lhes disse onde
ocorrera exatamente tampouco quem era o deus responsável.
Diante do silêncio abominável de Hélio, Deméter abandonou o
mundo dos deuses, irada e aflita. Àqueles que estavam congregados no
Olimpo, jurou nunca mais regressar, nem sequer recordar-se deles.
Era desse modo que, durante o festival da semente, a deusa era
invocada, velando seu luto às beira de um poço, chamado o Poço da
Virgem, esperando ali até que alguém se dispusesse a vir informar-lhe
onde poderia encontrar a donzela.
Durante os festivais, costumava-se recordar que Deméter,
enquanto permaneceu em Elêusis, aguardando notícias, serviu como
uma ama envelhecida em uma mansão próxima ao Poço da Virgem,
seu principal santuário, onde se parecia com Hécate na sua velhice,
uma Hécate inseparável de Perséfone.
Nenhum camponês ignorava a condenação da terra feita por
Deméter. Em um desfile, representava-se a imagem sombria daquele
ano em que não brotaria qualquer fruto da terra até que os
sofrimentos obrigassem a Zeus e a todas as divindades a irem, uma
após outra, suplicar a Deméter que aplacasse sua ira.
Não obstante, Deméter conseguiu que a libertada Perséfone,
acompanhada por Hécate, volvesse a seu lado no Olimpo durante os
meses primaveris. De volta à glória, a Terra reverdeceu e as flores
brotaram com os grãos portadores da vida. É por isso que não são
admitidos homens ou donzelas no ritual das tesmofórias, segundo é
corroborado pela comédia de Aristófanes, As Tesmoforiantes.
Esse é um dos mistérios relacionados às súplicas erguidas à
Deméter pela fecundidade dos cereais, realizadas em Atenas entre os
dias 11 e 13 do mês de pianepsion (outubro/novembro), época da
colheita, um cerimonial que se apartava da liturgia porque as
tesmoforiantes sacrificavam leitões e revolviam seus restos com terra a
fim de fomentar-lhe a fertilidade.
Durante aqueles dias, as mulheres dormiam em tendas
próximas aos santuários. Não podiam faltar os excessos carnais depois
do jejum nem os atos dionisíacos alusivos, talvez, às andanças de
Deméter pelas pradarias ou a seus prazerosos encontros sexuais.
Entretanto, quase nada restou da essência desse culto. Secreto como
era, o tempo levou consigo o mistério. A não ser por indícios trágicos,
por algumas pinturas e pelas informações parciais de Xenofonte,não
conheceríamos sequer esses elementos tão escassos referentes aos
complicados rituais sagrados das mulheres da Grécia em honra de sua
deusa.
Coré

Entre os gregos são abundantes os mitos relacionados ao amor.


Os deuses praticam uma sexualidade ardorosa, inseparável da paixão e
do uso de artimanhas, que incita os sentidos e gera rivalidades que,
por sua vez, encadeiam outras histórias prodigiosas. Tudo começa em
função de algo que parece insignificante, uma voz, a lufada do desejo,
uma pequena brincadeira nas pradarias; depois o drama se
desencadeia e se deixa correr, se perde no procedimento sempre
incerto do ardor ou dos rompantes imprevisíveis daqueles mais
afetados por ele, quase sempre mulheres. Cada episódio toma rumos
inesperados e, de tão fantásticos, seus enredos são ouvidos até no
Olimpo, como o ar que geme nas penumbras do outono.
E é dessa matéria que se formou a potência helênica, da mesma
paixão que nutre o medo da morte. Seus mitos espelham um incessante
vaivém entre a baixeza e a grandeza, entre a dor e o prazer, entre a
força e a debilidade, entre a ordem e o caos; e ocorre que foram eles
que representaram com maior lucidez a verdadeira condição humana.
Por meio de suas histórias nos internamos em todos os escaninhos da
conduta, apreendemos o sentimento de orfandade que nos leva a
afirmar a existência de um poder superior e descobrimos que, quanto
mais humanizados e multifários, seus deuses nos ensinam que não
pertence a um único poder o caminho da liberdade ou da tolerância,
mas que mais humano é o homem quando pode criar entidades que
abarquem todas as possibilidades do sonho e da razão. Antes de outras
civilizações, os gregos souberam também que a humanidade tende mais
à loucura insana que ao amor divinizado, mais à perversidade que à
prudência, e mais ao poder excludente que às normas ordenadoras.
É por isso que os mitos exacerbam nossos próprios sentimentos,
porque foram forjados no calor da luz daqueles dias em que a criatura
humana somente entendia revelações e mensagens consagradas; e
isso transcorreu quando ainda em suas veias corria a matéria divina, e
o corpo manifestava seus dons ao avivar a conduta por meio da chama
da paixão.
O homem, devoto da magia, inclinava seu corpo com
simplicidade perante os poderes supremos ao perceber que algo de
diferente ocorria em seus recantos mais recônditos. Era abrasado
então pelo seu veio interior e só encontrava sossego ao descarregar
seu fervor.
Mundo de magia, de jogo, de agressão e de brutalidade, somente
mediante as fábulas se percebe o alcance desse simbolismo em que se
acham mesclados o furor e a imaginação. Basta recordarmos alguns
mitos para nos darmos conta de como os assuntos entre os próprios
deuses, e entre deuses e homens, eram sanguinários e, ao mesmo
tempo, criativos, quando era possível se acreditar em raptos mágicos e
em acordos sensatos, em gestações heróicas ou em partos portentosos.
Coré, por exemplo, gerada por Zeus e Deméter, despertou a
paixão do tenebroso Hades quando passeava com suas amigas,
tocando flauta por alguma campina, cantando e colhendo flores
primaveris. E como não se ia dela afeiçoar esse barbudo deus da morte
e ímpio senhor do mundo inferior, se jamais mereceu para si nenhum
culto, templo ou tributo por causa de sua fama assustadora de senhor
das sombras. Descobriu então sua sobrinha Coré, fresca, rosada, jovial
e em tudo diferente das mulheres que habitavam seu reino de tristeza
e desesperança; e por meio dessa paixão ficou demonstrado que o amor
é possível até mesmo no reino inerte do além-túmulo. Reconheceu nela a
sensualidade de Deméter aliada ao vigor supremo de Zeus. Observou
como era diferente dentre as demais moças e não teve dúvidas de que
deveria raptar Coré para aquecer a frialdade de seu coração, para
suportar a seu lado a paisagem das trevas e para suavizar o horror
que o espetáculo constante da morte provocava até mesmo em sua
alma divina.
Hades a espreitava a distância e, às vezes, se aproximava. Coré
não lhe dava grande importância, pois as donzelas são precisamente
donzelas devido à sua inocência e candura naturais, Todavia, o deus do
mundo inferior, enamorado dela, foi até ao Olimpo e postou-se diante
de Zeus para que este lhe permitisse desposá-la. O hábil deus, que se
encontrava então acompanhado de Apolo, respondeu-lhe que não
daria nem negaria seu consentimento, pois não ignorava as
dificuldades inerentes a tal situação. Não somente teria de se haver
com Deméter, tampouco poderia permitir que sua própria filha fosse
condenada a reinar no Tártaro. Ao mesmo tempo, negar esse favor a
seu irmão, o mais temível dos filhos de Cronos, acarretava o perigo de
derramar sobre o mundo a força que Hades exercia sobre os mortos.
A figura de Coré representou, desde então, um dos piores dilemas
para o Pai dos Céus Uma vez que era justamente ele o supremo
responsável pela justiça, Zeus considerava que tinha a obrigação de
satisfazer a todos, inclusive a si mesmo, porque esse julgamento
comprometia seu dever paterno. Incapaz de encontrar uma resposta,
deixou o veredicto final a cargo do destino, ainda que sabiamente
tenha anteposto a condição de que, se em sua permanência forçada no
Tártaro Coré não provasse da romã letal, poderia regressar livremente
com sua mãe. Assim como na vida, o incerto, neste caso, determinou o
curso dos acontecimentos.
E foi assim que se posicionou Zeus perante a rogativa de Hades,
sem conceder nem negar nada. Em situações como esta, era costume
que o Pai dos Céus impingisse mensagens dobradas e triplicadas até
desatar o nó do conflito entre aqueles que se consideravam agredidos,
sem perder seu poder de arbitragem nem sua capacidade de comando,
pois ele mesmo, transmutado ou não para realizar seus caprichos
sexuais, costumava envolver-se em ultrajes complicados, em enredos
apaixonados ou mesmo em crimes não desprovidos de intrigas, seja
com deusas, seja com mulheres. Não obstante, agora que se tratava do
destino conjugal de Coré, era óbvio que, devido à dupla autoridade
paterna e divina de Zeus, Deméter jamais lhe perdoaria caso
permitisse que desposasse seu próprio irmão, justamente o mais abo-
minável de todos, uma vez que se tratava nada mais nada menos que
do próprio deus dos infernos.
E compreensível que nada fosse pior para as expectativas de uma
jovem excepcionalmente bela que a de ser forçada a viver nesse mundo
subterrâneo, guardado por monstros como Cérbero, que estavam ali
para impedir a entrada dos vivos, da alegria e dos prazeres do
coração. Eventualmente Orfeu e Héracles conseguiram penetrar vivos
nesse reino tenebroso, porém isto aconteceu somente porque
conseguiram enganar os monstros que lhe guardavam a entrada. Um
deles foi lã para recuperar sua amada e o outro para resgatar a Perseu,
e ambos conheceram em sua viagem os pormenores do silêncio e da
sombra; mas o inferno era, por melhor que se quisesse encara-lo, o
lugar mais abominável possível para uma jovem que somente merecia
ser iniciada nos jogos do amor e do desejo.
Hesitante diante do dilema de não ofender poderes opostos, de
uma parte o que lhe solicitava Hades e da outra a prevista indignação de
sua antiga amante e mãe da jovem, Zeus preferiu não se comprometer
com nenhum dos querelantes. Isso permitiu a Hades raptar a donzela
enquanto ela colhia flores quiçá na Sicília, em Hermione, em Pisa, em
algum lugar florido de Creta ou até mesmo em Elêusis, conforme
asseguravam os sacerdotes de Deméter quando discutiam a mística
trajetória de sua mãe.
Dona dos segredos do leito, indiferente aos laços do matrimônio e
famosa por suas estripulias amorosas com o titã Japeto, por quem se
interessara ao conhecê-lo durante as bodas de Cadmo e Harmonia,
Deméter perdeu a alegria para sempre ao inteirar-se de que sua
pequena Coré havia desaparecido. Assim, decidiu empreender sua
busca pelas regiões mais distantes. A mãe desolada andou por nove
dias e nove noites de local em local, sem comer nem beber, por vezes
chamando por seu nome, tal como se o vento pudesse levar sua voz
para comover os infernos; só que estes não se comovem jamais,
tampouco existe em suas gélidas profundidades qualquer remorso que
encontre retificação, nem mudança na atitude radical das Moiras.
Deméter, quebrantada, perguntava aqui e ali sobre o paradeiro de
Coré. Descrevia seus cabelos dourados, o sorriso jovial da quase menina
que apenas tinha entendimento para compreender o horror que havia
selado sua vida. A deusa suplicava por piedade, ameaçava e rogava,
mas ninguém lhe dava sequer uma pista do que acontecera, ninguém
admitia haver testemunhado o rapto, ninguém reconhecia saber onde e
como Coré colhia flores quando o malévolo deus estendeu suas mãos
ossudas para recolhê-la à sua carruagem escura. A velha e misteriosa
Hécate, cuja presença costumava ser antecipada pelo latido dos cães,
foi a única que, por meio de um tenebroso sussurro, disse ao ouvido
de Deméter que acreditava tê-la ouvido gritar angustiada em algum
prado. "Um rapto, um rapto!" - foi o que assegurou ter escutado Coré
gritar, porém, apesar de se apressar, não chegara a tempo de salvá-la.
Desesperada de tanto vagar, Deméter viu amanhecer o décimo dia
e proferiu a ameaça de impedir que a Terra produzisse frutos e
alimentos caso sua Coré não lhe aparecesse sã e salva. Foi então que
Triptólemo, o rei de Elêusis, ou talvez seu pai Queleu, temeroso de que
seu povo sofresse as conseqüências da fome e da penúria, revelou à
deusa o nome do raptor, que finalmente veio a ser confirmado por Hélio,
que tudo vira desde seu trono solar. Previamente, um pouco antes que
ela desencadeasse os efeitos de sua fúria, Zeus enviara Hermes com
uma mensagem ao Tártaro: "Se não devolverem Coré, estaremos todos
perdidos"; e outra para Deméter: "Poderás ter tua filha de volta sob a
condição de que ela não tenha provado do alimento dos mortos".
Não obstante, havia transcorrido tempo suficiente para que Coré
fosse enganada e comesse seis grãos da romã dos mortos, os quais,
além de desprendê-la da vida, fizeram com que se apaixonasse por
Hades, a tal ponto que não quis mais saber de separar-se dele. Como
tudo ignorava a respeito da decisão tomada por Zeus, a jovem não
parou de chorar até que viu os emissários divinos que vinham buscá-la
no carro de Hermes. Calculista, Hades apenas observava e esperava.
Nem bem Hermes a ajudava a subir à carruagem dourada, um dos
jardineiros gritou que a donzela não podia ir embora dali porque ele
mesmo a havia visto comer as sementes. Hades ordenou então a
Ascálafo que subisse à parte traseira do carro e os acompanhasse a fim
de testemunhar perante Zeus em nome da justiça.
Ao ficar sabendo que tudo estava perdido, Deméter jurou nunca
mais voltar ao Olimpo. Tampouco revogou sua maldição, e disse que
viveria só para vingar a dor de sua filha por meio de um inverno
interminável.
Diante de tal dilema, Zeus foi se aconselhar com Réia, sua mãe,
bem como de Deméter e de Hades, pedindo-lhe orientação e ajuda.
Suplicou-lhe que persuadisse a Deméter e buscou, por meio de sua
intervenção divina, um acordo que fosse justo para todas as partes
envolvidas, pois a essa altura nem mesmo para um deus era possível
fazer retroceder o tempo nem devolver as coisas ao estado em que se
achavam antes do rapto. Finalmente concordaram que Coré, casada
com Hades e agora com seu nome mudado para Perséfone, passaria
três meses por ano como rainha do Tártaro, e nos nove meses
restantes subiria à Terra para reunir-se com sua mãe, mediante a
condição de que sempre que subisse permaneceria acompanhada de
Hécate, que doravante se converteu em sua guardiã.
Agradecida, ainda que não plenamente satisfeita, Deméter criou
as estações do ano, regulou o ciclo das colheitas e passou a ser
chamada Deusa do Pão e Senhora das Sementes. Perséfone, por sua
vez, foi entronizada no Tártaro, aprendeu a amar seu marido Hades e
vagou durante o período indicado pelas pradarias do Mediterrâneo,
onde ainda se respira seu alento perfumado e se escuta seu canto
primaveril.
Para Robert Graves1, Coré simbolizou os grãos verdes, os mais
tenros e alentadores; Perséfone a espiga madura; e Hécate o cereal
colhido e guardado nos celeiros. Isto é, o mito interpõe Deméter ao
binômio Coré/Perséfone, ou donzela/rainha do inferno, o que eqüivale
a um simbolismo silvestre e a uma crença univocamente associada ao
cultivo da terra.
Assegura Robert Graves que o rapto de Coré por Hades centra o
mito na trindade helênica de deuses que se unia forçosamente à
tríplice deusa pré-helênica, e que concentra os relacionamentos mais
importantes: Zeus com Hera, Zeus ou Poseidon com Deméter e Hades
com Coré.
Nos tempos mais primitivos, esses vínculos remontavam à
usurpação pelos homens dos mistérios agrícolas ou de fecundidade
femininos; disso decorre que o episódio em que Deméter anuncia que não
mais haverá de proporcionar cereais aos homens porque não lhe
devolveram Coré não é senão uma outra versão da intrincada conjura
de Ino, filha de Cadmo e Harmonia e esposa de Atamante, este também
vinculado ao mundo tenebroso, a fim de destruir as colheitas e as
obras realizadas pelo cônjuge detestado.
Aplicado ao cerimonial litúrgico da Grécia, o mito de Coré explica
por que os camponeses primitivos costumavam enterrar uma boneca
feita de cereais no inverno, para desenterrá-la depois, no início da
primavera. Esse costume sobreviveu no campo durante toda a época
clássica e, com algumas variações, nas zonas rurais da região
balcânica até a Idade Média.
Perséfone significa "aquela que traz desalento". Em Atenas,
também era conhecida como Parsaffata, que significa "aquela que traz a
destruição". Com esse mesmo simbolismo passaria ao acervo
mitológico dos romanos, pois, para eles, Prosérpina era "a terrível" ninfa
que durante os ritos realizava sacrifícios ao deus sagrado. O título de
Hécate, por sua vez, eqüivale a "um centenário" e se refere aos cem
meses lunares de um reinado, provavelmente o de Perséfone no inferno,
e à colheita cem vezes desfrutada.

1 Robert Ranke Graves (1895-1985), escritor e mitólogo britânico, célebre pela


trilogia romanceada sobre a vida do Imperador Cláudio. [N.T.]
Afrodite

No princípio dos tempos, Eros foi incubado pela Noite a fim de realizar
o prodígio da criação. O Amor foi precedido pelos portadores do destino e
outros símbolos adversos relacionados com o esquecimento, o temor, a
abominável velhice, a insídia e o ódio. Até então a luz não iluminava
essa região escura da existência; portanto, a fim de afirmar seu
sentido vivificador, a potência noturna engendrou uma entidade
complementar, o Afeto, para que servisse de guia positivo às
cumplicidades e de contraponto às dores que provocam o pranto.
Antes mesmo que existisse a totalidade dos seres animados,
sentia-se a ausência de símbolos para combater a fome, a violência,
os crimes e as demais ações aziagas daqueles seres tenebrosos, netos
e descendentes do Caos, cuja obra no mundo até hoje provoca tristeza
e acarreta o vazio que se percebe no coração nas ocasiões mais
infelizes. O vigor inigualável de Eros, relacionado com agitamentos
revolucionários ou de renascimento interior, criou um dos sentidos
mais profundos do ser: pôs em movimento a vida, ativou os sentidos e
provocou o despertar das emoções tanto nos pequenos seres como
nos heróis. Perturbou a ordem desde então e, representado como uma
Ker alada, uma Fúria semelhante à Velhice e à Peste, ainda realiza suas
travessuras, disparando ao acaso suas flechas douradas a fim de
incendiar de amor suas vítimas, sem distinção de sexo ou de idade.
Existem aqueles que dizem que Eros, cujo nascimento
antecipou ao de todos os deuses, foi contemporâneo da Terra e do
Tártaro durante o primeiro impulso do Caos; outras vertentes o
consideram fruto dos amores de Afrodite com Zeus, ou que, segundo
versões que se foram somando umas às outras com o passar do
tempo, foi filho do Arco-Íris e do Vento Oeste, o que acentua seu
caráter simbólico ao relacioná-lo com a inocência perfeita e com os
jogos da luz que alegram o ânimo para recompensar as tormentas.
Sua liberdade indômita, contudo, se parece com a das criaturas
noturnas que não respeitam a nada nem a ninguém. Seu maior gozo
consiste em romper a tranqüilidade. Diferentemente das demais
entidades, o Amor transmite em sua eterna infância o símbolo de uma
enganosa candura que mascara o inesperado com essa inocente
perversidade que, eventualmente, altera todo o íntimo de suas vítimas,
quando caem em estado de desamor ou sofrem o pânico que costuma
perturbar a esperança dos amantes.
A Eros pertence a unidade. Foi através dele que se tornou
possível o primeiro abraço, o do Céu e da Terra, que propiciou o
nascimento de todos os seres divinos e humanos. Emblema da perfeita
harmonia, foi graças a ele que tomou impulso a fecundidade, que a
arte da sedutora Afrodite embelezou com inúmeras atitudes que
colocam os amantes em situação de alerta frente a quaisquer males
que possam diminuir ou prejudicar seu estado de adoração mútua.
Eros e Afrodite governam juntos o secreto e o público. São indiscretos,
intimidadores e deliberadamente perturbadores. Com aparente
ingenuidade, contempla-se a jovem formosa e o menino alado como um
par de criaturas inofensivas; porém, são capazes de sacudir até as
pedras e de remover as mais duras camadas protetoras do coração.
Ela com seu cinto mágico; ele com seu arco e suas flechas na
aljava; os dois se acompanham a fim de cativar de acordo com seus
caprichos, ainda que finjamos negar sua influência em favor da
conveniência e da segurança. No começo, seu poder é sutil: tão só um
estremecimento aqui, um suspiro que brota acolá, a curiosidade que
aviva ao reconhecer o ser amado e a fagulha levíssima que
rapidamente se incendeia como lenha seca; depois disso,
irremediavelmente asseteados, os enamorados sucumbem ao estrondo
e o mundo parece se tornar pequeno para satisfazer sua paixão.
Surgem armadilhas, interpõem-se obstáculos ou as doses de amor são
mal repartidas para impedir a reciprocidade ou arrastar à morte àqueles
que não conseguem consumar seu furor. Para os raros afortunados, o
destino lhes outorga a graça de restaurar a unidade sob a condição de
que a libertina Afrodite não retire seus dons dos casais que
alcançaram a estabilidade.
Quando se faz a corte, os corpos se embelezam, os sentidos se
apuram com o desejo de agradar e todos os movimentos se revestem de
doçura. Se Eros funde, Afrodite aproxima; é ela que provoca o desejo,
desdobra atenções que divinizam os amantes e os fazem se sentir
eternos, leves, belos e únicos. Confiantes no inesgotável poder da
deusa, alguns se descuidam dos riscos que espreitam no caminho das
convenções, e é então que ocorrem as reações indesejadas: se cedem à
frivolidade, perpetram o caos; outros não compreendem as leis do
Amor até que o sofrimento os ensine a se relacionar com sabedoria
para cultivar o sossego dos pares que, em momentos de
reconhecimento sexual, de transformações internas e de satisfações
harmônicas, absorvem o elixir afrodisíaco. A maioria não deslinda
jamais a questão amorosa, nem chega a compreender seus desvarios.
Para eles, é mais simples ceder à tentação do combate do que persistir
nos corredores emocionais que os dois que se amam são levados a
percorrer. Por essa razão a insídia reina à vontade quando fracassa a
sedução, e as entidades noturnas se apoderam dos mortais sem
trégua.
Adorados pela magia envolvente de seus dons, Amor e Afrodite
concedem ou negam seus favores aos mortais; os desafortunados
partem desta vida sem conhecer o ressaibo dos prazeres sensuais.
Também suscitam ciúmes, desencadeiam tragédias e revolvem as
consciências adormecidas daqueles que acreditam possuir para sempre
seu cônjuge, até descobrir que as travessuras de Eros provocaram a
destruição de seu pequeno universo doméstico.
Afrodite, a mais desejada e temida, inseparável de seu cortejo de
cupidos, incorporou-se à assembléia dos deuses não por compartilhar
com eles uma mesma origem, mas pelo secreto atrativo de seu cinto
mágico, que fazia com que aqueles que a vissem se enamorassem dela
até entrarem em delírio. Não satisfeita com o seduzir nem com o
desnudar-se provocador da túnica, a mais bela de todas as criaturas
tentava homens e deuses com um sem-fim de artimanhas e sortilégios
que agora chamamos "afrodisíacos". Jamais se importou com a
fertilidade, pois para isso existiam as deusas protetoras do matrimônio
e da família; tampouco praticou virtudes domésticas, e à sua
identidade não corresponde qualquer tipo de amarra. Afrodite é para a
liberdade o que o calor significa para a chama. Em seu nome
multiplicaram-se os aromas, as carícias, as poções, as texturas, as
sementes, as invocações, os encantamentos, qualquer coisa ou
recurso, contanto que se pudesse assenhorear até do mais profundo
alento do ser amado.
Eterna infiel, desleal e batalhadora, a portadora do amor se
caracteriza por sua argúcia ardilosa. Sua magia inclui o mistério da
transformação e, apesar da raiva que desperta em outras mulheres e
deusas, somente ela é capaz de administrar a paixão e manipular a
humanidade a seu capricho. Ela cura, restaura, une os diferentes,
embeleza o feio, encontra metades perdidas, reconcilia, ilumina,
enfeitiça o instinto, torna cego o mais lúcido dos seres humanos e lhe
prodigaliza satisfações que não podem ser substituídas por quaisquer
outros deleites.
Companheira natural de Ares, suas relações com o deus da
guerra confirmam que batalhar e amar são paixões afins, assim como
o impulso e a ação. Incontroláveis os dois, ambas as divindades
tramam a história dos homens e arrastam em seus múltiplos avatares
as inconstâncias que costumam acompanhar o poder. Escolheu por
esposo o incauto Hefestos, filho de Hera e imediatamente lhe pôs
chifres. Feio e trabalhador, seu domínio sobre a forja e a bigorna de
nada serviram para apagar sua claudicância e muito menos para
esconder sua deficiência. O pobre Hefestos a amava acima de tudo no
mundo; mas a volúvel Afrodite ia e vinha por muitos leitos e outros
tantos campos floridos, semeando deleites no reino dos instintos.
Foi desta maneira que suscitou guerras históricas, tais como a
sempre lembrada Guerra de Tróia. Inspirou as maiores tragédias e
crimes espantosos. Em seu nome caíram reinos e homens que se
tinham na conta de guerreiros temíveis. Até hoje há mulheres que, a
maneira das antigas gregas, a invocam com devoção. Rogam por suas
graças em voz alta. Renunciam a tudo com o fito de compartir seu
poder ou, em casos extremos, recorrem ao misticismo com o objetivo de
alcançar da divindade aqueles dotes que os seres humanos sozinhos
não são capazes de obter.
Seu mito é um dos mais perduráveis porque, ontem e hoje, um
mistério indecifrável envolve a deusa da beleza. Tão odiada quanto
invocada, Afrodite está sempre presente, sempre à espreita da paixão,
sempre sedutora, sempre certeira.
A interpretação de Hesíodo ilumina o mito de Afrodite com
símbolos de sensualidade que a colocam acima de qualquer fantasia
antiga ou moderna sobre a versatilidade do amor. Escreveu em sua
Teogonia que, na primeira geração dos deuses, quando Gaia deu à luz
Urano, em tudo semelhante a ela mesma, esperava que o deus do céu
a protegesse por todos os lados e servisse, além disso, como um seguro
assento para a felicidade dos deuses. Mas o astuto deus, que na
mitologia grega não se destacou por suas façanhas nem ganhou
importância igual à de seus descendentes olímpicos, só demonstrou
verdadeira grandeza quando, cheio de amor, se deslocou durante a
noite e abraçou Gaia, estendendo-se sobre ela; foi prontamente
definido como a primeira deidade masculina, fundando assim a
rivalidade sexual e o afã de domínio.
Além disso, Gaia gerou por si mesma, sem o auxílio do delicioso
amor, as grandes montanhas, que seriam a morada das ninfas, e o
mar estéril de ondas impetuosas. Só mais tarde decidiu unir-se a
Urano, pois o cosmos não contava com outra coisa que não fosse
produto de sua própria criação. Do matrimônio entre o Céu e a Terra
nasceram Oceanos, Ceos, Crios, Hipérion e Japeto - um nome que
talvez inspirasse o de Gepeto, o amoroso carpinteiro que construiu
Pinóquio e criou com ele um dos últimos mitos da idade
contemporânea -, do mesmo modo que Réia, Têmis, Mnemósine, Febe,
a coroada de ouro, e a amável Tétis. Ao final de tão grande estirpe
nasceu Cronos, o mais astuto e temível de todos, o deus que se
encheu de ódio contra seu próprio pai porque este emprenhava sua
mãe vezes sem conta, mas não permitia que os filhos saíssem de seu
ventre e ela, a Terra, a fim de protegê-los, os escondia debaixo de suas
dobras mais profundas.
Antes de conceber o furibundo Cronos, a Terra engendrou três
ciclopes de peito altivo e dotados de um único olho circular
localizado entre as sobrancelhas, chamados Brontes, Estéropes e o
violento Arges, os quais dariam como presente a seu jovem sobrinho
Zeus o trono e o raio - suas divisas supremas - quando este
empreendeu a luta contra seu pai, o Tempo. Frutos também de Gaia,
perturbadores por sua maldade, Cotos, Briareu e Giges foram os
monstros de cem braços e cinqüenta cabeças que decidiram o triunfo
de Zeus sobre os Titãs, aliados de Cronos. Tais gigantes, do mesmo
modo que as Fúrias, nasceram quando o sangue do castrado Urano
fecundou a Terra, que mais tarde daria à luz outro monstro, Tífon,
produto de suas relações com seu filho Tártaro.
Antes que existisse Afrodite, Urano impedia os partos de Gaia
para que sua terrível progênie não visse a luz do dia nem o desafiasse.
Inchada e dolorida, a Terra suspirava, mas isso não impedia que
engravidasse mais uma vez. Lamentava-se entre juramentos e vinganças
malignas, enquanto o Céu assumia o domínio, orgulhoso de suas más
ações, até que cansada de se sujeitar às suas normas, forjou uma foice
para atacá-lo e instigou seus filhos a enfrentarem-no, a fim de fazê-lo
pagar por todos os ultrajes que havia cometido.
Contudo, Cronos foi o único que atendeu ao chamado materno
e, armado com a foice bem afiada, lançou-se contra seu pai em uma
emboscada. Esperou que Urano se estendesse outra vez sobre Sua mãe
durante a negra noite e rapidamente, de um único golpe, decepou-lhe
os órgãos genitais. Não obstante o corte certeiro, escaparam algumas
gotas de sangue que se derramaram sobre a Terra quando o membro
foi atirado ao mar, as quais fecundaram novamente Gaia, fazendo com
que esta procriasse as poderosas Erínias, os grandes gigantes e um
gênero de ninfas que os gregos denominaram melíades.
O membro decepado de Urano ficou ali, vigorosamente embalado
pelas ondas, lançando uma espuma que se alargava cada vez mais com o
vaivém das águas. A espuma navegou primeiro até a ilha de Citera,
depois as correntes marinhas orientaram-na até Chipre, em cujas
praias se formou a partir dela uma formosa mulher, cingida com a
mais bela coroa e que tomaria o nome dessa mesma espuma: Afrodite,
ainda que depois a chamassem também Citéria, pois foi nessa ilha que
ela primeiro desembarcou da concha em que navegava desnuda, em
busca de uma morada.
Embora insignificante, a ilha de Citera foi um ponto referencial de
passagem nos tempos antigos. Dali Afrodite transladou-se para o
Peloponeso e depois para Pafos, em Chipre, onde se instituiu a
principal sede de seu culto. Acompanhada de Eros, por onde passava e
pousava os pés brotavam flores, e as Estações, filhas de Têmis,
adornavam-na com vestes de cores cambiantes. Rodeada por uma
sugestiva revoada de pombas, emblema da lascívia, a nascida da
espuma fazia-se acompanhar de seu condizente servo Hímero até
quando foi levada ao Olimpo, onde se incorporou à tribo dos deuses,
que não tardaram em torná-la também divina, apesar da aversão que
provocara nas deidades femininas.
Padroeira do amor, da beleza, do desejo e, por extensão, da
fertilidade, Afrodite inspirou desde então a intimidade, as traições
amorosas, os doces sorrisos, o prazer, o afeto e a mansidão, que eram
chamados de Titãs por seu pai Urano quando este queria injuriá-los.
Dentro da natural confusão mitográfica, considera-se também
Afrodite filha de Zeus e Dione, a deusa dos carvalhos, em que se
aninhavam as pombas e os pardais. O certo é que seu vínculo com a
espuma celeste - que serpenteia revigorada pelo movimento das ondas
- embeleza sua posição de sedutora sem par. Amante infatigável, não
se lhe conhece repouso sexual. Escolheu como esposo a Hefestos, o
ferreiro coxo construtor das armas dos aqueus, ainda que, mesmo
antes que os esponsais se consumassem, sua paixão se inclinasse
para o impetuoso Ares, o contendor patrono das guerras, com quem
gerou Fobos, Deimos e Harmonia, que fez passarem por filhos de seu
matrimônio.
Se Afrodite não tivesse permanecido por tempo demais no leito de
Ares, os raios de Hélio não os teriam delatado. Cego de ciúmes,
Hefestos forjou uma rede de bronze de trama tão fina, imperceptível e
resistente como a de uma teia de aranha e a amarrou por todos os
lados do tálamo nupcial. Afrodite regressou da Trácia cheia de
desculpas para justificar sua ausência tão prolongada. Porém Hefestos,
em vez de manifestar desagrado, anunciou que ele mesmo estava para
sair em férias por um longo período na ilha de Lemnos, sua preferida.
Segundo o previsto, Ares não tardou em atender ao chamado de
Afrodite e imediatamente os dois se prontificaram a continuar seus
amores sem imaginar que cairiam enredados na armadilha
ardilosamente estendida a seu redor.
Quando quiseram levantar-se, os amantes se deram conta de
que, desnudos e surpresos, teriam de esperar pelo regresso de
Hefestos para serem libertados. E, enquanto o coxo se demorava,
acreditando que os faria sofrer mais prolongando sua ausência, os
dois se aproveitavam da oportunidade inesperada em nome da paixão.
Encolerizado, o ferreiro não se contentou em corroborar o
adultério de sua mulher, mas chamou ainda a assembléia dos deuses
em altas vozes para que todos testemunhassem sua desonra. A lição,
todavia, não se fez esperar: divididas por pudor ou porque já
percebiam o brotar de uma sedução íntima, as opiniões emitidas
perante o enredo dos amantes não satisfizeram o esposo traído. As
deusas, por sua vez, demonstrando o falso pudor com que
administravam a seu convir uma fragilidade dissimulada, negaram-se
a presenciar tal discussão e preferiram ficar mexericando em seus
próprios aposentos.
Os deuses quase não davam atenção às queixas de Hefestos
porque todos se deleitavam com as formas saborosas da bela Afrodite,
invejando a sorte do aprisionado e sorridente Ares. O ferreiro gritava
que não deixaria sua esposa em liberdade até que lhe devolvessem
todos os presentes que dera a seu pai Zeus para que intercedesse em
favor de seu infeliz casamento. Enquanto o insultado vociferava
espumante de ódio, sem que ninguém lhe respondesse a favor ou
contra, Apolo começou a sussurrar dissimuladamente aos ouvidos de
Hermes:
- Escuta, mulher alguma é melhor que Afrodite. O caso de Ares
não é prisão, nem nada, pelo contrário, é um prêmio invejável... Não
gostarias de estar em seu lugar, apesar da rede?
Hermes jurou por sua própria cabeça a Apolo que não com uma,
mas até com três redes, qualquer que fosse o castigo, mesmo à custa da
desaprovação de todas as deusas, trocaria de lugar com Ares na cama
com Afrodite, nem que fosse por uma única vez. O comentário fez os
dois rirem tão estrondosamente que o quarto estremeceu e Zeus, com
fingida solenidade, para não precisar devolver os presentes recebidos,
ditou sua sentença: não competia a ele, o Pai dos Céus, nem a
nenhum dos deuses olímpicos ali presentes, intervir nos assuntos
particulares entre marido e mulher. Se alguma vergonha havia, era de
Hefestos, por estar a exibi-la nua aos olhos de todos, logo nos braços
de um amante tão aguerrido, vigoroso e, a olhos vistos, muito mais
competente do que ele, pois Ares mostrava-se vitorioso e até mesmo
divertido em uma situação tão ridícula. Hefestos, por outro lado, tão
orgulhoso de sua rede invencível, portava-se como uma comadre vulgar
ao proclamar sua desgraça aos olhos de todos, além de que, cúmulo
de todas as tolices, ainda se atrevia a requerer a devolução de seus
presentes sem recordar que os deuses jamais devolvem qualquer
oferenda que lhes seja feita, muito menos o cobiçoso Pai do Céu.
As situações mais dramáticas costumam coincidir
freqüentemente com as de maior ridículo. Afrodite, presa ao leito com
seu amante pela rede do laborioso Hefestos, à vista de todos os deuses,
constitui uma das cenas mais divertidas da mitologia grega. A partir
dela se desprendem numerosas aventuras da deusa e outros
acontecimentos reveladores da natureza dos imortais. Para Ares, por
exemplo, não representavam qualquer afronta as reclamações e
insultos do esposo ofendido. Sendo ele o deus da guerra, ainda mais
se divertia com seus acessos de raiva e, sem se dar ao trabalho de
separar seu corpo do de Afrodite, aproveitava a vulgaridade da ocasião
para fanfarrear ou desafiar o infeliz Hefestos, passando-o por bobo, já
que os cuidados que prodigalizava sua infiel esposa certamente não
eram dos mais honrosos.
Parado em total silêncio, de um dos lados da cama, Poseidon
enamorou-se de Afrodite ao contemplá-la desnuda, mas fez o possível
para que ninguém percebesse. Sentiu que um fogo o devorava, seu
membro cresceu de desejo e não passava mais nada por sua mente
senão a obcecada intenção de se unir também com ela, mesmo a preço
dos maiores castigos. Senhor dos cavalos, deus do mar e dos
terremotos, também conhecia os tremores imprevisíveis; fustigado
pelos ciúmes que secretamente sentia de Ares, aparentou estar do
lado de Hefestos e tomou a palavra para expor a todos uma solução
que acreditava ser conveniente.
- Já que Zeus se nega a atender ao esposo agredido - disse
Poseidon diante dos amantes que continuavam na cama - e tampouco
concorda em devolver os presentes que Hefestos lhe ofereceu a fim de
ganhar seu apoio ao desposar Afrodite, eu me encarregarei de
pressionar Ares a fim de que pague o equivalente e satisfaça assim a
honra ofendida.
- Sim, como não, assim ficará muito bem. Eu realmente desejo
esta satisfação - concordou o desafortunado Hefestos em um tom tão
lúgubre que deixava bem claro aos ouvidos de todos a dor do
apaixonado ofendido. - Mas se Ares não cumprir sua parte, como é de
esperar, então tu mesmo deverás ocupar o lugar dele na rede e,
conforme jurei ainda há pouco, não poderão sair dela nem tu nem
Afrodite, até que eu me considere totalmente desagravado.
Sábio como era, Apolo soltou uma gargalhada ao escutar uma
ameaça tão ingênua:
- Ficar na rede, tu disseste? Em companhia de Afrodite? Meu
pobre Hefestos - disse-lhe o belo, virtuoso e maduro Apolo - mas então
não te dás conta do que estás propondo?
- É que ele não pode acreditar que Ares não cumpra o seu dever -
apressou-se a intervir Poseidon, com aparente nobreza. - Porém, se
assim for, se Ares faltar com a palavra e sair por aí a continuar com
sua velhacaria, eu estou disposto não somente a cumprir seu dever
como também a desposar Afrodite, a fim de resgatar-lhe a honra e
protegê-la de novas espreitas.
Então os deuses que ali se achavam congregados deliberaram,
sempre movidos pela simpatia que lhes despertava a apetecível
Afrodite, decidindo que Hefestos deveria libertar seu rival Ares para que
este regressasse à Trácia sem causar maiores problemas, ao passo que
Afrodite deveria retornar a Pafos, sua ilha nativa de Creta, a fim de que
a espuma que a havia gerado renovasse sua virgindade quando se
banhasse no mar.
A indiscrição de Hefestos, para sua desgraça, marcou-o como o
maior e mais ingênuo cornudo na história de todos os tempos. Já
totalmente esquecida do episódio, Afrodite banhava-se em suas águas
primordiais e flertava como se nada tivesse acontecido, enquanto
Hefestos continuava sofrendo no calor de sua forja. Logo Hermes foi
visitá-la a fim de lhe confessar seu amor e adulá-la com doces palavras.
Afrodite, como era seu costume, desprendeu o mítico cinturão para se
deitar com ele durante toda uma noite sobre as areias mornas das
praias cretenses, e juntos geraram Hermafrodito, essa criatura
estranha, exposta a cultos e interpretações acomodatícias, que se
distinguiria por seu duplo sexo desde que, segundo as versões mais
remotas, foi amado por Salmácis, a ninfa da fonte em que costumava
se banhar. Cativada por sua beleza sem par, a náiade suplicou aos
deuses para que fundissem seus corpos num só, a fim de que seu
abraço perdurasse para sempre. Os deuses atenderam seu rogo e da
fusão de Salmácis com Hermafrodito surgiu a quimera bissexual, que
em parte recorda o mito platônico dos seres que foram divididos em
metades complementares.
De acordo com o combinado, e uma vez que Ares jamais
cumpriu o trato, assim como Hefestos nunca chegou a se divorciar de
Afrodite, esta também acedeu às solicitações de Poseidon, com quem
procriou Rodos e Herófilo. A tempo, Homero também cantaria em seus
Hinos outros namoros memoráveis da deusa, como o protagonizado com
o formoso e libertino deus Dionísio, do qual nasceria a uma criatura
monstruosa, o próprio emblema da fealdade, que mal conseguia
caminhar tão grandes eram seus genitais. Desse menino, chamado
Príapo, contam-se muitas lendas; a mais difundida relaciona-se com as
eternas ciumeiras de Hera que, incomodada pelas inúteis solicitações
sexuais de Zeus a Afrodite, vingou-se nesse filho dela dotando-o do mais
obsceno dos aspectos, para que quem ninguém esquecesse os efeitos da
luxúria da deusa nascida da espuma. No entanto, pacífico como era,
Príapo converteu-se no jardineiro por excelência, ofício em que honrava
sua mãe. Desde então, ele é representado trazendo suas ferramentas
de jardinagem, com as quais se dedicava ao cuidado das flores
primaveris.
Alguns mitógrafos asseguram que Zeus, irritado pela indiferença
de sua filha adotiva, levou-a a enamorar-se perdidamente de um mortal,
não obstante as exigências de sua condição de deusa. Certo é que, no
mito afrodisíaco, conta-se que Enéias talvez fosse filho de Afrodite,
fruto de seus amores com o troiano Anquises, rei dos dardânios e neto
de Ilo, a quem ela enganou entrando à noite em sua choupana,
disfarçada de princesa frígia. Ataviada com uma suave túnica vermelha
e calçando sandálias de um tecido tão fino que mal se percebiam,
Afrodite amou o troiano com grande ardor sobre um leito forrado de
peles de ursos e leões, enquanto ao seu redor zumbiam
acalentadoramente milhares de abelhas.
Ao despertar nos primeiros raios da aurora, a deusa revelou ao
monarca sua verdadeira identidade, impondo-lhe um juramento de
silêncio para que ninguém soubesse que se havia deitado com ele.
Horrorizado, Anquises recordou-se que contemplar a nudez de uma
deusa acarretava terríveis castigos, inclusive a morte, e lançou-se de
joelhos perante ela, suplicando-lhe que tivesse piedade.
Ardilosamente, Afrodite fingiu que se deixava convencer a perdoá-lo e
logo lhe anunciou o nascimento de um filho, que se destacaria por
suas ações heróicas e alcançaria grande fama. Homero recorda que,
passado o primeiro espanto, Anquises reassumiu sua personalidade
normal, e certa vez, quando bebia com alguns companheiros, foi
perguntado se preferia dormir com uma mulher real, bonita e mortal
como eles, ou com uma deusa, quem sabe a própria Afrodite, ao que
ele respondeu parecer-lhe absurda a pergunta, pois havia conhecido o
prazer de ambas as situações e qualquer comparação seria um
verdadeiro disparate.
Vigilante dos atos humanos e divinos, Zeus mantinha sempre um
olho aberto sobre os assuntos do mundo e escutou claramente as
palavras jactanciosas que eram proferidas pelos troianos. Nem bem
Anquises acabava de alardear seu feito, caiu entre ele e os demais
bebedores um raio do Olimpo, que seguramente teria lhe causado a
morte não tivesse Afrodite interposto seu cinturão para proteger o
amado. De repente, tudo estremeceu. Choveram chispas e fagulhas para
todos os lados, e ainda que a deusa tivesse desviado o raio maléfico, a
sacudida atingiu o infeliz falastrão de tal maneira que nunca mais pôde
caminhar ereto, tampouco desfrutar dos prazeres do leito.
Afrodite, movida ainda pelos rescaldos de sua paixão, nunca
deixou de manifestar sua preferência pelos troianos durante a
memorável batalha contra os gregos e, inclusive, continuou visitando
Anquises até que o nascimento de Enéias viesse a termo. Ao trazê-lo ao
mundo, porém, seu desejo apagou-se magicamente, desapareceu seu
interesse e nunca mais pôs os olhos no amante.
Inesgotáveis, as façanhas de Afrodite se revelam em suas horas
olímpicas e posteriormente, em todas as aventuras dos amantes. Sua
figura enfeitiçante é invocada por guerreiros e reis, por pastoras e pelas
mulheres mais refinadas. E ali se encontra Afrodite à espreita,
seduzindo com sua beleza perfeita, com a mão sempre colocada à altura
do cinto a fim de soltar a túnica nas ocasiões mais imprevistas.
As Górgonas

Feitas de luz e de trevas, belas ou horrendas, aguerridas,


insidiosas, sensuais, feiticeiras, amáveis, piedosas ou batalhadoras: a
mitologia helênica abarcou todos os aspectos do comportamento
humano ao discorrer sobre mulheres ou deusas. Toda conduta e todos
os sonhos encontraram o depositário adequado para simbolizar a
diversidade da vida e, em seu conjunto, formaram um vasto dicionário
de nomes, rostos e idades que perdura através dos séculos como a
mais elevada lição de humanidade. Ninfas, virgens, mães, amantes ou
quimeras, os gregos cultivaram o costume de dotar cada uma com
individualidade própria a partir das primeiras gerações de deuses,
talvez para sublinhar sua certeza de que cada ser é único e
insubstituível, porque foi chamado a consumar uma missão
determinada pelo destino antes mesmo de seu nascimento.
Há um signo distintivo de cada caráter, mas também um
atributo que qualifica o personagem, o que faz da literatura grega um
passeio exuberante por vozes e condutas que definem a vida. Assim
como Circe é a feiticeira de lindos cabelos, a primeira Aurora surge
com dedos cor-de-rosa; Nemertes tem a mesma inteligência do pai, e as
cinqüenta irmãs que nasceram de Nereu, um dos deuses do mar, e de
Dóris, filha de Oceano, distinguem-se umas das outras por suas
bochechas ou por seus tornozelos, ou ainda pela delicadeza e
habilidade com que praticam suas tarefas domésticas.
Também divindades do mar, Forcis e sua esposa e irmã Ceto,
por sua vez, geraram as Graias de belos pômulos, grisalhas de
nascimento, a quem os homens e imortais chamaram anciãs. Também
tiveram Penférides, de túnica sem igual; Ênio, do manto de açafrão; e as
três Górgonas, que habitavam no limite da noite junto às Hespérides
de voz harmoniosa, cuja tarefa consistia em vigiar a macieira de pomos
de ouro que Gaia presenteara a Hera por ocasião de seus esponsais
com Zeus. As Hespérides também guardavam a Árvore de Ladon, o
dragão abatido por Héracles, da qual procediam as maçãs que eram
atiradas a bel-prazer pela ágil caçadora Atalanta, quem se recusava a
casar a menos que aparecesse um homem capaz de vencê-la na
corrida, e que condenava os pretendentes derrotados a morrer.
Hipômenes aceitou o desafio; compadecida, a própria Afrodite veio
aconselhá-lo e lhe presenteou três maçãs de ouro, como um
subterfúgio para distrair a competidora. Deixando-as cair a intervalos
pelo percurso, Atalanta não resistia à tentação de parar para recolhê-
las e acabou perdendo a corrida.
Segundo Hesíodo, coube às Górgonas Esteno, a poderosa,
Euríale, a grande viajante, e Medusa, a rainha desventurada,
encarnarem a monstruosidade feminina. As duas primeiras eram
imortais e livres da velhice. A terceira, a mais astuta, era mortal. Com
ela deitou-se, no mais macio dos prados, entre flores primaveris, o
suave Poseidon, deus do mar de cabelos azulados, filho de Cronos e de
Réia. Tão perturbadora quanto aberrante, converge em Medusa todo
tipo de insinuações que costuma provocar tanto a rejeição de nossa
cultura judaico-cristã como a atração do mistério. É a deusa do sexo, e
pela abundância de sangue que brota de sua cabeça coroada de
serpentes também simboliza a fecundidade. É por isso que a seus
encontros amorosos com Poseidon juntavam-se alusões a campos
floridos ou a lugares onde, por causa do coito ali celebrado, a relva
costumava crescer em abundância.
Narra Hesíodo em sua Teogonia que, quando Perseu cortou a
cabeça de Medusa, brotaram de seu pescoço o imenso Crisaor e o cavalo
alado Pégaso, cujos nomes se devem ao fato de Crisaor já trazer em
suas mãos uma espada de ouro e Pégaso haver nascido junto às fontes
de Oceano. Ao abandonar a terra em pleno vôo, o cavalo de asas
aproximou-se dos paramos dos imortais e habitou desde então a
morada de Zeus, ajudando-o a carregar o raio e o trovão. Da união do
próprio Pégaso com Calírroe, filha de Oceano, nasceu Gérion, o
monstro de três cabeças morto por Héracles junto aos bois por ele
guardados em Eritéia, animais de fronte larga que foram
arrebanhados no mesmo dia e conduzidos até a cidade sagrada de
Tirinto.
A fecunda e tenebrosa Ceto, mãe das Górgonas, engendrou em
uma caverna a outro monstro feminino em nada parecido com mortais
ou deuses, a divina Equidna, uma criatura de mente vigorosa, metade
uma jovem de rosto lindo, faces formosas e olhos vivazes, metade uma
serpente terrível, enorme, brilhante e selvagem. Imortal e pérfida,
Equidna é a eterna jovem retida para sempre embaixo da terra no país
dos arimos. Mais tarde Ceto aceitou a corte de Tífon, o transgressor
insolente, e pariu nada menos que o cão Orto, companheiro de Gérion,
e depois o selvagem Cérbero, o cão de cinqüenta cabeças e voz brônzea,
insaciável e feroz, que guardava o portão infernal. Em terceiro lugar,
Ceto gerou a Hidra de Lerna, a perversa mãe de Quimera, que exalava
um fogo indomado, enorme, tão violenta como rápidos eram seus pés.
Hidra foi criada pela deusa Hera, que ficou imensamente irritada com o
brutamontes Héracles porque este filho de Zeus tutelado por Atena
finalmente matou sua protegida com a ajuda do belicoso Iolau.
Nesse universo de monstros e personagens noturnos, as
Górgonas representam uma forma auxiliar da luta dos filhos da Terra
contra o poder incontido dos deuses. Criaturas aladas, com serpentes
em vez de cabelos e mãos de bronze, sua deliberada fealdade se
acentuava pelo nariz achatado, pela cara redonda e pela comprida
língua exposta entre ferozes caninos de javali. Reinterpretadas ao longo
do tempo, evocam as deformações da consciência consideradas, em
psicanálise, pulsões pervertidas: sociabilidade, sexualidade e
espiritualidade.
Célebre por sua capacidade de transformar em pedra qualquer
coisa ou ser que contemplasse, Medusa sobreviveu até os dias do
Renascimento não somente como emblema protetor das armaduras e
máquinas de guerra, mas pelo forte sentimento de culpa que provoca
em quem contempla sua cabeça decepada, o rosto do inconsciente que
impede qualquer gesto reparador. E não basta a visão da verdade, não
é suficiente enfrentar-se a culpa, é necessário resistir a ela porque, em
seu horror implícito, o espanto da própria descoberta paralisa a quem
se contempla através dela. Quiçá por seus efeitos inibidores mais
ocultos, sua cabeça foi sepultada sob um túmulo na agora da cidade de
Argos, onde se acreditava em sua dupla capacidade de intimidar
amigos e inimigos.
Sobretudo a partir do século V a.C. o rosto de Medusa começa a
se humanizar. Torna-se a jovem alada com cabeça de serpentes de
quem Héracles roubou um dos cabelos para presenteá-lo a Estérope,
um dos três ciclopes nascidos de Gaia e Urano, também chamado
Relâmpago. Diz-se que esse cabelo tinha a virtude de produzir
tormentas e que foi utilizado para defender a cidade de Tegéia de um
ataque inimigo. Em numerosos relevos e em algumas estátuas
aparece, inclusive, uma medusa de belas feições no instante de sua
morte.
Sujeita também às interpretações de inúmeras versões, a mítica
Medusa permanece, no entanto, vinculada à guerreira Atena, a quem
responsabilizam por seus poderes funestos. Inclusive se chegou a
supor que Palas, o gigante caprino alado, era o verdadeiro pai de
Atena, e que esta agregou o nome da fabulosa criatura ao seu quando,
após Palas tentar violá-la, esfolou-lhe a pele, com a qual fez a égide que
sempre a acompanha; e também lhe arrancou as asas que, desde
então, carrega nos próprios ombros. Outros helenistas asseguram que
a pele de seu escudo não era de Palas, mas que fora esfolada da
górgona Medusa depois desta ter sido decapitada por Perseu.
Belas durante algum tempo, as Górgonas habitavam o país hoje
conhecido como Líbia, no extremo ocidental das terras banhadas pelas
águas do pai Oceano e, desde sua origem, simbolizam o inimigo que
deve ser vencido. Aparentemente, a perseguição constante de Atena
contra Medusa proveio de um de seus olímpicos ataques de ciúmes,
quando certa noite a Górgona se deitou com Poseidon no recinto de
um de seus templos. Furibunda, a deusa transformou-a em um
monstro alado de olhos deslumbrantes, com a língua
permanentemente pendurada por entre presas de fera. Armou-a com
garras afiadas e ornamentou-lhe a cabeça com serpentes em vez de
cabelos. Depois a condenou a converter em pedra todos os homens
nos quais pousasse seu olhar, de tal modo que a simples evocação de
seu nome já era suficiente para causar horror.
Robert Graves associa as Górgonas com a deusa tríplice
primordial. Diz-se que usavam máscaras no intuito de espantar os
estranhos, a fim de afastá-los dos mistérios que encerravam seus
rostos. O certo é que, para Homero, só existia uma Górgona, refundida
no Tártaro sob a forma de um espectro tão medonho que causou
horror em Odisseu. Consta, no entanto, que os padeiros da Grécia
pintavam máscaras de górgona em seus fornos para impedir que os
intrometidos bisbilhotassem e deixassem passar as correntes de ar que
poriam a perder toda a fornada.
São muitos os atributos conferidos à decapitada Medusa.
Aparentemente, Atena presenteou a Asclépio, o fundador da medicina,
duas redomas de vidro contendo o sangue derramado do pescoço da
Górgona ao se desprender a cabeça no momento do decepamento. Com
o líquido retirado das veias do lado esquerdo, podia ressuscitar os
mortos; com o sangue brotado do lado direito, matava
instantaneamente. Também se acreditava que o sangue fora repartido
entre a deusa e o médico, de tal modo que Asclépio utilizava-o para
curar enquanto a deusa manipulava-o para destruir e instigar as
guerras que depois ela mesma tutelava; dizia-se ainda que Erictônio1
havia recebido das mãos da deusa duas daquelas gotas para matar e
curar, e que ele mesmo havia atado os recipientes com cintas
douradas a seu corpo de serpente, a fim de prodigalizá-los segundo
sua própria conveniência.
O mítico Perseu, executor de Medusa, ofereceu a cabeça desta
como presente a Polidectes para ajudá-lo a se casar com Hipodâmia,
uma vez que o jovem não tinha cavalo nem ouro para competir com a
riqueza de seus rivais. Atena, inimiga jurada de Medusa, tendo
escutado a conversa entre ambos, propôs-se a ajudar o herói
guerreiro, no intento de consumar sua vingança. Conduziu-o primeiro
a Dictérion, na ilha de Samos, a fim de que reconhecesse Medusa entre
as máscaras das Górgonas que ali se costumava exibir. A seguir, fez-lhe
a advertência de que nunca a olhasse de frente, mas somente em
reflexo, e presenteou-o com um escudo brilhantemente polido que
serviria para espelhá-la. Hermes entregou-lhe uma foice fabricada de
diamante para decapitá-la; depois de gravar bem as instruções, Perseu
dirigiu-se ao pé do monte Atlas para roubar o único olho e o único
dente de que dispunham as três Graias, irmãs das Górgonas, muito
parecidas com cisnes, com a promessa de devolvê-los desde que lhe
informassem onde moravam as ninfas de Estígia, criaturas das quais
deveria obter um par de sandálias aladas, um surrão mágico para
guardar a cabeça cortada e o elmo negro da invisibilidade pertencente
a Hades.
No momento em que as Graias passavam o olho e o dente umas
para as outras, Perseu deslizou por detrás de seu tríplice trono e lhes
arrancou as peças das mãos com a maior facilidade, logrando a seguir
a informação requerida. Depois disso obteve das ninfas as sandálias, o
surrão e o elmo e dirigiu-se à outra margem do mar, encontrando as três
Górgonas adormecidas entre restos de homens e animais que haviam
sido petrificados por Medusa e que se haviam desgastado com as
chuvas e o vento. Manteve os olhos fixos sobre o reflexo no escudo,
conforme o haviam instruído, e cortou a cabeça de Medusa com um
único golpe de foice. Para seu assombro, no mesmo instante brotaram
do cadáver o cavalo alado Pégaso e o guerreiro Crisaor, com uma
espada de ouro desembainhada na mão, ambos completamente
desenvolvidos. Como ignorasse que eles haviam sido gerados por
Poseidon no templo da ofendida Atena, apressou-se em guardar a
cabeça no surrão mágico e fugiu espavorido até pôr-se a salvo nas
terras do sul, apesar de Esteno e Euríale, acordadas por seus novos
sobrinhos, terem se levantado e acorrido em sua perseguição. Medusa,
desde então, permaneceu escondida no mistério até associar-se com o
novo enigma apresentado pelo animal marinho que leva seu nome.

1 Rei lendário de Atenas, Erictônio era um ser híbrido, metade homem, metade
serpente.
Éris e as Erínias

Alguns dizem que Éris e seu irmão gêmeo Ares foram concebidos por
Hera quando a deusa tocou certa flor que, no que se refere ao deus
homicida, poderia ser o malmequer ou cardo branco, enquanto que
para gerar a Discórdia tocou a flor negra ou abrunheiro, da qual a
deusa também chamada Disputa veio a absorver o veneno da cizânia.
Dona de humores perversos, Éris tem nas Erínias - ou Fúrias - sua
contrapartida perfeita quando incute na alma os mais terríveis castigos
a uma conduta lesiva. Éris se apresenta e se faz perceber cada vez que
surge um problema; todavia, tal como as Hárpias, as Erínias
transformam-se em cães ou em serpentes: desafiam, ladram, mordem o
coração e semeiam o terror na consciência. Se Éris é movida pelo sim-
ples prazer de provocar altercações, as Fúrias aparecem como
instrumento da vingança divina perante as falhas humanas. A
Discórdia, segundo Homero, apresenta-se apequenada a princípio e
depois se encrespa; em seguida, vigorosa e agressiva, ergue a cabeça
até o céu e arrasta o resto do corpo pelo solo envenenando tudo o que
encontra em seu caminho.
Filhas do sangue do castrado Urano - a substância que
fertilizou Gaia -, as poderosíssimas Erínias acossam intimamente
cada criatura, aguilhoam a consciência com remorsos e, quando
querem realmente infligir castigos, infundem no espírito estados
cambiantes de autodestruição que podem variar de um mero
sentimento de culpa até as mais complexas expressões de
autodesprezo. Diversamente de Éris, que manipula o repúdio para
coroar sua discórdia com manifestações de ódios públicos, as
Erínias encarregam-se de velar, desde o interior da mente, pela
manutenção da ordem e pela prevalência da lei natural. Além disso,
elas também ratificam os excessos doentios, geralmente na esfera
privada, apesar da influência dos outros deuses e acima de qualquer
reserva da vontade que os homens interponham para aplacá-las
quando o tormento rouba-lhes o sono ou lhes impede o sossego.
Vingadoras do mal, primeiro proíbem e advertem; mas se não forem
atendidas, condenam sem limites e aniquilam o ser até suas mais
íntimas profundezas com a eficácia do remorso.
Não houve quem escapasse de suas sanções no passado. Mesmo
hoje, ninguém consegue se furtar a elas. As Erínias instigaram Édipo
desde o momento em que ele conheceu a verdade sobre seu duplo
crime, e lhe moveram as mãos para que arrancasse os próprios olhos
com a vã intenção de afastar de si a visão delas e da carga de culpa
que lhe apresentavam. Só conseguiu vencê-las no final de sua vida
quando, na paz da alma recobrada pela mediação de outros deuses,
expiou, entre sofrimentos e doses de lucidez, as trevas que até então
lhe atormentavam a consciência.
Para se libertarem dos sofrimentos que lhes provocavam as
Erínias, os homens inventaram o ato da confissão como via de
compensação ou, talvez, de permuta de um sacrifício por outro. Mas as
Erínias cruzaram os séculos, poderosas e inamovíveis, até se alojarem
na alma do homem contemporâneo, marcado por sua personalidade
culpável. Foi então que surgiu a psicanálise, e a humanidade explorou
os meandros da conduta para mitigar, fosse pela ciência, fosse pela
religiosidade, o seu vigoroso furor. Por isso não é diferente o sofrimento
de Orestes, que despertou contra si as Erínias por ter dado morte a
Clitemnestra, sua mãe e irmã de Helena de Tróia, do padecer de
qualquer mulher sem nome que assassina seu próprio filho movida
pela perfídia de Éris. As Erínias seguiam Orestes como cães de caça,
sem lhe conceder um só instante de paz; à filicida de hoje elas acossam
com o silêncio da serpente letal e com uma potência que em nada é
menor àquela que, entre nós, moveu as mãos de Jorge Cuesta1 para
primeiro se mutilar de maneira horrenda e depois se enforcar na mesma
banheira em que, de permeio a um rio de sangue, buscou uma forma
de expiação para seu possível tormento incestuoso.
As Erínias, deidades de signo dual, ao serem vencidas pela
bondade e pela purificação interior, assumem o nome de Eumênides,
um eufemismo para Benévolas, quando a razão, simbolizada por Atena,
reconduziu a consciência à harmonia. Alecto, Tisífone e Megera são os
nomes das três Fúrias em sua modalidade de espíritos cruéis, que
rastejam no mundo inferior e não cessam de torturar os criminosos.
E se Ares, o deus trácio, desde tempos imemoriais ama as
batalhas pelo simples prazer que elas lhe causam, Éris dá ocasião para
os combates por meio de rumores, insulando os ciúmes ou
despertando outras paixões perversas. Nenhum dos gêmeos toma
partido ou prefere uma facção a outra, pois seu maior contentamento é
justamente o ódio. Isso foi atestado pela llíada quando Éris, por não ter
sido convidada para as bodas de Peleu e Tétis, apadrinhada pelo
legendário Teseu e da qual participavam as outras deusas, decidiu se
interpor à conversa amistosa entre Hera, Atena e Afrodite fazendo rodar
a seus pés uma maçã de ouro na qual inscrevera a legenda "à mais
bela", fato que se converteria na causa inicial da Guerra de Tróia,
ocorrida uma geração depois.
Tampouco Pirítoo, rei dos lápitas e filho de Zeus, que sob a
forma de um garanhão correu ao redor de Dias antes de seduzi-la,
convidou qualquer dos gêmeos para seus esponsais com Hipodâmia, a
domadora de cavalos - não obstante tenham comparecido, além de
seu amigo Teseu, rei de Atenas, os demais deuses olímpicos -, porque
recordou o dano que Éris havia provocado nas bodas de Tétis e Peleu;
no entanto, a Discórdia acabou por se vingar. Apresentaram-se ao
banquete mais hóspedes do que podia comportar o palácio, e seus
primos, os centauros, juntamente com Nestor, Ceneu e vários outros
nobres tessálios, foram se sentar às mesas colocadas sob a proteção
da abóbada de uma caverna próxima à sombra de grandes árvores.
Diz-se que, desacostumados ao vinho, os centauros sentiram
pela primeira vez seu aroma e, cativados por sua fragrância, recusaram
o leite azedo que costumavam tomar e que lhes fora servido.
Apressaram-se, então, a encher suas guampas de prata e beberam o
licor derramado dos odres, sem misturá-lo com água, até perderem os
sentidos. Quando a noiva foi com seu séquito saudar os que comiam e
bebiam na caverna, Eurito se levantou de um salto, furibundo,
derrubou a mesa com violência e agarrou Hipodâmia, arrastando-a
pelos cabelos. Os outros centauros seguiram seu exemplo nefasto e,
depois de quebrarem as mesas e vociferarem, puseram-se a violentar
coletivamente as moças e os rapazes que se divertiam no interior da
caverna.
Indignados, o rei Pirítoo e seu paraninfo Teseu, coberto com sua
pele de leão, acorreram para salvar a noiva. Cortaram ambas as
orelhas e o nariz de Eurito em sinal de vingança e o arrojaram para
fora da caverna com a ajuda dos outros lápitas. Comandada por Éris e
Ares, iniciou-se uma feroz batalha que durou até o anoitecer, com um
pavoroso saldo de mortos e feridos. Esta é a origem da legendária
inimizade entre lápitas e centauros, a quem Homero descreve como
"feras peludas" e a seus vizinhos, os lápitas, como "esmigalhadores de
pederneiras"2.
As obras de Éris são tão imemoriais como incontáveis. Moveu a
mão de Caim para assassinar por inveja seu irmão Abel com uma
queixada de jumento. Marcou com rancor a história de José e seus
irmãos. Impediu a consumação dos amores de Julieta e de Romeu,
por causa dos rancores e disputas entre Capuletos e Montecchios.
Encheu de injúrias a boca de Salomé para que decapitassem João
Batista, por despeito. Éris esteve também na língua de Herodes ao
condenar à morte os inocentes a fim de eliminar o Rei dos Reis e, mais
tarde, imbuída de sua sede de conflitos, agitou a multidão para
crucificá-lo quando fez Pôncio Pilatos lavar as mãos em público, como
sinal de sua covardia.
No entanto, esses crimes inumeráveis não ficam impunes porque
detrás da Discórdia avançam as Erínias, agitando os espíritos com seus
pavorosos sentimentos de culpa, os quais, quando não provocam a
autodestruição e ainda mais mortes, tendem a fomentar alicerces
civilizadores para expiar com atos de redenção as faltas que se
debatem nas consciências contra o vigor dos imperativos morais.
Ainda que poderosos, os gêmeos Éris e Ares não são invencíveis.
Reinam agora em um mundo cada vez mais turvo e inquieto, mas
contra eles se interpõe a luta da razão e o império da ordem jurídica.
Anuladas em parte pelo fanatismo e pelo desejo de exclusão, as
Erínias não parecem ter lugar na consciência dessa humanidade
distraída com perseguições e movimentos de ódio; contudo, as Fúrias
da consciência persistem em sua obra vingadora porque, enquanto
existirem a Discórdia e os crimes dela inseparáveis, elas se
manifestarão com seu veneno letal para nos injetar remorsos e
tormentos interiores.
Outros deuses da Antigüidade foram olvidados ou seus atributos
dissipados nas conquistas humanas; de Ares, Éris e das Erínias, ao
contrário, remos notícias a cada minuto, no público e no privado. Não
existe homem que não tenha sido tocado por eles nem consciência que
não se debata, em maior ou menor grau, contra o influxo da dissensão
ou da culpa. Aí estão, sempre à testa da conduta humana, animando
as lutas entre a ordem e o caos, entre a perversidade e o sossego da
alma.

1 Engenheiro químico, poeta e ensaísta mexicano nascido em 1903, na cidade de


Córdoba, Estado de Veracruz. Sua obra, publicada em revistas e periódicos, só foi
reunida e editada após sua morte. Cuesta se suicidou em agosto de 1942. [N.T.]
2 Espécie de quartzo, que emite uma fagulha ao ser percutida por metal ou outra
pedra, usada desde a Antigüidade para acender fogo. O apelido foi dado por Homero
porque lançaram pedaços imensos de pederneira contra os centauros. Como esta rocha
é friável, esmigalhava-se ao bater no alvo ou quando caía no chão. [N.T.]
As Moiras

Filhas de Nix e de Cronos, o mais jovem dos titãs, as Moiras estão


envolvidas pelo mistério que costuma ser acompanhado de intimidação
e de tremor a cada vez que pensamos no destino. Também foram
chamadas Parcas ou Fiandeiras, por causa da imagem que sugere que
ao nascimento, à vida e à morte corresponde sua tríplice tarefa de fiar,
medir e cortar o fio da existência.
Vestidas as três de branco, as Moiras exercem o supremo poder
da Necessidade, ou a Parca Forte, ao qual até mesmo os deuses estão
submetidos, ainda que Zeus atribuísse a si mesmo o direito de chefiar
suas tarefas. Cloto, Láquesis e Átropos residiam no Olimpo e eram
companheiras das nove Musas, com as quais costumavam cantar e
dançar presididas por Atena e, aparentemente, só aceitavam as
pressões de Apolo, o deus da profecia, de quem se acreditava ter o poder
de influir sobre o destino.
Ainda que todos os autores concordem que são as Moiras que
"dão a luz", que repartem a sorte das pessoas, governam suas vidas e
determinam a morte de cada um, existem diferentes versões sobre sua
origem, sobre o exercício de suas funções e as relações que mantinham
com os demais deuses. Para Hesíodo, as velhas fiandeiras são filhas de
Nix e, alegoricamente, de Zeus e Têmis, a Justiça. Cloto é a fiandeira
que segura a roca; Láquesis é a trançadora do fio; e Átropos, a menor
em estatura e a mais terrível, é a implacável que corta a linha com sua
abominável tesoura. Das três, esta era tida como uma fúria cega, pois
ainda que todas as divindades se opusessem unanimemente, era ela
quem determinava o "até aqui e não mais além", segundo respondeu
Telêmaco, filho de Ulisses, quando Nestor expressou o desejo de ser
ajudado por Atena para se tornar um senhor livre, conforme se lê na
Odisséia. Salvo milagres posteriores, tal como o realizado em Lázaro,
não sabemos de nenhuma entidade que possa devolver a vida a quem
tenha falecido nem retornar no tempo a fim de modificar o passado.
Esses são os domínios obscuros das Moiras, pois são elas as
responsáveis pelo cumprimento do destino de acordo com o final que
corresponde a cada um.
Acreditava-se que era Zeus quem avaliava a vida dos homens e
que, ao informar às Fiandeiras suas conclusões, podia intervir para
salvar ou condenar quem julgasse merecedor, mudando o fio da vida no
fuso de Cloto ou quando era medido pela vara de Láquesis; ou ainda
que era capaz de influenciar Átropos no movimento letal de sua
tesoura; mas os fatos demonstram que nem ele, que a si mesmo se
chamava "Senhor das Parcas", ao pretender a soberania suprema
sobre todos os homens - motivo por que Láquesis deixara de ser
mencionada nos cultos celebrados em Delfos -, estava acima do rigor
da morte. Esse é o motivo pelo qual as Moiras têm prioridade na obra
de Hesíodo, e seu domínio não somente parece intocável em Heródoto,
nos poetas trágicos e até mesmo em Platão, mas permeia o pensamento
romano sob a figura de Parcas - Nona, Decuma e Morta - que,
invariavelmente, infiltram com sua misteriosa obscuridade os enigmas
de todo o Medievo até alcançar nossa civilização, com a mesma
certeza que levou a deusa Atena a declarar que "a partir do momento
que a Determinação assim decidiu, nenhuma divindade salva da
morte a criatura humana".
Foram inúteis os rogos de Tétis a Zeus em favor de seu filho
quando soube que a maléfica Moira havia determinado sua morte
precoce. Com notória impotência Zeus se lamenta pela cegueira de
Heitor, que nem sequer desconfia de quão próximo se encontra seu
fim. O deus observa todos os seus movimentos, desde o momento em
que veste a armadura de Aquiles e, não obstante sua compaixão
suprema e sua vontade de fazê-lo sucumbir em grandeza e glória,
segue a distância sua inevitável carreira para a morte. Sabe que Apolo
vai abandonar seu protegido no momento em que o poder do destino se
manifestar, e que nada mais tem a fazer frente à Necessidade senão
acatar o que indubitavelmente seria uma catástrofe.
O nome das Moiras era pronunciado com reverência, com a
idéia da mortalidade e a certeza de se referir ao sentido mais elevado
da consumação do destino. Cheios de vaidade, os homens supuseram
poder dirigir seu próprio destino, que o fado seria tão flexível quanto a
temeridade juvenil ou como a falsa prudência daqueles que acreditam
adiar as sentenças das Moiras evitando perigos desnecessários. Dessas
pretensões e das tentativas de novos deuses ou de inventos científicos
riem-se as Parcas, como se riram quando Apolo pretendeu embriagá-
las para salvar da morte seu amigo Admeto.
Segundo Robert Graves, o mito das Moiras parece arraigado no
costume remoto de bordar as insígnias da família e do clã nos cueiros
do recém-nascido ainda que, na realidade, essas entidades, ou as três
Parcas, formem a tríplice deusa Lua, motivo pelo qual adotaram as
túnicas brancas e o fio de linho que, na versão desse culto referente a
Ísis, eram consagrados à grande deusa. De fato, Moira significa "uma
parte" ou "uma fase". A lua tem três fases ou três partes ou três
pessoas distintas em uma só: a lua nova, ou a deusa donzela da
primavera, durante o primeiro período do ano; a lua cheia, equivalente
à deusa ninfa do verão, ou o segundo período; e a lua velha, a velha
deusa do outono, considerado o último período.
Os heróis homéricos se referem à Moira ou Aisa como se a
grande deusa determinasse o destino em colaboração com os demais
deuses. Porém, cedo ou tarde confirma-se que o fado é tão inamovível
quanto fiel ao comprimento do fio medido por Láquesis, a trançadora.
Homero representa o fado como um fio enrolado em cada homem,
precisamente porque em suas evocações poéticas ele jamais se
descuida das funções das Fiandeiras, as únicas responsáveis pelo
acontecer dos destinos, conceito que abrange todas as interpretações
existentes a respeito da boa e da má sorte.
A Necessidade, ou destino inevitável, era chamada Ananke. A
partir da crença em seu determinismo ou em sua possível flexibilidade,
as Idades inventaram crenças e formas diversas de se vincular aos
deuses com a ingênua intenção de alterar o poder opressivo que ela
representava. Chegou-se, inclusive, ao extremo de se vislumbrar a
existência de uma vida feliz depois da morte, a fim de mitigar o efeito
tremendo que a certeza da finitude produz sobre a consciência. Existem
também numerosas doutrinas mais refinadas que recorrem à fórmula
de uma subsistência em substância, de uma eternização do espírito,
de gozar da glória de Deus ou de padecer um castigo sem calendário
pelas faltas cometidas neste mundo.
Os sacrifícios erguidos contra a ação das Moiras são tão
abundantes quanto inúteis, de tal modo que o único alívio que a razão
pôde conceber a fim de tornar suportável a idéia da morte é essa
abstração da vida depois da vida. Os deuses, desde tempos imemoriais,
atuam do lado da vida. Quando reinam nas trevas ou estabelecem
ligações com o mundo inferior, suas ações adquirem nuances de
estranhamento ou caem em certa tentação de repetir às avessas os
feitos da existência, pois, que mais não seja inverter o conhecido e o
temido, nem as entidades sagradas têm poder para produzir outros
destinos.
Tanto mais amamos nossa presença no mundo quanto mais claro
temos em mente o significado da morte, o fim último e definitivo. Na
Glória ou no Inferno, tal como ocorria em relação ao Hades, nada
podem fazer os deuses em favor dos mortos, pois estes foram
subtraídos do tempo pelas Moiras, e sua mobilidade já não é regida por
nossa certeza de estarmos no presente, de recordarmos o passado e de
aguardarmos o futuro. As Moiras os assinalaram, mediram e cortaram
conforme os fios exatos e precisos da Necessidade.
Detrás das Moiras e de seus enigmas prevalece um mesmo
implícito frente ao incognoscível. A teogonia órfica considera-as filhas de
Urano e Gaia; para Epimênides, Cronos e Eunomia são os pais não
somente das Moiras, mas também de Erínia e de Afrodite, pois as
Fiandeiras tinham seu templo no bosque de Sicion, dedicado à deusa,
onde, por sua mediação, consagravam oferendas para os deuses da Terra
e para os que habitavam embaixo da terra. Para outros poetas,
Eunomia, a Ordem; Diké, o Direito; e Irene, a Paz, são suas irmãs,
também filhas da Noite. É por essa razão que aparecem tão fre-
qüentemente em companhia dos velhos poderes da ordem, ao lado de
Erínia e, acima de tudo, acompanhadas por Têmis, como se pode ver
na Ilíada.
Seja qual for sua origem, para além de uma multidão de irmãs e
de vínculos com inúmeras divindades - e apesar das diferentes
formas com que as diversas gerações pretendem dominar ou vencer o
destino -, das Moiras pode-se dizer ainda o que Hesíodo escreveu sobre
elas: vigiam com semelhante rigor as infrações dos deuses e dos
homens, e não sossegam até que o transgressor receba o que lhe é
devido.
Da tragédia
à história
Circe

Uma das figuras mais fascinantes do mundo homérico é Circe, hábil


em toda sorte de encantamentos e quem dava à espécie humana
muito pouco valor. Por outro lado, amava a luz, e em honra dela
colocara o nome de Aurora [Eos] na ilha em que reinava, abundante
em carvalhos e outras espécies de árvores. Tecia e, às vezes, cantava
nos terraços de seu palácio, situado em uma clareira do bosque
cercado por leões e lobos que não haviam nascido de feras, mas
homens que haviam sido transformados em animais pela força de seus
feitiços.
Irmã de Eetes, o deus da mente perversa, Circe era uma
poderosa deidade de fala humana. Conhecia o vigor secreto das ervas
e praticava os mais delicados deleites do erotismo. Sua sensualidade
também a levou a desfrutar os prazeres gastronômicos e a perceber,
sem dificuldades, os desejos de seus visitantes através dos matizes de
suas vozes e da profundidade de seus olhares. Sua devoção pelo
esplendor provinha da linhagem paterna, assim como de sua mãe
aprendeu a dominar as palavras, pois que, afamada como era por seus
formosos cabelos, Circe era filha do Sol, que deu a luz aos homens, e
sua mãe foi Perseis, ninfa gerada pelo Oceano.
Foi em sua ilha de Aea ou Eéia que desembarcou Odisseu
[Ulisses] quando navegava para o leste em busca de seu reino de Ítaca,
depois de atravessar suas últimas peripécias na terra dos lestrigões,
povo que morava em outra ilha, governada por Lamo e cujo porto
estreito era resguardado por dois promontórios rochosos; alguns
situam tal país em algum ponto a noroeste da Sicília, onde se sentia
tão de perto a manhã e a noite que os pastores que conduziam seus
rebanhos para casa ao pôr-do-sol cruzavam no caminho com aqueles
que se dirigiam aos campos na hora do amanhecer. Lá abundavam as
fendas e os perigosos penhascos, a partir dos quais Ulisses e seus
homens seriam atacados com pedras pelos selvagens antes que
pudessem lançar ao mar suas naves. Hábil como era para arquitetar
artimanhas, o herói pôde se salvar porque conseguiu cortar com a
espada o cabo que prendia seu navio, enquanto exortava seus homens
a remar com todas as suas forças a fim de evitar serem arrojados ao
Hades.
Depois de uma longa viagem e ocupando o único barco que não
fora destruído por aqueles vorazes canibais, Ulisses e os homens que lhe
restavam vieram a atracar no amplo porto de Eéia, em cuja praia
ficaram estendidos durante dois dias e duas noites, cheios de dor e
vencidos pelo cansaço. Quando os primeiros raios da aurora
anunciaram a chegada do terceiro dia, Ulisses subiu a uma atalaia a
fim de ver se descobria a presença de mortais, e ao cabo de longos
caminhos que atravessavam o espesso azinhal divisou uma cortina de
fumaça que subia do local em que se erguia o palácio de Circe. Ali
começou o episódio mais apaixonante de sua odisséia, aquele menos
descrito por Homero em seus cantos e, ao mesmo tempo, o mais
sugestivo sobre o sentido de pátria e sobre a batalha travada na alma
do herói entre a paixão e o passado.
Já eram muitas as peripécias sofridas para que se descuidassem
ao chegarem a regiões desconhecidas; mas não faltaram os imprudentes
que, em sua insana curiosidade, se atreviam a descurar dos conselhos
de Ulisses de conter seus impulsos e observar os arredores com cautela
antes de colocarem suas vidas em risco. O curioso é que reincidiam em
todos os casos e que, por causa de sua ousadia, os veteranos que
acompanhavam Ulisses foram caindo um a um até deixá-lo
praticamente sozinho nas últimas etapas de seu legendário périplo. Em
Eéia, quando tiraram a sorte para decidir quem ficaria cuidando do
navio e quem sairia a explorar a ilha, tocou justamente a Euríloco, o
companheiro mais íntimo de Odisseu, colocar-se a testa dos 22
tripulantes que empreenderam a marcha em meio a soluços
desconsolados.
Passo a passo, por entre azinheiros e carvalhos, subiram pela
encosta até alcançarem o ponto mais elevado onde se encontravam as
edificações de Circe, em um sítio protegido; ali rondavam leões e lobos
sacudindo as caudas, os quais, em vez de atacá-los, se erguiam sobre
as patas traseiras e os acariciavam. Desconcertados, os navegantes se
indagavam que coisa era essa que lhes queriam dizer aquelas feras ao se
comportarem daquela maneira, pois o natural seria que tentassem
devorá-los e não que lhes lambessem as mãos. Seja como for, eles os
seguiram até a clareira do bosque e encontraram Circe sentada em
frente ao tear na mais pacífica das atitudes, tecendo uma tapeçaria
imensa, divina, brilhante, sutil e graciosa, tal como correspondia ao
labor de uma deusa. Cativados por seu canto bem afinado, começaram
logo a gritar para chamar-lhe a atenção, acreditando tratar-se de uma
donzela indefesa. No entanto, cheio de desconfiança, Euríloco se
manteve na retaguarda sem se deixar fitar nos olhos pela mulher de
belíssimos cabelos. Sorridente, de permeio às fórmulas da mais
obsequiosa cortesia, Circe convidou os homens a comerem a sua mesa
e os levou consigo para o interior do palácio.
Euríloco relatou a Ulisses que todos a seguiram sem discutir,
como se não soubessem o que estavam fazendo, e que ela os fizera se
assentar em poltronas magníficas para oferecer-lhes queijo e bolos de
farinha, mel silvestre e o forte vinho de Pramno1, no qual se ocultava a
erva que os faria se esquecer de sua pátria. Vorazes como eram, os
homens acabaram com os manjares e de um só gole beberam o
perverso licor, por cuja influência não somente se esqueceram
totalmente da pátria como também, ao serem tocados pela vara mágica
de Circe, começaram a se transformar em porcos, até que perderam
completamente sua aparência humana. As cabeças, os pêlos, as patas
e a maneira de andar tornaram-se idênticos aos dos suínos, ainda que
sua mente continuasse intacta e totalmente humana. Por isso
choravam com a mesma tristeza dos homens, ao mesmo tempo que
guinchavam à maneira dos porcos; foram depois encerrados em um
chiqueiro, no qual comiam as bagas de sanguinho, as abelotas de
carvalho e os frutos de faia que Circe lhes lançava.
Euríloco somente se salvou do feitiço porque não se aproximara
da mulher de lindos cabelos. Vira de fora tudo o que ocorrera, olhando
por uma janela ou observando as pocilgas a distância, para não ser
capturado pela deusa de mente perversa. Seus olhos se enchiam de
pranto ao anunciar aos companheiros que haviam permanecido no
batei a amarga fortuna de seus amigos. Intimidados pelo relato, alguns
quiseram lançar o barco ao mar de imediato para não compartilhar de
semelhante ruína, e até mesmo Euríloco suplicava a Ulisses, invocando
o nome de Zeus, prostrado no solo e abraçado a seus joelhos, que não o
fizesse voltar ao palácio de Circe, porque a perita em venenos era também
senhora das ilusões e, segundo acreditava, fizessem o que fizessem,
ninguém poderia ser libertado de seus encantamentos.
Ulisses não era homem que se furtasse aos desafios. Escutou o
relato de Euríloco em todos os seus pormenores e consolou-o como
pôde; mas não concordou que devessem fugir da ilha, nem que
abandonassem à própria sorte os que haviam sido transformados em
bestas. Ao contrário, sentiu-se tentado pelo desafio e disse ao amigo
que podia permanecer ao resguardo da nave enquanto ele partia,
armado somente com sua lança, para empreender a difícil aventura de
derrotar a deusa; subiu a ribanceira a partir do mar e tomou o
caminho ao longo do vale sagrado até aproximar-se da mansão de
Circe, sem levar consigo o apoio de nenhum valente. Muito longe, a
grande distância do ponto em que Ulisses parara a esquadrinhar o
terreno, alguns de seus marinheiros se lamentavam pelo que
supunham ser o seu destino inevitável, outros se resignavam,
sentindo já perto de si as profundezas do Hades, enquanto os demais
esperavam secretamente a intervenção de algum deus que se
interpusesse entre aquela mulher que dispunha de um conhecimento
tão rico sobre os venenos e o herói de Tróia. E como tudo em Homero
está povoado de magia e de encantamento, no meio de um dos mais
cerrados renques de carvalhos veio esperar por Ulisses o portador do
caduceu de ouro, o grande Hermes, que para a missão assumira o
aspecto de um jovem lanugento, um adolescente em sua idade mais
cheia de graça.
Narra-se que o deus estendeu a mão e apertou a de Ulisses,
interrompendo-lhe o passo para que não mais avançasse, e lhe dirigiu
as seguintes palavras:
- Como vais atravessar sozinho estas brenhas, infeliz,
desconhecendo o país e sem saber onde pisas? Teus amigos que
entraram na casa de Circe estão encerrados nas pocilgas,
transformados em porcos. Por acaso vieste com a intenção de salvá-
los? Nem sequer tu mesmo voltarias de lá; ao contrário, ficarás preso
onde eles estão e não haverá para nenhum esperança de
regresso. Detém teu passo, Ulisses, e escuta a solução para livrar-te de
tantos males que acabariam não só com tua glória, mas até com a
recordação de ti, sem falar de tua esperança de algum dia poder ver de
novo tua pátria.
Acedendo docilmente ao chamado do deus, Ulisses deteve o
passo e escutou, como escutavam os homens naquela época as
revelações superiores. Soube por Hermes que existia na região uma
raiz muito salutar, que lhe permitiria conservar o controle de sua
mente e abolir o efeito daquela erva que fazia com que os homens se
esquecessem de sua pátria.
- Agora vou te explicar - disse o adolescente divino - os truques
maléficos de Circe. Ela vai preparar um veneno que porá na comida
que te vai servir, porém, mesmo assim, não conseguirá te enfeitiçar.
Serás defendido pela poção que te darei, mas sob a condição de fazeres
o seguinte: quando Circe te mandar correr brandindo sua vara mágica,
deves sacar da bainha a faca afiada que trazes presa ao flanco e saltar
sobre ela, tal como se pretendesses matá-la. Imediatamente verás que,
assustada com tua resistência, convidará a te deitares com ela. Não
recusarás aquele leito divino a fim de que ela liberte os teus homens, e
a ti, te acolha em sua moradia; porém, deves exigir-lhe que profira o
grande juramento que só fazem os deuses, de que não tramará uma
nova armadilha, que mais não seja para garantir que não te privará de
tua força e vigor tão logo te veja desarmado.
Dito isso, o divino Argifonte entregou ao herói uma erva com
flores da cor do leite e raiz negra, ensinando-o também a distinguir a
planta para que esta não lhe faltasse. Os deuses a chamavam Molu, e
era dura e muito resistente a sair da terra, mas fácil de arrancar para
quem tivesse a mão sagrada. Assim, sem lhe dizer mais nada, Hermes
partiu de regresso ao Olimpo sobrevoando a ilha e seus bosques,
enquanto Ulisses, movendo-se em sentido contrário, se encaminhava
para o palácio de Circe com o coração agitado por mil inquietações.
Quando Ulisses, ainda angustiado, pisou o umbral da deusa de
formosos cabelos, Circe saiu a recebê-lo com suspeitosa solicitude. Ia
rodeada de sedutoras donzelas e seguida por feras tão dóceis que
pareciam suas mascotes. Lentamente, como se cumprisse um ritual,
enrolou sua tapeçaria, guardou os fios de cores brilhantes e os
novelos de lã em suas cestinhas e o fez entrar no recinto quando já
despontavam os primeiros raios da aurora. Como estava situado no
cume do monte, de cada canto do palácio se divisava um arvoredo
cerrado precedido por um pântano e cercado pela franja azulada de
um mar tão manso que custava crer que há tão pouco tempo os
ventos tivessem reduzido a estilhaços algumas das naves de Ulisses,
enquanto arrastava outras delas para terras desconhecidas.
A deusa leu no porte e nos gestos do herói a sua fadiga.
Adivinhou também sua ansiedade e a urgência que sentia para
desfrutar da acolhida doméstica, pois vagava há anos, presa da
confusão e dos enredos com que o envolviam os seres olímpicos.
Quanto mais próxima vislumbrava a pátria, tanto mais longe se
afastava de Ítaca, ao mesmo tempo que perdia homens e navios diante
dos perigos mais inusitados; agora expunha-se à tecelã de feitiços a
risco de transmutar-se ele mesmo em porco ou de ficar indefinidamente
enredado em suas teias de erotismo.
Circe convidou Ulisses a sentar-se em uma poltrona
marchetada de tachas de prata e sob seus pés colocou um tamborete
cujo estofamento tinha sido bordado por ela mesma. Sem desperdiçar
mais tempo, misturou em uma taça de ouro um vinho saboroso com a
beberagem maligna, destinada a fazer com que seu hóspede se
esquecesse da pátria. Ele, precavido e consciente de que sob sua beleza
sedutora a maga praticava desígnios perversos, cheirou
disfarçadamente a flor do conjuro e recordou-se ao consumi-la da
advertência de Hermes. No momento em que Circe tocou-o no ombro
pretendendo transformá-lo também em porco e conduzi-lo à pocilga
para juntar-se a seus amigos, Ulisses sacou da faca e lançou-se
ameaçadoramente sobre ela, como se fosse matá-la. Os dois se fitaram
frente a frente e, antes que proferissem qualquer palavra, um halo de
amor envolveu-os mesmo contra a vontade de ambos.
Nunca antes a deusa se havia ajoelhado, como o fazia agora
perante Ulisses, a chorar aos pés de homem algum. Abraçou-lhe os
joelhos com evidente aflição e perguntou como havia conseguido
resistir ao feitiço que havia sido praticado com tanta eficácia sobre
todos os outros mortais.
- Por acaso és tu aquele astuto Ulisses que, segundo a
previsão do Argifonte do báculo de ouro, haveria de chegar em seu
barco negro em seu retorno do cerco de Ílion? És então o anunciado,
cuja mente indomável desafiaria meu poder? Baixa tua espada,
Odisseu, para que subamos os dois ao leito sagrado até que, unidos em
descanso e amor, aprendamos a confiar um no outro. Depois eu tecerei
minha tapeçaria, te deleitarei com meu canto e gozarás em sossego
sobre uma colcha confortável na qual receberás minhas atenções e
poderás se recuperar até que estejas preparado para retornares tua
rota.
Ulisses deixou que ela falasse e esperou. Circe fez-lhe uma
profusão de promessas estendendo ao redor dele os fios de sua magia
proscrita; mas ele recordou que todas as feiticeiras acabam por
destruir ao amante, uma vez que, em meio aos gozos, lhe tiram o
sangue para guardá-lo em pequenos odres e, da noite para o dia, não
restam mais que ossos e pele ressequida ao redor de uma alma estéril
que, sem nenhuma potência, desce indefesa até o Hades. Assim,
prevenido, o herói recorreu mais uma vez à sua astúcia a fim de
encontrar uma maneira de dobrá-la.
- Mas como, Circe, pretendes de mim que seja terno contigo se
converteste meus homens em porcos e a mim mesmo, a quem já
fizeste provar a beberagem que faz olvidar a pátria, me convidas cheia
de dolo a subir a teu leito? O que desejas é me pegares desarmado a
fim de me prenderes com outras artimanhas. Não concordarei com teu
desejo até que me dês tua palavra de honra e te comprometas, por
meio do juramento dos deuses, de que nunca mais irás tramar um
novo ardil em prejuízo meu.
E foi assim que, de permeio a rituais sagrados, Circe empenhou o
juramento em nome de todos os deuses benditos de devolver à forma
humana não somente os companheiros de Ulisses, mas todos os
demais desgraçados que mantinha em cativeiro sob a forma de bestas,
e ainda jurou que jamais faria coisa alguma que pudesse prejudicá-lo
enquanto estivesse adormecido. Confiando na palavra suprema da
deusa, o herói se deixou conduzir por suas servas, ninfas filhas das
fontes, dos bosques e dos rios as quais, em meio a grande agitação, lhe
preparavam a indumentária de gala. Uma estendia pelos troncos belos
tapetes recobertos de púrpura; outra colocava diante dele mesas de
prata cobertas de cestas; outra mais, depois de misturá-los com
perfeita harmonia, servia os vinhos com notas de mel em belas
vasilhas. Enquanto a encarregada da água limpava as gotas que
haviam sobrado das ânforas, a vigia do trípode mantinha, a distância,
aceso o fogo sob a pequena caldeira. Quando percebeu a fervura da
água no bronze, Circe convidou Ulisses a se banhar a fim de livrar seus
membros do cansaço desgastante, e ela mesma, com grande
habilidade e experiência, encarregou-se de lavá-lo e depois ungi-lo
com óleo brilhante.
Por melhores que tivessem sido os banhos que Ulisses havia
provado de mãos luxuriosas até então, o da deusa se distinguia por
abundantes deleites que nele despertavam sensações adormecidas,
não obstante sua mente permanecesse sempre alerta contra o perigo.
Com um olho observava a túnica e o esplêndido manto cor de púrpura
com que Circe o vestia aparentando grande respeito e reverência, e
com o outro vigiava os alimentos que as donzelas estavam
encarregadas de lhe servir. Deixou-se descansar mas sem se atrever a
provar dos manjares, pois sua mente continuava ocupada prevendo
calamidades que, no mínimo, poderiam reduzi-lo a um prisioneiro dos
encantos da deusa feiticeira.
Ao notar que Ulisses continuava tomado de grande tristeza, a
tecelã instou-o novamente a confiar em seu juramento divino; mas ele
replicou que não se poderia esperar dele atitude diferente se seus
amigos permaneciam enfeitiçados nos chiqueiros em vez de estarem
sãos e salvos a seu lado. Circe, ansiosa para despertar-lhe o amor
através de seu poder, dirigiu-se até as pocilgas para libertar os homens
conforme haviam concordado e, como sinal de que estava disposta a
cumprir sua palavra da melhor maneira possível para levar o herói para
seu leito e talvez retê-lo consigo, não só lhes devolveu a humanidade
como até os rejuvenesceu por meio de um novo filtro. Um por um iam-
se erguendo os navegantes, maravilhados não somente por sentir que
haviam recuperado seus corpos e tinham novamente o controle de todos
os seus movimentos, mas por retornar com aspecto e vigor juvenis.
Como era próprio dos heróis homéricos, os homens romperam em
pranto e, sem deixar de gemer, se congregaram ao redor de Ulisses para
tomar-lhe as mãos em sinal de agradecimento. Diversamente aos
costumes de nosso tempo, a Antigüidade se caracteriza por figuras
másculas que soluçam, pranteiam e derramam lágrimas abundantes
quase que por qualquer motivo. É a mulher, ao contrário, que domina
suas emoções, conserva sua firmeza perante a dor ou, em seu
desassossego, pode gritar e se indignar, mas dificilmente se abandona
aos extremos sentimentais em que incorrem os homens, sejam eles
guerreiros, deuses ou reis. Circe, sem descer de seu pedestal de deusa,
quando muito se comove pelo grupo de humanos cuja aflição reforça
seu desejo de volver à pátria; mas por condescender e agradá-los, lhes
impinge outra amostra de seu poder oferecendo a Ulisses ocultar-lhe o
tesouro, os cordames e as provisões em uma caverna até que tenham
reparado o barco e estejam em condições de velejar e empreender a
viagem.
- Arrastemos primeiro o barco para a terra - disse Ulisses a seus
homens que haviam permanecido escondidos no batei. - Levemos
depois o tesouro e os cordames para uma gruta próxima daqui; a
seguir, preparem-se todos para me acompanhar ao palácio de Circe,
onde encontrareis nossos companheiros, que lá estão comendo e
bebendo fartamente.
Receoso, Euríloco descreu não de Ulisses, mas dos ardis da
feiticeira, pois os tendo enganado uma vez, poderia ela enganá-los duas
vezes, só que desta servindo-se da voz de Odisseu e sob o
encantamento de apetitosos festins servidos por ninfas. Assim, em vez
de segui-lo, como todos os companheiros já se aprestavam a fazer,
Euríloco alertou-os a tomarem cuidado com aquele enlevo aparente,
pois já eram bastantes os sofrimentos que haviam passado até
chegarem a estas praias sem que precisassem acrescentar ainda mais
um por esta imprudência.
- Recordem-se - disse-lhes - de todas aquelas loucuras que
levaram à morte nossos companheiros quando perdemos o rumo;
recordem-se do ciclope, dos ventos furiosos, da destruição das naves...
Lembrem-se da pátria distante e das famílias que os esperam. Por
muitos que sejam seus males, qualquer morte é odiosa para os pobres
humanos... É melhor perseguirmos as vacas do deus Sol e escolhermos
as mais saudáveis para fazer sacrifícios aos deuses. Se finalmente
conseguirmos atracar em Itaca, nossa terra paterna, a primeira coisa
que devemos fazer é erigir novos templos. Prefiro morrer boquiaberto
sobre as ondas do que despedaçar minha vida nesta ilha terrível.
Mas Euríloco lhes falou em vão enquanto permanecia na popa,
porque os demais empreenderam a marcha atrás de seu líder, ansiosos
pelos banhos, pelas túnicas e pelos mantos aveludados com que Circe
e suas ninfas os esperavam. E foi assim que começou essa aventura
que duraria alguns anos na ilha de Eéia, sem suspeitar de que, se para
uns não haveria regresso, para outros aguardavam as maiores
dificuldades e talvez até a morte.
Aquela que se pensava a princípio ser apenas uma estada de
passagem em sua rota para Ítaca, prolongou-se indefinidamente
porque Ulisses finalmente sucumbiu aos encantos de Circe. Não que o
houvesse enfeitiçado com qualquer substância arcana, mas a deusa
utilizou seus liames de amor a fim de mantê-lo preso a seu leito,
enquanto que aos demais, para que não protestassem, recomendava
massagens e longos sonos até que se recuperassem do abatimento
provocado pela recordação tenaz de tão más jornadas.
Segundo o calendário de Homero, um ano durou a paixão do
herói pela deusa; de seus amores, foram frutos os nascimentos de
Ágrio, Latino e Telégono, sobre quem pouco evocou a memória poética,
já que a história se concentrou em Odisseu e no mito de seus
encontros felizes com Circe em meio a banquetes de uma infinidade de
carnes e de vinhos deliciosos nessa ilha de Eéia onde, além dos porcos
consagrados particularmente à deusa Morte, alimentados com as
vagens que cresciam nos arbustos de Cronos, existia um cemitério
semeado de salgueiros dedicados a Hécate.
Através da Odisséia veio saber-se que, passado um ano, quando
retornou a estação em que os dias fazem-se mais longos, os homens
vieram a Ulisses para se queixarem, pois em suas almas sentiam os
furores de uma profunda melancolia. Enquanto estiveram reunidos ao
cair da tarde, comendo pedaços de carne salgada em torno do líder, o
que havia sido escolhido para falar em nome dos demais explicou que
haviam decidido que já era tempo de Ulisses voltar de novo sua mente
para a pátria, posto que, se era certo o decreto divino de que deveriam
se salvar e regressar à própria terra, não deveriam adiar mais sua
partida, por mais que estivessem gozando na ilha dos mais
acolhedores cuidados.
Ao imaginar a despedida, foi como se um raio trespassasse o
coração de Ulisses; sentia saudades da pátria, mas sabia, no mais
íntimo de sua alma, que amava a deusa e que, perante um dilema tão
extremo, não seria ele quem decidiria, mas o destino que tudo
prescreve e, ainda no momento do gozo, nos condena a sofrer, talvez
porque não exista recompensa que não custe alguma renúncia. Apesar
do aguilhão da dor, nada disse a seus homens sobre o padecer que
sofria. Em um grego era raro o silêncio, e mais raro ainda em um herói
que sozinho já padecera tanta tristeza, já que tudo se ventilava em
corrilhos e a intimidade era algo incomum. Muito deve ter doído a
Odisseu prometer-lhes que apelaria à palavra de deusa para pedir a
Circe que cumprisse sua promessa de que os ajudaria a empreender a
viagem de retorno, mas ele o fez nessa mesma tarde.
Nem essa noite nem a seguinte foram períodos tranqüilos para
Odisseu, porque em seu coração crescia a angústia de uma paixão
que teria de esquecer se quisesse continuar sua trajetória. Nenhuma
notícia recebera de Ítaca durante sua ausência tão prolongada. Talvez
suspeitasse que ainda o aguardava Penélope, espantando os
pretendentes que o davam por morto; mas a risco de encontrá-la
casada de novo e de que seu filho Telêmaco jamais viesse a conhecer o
alcance de suas façanhas, já que havia crescido enquanto ele guerreava
com os aqueus, o herói oscilava entre permanecer e retornar. A
intensidade de seu apego à ilha de Eéia era, no mínimo, igual à da sua
incerteza. Secretamente, ele sabia que Afrodite não outorga duas vezes
a fortuna amorosa e que, ao lançar-se ao mar, empreenderia a rota
inexplorada daqueles que abandonam, um rumo que o marcaria pelo
resto da vida. Foi desse modo que, ao subir mais uma vez ao leito
lavrado de Circe, abraçou os joelhos da deusa implorando clemência:
- Enfim chegou o tempo para que cumpras, ó Circe, tua antiga
promessa de ajudar em meu regresso à pátria. Sinto-me impelido pelo
desejo de retornar, assim como meus homens, cujas súplicas
quebrantam minha alma com seus lamentos infindos cada vez que me
deixas a sós com eles.
Sem que renunciasse à sua dignidade de deusa, surgiu em Circe
uma tristeza que lhe era desconhecida. Queria conservá-lo junto a si
como seu amante e enfeitiçá-lo com seus atributos supremos; mas o
traço de humanidade que desvendava dentro de si mesma a seu
próprio pesar invalidava sua tentação de recorrer a artimanhas para
retê-lo prisioneiro de novos encantamentos. Não conseguia entender o
que era capaz de provocar tantas saudades em seu amado por uma
Ítaca tão distante, o que pretendia ele recuperar em um leito já frio ou
quais rebanhos reclamaria para si depois de ter partido para batalhar
há tantos anos, já que as forças ainda não declinavam em seu corpo
nem este era sulcado pelas cicatrizes da memória.
- A contragosto não haverei de te manter a meu lado - disse-
lhe a deusa. - Ó Laértida2, Ulisses astuciosos, verdadeiro descendente
dos deuses! Tampouco irás permanecer em minha casa descontente. Tu
me humanizaste o coração, ao mesmo tempo que deixaste intacta
minha condição superior. Vejo teu futuro e vejo o meu. Vejo a
distância e o mar que se estende entre tua pátria e a minha. Vejo a
tristeza como uma névoa e, não obstante, serei eu quem guiará teu
caminho para impedir que cometas novos erros. Partirás, sei muito bem,
mesmo que não te dê um regresso fácil nem livre de provações que os
deuses se interponham em teu caminho.
Disse-lhe depois que, ao lançar-se ao mar, o primeiro que deveria
fazer era consultar o adivinho Tirésias para que este lhe previsse a sorte,
ainda que, para tanto, uma vez que o profeta se encontrava
encarcerado na região dos mortos, devesse Ulisses se atrever a descer
com seu negro navio ao escuro palácio onde habitavam Hades e a
horrenda Perséfone, diante de cujo trono nenhum vivo havia chegado
antes.
- O sopro de Bóreas conduzirá teu navio - explicou-lhe - até que
tenhas atravessado o oceano e divisado os bosques de choupos e
salgueiros inertes. Ali ancorarás teu batei e sozinho, tal como eu te
ordeno, te dirigirás ao pé de um penhasco de onde brota uma cachoeira
ruidosa, na confluência do rio das Chamas com o rio dos Prantos. Ali
abrirás um rego a teu redor e nele derramarás uma libação para todos
os mortos, vertendo primeiro uma mistura de leite e mel e depois
outra de vinho doce com água; por cima, espalharás farinha de trigo
branca e os honrarás longamente. Sacrificarás um carneiro jovem e
uma ovelha negra a Perséfone e a Hades, orientando suas cabeças em
direção ao Érebo. Deixarás que o sangue escorra inteiramente e
penetre no valo que abriste à tua volta e, enquanto aguardas a
chegada do cego Tirésias, a quem Perséfone prodigalizou sensatez e
razão entre todos os mortos, afugentarás com tua espada a toda e
qualquer alma que pretenda segui-lo. Vira teu rosto na direção oposta
ao rio e não contemples a turba de homens privados de vida. Então
ordena a teus homens que acendam fogo sob as rezes mortas
invocando aos deuses e, sobretudo, não permitas aos residentes do
Hades que te toquem nem toquem o sangue imolado até que te hajas
encontrado com o sábio adivinho.
Ao alvorecer, a própria Circe revestiu Odisseu com uma túnica e
um manto novos e, para despedir-se dele, abriu os cofres em que
guardava seus ornamentos mais preciosos. Cingiu-lhe a cintura com
fios de ouro e cobriu sua cabeça com um velo de lã, para que sua
tristeza não perturbasse a algazarra dos que partiam. Nenhum deles,
até então, sabia que sua meta era o Hades, a fim de solicitar-se um
oráculo à alma de Tirésias. Ao se inteirarem de tão macabra aventura,
romperam em prantos e todos se puseram a se retratar em vão.
Arrancavam os cabelos de tanto pesar, clamavam a Odisseu por
piedade e rasgavam-se as vestes; mas por mais que gemessem, de nada
lhes adiantou: através de Tirésias aguardava a voz do destino, e tudo
estava determinado para que fosse aceita sua palavra.
Obrigados por Odisseu, finalmente todos embarcaram, menos o
imprudente Elpenor que, embriagado, dormira no telhado de Circe e, ao
despertar aturdido, caiu de cabeça no sola.
- Pensar - disse Ulisses - que chegaria Elpenor caminhando ao
Tártaro antes que eu com minha nave! O herói prometeu-lhe uma
sepultura digna e então se lançou ao mar impulsionado por um vento
suave proporcionado pela deusa.
Lá atrás permaneceu Circe, olhando do alto de uma penedia o
afastamento de seu amado, sentindo tanta dor na alma quanto em sua
humanidade recém-adquirida. Chorava como choram as mulheres
abandonadas, uma vez que, sendo maga, estava consciente de que
cedo ou tarde, e depois de superar novas dificuldades, Odisseu e seus
homens voltariam à pátria e jamais regressariam. Quando suas noites
se fizessem tão longas e frias que não existiria Penélope nem quaisquer
espaços capazes de fazê-lo sentir-se em casa, ele se daria conta em
Ítaca do que havia perdido na ilha de Eéia. Choraria a ausência de
Circe com saudade profunda. Vagaria envelhecido gritando por seu
nome, suplicando aos deuses por outra oportunidade, até que se
recolhesse a seu leito e, finalmente, encetasse sua última viagem.
Para Circe, ao contrário, nem a morte lhe era permitida, pois as
deusas não morrem, as deusas não descem ao Tártaro. Vagaria em
círculos com seus fios dourados e, durante as tardes, teceria novos
mantos em seu tear. Ao despontar da aurora, percorreria os caminhos
de areia contemplando as águas que não lhe haviam deixado mais que a
sombra de seu amado Ulisses e, algumas vezes, no decorrer dos
séculos, se transmutaria em outra divindade menos sensível aos
delírios humanos.

1Pramne ou Pramme era uma pequena cidade da Ásia Menor, nas cercanias de
Esmirna, hoje na Turquia. Produzia um vinho doce e capitoso, extremamente afamado
na Antigüidade. [N.T.]
2'Filho de Laerte". Era comum entre os gregos designar uma pessoa ou um deus por
um adjetivo derivado do nome de seu pai ou outro antepassado. [N.T.]
Medéia

A vida de hoje, semeada como se encontra de tragédias e de


comicidade, nos impede de ver as Medéias, as Circes, as Jocastas ou
Electras da Antigüidade em sua dimensão de mulheres: uma verdadeira
potência em luta contra as determinações dos deuses, que preferiu a
dor, o enfrentamento ou a morte à humilhação de se render à fatalidade.
Levaram às costas o fardo de seu passado, os nomes e as façanhas de
seus pais e avós, as obras de seus maridos ou amantes e, como se
fosse pouco, também os feitos de seus irmãos e filhos. Verdadeiros
mananciais da memória do porvir, seus corpos deveriam ser tão fortes
quanto sua vontade ou seus ventres; e suas palavras ou sua intuição,
a espada não esgrimida para lutar por sua honra ou pela conquista do
bem-estar que a sociedade lhes impedia de obter por si mesmas.
Nosso mundo superpovoado e inclinado à homogeneização da
conduta também distrai a imaginação a fim de valorizar o significado
de uma Medéia de poderosa individualidade, que foi gerada pela
oceânide Ídia. Segundo algumas versões, era neta do Sol, o fogo por
excelência, a luz mais perfeita, o temível Hélio, e filha de ninguém
menos importante que o rei da Cólquida, Eetes, o deus da mente
perversa, irmão da feiticeira Circe, por quem Odisseu se apaixonou em
uma das etapas de seu périplo de encantamentos.
Outros consideram-na filha de Eetes e Hécate, a misteriosa
deusa que, por sua vez, segundo Hesíodo, foi filha dos titãs Perseis e
Astéria e irmã de Leto. Não menos revelador que seu parentesco com
Tétis e o Sol, pais de Circe e de Eetes, descender do ventre de Hécate
eqüivale a se vincular à única divindade feminina a quem se permitiu
conservar seus poderes durante o reinado de Zeus, o senhor dos Céus
e chefe dos olímpicos. Diodoro considerou Hécate a padroeira de todas
as sibilas e, de acordo com a tradição, era a fonte por excelência das
bênçãos conferidas aos homens. Prodigalizava riquezas, vitórias e
sabedoria; guiava os navegantes e lhes dava boa sorte; tornava segura
a mão dos caçadores em direção ao alvo e aplicava suas artes para
corrigir em favor de seus escolhidos as tortuosidades com que se
divertiam os outros deuses.
Sem a intervenção de Medéia, que dominava a arte dos
encantamentos herdada de sua mãe, careceria de sentido a aventura
dos argonautas, esses heróis que navegaram sob o comando de Jasão,
o legítimo rei de Iolco, na Tessália, violentamente destronado por
Pélias, descendente do deus Poseidon e da ninfa Tiro, de quem a
profecia anunciava que seria assassinado por um descendente de Éolo,
que, por sua vez, apareceria diante dele calçado com uma única
sandália. Protegido e criado pelo centauro Quíron, Jasão aprendeu
com ele todas as habilidades necessárias a um guerreiro e recebeu seus
cuidados nos momentos mais difíceis em que o herói deveria consumar
suas façanhas.
O presságio que recaíra sobre Pélias cumpriu-se quando, já adulto,
Jasão retornou a Iolco a fim de reclamar sua herança real. Nessa
ocasião, o herói se deteve diante do usurpador calçado com uma única
sandália, pois havia perdido a outra ao vadear um rio com uma anciã
em seus braços, que não era outra senão a olímpica Hera
astuciosamente disfarçada de velha. Espantado por reconhecer aquele
sinal, Pélias prometeu lhe restituir o trono desde que primeiro
recuperasse o célebre tosão de ouro, o velo do carneiro que havia
transportado Frixo e Hele e que, guardado por um dragão que nunca
dormia, permanecia estendido na alameda do deus Ares, situada na
Cólquida, justamente a região dominada pelo malevolente Eetes.
Ao perceber que não teria outra saída senão aceitar a difícil
empresa que lhe era imposta por seu inimigo, Jasão enviou arautos
para difundir a notícia por toda a Grécia, conseguindo reunir cerca de
cinqüenta heróis tessálios. Embarcaram no porto de Pagasse em um
navio por eles batizado Argos - que em grego significa "Rápido" - em
honra de seu construtor e companheiro de travessia, razão pela qual
vieram a ser identificados como "argonautas", dando início, assim, a uma
das mais fascinantes aventuras da mitologia helênica. Ninguém sabe
com exatidão quem ou quantos eram aqueles homens, porque os
"registros" que foram conservados divergem consideravelmente entre si,
de acordo com a época em que se inscreveu ou se reelaborou a lenda.
Os apontamentos de Apolônio de Rodes e de Apolodoro concordam que o
navio tinha lugar para cinqüenta remadores, com talvez mais uns
cinco espaços destinados a médicos e quem sabe ao próprio Jasão.
A começar por Héracles, considerado o homem mais forte que já
existiu e agora divinizado, entre os membros mais importantes do
grupo encontravam-se os Dióscuros Castor e Pólux, filhos de Zeus e
Leda, assim como seus primos Idas e Linceu, que também eram
gêmeos. O timoneiro Tífis aceitou a missão em obediência a uma
ordem recebida de Atena, que lhe havia ensinado a arte da navegação,
ainda que ele tivesse de ser substituído por Ergino, filho de Poseidon,
quando morreu na terra dos mariandinos. Não podiam faltar Orfeu, o
músico trácio que, além de marcar a cadência para os remadores, os
prevenia contra a sedução das sereias, e pelo menos três adivinhos
notáveis: Idmon, Anfiarau e o lápita Mopso. O arauto da expedição era
Etálides, filho de Hermes. Seguiam ainda os dois filhos de Bóreas, Zetes e
Calais, o lutador Policeudes e Periclímeno, filho de Neleu, e Acasto, que
se uniu a eles à última hora. Na impressionante lista de nomes
relacionados a reis e deuses, Apolodoro inclui o de Atalanta, a única
mulher da tripulação; porém, desafortunadamente, se desconhece qual
tenha sido seu desempenho durante a expedição.
Com respeito à construção e às características do barco, há
belas histórias que denotam a importância da aventura porque
revelam, mais uma vez, como os deuses intervinham nos assuntos
humanos. Escolhida com o cuidado mais minucioso, a madeira foi
trazida do monte Pelion enquanto Argos era ajudado passo a passo na
construção da nave por Atena, para que as medidas das tábuas
resultassem num conjunto perfeito e suas dimensões garantissem a
segurança necessária para resistir aos embates de Oceano e do vento. A
própria deusa talhou a figura de proa em um cepo cortado de um
carvalho sagrado de Dodona e conferiu-lhe o dom da palavra, a fim de
que fosse capaz de profetizar e advertir com antecedência aos
navegantes sobre os perigos que teriam de enfrentar.
Antecedido pelo indispensável sacrifício em honra de Apolo e
após escutar pela voz profética de Idmon que os augúrios eram
favoráveis e que todos regressariam sãos e salvos - exceto ele mesmo,
que pereceria durante a viagem final por causa de uma ferida infligida
por um javali -, os heróis lançaram o barco ao mar na praia de Pagasse
assistidos por uma grande multidão.
Todas fascinantes e dignas de figurar entre as grandes narrativas,
as peripécias dos argonautas começam quando, em sua primeira escala,
ancoraram na ilha de Lemnos. Ali descobriram que os habitantes, em sua
totalidade, eram mulheres: uma maldição lançada por Afrodite fez com
que todas exalassem um odor fétido e repulsivo por não adorá-la,
levando-as a exterminar todos os homens porque estes as haviam
rejeitado e ido procurar as mulheres das ilhas vizinhas - com exceção
de Toante, o rei da cidade de Mirina, de quem a filha Hipsípila
apiedou-se e decidiu poupar-lhe a vida entregando-lhe a espada com
que deveria matá-lo. Sob o pretexto de se purificar perante o deus por
causa da matança da noite anterior, Hipsípila levou seu pai até a
praia ao amanhecer, desde o templo de Dionísio, onde o havia
mantido oculto. Conduzido por sua filha, Toante saiu na carruagem
ritual habilmente disfarçado com os atavios dionisíacos e conseguiu
fazer-se ao mar em uma barca desconjuntada que, segundo Apolodoro,
permitiu-lhe desembarcar em Cisinos, uma das Ilhas Cícladas, que na
época se chamava Ênoe. Quando as outras mulheres descobriram que
o monarca tinha sido salvo, humilharam publicamente Hipsípila e a
venderam como escrava. Longe de serem violadas ou maltratadas,
consoando o costume da época, as lemnitas valeram-se dos
argonautas para gerar seus filhos. De fato, segundo escreveu Diodoro,
a própria Hipsípila se uniu a Jasão e procriaram Euneu e Nebrófono, o
que indica que a travessia era longa e indefinido o período de escala
em cada lugar, como costuma acontecer nos mitos, sempre atemporais
e alheios ao curso normal dos calendários.
Diodoro incluiu Héracles e Polifemo no empreendimento de Jasão,
ainda que seus destinos se apartassem ao aportarem em Mísia, pois
Hilas, amante do herói, ao se separar do grupo em busca de água
doce, foi raptado pelas ninfas locais, enamoradas por sua beleza. Ao
escutarem seus gritos, Héracles e Polifemo acudiram em seu auxílio
com as espadas desembainhadas, acreditando se tratar de algum
ataque de piratas. Nesse ínterim, a nave acabou zarpando e os três
desapareceram desse relato.
Medéia entra em cena quando, após contornar inúmeras
dificuldades, durante as quais os homens tiveram de combater até
mesmo as hárpias, a expedição costeou o Termodonte e o Cáucaso
para chegar à Cólquida pelo rio Fásis. Acostumado a interpor os mais
terríveis obstáculos a homens e heróis, Eetes comprometeu-se a
entregar o tosão - ou velocino - de ouro desde que Jasão conseguisse
vencer um certo número de perigos que pareciam insuperáveis,
lembrando os doze trabalhos de Héracles. Exigiu-lhe, por exemplo,
atrelar ao arado um par de touros selvagens com cascos de bronze que
lançavam fogo pelas bocas, e com eles arar um campo que deveria ser
semeado com a metade dos dentes do dragão que Cadmo havia
recebido de Atena, dos quais surgiriam homens armados prontos a
atacá-lo.
Enquanto Jasão se perguntava como poderia atrelar semelhantes
touros, Medéia se agradou dele e, temerosa de que o pai o destruísse,
prometeu-lhe às escondidas aplicar seus poderosos encantamentos
para ajudá-lo, desde que prometesse se casar com ela e levá-la consigo
para a Hélade.
Para Diodoro, Medéia era uma princesa de sentimentos
humanizados: por essa emoção que se infiltrou em sua natureza
divinizada, apaixonou-se à primeira vista por Jasão, tornando-se, em
seu delírio, capaz de praticar as ações mais atrozes. Sujeitas ao
desejo, ao butim e à fadiga dos homens, as mulheres eram repudiadas
com a mesma arbitrariedade com que eram desposadas,
mercantilizadas e confinadas; e não havia deuses, poderes nem
autoridade que as libertassem do sentimento de absoluta
indefensabilidade. Daí decorre a atualidade de Medéia e da dor que a
levou a empunhar a adaga uma e outra vez até dirigi-la contra seus
próprios filhos quando, desprezada pelo trapaceiro Jasão e exilada de
Corinto por Creonte, convenceu-se de que seu mundo carecia de
esperança.
Tema de uma das mais comoventes tragédias de Eurípides, já que
as que lhe dedicaram Ésquilo e Sófocles se perderam, a personalidade
de Medéia tornou-se conhecida de maneira fragmentada, como peças
isoladas de um quebra-cabeças que evoca lendas, mitos e façanhas
reconstituídas daqueles heróis que enfrentavam seres e situações
extraordinários. O perjúrio de Jasão completa o binômio dramático de
uma mulher que teve de compreender que não importava quão
poderosa fosse sua magia, quão elevada sua linhagem, quão
incondicional sua entrega ou quão ilimitada sua crueldade, bastava ser
desprezada no leito para ver esvaecer seu semblante e perder a posição
que ocupava no mundo.
A primeira Medéia é a mulher do desafio temerário: uma donzela
flechada por Eros que atraiçoa seu pai com o objetivo de cativar o
estrangeiro que deverá mostrar seu valor frente as forças da escuridão,
sob a proteção de Hera e de Atena. Ao escutar as exigências de Eetes
para entregar o tosão de ouro e receber de Jasão a promessa de que,
em nome de todos os deuses, lhe seria fiel por toda a eternidade,
Medéia preparou um ungüento com o sumo cor de sangue do açafrão
de caule duplo que, esfregado durante um dia no corpo de Jasão, em
seu escudo e em sua lança, protegeria-o dos touros no bosque
sagrado de Hefestos, de tal modo que não poderia ser ferido pelo aço
nem pelo fogo. Revelou-lhe ainda que, enquanto semeasse os dentes do
dragão, deles brotariam homens hostis, já de armas em riste para
atacá-lo. O que deveria fazer era observá-los em conjunto a distância
- ela insistiu - e esperar que se agrupassem para então atirar pedras
nos homens que estivessem no centro da tropa; isso provocaria uma
confusão que os levaria a lutar entre si, e depois ele poderia
exterminar os sobreviventes.
Enfurecido pela vitória do herói, Eetes não somente se negou a
cumprir a promessa como também, em vingança por sua derrota,
propôs-se a incendiar o Argos, a fim de destruir sua tripulação.
Adiantando-se ao pai, Medéia conduziu Jasão ao lugar em que se
encontrava o tosão de ouro, no templo secreto, e após adormecer o
dragão por meio de outra de suas prodigiosas beberagens,
apoderaram-se dele sem o conhecimento do rei, enquanto os
argonautas atacavam os soldados que investiam contra o navio.
Fugiram no meio da noite burlando a vigilância e lançando a nave ao
mar. Medéia assumiu um duplo comando para conseguir sair do país,
levando consigo seu irmão Absirto na qualidade de refém.
Como não existe tragédia sem a intervenção dos deuses, além de
haver pelo menos quatro ou cinco interpretações diferentes de suas
conseqüências, consideramos que a de Medéia se desencadeou quando
Eetes navegou com sua frota no encalço dos argonautas, enfurecido
pela ousadia de sua filha. Quando ela percebeu que a esquadra se
aproximava, assassinou e esquartejou o próprio irmão e pôs-se a
lançar, um por um e sem a menor piedade, os pedaços às águas,
arremessando-os a distância e em direções opostas a fim de obrigar
seus perseguidores a retroceder. Exasperado, Eetes ordenou a seus
remadores que se detivessem para recolher os membros de Absirto,
perdendo de vista o inimigo enquanto recuperava o que lhe restava do
filho. Tanta era a sua dor que, depois de enterrar os fragmentos em
Tomos, enviou um grande número de colcos no rasto do Argos, com a
advertência de que, caso não conseguissem trazer Medéia de volta,
seriam condenados à morte.
Parece até que os imortais estivessem observando atentamente o
que ocorria na Terra e que, tomados por certo tédio, buscassem
qualquer desculpa para entrar em ação, pois nem bem se diluía o
sangue do jovem na cena da traição quando o Olimpo foi sacudido por
um estremecimento. Os deuses dividiram-se contra ou a favor dos
acontecimentos, de acordo com as rivalidades não tão secretas que
abundavam entre as entidades. Irritado pelo assassinato do filho mais
novo de Eetes, Zeus enviou ventos tão furiosos que os argonautas
desviaram de sua rota para Iolco quando costeavam a embocadura do
rio Erídano, em meio a uma grande tempestade. Ao remarem diante
das ilhas Apsírtides, os navegantes souberam que a cólera do deus não
cessaria se não seguissem pelo mar da Sardenha até a ilha de Eéia, que
se localizava ao largo da Ausônia, o primitivo nome que os gregos
atribuíam à Itália, a fim de suplicarem a Circe que os purificasse do
crime cometido.
Uma após outra foram-se sucedendo desgraças durante seu
acidentado regresso. Os argonautas prosseguiam cheios de medo,
mas não sucumbiam a ele. Ao passarem perto das sereias, Orfeu
cantou com uma voz tão doce que conseguiu resistir à melodia
subjugante de suas rivais. Apenas um de seus companheiros,
chamado Bute, arrojou-se ao mar para nadar em direção a elas, e
teria se afogado não fosse a intervenção de Afrodite. Mas ainda que
tenha sido salvo, foi alijado da aventura porque a deusa colocou-o na
terra de Lilibeu, onde permaneceu para sempre, unido a uma
mulher daquela região.
Os demais continuaram até desembarcar na ilha de Corcira, onde
Alcínoo reinava sobre os feácios. Por uma dessas casualidades comuns
na mitologia grega, os argonautas perderam sua nave. Uns se
refugiaram junto aos montes Ceraunios; outros tomaram o rumo da
Ilíria e colonizaram as ilhas Apsírtides; e uma minoria apresentou-se
perante o rei a fim de arranjar seu retorno. O casamento de Jasão
ainda não se havia realizado porque, conforme seria comprovado mais
tarde, ele não tinha um verdadeiro interesse nesta princesa bárbara e,
sem dúvida, já vinha pensando em um meio de descumprir sua
promessa em qualquer das escalas do trajeto, quando já não
precisasse de seus feitiços e se sentisse a salvo. Não obstante, quis o
destino modificar seus planos, uma vez que Alcínoo, que já havia sido
avisado pelos mensageiros de Eetes, prontificou-se a devolver Medéia
caso esta ainda fosse virgem. Intimidado perante a possível vingança
que recairia sobre ele, Jasão pediu o auxílio de Aretéia, a esposa do rei, e
ela providenciou para que os esponsais do herói e de Medéia fossem
celebrados secretamente em uma caverna chamada Crátis. Ao despedir-
se deles, Aretéia presenteou Medéia com doze escravas, para que
distraíssem os viajantes das tribulações de sua jornada.
Como se tivesse sido previsto em pormenores pela rainha dos
feácios, esse serviço não se fez esperar porque, durante a noite,
enquanto navegavam pelo caminho dos cumes Melântias, Apolo
surpreendeu-os lançando raios de luz em meio à tormenta. Com
extrema dificuldade conseguiram ancorar em uma ilha a qual
chamaram Ánafe, porque havia sido revelada pelo deus de maneira
inesperada. Depois de levantarem um altar em honra de Apolo,
ofereceram-lhe sacrifícios e celebraram um animado banquete antes
de prosseguirem viagem para Creta. Quanto mais complicada era a
travessia, tanto maior a necessidade que tinham de Medéia. Suas
artes superavam o vigor das armas e sua astúcia era maior que a
valentia dos argonautas. Ela enfrentou sozinha um homem forjado no
bronze que, segundo se afirmava, era um presente de Hefestos ao rei
Minos para conservar a ilha em segurança. Sua tarefa consistia em
atirar rochas imensas três vezes ao dia contra todos os barcos
estrangeiros; também devia percorrer todas as aldeias de Creta três
vezes por ano, de maneira pausada, mostrando as leis de Minos
inscritas em placas de bronze. Homem ou touro, aquela criatura
chamada Talo era animada por uma única veia ardente que o
atravessava internamente do pescoço até os tornozelos, onde a
circulação era interrompida por um alfinete de bronze. Os argonautas
foram atacados por ele com pedras; porém, a habilidosa Medéia
conseguiu se aproximar dele e aplicar um de seus filtros, provocando-lhe
um súbito acesso de loucura. Dizem que prometeu fazê-lo imortal e que,
enquanto a criatura delirava, aproveitou-se para arrancar-lhe a haste,
causando assim sua morte. O certo é que Talo perdeu o líquido ardente
que o animava e tombou ao solo ante a admiração dos colcos.
Quatro meses durou a aventura até finalmente retornarem a
Iolco, onde descobriram que, ao saber que Jasão retornava com o
tosão de ouro para reclamar o trono que por direito lhe pertencia -
ainda que não tivesse demonstrado um interesse particular em
arrebatá-lo a seu tio -, o desconfiado Pélias, para amedrontá-lo,
ordenou que matassem seu pai. Em vez de aceitar a sentença, Éson
pediu a seu meio-irmão, o usurpador Pélias, a graça de se suicidar
sobre o altar de sacrifícios bebendo lentamente o sangue do touro
imolado, o que fez com que sua própria esposa o amaldiçoasse ao se
enforcar ela mesma e deixar em total orfandade o pequeno Prômaco, a
quem Pélias matou ao golpear-lhe a cabeça contra o pavimento do
palácio, antes que os argonautas desembarcassem no porto de Pégasas
e fossem apresentados os novos direitos de sucessão.
Medéia se comprometeu a dominar a cidade sozinha e,
assumindo o aspecto de uma anciã enrugada, apresentou-se como
uma sacerdotisa e ordenou às sentinelas que a deixassem passar.
Assombrados por tão estranha aparição, os guardas abriram as portas
de Iolco para que Medéia entrasse com suas doze escravas, também
estranhamente ataviadas, e despertasse nos moradores um frenesi
religioso tão descontrolado que, quando ela retirou seu disfarce diante
de Pélias, jurou-se, pelo poder de Artemísia, que aquela mulher
dominava o segredo do rejuvenescimento.
Conforme fora disposto, Jasão se apresentou diante de Pélias
com o velocino oracular e sagrado que fora levado ao país de Eetes pelo
rei Frixo, sobrinho de Minos, quando estava a ponto de ser sacrificado
sobre o monte Lafístio. Os dois se encararam como se trocassem
sentenças pelo olhar. Nada lhe disse Pélias sobre o fim de seu pai nem
sobre a maneira como se enforcara sua mãe; e muito menos revelou o
assassinato que tão impiedosamente praticara contra seu irmãozinho.
Tampouco Jasão lhe reclamou algo; mas os dois souberam que, muito
acima das palavras, a Moira se estendia sobre suas cabeças como se as
unisse com um fio de sangue.
Diomedes - nome original de Jasão - retirou-se e aguardou. Com
o juramento de vingança apertado entre os dentes, navegou até o
istmo de Corinto acompanhado por seus seguidores mais fiéis,
segundo lhe aconselhara Medéia; ali, depois de pendurar o velocino de
ouro no templo de Zeus, oferendou seu navio como sacrifício a Poseidon.
Nada parecia alterar o cotidiano em Iolco. As mulheres iam e vinham
das fontes a seus lares, do campo seus recintos sagrados; os homens
caçavam, aravam a terra, construíam suas moradas, navegavam no
inverno ou lutavam contra seus vizinhos, enquanto Pélias gozava dos
benefícios de um poder que não lhe pertencia.
Depois de passar uma noite atroz em companhia das Fúrias,
Jasão entendeu que havia chegado o momento em que deveria agir.
Aproximou-se de Medéia e pediu-lhe que não poupasse artimanhas para
acabar com Pélias. Tudo estremeceu. O odor de tragédia envolveu-lhes
os corpos e Medéia olhou para suas próprias mãos por um instante, e
lhe pareceu que estavam tintas de sangue.
Na última parte da lenda de Jasão e dos argonautas, Medéia
libera suas paixões até comprovar que em suas veias corria a mesma
matéria perversa de Eetes, de quem ela era a única descendente viva e,
portanto, herdeira legítima do reino de Corinto. Sobrinha de Circe, ela
domina a feitiçaria e a arte de persuadir; neta do Sol, intimida com sua
presença; perita em produzir ilusões, recorre às suas próprias
habilidades para convencer as filhas de Pélias de que, assim como
haviam visto que ocorrera com ela mesma e com o bode que
argutamente substituiu no tacho por um cabrito travesso, ela seria
capaz de devolver com suas poções a juventude ao velho monarca, sob a
condição de que primeiro o esquartejassem e depois aferventassem os
pedaços em um caldeirão com ervas poderosas que ela mesma lhes
forneceria. As incautas cumpriram as instruções passo a passo, não
sem receio; mas acabaram convencidas, cheias de terror, que Pélias
jamais sairia do fogo, nem jovem, nem inteiro. Apavoradas com o que
haviam acabado de fazer, enquanto Medéia entregava o cetro a Jasão, as
Pelíadas correram em busca de seu irmão Acasto, que havia
acompanhado os argonautas contra a vontade do próprio pai, e se
confessaram culpadas involuntárias do atroz homicídio.
Ante o agravamento da trama em torno da conquista do poder,
alguns escreveram que Jasão, desinteressado de uma aldeia tão
modesta, cedeu a coroa a Acasto e que, importunado pela reação de
sua gente, retirou-se com Medéia a fim de reinar em Corinto, a cidade
fundada por Sísifo e povoada por homens nascidos de cogumelos,
dedicados à navegação e ao comércio, e que era interinamente
governada por um certo Bunos, já que o trono havia permanecido vago
até que Medéia o reclamasse; outros narradores dizem que o casal foi
expulso e exilado por Acasto, que tomou para si o governo de Iolco. Mas
todas as versões coincidem ao apontar Corinto como o país de origem de
Eetes e ao afirmar que Jasão e Medéia viveram felizes ali durante cerca
de dez anos. Jasão, porém, nunca deixou de suspeitar que Medéia, em
uma de suas irresistíveis práticas de encantamento, havia envenenado
alguns coríntios a fim de lhes arrebatar a coroa. Tomando isso como
pretexto, e aproveitando a oferta do rei Creonte para receber em
casamento sua filha Glauce, Jasão concordou em desposá-la por
cobiça, após repudiar Medéia publicamente.
Mesmo que fosse muito ambicioso, crê-se que, na realidade, o
herói externou o cansaço que sentia de sua princesa bárbara. Repeliu
suas magias perversas, se bem que, em sua ingenuidade, nunca
imaginou que ele mesmo viesse a ser afetado por elas; insistiu que seu
juramento de fidelidade fora feito mediante coerção e que, portanto,
não era válido; além disso, com ou sem protestações, sua vontade era
desposar Glauce. Desprezada, infeliz e vilipendiada, Medéia recordou-
lhe em altos brados que, daquela lista de triunfos que o afamavam, o
herói devia a ela sua vingança contra Pélias e o trono de Corinto. Jasão
admitiu que isso era verdade, mas que desde então os coríntios tinham
aprendido a respeitá-lo, enquanto que a ela apenas temiam, ainda que
se desmanchasse em prantos nos últimos dias e não comesse nem
desejasse seguir vivendo. Impotente, a abandonada gritou que só não
lhe agourava uma morte horrível porque ainda o considerava seu amo e
senhor; mas maldisse seus filhos, frutos de um ventre maldito; a
seguir fingiu se submeter e, em um dos primeiros discursos feministas
da história, inferido pelo poeta Eurípedes, disse que, dentre todos os
seres que no mundo têm alma e mente, as mulheres eram certamente
os mais infelizes:

- [...] antes de tudo, temos de comprar o próprio marido,


com grande desperdício de esperança e de bens
a fim de darmos um amo e senhor a nós mesmas.
E, creia-me, esse é o pior de todos os males.
Separar-se do marido é escandaloso para a mulher,
mas não prejudica em nada a reputação do homem.
Quando eles se aborrecem em casa,
saem às ruas para se distrair.
No entanto, quando somos nós a fazer o mesmo,
eles não nos deixam sair,
alegando que temos de cuidar dos filhos.
Asseguram eles que, permanecendo em casa,
as mulheres evitam inúmeros perigos,
enquanto os homens, pobrezinhos,
têm de se afastar a fim de combater nas guerras.

Abatida, ela grita que preferiria encetar três guerras a parir,


mesmo que fosse uma única vez. Mais tarde, depois de indagar a
Creonte por que a expulsava de seu lar e de sua terra, somente lhe
pediu um dia de clemência antes de partir para o exílio.

- Tu me dás medo, Medéia - respondeu-lhe Creonte.


Teu olhar é terrível e estás irada com teu antigo esposo.
Vai embora com teus filhos o quanto antes,
pois temo que inflijas algum dano a minha filha,
posto que és versada em toda a sorte de malefícios! [..,]
A repudiada tramou sua desforra depois de invocar aos deuses e
lhes recordar a ingratidão daquele que burlava um juramento que tinha
sido feito para toda a eternidade. Outra vez repreendeu seu marido;
mas este ratificou sua perfídia:

- Aonde poderia ir, ó Jasão? Diga-me tu, por favor! - assim lhe rogava Medéia.
Para a casa de meu pai, a quem atraiçoei por amor de ti?
Juntar-me às filhas de Pélias, às quais induzi a dar morte ao sangue de seu
próprio sangue?
Oh, que desamparo o meu!
Eis que me condenas, Jasão, a me afundar no interior da pior das tristezas...

Sua alma ardia em fogo e sua pele se arrepiava enquanto corria,


desgrenhada, clamando pelo auxílio dos imortais.

Que falta de vergonha!


Que covardia!
Por que tocou às mulheres a sorte do calar e do concordar, de sofrer a
ignomínia dos maridos?

Durante toda a noite lamentou sua dor, ecoada pelas Erínias. Ao


alvorecer, planejou um ato de desagravo que o mundo jamais
esqueceria enquanto existissem palavras para descrever uma traição.
Primeiro agradou sua rival e, como prova de boa-fé, fez-lhe
chegar às mãos um presente de casamento transportado pelos
príncipes da casa real, sete meninas e sete rapazes, que ela havia gerado
com Jasão. Glauce, comovida ante a aparente nobreza da mulher a quem
destituía a contragosto, declarou a suas escravas que nunca houvera em
Corinto uma coroa mais bela nem uma túnica tão fina quanto aquela,
cuja seda branca refletia um brilho intenso. Mas quando colocou o
vestido impregnado de um misterioso veneno e pôs na cabeça o
diadema de ouro, surgiram de cima a baixo e em volta de seu corpo
chamas tão violentas que abrasaram também seu pai Creonte, quando
este tentou ajudá-la a se jogar de bruços na água. O fogo se expandiu
para todas as dependências do palácio até reduzir a cinzas dezenas de
convidados importantes; e teria consumido também a Jasão, caso este
não tivesse saltado a tempo por uma janela situada a perigosa altura.
Foi em meio a tal mortandade que Zeus enamorou-se de Medéia,
pois admirava sua tempera. Ela o recusou, talvez porque em seu íntimo
não havia mais lugar para abrigar o desejo, mesmo que se tratasse do
senhor do Olimpo. Vigilante da eterna luxúria do marido, Hera
agradeceu a Medéia pela atitude que havia tomado e prometeu a
imortalidade a seus filhos caso os imolasse sobre o altar de seu
templo. Consumado seu ato horrível, a donzela fugiu para Atenas em
um carro puxado por serpentes aladas que, oportunamente, conduziu-
a ao avô, o Sol, depois de entregar o reino de Sísifo a mãos que lhe
eram leais.
Ninguém sabe exatamente quantos descendentes de Jasão foram
mortos ou como foram sacrificados. Alguns acreditam que Medos, o
primogênito, salvou-se porque estava sendo educado pelo centauro
Quíron, no monte Pelion, e que anos depois viria a se tornar o rei da
Média. Outros supõem que Medos não foi concebido por Jasão, mas por
Egeu, em Atenas, com quem Medéia prometeu se casar e dar uma
grande descendência caso a ajudasse a se vingar antes de cometer o
crime contra seus filhos.
É inegável que, após uma das vinganças mais cruéis de que se
tem notícia, os coríntios responderiam à crueldade com maldade
ainda maior. Chamavam-se Eríopis, Mérmero, Feres, Téssalo, Alcímenes,
Tisandro e Argos os filhos remanescentes de Medéia que,
aparentemente, foram arrancados do templo de Hera pelos coríntios,
enfurecidos pela morte de Creonte e Glauce, para serem apedrejados
publicamente e terem seus restos deixados às aves de rapina.
Para expiar esse crime institui-se desde então o costume de levar
uma vez por ano sete rapazes e sete donzelas vestidos de branco e com
as cabeças raspadas ao templo de Hera, situado no alto de uma colina
onde, dizem, por ordem do Oráculo de Delfos, foram enterrados os
despojos das crianças. A deusa, sem dúvida, cumpriu sua promessa:
seus nomes ainda são conhecidos e, portanto, permanecem na
imortalidade, da mesma maneira que o mundo nunca esqueceu a
paixão de Medéia.
Apolodoro assegura que depois de todos esses eventos Medéia se
casou com Egeu e que, por haver conspirado contra seu enteado
Teseu, saiu de Atenas em companhia de seu filho Medos, o qual, depois
de se bater vitoriosamente em numerosas batalhas e fundar o reino que
leva seu nome, morreu em uma expedição contra os hindus. Ela voltou
à Cólquida em segredo e, ao ficar sabendo que seu irmão havia
despojado Eetes de seu trono, matou-o e restituiu o cetro a seu pai.
Tentado pela fantasia, Eurípedes acomodou a lenda a seu espírito
trágico; ou talvez o tenha feito porque, como repetiram as más línguas,
foi subornado pelos coríntios com 15 talentos de prata para que
reduzisse a culpabilidade que recaía sobre eles como símbolo de
ignomínia, afirmando que foram somente dois os filhos sacrificados
pela mãe e que os demais, exceto Feres e Téssalo - que tiveram tempo
para fugir - pereceram no palácio durante o incêndio. Téssalo deu seu
nome à região da Tessália, que veio a governar, enquanto Mérmero,
filho de Feres, herdaria de sua avó a inclinação para o envenenamento.
Com respeito ao fim de Jasão, sabe-se muito pouco. Há quem o
acuse de perdoar o assassinato, embora não pudesse absolver a
ambição de Medéia em favor de seus filhos. Crê-se que, tendo ele perdido
o favor dos deuses, em cujo nome havia jurado fidelidade a Medéia e
depois faltado com a palavra, errou de cidade em cidade, odiado por
todos os homens. Fatigado, com a derrota no corpo e a cicatriz do
sofrimento na alma, retornou a Corinto já ancião para se sentar no
istmo, à sombra do Argos, a fim de recordar as glórias passadas e
lamentar sua desgraça. Tomado pelo desespero, tentava se enforcar com
uma corda atada à proa do barco quando, despedaçada e em ruínas, a
nave tombou sobre ele sem que ninguém lamentasse sua morte.
Passado um certo tempo, Poseidon tomou uma das traves da popa do
Argos e colocou-a entre as estrelas, como sinal de que a nave era
inocente.
Medéia não morreu. Filha e neta de deuses, fez-se imortal e
reinou nos Campos Elísios onde, segundo versões muito remotas, foi
ela, e não Helena, quem se casou com Aquiles.
Antígona

Devido à tragédia que a acometeu desde antes de seu nascimento, o


destino de Antígona é um dos mais comoventes de todos os tempos.
Inspirou a obra de Sófocles, que durante séculos foi considerado um
exemplo de literatura perfeita. Sua história, amplamente conhecida,
contém os principais elementos necessários à compreensão da conduta
humana; talvez seja por isso que tanto nos fascina quanto intimida.
Antígona, a segunda dos quatro filhos gerados por Édipo em união
com sua mãe Jocasta, resulta filha, neta e irmã de seus próprios pais,
sendo ao mesmo tempo instrumento purificador de uma terrível
mancha que recaiu sobre Tebas e que, depois de desencadear uma
série de mortes a partir do momento em que a verdade veio à tona, se
foi dispersando como um sinal inequívoco do retorno da lucidez. Sua dor
nos alcança não só como um símbolo de liberdade de consciência, mas
de devoção filial, de desafio feminino às amarras sociais, de amor
fraterno e até mesmo de auto-sacrifício, que a fez preferir a morte a
sujeitar-se à cruel sentença de Creonte, o tirano de Tebas; dessa Tebas
de olhar sempre atento à passagem do infortúnio e obstinada em
mostrar seus segredos ignóbeis a hora profunda do meio-dia.
Filha de uma cidade abrasadora, onde as sombras vigiam os
rumores das casas e os dormitórios ventilam a obscura sanção das
Moiras, o drama de Antígona caberia em umas poucas linhas, ainda que,
pelo cúmulo de tantas e tão variadas interpretações, se fariam
necessários vários tomos para abarcar o universo inspirado por sua
dupla paixão pela vida e pela virtude. Tudo ao redor acusava a secura
das rochas enfaradas de sol. Tudo exibia a tentação do sangue, e até
mesmo a paisagem parecia desenhada com raios de ódio, amassada
como a argila, atormentada como os túmulos de antanho, violenta como
o tirano e rarefeita como a cegueira humana frente ao odor que exala a
vingança ou trescala a consciência culpada.
Duas são as versões predominantes sobre a história de Antígona.
Uma deriva do antigo mito procedente do século III ou IV a.C, que
testemunha a derribada de seus pais perante a revelação do duplo
crime cometido por Édipo; mas Antígona, longe de se afundar em
desespero, se engrandece diante da dor de uma Jocasta que prefere se
enforcar a reconhecer seus próprios atos em plena luz do sol e
conviver com a culpa de haver desposado e entronizado seu filho
Édipo, o próprio assassino de Laio, seu pai e antecessor no governo de
Tebas. O sofrimento de Édipo é tão intenso que não consegue morrer,
ainda que a vida lhe seja insuportável. A verdade deixa-o cego, mas
mesmo arrancando os próprios olhos com os broches de sua mãe e
amante, os deuses lhe aumentam ainda mais a lucidez. Desterrado,
abandonado à perseguição das Fúrias, dirige-se em seu exílio a Colono,
em busca do sossego que lhe permitirá morrer na paz recobrada no
fundo da alma. É Antígona sua guia, sua filha e irmã caçula,
depositária do amor familiar e designada para celebrar o primeiro
ritual libertador de seu clã fatídico; um ato que haveria de consumar
contra a determinação das leis da cidade e até mesmo dos deuses
pátrios.
Coberta de suor, exausta e abatida pelo silêncio dolente de sua
viagem, Antígona compreende o desastre que lhe sobreveio e quais são
as distâncias que lhe estende o destino entre o castigo e a fatalidade.
Contempla em Édipo os enleios de que é capaz o inferno e, na
decomposição de sua Tebas remota, adivinha a inocência perdida.
Teseu lhes oferece hospitalidade em Colono, todavia ela recusa as
vestes limpas e um lugar na carruagem pública para regressar à sua
terra depois de instalar em segurança seu pai cego.
Em busca deles chega a Colono a jovem Ismene, trazendo o
relato de como seus irmãos Etéocles e Polinice estão em disputa pelo
trono. Édipo os maldiz prevendo que acabarão por dar morte um ao
outro, como finalmente aconteceu depois de uma cruenta batalha, que
não era outra coisa senão o resultado de uma guerra civil. É Creonte,
irmão de Jocasta, que herda o cetro de Etéocles e ordena que os corpos
daqueles que qualificou como inimigos de Tebas, incluindo o de Polinice
- que foi proclamado traidor - não recebam sepultura porque, segundo
o costume da época, evitavam assim que seus espíritos descessem ao
Hades para completar seu castigo neste e no outro mundo. Esta é a
decisão que transita entre a consumação da tragédia de Édipo e o
princípio da tragédia de Antígona, decisão que, por sua vez, procede do
sangrento final dos dois irmãos gêmeos em sua luta pelo poder.
Em outra das versões, incluída a peça teatral de Sófocles,
Antígona, abatida, empreende o regresso a pé. Em seu rosto pode-se ler
a fatalidade. Atravessa três obstáculos até entrar em Tebas por uma
porta dissimulada nas muralhas, coroada por cabeças cortadas.
Observa o desastre, os corpos caídos, as lanças e facas dos tebanos
que haviam participado da batalha. Procura Polinice por entre os
cadáveres, desliza por entre ruas candentes e só pára diante dos
terraços em que as mulheres ressoam aquela desgraça tingida de ódio.
Tudo cheira a sangue derramado, a corpos decompostos, a aço
incandescido pelo sol sobre as pedras e a couro das sandálias que apa-
recem atiradas por toda parte.
Logo adiante, arrastada pela tristeza, reconhece o cadáver
desnudo de Polinice, que jaz na maldição do esquecimento. Longe da
glória, morto também, está honradamente estendido seu irmão gêmeo,
Etéocles, quem tampouco reinará sobre a tão cobiçada cidade. Divididos
pela ambição, estão agora unidos pelo mesmo silêncio: a solidão da
morte. Antígona inclina-se sobre o cadáver de Etéocles e chora pelo
irmão, companheiro de sua tragédia, apesar de sabê-lo culpado de um
sofrimento que não será apagado pelos séculos. Volta para o lugar em
que se encontram os despojos de Polinice e, impelida pelo vigor de sua
linhagem, levanta com dificuldade este corpo que lhe é disputado pelos
abutres. A distância, do alto das muralhas, o tirano observa a cena e
ordena a seus soldados que a persigam, para que não dê sepultura ao
irmão. Antígona não dá atenção à vociferação e se demonstra
indiferente às ameaças. Enfurecido, Creonte repete as sanções que,
movido pelo ódio, proclamara anteriormente. Ela nem sente o peso do
morto. Caminha desgrenhada, com manchas de poeira no rosto e com
os farrapos endurecidos pelo sangue ressequido. Logo cai uma
escuridão tenebrosa e a noite se apodera da cidade. Dezenas de olhos se
ocultam para segui-la e todos pressentem o furor do castigo. Os deuses
se esquivam a participar. Ninguém intervém, e até Ismene, tocada pela
mais profunda compaixão, hesita ante a bravura de sua irmã.
Na tragédia de Sófocles, após sepultar o cadáver de Édipo no solo da
Ática, sob a proteção de Teseu, Antígona retorna a Tebas a fim de
realizar os ritos funerários em honra de Polinice, que ainda jazia
insepulto a céu aberto. Pela metade da noite, quando sozinha cobria a
sepultura com os ritos que deviam ser celebrados em honra do falecido,
os guardas a detém por haver violado as leis da cidade. Creonte a
condena a morrer enterrada viva em uma caverna, apesar dos rogos de
seu próprio filho, Hemon, prometido em casamento a Antígona e
condenado assim a partilhar de sua desgraça; e das súplicas de
Ismene, que até esse momento se furtara a participar da trama.
Em meio a cenas dilacerantes, o coro acusa Creonte ao mesmo
tempo em que o céu de Tebas se cobre de nuvens e é sacudido pelos
rumores da advertência divina. Como Édipo anteriormente, Antígona
contempla a verdade e não retrocede. Seu coração se impacienta, mas
suas mãos continuam a cingir as dobras da mortalha. Sabe que, se
sobreviver, permanecerá como uma morta viva, carregando o peso de
sua consciência e condenada a suportar uma mancha que, de
qualquer maneira, a condenará a entretecer vida e morte.
Desesperado perante a dureza de Creonte, Hemon lhe jura que se
matará também e compartilhará até o final a sorte funesta da amada. A
mãe de Hemon chora. O povo testemunha essa luta contra o destino
e, alternadamente, cala-se e eleva as vozes em um lamento de
comiseração; o coro se oculta, aparece outra vez e espelha em seus
sussurros dolorosos o sacrifício da donzela. Antígona não titubeia e
confirma o que declarou perante o tirano: a decisão de sepultar
Polinice está de acordo com as leis dos deuses, mesmo que estas não
estejam escritas, e não obedecerá ao decreto de Creonte porque seria o
mesmo que atentar contra sua própria família. Seu dever familiar,
nessas circunstâncias, era o de garantir ao irmão repouso no Hades, e
isso estava acima de qualquer lei imposta pela cidade. Enraivecido,
Creonte exige obediência à ordem por ele determinada e confirma sua
atroz sentença ao enfrentar a persistência de sua sobrinha.
Tirésias, o adivinho cego, prevê a fatalidade. Insiste uma, duas e
até três vezes, instando com o rei para evitar a injustiça, mas Creonte
está surdo e cego, coberto de ofuscação e dominado pela desavença.
Um frio que traz consigo o odor da morte se estende sobre o solo de
Tebas enquanto Antígona marcha a caminho da caverna, acompanhada
por vozes compadecidas, a fim de assumir o destino que lhe foi traçado.
Tirésias persiste em lançar terríveis ameaças a Creonte por desafiar as
leis divinas, e não recua em sua decisão de impedir a qualquer preço a
desgraça que recairá sobre a cidade. Aqui se desespera o amante; ali
Ismene reclama ao tirano o direito de compartilhar da culpa e do castigo
de Antígona; mas ele se recusa e a expõe diante de todos como uma
demente. Cresce a tensão característica das tragédias, em que
convergem a fatalidade e a lucidez e se travam as batalhas da vontade
contra as determinações do destino. É a luta radical das forças ocultas
da escuridão contra os poderes visíveis da claridade, e a prova de que,
acima de qualquer tentativa de modificar o rumo do destino por meio
de uma força de vontade superior, irremediavelmente triunfará o poder
dos deuses.
Assim se desencadeia a sucessão de acontecimentos trágicos, a
partir do autoritarismo obtuso de Creonte e das inúteis advertências
dos demais para que anulasse sua sentença. Em Creonte está o núcleo
de uma batalha mortal entre o fado e a inconformidade humana; nele
recai também a esperança de um triunfo da razão; mas ele não cede,
muito pelo contrário, confirma uma vez e outra mais sua função de
instrumento divino até que, comovido por tantas súplicas
entremeadas de ameaças terríveis, decide finalmente ir até a caverna e
libertar sua prisioneira.
O tirano pôde prever tudo, exceto a poderosa vontade de
Antígona, que preferiu se enforcar a morrer sob as condições que lhe
foram impostas. Junto dela estava o fiel Hemon, abraçado ao cadáver
da amada aguardando a própria morte a fim de compartilhar do destino
funesto de Antígona. Assim que o avista, Creonte repreende
violentamente o filho por havê-lo desobedecido como rei e como pai.
Hemon, movido pela dor, saca da espada para atacá-lo, mas falha e
então volta a espada contra si mesmo. Horrorizado, Creonte retorna ao
palácio para descobrir que, desesperada, também sua esposa Eurídice
se havia suicidado.
Cassandra

Filha de Príamo e da dorida Hécuba, Cassandra foi mais celebrada


por Homero por sua beleza do que pelo seu dom divinatório. Em seu
nome misturam-se as desventuras de ver o futuro e a de não ser
acreditada, além do duplo infortúnio de ser amada e castigada por
um deus e de ser amada e conduzida à morte por um herói, eventos
que a inclinaram para a tragédia pela dupla senda das vinganças
divinas e das crueldades humanas.
Comparada a Clitemnestra, sua rival e assassina, encarna o
modelo de mulher que, desde seu nascimento, vive sujeita aos
caprichos dos demais e que vê reverter-se contra ela qualquer
iniciativa pessoal que envide empreender. É o drama de uma
feminilidade que atravessa os séculos com o emblema de sua palavra
inútil, e de sua voz não escutada. Profetisa dos desastres iminentes, é
também a portadora de uma verdade que anula a si mesma pelo
mesmo fato de que é proclamada por quem a invoca, o que redunda
em maiores desgraças para ela e para a tentativa de ordem que
poderia representar uma voz de alerta frente a injustiças, que costuma
converter-se naquilo que alguns consideram ser a fatalidade, enquanto
outros o qualificam como a própria lógica do erro.
Não obstante sua atuação secundária na Ilíada, é em torno de
Cassandra que ocorrem os desenlaces mais significativos do canto
homérico. Junto com Hécuba, sua mãe e rainha de Tróia, constituiu a
principal presa de guerra dos gregos, a ponto de engravidar de
Agamenon e dar à luz dois filhos, os gêmeos Teledamo e Pélops, o que
agravou a fúria de Clitemnestra, a quem sobravam motivos para odiar
seu esposo, especialmente por haver imolado sua filha Ifigênia; mas
também por havê-la desposado à força quando, comandante das tropas
invasoras, matou Tântalo, seu primeiro marido; tudo isso também
provocaria o ódio dos filhos gerados com ela, Orestes e Electra,
protagonistas de algumas das tragédias mais complexas da
Antigüidade clássica.
Desventurado como poucos, o destino de Cassandra é o dessas
mulheres a quem nunca compete decidir, e na única oportunidade em
que podem fazê-lo tomam uma atitude equivocada. E para ela tal ocasião
determinou sua desgraça: Apolo enamorou-se dela e, como prova de
sua paixão, outorgou-lhe o dom da profecia, que ela recebeu ao
mesmo tempo em que rechaçou o deus com grande violência. Célebre
transgressor, em vez de despojá-la do poder que lhe conferira, Apolo
condenou-a a augurar sempre a verdade, mas sem que ninguém
jamais a acreditasse, o que resultou num castigo pior que o infligido
pelas divindades da Grécia arcaica àqueles que caíam em desgraça
perante eles, já que, quando queriam oprimir os homens, normalmente
começavam por cegá-los para que, em sua ofuscação, encontrassem a
própria perdição.
Todos nós fomos vítimas dessa cegueira alguma vez. É a forma
comum em que incorrem as pessoas quando optam pelo pior. Tal é o
caso de Agamenon quando não aceita o princípio de entendimento
proposto pela assembléia, para que devolvesse a seu pai a escrava
Criseida a fim de aplacar precisamente a ira de Apolo; ainda mais
porque ele receberia uma compensação pela redução desse espólio, o
mais conflituoso ao longo da contenda troiana, já que não somente
piorou a situação dos gregos diante do inimigo, mas criou entre eles a
famosa dissensão proveniente da cólera de Aquiles.
Longe de raciocinar e se reconciliar com Aquiles, Agamenon
ameaçou despojá-lo de sua própria escrava, Briseida, o que acabou se
cumprindo com a mediação de dois arautos quando, a contragosto, foi
obrigado a devolver a primeira jovem a Crises, o ultrajado sacerdote que
exigiu de Apolo uma reparação à altura das ofensas que sofrerá em mãos
gregas. A discussão enrudeceu não tanto pelo que pudessem significar
as duas escravas, mas pelo enredo de rivalidades e caprichos entre os
dois comandantes. As conseqüências da decisão tomada por Aquiles,
de abandonar o combate e se encerrar em sua tenda, deixando
desconcertados os demais guerreiros gregos, seriam muito mais
nefastas do que o herói poderia pensar naquele momento.
Por outra parte, dos dezenove filhos e filhas gerados pelo rei de
Tróia, Cassandra será aquela cujo destino mais se assemelhará ao
doloroso fim de sua mãe, e quem compartilhará com ela o símbolo das
perdas, até consumar sua história de despropósitos ao ser entregue a
Agamenon como presa de guerra e profetizar sua própria morte às
mãos de Clitemnestra. Qual a figura de Hécuba, a de Cassandra vai e
vem entre diversas tragédias, sobretudo as de Eurípides, seja como voz
sempre desatendida, como vítima maculada no templo, como
testemunha das derrotas troianas ou como escrava do comandante
grego em seu retorno a Micenas. Isso sem contar ainda a pena adicional
de saber que sua irmã, Polixena, mantida em cativeiro por Aquiles,
teria de ser imolada sobre a tumba deste porque, segundo afirmavam
os intérpretes, assim exigiu a sombra do herói.
Se Hécuba esteve marcada para sobreviver à morte de Príamo,
seu esposo, e de quase todos os seus filhos, entre os quais Heitor,
Heleno, Troilo, Páris, Creusa, Polixena e a própria Cassandra, coube
a esta última, a infeliz amante de Apolo, ostentar o estigma de
anunciar catástrofes em meio aos assombros e à insensatez que
envolviam o conteúdo de suas palavras. Ela foi a única que, tendo
subido a um dos torreões da fortaleza de Pérgamo, distinguiu no
caminho o velho Príamo e o arauto da cidade, de pé no carro puxado
por mulas que transportava o cadáver de Heitor e que era guiado pelo
próprio deus Hermes. Em vão anunciou à sua gente a derrota de
Tróia e, em sua solidão, comprovou como se cumpriam as previsões
de seus delírios proféticos.
Durante a tomada da cidade, foi violada por Ajax, o Lócrio, filho
de Oileu, quando a encontrou no templo de Atena, abraçada à estátua
da deusa. Brutais como eram os gregos com os vencidos, Ajax arrastou-
a para fora, maculando assim o recinto sagrado. Para expiar o
sacrilégio ao Paládio, a estátua sagrada de Atena, os lócrios foram
obrigados pelos sacerdotes a enviar duas donzelas à Tróia durante mil
anos, a fim de servirem como escravas ã ofendida Atena, com a
advertência de que, se fossem capturadas durante a viagem pelos
habitantes de qualquer região antes de chegarem ao templo, deveriam
ser executadas como castigo. Esse costume perdurou até o século II
a.C., e mesmo em nossa época ainda existem vestígios litúrgicos de tal
expiação.
Finalmente, na composição dos motivos do duplo crime
executado por Clitemnestra concorreram quase todos os elementos
trágicos, inclusive o da morte da indefesa Cassandra: ciúmes, rivalidade,
vingança, confusão e a soma de todas as paixões de que se valem os
deuses para cegar os seres humanos.
Clitemnestra conspirou com seu amante Egisto para matarem
Agamenon e Cassandra assim que estes chegassem a Micenas. Para
evitar qualquer surpresa, escreveu uma carta a Agamenon pedindo-
lhe que acendesse um facho no alto do monte Ida, a fim de anunciar a
queda de Tróia. Ela, por sua vez, para evitar que o marido lhe
preparasse alguma armadilha, organizou uma rota de fogueiras no
cume dos mais altos montes que, ao serem acesas, retransmitiriam o
aviso até a Argólida, através do cabo Hermeu, situado na ilha de
Lemnos, e dali pelas montanhas de Atos, Macisto, Messápio, Citéron,
Egiplancto e Aracne. A vigilância se completava em seu próprio palácio,
em cujo teto instalou um dos mais leais servidores de Agamenon, que
ali permaneceu por um ano completo invadido pelos mais tristes
pressentimentos, encolhido como um cão olhando na direção do monte
Aracne. Foi ele quem, em meio à mais profunda escuridão, divisou a
luz esperada e correu para despertar Clitemnestra.
Fiel à sua natureza de aparências, ela simulou felicidade
oferecendo sacrifícios em sinal de agradecimento aos deuses. Egisto,
enquanto isso, mantinha em alerta dois homens postados em uma
atalaia para que lhe informassem os pormenores do desembarque. Ele
preparou o crime enquanto Clitemnestra mandava estender um tapete
de púrpura para que Agamenon o trilhasse até o banho que havia sido
arranjado pelas escravas. Tomada de um arroubo profético, Cassandra
previu a tragédia e permaneceu no exterior do palácio, procurando
passar despercebida. Dizia a quem quisesse ouvir que cheirava sangue
no ar, mas ninguém a escutava. Que a maldição de Tiestes recairia
sobre ela mesma e sobre Agamenon - era o que repetia inutilmente -,
mas os demais estavam entretidos com a festa de boas-vindas e, como
o deus lhe anunciara, ninguém ali a escutou.
Nem bem Agamenon saíra do banho para se dirigir ao banquete,
Clitemnestra jogou-lhe um cobertor pela cabeça, a fim de cobri-lo. Antes
que ele pensasse em esboçar qualquer defesa, embrulhou-o em uma
malha tecida por ela mesma, no formato de um grande saco, que o
imobilizou da cabeça aos pés. Surgiu então Egisto para matá-lo com
uma espada de dois gumes, satisfazendo assim a ira expectante de sua
cúmplice. A própria Clitemnestra, cheia de ódio contra o marido,
encarregou-se de cortar-lhe a cabeça com um machado e proferir contra
ele as últimas palavras de desprezo, com a firmeza de quem longamente
esperou para retalhar um corpo tão repulsivo. Sem se dar ao trabalho de
fechar os olhos ou a boca da cabeça decepada de Agamenon, limpou em
seus cabelos o sangue que lhe salpicara os braços e depois correu
desaprumada em busca de Cassandra, levando na mão uma faca.
E, do lado de fora, por entre as árvores que cercavam a casa,
rolou também a cabeça de Cassandra, enquanto o próprio Egisto se
encarregava de assassinar seus dois filhos gêmeos.
Safo

Longe de esclarecer seu mistério, o tempo tornou Safo símbolo da


homossexualidade feminina. Um símbolo tão difícil de esquadrinhar
quanto a verdadeira causa que levou Anacreonte a afirmar
maliciosamente que o nome da ilha de Lesbos, onde ela nasceu e viveu
a maior parte de sua vida, conotava a paixão mútua das mulheres que
ali se congregavam sob a tutela de uma dama da alta linhagem, a fim
de adquirir as bases de uma vida feliz e decorosa para si mesmas, para
seus maridos e para a sociedade em geral.
Safo pressente sua solidão a distância, e em suas palavras sente-
se a imensa ternura por meio da qual, ante as moças do oikos1, ela
esvaziava sua íntima desesperação. Desfrutou o amor dos homens.
Conheceu o fingimento das que reconhecem o galanteio do abismo.
Perguntou às estrelas qual era seu destino. Em suas noites insulares
provou o sabor acre de uma feminilidade demasiado pesada para as
delicadas donzelas, e intimidante para os varões acostumados à
rudeza. Presa ao cerco do ensino, cumpriu o sanção do oráculo e,
ainda que nunca tenha recorrido a Delfos, soube com clareza o que
significava conhecer-se a si mesma.
Safo apercebeu-se de muitas coisas que não se conheciam em
seu tempo. Conheceu, por exemplo, a estreiteza daquela paisagem
cercada de água por todos os lados, a asfixia que ilumina a dor, a
divindade que consagra a linguagem e o vigor inefável da poesia. Talvez
nunca se tenha interessado pela glória, porque em seu corpo
adivinhava os sinais de sua irremediável transitoriedade. Sorria diante
das meninas que experimentavam novos modos de agradar, e nelas
reconhecia o que nunca havia sido, o reflexo daquilo que nem tentou
ser. Percebeu a ameaça que se acha contida no diferente. Imaginou a
redenção do prazer. Esquecida do próprio gozo, amou o orgulho de
Girino e até se inclinou para beijar-lhe os pés. Em tempos de amor,
pressentiu o crepitar da fogueira interior, e Átis ensinou-lhe a entreter
a infelicidade. Como Circe, ela também explorou o abandono quando
algum "Ódio", sob outra denominação, cruzou sua vida, e é de se crer
que, sob o vigor de sua voz, a poetisa fosse dominada por um temor
inaudito ao desconhecido.
Como era comum em outras partes da Grécia, em Lesbos
gozavam de grande prestígio as instituições educativas para mulheres
- que em nossos dias têm sua contraparte nos internatos para as
adolescentes, ainda que estes não imitem a devoção pelas artes que
era praticada na Antigüidade, nem neles exista a liberalidade com que
aquela cultura mostrava seus sentimentos. Dificilmente se encontrava
uma jovem de boa família que não houvesse recebido as regras e o
refinamento da perfeita mulher casada. Havia inúmeros agrupamentos
religiosos denominados thiasoi, nos quais eram treinadas com especial
rigor aquelas moças destinadas a se casar com os filhos da nobreza,
comerciantes enriquecidos e heróis de guerra. Assimilavam princípios e
tradições; desfrutavam de seleta companhia e cultivavam segredos de
amizade talvez infiltrados de amores sutis, pois, em sua Ode a Afrodite,
Safo pede para ser liberada de um amor feminino, enquanto em sua
Ode à mulher amada, declara sua paixão por uma garota cujo olhar a
comove profundamente; ao mesmo tempo, o jovem sentado a seu lado
parece-lhe um deus em sua indiferença. Se tais exclamações são
freqüentes em sua poesia, em passagem alguma de sua obra se
encontra uma referência explícita às relações físicas entre elas.
Concentradas na aprendizagem da música e da poesia, tudo estava
disposto para incorporá-las com suavidade às exigências da sociedade,
que não eram nada simples. Para isso contribuíam as tradições lésbias
de valorizar o companheirismo, honrar os deuses com danças e cantos e
manter contatos variados com seus vizinhos, os jovens lídios, famosos
por sua elegância. Resulta daí que os versos líricos de Safo sejam mais
intensos que seus epitalâmios compostos para interpretação coral em
ocasiões festivas; e igualmente apresentem maior força que suas
canções dedicadas a homens ou a deuses.
Seus cantos festivos para casamentos gozavam de grande
prestígio em função de sua radiante espontaneidade. Com poesia
despedia algumas de suas discípulas, e com poesia mitigava a iniciação
destas na complicada vida a dois que, desde o século VII daquela era,
se completava com uma singular devoção entre o homem e o jovem ou
entre a mestra e a aluna, relação esta que, apesar de refletir expressões
de afeto que possam nos parecer desmedidas não implicava
necessariamente ligações sexuais. Essa forma de aliança preparava
para a vida, buscando imitar uma existência ideal e apaixonada. A
literatura helênica está repleta de tais exemplos, até que Platão,
muitos anos depois, se encarregou de definir os termos da amizade, do
amor e da ligação espiritual.
É impossível determinar exatamente o período em que as jovens
permaneciam sob a tutela de Safo. As relações íntimas de ódio e amor
que refletia em seus versos denotam o trânsito da puberdade à
adolescência, porque era comum que o casamento fosse realizado
muito antes que os noivos completassem 20 anos. As meninas
constituíam sua audiência e estava previsto que deixariam seu círculo
diretamente para a celebração de seus esponsais, o que torna pouco
provável a suposição de que Safo fosse uma sacerdotisa rodeada de
formosas jovens com as quais praticava rituais eróticos em honra de
Afrodite e das Musas, como escreveu maliciosamente o poeta Anacreonte,
uma geração depois.
Em seus versos de despedida, Safo celebrava os noivos
comparando-os a ninfas e heróis; isso confirma que, estando a vida
coletiva das jovens dos thiasoi sob a especial proteção de Afrodite, as
meninas expressavam um afeto apaixonado entre si e para com a mulher
que as tutelava; e Safo, nesse sentido, professava um cálido apego pelas
adolescentes que, ao se casarem, deixavam de ser "jacintos nos montes"
para se converterem em "flores plantadas no solo", ou seja, que a
partir do momento em que arcavam com as preocupações e dissabores
da vida matrimonial, para a qual haviam sido preparadas, as donzelas
perdiam seu estado anterior de pureza perfeita.
Foi assim que ela cantou ao encaminhar para as bodas uma das
jovens de seu thiasos, e é assim que lemos estes versos que começavam
com o louvor do noivo antes de se dirigir à noiva:

Parece-me igual aos deuses o homem


Que vejo sentado frente a ti
Ouvindo absorto tua doce voz
E o riso encantador que, a mim,
Perturbou o coração dentro do peito.
Apenas te contemplo e a voz me falta
A língua parece partir-se
E um fogo sutil recorre pele adentro;
Já nada vêem meus olhos e zumbem meus ouvidos,
Corre o suor pelo meu corpo e trêmula
Sinto-me toda; como a relva do prado
Quedo-me verde e como morta.
Porém a tudo é preciso superar...

Se pouco restou da obra de Safo, muito menos de sua biografia.


Nasceu por volta do ano 590 a.C, perto de Mitilene, capital da ilha de
Lesbos, na época ocupada pelos eólios; por Heródoto sabemos que seu
pai chamava-se Escamandrônimo e sua mãe Cieis, nome que daria
também a sua formosíssima filha, provavelmente loura, a quem dedicou
pelo menos uma canção na qual a comparou à luz de uma tocha.
Segundo a própria confissão, não era bela; Plutarco, todavia, apelidou-a
a bela Safo, enquanto Platão, que muito admirava sua força poética, foi o
primeiro a chamá-la Décima Musa. Ela descreveu a si mesma como uma
mulher pequena, morena e não muito graciosa. Oscilava entre
sentimentos doces e amargos, e não ocultou os transtornos que, em
determinadas ocasiões, lhe provocava Eros. De fato, sua lenda começou
a se difundir graças aos extremos que ora deixavam-na repassada de
dor, a ponto de desejar a morte por causa de um abandono, ora
enchiam-na de um gozo exagerado. Apaixonada, sensual e inclinada a
certa melancolia, a qual sabia expressar com singeleza, Safo
permaneceu, contudo, estóica por disciplina, e tão brilhante quanto
extraordinariamente sensível.
Perdeu seu pai quando tinha 6 anos e manteve ligações muito
estreitas com seus três irmãos, a quem mencionou várias vezes em seus
cantos. Orgulhosa do fato de um deles [Lárico], devido à sua elegância e
beleza, ter sido escolhido para servir o vinho nos banquetes
cerimoniais, testemunhou em seus versos a importância que
representava para um jovem da cidade receber uma distinção como
esta. Com relação a Cáraxo, ao contrário, descreveu a vergonha que
trouxera à família quando se apaixonou por uma hetera grega chamada
Dórica, que conheceu em uma de suas navegações a Naucrátis, na
costa egípcia, onde comerciava com o vinho de Lesbos. Por ela, esta
amante misteriosa, Cáraxo sacrificou seus bens e incorreu em
desvarios tais que ao descrever o acontecimento, Heródoto a confundiu
com Rodópis, uma cortesã de origem trácia que foi durante algum
tempo escrava do comerciante Jadmon, o homem sâmio de Efestópolis,
e companheira de servidão do fabulista Esopo. Graças a seus encantos,
Rodópis acumulou grandes riquezas, e com a décima parte de sua
fortuna mandou erigir a si mesma um monumento em Delfos. Mas
seria demasiado forçado vinculá-la a Cáraxo.
Safo casou-se com um próspero comerciante da ilha de Andros,
ainda que desse matrimônio só tenham restado os versos dedicados a
Cleis, "formosa como flores de ouro", por quem sua mãe "daria a Lídia
inteira". Morto ou abandonado, seu marido Quérquilas se apagou de
sua biografia. Ainda jovem Safo partiu para o exílio na Sicília, talvez
por causa de distúrbios políticos ocorridos em Lesbos, e lá lhe
ergueram um monumento no século IV a.C, o qual foi roubado muito
depois por Verres, um governador romano conhecido por sua cobiça.
Safo regressou mais tarde para Mitilene, onde permaneceu pelo resto
de sua vida.
Os interesses de Safo não se concentravam em questões de
família, mas eram tomados pelas tarefas da escola e com o ofício de
tutelar as jovens, que considerava um ministério sagrado. De fato, a
poesia orientava e refinava suas vidas. Foi com esse espírito que
escreveu e conviveu entre as meninas que formou e amou, e com quem
sofreu e se alegrou. Assegurou que a atividade das Musas favorecia o
triunfo da sensibilidade, da ordem e da graça sobre a torpeza, a
desordem, o acaso e a vulgaridade; por isso nunca devia se infiltrar em
seu círculo um sentimento de luto; ao contrário, quando perdiam um
ser querido, as jovens deveriam cultivar o silêncio, conforme cantara
em seus versos a Cleis quando esta chorou pelo desaparecimento de
alguém que lhe era próximo.
Safo escreveu no dialeto eólio ou em lésbio vulgar, inventando
tanto os harmoniosos versos sáficos como as estrofes eólicas, espécie de
harmonia para canto acompanhado por um instrumento chamado
pectis. Dos nove livros que escreveu, só perduraram dois poemas
completos: a Ode à mulher amada, que foi compilado por Longino em seu
Tratado do sublime e traduzido para o latim por Catulo em seu poema
51; e a Ode a Afrodite, resgatado por Dionísio de Halicarnasso. Os
fragmentos de muitos outros poemas que conhecemos confirmam que
se cumpriu sua esperança de ser recordada através dos séculos não pelo
clima de escândalo que a envolve, mas por sua reputação entre os
poetas de maior importância da lírica grega.
Desconhecem-se as datas de seu nascimento e de sua morte. Um
célebre relato, talvez proveniente de uma comédia grega, afirma que Safo
se apaixonou por um certo Faon. Quando este a desprezou, a poetisa
precipitou-se do rochedo de Lêucade, uma ilha situada na costa oeste
da Grécia.
Essa mulher, diria mais tarde Marguerite Yourcenar, amargurada
por todas as lágrimas que, fortalecida por sua coragem, não se
permitiu nunca derramar, percebeu que a todas as suas amigas não
podia oferecer mais que um acariciante desamparo.
1 Casa, moradia, por extensão, pátria. Em grego no original. [N.T.]
Olímpia

Se estudássemos Alexandre o Grande somente por sua origem materna,


encontraríamos um veio mítico que o aparentava com os heróis.
Olímpia tinha mais orgulho de seus vínculos divinos que do filho que a
tornaria famosa. Provinha de uma casa real, reconhecida inclusive
pelos gregos, que ostentava Aquiles como o iniciador de sua linhagem.
Ao se casar com Felipe - rei macedônio célebre tanto por suas vitórias
militares como por suas orgias alcoolizadas com pajens, meretrizes,
bailarinas e sibilas -, avigorou a força de um poder que, desde os dias
decantados por Homero, parecia destinado a engrandecer a memória
do legendário Heleno, filho de Príamo de Tróia e fundador da estirpe dos
caônios do Épiro.
Órfã muito cedo, Olímpia foi tutelada por seu tio Arribas, irmão
do falecido Neoptólemo e seu herdeiro no trono de Molosia, que
determinou entregá-la em casamento a Felipe enquanto reservava para
si a mais velha de três sobrinhas, e para sua corte de efebos favoritos, o
jovem Alexandre, cujo nome real herdaria o famoso macedônio. Intrincada
como é a história dos gregos, a de Olímpia encabeça um dos mais
apaixonantes e sangrentos episódios da luta pelo poder na Antigüidade,
não só por seu enredo de parentes, domínios e batalhas militares, mas
também pela fábula que ata o destino de tantos homens e mulheres que
naquela região dos Bálcãs sonharam um mundo de façanhas heróicas
capaz de rivalizar com os prodígios efetuados pelos deuses.
Estando a história inclinada a destacar os enfrentamentos
armados do poder, ou a se deter sobre os efeitos visíveis dos declínios
ou das conveniências dos poderosos, desde sempre as narrativas da
aventura humana foram marcadas pela omissão e pelo esquecimento.
Uma aventura que não seria tão grandiosa ou complexa em seu
desenvolvimento se nela não intendessem nos momentos culminantes
as intrigas e paixões enfeitiçantes das deusas e das mulheres. Se
observarmos o Olimpo, ali estão Afrodite, Atena, Hera, Deméter e
Perséfone para demonstrar que nenhum aspecto significativo da
existência foi alheio aos interesses e olhares femininos. Por elas os
deuses firmaram alianças ou sistemas de encobrimento; por elas os
homens encheram-se de coragem; e toda a descendência de heróis,
ninfas, deidades menores e seres privilegiados espelhou, cedo ou
tarde, as marcas do furor amoroso, das argúcias guerreiras ou dos
desígnios nem sempre sutis da imaginação feminina.
No caso da tragédia, a arte e a inteligência careceriam de alicerces
para orientar os árduos caminhos da conduta se não considerassem as
tribulações de Electra, Jocasta, Antígona, Medéia, Andrômaca, Hécuba,
Penélope, Helena, Ifigênia ou Clitemnestra, a cuja profundidade
emotiva devemos as mais comovedoras lições de humanidade. E o que
seriam os mitos sem o arco de permanente tensão que entremeia a
fecundidade primordial, o pensamento, a religiosidade, o mistério e a
morte que se estendem entre a feminilidade, o sonho criador e a
ordem do universo?
Umas mais vigorosas, outras menos visíveis ou perturbadoras, as
sombras de algumas mulheres perduram através dos séculos acima da
sucessão de idiomas, credos ou culturas graças ao fogo com que
forjaram sua passagem pela vida. Olímpia não passou inadvertida em
sua jornada, ainda que na memória de gerações sua grandeza tenha
sido progressivamente filtrada até que reduzida a uma cruel
personagem que tingiu de sangue e minou, com sua insídia, o
helenismo que se achava em gestação. Tudo isso porque ela amava o
mistério, tanto quanto o domínio mundano e os prazeres provenientes
do leito, dos altares sacrificais, dos cenários teatrais e da culinária.
Quando falava, imprimia a voz tons próprios de reis e marechais, e
mesmo em seu modo de andar, de olhar e de excitar os homens com
suas danças singulares, percebia-se o hábito de se igualar às
divindades.
Sendo ela mesma uma sibila, invocava as forças das trevas a fim
de incrementar sua índole temerária pela via dionisíaca, da qual
também se dizia descendente direta e credora de atributos olímpicos.
Jamais desperdiçava ocasião nem recursos para se infiltrar em
assuntos tidos como privativos aos varões. Não que desprezasse as
outras mulheres, sequer considerava-as possíveis rivais, já que os alvos
de seus olhares começavam onde se dissipava a imaginação das demais;
no máximo lhes administrava venenos ou poções de variada eficácia
segundo sua avaliação do potencial risco de suas influências na
hierarquia sucessória de Felipe, cujo trono considerava destinado por
desígnio supremo para seu filho Alexandre. Quando reconhecia a
cobiça de alguma outra mulher, aplicava procedimentos pouco sutis
para anular quaisquer de suas argúcias. Não se intimidava perante
monarcas, sacerdotes ou generais porque, em seus acessos de ira,
explodia em um furor comparável ao dos titãs, e se falhava o ímpeto
despertado por sua cólera, manifestava-se a insinuância absorvida de
suas serpentes ou o sistema de alianças contra inimigos comuns para
multiplicar suas vinganças.
Para Olímpia não existiam derrotas honrosas nem pequenos
triunfos. Sua vida amorosa esteve semeada de façanhas que até
mesmo nos dias de hoje nos pareceriam inauditas. Entre seus
atrevimentos noturnos se destaca a fábula de como foi concebido
Alexandre enquanto o cônjuge real participava de uma batalha, graças
à intervenção da magia.
O próprio Felipe, não obstante sua absoluta crueldade, chegou a
temê-la, pois mesmo do alto do orgulho guerreiro da Macedônia não
havia quem ousasse duvidar de suas habilidades e ligações
sobrenaturais. O certo é que, em um ambiente regido pelos
preconceitos, pelo destino e pelas traições, é bastante crível que a
religiosidade se mesclasse ao manejo arbitrário de artimanhas, e que
as conveniências ajudassem a suprir conchavos políticos mediante a
força de predições domésticas ou, em casos mais complicados, pela
intervenção de oráculos que abarcavam desde as mensagens
indiscutíveis do fado até a interpretação dos sonhos e dos presságios,
segundo os critérios sempre cambiantes dos profetas, feiticeiros ou
sacerdotes.
Mulher excepcional, Olímpia foi e continua sendo o que se chama
personalidade. Para ela eram muito pequenas as tarefas de tecer,
reproduzir-se, manter o lar e se ocupar das intrigas entre rivais e
possíveis pretendentes ao trono. Não obstante ser a sexta de uma
longa lista de esposas e concubinas de Felipe, fez valer seus direitos
reais por meio do assassinato de seus inimigos ou engendrando no
coração de Alexandre um profundo desprezo pelos caprichos do
monarca, mediante a escusa de que o rei Felipe pretendia fazer seu
meio-irmão Arideu seu sucessor no trono da Macedônia. Surgiu a
suspeita de que foi por meio de suas atividades perversas com ervas e
feitiçarias que Arideu, filho de uma bailarina estrangeira e primogênito
de Felipe, perdeu o vigor e o controle de suas faculdades até ficar
reduzido a um pobre infeliz sem vontade própria que, aos olhos de
todos, era totalmente inadequado para assumir o governo.
Sofisticada e sensual, Olímpia passava as tardes divertindo-se
com suas amadas serpentes. Aproveitava-se da embriaguez de seu
marido para recolher boatos ou arquitetar murmurações ferozes que
logo serviam para substituir os comandantes nas batalhas,
prepostos e governadores, bem como para redistribuir bens e terras,
espólios de guerra, escravos e armas. Sem a menor dúvida mantinha
estrita vigilância sobre o tesouro de seu oikos, ou lar. Seguramente
também se assentava junto ao trono real durante as cerimônias e
participava dos escandalosos banquetes que eram servidos na corte,
do mesmo modo que Helena o fizera na Lacedemônia, e supõe-se até
mesmo que, quando não estava bailando para seduzir os convivas,
atrevia-se a tomar a palavra arrogando-se atribuições que
ultrapassavam de muito seus deveres de rainha.
Ciumenta e aguerrida, nenhum relato a descreve junto à roca
ou ao cesto de novelos de lã, objetos que, tanto entre damas como
escravas, constituíam a imagem da condição feminina em uma Grécia
que oscilava entre a barbárie característica dos macedônios e as mais
elevadas conquistas da razão ateniense.
Seus subordinados tentavam explicar os atrevimentos daquela
mulher que dormia com serpentes dizendo que ela era única por sua
origem de nobre linhagem e que, desde menina, deleitava-se com os
jogos do poder. O fato é que, acima das questões mundanas que
empanaram sua fama de poderosa sibila, a mãe de Alexandre o Grande
amava o poder tanto quanto o perigo. Esposa do mais prestigiado
conquistador do século IV a.C, entendeu que se nada era mais
respeitável para os gregos que trazer nas veias o sangue dos deuses,
então ela teria de encontrar um modo de fascinar os macedônios com
a história de um nascimento privilegiado.
É provável que essa sua natureza, herdada de deuses, guerreiros
e heróis, fosse determinante na formação militar e na reconhecida
capacidade estratégica de Alexandre, pois é sabido que Felipe, por
duvidar de sua paternidade, rejeitou o menino durante sua primeira
infância e que, antes de ser educado pelas mais altas inteligências da
Grécia, Olímpia cultivou no espírito do pequeno a idéia de que o
mundo lhe pertencia por direito supremo. De fato, não se reconheceu
em Alexandre influência mais perdurável nem mulher mais amada que
sua própria mãe, ainda que, com o incremento de suas riquezas e
diante do somatório de reinos que engrandeciam sua coroa, ela
praticasse sua crueldade por meio de procedimentos cada vez mais
sanguinários, o que lhe granjeou uma tal quantidade de inimigos que
veio a morrer como havia vivido, sem que no final se soubesse quantas
foram as mãos que participaram de seu assassinato.
Olímpia era perita em insinuar-se como as cobras. Talvez por
isso Alexandre tendesse a preferir ataques de surpresa. Assegurava
suas vitórias ediante ataques indiretos pelos flancos e nos momentos
mais inesperados, debilitando assim seus adversários por atingi-los em
seus pontos mais vulneráveis, evitando, ao mesmo tempo, a
mortandade habitual que nas batalhas dizimava os melhores
regimentos.
Bacante apaixonada em extravagantes sessões de voluptuosidade,
sibila e intrigante poderosa, Olímpia significaria muito mais que um
vínculo conjugal do Épiro com o filho de Amintas1, e seria muito mais
que uma rainha circunstancial da Macedônia que conseguira impor-se
na corte, apesar de ser a sexta na lista de casamentos reais. Antes de
desposá-la, Felipe sucedeu no trono a seu irmão mais velho, Pérdicas,
quando este, por defender os direitos portuários e a soberania
macedônica, perdeu a vida junto com quatro mil soldados seus em
combate contra os invasores ilírios comandados pelo rei Bardílis, em
uma matança descomunal. Desde então aquela carnificina foi chamada
"o desastre bélico", e a data e os pormenores foram inscritos em
tábuas de pedra, para que ninguém esquecesse do acre sabor da
derrota.
Homem indubitavelmente afortunado, não era a Felipe, porém, que
correspondia a coroa, mas aos filhos de seu irmão; mas os sucessores
eram demasiado pequenos quando ocorreu a tragédia, e Felipe era
demasiado poderoso para ignorá-lo ou para desperdiçar suas qualidades
de comandante em uma situação tão aziaga. Em casos como este, em
que os poderes mudavam de rumo e o sangue instaurava filiações
inesperadas, o mundo estremecia de expectativa e todos ficavam
pasmados ante o sinal do destino. E o destino, pelo menos nesta
eventualidade, inclinava-se a favor da valentia, do arrojo e do afã de
conquista; a história chegava finalmente à margem de sua súbita
expansão, ao lance mais vigoroso, uma vez que a Macedônia, de tribo
batalhadora e vizinha rural da deslumbrante Grécia, elevava-se agora a
símbolo de uma época e de um poderoso império que situava a
pequena cidade de Aegae como nova capital, que não somente
substituiria secularmente a Pela, mas tornar-se-ia necrópole real e
sede de importantes banquetes com monarcas e embaixadores.
Ainda que Teopompo tenha dito que a Europa nunca havia
produzido um homem como Felipe, tanto em Pela como na corte de
Aegae, confirmou-se que sua esposa Olímpia não lhe era em nada
inferior, nem sua flama sucumbia ante o brio soberano. Felipe era
Felipe, um universo em si mesmo, combativo como ninguém, respeitado
da Grécia à Sicília, mas ao se defrontar com ela sua fama se ofuscava, e
quando estavam a sós parecia apenas a luz de um pavio junto a
semelhante fogueira. Pois que Olímpia era uma chispa capaz de
abrasar o próprio Olimpo, uma cobra à espreita da vítima e, quando se
deitava com um homem rústico que lhe houvesse resistido, era carícia
e furor que se deslocava pelo amante como água sobre a rocha.
Prová-la, diziam os mais impetuosos, era façanha maior e mais
prazenteira que os deleites do poder e até mesmo superior às vitórias
bélicas. Sua pele desnuda parecia crepitar e, versátil como era, cheia
de contrastes como as felinas que da sensualidade saltam à fúria, ela
intercalava calmaria e resplendor, momentos de fulgor e plácidos
passeios ao luar. Se algum incauto simplesmente a roçasse ou
interrompesse seus rituais amorosos, enchia-o de insultos e o
expulsava a pancadas. Caprichosamente perdoava, distendia-se e
reinventava o ritual segundo as normas mais aleatórias. Invocava Eros
com as coxas tensas e erguia os mamilos como dois pequenos fachos
noturnos. Lenta, muito lentamente se fundia e, por um instante, seu
rosto se iluminava. Quão formosa era então Olímpia, como encantava!
Desde seu íntimo emitia um sonido estranho, entre o ronronar e o
sussurro. Inebriante era a sua respiração e o suor que sulcava seu
corpo, fazendo-a resplandecer. Pouco a pouco ia engrossando a voz e a
elevava como as espiras de um caracol para que o mundo se
assombrasse com o canto sexual da sibila.
De índole noturna, Olímpia se inclinava para o mistério e só
amava os desafios, aquilo que se julgava inexeqüível ou destinado
apenas aos heróis. Era temida e exercia essa atração característica dos
poderes malignos, um fascínio que a história transformou na marca do
abismo.
Essa era a secreta potência de Felipe, seu alimento prodigioso;
dali provinha talvez o vigor que o converteria no protagonista das
Filípicas de Demóstenes - quem, ao negociar a paz em Pela
acompanhado pelos embaixadores de Atenas, ao ver o pequeno
Alexandre recitar durante o banquete primeiro alguns versos de
Homero e depois, com um de seus amigos, interpretar uma cena de
Eurípides, diria que o filho do rei era aplicado, mas tão absolutamente
ridículo como o Margites de Homero. Também era dali, de sua atribulada
relação com a sanguinária Olímpia, a origem dos famosos acessos de
loucura do monarca macedônio e da espiral de ciúmes que, ao término
de sua vida, haveriam de reduzi-lo a sombra embriagada de sua
sombra, a um fugitivo desesperado, a um amante nostálgico do ardor e,
finalmente, a um vulgar violador de jovenzinhas, conseqüências da
insegurança que a esposa lhe despertava; não obstante, e apesar de
suas reações descontroladas, Felipe nunca se apartava demais de
Felipe nem se esquecia do alcance absoluto de seus poderes. Os gregos
podiam aborrecê-lo por seu barbarismo e até mesmo lhe desejar uma
morte humilhante, mas jamais diriam que fosse um inimigo menor ou
um contendedor simplório.
Certo é que Felipe era Felipe, o grande estrategista; mas Olímpia
era feita de fogo, tal como sua espessa cabeleira vermelha. Olímpia
possuía dons inusitados. Reluzia por baixo dos cobertores. Amanhecia
com o orvalho. Alvorecia. Seus olhos verdes queimavam, seus braços
ondulavam como serpentes e suas pisadas ressoavam em espaços
proscritos como se nas plantas dos pés levasse consigo o rumor de um
exército. Suas pupilas traspassavam a pele e arrancava segredos com
um único piscar de olhos, ou então se assenhoreava do sossego e dos
corações dos homens. Gerada com a matéria de Dionísio, em seus
sonhos mesclavam-se o espírito do Egito ancestral, a sede insaciável
das bacantes e uma indisfarçável paixão pelo enigmático Nectanebo,
herói a quem os deuses fizeram desfrutar sua intimidade para que no
mundo se soubesse do que são capazes os homens quando se juntam o
furacão e a fogueira.
Nectanebo, governante destronado de Mênfis em pleno
expansionismo persa e secretamente exilado na Macedônia, ostentava
na fronte a luz daqueles capazes de inquirir a alma. Era belo, mais
formoso que os núbios, e seu caráter temperado pela derrota dotava-o
de uma grandeza sólida, tão sólida quanto o antigo olival que admirava
ao amanhecer, e de uma ousadia característica daqueles que provaram
o raro deleite da iluminação mística. Assim era Nectanebo, diferente dos
macedônios e de todos os gregos, ardente como as regiões do Nilo e um
sedutor digno de Minos. Estudava as coisas do mundo em
concomitância às suas revelações proféticas, e preparava tintas,
beberagens e até mesmo maquinário para complicar ou melhorar a
existência, para medir o tempo ou para facilitar com papiros que
podiam ser enrolados o registro daquilo que até então era inscrito em
rústicas tabelas. Inventava remédios para doenças raras, curava febres
e, em especial, mitigava as apreensões provocadas por Eros. Dizia-se que
Nectanebo conversava com os deuses tratando-os por "tu"; que
auscultava os enigmas do pensamento e, acima de tudo, conhecia as
debilidades humanas e a profundidade devastadora do irracional sem
sentido.
Perdido o poder temporal, Nectanebo decidiu cultivar os deleites e
esquadrinhar os enigmas do tempo. O poder, pensava ele, não deve se
limitar à Terra nem depender de um trono real. O poder é um símbolo,
tão inacessível quanto as águas do Nilo; feroz e magnético como a
vastidão do deserto, e indiscutível como a capacidade de comando que
se divisa em certos olhares. Disso sabia Nectanebo muito bem, pois
reis ou escravos, sem distinção, reconheciam o poder em seus olhos;
uns, os mais modestos, porque baixavam a vista quando, sem
necessidade de proferir palavras de aquiescência, acatavam-lhe as
ordens; outros, mais graduados, lutavam frente à sua figura elegante
contra a tentação da obediência, mas querendo ou não, acabavam por
se submeter, ainda que parecesse ao final estarem agindo assim por
escolha própria. Nectanebo perdeu o domínio sobre Mênfis e sobre o
governo do Alto Egito; mas ninguém foi capaz de lhe arrancar a força
criativa nem o dom da palavra no mais sagrado vigor do verbo.
Acima da força profética dos adivinhos e interpretadores de
sonhos, o egípcio estudava os precipícios do silêncio e praticava com
maestria a arte da sugestão. Também por isso intimidava, porque sua
voz nunca estava vazia e preenchia com nomes as aflições daqueles que
o escutavam. Nectanebo falava a todos com verdade e isso causava
grande espanto. Dizia diretamente, com os olhos postos sobre o rosto
amigo ou inimigo, as coisas que os demais costumavam calar por
torpeza mental ou covardia. Ele era terrível, murmuravam as línguas,
de povoado em povoado, mas secretamente invejavam a graça com que
Amon o havia distinguido. Longe de se envaidecer de sua eloqüência,
Nectanebo considerava a linguagem sagrada. Sua palavra era somente
a ponta visível de um universo de luz, o primeiro e fraco albor de uma
aurora ainda muito distante.
Sussurrava invocações arcanas ao oferecer sacrifícios e
deliberadamente exagerava a sua excentricidade para que as
murmuradoras falassem de estranhas travessias que ele realizava
sozinho e que depois selava com as escrituras. Diz-se também que
inquiria cadáveres e que dissecava seres vivos.
Ao intuir Nectanebo no mais fundo de suas pupilas, Olímpia
soube que esse era um homem de verdade. Cada vez que ele se
aproximava, ela estremecia por dentro. Ele a farejava a distância e ela
ansiava pela respiração dele. Ela se ruborizava e ele se dispunha a
cortejá-la tal como se fosse uma donzela. Aproximavam-se por meio
das vozes, mas seus corpos tremiam por debaixo das túnicas.
Tocavam-se com as pontas dos dedos e a paixão explodia até cegá-los.
Então a fogueira se inflamava e os deuses do Egito e da Grécia se
congregavam em Pela sobre o leito da rainha.
Assim, enquanto Felipe guerreava, Olímpia se entregava a uma
vontade superior, convencida de que ia fundir em seu leito o sonho e a
realidade, a mensagem sagrada de Eros e as trevas dominadas por
Osíris.
Ele mesmo apaixonado e imbuído de um verdadeiro frenesi,
Nectanebo provava a sensação de se estar assenhoreando do universo.
Amon manifestava-se ao amanhecer, depois que ele oferecia a Rã os
sacrifícios que lhe eram devidos, e junto das oliveiras o deus lhe
revelava seus desígnios promissores. Com devoção, Nectanebo
contemplava a linha do horizonte e, lentamente, com pontual
religiosidade, desdobrava seu manto como se na envergadura estivesse
contido o resumo de sua derrota. Jurava aos deuses transformar seu
sangue em um vocabulário de nomes para que ninguém, nunca mais,
atentasse contra a memória de seu povo vencido:

Meu sangue se transformará em letra


e o Egito se elevará ante os homens
como emblema da memória;
Em troca do poder das armas,
Seu novo poder viajará no tempo
E desafiará o esquecimento...

O poder de Nectanebo era o verdadeiro poder. Aventurava-se na


luz. Por esse motivo o mundo para ele parecia estreito e sua razão se
fazia sentir tão inesgotável quanto o mistério do pensamento. Com
Olímpia a seu lado, todas as artes se entregavam a ele e sua voz se
aclarava, como se insistisse para que a palavra saísse de sua boca.
Poeta, astrólogo e matemático, decifrava enigmas, reinventava
nomes, aceitava o destino do homem e manejava as armas com
destreza. Era vingador e valente; era sábio como os sábios de então,
uma época em que se considerava a razão como substância divina e o
conhecimento como um presente de Apolo. Nectanebo era, na verdade,
diferente de guerreiros e reis, de sacerdotes e magos, e também dos
homens comuns talvez porque tivesse sido chamado a engendrar o
mais admirado e odiado dos conquistadores, o primogênito de Olímpia
e Felipe, cujo nome reinaria efetivamente através dos tempos,
transformado em símbolo.
E símbolos era o que mais possuía o singular egípcio, e ele
estava disposto a defendê-los com a própria vida. Para Nectanebo,
nada era mais importante que um sinal que, sendo o que era e sem
desgastar seu mistério, significava também o que os demais
entendiam. Por isso amava a magia e entesourava desígnios como
outros entesouram objetos. Com precisão distinguia os indícios e as
diferentes manifestações dos deuses. Ponderava a carga de divindade
que cada um expressava ao falar, ao se mover, ao orar, ao comer e ao
amar, e com rara aptidão diferenciava os diversos estados de
humanidade como se fossem estações de luz, desde os corpos opacos,
miseráveis ou insignificantes até a fogueira deslumbrante, essa
substância de Rá que Dionísio descobrira enquanto vagava da Síria ao
Egito e que prodigalizara em sua passagem, como a hera e a vida,
sempre em estado de exaltação e ao som da flauta e do tamboril.
Perito em arrancar segredos do passado, Nectanebo soube que os
magos haviam anunciado que em algum tempo futuro, mas certamente
em língua grega, o grande Amon e o deus da loucura congregariam
suas forças em um ventre estrangeiro para gerar um ser com espírito
de fogo e cabeça de leão, coroado com a hera das mênades, um mortal
que descobriria finalmente o caminho que conduz à imortalidade.
Em uma mentalidade tão ligada à simbologia, nada mais óbvio
que repetir o costume de perseguir enigmas tanto nos grandes
momentos como nos pequenos detalhes de sua própria existência.
Nectanebo decifrava até seus sonhos ou perseguia fábulas ao
despertar, como se neles buscasse a fonte de uma certa sabedoria ou
um segredo na imagem que lhe fora apresentada. Ocorre que, em uma
mentalidade tão inquisitiva, o todo e a parte eram princípio, indício ou
conclusão de uma outra realidade, à primeira vista recôndita e
inacessível, que eternamente conduz ao movimento das vozes, ao
trânsito dos nomes e à invenção de linguagens que vão criando
figurações, signos diferentes e, sobretudo, novos nomes.
Por essa invocação dos símbolos e pelo alto sentido que a voz
adquiriu durante seu exílio, Nectanebo cultivou a faculdade de
enxergar o que era invisível para todos os demais. Assim, antes mesmo
que o mais experimentado cidadão pressentisse que algo ia suceder, ele
já havia associado, conjeturado e antecipado, não o porvir, mas o rumo
mais provável da realidade. Por essa faculdade e pela graça de seus
demais atributos era não somente um monarca nostalgizado em seu
reino vencido, mas também um mago e um poeta capaz de distrair sua
saudade com outros poderes e, acima de tudo, era o eleito de Amon
para a realização de grandes empresas.
Com o passar do tempo, Nectanebo tornaria ainda mais
misteriosa sua fama por causa da inequívoca paternidade de Alexandre
da Macedônia.
Ajudado pela magia, Nectanebo purificou o ventre de Olímpia
por meio de um meticuloso ritual, e preparou seu próprio espírito
para gerar um ígneo descendente. Logo depois, ao confirmar que a
Lua, os augúrios e os sonhos estavam ao seu lado, perfumou os
cobertores com azeite de Tischepe e ordenou às escravas que
providenciassem duas fontes com maçãs do amor a fim de adocicar os
aromas da câmara real. Fez-se ungir com óleos e madeiras do Oriente
e, quando o sândalo despertou seus sentidos, isolou-se para meditar
em um lugar onde somente o trinado das aves fazia coro aos
movimentos das ramagens. Em plena solidão, apresentou oferendas ao
mais antigo dos deuses e cantou hinos ao maior dos nove, mentor de
todos os deuses e criador do sempre, das estrelas de cima, dos homens
de baixo, das árvores, dos mananciais e da verdade.
Meditou diante da caverna em que costumava ocultar
beberagens, instrumentos e ervas, e esperou a indicação do destino ao
cair do entardecer. Nada falava a respeito aos habitantes da
Macedônia, porque lhe era muito doloroso invocar a ascensão dos
persas e as crueldades praticadas por Artaxerxes contra os egípcios;
porém, a cada momento, Nectanebo nostalgizava o Nilo e as trevas de
Osíris, ansiava pelo poder de Rá e seu furor majestoso, especialmente
quando seus raios se estendiam nos primeiros albores da aurora e todos
os seres vivos se incorporavam como que trazidos de um sonho remoto e
cheio de esperança. Lutou até o final para defender seu cetro e o
diadema coroado com as duas serpentes de Buto; combateu o invasor
quando não era mais possível alcançar qualquer unidade no Egito, já
que, como lhe haviam anunciado os deuses de antanho, esse período
de tirania e de derrotas internas consumava o fim da supremacia
faraônica. Não se vislumbrava qualquer sinal no horizonte senão o que
indicava o advento de uma época em que os velhos reinos mudariam de
línguas e de deuses, de leis e de aspirações, e até mesmo de costumes
na maneira de vestir, de se alimentar e de amar.
Nectanebo, último representante de uma história que se perdia
para sempre no passado, soube que não havia regresso para os de sua
condição. Estava condenado a desaparecer na memória do Nilo. Quem
sabe as marcas de seu esplendor ficariam petrificadas em monolitos
semeados no deserto, donde perpetuariam os credos com os símbolos
de sua derrota para servir de lição e lembrar do que foram capazes os
homens ao sonharem em se igualar aos deuses. No recolhimento de seus
poderes secretos Nectanebo consumaria seu destino, não por si mesmo,
mas por meio do vigor de seu sangue. Tal foi a recompensa que, no
desenlace que levaria à sua extinção, Amon-Rá preparou ao fundir-se
com Zeus e escolher o ex-governante egípcio como portador da semente
que geraria o descendente do carneiro solar e do senhor do raio.
Pesava no espírito de Nectanebo a ausência da eternidade que
pairava sobre as paisagens de seu adorado Egito; porém, ao invocar
suas divindades mais amadas, recuperava os nomes daqueles que
velavam durante a noite para preservar o curso do calendário. Por
intermédio dos emissários de Amon-Rá soube, no recôndito de seu
templo, que não ele, mas sua semente seria eleita para consagrar a
memória de um novo reino verdadeiramente vasto e formado por várias
línguas, que uma jornada de amor envolta por fórmulas mágicas seria
como um rio que flui por entre vales, montanhas e dunas até se
fundir nas águas imemoriais. Surge daí sua dupla intenção de
seduzir Olímpia como homem e fecundá-la como deus, por atributo de
Amon, pois de seus encontros nasceria uma criança que haveria de
sacudir o teto do universo.
Concluído o ritual do holocausto, Nectanebo adornou-se com
um macio velocino de carneiro e com sandálias entretecidas de folhas
de palmeira e couro fino. Sobre a tiara branca de altas plumas que
colocara na testa deslizou os cornos dourados do barbudo Amon até
lhe chegarem às têmporas e o turbante azul representativo do faraó
divinizado. Cobriu sua túnica de linho com o manto de serpentes
bordadas e se encaminhou para render tributo ao grande Dionísio,
levando cetros de ouro e ébano nas mãos, mais seu báculo ornado. Sua
respiração era como fogo, sua chama interior erguia-se bem alto e era
digna de Amon a oferenda nupcial que, em nome de Zeus,
resguardava em um cofre de gemas preciosas. Escura como estava a
noite, contemplou mais uma vez as estrelas e, pela última vez,
recordou os mistérios de sua Mênfis remota.
Assim, ardente de amor, o egípcio adentrou-se ao leito sibilino de
Olímpia e, pouco a pouco, os amantes se entregaram ao delírio
embriagador de um vinho forte. Ela dançou em honra do arroubo
dionisíaco imitando as contorções dos sátiros, enquanto Nectanebo se
consumia de desejo. Ele a espreitava em franca luxúria, e ela se
contorcia com violência. Entre mascaradas e evoluções rítmicas a
executante agradava seu deus e, com maestria, representava um grou
em vôo, uma serpente ondulante ou um temível leopardo até
desencadear a própria loucura e cair em delírio. Mistura de luz e de
sombra, cada um oferecia à expectativa do outro não só o relâmpago
divino com tudo mais que fora aprendido em seu peculiar sacerdócio,
mas também o produto de uma paixão que não se esgotava na simples
perquirição dos sentidos. Passaram dos gestos cerimoniais e da
simulada bestialidade ao descobrimento da mais delicada
sensualidade, que ambos sabiam sagrada, até que a fadiga
encaminhava-os gradualmente ao sono para abandoná-los, estendidos
ali, em um sossego que para os dois era incomum.
Assim a cativou Nectanebo, plenamente fiel aos desígnios e aos
ditames de Eros, em períodos intercalados de frenesi, suavidade e
purificação durante os quais sobejavam estranhas danças rituais,
ungüentos afrodisíacos e vapores de ervas trazidas do Egito e da
Babilônia, onde já naquela época se praticavam cuidados e técnicas de
embelezamento do corpo. Amaram-se os dois durante vários dias e
várias noites, com a certeza de que era o deus, apossado das feições e
do corpo de Nectanebo, quem gerava no ventre da soberana macedônia
aquele que teria tão feliz fortuna.
A gestação de Alexandre está cercada de magia, de sonhos
proféticos e de indícios afortunados que comprovam como a história
reflete um caudal de imaginárias depuradas até a obtenção de um
homem, de um povo ou de um acontecimento moldado à altura do
mito. Fruto do rio de vozes e figurações sobrepostas à memória que se
ampliou com seu nome, Alexandre o Grande é, na realidade, a sombra
decantada de um prodígio anunciado e o conquistador de um mundo
reinventado pelas lendas. Como acontecera com sua mãe em seu
tempo, também ele se transmutou em uma potência desconhecida e,
acima das máscaras de sua índole batalhadora, ficou reduzido a um
enigma até hoje não decifrado.
Sem dúvida Nectanebo soube através dos oráculos que se
cumpririam folgadamente os proclamas de sua grandeza. O que não
suspeitou, apesar de seu empenho em educar o menino desde a mais
tenra infância, é que seu filho, que passaria à história como
descendente de Olímpia e de Felipe, lhe causaria a morte ao jogá-lo em
um poço, talvez por acidente. Desse modo, e também ao se envolver
depois no assassinato do próprio Felipe, Alexandre da Macedônia
ascendeu ao trono já com a marca da tragédia na fronte.
Semelhante aos relatos das origens de certos deuses, Alexandre o
Grande nasceu de um parto confuso em um lugar impreciso dos Bálcãs.
Reflexo exato dos delírios de Olímpia e das convulsões que auguravam
as reacomodações políticas do mundo, Alexandre foi o símbolo
antecipado de sua própria grandeza mesmo antes que sua mãe
celebrasse suas bodas com Felipe da Macedônia. Ela sonhara que uma
coluna de fogo nascia de seu ventre, tal como as chamas efetivamente
determinaram o signo de seu destino.
Depois, influenciados outra vez pela paixão materna e pela
dúvida de certa paternidade misteriosa, ainda que vinculada a
Dionísio, crescem com ele a fábula do conquistador invicto e o
emblema universal do poder.
Acontece que desde muitos anos e tribos passadas já se sabia
que o filho de Olímpia seria o escolhido para fundar uma nova era e
que, com suas façanhas, viajaria o poderoso símbolo da máscara
dionisíaca, ao qual sua mãe não somente rendeu tributo como
consagrou sua vida desde sua mais tenra infância.
Em uma época de superstições e de terríveis enfrentamentos
bélicos era impossível conceber um destino sem a influência do fado ou
um homem virtuoso, no sentido grego do termo, sem a proteção divina.
Um homem, um verdadeiro homem, não se entregava à bebida, por
exemplo, somente para se embriagar em um ato da mais óbvia
vulgaridade, ainda que em seu sangue habitasse a intenção mais
enlouquecedora, mas convencionava a explicação de sua conduta,
todas as suas atitudes e até mesmo o desejo mais selvagem a supostas
orientações supremas, assim como ao guerrear ou ao amar justificava
sua valentia ou suas derrotas mediante o que fora determinado pelas
entidades olímpicas.
Nada que se movesse por baixo do teto dos céus escapava ao
controle da vontade suprema. Menos ainda em se tratando da gestação
dos heróis ou de seres agraciados por suas virtudes. E desde o
momento em que os augúrios o anteciparam e a magia contribuiu para
propagar sua lenda, Alexandre tornou-se herói, talvez o último da
estirpe homérica. Suas façanhas e até mesmo seus caprichos mais
desordenados marcavam as diferenças entre o fim do tempo mítico,
regido unicamente pela vontade dos deuses, e o começo de uma época
entre nós denominada histórica, desde que o homem decidiu impor
sua razão acima dos poderes supremos.
Foi precisamente através de Olímpia, sua mãe, que se
congregou o caráter de três épocas que haveriam de fundar a
civilização moderna. Por meio delas, inclusive, se conservaram indícios
trágicos no pensamento e nos temores que caracterizaram o
conquistador desde que os presságios anteciparam sua gestação e sua
morte. Isso se notava nos privilégios conferidos a adivinhos e
sacerdotes, em todas as suas possessões, pela fé religiosa rendida ao
destino e que, segundo ele, representava a vontade do Olimpo.
O símbolo mítico, dominante em sua biografia, acompanha-o não
somente ao longo da vida, mas se prolonga muito além de sua morte
através dos relatos descomedidos de suas primeiras testemunhas e nas
palavras que celebravam sua glória por meio de contos inverossímeis de
suas façanhas. Seu temperamento ígneo não é, certamente, uma
casualidade nem uma característica destoante do ambiente de ódio e
vingança que exasperava suas ações no exercício do poder. Ele era
filho dos augúrios e da ampliação da coroa de Pela porque assim fora
anunciado pelos profetas de Amon, no oráculo de Siwa, após
Alexandre ter viajado pelo deserto da Líbia em companhia de seus
marechais.
É óbvio, além disso, que Eros reprimiu Felipe com sua
languidez e que em Olímpia exacerbaram-se os poderes de gestar e de
produzir não apenas um descendente excepcional, mas atitudes tão
incomuns como sua maneira de celebrar Dionísio durante orgias muito
mais intensas do que era usual em sua época. Profissional da
impiedade, a verdadeira Olímpia, aquela que nos legou a história, sabia
se ocultar com máscaras, pois se apropriou do êxtase dionisíaco talvez
para carregar na própria alma, purificando-o e transformando-o
mediante oferendas rituais, o legendário crime das mulheres
denominadas mênades, suas antepassadas míticas no culto frenético
que costumavam praticar algumas sacerdotisas em honra de Dionísio.
Seja qual for sua verdadeira origem, prevalece na esposa de
Felipe a insígnia do fogo de Sêmele, filha de Cadmo e Harmonia, amante
de Zeus que concebeu Dionísio. Diz-se que Sêmele, antes do parto,
rogou ao deus que se lhe manifestasse em todo o seu esplendor e morreu
abrasada pelo fogo divino que ela mesma acendeu. Foi esse mesmo fogo
que também inflamou o leito de Olímpia quando esta concebeu
Alexandre e que nutriu sua crueldade como soberana até que ela
mesma fosse reduzida a um corpo despedaçado em meio a um charco de
sangue. Trata-se, portanto, da mesma chama que, somada ao furor,
haveria de convertê-la na maturidade em uma mênade tão sanguinária
e terrível que se chegou a afirmar que não havia quem não lhe desejasse
uma morte à altura de suas atrocidades, como finalmente lhe
sucedeu.
Uma fábula remota assevera que Felipe se enamorou de Olímpia
não no Épiro, de onde se diz que ela era originária, mas muito antes,
no templo de Samotrácia, onde se apaixonou pela menina órfã que só
tinha o irmão Arimbas por família. Acordado o matrimônio com o tio e
protetor dos meninos, Olímpia e o rei da Macedônia se reuniram no
leito nupcial Ele estava encantado com seus cabelos vermelhos e com o
perfume de jasmim que se desprendia de sua pele por baixo da túnica.
Os adivinhos já haviam advertido de que essa criatura era dotada de
algum dom fora do comum, pois tanto seus olhos verdes como seu
modo de andar enfeitiçavam a todos. Falava com uma firmeza
incompatível a sua condição feminina, tomava decisões como se fosse
um homem e, segundo o depoimento dos melhores guerreiros, nunca
demonstrou a menor covardia.
Ao se deterem um diante da outra e se roçarem de leve durante o
pacto cerimonial, caiu um raio sobre o ventre dela, precedido por um
estrondo. Todos se recolheram em atitude suplicante, exceto aqueles
que estavam próximos da porta, que saíram gritando, espavoridos.
Olímpia, ao contrário, permaneceu ereta diante do clarão, senhora do
poder e dos sinais propiciatórios. Diz-se que chegava a tocar a flama
com as mãos, tal como se quisesse apossar-se de suas virtudes
recônditas. Murmurava frases que talvez fossem religiosas enquanto
seguia com o olhar o curso ascendente das labaredas. Logo depois,
para assombro das testemunhas que ainda ignoravam do quanto era
capaz, bendisse o mistério da própria potência e se apresentou perante
o esposo com toda a majestade de uma rainha. Em conseqüência da
queda dessa mesma centelha multiplicaram-se brasas ao seu redor, mas
prodigiosamente, sem que lhe queimasse sequer o vestido nem que se
abrasasse a lenha na lareira, o fogo sagrado se dissipou como veio,
com um estalo olímpico.
Consumado assim o matrimônio, os esposos partiram para a
Macedônia e ela assumiu desde então sua natureza ígnea. Vadia
durante a noite, entronizada durante o dia, Olímpia começou a
desfrutar o contraste entre o temperamento dócil, durante o ritual de
libação, e o delírio dos transes em que, tal como um jorro de vinho, se
lançava sobre as chamas pelo simples prazer de fazê-las crescer com
seu próprio furor. Eram os meses da iniciação, quando Dionísio
arrebatava seu espírito e lhe mostrava as perdições dos prazeres
recônditos. Não deixou de provar qualquer excesso, tampouco existia
em toda a região pessoa ou ação que pudesse escandalizá-la. Não por
acaso Alexandre, anos depois, na Trácia, faria correr o vinho puro
sobre o altar de Dionísio para fazer uma oferenda à força ardente e,
aproveitando o ensejo, para reconhecer sua própria raiz efervescente
através da personalidade materna.
Antes de seu nascimento, como era de se esperar, ocorreram
vários presságios. Um deles, entre os mais comentados, manifestou-se
durante um sonho de Felipe em que ele, com suas próprias mãos,
enclausurava cuidadosamente o ventre de Olímpia e, no momento em
que o selava, ficou marcada na pele a cabeça de um leão. Tal indício, a
princípio, segundo os leitores de sonhos, não parecia ser afortunado
porque, ao despertar Felipe, este sentia tal angústia que mal conseguia
balbuciar. Suspeitava de sua carga nefasta e não deixava de repetir a si
mesmo as infidelidades de Olímpia, mas ainda assim quis reverter a
mensagem a seu favor, muito embora o aguilhão da dúvida já estivesse
de antemão cravado nas licenciosidades da sibila, e ele preferiu aceitar
a versão de que seu sonho lhe anunciava o nascimento de um
descendente e herdeiro excepcional.
Os sonhos eram considerados revelações do mais alto valor,
pois se acreditava que as noites facilitavam a manifestação de poderes
superiores; assim, Felipe consultou um por um a todos os
intérpretes, mas longe de se dissipar sua incerteza, esta até mesmo
piorou. Alguns dos profetas efetivamente interpretaram o sonho
como um sinal de infidelidade e lhe recomendaram maior vigilância
sobre a intimidade conjugal, sobretudo quando saísse em
expedições para fora da Macedônia, a fim de evitar que Olímpia se
atrevesse a fazer passar por seu um descendente alheio. Aristrando
de Telmiso, ao contrário, bem mais otimista ou talvez menos
informado sobre as veleidades da soberana, augurou o privilégio de
um grande nascimento considerando que, segundo ele disse, o vazio
não é selado: selamos somente um recipiente já cheio. Se Felipe em
seus sonhos selava o ventre de sua esposa, isso significava que Olímpia
já se encontrava grávida de um menino feroz e valente, eleito pelos
deuses para a realização de uma missão superior pois, como um leão,
se anunciava desde suas origens um rei valoroso, que se imporia à
vontade de seu pai e monarca, mesmo contra seus próprios desejos.
Esse sonho demarcou o início do desfile de antecedentes mágicos
que cercaram a biografia clandestina de Alexandre da Macedônia; a
partir dele foi sendo empreendida essa aventura mítica e divinatória
que atravessaria sua vida em meio a uma rica sucessão de presságios
que conduzirão, invariavelmente, às profundezas de uma religiosidade
desaprumada com a qual se deslinda o verdadeiro poder de sua mãe
Olímpia.

1Felipe II e Pérdicas eram filhos de Amintas II, aliado de Esparta, que reinou de 396
a 370 a.C. [N.T.]
Estatira

Perturbadora da cabeça aos pés, a mulher de Dario, rei dos persas, era
tão bela que se acreditava ter sido moldada diretamente pelos deuses.
Era a mais perfeita mulher da Ásia, segundo se dizia, e o próprio
Alexandre Magno o comprovou quando a capturou em Issus e a
manteve cativa junto com a mãe e os filhos do poderoso monarca rival.
No devido tempo se soube que estava grávida, mas nem sua prenhez
nem sua hesitação diminuíram a perturbação que causava naqueles
que, por sua vez, não resistiam à tentação de estabelecer odiosas
comparações com Barsines e Parisatis, donzelas ainda, talvez geradas por
Dario no ventre da própria Estatira, ainda que se creia terem nascido
de outra de suas muitas esposas legítimas. A descendência do rei
costumava ser contada em dezenas e até centenas de filhos de cujas
alianças matrimoniais provinha o costume de repartir generosamente
cetros e terras conforme as pressões locais, que costumavam ser
aliviadas com o estreitamento de alianças políticas alicerçadas em
uniões de sangue real.
Depois da batalha de Issus e antes de enfrentar, no célebre cerco
de Arbelas, ao exército persa - que no dizer dos cronistas superava com
grande vantagem, tanto em número como em qualidade, as tropas
macedônias -, Alexandre mandou tratar as cativas com a maior
reverência e lhes fornecer o que havia de melhor em suas luxuosas
tendas, ainda que alguns eunucos a serviço das damas persas tenham
conseguido fugir durante a debandada dos derrotados. A respeito dessa
batalha, uma das mais renhidas entre os dois monarcas, os cronistas
escreveram que os reis nunca chegaram a lutar corpo a corpo; mas que
nela tombaram cerca de trezentos mil bárbaros, enquanto morreriam
somente uns cem soldados do lado grego principalmente dentre os
chamados de Amigos do Rei, isso porque Alexandre dispôs seus
arqueiros ao longo de uma linha que cobria o flanco oposto ao curso do
rio, estratégia que fez com que os persas surpreendidos fossem
empurrados às águas caudalosas do rio, atirados contra as lanças
eriçadas [da falange macedônia] ou se deparassem com a oportuna
astúcia da cavalaria que atacava por onde menos se esperava.
Maltratado, alternando esperteza e temor, e graças às mudas
previamente estabelecidas em que trocava seus cavalos cansados, Dario
pôde empreender fuga até a Média, resguardado por seus guerreiros,
mas sem o aparato real que constituía seu séquito e deixando para
trás o escudo e o arco imperiais que, pela pressa de salvar-se, ninguém
se atreveu a resgatar. Em Arbelas, Alexandre também se apropriou de
elefantes e de carros de guerra em tão grande número, que os
adivinhos atribuíram ao eclipse lunar ocorrido no mês de
memacterion1 o sinal da preferência do destino por quem logo haveria de
cingir sua fronte com a coroa mais cobiçada do universo.
Não obstante seu poder de desposar ou reduzir Estatira à
escravidão, segundo lhe garantia o antigo direito do vencedor sobre os
cativos, Alexandre conteve seu impulso e preferiu a glória à satisfação
de um desejo; longe de submetê-la, tratou-a com toda a reverência
devida a uma rainha. Sua pele era suave como os aromas enfeitiçantes,
e ostentava a graça que somente uma persa adquiria por atributo
supremo. Havia quem chorasse ao vê-la, enquanto outros preferiam
morrer a seguir padecendo sob o aguilhão do desejo que os acossava
simplesmente por contemplar a vivacidade de seus olhos ou a
brancura finíssima de suas mãos manicuradas pelos eunucos. Era
famosa a elegância das mulheres medas, ainda que, ao se fundirem os
reinos da Média e da Pérsia imperial, agregassem a suas qualidades a
harmonia da dança e a delicadeza elaborada com que eram educadas
em seus haréns.
Muitos dos persas mais abastados, suspeitando a derrota ou,
pelo menos, intuindo a avançada helênica, enviaram de antemão suas
bagagens e mulheres para Damasco, na Síria, onde Dario também
colocou em segurança a maior parte de seus tesouros. Desse modo,
nos cofres de seu exército não se encontraram mais que uns 3 mil
talentos2, ainda que fosse comum lançar-se à guerra com pompa e
magnificência. Pouco depois, o macedônio recuperou os tesouros
escondidos por intermédio de Parmênion, o que lhe permitiu repartir o
botim entre generais e capitães, segundo seus méritos e por hierarquia
de nobreza.
Ao tomarem conhecimento de que o manto imperial, a tenda, o
escudo e o arco de Dario estavam em posse de Alexandre, as
prisioneiras romperam em prantos e rasgaram suas vestes em sinal de
luto, como se ele já tivesse morrido, motivo pelo qual o vencedor
mandou imediatamente um de seus principais ajudantes de ordens,
por nome Leonato, comunicar em cada uma da tendas por elas
ocupadas que não somente Dario continuava vivo e empreendera a
fuga, mas que poderiam continuar usando seus adornos régios, seu
nome dinástico e os serviços da criadagem real, não obstante seu
cativeiro. Ao próprio grande rei Alexandre mandou dizer, por intermédio
de um de seus numerosos e singulares correios, que, se quisesse
recobrá-las, deveria se apresentar perante ele em pessoa, prestar-lhe
vassalagem e reconhecê-lo como o único governante da Ásia e dono de
todas as possessões que outrora eram suas.
Fosse em tempos de guerra ou de paz, as mulheres da nobreza
persa viajavam em carros faustosos, com suas jóias, mobiliário e cofres
entalhados e engastados com pedras preciosas, além de uma
verdadeira coorte3 de escravos e protegidas por uma escolta dos
chamados "cem mil imortais", uma tropa de elite que conservava
sempre o mesmo número de homens, já que imediatamente se
incorporavam outros em substituição aos mortos ou feridos. O costume
de se apossar das mulheres com as insígnias de sua fortuna e
acompanhadas de todos os seus descendentes deu origem à
mestiçagem que haveria de se elevar a símbolo de tolerância, e se
converteria em um dos princípios mais perduráveis de conservação dos
usos e costumes pátrios.
Era só porque Alexandre trazia em suas veias matéria divina
que ele continha seus acessos de ardor perante Estatira. Não
acariciava o vestido entremeado de fios de ouro que ondulava sobre
seus seios, nem se deleitava aspirando os regalos secretos que sugeria
seu comportamento treinado para agradar; tampouco se atrevia a tocar
suas sapatilhas de seda, nem tentava embriagar-se com o fragrante
sândalo de sua cintura. Ao contrário, esmerou-se na vigilância da honra
da rainha persa para engrandecer por meio dessas ações sua fama de
grego e de civilizador, o que facilitava as rendições dos reis bárbaros,
alegando que, sendo ele mesmo um rei e superior ao que havia caído em
desgraça, considerava-se incapaz de humilhar os parentes do soberano
derrotado, ainda que, durante suas noites mais agitadas, se imaginasse
enlaçado pelos cabelos de Estatira em longos sonhos orgiásticos.
Agora sabemos que, na realidade, a renhida epopéia asiática
mascarou o escasso interesse que o general macedônio geralmente
demonstrava pelas mulheres. Como tantos seres fugazes, Estatira
coincidiu com um pestanejar da história que a fixou na cronologia
alexandrina por causa de sua beleza Desapareceu da narrativa
juntamente sua sogra, com as filhas e filhos de Dario, com a carga de
baús e de jóias, com seu séquito avultado e os dois ou três eunucos
comedidos que lhe aliviavam a solidão durante o tempo que
permanecia nos acampamentos reais, até que finalmente veio a morrer
de parto, talvez em seu castelo real de Susa onde, sem glória nem
façanhas concluiu seu trânsito pela memória persa. Quando, em meio
a excessivas demonstrações de luto, chegou um eunuco ao refúgio
onde se encontrava o monarca fugitivo trazendo-lhe a triste nova da
morte de Estatira, chorou Dario e choraram as carpideiras e sua corteja
reduzida, entre murros no peito, esfrega punhados de areia nos rostos e
arranhões nas faces. Foragido como se achava, escondendo-se entre as
planícies e as montanhas da Bactriana, Dario teve pelo menos o
consolo de saber, por intermédio de testemunhas de confiança, que
sua mulher partira deste mundo sem ter sido maculada por seus
captores; que recebera da parte de Alexandre um tratamento de rainha
e que tantas foram as atenções que este lhe prestara que ele não
guardou rancor pelo macedônio, ao contrário, bendisse-o por sua
nobreza, ainda que ele o houvesse privado de seus carros de guerra, de
sua família e de seus tesouros, apesar de ter-lhe despojado, de tomar-
lhe os cetros, a fama de grande guerreiro e a glória imperial.
Calístenes assegura que Estatira efetivamente morreu de parto,
ainda que não na segurança do castelo de Susa, mas ao término da
batalha de Arbelas, pouco depois de ser capturada. Salvo por alguns
detalhes congruentes com o comportamento macedônio de respeitar a
nobreza das mulheres dos vencidos, a história não registrou os
relacionamentos mantidos por Alexandre com os parentes do rei
persa até os acontecimentos transcorridos depois de seu regresso da
campanha da Índia, em 324 a.C, durante os meses imediatamente
anteriores à sua morte e pouco depois de visitar o túmulo de Ciro
quando, animado por sua idéia de unidade imperial, organizou as
chamadas "bodas de Susa" com a intenção de estabelecer laços de
sangue entre gregos e persas para assim assegurar a fusão de seus
interesses mútuos, como se as duas culturas se tivessem desposado
por virtude da tolerância.
Com luxo e solenidade, seguindo os costumes da região e sem
ofender os deuses locais, Alexandre celebrou seu matrimônio e o de
seus oficiais e governadores mais próximos, mantendo um estrito
apego à hierarquia e ao novo poder que já se calcava nas leis gregas. Ele
desposou Barsines, filha mais velha de Dario, e depois a mais nova,
Parisatis, igualmente formosa, ainda que se saiba que sua única
descendência proviria de Roxane, uma jovem bactriana com quem já se
havia casado anteriormente. A Heféstion, seu jovem amante e oficial de
maior confiança, Alexandre designou Dripétis, também filha de Dario e
irmã legítima de suas próprias esposas, porque queria que os filhos de
seu amigo mais fiel fossem também seus sobrinhos. A Crateras
entregou Amastrines, sobrinha de Dario, que havia compartilhado o
cativeiro das mulheres nobres na província de Sogdiana. A Pérdicas
sorteou Atropátis, filha do sátrapa da Média, região ainda poderosa e
que lhe despertaria maior cobiça. Artacamas e Artonis, filhas de
Artabasso, um dos irmãos de Dario e talvez o mais destacado por sua
valentia e senso político, foram dadas em casamento respectivamente a
Ptolomeu, futuro rei do Egito, e a Eumenes, o cronista real, o que
confirma a intenção de igualar as qualidades do comando e do
pensamento na câmara conjugal. A filha mais jovem do príncipe
bactriano Espitamenes foi destinada a Nearco, o navegador que
percorrera o rio Indo e autor de fábulas memoráveis; as demais, no total
oitenta donzelas da nobreza persa, em nada desmerecidas frente às
outras, foram repartidas com eqüidade entre os mais ilustres gregos,
tessálios e macedônios sob o juramento de honra de que defenderiam
como própria a nova pátria que deveriam gerar em seus ventres.
Comenta Aristóbulo que, durante a cerimônia, foram dispostos
assentos para cada consorte conforme o costume dos persas, e que
logo após o banquete os homens conduziram suas esposas para se
assentar a seu lado e celebrar as libações rituais em taças de ouro,
trocando promessas em favor da felicidade mútua; que primeiro as
mantiveram à direita e as beijaram em sinal de harmonia, repetindo
o que o possuidor de todos os cetros da Ásia já fizera com suas duas
noivas. Depois os esposos se retiraram a fim de consumar suas bodas
em palácios e câmaras suntuosamente adornadas. Alexandre
presenteou-lhes com generosidade; além disso, acreditando que assim
fortaleceria os laços sobre os quais pretendia estabelecer sua política
de governo, ordenou que os mais de dez mil macedônios que
formavam a guarnição de Susa se unissem também a mulheres
asiáticas e fundassem famílias dignas de sua memória e de suas
aspirações superiores.
Não haveria melhor maneira de enriquecer suas conquistas e de
concretizar um sonho imperial, insistiu Alexandre, do que unir no
leito e por meio de uma procriação consagrada o melhor dos povos, a
fim de prolongar o saber dos filhos de seus filhos durante gerações e
assim perdurar seu legado através dos tempos como uma poderosa
força criadora, enraizada na sabedoria de Atenas, no vigor macedônio
e na grandeza já derrotada da célebre Babilônia.

1Mais exatamente maimakterion, o quinto mês do ano, correspondendo mais ou


menos ao período de 23 de outubro a 24 de novembro. [N.T.]
2 Unidade de medida de peso e moeda corrente na Antigüidade Clássica. [N.T.]
3 A coorte era uma das dez divisões de uma legião romana, formada por
aproximadamente seiscentos legionários. [N.T.]
Sisigambis

A notícia da morte de Alexandre Magno correu por toda a Ásia com o


tom espantoso de um mau agouro. Ensombreou a Babilônia, Pela e
Mênfis. Navegou pelo Eufrates carregada de calamidades, de temores
expressados nas mais diversas línguas e de crimes que se iam
somando a focos de rebelião que logo explodiriam em guerras civis. O
emblema funerário elevou-se sobre montanhas inescrutáveis e se
expandiu pelo deserto mediante sinais que se espalhavam no
horizonte. Quando não se propalavam as vozes de aldeia em aldeia, as
próprias aves levavam consigo o rumor funerário para apregoá-lo nas
cornijas dos templos como recados de um deus. Quem não imaginasse
um desastre no país ou no governo, pressentia uma hecatombe, e os
adivinhos anunciavam revelações a seu bel-prazer. A notícia era tão
impactante que dava ocasião aos mais aguerridos para tramar assaltos
ao poder nos domínios imperiais ou ratificar antigos poderes de mando
em áreas desprotegidas pelo exército, até tornar-se fonte de mexericos
nos haréns.
Foi assim que tiveram livre curso os pormenores de sua agonia e
das acirradas disputas em torno da tiara imperial até chegar aos
ouvidos de Sisigambis o aviso de que o monarca exalara seu último
suspiro. Ainda não se esfriara o corpo do soberano quando a mãe e os
demais parentes de Dario começaram a pranteá-lo com genuína aflição
e sem dissimular seus temores pelo destino de suas famílias perante
as conveniências de um governo que havia começado a se desintegrar.
Agora as mulheres recém-desposadas em Susa e seus filhos
sobreviventes ficariam sem resguardo nem governante justo; talvez se
reduzissem a uma ruína esquecida, mera sombra de um passado
abolido, cônjuges sem o amparo das leis recém-instituídas ou de
guerreiros nos quais pudessem confiar. Seu futuro, nefasto por
qualquer lado que se olhasse, era pressentido como tão incerto quanto
os sonhos de mestiçagem unificadora que levava consigo para a tumba
o mais renomado dos conquistadores.
Sisigambis trazia na memória o jugo dos caídos à custa de
crimes e injustiças que se multiplicavam ao redor de um trono vazio,
enquanto que em seu coração suspeitava as perseguições que não
tardariam em repetir as crueldades que julgava abolidas. E se os deuses
davam as costas àqueles que podiam defender-se sozinhos, esgrimindo
suas próprias armas, nenhuma esperança se vislumbrava para aquelas
guardiãs da antiga nobreza da Pérsia que, graças à generosa
compreensão de Alexandre, puderam sobreviver cheias de honras e de
dignidade. Na Ásia se respirava um tal ar de desequilíbrio que
Sisigambis pôs-se a gritar pelos corredores do palácio que aqueles que
restavam de sua linhagem permaneceriam cativos para sempre, entre
muros tingidos do sangue da antiga e da nova raça. Abandonadas e
viúvas em sua maioria, apesar de sua juventude, as grávidas
continuariam gestando em vão a estirpe mais miserável do universo.
Um sonho sem deuses, um reino sem guia, uma mãe que duas
vezes esteve condenada a verter sua angústia sobre um mesmo manto
imperial. Em sua tristeza não havia espaço para suportar outro cadáver
amado. Ainda chorava o passamento de Dario, filho de seu sangue, e a
essa morte juntava-se agora a do escolhido de Amon e Zeus para
resguardar o passado e seu porvir. Plangente por Dario, não via em
Alexandre um inimigo, mas um portador de bondades em um novo
reino ao qual ela havia se incorporado como prisioneira. A velha
lamentava-se aos gritos por sua pátria e por sua estirpe. Retalhava suas
roupas, se arrancava os cabelos com lastimosa aflição ou se arranhava
as faces com punhados de areia, como se com isso pudesse diminuir o
pesar de sua alma e a certeza de que estava predestinada à fatalidade.
Soluçava até perder o fôlego e se contorcia no chão, suplicando aos
fados em grego e a suas próprias deidades em outras línguas para que
também levassem sua vida, que não a deixassem sofrer a experiência de
ser mais uma vez despojada. Sua perda não era ordinária, mas
representativa dos maus bocados que o acaso costumava reservar às
maiores vítimas do poder, às mulheres e sua prole, em geral recolhidas
nos haréns e sobre as quais recaíam todos os abusos da abjeção.
De tão inchados, cabia em seus olhos toda a tristeza asiática. Já
não derramava lágrimas, mas o pesar de uma genealogia subtraída às
leis e aos bens da fortuna. "Casta desnuda do tempo, herança
desventurada, ventre infeliz o meu, o de minha mãe e o de minha
avó... agora também se maculam os ventres de minhas filhas e netas.
Somos o sangue maldito, o rosto da desesperança, a raiz da dor, o
alimento dos funerais." Nada restava para ela e seus filhos neste
mundo, nada, porque seus descendentes vivos estavam marcados pelo
infortúnio de seus antecessores e até mesmo aqueles que estavam por
nascer levariam na fronte o selo de dois monarcas perdidos e de uma
mitra tão cobiçada quanto causadora de lágrimas inesgotáveis. Pela
mesma tiara choraria a mãe de Ciro em seu tempo, assim como as
mães de Xerxes e de Artaxerxes e as dos outros Darios traspassados
pelo aço ou derribados pelo veneno; tantas mães, filhas, irmãs e esposas
a cujo desfile sombrio juntavam-se agora Dripétis, Barsines e Estatira, à
frente das dezenas de desposadas em Susa com a esperança de fundar
uma ordem pacífica. Sisigambis clamava agora não só por seu filho
assassinado, mas também porque a enfermidade lhe tirara seu único
protetor. Chorava a realidade que se apresentava perante suas netas e o
fim de sua única certeza.
A seu lado Dripétis, viúva recente de Heféstion, estampando no
rosto os estragos do próprio sofrimento, recrudescia sua dor com o
desconsolo adicional de suas irmãs recém-casadas com Alexandre e agora
também viúvas. O desassossego das mulheres aumentava por tudo
quanto pressentia para elas a avó, agora que não tinham mais ninguém
para velar por sua subsistência. E Sisigambis apertava em seu coração a
desgraça de uma família inteira, a derrota de seu país, a incerteza de
um continente sem rumo, a iminente divisão de um reino à deriva, a
sanha que somava o poder vingador de seus próprios deuses à tragédia
lançada sobre sua pátria pelos costumes dos gregos.
A tristeza por Alexandre reacendia dores passadas, sofrimentos
recentes, exéquias intermináveis. Sisigambis nasceu com o sinal da
morte na testa. Primeiro perdeu Dario da maneira mais cruel, depois
Oxíatres e o caçula de seus filhos varões; em seguida sua nora
Estatira, durante o cativeiro em Arbelas, além de cunhados, sobrinhos
e irmãos derrubados pelas mãos dos gregos nas mais cruentas
batalhas. Agora tinha de presidir ao duplo funeral de Heféstion e
Alexandre, heróis amados e esposos de suas netas, que jamais
conheceriam a gravidez nem a segurança conjugal. Quem haveria de
cuidar das meninas? Onde encontrar um segundo Alexandre, outro
eleito para manter e ampliar o reino arrebatado sobre seu féretro? Mais
uma vez cativas, outra vez prisioneiras; de novo o reino estava vencido
e outra vez surgia o espetáculo de sangue ao redor dos tronos da Pérsia.
A quantas mulheres como ela e destino reservava um tal cúmulo de
infortúnios? O macedônio fora generoso com elas após a morte do
grande rei; mas agora não haveria sequer quem se interessasse em
contemplá-las. Nenhum marechal as protegeria.
E chorava a velha entre espasmos sem lágrimas, pois a morte
desperta uma certa memória lúgubre para que toda a dor se congregue
em um alarido de vulnerabilidade. Assim recordou também Sisigambis
os seus oitenta irmãos degolados num mesmo dia por Ochus, o mais
cruel de todos os governantes da Babilônia, ele também pai do mesmo
número de filhos homens que fizera sacrificar numa única jornada
para satisfazer sua ambição monárquica, eliminando seus sucessores
mais próximos.
Dos sete filhos que tivera, somente um restava a Sisigambis. A
morte levara todos os outros, sem a menor compaixão e da maneira
mais cruel; inclusive Dario, a quem ninguém podia deixar de admirar
de tão formoso que era, sobreviveu três dias à brutal traição para que
fosse mais agudo seu sofrimento, mais infame seu assassinato, mais
dilacerantes as punhaladas contra ele desferidas.
A anciã arrolava o escuro destino de seus parentes. Um mais cruel
que o outro, mais sanguinário, e mediante infâmias de cunho tribal. Na
realidade, Sisigambis era a mártir de uma história que confirmava a
merecida fama de bárbaros atribuída aos persas. "Temperados com
sangue... Moldados com escória e lançados ao mundo para exaurir o
vaso do ódio, a cratera do desprezo e sua ânfora de sofrimento."
Logo Sisigambis fixou o olhar em algum ponto de seus lamentos e
caiu em profundo mutismo. O silêncio sobreveio como advertência
entre ela e as viúvas que a rodeavam. Cobriu a cabeça com o véu de
luto, afastou de si o neto e a neta que trazia apertados contra os
joelhos e, paralisada pela dor, renunciou à luz e recusou todo o
alimento para se embrenhar solitariamente na furna de sua aflição. E
ali permaneceu para sempre, imóvel, atravessada pelo sofrimento.
Dizem que expirou ao quinto dia porque, tendo-se sentido com
forças para sobreviver a Dario, sem dúvida envergonhou-se de
sobreviver também a Alexandre.
Cleópatra

A sétima de uma peculiar sucessão de Cleópatras, aquela que elevou o


nome herdado de sua filiação macedônica passaria à história como
enlace de duas grandes culturas: a alexandrina, que declinava sob o
fardo de uma grande desmoralização dinástica; e a romana, que
florescia tutelada por uma avassaladora expansão territorial que
marcou o tempo dos Césares como a época imperial por excelência. O
século anterior ao nascimento de Cristo foi marcado pelo domínio das
legiões e pela absorção espiritual do helenismo, por traições ferozes e
pelo estabelecimento das leis fundadoras da civilização
contemporânea, que impuseram a supremacia do latim sobre o grego
como língua hegemônica de um pensamento inclinado a reordenar
todo o Ocidente.
Foi uma época exorbitante em todos os sentidos: no religioso,
pela luta de credos, deuses e movimentos messiânicos que favoreceram a
expansão do cristianismo; no militar, por guerras de conquista
associadas a focos de insurreição republicana; no artístico, pelo
surgimento de uma estética deslumbrante que reconheceu no mármore
e na escrita as expressões de prosperidade que contrastaram com o
recolhimento espiritual posterior da Idade Média; e no âmbito social e
político, pela feroz batalha pelo poder em que se tornaram tão comuns
os venenos, os punhais e as intrigas de esposas, mães ou amantes, bem
como os enfrentamentos de irmãos contra irmãos e de filhos contra
pais.
Por uma rara coincidência da história, Cleópatra defendeu e
perdeu seus domínios quando era mais vigorosa a intervenção feminina
nas questões políticas do Oriente e do Ocidente. Talvez a isso se deva o
fato de sua fama ter ofuscado a das Arsinoes, Cleópatras e Berenices
que a antecederam naquele mesmo Egito que divisava o Mediterrâneo
somente a partir de Alexandria, mas que nunca conseguiu ocidentalizar
o Nilo. De seu pai herdou seguramente a paixão pelo saber e pela
beleza, porque os ptolemaicos se entregaram com similar energia à
dissipação e ao cultivo do espírito, o que lhes conferiu uma fama
contraditória, mas bem merecida, de civilizadores e insubstanciais.
Diferentemente de seus antecessores, não há episódio na
biografia de Cleópatra que seja desvinculado da política. Além da
sensualidade inerente à sua educação privilegiada, foi acima de tudo
uma estadista disposta a fazer qualquer coisa a fim de não renunciar às
suas possessões, inclusive se infiltrar nos aposentos de César envolta
em uma grande colcha que o siciliano Apolodoro fez enrolar e amarrar
muito bem para que de nada suspeitassem os guardas. Segundo
Plutarco, este foi o primeiro estratagema adotado por ela para seduzir
o conquistador e gerar um filho com ele, acreditando que assim, pela
consangüinidade, conservaria seu poder, objetivo que, para desgraça
sua, alcançou apenas temporariamente, não obstante apregoasse aos
quatro ventos que Cesário era filho do amor e sucessor legítimo de um
trono praticamente dominado pelos romanos, sem a menor
possibilidade de restauração.
Quando Cleópatra nasceu, Ptolomeu XII Auletes, seu pai,
completava doze anos no poder, e talvez porque se distraísse tocando
flauta em meio a atrozes conflitos internos e ameaças externas,
conseguiu governar durante quase trinta anos sem demasiados
sobressaltos nem tendo de tomar decisões das quais dependesse o
futuro da pátria. Nessa época Alexandria era um poço de sublevações
que tingiam o Nilo de sangue com a mesma velocidade com que se
esvaziavam os cofres pela combinação de futilidades e devassidões
escandalosas. Na realidade, seu pai, sua mãe, seus avós e quase todos
os seus parentes possibilitaram a Auletes governar sem rivais nem
aspirantes ao trono, porque uns e outros se foram aniquilando entre
si, como se fossem impulsionados por leis secretas. Impopular em seu
reino empobrecido, sujeito às manipulações de seus credores, passou
seus últimos anos exilado em Roma, mas permaneceu rei e faraó do
começo de seu governo até o fim da vida. Conservou o direito de
designar seu sucessor, nomeando Cleópatra co-regente com seu irmão
menor, Ptolomeu XIII, com quem estava casada para todos os efeitos
legais, conforme costume adquirido pela dinastia ptolemaica segundo o
qual mulher alguma poderia governar sozinha. Contudo, esse menino
que mal ingressara na adolescência deixar-lhe-ia o controle absoluto ao
falecer, diz-se, envenenado por ela, durante a ridícula guerra que se
travou em Alexandria logo após a campanha empreendida por Júlio
César, quando se encontrava no Egito em perseguição a Pompeu.
Imediatamente após os funerais de seu primeiro co-regente,
Cleópatra desposou Ptolomeu XIV, ainda mais moço que o anterior, a
fim de cumprir as formalidades do poder e diminuir as pressões que
exerciam contra ela sua irmã Arsinoe e os partidos que lhe faziam
oposição.
Diferentemente de outros monarcas da dinastia ptolemaica, nada
sabemos sobre como transcorreu sua infância. Os sábios, professores e
filólogos que haviam dado fama a seu reino haviam sido expulsos ou
perseguidos muitos anos antes. O ânimo intelectual espelhava a
corrupção de uma nobreza que dilapidava os restos de seu esplendor
em Atenas, Creta ou Roma, mas os remanescentes se negavam a
sucumbir, tal como a Alexandria de mármore que fora sonhada
trezentos anos antes por seu célebre fundador. Afundado em fantasias
dionisíacas e leal ao costume de oferecer templos e inscrições como
tributo a deuses fatigados, Auletes, também pai de Berenice IV, da
última Arsinoe e dos co-regentes que governavam em conjunto com
suas irmãs, morreu angustiado por tanta violência, com os olhos
fixos no sol do Egito, ao mesmo tempo que alguém lhe narrava como
uma multidão havia linchado um romano, abertamente e em uma das
ruas de sua amada cidade, porque aquele havia matado um gato,
animal emblemático e sagrado desde os primeiros dias faraônicos.
Diferentes versões asseguram que a mais alta dignidade recaiu
sobre Cleópatra porque ela ostentava o talento característico das
rainhas macedônias. Entronizada aos 18 anos, Cleópatra recebeu um
reino fragmentado pelas antigas ambições dinásticas de sua família,
por insurreições freqüentes e pela presença vigilante do Império
Romano como uma sombra inextinguível. Aferrada ao sonho de
Alexandre o Grande, cuja lenda a obcecava, orgulhava-se da aura
civilizadora dos lágidas bravios e assumiu o propósito de dignificar o
prestígio cultural de seus antepassados. Graças à sua defesa dos livros
resguardados na famosa biblioteca, agora bastante reduzida, em pouco
tempo passou a ser tão respeitada quanto os primeiros Ptolomeus e,
contrariando todas as expectativas, assenhoreou-se de seu império e
se fez temida por seus rivais orientais e pelos romanos em virtude de
seu voluntarismo militarizado.
Conseguiu reunificar seu reino até quanto lhe foi possível.
Trajava as vestes sagradas de Ísis para reconquistar a confiança do
povo egípcio e, tal como a deusa, profetizava e proclamava oráculos.
Sua figura impressionava em desfiles e cerimônias cada vez mais
faustosas; saudava a multidão não como rainha, mas como deusa e
senhora do Nilo profundo. Governou, seguindo a ordem, com cada um
dos pequenos Ptolomeus, e na mesma seqüência os fez matar sob
hábeis expedientes até conceder o lugar de cônjuge real ao filho que
gerou com Júlio César. Cesário, por sua vez, finalmente acabaria por
compartilhar o destino fatal de sua pátria. Em plena adolescência,
elevado à dignidade de "rei dos reis" em um dos mais desesperados
atos políticos de sua mãe, sucumbiu ao inimigo depois da última
derrota de Cleópatra, então esposa de Marco Antonio, um grande
colecionador de erros militares.
A aura de mistério que envolveu a soberana não é menor que o
vasto anedotário que haveria de caracterizá-la através dos séculos em
razão de sua mítica audácia. Antes que se completasse um ano do
nascimento de seu filho, acompanhou César em seu retorno a Roma e
ali permaneceu até que o sangrento assassinato do monarca a fizesse
retornar ao Egito, uma vez que foi obrigada a se submeter ao
triunvirato.
Cleópatra conhecia como ninguém o temor que o ocultismo
egípcio por ela representado infundia na Itália, e se valeu dele para
impressionar os invasores ao se fazer acompanhar de um séquito que,
por sua redobrada extravagância, extrapolava as mais atrevidas
fantasias do império dos césares, quando os romanos absorviam o velho
espírito helênico com a urgência dos novos ricos que experimentam os
mais diversos atavios antes de reconhecerem quais roupas lhes são
mais adequadas.
Ainda que arraigadas no culto a Serápis e nas primeiras
explorações científicas de Alexandria, as superstições asiáticas seriam
absorvidas com tal profundidade que, ao transferir seu saber para o
saber de Roma, o ar europeu impregnou-se do exotismo que viria a
nutrir o melhor do espírito medieval. Do helenismo procede uma
curiosidade inclinada a inquirir mais além do aparente e do visível,
como se em cada ato do pensamento se repetisse a necessidade atávica
de desafiar um enigma resguardado nos olhares de babilônios ou de
egípcios, possuidores da quimera e do arcano. Por isso estremeceram
as testemunhas ao divisarem Cleópatra a caminho de Roma,
navegando o Mediterrâneo à testa de uma esquadra naval luxuosíssima;
e foi por isso que tão receosos ficaram dela quando, a seguir, na rota
que tomou por terra até a villa de Júlio César, do outro lado do Tibre,
a cada passo a rainha do Egito exprimia sua força como um halo
sobre-humano que aniquilava todas as vontades.
Sem dúvida apaixonado por ela, além de envaidecido pela visita
da extravagante soberana, bígamo aos olhos de todos, César não era
César ao lado de Cleópatra, mas uma vontade totalmente dócil a seus
desejos, um governante curvado pela parte mais vulnerável do homem:
essa paixão que, segundo aconselhavam os deuses, nunca se deve
infiltrar nos negócios de Estado porque, ainda que ilumine o ânimo e
predisponha o corpo ao ardor, cega o discernimento e distrai a vontade
das questões mais transcendentais. Era isso que diziam os inimigos do
ditador ao constatar que seu líder não somente se impressionava
demais com sua hóspede, mas permitia que os dissidentes
avançassem até limites perigosos.
Como se fossem poucos os problemas que já tinha de enfrentar
César, não faltavam aqueles que, persuadidos de que não era possível
que por si mesmo ele tivesse se sujeitado publicamente aos perigosos
caprichos da ptolemaica, asseguravam que os egípcios o haviam
envenenado, que o soberano era presa de encantamentos e que
comprometia a segurança do império, pois sua falta de juízo não se
poderia dever senão à argúcia oriental de quem se aproveitava dos
prazeres eróticos para salvar sua coroa e consolidar, assim, a
resistência do Médio Oriente. Daí o perigo político que, entre tantas
campanhas militares e crises de liderança, piorou ainda mais as
dissensões romanas. Bastava observar o deslumbrante séquito de
donzelas, sacerdotes, eunucos, soldados e a infindável procissão de
escravos a serviço de uma Cleópatra que foi recebida com honras
faraônicas pelo próprio César, para que Roma inteira estremecesse de
pavor ao respirar o sândalo oriental em sua própria terra.
Todos estavam convencidos de que a misteriosa monarca, dona
de um nariz descomunal, representava Ísis na Terra, e que os poderes
tenebrosos do Egito nela encarnados vingar-se-iam sutilmente,
revertendo o expansionismo romano. Os mais ardilosos difundiram o
boato de que Cleópatra, por meio dos direitos de sucessão de seu filho
recém-nascido, pretendia na verdade assenhorear-se de Roma e
converter Alexandria em segunda capital de um império semelhante
em grandeza ao de Alexandre o Grande, mas que o superaria pelas
conquistas do pensamento. A soberana aspirava a um novo Estado,
estendido do Oriente ao Ocidente, resguardado pelo exército romano e
amparado pelo alto prestígio dos civilizadores ptolemaicos: o primeiro
daria as armas, os outros a herança dos antepassados e a inteligência
educada. Particularmente as mulheres não cessavam de murmurar
que ela não descansaria enquanto não os submetesse a todos, e que
aproveitaria em seu favor a menor debilidade que descobrisse na
República. Aquela era uma questão de Estado, e os protagonistas, a
exemplo de povos em confronto, só poderiam se bater em termos de
poder contra poder, sem assumir entre si arriscados compromissos
sexuais que, de resto, eram comuns também em uma Itália bastante
inclinada a crimes passionais.
Cleópatra, rainha deusa, soberana sagaz e muito mais
habilidosa que seus antecessores, embrenhava-se nas entranhas de
seus dominadores para afrontar-lhes não com a intenção de
impressioná-los, mas com o objetivo de vigiar mais de perto todos os
movimentos anti-orientais. Atrevia-se a desafiá-los exibindo no próprio
Tibre seu concubinato entronizado com o maior de seus heróis. Assim
era a rainha dos reis, tal como na etapa final de sua regência, dez anos
depois, quando se autodefiniria durante uma cerimônia de caráter
imperial em que consagraria seu relacionamento amoroso e político
com Marco Antônio no Egito: aliava-se no particular com os mais fortes
para defender a coisa pública.
De sangue altivo, deusa perante os homens e ardente como as
areias do Egito, acompanhava desde seus aposentos na villa de César
como se desatavam as forças nefastas no Senado, enquanto sua
perturbadora influência se expandia naquela cidade que logo se
interessava em fundar bibliotecas ou que se adaptava sem
dificuldades ao calendário alexandrino de 365 dias e aos modelos de
irrigação egípcia trazidos por Júlio César. Famosa por seu talento,
imbuía-se das diversas línguas mais do que as aprendia, e se aceitava a
presença de intérpretes, o fazia unicamente por questões de protocolo.
Tão contraditória como o decurso do helenismo e a história da
dinastia ptolemaica, a intrincada relação entre César e Cleópatra
inflamou de paixão as discussões do Senado. Durante aqueles meses
vertiginosos, Júlio César se atreveu não só a reconhecer a paternidade
do filho como a oferecer matrimônio à mãe, mesmo sabendo que
recairiam sobre ele a acusação de bigamia e a pior condenação
jurídica, porque os casamentos entre patrícios e estrangeiros eram
totalmente proibidos em Roma. Não obstante, do mesmo modo que o
faria Marco Antônio anos mais tarde, o ditador vislumbrou nessa
aliança uma forma de salvaguardar sua posição e a si mesmo na costa
mediterrânea. Delirante, mandou erigir uma estátua de ouro da amada
nada mais nada menos do que no templo de Vênus Genetrix; político,
advertia sobre a possibilidade de colonizar mais facilmente o Egito;
porém, no caso de vir a ser derrotado por seus opositores locais, não
ignorava ser Alexandria um refúgio soberano praticamente seu, o qual
saberia defender com a força agregada de sua poderosa rainha e
amante.
Mais do que o passo lento dos camelos e a sofisticada vestimenta
da hóspede régia, os senadores farejaram o alcance de sua vontade
soberana. Nos idos de março1 de 44 a.C. acabaram com os sonhos
imperiais do famoso ditador, mas não com ela. Morto o poderoso Júlio
César a facadas, deixou atrás de si na República os furores da
violência encarnada em seu brutal assassinato. Com a esquadra em
estado de alerta e bem menos solenidade do que a exibida em sua
chegada, a soberana embarcou para empreender a derradeira estação
de seu destino, não sem antes medir forças com o triunvirato e três
anos depois, no ano 41, contatar Antônio em Tarso, na Cilícia, para
dar ao novo líder filhos gêmeos, um menino e uma menina, como
produto de seus amores invernais.
Em que pese o costume de guerrear e de se arrebatar territórios
que ampliavam ou reduziam domínios desde a Grécia até o Oriente
Médio, os sucessores de Alexandre o Grande, esquecidos do
empenho primordial que animara o conquistador a idealizar um
grande Estado, compactuavam, atraiçoavam e se destruíam
mutuamente sem imaginar que, em pouco tempo - apenas algumas
décadas antes do nascimento de Cristo -, acabariam colonizados por
Roma e veriam seus cetros curvarem-se ante o jugo do implacável
Otávio. De nada lhes serviriam as alianças, por mais desesperadas ou
estratégicas que parecessem, tampouco lhes ajudariam pactos ou
concordatas, porque a belicosidade que imperava a seu pesar acabaria
por igualá-los no esquecimento gradual de suas conquistas, ainda que
deles sobrevivesse a memória de sua obra espiritual mais nobre,
aquela que, no fim das contas, tornar-se-ia a substância civilizadora de
Roma.
Uns com maior dignidade que outros, mas sempre rivalizando
entre si, os portadores do helenismo resistiram até o último alento
contra a investida imperial. Grécia, Macedônia, Creta, Rodes, Cirene,
Síria, Antioquia, Babilônia, Ecbátana... Os reinos caíam e se
levantavam em intervalos agônicos até reconhecerem que seu destino
se transformaria definitivamente com o emblema do monoteísmo
engendrado na Judéia. Em Jesus, Deus, filho do homem e redentor,
encarnar-se-ia o reconhecimento fundamental da consciência humana,
por meio da qual seriam abatidos o pensamento mítico e o último
rescaldo de uma Antigüidade tutelada por divindades do tempo, do
destino, da natureza e da vida. Dos reinos helênicos perdurou, todavia,
seu remoto desejo criador, e foram assimiladas a curiosidade e a
sapiência que haviam herdado da Babilônia.
O princípio do fim ocorreu quando, em Alexandria, Cleópatra
determinou a sucessão soberana em favor de Cesário, virtual co-
regente com apenas 4 anos de idade, e cujo cetro custaria a vida de seu
tio, o último dos Ptolomeus coroados, além de exacerbar gradual e
irremediavelmente a fúria de Otávio contra ela e contra seus
estratagemas amorosos.
Apesar de tudo, Cleópatra conservou arrojo suficiente para
recorrer ao costume familiar de destronar seus parentes para impor a
co-regência pretendida, a qual poderia significar uma estirpe
diferente; e demonstrou-se temerária ao se aventurar no desconhecido
com o objetivo de salvar sua coroa. Primeiro César e depois Antônio
não seriam apenas casualidades amorosas, mas decisões de uma
mentalidade hábil em atar e desatar suas relações segundo sua
conveniência. É até provável que na sua trajetória com Antônio se
interpusesse o amor; mas ainda que na morte se fundissem dois
destinos afins, em seu relacionamento predominou a figura do mando,
como se unidos pudessem consolidar o grande império que Roma
também almejava para si.
A tática militar adotada por Cleópatra para garantir seu cetro
não era de se menosprezar, mas os tempos eram difíceis para todos e,
embora igualados em debilidade por causa de suas respectivas guerras
civis, a República avantajava-se sobre os reinos asiáticos pelo espírito
de suas leis e pela organização superior de suas legiões. A posição de
Cleópatra perante os nativos sublevados piorou devido ao estado de
tristeza em que, durante sua longa ausência, havia caído um Egito
famélico, atacado por pragas, consciente de sua desventura e vítima
da má conservação dos canais que regulavam as inundações cíclicas
de suas terras, das quais dependia toda a sua produção agrícola.
Talvez tenha até pranteado César, ainda que aprimorasse os
trâmites diplomáticos e sua destreza para se acercar de Antônio
durante o período em que este ocupou o poder supremo, terminando
por empreender com ele uma das aventuras mais fascinantes da
história. Brutal como foi o assassinato de Júlio César, as cenas de
traição em nada desmereciam as práticas sanguinárias de egípcios,
gregos, macedônios, babilônios ou sírios. Cleópatra era perfeitamente
capaz de tolerar esse crime, e até mesmo esquecê-lo, sob condição de
não renunciar a seus planos expansionistas.
Excessivo tanto em recompensas como em castigos, Marco
Antônio tinha a tempera exata para se inflamar de amor por
Cleópatra; um amor que, segundo Plutarco, despertou nele muitos
afetos até então ocultos ou inativos. No mais, dizem seus biógrafos,
essa experiência arrasaria com o que de saudável tivesse em seu
comportamento reservado. Assim, entre aproximações e tentativas, ao
se encontrar com ela na Cilícia no ano de 41 a.C. - por mediação de
Délio, um mensageiro a quem bastava fitar os olhos para adivinhar-lhe
a sagacidade -, Antônio a intuiu mais do que a viu navegar pelo rio
Cidno em uma galera cuja popa era folheada a ouro...

... e que trazia velas de púrpura estendidas ao vento, e era impelida por
remos com pás de prata, movidos ao compasso de sons de flautas, oboés e
cítaras. Ela navegava assentada sob um dossel de ouro, adornada com os
mesmos atavios com que se retrata Vênus. Assistiam-na de ambos os lados,
abanando-a, belos meninos parecidos com os Amores. Tinha criadas de
grande beleza, vestidas com as mesmas roupas com que se costumava
representar as Nereidas e as Graças, algumas de pé junto ao timão, outras
junto aos cabos que firmavam as vergas. Sentia-se a brisa perfumada de
muitos aromas deliciosos. Uma tuba acompanhava o navio ao longo de ambas
as margens, enquanto muitos outros desciam das cidades a fim de gozar
também de tão incomum espetáculo, ao qual rapidamente acorreu toda a
multidão que estava na praça, até quedar-se Antônio sentado sozinho em seu
tribunal...

Um aguilhão fora cravado em seu espírito, diria Plutarco, e os


fados fizeram o resto. Um após outro se foram sucedendo eventos cada
vez mais fascinantes, cada vez mais capazes de roubar o ímpeto do
general romano e de afastá-lo do bom caminho de seus negócios até
ofuscá-lo perigosamente, não só pela via de seus conflitos maritais - que
certamente não deveriam ser desconsiderados, pois na intimidade
estava enquistada a semente política e quase não era possível fazer ou
imaginar nada, dentro ou fora de Roma, que não fosse afetado
substancialmente pelos modos do poder. Ainda mais em se tratando de
Antônio, por sua posição militar contraposta à de Otávio e pela
debilidade dos laços que mantinha com os membros do Senado.
Ainda que a rivalidade entre Antônio e Otávio se tivesse
manifestado ainda em vida de Júlio César, depois dos idos de março
sucederam-se acontecimentos de tanta intensidade que o dramatismo
de seu desenlace torna-se perfeitamente explicável. Não há dúvida de
que Cleópatra, à força de artimanhas e carícias eróticas, persuadia
Antônio a desatender seus negócios e deixar em mãos de outros as
questões mais inadiáveis. Os amantes preferiam se divertir juntos,
passar o tempo na ribeira, nas proximidades de Canopo e Tafosiris, a
se separar e empunhar a espada contra o inimigo à espreita, segundo
Plutarco. Por esse motivo, primeiro Antônio perdeu milhares de
homens no coração da Ásia, depois cometeu erros injustificáveis e
parecia mesmo que apenas lhe interessava agir em função dela, sem se
separar de seu extravagante universo. Por isso, acossado pelos
guerreiros partos entre planícies e montes, fugia mais do que lutava, e
quando estava só, como o bom leitor que se afirma ter sido, recordava
os dissabores de Xenofonte em A retirada dos dez mil, que em momento
algum conseguiu emular. Na hora mais decisiva, retirou-se da batalha
com a maior imprudência, abandonando a vitória às mãos de Otávio.
Além disso, abandonou Otávia, sua segunda esposa e irmã de
Otávio, à mercê do ditame azarento de seu destino; ela, domiciliada em
Atenas, jamais renunciou a seus direitos maritais nem perdeu ocasião
para desacreditar Cleópatra. Famosa por ser tão bela quanto
talentosa, concentrou alianças, petrechos e soldados para combater
sua inimiga em terra e no mar, e para recuperar o prestígio de um
Antônio que, por sua alienação egípcia, era tido como envenenado, uma
vez que, como já ocorrera com Júlio César, não eram explicáveis
atitudes tão desmesuradas e até mesmo anti-romanas, como a
"partilha" imperial que fizera, em Alexandria, em favor dos filhos
gerados com Cleópatra, envolvendo possessões perdidas pelos
ptolemaicos que agora estavam em mãos romanas, ou ainda em litígio,
mas de qualquer maneira alheias aos domínios egípcios.
Tanto Antônio como seus onze anos de paixão amorosa e política
veriam naquela proclamação pública seu fim definitivo. Ficariam para
trás todas as tentativas de reconciliação com Otávio, o seu triunvirato
e o indubitável prestígio de que gozara no exército, pois ninguém
ignorava sua generosidade nem sua camaradagem com a tropa, embora
alguns alegassem que ele não esteve presente nas batalhas que lhe
renderam maior glória, mas apenas os seus oficiais. Certo é que só se
observa hesitação naqueles combates cuja direção conservou
inteiramente e que, ao que tudo indica, foi por meio de seus lugar-
tenentes que obteve seus triunfos mais notáveis. Assim, segundo
demonstram os fatos, os erros de Antônio evidenciam seu infortúnio
com relação a Cleópatra até culminar no enfrentamento fatal com
Otávio na batalha naval de Actium que, por seu significado, também
marcaria o fim do helenismo.
Condenado pelo Senado, impopular entre os seus, Antônio
apostou em Cleópatra e perdeu para o destino. Narrado em breves
linhas por Plutarco, o acontecimento que acelerou seu colapso ocorreu
em 34 a.C., quatro anos antes de sua morte, diante de uma multidão
reunida para o evento no ginásio de Alexandria, aos moldes do antigo
Egito. Casado, então, com a monarca e com o poder local, Antônio
mandou colocar dois tronos de ouro acima de uma escadaria de prata
e, a seus pés, outros tantos para seus filhos pequenos. Proclamou
Cleópatra rainha do Egito, de Chipre, da África e da Síria meridional, e
Cesário seu co-regente.
Nesse momento confirmou-se que Antônio estava
completamente transformado pelos refluxos amorosos e pelos
costumes do país, e que a própria Cleópatra, ao se autonomear "rainha
dos reis", tombaria, na hora decisiva, sob o fardo de suas lembranças,
vítima de traições e mentiras. Antônio suicidou-se com a adaga
impelida por um Otávio que, não obstante haver acumulado vitórias
imperiais e ter rendido o casal mais controvertido de seu tempo, não
descansaria até apagar o último vestígio de oposição a seu governo,
ainda que tivesse de pulverizar as pedras tocadas primeiro por Antônio
e depois pela extravagante soberana.
Aos três filhos que tivera com Cleópatra, Antônio outorgou o
título de reis. Os dois mais velhos, os gêmeos Alexandre Hélios e
Cleópatra Selene - o Sol e a Lua -, foram considerados guias de um
império ainda por vir, cujos nomes brilhariam com os ciclos dos dias.
Durante esse escândalo, que passou para a história como "cerimônia
das partilhas", coube ao menino batizado Alexandre a Armênia, a
Média e o reino dos partos, quando estes fossem subjugados; a
Ptolomeu, a Fenícia, a Síria e a Cilícia. Alexandre compareceu ataviado
com trajes medas, com a tiara real e a citara na mão direita; Ptolomeu
usava os calçados, o manto e a coroa com diadema característicos dos
sucessores de Alexandre o Grande, insígnias também vigentes entre
medas e armênios. Quando os novos soberanos se aproximaram para
beijar seus pais, a cada qual foi imposta uma guarda pessoal formada
por armênios e macedônios.
Convencida de que um país despojado de inteligência e cultura
também careceria de dignidade, Cleópatra obteve junto a Antônio o
confisco de parte do patrimônio da biblioteca de Pérgamo para
ressarcir as perdas do acervo real, reduzido a cinzas quando do
ataque de Júlio César a Alexandria, em um enfrentamento grotesco.
Construiu ainda novos templos, placas e monumentos comemorativos.
Em que pese o preconceito histórico, Cleópatra não era formosa. Seu
poder sedutor provinha de uma extraordinária inteligência educada.
Amava as artes tanto quanto o poder. Jamais separou os assuntos de
Estado de suas paixões privadas; daí a escolha de César e Antônio
para participarem de uma aventura que necessariamente os levaria a
selar o destino do império com a mesma ambição de grandeza que
distinguira Alexandre o Grande ao criar a urbe mais comentada da-
quela época.
Antes da morte trágica de Antônio, uma sucessão de presságios
nefastos rondava-o na mesma medida que Otávio acumulava
evidências de boa sorte e declarava guerra a Cleópatra. Numerosos e
inauditos, os agouros começaram quando a cidade de Pisauro, colônia
estabelecida por Antônio no mar Adriático, desapareceu em
conseqüência de súbitos afundamentos do solo. Na cidade de Alba,
uma de suas estátuas de pedra cobriu-se de suor durante muitos dias,
um suor tal que nada nem ninguém conseguiu enxugar até que se
tivessem realizado os funerais do próprio Antônio. Durante sua
permanência em Patras, o templo de Hércules foi fulminado por um raio;
em Atenas, o Baco da Gigantomaquia foi arrancado pelo vento, conforme
escreveu Plutarco, e arrastado até o teatro por forças misteriosas. Estes
dois últimos desastres agravavam o vaticínio: o de Hércules, porque
Antônio se orgulhava de pertencer à sua linhagem; o de Baco, porque
ele mesmo se fizera chamar de "o novo Baco", por causa de suas
preferências e de sua vida licenciosa.
O sinal inequívoco, entretanto, foi produzido pelo mesmo furacão
que arrastara a estátua, pois, com força ainda maior que a infligida
contra Baco, arrancou de uma só vez os colossos atenienses de
Eumenes e Atalo, também conhecidos como "os Antônios", enquanto
todo o resto permaneceu no lugar. A nau capitania de Cleópatra,
batizada Antônia, atraiu a atenção dos adivinhos e profetas quando
estes descobriram que algumas andorinhas se haviam aninhado em
sua popa e que, de maneira brutal, outras vinham desde longe para
expulsá-las a bicadas e matar seus filhotinhos.
A morte infiltrou-se no reino do Egito e dominou a alma de
Antônio na célebre batalha marítima de Actium quando, derrotado por
Otávio, seu rival e cunhado; abatido porque seu orgulho não lhe
permitia apresentar-se vencido perante sua amada Cleópatra; e
consciente de que, nessa hora, as forças do destino se haviam decidido
em favor de Roma, ao atravessar o ventre com a própria espada para se
matar, Antônio soube finalmente que não bastava a união de duas
vontades excepcionais para modificar o destino. Não se lamentava por
haver-se deixado fascinar por Cleópatra até as raias da loucura, mas
porque, nas devidas circunstâncias, não soube raciocinar como soldado
em suas batalhas nem defender sua paixão por estar entretido com
seus devaneios eróticos.
Ao ser informado da tremenda dor que sentira Cleópatra ao
saber do suicídio do amado, Otávio, apossado do governo egípcio e
desde o palácio real de Alexandria, compadeceu-se dela e lhe permitiu
dar sepultura a Antônio em terras do Egito, "régia e
magnificentemente, com suas próprias mãos". Posteriormente,
acreditando-a cativa em uma fortaleza erguida por ela mesma e à sua
disposição, foi vítima do derradeiro ardil da soberana, a quem
pretendia levar viva para expô-la vencida perante o Senado romano.
Segundo descreveu Plutarco, depois de se haver banhado e
coroado, Cleópatra saiu para saudar a multidão. Em seguida, mandou
que lhe servissem um fastuoso banquete para o qual, em meio a
artimanhas para enganar os guardas encarregados de mantê-la com
vida, pediu um cestinho de figos extraordinariamente grandes e
formosos, no qual se ocultava a célebre áspide de cuja picada não se
encontrou a menor evidência no corpo da monarca. Terminado o
festim, Cleópatra mandou levar uma mensagem a Otávio, na qual lhe
rogava uma sepultura junto a Antônio; assim que a leu, o general
percebeu que, pelo menos nesta ocasião, havia sido vencido. Correu
até os aposentos que ela ocupava, mas, ao abrir as portas da câmara
real, encontrou-a já morta, regiamente adornada sobre um leito de
ouro. Plutarco acrescenta, ainda:

Das duas criadas que a acompanharam fielmente desde a infância, a chamada


Eira estava inerte a seus pés, enquanto Carmion, já vacilante e entorpecida,
arrumava o diadema de sua ama que, mesmo moribunda, ainda lhe dizia com
dificuldade: "ajeita-o da maneira mais bela, Carmion." Ao que a escrava
respondeu: "Sim, Belíssima, tal como convém àquela que descende de tantos
reis". Sem proferir qualquer outra palavra, também esta caiu morta a seus
pés.

Otávio mandou matar apenas o filho mais velho de Antônio,


gerado com Fúlvia, sua primeira esposa, quiçá para impedir futuras
alegações sucessórias. Merecem crédito, porém, as suspeitas de que,
além de Cesário, tenha ordenado a morte dos pequenos Alexandre
Hélios e Ptolomeu, enquanto Cleópatra Selene seria poupada para viver
sob a tutela de Otávia a fim de ser dada em casamento a um herdeiro
cativo de algum reino limítrofe ao seu. Os demais membros da família,
até onde se sabe, foram educados conforme os costumes da família do
próprio Otávio.
Existe outra versão que assegura ter Otávia tomado a seu cargo
os três filhos gerados por Antônio com Cleópatra, criando-os como
seus, embora talvez não exatamente como os seus, já que sobre eles
recaía a pecha de estrangeiros, condição tradicionalmente abominada
pelos romanos.
Aos 29 de agosto do ano 30 a.C, Otávio proclamou oficialmente
extinto o império ptolemaico. Desconcertados, os alexandrinos
reuniram-se no cais do porto para render homenagem a sua última
soberana. Nunca se havia sentido tão intensamente o movimento das
ondas. Os ventos açoitavam a multidão. Até mesmo seus deuses se
agitavam, e em meio a inusitadas rajadas de neve, o lugar se esvaziava.
Sem se saber corno nem por quê, alguém deixou cair nas águas do Nilo
a vestimenta de Ísis com a qual, além de dar adeus ao Egito, também
se despediu Cleópatra do mundo ao partir para a região dos mortos.

1Os idos correspondiam ao 15a dia dos meses de março, maio, julho e outubro e ao
dia dos demais meses no calendário romano. [N.T.]
Hipátia de
Alexandria

Aretéia, filha de Aristipo, foi mulher de extrema erudição, e após a


morte de seu pai, passou a dirigir a escola de Cirene. Não se tem
notícia, todavia, de que escrevesse algum livro nem de que tenha sido
perseguida por causa de suas idéias. Nicóstrata foi chamada de
inventora das letras latinas, e Soror Joana acrescentou que foi
também "doutíssima entre as gregas". Aspásia Milésia ensinou filosofia
e retórica e foi professora do filósofo Péricles. Houve também outras
mulheres que se destacaram na Antigüidade como poetisas ou
pitonisas, hábeis na política, aguerridas nas batalhas ou ainda tão
destras na música como sábias na arte de governar. Para algumas o
destino reservou privilégios, enquanto outras foram recobertas pelo
esquecimento ou pela sombra do menosprezo. A Hipátia, por sua vez,
tocou o infortúnio de se sobressair por seu talento, de ser pagã entre
cristãos e amiga do prefeito Orestes, que era rival de Cirilo, bispo de
Alexandria, e de ser a primeira mártir feminina na história da filosofia.
Virtuosa, solteira e bela, Hipátia foi filha e discípula de Teônio,
matemático e filósofo neoplatônico, e talvez a primeira mulher que se
consagrou totalmente às ciências exatas. Havia muito tempo que, em
sua Alexandria natal, desaparecera o antigo esplendor dos ptolomeus,
ainda que perdurasse sua reputação cultural graças ao atrativo
simbólico de sua grande biblioteca, reduzida por causa do incêndio
provocado no porto durante a grotesca "guerra alexandrina",
encabeçada por Júlio César, e extinta depois graças às sucessivas
pilhagens que só tiveram fim quando foi destruído o último livro de seu
cambiante acervo, durante a ocupação islâmica do califa Omar em
639 de nossa era, data do ocaso definitivo do Egito.
Talvez Hipátia, tal como Cirilo, tenha nascido por volta do ano
370 e crescido cercada por pensadores judeus, alexandrinos ou gregos,
justamente na época em que os cristãos, antes perseguidos naqueles
domínios de Roma, se tornaram os novos perseguidores. Cansados de
destruir velhos templos e de mutilar os narizes das estátuas antigas,
ingressaram na etapa final de fustigar os seres pensantes. As idéias
tornaram-se objeto de disputa na luta pelo poder; a religiosidade
transformou-se em desculpa para que os prelados comandassem
ataques contra judeus, dissidentes ou pagãos. Era o tempo da ira
despertada em nome de deuses rivais, quando os bispos outorgavam à
sua discrição atributos de santidade para afiançar a ortodoxia e
estabelecer a genealogia da Igreja de Cristo. Era a hora dos teólogos e
dos especuladores; dos exegetas, dos apologistas e dos anátemas tão
implacáveis como os lançados pelo bispo Cirilo contra Nestório ao
tomar posse da sede patriarcal de Constantinopla no ano de 428.
Discípulo das doutrinas de Teodoro de Mopsueste e de Diodoro de
Tarso, Nestório começou por negar a unidade das três pessoas em Cristo
e a maternidade divina de Maria, o que suscitou um escândalo tão
duradouro que, diante de sua negativa em se retratar perante Cirilo,
ambos os patriarcas solicitaram a arbitragem do papa Celestino. Este
convocou um concilio em Roma, que não tardou a declarar que
Nestório incorrera em heresia e o ameaçou de deposição caso não se
retratasse de seus erros dois dias depois do recebimento da sentença,
que lhe seria entregue pelo próprio alexandrino. Afamado por sua
perversidade, Cirilo acrescentou à carta do papa um princípio de fé
aprovado especialmente para esse caso por um sínodo reunido em
Alexandria, contendo uma lista de doze anátemas aos quais Nestório
deveria abjurar. Complicando-se ainda mais a questão pelo prestígio
de que gozava e pelo poder que exercia o furibundo Cirilo, o sínodo
condenou Nestório e o depôs oficialmente de sua sede episcopal.
Devido a essa ruptura e às que se sucederam por parte de seus
seguidores, entre os quais se contavam diversos bispos da província de
Antioquia, o cisma se propagou até a Caldéia e outras regiões da Ásia,
onde subsistem até hoje os "cristãos de Santo Tomás", que a atual
Igreja [Católica] situa entre os "irmãos separados" da ortodoxia.
Cirilo, bispo de Alexandria, a cuja natureza dominadora e
impaciente foi atribuída a responsabilidade pelo brutal assassinato de
Hipátia, dentre outras incontáveis acusações de atrocidades movidas
pelo ódio que marcou seu episcopado, foi um dos primeiros patriarcas
do Oriente precisamente por erguer a bandeira da ortodoxia, por seu
profundo conhecimento e sua infatigável luta contra a heresia. Edward
Gibbon, o ilustre historiador inglês, qualificou-o como "inimigo
constante da paz e da virtude, homem audacioso perverso cujas mãos
eram maculadas alternadamente pelo ouro e pelo sangue". Primeiro
dentre os teólogos gregos, seus sucessores consideraram-no inferior
somente a Santo Agostinho entre todos os doutores ocidentais, ainda
que sua doutrina fosse excessivamente difusa. Seus detratores
confirmaram, tempos depois, que ele não conhecia a arte nem a simples
elegância dos bons escritores, e que foi com ele, por meio de suas
afetações e tergiversações ininteligíveis, que teve início o bizantinismo.
Caso tivesse sido salvo o panegírico que Suidas escreveu por
ocasião da morte de sua mestra, poderíamos talvez confirmar que
Hipátia foi vítima das dissensões entre o irascível Cirilo e seu rival
Orestes, o governador da província que, se não foi amante da filósofa,
foi pelo menos um de seus amigos mais íntimos. Nesse cenário de
erudição e crueldade surgiu o neoplatonismo, ao lado de pensadores
judeus e cristãos que, não obstante suas divergências mútuas,
congregaram-se em torno da Escola de Alexandria.
No que se referia à religião, o neoplatonismo se opunha ao
cristianismo; porém este, embora fosse causa de perseguições
sangrentas durante séculos, acabou assimilando aquele, inclusive em
seus aspectos mais condenados, como a teurgia, vertente pela qual
fluía o legado oriental que alguns filósofos, entre eles Hipátia,
mesclavam com atividades oraculares e mágicas. Era próprio da teurgia
o uso de talismãs e a crença em um poder mais elevado que toda a
sabedoria humana, segundo ensinava Proclo; esta concepção, por sua
vez, inspirou o espiritismo, já que, desde então, se requereria a
presença de um médium para se comunicar com o espírito. A simpatia
universal da teurgia para com todos os entes, além do conjunto de
seus mistérios, atraiu tantos crentes que, se a essência dessa doutrina
viria a ser absorvida pelos alquimistas medievais e pelos espiritistas,
sua carga de superstições fetichistas, paradoxalmente, seria
transferida para o culto às imagens nos templos e para a devoção por
relíquias, amuletos, medalhas, estampas e por uma variedade de
objetos aos quais ainda hoje se atribui a capacidade de influir
favoravelmente perante Deus ou perante o destino, a fim de se obter
uma graça ou um pedido.
Herdeira da fusão do Uno e do Bem, Hipátia não se inclinou ao
misticismo nem ao puro intelecto, típico de Plotino, tampouco se dobrou
às especulações do neopitagorismo, tão em voga. Astrônoma, astróloga e
matemática, acreditava na influência dos deuses ou dos demônios sobre
os fenômenos naturais. Dirigiu a Academia de Alexandria e acolheu com
simpatia as doutrinas orientais sem desdenhar do melhor da cultura
helênica. Sinésio, que dedicou a sua mestra um emocionado memorial,
converteu-se ao cristianismo e acabou sendo nomeado bispo de
Ptolemais seis anos antes da morte dela. Segundo Suidas Hipátia
escreveu vários tratados ao estilo da Escola de Alexandria, todos agora
perdidos, e foi muito admirada por seus discípulos.
Cirilo acusou-a de conspirar contra ele em conjura com o
prefeito Orestes. Considerando um caráter tão vil como o do bispo,
segundo descrevem os relatos da época, não é difícil imaginar
rivalidades intelectuais ou demandas por domínio que fizessem-no
com freqüência saltar do púlpito para lançar-se ao desafio. Insuflou
uma multidão de cristãos contra Hipátia. Esta, seguramente perseguida
por ele mais de uma vez, foi apedrejada por um grupo de monges
fanáticos comandado pelo sanguinário patriarca com o intuito de
intimidar seus adversários. Em seu livro Decadência e queda do Império
Romano, Gibbon descreve em detalhes como, em um dia da Quaresma
do ano de 415, os monges interceptaram a passagem de sua
carruagem. Assassinaram brutalmente o cocheiro e arrancaram as
roupas de Hipátia para humilhá-la desnuda aos olhos de todos.
Maculada sua honra, destroçado seu corpo, levaram-na depois para o
interior da igreja e ali a esquartejaram, separando a carne dos ossos
com afiadas conchas de ostras.
Espavorida de horror, Alexandria nunca mais voltou a ser a
mesma. Esse crime marcou o princípio do fim de uma época de saber e
cultura.
Cirilo, por sua vez, ascendeu em reconhecimento e honra,
alcançando grande influência sobre o papa Celestino. Sem o menor
impedimento praticou sua barbárie instintiva simultaneamente às
inclinações teológicas que inscreveram seu nome na patrística.
Intrigava com a impiedade dos maiores perseguidores históricos e
orava como pai espiritual da Igreja. Condenou e depôs São João
Crisóstomo da sede episcopal de Constantinopla antes de arremeter
contra Nestório. Suscitou conflitos políticos e religiosos até consumar
sua merecida fama de campeão da luta contra a heresia. Não
desperdiçou crueldade nem ocasião para impor sua beligerância.
Elogiava sobremaneira Maria, Mãe de Deus, e entre seus escritos e
epístolas, por meio dos quais comentava o Novo Testamento, nunca
deixou de acentuar a heresia de Nestório. Morreu com os impulsos
domados em algum momento de sua velhice. Beatificado [e depois
canonizado] pela Igreja de Roma, São Cirilo encontra-se entre os padres
imprescindíveis da Igreja Católica.
O nome de Hipátia, a maior de suas vítimas e um talento
excepcional foi apenas mais um entre as pagãs de Alexandria.
Apaixonada pelo saber, neoplatônica inovadora, fiel ao sentimento de
fraternidade que leu nas doutrinas tomadas ao orientalismo,
acreditava, assim como os gregos, na inexorável tragédia humana.
Matemática, confiou na harmonia universal, que consagrou em sua
obra como astrônoma. Filósofa, comoveu-se com a dor da existência, e
morreu de olhos abertos. Um leve odor de umidade se fez sentir durante
seus funerais, espalhado pelo vento noturno. Ao amanhecer, os
alexandrinos respiraram uma poeira fina que cobriu a cidade como
um véu de luto.
O Amor
Dalila

Se tivéssemos a nosso alcance a versão filistéia da história de Sansão


e Dalila, seguramente ele não nos apareceria como a vítima das
artimanhas perversas de uma mulherzinha intrépida, conforme nos
apresenta a narrativa bíblica, mas como o arquétipo do ogro quase
invencível, possuidor de um segredo no qual reside sua força, e cujas
maldades são finalmente vingadas graças à astúcia de uma mulher que
tece uma trama ardilosa para atrair o vilão até descobrir a resposta
do segredo de sua invulnerabilidade.
No tempo dos juizes e dos reis de Israel dominava um rigor quase
tedioso na administração das leis. Aqueles que proferiam as sentenças
ostentavam uma gravidade tão inflexível que custa crer que um
personagem como Sansão, envolvido em disputas pessoais, em
aventuras amorosas e em pequenas fanfarronices, conseguisse se
destacar em outra coisa que não fossem desavenças tribais. Contrário
à imagem de um digno representante dos tribunais, tudo indica que
Sansão somente obedecia a seus impulsos e, sem a menor dúvida,
fazia justiça com as próprias mãos.
Muito mais congruente é a figura de um brutamontes arbitrário,
que incendeia os trigais logo antes da colheita, que destrói vinhedos e
olivais; um prepotente que transita da libertinagem amorosa à
condição de matador de trinta homens, a princípio, e depois de outros
mil - com a única ajuda de uma queixada de burro - por razões que
não nada tinham a ver com patriotismo, justiça ou altruísmo, mas
somente porque se sentira ofendido. Exceto a indicação de que foi
eleito por Deus, não há fatos que atestem sua condição de juiz
consciencioso nos tribunais. Na Bíblia só se encontram os dados
referentes à sua força sobre-humana, porém nenhum juízo que avalize
sua autoridade.
O caprichoso Sansão do Livro dos juizes não concebe atos
grandiosos nem realiza façanhas à altura de heróis análogos à sua
condição superior. Tampouco se destaca por demonstrações de razão
ou inteligência, mas se afama, sim, por sua instintiva
condescendência e por sua brusquidão. Não há coerência entre o aviso
sobrenatural, anterior ao seu nascimento, e seu posterior desempenho
como contendedor musculoso que atravessa a vida cometendo
impropérios até morrer na apoteose de seu vigor recobrado.
Em Dalila, ao contrário, reside o mistério. Ela é a depositária de
uma astúcia mais apreciada no mundo antigo que a batalha frontal;
também é ela que, possuidora de habilidades intelectuais que
combinam sagacidade, destreza para se safar de problemas, senso de
oportunidade e atenção vigilante, triunfa sobre o rude Sansão ao
arrancar-lhe o segredo de sua ousadia. O episódio, todavia, é descrito
de forma tal a atrair a simpatia para o vilão que, impunemente, roubava
e assassinava os filisteus. Assim, em vez de acentuar o sentido de
justiça que ele mesmo deveria demonstrar na condição de rei de Israel, o
autor do texto sagrado relativiza seus abusos e diminui o provável
significado libertador de Dalila: o de verdadeira heroína ante o
inspirador do legendário ogro, o monstro ou mago que as lendas
tornaram abominável em razão dos traços repulsivos de seu poder.
E é aí que reside o atrativo da única mulher que, na literatura
popular ou sagrada, domina e submete astuciosamente uma força
devastadora a partir de sua parte mais íntima, onde se oculta o segredo
de sua superioridade sobre os demais. Não deixa de ser revelador que
tanto na literatura épica como na mitologia apareçam unicamente
homens dispostos a vencer uma sucessão de obstáculos mágicos até
derrotar o maligno no local mais resguardado, justamente onde
permanece a chave de seu poder; neste caso, os cabelos que Dalila
finalmente faz cortar graças ao fato de que Sansão, além de tudo o
mais, ignorava até que ponto era ele também vulnerável às armadilhas
da sedução amorosa.
Se o relato proviesse de algum narrador filisteu, talvez a versão
de verdugo e vítima fosse bem diferente. A lista de desmandos
praticados por Sansão não condiz com a imagem do legendário herói
bonachão que cai na armadilha preparada por uma prostituta que,
mediante uma série de engodos, o conduz à humilhação e depois à
morte. Não é absurda a possibilidade oposta, ou seja, a de uma mulher
que está disposta a tudo, inclusive a morrer, no intuito de castigar uma
ofensa grave que foi cometida pelo vilão. Contudo em vez de destacar o
significado libertador de quem, sem mais armas que sua destreza, se
atreveu com o inimigo mais temido a fim de vingar o resultado de suas
crueldades, magnificou-se a imagem de um escolhido de Deus que,
para reparar a perda de seus olhos e aos gritos de "Morra eu com os
filisteus!" derrubou as duas colunas que sustentavam o teto do
edifício no qual se encontravam cerca de três mil pessoas, entre
príncipes e gente comum do povo inimigo, motivo pelo qual se diz que
foram muitos mais os que Sansão levou consigo ao morrer do que os
que matou enquanto gozava de liberdade.
Pela ausência de escrúpulos e por sua natureza aventureira,
Sansão contrasta com a figura forçada de uma Dalila que,
aparentemente, o atraiçoa por dinheiro, como se o gigante musculoso
só granjeasse simpatias a seu favor e não tivesse buscado na vida outra
coisa que fazer o bem e distribuir a justiça. Como bem observou J. G.
Frazer1, a simpatia do ouvinte recai sobre o personagem vencido porque
ele aparece revestido das características amáveis de patriota e defensor
de seu povo. Ainda que velhacarias, seus feitos são apresentados como
aventuras maravilhosas de um herói que só desperta uma admiração
compassiva. Dalila exerce o papel de carrasco, uma desalmada em
busca de poder, amante falsa e ainda por cima prostituta, a
causadora de todas as calamidades que recaem sobre um Sansão
quase indefeso, quase idílico, exposto às artimanhas que o abateriam
depois de atingi-lo em seu ponto mais sagrado.
De sua boca saem a primeira, a segunda e a terceira provas de
legendária ingenuidade até se render da quarta vez, quando finalmente
revela a verdade. Tanto na mitologia como nos contos de fadas e ogros
repete-se essa deliciosa dualidade: ser ao mesmo tempo o personagem
mais temível e o mais propenso a revelar a melhor maneira de ser
destruído. Protagonista de uma inocência quase infantil, Sansão
contraria sua condição de governador de Israel durante vinte anos. Diz
primeiro a Dalila, no calor de seus abraços que, se o atassem com um
feixe de sete fibras frescas, que ainda não estivesse seco, perderia sua
força e seria como um homem comum; quando os filisteus caíram
sobre ele na alcova e o amarraram, o herói se libertou com um único
puxão. Da segunda vez, disse a Dalila que se o amarrassem com cordas
novas, perderia sua força e seria como todos os demais; outra vez seus
inimigos se puseram à espreita, aguardando o grito da mulher e ele
rompeu como se fossem um fio as cordas que lhe cingiam os braços.
Uma vez mais se apresentou a iludida Dalila, e Sansão respondeu-lhe
que, caso tecesse sete mechas de seus cabelos com a urdidura de um
tear e as prendesse com um pino, ele se enfraqueceria e se tornaria
igual aos outros homens. Outra vez confirmada a falsidade de sua
resposta, Dalila redargüiu: "Como dizes que me amas se não está
comigo o teu coração?"
Aborrecido com tantas discussões, o forçudo cedeu à astúcia da
mulher e confessou que nunca passara navalha por sua cabeça, porque
estava consagrado a Deus desde antes de seu nascimento. Ela
pressentiu que desta vez era a verdade, que era em seus cabelos que se
ocultava o segredo e novamente chamou os príncipes filisteus. Dalila
fez com que Sansão adormecesse em seus joelhos e então fez entrar o
homem que cortou rente as sete tranças de sua cabeça, fazendo com
que ele se debilitasse e logo se lhe desaparecesse a força. Ao grito de "Os
filisteus vêm sobre ti, Sansão!", ele despertou convencido de que, tal
como das outras vezes, saltaria sobre seus pretensos captores e os
derrotaria; mas descobriu, com grande pesar, que a força do Senhor o
havia abandonado.
Humilhado, os filisteus arrancaram-lhe os olhos, levaram-no
acorrentado a Gaza e o prenderam, deixando-o a girar a pedra de um
moinho no cárcere sem perceber que sua cabeleira recomeçava a
crescer lentamente e, com ela, também sua força. Seus captores se
divertiam, esquecidos de que em seus cabelos o gigante levava a chave de
sua vingança. Dalila é o instrumento de uma derrota: cumpre o
prometido e desaparece da lenda. Resta dela a sombra da sedução
enganosa e, nas entrelinhas, a certeza de que os papéis relevantes na
história dependem das versões que prevalecem das atuações dos seus
personagens. É provável que em Dalila resida o antecedente vingativo da
mulher humilhada, uma parente literária de Ulisses, célebre por sua
sagacidade e possuidora de uma engenhosidade que lhe rendia mais
vitórias que suas armas. É possível também, caso subsistisse uma
versão filistéia, que se tivesse tratado de uma mulher valente que se
atrevera a enfrentar o monstro que assolava seu povo, despojando-o e
cometendo tantos crimes a ponto de exasperá-los e fazê-los recorrer ao
mais antigo e seguro meio para derrotar o mais forte: o delírio
amoroso.

1 James George Frazer (1854-1941), antropólogo escocês, famoso por sua teoria das
três fases do pensamento humano: mágico, religioso e científico, exposta em seu longo
livro The golden bough [O ramo de ouro], escrito entre 1890 e 1915, uma classificação
adotada até hoje pela maioria dos antropólogos. [N.T.]
Sherazade

Doce e cativante, Sherazade sentia a cada instante a beleza das


palavras. Entendia como ninguém o segredo do ritmo, da entonação e
da pausa para enfeitiçar os ouvidos cansados do tráfego e do ruído das
multidões. De seus antepassados escutou relatos sobre gigantes
perversos, navegantes intrépidos e lutas contra as forças obscuras
que, à luz da Lua, ela perfumou com o jasmim trançado nas gelosias
ao redor das fontes e envolveu com os gozos melódicos de amores
intensos. Em seu auditório media o efeito de suas modulações
precisas enquanto sua jovem irmã aplaudia ou se assombrava,
comentava ou fazia coro para ensejar cenas enriquecedoras sempre
que advertia sinais de aborrecimento ou de fadiga nos olhos do
soberano. Por essa razão Sherazade alongava seu canto ou o abrandava
em matizes como se tecesse a paisagem rósea de sua pátria fictícia,
pois se tratava de afiançar com a voz as virtudes da perfeita esposa que,
longe de enganar o esposo com supostas traições, alegravam seu
espírito com novidades e maravilhas. Essas histórias, além de
permitirem à donzela comprazer ao monarca durante aquelas
jornadas noturnas sem perder sua virgindade - o que também
permitiu a ela não apenas salvar a própria vida, mas ascender à
pequena eternidade da literatura -, curariam o coração infeliz daquele
Barba Azul do Oriente, que mandava matar mulheres com a mesma
facilidade que outros se desfaziam de ninharias.
Dizem os estudiosos que costumava recontar as lendas de modo
a encadear as noites com contos inconclusos, dos quais extraía novos
contos para aplacar a misoginia criminosa do rei Shariar; e que
arabizou uma herança multissecular por meio do ciclo de Haroun Al-
Rashid, que dominaria o almanaque noturno da epopéia nacional do
islã, acrescentam aqueles que insistem em ver modelos de
autoridade e analogias exemplares por trás dos caprichos desse
singular mandatário que distraía seu sedentarismo com disfarces e
travessuras para melhor se inteirar do que acontecia em seu reino. O
certo é que Sherazade quis provar o prodigioso alcance de seu gênio
verbal e para isso escolheu o mais surdo dos ouvintes, convencida do
poder vivificante da literatura. Por precaução invocava o nome de Alá
para consagrar sua aventura e, noite após noite, até somar mil e uma,
desentranhava o reflexo de uma humanidade engrandecida à luz da
magia. Uma humanidade anedótica, porém tingida pelo encantamento,
pela compaixão e inclinada ao resgate de tradições que levam na figura
daquele gorducho com cara redonda de uma lua do ramadã o emblema
de uma cultura concentrada na crença purificadora do verbo.
Ainda que parecidos com o resto da humanidade, esses homens e
mulheres que povoam o universo evocado por Sherazade pautam seus
dias não pelo tempo regular que registra as tarefas idênticas de dias
iguais a todos os dias, em povoações acostumadas ao tédio, à
necessidade e à dor; mas pelo tempo sem ordem nem espaço
determinados, no qual é possível ver sem ser visto, voar em tapetes
mágicos, encerrar um monumental gênio maligno dentro de garrafas
diminutas, vislumbrar revelações assombrosas através de uma bola de
cristal ou triunfar sobre o impossível quando ao herói não se apresenta
outra alternativa que a onipresença, o feitiço ou a morte.
Mistura de heroína e divindade, a filha do velho vizir desprezou
as advertências do pai para domar a fera em seu próprio terreno e assim
consumar, por meio do sortilégio verbal, a dupla façanha de triunfar
sobre o poder absoluto e vivenciar ela mesma um fado à altura dos
destinos de seus personagens. Memorialista sem par, Sherazade não
duvida do alcance dos dons da fantasia; por essa razão, como se fosse
pouca ousadia arriscar-se sozinha, leva consigo sua irmã Dinarzade
para completar, segundo havia planejado, a gradual transformação de
Shariar e de sua envolvente esterilidade palaciana no habitante do
mais rico templo da narrativa e da poesia.
Ela falava a língua pehlevi, que procede à Pérsia de Zoroastro e
aos Livros Sagrados, escritos no idioma zenda, ainda que o manuscrito
de As mil e uma noites tenha sido recolhido como botim de guerra
durante a conquista comandada pelo califa Omar no ano 18 da hégira,
junto com o vasto império territorial e o patrimônio artístico da nação
iraniana. Desde então os árabes se juntaram ao caudaloso tempo de
uma longa dinastia de narradores que, séculos depois, ofereceriam à
curiosidade européia um dos legados mais antigos da Índia e da
China, do saber egípcio e desse mítico berço da humanidade que
acabou por se chamar Arábia, na falta de um nome capaz de abarcar a
mais exótica geografia do assombro e das maravilhas humanas, naturais
e paradisíacas.
Dos deuses Sherazade obteve a graça do verbo, dos recitadores
remotos as temáticas que haveriam de colocar seu nome no mais
cobiçado templo da palavra. Eco de um Oriente que já era velho
quando Alexandre Magno irrompeu na Índia, suas histórias de magos,
rivalidades ou alianças, encantamentos e façanhas fantásticas
formaram um rio de vozes que encheram de encanto As noites árabes.
Mais belas que as odaliscas que deliciavam os haréns, as princesas que
ornamentavam os contos da donzela persa sofriam apenas para
acentuar mais sua futura felicidade, ou se fundiam na vertigem da
perversidade para exagerar sua grandeza.
Demasiado graciosa para ser real, Sherazade é um sândalo
embriagador que distrai a mente de um caprichoso califa que
conseguiu entender que a ordem e a vida tornam-se possíveis quando
o natural e o extraordinário se fundem pelo poder de um conjuro. Ela
descreve o enigma e sua solução; insinua a certeza do sobrenatural
como remédio para situações-limite; recorre à superstição e aos
princípios morais com idêntica desenvoltura e concentra na onipotência
divina a lei intermediária que rege a intrepidez e o voluntarismo,
quando se aquilata o valor dos sonhos. Por isso celebra o desejo dos
amantes que triunfam sobre a adversidade e soma engenhosidade à
determinação dos que desafiam o domínio absoluto. Mestra do
contraste e das alegorias repletas de mensagens, Sherazade destaca a
superioridade daqueles que aprendem com seus erros ou representa,
por meio de acontecimentos comuns, a paixão do poder naqueles que
somente se deixam governar pelo caminho da fábula.
Apenas se distinguem os traços físicos ou o caráter de uma
donzela que amou a palavra sob o céu noturno de uma mitologia
oriental, que magicamente se atina à perfeita criatividade do islã.
Sherazade é a palavra, o santuário da literatura perfeita e o espelho da
lua oriental sob cujo esplendor se sustentam as sombras do único
conto que perdura como arquétipo de todos os contos. Deusa
intermediária entre a voz do adormecido e a linguagem da vigília,
Sherazade é também a fiandeira que entrelaça com a mais perfeita
poesia os fios do proibido e do permitido, do profano e do religioso, do
quotidiano e do sobrenatural, da prosa e do verso, da dor e da
felicidade, a fim de oferecê-los a todas as gerações como um ato de
amor.
Tal como um fruto exótico, Sherazade é uma mulher ataviada
com túnicas transparentes e sapatilhas de seda, que um dia decidiu se
sentar frente a frente ao tirano sobre um rico tapete oriental para
causar o prodígio de enviá-lo ao éden e trazê-lo de volta ao trono
transfigurado por seus relatos. Em um mundo desprovido de espelhos,
tomou da lua o esplendor necessário para refletir o âmbar, os gostos
açucarados que enriqueciam suas ceias, as andanças de cameleiros e
de comerciantes que transitavam daquela Bagdá mítica ao deserto
abrasador, do Ganges ao Tigre, do Nilo ao Indo. Refletiu a algazarra
dos banhos e a treinada sensualidade dos haréns. Reuniu as intrigas
de joalheiros e vizires e somou uma sabedoria remota ao enredo mais
próximo de situações absurdas, tal como sucede na vida real. Assim,
desde a corte dos califas, a mítica Sherazade derramou por todo o
mundo os sabores e aromas da canela e do cardamomo.
Possuidora de uma beleza incomum, não foi por sua juventude
nem pela harmonia de suas formas que seduziu o tirano, mas pela
fascinante destreza para triunfar sobre o esquecimento e remover os
sedimentos da memória, o que levaria seus sucessores, ao resgatarem
suas histórias em caracteres poliglotas, a declarar que escrever é
recordar. Para esse fim suas palavras vertiam em manuscritos, para
fixar as folhas de um embelezamento que começava a se apagar na voz
de rapsodos ou repetidores que recontavam lendas, epopéias e mitos ao
modo dos roteiros homéricos.
Dominava a entonação, as cadências e as vastas e complicadas
metáforas que costumam enfeitiçar os amantes das histórias
fantásticas. Sua voz era um fio entre o mistério da invenção e as
habilidades praticadas pelos rawis1 nos bazares, nas cafeterias e nos
salões em que os homens do leste islâmico gastavam suas tardes
cultivando, do paladar ao ouvido, o deleite de seus sentidos, quando o
islã era sinônimo de beleza e de prazer.
Real ou fictícia, deusa ou heroína noturna que triunfa sobre o
poder e sobre a morte, Sherazade é a voz fundadora da literatura e o
santuário, para todos os tempos, da arte da palavra.

1 Na tradição árabe, o contador de histórias que se apresenta nos bazares e casbás é


chamado Rawi (aquele que acalma a sede). [N.T.]
Isolda

Amando e desamando, no abandono ou na plenitude, a humanidade


atravessou os séculos clamando aos deuses por misericórdia a fim de
mitigar os furores do coração. As aventuras dos amantes encabeçam a
preocupação literária em todas as línguas, pois que pela paixão que
cresce entre duas pessoas se expande uma espiral de emoções que,
por estranho arrebatamento, se transmuta em fonte de outros delírios
em que se misturam o devaneio, o afã pelo poder, um enorme horror à
morte e a veemência que impulsiona o flechado [por Cupido] a passar
por um renascimento interior dominado por forças súbitas que ele não
reconhece como sendo suas.
Tanto entre os deuses como entre os homens há casais que
mitificam as raras formas de amor que, precisamente por sua
intensidade, chegam a cegar ou a deslumbrar, segundo o lado da
paixão ou do mito que se viva. Com a infortunada Heloísa se empreende
o culto ao amor-paixão urdido com rebeldia e religiosidade que, durante
o Renascimento, se consagra no misticismo ao lado da máxima
renúncia a todos os assuntos do mundo. Em contraste com esta
vontade feminina que obedece às duras exigências de seu tempo sem se
resignar, a Idade Média ocidental ideou uma Isolda delirante, que
passa do sonho à realidade por obra de um encantamento que a
conduz à morte quando, ao despertar do feitiço, o prazer se
transforma em tormento; um tormento que é incapaz de suportar em
estado de lucidez.
Isolda é a amante legendária que sai de dentro de si mesma e se
aventura até o transbordamento de todas as emoções para se entregar
ao amado por uma causa indutora, totalmente alheia à sua vontade.
Seu delírio, provocado por um filtro de amor que bebe por acidente,
expressa o fato obscuro e inconfessável de que toda paixão está
vinculada à morte ainda mais quando envolve um adultério, e supõe a
destruição para aqueles que nela abandonam todas as suas forças, seja
qual for o motivo que os tenha induzido a se fundir em êxtase,
desumanização ou embelezamento tão desmedido que faça o desejo
transcender todas as barreiras do permissível a ponto de ser incapaz
de encontrar na vida qualquer substituto ou solução que mitigue essa
necessidade peculiar de se expandir no outro.
Muito mais que Heloísa ou Julieta, Isolda mitifica a paixão da
noite. Nela concorrem os prazeres noturnos e a treva da ofuscação,
uma violência primitiva e sagrada, o vazio e a pureza monumental do
ser. Adúltera, se recobre de um véu que a impede de decidir por si
mesma. Apesar de consumar a falta, Tristão continua comprometido
com a missão que lhe confiou o rei, o que acentua o desejo pelo objeto
proibido. O véu que os impede de retroceder é justamente o elixir que
bebem sem saber que, com o primeiro gole, ela se apaixonaria não pelo
marido, segundo o disposto, mas pelo homem errado, aquele que a
conduz para um matrimônio arranjado, cujos despropósitos os
conduzirá à morte, para completar a perfeita idealização de sua
felicidade.
Entremeado de magia e de aventuras fantásticas que oscilam
entre o enigma que fascina e a fatalidade que assombra, o mito parte de
um episódio de morte do qual deriva o nome de um dos amantes.
Tristão já nasce em desgraça e, não obstante seus atributos heróicos, a
adversidade acompanha-o até o fim. Seu pai acabara de morrer em
combate e sua mãe sucumbe durante o parto. O rei Marc da
Cornualha, irmão de sua mãe Blanchefleur, leva consigo o órfão para
sua corte e o educa nos valores cavalheirescos, o que agrava o
sentimento de deslealdade que estreita essa glorificação dramática de
honra e de amor cortês.
A aventura começa quando, em sua juventude, após ser armado
cavaleiro, Tristão vence Morholt, o gigante irlandês que se apresenta à
corte de seu tio para exigir um tributo de jovens e donzelas. Na batalha,
o rapaz recebe uma estocada envenenada da qual somente se poderá
curar com o antídoto secreto que possui a irmã do ogro, a rainha da
Irlanda que também é mãe de Isolda. Enfermo e sem outra companhia
que sua harpa e sua espada, navega em busca do remédio em um
barco sem remos e sem vela, que o conduz à terra inimiga.
É Isolda, a princesa real, quem o protege e cuida até curá-lo,
mesmo que Tristão tenha evitado confessar seu nome e a origem de sua
enfermidade. Anos depois, seu tio Marc encarrega-o de uma estranha
missão: encontrar a dona do cabelo de ouro que lhe havia sido trazido
por um pássaro como sinal de que deveria desposá-la. Impulsionado
pela magia, Tristão se faz ao mar em busca da desconhecida, e em
plena tempestade as águas lançam-no de novo às costas da Irlanda. Ali
combate o dragão que assolava a capital e, ferido, é novamente curado
pelas mãos de Isolda, que desta vez não tarda a descobrir que o herói é
também o assassino de seu tio Morholt. Para vingá-lo, a princesa
desembainha a espada e se prepara para matá-lo enquanto o jovem se
banha; mas, talvez cativada por sua beleza, baixa a lâmina ao ser
informada de que a missão dele talvez lhe permita tornar-se rainha,
como sonhava secretamente desde sua infância, mesmo que, para
realizar esse desejo, tivesse de se casar com um homem bem mais
velho, como Marc, e ocultar de sua mãe a identidade do enviado.
A paixão se desencadeia quando, juntos em alto-mar, os jovens
descobrem um ao outro em um ato de perfeita adoração. O calor
aumenta, os ventos desaparecem em uma calmaria e ambos são
tomados pela sede. A aia de Isolda, Brangien, se engana de frasco e em
vez de água, dá-lhes a beber um vinho temperado que a mãe de Isolda
havia preparado para garantir aos esposos três anos de plena
harmonia.
A criada, presa de um profundo sentimento de culpa, aceita
substituir a noiva na noite de núpcias a fim de salvar sua ama da
desonra. Tristão se debate entre o amor e o dever, mas segue com seus
encontros furtivos com Isolda. Antes de conceber uma solução, é
denunciado por traidores e condenado ao desterro.
Como não existe mito desprovido de astúcia, Tristão consegue
persuadir seu tio da falsidade das acusações. Não somente é perdoado,
mas o rei lhe encomenda uma nova missão. Os inimigos dos amantes
persistem em sua perseguição, e o anão Frocin, prevendo uma
despedida, planeja surpreendê-los semeando "flor de trigo" entre os
leitos. Tristão escapa de sobressalto da armadilha, mas de sua perna
ferida caem umas gotas de sangue sobre a farinha espalhada no chão,
as quais, quando Marc irrompe na alcova, lhe são apresentadas pelos
barões como prova do adultério.
Como castigo, Marc envia Isolda para um campo de leprosos e
condena Tristão à morte. Sempre com a magia a seu lado, o jovem
consegue se evadir e libertar sua amada. Os dois fogem para o bosque
de Morois, onde levam uma vida áspera e dura. Uma noite, enquanto
dormiam, Marc os surpreende, mas observa com espanto a sua própria
espada, que Tristão havia colocado desembainhada entre seu corpo e o
da amada. Emocionado, considera este sinal uma prova de castidade e
se abstém de despertá-los, mas substitui a espada real pela espada de
Tristão, antes de seguir viagem.
Passados três anos, desvanece-se o efeito do filtro de amor e os
dois amantes recobram a lucidez. Tristão se arrepende e Isolda passa a
lamentar saudosa o bem-estar da corte. Ambos ficam desesperados.
Sua linguagem não é mais a do ardor, mas a de quem deseja recobrar o
que foi perdido de qualquer maneira que lhe seja possível, por mais
que ainda se sintam confusos. Por intermédio do eremita Ogrin, Tristão
oferece ao rei a devolução de sua esposa; este, convencido da inocência
de ambos, outorga-lhes seu perdão e envia um cortejo real para
reconduzi-la ao palácio. Temerosa por seu destino, Isolda suplica a
Tristão que não a abandone, que permaneça no reino até se certificar
de que Marc não lhe fará qualquer mal. Em troca, promete reunir-se
novamente com ele ao primeiro sinal de saudade, sem que nada nem
ninguém a detenha em seu propósito, "nem torre, nem muralha, nem
castelo fortificado".
Feitiço ou não-feitiço, as cenas que se seguem são próprias de dois
que se amam e que fazem qualquer coisa para retomar seus encontros
amorosos, a risco de que todos os que os vigiam ponham em dúvida a
virtude da rainha. Uma e outra vez se reúnem clandestinamente em casa
da sentinela do bosque; finalmente, Isolda, cheia de tribulação ao ser
denunciada novamente pelos infatigáveis delatores, invoca e recebe um
"juízo de Deus" a fim de provar sua inocência. Graças a um subterfúgio,
no qual Tristão participa disfarçado de camponês, sua mão permanece
intacta depois de segurar o ferro em brasa pelo qual jurou não ter
estado jamais nos braços de qualquer homem que não fosse seu
próprio senhor.
Após um sem-fim de aventuras, que variam de acordo com as
distintas versões do mito, Tristão passa a crer que Isolda deixou de amá-
lo. A sensação de abandono o impele a se casar, mais além dos mares,
com outra Isolda, "por causa de seu nome e de sua beleza", a "Isolda
das brancas mãos", a quem deixará virgem porque não consegue
esquecer a sua Isolda, a loura, a de cabelos de ouro.
O desenlace sela para sempre o drama do amor e do desamor.
Novamente ferido por um punhal envenenado, Tristão faz trazer a sua
Isolda, a rainha da Cornualha, sob pretexto de que ela é a única capaz
de curá-lo. Doente de ciúmes, a outra Isolda, a das brancas mãos,
anuncia a Tristão em seu leito de morte que a vela hasteada no barco
em que viaja sua amada é negra e não branca, o sinal de esperança
que havia sido combinado. Tristão se deixa morrer de tristeza no
instante em que a loura Isolda desembarca para salvá-lo. Em vão ela
se lança pelos corredores do castelo para encontrá-lo ainda com vida.
Em um dos episódios mais belos de todos os mitos, Isolda, a amada de
cabelos de ouro, se abraça ao corpo inerte do amante e igualmente se
deixa morrer de tristeza.
Heloísa

Há vidas que transcendem a vida por sua paixão, e sua intensidade


merece ficar gravada na memória do fogo. O sofrimento dos legendários
amantes do medievo francês, Abelardo e Heloísa, ultrapassou a
imaginação que mitificou outros casais pelo poder da magia, do sonho e
da morte. Este é um dos casos em que a realidade excede o vigor
persuasivo da literatura; sobretudo no caso dela, porque elevou sua
rebeldia ao nível da obediência sem jamais incorrer em resignação,
porque amou com religiosidade e sem desperdiçar um instante para
esperar seus infortúnios ao pé do altar.
Insuperável até hoje, Heloísa é o símbolo de uma força espiritual que
transforma seu desamparo em perspicácia, e suas orações a Deus em
refúgio da palavra a fim de se purificar do desamor. Conquanto o
suplício infligido ao prestigioso filósofo, coube a ela pagar com piedade
o preço de uma entrega que começou entre leituras e logo depois
explodiu na fogueira do ódio; uma entrega que transgrediu preconceitos,
que despertou seu desejo de poder e de consumar o proibido com a
certeza de que é no estar juntos que se preenche o sentido de ser,
enquanto na separação dos amantes se sofre o verdadeiro inferno. Foi,
então, a sua uma entrega tão profunda e tão disposta a abarcar a vida
e a morte, que acabou levando-a a aceitar o hábito apesar de suas
vacilações na fé; e a transformar seu próprio coração porque ele, dono
de sua alma, assim lhe pediu em meio à tormenta, para sobreviver à
perseguição provocada por sua desventurada união.
Jovem sobrinha de um clérigo de Paris, a aristocrática e
excepcionalmente bem dotada Heloísa foi posta sob sua tutela depois
de passar a infância em um convento de monjas. Seu drama se
desencadeou por volta dos 18 anos de idade, quando, a pretexto de
estudarem sob o mesmo teto, professor e aluna entregaram-se
inteiramente ao amor durante meses de tanta volúpia que, doze anos
depois, ao evocá-lo em sua célebre carta a um amigo depois de sua
controvertida vida monástica, Abelardo reconheceu que seu ardor
experimentou todas as fases do frenesi e que jamais evitaram nenhum
dos requintes mais insólitos de que a paixão é capaz.
Quando Fulberto descobriu a situação dos amantes, somaram-
se infâmias ao desconsolo do casal. A princípio o tumulto familiar
deixou-os insensíveis, pois até então o gozo da posse para eles havia se
tornado mais doce. Também de origem nobre, ao ser convidado a
orientar o aprendizado de Heloísa, Abelardo já era respeitado por sua
cátedra e admirado por seu talento em Corbeil, Melun e na própria
Universidade de Paris. Daí a gravidade do escândalo. Ao descobrir que
estava grávida, Heloísa recusou o matrimônio com uma firmeza incomum
a fim de não prejudicar a carreira ascendente do afamado filósofo que,
mesmo então, já era alvo de muitos invejosos. Protegida por ele, fugiu
para a Bretanha para dar à luz seu filho Astrolábio como mãe solteira, e
apesar de sua obstinada decisão em assumir as conseqüências daquilo
que representava seu pecado, o casal foi obrigado pelo cônego a
contrair matrimônio sob condições humilhantes para ambos, ainda
que, em princípio, a família tenha aceitado manter a união em
segredo.
A tragédia irrompeu quando Fulberto, tio de Heloísa, cego de ira
porque considerou que a mácula sobre a honra familiar e sua
reparação imperfeita os humilharia durante gerações, persuade os
demais parentes para que, com a ajuda do servo infiel que até então
gozara da maior confiança de Abelardo, o mutilassem da maneira mais
selvagem. Foi essa a represália ao afeto frustrado da sobrinha por um
clérigo, para quem o matrimônio não era apenas algo malvisto na
época, mas que dele se esperava o celibato e a conivência de suas
obras com a hipocrisia que reinava no século mais corrupto da Igreja
Católica.
Abelardo, ferido no mais profundo de seu ser, atormentado pela
paixão do saber e a paixão amorosa, conhece seu natural tormentório e
não encontra outra solução afora o confinamento de ambos na vida
religiosa. É este o motivo por que o filósofo obriga sua esposa Heloísa a
ingressar no convento de Argenteuil e a "retirar-se do século". Ele, por
seu lado, realiza sua vocação teológica tornando-se abade e protagoniza,
até o último dia de sua vida, uma sucessão de importunações por parte
do clero, que o faria vítima de uma das mais persistentes intolerâncias
de que foram capazes os homens pensantes. Em sua Historia
calamitatum, ele mesmo narrou os pormenores da tragédia. Nunca
diminuíram as perseguições; ao contrário, somaram-se as vexações a
novos escândalos originados pela inveja de seu talento. Apesar de
nunca ter deixado de padecer uma vida errante e miserável, retomou
seus trabalhos teológicos e perseverou em sua rebeldia filosófica.
Durante doze anos vive a seu modo a infelicidade do mártir, até
que, oculto por detrás da linguagem teológica, Abelardo empreende sua
famosa aventura epistolar com Heloísa. Margens opostas do mesmo
drama, cada um evoca seu celibato forçado com linguagens distintas.
Ele se refere ao pecado e a incita a segui-lo em sua liberdade
espiritual de castrado. Prior de Saint-Marcel, na Borgonha, apela por
todos meios à força da razão, ao amor verdadeiro, à renúncia aos bens
terrenos, ao amor divino; ela não crê na virtude, está dividida, sua fé
vacila. O escândalo é um nó que a dilacera entre o espírito e o sexo,
entre as exigências do claustro e o furor amoroso. Jamais se resigna;
bem ao contrário, glorifica sua desventura, e assim como se volta para
seu templo protestando contra Deus com lamentações de viúva, escreve
ao amado de forma beligerante, desafia-o e recorda-lhe os lugares de sua
paixão, as horas de fogo e sua ausência...

Para onde quer que me volva aparecem diante de meus olhos aqueles deleites
e despertam outra vez meu desejo... Até durante as solenidades da missa,
quando a prece deveria ser mais pura do que nunca, imagens obscenas
assaltam minha pobre alma e a ocupam mais do que o ofício divino... Longe
de gemer arrependida pelas faltas que cometi, penso suspirando naquelas
que não posso mais cometer...

É assim que ela escreve a Abelardo, sempre amante, esposa


insatisfeita e decidida a dessacralizar a vida religiosa na qual ele
mesmo a confinou. Longe de conquistar a paz, ela invoca seu sacrifício
a fim de consagrar sua verdadeira paixão. Se Abelardo procura voltar
os olhos para Deus, Heloísa reafirma o passado, traspassa-o com
erotismo incomum, como se nas palavras buscasse a satisfação proscrita
e com a verdade apaziguasse a maldição de um destino ao qual se
submeteu por necessidade, mas nunca porque o coração lho ditasse.
Clama por justiça a seus direitos de esposa e, desde a clausura de sua
abadia, cede à fatalidade de sua absurda separação.
Quanto mais Abelardo persegue o rigor, quanto mais se inclina
para o raciocínio lógico em busca de respostas teóricas, tanto mais
Heloísa se confirma no poder de suas emoções. Assim transita da
ternura à cólera, da compaixão à impotência, até cair na
irracionalidade. Ele se integra com a ajuda da filosofia; ela se
fragmenta, se desespera e finalmente se cala; retira-se em um silêncio
dolente, depois de cumprir sua promessa de guardar para o futuro o
testemunho de seu lamento:

Prometo publicar nossa desgraça em vários idiomas a fim de envergonhar este


século injusto, que não te compreendeu... Meu cruel tio acreditou que eu não
te amava por ti mesmo (como as demais mulheres), mas somente teu sexo:
enganou-se totalmente ao privar-te dele; pois a minha vingança é amar-te
cada vez mais...

A Theologia de Abelardo foi queimada como herética por decisão


do Concilio de Soissons, no ano de 1121, além de suportar uma prisão
preventiva na Abadia de Saint-Médard. Enquanto ele resistia às pressões
eclesiásticas e às perseguições que o obrigavam a se refugiar em
diferentes lugares, Heloísa funda e dirige, sempre atendendo aos
pedidos de seu amado, uma nova ordem de monjas denominada O
Paráclito, da qual Abelardo se tornaria abade e mentor das regras,
inclinadas para o estudo do pensamento e das letras. Proveu as
monjas de livros e hinos compostos por ele mesmo e, a partir de 1130,
ambos empreenderam a célebre obra epistolar em que entremearam
temas de amor e de religião.
Confirmada sua condenação pelo Concilio de Sens e ratificada
depois pelo papa Inocêncio II, Abelardo partiu para o Mosteiro de Cluny,
na Borgonha, onde, graças à mediação de seu abade, Pedro o Venerável,
fez as pazes com Bernardo de Clairvaux e pôde doravante se dedicar ao
ensino. Já velho, viveu seus últimos anos como monge cluniacense.
Seus restos mortais foram levados primeiro ao convento do Paráclito, a
pedido de sua amada, e posteriormente, já no século XIX, ao cemitério
de Père-Lachaise, em Paris, a fim de serem reunidos aos despojos de
Heloísa.
Se Abelardo esteve disposto a assumir sua escolha, Heloísa aparece
como a figura desvalida, desprovida de vontade - ainda que nunca de
entendimento -, em que pese o fato de nos momentos mais decisivos
todos decidirem por ela: sua juventude entre monjas, sua paixão por
Abelardo, a renúncia ã sua maternidade, seu confinamento conventual
e a condenação de padecer uma constante ausência, a ponto de
afirmar que o vazio de Abelardo, mais que qualquer outro
acontecimento, preenchera absolutamente sua vida.
Heloísa, mais que o seu amante, é a figura a ser observada. Heloísa
e sua paixão mutilada; Heloísa enamorada e, não obstante, atacada pelo
sentimento de culpa; enquanto Abelardo, em seu perfeito papel de
amado, deixa-se querer e lhe recomenda canalizar seu fogo para o
caminho da salvação.
O século lamentou-se pela fatalidade de Abelardo e ele retribuiu
à sua desgraça transformando em lenda a condenação de Heloísa, a
amada que, confinada por sua paixão no convento de Argenteuil,
encontrou na redação de cartas o único meio de recuperar o objeto de
sua dor.
Uma natureza rebelde, uma mulher excepcional, Heloísa nasceu
em 1098 e morreu a 15 de maio de 1164, sem quebrantar seu voto de
obediência e jamais ter se resignado.
Margarida

Antes que Georg Zabel mudasse seu nome para Johannes Faust, que
vende sua alma ao diabo em troca dos prazeres desta vida, já
escandalizava os aldeões nas tabernas com seus oráculos e afirmações.
Alguns crêem que viveu de 1480 a 1540, e que a lenda foi construída
sobre um fundo de verdade. Ninguém então, em seu juízo perfeito,
cobiçava a sapiência divina ou manifestava inveja pela criatividade
praticada unicamente por Deus. Considerando os desconcertos
habituais, as coisas se moviam com uma certa ordem: o Todo-Poderoso
desvendava as verdades da fé e seus prelados estabeleciam o que era
permissível aos sentidos e às fantasias. Assim se organizava a vida em
comum e todos se curvavam com resignação aos ciclos naturais da
existência. As disposições celestes eram acatadas com maior ou menor
docilidade, e os assuntos terrenos vagavam entre o tédio, a resignação
e o comedimento.
A ruptura de tal ordem, porém, ocorreu no momento em que um
homem quis extravasar suas próprias capacidades. O renomado
doutor Fausto não ignorava que Mefistófeles costuma despertar nas
altas inteligências um grande apetite pela atividade fecunda,
justamente aquela pela qual sentia uma inquietação crescente.
Acreditava que o mundo seria insípido, enganosamente pacífico e
adormecido se Deus não tivesse deixado esse demônio em liberdade
para acionar uma parte das forças que anseiam sempre pelo mal, mas
que, sem cessar, provavelmente sem pretendê-lo, acabam por conduzir
ao bem. Foi assim que ele se aventurou em seus signos obscuros e
decidiu entregar sua alma ao príncipe dos infernos em troca de
fundar o que seria mais tarde chamado mito fáustico, arrastando em
sua esteira a jovem Margarida, que perduraria para sempre como
vítima ou contraparte do símbolo da curiosidade temerária.
Aventureiro malandro, apaixonado pelo saber, esse peculiar
homem de ciência e professor particular costumava viajar de
Gelnhausen a Erfurt de Ingolstadt a Nuremberg e mesmo pelas regiões
mais afastadas da antiga Germânia para impressionar clérigos,
estudantes e taberneiros com predições extravagantes e notícias do
universo ou do tempo. Seus interesses eram totalmente distintos
daqueles que se costumava atentar naquelas aldeias medievais infiltradas
de preconceitos, de superstições e de feitiçarias tão diversas e penetrantes
que, em vez de se acostumarem à extravagância, imputavam aos seres
um pouco diferentes a fama de irreais, possessos ou endemoninhados.
"Magister Georg Sabellicus, Fausto o Jovem. Fonte dos
necromantes, astrólogo, mago de segunda ordem, quiromântico...". Era
assim que redigira sua própria apresentação manuscrita em cartões de
elaborado cursivo. Não havia quem lesse tais linhas e resistisse à
tentação de escutá-lo. Até brotavam aqui e ali certas pessoas que
juravam tê-lo visto partir na metade da noite, como foi afirmado em
Leipzig, cavalgando nas ancas de seu cavalo Pégaso, cercado por
sombras fantasmagóricas.
Escreveu o horóscopo do bispo de Bamberg e, em 1540, pouco
antes de sua morte, sempre perseguido pela justiça em razão de seus
numerosos delitos, vislumbrou acontecimentos tão pormenorizados e
insólitos como a expedição dos Welser à Venezuela, a qual, segundo
informou o cavaleiro Philipp von Hutten, "resultou tal e qual havia
predito o filósofo".
Em poucas décadas sua legendária celebridade captou a
atenção de biógrafos e poetas. De simples relato popular, sua memória
se foi convertendo em caráter dramático, figura trágica, alegoria moral,
fábula renascentista, símbolo do racionalismo e personagem mítico até
se irmanar com as criaturas melancólicas dos Oitocentos, derivadas do
romantismo, conhecido como "o mal do século". Fausto não seria
Fausto, síntese dos apetites da juventude e do desejo insaciável pelo
saber, sem que fosse complementado por Margarida, essa mártir do
furor diabólico encarnado por Mefistófeles, que é destruída para
satisfazer uma ambição que se acaba tornando igualmente
purificadora.
Antes que Goethe revisitasse, no decorrer do século XIX, os
fundamentos bíblicos do universo e explorasse variações de Lúcifer e
de Margarida em sua conhecida obra, era comum na Europa
interpretar-se das maneiras mais distintas essa lenda de cunho
claramente moralizador. A versão de Christopher Marlowe,
contemporâneo de William Shakespeare e de Ben Jonson, foi encenada
em vários países, e chegou a ser comum adaptá-la em verso ou em
prosa para o teatro de marionetes até que, recriada segundo as
concepções de nosso tempo, a novelística e o cinema se apropriassem
dessa trama, uma das mais sugestivas da literatura por conter uma
grande variedade de elementos entre a vida e a morte, sempre
complicados pela paixão, pela ânsia de poder e pelos desejos
concorrentes de possuir e de saber.
Dramaturgo e aventureiro, o próprio Marlowe foi apunhalado em
virtude de uma contenda amorosa aos 29 anos de idade. Peculiar como
seu diabólico inspirador, sua força cênica não pode ser separada de
seu próprio espírito fáustico, o mesmo que acometeria Thomas Mann e
os criadores contemporâneos que descobrem em Fausto um veio
inesgotável que costuma deixar de lado a enigmática Margarida, figura
sombria que avança através dos séculos com uma feminilidade
degradada às costas, triste e desamparada, uma personagem que nem
os psicanalistas se atreveram a analisar.
Diferentemente de outros mitos que também envolvem enredos
entre homens e deuses, este tem a inteligência e a sensibilidade como
diretrizes centrais. Reduzida, a antiga divindade se humaniza por meio
dos questionamentos de Fausto. Decresce o significado do absoluto e
se reavaliam as dúvidas acerca dos atributos do homem. Dessa
maneira, o signo fáustico é o da dignidade indivisa do humanismo, e se
transforma no símbolo mais elevado da curiosidade que suscita o
descobrimento de si mesmo e do universo diante do desafio intimidante
das regiões mais tenebrosas da alma.
Este é o drama da insatisfação que se aventura no desconhecido.
Em Fausto oculta-se o tríplice desejo de sentir, conhecer e criar para se
reconhecer no mundo, com a intenção de transformá-lo transformando
a nossa natureza interior, ou seja, ao se firmar um desafio ao destino, o
personagem masculino investe no sonho de triunfar sobre o tempo e
no empenho perdurável de transcender às limitações da natureza;
todavia, para atingir esse objetivo compromete a vontade de uma
mulher que, em sua paixão, não encontra como recompensa nada
mais que a dor e a morte.
O fáustico é, portanto, o grande mito de nossa civilização. Nele
convergem a estreiteza da religiosidade remota e a amplidão do espírito
renascentista. Filósofo, alquimista e mestre, no caráter do herói
sobressaem a triste consciência de não poder ser mais do que se é, e o
empenho de vencer a ordem que o coíbe. O trágico do Fausto mítico se
encontra principalmente no tédio do qual padece: não importa quão
profundamente se explore o desconhecido nem até onde ou como o
diabo incite à transgressão porque, cedo ou tarde, o homem acaba por
se deparar com o enfado. Para Goethe, o único antídoto para essa
imagem de silenciosa obscuridade está nos afazeres da cultura, no
movimento inexorável do espírito e no cultivo da arte de viver que, não
obstante, não atendeu às possibilidades da mulher.
Foi por isso que Goethe criou um Fausto tão contrastante nas
duas partes de seu drama, tão ávido de conhecer a ciência universal
como seu próprio lugar no mundo. Seu espírito é aquele que exaure
todos os gozos e curiosidades possíveis antes de sossegar seu ímpeto.
Mostrou as aspirações de um filósofo que entende que o valor da vida
consiste na busca e no alcance do objetivo perseguido;
conseqüentemente examinou as aspirações de um mestre que procura
esclarecer a complexidade mediante o enriquecimento da linguagem.
Demonstrou que procura compreender integralmente tanto o inculto
como o científico fascinado pelo poder transformador da vontade sobre
as coisas. Em Fausto encontramos ainda o artista que tem consciência
de como suas aspirações são ilimitadas. É um sábio que aprende a viver
por viver, satisfeito com sua insatisfação e sem padecer a dúvida sobre
se sua própria história valia a pena ou não. O mito desentranha o herói
que enfrenta as forças obscuras com as armas da razão e que não
negligencia sua parte íntegra, arrogante, lasciva e contraditória.
Fausto é obstinado, impulsivo, egoísta e tão extremamente humano
que até mesmo seu descontentamento serve para engrandecê-lo.
Mito, pois, do ser total, o doutor Fausto é capaz de harmonizar
suas atitudes espirituais para triunfar sobre o destino. O Fausto de
Goethe reúne as peculiaridades daqueles que, tanto na história
próxima como na remota, pensaram sua insatisfação vital como o
desafio digno, por exemplo, de um Hamlet, de um Kepler, de artistas
como Wagner ou do próprio Goethe, tantas vezes os objetos das
ponderações de Thomas Mann. Daí o interesse por Margarida e a
curiosidade não resolvida por entender em que consiste a intervenção
feminina na mais inflamada luta contra os verdadeiros e mais
perduráveis poderes do Bem e do Mal.
Tal como na história de Eva, Margarida é o instrumento de
Lúcifer para dobrar a virtude e o talento masculinos. Depois de Satã,
Mefistófeles é o dignitário mais temível do inferno. Desde a queda de
Adão, o demônio acreditou como certa a condenação da criatura mais
apreciada por Deus; mas em sua perversidade, impele o agente do
progresso que oscila entre a suposta candidez e a debilidade; entre o afã
da aventura e a claridade que, cedo ou tarde, outorga a graça da razão;
e entre o enganador mais astuto que acaba por ser enganado no
momento em que sua presa descobre um caminho de salvação - neste
caso, o das preces mais contritas.
Para Mefistófeles, a inteligência é perversa porque a mente tende
a se inclinar à desordem. Especialista em tentações que vão do sutil ao
grosseiro, segundo as qualidades do alvo eleito, sabe como é fácil
infiltrar-se pela via sentimental e, se pode escolher, prefere o desafio
racional, pois diferentemente dos sentidos, nele a argúcia se eleva ao
nível de jogo pelo poder, sempre atraente para sua avidez de divindade.
Enquanto Fausto expressa ao longo do drama os estados de seu
próprio espírito e submete à prova as idéias e os ideais de seu tempo,
Margarida protagoniza a vertente lírica do amor sentimental que
descobre na religiosidade o único canal para a redenção, depois de
haver transitado por todos os escaninhos da mais perfeita
arbitrariedade. Ela aparece no centro de uma tragédia que não é erótica
nem cavalheiresca, tampouco de aventuras como o Dom Quixote, muito
menos de veleidades sensuais como as donjuanescas; mas de
peripécias contra o próprio destino, as quais estabelecem a natureza do
equilibrista e colocam em relevo as situações-limite. A Fausto
pertencem a ânsia pelo conhecimento e a decisão de atuar com frenesi
ao proclamar a ação como princípio do mundo; mas a seu apesar e
incitada pelas beberagens de Mefistófeles, Margarida assume o papel
anterior ao de Eva, porque deve ser enganada não somente pela palavra,
mas com o auxílio de um elixir diabólico que submete sua consciência
em favor do desejo.
Embora nunca se tenha dito, a tragédia encerra um duplo
drama de violência e de imoralidade se considerarmos que, ao elegê-la
como objeto de seu delírio senil, Fausto vê em Margarida uma jovem
cheia de frescor que vivia em companhia de sua mãe e de seu irmão. O
fato crucial do mito é o do filósofo rejuvenescido por Mefistófeles que
enfrenta o apetite erótico com poderes diabólicos, típicos de quem a todo
custo recusa sua realidade, e que seduz a jovem ao custo de um crime
e de uma série de erros encadeados. Consciente do risco que ameaça
sua filha, a mãe de Margarida é entorpecida por uma beberagem que lhe
provoca a morte; seu irmão sucumbe igualmente ao enfrentar o amante
implacável. Ao escapar da justiça, Fausto deixa Margarida no mais
completo abandono; ela, por sua vez, novamente sem saber o que
ocorre, cai em tal estado de desespero que, em plena gravidez, a conduz
à demência e também ao crime.
O verdadeiro destino trágico recai, portanto, em Margarida, e não
sobre aquele que voluntariamente pactuou com os poderes malignos.
Sua indefensabilidade é absoluta, uma vez que ela ignora a causa que
desencadeou sua própria desgraça e o fim sangrento de sua família. Ela,
como costuma ocorrer, é usada e subjugada pelas paixões próprias de
um homem decrépito. Simplesmente não dispõe de recursos para se
opor aos caprichos masculinos. Na segunda parte do poema de Goethe,
vemos como avança a cobiça de Fausto até convertê-lo em um ser
desumano, carente de escrúpulos, insensível até mesmo durante
aqueles primeiros impulsos amorosos que o aproximaram de
Margarida. Depois do célebre incêndio da casinha de Filemon e Baucis
um dos episódios que selam seu processo autodestrutivo, ao doutor
Fausto não restam quaisquer resquícios de racionalidade ou de
nobreza. Está mais próximo da índole de Mefistófeles do que da
condição de humanidade que pudesse fazê-lo retornar a um estado
mínimo de ordem e de moralidade Em seu afã de domínio, já não mais
conduzirá o veneno diabólico com suas mãos, nem seu corpo lhe será
suficiente para seduzir e causar calamidades; nessa etapa de sua vida,
em franco declínio rumo à senilidade, apenas enreda os demais a fim de
estender um dano sem fim, que nem sequer o satisfaz porque, em seu
turbilhão, descobre que existem limites para a natureza humana,
inclusive no que se refere à maldade.
Essa oposição entre a cobiça desmesurada e a fadiga que acaba
pervertendo a imaginação através do tédio contradiz o propósito inicial
do filósofo, o qual, ao oferecer a alma a Mefistófeles com o objetivo de
ascender à plenitude da vida e do conhecimento, somente encontra seu
lado execrável, não sua contraparte de bondade nem de aprazível
sossego. Nesse sentido, o príncipe do inferno fracassa porque, cedo ou
tarde, impõe-se o fastio sobre os apetites saciados. Talvez seja essa a
causa de que, cansado de si mesmo e de sua própria dinâmica, se
perverta para prolongar os efeitos do mal, como uma maneira de
afastar o tédio.
O segundo Fausto renunciou à busca das sensações refinadas,
características de sua condição intelectual. Não se interessa pelo sutil
nem repara nas múltiplas possibilidades que o saber encerra. Agora
corrompe os outros porque sua capacidade persuasiva é a única que
alcançou seu ponto mais elevado de desenvolvimento. Aqueles que o
acompanham obedecem-lhe as ordens com uma docilidade aterradora.
Arrasa os inocentes, extermina de igual forma tanto anciãs como um
jovem caminhante ocasional; cada episódio não faz senão conduzi-lo de
volta a uma espécie de adolescência rebelde e pré-consciente, que
demonstra absolutamente não haver valido a pena o preço que pagou
por sua alma, porque o vazio é a única coisa que lhe resta. Um vazio
estarrecedor que, novamente, implica Margarida, ainda que agora em
seu papel de redentora, até fazê-lo despertar.
O Fausto enamorado da primeira parte apresenta, no máximo, um
certo interesse por sua curiosidade e pelo desejo de oferecer tudo em
troca de um instante de intensidade. Atrás dele, entretanto, cresce a
vertente trágica de uma Margarida que, na ocasião devida, demonstra
que o símbolo da feminilidade indefesa engloba todas as tentativas
possíveis para assinalar os limites de uma existência que carece de voz
e até de atrativos para o demônio. Na parte mais substancial de seu
drama, não há diferença entre sua realidade e o destino de uma
Heloísa histórica, confinada no claustro por Abelardo, seu amante
filósofo e mutilado que foge dela para sublimar sua dor por meio do
estudo e da celebrização. Cada uma a seu modo, ambas são vítimas dos
poderes supremos, e as duas, por causa do amor, perdem família, rosto,
liberdade e identidade por haverem amado homens maduros e
sedutores, apaixonados pelo conhecimento.
Fausto e Abelardo, por sua parte, têm em comum o ímpeto lírico
de seu pensamento criador, ainda que os diferencie a forma como se
manifestou o agente externo de sua respectiva maldade: Fausto, até o
momento em que, frente à morte, vislumbra os efeitos do mal que
causou e se arrepende, graças à ajuda benéfica de Margarida, obedece
ao desenrolar da ação concreta; Abelardo, por sua vez, se recolhe
oportunamente para criar à luz de Deus, para pensar as condições de
sua redenção a partir de uma cela monacal, na qual não faltam
ocasiões para lutar contra a irracionalidade de teólogos e mestres
invejosos de seu talento, abominando as ações concretas em seu
processo retificador. Sua redenção é justamente a contrária ao fim
fáustico, porque renuncia de antemão a Heloísa para purificar seu
espírito por meio da lucidez verbal. Morre na solidão típica do pensador
progressista e, se o amor selou a sua derrota, o conhecimento
outorgou-lhe uma liberação voluntária que ele mesmo negou à mesma
Heloísa. Ela, por seu lado, censura a Deus com a certeza de que não
dispõe de meios para modificar sua própria condenação. Rechaça seu
destino e lamenta a ausência do amado inclusive aos pés do altar. Já
Margarida é a vítima passiva, sempre insignificante, cujas orações
contritas a fazem triunfar sobre o mal e lhe permitem salvar também a
seu sedutor, não sem antes gerar dentro dele o sentimento de culpa
que o levará a se arrepender. Alto modelo de feminilidade histórica, ela
protagoniza a beleza e a virtude até ser prostituída pelo amante, e
oportunamente descobre o perdão purificador.
Eva rediviva, Margarida é filha dos preconceitos. Representa a
um só tempo a tentação e a esperança do outro. É também a
depositária temporal da beleza provocativa da Helena homérica. Na
realidade, a parte mais obscura do mito fáustico recai justamente sobre
ela, na sua falta de ímpeto, na sua incapacidade de demarcar a justiça
e na sua inépcia para se rebelar, o que torna o mito também um
exemplo da negação intelectual feminina ao arrastar em seu destino a
todas as outras Margaridas atemporais que, em sua fatalidade,
perpetuam como improvável a concepção cultural de uma inteligência
feminina lúcida, poderosa e atuante.
As fadas
Fadas e bruxas

Assim como no passado remoto os deuses inspiraram os mitos e


encheram a vida humana com façanhas e heróis maravilhosos, as
fadas e sua multidão de criaturas complementares, como os goblins e
os pixies, iluminam a vida com episódios e símbolos que espelham o ser
desde a perspectiva de um outro caminho: o da imaginação que
experimenta conflitos excepcionais que incitam a se aventurar em um
estado superior de existência.
Não se renasce através de seus contos nem se adquire por meio
deles uma visão catártica da vida, tal como ocorre com a tragédia;
porém, segundo escreveu Aristóteles a respeito dos mitos, o amigo das
fadas é também amigo da sabedoria. Seu mundo contém a fantasia
esperançosa com finais felizes, aquela que alivia a dor e ajuda a
acreditar nos sonhos que estão associados ao renascer de quem
permite ao leitor, independente da posição que ocupe, por mais
modesta que seja, identificar-se com personagens libertadores.
Contraponto da tragédia, o conto de fadas pode interpor grandes
obstáculos ao protagonista, e até mesmo expô-lo a perigos inusitados;
porém, desfeito o encantamento, tudo parece ajustado para que até
mesmo os sonhos não mencionados se acomodem ao curso benéfico
de situações sem sobressaltos. Tal é o caso da Bela Adormecida que,
ao nascer, foi ameaçada por uma fada ressentida que não havia sido
convidada para a festa do batizado. Condenada a cair em sono
profundo na flor da idade por ter tocado uma roca enfeitiçada, seu mal,
todavia, já encerrava o remédio secreto do despertar pelo beijo de um
príncipe, cujo amor desinteressado lhe permite renascer ao estado de
felicidade digno de sua beleza e para o qual fora gerada.
Em que pese a falsa doçura que envolve essa história de disputas
entre fadas boas e más, bem como de dons que conjuram castigos e
de poderes que triunfam sobre outros poderes, imaginar a Bela
Adormecida jazida em um ataúde de cristal que cresce junto com ela
provoca tanto terror quanto uma Chapeuzinho Vermelho inocente que
confunde o Lobo com a Vovozinha. Cada uma à sua maneira, essas
protagonistas sensibilizam as crianças a perceberem mais claramente
as mentiras sutis, e despertam uma consciência precoce para a porção
nefasta dos sentimentos ignóbeis que todos trazemos dentro de nós
mesmos.
Acredita-se que as fadas regem o destino humano desde antes do
nascimento; as bruxas, por outro lado, alteram a ordem e o bem-estar
no instante em que se entregam aos mistérios da feitiçaria. Quando
boas, as fadas são luminosas, geralmente sem marcas da idade nos
rostos, sensíveis a beleza e inclinadas a corrigir os problemas em que
tenham intervindo outras criaturas extraordinárias. Por alguma razão
discriminatória, as bruxas são representadas como velhas, mal-
humoradas e feias, ainda que seja imemorial a crença em algumas de
natureza sobrenatural que existem por si mesmas - tal como a
necessidade do bem e do mal -, com a função de romper com suas
intervenções a lógica habitual da vida. A esta espécie correspondem as
figuras gigantescas ou com atributos cambiantes, como as que
freqüentam os fens ou pântanos e sobrevivem rodeadas de sombras.
Ocasionalmente relacionadas a espíritos que vagueiam sem rumo, as
mais temíveis personificam a tentação do poder e suas propensões
mais obscuras.
A senhora Barford, em História da Lua Morta, é uma das últimas
reminiscências druídicas que se aparenta com certa deusa primitiva da
natureza. Esta, por sua vez, assume em nossos dias aspectos tão
diferentes que pode igualmente se revelar disfarçada de uma Celestina1
de sujos ofícios, na literatura picaresca espanhola, ou transmutada em
mulheres comuns da vida contemporânea, à maneira das norte-
americanas ambiciosas que, representadas como verdadeiros monstros
nas novelas de Truman Capote, exemplificam as típicas criaturas
geradas por nosso sistema social.
Assim como nem todas as fadas têm escrúpulos, nem todas as
bruxas permanecem restritas à perversidade ou aos assuntos malsãos.
Há bruxas brancas e bruxas negras. Sua procedência reserva mistérios
não revelados; entretanto, existem muitas lendas sobre seus cursos de
magia e sobre o aprendizado de certas artes que vão desde o vôo mágico
até o conhecimento de elixires portentosos que, por seus efeitos,
fundamentam a ciência que converte o modesto ferro em ouro ou que
muda a forma ou a natureza de um animal, de uma pessoa ou de um
acontecimento. Somente a Dama do Lago, na tradição arturiana,
rompe cabalmente com os pressupostos de seu conhecimento intuitivo
ao adquirir de Merlin os poderes sobre as pedras, os metais e a água,
os quais praticou com argúcia na busca pelo Santo Graal.
Donas de uma potência terrível, as bruxas encarnam a sombra
do rancor que subsiste no espírito humano. Os gregos antigos
chamavam-nas Fúrias ou Erínias, enquanto os psicanalistas
qualificam-nas como projeção dos elementos obscuros do inconsciente.
Seja qual for a versão verdadeira, desde crianças reconhecemos em sua
fealdade o fruto das rejeições, das frustrações e dos temores que
resultam em dano aos outros quando os desejos malogrados
mergulham a alma em uma atroz ansiedade que move seu ânimo contra
todo o bem-estar.
Personificações do diabo na predica cristã, as bruxas absorveram
a herança das sibilas, magas e sacerdotisas, as quais consumaram seu
mais alto êxito na cultura druídica ao lado de fadas que ideavam as
cidades anglo-saxãs. Acentuaram-lhes a fealdade ao relacioná-las ao
pecado; reduziram-nas à ponte emblemática entre o visível e o
tenebroso, habitantes de um mundo intangível ou irreal, e a mera
travessura da criação entre o humano e o sobrenatural, até
diminuírem-nas à caricatura humanóide de Lúcifer. Ao tipificar a
perversidade na mulher madura, que traz às costas a experiência e,
seguramente, muitas tristezas não resolvidas, os moralistas
impingiram a elas o maior preconceito antifeminino de nossa
civilização.
Mesmo em nossos dias, com idéias próprias e juízos críticos, as
mulheres que desafiam o diferente ou o proscrito ainda são qualificadas
de bruxas, especialmente quando manifestam condutas contrárias ao
preestabelecido, embora se tente camuflar esse termo com o de "velhas
terríveis", aplicado àquelas inconformistas que provocam medo por
causa de seus atrevimentos ofensivos às pessoas de boa consciência.
A bruxa de Branca de Neve, por exemplo, é a maligna por
excelência de todos os relatos modernos: madrasta, invejosa da
juventude de sua enteada, nostálgica por amor e, acrescente-se, uma
solitária ególatra que explora no espelho as marcas do tempo perdido.
Não se sabe se os ciúmes que lhe são provocados pela filha postiça
avivam seu lado obscuro ou se, desde antes essa condessa praticava
com alguma torpeza os artifícios da magia que, não obstante, não lhe
serviram para conservar a aparência de juventude que tanto desejava. O
certo é que um dos elementos primordiais de Branca de Neve está
contido na história de Basile2 sobre uma jovem e formosa escrava, de
quem se diz que a mãe ficara grávida magicamente por haver engolido
uma pétala de rosa e que desaparecera da história de maneira
misteriosa, como costuma acontecer nos contos de fadas. O importante
do relato é que, órfã precoce, Lisa é perseguida por sua madrasta por
causa da rivalidade que esta sentia em razão de sua beleza, que
julgava interferir no amor de seu marido.
Lisa morre temporariamente quando, ao se pentear, o pente
enfeitiçado acaba cravado em seu crânio. Tal como Branca de Neve,
permanece encerrada em uma urna transparente que cresce junto com
ela, e todos sofrem com sua desgraça. Passados sete anos, seu tio e pai
adotivo sai em viagem e a esposa, doente de ciúmes perversos, tira-a
violentamente de seu caixão cristalino com a intenção de se desfazer
dela. Contra tudo o que se podia imaginar, o pente escorrega então de
sua cabeça e a jovem desperta instantaneamente, mais bela e viçosa
do que nunca; a madrasta, longe de regozijar-se com o prodígio, decide
escravizá-la.
Em seu regresso, depois de múltiplas peripécias, o tio/pai
descobre que a jovem escrava maltratada por sua esposa até quase
provocar-lhe a morte não é outra senão Lisa, sua filha adotiva;
imediatamente a liberta, recompensando-a com muitos presentes e um
bom casamento. A maligna esposa, por outro lado, é expulsa de casa,
da aldeia e da família, recompondo-se tudo de acordo com as leis de
uma justiça triunfante, apesar dos odiosos ardis de uma madrasta
enganadora.
Seguramente, do mesmo lugar em que brota uma bruxa salta
também a potência sutil da fada, do Povo Pequeno ou dos Homens
Verdes, o que permite criar, por meio de seus contos, uma lição moral
que forma a mentalidade das crianças em torno de sentimentos de
fidelidade, de justiça e de amor, que as inicia e acompanha na difícil
aventura de viver. Desse modo, as fadas empreendem com eles o
caminho da iniciação.
Quando os seguidores de pistas mágicas se deram ao trabalho
de historiar as fadas, depararam-se com indícios discrepantes.
Concordaram, ao menos, em um ponto: que elas pertencem a uma
comunidade de imortais composta por um sem-número de espécies e de
famílias que animam os bosques. Não cabem dúvidas quanto aos
prodígios que operam ao intervir nos assuntos dos mortais. Ninguém
questiona que algumas lembrem anjos, por causa de sua doçura; mas
além de sua semelhança com aquelas figuras que margeiam o universo
da poesia, há numerosas perguntas que geram novas perguntas e,
quase sem nos darmos conta, prendem-se em um labirinto de
palavras, de símbolos e de lugares maravilhosos que, longe de
desvendar as sendas a que conduzem certas pistas, nos arrastam ao
beco sem saída de seus eternos deslumbramentos, em cujo centro
talvez se encontre aquele ambiente consagrado em que perduram os
cisnes encantados, as mensageiras célticas ou as fiandeiras que tecem
histórias com fios de ouro sem tempo nem horário precisos.
A banshee, ou fada irlandesa, é, por definição, um ser dotado de
magia. Para além das origens celtas, com especial referência ao
estabelecimento dos druidas em terras anglo-saxãs, as fadas
continentais revelam-se adaptações cambiantes de seus atributos e
símbolos. Ao serem cristianizadas, começou a se ver nelas a namorada
perpétua que aplica suas artes para atrair e conservar o amado; mas é
necessário insistir que não era comum, nem sequer desejável entre os
druidas, reter a quem se ama, porque o amor enlanguesce com a
demora do casal ou, em outros casos, é tingido de enganos que viciam
todo o encanto das paixões criadoras.
Entre as fadas, o amor é um móvel que encadeia ou desencadeia
os acontecimentos, porém nunca uma justificativa em si mesmo. Para
essas criaturas é muito mais atraente a aventura de intervir nos
assuntos rituais - como os que requerem transmutações e
compromissos com seus poderes -, e geralmente se entretêm com suas
danças e celebrações proscritas aos humanos, a menos que alguém
mais atrevido que se aproxime para observá-las o faça através de um
buraco natural cavado por um rio na pedra. Provocar a loucura lunar
é uma de suas travessuras mais repetidas; mas esta nada tem a ver
com os desvarios demenciais aos quais estamos acostumados, pois a
lua provoca transformações cíclicas conseqüentes com suas fases e
movimentos, e tais mudanças costumam apresentar efeitos tão
inusitados quanto perturbadores.
A palavra fairies, que identifica as fadas em inglês, é de criação
recente e talvez uma dissimulação do termo mais remoto fays, algo de
que se ocupam unicamente os rastreadores de vocábulos. Fayrie
representava um estado de enfeitiçamento e, em particular, era o
nome utilizado para designar os encantamentos causados pelos fays,
que exerciam os poderes da ilusão.
A fada irlandesa não está submetida às contingências das três
dimensões Sempre leva consigo uma rama, o anel ou a maçã
emblemática para transmitir suas qualidades maravilhosas. Foi dessa
rama que derivou a varinha mágica; da maçã, proveio o furor do
envenenamento perverso ministrado pela madrasta de Branca de Neve
para encantá-la, talvez porque a fada traga dentro de si a ambivalência
típica da rainha Mab - recriada por Shakespeare em seu dote de parteira
é capaz de se transformar em bruxa para multiplicar as desditas. Mab é
a mesma que, ao praticar seus ofícios, trança as crinas das éguas
noturnas e desmancha os cabelos sujos e empastados dos elfos quando
aparece arrastada por uma parelha de animais em tamanho não
maior que o de uma pedra de ágata no dedo indicador de um alcaide.
As fadas vivem sem pouso certo. Não têm residência fixa, embora
sejam bem conhecidos os sítios em que se realizam os encantamentos e
suas preferências territoriais. Sem distinção entre machos e fêmeas, elas
se ocultam nos buracos das pedras, nos ocos das árvores ou na sombra
das salinas costeiras. Ao contrário do que muitos supõem, nunca
aprenderam a se tornar invisíveis. Disfarçam-se muito bem ou assumem
formas semelhantes às dos humanos quando procuram passar
inadvertidas, ainda que pássaros, cães, vacas e ou outros animais as
vejam perfeitamente porque se inquietam com sua presença. Nós, seres
humanos, só podemos enxergá-las entre duas piscadelas de um único
olho, de forma que obtemos apenas vislumbres fugazes, ainda que estes
perdurem como a recordação do fulgor das estrelas em noites de lua.
Também mutantes, seus palácios imaginários cintilam na
obscuridade e, tais como as próprias fadas, seus baluartes se
desvanecem em um instante, deixando atrás de si apenas uma sensação
ilusória. Na Itália, eram chamadas de tria fatae desde os tempos da
Roma imperial, talvez como uma deformação de fata ou "destinos", o que
não era outra coisa senão a adaptação das três Parcas que, como as
Moiras da Grécia antiga, governavam o nascimento, a vida e a morte.
Uma extrai do fuso o fio que constitui o destino, a segunda mede e
enrola a fiada na roca e a terceira, a mais temível, corta a linha da vida
com suas tesouras letais. Isso na sua filiação primordial, porque não
tardaram a se ampliar os mistérios que as rodeiam e a somarem-se as
narrativas sobre sua ascensão desde o centro da Terra até a superfície,
onde, à luz da lua, se convertem em espíritos das águas e em almas da
vegetação.
O termo fada ou fairy cobre atualmente um campo tão amplo que
abarca desde os elfos anglo-saxões e escandinavos até os Daoine Sidhe
das highlands da Escócia, os Tuatha de Dannan da Irlanda, a Tylwyth Teg
de Gales e o sem-número de seres com ou sem nome que transita entre
o Povo Pequeno e a Corte Bendita do Outro Caminho. Dicionários,
enciclopédias sobre fadas, catálogos, genealogias, histórias, lendas ou
testemunhos documentais, todos distintos entre si e irreconciliáveis
segundo o tema escolhido e as peculiaridades indescritíveis que lhes
são atribuídas, informam que no vasto mundo das fadas, agrupadas ou
solitárias, multiplicaram-se categorias intermediárias conforme sua
ocupação, morfologia, costumes e hábitats. Por esse motivo, temos
notícias de fadas gigantescas ou diminutas, domésticas, selvagens e
alheias ao ser humano, assim como de criaturas aéreas e
subterrâneas, ou ainda as aquáticas, que habitam em fontes, lagos,
oceanos ou rios.
No que se refere às relações categóricas das fayries, ninguém se
põe de acordo. Uns crêem que as bruxas pertencem à sua comunidade
de imortais; outros que, junto a monstros e bogies, poder-se-iam somar
magos, feiticeiros e bruxos à vasta gama de animais feéricos que
completa esse universo para o qual não existem fronteiras entre este e
aquele lado do espelho, nem margens para separar a vigília do sono, ou a
ilusão da realidade. Seja qual for o reflexo do mundo - o deles ou o nosso
-, existe em torno do país das fadas uma linguagem que ninguém, em
juízo perfeito, se atreveria a confundir, seja por seu signo, por seu viés
ameaçador ou por sua provável graça; e tampouco se poderia suspeitar
que, inamistosas por natureza, se disporiam a tolerar as más
maneiras, as mentiras ou os juramentos em vão.
Quando agradecidas, respondem com dons de graça e
prosperidade àqueles que as tratam com cortesia e mantêm a
discrição. Em ocasiões de extrema generosidade, elas chegam a oferecer
aos eleitos um bocado de seu "alimento das fadas", ou no caso de
gentilezas como emprestar um pouco de farinha, de mel ou bebidas, elas
retribuem o favor recebido com a guarnição inesgotável dos mesmos
produtos; tudo isso, naturalmente, sob a condição de se cumprir o
requisito da piscadela dupla com um olho só, porque, como se conta em
histórias de parteiras de fadas, pode ocorrer de se perder o direito a
recompensa por violar o tabu e por não se tocar o olho com o
"ungüento das fadas", com o qual supostamente a parteira deveria
comunicar a visão feérica à criança no momento da saída do ventre
materno.
Não há dúvida de que preferem os bosques para se recluírem;
prova disso é seu costume de aparecer nos pontos mais inescrutáveis
das montanhas, junto às furnas e às torrentes ou na espessura do
bosque, sobre plataformas recônditas que o povo costuma justamente
identificar como "mesas das fadas". Também freqüentam grutas e
amam tanto os mananciais como as fontes e os rios estrondosos, talvez
porque, quando as ninfas e as dríades as expulsaram de sua fugaz
estadia na Grécia, tiveram de fugir para o leste e, posteriormente,
rumo às possessões romanas do Médio Oriente até as partes mais
remotas da Ásia, sempre de permeio a pequenas florestas e despovoados
onde pudessem permanecer sem serem perseguidas.
Um grupo numeroso delas, seguramente o mais importante, se
estabeleceu na Escócia, na Irlanda e na Inglaterra, apesar de terem se
chocado com os habitantes originais - os pixies -, que não deixaram de
molestá-las desde que se enfrentaram em uma batalha renhida que,
com o triunfo dos pixies, determinou sua definitiva expulsão para o
leste do rio Pedder, ainda nos tempos do rei Artur.
Os irlandeses acreditam que ainda hoje as fadas habitam entre
eles. Aqueles que gozam do privilégio de havê-las enxergado asseguram
que adotam a forma de seres humanos perfeitos, porém em miniatura,
pois nunca aparecem mais altas que a cabeça de um cão. Todavia, elas
têm a capacidade de aumentar ou diminuir sua estatura durante a
condução de seus poderes, assumir o aspecto de um pinhão ou
crescer ao longo do tempo como um ser humano comum.
Aquelas que, para sua desgraça, são capturadas por intervenção
dos pixies ou por cederem ao galanteio dos homens - como as Gwrachs do
País de Gales -, consumam o matrimônio com os humanos não sem
interpor um tabu que, em geral, é violado, e com o tempo podem retornar
a seu hábitat natural. Aquelas fadas que, devido à perversidade de seus
captores ou por circunstâncias adversas, não conseguem regressar a
seu meio, cedo ou tarde acabam definhando e morrem com uma
expressão de profunda tristeza no rosto.

1 Personagem central de Tragicomedia de Calista e Melibea, escrita por Fernando de


Rojas em 1499. Celestina é a alcoviteira, pintada com uma veracidade e acuidade
surpreendentes, todos caem em suas redes, enquanto resmunga máximas filosóficas
mais ou menos morais; a influência desta peça foi tão grande que quase todas se
transformaram em provérbios populares espanhóis. Cervantes, em um dos sonetos
incluídos no Don Quixote, afirma que a história de Celestina seria um livro divino, se
não revelasse tanto da natureza humana. [N.T.]
2 Giambattista Basile (1575-1632) publicou o Pentamerone, coletânea de contos de
fadas, muitos dos quais foram adaptados por Perrault ou pelos irmãos Grimm.
Todavia, não é certo que estes tenham tido acesso a Basile. É possível que tenham
recolhido outras versões diretamente do folclore, tal como afirmavam. [N.T.]
Merlin e a
Dama do Lago

A lenda do rei Artur não existiria sem a intervenção de Merlin nem da


corte de fadas que fizeram a fama inglesa. A magia envolve sua vida e a
poesia engrandece seus atos que, com o passar dos séculos, foram sendo
elevados à condição de exemplos de obras de cavalaria. Cada uma mais
misteriosa que a outra, e repletas de símbolos ainda por decifrar, as
mulheres atravessam o ciclo arturiano como rajadas de luz cortando a
escuridão.
Datada do século IX, a primeira notícia de Merlin, este profeta
exemplar, cujos trabalhos implicam o destino de princesas, fadas e
magas nostálgicas de suas habilidades demiúrgicas, provém da Historia
Britonium, de Nennius, a qual menciona que o rei Vortigern, também
chamado Gourthigirnus, pretendia sem sucesso edificar uma torre para
se defender dos ataques inimigos. Uma e outra vez as muralhas acabam
desabando tão inexplicavelmente que Vortigern, intimidado pelo
prodígio, convoca para consultas todos os magos e druidas do reino.
Como ninguém é capaz de desvendar a razão secreta, sugerem-lhe
sacrificar um menino sem pai sobre os alicerces. Seus sicários
encontram então um filho de pai desconhecido, sobre o qual recaíam
ainda suspeitas de vínculos demoníacos. Em vez de encontrar a morte, o
menino se posta diante do rei, observa o fenômeno e lhe declara a
misteriosa causa de seus fracassos. "A torre se desmorona" - afirmou sem
medo - "porque abaixo desse terreno existe um lago subterrâneo em que se
agitam dois enormes vermes como símbolos portentosos." Depois de
realizadas as escavações, realmente surgiram das profundezas dois
enormes dragões, um branco e outro vermelho, que logo se
encarniçaram em tremendo combate no qual o vermelho acabou por
sucumbir de maneira estrondosa. Em um dos mais memoráveis
discursos sibilinos, o mesmo menino informou que aquilo que haviam
contemplado não era outra coisa senão a cena da decadência, com o
desastroso final do rei Vortigern e o futuro glorioso do mundo britânico.
É dessas palavras que data a primeira versão da "esperança bretã", que
antecipa a vitória final do reino depois de sofrer algumas derrotas.
Recompensado pelo monarca com um vasto território, Merlin
associou-se ao afamado chefe guerreiro Ambrósio, que lutou contra a
invasão dos anglos. Declarou então ser de estirpe nobre, descendente
de um cônsul romano, negando ter qualquer relação de berço com o
demônio. A lenda, no entanto, jamais aceitou sua nobreza, acentuando,
ao contrário, a obscuridade de sua origem para justificar seus
prodígios.
Muitos anos depois, o clérigo galês Geoffrey de Monmouth
eternizou-o em duas obras lendárias do ciclo arturiano: a Historia Regum
Britanniae, de 1136, e a Vita Merlini, de 1148; porém, na realidade, se
desconhecem seus verdadeiros vínculos com o universo feérico e as
causas pelas quais veio a ser chamado pelo nome de "O Filho da
Viúva", tal como no princípio do século III o filósofo Manu de Baghdad,
praticante do dualismo gnóstico, se referia a Jesus Cristo, "O Filho da
Viúva", expressão que ao longo do tempo foi sendo assimilada pela
franco-maçonaria.
É precisamente Monmouth quem descreve o adivinho escavando
os alicerces de uma torre misteriosa que o rei Vortigern faz edificar
várias vezes e que desaba a cada tentativa, até que Merlin retira deles
uma espada deslumbrante, adornada por uma dupla inscrição gravada
de ambos os lados da lâmina. Um lado dizia "tira-me" e o outro "guarda-
me", termos equivalentes à expressão solve et coagula, ou dissolução e
coagulação dos movimentos alternados da alquimia e símbolo do eterno
combate que assegura a coesão do universo. Por isso a espada se
converte nos dois dragões antagonistas, um vermelho e outro branco,
que travam um feroz combate.
O importante é que tanto ele como sua amada e rival, a Dama do
Lago, são rodeados pelo mesmo halo enigmático que forjou a lenda do
Santo Graal com a saga cavalheiresca do rei Artur, os mitos de Camelot
e sua maravilhosa Dama de Shalott, assim como as habilidades
supremas de Lancelot e os poderes de Excalibur, de onde decorreu a
linguagem sibilina que dominou a imaginação do Medievo. A admirável
intervenção de Merlin revela-o um solitário habitante dos bosques,
entregue à magia e às suas funções de conselheiro real, tanto de
Aurélio Ambrósio como do próprio Artur, a quem tutela desde a
infância e protege até o fim de seus dias. A Ambrósio atribui-se a ordem
de trasladar o círculo de pedras de Stonehenge, desde a Irlanda até
seu sítio atual, na Inglaterra, enquanto a glória inicial da coroa
britânica descansa sobre os ombros de Artur.
Os episódios relativos a seus poderes mágicos são tantos e tão
contraditórios que nos impedem de lhe reconstruir a história, inclusive
com a utilização das referências documentais de seu biógrafo inicial, o
clérigo galês. Ninguém duvida de que se tratava de um prestidigitador.
Isso é demonstrado por sua habilidade em trasladar os monumentais
monolitos e por sua proeza em disfarçar o rei Uther Pendragon sob o
aspecto físico do duque Gorlois da Cornualha, para que aquele pudesse
penetrar na fortaleza de Tintagel a fim de se deitar com Ingraine,
esposa do duque, e gerasse Artur na mesma hora em que seus homens
matavam o verdadeiro Gorlois no campo de batalha.
A Dama do Lago, por sua vez, é uma das mais misteriosas e
inexplicadas damas feéricas do ciclo de lendas arturianas. Existe uma
menção a ela em Lanzelet, a antiga novela de Ulrich von Zatzikhoven,
que chegou até nós pela tradução de uma obra francesa que De
Morville deixou em uma de suas passagens pela Áustria. A Dama do
Lago, naquela versão, aparece como uma donzela aquática, semelhante
à Gwragedd Annwn, que reinava em uma ilha habitada somente por
donzelas situada no coração de um lago encantado, onde o inverno
não chegava nunca e não se conhecia a dor. O enigma que envolve a
Dama do Lago remonta à época da morte do rei Ban, ocasionada pelo
pesar que sentiu o soberano ao avistar seu castelo devorado por um
incêndio, conseqüência da traição de alguns de seus homens e da
tomada de seu reino. No meio da confusão, a rainha aflita teria deixado
seu filho recém-nascido à margem de um lago para acompanhar o
marido em seu último alento. Ao regressar, a rainha encontrou a
criança nos braços de uma formosa donzela, a qual, apesar de suas
súplicas para que a devolvesse, afastou-se com ela sem dizer palavra até
desaparecer e se perder no fundo do lago. Com o passar do tempo, veio
a se saber que a referida donzela não era outra senão a famosa Dama
do Lago, que atendia pelo nome de Viviane, e que tanto ela como o
infante perdurariam para sempre na memória dos bretões.
Viviane não educou o menino Lancelot com a intenção de que
contribuísse para a grandeza do reino, mas para que protegesse seu
próprio filho, o covarde Mabuz, chamado o Feiticeiro, que sofria com as
intromissões e pulhas de seu vizinho Iweret. Em uma versão posterior
do mito de Lancelot, já no século XV, a Dama do Lago é uma maga da
estirpe de Morgan le Fay, e seu lago uma mera ilusão. A Lenda de
Lancelot do Lago, em contrapartida, retoma a versão do menino que é
recolhido por uma fada aquática. Neste relato, entretanto, Lancelot
não se torna amante da rainha Guinevere, e é Sir Gawain quem
aparece como o principal cavaleiro do rei Artur.
A Dama do Lago vai e vem sem ordem nem coerência através dos
distintos episódios das lendas arturianas. Sua presença benfeitora
destaca-se quando, na condição de discípula de Merlin, forja a espada
Excalibur para confirmar a legitimidade de Artur no princípio de seu
reinado. O monarca se apresenta perante ela em outra ocasião, quando
a Dama do Lago é avisada de que ele será ferido de morte e ela recebe a
ordem de recolhê-lo, acompanhada de outras três rainhas das fadas,
entre as quais se destaca Morgana a fim de tratá-lo na mítica ilha de
Avalon, onde se diz que ele habita graças aos cuidados que lhe
prodigalizaram os membros mais destacados da Corte Bendita.
Com freqüência a Dama do Lago é chamada de Nimue. Merlin a
teria encontrado ocasionalmente quando se retirou à solidão dos
bosques de Broceliande, onde buscou o ovo da serpente e aperfeiçoou
seus conhecimentos em cosmologia, magia e ciências naturais, depois
de enlouquecer com o espetáculo de uma batalha sangrenta. Suas
extensas pesquisas sobre as qualidades das plantas e dos minerais,
bem como seu profundo domínio das peculiaridades dos peixes e das
aves, provieram de seu refúgio na vida silvestre, afastado da civilizada
corte de seu cunhado, de sua irmã e de sua esposa, a quem renunciou
para sempre, assim como a seus direitos sobre o trono.
No interior da mata, onde está sempre acompanhado por um cão
negro, juntam-se a ele com o decorrer dos anos alguns bardos e
peregrinos, dentre os quais se sobressaem o bardo Taliesin, o discípulo
Maeldin e sua irmã Ganieda, a qual, depois de fracassar em suas
repetidas tentativas de trazê-lo de volta ao palácio, manda construir-
lhe um castelo em uma clareira da floresta, com setenta portas e
setenta janelas, onde setenta escribas redigiam as profecias que Merlin,
já encanecido, lhes ia ditando.
Em algumas versões, Merlin é descrito como um ancião cuja
figura transita entre o cômico, o venerável e o trágico, e que sobrevive a
cinco gerações antes de ser enfeitiçado pela Dama do Lago. Ao final, sua
irmã Ganieda sucede-o como profetisa; no entanto, mais parece ter sido
contagiada por seu dom agoureiro, pois entre eles se lêem numerosos
sinais de incesto bem disfarçado. É Viviane quem guarda o mistério de
sua identidade e sobre quem recaem os símbolos de um poder
adquirido, o qual, em se tratando de amor e rivalidade, revela não
existirem fronteiras entre o bem e o mal.
Convertido em protetor distante, mestre tutelar e fiel conselheiro
do rei Artur, além de guardião privilegiado do reino ameaçado por
poderes maléficos, Merlin ressurge na história desde os mistérios que
envolvem a construção de Camelot e a presença sempre enigmática da
Dama do Lago, agora situada na mítica ilha de Shalott, onde essa
misteriosa donzela tece e passa as tardes cantando enquanto
contempla a vida em seu espelho polido.
A bela cidade de Camelot, erguida em uma colina cercada de
bosques e à curta distância do rio que conduz à ilha de Shalott, foi
capital da Inglaterra e quartel-general de Artur. Enclave digno de suas
façanhas, tudo aí foi construído por um rei e por algumas rainhas das
fadas que ordenavam que se tocassem harpas no limiar das sombras
que separam um dia do outro, isto para que o Povo Bendito assentasse
as pedras ao som de música e, ao modo dos campos de cevada e centeio
que rodeiam a região, ondeasse as torres, os telhados e os estandartes
ao caráter cambiante da neblina que, a cada manhã, fazia a cidade
parecer uma miragem no horizonte.
Passam-se os séculos e Camelot continua surpreendendo o
viajante que, ao alvorecer ou em pleno crepúsculo, se aproxima dela
esperando encontrar uma cidade como as demais. A cidade-castelo se
desvanece e oscila enquanto sua silhueta reluz ao brilho da lua, graças
à luz dos lampiões que escapa de suas frestas. Cintila ao meio-dia por
efeito do sol, e seu portão metálico resplandece como ouro brunido. Em
dias de tormenta, todavia, desaparece ou se oculta por trás das
cortinas de chuva. É misteriosa como o anel dourado que se desdobra
no bosque lindeiro; e durante o inverno, o branco de seus telhados se
funde com as capas de neve estendidas sobre a planura. Aqueles que já
a visitaram, juram que perdura intocado o encanto de suas muralhas,
e que melhor fazem os viandantes que se desviam desse local por temor
dos feitiços praticados pela Dama de Shalott quando navega incógnita
em sua barca de velas de seda.
Quando não desce o rio com a embarcação carregada de cereais e
belos tapetes multicores, a Dama se assenta diante do tear no mais alto
aposento de sua torre, de onde vigia a cidade, a vida no campo e tudo
quanto passa pelo caminho por meio de um espelho colocado junto a
janela. Ao entardecer, canta de seu castelo suaves melodias que
aliviam o cansaço dos camponeses que trabalharam desde cedo e que
adoçam o ouvido sempre alerta dos cavaleiros. Assim se passam os
dias e os anos, e assim permanecem os jogos de luzes que fizeram
centenas de cavaleiros jurar que a Dama do Lago não existe; que
tampouco Camelot existiu e que tudo o que se divisa através da neblina
não é mais que um conto inventado por aqueles que acreditam em
magos e fadas.
Acima das inúteis argumentações dos incrédulos, por vezes se
escutam as trombetas soando do alto dos torreões de Camelot,
anunciando a saída dos cavaleiros marchando em cavalgada de dois em
dois, presidida pelos arautos e com porta-estandartes troteando
graciosamente com suas bandeiras pelo meio da tropa. Merlin reaparece
com sua roupagem negra e recebe a saudação do povo. Lancelot e
Galahad desfilam garbosamente, distribuindo sorrisos às donzelas.
Mordred marcha um pouco mais à frente, à testa de uma multidão de
homens armados com lanças e espadas; mas desde logo se destaca
Artur montado em seu corcel branco, seguido do escudeiro que lhe
transporta a armadura e a mística espada que a Dama do Lago forjou e
batizou de Excalibur. A tudo acompanha a música das fadas; porém, se
algum atrevido ousa enfrentar a guarda, descobre que, bem no
interior, aguarda de pé a Dama do Lago, com os braços estendidos,
trazendo uma espada na mão direita e um antigo turíbulo na esquerda.
Os que a viram asseguram que seu vestido ondula como as águas e
que gotinhas muito suaves de chuva escorrem de seus dedos, os quais
ela deixa em liberdade para que possam se mover com a brisa.
Contempla a distância bem de frente, com seus olhos cinzentos
irresistíveis e enormes, da mesma cor das torres e da água profunda, e
faz retroceder os malfeitores quando, ao toparem com ela, um
sobressalto no coração lhes avisa que já roçaram a margem proscrita.
Camelot intimida e fascina os visitantes privilegiados que
conseguem ultrapassar suas muralhas. Por meio do depoimento de
umas quantas testemunhas, sabemos que suas portas trazem gravadas
figuras de elfos e dragões, os quais parecem se mover por entre episódios
redivivos dos feitos de Artur. A pedido do rei, Merlin projetou a cidade
na forma de uma espiral, para que tudo apontasse para cima e Deus
governasse o viver de seus residentes, dentre os quais 1.600 cavaleiros
e barões, todos tão ciosos de sua posição que, segundo os tratados
vigentes na época, durante uma ceia de Natal iniciaram entre eles uma
batalha pelo simples direito de se sentar à cabeceira das mesas. Foi a
partir de então que Artur ordenou que se construísse a célebre Távola
Redonda, para que todos os convivas comessem em pé de igualdade e
ninguém ocupasse um lugar diferente ou inferior ao de seu
companheiro.
Nada ali está desprovido de magia, nem existe rincão onde não
se escutem as vozes dos trovadores ou as notas das cítaras e alaúdes
que escapam pelas janelas para encher os ares. Do lado de fora,
repercute a disputa dos armeiros e ferreiros que forjam armaduras
para cavalos e homens; e as chispas que saem de suas oficinas
completam a cortina de estranhas luzes que, junto às das forjas e
àquelas provocadas pelos laboriosos cortejos de monges, flecheiros,
correeiros e alfaiates, formam a nuvem de cores vistosas que fazem de
Camelot a cidade das fadas por excelência.
Os complicados mapas do palácio de Artur descrevem em seu
centro um imenso salão rodeado de cozinhas e de dormitórios com vista
para o campo de torneios. Mais além, sob um teto abobadado, arde um
lenho de carvalho seco e, entre mantos de fumo e de penumbra, se
entrevêem os escudos dos cavaleiros talhados em pedra. Diz-se que
depois que o proprietário tivesse realizado alguma façanha digna de
ser recordada, seu emblema e suas armas eram lavrados nas paredes.
Diz-se, ainda, que enquanto o escudo de Gawain pesava devido à
quantidade de brasões que carregava, o de Mordred permanecia tão
vazio quanto a sensação que deixa a morte quando nos leva aqueles
que nos são mais próximos. Ali, nas reuniões dos grandes salões, e
com Merlin ao centro dos comensais, escutavam-se as histórias
guerreiras, os encontros místicos e os juramentos para buscar sem
descanso o mítico Santo Graal.
Por vezes Merlin evocava o passado, e de permeio a frases e
reflexões pouco compreensíveis, e que ele mesmo sabia não ser dirigidas
a si próprio, os cavaleiros se tornavam também depositários de suas
profecias. Disse ele mais de uma vez, porém não lho acreditaram: Artur
seria levado um dia para a ilha de Avalon, conduzido pela fada
Morgana, pela Dama de Shalott e por outras rainhas das fadas, e
Camelot se desvaneceria para sempre entre as brumas do crepúsculo.
Até onde sabemos, não existiu um Merlin feminino nem uma
maga dotada de seus extraordinários dotes proféticos, ainda que
feiticeiras ou bruxas imitem seus trajes negros ou o gorro tacheado de
estrelas que brilham estranhamente à luz da lua ou do sol. De fato, a
história não nos consigna uma única demiurga, talvez porque, tal como
ocorrera na Ásia tradicional, nunca se reconheceu às mulheres
propensão para a sabedoria, embora na prática zen uma mulher anciã,
sempre despojada de identidade própria, pudesse educar um mestre.
Os druidas compreendiam que o verdadeiro culto às disciplinas do
mistério deveria ser feito do interior para o exterior, e não o contrário,
da forma desvirtuada que acabou assumindo com o tempo, tal como
ocorreu no mito fáustico. É por isso que a antiga ciência ficara
plasmada em edifícios remotos, cuja arquitetura testifica até que ponto
eram apreciados, então, o dom da terra, as leis do cosmos e a tríplice
natureza do ser humano, ou seja, sua estrutura metafísica, composta
de alma, corpo e espírito.
Tendo Merlin à frente de um culto à Mãe Terra, ou Gaia, os
druidas eram os sábios sacerdotes de uma religião que consagrava os
bosques para oficiar seus ritos e viver em harmonia. Daí seu interesse
por sondar as fontes profundas da energia, o poder dos elementos e a
força da palavra como princípio estético inseparável do louvor, sempre
relacionado com o canto poético; e a voz humana como fio criador da
divindade que se reconhece na alma. Foi por isso que descobriram os
segredos que ocultam as pedras diante delas realizaram suas curas e
sobre elas celebraram seus atos rituais Também manipularam os
minerais como instrumentos divinatórios e de auxílio em suas curas;
consideraram milagrosas as águas de certas fontes e mananciais e,
quanto ao fogo, situaram-no no centro mágico da clareira do bosque,
onde elaboravam remédios com ervas, meditavam assiduamente e
equilibravam a vida com a certeza do despertar do deus interior, tido
como o mais alto intento a ser alcançado pelo ser neste mundo.
Merlin adotou a vida silvestre como condição formativa para sua
capacidade profética; a Dama do Lago, por sua vez, reinava na pureza
de seu ambiente, ainda que carecesse de outros dons que enalteciam
seu rival. Cantava como as ninfas, dominava o poder dos metais e
exercia certa influência não revelada sobre os homens, como a
faculdade da sedução; ignorava, por outro lado, tudo a respeito da
sabedoria de Merlin e invejava seu poder criador manifesto por meio
dos ritos secretos. Em meio a essas diferenças demiúrgicas, houve,
entre eles, disputas não registradas pelos procedimentos mágicos e
que, certamente, influíram em favor da astúcia egoísta e em
detrimento de um conhecimento sagrado, o qual se busca ainda hoje
sob princípios reconhecidos no advento da Nova Era.
Ninguém consegue explicar exatamente porque o druidismo
declinou; há, porém, indícios de que quando a Dama do Lago
consumou seu plano de aprisionar Merlin - confuso e enamorado dela -
, essa religião perdeu seu vigor e a própria natureza divinatória em
meio ao abuso, à insensatez e à perda de harmonia entre os homens
que, todavia, aspiram hoje a um estado de plenitude diferente,
alcançado mediante o equilíbrio entre o velho e o novo.
As lendas arturianas estão povoadas por uma multidão de damas
feéricas, e acredita-se que a partir de então as fadas sofreram um
processo evemerista por meio do qual muitas foram convertidas em
feiticeiras. Seus nomes acabaram enredados às andanças dos cavaleiros;
a Dama do Lago, particularmente relacionada com o próprio Merlin,
com Lancelot e com Artur, é algumas vezes uma donzela aquática, em
outras uma aliada do rei, um enigma não resolvido, um nome
mencionado como Nimue, Niniane ou Viviane, a última druidesa e filha
das águas, sempre sedutora e dotada de atributos, a quem Merlin
revela, para sua desgraça, todos os seus segredos sibilinos.
Em outra das versões que pretendem desvendar suas origens,
Merlin - com cuja ajuda Artur obteve a coroa da Inglaterra -, é filho de
um incubo que teria violado uma princesa de Dyfed, ainda que as más
línguas de Camelot rumorejassem pelas oficinas e casarios que ele era
filho de uma monja seduzida pelo próprio demônio. O certo é que
ninguém jamais pôde contar nada de certo sobre ele sem incorrer em
outras lendas que, superpostas ao episódio anteriormente descrito,
acabaram por convertê-lo em mito. Considerado pelos relatos somente
um menino sem pai, dotado de uma inteligência e engenhosidade nada
comuns, foi também reputado como um bruxo sobrenatural que teria
estudado com o famoso mago Blaise da Bretanha, ainda que logo tenha
superado seu mestre para se consagrar à ciência mágica por excelência,
celebrada diante dos altares sibilinos dos druidas, de cujas origens
pouco se sabe, salvo que sua sabedoria poderia provir de terras
distantes, do Oriente Médio, do Egito, do antigo Afeganistão, da Índia,
do longínquo Tibete ou de algum ponto ainda mais remoto e
completamente esquecido.
A tradição oral, inclusive, situa o druidismo nas Ilhas do Norte do
Mundo, que Tácito e Solino identificaram com a famosa Mona, ou
Anglesey, e que eles mesmos renomearam como ilha dos Siluros. Outros
estudiosos afirmam que não se tratava exatamente de uma ilha, mas dos
restos da mítica Atlântida ocupados pelo povo celta-druídico,
descendente de sua grande civilização, e ao qual Merlin pertencia.
Simbólica ou não, para os especialistas arturianos essa terra não é
outra que a ilha de Avalon, ou ilha das Macieiras, morada imemorial de
deuses, sábios e seres superiores que ensinaram como utilizar a força
única do homem interior, aquela que não reconhece distâncias entre o
espaço e o tempo porque ambas são dimensões que não existem.
Merlin, o personagem mais fascinante de todo o druidismo,
tinha poderes especiais sobre os metais, as pedras e a água, os quais
lhe permitiram cravar uma espada em uma bigorna, fazer flutuar uma
pedra de moinho, controlar o mar enfurecido ou fazer com que as
próprias muralhas de Camelot derribassem seus inimigos quando estes
pretendiam escalá-las. Foi chamado de grande sábio - antes que
sequer se imaginasse que sucumbiria ao amor e à astúcia -, levando a
seu ponto mais elevado a condição de druida real, de prelado, de
mago, teólogo, mestre ou filósofo que velava sobre as coisas divinas,
que especulava metafisicamente e regulava a vida política como
intermediário bendito entre os assuntos profanos e o mundo divino.
Era essa posição que desejava para si a Dama do Lago: o domínio do
espírito e um saber tal que lhe permitisse interpretar as questões mais
intrincadas da natureza e do homem.
Merlin praticou melhor que qualquer outro o dom da profecia,
ainda que, tal como ocorreu com Cassandra na antiga Tróia, tenha sido
condenado a não ser crido. Distinguiu-se por empenhar sua sagacidade
em prol do ciclo arturiano; mas se aproximou dos maus ofícios dos
deuses helênicos quando, após ocultar a verdadeira identidade de
Uther para permitir a geração de Artur, o guerreiro se enamorou tão
perdidamente da duquesa que Merlin predisse um triste fado para o
menino. Prognosticou que com ele acabaria o reinado dos Pendragon e
que seus inimigos o matariam. Foi por isso que Ingreine entregou-lhe o
menino, para que o mago, por sua vez, o colocasse sob a tutela do
nobre cavaleiro Sir Heitor, que o faria batizar com o nome de Artur e o
criaria como se fosse seu próprio filho.
Velho e combalido, o rei Uther abençoou o menino em seu leito
de agonia e proclamou-o seu sucessor, ainda que seus homens nunca
tivessem tido anteriormente quaisquer notícias de sua existência. Sobre
seu cadáver desencadeou-se, em torno da coroa, o conflito fundador da
saga cavalheiresca, consagrada pela mística busca do Santo Graal na
qual se interpuseram as mais estranhas profecias à arte dos
encantamentos e à devoção religiosa. Multiplicaram-se as lutas entre os
chefes rebeldes e o exército não reconheceu a legitimidade do herdeiro de
Uther. Somente a magia de Merlin - que desde então avivou a sua lenda
- atinou uma solução: fez aparecer uma espada cravada em uma
rocha, com uma legenda em letras de ouro declarando que aquele que
conseguisse arrancar a espada do coração da pedra seria por direito o rei
da Inglaterra. Um por um os cavalheiros mais fortes tentaram arrancá-
la em vão. Chegada a vez de Artur, Merlin piscou os olhos enquanto
todos caçoavam do atrevimento do jovem em tentar executar tal
façanha.
Quando Artur retirou a espada, aparentemente sem qualquer
esforço, os cavaleiros vencidos murmuraram que aquele menino
franzino devia ser filho das fadas, que era resguardado por poderes
maiores e que seguramente havia sido deixado na praia por uma onda
dourada. Para eles, era impossível aceitar um monarca desprovido de
força própria e abonado pela magia; desse modo, deram a prova por
anulada e continuaram a lutar uns contra os outros. Em vez de
participar da festa de coroação, os soldados mandaram informar que
dariam ao novo rei como presente "espadas afiadas, entre o pescoço e
os ombros". Longe de se amedrontar, Artur respondeu ao desafio
recrutando Sir Heitor, seu pai adotivo, e outros cavaleiros leais, com os
quais triunfou sobre os adversários em memoráveis batalhas já
previstas por Merlin, durante as quais teve ocasião de exibir tal força e
destreza que a maior parte dos inimigos acabou prostrada e depondo
suas armas perante ele.
A Dama do Lago interveio quando, em um dos combates, a
espada de Artur se quebrou, a mesma que ele havia arrancado da
rocha. Merlin conduziu-o a um lago solitário. Do fundo de suas águas
ergueu-se um único braço, cuja mão feminina sustentava outra espada,
mais reluzente e vigorosa, com a qual seriam assegurados seus triunfos.
A discípula de Merlin apareceu, então, mostrando-se de corpo inteiro
para anunciar que o nome daquela espada era Excalibur, e que
pertencia a Artur por direito ancestral. Seus poderes mágicos lhe
garantiriam sempre a vitória, sob a condição de que somente a
empunhasse em defesa do reino e em nome da fé.
Como é costume observar-se entre demiurgos e outras criaturas
que de algum modo compartilham poderes supremos, Merlin se deixou
seduzir por Niniane, que o adulou no intuito de aprender seus feitiços e
encantamentos. Quando a mítica Dama do Lago se cansou dele, valeu-se
de um de seus feitiços para encerrá-lo no interior de um carvalho.
Dizem os especialistas que, nos territórios que foram domínio daqueles
prodigiosos druidas, considerados os guardiões dos bosques, quando
alguém caminha por entre as árvores pode ser surpreendido por um
rosto triste, inofensivo e barbado que assiste a passagem do tempo
assomado pela rusticidade de sua prisão vegetal.
Outras versões afirmam que Merlin foi encerrado em uma
caverna, também por Viviane, enquanto ela reina, placidamente e até
os dias de hoje, sobre as paisagens de Camelot. O certo é que a
memória de um não perduraria sem as artes da outra, e que o mundo
não seria o mesmo sem suas lendas evocativas da ânsia que moveu os
homens de todas as épocas a buscar o saber secreto reservado apenas
a alguns privilegiados.
A Dama
de Shalott

Desciam as brumas de permeio à tarde. A distância se escutava o


serpentear de uma corrente que subia e baixava por entre penhascos
e desfiladeiros sinuosos. Um ventinho gelado paralisava as vozes e a
umidade entorpecia os ossos de um caminhante que havia jurado não
voltar às suas terras sem contemplar, ao menos uma vez, a Dama que
o atormentava em sonhos sob a forma de uma donzela de formosos
cabelos, e que permanecia sempre assentada diante de uma tapeçaria
colorida na qual bordava cenas de um mundo do qual não participava
e que tampouco conseguia compreender.
Passo a passo seguiu o caminho; de cada lado do rio deviam se
estender grandes plantações de cevada e de trigo que recobriam a
terra, e que se perdiam na capa nublada através da qual tênues raios
de sol infiltravam-se nas vagas de espigas, onde se ocultavam as fadas.
À frente, sempre adiante conforme lhe indicasse a paisagem,
encontraria os profundos sulcos pisados pelos camponeses ao se
divisar as torres de Camelot. Uma vez embrenhado no bosque, toparia
algum estranho; mas não devia lhe falar de frente nem se distrair com
os sons provenientes dos carvalhos nodosos, pois corria o risco de cair
presa do encantamento dos elfos que pululavam furtivamente no lugar
ou de se envolver nas costumeiras travessuras dos pixies ou dos
duendes. Logo a seguir, divisaria um campo de lírios crescendo na
ladeira e, mais além, onde as águas se separavam em duas como se de
fato envolvessem as árvores em um abraço, encontraria a ilha de
Shalott com seu castelo ameado e, diante dela, a grande ponte de
Camelot, que rangia ao amanhecer sobre o fosso para repousar
durante algumas horas sobre a verde pradaria, onde tampouco se
devia descansar à luz da lua, a não ser que os archotes acesos nos
torreões iluminassem claramente o local.
O viandante descobriu que a paisagem era cambiante, como o
véu de salgueiros esbranquiçados e de alamos que ondulava rio abaixo
sob os raios violáceos do crepúsculo. A brisa carregava consigo o silêncio
que trouxera de longe para estendê-lo entre as quatro torres e as quatro
muralhas acinzentadas de Camelot, acabando por depositá-lo sobre um
canteiro de flores que resguardava a ilha onde a Dama de Shalott1
cantava doces toadas nostálgicas.
Nas cercanias da cidade, um par de camponeses lhe disse que,
nas horas de claridade, podia-se distinguir o vulto da Dama de Shalott
a distância, sentada frente ao tear; que ela estava sempre lá em cima,
na parte mais alta do castelo, onde pousam as andorinhas e os
pardais; disse-lhe, porém, que os olhos humanos não conseguiam
divisar a suavidade de seus dedos nem percebiam os fios finíssimos com
que ela desenhava as coisas que perpassavam diante dela, em seu
espelho azul e encantado; que a Dama não passeava e que jamais era
vista pelas ruelas de Camelot. Aconselharam-no insistentemente a não
tentar chamá-la, pois sua magia era insegura e imprevisíveis os
resultados. Mais para desorientá-lo e pelo afã de inventar que era um
traço característico das mulheres de Camelot, asseguravam que
algumas vezes ela saía furtivamente na solidão da noite a fim de
navegar o rio em sua barca de velas de seda; mas ninguém conseguira
jamais descobrir para onde se dirigia nem que misteriosas tarefas a
ocupavam sob os raios da lua. Tanto essa como outras coisas que se
murmuravam sobre sua estada na torre eram difíceis de se acreditar,
mesmo porque nunca faltava a presença daquela silhueta desde o
começo da aurora até o cair da noite e, quando dissipado pela
tormenta, o eco de sua voz viajava rio abaixo como o rumor de uma
mesma melodia: "Esta é a Dama de Shalott, esta é sua voz, este é o
sussurro que guarda um segredo".
Os mais entendidos, talvez para não perdê-la de vista, disseram
que ela fiava sem repouso e sem distinguir noite e dia; que tramava
um tecido destinado a vencer a morte e que, se alguém contemplasse
alguma de suas tapeçarias, desvendaria em suas cenas a maneira
como a Dama de Shalott lutava em favor da vida. "Invenções, nada mais
que invenções", protestavam as vozes dos que acreditavam na versão de
que tecer era próprio das fadas, ao passo que a Dama de Shalott
cantava como rainha e senhora; e o fazia não para celebrar a paisagem
que invadia seu espelho pela janela, mas aquela apreendida pelo reflexo
que prendia sua visão à magia daquele espelho.
Assim, enquanto bordava vislumbres daquele reflexo, seu
universo se desdobrava em três por intervenção do próprio espelho. O
primeiro era o curso da existência que transcorria lã embaixo; o outro,
a imagem azul que se invertia no espelho; e um terceiro, distinto e
inesperado, correspondia à cena que ela interpretava sobre a superfície
polida, que sempre pairava entre seus olhos e a claridade que
penetrava pela janela. Para ela, não existiam diferenças entre as
sombras de um mundo e as luzes vindas lá de baixo, provindas dos
movimentos de uma Camelot diferente da verdadeira Camelot. Assim,
de sua visão deformada pelo direito e pelo oblíquo daquele azougue2, ela
criava uma cidade ilusória, segundo a orientação do espelho e desde a
perspectiva de sua janela. Unia o cosmos ao embalo dos trigais
parcialmente ocultos pelas brumas. Perdia a distância entre o bosque
e o vasto arroio. Não que as imagens avançassem para ela de trás para
a frente, mas porque contemplava as águas de cima para baixo. Das
mulheres, só divisava um gorro sobre as amplas saias, mãos que se
moviam ou as pontas de calçados rústicos que assomavam entre os
panos e as canastras que carregavam; dos animais, via somente
lombos com patas, talvez vacas diminutas a grande distância, pontos
indecifráveis.
Mágico como era, em seu espelho se achava a duplicidade da
forma que tomava por real durante as horas de luz, sempre azuladas.
Durante as noites chuvosas, as sombras se tingiam da cor da amora, e
então ela tecia cenas dolorosas, funerais com plumas e luzes e um
cortejo ao som de melodias plangentes pelos arrabaldes de Camelot. A
Dama de Shalott ignorava que, embora a forma fosse um reflexo, este
em si não tinha vida, não tinha leste nem oeste; por isso, em suas
tapeçarias maravilhosas, tudo era centro e margem, sem distinção de
tamanhos ou dimensões.
O caminho que conduzia a seu castelo era e não era o caminho
invertido que ela percebia. Riscava pelo azougue um rio diferente
daquele ondulante que retumbava pela planície, e os camponeses, as
jovens a caminho do mercado, as aves, os duendes e até mesmo os
trevos enigmáticos passavam diante de seus olhos mediante o
capricho do cristal enganoso. Em uma noite diferente de todas as
noites, a Dama notou um casal de amantes que sussurrava junto aos
salgueiros, sob o esplendor da lua. "Estou doente de sombras", disse
então a seu espelho, ainda que a sua tristeza não tivesse brotado
naquele instante, mas depois da passagem de uma comitiva de
cavaleiros, e tivesse surgido acompanhada por um sentimento de
ansiedade que lhe varou o coração.
"Não tenho para mim um homem honesto e leal", pensou ela ao
perceber que, em uma confusa imagem entre o espelho e a realidade,
Lancelot cavalgava vestido de armadura e escudo, cantando enquanto
subia a ladeira. Seguiu-lhe o vulto através do cristal como se fosse um
resplendor, e cansada de sua sina, abandonou o tear, a meada e o fuso
para se pôr a dar voltas ao redor de seu quarto, antes de finalmente
decidir se mostrar diretamente pela janela. Pela primeira vez
contemplou os lírios, o elmo e a pluma que ostentava o cavaleiro, e ao
se voltar novamente para sua tapeçaria, eis que o espelho se partiu em
mil pedaços. "O feitiço recaiu sobre mim", disse aos prantos, e
imediatamente desatou uma tempestade que fazia sibilar os ramos das
árvores e estremecer as águas do rio.
Espantada, saiu correndo de seu castelo em busca do jovem e,
antes de soltar as amarras da embarcação que a esperava sob os
salgueiros, gravou "A Dama de Shalott" em sua proa. Pressentiu seu
infortúnio; mas já não havia regresso. O mundo, seu mundo,
desintegrava-se frente às muralhas de Camelot, a Camelot tão
desejada, onde habitava seu adorável Lancelot. Decidiu navegar contra
a borrasca e enfrentar o próprio destino. O vento fazia tremular seu
manto branquíssimo. Olhava de frente, atenta às folhas que caíam das
árvores e, extasiada com as colinas e os trigais, começou a entoar para
ele uma canção tão suave e dorida que todos na cidade permaneceram
quedos, imóveis como se tivessem sido enfeitiçados.
Transformada agora apenas em sombra dolente de sua sombra,
passou recostada em sua barca bem em frente ao peregrino sem se
deter um só momento. Ele a chamava em vão. Ora cantando baixinho,
ora erguendo a voz em canto, a Dama revelava um rosto tão pálido
quanto sua capa de seda. Sempre melancólica, sempre sagrada, sua
voz esvaía-se enquanto seu olhar escurecia e seu sangue congelava ao
ritmo pausado de sua canção.
Cantou até seu último alento. Encontraram-na morta, jazendo
sob as torres e os balcões da cidade. Cheios de espanto, todos ficaram
rendidos diante de sua beleza: o cavaleiro e o mendigo, as damas e os
camponeses; mas ninguém sabia dizer de quem se tratava. "Quem é
esta donzela? Como conseguiu chegar até aqui?" - indagavam-se em
coro até que alguns homens se aproximaram dela a fim de esclarecer o
mistério. Foi Lancelot quem leu seu nome na proa da barca e soube
primeiro que a Dama de Shalott havia sido vítima da magia. Era por
isso que tecia somente aquilo que podia conhecer através do espelho, e
por isso encontrara a morte ao se enamorar de seu reflexo. "Pobre
donzela formosa" - murmurou com tristeza - "que Deus a receba em
seu seio".
Ninguém conseguiu entender os desenhos de suas tapeçarias.
Foram encontradas junto ao tear, todas rotas, em meio a vidros
estilhaçados.
1 A concepção do famoso poema de Alfred, Lord Tennyson, composto inicialmente
em 1832 e bastante modificado para sua publicação em 1842, parece ser totalmente
original. A Dama de Shalott não deve ser confundida com a Dama do Lago, um mito
multissecular. O poema descreve Shalott como uma ilha localizada "a jusante" [rio
acima] de Camelot. Trata-se de uma alegoria da condição das mulheres da aristocracia
vitoriana, cuja visão do mundo tinha pouco a ver com a realidade, protegidas em
suas mansões pelas fortunas acumuladas por seus parentes masculinos durante a
Revolução Industrial e pelos exércitos do Império Britânico, sem conhecer nada do
sofrimento dos operários, para não falar das "raças de cor que o reino benevolamente
"protegia". Era como se tecessem em suas mentes tapeçarias de um mundo mágico
contemplado através de um espelho distorcido, em "ouro sobre azul", sem que jamais
"assomassem ã janela" para ver a realidade. Como fontes remotas, encontramos
alusões na "Rainha das Fadas", de Edmund Spenser, nos "Poemas Traduzidos do
Gaélico", de James Macpherson e especialmente na "Ilha Arroxeada", de Phineas
Fletcher, que podem ou não ter despertado em Tennyson a inspiração para compor o
poema que popularizou a personagem. [N.T]
2 Designação vulgar do mercúrio, é usada em sentido figurado. De fato, os alquimistas
usavam bacias de "prata viva", contendo mercúrio líquido, onde se entreviam reflexos
de imagens distorcidas, dadas como mágicas, representando o passado e o futuro. Mas
os antigos somente conheciam espelhos de metal polido, de ouro ou prata e,
especialmente, de bronze. [N.T.].
Cinderela

Desde que, no ano de 1697, Charles Perrault recolheu em seus Contos


da Mamãe Ganso a personagem de um antigo relato chinês, talvez
procedente do século IX - ainda que haja indícios de que era repetido
há muitas gerações por meio da tradição oral -, Cinderela1 se
converteu em uma das figuras centrais da literatura moderna e
contemporânea. Dentre centenas de versões infantis, multiplicadas em
todas as línguas, ninguém poderia dizer qual é a variante mais fiel à
versão inicial nem como essa delicada donzela pôde se elevar a tantos e
tão contraditórios símbolos do feminino, relacionados com o trabalho
esmerado e a ausência de recompensa. O certo é que em torno de um
drama desenvolvido a partir da rivalidade entremeada pela inveja,
descobrimos que, além de protagonizar uma intricada trama de
abnegação abjeta, típica da mulher degradada, sua infelicidade
demonstra que, em um caso de tamanha perversidade como esse,
somente a magia é capaz de modificar a condenação doméstica das
mulheres.
Cinderela, típico conto de inspiração oriental, desses que
atravessam histórias ocultas e surpreendentes, fascina as gerações não
somente por sua estrutura infantil, mas pelo triunfo contido no poder
sobrenatural sobre as condutas malsãs. Em princípio, ela é
duplamente vítima da segunda escolha matrimonial de seu pai, um
gentil homem sem caráter nem vontade própria, e do desprezo de uma
madrasta que, consciente da fealdade física e moral de suas próprias
filhas, e quiçá também ressentida por ser de berço plebeu, reduz a
orfandade da jovem a uma vil submissão, do que deriva sua alcunha,
pois ao terminar suas tarefas, sentava-se a sonhar diante da chaminé,
próxima aos montões de cinza que seguramente a sujavam da cabeça
aos pés, até fazer com que ela parecesse a mais miserável das filhas da
terra.
Condenada a realizar as tarefas domésticas mais árduas,
Cinderela é a sombra encinzada de um passado nobre que sucumbe ao
autoritarismo de três mulheres ciumentas, que não podem suportar
suas virtudes nem a frescura radiante de sua pureza. Seus farrapos
não a enfeavam. Não se perturbava com a maldade das irmãs adotivas;
tampouco os rigores que sofria faziam-na quebrantar a promessa que
fizera a si mesma de não se queixar para poupar seu pai indiferente,
um pobre diabo que passa pelo conto de forma quase despercebida.
Enquanto as outras despojavam-na do conforto que lhe cabia por
direito de herança, Cinderela contava suas aflições aos ratos e aliviava
sua solidão graças à imaginação que emprestava vida a suas fantasias.
Aconteceu que um dia o filho do rei organizou um baile no palácio
para reunir todas as moças casadoiras e de boa situação social que
habitavam em seus domínios. Incentivadas por sua mãe, as irmãs
sequer consideraram a possibilidade de levar Cinderela consigo, ainda
que o convite se estendesse a todas as filhas em idade de comparecer.
Prepararam seus atavios com a intenção de deslumbrar o herdeiro do
trono e, talvez, com um pouco de sorte, conquistar-lhe o coração e
tomarem parte da família real.
A mais velha escolheu um vestido de veludo com adereços
ingleses; a mais moça preferiu um colar de diamantes que reluzisse
por baixo de um casaco bordado com flores de ouro. Generosa como
era, Cinderela preparou seus banhos e se ofereceu para lhes pentear os
cabelos, embora aquele trio de gordas insultasse-na cada vez mais
conforme comprovavam nos espelhos que, não obstante seus artifícios,
não conseguiriam jamais competir em formosura com a menina
maltrapilha, e que nem a mais perfeita maquilagem conseguiria
disfarçar a expressão de inveja que desfigurava seus rostos.
Resignada com sua sorte, logo Cinderela ficou ainda mais triste,
abandonada naquele casarão, sem imaginar que suas desgraças estavam
por terminar. Dirigiu-se à janela para acompanhar a carruagem que
levava suas irmãs pela vereda que atravessava os bosques e conduzia ao
palácio real. Em seguida, sempre melancólica de um porvir mais
amável, chorou sobre os utensílios acantoados junto ao fogão a lenha.
Ali, em uma solidão penumbrosa, seu mundo se iluminou com a súbita
aparição de uma fada-madrinha que, comovida com seu sofrimento,
indagou-lhe sobre o que se passava. Entre soluços, mal podia responder
à dama radiante que levitava a seu lado; antes mesmo que pudesse
suspeitar do alcance daquele prodígio, a fada conduziu-a ao seu
quarto e ordenou que saísse para o horto e lhe trouxesse a abóbora
que serviria de instrumento para modificar sua existência.
Munida de uma varinha de condão, dessas que despertam os
sonhos e tornam possível o que nenhum ser humano é capaz de
realizar, a formosa madrinha esvaziou a abóbora e a tocou com sua
varinha mágica, transformando-a em uma linda carruagem dourada. A
seguir livrou os seis ratos que guinchavam de espanto na ratoeira para
transformá-los em seis ágeis corcéis de uma rara pelagem acinzentada,
e depois converteu uma enorme ratazana em um cocheiro ataviado e
com magnífico bigode. Satisfeita com a tarefa, a fada pediu a
Cinderela que voltasse ao horto por causa de seis lagartixas que
pernoitavam embaixo das pedras, às quais transformou em seis
lacaios uniformizados com trajes bordados que a escoltariam
aprumados na parte traseira daquela carruagem digna de sua
indiscutível nobreza.
A fada-madrinha repetiu docemente uma série de frases
incompreensíveis e então tocou a jovem com sua varinha de condão, a
fim de transformar seus farrapos em um traje deslumbrantemente
bordado com delicadas pedras preciosas. Calçou-lhe sapatinhos de
cristal e, de tão limpa e engalanada, Cinderela acreditou que a imagem
refletida no espelho era de outra jovem e não a sua. Como em todos os
atos de encantamento, também neste caso havia condições: se
permanecesse no baile depois da última badalada da meia-noite, tudo
regressaria à sua forma anterior, sua realidade seria descoberta e ela
exibiria a todos a sua miséria. A fada insistiu para que não se
esquecesse disso: ceder à tentação de um prazer continuado poderia
reduzi-la à donzela insossa que era até o momento em que vislumbrou
magicamente a possibilidade de aspirar à mais alta pretensão possível
para uma mulher de sua condição. Com um pouco de sagacidade, sua
obediência seria recompensada com nada menos que a felicidade
matrimonial, a qual, depois de transpor alguns obstáculos, a livraria
para sempre de seu estado de submissão.
Atenta às instruções da fada, Cinderela dirigiu-se ao baile sem
alimentar maior esperança do que se divertir por algumas horas. Ela foi
anunciada como uma princesa de origem desconhecida, enquanto o
príncipe, deslumbrado, acorreu a recebê-la diante do silêncio
expectante dos convidados. "Que bela é! - diziam todos em sussurros
de espanto. - "Nunca houve no reino uma dama tão elegante, e o filho
do rei jamais mostrou tanto interesse por outra donzela". Enquanto
isso, ela saudava a todos com a graça de quem se sabe admirada.
Dançaram depois durante toda a noite, sem cessar, salvo quando ante
a ingenuidade das irmãs adotivas, Cinderela parou diante delas para
lhes oferecer laranjas, sem que suspeitassem por um só momento de
sua identidade.
Em um canto do imenso salão, quando o relógio estava a ponto de
tocar as doze badaladas, a jovem pressentiu que sua fantasia declinava.
Teve tempo, apenas, de se despedir de seu anfitrião com uma
reverência e depois saiu apressadamente, conforme lhe recomendara a
fada-madrinha. Na correria perdeu um dos sapatinhos de cristal, mas
não se deteve para apanhá-lo, temendo ser descoberta. Ao retornar,
contou à fada o que havia sucedido e depois ficou esperando o regresso
de suas irmãs, envolta em devaneios.
Quando elas chegaram, Cinderela fingiu estar dormindo. Ainda
assim, elas lhe relataram a misteriosa aventura e novamente a
cobriram de insultos a fim de humilhá-la.
Os acontecimentos seguintes completam uma história de amor e
de arrependimento que, por sua carga de feitos extraordinários, eleva a
fantasia à recompensa de uma virtude que não corresponde à dureza de
uma vida de privações. Segundo a versão mais popular de Charles
Perrault, não houve um, mas dois bailes, e foi no segundo que
Cinderela se descuidou da hora e perdeu o sapatinho enquanto fugia.
Como se sabe, os enviados do rei procuraram-na por todo o reino e,
finalmente, quando a busca pela donzela parecia inútil, as irmãs
adotivas trataram de encaixar seus pés gorduchos de qualquer forma
no sapatinho, até que a justiça colocou Cinderela no lugar que lhe
pertencia por direito.
Os contos de fadas, príncipes e princesas encheram a
imaginação de crianças e adultos. Nesta trama, todavia, oculta-se mais
de uma verdade lamentável a respeito da obstinação das mulheres
medíocres, para as quais, perversas ou não, não há anseio maior do
que aquele que se confirma com um bom casamento. Por culpa do pai,
a menina sofreu a humilhação das irmãs de criação; uma fada
protetora apareceu como anjo portador da chave para a vida adulta e,
graças à atração exercida sobre um príncipe entediado, Cinderela
consumou uma aspiração exemplar e redentora, livrando-se assim das
perseguições de suas parentas perversas.
Das mais de quinhentas modalidades de Cinderela existentes na
vida real, uma única permanece como exemplo a ser seguido para se
atingir o paraíso matrimonial. Os psicanalistas associam-na com
passagens edipianas da adolescência, e sobre essa personagem recaem
centenas de símbolos relacionados com a infância indefesa, a auto-
estima e a transferência do poder. As feministas abominam sua
domesticidade fácil, enquanto as crianças identificam suas fantasias
com o mundo idílico das transformações mágicas. Essa donzela coberta
de cinzas que ascende ao trono por obra de um encantamento oferece a
todos algum tipo de satisfação. O curioso é que a motivação do amor à
primeira vista basta-se a si mesma, e que, uma vez ocorrido o des-
lumbramento, a ninguém interessa o porvir rotineiro de um casal em
cuja vida nada do que acontece tenha sido obtido por mérito próprio.
Perder e encontrar o sapatinho da Cinderela, como se fosse a
senha para um destino prometedor depois de se esquivar das peripécias
que implicam a presença de magos, gênios ou fadas, foi um dos
recursos mais exitosos entre os contadores de contos antigos, os quais,
por meio de um objeto carregado de magia, enlaçam os mundos da
realeza e das pessoas simples, dois universos que, embora não tenham
nada em comum na realidade, alcançam uma unidade impossível
graças aos poderes do sortilégio.
Na Índia é comum se encontrar narrativas desse tipo,
envolvendo símbolos que resgatam assuntos relativos a
encantamentos, ainda que esses talismãs não sejam exatamente
chinelinhas ou sapatinhos de cristal, mas anéis, lâmpadas
prodigiosas, tapetes, animais ou o sem-fim de objetos que permitem ao
herói desafiar a sorte para triunfar sobre a adversidade e, aproveitando
o ensejo, namorar mulheres e princesas maravilhosas com as quais se
pode mudar de destino e ascender ao poder com uma carga
sobrenatural de sabedoria.
Existem na literatura variantes remotas de Cinderela, que não
requerem a intervenção de fadas nem de gênios para alterar a ordem
natural da existência, tal como ocorre na popular versão de Perrault,
porque na Índia os símbolos tecem histórias nas quais a magia é a
recompensa do acaso para seres aparentemente insignificantes. Assim se
observa, por exemplo, em um conto envolvendo um sapato de ouro e
pedraria que deixa louco de amor a quem quer que o encontre por
acidente, fazendo com que o novo proprietário não se renda diante de
qualquer obstáculo até encontrar o pé para o qual ele foi fabricado;
quando isso felizmente acontece, desperta-se uma intriga de poder,
ciúme e perversidade que lembra em muito as intrincadas narrativas
de As Mil e Uma Noites. Na Índia setentrional, conta-se também o
contrário, desta vez envolvendo uma mulher casada. Trata-se da
princesa Suvernadevi, que, após desposar o príncipe Chitrasekhara -
como forma de recompensa por havê-la libertado de um gigante
maligno que a mantinha cativa e ameaçada de morte -, perdeu sua
preciosa chinelinha quando passeava por um dos viveiros reais. Um
pescador encontrou ali o calçado e, sem a menor hesitação, vendeu-o a
um mercador que, por sua vez, ofereceu-o como presente ao temível rei
Ubrabâju, famoso por seus caprichos. Este, só de contemplar a
chinelinha, imaginou que sua vida nunca mais seria a mesma se não
pudesse possuir-lhe a dona, pois mulher alguma poderia ostentar um
objeto tão delicado sem ser dotada dos pés mais refinados. E no
Oriente, como se sabe, os pés eram tidos como um sinal de alta
linhagem, desde que correspondessem às medidas apreciadas e se
apresentassem bem cuidados.
Por todo o seu reino viajaram os pajens proclamando que aquele
que descobrisse a identidade da dama e a apresentasse diante do rei
receberia uma suntuosa recompensa. Animada pela cobiça, uma velha
dada aos maus ofícios encarregou-se de decifrar o enigma seguindo as
pegadas do comerciante até a casa do pescador, por intermédio do qual
conseguiu identificar a dona da chinelinha. Porém, faltava agora
cumprir o requisito essencial de apresentar a jovem ao rei, para o que
era necessário livrar-se de seu marido. Imediatamente encaminhou-se
ao palácio do príncipe, disfarçada de cortesã. Depois de ganhar a
confiança da princesa Suvernadevi, acabou descobrindo que a vida do
príncipe Chitrasekhara, afamado por sua valentia, estava protegida
por um talismã conquistado por suas façanhas. Sem demora, lançou
mão de sua destreza a fim de destruí-lo e provocar-lhe uma morte
muito estranha, cuja causa foi imediatamente atribuída ao rei
Ubrabâju. Este, segundo afirmou a velha à viúva, desde que fora
atacado pelo desejo não desperdiçou ocasião para se desfazer de
Chitrasekhara.
Quando Suvernadevi contemplou o corpo jacente de seu marido,
levou-o ao leito nupcial e estendeu-o como se estivesse apenas
adormecido. Jurou não tocá-lo outra vez nem realizar seus funerais até
desvendar o enigma de sua morte e castigar o culpado. Todavia, logo
cedeu aos perniciosos mas eloqüentes conselhos da velha maligna e,
decidida a vingar seu amado, foi se apresentar ao rei Ubrabâju. Este,
empenhado em se casar com ela, fê-la encerrar em uma ala do palácio
enquanto providenciava os preparativos para os esponsais com o auxílio
da velha feiticeira.
Aconteceu que um irmão da princesa descobriu que um objeto
mágico havia desencadeado a desgraça, e que se encontravam em
perigo tanto o destino do reino como o da princesa; desse modo,
aventurou-se a impedir o encantamento. Ajudado pela magia, primeiro
devolveu à vida o príncipe defunto com o auxílio de um novo talismã
que anulava o efeito anterior; e após conseguirem libertar
Suvernadevi, depois de inúmeras peripécias, os dois heróis
restauraram o bem-estar familiar subjugando o perverso rei Ubrabâju e
sua inescrupulosa mensageira.
Ainda que sejam abundantes os monstros, as feiticeiras
aparentadas com bruxas e os tipos extraordinários de condutores das
trevas, na Índia não é comum encontrar-se histórias de fadas, nem as
cinderelas dessa cultura realizam amores maravilhosos pela
intervenção de cupidos comoventes. Em que pese o poder da magia,
no Oriente é mais comum que os enredos se sustentem na valentia.
Os heróis enfrentam as forças mais nefastas e, em meio a combates
edificantes, o bem, a lealdade e os demais atributos que engrandecem
os seres humanos acabam triunfando no final, conotando a dama a
um prêmio por merecimento. A amada, longe de aparecer em suas
vidas como um presente do destino, é a recompensa pela qual, em
geral, os heróis têm de lutar, e assim se tornam merecedores do
matrimônio, o que implica uma diferença notável entre a visão européia
do amor fantasiado e a conquista, por méritos próprios, de uma
mulher à altura de seus esforços.
Contudo, na tradição celta, típica da literatura anglo-saxão, as
fadas não são as mediadoras perfeitas entre os anjos e os humanos,
como se chegou a assegurar na Europa por volta do século XVII. As
mais afamadas pertencem a uma mesma espécie de seres
sobrenaturais, ainda que variem em tamanho, atributos morais,
origem, tempo de vida e poderes, o que as leva a ser freqüentemente
confundidas com aparições fantasmagóricas ou com mulheres
praticantes de magia.
A ciência das fadas é vasta e diversa. Apareceu e alcançou sua
maior força durante a Idade Média, e é desse período que se origina o
costume de não chamá-las por seus nomes nem retratar suas efígies;
ao contrário, são referidas e invocadas por meio de eufemismos como
"os bons vizinhos", "a boa gente", "elas", "a corte bendita" ou,
simplesmente, "os seres estranhos". Algumas são solitárias, outras
diminutas como insetos ou enormes como girafas; algumas vivem no
país encantado e são fiandeiras, tais como as Parcas, ou evocam deuses
degenerados; umas são espíritos da natureza, enquanto outras, as que
se agrupam sob o nome de brownies, caracterizam-se por trajar túnicas
verdes. Alguns narradores asseguram que, sem distinção de sexo, os
brownies não eram aceitos jamais no país das fadas por causa de seu
aspecto sujo e maltrapilho, e que somente podiam ser recebidos na
Corte Bendita quando ali se apresentassem decorosamente vestidos.
Ninguém poderia negar que, desde tempos imemoriais, as fadas
povoaram particularmente as ilhas britânicas, e que tanto na Irlanda
como na Escócia habitaram os bosques lado a lado com duendes,
gnomos ou elfos, cujas aventuras completam a vida poética daquelas
culturas. Seus afazeres enchem livros enormes. Longe de
desaparecerem, ressurgem em nosso tempo nas enciclopédias e nos
mais variados relatos modernos, porque ninguém se atreveria a negar
que, em se tratando de horrorizar, de assombrar e de maravilhar,
essas criaturas ensejam ocasiões inesgotáveis. É graças a elas que a
vida se livra do tédio e o mundo adquire uma luz diferente e sempre
cativante.
É possível que tanto a fada de Cinderela como outras que
freqüentam os refinados relatos de Perrault e de outros autores
franceses proviessem do ramo de fadas-madrinhas de origem celta que,
ao se adaptarem à cultura cristã, abandonaram sua origem pagã e
agreste para assumir o papel protetor de amadrinhar, que costuma ser
ratificado pela bênção do batismo.
Cristã ou pagã, a origem legendária de Cinderela ultrapassa a
diligência dos críticos na medida em que a imaginação admite o ato de
se extrair uma carruagem de ouro de uma humilde abóbora, e que isso
se faça acompanhar de um vestido maravilhoso e magicamente
elaborado para que um príncipe, ao vê-la no baile, se apaixone por uma
jovem que vive sob a humilhação de sua madrasta cruel. Criança ou
adulto, quem consegue ler na intervenção benéfica de uma fada-
madrinha o sentido implícito de uma fantasia deliciosa, compreende o
poder e o alcance da imaginação criadora.
Não é fácil para o homem comum ver as fadas. Elas aparecem ou
desaparecem a seu bel-prazer, ainda que os entendidos afirmem que,
por meio de um trevo de quatro folhas ou mediante o uso do célebre
ungüento das fadas - composto precisamente desses trevos -, o
encanto que elas impõem sobre os sentidos humanos se dispersa; e
que, uma vez tocado o olho com o medicamento, a vista pode penetrar
os disfarces que as ocultam. Dizem também os sábios que os resultados
de seu poder somente podem ser anulados por um sopro do alento de
outra fada, ou pela cegueira do olho imposta por vingança ao curioso,
que o deixa imerso em trevas por se haver atrevido a ter com elas.
Certas pessoas dotadas podem vê-las sem sua permissão, mas
estas não são pessoas comuns. Devem possuir a "segunda visão", que
consiste do dom de desvendar somente os acontecimentos presentes ou
passados, embora algumas possam também prever eventos futuros.
Há videntes capazes de anunciar acontecimentos lúgubres, misteriosos
ou tristes; outros enxergam os relacionados com a bem-aventurança,
mas é apenas o encantamento que conduz o privilegiado ao país das
fadas.
É esse e não outro o prodígio que realizam essas criaturas que
nenhuma tecnologia pôde substituir, pois em seu caudal de aventuras
perdura a fé na existência de um mundo intermediário entre o
conhecido e o sobrenatural, entre a voz dos bosques e o chamado -
sempre fascinante e comovente - de uma palavra capaz de transformar
a desdita em felicidade e de administrar castigos àqueles que
transgridem as leis naturais.

1 O nome Cinderela, popularizado pelo filme de animação de Walt Disney e que


praticamente suplantou o nome tradicional português de A Gata Borralheira, deriva da
palavra Cinder, "borralho" ou "cinzas"; em todas as línguas ocidentais tem tradução
semelhante de "borralheira", embora o acréscimo de "gata" tenha sido lusitano. No
original, em espanhol, é La Cenicienta, derivado de ceniza. [N.T.]
As Rainhas
Catarina de
Medici

Sob o esplendor da Renascença, o século XVI empreendeu uma longa


rota de ódio por meio das guerras religiosas entre católicos e
protestantes, as quais, sem triunfos definitivos para um ou para outro
lado, culminaram com a grande luta do século XVII, que originou a crise
que antecedeu o advento dos Estados Nacionais.
A cultura católica não pôde se restabelecer totalmente naqueles
territórios então denominados Cristandade. A cultura protestante, por
outro lado, tampouco conseguiu se expandir pela totalidade das terras
cristãs, cumprindo-se a esperança da Igreja de Roma no século XVI,
depois desta haver "limpado" os hereges da Espanha e da Itália
mediante a reativação das fogueiras da Inquisição - convertida em
Santo Ofício pelo Papa Paulo IV por volta de 1555; a reação
empreendida pelo Concilio de Trento, com o propósito de reformar a
estrutura da Igreja e os costumes dos católicos; até a instituição, em
1571, daquela verdadeira catedral de fanatismo que recebeu o nome de
Congregação do Índex, destinada a proibir todos os livros "malditos", e
que continuaria em plena atividade até meados do século XX.
Enquanto essa reação católica, denominada Contra-Reforma,
obstinava-se em "extirpar as heresias" por meio das chamas ou com o
auxílio de hostes militares - que, na realidade, realizavam guerras de
conquista -, definiam-se as ações audazes e radicais de Lutero,
Calvino e Knox, principalmente, com o estabelecimento de "seitas" que
incluíam desde o rigoroso calvinismo escocês até o presbiterianismo de
Knox ou o atrevimento de Henrique VIII, na Inglaterra, ao se converter
em papa da Igreja Anglicana para confiscar bens eclesiásticos e poder
se casar com quem bem lhe agradasse. Assim, cada credo ou seita se
afirmou em suas regiões, determinou seus bens e fincou seus
interesses ao lado de seus respectivos modelos de Estado. Nessa
época, também conhecida como a da Reforma européia - por causa do
ímpeto protestante -, a Espanha recorreu à repressão violenta para
conservar a unidade do império e do clero; a Itália fez-se sede intocada
da Igreja de Roma; e a pátria de Lutero foi palco de incontáveis conflitos,
ainda que prontamente se tenha definido o compromisso em favor do
protestantismo, como já sucedera na Inglaterra e na Escócia, onde
também campearam os assassinatos entre a realeza e a burguesia.
Em uma França abertamente exposta às influências da Itália e
afetada por uma tremenda guerra civil que acabou favorecendo a
facção católica, pairou por cerca de cinqüenta anos a dúvida de se a fé
seria conservada ou perderia toda a Europa. A intransigência se inclinou
para o lado da ambição e da conquista territorial em detrimento do
talento político e militar daqueles que, entre os séculos XV e XVI,
apelavam para a razão moderada como um meio de equilibrar os
domínios da aristocracia, isso em plena efervescência de famílias ou
clãs que disputavam entre si a liderança hegemônica.
Foi esse cenário que a sorte reservou a Catarina de Medici, uma
notável personalidade política e cultural que, durante trinta anos,
soube assenhorear-se do poder e da condução faustosa do
renascimento liberal em seus domínios, até então assolados pela
rapina e pela intransigência mais excludente. Esposa de Henrique II,
da França, um perseguidor sistemático dos huguenotes, ou rebeldes
protestantes, após enviuvar se fez chamar "Catarina, rainha da França e
mãe do rei pela graça de Deus", e assim ostentou seu sinete,
imprimindo também sua efígie, ao se apoderar da regência herdada
por seus filhos: Francisco II, um adolescente neurótico que morreu
repentinamente, quase interdito, e que foi casado aos 15 anos com
Maria Stuart, da Escócia, membro do poderoso clã dos Guise; Carlos
IX, que reinaria por quatorze anos; e Henrique III seu descendente
preferido. Contemporânea de Elizabeth da Inglaterra, do imperador
Felipe II, de Maria Stuart e de grandes comandantes e banqueiros
italianos, Catarina foi um dos personagens femininos mais bem-
sucedidos da Renascença, apesar de sua reputação de envenenadora e
criminosa, adquirida com plena justiça por causa do afã em conservar o
cetro e o poder para seus filhos.
O clã dos Guise era encabeçado pelo grão-duque Francisco, que
tinha fama de ser um dos melhores guerreiros de sua época. Seus
membros eram originários da Lorena, embora a maior parte de suas
terras se encontrasse em território francês; e se consideravam
paladinos do catolicismo. Carlos de Guise, o clérigo mais abastado do
reino, era cardeal da Lorena e arcebispo de Reims. Tanto Francisco
como Carlos gozaram de grandes privilégios durante o reinado de
Henrique II; depois, seguindo os passos da implacável consorte, os
Guise também exerceram um poder efetivo sob o governo de seus
filhos e sucessores. Sua política era bastante simples, conforme escre-
veu Pierre Goubert: eliminar os Bourbons, descendentes de São Luís, e
os Montmorency, que se haviam autodenominado "os principais
barões da Cristandade"; com algumas variantes, uns e outros se
inclinavam a favor da Reforma protestante, o que suscitou rivalidades
tão ferozes que, em conseqüência dos conflitos entre essas poderosas
famílias e destas com os monarcas, originaram-se desde denúncias
criminais até a tristemente célebre "Conjuração de Amboise", ocorrida
em março de 1560, em oposição a um ou dois dos Bourbons
recentemente convertidos ao calvinismo que queriam permanecer sob a
proteção do rei e da corte. Denunciados por delatores1, os referidos
Bourbons foram surpreendidos em pleno bosque e depois afogados,
enforcados ou estrangulados, sendo os cadáveres arrastados até
Amboise. Este seria um dos antecedentes do massacre da "Noite de São
Bartolomeu", considerado até hoje uma das matanças mais pavorosas
de toda a história da Europa.
Os historiadores concordam que as "guerras de religião"
transcorridas nos tempos dessa rainha eternamente enlutada eram
uma manifestação do que havia de mais especificamente francês:
combates entre príncipes e províncias, conflitos internacionais,
complôs, assassinatos e pretextos para justificar pilhagens e traições.
Henrique II compartilhou com seu pai e antecessor, Francisco I, o
expediente de queimar hereges na praça Maubert, praticado desde
1523. Esposa e mãe de reis, Catarina não conheceu outro cenário que
não um reino incendiado pelo fanatismo e tão acostumado a tais
excessos de crueldade que seus súditos sequer se espantaram quando
Henrique II passou a expedir éditos periódicos, partindo da criação das
"câmaras ardentes", por meio do édito de Chateaubriand, em 1551, até
o de Écouen, em 1559, quando simplificou as perseguições e instaurou
a fogueira para todos os hereges declarados.
Catarina de Medici herdou de seu tio-avô, o papa Leão X, os
olhos saltados e os lábios apertados. Era enérgica, expressava-se com
firmeza e tomava decisões sem hesitar. Descendia de uma grande família
de banqueiros florentinos, os quais dominaram a cena da Renascença
por mais de trezentos anos, de 1434 a 1737. Devido a seu espírito
empreendedor e sensibilidade inigualável, o nome e a fortuna dos
Medici se fizeram presentes em todas as áreas em que a Itália
demonstrava prosperidade: da política à arquitetura e da escultura à
pintura, sem esquecer sua intervenção nas transformações econômicas
que fizeram de Florença o esteio dos principais sucessos políticos dos
Estados Nacionais.
Além de seu gênio financeiro, o gosto artístico dos Medici
permitiu a criação de obras deslumbrantes, que só se tornaram
possíveis graças à organização comunal de Florença e à força social das
corporações artesanais, de onde surgiam ourives, correeiros, canteiros,
ferreiros, pintores, ilustradores, impressores e um sem-fim de mãos
laboriosas que contribuiriam para elevá-la à posição de uma das cidades
mais formosas, mais politizadas e mais admiráveis do mundo. Maquiavel,
Dante, Leonardo, Giotto, Michelangelo ou Bernini são somente alguns
exemplos daquela prodigalidade de um humanismo tão prodigioso que,
somado à intensidade da vida descrita por Maquiavel em sua História de
Florença, faria com que esta cidade se transformasse em centro da
cultura, superada apenas pelo milagre ateniense. Inclusive o mecenato
dos Medici, ilustres descendentes de boticários medievais, serviria
como ponto de referência para reis e repúblicas. Poderosos diante de
Deus e dos homens, deram quatro papas à Igreja: Leão X, Clemente VII,
Pio IV e Leão XI; e duas rainhas à França, graças a suas alianças
matrimoniais com a realeza: a própria Catarina e Maria de Medici.
Bastaria a existência de Dante e de Maquiavel para demonstrar a
vitalidade daquela Florença que, século após século, se expandia sem
declinar em sua magnificência. Dante foi o maior dos poetas da Idade
Média, imprescindível para a cultura ocidental; Maquiavel foi o primeiro
teórico político que faria da interpretação do poder uma ciência nova
na história, ao desprendê-la dos mitos e das lendas. Cada qual com
seu êxito e distintas contribuições, ambos teriam correlação com a
ascensão de uma família civilizadora sem precedentes, e souberam
entender sua função de agentes transformadores do humanismo. Se
ser florentino era considerado por si só um privilégio, não poder
usufruir da própria cidade era tido como um dos piores castigos. Disso
soube Maquiavel ao ser exilado no Albergaccio, em Sant'Andrea in
Percussina, local de cujas colinas podia contemplar a distância as
luzes de sua amada e proscrita cidade, e onde caiu doente de
melancolia por causa de seu isolamento. A seu tempo algumas
mulheres também saberiam o que significava pertencer ao mundo
florentino, como a própria Catarina, que levava em seu sangue o
espírito construtor de Cosme e de Lorenzo de Medici, bem como seu
gênio político e a capacidade de abarcar, com a mesma paixão, os
assuntos de Estado, os deleites da caça ou da boa mesa e os caminhos
transformadores da arte.
De personalidade forte, distintiva de sua linhagem, Catarina de
Medici era filha de Lorenzo II, duque de Urbino, e da princesa Madeleine
da la Tour d'Auvergne, que pertencia à Casa de Bourbon. Nasceu em
Florença a 13 de abril de 1519. Órfã precoce, foi educada por monjas
católicas tanto em sua cidade natal como em Roma, ainda que, com o
passar do tempo, tenha sabido intercalar habilmente sua devoção
religiosa, que nunca foi exatamente exagerada, com um fervor não tão
oculto pela astrologia, pelos talismãs e pelos charlatães, magos e
adivinhos de todo tipo. Não era bonita, mas fazia esquecer sua fealdade
com o talento herdado dos mais distintos membros de sua família. O
papa Clemente VII, seu tio-avô e irmão de Lorenzo, o Magnífico, casou-a
com Henrique, o duque de Orleans, que herdou a coroa francesa em
abril de 1547 após a morte de seu pai, Francisco I. A partir de então,
Catarina se integrou ao turbilhão de um desafio no qual se mesclavam os
interesses do absolutismo e as ameaças de uma monarquia que, fundida
à Igreja, confundia com facilidade os atributos divinos com os pessoais.
Florentina de quatro costados, Catarina de Medici sofreu como
esposa uma prolongada esterilidade de dez anos. Isso fez recrudescer
seus ciúmes contra Diana de Poitiers, a sombra que perturbava seu
poder tanto na alcova como no trono, e a quem expulsou da corte em
meio à execração pública logo depois da morte acidental de Henrique
II, não sem antes recuperar o tempo perdido enfrentando dez partos
sucessivos. Dos sete filhos que sobreviveriam, os três que se tornaram
príncipes sucessores pouco herdaram de suas virtudes.
Superprotegidos e caprichosos, morreram todos em plena juventude.
Entre esses reinados cambiantes, Catarina abandonou gradualmente a
distância que guardava das decisões mais transcendentes até dirigir
abertamente a política do reino, com as mesmas artes políticas que
haviam dado notoriedade aos hábeis florentinos.
Alta, virtuosa e com os traços mediterrâneos característicos dos
Medici, submetia-se a exercícios violentos para mitigar os furores do
corpo. Cavalgava à caça de cervos e javalis; comia com abundância,
como boa italiana, e concentrava suas múltiplas faculdades em uma
natureza guerreira que contrastava com a devoção que dedicava à
educação de seus filhos. Uma devoção seguramente neurótica a julgar
pelos resultados, pois seriam muito mais celebradas suas obras de
construção, às quais foi aficionada por toda a vida, do que quaisquer
ações dignas de nota de seus descendentes entronizados. O que
assombra em sua personalidade é como podia responder com
soberania aos desafios de uma série de circunstâncias que ameaçavam
o equilíbrio da França. Quando o sítio à cidade de Metz obrigou
Henrique II a se ausentar do reino, em 1552, ela assumiu a regência
com a naturalidade de quem nasceu para governar. Sete anos depois,
após os funerais do rei, enfrentou a primeira crise política, provocada
pelo clã dos Guise, cujo extremismo impeliu-a a buscar uma posição
conciliatória que produziu, primeiramente, o Edito de Amboise, em
março de 1560 e, dois meses depois, o de Romarantin, por meio do qual
se buscou distinguir heresia de sedição. No final desse mesmo ano
Catarina tornou a se enlutar, agora por seu filho adolescente, o rei
Francisco II, que permanecera preso à esfera de influência dos Guise.
Isso agravou ainda mais os conflitos religiosos, civis e monárquicos com
o protestante Antoine de Bourbon - rei de Navarra e primeiro príncipe
de sangue - por causa da controversa sucessão real que fez ascender
ao trono Carlos IX, a quem ela conseguiu impor apesar de toda a
oposição que sofreu.
A década de 1560 seria a de maior intensidade na vida pública de
Catarina. Por trás do cetro de seu filho, ela teria de superar desde
levantes civis até focos separatistas gerados pelos protestantes.
Entendeu que a estabilidade da França e a segurança de sua estirpe
dependiam de acertos conciliatórios e, apesar de seus escassos
triunfos, dedicou-se a essa tarefa para moderar a controvérsia que
parecia não ter fim entre a Reforma dos huguenotes e a Contra-Reforma
dos católicos, ambos os movimentos empenhados em não ceder um
palmo em favor de seus adversários. Ainda que frustrado em sua
aplicação prática, o Colóquio de Poissy, seguido do edito de 1562, foi a
primeira de uma série de tentativas históricas em favor da tolerância.
Catarina inclusive viajou em companhia de Carlos IX durante dois anos
pela França a fim de fortalecer sua estratégia pacificadora e,
aproveitando o ensejo, fazer valer os direitos do jovem rei, a quem fez
desposar Margarida da Áustria com o propósito de se reconciliar com o
império espanhol - que apoiava a facção católica enquanto os luteranos
apoiavam os protestantes - e, por meio desse matrimônio, mitigar as
pressões externas que eram fomentadas pelas guerras civis.
Os líderes de ambos os partidos assassinavam-se mutuamente.
Somente permaneciam intactos o poder católico dos Guise, próximos aos
interesses de Catarina, e a cúpula huguenote chefiada pelo almirante
Gaspard de Coligny, única grande inteligência política da época
próxima ao rei além da própria Catarina, ainda que contrária a seus
interesses. Coligny chegou a propor a Carlos IX a expansão francesa
no Brasil e na Flórida, o que não prosperou; assim como não
triunfaram seus planos de empreender uma guerra de libertação dos
Países Baixos, que se encontravam então sob o jugo espanhol. Sua
inegável influência junto ao jovem monarca, contudo, estimulou a
rivalidade da rainha-mãe que, apelando a toda sorte de malefícios e
feitiçarias, esforçou-se inutilmente para eliminá-lo.
Com o nome de São Bartolomeu no centro de um calendário de
sangue começaram a avolumar-se conflitos cada vez mais insolúveis
até culminar na grande matança em Paris, que durou desde a manhã
de 23 até a noite de 24 de agosto de 1572. Nesse mesmo dia de São
Bartolomeu, porém três anos antes, um Coligny havia assassinado um
Guise, razão pela qual Catarina de Medici, determinada a não se
inclinar publicamente em favor de nenhum deles nem a pôr em questão
os bens da Igreja, decidiu, de uma vez por todas, enquadrar a pressão
protestante comprometendo sua filha Margarida [Margot] com o filho do
rei de Navarra e, ao mesmo tempo, livrar-se de Coligny para aliviar a
pressão doméstica sobre seu filho.
O noivado de sua filha Margarida com o filho do rei de Navarra, o
protestante Henrique de Bourbon, futuro Henrique IV da França, foi a
ocasião escolhida para levar a cabo tanto seus propósitos conciliatórios
em nível de Estado como seus planos de eliminação de Coligny. Os
parisienses, entretanto, estavam exaltados contra os huguenotes, o que
tornava as bodas um duplo pretexto, seja para a paz, como se pretendia,
seja para a guerra civil, como de fato ocorreu. Os parisienses odiavam
Gaspard de Coligny, contudo ninguém supôs, muito menos Catarina,
até que ponto se estenderia o rancor católico - instigado pelos Guise -
contra os protestantes, aflorado em uma conjuntura confusa na qual a
menor desculpa se demonstrava útil para liquidar um rival particular,
realizar vinganças ou até mesmo saquear o vencido.
O levante popular foi tão repentino que não existem descrições
confiáveis da trágica Noite de São Bartolomeu. Sabe-se que, durante as
festividades do casamento, Gaspard de Coligny foi decapitado, castrado
e esquartejado, e que, talvez se tomando sua morte como sinal,
começou uma matança infernal dos protestantes ilustres que se haviam
congregado para a cerimônia. Não era apenas um grupo isolado que
atacava os huguenotes, mas um povo inteiro de crentes fanáticos,
descontrolado e impossível de conter. Os católicos saquearam casas e
pilharam seus bens; assassinaram famílias inteiras, dando destino
idêntico a seus criados, e não interromperam sua empresa criminosa
até chegar o amanhecer, quando milhares de pessoas haviam sido
brutalmente esfaqueadas, apedrejadas ou mutiladas em nome de
Deus.
Ao ser informado da tragédia, o papa Gregório XIII ordenou que se
cantasse o Te Deum em ação de graças pela "vitória" obtida na França
sobre os huguenotes. A partir de então, caiu sobre Henrique de Navarra
o estigma de São Bartolomeu, e com ele a exigência de que se
convertesse ao catolicismo, se é que pretendia governar uma França
que não cederia um único direito real ao protestantismo. Com o trono
em mente, em princípio Henrique concordou com essa imposição, mas
logo retornaria ao calvinismo, razão pela qual o papa Sixto V excluiu-
lhe a dignidade, alegando "haver reincidido na heresia". Contudo, veio a
ser coroado como Henrique IV e reinou de 1589 a 1610 graças ao apoio
de muitos católicos e, sobretudo, por ter sido obrigado a "comprar" o
reconhecimento de toda Paris mediante uma nova conversão, em 1593,
que então o fez proferir a célebre frase: "Paris vale bem uma missa",
repetida até nossos dias como ditado e lugar-comum.
Para Catarina, a Noite de São Bartolomeu foi a mancha que
ensombrou o ocaso de sua vida e o episódio que mais contribuiu para
mitificar sua condição de rainha italiana impassível às guerras civis e
disputas monárquicas. Não obstante a matança dos principais líderes
huguenotes, continuaram na França a campanha protestante e as
reações católicas instigadas pelos infatigáveis e perniciosos Guise. Alguns
meses depois do massacre, em maio de 1574, Carlos IX morreu sem
deixar um herdeiro masculino legítimo, motivo pelo qual Catarina
assumiu a regência enquanto mandava trazer da Polônia seu filho
predileto, o mais dotado e culto apesar de suas muitas veleidades,
sempre conflituosas e escandalosas em virtude de sua indiscriminada
bissexualidade. Pierre Goubert escreveu que esse efêmero rei da Polônia,
entronizado como Henrique III da França, adorava o luxo, as festas
exóticas, as jóias e os pequenos animais. Governou durante dez anos (de
1574 a 1584) com a instabilidade própria de seu caráter, em meio a
querelas com seu irmão, o ainda mais desajustado Duque d'Anjou, a
quem Catarina pretendeu em vão casar com ninguém menos que a
eterna solteira Elizabeth I da Inglaterra, o que implicaria reinar na
porção católica dos Países Baixos, sempre rebelados contra Felipe II.
A morte de Catarina de Medici foi precedida ainda por outro
episódio, através do qual contemplou a inutilidade de seus esforços: a
23 de dezembro de 1588, no castelo de Blois, Henrique III mandou
assassinar o Duque de Guise, e ao saber do ocorrido pela própria boca
do rei, ela respondeu horrorizada: "Sangue, ainda mais sangue...
sempre sangue". Angustiada por uma mescla de culpa e desalento,
Catarina afastou-se do filho para se lamentar. Dias depois, quando o
Cardeal de Bourbon encontrou-a caminhando por um dos corredores do
castelo, disse-lhe em tom de censura: "Senhora, esta foi mais uma das
vossas; vós nos vitimais a todos". Ofendida, Catarina protestou com
veemência justificada e logo, desanimada, acrescentou estas palavras:
"Não posso mais. Tenho de me recolher ao leito".
Dias depois, em meio à indiferença geral, morreu em Paris, a 5 de
janeiro de 1589, com 70 anos de idade.
1 No original em espanhol, chivatos: denunciadores, ou pessoas que acusam secreta
e cautelosamente. [N.T.]
Elizabeth I em
sua agonia

Durante os 45 anos do meu reinado foi dito de tudo a meu respeito,


menos que não colocasse o amor pela pátria acima de tudo em minhas
decisões. A Inglaterra é um lindo país ao qual só faltava uma unidade
econômica para enfrentar o inimigo. Disso eu soube prontamente,
quando percebi a força que um povo adquire ao produzir aquilo que
antes comprava e sustentar um progresso contínuo por meio de uma
força de vontade pacificadora. Acima de minhas fraquezas, lutei para
que nada faltasse em meu reino e que, sob a tutela de Deus e uma
boa administração monárquica, meus súditos jamais caíssem nas
mãos da feroz tirania de Felipe de Espanha, esse católico insaciável
que soube impor a outros governos a lei das armas, tal como meu pai,
em seu tempo, decidia ceifar a vida de suas esposas, inclusive a de Ana
Bolena, minha pobre mãe, executada quando eu tinha somente 2 anos
de idade.
Opus-me à guerra a todo custo. A princípio não me entenderam,
mas agora me agradecem, ainda que, desde o momento em que fui
entronizada graças às suas intrigas, tivesse de pagar o preço da
influência de William Cecil sobre os assuntos fundamentais; e apesar
ainda de terem dito que, na ocasião da morte de minha meio-irmã
Maria Tudor, usurpei o cetro legítimo de minha prima Maria Stuart,
sobre quem repousava o direito de governar por filiação e primogenitura.
Ela era rainha da França em virtude de seu matrimônio com o
desafortunado Francisco, filho de Catarina de Medici; era também neta
de Margarida, rainha da Escócia e bisneta de Henrique VII, meu avô
paterno. A pobre Maria foi executada sem meu conhecimento a mando
de meu conselheiro Cecil, depois de ter sido mantida prisioneira
durante vinte anos na Torre de Londres ante o silêncio de seu filho
Jaime, a quem Cecil educou e que será certamente o meu sucessor.
Jamais direi isso a ninguém, embora Deus saiba o quanto sofri por ela,
porque anterior à minha condição de rainha, trago comigo certos
sentimentos que me movem a misericórdia e à piedade. Graças
precisamente às manobras de Cecil, mais conhecido como Lorde
Burghley, fez-se valer o testamento no qual meu pai, Henrique VIII, me
incluía entre seus sucessores sem considerar os descendentes de sua
irmã Margarida, ainda que eu fosse considerada "ilegítima" aos olhos
da Cristandade, já que, quando nasci, aquela que era tida como sua
esposa legítima ainda estava viva.
Essa época ficou conhecida como "período elizabetano", e quanto
a mim, serei eventualmente recordada entre as soberanas que
entenderam que o princípio de Estado está acima dos interesses
pessoais ou da cobiça efêmera da glória obtida por meio das obras
individuais. Sou daquelas personagens valorizadas com o tempo,
amadurecida na memória através dos anos não por deixar algo sobre
o qual se possa dizer "isto ou aquilo foi construído por Elizabeth I",
mas pela sombra que pouco a pouco foi se estendendo pela Europa,
espelhando uma forma ávida e inventiva de governar.
Sei muito bem que exerci o poder supremo. Aprendi a governar
seguindo o exemplo de um pai e, em parte, obedecendo também às
intrigas e subterfúgios de Lorde Burghley, a quem começaram a chamar
de "o criador da Inglaterra protestante", a nação moderna em que se
fincaram as raízes da Igreja Anglicana e sobre a qual descansa nosso
sistema social e político, que um dia será perfeitamente esclarecido pela
curiosidade que nunca faltou aos estudiosos. Dizem que, assim como
Thomas Cromwell completou a ruptura com Roma, o velho [William
Cecil] lançou a Inglaterra na aventura da troca dos valores católicos
pelos protestantes valendo-se de um regime de terror a mim atribuído,
certamente porque no particular eu concordava com suas exigências,
se bem que ele não estivesse privado do gênio político que o distinguiu e
que legou a seu segundo filho, Robert, esse anão astuto, corcunda e de
enorme talento que pratica a espionagem com uma habilidade
insuperável e que não descansará até impor seu nome na memória de
nosso reino.
Eu escolhi meus ministros, os homens mais próximos ao trono, as
vozes prudentes e, sobretudo, as personalidades mais fiéis com o
mesmo cuidado com que se escolhem as coisas que mais apreciamos.
É por isso que me chamam "a grande rainha", porque cultivei o amor de
meu povo através dos sucessos de grandes personalidades em todos os
âmbitos sociais, inclusive o dos negócios. Sob minha proteção
floresceram as artes e ampliei o prestígio de minha nação, interna e
externamente. Essa é uma realização que ninguém me pode tirar. Não
ignoro que alguns suporão que fui mero títere do grupo de milionários
que ascendeu graças ao saque das propriedades da Igreja Católica na
época de meu pai. Mas o que importa é a ascensão que sobreveio à
mescla de florescimento e sustentação econômica em favor do
progressivo bem-estar da Inglaterra. Em 1571, o financista Thomas
Gresham construiu a Casa de Câmbio; sete anos depois, abrimos o
mercado estrangeiro ao visitar a vizinha Noruega, o que contribuiu
para a fundação das colônias e para o alargamento da Coroa para
além dos mares, refletindo um domínio que, seguramente, perdurará
ao longo dos séculos.
Entre outros assuntos, os Cecil apostaram na invencibilidade da
Armada espanhola e se enganaram, talvez porque William já era velho e
suas antigas alianças com a pirataria, sobretudo com John Hawkins,
o negreiro - que junto com Francis Drake encabeça a lista de nossos
melhores marinheiros - serviram para constranger Felipe II da
Espanha sob o véu de uma falsa amizade tingida de forte
nacionalismo; suas expectativas, porém, não vislumbravam a
possibilidade da frota britânica vir a ser uma extensão do poder da
Inglaterra no exterior. Isso não chegaremos a ver: a morte me espreita e
sobre minha consciência somam-se as contrariedades que padeci em
segredo em decorrência das intervenções políticas desse grupo. Sei,
entretanto, que o povo inglês é vigoroso, inclinado a fortalecer suas
instituições e a velar pela monarquia, apesar das eventuais debilidades
de seus monarcas. Temos um Parlamento forte e o bem do Estado se
antepõe aos interesses individuais, mesmo no caso do clã Cecil, que,
para triunfar, teve de desenvolver grandes aptidões em nome da Coroa.
Sei que me usaram, mas também os usei fazendo-os crer que,
por trás de minha saúde precária, que me levou para o leito mais de
meia dúzia de vezes, se ocultava uma anormalidade secreta que não
somente me impedia de ter filhos, mas que afetava minha vontade,
embora esta fosse publicamente vinculada à poderosa inteligência de
minha família. Mesmo agora, não permito que se quebrante meu
espírito e não deixarei nenhuma fresta para que os bisbilhoteiros
possam indagar sobre minha vida amorosa, ainda que isso implique
em risco de ser acusada de alguma perversão sexual. Nesse ponto os
homens, sejam camponeses ou reis, gozam de liberdades interditas às
mulheres, mesmo às soberanas. Quantas vezes, em minha alcova,
pensei em quebrar essa norma... Desejava viver o que não foi
concedido a meu corpo maltratado nem oferecido a meus apetites
ocasionais. Odiei minhas perucas avermelhadas. Dependi delas desde
os 30 anos, quando perdi os cabelos em uma de minhas primeiras
enfermidades e a feiúra se apoderou de minha juventude com a
mesma intensidade com que a fera devora sua presa. Aumentaram
com rapidez meus defeitos, porém substituía tudo quanto declinava
em meu aspecto físico através de minha vivacidade. Desde menina odiei
posar para retratos. Evitei olhar-me e tentei impedir que os demais me
observassem porque tinha horror de despertar sua repugnância. A
dignidade foi minha única aliada. Minha dignidade e minha força, que
é a força da própria Coroa.
A questão religiosa era o ponto mais conflituoso e, desde o
princípio, me esforcei para defender o protestantismo de meu povo.
Enfrentei os rebeldes católicos, vergonhosamente aliados a potências
estrangeiras e, não obstante atentarem contra sua soberana e o poder
da monarquia, triunfamos sobre seus interesses mesquinhos para a
glória da Inglaterra. Muito será dito ainda a respeito desse assunto. Dir-
se-á que fui um mito, que nas desigualdades com Maria Tudor, minha
meio-irmã, esposa católica de Felipe II - a rainha que me precedeu no
trono em meio às atrozes dificuldades que a levaram a me encerrar na
Torre de Londres durante minha juventude -, assumi firmemente uma
atitude pessoal que contrariava diametralmente a posição de debilidade
a mim injustamente atribuída; isto porque, não importa o que tenha
acontecido, nunca fui débil, somente cautelosa. É a ela que devo uma
de minhas mais dramáticas experiências e a instabilidade de meus
nervos, adquirida durante minha permanência na prisão. Em vão
Maria tentou me culpar de traição por cumplicidade com Sir Thomas
Wyatt na rebelião de 1554, ocorrida quatro anos antes da morte de
minha irmã e de minha coroação, quando eu tinha 25 anos de idade,
para cuja realização reconheço a intervenção de lorde Cecil. Primeira na
linha de direitos sucessórios e vinculada desde meu nascimento com a
causa protestante, aprendi então o significado da prudência e conheci os
perigos contidos nos meandros matrimoniais da aristocracia, como o
último escândalo envolvendo lorde Seymour, cônjuge de Catherine
Parr, última esposa e a única que sobreviveu a meu pai.
William Cecil foi, na realidade, um opositor inflamado de minha
orientação política, e costumava impor seus preceitos por causa de
minhas indecisões. Dirigiu obstinadamente os líderes financeiros, que o
consideravam um gênio econômico, e se dedicou à tarefa de minar a
base católica em nossa terra, não obstante a resistência que parecia
impossível de eliminar, para conduzir as novas gerações sob a
orientação do anglicanismo. Baniu a celebração de missas. Interveio
em minhas decisões e antepôs a voz de seu grupo ao rumo não tão
pretensioso que meu reinado teria previsto para seu povo. Reconheço,
entretanto, que jamais se imiscuiu abertamente nos negócios de
Estado, os quais dirigia sob a condição de secretário, pois seus
domínios eram aqueles velados, próprios de sua mente perversa, o que
me permitiu me esquivar, com equilíbrio oscilante e aparente firmeza,
das vicissitudes de minha saúde precária e das pressões de nosso
credo, indivisíveis da força monárquica.
Até hoje, último dia de minha vida, com uma fidelidade tenaz aos
reveses de minha fortuna, olho com clareza para o momento em que
meu pai, o implacável Henrique VIII, me abandonou aos 2 anos de
idade no castelo de Greenwich, onde nasci a 7 de setembro de 1533,
para crescer e me educar no palácio Hatfield, em Hertfordshire, e
depois me mudar para a casa de Catherine Parr, sua viúva, onde
começaram meus problemas políticos durante o reinado de minha
meio-irmã Maria. Ao atingir 15 anos de idade, comecei a sofrer os
desapontamentos íntimos que acabaram por me granjear o apelido de
"rainha virgem", uma fama a mim imputada pela contínua recusa em
aceitar laços matrimoniais. Sobre isso prefiro nem falar. Recaíram sobre
mim as piores calúnias, comentários atrozes e olhares nos quais podia
ler a mordacidade daqueles que pretendem adivinhar os corredores de
um inferno que sempre irrompeu em meu quarto de dormir, onde a
discrição valeu o preço da confiança e da própria vida.
Nunca fui bela nem pretendi sê-lo, ainda que meus
informantes me digam que os cortesãos supõem que deseje ser
adulada. O que nunca compreendi é como minha fealdade foi
aumentando com o decorrer do tempo. Depois que perdi meus cabelos
avermelhados, minha pele foi endurecendo até adquirir este aspecto
ressequido que eu mesma evito tocar, porque qualquer pergaminho me
parece mais suave que a aspereza de minhas coxas obesas ou as
dobras de minhas protuberâncias, que caem desde o pescoço como
uma massa que nenhuma cinta consegue ocultar, Há algo nocivo em
mim que vem de longe, como se a carne cobrasse sua cota às maldições
que envenenaram meu sangue. Quando estou só, maldigo essa
herança. Quando estou só, amaldiçôo esses medos que me
perseguem e que me levam a requerer as carícias forçadas de homens
que se sentem obrigados, por meu poder, a mostrar uma felicidade que
não sentem, nem sequer como satisfação de terem sido escolhidos por
sua soberana, jamais conheci o prazer. Sempre comi em abundância,
talvez para resistir à ansiedade que me incendiava no leito e que
homem algum foi capaz de aplacar, apesar de haver persistido em
minha inútil busca do amor. Os ignorantes me acusam de perversão,
e até mesmo nas tavernas repetem que sou uma anormal.
Mas também repetem Elizabeth I com reverência, talvez porque
evitei tanto quanto possível o domínio daqueles que usam meu nome
para escudar sua própria ferocidade. Derramaram sobre mim adulações
absurdas, mas sempre agradecerão a paciência com que suporto os
efeitos de minha espantosa velhice, além das complicações de um Estado
que cresceu muito, em parte por minha perspicácia e em parte pelos
esforços de meus ministros. Dentre meus quatro milhões de súditos
surgiram marinheiros audazes, como em outras nações da Europa e,
não obstante o saldo de roubos e crimes de sangue que abonam suas
conquistas, coibi o tráfico de escravos e não fui complacente com a
rapina dos piratas. Cecil sempre insistiu que eles eram necessários
para a Inglaterra. Mentia até mesmo para mim, a fim de mitigar a
relevância de suas decisões voltadas a conter Felipe da Espanha por
meio de artimanhas e de uma ativa rede de espionagem. Deixei em suas
mãos os assuntos mais sujos, já que me envergonhava perante os
demais por ter de aceitar os procedimentos de um negócio tão vil e que
afetava diretamente a outros reinos.
Meus quatro milhões de súditos sofreram ondas de pobreza, de
enfermidade e perda de população das grandes cidades. Houve anos
maus e anos muito bons. Durante os melhores, Cecil fazia vistas
grossas aos abusos de Hawkins, Drake e dos demais que roubavam à
vontade nos mares. Na medida do possível, compensei as vítimas,
desaprovei publicamente os atos de pirataria e consenti que grande
parte de seus lucros acabasse nos bolsos inchados dos grandes
financistas e comerciantes politicamente influentes, os quais
distribuíam migalhas em forma de comissões entre seus agentes
criminais.
Se existisse um arquétipo da mulher governante, eu mesma o
encarnaria, uma verdadeira Tudor, Elizabeth I: pragmática e sutil,
inventora da resposta sem resposta, prudente na autoridade e hábil
para encobrir a própria indecisão com a inteligência alheia. Muitos
disseram que, se foi de meu avô que adquiri o talento financeiro, foi de
meu pai que herdei a tempera monárquica que mereceu o cognome de
arte de governar. Sei que fui amada e temida, isso não me canso de
repetir. Mesmo porque escuto tais coisas diariamente, da boca daqueles
que são meus partidários incondicionais. Mas acima dos conflitos
sociais, religiosos e econômicos, que nunca me faltaram, soube pôr
em prática a difícil e secreta arte de combinar com solicitude e cultura
o rigor que me era demandado.
Sim, evitei as guerras. Foi um total fracasso o único intento
militar de meu reinado, na Holanda, bem como a única empreitada
colonial, no território que chamaram Virgínia. Calvinista desde a
infância, estive disposta a professar o catolicismo durante o reinado de
Maria, ainda que esta minha propensão tenha sido confundida com
intrigas que, oportunamente, pude retificar. Cheguei a pensar que a
religião poderia unificar a Europa e, em determinadas ocasiões, dei
meu apoio a Felipe da Espanha, líder do movimento católico. Contudo,
Cecil transformou-o em inimigo, e apesar de meus vínculos com o
papado tive de jurar fidelidade ao anglicanismo, já que este era
inseparável da Coroa inglesa. Recusei o título de meu pai, que se fizera
chamar "Vigário de Cristo e Chefe Supremo da Igreja sobre a Terra",
pois, em meu íntimo, prevaleciam dúvidas sobre isso.
Em três ocasiões fiz o possível para salvar Norfolk da execução.
Impotente para tanto, assim como o fui em outras ocasiões - recordo
meu propósito de eliminar Drake antes que fosse declarada
abertamente a guerra contra o trono da Espanha -, a cabeça de meu
desafortunado primo acabou caindo sobre Cecil, sem a menor dúvida,
ainda que Deus saiba que, se minhas ordens não se cumpriam, era
porque não tive suficiente firmeza, a pretexto de minhas inumeráveis
enfermidades. Se há algo que realmente lamento foi o assassinato de
Maria Stuart. Padeci por causa de sua condenação, cuja sentença se
cumpriu a meu pesar.
Afirmaram que fui concubina de Leicester porque ele conseguia
me manipular à sua vontade. De fato, ele fez o que quis durante a
campanha da Holanda. Depois disseram que eu era amante de Essex,
que sitiou Cadiz e desafiou minha cólera ao usar meu nome para
justificar suas próprias atrocidades. Robert Cecil mandou matá-lo.
Pranteei por ele durante meses e pode-se dizer, sem medo de errar, que
sua morte também foi minha morte; uma morte marcada pelo
infortúnio, assolada por esta loucura impregnada de lucidez.
E aqui me encontro, nesta manhã de 24 de março de 1603,
estendida há dias no assoalho de meu quarto, esperando a morte. Já
faz semanas que me recuso a falar e, para não ceder à tentação, aperto a
boca com as mãos. Dizem que não tenho nada, mas sinto como se um
ferro candente oprimisse minha cabeça. As visões me assaltam, uma
após a outra: os filhos que não tive, a recusa em me casar, os
sofrimentos e penúrias por que tive de passar em meu leito, uma cama
que se tornou tão odiosa para mim que não a tocarei mais, porque
sinto que debaixo das cobertas sou abrasada pelas chamas. O rosto de
Essex vai e vem diante de meus olhos, alternando-se com a fisionomia
pacífica de Maria Stuart, a santa e feliz Maria. Odeio meu corpo;
aborreço minha mente, as dores me invadem e estou em tormentos.
Nunca conheci o sossego, e não o conhecerei sequer em meu momento
final. O repasse de minhas memórias me enche de amargura. Não sinto
consolação nem ao menos quando lembro de meus acertos. Desde as
profundezas do inferno escuto a voz de meu pai recriminando-me
porque separei o poder em dois: o real e o nominal. O poder nominal só
serve para impressionar os homens; é o poder real que se exerce em
nome da nação. Certa vez escutei Cecil falar pelas minhas costas que
era ele quem governava a Inglaterra, que ele era seu dono. É até
possível. A esta altura, não quero nem pensar. Não quero somar novas
fadigas a este cansaço de ser. Estou totalmente esgotada. Intuo o
declínio da monarquia a partir de meu regime. Pelo menos não me
caberá por sorte presenciar o derramamento de sangue que sobrevirá à
geração que vai organizar meus funerais.
Elizabeth I: sinônimo de grandeza, dirão ao evocar os sucessos de
que mais desconfio. Comigo termina a dinastia Tudor. Pressinto desde já
o clamor de Jaime I, filho da pobre Maria. Não duvido de que ele
conseguirá unificar a Inglaterra e a Irlanda. Isso está em seu sangue,
como está igualmente a herança escocesa que irá alçar ao poder a casa
dos Stuart. Walter Raleigh continua na prisão e sei que não tardarão em
executá-lo. Mas não estarei mais aqui para assinar o decreto.
Secretamente confesso que William Shakespeare mostrou-me em seu
teatro um poder do qual não estive isenta. Seu nome ascenderá junto
com o meu, e ainda sob o manto de minha era se recordarão os
sucessos de Francis Bacon, de Ben Jonson, de Edmund Spenser e de
Christopher Marlowe. Não, nem tudo é lixo. Mas me sinto tão
cansada...
Cristina da Suécia

Desejar tudo e desejar intensamente, com a plenitude que somente é


inspirada pela rara combinação de poder e apetite pelo entendimento
absoluto, não foi coisa muito freqüente na história, especialmente em
uma mulher. Há casos, como o de Fausto, em que a consciência do
tempo se funde ao anseio de abarcar um poço de sensações, além do
conhecimento e do segredo da juventude; mas ele apela para o demônio
porque entende que está sujeito às limitações humanas e, depois de
explorar os escaninhos do mal, à beira da morte, acaba oferecendo seu
arrependimento ao Criador com a ajuda de Margarida, uma alma tão
simples quanto predisposta a aceitar para si própria a condenação de
sofrer a dor que fica depois que se esgotou a dor.
São abundantes os exemplos de monarcas que governam por
acidente, de heróis tocados pelo acaso, de ditadores a quem as
possibilidades do mando não bastam e que recorrem ao poder de matar.
Há artistas que enriquecem os caminhos da beleza, filósofos que
sonham com a verdade, místicos que se fundem com Deus, homens e
mulheres que desejam trocar de sexo por desespero ou pela busca do
prazer, e criadores que se deparam com o instante em que o inesperado
coincide com a manifestação da voz, com o deslumbramento ou a
materialização de um sopro divino. Há outros que pressentem que algo
lhes falta na vida e triunfam sobre o tédio ao se atreverem a
empreender aventuras como as de Alexandre o Grande, Júlio César,
Carlos Magno, Luís de Camões ou D. H. Lawrence, conseguindo
transformar suas vidas em uma centelha que se contrapõe ao temor
da morte.
O que não é comum é que uma mulher expresse desde o berço a
paixão por desvendar os mistérios que separam os atributos divinos das
virtudes da razão, e que transforme essa fidelidade ao apetite de
perfeição em sua própria maneira de ser. Por essa raridade que
assombrou seus contemporâneos e que a distingue até hoje, Cristina da
Suécia tornou-se uma personalidade quase única na história que
marca a Renascença européia, uma personagem ainda inatingível para
as mais ambiciosas aspirações do feminismo que, para nossa desgraça,
pensou muito pouco a respeito do significado transformador de uma
individualidade aferrada ao sagrado como instrumento de rebeldia.
Cristina demonstrou um caráter edificador que, através do
pensamento crítico, confirmou que os preconceitos religiosos impedem
o despertar dos povos, muito particularmente quando pretendem
determinar o futuro de um Estado.
Única descendente do rei Gustavo II Adolfo e de Maria Leonor de
Brandenburgo, a futura rainha nasceu em Estocolmo a 8 de dezembro
de 1626. Herdou a coroa da Suécia antes de completar 6 anos de
idade, quando seu pai morreu na batalha de Lützen depois de superar
os Habsburgos e avançar até a Saxônia, em novembro de 1632. Dando
as costas à viuvez dolorosa de sua mãe, a sempre controvertida
Cristina teve uma infância incomum: dizem que esperava ansiosa pelo
amanhecer para que a tirassem daqueles aposentos enlutados em que
se concentrava um doentio apego ao passado. Não tinha interesse em
brincar com outras crianças nem permitiu que sua sensibilidade se
apartasse do desejo de aprender. Sua inteligência compensava o defeito
de ter um ombro mais alto que o outro e uma fealdade que nunca a
preocupou, mas que suportou com graça e discrição. Seus biógrafos
exaltaram sua beleza interior e, em geral, acentuaram a beleza de seus
cabelos, na falta de outros motivos para vaidade, uma qualidade que
nunca cultivou. Odiava as tarefas domésticas atribuídas a seu sexo.
Somente tomava água; para ela, era indiferente se lhe servissem um
prato esmerado ou um simples cozido. Em vez de se assustar, comovia-
se com o som de um arcabuz. Muito habilidosa com os cavalos, montava
com a temeridade própria de um soldado e, durante as caçadas,
costumava derrubar a presa com um único disparo. Assumiu sua
realeza como poucos, graças ao alto conceito que fazia de sua origem,
de seu reino e de sua própria pessoa, talvez em razão do sentido de
honra que extraiu de suas leituras clássicas e da clara percepção que
tinha do "nacional", que a levou ao extremo de proibir a ostentação
pública de condecorações estrangeiras, atitude que contradizia o
desapego que exibiu como um dos emblemas de sua liberdade
feminina.
Educada como um príncipe, foi tutelada pelo distinto teólogo
Johannes Matthiae enquanto o chanceler do reino, o conde Axel
Oxenstierna, instruiu-a nas práticas diplomáticas e políticas durante o
tempo em que ele mesmo governava aquele reino dividido em cinco
regências. Enquanto ela crescia, o general Johan Banér assumiu o
comando militar em plena afirmação de um protestantismo tão
vigoroso que animou as principais guerras de intervenção, provocadas
pelo perigoso crescimento dos Habsburgos. Porém, na primeira
oportunidade a princesa adolescente argumentou perante o Senado as
inconveniências econômicas e sociais do belicismo, advogando em
favor da reconstrução interna da Suécia e da adesão aos tratados que
seriam conhecidos como Paz de Vestfália, assinada em outubro de
1648, e que politicamente significava um passo adiante na dissolução
do antigo império [Romano-Germânico], a cujo imperador só restariam
direitos honoríficos em uma complicada divisão de terras e rivalidades.
Líderes da nova conjuntura, a França e a Suécia iniciam um novo
capítulo de domínio, curiosamente selado pelo poder feminino, tal
como a Inglaterra com Elizabeth I, enquanto as potências estrangeiras -
praticamente toda a Europa Central - adquiriram o direito de intervir
nas questões políticas alemãs.
Cristina da Suécia demonstrou-se tão talentosa e detentora de
uma autoridade tão definida que, antes de completar 14 anos, deixou
de ser uma mera participante para presidir as reuniões do Conselho de
Estado e participar de todas as decisões políticas do conde Oxenstierna,
a quem se opôs a partir do momento em que foi coroada, em 1644,
quando atingiu a maioridade aos 18 anos. Não obstante suas
habilidades negociadoras para concluir a Guerra dos Trinta Anos, o
retorno dos soldados aumentou o desemprego, fez piorar os problemas
financeiros e recrudesceu os levantes civis e as lutas de classe, que se
tornaram incontroláveis. Viu-se obrigada, então, a recorrer novamente
aos serviços de Oxenstierna para apaziguar seus domínios e restaurar
um certo equilíbrio que, na realidade, nunca conseguiu estabelecer
plenamente, talvez porque fosse melhor dotada para negociações de
gabinete e para a interpretação política do que para o pragmatismo.
Considerava que o desenvolvimento do saber e das artes eleva os
povos a um estado superior de cultura, indispensável para o
melhoramento do bem-estar geral e da dignidade nacional, que só se
conquista por meio da razão educada. Com o mesmo zelo com que
atendia os assuntos do governo, empenhou-se em seus próprios
estudos. Fez trazer alguns sábios dos Países Baixos para completar
sua formação e, aproveitando a ocasião, subsidiar a obra dos espíritos
mais notáveis, costume que cultivou tanto em sua terra como fora dela
até o dia de sua morte. Os melhores filólogos e historiadores alemães
acorreram à sua corte. Freinsheim influiu na escolha dos protegidos
pelo mecenato de Cristina e até conseguiu que esta dispensasse Ulm,
sua cidade natal, do pagamento das contribuições de guerra que lhe
tinham sido impostas. O helenista Isaac Vossius não somente a tornou
uma especialista em assuntos gregos como estimulou sua simpatia pelo
povo judeu a tal ponto que, quando abdicou do trono em favor de seu
primo para residir na Itália converteu-se em uma implacável defensora
dos direitos étnicos e religiosos dos perseguidos. Assimilou em pouco
tempo os autores da Antigüidade e conferiu um toque vanguardista ao
humanismo ao reinterpretar os pais da Igreja e apelar em favor da
clareza, que parecia esquecida naquele tempo predisposto ao barroco,
ao abuso de adjetivos e às disputas retóricas.
A cada manhã, sem distinção de dia e antes de seus deveres reais,
a rainha madrugava para começar suas discussões com Descartes na
biblioteca do palácio. O grande filósofo francês, que continuou em sua
corte, escrevendo, até morrer, assegurava que era tão grande o talento de
Cristina que, com uma sagacidade nunca vista, derivava das idéias de
Platão seus próprios postulados cartesianos. Aquele sábio, um dos
maiores do pensamento moderno, vivia de assombro em assombro: a
rainha absorvia línguas com a mesma facilidade com que discernia
filosoficamente; conversava com os embaixadores em seus próprios
idiomas, quase sem sotaque, e, combativa tanto na ação como no
pensamento, jamais era intimidada pelos desafios.
Em 1645, sua influência intelectual inspirou a criação do primeiro
jornal sueco e decretou a obrigatoriedade escolar nos campos, talvez
para imitar o "método escolar" do duque Ernesto o Piedoso, de
Saxônia-Gotha. Sem comprometer a política, que orientava
pessoalmente, apoiava a ciência e as artes. Sua memória era prodigiosa,
Do mesmo modo que sua voz se impunha com clareza e vigor nos
debates do Senado, demonstrava uma sagacidade deslumbrante nas
discussões com eruditos, escritores e artistas. Impressionou as
inteligências mais brilhantes, ainda que também originasse perigosas
invejas, porque, naquela corte de notáveis e homens formados dentro
dos costumes monárquicos, não se tratava de obedecer a seus ditames
reais, mas de reconhecer em Cristina da Suécia o prodígio de uma
razão educada pela dupla paixão do saber e do mando, o que
resultava, no mínimo, desconcertante para aquelas mentalidades
fechadas e propensas à intransigência. Gabriel Naudé exclamou
publicamente, assombrado com sua capacidade, que o espírito
daquela mulher era verdadeiramente extraordinário: "Tudo ela viu,
tudo ela leu, tudo ela sabe".
Nicolas Heinsius forneceu-lhe valiosos manuscritos e livros raros
trazidos da Itália, com os quais Cristina fundaria, ao longo do tempo, a
grande biblioteca de filosofia e letras denominada Accademia dell'Arcadia,
que existe e funciona ainda hoje em Roma. No entanto, os italianos se
queixaram de que estavam sendo enormemente espoliados. Diziam
que se carregavam barcos inteiros com seus acervos destinados à corte
sueca; isso afirmavam sem considerar, talvez, que séculos antes seus
próprios antepassados haviam feito a mesma coisa com as bibliotecas
de Pérgamo e de Alexandria, e que fora dessa maneira que aquela
vigorosa sabedoria havia sido transladada do Oriente Médio para as
terras da Europa, como agora estava sendo difundida nas terras
setentrionais. Todavia, diferentemente daqueles romanos imperiais,
promotores da civilização moderna, esta Minerva do Norte, como a
apelidavam com receio e estupor, não conseguiu despertar o interesse
criador entre seus súditos mais destacados, o que naturalmente a
exasperou, como seria de se esperar de quem publicamente expressou
seu desprezo pelo fanatismo religioso e pelo baixo nível cultural da gente
de seu país, a quem nunca pôde apreciar; tampouco conseguiu entender
que toda a Europa era então um campo incendiado pelos furores da
Reforma e da Contra-Reforma, um fato político que, enquanto rainha,
jamais foi capaz de manejar com habilidade, o que demonstra que não
basta ter um talento excepcional para saber governar.
Durante toda a vida causou assombro com seus juízos críticos,
sempre inclinados a retificar as posturas estritas da mentalidade
protestante que alimentava o fervor da Contra-Reforma católica. Assim,
não foi estranho que um temperamento tão inconformado, ainda que
fundamentalmente egoísta, se apaixonasse pelas bondades teóricas da
Igreja Católica e que trocasse de religião, para escândalo dos seus e dos
estrangeiros, quando decidiu abdicar do trono por várias razões, mas
especialmente por saber que atentava contra os direitos sucessórios,
uma vez que tinha tamanha aversão pelo matrimônio que, após
empunhar o cetro, afirmou preferir morrer a ver-se casada. Talvez essa
impossibilidade de suportar qualquer forma de submissão marital tenha
influenciado sua decisão de se converter ao catolicismo, já que Leopold
von Ranke, ao biografá-la, recordou que ela tinha 9 anos quando lhe
falaram pela primeira vez das peculiaridades da Igreja de Roma e, entre
outras coisas, lhe disseram como o celibato era apreciado entre os
praticantes dessa doutrina. "Mas isso é muito bonito!" - teria dito,
cheia de entusiasmo -, "quero abraçar essa religião".
Ainda que fascinada pelo halo de espiritualidade que acreditou
distintivo dos católicos, infiltraram-se na conversão de Cristina da
Suécia outros motivos nada religiosos, porém conseqüentes de sua
tendência para fantasiar situações extraordinárias. Ao longo da
conflitiva relação com sua mãe, Cristina deu inúmeras demonstrações
de transgressão que, posteriormente, atribuiu ao protestantismo, fonte
limitante de seu habitual descomedimento dado a censurar e a
impingir sua patente temeridade em qualquer ocasião. Visivelmente
autoritária, é de crer que a simples idéia de se submeter a um
homem e lhe dar direitos sobre seu corpo a desconcertava, preferindo
renunciar ao cetro a ceder nesta questão, por mais que isso
comprometesse o Estado. Na mesma medida em que lhe sobrava
orgulho, falta-lhe patriotismo. Nunca conciliou seu fervor político com
o desapego instintivo de seu caráter, e foi nesta atitude que
concentrou suas maiores contradições, já que naqueles dias
dominados por lutas imperiais, não existiu nada mais concreto do que
o domínio da política sobre as conveniências territoriais, sejam elas
inspiradas por Deus ou pelos homens. Não amava seu povo; detestava
sua religião e suas festas. Ofendia a todos sem dar tréguas; não
obstante, apesar desse temperamento impulsivo, próprio de uma
imaginação exaltada, aspirava ao equilíbrio moral que lhe impunham
sua posição social e sua formação racional.
Ela mesma escreveu que "quando se é católico, tem-se o consolo
de crer no que tantos outros espíritos nobres creram pelo espaço de
dezesseis séculos, de pertencer a uma religião ratificada por milhões de
milagres e milhões de mártires... Uma religião da qual saíram tantas
virgens admiráveis, que souberam vencer as fraquezas de seu sexo a fim
de se sacrificar a Deus...". Esses comentários, porém, não deixam de
refletir sua ânsia transgressora se tomarmos em conta o exibicionismo
que praticou com maestria.
É de se supor que, não obstante o fervor manifestado por um
credo que somente apreciava em teoria, sua obstinação religiosa
infundia uma ruptura com seus antepassados. Sua paixão política
levou-a a enaltecer a autoridade infalível do papa quando o chamou de
"líder de uma instituição perfeita, emanada da vontade de Deus",
justamente o que ela desejava. Até se poderia inferir que era o poder
absoluto que ambicionava, um poder tanto espiritual como temporal,
que lhe era impossível imitar naquela Estocolmo do século XVII,
quando o mundo ocidental definia os termos do nacionalismo que
atingiria seu esplendor liberal com o romantismo do século XIX.
Já com a idéia da abdicação em mente, ao completar dez anos de
reinado Cristina empregou sua perspicácia para se aproximar da corte
romana. Escandalizados pelo fato de sua própria rainha escolher uma
religião proscrita e abominada, os suecos fizeram do assunto uma
questão de Estado, uma alegação que comprometia a estabilidade do
país. Em vez de reconsiderar, a soberana apresentou razões de saúde
para abandonar seus deveres, e ainda se atreveu a afirmar que as
responsabilidades da Coroa ultrapassavam a capacidade natural de
uma mulher que, para completar a calamidade, recusava-se
obstinadamente a abandonar a condição de solteira. Ela mesma indicou
para sucessor seu primo Carlos Gustavo X e, ao coroá-lo, a 6 de junho
de 1654, mesmo dia de sua abdicação, abandonou a Suécia dirigindo-
se a Bruxelas, onde se converteu em segredo ao catolicismo, que viria
a abraçar publicamente mais tarde, em Innsbruck.
O papa Alexandre VII recebeu-a em Roma com honras de rainha,
apesar de que desde então, em dezembro de 1655, já começara a se
decepcionar com os católicos porque, além de seus prelados lhe
parecerem pouco piedosos e insuportáveis as beatices, considerou
sugestiva essa mistura de frivolidade e negócios suspeitos que
caracterizava os mais altos hierarcas de um credo que, contrariamente
a seu costume pessoal de julgar tudo com rigor, havia apreciado mais
pelo véu da imaginação do que por sua realidade concreta. Desse
modo, em vez de se entregar totalmente à devoção que meses antes a
levara ao extremo de depositar coroa e cetro aos pés da Virgem de
Loreto, e até mesmo a se acreditar capaz de trilhar o caminho da
santidade, pôs em prática suas habilidades políticas para se imiscuir
nas intrigas papais e cardinalícias, pois sentia falta do poder e lhe
divertia manipular as vontades alheias de uma maneira não tão furtiva.
Cativou aos romanos por seu refinamento extravagante e,
agradecida pela calorosa recepção, criou grandes empresas culturais
que não deixavam nada a dever perante as ambições artísticas da Santa
Sé. Gostava dos carnavais, das comédias e dos concertos, mas se
agradava especialmente da vivacidade italiana, tão contrastante com a
personalidade lúgubre dos suecos. Tinha tempo de sobra para o
intervencionismo e o aproveitou sem desperdiçar as mais elevadas
influências. Caprichosa, aspirou primeiro ao reino de Nápoles - então
sob domínio do império espanhol - porque, assim como sentia falta
dos deleites do poder, também sentia saudades do ambiente cortesão e,
naturalmente, de uma renda ilimitada. Entrou em negociações com o
duque de Módena e com o cardeal Mazarino, primeiro-ministro do
governo francês, a fim de obter o cetro mediante a promessa de que, ao
morrer, o entregaria sem reservas nem direitos de sucessão a um
príncipe gaulês; em seguida, após fracassarem seus planos (como era
de se esperar), durante sua visita à França, em 1657, cedeu ao seu
temperamento impulsivo e cometeu um grave erro. Em Fontainebleau,
durante um acesso de fúria, mandou executar sem julgamento ou
sentença legal, nem mesmo tempo para se preparar para a morte, ao
marquês Gian Rinaldo Monaldeschi, seu escudeiro e fiel cortesão, que
morreu às mãos do pior inimigo, que o havia acusado de alta traição
por prejudicar suas alianças dentro da Santa Sé.
Apelando para seu direito monárquico de punir um ato de
deslealdade Cristina negou-se a justificar sua dureza. Alegou que
aceitar o veredicto de um tribunal era contrário à sua dignidade e
complementou: "não reconhecer qualquer autoridade acima de nós vale
mais do que dominar toda a Terra" Esta afirmação demonstra até que
ponto se infiltrava a arbitrariedade em suas decisões. Assegurou,
inclusive, que nenhuma rainha que se preze pode ou deve atender à
opinião pública, sempre desprezível. Contudo, enfrentou com elegância
a repulsa geral, ainda que o descrédito tivesse ensombrado sua figura e
cerceado durante dez anos suas aspirações absolutistas, embora estas
tenham ressurgido após sua segunda visita à Suécia e enquanto
esperava em Hamburgo, com a notícia de que seu primo em segundo
grau, Jan Kasimir, havia abdicado ao trono da Polônia.
Amiga íntima de quatro papas, estabeleceu-se até sua morte em
Roma, onde se converteu em uma das personalidades mais influentes e
em uma voz respeitada pela cúria. Daí derivava sua força política cada
vez mais afinada por uma sagaz companhia eclesiástica que lhe
ensinou a dominar a intriga e a cultivar o poder por detrás do poder.
Canalizou para o patrocínio das artes a energia e a fortuna que não
pôde investir em seus sonhos de reconquista do poder. Apesar disso,
vivia pressionada pelo governo de Estocolmo, que só lentamente lhe
enviava dinheiro e o fazia mediante sob determinadas condições que
Cristina, sempre engenhosa, convencionava a seus propósitos para
quitar suas finanças e aumentar suas valiosas coleções com peças
clássicas ou vanguardistas.
O papa Clemente IX apoiou em vão suas aspirações ao trono da
Polônia; mas Cristina não se sentiu demasiado frustrada com o novo e
definitivo fracasso de suas ambições políticas, porque era realmente
mais forte seu apego à vida romana - onde dizia ter encontrado o tom
social adequado a seu temperamento marcado por doses equivalentes
de espiritualidade, talento e disposição para as disputas papais - que
seu desejo de ocupar algum trono no continente. Parece até que,
depois do episódio da Polônia, sentiu-se liberada da tentação de reinar,
pois há indícios de que seu caráter serenou ao descobrir finalmente o
amor depois dos 40 anos, quando se tornou muito mais indulgente. E
se os rumores asseguravam que seu amante era o cardeal Azzolino,
considerado uma das figuras públicas de maior agudeza de espírito e
encanto pessoal na época, suas cartas, descobertas no século XIX,
confirmariam que existiu algo mais que uma estreita amizade entre
esses dois seres excepcionais que, segundo consta, nunca se separavam.
Ele era uma das mais importantes cabeças políticas do Vaticano, muito
apreciado por sua prudência; ela era, então, a personalidade civil mais
influente nos planos do cardeal de terminar com a guerra cristã, movida
pela Santa Sé contra os turcos. Ele vivia em estado de alerta diante das
decisões cardinalícias; ela permaneceu compenetrada de todos os
assuntos católicos até que o papa Inocêncio XI lhe retirou a pensão
concedida anos antes por seus predecessores, sob o pretexto de que
aqueles fundos eram indispensáveis para o Vaticano, a fim de
aumentar o tesouro destinado a assegurar o triunfo bélico dos
cristãos que se batiam na Turquia.
Sagaz como sempre, Cristina não desanimou por obra do acaso,
que a favoreceu com a oportuna troca do administrador de seus bens
na Suécia. Assim, desde 1681, oito anos antes de sua morte, teve
assegurada sua independência financeira e, pela primeira vez desde sua
abdicação, não dependeu de ninguém nem teve restrições para gastar
livremente em seus projetos. Sua primeira iniciativa foi transformar o
Riario, seu palácio particular - conhecido hoje como Corsini, localizado
na via delia Lungara - em sede principal de suas coleções,
especializadas em pinturas venezianas e renascentistas, bem como em
esculturas, livros e medalhões valiosos. Transformado em Academia
dell'Arcadia, Cristina determinou que fosse um lugar de reunião de
músicos e de homens de letras. Sua influência é até hoje reconhecida
na depuração da literatura italiana, afetada então pela dissonância e
pela grandiloqüência, insistindo em recuperar os modelos culturais
representados por Augusto e pelos Medici, aos quais tomava como o
melhor exemplo de razão perfeita e de claridade, o que confirmava sua
dupla paixão política e empreendedora na busca de novos tempos. A
seu pedido criou-se também o Tordinona, primeiro teatro de ópera de
Roma, e foi ainda graças a ela que se reconheceu o gênio de
Alessandra Scarlatti, seu protegido e maestro de seu coro; e o de
Arcangelo Corelli, a quem nomeou diretor de sua orquestra.
É inesgotável a lista de arquitetos, escultores, escritores, filósofos
e músicos que gozaram de sua proteção. Destaca-se sua amizade com
Giovanni Bernini, a quem recomendou ao criticadíssimo historiador da
arte Filippo Baldinucci, para que escrevesse sua biografia. Talvez por
tais influências e por sua hábil compreensão da força política e moral da
Igreja Católica, legou à biblioteca do Vaticano seus principais acervos.
Senhora de uma vigorosa independência de espírito, que
conservou até a morte, repudiou a intervenção oficiosa dos confessores.
Protegeu os judeus e combateu o fanatismo. Escreveu epigramas e
pensamentos em suas horas de ócio. Afirmou que viveu para colocar
Deus e ela mesma nos lugares que respectivamente lhes correspondiam
e, fiel à sua paixão amorosa, nomeou o Cardeal Azzolino seu herdeiro
universal; mas ele só a sobreviveu por dois meses. Cristina da Suécia
morreu aos 63 anos em Roma, no dia 19 de abril de 1689, sendo
enterrada com honras de realeza na catedral de São Pedro.
Caminho de Deus
Malinche

Malinche e palavra, na América, são quase uma e a mesma coisa.


Dizer Marina é remontar ao instante em que o castelhano se estende
sobre montanhas e vales com o duplo sinal do esquecimento e das
memórias dos vencidos. Malintzin é nome que evoca a perda dos
nahuas, a história pintada e o peregrinar de mulheres vendidas e
transportadas de uma região para outra, de um homem para outro, de
uma maneira de viver para outra, todas incertas, e que em seu silêncio
essencial exibem uma verdade válida até hoje e para todos os tempos:
não importa o que tenha ou não tenha a dizer, nem a forma como o
diga; no destino da mulher mexicana está inscrita a sina de não ser
atendida. Uma sentença condenatória que arrastamos todas, inclusive
nós que nos atrevemos a escrever nesta terra onde se fundiram os
resquícios do melhor e do pior do invasor e do vencido.
Foi muito mal aplicado o termo "malinchismo" para designar a
preferência pelo estrangeiro ou o repúdio à própria origem - com base
somente no fato de que a célebre e, ao mesmo tempo, quase
desconhecida Malinali tivesse servido de intérprete para o
conquistador espanhol -, porque não se pode encontrar realidade mais
adversa a uma escolha pessoal feminina do que aquela atribuída a
essa mulher, justamente em função de seu talento lingüístico. Refém
primeiro de sua própria gente e depois do furacão provocado pelos
invasores, a rebatizada dona Marina ainda está por ser redescoberta
entre os emblemas de um colonialismo que, nem pela força da palavra,
se consegue libertar do estigma da vassalagem.
Por meio das generalidades que perduram de sua biografia,
sabemos que nasceu entre 1498 e 1505 em Painala, região de
Coatzacoalcos, e que morreu em meados do século XVI após ter
padecido sob o jugo de dois credos e de duas culturas que em nada se
pareciam, salvo em seu costume comum de reduzir a mulher a uma
presença sem rosto, uma voz sem linguagem e uma mãe ou donzela à
disposição das exigências da família e da sociedade.
Seu pai, um cacique local, para se desfazer dela quando tomou
uma segunda esposa, vendeu-a como escrava a mercadores de
Xicalango, os quais, por sua vez, negociaram-na na região maia de
Putunchán, quando se converteu em propriedade do senhor de
Chokam-putun. Daí seu domínio precoce das duas línguas que a
elevou à condição de enlace primordial entre mexicanos e maias e, no
tempo devido, de elo entre as línguas maia e espanhola, que aprendeu
com fluência naquela região quando esteve em contato com os dois
espanhóis sobreviventes da expedição de Grijalva que, antes mesmo da
chegada de Cortés, haviam desembarcado e se estabelecido no atual
Yucatán.
Além disso, ainda se está por examinar qual a afeição que
poderia experimentar uma mentalidade escrava que, segundo os
códigos locais, fora somente educada para servir a seu amo e senhor.
Malintzin não era, a rigor, uma traidora de sua gente, mas reflexo
exato de uma servidão que envolvia por igual tanto a mulher de
nascimento nobre quanto a da mais ínfima origem. Isso faz com que o
significado do malinchismo, derivado de seu nome, seja anulado pelos
desdobramentos de uma identidade aniquilada pelo comércio.
Quando, a 12 de março de 1519, Hernán Cortés chegou com
seus soldados a Putunchán, recebeu vinte jovens como presente, a fim
de serem repartidas entre seus capitães, segundo o costume indígena.
Malintzin fazia parte desse grupo. Marcada novamente pelo acaso,
recebeu como dono Alonso Hernández Puertocarrero, que, ao chegar ao
litoral de Chalchihuecan, em Veracruz, ficou sabendo por intermédio
de um dos soldados resgatados no Yucatán, chamado Jerónimo de
Aguilar, que a moça falava o idioma nahuatl, além do maia, e que estava
mais do que preparada para se adequar à adversidade. Em um
momento tão decisivo, ninguém melhor que ela para unir três culturas
totalmente monolíngües. Foi assim que exerceu sua tarefa de
intérprete, tornando-se figura central entre vencidos e vencedores, e foi
então que recebeu o apelido de Língua, conforme a chamavam então.
Cortés falava em castelhano com Aguilar; este se comunicava em maia
com Malinali e ela conversava em nahuatl com os nativos.
Precoce como era, na intimidade com Hernández Puertocarrero
assimilou em pouco tempo o idioma e as preferências do invasor,
eliminando assim facilmente a figura de Jerónimo de Aguilar do tríplice
elo idiomático do qual dependiam os espanhóis para se comunicar com
esse mundo aborígene que lhes parecia tanto mais misterioso quanto
mais se aproximavam de Tenochtitlán. Ponte verbal entre credos e
tempos que se juntavam ao fio da Nova Espanha, por sua boca
deslizava o passado sob o peso da memória trazida pelo mar, uma
memória carregada de signos e de nomes que tanto fascinavam quanto
apavoravam os residentes da Mesoamérica1 que, de imediato, viu-se
cravada de imagens, nomes, sons e costumes misturados à ameaça de
seu próprio esquecimento e ao deslumbramento perante o ignorado.
Os espanhóis oscilavam entre o rumor e a expectativa, entre a
esperança e o crime abjeto, enquanto as mulheres mexicanas fundavam
em seus ventres uma mestiçagem que, em Malintzin, consagrava aquela
que seria sua língua definitiva: uma língua feita de deuses coléricos, de
pronúncias surgidas com um quê de cacau e de tomate, de sons para
designar o amendoim, o metate, o elote e o huipil.2 Não é de se estranhar
que, ao partirem Hernández Puertocarrero e Francisco de Montejo como
procuradores perante a corte espanhola, Cortés não se conformasse
unicamente com a lealdade oral da tradutora, razão pela qual, a partir de
então, Malintzin tornou-se sua concubina. Conselheira inseparável,
acompanhou-o em todas as suas conquistas e na expedição a
Hibueras. Ela explicava os costumes locais a Cortés, advertia-o a respeito
das sutilezas americanas, resguardava-o e, seguramente, amava-o
também.
Em sua acidentada biografia concorrem os primeiros indícios
trágicos de uma cultura que, para nascer, teve de se marcar com
sangue e com o estampido dos deuses que se enfrentavam na mais
tremenda e desigual batalha. O mundo de Malintzin era feito de fogo e
sacrifícios cerimoniais, de costas dadas ao mar e olhos fixos no destino
do mundo inferior coroado por mitos de cobras aladas. Os aborígenes
viviam rendidos ao silêncio sob um céu de aves preciosas e submetidos
ao jovem império asteca. Dual, o mundo mexicano encontrava-se
ajustado aos rigores sagrados do calendário e aos tributos crescentes
dos dominadores locais, sendo singularmente cruel com índios e
mulheres.
Concubina do conquistador, não foi de estranhar que o casal
acabasse gerando, em 1522, o primeiro mestiço com a clara percepção
de independência, não obstante tenha sido educado na península
ibérica depois da morte de sua mãe. De Malintzin e do saber adquirido
na Espanha, Martín Cortés herdou e desenvolveu uma firme vontade
libertadora; e de seu pai, recebeu a índole obstinada. Ao cabo de sua
luta, reduzido à condição de mestiço subjugado, Martín Cortés
conheceu os rigores da tortura, o poder destruidor dos boatos e o selo
implacável do silêncio com o qual se costuma amordaçar os
colonizados.
Malintzin, signo trágico de duas épocas, voz histórica de uma
índia expressa em castelhano, é também o símbolo da maior
submissão feminina, pois nem com o domínio de três línguas - e em que
pese o batismo purificador que poderia preservá-la de maiores
perseguições - conseguiu vislumbrar os sinais de uma identidade
libertadora.
E é esse drama de Malintzin o mesmo drama cultural de nosso
povo: não poder se assenhorear plenamente dos nomes nem exercer a
igualdade por meio do pertencimento a um idioma que, não obstante
sua origem "assimilada", marginaliza uma mestiçagem que ainda
transita entre os extremos de um futuro prefigurado e o esquecimento
sigiloso de sua história. Por isso dona Marina, ao dar vida a seus
vocábulos como uma espiral de vozes enraizada no universo mítico, foi
mera ponte verbal, um corredor de palavras estranhas a seu passado,
distantes em tudo aos nomes de sua experiência pessoal e sem vínculo
algum com o significado das idéias que expressava, porque estas
correspondiam ao domínio europeu.
Enlace oral entre a Europa e o Anahuac3, Malintzin mal poderia
representar a assimilação complacente do estrangeiro, porque, em sua
vassalagem cambiante, não teve outra força firmadora nem maior
recurso de sobrevivência que seu talento, um talento que não se
resignou ao esquecimento, como ocorreu com o resto dos vencidos, mas
que se transformou em provedor de nomes e sonhos de liberdade que,
paradoxalmente, jamais pôde utilizar em proveito próprio.
Malintzin é, a rigor, a verdadeira semente da palavra mestiça,
com a qual se construiria um novo alfabeto de sangue e de fogo. Ela é
a palavra que começou a se prodigalizar ali onde as linguagens se
enfrentaram como exércitos inimigos no campo de batalha. A Malinche
é a língua consagrada pela cruz e uma voz embalada pela paisagem
vulcânica de nossa grande Mesoamérica.

1 O termo Mesoamérica não tem conotação geográfica, mas histórica e antropológica.


A rigor, a região estende-se do planalto central mexicano até Honduras, passando
pela península do Yucatán, onde se desenvolveram culturas indígenas
avançadíssimas, só igualadas na América pelos povos andinos, ao sul do continente.
[N.T.]
2 Metate: pedra sobre a qual se mói milho, cacau e outros grãos, no México; elote:
espiga tenra de milho que se consome cozida ou assada, no México e em alguns países
da América Central; huipil: espécie de camisa adornada, própria dos trajes indígenas
(México, Honduras, El Salvador e Guatemala). [N.T.]
3Um dos nomes do México antes da conquista espanhola. Refere-se particularmente
ao vale localizado na zona central do país. Foi nessa região que os astecas fundaram
sua capital. Tenochtitlán, que se converteria depois na atual Cidade do México. [N.T.]
Virgem Maria

Entre os primeiros cristãos não se cultivava a veneração mariana e, no


geral, não se aceitava o culto das imagens, considerado parte
substancial de uma forte tradição asiática que culminou na teurgia e
no costume de exercê-la acompanhada de atividades mágicas e
oraculares tingidas de heresia. Nesses séculos, as deusas helênicas
ainda se infiltravam na imaginação do continente europeu, e Roma não
desdenhava da veneração feminina em seus templos, personificada em
sacerdotisas e deusas. Esse poder remoto não se manifestava
exclusivamente no fervor religioso, mas desde as crenças tribais até as
comunidades organizadas foi-se estendendo à sucessão monárquica -
como no Egito ancestral e faraônico - ou foi refletido nas sociedades
que, em sua etapa constitutiva, respeitavam a potência criadora como
o eixo de estabilidade, temor ou harmonia, ainda que a voz feminina
não ascendesse diretamente à agora, ao direito à propriedade nem às
tribunas públicas.
Com o predomínio da palavra de Cristo no centro da reli-
giosidade imperial, essa presença seria deposta por um patriarcado tão
vigoroso que, a partir dos séculos V ou VI de nossa era e até a ascensão
do feminismo contemporâneo, apagou da história tanto a presença
como a simbologia relacionada às mulheres.
No lugar de Ísis enigmáticas, de Afrodites ou Vênus sensuais, de
uma Hera ciumenta e perseguidora do Zeus eternamente infiel, da
Juno apaixonada, da Deméter fecunda ou da noturna Perséfone, o
dogmatismo interpôs a Mãe de Deus Filho, esposa do Espírito Santo e
filha tardia de São Joaquim e Santa Ana, como marco absoluto de graça e
pureza perfeitas, ainda que tivesse experimentado em seu mistério
sagrado e elevado a dogma de fé, a concepção, a gravidez e o parto
daquele que seria o Redentor de nossos pecados.
O evento que espelhou os embates doutrinários daquela era
agitada tramada de política, militarismo, superstição e doutrina ainda
incipiente, teve lugar na cidade de Éfeso (que fora sede do antigo culto
à casta Diana), onde se realizou no ano de 431 de nossa era o concilio
que debateu a maior controvérsia religiosa sobre os dogmas
fundamentais da Igreja Católica: o da Santíssima Trindade e o da
virgindade e assunção de Maria - que tantas e tão prolongadas
desavenças suscitaram entre os primeiros patriarcas, a começar pelo
centro episcopal presidido por Cirilo de Alexandria, ferrenho defensor
da infalibilidade do credo apostólico.
A partir de Éfeso Maria foi proclamada, em grego, Theotokos,
conseqüência do memorável concilio que a consagrou desde então
como Mãe de Deus. Mais que registrar um evento litúrgico, por meio
daquela conquista espiritual a história sintetizou uma variada devoção
feminina que, desde o legendário Mediterrâneo até os confins do
Ocidente europeu, se transformou na glorificação de uma maternidade
prodigiosa, modelo de humildade universal e de obediência à
mensagem divina, que atravessou a cristandade católica sob a insígnia
da Imaculada Conceição de Maria.
Confrontada com uma seleta população de deusas, ninfas,
sacerdotisas, pitonisas governantes e figuras trágicas, essa delicada
adolescente, como quase sempre é representada, no mínimo nos
desconcerta, porque contrasta com séculos e até milênios de
participação feminina apaixonada em um mundo no qual não se
imaginavam a vida, os mitos, a criatividade e nem mesmo a morte sem a
presença direta de mulheres ou deusas. Delas a Virgem Maria herdou
culturalmente a função única de intermediária entre os crentes e a
bondade divina; porém, os demais atributos foram excluídos por uma
civilização monoteísta que se atreveu a negar radicalmente a completude
feminina, incluídas aí também suas veleidades. Daí a dupla importância,
social e religiosa, desse arquétipo por excelência da vida terrenal
incorrupta, em cuja passagem pela Terra, até o ponto em que sabemos
pelo favor da fé, entregou-se à missão de consagrar a mais perfeita obra
purificadora por uma humanidade castigada pelo pecado original desde
a queda ancestral de Eva.
Tudo indica que, a partir do século V, marcado pelo
fortalecimento doutrinário e teológico da patrística e pela aceitação de
relíquias e ritos litúrgicos até então considerados pagãos, proliferaram
tanto as linguagens adjetivadas nas orações, para acentuar o impulso do
sagrado, como o fluxo de prodígios, de objetos santos e um sem-número
de metáforas e lendas que não tinham outra finalidade que a
consolidação do Evangelho entre os herdeiros do helenismo e da
cultura da Roma imperial, que já declinava em favor de uma Idade
Média pujante e diversa que concentrou seu trabalho espiritual em
torno do dogma da Santíssima Trindade, que entranha o mistério das
três pessoas distintas que subsistem em uma mesma natureza divina:
o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Apagadas pelo poder do manto mariano e diminuída a função
moral que haviam desempenhado em sua hora e em sua época, ficaram
para trás - talvez para sempre - as sombras trágicas de Jocasta, Electra,
Medéia, Antígona, Cassandra ou Clitemnestra; em seu lugar, passou-se
a louvar uma maternidade universal e piedosa que, em seu caráter
humano, era filha de homem e mulher; porém, em seu enlace divino,
exaltava sua unicidade como mãe de Deus concebido por obra do
Espírito Santo. Assim cumpriram seu curso rumo ao esquecimento os
nomes daquelas mulheres que, da Babilônia ao Olimpo e do Nilo às mais
altas conquistas gregas, se mantiveram durante tempos imemoriais
como símbolos preciosos dos desígnios e dos desafios entre deuses e
humanos. Centenas, talvez milhares de protagonistas de credos e
costumes passados foram substituídas por uma figura frágil e sutil que,
sempre imóvel, alheia à agitação, à vitalidade, ao descomedimento e aos
namoros legendários que nutriram a mitologia e a tragédia,
representava a graça por excelência, o rosto da sabedoria, o silêncio e,
acima de tudo, a misericórdia suprema.
Quanto mais se consagrava a pureza de Maria, mais se
expandiam os muitos títulos dos quais era credora; e quanto mais se
multiplicavam as associações bíblicas - que os patriarcas enalteciam
com discussões de fé -, maior o confinamento das mulheres da
Antigüidade aos limites da erudição medieval ou ao mundo do mito e da
poesia. Em seu excelente prólogo a nova edição do Zodíaco Mariano, o
historiador mexicano Antonio Rubial Garcia nos recorda que Míriam - seu
nome original, talvez tomado da irmã de Moisés, e que significa graciosa
ou bela - inspirou numerosas interpretações no melhor da arte religiosa,
além de um universo inacabado que abarca um sem-fim de milagres
atribuídos à sua intercessão e outras polêmicas determinadoras de
cismas e fraturas teológicas entre cristãos e não-cristãos.
Talvez como um vestígio daquela Ísis tida como estrela-guia dos
marinheiros, São Jerônimo associou-a à estrela-do-mar; São Isidoro
definiu-a como iluminatrix, ou a iluminadora; São Pedro Diácono como
mediadora de todas as graças, enquanto Santo Anselmo se referia a ela
como soberana do mar. A lista de metáforas, a partir de então, é
incontável, e algumas vezes insólita, como se pode observar na
ladainha do santo rosário, em que abundam alusões como casa de
ouro, porta do céu, poço de água viva, trono da eterna sabedoria...
Frases que, no fim das contas, encerram a tendência a evitar uma
linguagem precisa, até mesmo nos textos teológicos; por outro lado,
abusam dos adjetivos, sobretudo quando se trata de temas marianos
talvez porque, ao exaltar qualidades, acabam alimentando a fé mais
pela senda da intuição que pela via do racionalismo.
Muito pouco se sabe sobre a vida de Maria no mundo. Para além
das referências pontuais do Novo Testamento, a mãe de Jesus Cristo
está rodeada por um halo de mistério; um mistério que, longe de se
desvelar por meios históricos, torna-a cada vez mais confusa devido ao
dogma de fé que diviniza sua concepção imaculada e, com os séculos,
perfila-a como objeto de reverência preferido na Espanha, onde se
contam hoje mais de 22 mil invocações diferentes para lhe render
culto.
É certo que, desde tempos imemoriais, as relíquias e o culto às
imagens pintadas ou entalhadas constituem um dos suportes mais
firmes da religiosidade, Índia, Egito, Grécia e Roma, entre outros
exemplos culturais importantes, contribuíram para desenvolver o gosto
popular por figuras que pudessem absorver a ânsia de espiritualidade
demandada pelo humano e o impulso para o sagrado, que quase
invariavelmente antecede os credos estabelecidos. Se examinarmos os
documentos históricos referentes à imagem de Maria, custa acreditar
na grande difusão de sua figura durante a época medieval, apesar da
cerrada oposição às imagens que dominava a mentalidade dos
primeiros cristãos. E ainda que tenha sido lenta a instauração do
costume devocional mariano, pode-se dizer que, a partir do século XII
europeu e até nossos dias, tornou-se incontestável a certeza de que a
piedade de Maria complementa a obra redentora de Jesus Cristo na
Terra.
O episódio da Anunciação, citado por Lucas, é a primeira
referência bíblica a Maria e está precedido pela revelação a Zacarias
sobre o nascimento de João, o que garante, desde antes de suas
respectivas concepções, os vínculos cifrados entre o Batista e Jesus.
Belo e dotado da magia oriental que no passado não estabelecia as
fronteiras que hoje interpomos entre o natural e o sobrenatural, o relato
acentua com clareza o caráter portentoso de um evento do qual
derivaria a doutrina da redenção que distingue o cristianismo.
Disse Lucas que, no tempo do reinado de Herodes, seis meses
depois da mensagem divina enviada a Zacarias de que, apesar da
prolongada esterilidade, sua esposa Isabel conceberia um filho santo, o
arcanjo Gabriel foi enviado pelo Senhor a uma cidade da Galiléia,
chamada Nazaré, para dizer à prometida de José, uma donzela de
nome Maria, que devia se alegrar porque era ela a agraciada para
conceber e dar à luz um filho que seria grande, Filho do Altíssimo, que
sob o nome de Jesus reinaria para sempre na casa de Jacó.
Mais espantada pela gravidez virtual do que com a visita do anjo,
ela indagou como seria isso possível, já que não conhecia varão. Logo a
seguir, ao saber que o poder do Espírito Santo baixaria sobre ela e a
força do Altíssimo a cobriria com sua sombra, Maria, diante do prodígio
daquela manifestação, entendeu plenamente por que aquele que iria
nascer de seu ventre seria chamado Consagrado, Filho de Deus.
- Tens aí tua parenta, Isabel - acrescentou Gabriel, confirmando
que, para Deus, nada é impossível -, que apesar da idade avançada
concebeu um filho, sendo esteja o sexto mês para aquela que diziam
estéril.
Humilde, obediente ao ditame supremo, a jovem não perguntou
mais. Não exigiu explicações, e antes que o anjo a deixasse, com a
docilidade que durante séculos serviu como exemplo de submissão
religiosa, respondeu o que, em nossa cultura cristã, representa o
acatamento por excelência a um destino consagrado ao bem e ao
serviço divino:
- Eis aqui a serva do Senhor. Cumpra-se em mim segundo a
tua palavra.
Dias depois, imbuída de uma emoção que ultrapassava seu
entendimento, Maria se encaminhou pela serra da província da Judéia
até a casa de Zacarias, para permanecer ali por uns três meses, talvez até
o nascimento de João Batista, que seria primo de Jesus. Ao vê-la, a
criança que Isabel levava no ventre deu um salto e, cheia do Espírito
Santo, a mãe saudou a jovem recém-chegada com a frase que, doze
séculos mais tarde, iniciaria a Ave Maria, célebre oração cuja segunda
parte somente lhe seria acrescentada no século XVI:
- Deus te salve, Maria... Bendita és tu entre as mulheres e
bendito o fruto de teu ventre! - e acrescentou depois: - Quem sou eu
para que me venha visitar a mãe do meu Senhor? Pois logo que a voz
de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de
alegria em meu ventre. Bem-aventurada és tu que creste, pois se hão
de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas!
Então, como se entre elas existisse um diálogo ou um pacto
secreto, selado por suas mútuas revelações, disse Maria a Isabel:
- Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito se alegra em Deus,
meu Salvador, porque olhou para sua humilde serva. Por isso, desde
agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações porque o
Poderoso realizou em mim maravilhas. Seu nome é Santo, e sua
misericórdia se estende, de geração em geração, sobre os que o temem.
A partir desse encontro entre as duas mulheres e até a
natividade de Jesus, a memória dos evangelistas não registrou
qualquer outro dado esclarecedor da biografia de Maria, tampouco da
de Isabel. Com o decorrer do tempo, na Síria, provavelmente depois do
Concilio de Éfeso no século V, quando a mariologia começou a ser
difundida e o mundo cristão se cobriu de lendas e de inumeráveis
relíquias que inauguraram o grande mercado de objetos de culto que
logo se transformou em fonte inesgotável de lucro, multiplicaram-se as
preces obrigatórias ao lado de retratos e dos supostos lugares onde a
sagrada família teria deixado suas pegadas. Surgidos do nada,
apareceram uma suposta aliança de casamento, retalhos de um
manto que teria pertencido à Virgem, esta ou aquela túnica que ela
havia usado em sua peregrinação durante a chamada fuga para o
Egito, a cinta, uma eventual camisa e até gotas de leite, todos objetos
venerados pelos fiéis com a certeza de serem milagrosos, ostentados
tanto nos altares públicos como nos recintos privados e dos quais, no
devido tempo, viriam a se abastecer os grandes depósitos vaticanos e
templários.
Amplamente citada e enriquecida por toda sorte de complementos
artísticos que, em especial durante a Renascença, serviriam de motivo
às obras-primas da pintura e da escultura, a história de Maria
inaugura um capítulo paralelo na iconografia interpretativa, tanto em
relação à natividade quanto à adoração dos magos, à fuga para o Egito
em companhia de José, ao menino ameaçado pela mão de Herodes e à
cena da multiplicação do vinho durante as bodas de Canaã, além,
naturalmente, de sua dor ao pé da cruz e sua ascensão em corpo e alma
aos céus depois da ressurreição de Jesus Cristo.
Na Europa, a Igreja reconheceu oficialmente a veneração a Maria
ainda na época paleocristã e visigoda. Porém, por causas até agora
inexplicáveis, seria a península ibérica o território mais inclinado à sua
devoção. Ali, uma após outra e com particular recorrência a partir do
século XII, em pleno conflito religioso entre mouros e cristãos,
registraram-se portentosas aparições marianas que motivaram a
construção de santuários para abrigar milhares de devotos que
peregrinavam desde os pontos mais remotos; durante aquele
milenarismo entrelaçado de religiosidade e temor do fim dos tempos,
guerras santas - particularmente as célebres cruzadas à Terra Santa -
intercalavam-se com movimentos messiânicos e com a criação de
conventos, nos quais se confinou uma multidão de mulheres para
assumirem desde o claustro a condição de esposas de Cristo, a quem
consagravam sua virgindade e seu isolamento do mundo. Faziam-no,
inclusive, como forma de firmar a cristandade em povos decididamente
inclinados a conformar a moral cristã aos princípios doutrinários
daquilo que, em poucos séculos, se converteria na espiritualidade
inseparável do movimento humanista.
As práticas devocionais em torno da figura mariana
disseminaram-se até se transformar em costume inseparável do
temor ao pecado e da luta contra o demônio. Dentro e fora dos
conventos, a religiosidade despertou uma nova maneira de ser,
pautada pela tutela da Virgem Santíssima e pelas orações a ela
dirigidas. Data do século XIII a consagração do mês de maio a Maria;
do século XII, as preces cotidianas que incluem a saudação feita pelo
anjo a Maria, ou Ângelus, que originariam ente era rezado à meia-noite
na esperança de se receber indulgências pelo sacrifício. A proliferação
de hinos de clara influência oriental inspirou o Salve Regina, composto
pelo bispo Ademar de Monteil nos primeiros anos do século XII, e,
sucessivamente foram-se agregando preces e poemas, como o Gaude,
que seriam o tronco de centenas de ladainhas, rezas das horas
canônicas, novenas e ofícios que, em seu conjunto, integram o que se
reconhece como mariologia ou devocionário mariano.
De todos os mistérios que cercam o cristianismo, um dos
maiores se relaciona, sem dúvida, com a maternidade da Virgem Maria,
desposada por José depois de dar à luz virginalmente a criança
divina. Se, pelo poder da fé, aceitamos sua virgindade perpétua
conforme ditada pelo dogma, permanece, contudo, o enigma de como
sua devoção se transformou em marco da unificação espanhola
depois da vitória dos cristãos sobre o Islã. Nesse sentido, Antonio
Rubial Garcia recorda que, durante o ciclo da Reconquista, a Virgem foi
associada aos comandantes no campo de batalha, e que santos como
Tiago ou Miguel atuavam na linha de frente, lançando terra e poeira
nos olhos dos inimigos.
Nossa Senhora das Vitórias, a Virgem das Mercês, a de
Covadonga, a Dolorosa, a do Carmo, de Aranzazú, da Solidão ou a de
Guadalupe em Extremadura são invocações remotas e inseparáveis da
dupla conquista cristã: da Espanha, primeiro, e depois da América;
nesta última, o culto mariano arraigou-se de tal maneira que, desde a
etapa da evangelização, no século XVI, criaria por si mesma uma
defensora própria que personifica, em Nossa Senhora de Guadalupe, o
signo de uma piedade que já perdura há cinco séculos.
Atribuído a São Francisco de Assis, o costume de representar o
nascimento acompanhado da adoração dos magos e da fuga da
sagrada família para o Egito durante a perseguição de Herodes teve em
nossas terras uma poderosa ação evangelizadora. De fato, mais que a
Anunciação e ainda mais que a Assunção de Maria, essas imagens se
integraram à cultura mestiça antes e com muito mais força que a
ortodoxia. E isso é o que mais fascina em uma história religiosa que,
pelo menos no que concerne ao México, não se pode separar do duplo
significado que a piedade de Nossa Senhora representa na devoção
popular e na proliferação de um monoteísmo que somente pôde se
assentar no Novo Mundo graças ã assimilação das qualidades
marianas.
Comovente até sua elevação aos céus em corpo e alma, a história
de Maria alcança seus pontos culminantes em três eventos
transcendentais para a Cristandade: a Anunciação, a crucificação de
Jesus Cristo e a Assunção. Como mãe, ela não somente era o centro da
família, mas se converteu no centro espiritual em torno do qual
convergiam os apóstolos, precisamente por ser a mãe do Messias; não
obstante, Maria, contida em seu peculiar silêncio, não representou
nenhuma forma de autoridade equivalente àquela que, em sua época,
exercera a sacerdotisa Miriam, irmã de Moisés e de Aarão, que entoou
um cântico entusiasta e profético sobre a derrota dos egípcios;
tampouco refletiu a autoridade mais dinâmica de uma Débora, que,
nos momentos de maior prostração religiosa e patriótica, exerceu nas
montanhas de Efraim o ofício de juíza de Israel e que, por meio de
suas proclamações de conjuro, dirigiu vitoriosamente a batalha contra
Sísara.
Última figura feminina a se sobressair no Antigo e no Novo
Testamentos, Maria consumou a tradição de mulheres orientais cuja
poderosa personalidade determinou transformações reveladoras da
influência que então exerciam sobre seu ambiente tribal. O mundo
cristão concentrou sua devoção no princípio da unicidade, que veio a
apagar da consciência cultural e religiosa uma lista de conquistas que
desapareceram dos costumes sociais a partir da presença da Mãe de
Jesus e de sua peculiar entronização como ser eleito pela divindade
para engendrar ao Redentor de nossos pecados. Cabe indagar,
todavia, o que aconteceu com suas grandes antecessoras que
floresceram séculos antes, como Hulda, uma profetisa da altura dos
grandes profetas da Antiga Aliança, a quem consultou o rei Josias; ou a
memorável Judite, que livrou sua cidade natal e toda a Palestina dos
inimigos; e Ester, a mais valente de todas, aquela que, proclamando
"se tiver de morrer, morrerei", decidiu o destino de sua gente.
Salvo essas remotas sacerdotisas, a mulher oriental e,
particularmente, a de Israel esteve excluída de todos os ministérios do
culto; mas compartilhavam com os homens certas celebrações, deveres
relacionados com a conduta e pequenos rituais que confirmavam suas
funções familiares, geralmente à sombra da vida social e jurídica.
Tanto nos Atos dos Apóstolos como nas referências biográficas de
Jesus relacionadas com as mulheres confirma-se que, exceto pelas
pecadoras, enfermas e algumas discípulas às quais se manifesta o
Nazareno, a feminilidade não foi digna de expressão para ingressar na
história, ainda que, segundo a cristandade, a mulher seja uma pessoa
perante Deus, tal qual o homem e, portanto, igualmente merecedora
de sua ação salvadora e de sua misericórdia.
Nossa Senhora
das Mercês

Padroeira dos religiosos mercedários, assim como da cidade e da


diocese de Barcelona desde o século XIII, Nossa Senhora das Mercês é
abonada por uma dupla lenda que a vincula à ascensão imperial da
Espanha em pleno combate entre mouros e cristãos e, posteriormente,
à obra missionária que se haveria de empreender no Novo Mundo
como conseqüência do primeiro desembarque de Cristóvão Colombo,
cuja empresa exitosa permitiu-lhe retornar à Espanha carregado de
notícias e maravilhas que lhe valeram o crédito real e novos apoios
para persistir em suas travessias.
Segundo relatos antigos, o culto a Nossa Senhora das Mercês
surgiu quando, ao anoitecer de 9 de agosto de 1218, ela apareceu
simultaneamente ao rei Jaime I de Aragão, conhecido como el
Conquistador, a seu confessor, São Raimundo de Peñafort; e ao
implacável São Pedro Nolasco, a fim de lhes pedir que instituíssem
conjuntamente uma ordem religiosa e militar destinada a libertar os
cristãos que se achassem em poder dos muçulmanos. Obediente ao
mandato, no dia seguinte o monarca decretou em Barcelona o
estabelecimento da Ordem dos Cavaleiros das Mercês e, guardada pela
proteção da Virgem Maria, a cidade recebeu desde então uma venerada
padroeira. Os cavaleiros levavam em seus pendões a insígnia
mercedária, e era seu escudo a cruz que ainda ostentam seus
sucessores.
Medieval em seu aspecto e na arte de sua feitura alongada, a
Virgem das Mercês é uma das poucas imagens sentadas, tão caras aos
cristãos espanhóis e tão pouco vistas na América, onde, desde sua
introdução no México, passou a ser representada de pé. Pintada com
refinamento, esta é uma das figuras marianas de maior beleza, não
somente por seu talhe esmerado como por sua força expressiva e pela
harmonia de suas cores. Carrega o Menino Jesus no braço esquerdo, e
na mão direita exibe o emblema vermelho e branco distintivo da ordem.
Quanto ao Menino Jesus, sustenta o mundo da Cristandade em uma
das mãos enquanto acaricia sua mãe com a outra, contemplando-a
como se lhe rogasse piedade. Sua rica coroa, digna criação do rei que a
tributou com devoção singular, recorda o culto de uma Idade Média
que reconheceu nesse objeto o símbolo do mais alto poder, um símbolo
que perdura até nossos dias para significar a potência absoluta que
sempre foi cobiçada pelas monarquias e que acentuou a majestade da
Mãe de Deus sobre os domínios humanos.
Para os mercedários, 10 de agosto sempre foi considerada a data
comemorativa de sua fundação religiosa, até que o papa Inocêncio XII, já
no século XVII, estendeu-a a toda a Cristandade para que seu culto se
difundisse e para que a Virgem das Mercês também fosse venerada na
América. Não deixa de assombrar que, na missa correspondente a esse
dia, as rogativas tenham sido extraídas do Cântico dos Cânticos, em
uma versão que transgredia seu sentido original. Até recentemente, na
década de 1960, os missais ainda designavam-na "lírio dos vales e flor
dos campos" durante a epístola, e no gradual e no aleluia lhe eram
dedicadas frases como "sustentai-me com flores, confortai-me com
maçãs, porque desfaleço de amor". E logo a seguir: "Tu és a porta do
Grande Rei, a câmara fulgurante de luz...", versos que, por
corresponderem ao mais belo canto de amor da Antigüidade, tornam-se
desconcertantes por ser invocados como preces durante a devoção
mariana.
As modificações pós-conciliares transferiram sua festa para 24 de
setembro, e na oração designada para esse dia costuma-se rogar, "pelos
méritos e súplicas de Maria", pela libertação de todos os nossos pecados
e da servidão do demônio. O contraditório do culto a Nossa Senhora das
Mercês na América é que, opostamente a seu princípio de agir em prol do
livramento dos cristãos da escravidão dos mouros, aqui os espanhóis,
com uma mão, escravizavam impunemente os nativos; com a outra, os
submetiam a seu credo monoteísta e dotava-os, ainda, de imagens e de
templos para que reclamassem por piedade e encontrassem um reduto
de misericórdia.
Inseparável do símbolo fundador do Novo Mundo, a tradição
aponta que Cristóvão Colombo erigiu uma cruz ante os aborígenes ao
desembarcar pela primeira vez neste hemisfério, em 1492. Em seu
regresso à Espanha, a rainha Isabel I de Castela recompensou-o com
uma réplica da imagem original de Nossa Senhora das Mercês, tal
como aparecera ao antecessor de Fernando de Aragão, seu marido,
como um ato que, seguramente, simbolizava a união imperial dos reinos
de Castela e de Aragão diante do descobrimento da América. De fato, o
primeiro santuário cristão nestas terras corresponde ao erigido a
Nossa Senhora das Mercês em 1505, no alto do Santo Cerro, onde é
hoje a República Dominicana.
Segundo a bicentenária História do frei mercedário Luís de
Cisneros, o culto mexicano a Nossa Senhora das Mercês data de
1595, ano em que o frei Francisco de Vera, bispo de Perpignan,
fundou o convento e a igreja que levam seu nome, bem como o bairro
que existe até hoje na Cidade do México. A imagem, uma réplica
esculturada do original de Aragão, traz a seus pés as figuras de
muitos cativos inspirados por sua piedade; trata-se de uma talha
muito perfeita trazida da Guatemala, e da qual existiam então duas
cópias idênticas no convento daquela cidade, na época parte da Nova
Espanha. Cisneros escreveu que a gravidade de seu rosto um pouco
moreno inspirava pavor, e que da madeira na qual estava esculpida
exalava um aroma muito intenso. Era a jóia preciosa do reino,
intercessora frente a terremotos e tempestades, freqüentes naquela
região; acreditou-se inclusive que, em vez de ter sido trazida, a imagem
veio sozinha até a Cidade do México, porque foram tantos e tão difíceis
os obstáculos transpostos para poder tirá-la da Guatemala que, a não
ser por sua sagrada vontade, jamais os frades teriam podido triunfar
sobre a resistência local.
Ciente da batalha que teria de travar contra a oposição dos
indígenas e dos próprios sacerdotes, frei Francisco de Vera colocou a
imagem da Virgem dentro de uma arca de couro e fê-la retirar à meia-
noite do convento da Guatemala, nos ombros de índios que ignoravam
o conteúdo daquela embalagem. Ao darem por essa falta, os sacerdotes
saíram em seu encalço; mas não encontraram a estátua, até porque
lhes pareceu demasiada irreverência revistar os muitos utensílios com
que viajava o sagaz vigário.
Mas isso não impediu que travassem acirrada discussão, e muito
pouco faltou para que apedrejassem o obstinado frade que, em sua
defesa, mostrou aos mercedários guatemaltecos que reclamavam a
devolução de sua imagem uma inscrição gravada na arca agora vazia
que rezava: "A quem te guiar ao México, Deus o guie". Ao narrar o
acontecimento, frei Luís de Cisneros recordou que, seis meses depois
daquela escabrosa saída da Guatemala, ninguém podia dizer como
nem quem havia trazido a sagrada imagem de Nossa Senhora das
Mercês para o convento do México, já que, sem pagamento algum aos
carregadores e por uma via diferente daquela tomada por Francisco de
Vera, ela apareceu às portas dos mercedários daqui em 1596. "A
imagem estava tão bem tratada e tão formosa" - acrescentou -, "como
se não tivesse caminhado trezentas léguas." Os nativos que a trouxeram
vinham da localidade de Cuitláhuac e garantiram que eram apenas
mensageiros de outros índios, que lhes haviam pedido que levassem a
imagem até o México sem lhes deixar qualquer outra mensagem.
Cisneros considerou o acontecimento milagroso, uma vez que os
caminhos eram cheios de perigos. Ao longo da rota, quando não
topavam locais despovoados, encontravam sítios habitados por uma
única família, o que impossibilitava a substituição dos oito tamemes1
que transportavam a carga. Além disso, os guias e os índios de
confiança eram escassos. A Virgem, porém, encontrava hospedagem e
passagem, mesmo sozinha e sem vigilância sacerdotal. Tão logo surgiu
presidindo seu o convento das Mercês, organizou-se para ela uma solene
recepção no México. Grande parte da cidade acudiu para o lugar
carregada de oferendas. Presentearam-lhe numerosas jóias e sua
coroa de ouro; ao Menino ofereceram inumeráveis lamparinas e outras
prendas. Assim, desde que foi entronizada multiplicaram-se de tal
forma as esmolas, as heranças e os portentos que, passados poucos
anos, a devoção havia aumentado para oitenta o número de frades
conventuais, cujos gastos elevavam-se freqüentemente a mais de 20
mil pesos. Essa despesa era tão sobejamente coberta por sua sagrada
padroeira que foi possível ampliar o suntuoso santuário para que os
fiéis acudissem a ela em busca de bens que nunca lhes eram negados.
E é nisso que se baseia sua originalidade, em servir como laço de
união entre a ascensão da Espanha imperial, o descobrimento da
América e o início da evangelização da Nova Espanha. De fato, o bairro
que ainda traz seu nome na Cidade do México esteve desde sempre
associado à abastança. Seu convento é considerado uma das mais
belas jóias arquitetônicas da cultura colonial mexicana, enquanto a
Ordem dos Mercedários multiplicou-se em obras e diligências
formativas, vinculadas ao símbolo de piedade representado por sua
protetora.

A partir da cidade espanhola de Bérriz e ao longo do século XX,


graças à obra missionária da madre Margarita Maria de la Luz de
Maturana, a ordem feminina das mercedárias se expandiu para os
Estados Unidos, México, Nicarágua, Guatemala, Equador, Peru e
Bolívia. Também levou sua obra educativa para outros continentes,
chegando ao Japão, às ilhas de Guam, de Palau, de Taiwan, Marianas,
Carolinas e ao Zaire, na África.
Essa escola missionária teve origem no ministério da clausura, em
1920. Existem hoje seiscentas mercedárias em missão, repartidas por
todo o mundo em 22 sedes missionárias, diversificadas em seus
aspectos de evangelização, beneficência e ensino. Os mercedários
agregam às suas tarefas o cuidado espiritual dos prisioneiros.
1 Carregador índio que acompanhava os viajantes (Honduras e México). O
antropólogo e historiador mexicano Miguel León-Portilla descreve o tameme como
"carregador treinado desde a infância, procedente da classe dos macehuales [ver Nota
5, p. 314], dedicado exclusivamente ao transporte de mercadorias na cultura
asteca". [N.T.]
Nossa Senhora
de Guadalupe

Oportuna, com efeito; portadora de uma força vivificante sobre a qual


se levantaria o único símbolo indiscutível da pátria mexicana, a Virgem
de Guadalupe é também uma das respostas religiosas mais inteligentes
da evangelização colonial. Sua presença no Vale do Tepeyac, uma zona
sagrada da região de Anahuac, mitiga o banho de sangue que
derramaram os conquistadores espanhóis durante anos de saque e
cruel sujeição em nome da grandeza imperial da península; depois, ao
se instaurar como crença legítima de um povo que reconhece a face de
sua própria espiritualidade em seu rosto moreno, seu culto
empreende por si só o caminho ascendente de uma devoção plena de
mistério. Uma devoção que não se desprende somente de seu tronco
católico ao se fortalecer pelo prodígio que a Virgem representa, mas
que subitamente sujeita à sua divindade a expressão complementar
de um cristianismo que persistiu até hoje não por sua doutrina nem
pela obra institucional dos prelados, mas pela intensidade secular da
fé.
Não é casual, nesse sentido, que a culminância do fervor
popular pela Guadalupana coincida com as manifestações datadas
de independência ou de unidade nacional. Apesar de enigmáticas - o
que confirma sua vitalidade milagrosa -, as origens da bela e singela
tradição que eleva Nossa Senhora de Guadalupe a um símbolo protetor
da identidade não coincidem com o desenvolvimento histórico de sua
figura frente à injustiça; uma situação que, paradoxalmente, se agrava
conforme se engrandece o culto de uma freguesia que durante
quinhentos anos só fez padecer, desde os aspectos mais fundamentais
de sua vida, a dor que alimenta suas preces e seus rogos até hoje.
A seus pés soluçaram-se carências de séculos e infelicidades
embebidas em lágrimas que não parecem ter fim. Serena, como seu
gesto enternecido, em seu olhar cabe a tristeza que se eleva sem cessar
do fundo dos corações até sua figura quase descorada e sempre
suspensa, enquadrada em prata e ouro na altura inatingível de um
santuário que, construído na forma de um corredor invertido, não
incita ao recolhimento nem oferece a atmosfera de religiosidade de sua
basílica primitiva, mas que, não obstante, vence pelo poder da fé o
peso nefasto de sua arquitetura. E isso também acentua seu prodígio
porque, apesar de o ambiente que a envolve se demonstrar contrário à
religiosidade, ela confirma sua nobre função de depositária e reflexo de
um sentimento de vacuidade tão inesgotável que entendê-lo eqüivale a
entender o caráter de uma cultura centrada em sua situação
desvalida, fiel à sua orfandade ancestral e alerta para o ato reparador
que somente Ela, por sua infinita piedade, pode originar.
Seu culto, dessa maneira, reforça sua ambigüidade enigmática
através do que se poderia chamar de guadalupanismo, manifesto em
dois âmbitos: no nacional, se considerarmos seu poder unificador
como mãe e emblema de um povo desprovido de outros símbolos de
identidade de tamanha importância; e no particular, pela devoção
doméstica em sua misericórdia para atender os rogos pessoais de que
dão fé milhares de ex-votos, nada mais que o testemunho de uma
maravilhosa confiança que fala, cresce e se explica por si mesma, apesar
das inúteis investigações que têm pretendido esquadrinhar o portento
desde a espiritualidade unívoca de nossa cultura ancestral.
Dotada de uma poderosa substância insufladora de esperança, a
Guadalupana é muito mais que a imagem revelada na ermida de
Tepeyac; e o guadalupanismo mexicano muito mais do que o mito
fundador da identidade mestiça. Ela é a mãe bem-aventurada de uma
vida interior que, desde sua aparição no ayate1 do índio Juan Diego,
ofereceu consolo a uma raça dorida que nada entendia de símbolos
interpostos entre a espada e a cruz, mas soube tudo o que tinha de
saber quanto a quem dirigir sua orfandade primitiva. Ela é a mulher
radiante que oferece aos indefesos um nobre motivo de adoração. Luz
em meio às trevas, concede graças, perdoa e abriga o desamparado sem
exigir dele maiores sacrifícios do que aqueles que voluntariamente
queira ofertar. É a figura feminina por excelência em uma terra de
órfãos. Mãe de Deus, onipresente e caridosa, tendo ou não suplantado
o culto à prestigiosa Tonantzin local, comprovou sem tardança sua
legítima regência sobre um Novo Mundo que ninguém, missionário,
vice-rei ou soldado, poderia de outro modo governar.
A força justiceira da Guadalupana se confirma no instante em
que Miguel Hidalgo esgrime sua imagem como divisa de Independência
frente à Generala do Vice-Reinado, como os espanhóis denominavam a
Virgem dos Remédios. Desse modo, 1810 é a síntese do símbolo pátrio
que se opõe ao regime da Nova Espanha em todas as suas expressões,
desde a religiosa até a racial e a política. Sua imagem reaparece com
os zapatistas em 1914, ao ocuparem a Cidade do México; este fato,
associado aos antecedentes de suas aparições entre 9 e 12 de
dezembro de 1531, confirma-a como padroeira das lutas populares,
corroborado ainda por outros três episódios históricos anteriores que
marcam a vontade popular: o primeiro, em que se reage com fervor
irreprimível ao evento de sua aparição - por entre rosas e flores locais -
contra o abuso escravista dos encomenderos2; o segundo, a 16 de
setembro de 1810, quando aos brados "Viva a Virgem de Guadalupe!
Viva a América pela qual vamos combater!", Hidalgo inicia o foco
independentista que funda a nação, ao mesmo tempo que vincula a
Virgem à idéia da independência da América; e, finalmente, a luta dos
camponeses por suas terras, que principia o movimento revolucionário
de 1910.
Esta é a vertente política de um guadalupanismo que o clero
comum se negou a aceitar e que, entretanto, prevalece no âmago da
consciência social de um sincretismo que jamais se separou da luta
pela justiça. E a pátria, nesse sentido, é filha rezadora da dor e da
necessidade; é também o apego simbólico a uma terra banhada com
sangue e esperança, sobretudo esperança, que só pôde ser preenchida
pela figura sagrada de uma entidade feminina que, mesmo mestiça na
aparência, ostenta os ornamentos da cultura adquirida. A idéia de pátria
unida acima das expressões irremovíveis de uma religiosidade remota
que, como em nenhum outro aspecto, resplandece ao fundir seu
espírito de sacrifício à radiante guadalupana.
Quase apoteóticos, os minutos finais do peregrino que se
aproxima de joelhos ao pé do seu altar - com talos espinhosos de nopal
atados ao peito e às costas, ou com a pele atravessada pelos cravos pré-
hispânicos da piteira, tal como os do Martirizado, e com os olhos semi-
abertos de tanto recolhimento espiritual - transmitem o mais perfeito
sentimento de patriotismo guadalupano que, sem distinção de
santuário, data ou país, e acima de qualquer pretensão política ou
clerical, concede força espiritual ao inculto ou ao mexicano que deixou
sua terra três gerações atrás, ao camponês maltrapilho e ao
narcotraficante, ao burocrata ou ao empresário, ao artesão ou ao
ladrãozinho de rua, ao prisioneiro, à prostituta ou à monja
enclausurada. Nada se iguala a essa veneração sobrenatural. Nenhum
outro símbolo se manifesta com tamanho furor nem se ostenta na vida
social dos mexicanos qualquer outro motivo de exaltação como aquele
inspirado pela Virgem de Guadalupe.
Assolados por todos os lados, os nativos oravam em vão a seus
amigos deuses para que os livrassem da opressão imposta pelas armas,
dos massacres e da escravidão; porém, em vez de atender ao seu clamor,
os temíveis deuses de outrora sucumbiram com todos os seus signos
sob o duplo poder do aço e da palavra que, trazida de além-mar,
nomeava e instituía um mundo que não podiam compreender.
Precisavam de um símbolo criador que abrangesse vencidos e
vencedores, uma resposta a seu desamparo e algum abrigo que, sendo
próprio deles, também merecesse o respeito de seus amos. Aparecida
ou criada, a imagem a que todos se puseram a chamar de Nossa
Senhora foi a primeira e a mais aguda atitude de compaixão que a
Virgem Maria outorgava a seu povo eleito. Sua poderosa benevolência
demarcava os momentos mais penosos de uma batalha de sujeição com
a vitória do símbolo mestiço que, desde uma ermida serrana nas
alturas tlalocas3, assombrou igualmente a naturais e estrangeiros pela
quantidade de esmolas e oferendas que recebia - especialmente em
forma de comida - em meio a devoções que nem a prestigiosa Nossa
Senhora de Loreto nem a espanhola Guadalupe de Extremadura haviam
recebido da parte dos recém-batizados.
Única manifestação milagrosa reconhecida, a Guadalupana se
transformou em fonte de uma fé inseparável da piedade somente dez
anos depois da queda de Tenochtitlán. O rezar se tornou um
aprendizado anterior ao do falar. Assim, muito antes que o idioma
espanhol se impusesse como língua dominante, ela se infiltrou nas
consciências dos vencidos para reinar na região da dor; precisamente ali,
onde não tinha rival, na zona quebrantada da alma onde nem sequer o
Crucificado conseguiu se firmar dada a impossibilidade de competir
com o signo maternal legado pela perda da amada Tonantzin. Por isso
as autoridades do Vice-Reinado, talvez a contragosto e com ou sem
consenso, cederam e acabaram por aceitar que se algum poder haveria
de se instalar legitimamente, este seria o da Virgem de Tepeyac.
A colina de Tonantzin serviu como templo e culto à deusa-mãe
desde tempos imemoriais. Segundo o frei Bernardino de Sahagún, por
cerca de quarenta anos os índios chamaram de Tonantzin a imagem
ali consagrada até que, por volta de 1560, os espanhóis começaram a
designá-la pelo único nome de Guadalupe. Em língua local, era
chamado Tepeácac esse monte sagrado ao qual acorriam peregrinos
das mais distantes comarcas do México para ofertar sacrifícios, festas
e dádivas àquela deusa cujo poder atraía ciclicamente centenas de
pessoas; uma multidão que podia renunciar a tudo, menos à
necessidade de adorar sua mãe Tonantzin, conhecida também como
Cihuacóatl, ou "mulher da cobra", que então distribuía os dons mais
contraditórios, como pobreza, desalento e trabalho, motivo pelo qual
devia ser agradada com extrema solicitude, e a quem se deveria
render a mais delicada reverência a fim de não provocar sua ira nem
suscitar nela o menor descontentamento.
Os informantes asseguraram a Sahagún que Cihuacoátl
costumava aparecer e desaparecer em lugares públicos como uma dama
ricamente adornada de branco, no mais puro estilo palaciano, e que
também fora enganada por uma serpente, assim como a Eva do
Gênesis, embora não saibamos com precisão como se deu esse episódio
nem como tal mito influiu na consciência pré-hispânica. A
eventualidade serviu para que os frades, de acordo com o preconceito
da falsidade e da debilidade feminina, estabelecessem certas analogias
sobre os ensinamentos em torno do bem e do mal, as quais certamente
foram aproveitadas para transmitir sua doutrina com o auxílio de
exemplos locais. Isso favoreceu o sincretismo e, seguramente, a
perturbação espanhola frente ao poder que o "tremendo" exercia sobre
aquelas mentes americanas, criadoras de uma vasta genealogia de
deuses duais e de símbolos que, aliados às disciplinas impostas ao
corpo, ao costume da obediência e ao respeito que tributavam ao saber
dos mais velhos, contribuíram para estabelecer o culto religioso de
uma maternidade superior somente inclinada a manifestar e distribuir
o bem. Uma maternidade disposta à proteção compreensiva e ao
resguardo de uma suavidade tão contrária ao costume tradicional de
adorar a uma divindade ambígua - mãe e castigadora - que não é
difícil supor que no progressivo fervor à Guadalupana se concentrasse
a verdadeira síntese da cultura nascente, uma cultura habituada à dor
do vencido, à sua indubitável sensação de orfandade e à urgência de um
amparo tão prodigioso que pudesse fazer do milagre da compaixão um
meio de resistência.
Tonantzin trançava seus cabelos e os penteava para cima, junto à
testa, ao modo das mexicanas de hoje, com fitas de seda ou flores
atadas em forma de pequenos chifres. De noite bramia, lançava gritos
no ar enquanto carregava às costas um berço, como se nele
transportasse seu filho, consoante ao costume da região. Quando
queria que a honrassem, aparecia e desaparecia entre a multidão
abandonando ela própria seu berço no tianguis4, com o intuito de que
as outras mulheres, ao se aproximarem intrigadas, acreditando que ela
o havia esquecido, descobrissem que em vez de uma criança a deusa
deixara a pederneira afiada com a qual se deveriam praticar os
sacrifícios rituais em sua homenagem.
Venerada e temida, Tonantzin, ou a Nossa Mãe, prodigalizava
males a sua discrição ou os suspendia na medida em que seus devotos
honravam-na com cerimônias e festividades, Como era mãe de deuses,
seguramente intervinha poderosamente em favor ou contra os crentes,
pois não é por acaso que, de toda a multidão de entidades abominadas
pelos cristãos, fosse ela a mais combatida e, conseqüentemente, aquela
de quem menos se falasse no já escasso registro daquela singular
teogonia. Tampouco é fortuito que, ao se tratar de estabelecer um novo
credo enfrentando a resistência natural dos conversos, fosse a colina de
Tepeyac - ou de Tepeaquilla, como a chamaram os espanhóis - o sítio
mais adequado para fundar a tradição mariana. O que talvez jamais se
tenha esperado é que ali mesmo, em seu santuário ancestral,
ressurgisse o símbolo sagrado da poderosa Tonantzin transmutado na
figura mestiça de uma mulher clemente, também formosamente
ataviada que, ao escolher um índio já batizado para divulgar sua
mensagem, não apenas realizava o prodígio de decompor os atributos
temíveis da astuta Cihuacóatl; mas que, por obra do sincretismo
nascente, a sempre Virgem Santa Maria oferecia ao povo desamparado
e não suficientemente convertido a graça de uma nova linguagem
monoteísta de amor, esperança e apoio, além de acessível aos
macehuales5.
Além do enigma da própria revelação mariana, não deixa de
assombrar o mistério que envolve esse culto à feminilidade indulgente
dentro de uma cultura que, via de regra, dá as costas às mulheres e a
qualquer reconhecimento da mais elementar eqüidade. Até parece
que, a despeito do tempo, a Virgem de Guadalupe conservasse o
atavismo da dualidade ao ostentar a mais alta virtude maternal em sua
natureza sem mácula. Como Cihuacóatl, a Guadalupana é mulher,
mas não esposa, o que lhe permite universalizar a piedade. Radiante,
ela repousa sobre a lua em quarto minguante, e a seus pés aparece o
anjo da perfeita pureza. Trata-se de um anjo triste, mexicanizado e
distinto da figura convencional e barroca. A própria Virgem não sofre
nem chora como em outras invocações, mas seu olhar transluz a
profundeza de uma bondade que mitiga a dor que fica depois da dor.
Veste a túnica amorada, própria do imaginário espanhol do século XVI,
e por seu comprido manto estendem-se os astros, como se estivesse
coberta pelo teto do céu.
Assim, em uma mistura perfeita de elementos mestiços e
sobreposições sincréticas, arraigou-se a lenda e desse modo criou vida a
devoção à padroeira do México e imperatriz da América, entre atos locais
de adoração, inúmeros milagres desencadeados pela notícia das
aparições e contra as divergências civis e religiosas quanto a aceitar
como plausível não apenas o testemunho do índio, mas o próprio
acontecimento que comprometia criticamente todo o sistema de
autoridade.
Imprecisa a princípio, inclusive sem nome próprio e sob o
mistério da mensagem revelada em língua mexicana a um pobre
homem do povo - um macehual que andava a esmo, caminhando pelo
cume do Tepeyac -, a Guadalupana demarcou, desde os primeiros
registros a seu respeito, sua distância litúrgica tanto das demais
invocações de Maria como dos santos, cultos e cerimônias cristãs; e o
fez para empreender sozinha o despertar dessa crença que, quinhentos
anos depois, ainda surpreende por sua autonomia e pelo vigor de uma
devoção tão original que, mesmo européia, só se permite explicar a
partir das profundas raízes locais que brotaram e se fortaleceram após
a Conquista, ali onde o colonizador havia pretendido erradicar o rosto
e a história do lugar.
Por isso o acontecimento foi duplamente significativo; porque,
de certa forma, tratava-se de aceitar que se engendrava entre os
vencidos uma modalidade religiosa à sombra dos próprios dogmas da
Igreja oficial, ainda que alheia a suas determinações litúrgicas e de fé.
Que a Mãe de Deus em pessoa intercedesse em favor dos índios
era uma proeza difícil de acreditar. Se fosse aceita a versão exposta ao
bispo Zumárraga por Juan Diego, os interesses dos encomenderos
seriam abalados devido ao cúmulo de preconceitos em relação à
suposta falta de humanidade que recaía sobre os naturais da terra.
Que, além disso, fosse morena, e que tivesse aparecido já três vezes
seguidas ao aborígine Juan Diego eram fatos que contrariavam
totalmente a decisão de não conceder aos vencidos qualquer signo de
identidade que os igualasse perante Deus.
Longe de aplainar o caminho da evangelização, a Virgem
aparecida a Juan Diego, na verdade, complicou o monopólio religioso,
pois o pensamento espanhol ainda não estava preparado para assimilar
o sincretismo que, sem demora, acabaria adquirindo sua própria
dinâmica.
Não se pode esquecer que foi muito prolongada entre os
espanhóis a discussão sobre se os índios tinham alma ou não. A bula
do papa Paulo III, em que este declara que os nativos, mesmo os que
se achassem fora da fé cristã, eram gente de razão, que não podiam
ser privados de seus bens nem de sua liberdade, só foi publicada em
Roma a 9 de junho de 1537, seis anos depois da aparição, da qual
provavelmente o Vaticano teve notícia. Essa bula, porém, foi
assimilada com muita lentidão, já que nela, contrariando a ferocidade
praticada pelos encomenderos, o papa ordenou que os índios fossem
atraídos para o cristianismo por meio da palavra divina e do bom
exemplo; bom exemplo esse que não somente foi desatendido, mas que
se transformou em tal selvageria que, desde então, o termo
"colonização" foi associado ao modelo de saques desumanos
praticados pelos espanhóis no Novo Mundo.
Tais antecedentes demonstram que as aparições da Virgem no
cerro de Tepeyac, datadas de 9 a 12 de dezembro de 1531, não só
questionavam como destoavam dos propósitos devastadores da
colonização, justamente na época em que dominicanos e franciscanos
empreendiam a árdua tarefa de pacificar politicamente vencidos e
vencedores, seja em espanhol, seja em língua mexicana. Daí que, desde
então, a Virgem de Guadalupe se converteu na fronteira simbólica entre
a aspiração missionária que não obteve sucesso e um vice-reinado que,
passadas as décadas de saque e de furor, orientou sua própria
dinâmica rumo ao estabelecimento de classes, demandas e raças locais,
e, posteriormente, à consumação da independência.
A história não pode ser mais singela: na manhã do sábado 9 de
dezembro, o macehual Juan Diego, batizado havia quatro ou cinco anos,
originário de Cuauhtitlán e residente em Tuletlac, caminhava pelo cerro
de Tepeyac quando, em uma das sendas ocidentais que dão vista para
o oriente, foi surpreendido pelo canto melódico de aves tão variadas que
ele ergueu os olhos até onde suas vistas podiam alcançar a fim de
descobrir de que pássaros se tratava, pois nunca havia escutado coisa
igual nem conhecido música que se assemelhasse àquela que
acompanhava uma mulher belíssima, envolvida pelo arco-íris, e que se
dirigiu a ele como "Filhinho Juan" em sua própria língua, convidando-o
a se aproximar. Pasmado e cheio de reverência, o índio avançou até o
lugar de onde emanava o resplendor e, ante a pergunta que ela lhe
fizera, respondeu que se dirigia à doctrina6 em Tlatelolco, onde os padres
de São Francisco pregavam, e que também pretendia ouvir a missa
que ali era cantada todos os sábados em homenagem à Virgem.
A Virgem empregou a suavidade característica do idioma nahuatl
para explicar ao modesto lavrador que aquela que tinha diante de seus
olhos era Maria, a mãe do verdadeiro Deus, e que deveria levar o relato
do que havia visto e ouvido ao bispo e dizer-lhe, em seu nome, que era
sua vontade que lhe edificassem um templo ali mesmo, a partir do
qual ela se demonstraria piedosa para com o próprio Juan Diego e com
todos os de sua nação, para com os devotos e todos quantos a
buscassem em suas necessidades.
Juan Diego aceitou a incumbência com a submissão
característica dos mexicanos, e não sem encontrar dificuldades,
agravadas pela modéstia de sua condição social, conseguiu chegar até
frei Juan de Zumárraga após várias diligências na casa episcopal.
Repetiu-lhe humildemente o recado sabendo muito bem que suas
palavras causariam suspeitas. O franciscano escutou-o; mas por
cautela recomendou-lhe um novo encontro para, nesse intervalo,
investigá-lo e examinar sua resposta com a devida maturidade.
E lá se foi o macehual outra vez, para dar notícias à aparecida e
para lhe pedir que escolhesse outra pessoa de mais digno crédito a
quem o hueitheo-pixqui, ou bispo, daria maior atenção. A Virgem, longe
de mudar de opinião, confirmou o índio ao entardecer, durante sua
segunda entrevista; disse-lhe que agradecia sua obediência e que,
ainda que outros houvesse, era de sua vontade que ele mesmo
repetisse o recado na manhã seguinte.
Juan Diego voltou à presença de Zumárraga assegurando-lhe,
entre lágrimas, que era a Virgem que o enviava. Considerada a
pusilanimidade dos índios, que contrastava com a firme segurança
com que o nativo falava, o bispo começou a duvidar e a se inclinar a
acreditar que até poderia ser verdade o que lhe era dito. Assim,
mandou pedir àquela Senhora um sinal que certificasse sua petição e o
obrigasse a crer que ela realmente reclamava seu templo. Por via das
dúvidas, mandou duas pessoas de confiança seguir furtivamente Juan
Diego, a fim de saber com exatidão o que ele fazia no cume do Tepeyac.
E lá se foi o índio pela calçada com a resposta do bispo,
ignorando os dois espiões. Estes, porém, o perderam de vista ao
chegarem à ponte de certo arroio que passava pelas cercanias da colina.
Espantados, procuraram-no por todos os caminhos, cercaram as sendas
e, como não conseguissem encontrar sequer rastro do macehual,
regressaram à presença do bispo para exigir um castigo sob a acusação
de feitiçaria.
Enquanto isso, Juan Diego, com sua habitual humildade, confiou
à Senhora, que já o aguardava no mesmo lugar, que frei Juan de
Zumárraga exigia uma prova para acreditar em sua aparição. Nesse
momento, entre a resposta Dela de que atenderia ao pedido no dia
seguinte e os acontecimentos que tratariam de impedir um desenlace
mais simples para esse episódio, estendeu-se a ponte de obstáculos
que, em todos os mitos, põe o herói à prova. Ao regressar para sua
casa, o índio se deparou com seguidos empecilhos: encontrou seu tio
gravemente doente e, nessa noite, além do dia seguinte, foi ele quem
teve de se encarregar de seus cuidados. Esquecido de sua preciosa
missão, em vez de comparecer a seu encontro com a Virgem correu até
Tlatelolco, no alvorecer do dia 11, em busca do curandeiro e do
sacerdote, porque lhe parecia que Juan Bernardino estava à morte.
Tão distraído estava em sua aflição que só quando estava para
atravessar as colinas e sair na planície que dava vista para o México,
se lembrou de que teria de cruzar pelo sítio em que a Senhora o havia
esperado em vão durante o dia anterior. De maneira distinta da atitude
geral dos santos, cuja modéstia parece ser acentuada pelo portento, e
diferentemente da temeridade aventurosa dos heróis profanos, o
comportamento de Juan Diego frente ao fato de não ter ido receber o
sinal convencionado correspondeu totalmente à psicologia mexicana:
acovardado, temeu que a Virgem o repreendesse e tratou de se
esconder. Em vez de tomar o caminho real do ocidente, optou pelo
oriente, escolhendo a trilha que levava até Texcoco na intenção de se
esquivar dela, sem saber que para a Mãe de Deus não existem estradas
longas nem curtas. Macehual como era, dobrou-se de vergonha quase
na ponta do cerro porque a Virgem veio ao seu encalço. Desculpou-se,
então, com inúmeros pretextos por não ter vindo no dia anterior,
porque estivera ocupado assistindo ao enfermo e procurando um
sacerdote que o confessasse. "Não te preocupes em cuidar da
enfermidade de teu tio se tens a mim, que eu cuidarei de tuas coisas",
respondeu ela com suavidade, e acrescentou: "Já teu tio Juan
Bernardino, está bem e são". Logo a seguir, dando alguns passos com
ele até o manancial que fluía aos borbotões - o lugar onde se edificaria
a primeira ermida -, instruiu-lhe que subisse até o local em que a
havia visto das outras vezes. Ali encontraria diversas flores silvestres e
rosas, que deveria colher, guardar em sua tilma7 e traze-las até o poço,
onde lhe diria o que deveria fazer com elas.
Era a manhã de 12 de dezembro, época do ano em que só
crescem abrolhos. Porém, confiando na ordem divina, subiu até o
pico do monte onde encontrou o belo jardim que lhe fora anunciado.
Uma a uma cortou as flores, salpicadas ainda de orvalho, e carregou-as
em seu manto para que Ela mesma as arrumasse enquanto ele
escutava suas instruções: "Estas rosas são o sinal que hás de levar ao
bispo para que ele te acredite: diz-lhe de minha parte o que viste e que
faça logo o que lhe pedi. Leva-as com cuidado e não as mostres a
ninguém, nem as reveles a pessoa alguma, exceto ao bispo".
Como seria de se esperar, Juan Diego foi detido à porta da casa
episcopal e negou-se a mostrar aos criados o que trazia. Eles puxaram
atrevidamente sua tilma, que exalava uma fragrância intensa. Mas
quando tentaram desprender as flores, descobriram que estavam de tal
forma aderidas ao tecido que saíram em altos brados para contar a
maravilha ao bispo. Frei Juan de Zumárraga mandou então que
trouxessem o índio à sua presença para que ele mesmo pudesse
observar o prodígio. Escutou seu relato não somente em pormenores,
mas com a certeza íntima de que algo de misterioso estava ocorrendo
naquela região.
O resto da história é bem conhecido: quando Juan Diego
desdobrou a manta que pendia de seu pescoço com um nó grosseiro,
começaram a cair as flores ao mesmo tempo em que se formava no
poncho a sagrada imagem de Maria. Úmida ainda, intensamente
perfumada, a última rosa completou ao cair a figura radiante da
Virgem no ayate que até hoje se venera na basílica. Admirados, o
prelado e todos os presentes ajoelharam-se em prantos diante dela e
devotamente lhe rogaram proteção e amparo para si mesmos e para a
Nova Espanha. Imediatamente o bispo colocou a tilma em seu oratório
e prometeu construir o santuário sem mais tardança.
A 13 de dezembro de 1531, o sítio onde sucedera o milagre foi
visitado pelo prelado, por autoridades, familiares e vizinhos
encabeçados por Zumárraga e Juan Diego. Marcaram o lugar exato das
aparições e depois se encaminharam para o povoado onde, são e salvo,
saiu Juan Bernardino a recebê-los com a notícia de que no dia
anterior viu à cabeceira de seu catre um resplendor iluminando uma
senhora formosa e serena que, ao livrá-lo das dores que sentia, lhe
disse que a imagem que seu sobrinho Juan Diego levara entre flores à
casa episcopal deveria permanecer no templo onde, a partir de então,
ela seria chamada Santa Maria de Guadalupe.
Verdadeiramente milagrosa, foi-lhe atribuído o singular prodígio
de haver acabado com a idolatria. Afastou a temida Tonantzin dos
contornos do México; e em vez de invocá-la pelo costumeiro
tratamento de Nossa Mãe, os naturais recordavam-lhe agora como
Tonanzini, ou Teotenatzin mas não a associavam mais à mãe de todos
os deuses que fora responsável por incontáveis calamidades. Foi
provavelmente assim que a Guadalupana se assenhoreou de seu
templo ancestral e que os mexicanos prostraram-se a seus pés como
única Senhora e Mãe de Deus.
Assim, ao modo das histórias pintadas pelos remotos nahuas,
sua imagem assinalou a junção de dois tempos que haviam lutado
para coexistir e que, ao não encontrar um símbolo civil, armado ou
messiânico, intensificaram o mito e sua referência revelada para
consagrar, mais em favor dos vencidos, a única esperança de salvação
de uma Nova Espanha que carecia de destino próprio.
A notícia da aparição no cume do Tepeyac correu por planícies e
montanhas na misteriosa velocidade com que os mexicanos se
comunicavam de povoado em povoado, apesar das distâncias e dos
acidentes geográficos. Antes de ser aceita como padroeira do México e
muito antes que a Igreja imaginasse a importância que ela adquiriria
na devoção popular, a Guadalupana confirmou por si mesma sua
legítima concordância com as expressões locais de religiosidade. Daí
que, embora freqüentes e eventualmente acirradas, não tiveram
continuidade as controvérsias sobre a idolatria remanescente nem
dúvidas sobre se sua aparição era impostura ou milagre. Bem mais
desembaraçado que as discussões em torno dos pormenores que
diminuíam sua veracidade, o culto à Virgem disseminava-se por meio
dos testemunhos de sua comprovada bondade. Aqui se comentava sobre
o enfermo curado; ali se falava de outro que havia escapado da morte
somente por havê-la invocado; acolá um outro lhe agradecia por ter
sido salvo da célebre inundação que assolou a cidade do México.
Tampouco se descartavam as narrativas de novos conversos nem as
grandes ou pequenas graças que iam desde a obtenção de um marido
até o salvamento de algum naufrágio.
Ante o crescimento forçado do cristianismo em pleno período
de colonização, não eram poucos os relatos sobre prodígios
multiplicados a céu aberto nem as supostas testemunhas de curas ou
revelações divinas. Diariamente se falava na Nova Espanha do sem-
fim de acontecimentos que podiam servir como aval fiduciário das
intercessões marianas. Foi por isso que se duvidou tanto de sua
milagrosa presença, porque os freqüentes e falsos avisos de portentos
católicos tinham sido seguramente inspirados pelos próprios frades.
Os jesuítas Francisco de Florencia e Juan Antonio de Oviedo
relataram no século XVIII, em sua obra Zodíaco Mariano, que a fama
corrente na Nova Espanha era de que se devia à santíssima imagem de
Nossa Senhora de Guadalupe o fato de o México jamais ter padecido da
calamidade da peste que infestava os reinos da Europa. Não obstante se
sofresse de epidemias de sarampo, varíola, tifo ou outros males que
mataram aos milhares, as enfermidades nunca assolaram no México
com a mesma intensidade e virulência européia nem foram necessários
lazaretos ou quarentenas. Aqui o contágio dos enfermos nunca chegou
a se estender tão perigosamente que tornasse obrigatória a imposição
de medidas extremas de saúde coletiva.
Esse fato, que para os jesuítas deve ser consignado como um
milagre guadalupano, na verdade se devia à saúde e aos hábitos de
higiene dos mexicanos, saúde que, por desgraça, foi diminuindo em
conseqüência da escravidão e dos costumes sociais impostos pelos
espanhóis.
Os milagres que lhe foram atribuídos no século XVIII confirmavam,
todavia, a proteção de Nossa Senhora de Guadalupe sobre o povo
desamparado. O jesuíta Francisco de Florencia assegurou que jamais
se havia visto endemoninhado algum por estas terras e que, quando
um espanhol se queixou na península ibérica de padecer de
inomináveis torturas infernais, embarcou rumo a Veracruz, confiando
em que a Guadalupana o libertaria de seus males. Na medida em que se
aproximava do santuário de Tepeyac ia sentindo alívio, até livrar-se
definitivamente do diabo que o atormentava quando se pôs a orar aos
pés do altar. Depois viveu durante algum tempo na Nova Espanha, sob
a proteção sagrada da Guadalupana. Quando acreditou que nunca
mais o demônio se apossaria de seu espírito, viajou de volta à Espanha
e lá, sem remédio, voltou a ser presa do diabo. Enquanto pôde,
navegou novamente em busca do alívio já experimentado e outra vez,
por meio de sua infinita clemência, a sempre Virgem Maria de
Guadalupe afastou-o do inferno, desta vez até o fim de seus dias.
São abundantes os testemunhos de seus milagres. Há, entretanto,
alguns mais destacados que outros, dignos de uma consideração
especial. No dia em que a imagem foi transladada do oratório pessoal de
frei Juan de Zumárraga, na paróquia de Tlatelolco, para a capela de
Tepeyac, em meio à festividade popular os índios decidiram representar
uma batalha entre mexicanos e chichimecas, do mesmo modo que os
dançarinos contemporâneos costumam honrá-la em seu santuário.
Tamanha era a algazarra durante aquele combate, ampliada pelo ruído
e pela devoção, que uma flecha perdida atravessou o pescoço de um
dos participantes, que de imediato caiu ao solo, quase morto. Alguns
socorreram o ferido sem atinar um remédio para salvá-lo. Invocaram a
Senhora para que tivesse compaixão dele e, como ato inaugural de sua
chegada ao templo, arrancaram a flecha que lhe atravessava o pescoço.
No mesmo instante o mexicano levantou-se curado, A partir de então,
convenceram-se de que a imagem no ayate do macehual Juan Diego
remediaria a todas as suas necessidades.
Em 1553, cerca de 22 anos depois das aparições, ocorreu uma
singular confrontação simbólica entre duas virgens. Eram dias em que
o culto local não estava totalmente estabelecido, e a veneração
escolhida pelos espanhóis não era cabalmente aceita no que se refere à
intercessão mariana. Daí a reveladora importância do testemunho dos
autores do Zodíaco Mariano, quando escreveram que Juan Ceteutli, um
cacique que havia encontrado a imagem de Nossa Senhora dos Remédios
embaixo de uma piteira, ficou paralítico e cego durante um ano após tê-
la sacado de sua casa e a colocado em uma ermida. Fez-se transportar,
então, ao santuário da Gudalupana, três léguas distante de sua casa, e
bastou entrar de muletas em sua igreja para que recobrasse a visão e
visse que a Virgem lhe sorria.
Os jesuítas afirmaram que, com o rosto muito tranqüilo,
aludindo ao que ele pensava a respeito da Virgem dos Remédios,
perguntou-lhe a Guadalupana: "Por que vens à minha casa, se me
expulsaste da tua?". Don Juan Ceteutli, animado com essa benevolente
repreensão, desculpou-se dizendo que ela bem sabia do que havia
ocorrido. Pediu-lhe perdão por havê-la tirado de sua casa e rogou pela
saúde que tanto necessitava. Respondeu-lhe, então, a Virgem: "Eu te
concedo a saúde. Volta ao povoado de onde saíste esta manhã; e no
lugar em que me encontraste, reúne teus vizinhos e edifica-me uma
igreja".
Juan Ceteutli, primeiro mexicano que dá testemunho de seu
encontro com a invocação mariana dos Remédios, cumpriu as ordens
da Guadalupana e construiu o templo pedido. Este fato significou, na
história do culto, a oposição que trezentos anos depois, durante a
guerra da Independência, se daria entre a Virgem dos espanhóis e
aquela identificada como tipicamente mexicana, ou seja, entre Nossa
Senhora de Guadalupe e La Generala do Vice-Reinado, como era
chamada Nossa Senhora dos Remédios.
Os fatos curiosos são inumeráveis, todos celebrados como
milagrosos. O prodígio da Guadalupana é também, de certa maneira,
literário, pois os relatos que o povo narrava aos padres se
transformaram, depois de um período não definido, em centenas de ex-
votos, lendas, cantos e contos. Um, por exemplo, dizia assim:
Enquanto um homem rezava debaixo de uma pesada lamparina, diante da
soberana imagem, o cordão que a mantinha suspensa repentinamente se
rompeu. E há aqui muitos milagres em um único evento: ao bater sobre a
cabeça daquele homem que adorava a santa imagem, o objeto não lhe causou
dano algum; o vaso de vidro não se quebrou, o azeite não se derramou nem se
apagou a luz que ali ardia.

Lê-se sobre outro acontecimento:

Um cego, esperançoso da caridade que todos experimentavam em contato com


a Santíssima Virgem, decidiu visitar seu santuário e pedir-lhe a visão que tanto
desejava. No momento em que entrou na igreja, já começou a enxergar e a
proclamar a maravilha aos gritos; seu regozijo crescia cada vez mais porque,
quanto mais se aproximava da imagem, tanto mais lhe melhorava a vista; e ele
elevava o tom de voz até que, chegando diante do altar, recuperou totalmente a
visão e, juntando-se aos demais presentes, deu graças à Senhora por lhe
haver concedido tão grande benefício.

Mais um relato:

Admirável foi o prodígio de que foram testemunhas quantos se encontravam


presentes na Igreja de Nossa Senhora. Acabando de rezar a missa, o bacharel
Juan Vásquez de Acuña percebeu que, por conta de uma repentina rajada de
vento, todas as velas do altar se apagaram. Providenciou, então, para que
fossem reacendidas; mas, nesse ínterim, notou que dois raios daquele sol que
cerca o corpo da imagem se estenderam até chegar às velas, acendendo-as
para grande admiração e espanto de todos os presentes.

Este último testemunho é inaudito:

Uma mulher, sem que se soubesse a causa - ainda que depois se acordasse
que era obra do demônio -, percebeu que seu ventre inchava gradualmente e
de tal forma que lhe parecia que ia rebentar. Fez-se levar à Virgem de
Guadalupe e pediu-lhe com todo o fervor e muita fé um remédio para o seu
mal Bebeu água do poço que ficava ao lado da igreja e logo depois
adormeceu. O sacristão contou, então, que debaixo do corpo da mulher saía
uma enorme cobra de nove varas de comprimento, justamente a causa do
inchaço de seu ventre. Ela despertou e se viu boa e sã, a um ponto que foi
capaz de ajudar a matar a cobra, motivo pelo qual deu muitas graças à Mãe
de Deus.
1 Tecido ralo de fio de pita (espécie de agave), feito no México. [N.T.]
2 Encomienda: instituição da América colonial espanhola cujos princípios variaram
conforme o período e o lugar em que foi estabelecida, mas que, em linhas gerais,
concedia um grupo de índios a um colonizador - o encomendem -, para que este se
aproveitasse de seu trabalho em troca de proteção e evangelização. [N.T.]
3 Na mitologia asteca, Tlaloc é o deus da chuva, o senhor do raio, do trovão, do
relâmpago. [N.T.]
4 Palavra derivada do nahuatl (tianquiztli) e que se usa até hoje para designar o
mercado público mexicano, que se instala nas ruas de uma cidade. O tianguis é uma
herança dos povos pré-hispânicos da Mesoamérica. [N.T.]
5 Os macehuales ou macehualtin representavam a maior pai e do povo asteca, a
gente comum, os governados que pagavam tributos à elite dirigente. Esse segmento
compreendia desde camponeses, artesãos e comerciantes até gente de certo poder
econômico. [N.T.]
6 Na América, aldeia de índios recém-convertidos quando nela ainda não havia
igreja paroquial ou vigário, sendo geralmente atendida por religiosos regulares. [N.T.]
7 Manta ou capa de algodão usada pelos camponeses mexicanos. [N.T.]
Nossa Senhora
dos Remédios

O culto mariano foi iniciado na cidade do México quando um dos


conquistadores, Juan Rodríguez de Villafuerte, companheiro e soldado
de Hernán Cortés, recebeu ao embarcar uma imagem de Nossa
Senhora dos Remédios das mãos de seu irmão, que lhe assegurou que
ela era milagrosa, escutava piedosamente suas preces e, como fizera
com ele próprio, o livraria de grandes perigos nas batalhas.
Assim que Cortés e seus homens ocuparam o Templo Maior dos
astecas, em Tenochtitlán, ordenou a Villafuerte que colocasse a imagem
no topo do cue. Não restaram registros que indicassem se a Virgem foi
entronizada no santuário de Huitzilopochtli ou no templo paralelo, no
qual os índios adoravam a Tlaloc. O cue, entre os indígenas, era um
espaço de culto dual, tal como o caráter de suas deidades, e eqüivalia
ao santuário a cujos pés eram realizados os sacrifícios, no caso do lado
correspondente a Huitzilopochtli, Sol e deus da guerra.
De acordo com os escritos de Francisco de Florencia, o Templo
Maior se localizava no mesmo sítio em que agora se encontra a
catedral. Esse erro de localização seria retificado a partir de 1978,
mediante escavações arqueológicas. Demonstrou-se então que o
santuário asteca não se achava no mesmo terreno da catedral, mas em
uma área limítrofe com vista para o oriente, onde atualmente se
observam alguns vestígios pré-hispânicos e o museu do lugar.
Nada sabemos sobre o culto inicial prestado à Virgem dos
Remédios durante os primeiros anos da conquista e da colonização,
salvo que se localizava no antigo coração da Cidade do México, quem
sabe em um pequeno templo anterior à Catedral Metropolitana, e que
talvez alguém a tivesse retirado dali ao remover o terreno para destruir
o Templo Maior dos astecas e construir, com suas pedras e
revestimentos superiores, os muros do santuário do novo credo. O certo
é que em 1540, nove anos após a prodigiosa aparição da Guadalupana,
a imagem foi encontrada debaixo de uma piteira, bem longe dali, no
cerro dos Pássaros, pelo cacique índio Juan Ceteutli, cujo sobrenome
mexicano significa "águia", razão pela qual desde então foi chamado
Juan Águila.
O índio caminhava todos os dias até a aldeia de Tacuba, e ao
passar por um dos lados do cerro de Totoltepec, como era denominado
na língua mexicana, via com naturalidade a Virgem suspensa no ar,
dizendo-lhe com uma voz suave: "Filho, procura-me nesta aldeia".
Ceteutli já a conhecia porque, em 1519, durante a retirada espanhola
na Noite Triste, distinguira sua figura a distância, no meio da colina,
protegendo sua gente e acompanhada por um cavaleiro que não era
outro senão Santiago Matamouros1, padroeiro de todas as Espanhas,
que, nos momentos mais difíceis da batalha, lançava terra aos olhos da
multidão de índios que cercava os conquistadores.
Naquela ocasião Ceteutli acreditou que a Senhora se mostrava
com o rosto inflamado e que se empenhava em ajudar os perseguidos.
Porém, anos depois, quando ele a encontrava em sua rota diária, sua
expressão era tranqüila e seus movimentos tão naturais que ele a
saudava como se fosse uma pessoa de carne e osso que, sabe-se lá por
quais razões, pedia a ele que a procurasse e até lhe dava instruções
sobre como empreender o achado.
Tantas vezes a aparição lhe surgiu no caminho que Juan Ceteutli
deixou de acreditar que fosse apenas uma casualidade. Depois de
meditar por semanas a fio, talvez mesmo durante meses - uma atitude
típica do temperamento mexicano -, decidiu comunicar o fato aos
religiosos franciscanos de Tacuba. Eles escutaram-no cheios de
suspeitas e procuraram convencê-lo de que, às vezes, a fantasia chega
a ser tão poderosa que reveste os sonhos de realidade; que melhor seria
esquecesse essas histórias, que trabalhasse e confiasse em Deus.
Chegaram mesmo a ameaçá-lo com severos castigos se voltasse a
perturbá-los com a mesma afirmação de que a referida Senhora pedia
para ser encontrada em alguma parte do caminho que costumava
tomar.
Por muitos dias mais o cacique continuou a passar pelo mesmo
lugar e, segundo o costume, ela reaparecia e insistia com ele para que
escavasse o solo e encontrasse sua imagem. Não se atreveu a dizê-lo
novamente aos frades, por temor ao castigo, tampouco comunicou a
seus parentes, e aprendeu a conviver resignadamente com a visão,
como se fosse uma segunda natureza de sua própria personalidade. Os
sinais, todavia, brotaram a seu pesar. Quando a igreja de Tacuba
estava sendo edificada, Juan subiu ao alto de uma coluna e caiu lá de
cima. Ficou meio morto ali, sem sentidos, em meio aos materiais de
construção, e todos acreditaram que não passaria a noite. Os frades
ungiram-lhe com óleos. Levaram-no de volta à sua casa e, no meio de
sua agonia, nessa mesma noite, apareceu-lhe a Virgem dos Remédios,
tal e qual estava acostumado a vê-la no cerro de Totoltepec. Além de
consolá-lo, a Senhora lhe deu uma faixa milagrosa, para que a cingisse
como um cinto, e assim que a colocou, Juan Ceteutli sentiu que o alívio
lhe entrava no corpo sem que deixasse rastro de dores nem feridas.
Diante da admiração geral, Ceteutli caminhou são e salvo no dia
seguinte, percorrendo a distância de uma légua que separava seu
povoado de Tacuba, para comunicar a notícia. Transtornados, os frades
perguntaram-lhe que prodígio era aquele que o havia tirado da agonia e
Juan, mostrando-lhes o cinto curativo que conservava atado à cintura,
narrou-lhes o sucedido em sua casa; porém, tudo permaneceu
consignado sem maiores desdobramentos na memória de seus
parentes.
Dias depois, repetiu-se-lhe a cena da aparição em Totoltepec, na
época uma região arborizada, onde costumava caçar. Ali, debaixo de
uma piteira, ele próprio encontrou finalmente a imagem. Em meio a
um tremor de ternura provocado pela surpresa disse, ao erguê-la da
terra para envolvê-la em sua tilma, tal como se ocultasse um tesouro:
"Não estás bem aqui, Senhora; em minha casa estarás melhor. Ali te
servirei com reverência". Desse modo, oculta aos olhares dos estranhos,
Nossa Senhora dos Remédios permaneceria na casa de Juan Ceteutli
durante dez ou doze anos, aonde lhe eram oferecidas tortilhas, ovos e
chimole2 porque, depois de encontrá-la tantas vezes na colina, acreditava
que comia, que falava e que se movimentava igual a qualquer outra
pessoa. A Virgem, apesar de tantos cuidados, não demonstrava
intenção de permanecer para sempre encerrada. Ela insistia em dar-se a
conhecer e em ser venerada. Por isso, em um momento de descuido, ela
escapou da choupana de dom Juan e, inexplicavelmente, foi parar de
novo ao pé da mesma piteira, onde Juan tornou a encontrá-la sem a
menor dificuldade.
- Por que saíste de minha casa? Minha família e eu te
procurávamos cheios de dor - repreendeu-a com recato o cacique, ao
desenterrá-la outra vez. - Por acaso te faltava alguma coisa? Se
cometemos algum erro, diz-me agora, que o remediarei.
Como a Virgem não lhe respondesse, dom Juan deu por certo
que a imagem não apenas concordava em ser removida dali como que
podia levá-la consigo outra vez para sua casa. Redobrou suas ofertas
alimentícias trazendo-lhe frutas e servindo-lhe água em um tecomate3
para que não passasse nenhuma necessidade. Em sua simplicidade, o
mexicano acreditou que ela realmente estava viva e comia, porque,
quando menos esperava, ela desaparecia novamente. Como esse jogo
de perdê-la e reencontrá-la estava se tornando cada vez mais
freqüente, Ceteutli decidiu encerrá-la em uma caixa trancada ã chave
toda vez que saísse de casa. A Virgem dos Remédios, porém, conseguia
abrir a caixa e escapar mais uma vez para a piteira sempre que ele se
encaminhava para Tacuba. E da piteira resgatava-a outra vez o
ingênuo cacique porque, por mais que pensasse, não atinava em
descobrir que o que a Virgem desejava era ter seu próprio templo. De
tanto ir e vir de sua casa à piteira, Ceteutli acabou por deduzir que
havia um mistério nessas fugas que ultrapassava o seu entendimento.
Finalmente, talvez aconselhado e depois de refletir muito, viajou
para a Cidade do México, aonde foi procurar dom Álvaro de Tremiño,
mestre-escola da catedral. Explicou-lhe com simplicidade tudo o que se
passava. Entre curioso e crente, Tremiño concordou em regressar com
ele para ver por si mesmo a imagem e determinar o que poderia ser feito
a respeito. Bastou que contemplasse a imagem da Virgem com o Menino
para reconhecer que, apesar de sua pequenez, havia majestade neles.
Pareceu-lhe, além disso, que não arriscava sua autoridade ao divulgar a
versão de Ceteutli e, desde então, com uma facilidade digna de sua
graciosa figura, a Virgem foi exposta ao público para ser venerada, o que
veio a causar tantos prejuízos para Ceteutli que ele mesmo não podia
mais viver em sua casa por causa dos peregrinos, motivo pelo qual
rogou a Tremiño que mandasse construir uma ermida adequada e
digna de sua reverência.
Bastou tirar a imagem da casa de Ceteutli para que o cacique
ficasse cego e paralítico. Mas longe de solicitar o auxílio comprovado de
Nossa Senhora dos Remédios, foi levado por seus familiares ao Tepeyac,
pois tinham certeza de que a Guadalupana o aliviaria de seus males.
Dizem as crônicas que sua visão se aclarava à medida em se
aproximava da imagem e que, uma vez ajoelhado diante dela, com a
saúde totalmente recobrada, Nossa Senhora advertiu-o, provavelmente
em nome da Virgem dos Remédios:
- Por que vens à minha casa, se me expulsaste da tua?
Agradecido e arrependido, sabendo muito bem do que se tratava,
Juan entendeu que não era uma ermida que desejava a Senhora, mas
um verdadeiro templo. Quando finalmente se decidiu a construí-lo,
durante todos os anos em que durou a obra, na véspera do dia de
Santo Hipólito Mártir - data em que os espanhóis tomaram
Tenochtitlán, em 1521 -, muitos fulgores e incêndios riscavam o céu
em honra daquela que sem demora se entronizou entre os espanhóis
como La Generala do Vice-Reinado. Os nativos atapetavam o caminho
com ramos de tule4 e o vento trazia o som de charamelas e trombetas
para o redor de uma igreja que pedreiros e operários edificavam como
se fosse uma tapeçaria no tear. Assegura a lenda que, uma vez
concluído o templo, com as dificuldades inerentes à empreitada, a
Virgem dos Remédios chegou ao seu altar carregada por dois anjos que
a colocaram no local em que é venerada até os dias de hoje.
Seu culto nunca chegou a competir em popularidade com o da
Guadalupana; mas o povo invoca-a com devoção respeitosa, pois, ainda
em nossos dias, estão pendurados em seu santuário e nas árvores que o
cercam milhares de ex-votos de peregrinos agradecidos. As festas
anuais se realizam com pontualidade, e causa assombro especialmente
o fato de as mulheres oferendarem-lhe suas cabeleiras como prova de
gratidão pelo bem recebido.

1 A referência é a São Tiago, o Maior. Embora morto em Jerusalém (44 d.C), Tiago
teria pregado o cristianismo na Hispânia, para onde seus restos teriam sido
transladados antes do século IX e depositados em Compostela. De acordo com
algumas tradições, Santiago teria aparecido miraculosamente em vários combates
travados na Espanha durante a Reconquista, como na Batalha de Clavijo, em 844,
sendo a partir de então apelidado de Matamoros. Santiago foi também protetor do
exército português até a crise de 1383-1385, quando seu brado foi substituído pelo
de São Jorge. [N.T.]
2 Tradicional molho à base de tomate, pimenta e coentro, freqüentemente servido
como acompanhamento de um prato principal. [N.T.]
3 Espécie de vasilha de barro na forma de uma xícara funda (México). [N.T.]
4 Certa planta herbácea, espécie de junco, usada para fazer esteiras, assentos de
cadeiras e outros objetos. [N.T.]
Santa Maria
de Izamal

Dentre as célebres e milagrosas imagens reconhecidas no México


colonial, Nossa Senhora de Izamal está incluída na lista das mais
protetoras. Izamal, uma aldeia aborígine pertencente à então vila de
Valladolid, atual Yucatán, foi evangelizada por religiosos da ordem de
São Francisco, a cujo zelo se deveu principalmente a conversão
daquela província. O trabalho foi árduo mas proveitoso porque, a
custa de pressões diretas e de persuasões mais sutis, o cristianismo
conseguiu se impor inclusive aos mais perseverantes adoradores dos
antigos deuses.
Em 1550, frei Diego de Landa foi eleito guardião do convento de
Izamal. Homem de comportamento apostólico, seria mais tarde o
primeiro bispo de Yucatán. Sua personalidade refletia uma estranha
mistura de pastor de almas e inquisidor, de curiosidade intelectual e
fúria devastadora contra tudo o que julgava idolatria. Personagem de
extremos e contrastes inexplicáveis, lançou à fogueira no povoado de
Maní os valiosíssimos códices maias e outras histórias pintadas, que
considerou como obras diabólicas. Tempos depois, paradoxalmente,
escreveu de próprio punho a história da antigüidade maia, e com ela
deixou uma das poucas fontes que nos permitem reconstituir o passado,
justamente esse passado que ele mesmo abateu e destruiu com uma
sanha arrasadora e digna das melhores causas.
Os maias do século XVI, com o restante dos mexicanos,
veneravam seus próprios deuses com uma devoção tão extrema que
Landa chegou a se convencer de que, salvo pela intervenção mariana,
jamais se poderiam mudar suas crenças nem substituí-las em seus
corações pela fé da Igreja. Por tal razão acentuou em sua pregação a
presença de Nossa Senhora, para que com sua graça abatesse a
idolatria e permitisse ao cristianismo absorver aquela profunda
religiosidade que tanto assombrava os missionários. Ao organizar o
culto e ordenar santos, símbolos e invocações, ele viajou pessoalmente
na condição de bispo à cidade da Guatemala, famosa pela fabricação de
esculturas e de outros trabalhos artísticos, onde contratou o mais
célebre dos artesãos para que lhe confeccionasse duas imagens da
Virgem, as quais seriam consagradas em seus respectivos sacrários de
Mérida e Izamal. Eram anos em que a liturgia cristã era completada
com adaptações locais e estatuária improvisada até que,
principalmente na Guatemala, instituiu-se uma escola artística que
chegou a ser tão apreciada pela alta qualidade de suas obras que se
tornou provedora dos melhores altares do Novo Mundo.
Já difícil em tempos de seca, o caminho piorava ainda mais na
estação das chuvas, tornando-se quase só transitável a pé, e nos
pontos mais íngremes, com o auxílio de cordas e varas, às vezes à
custa de algumas vidas. As imagens sagradas iam embaladas em papel
e bem resguardadas dentro de um pesado caixote, que os nativos
carregavam nos ombros. Tendo em vista uma viagem tão longa, a
comitiva era freqüentemente surpreendida por aguaceiros; mas a
preocupação não era a perda de homens que se atolavam nas poças ou
sofriam penúrias causadas por acidentes, mas o cuidado com as
preciosas figuras.
A primeira maravilha que realizou a imagem destinada a Izamal,
fê-la chegar a sua terra de permeio a comentários que desde já
celebravam seus atributos. Os historiadores se queixam de que essa
santa imagem não foi valorizada com justiça e que a maioria de seus
dons ficou esquecida na débil memória daquela freguesia regional. Por
certo confirmam, todavia, que nos momentos mais delicados das
tormentas, os índios disputavam entre si a função de levar o caixote,
pois um halo de secura cobria-os então como se o próprio Altíssimo ou
algum anjo da guarda formasse uma espécie de redoma para que as
imagens não se danificassem. Tampouco a umidade se infiltrou
naqueles pacotes embrulhados em papel nem caiu gota alguma sobre os
que carregavam a grande caixa, e muito menos em seu precioso
conteúdo.
Tal maravilha fez com que os mais avisados, conscientes do valor
daquela relíquia, conservassem os papéis que envolviam as sagradas
figuras para empregá-los com fins reparadores, como era de se esperar,
porquanto uma senhora de Mérida conseguiu alguns fragmentos deles e
os utilizou para ajudar um criado índio que havia caído do alto do
terraço de sua casa e, em conseqüência do acidente, tinha quebrado
um braço e uma perna. Enquanto esperava a chegada do cirurgião
chamado para tratá-lo, a dita senhora cobriu os membros feridos com o
papel e todos deram as devidas graças a Deus e sua bendita Mãe
porque, ao retirá-lo, o médico não encontrou fratura alguma nem
qualquer marca das lesões, embora o examinasse minuciosamente e
com o maior cuidado.
Finalmente a sagrada imagem chegou a Izamal depois que sua
companheira de viagem foi deixada no convento de Mérida; porém,
como a população do povoado era de maioria índia, a escolha foi
contestada pelos espanhóis que, em nome de sua devoção mais antiga,
apelaram para o falso direito de que, se uma das estátuas fora deixada
em Mérida, a segunda deveria pertencer a Valladolid, onde eles
constituíam a maioria. Empreenderam, assim, uma viagem para retirá-
la de Izamal; mas os mensageiros tiveram uma enorme surpresa
quando, por mais esforços que fizessem e apesar do auxílio que haviam
convocado, na metade do caminho a Senhora aferrou-se firmemente ao
solo e ninguém conseguiu movê-la até chegarem à conclusão de que o
que ela desejava era permanecer em Izamal, com os naturais da terra.
Daí em diante, a carga ficou bem mais leve e, com uma agilidade
inusitada, foi reconduzida ao seu altar primitivo, acompanhada da
notícia de tal maravilha. Desde então foi chamada de Nossa Senhora e
Padroeira de Izamal. Contribuiu decisivamente para a conversão dos
nativos por meio de uma torrente de prodígios, especialmente aqueles
confirmados por efeito da grande epidemia de 1648. Em que pese a
devoção mariana ser um traço distintivo dos residentes do Yucatán e a
freqüência com que os fiéis peregrinam desde Cozumel, Tabasco e dos
povoados de Chiapas até Izamal, seu dia de adoração é 8 de dezembro,
por ser esta a data consagrada à Imaculada Conceição.
O famoso livro Zodíaco Mariano registra que, até o século XVIII,
data em que foi escrito esse testemunho, era tão grande a multidão de
peregrinos que nos primeiros dias de dezembro os caminhos que
levavam à cidade ficavam inundados de gente. O templo, construído
no topo de uma pequena colina - conforme o costume indígena talvez
relacionado com as pirâmides -, era avistado a distância, e até mesmo
os soldados e os encomenderos mais orgulhosos apeavam de suas
cavalgaduras a fim de percorrer a pé o último trecho até chegar às
grades que circundavam o santuário e, a partir daí, empreender de
joelhos a difícil subida dos degraus e render culto à imagem
entronizada em seu altar.
A única vez em que Nossa Senhora de Izamal foi transladada a
Mérida para que acabasse com a peste que assolava os povoados do
Yucatán, seus dons foram publicamente prodigalizados. Transportada
em procissão muito solene, desde muito longe já se formava uma
barreira humana de rezadores, curiosos e penitentes, ao modo das
devoções hispânicas. Os índios saíam de suas choças para celebrá-la
com danças e cantos. Todos os sãos e muitos dos enfermos davam-lhe
as boas-vindas desde os arredores da cidade, convencidos de que,
fosse qual fosse a sorte que lhes tocasse, o próprio Deus, por mediação
de sua piedosíssima Mãe, era quem havia decidido e acatariam seu
destino como uma vontade inequívoca. Desse modo, agradecidos, os
que saravam não deixariam de prestar-lhe tributo, enquanto os
agonizantes davam-se por satisfeitos com a graça de morrer sob seu
olhar.
A lenda de Nossa Senhora de Izamal, naquela sua viagem a
Mérida, entreteceu-se com os acontecimentos mais curiosos. Um deles
menciona uma espanhola louca que, aparecendo no alto de uma
sacada ao passar da procissão, falou em altos brados para que todos a
ouvissem: "Então vocês pensam que a Virgem vai lhes dar saúde?
Pois não há de ser assim. Ela só veio para castigar os pecados desta
cidade, cometidos contra seu filho santíssimo!". Tais palavras, relatou
o cronista, deixaram quase todos com lágrimas nos olhos e encheram
de pavor os corações, especialmente porque provinham de uma louca,
ou seja, do espírito de Deus pela boca de uma criatura desprovida de
razão. De fato, os mais supersticiosos consideraram profética aquela
ameaça, pois ao longo do tempo todas as desgraças eram relatadas
como castigos divinos, o que infundiu reverência e temor no culto
prestado pelos novos crentes.
Cada qual mais curioso que o outro, os milagres atribuídos à
Virgem Maria de Izamal enriqueceram sua fama de protetora dos
viajantes e dos desamparados. Diz-se que, ainda no século XVIII, um
casal de nativos tinha um filho de 12 anos, paralítico e deformado de
nascença. Como se tornava cada vez mais difícil para eles carregá-lo ou
deixá-lo em casa para ouvir a missa nos dias de festa, decidiram levar
o menino ante Maria de Izamal e separaram 3 reais1 para a oferta, com
a intenção de oferecer 2, a princípio, e reservar o terceiro no caso de
não conseguirem logo o que pediam. Assim permaneceram orando e
contemplando a imagem durante um dia inteiro. Uma vez que o
menino não sarava nem dava mostras de qualquer melhora, retiraram-
se desconsolados da igreja. Voltaram no dia seguinte e um dia mais, até
se convencerem de que a Virgem não desejava o terceiro real prometido
e darem por perdidos os dois primeiros que já haviam ofertado.
Os esposos tomaram, então, o caminho de volta, levando o
pequeno entrevado às costas. Mas nem bem haviam andado alguns
metros quando o menino lhes disse: "Ponham-me no chão, que eu
quero andar sozinho". Os pais lhe responderam que ele sequer sabia
dar um passo, porque nunca pusera os pés no chão, mas o enfermo
insistiu que o soltassem e deixassem andar, já que sentia uma profunda
necessidade de se levantar. Não sem aborrecimento o casal concordou e,
assombrados, viram que os membros do menino estavam agora livres e
soltos. Admirados, sentiram-se envergonhados por sua pouca fé.
Regressaram imediatamente ao santuário, ainda surpresos e confusos,
a fim de orar, pedir perdão à Virgem e entregar o real que ainda
faltava.
Em outra ocasião, alguns piratas hereges capturaram um navio
de espanhóis e, em meio a outros insultos atrozes, chamavam-lhes de
papistas, embusteiros e néscios; e que se não abjurassem à Igreja
Católica Apostólica Romana, os matariam sem piedade. Um deles, o
mais corajoso, respondeu que preferia mil vezes morrer a renegar sua
fé. Foi tamanha a valentia com que defendeu sua causa que os piratas
lhe cortaram a língua, sendo brutalmente lançado à terra, junto com
os demais companheiros, na costa do Yucatán.
Dali os homens agredidos iniciaram uma penosa marcha até
Mérida, em busca de auxílio. Logo ficaram sabendo, pela boca de um
homem devoto, das maravilhas que prodigalizava Nossa Senhora de
Izamal. Isso avivou a esperança do mutilado, que implorou de todas as
formas para ser levado ao altar da santa, para que ela lhe restituísse a
língua. Ali orou com devoção sincera e, para assombro dele próprio e
de seus companheiros, pouco a pouco, durante os nove dias que
duraram suas rogativas, o membro perdido foi crescendo de novo até
recobrar o tamanho e a consistência anteriores. Ao término de sua
novena, o homem prometeu em alta voz, para que todos ouvissem,
empregar o dom da palavra que lhe fora restituído em atos de
agradecimento e de veneração que contribuíssem para prestigiar tão
grande misericórdia mariana.
Os historiadores ainda relatam que havia muito tempo que um
casal lutava por sua filha de 5 anos, que se achava muito enferma.
Como tantos outros, eles confiaram que ela recobraria a saúde em
Izamal; porém, dois dias depois de sua chegada, a criança morreu.
Aflitos, os pais pediram à Virgem que lhes devolvesse a filha viva, já
que não lhes devolvera curada. Eram vésperas da festa anual e um
mundo de peregrinos se congregava ao redor do santuário. Achava-se
ali até mesmo o governador de Mérida, dom Antonio de Figueroa, sua
mulher e toda a sua família, entre a multidão que caminhava de cá e
para lá, do átrio à escadaria e do altar à nave, à espera que a imagem
fosse baixada do trono para que, em um andor e debaixo de um pálio,
iniciasse a procissão pelas ruas do povoado. Nem bem havia sido
baixada a sagrada imagem pelas mãos dos ecônomos, quando os pais,
com a menina morta nos braços, pediram em meio a um pranto
doloroso que a Senhora lhes ressuscitasse a filha. As crônicas dizem
que a Virgem olhou-os com piedade e que, em meio a uma grande
aglomeração, a menina começou a piscar, a se mover e a soltar
pequenos gemidos.
Os gritos agradecidos dos pais atraíram a atenção pública e o
próprio governador foi até a pequena e perguntou-lhe quem a havia
ressuscitado, pois todos haviam visto que já era defunta. Em sua
linguagem acanhada, a criança respondeu: "Minha Senhora, a Virgem
Maria, que está ali em cima; foi ela quem me ressuscitou". Como mal
aprendera a falar, a menina repetiu aos trancos a ave-maria diante de
toda a gente que ali se achava, a fim de louvar a grande Senhora que a
havia trazido de volta à vida. A esposa do governador, por sua vez,
vestiu-a com roupas de gala e a levou consigo para que presidissem
juntas a procissão do dia seguinte. Quando os pais souberam que, além
disso, a mulher pretendia levá-la consigo para viver em sua casa de
Mérida, fugiram com ela para que não crescesse no palácio, em meio a
estranhos. Ao se despedirem, disseram que a Virgem prefere a pobreza
dos índios ao conforto na agitação cortesã.
Por meio das histórias de favores cumpridos e de esperanças
realizadas ao calor da fé distinguem-se, em cada cultura, as diferentes
expressões de religiosidade. Os antigos deuses, por exemplo,
satisfaziam prazeres com a mesma freqüência com que sanavam os
males ou consolavam as dores. Não sabemos como nem onde se
rompeu o costume de associar a totalidade da vida e da morte à
devoção; o certo é que de repente, talvez por influência do
monoteísmo, a tristeza se infiltrou como a única maneira de
praticar a religiosidade no limite das carências. E é essa a sensação
que produz o cristianismo desde seu advento na América, a de ser um
refúgio, um apoio desesperado e um consolo do desassistido. Um
refúgio que claramente se assenta no espírito dos vencidos e depois, na
medida em que a sociedade se configura em um sistema de
desigualdades extremas, encontra sua própria linguagem de acordo
com a classe social e o grau de instrução dos crentes. O culto às
invocações marianas no México, por exemplo, jamais conseguiu
absorver a sensualidade característica dos espanhóis nem se respirou
em nossas terras a vigorosa inspiração artística de uma Idade Média ou
de uma Renascença européias. Disso também se ressente o
colonialismo, talvez porque a palavra sagrada tenha sido imposta com
demasiada violência sobre os resquícios ainda candentes do fervor
mutilado com sangue.
De tão intensa que é nas fendas da dor, a história do cristianismo
na América - uma temática ainda muito pouco estudada - constitui
uma rica fonte para a compreensão da profundidade de um caráter
com inúmeros indícios de submissão resignada que, em momentos
extremos, explode em violência; porém, na vida cotidiana oscila em um
vaivém de devoção piedosa, ainda que passiva, e ciclos rituais de
festividade popular sempre marginalizados em relação à orientação
formativa da doutrina. E é precisamente isso que nos ensina a
revisitação do culto mariano, muito mais arraigado no México que a
palavra do evangelho ou o interesse quase inexistente pela Bíblia: que o
sentimento de orfandade ainda ultrapassa a curiosidade do espírito; e
que os crentes acorrem ao amparo da Mãe Sagrada em busca de
soluções para problemas que não podem resolver por si mesmos, seja
por causa da miséria, seja pelo costume de se apegar à necessidade
daqueles feitos que, entre nós, são tidos como milagres.
Uma surda que ouve por graça divina, um aleijado que
consegue se pôr em pé, o endemoninhado que reza como em uma
sessão de exorcismo, as chagas infectas que desaparecem do corpo
dolente, as febres abrasadoras que se aliviam por efeito da oração ou o
sem-fim de acidentes representados pelos ex-votos são eventos que,
geralmente, testemunham o curso natural de uma enfermidade. Mas
em povos tão desvalidos o ordinário adquire valores excepcionais, pois
parece óbvio que aquele que nada tem nada espera; e quando a
desgraça não é sucedida por uma fatalidade, mas por um fim aceitável,
esse desenlace é levado à conta de milagre.
No caso dos espanhóis, agradeciam à Nossa Senhora de Izamal
por havê-los livrado de tormentas em alto-mar ou vencido o risco de se
perderem por causa dos maus ventos. Uns diziam que suas
embarcações não se haviam estraçalhado contra um penhasco graças
à oportuna intervenção mariana; outros que, graças às exortações do
capitão, passageiros e marinheiros se arrependeram de seus pecados
e fizeram promessas a fim de se salvarem do perigo iminente de um
naufrágio. Relativamente aos mexicanos, a lista de rogos gira sempre
em torno das mesmas causas: a cura de doentes ou de acidentados e,
em nossa época, o socorro aos desempregados e alcoólatras redimidos;
isto é, diante do altar congregam-se as súplicas de uma miséria tão
secular que não caberia alternativa senão esperar por um único e
verdadeiro milagre: pedir à Virgem forças para transformar uma
situação de injustiça que, longe de ser reparada, piora com o passar
do tempo.

1Moeda de prata que começou a circular em Castela no século XIV. Base do sistema
monetário espanhol até meados do século XIX, a partir de 1497 seu valor
corresponderia a 34 maravedis. Presentemente, o real eqüivaleria a 25 centavos de
peseta. [N.T.]
Nossa Senhora
de São João

Inseparável da Virgem de Zapopan, a imagem de Nossa Senhora não foi


levada pelos evangelizadores ao então vilarejo de São João Batista de
Mexquititlán, no século XVI, com a deliberada intenção de torná-la
famosa por suas graças concedidas. Fizeram-no, com efeito, para
promover a piedade mariana nas modestíssimas ermidas contíguas a
hospitais ainda mais modestos, destinados a atender enfermos e
hospedar peregrinos de acordo com as disposições do primeiro
Concilio Mexicano, de 1555, que ordenava construir essa espécie de
dispensários por causa da terrível epidemia que assolou os povoados
da Nova Espanha.
Em geral, essas capelas deveriam ser dedicadas à Imaculada
Conceição, e ficara disposto também que em cada localidade os padres
fundadores deveriam prover seu pequeno santuário com a imagem da
Virgem Maria. Acatando essa determinação, frei Miguel de Bolonia
providenciou a imagem para a capela de São João, que estava a seu
cargo. Correspondendo à insignificância do povoado, a ermida era
pequena, com uns 16 metros de comprimento por 6 de largura, com
teto de palha e paredes de barro, formando um edifício ao qual se dava
o nome de hospital. Com o tempo, lhe foram agregadas duas peças
pequenas, uma para a sacristia e outra para o dispensário, ou talvez
para o quarto de hóspedes, mas ambas de igual simplicidade. Como
ocorre na maioria dos casos, não se sabe com exatidão de onde proveio
a imagem nem quando perdeu seu nome original para passar a ser
reconhecida como Nossa Senhora de São João. Considerando a
primitiva pasta vegetal de sua estrutura, feita à base de milho, supõe-
se que procedeu de Michoacán, onde Vasco de Quiroga ensinou aos
índios artes e ofícios, entre os quais se contava a fabricação de imagens
e a pintura, conforme demonstra a presença da Virgem da Saúde em
Pátzcuaro, também preparada de massa de milho.
A figura de Nossa Senhora de São João foi, sem dúvida, uma
incumbência menor de frei Miguel de Bolonia. A princípio, ninguém a
considerou mais que uma parte necessária e obrigatória da
ornamentação litúrgica, sem culto especial nem merecimentos;
maltratada e em desalinho, permaneceu desprezada na sacristia junto
a outros objetos e imagens de santos e virgens um tanto inúteis, até
que, quase um século depois, se cansou do confinamento e começou a
se manifestar por meio de admiráveis maravilhas.
Ocasionalmente era visitada por devotos de passagem, sendo que
mal se notava sua presença naquela localidade; ninguém imaginava que
informações jurídicas chegariam a afirmar sem receio, por volta do
século XVIII, que era uma das invocações marianas mais milagrosas não
somente da América setentrional, mas em todo o mundo católico, pelo
qual sua piedade foi difundida. Tudo indica que era de feitio grosseiro e
com acabamento muito modesto. Entronizada com o tempo em sua
própria basílica, percebe-se ainda agora a diferença em relação às peças
de madeira em ouro que adornavam os grandes conventos e igrejas. Ela
está para o ramo de milho como as esculturas sacras da península estão
para a madeira. A graça de seus longos cabelos ondulados e negros, tais
como os de sua irmã, a Virgem de Zapopan, assim como sua pequena
estatura e seu rosto aquilino são uma tentação para a diligência fe-
minina, sempre inclinada a adorná-la com jóias e enfeites muito
brilhantes. Sua história, porém, é mais fascinante que sua figura, por
ser muito reveladora das preferências mestiças. Abarcou a memória da
Imaculada Conceição, adquiriu personalidade própria graças aos
portentos que realizou, exerceu o costume de mudar sozinha de lugar,
de variar a cor de seu semblante, suas nuanças e gestos, até que foi
rebatizada como Nossa Senhora de São João no dia em que um
malabarista passava pela aldeia, a caminho de Guadalajara, fazendo
piruetas e números com fogo, lanças desnudas e adagas pontiagudas,
nos quais também participavam sua mulher e suas duas filhas
pequenas, o que acentuava o risco em suas apresentações.
Sucedeu que uma das meninas, provavelmente a menor e menos
experiente, errou o salto e caiu com o peito diretamente sobre a ponta
de uma adaga. À vista dos curiosos e perante a dor de seus pais, a
criança esvaiu-se em sangue e ficou completamente inerte entre os
apetrechos. Acompanhados por muita gente do povoado, os
saltimbancos amortalharam-na a fim de velá-la na capelinha e depois
enterrá-la no campo santo.
Os pais choravam desconsolados. Comovida pela tragédia,
chorava também com eles uma índia já de idade madura, chamada
Ana Lúcia, que, de repente, como se estivesse em transe, colocou-se
de pé para lhes dizer que não se afligissem mais, pois a Zuhuapili -
como chamavam a Virgem Maria - devolveria a vida à menina, ainda
que se encontrasse esquecida no quartinho ao lado. Prontamente,
conforme escreveram Francisco de Florencia e Juan Antonio de Oviedo,
Ana Lúcia entrou na sacristia, pegou a imagem da Imaculada, da qual
ninguém mais se lembrava, e com a mais sincera devoção colocou-a
sobre o peito da defunta. Em pouco tempo os presentes perceberam
que a criança se movia por baixo da mortalha, e às pressas cortaram-
lhe as faixas para que, sã e salva, a menina pudesse se erguer e render
graças à Santa Senhora.
Quando em 1634, onze anos depois do sucedido, a comissão
enviada pelo bispado interrogou Ana Lúcia - então com mais de 80
anos - a respeito daquele milagre, ela lhes disse que, uma vez esposa
do sacristão daquele hospital, varria o prédio diariamente, bem cedo,
por dentro e por fora, e sempre percebia que durante as noites a Virgem
saía da sacristia, onde estava abandonada com outras imagens, até a
peanha da capela, onde amanhecia sem que ninguém a tivesse tocado.
E uma vez que todos os dias ela mesma retirava a imagem do pedestal e
a recolocava em seu lugar na sacristia, e que outra vez a Virgem se
movia, isso acabou se tornando uma espécie de costume entre elas, e a
índia não disse nada a ninguém porque acreditava que a imagem era
transportada pelas mãos dos anjos. Certamente esperava algum aviso,
como finalmente acabou acontecendo, porque assim era a Virgem
Maria: brincalhona e travessa. Naquela ocasião, Ana Lúcia não
comentou o prodígio porque lhe pareceu natural que a Virgem
ressuscitasse a menina, e além disso ninguém lhe havia perguntado.
Conforme o registro do Bispado, o malabarista considerou que a
melhor maneira de demonstrar sua gratidão pelo favor recebido era
pedir permissão ao povo de São João para levar a imagem consigo por
uns dias, para que algum pintor ou escultor conhecido a restaurasse
em Guadalajara, pois o tempo e o abandono na sacristia deixaram-na
descorada, lascada em algumas partes, despenteada e com a roupa
danificada. Os habitantes do vilarejo aceitaram a oferta, confiantes na
palavra daquele homem, pois já não duvidavam que a dignidade da
imagem deveria estar à altura de suas maravilhas. Então, encadeado a
outros eventos extraordinários, ocorreu um novo prodígio na
estalagem em que se haviam alojado os saltimbancos, ainda dominados
pelo encantamento. Sem causa nem vínculo algum, pois nesse local
ninguém tivera notícia do milagre que ainda inquietava a família, dois
jovens se apresentaram e indagaram se havia por ali alguma imagem
carente de conserto. Sentindo que a sorte o havia favorecido, o
saltimbanco lhes entregou a Virgem advertindo-os de que pertencia ao
povoado de São João, e que não poupassem cuidados nem gastos
porque ela lhe era muito cara e um sinal de esperança aguardado com
grande ansiedade pela gente de São João.
Ao amanhecer do dia seguinte, quando o saltimbanco ainda não
havia despertado, o estalajadeiro bateu-lhe à porta do quarto trazendo
a Virgem nos braços. Estava tão bem composta e bonita quanto se
encontra ainda hoje; até sua feitura parecia diferente, mais sólida e
reforçada, e a expressão de seu rosto era tão radiante que seus olhos
negros chegavam a ofuscar. Disse-lhe o hospedeiro que os dois rapazes a
haviam entregado há poucos minutos e que, aparentemente, não
esperavam nada em troca, pois foram embora sem exigir qualquer
pagamento. Quando o malabarista, semivestido, saiu rapidamente para
procurá-los, não conseguiu descobrir o menor rastro deles. Ninguém
os tinha visto e tampouco os conheciam aqueles que eram
interrogados; não foram encontrados nas ruas próximas nem eram
conhecidos nos ateliês existentes ao longo do caminho.
Convencido de que se tratava daqueles anjos mencionados por
Ana Lúcia, o artista voltou a São João com grande reverência, trazendo
a notícia. Colocou a estátua de volta em sua capela, justamente no
lugar em que ela gostava de ficar ao amanhecer, e a partir de então, no
ano de 1623, os peregrinos começaram a arrancar pedaços de adobe
tanto do altar como das paredes, com o objetivo de amassar uma
espécie de pãozinho de barro que guardavam como relíquia
chancelada. De construção débil desde o início, a ermida desabou por
excesso de devoção. Não sobrou fragmento que não fosse recolhido,
porque tanto os moradores locais como os forasteiros levaram como
prenda pessoal qualquer coisa que se relacionasse com a Senhora. A
mortalha da menina sofreu igual sorte, assim como as flores, os tocos
de velas, as ervas e até mesmo o lodo da base do pedestal.
Anterior à atual basílica - onde Nossa Senhora de São João dos
Lagos ficaria entronizada -, construíram-lhe em seis ou sete anos um
templo semelhante à capela-mor da antiga ermida. Não obstante o
apuro com que foi realizada essa obra, executada durante a ausência
do bispo dom Juan Sánchez Duque, fez-se necessário derrubá-la outra
vez em função de sua pouca solidez e consistência, já agora sob o
mandato de seu sucessor, o bispo dom Juan Ruiz Colmenero.
A Virgem de São João compartilha com as imagens de Nossa
Senhora da Saúde e de Zapopan a característica de terem sido
fabricadas com uma pasta de milho muito primitiva e grosseira, uma
matéria tão frágil que está muito mais exposta que outros materiais ao
caruncho e à total deterioração. Todavia, é secular o espanto com o
fato de seu corpo permanecer intacto, tal como seguem também em
seu estado original a tilma de Juan Diego e as fibras muito simples
que compõem as outras duas virgens. Isso, por si só, é um milagre.
É impossível determinar a cor de seu rosto, pois umas vezes está
radiante e outras pálido, trigueiro ou enegrecido, tal como se mostra a
imagem de Zapopan. Até mesmo em nossos dias, dois séculos depois
que os autores do Zodíaco Mariano registraram o caso como
testemunho verídico, Nossa Senhora de São João se apresenta com
tonalidades distintas, especialmente nas datas em que seu Filho é
comemorado ou durante as celebrações dos mistérios de sua vida.
Então seu rosto irradia lampejos muito tênues que fazem desvanecer
seus olhos e suas feições. É dessas luzes que nasce a célebre estrela que
algumas vezes aparece em sua fronte e outras em seu queixo.
O Padre Florencia afirmou sob juramento que, por ver muitas
vezes no templo a imagem emanar um clarão a partir de seu rosto, ele
mesmo quis averiguar se por acaso não se tratava de uma ilusão de
óptica provocada pelo brilho dos diamantes com os quais estava
adornada. Às escuras, fechou as portas do relicário e, espiando pela
gelosia, viu que resplandeciam tanto a imagem como o interior de seu
sacrário, ficando então convencido de que as luzes não eram reflexo
dos diamantes, mas que irradiavam, sim, do rosto da imagem
As obras realizadas por Nossa Senhora de São João conformam o
esboço de um México ingênuo, formado por almas simples como as do
malabarista e de sua família, que ganhavam a vida saltando entre facas
e aros de fogo; mas também por espíritos privilegiados pela graça de
um milagre tão inaudito como a ressurreição da pequena amortalhada,
e que, mesmo depois de haver driblado a sorte sobre a adaga,
continuam sua existência nômade e desafiando a morte para entreter o
povo pobre dos vilarejos, até que chegue a velhice, o cansaço ou o
destino impondo-lhes o fim de seu ofício.
Está visto que, em geral, o povo não espera mais que alguma bem-
aventurança: remediar males, reparar erros cometidos, realizar
pequenas aspirações de melhoramento material; anseios que
oportunamente motivam, nas igrejas, a organização de eventos por
meio dos quais se infiltra o inevitável tema das esmolas, antecedido de
avisos ou de portentos que acenam para a possibilidade de construir
novos templos ou de substituir velhos retábulos. Nossa Senhora de
São João, por seu lado, é uma dessas virgens que não pede
diretamente luxos e recompensas, mas tampouco desdenha ofertas em
agradecimento ou abandona os cuidados de seu próprio santuário. Daí
que, em dezembro de 1659, ela preveniu em sonhos ao então vigário e
capelão-mor, dom Juan de Contreras, sobre o risco que corriam os
ricos dosséis e ornamentos litúrgicos que ele havia colocado ao redor
do altar durante os árduos trabalhos de decoração.
Nessa noite, enquanto ele dormia, e quando pela primeira vez o
templo reluziu em esplendor, pareceu-lhe escutar uma voz que dizia
ser o arco da capela o local mais adequado para a lamparina que ardia
diante da imagem. A primeira coisa que fez ao se levantar foi se
certificar de que a lamparina e os cordéis que a sustinham pendiam
da pequena clarabóia diretamente sobre a peanha do altar. Porém, a
indolência falou mais alto que o medo, e o vigário deixou que três dias
se passassem sem se preocupar mais com o assunto. No sábado, 6 de
dezembro, enquanto rezava a missa, rebentaram-se quatro cordéis que
sustentavam a polia daquele objeto de prata, o qual se encontrava
exatamente sobre a sua cabeça. Milagrosamente o paramento veio a
cair entre seus pés e o altar, uma vez que Nossa Senhora de São João
desviou o sentido da queda com tal precisão que nem sequer o azeite
do recipiente manchou o tapete ou as peças do altar; ele tampouco foi
respingado, e apenas uma leve mancha tocou sua casula.
Este não seria o único incidente entre a Virgem e dom Juan
Contreras, pois foi nessa época que se acentuaram suas diferenças com o
recém-nomeado vigário de Jalostotitlán, um ancião muito brioso que, ao
ser informado de que seu subordinado, valendo-se das esmolas que se
multiplicavam durante as missas cantadas, as festividades ou por
ocasião da Semana Santa, promovia a devoção mariana com muita
ostentação e não media esforços para atrair mais peregrinos para o seu
santuário. E foi justamente em uma Semana Santa que, desde sua sede
de Jalostotitlán e sob pena de cem açoites, proibiu os cantores de São
Gaspar de ir a São João nesses dias cantar ou oficiar.
Ignorando a sanção que havia recaído sobre sua paróquia, dom
Juan Contreras se deu conta de que estava sem cantores em plena
festa de São José. Além disso, se aproximavam o dia da Anunciação e a
Semana Santa, motivo pelo qual, uma vez inteirado da decisão de seu
superior e sabendo que não podia se opor a ela, encomendou-se à
proteção de Nossa Senhora. Generosa como era, na manhã de sexta-
feira, 8 de abril de 1661, já às vésperas da Semana Santa, a Virgem fez
com que batessem no portão da igreja uns índios de tão boa tempera
que até fizeram o inocente Contreras pensar que eram anjos; eles lhe
beijaram a mão em sinal de saudação e lhe disseram que tinham
trabalhos a realizar no santuário durante esses dias. O vigário,
confuso, pensou que falavam de obras de alvenaria, o que não lhe era
possível aceitar porque, nessas datas, tudo ficava suspenso.
- Padre - lhe responderam - nós não viemos para isso, mas
somos cantores e estamos aqui para ajudá-lo. Somos de Michoacán.
Viemos aqui por devoção.
Jubiloso, o pároco alojou-os no hospital e, no dia seguinte, eles o
ajudaram a oficiar a missa de Nossa Senhora.
Contreras comunicou a seu companheiro, Nicolás Pérez, que a
Virgem mesma lhes havia provido de cantores, e que levou-os a ensaiar
a Paixão e os cantos do Domingo de Ramos. Um após outro se
sucederam fatos inusitados, pois os índios não somente sabiam os
versos do Gloria Laos como pediram papel e tinta para escrevê-los a
tempo da celebrações. A suavidade e a modéstia com que cantaram no
dia seguinte a liturgia da Paixão e a missa eram tamanhas que não
pareciam índios, mas anjos, conforme escreveu o cronista. Não
conversaram com ninguém nem fizeram pedido algum. Passaram
cantando motetes durante os santos ofícios diante de Nossa Senhora
de São João; na Sexta-feira Santa cantaram em tons tão baixos e
lastimosos que deixaram absortos o vigário e seu companheiro. Durante
a cerimônia do lava-pés, cantaram em falsete o ofício das trevas
mostrando tamanha destreza que se julgou que nem mesmo nas
grandes catedrais se ouviria coisa igual. No dia seguinte, Sexta-feira
Santa, interpretaram os chamados impropérios com tal ternura que
levaram às lágrimas o capelão, convencido de estar escutando os
próprios anjos. Despediram-se no terceiro dia de Páscoa sem pedir
qualquer pagamento, mas contentes em receber os pãezinhos tirados
da terra da Virgem.
Atribuem-se a Nossa Senhora de São João numerosas
ressurreições, especialmente de crianças, embora os registros
acentuem sua nobreza de caráter por se comover com o sofrimento ou
a dor dos animais. Assim como restituiu a vida de uma criança atacada
por um cão enfurecido, também fez o mesmo com um cão ovelheiro, do
qual dependia seu dono para guiar o rebanho. Devolveu a agilidade a
um mulato entrevado há muitos anos e que, não contente com apenas
se mover, começou a fazer piruetas diante de seu altar para depois
oferecer suas muletas à Senhora milagrosa.
Um amo atirou à rua seu escravo negro para que mendigasse
porque, já meio paralítico, não mais lhe era de utilidade. Como Nossa
Senhora de São João realizasse o milagre de lhe restabelecer a saúde, o
dono reclamou novamente sua posse; porém, o Real Tribunal de
Justiça de Guadalajara interveio e decretou sua libertação para que
"passasse ao serviço da Virgem". Este prodígio, entre outros anotados
nos registros marianos, tem o duplo valor de mostrar a devoção e
comprovar a existência da escravidão de índios, negros, mulatos e
outros grupos étnicos que alguns historiadores negaram por motivos
inexplicáveis. Se a servidão não fosse uma realidade cotidiana, não
haveria sentido que por três vezes no século XIX fosse decretada sua
abolição no México: primeiro com Hidalgo, depois Morelos e,
finalmente, Vicente Guerrero.
Infelizmente não existem testemunhos para explicar como a
suavidade maternal da Imaculada conseguiu se impor em mentes
acostumadas a prestar tributo a figuras de pedra e entidades que
enchiam de temor só de contemplar. Porém, o mais assombroso é que a
devoção mariana se converta no traço que mais nos distingue como
hispano-americanos dos cristãos anglo-saxões, sempre propensos a
preferir santos masculinos e, naturalmente, a relação direta com
Jesus Cristo.
Nesse sentido, contribuiu muito o costume de fazer passear a
Peregrina, ou a cópia fiel da imagem original, por todos os povoados do
arcebispado a fim de arraigar seu culto. Não se registrou a origem dos
"votos" nem o florescimento das "promesas", mas é fato que, em nossa
América, tais meios foram as vias mais poderosas de persuasão
doutrinária. Estando entre as devoções mais populares, Nossa Senhora
de São João dos Lagos é assim reverenciada e recompensada por seus
fiés há séculos, desde o momento em que, cansada de ficar escondida
na sacristia daquele hospital primitivo, empreendeu sua tarefa de
proteção aos desamparados.
De que seja milagrosa, ninguém duvida; mas também é graciosa.
Diverte-se com as pessoas e sabe brincar com as luzes que a
caracterizam. É certo que entre suas alfaias se contam numerosos
diamantes, pérolas, turquesas e rubis; mas esses cristais somente
refletem seu esplendor. É radiante, ainda que em determinados
momentos contraste com sombras as tonalidades cambiantes de seu
semblante. É por isso que fascina e desconcerta àqueles que a
contemplam, porque, longe de ser apenas uma figura de madeira sem
serventia, como disse aquela avó índia quando sua filha se recusava a
enterrar sua neta - que acabou sendo ressuscitada pela Senhora -, sua
matéria de milho a enobrece e a eleva como um dos frutos divinos de
nossa terra mestiça.
Nossa Senhora
de Zapopan

Os frades franciscanos respondiam pela evangelização e criavam os


meios materiais para difundir sua palavra, enquanto os conquistadores
submetiam o ocidente do México com singular crueldade. Não obstante
a proibição de 2 de agosto de 1543, os espanhóis começaram a
escravizar os índios para cultivar trigo e depois para explorar as minas
sem demonstrar o menor sinal de piedade; como, aliás, foi distintivo da
feroz brutalidade das hostes de Nuño de Guzmán. Eram tempos de
investidas e acumulação sem reservas, em que a pressa era a única
guia da consciência estrangeira. Pressa que também abarcava a
necessidade imperiosa que sentiam os prelados de aniquilar a idolatria
até seu último reduto. Por isso os sucessos militares estiveram muito
próximos dos civis, e estes dos religiosos. Em 1532, por exemplo, três
anos depois que o mesmo Nuño de Guzmán partira para a conquista de
Jalisco, teve lugar a primeira fundação de Guadalajara. Em 1546, o
papa Paulo III autorizou a criação do bispado; em fevereiro de 1548, o
imperador Carlos V determinou a criação do Tribunal de Justiça da
Nova Galícia, tornando-a independente do vice-rei da Nova Espanha
em 1575, a quem somente reservou a autoridade militar sobre o
território. Não é de se estranhar, então, que diante dessa voragem
fundadora os franciscanos sentissem a mesma urgência em edificar
seus conventos, à frente dos agostinianos, dos jesuítas e dos
dominicanos, os quais se estabeleceram a intervalos de
aproximadamente dez anos entre si até completar, em 1588, a lista das
congregações que dominariam o panorama da cristianização regional.
Quase de maneira simultânea à penetração militar na zona de
Jalisco, em 1531 os franciscanos fundaram o convento de Tetlán, e dez
anos depois ocuparam o novo povoado de Zapopan com índios
tecuexes originários da encomienda de Jalostotitlán, para que Nicolás de
Bobadilla, seu encomendero, pudesse tê-los concentrados e a seu
serviço nas cercanias de Guadalajara; nesta região algumas
comunidades se haviam extinto por causa da selvageria sem tréguas do
encomendem, que não respeitava Deus nem lei e se aproveitava até
limites inimagináveis das vantagens que lhe conferia a carta de
encomienda. Foi assim que se infiltraram as contradições na Colônia,
pois, enquanto uns aniquilavam, arrasavam e maldiziam, outros
abençoavam, invocavam a Deus e semeavam templos com virgens
prodigiosas para que os sofredores conversos conseguissem apoiar em
algo seu debilitado sentido de existência, e pudessem assim continuar
seus sofrimentos no mundo com o favor da fé.
Se observamos essa situação sob a óptica da dor daqueles que
foram despojados de símbolos sagrados, de divindades e de identidade,
a presença de deusas ou virgens protetoras amealhava o único reduto
possível de esperança que pudesse conduzir seu sentimento de
orfandade. Para os naturais da terra, tudo estava perdido: sua língua,
seus credos, os ensinamentos de seus antepassados, o eixo de sua
ordem social, sua capacidade defensiva, suas terras e seus sonhos. Não
lhes restava mais nada senão acatar essa idéia de bondade que o
missionário lhes proclamava como último consolo às margens
terminantes da escravidão ou da morte. Isso explica o apego à promessa
mariana e à oração banhada na profundidade de um pranto de
séculos, que se repete aos pés de Nossa Senhora como se fosse uma
condenação irresoluta, um sofrimento herdado e uma tristeza tão
grande que somente ela, a Mãe do Deus misericordioso, é capaz de
aliviar.
No México não existe culto que não tenha brotado ou pelo menos
se nutrido de uma tragédia armada. Insubmissa ao invasor, a comarca
de Jalisco distinguiu-se por seu contínuo repúdio aos conquistadores.
Resistiu o quanto possível nas montanhas, planícies e vales, mas
alianças menores e a supremacia cultural hispânica arrasaram em
definitivo a vontade dos mais valentes.
Depois que o tristemente célebre Pedro de Alvarado perdeu a vida
durante o assalto ao Rochedo de Nochistlán, a 4 de julho de 1541 -
quando a resistência indígena obrigou-o a se retirar e, durante sua fuga
desabalada, foi atropelado pelo cavalo de outro soldado fugitivo -,
confirmou-se a necessidade de fundar uma devoção local que
serenasse os ânimos de vencidos e vencedores. Aquele lugar ardia em
sangue e tumultos. Gravemente ferido, Alvarado conseguiu chegar à
cidade de Guadalajara, onde faleceu de maneira cristã. Alguns dos
soldados, os que lhe eram mais fiéis, choraram-no e exaltaram-no como
o mais intrépido e infatigável dos conquistadores, tão bom para matar
e avassalar quanto para fundar povoações, saquear tesouros e se
esquivar dos maiores perigos; outros, vítimas de seus desmandos,
marcavam seu nome a fogo para que na memória das gerações jamais
se menosprezasse o acre sabor da derrota. As sublevações ocidentais
não desapareceram com sua morte, mas pelo menos as forças nativas
se defenderam e os melhores persistiram, ainda que de maneira
infrutuosa porque, de armas em riste e altares recém-erguidos,
soldados e missionários cumpriram com sobras os propósitos da
conquista, que culminaram com o esquecimento do mundo nahua e
da preexistência de uma civilização avançada na Mesoamérica.
De acordo com a ordem episcopal de edificar ermidas presididas
pela Imaculada Conceição ou por Nossa Senhora da Anunciação, a
Virgem recém-entronizada em Zapopan foi dignificada de imediato
como "Generala pacificadora dos indomáveis chimalhuacanos", único
grupo tribal que, por sua resistência organizada, fez cambalear a
primazia do vice-reinado. Comandados por Tenamaztli, conhecido
também como "o Cuauhtémoc1 do Ocidente", lutaram com todas as
armas e energia antes de se render ao inimigo. Como os mexicanos de
Tenochtitlán, aqueles homens intuíam o preço de seu fracasso e não
sucumbiram. Eram temíveis, porém não dispunham de armas à
altura daquelas brandidas pela força invasora, motivo pelo qual grande
parte deles caiu nos combates. Sua pacificação, de fato, implicou uma
grande mortandade que marcou uma das mais renhidas batalhas
travadas na região, e que acabou determinando o princípio da
obediência mediante a rápida tarefa dos encomenderos em submetê-los
pela via material, enquanto os frades faziam o mesmo no espírito cativo
daqueles que, para sempre, seriam excluídos das páginas da história.
No que se refere à chegada da Virgem Maria à Nova Galícia e à
difusão de seu culto, nada se conhece com exatidão. A imagem não
proveio da Espanha porque foi fabricada com massa de milho, o que
permite inferir que, entre as primeiras indústrias que os missionários
ensinaram aos naturais empregando os materiais da região,
encontravam-se a pintura e a estatuária litúrgicas; a imagem apresenta
semelhanças com as de Taipa e de São João. Compartilha com elas a
pasta que forma sua estrutura, os traços mestiços e uma certa
precariedade em seu acabamento, que mais tarde foi restaurado para
melhor conservação. Foi frei Antonio de Segovia quem mandou trazer
Nossa Senhora sob a invocação conhecida como do Ó, também cha-
mada Nossa Senhora da Expectação [ou do Parto], mas ambos os
nomes se perderam a partir do momento em que se identificou essa
pequena imagem ricamente adornada, de cabelos negros e ondulados,
com o nome mais singelo de Virgem de Zapopan, a qual se tornaria
credora de uma das venerações mais originais do vice-reinado graças à
mescla de elementos pré-hispânicos e devoção cristã que se conserva
até hoje, talvez porque o clero mexicano não se tenha interessado com
suficiente empenho em repartir a doutrina nem alfabetizar seu
rebanho.
Fiéis ao costume de aproveitar a maternal virgindade de Maria
para penetrar nas consciências religiosas dos nativos, os
evangelizadores que frei Antonio de Segovia coordenava, pertencentes à
ordem seráfica de São Francisco, acentuaram a bondade da Virgem
perante os índios para que, desde a origem de sua conversão, a
tomassem como protetora dos desamparados e tão pródiga em
milagres que se tornaria extremamente difícil, diante das evidências de
seu altruísmo, manterem-se aferrados ao paganismo. Sua fama de
consoladora tornou-se tão ostensiva e crescente que os cronistas do
século XVIII relataram que os próprios crentes se negavam a revelar as
graças recebidas por temor de que lhes retirassem a imagem de seu
santuário.
Foi nessa época, a 4 de dezembro de 1784, que se criou a
Intendência de Guadalajara, que compreendia os territórios de
Jalisco, Aguascalientes e Colima; em junho de 1823, transformou-se
no Estado livre de Jalisco, federado à nação mexicana; nesse mesmo
ano, durante o governo de Agustín de Iturbide, Nossa Senhora de
Zapopan foi declarada "Generala e Protetora Universal do Estado Livre
de Jalisco", o que indica o assentamento pleno da religiosidade em um
meio no qual estava quase extinto o apego pelos antigos vínculos com o
sagrado.
Os escritos da época indicam que o templo onde se venerava
originalmente a Virgem de Zapopan era de estrutura maciça e de
acabamento bastante satisfatório. No entanto, sua crescente
popularidade animou a freguesia a construir-lhe algo mais suntuoso e
suficientemente amplo para acolher os peregrinos. A obra foi realizada
sob as ordens do bispo dom Juan de Santiago León, ainda que, devido à
pobreza da região e à insuficiência das esmolas, tivessem de transcorrer
cerca de quarenta anos antes que, no mês de setembro de 1729, o
ilustríssimo doutor dom Nicolás Gómez de Cervantes cantasse a missa
no dia da dedicação pontificai e, segundo os testemunhos,
imediatamente se multiplicasse o número de devotos e a contagem de
seus milagres.
Ninguém sabe como nem de onde surgiu o costume de criar um
guarda-roupa para a Virgem de Zapopan; talvez se tenha originado nas
procissões anuais que reuniam grandes multidões, quando levavam a
Virgem de povoado em povoado e ela pernoitava em casas particulares
ou templos locais e ali, entre os devotos mais abastados, começou a
aumentar seu porta-jóias e seu guarda-roupa pessoal a ponto de hoje
ser considerada uma das invocações mais bem vestidas e adereçadas
da América.
Especialmente no culto mariano a Nossa Senhora do Ó, ou da
Expectação, que se celebrava em todos os reinos da Espanha no dia
18 de dezembro, sentiu-se a imposição mais agressiva da religiosidade
peninsular. Os mexicanos, porém, opuseram outra maneira de
resistência sutil ao rebatizarem suas padroeiras com nomes locais e,
em casos freqüentes, mudarem os dias que lhes eram consagrados
para ajustá-los ao calendário de suas antigas festividades. O
sincretismo foi abertamente avigorado durante os festejos populares
até criar, em poucas décadas, uma linguagem própria que, mesmo
pródiga em imagens e ritos de origem européia, se revestiu da grande
originalidade que até hoje distingue essas celebrações: a profusão de
danças autóctones, oferendas de produtos vegetais, penitências físicas
e um sem-fim de oferecimentos, promessas e outras formas de
alcançar o perdão que substituem o esforço da consciência contrita,
sem contar que tudo isso pode resultar em excessos agravados pelo
álcool. Trata-se de uma linguagem litúrgica que, ontem como hoje, em
quase nada conserva as práticas impostas pelos evangelizadores.
Diferentemente da Virgem de Guadalupe e de Nossa Senhora dos
Remédios, a Virgem de Zapopan não apareceu a um índio nem se
manifestou de forma velada. Essa invocação mariana, como suas irmãs
de São João dos Lagos ou de Taipa, foi implantada como um pendão
espanhol na Nova Galícia, fato que, para sorte da mestiçagem cultural,
já não é mais recordado por ninguém. Tal sucesso poderia ser
atribuído tanto à potência original da religiosidade do povo de Jalisco
como à suavidade natural com que Nossa Senhora ganhou a confiança
de gerações.
No primeiro centenário do culto à Virgem de Zapopan, em 1641, o
bispo de Nova Galícia, Juan Ruiz Colmenero, empenhado em exaltar
seus títulos como intercessora, descobriu com surpresa que, salvo os
dados gerais da chegada de Maria Santíssima à região, o clero não
contava com um arquivo de seus milagres nem com detalhes históricos
de peregrinações ou testemunhos confiáveis de sua ação protetora. Ela
se encontrava ali, inamovível em seu altar, como uma presença
avalizada por si mesma, sem proclamas, sem apoio documental nem
juízos que comprovassem as rogativas atendidas de seus crentes.
Acreditando que a elaboração de um primeiro histórico de suas
maravilhas contribuiria para avivar sua divina presença, o bispo
determinou a um grupo de sacerdotes que investigasse eventos dignos
de serem publicados. Para assombro dos freqüentadores mais assíduos
do bispado, ocorreu que os testemunhos não relataram qualquer
circunstância que pudesse ser justificadamente denominada milagre
entre o vasto anedotário que vinha de boca em boca, ano após ano, por
décadas a fio.
Os devotos jamais se atreveram a duvidar da potência
incontestável de suas graças, ainda que tudo que se relacionasse a ela
tivesse permanecido à margem do interesse de cronistas civis ou
religiosos. Deve-se reconhecer que, em geral, só foram feitos registros
com alguma ordem por volta do século XVII, e até meados do século
XVIII esse trabalho era realizado com o mínimo rigor. A primeira edição
do Zodíaco Mariano data de 1755, o que indica que antes da publicação
desse documento o clero mexicano não dispunha de um memorial
histórico, talvez porque a tarefa da cristianização, aliada às fundações,
às ocupações civis e aos empenhos formativos, não tivesse amadurecido
o suficiente para criar as bases bibliográficas que costumam surgir nas
culturas mais sedimentadas.
Preocupados com o vazio que se estendia entre o histórico ainda
inédito da imagem e a comprovação de seu amparo, alguns
informantes mencionaram que os paroquianos da freguesia ocultavam
a parte mais substancial dos milagres da Virgem de Zapopan por
temor de que a tirassem deles e a instalassem em outro lugar. A
partir de então, o bispo Ruiz Colmenero decidiu começar um
inventário minucioso dos serviços da Virgem de Zapopan e de outros
cultos prestados em seu bispado a fim de animar a fé da população,
ainda que esta dispensasse reforços para render tributo àquela que,
até nossos dias e mesmo acima de suas prestigiosas irmãs, é a figura
mais invocada na região ocidental da República Mexicana. Talvez a
única imagem que se lhe aproximaria em termos de popularidade é a
de São José da antiga Zapotlán el Grande, atual Ciudad Guzmán, que
se diz ter sido transportada para uma colina próxima, em data
ignorada, por dois anjos que consagraram sua devoção.
O curioso foi que, tão logo o clero demonstrou seu interesse em
investigá-la e listar os portentos de outras invocações marianas, suas
mercês começaram a se repetir ciclicamente ao longo das rotas de
peregrinação pelos povoados e santuários do bispado. Mesmo sendo
boa anfitriã em Zapopan, nunca regateou generosidade para seus fiéis
por todos os templos a que foi convidada visitar.
Nossa Senhora de Zapopan foi vinculada às desgraças causadas
pelos raios e enchentes que se repetiam com violência no vale do
Atemajac. Abonando seu título de protetora contra as tempestades, a
cidade de Guadalajara invocou seu auxílio em 1734, cinco anos depois
da dedicação do santuário pelo sumo pontífice, quando caiu a pior
tormenta de que se tivera notícia até então, ocasião em que manifestou
alguns portentos que até hoje são recordados. Um dos raios que
riscavam o firmamento em meio a grande estrondo matou o sineiro que
tocava a rogativa no campanário da igreja de São João de Deus. Logo
subiu um sacerdote com a intenção de administrar-lhe os santos óleos,
e um segundo raio caiu tirando-lhe também a vida, de modo que seu
corpo ficou estendido sobre o do sineiro. Tal evento consternou todo o
povo da freguesia, incitando-o a refletir sobre a índole itinerante da
zapopana.
É digna de credibilidade a incrível experiência de se ver aplacar
as tormentas onde quer que a Virgem de Zapopan esteja de visita,
porque, a propósito da série de desastres ocorridos m 1734, bastou
que tivessem sido obtidas as permissões necessárias e que a imagem
fosse transladada de seu santuário até a catedral para que os
aguaceiros diminuíssem, os raios deixassem de provocar desgraças e
o céu recobrasse seu antigo esplendor. É certo que continuou
chovendo durante sua estadia em Guadalajara, até porque era a
época das águas, mas elas caíam agora com uma serenidade tão
oposta às chuvaradas anteriores que alagavam ruas e casas que,
antes de devolvê-la a Zapopan, fez-se um juramento de devoção a ela
com toda a solenidade e festa durante a missa celebrada por dom
Lucas de las Casas, cônego doutorai da catedral.
Não satisfeita em haver pacificado as tempestades, a Virgem de
Zapopan proporcionou mais uma surpresa quando ia de regresso a seu
santuário, em imponente procissão. Era transportada por dois
cônegos da catedral e por dois membros do conselho da cidade,
acompanhados por um enorme contingente de pessoas. Os relógios
marcavam 6 horas da manhã de uma aurora úmida que enobrecia a
passeata acompanhada por rezas e cantorias em coro. Tão logo os fiéis
chegaram às cercanias da cidade, o céu foi atravessado por um lindo
arco-íris que emoldurou a passagem da Senhora Santíssima. Não se
tratava de um arco-íris comum, estendido de norte a sul, como
costuma aparecer por essa região; mas surgido do oriente para o
poente, tal como o caminho que era trilhado pela procissão.
Data de então o costume de levar a Virgem de Zapopan a
Guadalajara nas vésperas do dia de Santo Antônio e, após uma
faustosa estadia na catedral, fazer um passeio em andor pelas demais
igrejas, onde lhe são oferecidas novenas, feiras e toda sorte de votos e
pagamento de promessas. Os mais devotos aproveitam que "a Virgem
está dando uma volta" para organizar as cerimônias mais significativas.
Por isso, especialmente até o século XIX, procurava-se marcar
casamentos, batizados e primeiras comunhões para os dias de
visitação, ocasião em que as esmolas alcançavam cifras muito
superiores às rendas do município.
Os milagres consignados a partir do século XVII, no entanto,
relacionam-se mais com fatos pessoais do que com assuntos sociais ou
políticos, mais reservados à intercessão da Guadalupana. O testemunho
de um dos primeiros registros afirma que, quando a Virgem de Zapopan
foi levada a peregrinar em Xochitlán, acotovelava-se em torno dela uma
multidão de fiéis, de curiosos e de enfermos, além dos costumeiros
cães famintos e das carretas puxadas por burros e cavalos. Um cego de
nascimento fez-se levar diante dela a fim de lhe pedir que, se era
deveras tão milagrosa, se apiedasse dele e lhe concedesse a visão que
tanto desejava. Ao passar diante dele, o ecônomo que presidia o
cortejo, comovido com suas súplicas, inclinou-se para colocar por um
instante a imagem diante de suas pálpebras fechadas. Ao afastá-la, o
cego abriu os olhos pela primeira vez na vida e ficou deslumbrado.
Banhado em lágrimas, começou a gritar que enxergava. Via suas mãos
calosas, as flores que até então sequer imaginava, os rostos das
pessoas que o cercavam e a divina Senhora. Via o mundo que até esse
momento só percebera sumido nas sombras; enxergava a luz,
sobretudo contemplava a luz, as chamas e as velas. Em meio ao
vozerio da multidão surgiu o prelado para testemunhar o milagre; e ali
mesmo, acompanhados em coro por todos os moradores da freguesia,
os dois homens deram graças pelo favor recebido.
Sempre foi sabido pelos moradores de Jalisco que a Virgem de
Zapopan gosta de passear, de estrear roupas novas e luzir suas jóias.
Pelo menos até um período bem avançado do século XX, ela saía e
entrava livremente de seu templo, não obstante as sanções civis
conseqüentes do anticlericalismo do presidente Calles, que perduraram
por setenta anos, até a década de 1990. Em andor, protegida por um
pálio ou balançando graciosamente em seu relicário, ia e vinha com
grande pompa por entre caminhos e povoados, e ao longo de suas rotas
cada vez mais cheias de peregrinos, as pessoas saudavam-na dos
balcões e de trás das cortinas, em bancas para vender alimentos,
relíquias e os imprescindíveis sombreros; montavam-se jogos
mecânicos e espetáculos pirotécnicos, organizavam-se bailes,
rogativas, cantos, chuvas de flores, músicas e desfiles de crianças
fantasiadas de todas as maneiras: de pastores ou de índios locais, de
acólitos ou com hábitos a fim de pagar determinada promessa, de
dançadores ou de charros e chinas poblanas2. Aguardadas com júbilo
durante meses, as feiras anuais adquiriram maior sofisticação nos vi-
larejos por volta da década de 1950. Às ditas procissões foram
acrescentadas as feiras profanas com o intuito de ativar a economia, e
sob o pretexto da piedade religiosa, os comerciantes aproveitavam a
oportunidade para obter bons lucros nas proximidades das igrejas.
Seguramente empenhada ela mesma em se confirmar perante os
prelados mais renitentes, ocorreu em pleno século XVII que, ao chegar a
data marcada e com a obtenção de todas as permissões necessárias a
uma certa povoação poeirenta daquele Estado de Jalisco, a Virgem de
Zapopan enfrentou o rechaço de um vigário enfurecido que alegava que
a traziam a seu vilarejo mais por cobiça do que por devoção. Segundo
seu ponto de vista, alguns sacerdotes queriam fazer milagrosas todas
as imagens de Nossa Senhora somente para poder recolher donativos e
engordar os cofres de suas próprias igrejas. Desconsolados, os
condutores da imagem sagrada deixaram a paróquia e, sutilmente, a
levaram à capela do hospital, para onde se dirigiu o vigário mais que
depressa, a fim de repreendê-los severamente. Responderam-lhe que já
haviam renunciado à acolhida solene da imagem, mas lhes proibir o
culto público era uma atribuição que não lhe correspondia. Fiel
devoto da Virgem Maria, o vigário assegurou que não impedia em
absoluto que seus paroquianos a visitassem de maneira privada; o que
achava abominável era se negociar com a fé dos inocentes. Ele mesmo
se ajoelhou e orou ao pé do altar da capela para dar exemplo de
devoção àqueles que já lamentavam as perdas materiais causadas pelo
cancelamento do folguedo e da feira.
O vigário começou então a rezar uma seqüência interminável de
ave-marias, e um a um todos foram se retirando até deixá-lo sozinho
no local. Ocorreu que, de repente, a longa madeixa anelada que pendia
das costas da imagem caiu em sua fronte e cobriu-lhe o rosto. Segundo
relatam Francisco de Florencia e Juan Antonio de Oviedo, ele fingiu não
notar a cena, enquanto a Virgem fez ares de não querer ver nem ser
vista por quem tão pouco respeito lhe havia demonstrado.
Inusitadamente travessa, a imagem agitou sua madeixa com um leve
tremor. O vigário se ergueu bastante surpreso, mas acreditou ter sido
uma brisa que havia despenteado a imagem. Arrumou-lhe os cabelos
com as mãos e quando se ajoelhava novamente para prosseguir em suas
orações, a Senhora Santíssima novamente lançou seu cacho sobre o
rosto. Suspeitando agora desse sinal, o padre sentiu sua consciência
encher-se de culpa. Sua pele, suas faces e todo seu corpo se cobriram
de vergonha. Pediu perdão pelo erro cometido e não somente a fez
retornar com grande pompa pela pracinha até a sede da paróquia,
como não consentiu que retirassem a imagem de lá antes de lhe rezar
uma novena sagrada.
Fontes confiáveis contam que, em outra ocasião, antes que tivesse
sido construída sua igreja abobadada e de alvenaria, a imagem estava
em uma ermida muito pobre, de madeiramento apodrecido, e que de
tão velha e maltratada sua cobertura e suas paredes haviam
desmoronado em meio a um grande estrago. Aflitos com o agouro, os
índios acorreram rapidamente para remover os escombros. Não se via
mais que uma pilha de terra com tijolos quebrados, farpas de madeira
carcomida e alguns pedaços daquilo que havia sido o retábulo. Nada
ficou em pé, sequer os candelabros dourados; mas foi comprovado e
juridicamente autenticado que a imagem da Santíssima Virgem saíra
ilesa e que nem a poeira a havia tocado. Seu traje e suas jóias estavam
intactos, absolutamente nada se havia sujado; seus cachos escuros
não foram maculados por um só grão de areia nem sua coroa se
deformou, apesar da dificuldade que exigiu seu resgate.
Amiga das surpresas, a Virgem de Zapopan atua nos momentos
mais inesperados, pois se regozija em intervir com os inocentes e bem-
intencionados. Prova disso é o relato referente ao que ocorreu durante a
construção do santuário que substituiu o que havia desabado. Estavam
os pedreiros erguendo paredes quando chegou um certo Juan Tomás
para ajudá-los. Durante o trabalho, este apenas fitava os companheiros
com insistência, e entre zombarias e verdades desafiou-os a provar que
a imagem era mesmo capaz de realizar um milagre. Lá embaixo, na
escadaria, encontravam-se alguns cântaros vazios e outro com água até
a metade. "Vocês afirmam" - disse ele, provocando-os - "que esta
imagem faz milagres e que vocês mesmos já viram isso acontecer. Eu,
pessoalmente, não vi nada e não posso acreditar nisso a não ser que
este cântaro, sem que ninguém o toque, jogue fora a água que tem
dentro". Nem bem acabara de falar quando a vasilha começou a se
mover de um lado para outro em forma de cruz, e depois, inclinando-se
sem que ninguém a tocasse, expulsou toda a água que continha até
derramá-la ao seu redor.
Não satisfeita em transtorná-los, Nossa Senhora levantou o
líquido como se fosse um jorro vindo do alto e três vezes seguidas o fez
cair dentro do cântaro, derramando-o novamente sobre as lajotas sem
perder uma única gota. Ninguém dizia uma só palavra. O
encantamento se refletia em seus rostos, e o silêncio era tanto e tão
ressentido pela falta dos ruídos entrechocados, característicos das
obras de construção, que os capatazes entraram para ver o que
acontecia. Mandaram chamar o prelado e este convocou as
testemunhas oficiais do bispado, as quais legitimaram a maravilha ao
comprovar que ninguém se contradizia na descrição do milagre e que
sequer o piso da igreja se apresentava molhado.
Todas as religiões compartilham a certeza de que os milagres
manifestam o poder divino, ainda que desde a Antigüidade existam
homens e mulheres dotados de certo carisma ou alento sobrenatural
para conhecer em sonhos, visões ou estados meditativos aquilo que não
é permitido à consciência comum. Há também pessoas capazes de
realizar prodígios curativos ou participar de fenômenos físicos, mentais
ou psicológicos que, à falta de uma explicação racional e segundo o
caráter de cada episódio, vinculam-se com o mundo da magia, do
iluminismo ou com diversas expressões do sagrado.
Em nossa tradição católica, a divindade se manifesta por
mediação de uma corte de santos — cujas imagens, em sua maioria
introduzida pelo clero colonial, povoam os templos mais antigos - e
depois, em graus ascendentes de hierarquia, por meio das invocações
marianas, de São José e do Crucificado, os quais assumiram diversas
designações em nossa cultura mestiça. Dizer que determinada Virgem
é mais milagrosa do que outra corresponde apenas a uma manifestação
da fé regional, já que até para o Vaticano existem condições para se
definir e avalizar um milagre. Primeiro, é necessário que haja
testemunhas e propagadores do evento que, independente das
circunstâncias, deve ser considerado algo muito além do ordinário e do
possível, ademais de não poder apresentar quaisquer vínculos causais.
Em segundo lugar, devem-se adicionar provas de que o acontecido
corresponde à linguagem sobrenatural e ao poder da divindade. E,
finalmente, os especialistas examinam em um júri legalmente eleito os
registros posteriores que sejam dignos de confiança. Daí os prodígios da
Virgem de Zapopan terem sido considerados como tais até início do
século XVII, quando começaram a ser observados com o propósito de
consignar oficialmente suas maravilhas; ainda assim é pobre o
histórico confiável que sustenta seus atributos, por mais valiosa que
seja a certeza pessoal dos crentes, para quem basta o consentimento
de seus rogos.
E ao terreno da fé correspondem as proclamações mais
entusiásticas sobre a força de suas bondades, se bem que algumas
histórias não deixem de revelar o poder persuasivo das esmolas, tal
como ocorreu no dia em que, seguindo o costume de tirar a Virgem
de Zapopan para "dar uma volta" (como se afirma ser de seu agrado),
chegaram seus carregadores às minas de Jalopan justamente quando
se formava uma tempestade furiosa, dessas típicas de Jalisco, e não
obstante a devastação provocada por raios e inundações, o caminho
por onde ela passava com toda a sua companhia ficou intacto.
Inclusive cruzaram o rio sem que o relicário se molhasse, e as águas
se apaziguaram em seu curso normal durante a travessia, como se lhe
prestassem tributo.
Em outra ocasião, passando por Zacualpa, a Virgem de Zapopan
ressuscitou uma recém-nascida que a mãe aflita lhe apresentava nos
braços enquanto acompanhava a procissão. No trapiche de Sancho de
Rentería, perto de San Cristóbal de la Barranca, devolveu os
movimentos a uma índia inválida há vários anos, chamada Isabel
Magdalena; pouco tempo depois, já em San Cristóbal, local assolado
por uma epidemia fatal que fazia sangrar abundantemente pelo nariz a
maioria de seus habitantes, ela entrou de visita em casa de Gaspar
Pérez, onde agonizavam seus familiares e seus criados, e depois de
alguns minutos deixou a todos curados e sãos.
Uma moradora vizinha a Guadalajara levou a Zapopan seu
marido de pouca fé, chamado Francisco de Mendoza, no domingo, de 11
de novembro de 1646, ocasião em que mandaria benzer uma réplica da
imagem que haviam adornado para devotá-la em seu oratório doméstico.
Enquanto os parentes se distraíam lendo as inscrições de ex-votos nas
paredes, um sobrinho de 6 anos, chamado Miguel, caiu morto no chão,
talvez em conseqüência de algum tipo de ataque. Dona Antonia de
Arbides, sua tia, colocou sobre o corpo inerte a imagem recém-
abençoada; passado certo tempo, a criança deu sinais de vida, o que
provocou a total transformação religiosa do antigo descrente. O próprio
jesuíta Francisco de Florencia acreditou e difundiu o acontecimento
que, após comprovação jurídica, foi aceito tanto pelo vigário de
Zapopan, dom Diego de Herrera, como pelo bispo Colmenero, em 11
de novembro de 1653. O caso foi apresentado ao Santo Concilio
Tridentino para que uma comissão dupla revisasse os pormenores,
uma vez que freqüentemente se levantavam dúvidas em torno do fato,
demasiado próximo a outro evento que o precedeu: o das duas velas
negras que se branquearam completamente tão logo dois índios as
acenderam ao pé do altar. De seus tocos fizeram-se relíquias que
também operaram prodígios entre seus possuidores, o que permitiu
confirmar ambos os registros.
A Virgem ainda devolveu a visão a Maria Ramírez, natural da
cidade de Guadalajara, e ela, agradecida, percorreu de joelhos os
caminhos que levavam ao santuário, a fim de pagar sua promessa. O
bispo Colmenero deixou por escrito o caso de um rapaz cuja cabeça
foi destroçada por uma carreta, deixando-o morto ali mesmo, no meio
da rua; quando o levaram até a imagem sagrada, esta lhe recolocou no
lugar os olhos, que tinham ficado fora das órbitas, e o ressuscitou em
seu santuário sem deixar sinal de dano em sua visão. Asseguram
também que apareceu três vezes a um persistente suicida que,
agoniado pela tristeza de sua existência, pretendia se jogar do alto do
barranco de Oblatos. Na última tentativa, não somente foi impedido
pela Virgem de Zapopan como esta lhe mudou a maneira de ser, aliviou
sua melancolia e, através da fé, permitiu-lhe recomeçar uma vida tão
feliz que muitos anos depois viria a morrer em paz e satisfeito por ter-
se conduzido com correção, graças aos favores recebidos.
Diligente nas curas e amante da vida orientada pela retidão, a
Virgem de Zapopan se apresenta nas horas decisivas - tal como dizem
que faz também o Senhor São José, em nome de quem são rezadas
novenas nas primeiras sextas-feiras de cada mês. É publicamente
reconhecida por estender sua misericórdia àqueles que vão enfrentar
a morte, mesmo que não apresentem sintomas de enfermidades letais.
A fim de que se preparem de maneira cristã para esse momento, ela
avisa seus fiéis devotos com antecedência por meio de umas
pancadinhas, perceptíveis no interior de seu sacrário. Também comete
as travessuras de sempre, virando-se três vezes para trás, para um
lado e para a frente, na direção da pessoa para quem dá o sinal, a fim
de que não haja dúvida de que seu fim está próximo. Assim registrou,
em 1624, o já referido Gaspar Pérez em um dos ranchos próximos ao
povoado de Zapopan, onde testemunhou que, em outra de suas
visitas itinerantes, a imagem mudava de posição para indicar ao índio
Francisco Hernández, que caminhava imediatamente atrás do andor
na procissão, que seu fim era iminente. Sem tristeza nem agonia,
aquele homem morreu na santa paz de Deus quinze dias depois de ter
recebido esse aviso.
Entre os cristãos, morrer bem é a recompensa do bem viver.
Acometida de grave enfermidade, uma senhora de Guadalajara pediu
que fosse rezada uma novena em favor de sua alma ao vigário dom
Diego de Herrera, que, ao celebrar a terceira missa, ouviu desde o altar
as três pancadinhas provenientes do sacrário. Antes de se completarem
nove dias, a senhora em questão faleceu resignada, depois de receber os
sacramentos. No ano da epidemia mortal, 1652, a Virgem de Zapopan
golpeou reiteradamente e se movimentou muitas vezes, virando-se para
a direita e para a esquerda; depois fez escutar uma palmada em seu
altar como sinal de advertência daquela grande mortandade. Ordenava
avisos de cinco em cinco ou de seis em seis, em plena missa e com
movimentos concomitantes do sacrário, de tal forma que atraía a
atenção de todos os presentes à cerimônia; e logo os fiéis apontados
sabiam que a morte estava a lhes rodear, e que deviam se dispor a
entregar suas almas.
Houve até uma ocasião em que as dobradiças do relicário se
abriram em meio a grande estrondo, quando uma criada mulata de
nome Pascuala se antecipou a seus amos a fim de orar à Virgem por
sua saúde, já que estava sendo acometida por uma terrível dor no
ventre. Consciente de que algo terrível estava para acontecer, o vigário
lhe disse que se conformasse com a vontade de Deus, porque era
óbvio que alguma tribulação estava prestes a acontecer, se não para
ela, para aqueles que a rodeavam. Na tarde de 30 de dezembro de
1653, a própria Pascuala adoeceu gravemente, mas não morreu. Mas
em um breve espaço de tempo foram morrendo uma filha da família de
seu amo, o próprio Juan de Ribera Piedra, sua esposa e o resto de
seus filhos, acometidos por um surto cruel de tifo; faleceram também a
índia que os havia acompanhado em sua visita ao santuário e até uma
filha da própria mulata Pascuala. Assim que, em Guadalajara, correu a
notícia de que em casa dos Riberas havia peste, os vizinhos fugiram e
se refugiaram em outros bairros. Dom Diego de Herrera, que
testemunhara aquele sinal, confessou os enfermos; e num espaço de
quinze dias morreu grande parte dos que haviam sobrado da família e
da criadagem, o que confirmou a fama de avisadora de Nossa Senhora e
de suas advertências por meio de batidinhas ou rangidos de sua
vidraça.
Durante o século XVIII, alguns jesuítas, como o padre Cristóbal
Gutiérrez, testemunharam a continuidade desse costume. Por volta de
1740, enquanto celebrava a missa, ele ouviu um estalo que parecia
indicar o trincar de um dos cristais do nicho sagrado. Pouco depois
veio ter com ele dona Maria de Mazariegos, que também escutara o
estampido, dizendo que imediatamente sentiu que estava para morrer.
Teve tempo apenas de legar suas jóias à Virgem e de apaziguar seu
espírito, pois em um prazo de quinze dias esse mesmo jesuíta estava
presidindo seus funerais.
Entre pequenos e grandes detalhes, todos nós nos deparamos
alguma vez com fatos que, por incredulidade, atribuímos à ciência, à
casualidade ou a um desenlace natural que teria mesmo de ocorrer por
força do destino. Eu mesma, enferma da epidemia de poliomielite que
afetou centenas de crianças pequenas em Guadalajara em meados da
década de 1950, fui completamente curada por mediação de Nossa
Senhora de Zapopan, depois de padecer desse mal durante meses e de
ficar com as pernas paralisadas. Agradecido, meu pai peregrinou
descalço de Guadalajara até o santuário, e aprendi desde então que,
acima da habilidade dos médicos, existem curas extraordinárias que só
podem ser atribuídas ã graça divina.
No devido tempo, já adulta e sem seqüelas da doença que deixou
graves lesões em muitos de meus contemporâneos, visitei o santuário
de Zapopan acompanhada outra vez por meu pai. Durante longo
tempo permaneci contemplando a diminuta figura daquela Senhora
afetuosa. Era uma tarde ensolarada de junho, a nave do templo estava
fresca e senti um estremecimento súbito que me fez entender porque,
em meu ofício de escritora, o tema do sagrado sela a minha busca
pela luz nas entrelinhas da palavra.
1 Cuauhtémoc ou Guatimozín foi o último índio asteca a governar o México.
Defendeu bravamente a capital Tenochtitlán contra o conquistador espanhol Hernán
Cortés, até a queda da cidade, em 1521. Em 1525 Cortés mandou matá-lo por
acreditar que o chefe asteca tramava contra os espanhóis. É considerado um herói
nacional mexicano, e os ídios admiram-no como um símbolo de sua luta pelos direitos
civis. [N.T.]
2 Charro: ginete mexicano que veste um traje especial composto por jaqueta curta e
calça justa, camisa branca e sombreiro. China poblana: figura popular em meados do
século XIX na cidade do México, a china converteu-se em foco de atração dos
homens de todas as classes sociais por sua maneira chamativa de se portar, com
seus vestidos coloridos e sua conduta desenvolta. Ficaram conhecidas como chinas
poblanas, ao que parece, por conta de um desvio lingüístico e de uma referência a
certa china que morreu na cidade de Puebla, envolta em ares de santidade. Ficou
conhecida também como o belo par do charro, e ambos se tornariam um dos símbolos
da identidade nacional mexicana. [N.T.]
Nossa Senhora
da Saúde

A mais nobre vontade de organizar a vida americana é inseparável da


figura de Vasco de Quiroga e, juntamente com a dele, a de alguns
humanistas como Alonso de la Vera Cruz, que fincaram nestas terras a
melhor herança das aulas de Salamanca. Esses homens, heróis
indubitáveis do conhecimento educado, empreenderam a difícil tarefa
de incorporar os mexicanos ao universo da escrita e dos livros,
justamente na hora em que, com a ascensão imperial da Espanha,
também a língua, a literatura e as idéias alcançavam sua mais perfeita
expressão. Graças à tenacidade dos homens de pensamento e de ação
que lideraram a aventura espiritual do Novo Mundo, os nativos mais
afeitos deram um salto da cultura oral, própria do estado superior da
barbárie, para a filosofia e o direito; e aqui se pôde estabelecer, a
partir de suas fundações acadêmicas, a distinção entre a multidão de
batizados que se convertia ao cristianismo pela via da devoção dirigida
e aquelas individualidades sobre as quais descansaria a obra do
espírito.
Desde então e até nossos dias pode-se afirmar que, sob a dupla
orientação da fé católica e do helenocentrismo, conforme Alfonso Reyes
considerou as raízes de nossa formação vital, o México ficou dividido
em duas partes inconciliáveis que ainda nos distinguem: uma
correspondente à maioria que se inclina emocionalmente à devoção
mariana a partir do batismo; outra, a minoria formada no
conhecimento, que entende, cria, participa e critica sua realidade. Se
por um lado Vasco de Quiroga procurou educar uma população
intermédia entre o saber laborioso, a ordem comunitária e a
observância cristã, do outro a estirpe intelectual de Alonso de la Vera
Cruz, Bartolomé de las Casas, frei Diego Durán ou frei Bernardino de
Sahagún, entre os mais destacados, cultivou a semente intelectual
sem a qual nosso destino se teria reduzido a uma conquista sem
esperança de salvação.
E sendo um eixo entre o sagrado e o profano, além de ponto de
partida de uma expressão nascente nos reinos da Nova Espanha, o
culto mariano alcançou a mais alta importância histórica. Basta
inquirir o modo como se foram arraigando seu culto e a resposta
popular aos ditames da fé para se espantar diante do minucioso
cuidado demonstrado pelos especialistas em relação a esse tema, sem
distinção de fontes seculares ou clericais. Mal se poderia entender
nossa conjuntura sem o exame da evangelização e de suas
peculiaridades sincréticas. Contudo, a realidade religiosa, com sua
carga de templos, de numerosos preconceitos e sinais de identidade,
adquiriu uma dinâmica totalizadora e ao mesmo tempo marginal ao
desenvolvimento social e político desses povos.
Paradoxalmente, e de maneira diferente da que é adotada pelos
estudiosos contemporâneos, Vasco de Quiroga logo compreendeu a
intensidade religiosa dos aborígines. Resultou daí que, com o
simbolismo mariano no centro de sua obstinada atuação, ele
empreendeu uma complexa missão civilizadora a partir da certeza de
que a colonização deveria ser pacífica, pois assim se conformava ao
evangelho e também à bula papal de 1530 que, desde o princípio,
proibia a escravidão, embora esta tenha triunfado no final. Não
obstante todos os elementos em contrário, ele argumentava que, assim
como às obras de paz e de amor se opõe a má vontade, aos impulsos
violentos se deve interpor o direito natural da defesa.
Esse bom frade não conseguiu fazer prevalecer seu ponto de vista
nem chegou a se distinguir por suas proposições teóricas, como
Bartolomé de Las Casas; porém, tendo sido designado ouvidor da Nova
Espanha em 1530 e, sete anos depois, bispo de Michoacán, Vasco de
Quiroga foi nestas terras o humanista mais apaixonado pelos ideais do
Renascimento europeu. Nisso constitui a sua originalidade: em preparar
a obra civilizadora mais importante da colônia por meio de seus
hospitales-pueblo [hospitais-aldeia]. O primeiro a ser criado foi o de
Santa Fé, construído a duas léguas da cidade do México; posteriormente
surgiram alguns em Michoacán, como o de Atamataho, e o Santa
Marta, em Pátzcuaro. Foi neste último, em sua imprescindível capela,
que se originou o costume mexicano de venerar Nossa Senhora e de
cultivar sua presença benéfica, sempre protetora do desamparado e
maternal a ponto de conceder graças inconcebíveis ante o rigor que
avassalava os vencidos.
Sendo um pacifista pertinaz, Quiroga recorreu à devoção mariana
para difundir os pontos mais fundamentais da fé com o auxílio de
cerimônias litúrgicas que incluíam procissões semanalmente realizadas
por grupos alternados de índios convertidos, aos quais ensinou a
cantar louvores a Deus e à Sua Mãe. Ele mesmo desenhou uma peça
de 1,25 metro de altura e mandou fazer a imagem de Nossa Senhora
em pasta à base de cana de milho amassada, cuja roupagem não
podia ser modificada por ter sido confeccionada em bloco do mesmo
material que, seguramente, o próprio bispo descobriu nestas terras e
soube aproveitar para substituir os trabalhosos acabamentos da arte
européia.
Com o passar do tempo, 125 anos depois, o aspecto modesto
daquela imagem tentou seus sucessores em Michoacán a mudar-lhe o
desenho, a proteger a representação com vernizes, pinturas e
dourados e a adaptar o corpo de Nossa Senhora para uso e troca de
vestes de tecido, como exigia o estilo barroco que já se desenvolvia com
esplendor nos principais centros urbanos e religiosos.
Reconhecida por seus prodígios manifestados desde muito cedo,
esta é a imagem que, ao ser entronizada pessoalmente por dom Vasco
de Quiroga para o amparo dos enfermos no hospital de Santa Marta, em
Pátzcuaro, passou a ser chamada Nossa Senhora da Saúde; e é a
mesma que, quase totalmente modificada, salvo cabeça e braços,
permanece em um santuário próximo, edificado em época posterior e
no qual até hoje continua a ser venerada.
Tanto por suas aspirações religiosas como pela transformação
que operou mediante o ensino fundido ao trabalho artesanal e à
prédica - tido como exemplo de uma doutrina de amor -, Tata Vasco,
como era chamado pelos índios, aventurou-se em outra versão
peculiar da cristandade que não prosperou; mas que acabou
assentando as bases para desenvolvimento de princípios do
humanismo crítico, dos quais derivaram a independência e a luta por
direitos e liberdades.
Reza a tradição que em fins do século XVII, em 1690, para
surpresa dos dois afamados artistas escolhidos para restaurar o corpo
da imagem, a Virgem começou a transpirar na sacristia, como se
sentisse vergonha e aflição ao ser tocada por mãos profanas. Depois de
lhe serem oferecidas as Ladainhas Lauretanas, determinadas pelo prior
Bartolomé de Aldana ao se inteirar do acontecido, somente mãos
sacerdotais puderam realizar o projeto de embelezá-la e buscar-lhe
roupagens e jóias. Dizem também que com as sobras fabricaram-se
pequenas réplicas para culto doméstico, e que de cada pedaço de pasta
de milho saíam muito mais reproduções do que se havia calculado
porque Nossa Senhora se multiplicava, qual os pães do evangelho.
Atualmente ela pode ser vista coroada e cercada de uma grande
auréola. Veste uma rica túnica branca bordada em ouro e um manto
azul profusamente recamado, também com fios de ouro. De cabelos
longos e bem penteados, sua tez branquíssima contrasta com as linhas
de suas sobrancelhas e o olhar piedoso que acentua sua atitude
protetora. Além de colares e brincos, inúmeros anéis reluzem de seus
dedos, assim como o cetro precioso que seguramente lhe foi
acrescentado quando seu guarda-roupa foi enriquecido com joalharia
procedente de algumas heranças. Típica de invocações relacionadas
com o triunfo sobre os infiéis, referido no trecho do Apocalipse que
fala sobre "A mulher e o dragão", ela evoca o magnífico sinal que
apareceu no céu: uma mulher revestida de sol com a lua abaixo de
seus pés e trazendo na cabeça uma coroa com doze estrelas, que os
teólogos relacionam indistintamente com a Igreja Católica e com a Mãe
de Cristo.
Acima de qualquer outro símbolo inseparável das imagens de
Nossa Senhora, sobre a Virgem da Saúde recaem os mais altos ideais do
humanismo cristão e a precoce devoção de uma província que acedeu
com facilidade à linguagem da fé, seja porque Michoacán não se
distinguiu pela resistência contra os espanhóis, seja pelos trabalhos
ali realizados por Vasco de Quiroga em favor de seu anseio por um
mundo perfeito, singelo e esperançoso de recobrar a virtude da Igreja a
partir da vida indígena. E mesmo sendo importante - poder-se-ia dizer
figura central dessa corrente redentora da conquista espiritual da
América -, até o presente não foi devidamente estudada a presença
mariana nos princípios da evangelização, durante sua consolidação e
até nossos dias, quando se pode falar de uma nação cristianizada mas
situada à margem das letras no que se refere ao registro pontual dos
acontecimentos.
Pelos passos populares de Nossa Senhora da Saúde se podem
entrever as partes menos conhecidas de uma utopia espiritual e
material tão grandiosa que, ainda hoje, os municípios vizinhos a
Pátzcuaro seguem vivendo dos artesanatos e dos ensinamentos
inalterados de dom Vasco; porém, acima disso tudo prevalecem o ideal
de fé não cumprido, uma proposta civilizadora sem precedentes e, junto
às disposições morais e jurídicas de frei Bartolomé de las Casas, a mais
alta conquista que o humanismo espanhol foi capaz de realizar na
América.
Mal se poderiam relacionar os prodígios de Nossa Senhora da
Saúde sem mencionar o maior de todos: sua assistência no pequeno
nicho do hospital idealizado por Tata Vasco, modelo de organização
social que foi depois estendido a outras províncias, como Jalisco,
mesmo que já não conservasse suas intenções originais de consolidar
uma comunidade em perfeita harmonia. Verdadeira patrona do
humanismo na América, ela só não é assim admitida por falta de
imaginação ou por excesso de indiferença erudita. Reconhecê-la
eqüivale a evocar o instante em que para a região daquele lago mítico e
grandioso - agora quase extinto - convergiram em seu culto as duas
vertentes espirituais que inspiraram em Tata um projeto criativo de
vida perfeita: A Utopia, de Thomas Morus, e o estado de inocência dos
índios chamados a redimir a virtude perdida na Europa. Índios
consagrados ao bem pelo favor de ensinamentos que, partindo do
princípio da tabula rasa, somente se inclinariam à racionalidade em
equilíbrio com a pureza de sua cultura mestiça.
Entre as contribuições mais valiosas de Tata Vasco, exemplo da
mentalidade renascentista que pleiteava um mundo novo, livre das
impurezas que impediam reformar até mesmo o clero, conta-se o
projeto social que idealizou sob a forma de hospitales-pueblo, essa
original síntese de cooperativas quiméricas que, unidas à experiência
do trabalho comunal que se praticava há tempos entre grupos
indígenas, fizeram-no acreditar que a evangelização persuasiva,
virtuosa e pacífica não se contrapunha aos propósitos platônicos
expressos na República. Ao esmiuçar o fundamental de sua tese,
assegurou que, tornando a bondade compreensiva um hábito e
mediante o trabalho e a agricultura planificados, segundo a lição
deixada pelos primeiros cristãos, poder-se-iam não somente incorporar
os índios com civilidade ao estado religioso de natureza como levar a
cabo, por um lado, as melhores proposições das Saturnais de Luciano;
e por outro, as máximas diretamente referidas na Utopia pelo influente
Thomas Morus.
Típico produto do humanismo espanhol, inspirado pelas lições
de Francisco de Vitoria em San Esteban de Salamanca e inseparável de
referências críticas como as apresentadas por Domingo de Soto, Juan
de La Pena, frei Luis de León, Melchor Cano e Alonso de la Vera Cruz -
indubitável referência intelectual de todo o grupo -, a outra vertente
não pragmática se desenvolveu de permeio às alegações jurídicas,
políticas e religiosas sobre a duvidosa natureza humana dos vencidos,
tese esta que ensejava a mais abjeta batalha em favor da escravidão e
da exploração indiscriminada das riquezas da terra.
Frei Antonio de Montesinos, em seu memorável sermão do
quarto domingo do Advento, pregado na atual cidade de Santo
Domingo a 30 de novembro de 1511, leu o trecho do evangelho de São
João que relata a cena em que emissários fariseus foram ao encontro
de João Batista a fim de lhe indagar quem era ele, ao que ele
respondeu: "Eu sou a voz que clama no deserto...". Partindo dessa
passagem, a prédica de Montesinos culminaria na célebre pergunta:
"Então, por acaso estes não são homens?"; e mediante esse
questionamento ele fundaria uma combatividade espiritual tão lúcida
e tão rica de proposições que, certamente, se poderia afirmar que ali
mesmo surgiu a dualidade entre o cristianismo emotivo, que difundiu
a liturgia sob a égide da veneração mariana; e o cristianismo crítico,
protagonizado pelos homens de razão, não obstante sua condição de
sacerdotes.
Por meio dessa última vertente se fortaleceu uma espiritualidade
entrelaçada de crítica - caso de frei Bartolomé de Las Casas -, ao passo
que, com a expansão do batismo, crescia a piedade substitutiva da
doutrina, como ocorreu quase de maneira absoluta entre os povos da
Nova Espanha. É preciso frisar que era bem mais simples para os
evangelizadores comuns apelar para o recurso da misericórdia do que
persuadir teologicamente por meio de argumentações monoteístas as
populações que estavam tão firmemente enraizadas no politeísmo e na
idolatria.
A maior prova da inteligência de Vasco de Quiroga foi ele ter atinado
com um tipo de cristianismo social que, auxiliado pela figura maternal
de Maria e inspirado em ensinamentos platônicos relativos à idade do
ouro, levou-o a conceber seus hospitales-pueblo precisamente aqui, a
fim de "elevar a vida indígena a metas de virtude e de humanidade
superiores às européias".
Centrada no culto a Nossa Senhora da Saúde, essa visão da
cultura em estado de inocência já é inseparável da memória histórica
de Vasco de Quiroga. Observador diligente, percebeu que os aldeões
fabricavam figuras com uma mistura de medula de cana de milho
seca, moída e prensada com uma espécie de cola extraída do bulbo de
uma orquídea comum nos bosques michoacanos, e que essa matéria
original não era usada em nenhuma outra região. Desse modo, ao
ordenar a confecção da imagem precisamente com esse material,
acabou instituindo o primeiro artesanato entre os vários que haveriam
de proliferar por meio daquelas mãos laboriosas.
Sua Michoacán primordial é o exemplo perfeito daquilo que era
possível para o ideal de cristianização em uma colônia que não
demonstrasse resistência agressiva. Aquela figura episcopal, sempre
desejosa de incentivar a virtude ordenadora e criativa, pertence ao
quadro dos grandes humanistas do século XVI. Combateu a violência e
confiou na alma e na razão dos índios para organizar com eles e a
partir do México a mais audaz empresa utópica de Thomas Morus.
Graças à sua inspiração foi possível fundar dois grandes hospitais
experimentais que não eram exatamente curativos, mas sedes de
civilização, de doutrina e de trabalho, tanto em Santa Fé como em
Michoacán.
Foi por essa fenda religiosa que se infiltrou Nossa Senhora da
Saúde. Suas maravilhas, coincidentes com curas súbitas e ajudas
inesperadas, consistem de eventos menos tangíveis que os de outras
invocações, contudo perduráveis por estarem plenamente integrados ao
gosto da devoção popular. Não lhe faltam relatos para avalizar de sua
presença nem motivos que justifiquem a fé que lhe dispensam os
milhares de peregrinos que açodem a seu santuário em busca de
consolo. E é isso que faz de Pátzcuaro um desses povoados que
guardam a magia da intemporalidade, o selo de uma antiga humildade
aborígine e a evidência de lições de vida que ainda são praticadas como
normas de conduta. Ali se pressentem a sombra benéfica do Tata e
mais além, em Tiripitío, o espectro de um Alonso de la Vera Cruz em
solidão reflexiva.
Desde que foi proclamada Padroeira de Pátzcuaro, em 1737,
preponderou a ação do "clero das esmolas" com sua maneira acirrada
de acumular fundos para construir um santuário de paredes e
abóbadas de alvenaria. Também triunfou o costume de fabricar
réplicas da Virgem com o intuito de levá-la a peregrinar com objetivos
variados, especialmente econômicos; e a despeito de terem grassado
nestas terras as impurezas abominadas pelo alento renascentista dos
grandes reformadores, algo de muito profundo permaneceu no
espírito religioso dos novos cristãos, talvez a piedade, o entendimento
inerente à misericórdia, a fidelidade ao princípio da esperança que
tanto distinguiu a pregação de Tata Vasco.
A Virgem da Saúde, por seu lado, também fez por merecer a sua
inscrição nas preferências devocionais. Tal como o registrado no Zodíaco
Mariano, acredita-se que quando o padre Carreño mandou que fossem
retiradas algumas contas de vidro que, desde 1731, adornavam a
imagem em forma de gargantilha, ele as repartiu entre paroquianos da
cidade. Um dos beneficiários arrumou-as em sua escrivaninha envoltas
em papel e não se lembrou mais delas, pois eram de pouco valor. Certa
noite, tendo caído doente, o homem mandou pedir algo de que
necessitava e que se encontrava em uma de suas gavetas. Quando esta
foi aberta, o papel que envolvia os vidrilhos se rebentou e uma das
contas chispou até seu leito, como se fosse um raio, atingindo-lhe o
rosto. Entre os lençóis encontraram-se os pedaços do invólucro com o
restante das contas. Tidas agora como relíquias preciosas, as pedras
foram inseridas em um rosário; mas tão logo foram engastadas, todas
as contas fundiram-se e foi impossível reconhecê-las.
Em meio a festividades suntuosas, com um rastro de ex-votos e
reconhecimentos locais à sua generosa tutela, celebrou-se a 8 de
dezembro de 1899 a coroação canônica de Nossa Senhora da Saúde -
decretada em 5 de abril de 1898 por um breve do papa Leão XIII
confiado aos bispos de Michoacán, Chihuahua e Querétaro. Pouco
depois, por meio do breve de 29 de junho de 1907, o papa Pio X elevou
a igreja paroquial de Pátzcuaro à categoria de igreja colegiada de Nossa
Senhora da Saúde, e sua consagração ocorreu com grande solenidade
no dia 8 de janeiro seguinte. Em atenção a seu culto, a igreja
colegiada foi por sua vez elevada à dignidade de basílica menor pelo
papa Pio XI por meio do breve de 25 de junho de 1924; o mesmo
documento declarou a Bem-Aventurada Nossa Senhora da Saúde
principal padroeira do arcebispado de Morélia.
Em 20 de dezembro de 1962, um fanático alvejou a imagem por
dez vezes com um máuser a curta distância, porém «ia permaneceu
intacta. Além desse prodígio, repete-se até hoje que, em todas as
Sextas-Feiras Santas, escuta-se desde o fundo do lago o dobre de um
sino misterioso que recorda a morte do Redentor; diz-se que um
feiticeiro, na época da Conquista, roubou-o da ermida dos frades como
forma de vingança e seguiu arrastando-o até a margem do lago. Tendo
despertado a ira de Deus, e para terror dos aldeães, o índio se afogou
com sino e tudo para fazê-lo soar anualmente em sinal de advertência.
Há códices que relatam o fato de que quando dom Vasco mandou
buscar por várias canoas, em Tzintzuntzan, os novos móveis para sua
recém-instituída sede episcopal, os índios incumbidos da tarefa
afundaram com uma das embarcações, e que assim foi parar no fundo
do lago o referido sino cuja lenda completa o mistério dessa Virgem,
curandeira de almas e de corpos. O certo é que Nossa Senhora da
Saúde é acompanhada pelo mistério de uma utopia que, se tivesse se
convertido em milagre, bem poderia ter transformado a história do
cristianismo e da colonização na América.
Teresa de Jesus

Sobre uma colina às margens do rio Adaja, Ávila se ergue por entre a
crueza das terras castelhanas. No pequeno planalto, retalhado pela
aridez de séculos e pelo mistério que entranha um Caminho de
Perfeição repleto de árvores desnudas e de uma sensação de
profundidade que penetra até os ossos, pressente-se a distância
aquela monja carmelita que falava com Deus tratando-o por Tu. Sente-
se aroma de pão e de lareira acesa quando, sobre a paisagem
descoberta, se estendem as pedras de sua velha muralha e do casario
dos anos austeros em que se cultivou a riqueza mística em almas
plenas de humanidade. Ao longe, entre mãos cautelosas e o olhar
desconfiado que distingue o camponês espanhol, respira-se o centro do
universo, aquele no qual se banhava o espírito de Teresa quando saía
de dentro de si mesma para transbordar de ardor durante sua entrega
sem reservas aos mais altos mistérios do coração.
O tempo conservou a roupa escura, talvez imposta pelos mouros
aos costumes da península e que, por força das renúncias do corpo e
de séculos de luta diária com o enxadão e contra os rigores do clima,
acabou por ser assimilada à tempera dos camponeses. Então o
horizonte árido se revela propício ao recolhimento do espírito e às
batinas negras que perambulam vigiando as consciências. Ávila é
silêncio, uma inquietação que começa nos madeiros do crucificado,
atravessa seus recintos sagrados e, ao afastar o clamor dos antigos
comuneiros1, vai-se transformando em palavra até se elevar a oração.
Em suas ruas, a procissão cotidiana dos filhos de uma dor estranha e
certa austeridade contrapõe as notícias da descoberta do ouro
americano com os memoráveis arroubos da santa Teresa de Jesus.
A monja Maria de São José, em seu Livro das Recreações,
escreveria:

Era uma santa de estatura mediana, mais para alta que para baixa. Em sua
mocidade teve fama de ser muito formosa, e mesmo na maturidade ainda
demonstrava sê-lo. Seu rosto não era nada comum; tinha feições
extraordinárias, de tal modo que não se poderia descrever como redondo nem
aquilino; era formado por três partes de iguais proporções. A testa era larga,
simétrica e muito bela; as sobrancelhas, de coloração louro-escura, largas e
um tanto arqueadas; olhos negros, vivazes e arredondados, não muito
grandes mas extremamente bem desenhados. O nariz, redondo e retilíneo
até o meio dos olhos, afinava até igualar com as sobrancelhas, formando um
harmonioso sobrecenho. Era mais corpulenta do que magra, mas em tudo bem
proporcionada; tinha mãos muito lindas, embora pequenas; no rosto, do lado
esquerdo, tinha três pintas... formavam uma linha reta entre elas,
começando pela maior logo abaixo da boca, a outra entre a boca e o nariz e a
última no próprio nariz, mais para baixo do que para cima. Em tudo era
perfeita.

Perfeita, fascinante por sua obra espiritual e por sua pena,


Teresa de Jesus respondeu da seguinte maneira aos atributos com que
a distinguiam:

Três coisas disseram de mim no decorrer de minha vida: que era, quando
moça, bem-apessoada, que era discreta, e agora dizem alguns que sou santa.
Nas duas primeiras acreditei por algum tempo, e me confessei por haver dado
crédito a essas vaidades; mas em relação à terceira nunca me deixei enganar
tanto para alguma vez ter acreditado nela.

Desde o momento em que ela mesma datou sua conversão


espiritual, em 1555, Teresa de Ávila entregou-se de corpo e alma a
cultivar suas graças extraordinárias. Reformou a regra dos carmelitas de
ambos os sexos até tornar seus pés descalços símbolos do retorno a
humildade essencial exigida pela simplicidade de seu profundo sentido
apostólico. Em seu Livro da Vida, escrito de próprio punho, descreveu sua
trajetória para Deus em belas passagens que não apenas revelam os
contrastes materiais de seus estados de arrebatamento, mas o clima
espiritual de uma Espanha que se debatia entre o furor causado pelo
ouro provindo das colônias e a busca da espiritualidade, que acendia a
paixão religiosa de nada menos que três das maiores vozes da
religiosidade espanhola: ela mesma, São João da Cruz e frei Luis de
León.
É precisamente o calor da teologia mística, aquela que se respira
em Castela e que faz sentir que o tempo se detém em Ávila, que evoca
também os contrastes da intolerância desse século. Fundem-se ainda
em suas paredes o sacrifício dos perseguidos, os pregões da
Inquisição e o fervor de alma que se dispersa por meio dela, sua
aspiração à solidão com Deus. Trata-se, talvez, de um anseio de
divindade que, não obstante a dor que distingue essa época de
perseguições e renúncias, persiste no isolamento de seus limites
amuralhados e na palavra consagrada por santos e poetas.
Nenhuma morada se iguala ao castelo interior. Ávila é Teresa de
Jesus, sua memória remanescente nas Carmelitas da Encarnação e uma
fecunda atividade espiritual começada em seu primeiro convento
reformado, o de São José, recinto simbólico que parece repetir as
palavras de Antonio Machado:

Castela miserável, ontem dominadora;

envolta em seus farrapos, despreza tudo que ignora...

Ávila, mais do que Madri, Segóvia ou Salamanca, é o símbolo


inequívoco da hispanidade católica, contraste de sólidas influências
culturais e herança poderosa dos mistérios da fé. Pedra e ouro se
combinam em espaços demarcados pela sanção e pela dor, pela
aspiração inconfessável do espírito. Cidade pequena, resguardada por
muralhas medievais, ensombrada pela bruma e pelos vestígios
indeléveis do jejum, do corpo castigado pelos cilícios e pelas marcas que
deixam os arbustos espinhosos na argila.
Em Ávila há monastérios, relicários, orações, indulgências e
lendas. Em sua direção apontou o dedo da Santa, de sua Teresa de
Jesus, como recordação de sua obra infatigável, como advertência que
intimida desde uma certa urna que repete: "o entendimento, se se
entende, não se sabe como entende; quando menos, não pode
compreender nada do que não entende". Este sinal está para além da
razão e revela o horror que os místicos tiveram ao pecado da soberba
intelectual. Somente assim adquire sentido a entrega plena, a
submissão cega a esse Deus de luz que a ninguém é permitido vis-
lumbrar. Não obstante, foi ali que Teresa de Cepeda y Ahumada
começou a experimentar seus estados de arrebatamento, seus
momentos de exaltação alucinante e de enfermidade física que
pareciam depurar ainda mais sua aguda inteligência e seu talento
criador.
O apetite indomável que inquietou os místicos de todos os tempos
está contido na convicção de Teresa de que não era "pobre de espírito",
ainda que o tivesse professado, mas "louca de espírito", um estado de
ânimo que se vincula ao êxtase santo que consegue erguer-se sobre si
mesmo, ir além da "inteligência da alma" até alcançar o calor intenso da
teologia mística. Como disse Francisco de Osuna: a alma incendiada,
"quando começa a sentir o espírito do amor com o fervor do coração,
de algum modo sai de si mesma, saltando de si ou pairando sobre si".
E a alma de Teresa de Jesus saiu de si própria para alcançar a solidão
com Deus; a única inspiração verdadeira porque é capaz de apagar a
inutilidade de tudo que é mundano e de dar à vida um sentido
verdadeiramente transcendental: "essencialmente, eu sou, Deus é"; em
outras palavras: ser em si, por si mesmo.
Por isso domina em Ávila a presença de Teresa. Ela sobrevive em
cada rua, em cada muro, na luz cortante que penetra o corpo e na
vontade inútil de "contemplar" ou, pelo menos, "admirar" a Deus. Para
nós, restou a evidência de tempos distintos, realidade que ultrapassa o
delírio criador para se depositar na obrigada humildade daqueles a
quem não é dada ocasião para escolher seu próprio destino.
1 Entre 1520 e 1522, as cidades castelhanas reagiram contra as pretensões
absolutistas do rei Carlos I, os privilégios da nobreza e a outorga de postos a
estrangeiros, lançando-se em defesa das liberdades municipais. O movimento, co-
nhecido como Revolta das Comunidades de Castela - e cujos participantes eram
chamados comuneiros -, teve em Ávila uma de suas primeiras sedes. [N.T.]
Soror Juana
Inés de la Cruz

Por meio de sua obra reserva ao leitor um punhado de enigmas; por


meio de sua vida, soror Juana Inés de la Cruz é o maior prodígio
mexicano de todos os tempos. Nascida em Nepantla a 12 de novembro
de 1648, ou em 1651, segundo pesquisas recentes, é a menina que aos
3 anos de idade aprende a ler praticamente sozinha e inicia, na
biblioteca de seu avô, uma precoce aventura intelectual que lhe
permitiu assimilar o latim em vinte lições. É a órfã errante de um
povoado esquecido ao pé do mítico vulcão fumegante e quem, ainda em
sua puberdade, investe contra a soberba acadêmica de uns quarenta
interlocutores palacianos, entre os quais se contavam teólogos,
economistas, filósofos, matemáticos, historiadores, poetas, humanistas
e os astuciosos de sempre, aos quais deixou emudecidos com a
contundência e correção de suas respostas. É também uma hábil
adolescente sabedora de que, para sobreviver no mais adverso dos
ambientes, deve ganhar a simpatia das mulheres no poder, intento
para o qual absorve em minúcias o jogo e a galantaria da corte. É a
monja estudiosa da escolástica, da ciência, das artes e do
neoplatonismo que revelou extraordinária maestria tanto para versejar
quanto para esgrimir sua autodefesa espiritual com argumentos que
fundaram os germes de uma cultura mexicana baseada na tolerância
consciente, isto é, na liberdade de imaginar e de criar não à sombra da
igreja, mas como resultado das idéias que suscitam pequenas ou
grandes digressões que, em seu caso, a conduziram a tão profunda
frustração que se tornou símbolo de uma vontade perturbadora, seja
por seu silêncio, seja por seus escritos.
Chegou a vestir o hábito das carmelitas; mas cerca de dois anos
depois, e até o fim de sua vida, aos 48 anos de idade, tomou o hábito
das jerônimas. Sua poderosa individualidade impedia-a de repetir os
costumes sociais então destinados às mulheres; então escolheu a
solidão criadora à custa do castigo intelectual que padeceu em
conseqüência de seu voto de obediência religiosa. Seu destino não lhe
deu alternativas. Surge daí o enigma de sua fé literária e a lição de
que, nem por meio da liberdade interior que oferece o conhecimento, se
vislumbra uma conduta reparadora quando as circunstâncias são
adversas. Fundadora da cultura nacional, nenhuma outra mexicana
pôde igualar seus méritos durante quase quatrocentos anos de
marginalização dos assuntos relativos ao pensamento. Transgrediu
uma norma não declarada quando pensou e escreveu; sobretudo
quando denunciou sua opressão em sua memorável Resposta a soror
Filotea de la Cruz:

Ingressei na vida religiosa embora reconhecesse que envolvia um certo estado


de coisas (falo das acessórias, não das formais), muitas das quais repugnantes
a meu gênio; contudo, para a total negação que nutria pelo matrimônio, era a
opção menos desproporcionada e a mais decente que poderia eleger no que
tange à certeza que desejava de minha salvação; a essa primeira razão (que
afinal era a mais importante), cederam e se sujeitaram todas as pequenas
impertinências de meu gênio, que eram as de querer viver sozinha; não desejar
ter ocupação obrigatória que tolhesse a liberdade de meus estudos nem ouvir
os rumores comuns que impedissem o sossegado silêncio de meus livros.

Por sua graça e seu talento, além da piedade que inspirava uma
menina sozinha no mundo, serviçal e discreta, foi protegida de Leonor
Maria Carreto, marquesa de Mancera, que a incorporou a seu serviço com
o epíteto de "muito querida da senhora vice-rainha", e de cuja corte de
honra somente saiu para ingressar no convento. A profunda amizade
de que privou com essa mulher famosa por sua fina educação inspirou
em soror Juana numerosos escritos de uma exaltada cortesania que
não revelam exatamente gratidão ou afinidade platônica, mas uma
paixão no mínimo estranha entre duas mulheres que somente
professaram uma admiração mútua. Dessas homenagens, alguns
críticos inferiram sintomas de lesbianismo, não confirmados se
levarmos em conta que era comum na época, inclusive nas
monarquias européias, o abuso de figuras literárias emotivas e
adjetivadas por parte dos artistas para demonstrar agradecimento por
seus protetores. Seu erotismo, porém, resulta tão sugestivo quanto sua
maneira de superar as invejas e os problemas que a cercaram a ponto
de se desfazer, no momento de sua abjuração, dos quatro mil livros
que formavam sua biblioteca, além de seus mapas e instrumentos
musicais, quando comprovou que o peso das repreensões havia
triunfado sobre o impulso natural que Deus lhe dera, talvez para
acentuar a estupidez de que são capazes homens quando percebem a
luminosidade de quem é diferente por força de seu talento.
Monja jerônima, abomina a vida conventual, mas descobre a
liberdade entre as quatro paredes de sua cela consagrada. Perseguida,
no fim de sua vida é a escritora que abjura com o próprio sangue seus
conhecimentos mundanos para rubricar o protesto de fé e amor a Deus
que a acompanhou até a sepultura. Por volta dos 46 ou 48 anos de
idade, sofre com suas companheiras de clausura os rigores de uma
febre maligna da qual pouco sabemos, exceto que morreu contagiada a
17 de abril de 1697 e que, durante os dois últimos anos de sua vida,
entregou-se ao jejum, a severidade espiritual e às mortificações do
corpo, como seria de se esperar de uma inteligência em expiação. Não
que padecesse de sentimento de culpa por sua inteligência,
característico da síndrome de Eva, mas da ameaça concreta por sua
discrepância natural, por sua maneira de ser diferente em um meio no
qual tudo estava predisposto para a obediência e a mediocridade.
Foi precoce, formosa e crioula1. Sofreu eventos trágicos em uma
cultura completamente alheia à experiência trágica clássica, mas afeita
à abjeção e ao rancor. Introduziu em nossa história literária,
juntamente a Carlos de Sigüenza y Góngora - ainda menos
afortunado do que ela -, o capítulo das perseguições ao pensamento
crítico que, com o decorrer do tempo, se transformou em hábito
característico, inclusive, do jornalismo de nosso século. Dona de uma
integridade incomum, sustentou o direito de divergir com a mesma
paixão com que lutou em favor da uma educação feminina que
demoraria mais de dois séculos até ser instituída no México, embora a
igualdade ainda esteja longe da experiência contemporânea.
Sobre ela pesou e venceu o poder da obediência, mas nem a
brutalidade de sua época conseguiu ofuscá-la. Desde então já
transcorreram mais de trezentos anos e seu enigma permanece intacto.
Cada geração se vangloria de alguma descoberta que permitiria
entendê-la melhor; soror Juana, porém, não apenas se nega a nos
revelar sua verdadeira identidade como parece cada vez mais
indecifrável sob os manifestos dos curiosos, já que, conforme ela
mesma insistiu, sua motivação era intelectual e somente para
conhecer e se maravilhar perante o divino mistério da criação.
A severa lei da qual se queixou padecer, segundo disse, por
determinação da Igreja ou por ditame da razão contrária às mulheres, foi
uma constante nos preconceitos de nossa sociedade fechada. Ela
buscou sua liberdade pessoal nas normas estritas de sua
aprendizagem e provocou, contra sua vontade, o enfrentamento com o
clero e com uma forma de ser que a exortava a que elevasse o
pensamento aos céus, fixasse os olhos no chão e se apartasse das
letras para se consagrar por inteiro à religião, conforme lhe exigiu o
cauteloso bispo de Puebla, Manuel Fernández de Santa Cruz, em sua
carta assinada com o pseudônimo de soror Filotea de la Cruz.
Em sua célebre Resposta, soror Juana insistiu que não queria se
desentender com o Santo Ofício, mas estudar "para saber menos",
propósito que, em sua infância, a fez se abster de comer queijo porque
ouvira dizer que prejudicava o entendimento; inquieta como era,
pouco depois quis se vestir de homem para poder freqüentar a
universidade. Ali, por meio desse testemunho autobiográfico sem
precedentes em nossa cultura, registrou as linhas mestras de sua
obra, com reflexões sobre os obstáculos à sua vida intelectual e alguns
desenganos que explicam seu isolamento por ser uma mulher
pensante, por ser uma monja excepcional e por haver conservado sua
fidelidade às letras até completar sua derrota com o silêncio definitivo,
que seguramente a consumiu de tristeza.
Tão-somente para sobreviver praticou, com semelhante
habilidade, a linguagem cortesã e o ocultamento típico do estilo
barroco vigente ao se aventurar pela dupla via da intuição e do
humanismo, em cujo exercício firmou seu direito à igualdade sexual
perante o pensamento.
Talvez pela ênfase com que evidenciou as causas de sua decisão
em ingressar no convento e se esquivar das obrigações que
entorpeciam sua paixão pelo estudo, Juana Inés de la Cruz resolveu,
ainda que parcialmente, a contradição entre a consciência de seu gênio
e o estado de coisas que a impedia de satisfazer seu desenvolvimento
como mulher que abomina o matrimônio. Escritora nata, ainda que
afirme não ter escrito senão "violentada, forçada e somente para dar
prazer aos outros", é notável como oportunamente descobre nos temas
profanos, principalmente comédias e sonetos, que não seria aquela
sociedade que determinaria sua história, mas que ela mesma haveria
de protagonizar os extremos irreconciliáveis de sua realidade colonial.
Em uma Nova Espanha que dava as costas ao formidável movimento
espiritual da península, corte e clero não diferiam ao invocar o amor a
Deus nem ao aplicar sanções ao pensamento rebelde, e por isso seu
apagamento foi absoluto.
Transgressora até onde era possível, percebe a influência
inquisitorial quando intimamente se debatia frente aos obstáculos
interpostos a seu talento perturbador. Um talento que a inclinava à
desobediência conforme se aventurava no desconhecido; mas que, ao
mesmo tempo, se revertia contra ela na medida em que demonstrava
que ninguém pode saltar para além dos limites de suas circunstâncias.
Uma após outra, as imagens de mitos, signos, nomes, letras e
palavras passavam de uma extremidade à outra do mesmo labirinto.
Este é o jogo incessante de soror Juana ao criar um dos maiores
poemas mexicanos, Primeiro Sonho, no qual o universo que evoca, sem
dono, ordem ou fundamento, viaja através de uma obscura espiral
metafórica desde a noite da ignorância até a luz do conhecimento.
Em Primeiro Sonho encontram-se as chaves complementares da
dolorosa autobiografia de uma mulher mexicana que somente pôde
saciar seu afã de saber por seus próprios meios. Esta é a razão de sua
metáfora, porque nós, mulheres, não temos sido no México outra coisa
que uma sombra fugidia.
Alma suspensa e sem governo, ela escolhe uma forma de morte
em liberdade: o sonho. Não o dormir, que é recompensa do corpo
fatigado. A alma admira e percebe o movimento oculto nas visões do
acontecer, do mesmo modo que o mecanismo de um relógio preciso: o
coração, o mundo, o fluxo das águas, o surgimento da idéia ou as
pulsações da vida. Soror Juana sondou o mais obscuro, luzes e cores, e
roçou a profundidade da poesia, ali onde a crítica se manifesta por si
mesma e não é possível fugir da responsabilidade a que nos
compromete a razão educada, sobretudo quando se é mulher. Tudo
começou ao adormecer em uma noite; mas depois de um dia, de outro
e de outro mais, o sonho continuava desafiando o sentido de suas
palavras, o enigma da voz, o segredo do verbo, até cair em seu silêncio
de séculos...
Qual o saber que ela buscava? Os mistérios da existência e das
coisas; tudo quanto se relacionava com o fato de viver e morrer. Não
deixa de ser revelador que fosse precisamente uma mulher quem
fundasse a literatura mexicana, uma mulher convencida de que a alma
não tem sexo e que na razão se alicerça a única substância da
humanidade. Soror Juana Inés de la Cruz é, por tudo isso, o símbolo
de uma luta pela individualidade e o emblema cultural da razão que,
apesar de tudo, não pode ser vencida.

1 Crioulo (criollo): indivíduo branco descendente de pais europeus, nascido nas


colônias européias, particularmente na América espanhola. [N.T.]
Nosso tempo
Virginia Woolf

Há seres que, até mesmo em sua discrepância, são filhos perfeitos de


seu tempo. Virginia Woolf nasceu em Londres em 1882, filha de uma
família vitoriana abastada e extensa, que se gabava de suas conquistas
literárias assim como de seus freqüentes contatos com figuras
eminentes. Tudo indica, porém, que a inclinação maníaco-depressiva
que acabou por conduzi-la ao suicídio - lançando-se às águas do rio
Ouse após encher os bolsos com pesadas pedras - em março de 1941,
se manifestou duas vezes em sua infância: aos 13 anos de idade, com
a depressão nervosa que se seguiu à morte de sua mãe, em 1895; e na
recaída de pouco tempo depois, em 1897, devido à morte trágica de
Stella, sua meio-irmã. Nunca desapareceu totalmente seu temor à
demência. A origem do sentimento de culpa que serpenteou seus
momentos de abatimento teve também como ingrediente o prematuro
assédio de seus meio-irmãos Gerald e George, particularmente deste
último, acompanhado de confusos sentimentos sexuais em relação às
indefesas Vanessa e Virginia, as quais nunca conseguiram esquecer a
dor de sua dignidade ofendida.
Sobre poucas mulheres se escreveu tanto como a respeito de
Virginia Woolf, um verdadeiro mito inspirador de lendas tão
contrastantes que, acima do conteúdo de suas obras, despertam fartas
interpretações que ano após ano engrossam os pormenores de sua
biografia. Educada pela família, identifica-se com o pai, sir Leslie
Stephens, eminente jornalista, filósofo, autor e editor do Dictionary of
National Biography, além de outras importantes publicações na
Inglaterra vitoriana; e cujo maior presente dado à filha, em anos em
que as mulheres só podiam estudar em casa, foi permitir a Virginia livre
acesso à sua biblioteca.
Se é verdade que participou de incidentes extravagantes, a
melhor referência é o Grupo de Bloomsbury, fundado por ela e seus
irmãos, Vanessa e Thoby - este morto em 1906 de febre tifóide, após
uma viagem à Grécia -, quando se mudaram os três do luxuoso bairro
familiar de Hyde Park para Bloomsbury, no número 46 da Gordon
Square, sede oficial de suas reuniões; posteriormente, após o
casamento de Vanessa com Clive Bell, o grupo teria novo endereço com
a mudança para o número 38 da Brunswick Square, onde se
instalariam Virginia e Adrian, seu irmão caçula. Ali, para escândalo dos
vizinhos e de seus familiares, praticaram toda sorte de excentricidades
com outros jovens que, futuramente, se tornariam figuras ilustres,
como os assíduos Lytton Strachey, Leonard Woolf, John Maynard Keynes
e Clive Bell, todos companheiros de Thoby no Trinity College, uma das
faculdades mais prestigiosas da Universidade de Cambridge, onde se
dedicavam ao estudo dos clássicos.
Após se casar com Leonard Woolf, escritor já então reconhecido
por seu talento, fundaram juntos em 1917 a Hogarth Press, editora pela
qual não apenas publicaram suas obras, mas as de autores não
ingleses ou proscritos como Katherine Mansfield, T. S. Eliot, Freud e,
inclusive, James Joyce, com Ulysses, texto combatido e rechaçado por
seus contemporâneos mais cautelosos. Virginia, além disso, contribuiu
depois da Primeira Guerra para a organização da Liga das Nações, e se
tornaram célebres seus argumentos condenatórios da discriminação
feminina. Por conta de sua amizade com a aristocrata Vita Sackville-
West, considerada um caráter e prova fidedigna de força interior, viu-se
envolta em escândalos homossexuais; não contente em lutar contra o
demônio da angústia e em se opor ao conservadorismo inglês que a
asfixiava, também inovou a literatura moderna com obras de ensaio e
ficção de inigualável valor artístico e crítico, tidas como atuais ainda
nos dias de hoje.
Graças a uma extraordinária devoção marital da parte de
Leonard, que depois de haver impedido seu suicídio em 1913 não
conseguiu evitar sua última tentativa; à descoberta de uma linguagem
própria, que lhe permitiu ocupar um lugar preponderante nas letras do
século XX; à participação em atividades vanguardistas, a começar pelo
Grupo de Bloomsbury; e a adoção de posições políticas antiimperialistas
e liberais, Virginia Woolf forjou a lenda da intelectual na acepção da
palavra graças a seu empenho em se render aos fatos e em fortalecer
sua formação autodidata, produto de uma poderosa capacidade
mental, característica de sua família, cultivada com disciplina em sua
maturidade por meio de visitas cotidianas à Biblioteca do Museu
Britânico, atividade que compensou a impossibilidade de freqüentar
uma universidade, segundo denunciou em seu célebre ensaio Três
guinéus, que escreveu por encomenda - e a fim de reivindicar seus
direitos - em favor das causas da paz, da educação feminina e do
direito da mulher ao trabalho.
A morte, a paixão pela arte, pela paz e pela confirmação da
individualidade eram presenças constantes naquela Inglaterra
assolada pelo rigor monárquico e pelo conservadorismo intelectual de
uma sociedade imperial tão zelosa de suas formas de exclusão social
como de suas aspirações perfeccionistas de legalidade e bem-estar. A
vida de Virginia Woolf, porém, tramava sua própria tragédia sob os
véus de uma impressionante lucidez que destoava mais e mais de sua
realidade quanto maior era sua consciência de que ali, nessa Londres
em ebulição estrutural, sofria, como mulher, os desajustes do escritor,
e como escritora, o drama feminino de sua desorientação existencial.
Sua linguagem não era a linguagem dos outros. Seu mundo
interior tampouco encontrava o ânimo exterior que lhe permitisse
dialogar ou vislumbrar respostas para sua inquietação essencial. Os
numerosos tomos autobiográficos de Leonard repetem a imagem
daquilo que ele mesmo, Roger Fry, Vanessa e Quintin Bell - seu
sobrinho e principal biógrafo - sempre chamaram de "loucura",
quando na realidade se tratava de uma crise de identidade e de
realidade frente a seu ímpeto criador que, longe de ser tratada à base
de repouso, copos de leite, exames médicos e receitas absurdas,
merecia um profundo questionamento da verdade, de sua própria
verdade, seguindo suas preocupações manifestas, como a sensação
de desconhecimento de seu próprio corpo, que tanto a inquietava, ou
os desajustes existenciais que dividiram o fluxo racional do fluxo de
seus sentimentos mais óbvios.
Virgínia Woolf, em parte, foi vítima de si mesma e da pavorosa
incompreensão daqueles seres tão talentosos que a rodeavam, apesar do
halo afetivo com que a recobriam. Protagonizou até o extremo da morte o
drama do gênio criador, com o agravante de sua realidade feminina.
Como a figura da água, que tão freqüentemente apareceu em suas
principais obras, ela mesma se desintegrou à maneira de um fluido
informe diante de sua impossibilidade de resolver conflitos
insuportáveis com a vida, seu ímpeto auto destrutivo e a tentação
implícita do fim definitivo. Vítima de uma dualidade recôndita,
enquanto sua natureza feminina a impelia a harmonizar, a pressão
masculina tragava-a até a divisão de sua integridade sem saída. Não
era "sensata" como os homens ingleses, ainda que, por seu talento,
participasse de suas preocupações - via de regra vetadas às mulheres
por não serem condizentes com a impassibilidade atribuída à índole
feminina pelos preconceitos; uma condição que ela, em sua inquietação
irreconciliável com os fatos que recriava magistralmente em seus livros,
derivou para a formulação de uma suposta "mentalidade andrógina",
particularmente abordada em Um teto todo seu. Tal discernimento não a
libertou nem satisfez sua urgência por conciliar a dupla consciência de
sua função corporal, a ordem das coisas, o intelecto em si ou o
intelecto convertido, em seus Diários, em "razão objetiva".
Está mais do que provado que quando uma escritora assume
plenamente o sentido da palavra, sua vida se transforma em um
caminho incessante de transgressões, mesmo contra sua vontade, pois
somente a palavra é capaz de sacudir a própria razão de ser e de expor
perante os demais, de uma vez por todas, sua posição individual no
mundo - uma posição que, imediatamente, salta da intimidade para a
página escrita e se torna denúncia, revelação e ato de rebeldia pelo
simples fato de ser impressa; pelo fato importantíssimo de poder ser
pensada e escrita. Virgínia Woolf extremou suas contradições em
detrimento da paz e da concórdia que a teriam salvado de seu próprio
discernimento criador e desobediente. Rendeu-se, no fim, porque sua
mentalidade masculina contrafeita não conseguiu descobrir o ponto
conciliatório de sua exigência intuitiva como mulher.
Carolyn Heilbrun afirmou que existem quatro maneiras de se
escrever a vida de uma mulher: a que ela mesma se propõe a contar, e
inclusive a chamar de autobiografia; a seleção anedótica ou de
acontecimentos que, por vezes fabulosos, podem se definir como ficção;
a biografia redigida, indistintamente, por um homem ou por uma
mulher, sobre a vida de um personagem feminino real; e, finalmente, a
mulher pode escrever sua vida no decorrer dos dias e ao longo das
páginas de uma forma quase inconsciente, por meio das folhas de um
diário - esse gênero secreto que não raro se torna uma faca de dois
gumes contra a própria autora ao denunciar os episódios mais incon-
fessáveis de sua vida. Trata-se dessas passagens que se vão rasgando
sobre o papel como pequenos sulcos da memória, aprendizes do verbo,
apenas eco da palavra fugidia e que acabam por calar a própria
individualidade ou por desnudar a fibra imperceptível do espírito.
Inexplorado até então por uma mulher, Virginia Woolf
experimentou o gênero do ensaio e nele revelou magistralmente as
chaves de uma mentira que confinou a razão feminina nos infernos da
irracionalidade, da servidão submissa e da dor sofrida em silêncio. Não
é casual que na história da literatura de todas as línguas a
contribuição intelectual das mulheres seja tão escassa. Isso foi
perfeitamente entendido por Virginia quando, em seu A viagem,
expressou sua dor pela boca de um de seus personagens:

- Porém, você nunca compreenderá - exclamou ele — porque, mesmo com


todas as suas virtudes, nunca será capaz de se entregar totalmente à busca da
verdade. Você não mostra respeito pelos fatos, Rachei, porque é
essencialmente feminina.
Ela nem se deu ao trabalho de negá-lo...
- Mas eu gosto disso - disse ela, e pensou que também se compadecia dele,
como se compadece dos infelizes que estão fora do cálido e misterioso globo,
cheio de variações e de milagres, em que nos movemos: pensou que deveria
ser muito aborrecido ser o sr. St. John Hirst.

Virgínia Woolf abordou as manifestações de uma realidade que


a conduziu à morte. Ela era, como Rachel, essencialmente feminina,
uma poderosa inteligência feminina ainda que, para sua desgraça,
nunca tivesse podido gozar dos benefícios da compaixão. Foi coroada
pelo talento, mas careceu de conhecimento intuitivo. Teve ao seu
redor homens e mulheres capazes de inquirir os aspectos
circunstanciais da verdade, mas nenhum conseguiu penetrar na
batalha íntima e mais radical deste ser atormentado por sua própria
razão. Foi imaginativa, mas a impossibilidade de canalizar aquilo que
considerou "sua própria experiência como corpo" condenou-a à
dissolução essencial.
A água, essa grande metáfora que ela intuiu como sendo
fundamentalmente feminina, absorveu-a nos marismas de sua
desintegração cabal e definitiva. Nascida Adelina Virginia Stephens,
Virgínia Woolf, desde então, encarna o símbolo da intelectual dolente,
uma mulher que escreve para entender e não assume o compromisso
da escritora para consigo mesma. É precisamente disso que deriva a
força de sua linguagem interior, é daí que emana o magnetismo e o
mistério do conflito não resolvido entre a mentalidade masculina e a
feminina. Artista da palavra, seu livro Orlando não é um acidente
temático, mas um fio secreto de seu padecimento insolúvel.
Orlando (1928), segundo percebeu com grande argúcia Jorge Luis
Borges, contém uma preocupação com o tempo. Foi, sem dúvida, a
novela mais intensa de Virginia Woolf e uma das obras mais
desesperadoras e singulares de nossa época. Por vezes símbolo da
Inglaterra, vítima da amargura e da felicidade esporádica, Orlando já
vive há trezentos anos, ora como homem, ora como mulher, tempo
suficiente para inquirir a dualidade sexual que lhe fora inspirada pela
escritora Vita Sackville-West, em cuja obra Knole and the Sackvilles,
publicada em 1922, Virginia encontrou a substância histórica desse
personagem que, mesmo dúbio, como reconheceu E. M. Forster ao
evocar a autora em 1941 - em uma conferência proferida na Senate
House de Cambridge -, bem poderia ter compartilhado sua própria
personalidade.
Virginia Woolf explorava com entusiasmo sensações visuais,
gustativas ou sonoras para recriá-las depois, por entre teorias e
recordações, na sua expressão literária. Orlando é a maior prova de sua
oscilação entre o poético e o tratamento não transcendente das coisas
com as quais produz páginas excepcionais, como as que descrevem
Frost o Grande, e outras de feitura quase desalentada sobre as quais
derrama aqueles poucos elementos que a convencia a acreditar na
própria arte, não obstante sua escrupulosa fidelidade às exigências
lingüísticas e estruturais requeridas por cada tema.
Em que pese seu relacionamento com a compositora Ethel Smyth,
Vita Sackville-West desempenhou um papel verdadeiramente
importante nas relações femininas que agitaram a sensualidade de
uma Virginia a quem, claramente, os homens aterrorizavam. Desde sua
primeira novela exclamou seu horror, seu medo à civilização
masculina, o que a atormentou como uma arma mortal, embora
Leonard, defensor inestimável de sua liberdade, a protegesse pela
dupla razão de que a amava e de que a considerava um dos poucos
seres que mereciam ser chamados geniais. Foi neste sentido que ele
falou, ao ser entrevistado pela BBC de Londres:

É natural que os gênios sejam seres um pouco mais complicados que os


demais. Creio haver me encontrado com apenas dois gênios em toda a minha
vida: um foi o filósofo George Moore; o outro, minha própria mulher. Creio que
ela foi um gênio não apenas porque tinha uma maneira totalmente natural de
pensar, de falar e de considerar as coisas e a vida, mas porque, em muitos
momentos, tinha uma visão nada comum sobre todas essas coisas...

A "visão nada comum" de Virginia, mencionada pelo esposo


depois de sua morte, esteve impregnada na profunda poesia que
imprimiu a suas novelas e no interesse pelos problemas políticos de
seu tempo. Ela compreendeu que nós, mulheres, somos nosso
passado, somos nossa palavra, a linguagem que nos constitui e a voz
que, depois do crivo da memória e do filtro cultural que se transforma
em íntimo pudor, define a identidade pessoal. Este entendimento,
porém, ela mesma não conseguiu consumar em seu favor, seja através
de uma personagem novelística, seja de uma entidade verdadeiramente
construída. Ela se aventurou na palavra sem reservas, porque esta era
a sua paixão. Em suas páginas reina a solidão e o constante
desassossego que a distinguiu porque, apesar de tudo, a palavra não foi
para ela caminho de salvação, mas um nobre recurso para sobreviver e
enfrentar sua realidade em uma sociedade regida por convenções.
Além do citado George Moore — em quem se reconheceu a força
maior das idéias críticas que, pelo menos em suas origens,
aproximaram o grupo do Partido Trabalhista, ou mesmo do socialismo,
e que depois só continuou interessando a Leonard -, o poeta T. S. Eliot,
o filósofo e matemático Bertrand Russell, o pintor Duncan Grant e o
escritor E. M. Forster foram outros que se somaram ao Grupo de
Bloomsbury, o que acentuou a inclinação filosófica de seus membros
nos terrenos da economia e da arte, enriquecidos ainda por Keynes,
Roger Fry e Lytton Strachey, grandes escritores e biógrafos. Esses
intelectuais, graças ao apoio editorial da Hogarth Press, se
constituiriam em uma geração de vanguarda do ponto de vista estético
e liberal, caracterizada por sua origem comum nas classes dirigentes, o
que acabou ressaltando seu duplo sentimento de elite excludente e
seu gosto pelo deleite na austera e puritana Inglaterra das primeiras
décadas do século XX, onde se costumavam formar círculos
intelectuais que jamais se misturavam entre si.
Entre a vida e a obra de Virginia Woolf existem algumas
vertentes que poderiam ter sido vasos comunicantes. São os
corredores tipicamente britânicos através dos quais algumas
personalidades respiram como formas de ser por gerações. Ela amava
o campo tanto quanto o ritual do chá, prezava tanto as longas
caminhadas como um bom guisado - que em Rumo ao farol1 se
constituiu em parte essencial do livro e receita cifrada do boeuf en
daube2. É impossível ignorar sua sensibilidade refinada que, em cada
título, ela espelhou de modos diversos - na sala do piano de Rachel ou
diante da maravilhosa paisagem floral de Mrs. Dalloway - sem que a
força dos sentidos desmerecesse seu fervor pela inteligência, que
cultivou com maestria. Acreditou na perenidade das pedras e dos
monumentos, nos símbolos pátrios, como a abóbada quase eterna da
sala de leitura do Museu Britânico, e nas mensagens secretas que se
escondem sob a aparência externa dos objetos.
Um desses segredos, que longe de envergonhá-la acentuava ainda
mais seu orgulho, era a consciência de portar uma espécie de
refinamento em extinção. Sua clara consciência de classe permitiu-lhe
apreciar os privilégios de sua origem familiar e delimitar os termos de
um feminismo que, não obstante sua simpatia pelas sufragistas na
década de 1910, jamais perturbou o nobre valor de ser, como de fato
era, "uma dama" que não caía na tentação de se uniformizar, coisa
tipicamente masculina, nem de integrar comitês ou assinar
declarações; tampouco foi capaz de compreender os sofrimentos das
operárias ou de desenvolver a mais simples tendência à compaixão por
elas. Conhecia seu lugar na sociedade e jamais se afastou dele.
Mais de uma vez afirmou categoricamente que a mulher "não deve
participar desse insultante banquete de varões, nem aceitar as migalhas
de poder que vez por outra eles lhe atiram de seu repugnante festim".
Todavia, Virgínia Woolf também sucumbiu, como outrora sucumbira
Lisístrata na antiga Grécia, e acabou assinando, meio a contragosto,
este ou aquele manifesto ou participando de atividades políticas que
freqüentemente sequer a interessavam. Nesse sentido, e com a
relatividade que merece seu prestígio, sucedeu a Virginia Woolf o que
em nossos dias é lugar-comum entre os escritores menos
comprometidos, que firmam seus nomes em inúteis abaixo-assinados
imbuídos de certa inconformidade de pouca ou nenhuma
transcendência, ainda que, no caso dela, se ressalve que efetivamente
ajuizou com valentia seus pontos de vista em ensaios críticos e em
publicações significativas. Sua convicção de que a sociedade está
estruturada sob parâmetros masculinos transformou-se em denúncia
de como as inteligências femininas esbarram em obstáculos interpostos
pelos homens para lhes impedir o justo reconhecimento ou as posições
tidas como bem-sucedidas, seja no ambiente acadêmico, seja nos
recintos historicamente reservados à consagração do talento.
Tanto em Três guinéus como em Um teto todo seu ficaria o
testemunho de sua atitude crítica mais aberta, de sua oposição
racional ao meio do qual jamais pôde se subtrair e do qual, na
realidade, nunca deixou de se orgulhar. Daí a originalidade de uma
postura aristocratizante que lhe permitiu valorizar seu legado espiritual
e, ao mesmo tempo, protestar contra o papel secundário que, mesmo
dentro de uma cultura tão admirável, era designado até então para as
mulheres, conforme expôs no seguinte parágrafo do primeiro Guinéu:

Quando nos encontramos, homens e mulheres falamos com a mesma


pronúncia; utilizamos facas e garfos da mesma maneira. Esperamos que a
criadagem prepare a comida e lave os pratos e, sem grandes dificuldades,
podemos falar a respeito de pessoas, de política, da guerra e da paz, da
barbárie e da civilização e de todas as outras questões... Estas reticências,
porém, representam um abismo, uma separação tão profunda e abrupta entre
nós que, durante todos estes anos, estive sentada em meu próprio lado do
abismo perguntando-me se, por acaso, existe alguma utilidade em poder
conversar com o outro lado. Portanto, mais valerá que peçamos a outra pessoa
- no caso, Mary Kingsley - que fale em nosso nome: "Não sei se alguma vez lhe
disse - me escreveu Mary - que a permissão para aprender alemão e o estudo
desse idioma representou toda a educação paga que recebi de minha família.
De outro modo, na educação de meu irmão gastaram-se duas mil libras que,
até hoje, espero não tenha sido uma despesa inútil".

Virginia Woolf empregou o delicado subterfúgio de uma suposta


carta de Mary Kingsley para descrever sua desventura feminina e referir
o trágico costume de separar sua realidade em dois mundos
irreconciliáveis: o dos homens educados e o das mulheres emudecidas;
costume que permaneceria cifrado no memorável "Fundo para Artur"3,
uma espécie de pecúlio destinado a subsidiar o destino educativo e
social dos meninos. Essa mentalidade discriminatória e imperial, da
qual sua geração foi a última a padecer com semelhante rigor, explica a
importância que teve para a Inglaterra o símbolo masculino como
transmissor da honra e do prestígio da Coroa. Inclusive a custo da
renúncia involuntária das irmãs, as famílias se sacrificavam econo-
micamente para formar da melhor maneira aqueles que deveriam
honrar seu sobrenome e que constituiriam a própria força do Reino
Unido.
Apesar de seus lamentos, Virginia Woolf não sofreu a
incompreensão de seus contemporâneos nem morreu sem ter provado o
gosto de um oportuno reconhecimento. Como escritora, inovou sua
rica tradição literária. Como mulher, praticou liberdades somente
possíveis por conta de sua confortável situação financeira, produto da
herança paterna. Levou ao extremo da transgressão exemplar as
animadas e extravagantes reuniões em grupo, privativas de sua
educação privilegiada. Até mesmo em seu suicídio, imersa como se
estivesse em uma grande depressão na qual se confundiram a
sensação de irracionalidade e o pavor de não conseguir escrever sequer
uma linha mais, manteve a elegância que a caracterizava. Seus livros
não somente não foram esquecidos como mencionar Virginia Woolf, em
nossos dias, eqüivale a evocar uma vertente libertadora que escritora
alguma, à procura de identidade própria, pode desprezar.

1.
Também traduzido no Brasil como Passeio ao farol. [N.T.]
2.
Prato da culinária francesa, corresponde a um cozido, ou guisado, de carne
bovina com vinho tinto, vegetais e temperos. [N.T.]
3 Em inglês, Arthur's Education Fund - Expressão empregada por Virginia Woolf
em seu livro Três guinéus, no qual, em linhas gerais, faz uma interpretação da
relação entre masculinidade, autoritarismo e guerra. [N.T.]
Djuna Barnes

Uma das novelistas mais controvertidas, independentes e sensíveis da


geração nascida no final do século XIX - aquela que sucedeu à dos
clássicos modernistas norte-americanos como William Carlos Williams,
Ezra Pound e T. S. Eliot, entre outros -, coube à caprichosa Djuna
Barnes incorporar o arquétipo da mulher bela, liberada, culta, irônica,
mordaz e criativa que, décadas depois, foi considerado modelo de
transgressão e de inconformismo. Com sua conduta licenciosa, agitou a
Paris dos anos 1930. Não deixou experiência sem provar nem anomalia
sem tipificar nesse universo tão seu, marcado pela perversidade, por
situações-limite entre mentalidades culpadas e pela fascinação
dramática de uma época que, para os criadores e artistas mais
conhecidos, oscilou entre o transbordamento poético, o apetite por
lucidez e a aventura da irrealidade daqueles que, como ela, roçaram as
profundezas do inferno; e o fizeram talvez para empreender uma forma
peculiar de humanidade, tingida pelo ímpeto novelesco e pela
imprescindível boêmia que haveria de arrastar consigo o preconceito de
que o escritor, para sê-lo de fato, devia primeiro descer aos recantos
do autodesprezo. A arte e a vida se encontraram, assim, na região do
absurdo. Um absurdo ativo, diferente do de Kafka, que se exasperou ao
longo da própria existência, contra as convenções e a conformidade.
Ilustradora precoce, Djuna Barnes se considerou autodidata em
razão de sua cultura fora do comum. Exerceu o jornalismo em sua
Nova York natal dos 21 aos 38 anos de idade, até 1930. Depois de
quase três anos de inquietação, estabeleceu-se em Paris e em
Londres para se somar ao turbilhão europeu do entreguerras e
participar da cena ultrafeminista e decadente que outras novelistas,
como Anaïs Nin ou Jane Bowles, extremaram até o delírio em salões de
mulheres, bares lésbicos e longas jornadas de adesão ao álcool, ao
sexo e às drogas. Insólita por sua precocidade, por sua formação
clássica e por sua resistência física, Djuna Barnes pode ter sido o
melhor de seus personagens, o habitante mais realista de O bosque da
noite, e tão sutil em seu refinamento intelectual que, filha fidelíssima da
"teologia da crise", parece perfeitamente explicável o ostracismo que
adotou durante a etapa final de sua vida.
Se não fosse o esboço biográfico de sua tradutora italiana, Ana
Maria Becciu, pouco saberíamos do que ocorreu durante seu longo
retiro em um apartamento no Greenwich Village nova-iorquino, aonde,
enferma, célebre e ao mesmo tempo esquecida, quase cega e ainda
formosa, alcançou um absoluto desapego de todos os demais e
inclusive de si mesma, o que conservou até sua morte, em 1982, aos
90 anos de idade. Odiou "a boca comum e o veredicto do vulgar";
abominou a estupidez e não acreditou nas boas consciências. No ensaio
Djuna Barnes ou o horror do sagrado, Cristina Campo relatou seus
encontros com poetas de destaque, como William Carlos Williams e T.
S. Eliot, que, em 1936, ao prefaciar O bosque da noite, "uma novela tão
boa que apenas as sensibilidades mais educadas na poesia podem
apreciar inteiramente", considerou-a "o maior gênio de nossos dias".
Presididas em Nova York por Marianne Moore, as reuniões em
honra de Hilda Doolittle, por exemplo - das quais Djuna Barnes era
freqüentadora assídua, como uma extensão de seus costumes
parisienses -, se tornariam legendárias por sua capacidade de
mobilização e pela preservação de uma atmosfera intelectual
semelhante à do Templo da Amizade, um espaço criado por Natalie
Clifford Barney no jardim de sua casa na rue Jacob, em Paris, onde
eventualmente se reuniam Colette, Renée Vivian, Janet Flanner e outras
celebridades (dissimuladas por Djuna Barnes em seu Almanaque das
Senhoras) para discutir temas cultos sem reprimir suas paixões e
trocar amores convencidas de que, por sua singularidade e talento
criador, pertenciam a essa estirpe de mulheres demasiado sutis para o
inferno, e excessivamente impetuosas para aspirar ao céu.
Pelas breves notícias que apareceram em alguns de seus livros,
como o Almanaque das Senhoras (publicado pela Harper & Row em
1972), sabemos que Djuna Barnes nasceu em Cornwall-on-Hudson,
Nova York, a 12 de julho de 1892. Seu pai, Wald Barnes, pintor, músico
e poeta, inventou seu nome como uma homenagem ao som das
palavras, ainda que inspirado por um personagem de O judeu errante.
De sua avó Zadel, que mantinha um salão literário em Grosvenor
Square, Djuna herdou o espírito de liberalidade que acabou elevando a
emblema de claustrofobia interior. Desde muito jovem publicou seus
textos em revistas famosas, como Vanity Fair e The Little Review. Seu
primeiro livro conhecido, chamado simplesmente A book, reunia relatos,
poesias e desenhos, e foi um dos sucessos literários de 1925, embora
Djuna mostrasse indícios de sua agudeza introspectiva já em 1911,
com escassos 21 anos, em A book of repulsive women [Um livro sobre
mulheres repulsivas], também uma mistura de poemas e desenhos e,
talvez, o precursor de Ryder, um extraordinário monólogo em forma de
novela, cheio de humor negro, que versa sobre a tríplice relação de um
homem com sua mãe, com sua esposa e com sua amante.
Nada se sabe sobre sua mãe, talvez porque a influência dos Barnes
tivesse determinado o fundamental de seu temperamento. Foram
precisamente seu pai e sua avó que se encarregaram de sua educação
artística no Pratt Institute e na Arts Students' League [Liga dos
Estudantes de Artes Plásticas]; mas na realidade, foi ela mesma quem
dosou sua personalidade com a linha guia única de seu talento, como
sucede às inteligências singulares. Tal como seus contemporâneos
Henry Miller, Gertrude Stein, James Joyce, Man Ray, Jane Bowles ou
Anaïs Nin, Djuna Barnes experimentou todas as sensações, sem
limites nem temores, e como alguns deles, os mais radicais na busca
do inferno, essa bela e inquieta mulher também viajou a Tânger em
busca do mistério. Não ficou hospedada em casa dos Bowles pela
quantidade de canalhas que pululava naquele ambiente de
prostituição e baixeza. Paul Bowles, atraído por sua beleza, se conteve
perante ela porque, não obstante seus próprios transbordamentos,
considerou demasiado extravagante a maquilagem azul, púrpura e
verde com que Djuna alucinava os marroquinos e igualmente
perigoso o ritmo inatingível de sua sensibilidade. Todavia, reconheceu-
lhe o gênio e a valentia introspectiva somente alcançada pelas
inteligências críticas.
O tempo e uma enorme quantidade de memórias dispersas
daquela etapa trouxeram à luz o inferno compartilhado por uma
geração de náufragos. Todos eles, produtos da transgressão e do
temor, padeceram dessa paixão noturna que marcou a melhor
literatura produzida por Djuna Barnes. Antes de descobrir uma
gravidez indesejada em Tânger e de voltar às pressas a Paris para
abortar clandestinamente em um bairro ordinário, concluiu sua
segunda novela, O bosque da noite, e, avaliando o entusiasmo de seus
primeiros leitores, intuiu a importância de suas revelações. Com essa
perspectiva à beira do prelo, ela reorganizou sua própria existência.
Arrependida pelo tempo que havia desperdiçado, segundo
confessou a T. S. Eliot, reapareceu no princípio dos anos 1940 no
legendário Patchin Place - um conjunto de apartamentos construído
no século XIX que antes abrigava imigrantes bascos - para retomar a
vida nova-iorquina, que ficaria marcada pela obsessão epistolar de
Anaïs Nin, tão repudiada por Djuna, sobretudo porque Anaïs,
implacável como era, utilizou-lhe o nome para um dos personagens
mais transtornados de suas novelas. No entanto, Anaïs Nin, indiferente
ao ódio que lhe dispensava Barnes, cunhou-lhe um elogio que
perduraria para sempre: "Ela vê demais, sabe demais, é intolerável".
De que ambas foram talentosas, não houve dúvida. O mundo das
décadas de 1930 e 1940 foi povoado por mulheres excepcionais; a arte,
como em uma explosão de luz, de figurações poéticas e de revelações
sobre uma parte do ser e da conduta que até então não era
mencionada, foi enriquecida com as contribuições de atrizes, escritoras,
bailarinas, pintoras, escritoras, biógrafas, amantes ou dissolutas cujas
aventuras demonstraram que, sem verdade nem coragem de conhecer a
fundo a si próprias, nenhuma obra capital é possível. Nesse sentido,
Djuna Barnes apostou no terrorismo espiritual e extraiu, com seu gênio
único, uma das alusões literárias mais poderosas do século XX. Prosa
poética. Foi assim que T. S. Eliot descreveu o estilo embravecido de O
bosque da noite: uma espécie de gemido da humanidade e recriação
descarnada para tornar sua vergonha mais suportável aos tenebrosos
personagens itinerantes, e menos vil a miséria dessa coleção de
entidades que soube tudo a respeito da degradação e da noite, mas
não do arrependimento e da contrição.
À argúcia de Djuna Barnes, em suas diversas obras de grande
alento e confecção rigorosa, devemos uma das pinturas literárias mais
intensas da desgraça e da escravidão humanas, que em
temperamentos considerados "normais" costumam permanecer nos
recantos escondidos da miséria. Nunca a amedrontaram as convenções,
tampouco sua inteligência se dobrou aos preconceitos do conveniente
ou do proveitoso. Djuna tanto padeceu como desfrutou a vida,
avigorou seu talento, enriqueceu sua cultura e conservou até o final o
brilhantismo de seu engenho, o sentido do horror que caracteriza
aqueles que estão convencidos de que é trágico o destino do homem e a
sina dos seres chamados a explorar os limites contidos nos achados da
alma.
Diversa e repleta de anedotas transgressoras, sua biografia
preenche uma época de decadismo e impaciência dos corações. Sua
obra, por outro lado, permanece à testa de uma caracterização literária
de habitantes descarnados, gente que talvez nasça igual às demais,
mas que, progressivamente, se vão identificando por sua essência
lodosa e que, todavia, sobrevivem graças a uma lucidez comovente.
Por intermédio de Djuna Barnes confirmou-se, definitivamente
para a literatura, que existe um mundo noturno. Esta é a dimensão
do tempo tenebroso por onde vagueam os atribulados. Trata-se de um
estado espiritual aterrorizado que começa no temor, segue através das
dúvidas, transmuta-se em figurações perturbadas por um estalido seco,
desses que conseguem saltar as fronteiras do sonho, que fazem tremer
as pernas e que acabam fundidos a uma identidade totalmente
alienada para se enfrentar com uma morte sem concessões.
O mundo da noite, assegurou Djuna Barnes, corresponde à
existência de vontades modificadas por um sofrimento atroz,
anônimo, que "dorme em uma Cidade de Trevas". É como pertencer a
uma irmandade secreta e é, também, essa escuridão instável, aderida
às profundezas da alma daqueles que se lançam à dor como se fosse a
única fonte da vida, da qual extraem o sentido da irracionalidade ao
prestar a conta de seus dias.
Obsceno, inóspito, difícil de escalar e estéril é o tronco da noite.
Espelho exato da deterioração, somente ele pode refletir a grande
incógnita do desassossego errante. Desprotegidas pela ausência de luz,
senhoras únicas de sua tormenta, essas vítimas de uma ronda da morte
vão descendo entre as trevas, rosto à frente, até beber as águas negras
do "bebedouro dos condenados". Os perturbados noturnos que Djuna
descreve não são daqueles que nascem detrás do postigo da vida nem
envelhecem ao abrigo de suas memórias. Eles sobrevivem em um
círculo de morte cujo centro contém o impacto decisivo, o vestígio mais
dolorido. Sua existência é um constante retrocesso para o nada. Sua
obscuridade está em constante alerta, nos recantos da alvorada, à
espreita de uma transgressão, beirando o ser desesperado.
Os signos da noite ocupam ruas degradadas e sarjetas ocultas. Às
vezes se detêm em tabernas malcheirosas, como ocorreu em Tânger com
os Bowles e com a própria Djuna, ou transitam impudicamente, com
fantasias grotescas, como fazem os travestidos. Pendões da dor são
percebidos nos rostos dos meninos que lavam pára-brisas e dão
cambalhotas pelas esquinas. Há mulheres que ostentam sua índole
noturna em reflexos demoníacos que se transformam em recompensa
de uma absolvição impossível; e há homens elegantes que procuram
dissimular seu temperamento atribulado. Não há idade, sexo ou
condição social sem representante nesse inferno. Os filhos da noite
marcham pelo mundo com a cabeça mergulhada no crepúsculo e os
sentidos escravizados por suas aflições.
Nossa cidade tem muito de noturna. O tormento é abundante
entre nós, apesar do sol intenso que nos oprime. Os atribulados
arrastam sua condenação como um uniforme familiar. Drogados,
depressivos, bêbados, vigaristas ou aflitos recolhidos em seus
domicílios: encontra-se de tudo nessa região-existência das trevas.
Djuna Barnes, em uma breve descrição daquilo que chamou O
bosque da noite, nos legou as chaves da linguagem da morte. Suas
passagens nos remontam a um inferno que pode ser referido desde as
horas ancestrais, o inferno do medo horizontal, do medo insuportável,
"porque somente em sentido perpendicular o ser humano pode
enfrentar seu destino". Vítima dessa treva que recobre seu espírito,
nenhum sossego jamais é permitido a essa espécie de dormente
atormentado, ao habitante de uma noite interminável.
Desde muito jovem Djuna participou dos vaivéns subversivos da
boemia internacional e daí extraiu os elementos macabros sobre os
quais ponderou Kenneth Rexroth, o grande poeta norte-americano e
tradutor de textos gregos e chineses, ao descrevê-la como "o arquétipo
da mulher liberada". Seu prestígio como escritora se consolidou com
os esboços contristadores de O bosque da noite e com a força poética de
sua expressão transbordante. Passados quarenta anos, Djuna Barnes
converteu-se em lenda: aparece nos temas, cartas, diários e novelas de
Anaïs Nin, nos diários de Henry Miller e nas evocações de Paul Bowles.
Anaïs Nin, inclusive, confessou que nada desejava mais que ser capaz
de escrever uma novela poética como a de Djuna Barnes, ou páginas no
estilo de Giraudoux.
Na década de 1940, alguns escritores norte-americanos
exploraram analogias sinfônicas em suas prosas a fim de harmonizar
em uma única expressão o canto e a leitura. Pretendiam, como Djuna
ou Anaïs, que a redondilha imitasse o ritmo melódico de uma
partitura, para que as letras fizessem da arte da palavra uma arte
musical e metafórica, marcada pela harmonia sonora. Djuna Barnes e
Anaïs Nin foram amigas durante um certo período. Além do talento,
compartilharam semelhanças literárias: as duas investigaram a
metáfora da alma perturbada; ambas foram rebeldes, inconformistas e
ávidas por construir um mundo interior resistente às acometidas
devastadoras que, ingenuamente, fizeram Jean-Paul Sartre acreditar
que o inferno era os outros quando, na verdade, o inferno crescia com
a própria treva. Assim souberam essas duas representantes de uma
espécie em extinção, a cujos nomes poderíamos somar os de Virginia
Woolf, Alma Mahler, Zelda Fitzgerald, Misia Zert, Gertrude Stein, Vita
Sackville-West ou a própria Jane Bowles, a mais decadente de todas.
Djuna Barnes, por causa de seu estilo, obcecou a Henry Miller,
autor dos Trópicos e criador de Primavera negra, então amante de Anaïs
que, por sua vez, mantinha complicadas relações com seu psicanalista
Allendy, com seu marido, Hugo Guiler, com o idílico Antonin Artaud e,
segredo entre os segredos, com o compositor catalão Joaquín Nin, seu
próprio pai. Desse relacionamento proveio Incesto, uma confissão que
permaneceu inédita durante cinqüenta anos e que só foi dada a
conhecer em 1995. Djuna também influenciou Nathanael West e Nelson
Algren ao criar a atmosfera de horror existencial e de pesadelo que
cresce nesse século de apogeu do capitalismo. Ademais, entre Djuna
Barnes e Anaïs Nin poderia se assinalar mais de uma coincidência.
Vidas paralelas, foram guiadas pelo empenho emancipador e regidas por
uma vontade libertadora. Não é por acaso que, entre afãs
desesperados, ambas assumiram o "poço pessoal" dos habitantes da
noite; porém, diferentemente de sua rival, Anaïs Nin sucumbiu à
tentação da voragem, e muito de si mesma foi extremado pelos efeitos
daquele incesto que a levou a dizer publicamente: "Sou neurótica,
pervertida, destrutiva, ardente e perigosa".
Mais que a nossa época, seu tempo, até a metade do século
passado, deu as costas à inteligência feminina; mas suas obras se
impuseram pelo vigor de suas metáforas e pela força de seu estilo, não
obstante a onda de repúdio que ensombreou suas biografias. Djuna
expressou o símbolo do entreguerras: melancolia e consciência frente à
morte; Anaïs exprimiu a decadência da alma. As feministas dos anos
1960, ávidas por bandeiras e guias, exaltaram Anaïs Nin e ignoraram
Djuna Barnes, embora o universo desta acabasse por se impor por si
mesmo nesse fim de século, para o qual convergem o melhor e o pior da
história.
A aflição de Matthew O'Connor, eixo central de O bosque da noite,
salta por sobre as linhas. Quase podemos tocar sua ridícula peruca de
mulher. Quase o enxergamos aqui, ao nosso lado, enfiado em seu
camisolão imundo emaranhado de sebo e rendas, reinando em seu
caos ímpio. E ali, em cada sucessor das trevas, perdura Matthew
0'Connor, ainda aflito, com seu odor de corpo vencido pela força do
absurdo. Nora e ele representam os extremos da paixão que pernoita.
Ambos poderiam encabeçar um almanaque de atribulados. Se Robin é
a peregrina de uma paixão confusa, Nora expressa a intensidade
sacudida pela evidência do vazio. A ânsia pela posse, forma
desvairada do desejo de ser através do outro, é o único ponto
permanente e firme na natureza daqueles que se esqueceram do
próprio rosto depois de explorar o oráculo noturno, em vez de viajar
em direção ao dia.
A vida, às vezes, se parece com a literatura. A vida de Djuna
Barnes é como a de seus personagens mais bem-sucedidos. Foram
suas a vontade de viajar, a tormenta interior e uma paixão insaciável
por inquirir a linguagem da noite. Morreu desaparecida no silêncio,
com a lucidez característica dos cegos e sem se importar
absolutamente com a agitada torrente que havia revolvido ao criar a
grande metáfora de nosso século atribulado.
Isadora Duncan

Um dos primeiros mitos da mulher contemporânea, Isadora Duncan


levou ao extremo do caos seu clamor de que não há limites para a
vida. Filha do melhor do final do século XIX e do mais perturbado
princípio do século XX, absorveu do romantismo um destino dramático,
e de sua geração feminina a avidez, quase desesperada, que a
conduziu a uma sucessão de rupturas tão radicais que ela mesma se
afastou da síntese harmoniosa que poderia libertá-la da violência
interior.
Mulher cheia de contrastes, Isadora é sinônimo de paixão, de
busca exacerbada. Foi precoce, insaciável e conseqüente com sua
certeza de que, sem liberdade, o corpo e a razão ficam restritos a
cânones que paralisam a consciência ou estancara o crescimento
interior. Ansiava pela fama, alcançou-a plenamente e isso não lhe
bastou. Aos 21 anos de idade abandonou os Estados Unidos em busca
do reconhecimento que não tardou a conquistar. Isadora Duncan, filha
de uma professora de música inteligente e de tendências anarquistas,
conheceu a pobreza extrema e os sacrifícios de uma família sem pai que
cresce à sombra promissora do sonho americano, ao menos no que
respeita à fantasia da auto-realização que vence os piores obstáculos.
Suas fases por detrás do êxito realizam, até nos pormenores, os
triunfos esperados por sua intrepidez e a antecipação de um desenlace
trágico mas congruente com as altas temperaturas que acalentavam
seu espírito.
Acreditou na beleza perfeita e fez da Grécia o templo de um
classicismo tão renovador que é quase impossível se referir à dança
moderna sem mencionar seu nome. Longe de se salvar pelo caminho da
arte, foi atormentada por seu próprio demônio e arrastou para o
palco as marcas de seu ímpeto autodestrutivo, como se estivesse
empenhada em confirmar que sua memória era feita de fogo, da
mesma maneira que suas sensações a vinculavam ao mar enquanto
suas mãos e seus pés a mantinham firmemente sobre a terra, para
afiançar a oscilação por meio da qual desafiou o mistério da criação.
Deleitava-se evocando os elementos, apregoando as virtudes de
uma nudez teatral que agora se pratica com naturalidade. No uso de
roupas leves e no desafio às convenções sociais, encontrou o sentido da
"leveza do ser" que, quase sete décadas depois, o escritor tcheco Milan
Kundera desenvolveria em seu alfabeto pessoal de símbolos literários.
Susteve a livre expressão de um equilíbrio na dança que só obedecia a
seus próprios comandos, cujo centro ou motor descobriu no plexo
solar. Abominava a rigidez do balé clássico, mas absorveu suas
normas para melhor combatê-lo desde que, em sua Califórnia natal,
suas primeiras interpretações originais foram desdenhadas.
Poderosamente influenciada por suas leituras, construiu um projeto de
vida quase idílico, demasiado engenhoso para se adaptar à sua
realidade e aferrado àquelas grandes realizações que só são
oportunamente concebidas por seres dotados de um talento
equiparável à sua vitalidade excepcional. Estes são os homens e
mulheres condenados a sofrer lapsos imaginários, quando ignoram
seus próprios limites e se entregam com maior paixão à satisfação de
seus apetites do que ao cultivo disciplinado de sua criatividade. E o
mundo ocidental da primeira metade do século XX que lhe tocou por
sorte foi particularmente inclinado a gerar mentalidades
desagradáveis, obstinadas em exercer papéis estratégicos no âmbito da
criatividade e, com freqüência, engendradas no duplo temor à morte e
ao anonimato.
Ela mesma se encarregou de acentuar, em sua autobiografia, as
linhas mestras que a orientaram em seus primeiros anos e as
dificuldades que intensificaram o desajuste marcante dessa norte-
americana que desejava devorar o mundo em grandes pedaços, e
dessa artista precoce que soube romper os costumes ao atentar
contra o gosto do público para fundar um estilo próprio cuja
expressão, paradoxalmente, exigia uma cabal liberdade, que ela
simbolizava por meio dos movimentos aquáticos de seu corpo enquanto
sua mãe a acompanhava ao piano. Sua inclinação para o escândalo,
porém, atrapalhava mais do que ajudava o curso de seus propósitos,
pois mais de uma vez o exibicionismo superou seu alarde
revolucionário por conta das oscilações de seu temperamento, que nem
sempre lhe permitiam concluir o que havia empreendido nem
conservar a fidelidade àquilo que chamou de sua maior paixão. Parece
que sua natureza atormentada buscava os piores homens para se
apaixonar loucamente e logo sofrer desgastes atrozes, que foram
reduzindo seu corpo e seu espírito a reflexo fiel de uma decadência
ensombreada pelo álcool e pela total perda de escrúpulos. Acabou
desamparada, de costas para si mesma, particularmente depois da
morte trágica de seus dois filhos pequenos.
Não somente pôs de lado as composições tradicionais como
também descreu da formação escolar, e seguindo as lições maternas,
que observou como guias do destino, até o final repetiu as mesmas
frases que, desde os 5 anos de idade, aboliram de sua consciência a
tentação natural de recair no sentimentalismo da classe média: "Não
existem Reis Magos; não existe Deus; não existe nada além de teu
próprio espírito para te ajudar". E um grande espírito foi o que
considerou como condição única de luta contra a adversidade, já que
não conheceu outra coisa senão privações inteligentemente
compensadas pelo alimento espiritual que aquela professora que
ministrava aulas particulares nunca se cansou de prodigalizar.
Mais de uma vez escreveu que sua verdadeira educação se
realizara durante as noites, quando sua mãe interpretava para ela e
seus irmãos obras de Beethoven, Schumann, Schubert, Mozart ou
Chopin, ou lia em voz alta passagens de Shakespeare, Shelley, Keats
ou Burns, autores que, longe de abandonar, alimentaram seu
repertório até se tornarem imprescindíveis em suas coreografias.
Tinham sido "horas encantadas", dizia com nostalgia; a própria
Isadora conservou o costume familiar de recitar poesias de cor para
provar que a educação verdadeira, quando entra pelo ouvido e é
capaz de se integrar a uma maneira de ser, substitui as aulas
didáticas com tal vigor que nada do que foi aprendido no sistema
escolar consegue satisfazer a curiosidade das almas sensíveis, pois os
sistemas comuns anulam a dinâmica do despertar e reprimem as
emoções e a imaginação, além de estreitarem o pensamento para
domar o potencial da mente infantil em vez de libertá-lo.
Isadora Duncan sentia devoção por tudo o que representava sua
mãe irlandesa. Agradecida pela infância atípica que lhe permitiu se
dedicar ao belo, definiu a si mesma como uma talentosa criatura que
desde o berço portou o desprezo pelos falsos valores de uma sociedade
moldada para domesticar seus membros, apartando-os da
originalidade e da crítica do pensamento criador. Sendo toda ela claro-
escuro, a suas iluminações súbitas seguiam as trevas de uma
inteligência abatida por impulsos opostos. Amada e aborrecida,
deslumbrada com seus acertos e intimidada por seus atrevimentos,
nem mesmo o filtro das décadas conseguiu separar a mulher da artista,
porque sua matéria ígnea era realmente composta por essa
personalidade múltipla.
Em uma personalidade tão predisposta a impor seus próprios
cânones não é de se estranhar que, para provar sua convicção de que
qualquer música poderia ser dançada e teatralmente encenada, ela
tenha se atrevido a bailar ao som de Wagner, Brahms, Beethoven e até
mesmo com o célebre coro de crianças gregas, o que a levaria a dançar
em Londres, Viena, Munique ou Berlim temas tão inusitados como As
suplicantes, O Danúbio azul ou adaptações de antigos hinos helênicos,
musicados na Alemanha por um professor bizantino ligado à Igreja
Ortodoxa.
Em plena maturidade, com o duplo peso da fama e de seus
fracassos amorosos, abatida pelo fastio e pela frustração, desatendeu
aos rogos de seu agente que em vão tentava fazê-la desistir de suas
viagens para que regressasse aos palcos europeus onde, segundo os
jornais, outras intérpretes já copiavam seus cortinados azuis, a
simplicidade de seus cenários, seus trajes e suas coreografias, que
eram recebidos com grande êxito e aclamados como originais. É claro
que lhe importava manter sua liderança artística; mas era mais forte
seu impulso quando tinha de escolher entre sua veia idílica e uma
rotina de contratos preestabelecidos. Um rosto, um nome famoso, a
promessa de um sarau intelectual compartilhado com as grandes
personalidades da arte ou do pensamento causavam nela o efeito de
um filtro mágico. Largava tudo desde que pudesse se encontrar face a
face com seus símbolos ou participar do intercâmbio de vozes que
animavam a imaginação européia. A única coisa importante, dizia ela
depois de haver recebido a visita mítica de Cosima Wagner, era viajar o
quanto antes para Bayreuth a fim de absorver a música de Richard
Wagner. O fundamental era beber até o último alento o legado do
gênio, suas óperas, seus personagens legendários, as palavras de sua
monumental viúva e o rumor de poesia que somente se respirava em
um ambiente consagrado à música. Assim era Isadora Duncan: um
remoinho sem outro guia que seu impulso arbitrário.
À margem da generosa evocação familiar que determinou o
caráter da artista, esse primeiro encontro de duas mulheres
singulares é um eixo em sua autobiografia. Segundo ela mesma
escreveu, nunca havia encontrado nenhuma outra que a
impressionasse tão vivamente, e que por seus olhos brilhantes e seu
nariz proeminente destacava-se nela uma fronte radiante de
inteligência. Desmedida até mesmo para qualificar a quem recém-
conhecia, sua facilidade para se impressionar com lampejos de razão
talvez a tenha levado a exagerar em Cosima um suposto domínio
daquilo que considerou "os mais profundos sistemas filosóficos". Mais
de uma vez se referiu à influência de suas críticas vanguardistas,
herdadas em parte de seu marido Richard Wagner, e, em especial, à sua
férrea oposição às escolas de balé então em voga. Abominava, inclusive,
os figurinos em uso e a miscelânea de cores nos cenários. Essa primeira
entrevista com aquela mulher que, além de tudo, fora a filha predileta
de Franz Liszt, foi tão decisiva que reanimou em Isadora o velho sonho
de criar uma escola de dança para levar a Bayreuth o grupo de ninfas,
faunos, sátiros e graças com os quais o próprio músico alemão uma
vez sonhara a fim de completar sua universalidade musical. A partir do
momento em que reconheceu em Cosima o sinal de um novo
entusiasmo, nada desejou mais do que representar Tannhäuser com
um sentido de beleza que acreditava combinar com os movimentos
amáveis, suaves e voluptuosos que julgava característicos das Três
graças de Wagner.
Foi assim que, como se fosse esse o ponto fundamental de seu
destino, viajou em uma ensolarada tarde de maio para o santuário de
Bayreuth1. Hospedou-se em vários quartos do hotel Águia Negra e
instalou ali seu piano a fim de completar seus ensaios para o Tannhäuser
e elaborar estudos coreográficos para O anel dos nibelungos e Parsifal,
visando possíveis representações que, como reiterara em numerosas
páginas descritivas, a conservavam "mergulhada em um estado de
embriaguez estética".
Navegar sem dinheiro de Nova York à Inglaterra em um barco que
transportava gado, acompanhada de sua mãe e de dois de seus três
irmãos, para tentar a fortuna em Londres em tempos de miséria e
exaltação, faziam-na se sentir uma somatória de personagem de
Dickens e heroína de uma cruzada estética que distraía seus piores
momentos alimentando nos parques, museus e bibliotecas britânicos
a fogosidade crescente de seu espírito. Isadora Duncan teve um desses
temperamentos que nunca deixam de fantasiar o extraordinário que
são, por si sós, os encontros com intelectuais, políticos ou
aristocratas. Essa parte social da arte talvez tenha predominado sobre
a verdadeira solidão do criador porque, ao evocá-la com rasgos de
personalidade que poderiam resvalar na neurastenia, descarregou
nas páginas de sua autobiografia um tal entusiasmo que resultaria
incompleto qualquer compêndio sem a importância que atribuiu às
tertúlias como alimento imprescindível para seu espírito.
De Londres a Moscou e de Paris a Berlim, Budapeste ou Viena,
seus itinerários desenham um mapa ou uma geografia de notáveis até
os anos 1920, os mais vertiginosos não somente pela psicologia do pós-
guerra, que de fato fecha o pensamento do século XIX, mas pela
proliferação complementar de personalidades voluptuosas, de cuja
dissipação haveriam de surgir as chaves de uma modernidade
embasada na idéia de que, após consumada a primeira transgressão,
tudo se torna permitido.
Isadora reconheceu que as angústias, os sofrimentos e as
desilusões incontáveis do amor acabaram por modificar sua arte.
Inclusive no cúmulo da sobreposição mítica, durante suas horas mais
críticas, concebeu uma coreografia sobre o tema de Ifigênia e seu adeus
à vida sobre o altar da morte, justamente para representar seus
estados de desamor.
Em Cosima, por exemplo, acentuou a herança viva de Richard
Wagner com a mesma intensidade com que, anos depois, exaltaria a
personalidade de Eleonora Duse. Em sua villa Wahnfried, de Bayreuth,
situou-a sobre a tumba do herói como uma estátua viva, no centro da
intelectualidade alemã. Recebia com regularidade artistas, músicos e a
aristocracia que vinha visitá-la de todos os lugares, com a religiosidade
dos crentes em busca de relíquias, o que preenchia sua fantasia sobre
o saber e o glamour acentuado ao calor das conversas privilegiadas. A
própria Isadora Duncan cultivou tal costume também em torno de
críticos e poetas, homens vividos e mulheres destacadas por sua
sofisticação, sua fortuna ou sua popularidade, ainda que jamais fosse
capaz de sustentar essa função de animadora cultural porque nunca
chegou a ter residência fixa.
O veio de frivolidade que a animou a freqüentar os locais
preferidos pela aristocracia manifestou-se ainda em seu orgulho por
haver inventado em Opatija2, durante sua viagem para Munique, um
traje de banho inspirado em uma túnica azul-celeste de gaze chinesa,
profundamente decotado, com pequenas aplicações no ombro e uma
saia até os joelhos, semelhante às túnicas gregas que tanto lhe
agradavam. Apesar do escândalo que causara ao mostrar braços e
pernas, seu modelo não tardou a ser imitado nas praias da moda, pois
até então as senhoras se banhavam cobertas severamente de negro,
com tecido que lhes chegava até os tornozelos, meias negras e até
mesmo sapatos de banho, também negros.
Isadora não tolerava nada inferior ao estado de adoração. Por
isso, não causa espanto que, ao redigir as primeiras páginas de Minha
vida, com quase 50 anos mal vividos, obesa, desgastada pela dor, pelo
excesso de álcool, pela ruína moral e pelo descuido artístico,
escrevesse no tom provocador dos anos 1920 que gostaria de incluir
uma fotografia sua para que os leitores lhe respondessem opinando
sobre o que achavam de sua beleza perfeita.
"O gênio é o rigor no desespero." Esta brilhante definição de Jean
Genet retrata o melhor de Isadora Duncan, que passava as noites
aperfeiçoando seus movimentos e gastava os dias absorvendo tudo
quanto desejava saber sobre o conhecimento e a vida. Imbuída de um
furor juvenil, desde sua primeira manhã em Londres estudava a arte
da antiga Grécia no Museu Britânico, enquanto seu irmão Raymond
traçava esboços de cenas heróicas que ela depois aproveitaria para
coreografias inspiradas na graciosa leveza de ninfas descalças sobre a
grama, que a fizeram saltar dos salões palacianos ao grande público dos
mais prestigiosos teatros; e quando se achava no auge, em que se
congregavam o desamor e sua paixão infatigável, apresentou-se no
templo de tijolos vermelhos da colina de Bayreuth para representar,
em um paroxismo de síntese simbólica, os quadros de Primavera, com a
loura Sieglinde repousando nos braços de seu irmão Siegmund
enquanto se elevava naquela paisagem brumosa e wagneriana do
coração da Europa o canto glorioso de um coro que repetia: "Amor,
dança; dança, Amor...".
Criou seu próprio personagem e o explorou até esgotá-lo. Era a
doce donzela grega que sob as pregas de sua túnica abrigava uma
transgressora implacável; era a mais delicada das artistas, que apenas
roçava o piso ao caminhar sobre sandálias que motivaram mais de um
estrondo jornalístico a propósito de suas extravagâncias, talvez
exageradas; era a contragosto uma típica norte-americana que,
partindo da consciência de seu país improvisado, quis sorver até o
última gota da cultura européia; era, também a seu pesar, uma
californiana inclinada à impostura, que não aceitava o controle sobre
suas emoções; mas inclinada a tudo com o objetivo de impressionar
intelectuais e artistas, a fim de empreender por seus méritos os mais
intensos episódios entre a poesia e a dança, a música e a pintura ou a
escultura e o bailado. Era também uma bela irlandesa, mágica e
sedutora, que sonhava com a eternidade como outros fantasiam seus
pequenos delírios. E era, acima de tudo isso, ela mesma: um talento
incandescente sempre disposto a arcar com as conseqüências
emocionais de seu furor insaciável.
Em sua Califórnia natal provou os primeiros deleites libertários
enquanto passeava descalça à beira-mar. Anos depois, ao conquistar
seus primeiros triunfos, quando Charles Hallé era diretor da New
Gallery, em Londres, onde expunham os pintores modernos, ela
bailaria quase desnuda ao redor da fonte do pequeno pátio central,
rodeada de palmeiras mediterrâneas e plantas exóticas, para um
seleto grupo que lhe granjearia o tão desejado reconhecimento da
minoria. Essa era a Londres que concluía a primeira década do século
XX: impregnada com o torpor vitoriano que faria Virginia Woolf se
lamentar em seu livro Três guinéus em relação à situação feminina, e
que levaria as valentes sufragistas a tomar as ruas ou encher os
cárceres em nome de uma luta pela igualdade que, a partir do direito
ao voto, envolveria o século com exigências que ainda estão por
resolver em quase todas as sociedades do mundo.
Aquele era um mundo tingido pela violência, pela repressão e
pela vontade de ruptura, berço de escritoras - meninas ainda ou
jovens que já se encarreiravam nos atrevimentos que distinguiram tais
décadas, consideradas gloriosas - que se encarregariam de deixar na
letra impressa algo mais do que relatos marcadamente autobiográficos,
além de novelas, crônicas e contos perturbadores. Aquela era a
geografia espiritual de Colette, Vita Sackville-West, Gertrude Stein,
Alma Mahler e da própria Virginia Woolf. Semente inspiradora da
excessiva Jane Bowles, que no legendário Tânger - cenografia ideal para
os trânsitos pagãos até meados do século, onde tantos escritores
encontraram o mistério exato para enquadrar suas agonias
homossexuais, suicidas e desmesuradas - atinou finalmente com a
temperatura exigida por seu inferno particular; esse Tânger recôndito
para onde desceu a última Bowles, avassalada em um bar de lésbicas
por Cherifa, a marroquina analfabeta, vendedora de grãos no bazar, que
a drogava a fim de explorá-la financeiramente por meio da
dependência sexual até provocar-lhe o coma que lhe causou a morte,
em 1957, por ingerir majoun3 em excesso. Eram, portanto, as décadas
culturais da ruptura e da desesperação, que fixaram nos anos 1920 a
referência fatal de sua febre devoradora de todas as proibições.
Não menos intensa, ainda que nela predominasse seu ímpeto
criador, a vida de Isadora Duncan não pode ser entendida sem a
animação cultural que campeava entre a loucura e a genialidade de
seus melhores homens e mulheres. Nascida em 1878 na cidade de São
Francisco, seria difícil determinar se revolucionou a dança por sua
inconformidade ou se foi a rebeldia enraizada em sua formação
familiar que acabou definindo um estilo que, em essência, consistiu
de rupturas, de oposição ao rigorismo paralisante, de contraponto entre
projeções heróicas e legendárias, tipicamente gregas, e da necessidade
de varrer tudo isso e varrê-lo bem, como diria Albert Camus em sua
nova versão do homem moderno.
Prisioneira de si mesma no centro de um conflito sem resolver,
para Isadora Duncan a verdade oscilou entre dois absolutos: o Amor e a
Arte. Um e outro se estreitaram como vasos comunicantes em
correspondências cada vez mais voluptuosas, cada vez mais complexas
e enfrentadas no palco tal como em um campo de batalha.
Transformou sua intimidade em objeto de uma paixão criadora que a
devastava nas fases de desamor ou lhe provocava explosões ocasionais
de exaltação, quando tomava por sublimes aquelas que, na realidade,
eram intensos rompantes gerados por sua impossibilidade de cultivar
a vida a dois. Desde os dias de suas representações particulares em
Londres, aferrou-se à certeza de que dançava para seduzir, e seduzia
porque dançava. Não conheceu fissuras entre a vontade de transcender
como artista e a de se imortalizar por meio de seus prazeres vitais. Por
isso suas crises foram devastadoras, porque não dispunha da
autodefesa indispensável para se preservar com uma paixão quando a
outra transbordava. Por isso, também, seus extremos conduziram-na
ao auge à custa da dor causada por uma inevitável autodestruição.
Ao crer na imortalidade pessoal, mostrou ser tão ingênua quanto
incapaz de distinguir vaidade e talento. Quando se enamorava dos
homens, dotava-os de atributos sobrenaturais; depois, quando a
violência serpenteava por entre os escaninhos de sua realidade íntima
indesejada, recorria ao destino para justificar sua natureza selvagem e o
foco da energia vital e cinética de seu corpo, a partir do qual surgiu sua
idéia de dançar baseada em cerca de quinhentos exercícios
coreográficos que reuniu, em curto espaço de tempo e em plena
gravidez, no intuito de ensiná-los em sua escola para meninas na
Alemanha, que em sua ausência era dirigida por sua irmã Elizabeth.
Daí a constatação de que suas fases de maior declínio proviessem da
má escolha do amante, e que seus piores abandonos artísticos
coincidissem com seus períodos de dissipação e excessos de
frivolidade, típicos de sua época. Escandalosos do princípio ao fim, seus
casos de amor tornavam-se notícias públicas no mesmo ritmo cambiante
de suas representações cênicas. Tratava-se, então, de desafiar os tabus
em todas as frentes, de transgredir e escandalizar, prejulgando ela
mesma, talvez, que uma vida desordenada é mais propensa a estimular
a popularidade porque contribui para dar publicidade a seus acertos.
Gordon Craig, ator inglês, produtor, diretor e crítico de teatro
que apreciava sua arte como ninguém, foi o pai de sua infortunada
Deirdre, a pequenina com quem Isadora sonhou duas vezes durante as
primeiras semanas da gravidez, caminhando com seus cachos
dourados pela mãe de sua avó, a atriz Ellen Terry, que, como que
antecipando a fatalidade que recairia sobre a criança, dizia-lhe:
"Isadora, amor meu. Amor... amor...".
Um dos gênios mais extraordinários da época. Era assim que ela
considerava Craig, acreditando-o da mesma espécie metafísica que
Shelley: seres de fogo e de luz, em permanente estado de exaltação,
que passam do furor colérico ao mais vivo entusiasmo sem nenhuma
emoção intermediária. Derivou daí a voluptuosa relação que começou
em Berlim, em uma noite primaveril de 1905, quando, dançando no
palco, divisou esse jovem na platéia, a quem desde então associou com
um daqueles anjos pintados por William Blake, e a quem chamou de
sua alma gêmea, filho da arte e da maior artista, seu perfeito amor; até
que a angústia anterior ao parto a fez mergulhar em uma depressão da
qual não se recuperou senão meses depois, quando, já de regresso a
Berlim após uma estadia na Holanda, deram à pequenina o nome de
Deirdre, "a amada da Irlanda", e ela mesma já tivesse recobrado a
elasticidade de seu corpo transformado.
Unidos pelo repúdio às convenções, Isadora Duncan e Gordon
Craig compartilhavam semelhante aversão ao simbolismo expressado
pelo matrimônio. O ciúme profissional, porém, se infiltrava entre eles
com o prenúncio de uma tormenta coroada por alegações
irreconciliáveis sobre as exigências do trabalho de cada um; por suas
invariáveis discussões sobre a teórica genialidade dele, sempre
preocupado com os espaços deixados pela disciplina perdida por causa
dela, e sobre a expressão do ser vivo em cena, que Isadora identificava
com a dança para demarcar a perfeita beleza que apregoava como
condição de harmonia libertária.
Irremediável como era seu relacionamento, Isadora confessou
que seu destino era inspirar um grande amor a esse gênio, ainda que
fosse impossível adaptar-se às distintas exigências de suas carreiras.
Resultou daí que, depois de algumas semanas de amor selvagem e
apaixonado, travaram uma feroz batalha entre o talento disciplinado
de Gordon e o arrebatamento dessa artista que, então no topo do
sucesso, se dava ao luxo de dirigir com Elizabeth uma escola em
Grünewald, a fim de cultivar e difundir a ruptura que, paradoxalmente,
era patrocinada pela mais conservadora representação feminina da
burguesia alemã.
Assim era Isadora Duncan, contraditória e temerária até o fim;
desafiadora a ponto de alugar a sala da Orquestra Filarmônica de
Berlim para proferir uma conferência sobre a dança como arte de
liberação e, de passagem, defender o direito de a mulher amar
livremente e ter os filhos que quisesse, com quem e como quisesse,
sem o jugo do matrimônio nem as obrigações mortificantes que
naqueles dias enfureciam as feministas em uma Europa dividida entre
o temor às mudanças e a corrente de uma estupidez moral que, em
poucos anos, derivaria na ferocidade do fascismo.
Eram os meses de sua identificação intelectual com Eleanora Duse
e das tentativas de conciliar sua maternidade com as exigências teatrais
de Gordon Craig, que desejava montar em Florença a peça Rosmersholm,
de Ibsen, com a caprichosa atriz italiana que, além de não falar uma
única palavra em inglês, dependia da intervenção de Isadora para
mediar os conflitos interpretativos sobre a obra e o cenário, que Craig
vigiava com o mesmo autoritarismo com o qual a atriz se empenhava
em impor as próprias normas. Eram também os meses em que, depois
da exitosa representação da obra, Isadora descobriria que seus cofres
estavam vazios e que havia uma imperiosa necessidade de realizar
uma turnê de dança na Holanda, mesmo depois de sofrer uma longa e
penosa neurite. Isso acabou em outra batalha com Craig que, após
outra de suas depressões habituais, a lançaria temporariamente nos
braços de Pim, um jovem colecionador de mulheres famosas, por quem
ela se fez acompanhar sub-repticiamente quando foi dançar em várias
cidades russas, agora sem a carga emocional que lhe provocavam as
velhas discussões com o amante sobre suas respectivas exigências
artísticas.
Em seu livro Minha vida recordou que, ao lado de Pim, sentia-se
despreocupada e feliz, e que graças à sua fácil frivolidade suas danças
se aligeiraram com renovada vitalidade. Dessa experiência, que Isadora
qualificou como distintiva do "prazer do momento", surgiu uma de
suas coreografias mais famosas, Momento musical, a qual, por causa
dos aplausos do público, tinha de repetir cinco ou seis vezes por noite,
e com cujo solo coroava as apresentações em cena.
A pequena escola de Grünewald representava, enquanto isso, a
outra margem inatingível de seu sonho criador; um sonho que não
podia financiar, apesar de sua desesperada tentativa de conseguir
fundos na Rússia, na Inglaterra ou na própria Alemanha; um sonho
que a obrigou a regressar à América, o grande erro de sua vida porque,
oito anos depois de ter saído de lá e apesar do grande êxito que a
consagrava na Europa, veio a descobrir algo mais que indiferença
entre o público de Nova York.
Salvo a acolhida de um grupo seleto de poetas e escultores que
se agrupavam no Greenwich Village, Isadora Duncan não encontrou
mais que desalento em sua pátria. Apenas um punhado de
espectadores acudiu para presenciar uma Ifigênia de Gluck muito mal
tocada, ou a Sétima sinfonia de Beethoven ainda pior executada, em uma
Broadway que não conseguia decidir se Isadora Duncan era uma
péssima atriz que se movia de maneira estranha ao ritmo da música
sinfônica, ou se era apenas uma mutante exibicionista que oscilava
entre o balé e a atuação experimental. Seja qual fosse a confusão, o
resultado foi um fracasso acachapante. Os críticos reconhecidos
simplesmente a ignoraram; e os demais, uns poucos que foram assisti-
la por uma questão de rotina, maltrataram-na em suas colunas. Charles
Frohman, diretor influente e justamente quem a havia contratado,
jamais chegou a entender que sua arte não era uma representação
teatral ordinária. Ele programou sua estréia para um agosto
particularmente quente, com uma orquestra pequena e insuficiente,
como se fosse apenas mais uma de suas atrações na Broadway. Ao
concluir que nem mesmo uma excursão por cidades pequenas poderia
recuperar seu investimento, deu por concluído o contrato e lhe
recomendou que voltasse para os palcos europeus. "As cabeças da
América" - disse-lhe Frohman em tom de discurso - "ainda não estão
preparadas para a arte. Aqui a criatividade segue outra lógica. Você
nunca será aceita por eles". Era o final de 1908 e, longe de se render,
Isadora Duncan se aferrou ao expediente das apresentações privadas
para não abandonar Nova York sem o reconhecimento de seus melhores
homens.
O princípio do fim, de acordo com a lógica da turbulência, teve
em Isadora Duncan o selo da paixão insaciável. De suítes de hotéis a
villas de milionários, transportava baús, criadas e filha, de trem em
trem, de iates a restaurantes de luxo ou de tertúlias noturnas a
discussões diurnas, sempre correndo de um teatro para outro e de um
desencanto amoroso para o falso consolo de braços furtivos, que lhe
serviam de estímulo para se aventurar em atrevimentos cada vez mais
próximos ao chamado da tragédia.
Insistiu que em certas ocasiões o amor destruiu a arte, e que a
arte interpôs suas condições cortantes ao curso de suas relações
amorosas mais promissoras. De seu tormentoso caso de amor com
Paris Singer, o famoso mecenas e herdeiro de uma grande fortuna
reunida por sua família graças à inestimável invenção da máquina de
costura, Isadora Duncan adentrou ao mundo do dinheiro e dos
caprichos realizados; mas também conheceu a experiência do ódio
tingido de ciúmes e fascinação amorosa, e o nascimento de seu filho
Patrick, que morreu aos 4 anos de idade, em 1913, junto com sua irmã
Deirdre, a governanta e o chofer, quando o carro em que viajavam caiu
no rio Sena em um pavoroso acidente que comoveu toda a cidade de
Paris.
Isadora Duncan jamais se recuperou. Rasgada pela angústia,
viveu sua tragédia entre sobressaltos de instabilidade e buscas
desesperadas, que por vezes renovavam palidamente sua esperança de
fundar outra vez uma escola para meninas para garantir a
permanência de sua arte na dança. O episódio foi arrematado por
arroubos violentos com Paris Singer, por dinheiro ou por
ressentimentos, que se complicavam com o furor da perda dos filhos ou
com explosões desesperadas que, manchadas pela crueldade sangrenta
da Primeira Guerra Mundial, despertaram nela uma necessidade febril
de se movimentar e de mudar, talvez para não encarar a essência da
dor que a corroía.
Para ela, a guerra significou o maior itinerário de sua carreira.
Percorreu alguns países da América Latina, outra vez a Alemanha, a
França e pequenas ou grandes cidades de todas as línguas, mas sem
que em nenhum desses lugares obtivesse um êxito semelhante àquele
que gozara em um passado ainda próximo. Apesar de sua maturidade,
seu universo se desfazia entre suas mãos. O melhor de sua carreira
parecia mortificado pelos episódios dolorosos de sua maternidade, e
sobre a dedicação às proposições artísticas em torno da dança, optou
por escandalizar por meio de alardes revolucionários em favor do
marxismo e da nascente sociedade soviética.
A partir dos funerais de seus filhinhos, sua vida se converteu
em um redemoinho até que, em 1920, vislumbrou a possibilidade de
abrir uma escola de dança em Moscou, que seria subsidiada pelo
Estado. Mais romântica do que realista, supôs que o comunismo
significava uma ruptura com todas as convenções burguesas, e que o
proletariado no poder levantaria um templo em sua honra, agradecido
por sua existência.
A dureza de um regime ditatorial inclinado à perseguição não
tardaria em lhe mostrar os rigores de uma verdade social que, para se
impor, assumiu plenamente o prejuízo de abolir as liberdades de
pensamento e expressão artística. Isadora não somente não conseguiu
realizar suas ambições como, precisamente no coração de Moscou, veio
a se encontrar com o homem que consumaria sua desgraça e, com ela,
o fim definitivo da esperança.
Sergey Aleksandrovitch Yesenin, poeta reputado durante o
período de transição para o domínio comunista, nunca conseguiu se
adaptar aos novos tempos. De acentuada religiosidade e profundamente
arraigado a sua modesta origem camponesa, seu mundo ficou relegado
às metáforas de uma Rússia coberta de bosques que já agonizava sob
o peso da "cortina de ferro" e de seu crescente desenvolvimento
industrial, que abatia até o último fragmento da rosada utopia que
expressara em seu livro Otra tierra4, com a nostalgia absoluta dos
refúgios extintos. Como outros jovens de sua geração, Yesenin abrigou-
se no exibicionismo ainda permitido em breves ocasiões nos cafés
literários, com a vã intenção de alimentar suas metáforas dos tempos
agora suspensos. Alcoólatra precoce, seu descomedimento mesclado à
desordem sentimental e a um indisfarçável desejo de notoriedade
ofereceu a Isadora Duncan o complemento perfeito da dissipação e do
oportunismo. Além de uma lista de amizades notáveis que incluía
Gabriele D'Annunzio, ela denotava em sua torrencial biografia a porta de
entrada para uma Europa ainda livre que Yesenin vislumbrou como
passagem para sua própria realização pessoal.
Filha do Sol, assim chamou-a uma adivinha na Armênia, aquela
que nasceu para alegrar os homens e consagrar a beleza. Isadora teve
presságios que anteciparam seus sofrimentos e, nos momentos mais
difíceis, praticou a telepatia. Os augúrios que recebeu, em forma de
sonhos ou de sinais materializados em símbolos trágicos, não
conseguiram evitar nenhum dos desenlaces anunciados. "Não
busques novamente desvendar sua sorte" - recomendou-lhe Eleonora
Duse. - "Tu levas na testa o sinal daqueles que estão predestinados ao
infortúnio. Conforma-te com o que tens e suporta tuas penas com
ordem e serenidade. O que aconteceu a teus filhos é apenas a
antecipação de algo pior que ainda está por vir... Não se deve nunca
tentar o Destino."
Isadora não deu ouvidos à advertência da célebre atriz e nunca
se lamentou o suficiente por isso. Eleonora Duse morreu enquanto ela
planejava uma excursão pela América, que lhe renderia fundos
suficientes para levar à cena sua obra-prima. Subsistiram suas
depressões, as viagens à América do Sul e, finalmente, a nefasta
experiência soviética que, em 1922, a levaria a se casar com Yesenin,
dezessete anos mais jovem do que ela, a fim de livrá-lo do jugo do
comunismo e levá-lo consigo para os Estados Unidos. Abandonar
aquela que parecia ser sua convicção inabalável de rechaço à instituição
do casamento seria o começo de uma longa seqüência de erros, já que
não pôde ser mais inoportuna sua decisão de retornar à pátria.
Reinava então na mentalidade norte-americana o temor mais acirrado
à "ameaça vermelha", que logo foi estendido a eles a ponto de recair
sobre o casal a acusação de serem agentes bolcheviques.
Tenaz e libertária, Isadora persistiu em sua missão de proteger o
jovem e cada vez mais degradado poeta. Um fio de sua loucura, não
precisamente poética, se havia infiltrado em suas atuações, e até mesmo
ao dançar inventava algum desatino que irritava os críticos ou a
indispunha com o público, que dela esperava somente a realização de
um espetáculo artístico. Intempestivamente, sem o conhecimento de
seu empresário nem mesmo dos músicos que a acompanhavam,
Isadora Duncan interrompeu um de seus concertos para apresentar
Yesenin ao mundo americano, no Symphony Hall de Boston. A resposta
não se fez esperar: choveram os gritos de protesto do auditório e, a
seguir, começaram a atirar objetos que a obrigaram não só a fugir do
palco, mas a deixar os Estados Unidos tão imbuída de ressentimento e
em meio a tantos insultos, aos quais ela revidava com mais violência,
que, ao embarcar de volta à Europa, declarou, segundo registraram os
repórteres: "Adeus para sempre, América. Nunca mais te voltarei a
ver".
Daí em diante seria o raio, uma tormenta cada vez mais escura
que a transtornou para sempre.
Abatido, Yesenin retornou para sua pátria em 1924, na tentativa
de refazer sua vida. Porém, era tarde demais para retificar seus erros. Ao
álcool se somaram os efeitos de um terrível sentimento de culpa, de um
vício incessante por cocaína, de outro matrimônio fracassado - desta
vez com uma neta de Liev Tolstoi - e de uma crise nervosa que, depois
de uma prolongada e inútil hospitalização, levou-o a se enforcar em um
hotel de Leningrado no ano de 1925, depois de haver escrito seus
últimos versos com o próprio sangue.
Isadora Duncan não teve melhor sorte. Retirada em Nice, na Côte
d'Azur francesa, reduziu-se a uma figura patética. Abandonou a
vaidade e perdeu os escrúpulos até limites inimagináveis. Chorava
sozinha e na presença de outros. Visitava os bares, passava as noites
em claro e se embriagava até cair inconsciente. Gorda, abandonada,
gastou suas economias de forma irremediável. Sua inteligência
excepcional, contudo, a fez viver em plenitude até os pormenores de
seu inferno. Foi em Nice que escreveu seus dois livros. Foi em Nice que
saboreou suas melhores lembranças. E foi em Nice também que
encontrou a morte.
Na noite de 14 de setembro de 1927, quando conduzia seu carro
esporte pela estrada costeira em estado de embriaguez, a ponta de
uma longa echarpe que adornava seu pescoço se enroscou em uma das
rodas do veículo, enforcando-a com um único puxão.
Sua morte trágica consumou sua lenda. Foi então que começou a
ressurgir a deusa nos templos que invocavam seu nome com a súbita
proliferação da dança moderna que ela fundara; nos palcos
despojados, tão desnudos quanto seus braços e pernas, sem mais
enfeites que seu célebre cortinado azul e sua túnica transparente,
para emoldurar a beleza perfeita pela qual foi apaixonada por toda a
vida.

1 Referência ao teatro construído por Wagner, com a ajuda do rei Luis II da Baviera,
na cidade alemã de Bayreuth, para a representação de suas obras. Wagner compôs
seu último trabalho, a ópera Parsifal (1882), especialmente para ser encenado nesse
teatro. [N.T.]
2No original, Abbazia (em italiano). Balneário turístico localizado no extremo norte do
mar Adriático, na atual Croácia. Era o centro turístico por excelência do Império
Austro-Húngaro até a Primeira Guerra Mundial. [N.T.]
3 Doce feito à base de cannabis. [N.T.]

4 Tradução para o espanhol do livro Inoniya. [N.T.]


María Izquierdo

Assim como existem épocas em que se colhem talentos, também existem


regiões que produzem artistas com prodigalidade. Jalisco é um desses
focos que, no México, se distingue pela abundância de nomes que, por
meio das palavras e dos pincéis, transmitem a essência do barro, o
furor das planícies e o gosto de suas terras ocres, brancas, vermelhas
e verdes, saboreado em telas que exalam o cheiro da poeira dos
cerros desnudos ou a fragrância apetitosa da goiaba que enriquece as
mesas das famílias nas choupanas.
O Jalisco que tocou em sorte a Maria Cenobia Izquierdo é um
mundo de sombras emudecidas, de mulheres enlutadas e do homem de
fogo que desponta até o universo. É um silêncio que morde até o osso e
se transforma em metáforas deslumbrantes. É a dor das viúvas moças,
a festa circense ou a profundidade de um sentimento religioso que, dos
Altos ao Litoral, estendeu-se como um alfabeto de fogueiras e de
morte, perfeita relíquia consagrada a vida que perdurou em algumas
mulheres por trás do costume de venerar suas virgens peregrinas, de
Zapopán a São João dos Lagos, de Ocotlán a São Gabriel, em um
torneio de festejos pagãos que começa por revesti-las anualmente com
luxuosas vestimentas, em um espetáculo cada vez mais barroco, cada
vez mais popular e cada vez mais apegado ao gozo do sacrifício
representado no Altar de Dolores1, a fim de selar a tristeza com
figurações de cores vivas.
E é precisamente da região dos Altos, em que a gente mais
destemida trata a cavalhada por "tu", que proveio o pincel de uma
Maria Izquierdo de olhos tão negros e sangue tão índio que bastava
olhá-la para ler em sua pele o vigor da melhor mestiçagem, a força de
uma região que também ensinou as mulheres a sorrir e a chorar com
o frescor do barro do oleiro, legítimo portador das histórias pintadas
pelos antigos toltecas.
Desde seu nascimento em São João dos Lagos, em 1902, até sua
morte, em 1955, teve uma vida acidentada. Criada por seus avós até
os 5 anos de idade, dois episódios demarcaram suas linhas temáticas.
Primeiro, foi pisoteada por uma tropa de cavalos selvagens durante a
feira de São João; e ainda que tivesse escapado ilesa, conservou com
o trauma uma mistura de fascinação e pavor pela figura eqüina. Em
outra ocasião se perdeu em um circo ambulante, e não tivesse sido
resgatada a tempo por seu avô, teria desaparecido quando a trupe foi
embora. Foi a esta segunda experiência que Maria atribuiu sua
disposição ao nomadismo, e que a levou a dizer que, à falta de viagens,
mudava continuamente de casa desde o dia em que sua mãe levou-a
para morar consigo em Saltillo, em 1915, onde a fizeram se casar antes
de completar 15 anos com Cándido Posadas, um coronel local que,
tomado pelo carrancismo, lhe mostrou não somente os rigores do
norte mexicano como o tédio característico dos matrimônios comuns.
Quando ela completava 21 anos o casal se mudou para a cidade
do México e, pouco depois, com três filhos e um divórcio recente -
condição que, em uma sociedade tão fechada, acentuava ainda mais
sua extravagância em amar a pintura -, decidiu estudar na Academia de
San Carlos e viver com uma independência no mínimo conflitante com
o preconceito que apartava as mexicanas da expressão mais firme do
pensamento e da arte. Tais circunstâncias fizeram com que ela se
determinasse a não obedecer a outros ditames que os de sua própria
consciência, nem a ceder às zombarias com as quais lhe provocavam
alguns membros do grupo Contemporâneos2, que lhe dispensavam
ironias de duplo sentido, tais como: "Nasceu em Jalisco e foi criada no
México".
Graças à relação cordial que seguiu mantendo com Cándido
Posadas, Maria Izquierdo não sofreu penúrias econômicas, pelo menos
até se divorciar. Freqüentadora assídua de cabarés e do "ambiente do
frege" - assim definido por Alí Chumacero ao evocar a popularidade do
cabaré Leda, na colonia de los Doctores3 -, Maria participou de uma
boemia que, desde então e até a década de 1950, aproximou a cultura
de vanguarda do baixo-mundo dos desvalidos, meretrizes, toureiros,
coristas e homossexuais, promovendo durante as noites o prodígio do
esquecimento das distâncias sociais. Foi um tempo de nostalgia, de
cafés vespertinos e temperaturas que espelhavam o ritmo cambiante
do bolero diurno ao danzón4 noturno, em que se respirava um hálito
expansivo e divergente à estreiteza ideológica de um país que
lentamente se industrializava, em plena expansão urbana.
É dessa época que proveio a moda de se inspirar no folclore e no
popular. Os artistas pintavam obras que vendiam aos ricos, e os ricos
se orgulhavam dos pobres pintados que agora adornavam as paredes
de suas residências. Com esse prática todos contentavam as
aparências, à custa de uma miséria que deixou de incomodar desde
que os artistas descobriram nela o espírito mexicano e a perfeita
solução para cobrar grandes somas de dinheiro sem trair suas
inclinações esquerdizantes.
Aluna do seleto estúdio de Germán Gedovius, ali iniciou uma
amizade que perduraria por toda a vida com o museógrafo Fernando
Gamboa, que se converteria no principal promotor da pintura
mexicana. Ele elogiou a cordialidade de Maria Izquierdo, seu
provincianismo espontâneo e sua visão pura de um México até então
menosprezado.
Também natural de Jalisco e uma boa amiga sua, bem como seu
marido Manuel, porém com os matizes do crioulismo complementar
do naïf, expressando a voz mais profunda - síntese da memória e da
infância rústica - em retratos tão voluptuosos quanto as bodegas
reproduzidas nos quadros de Maria Izquierdo, Lola Álvarez Bravo foi a
fotógrafa da outra margem desse país cactáceo, recriado por ambas a
partir de um punhado de símbolos através dos quais, apesar das
deformações urbanas, instituíram os emblemas da escola mexicana de
pintura. Daí que, partindo de Diego Rivera a Frida Kahlo, de José
Clemente Orozco e o Doutor Atl até Rufino Tamayo, de Roberto
Montenegro a Ángel Zárraga, Guerrero Galván e Rodríguez Lozano, ou
de Maria Izquierdo a Lola Álvarez Bravo, a plástica mexicana seguiu um
mesmo caminho rumo à identidade, o qual não tardou a se expandir
para as letras e para a arquitetura. É o fio que une o passado nahua à
perturbação do levante armado. É o estampido que sintetiza e liberta um
rosto mascarado por séculos. É a coincidência de tempos e de buscas
para sossegar um ímpeto de modernidade tingido de alardes
comunistas e é, igualmente, o despertar da serpente emplumada5 na
medida em que empreende o diálogo com outras culturas no mais
vertiginoso capítulo da criatividade mexicana.
Recebeu certa influência da Academia de San Carlos quando, em
abril de 1928, Diego Rivera foi nomeado seu diretor e Rufino Tamayo
encarregado de seu ateliê de pintura. Na época com 26 anos, María
Izquierdo assaltou o mistério de sua espontaneidade tingindo de
vermelho pescados, frutos e Adãos e Evas paradisíacos que, em pleno
alarde nacionalista, envolveriam aquela época de paixão pelo autóctone;
uma época que incorporava as questões políticas às preocupações
artísticas e os artistas à organização política do poder que, não
obstante seus desvarios ideológicos e suas atitudes intolerantes,
assentaria as bases do complexo presidencialismo que resguardaria a
ascensão econômica de uma minoria e garantiria uma paz social até
então desconhecida, desde sua instauração por Lázaro Cárdenas, em
1935, até seu declínio, no final do século XX.
Foi intensa e frutífera a sua aproximação de Rufino Tamayo.
Trabalharam juntos em um estúdio central e na obra de ambos
prevaleceu uma afinidade técnica e temática que transcendeu sua
relação amorosa. De seu lado, María Izquierdo não somente afirmou
sua individualidade como também incorporou texturas, desenhos
singelos, objetos utilitários e cores até então confinadas ao universo
primitivo. Do veio popular, elogiado pelos críticos mais experientes,
Maria compartilhou com Frida Kahlo o gosto por se vestir à moda
tehuana6 ou com vestimentas nativas, que elas exageravam com uma
abundância de fitas trançadas nos cabelos e enfeites de um
barroquismo personalizado, que perdurou por décadas como indício
de vanguarda ou sinal de identidade.
Diferentemente das européias de seu tempo e inclusive da
própria Frida Kahlo, Maria Izquierdo não respirou no México da
primeira metade do século XX nenhum dos fenômenos transgressores
do feminismo, nem o furor reformista do pós-guerra; compartilhou, sim,
por outro lado, das inclinações marxistas em voga entre os intelectuais
de sua época. Vivia sua vida com placidez, sem exagerados sobressaltos
biográficos nem as tentações personalistas que caracterizavam Diego
Rivera e o grupo Contemporâneos. Apreciava viajar em companhia de
amigos pela República, comer moles oaxaqueños7 nos mercados, dançar
no Salón México e de se imbuir do típico até os mínimos detalhes, e
tanto melhor se seus achados proviessem das pulquerías8 ou das
festividades profanas de espírito mais genuíno, espelho das aventuras
indigenistas que complementaram a herança certificada pela
arqueologia.
País dominado pela política institucional e pela afirmação
psicológica da revolta armada, uns buscavam a ordem e outros a
liderança em um âmbito de notoriedade que transitava entre o poder e
as artes; isso durante décadas que os mais intrépidos souberam
aproveitar para reinventar um caráter que pretendiam telúrico, a fim
de demarcar o renascimento do povo historiado por meio de suas
pinturas.
Humorismo, nostalgia poética, vegetações floridas e agilidade na
pincelada: na obra de María Izquierdo começou a se reconhecer a força
que se ocultava por trás da visão feminina com violência opressiva, e
que soube extrair de seu povo uma de nossas melhores artistas.
Para numerosas gerações Maria Izquierdo foi apenas um nome
entre os grandes da pintura mexicana. Nada sabíamos do vulcão de
cores nem do fogo circense que animava seus seres de barro. Trinta
anos depois de sua morte e com uma retrospectiva incompleta, sua
obra reapareceu no final da década de 1980 para sacudir, com o gesto
solitário de uma mulher magnífica, a abulia de um tempo sem
assombros.
Sua linguagem surgiu do simples e do cotidiano; suas figuras,
atarracadas e um tanto feias, reproduzem a ordem divagada de uma
arraigada sobrevivência semi-rural, da qual brotaram contadores de
histórias, repentistas e pintores líricos cuja improvisação, mais que
graciosa, participa a existência de um México que custaria ainda a ser
aceito por naturais e estrangeiros. Não obstante ter sido a primeira
mexicana a expor nos Estados Unidos, em 1930, tanto no Art Center
de Nova York como no Metropolitan Museum of Art chamou a atenção
mais por suas vestimentas do que pelo estilo de sua pintura.
A doença cardíaca que a levaria à morte afastava-a
periodicamente do cavalete, mas não de suas funções políticas. No
princípio vendia pouco e a baixo preço, época em que, para manter a si
mesma e a seus filhos, dava aulas ou arranjava empregos subalternos,
sem com isso desatender a direção da Seção de Artes Plásticas da Liga
de Escritores e Artistas Revolucionários - LEAR, que além de cenário da
discussão marxista, era, sobretudo, o foro onde se deram a conhecer
os intelectuais que apoiavam o cardenismo9.
A lista de organizações de que participou confirma que para a
maioria das mexicanas pensantes não bastava a satisfação criativa.
Talvez contagiadas pelo movimento europeu, participaram da tribuna
com a religiosidade que então se transladou dos templos para as
batalhas dogmáticas, e com idêntica intransigência. Apesar da
discriminação sexual e de carregar em suas realizações as
conseqüências do machismo, mais intensamente arraigado nos
extremos da esquerda e da direita, Maria Izquierdo empenhou grande
energia nessas lutas pela justiça, as quais jamais lhe trouxeram
qualquer benefício pessoal, enquanto que a seus colegas do Comitê de
Ajuda à Rússia ou do Primeiro Congresso Internacional de Artistas e
Escritores Antifascistas, por exemplo, indiscutivelmente serviram de
plataforma para garantir sua notoriedade, o que demonstra que, no
México, nem mesmo o proselitismo justiceiro, geralmente apoiado no
trabalho feminino, derivou em outra coisa que não fosse a conveniência
pessoal de algumas figuras.
A chegada de Antonin Artaud ao país, em 1936, significou para
aquela geração um salto para o reconhecimento. Suas opiniões sobre a
inspiração indígena, a alma nacional e o renascimento das raízes remotas
da Mesoamérica foram decisivas para a auto-estima de uma cultura
forjada no menosprezo. Era o olhar estrangeiro, a voz que aliviava o
profundo sentimento de inferioridade que, pouco depois, seria
analisado por Samuel Ramos em uma obra de abertura para o
entendimento das limitações que, até hoje, caracterizam nossa
cultura.
Por volta de 1938, além de naturezas mortas pintou retratos de
Juán Soriano, Elias Nandino, Isabela Corona, Tamara Schee ou Rafael
Solana, enquanto aceitava favores de um chileno, Juán Uribe Castillo,
a quem seus colegas qualificavam como péssimo pintor e um Pigmaleão
de araque, porque, convencido de seu talento, convenceu Maria Izquierdo
a deixar o endereço em que morava para instalá-la em uma residência
no elegante bairro Roma, com uma limusine à porta. Organizou-lhe
recepções e preparou o cenário que julgou ideal junto ao corpo
diplomático para vender seus quadros. Finalmente, casou-se com ela e
compartilhou a melhor época de sua vida artística. Não obstante ser
criticada por seu relacionamento com esse pseudo-adido cultural da
embaixada do Chile, que veio ao México com a vã intenção de aprender
as técnicas do muralismo, foi por meio dele que despontou
comercialmente a obra de Maria Izquierdo e se confirmou a estética
por ela introduzida, a ponto de até mesmo seus detratores
reconhecerem em Tamayo e Uribe suas verdadeiras influências.
Equilibrista entre a comicidade e a tragédia, Maria Izquierdo não
se furtou ao surrealismo que, por momentos, encontrou magníficos
representantes nativos nos povoados mais distantes do México. O
escritor Jorge Cuesta estava entre os primeiros a assinalar sua busca
pelo cone ou pelo cilindro como formas fundamentais da natureza, tal
como o fizera Paul Cézanne, e suas obras, das aquarelas às aguadas,
dos óleos aos desenhos, xilogravuras e águas-fortes revelam um estilo
de composição concentrado no totemismo atávico de sua raça.
O circo é um dos redutos modernos do destino trágico. Seu
aspecto festivo parece distrair a infelicidade de seres condenados a uma
obscuridade só contrastada pelas cores dos adereços de malabaristas e
palhaços, anões e domadores, equilibristas e ginastas, os quais
compartilham uma mesma dualidade entre o real e o espetacular nessa
arena de risos habituados a balançar sobre o abismo. Ali se brinca com
fogo, a vida pende de um fio de arame ou se equilibra na ponta dos pés,
e se aprende a dialogar com feras submetidas pelo chicote em troca de
alguns bocados.
Máscara do sonho, o circo situou-se entre as supostas figurações
infantis que Maria Izquierdo remontava com fidelidade provinciana no
Altar de Dolores. Ao se perceber em seus temas a imensa solidão de
seres em constante movimento, pensa-se na fuga que a vida sedentária
inventa para fazer frente à vagueza da esperança, quando a rudeza é
encoberta por um detalhe simbólico que, no seu caso, se cumula de
luas, sóis ou outras esferas para iluminar a paisagem florida como se
fosse um pano de fundo.
Seguramente Maria Izquierdo passava horas olhando-se ao
espelho: inquiria sua mestiçagem austera, repassava a ponta dos dedos
por seu queixo proeminente, trançava e destrançava seus cabelos
para depois adorná-los com fitas vermelhas, azuis ou amarelas. Era
assim que pintava, como se delineasse a distância de um silêncio
secular. Variava o fundo, a indumentária, uma ilusão de vastidão
orgânica ou sua ficção de pesadelo; mas nunca seu olhar. Tampouco se
esquecia da fragrância do fornilho e do nixtamal10 servido de
madrugada, dos animais e da madeira dispersos pelo campo, da choça
de adobe ou do altar doméstico, retratados em composições familia-
rizadas com a desproporção do barro e com a simplicidade dos
desenhos mais primitivos.
O sagrado não se reduz à significação do espaço ou dos objetos.
Através de Maria sabemos que o mexicano também consagra suas
lembranças, e que seus altares reproduzem a ordem das cores
ancestrais. Cores e fartura que se estreitam com a tristeza. Os de
Dolores são altares do culto a uma dualidade de vida e de morte que
prevalece na alma mexicana. De vida aqui e em outro mundo, aquele
da fé que se alimenta com brotos e sementes; mundo de esperança
redentora e de reconquista daquilo que se foi para sempre. O
contraste da morte se insinua na dor irreversível da Virgem. Em seu
pranto cabe a certeza do fim definitivo, aquele medo de morrer que nos
caracteriza a todos.
As pinturas de Maria Izquierdo recriam uma infância feita de
vozes, de paisagens que beiram o insólito e de figuras matriarcais que
envolvem com suas carnes e suas roupas largas um tempo que se
deseja eterno, entre as planuras e montanhas das paisagens de
Jalisco. É a magia mostrada em contrastes de abundância e solidão,
objetos e memórias que se misturam na paradoxal harmonia dos
opostos, incluindo sereias gorduchas que aparecem e desaparecem
como piscares de olhos durante os momentos da vigília.
Pinturas ingênuas, diz-se, que resgatam os mitos e as quimeras.
Porém, acima de tudo, assinalam uma poderosa habilidade para
traçar símbolos com uma visão redentora da vida. A arte de María
Izquierdo harmoniza uma identidade que sempre aparece dividida pelas
coisas mexicanas, nas oposições da paisagem e no gesto cultural do
nosso povo. Ela teve um ponto fixo, seu próprio olhar, como eixo e raiz
de seu mundo solitário, e a partir dele diversificou as máscaras que
encobrem um país de barro.
Depois de uma década de êxitos, viagens e exposições, María
Izquierdo sofreu uma grave hemiplegia em fevereiro de 1948, que a
deixou em um estado de paralisia e de semiconsciência durante mais
de oito meses. Foram abundantes as notas nos jornais e os atos
públicos de apoio, coroados finalmente por um leilão organizado por
seus colegas e destinado a reunir os fundos necessários para assegurar
sua sobrevivência. Sucessivas embolias foram seguidas por crises morais
e psicoses de tragédia artística que, apesar de sua força de vontade
incomum, a encheram de amargura. Seus últimos anos foram
dolorosos, marcados pelo desgosto e por uma decepção tão profunda
que chegou a afirmar publicamente que pintar era uma prática que
carecia de sentido, pois seus êxitos, no fim das contas, só lhe haviam
trazido frustrações e invejas. Sua enfermidade impediu-a de
comparecer à homenagem que as autoridades do país lhe prestaram no
Palácio de Belas Artes. A 2 de dezembro de 1955 morreu de uma nova
embolia, aos 53 anos de idade; no dia seguinte foi acompanhada por
um numeroso cortejo, sendo sepultada no cemitério Jardín, na cidade
do México.

1O Altar de Dolores é uma tradição religiosa trazida da Espanha para o México no


período colonial, quando os jesuítas introduziram a devoção a Nossa Senhora das
Dores. Desde então, nas sextas-feiras anteriores à Semana Santa, os fiéis católicos
preparam altares para a Virgem em seus templos e lares. [N.T.]
2 Revista literária publicada no México entre 1928 e 1931. No entanto, por esse nome
ficou mais conhecido o grupo de escritores que colaborou com essa publicação. A
presença dos Contemporáneos e de seus herdeiros é de vital importância na cultura
mexicana, pois é tida como um marco do modernismo, do desejo de diálogo com
outras culturas e da busca pelo caráter nacional. [N.T.]
3.
Bairro residencial da cidade do México cujas ruas levam nomes de médicos notáveis.
[N.T.]
4.
Música e dança popular cubana, similar à habanera. [N.T.]
5.
Referência aos povos ou às línguas do grupo uto-asteca, estabelecido no México
central e meridional, com ramificações na América Central. O nome nahuatl do deus
Quetzalcóatl, reverenciado pelas culturas meso-americanas, significa "serpente
emplumada". [N.T.]
6.
Do nahuatl molli, "molho". Referência à variedade de molhos típicos do Estado de
Oaxaca, em geral servidos com algum guisado de carne de frango, de peru ou de
porco. [N.T.]
7.
Estabelecimentos onde se fabrica ou se vende pulque, uma bebida alcoólica
típica do México. [N.T.]
8.
Relativo à cidade de Tehuantepec, no Estado de Oaxaca, ou ao istmo do mesmo
nome, entre o Golfo do México e o oceano Pacífico. [N.T.]
9Referência à atuação política e ao pensamento de Lázaro Cárdenas, presidente do
México entre 1934 e 1940, que estabeleceu um sistema de igualdade social,
nacionalismo e valorização da cultura mexicana. [N.T.]
10Milho cozido em água de cal - preparada com cem partes de água para uma de cal -
que serve para fazer tortilhas depois de moído (México, El Salvador e Honduras).
[N.T.]
Simone de Beauvoir

No mês de abril de 1978, enquanto filmava o documentário Simone de


Beauvoir por ela mesma, a escritora francesa insistiu com um de seus
interlocutores, Claude Lanzmann, que desejava ser conhecida por
aqueles que jamais a tinham lido, e que um desejo vaidoso de
veracidade incitava-a a criar um testemunho perdurável de sua
natureza pouco tranqüila, uma mistura de angústia e de gosto pela
vida que, se por um lado determinou sua posição na corrente
existencialista do pós-guerra, também suscitou seu afã por
notoriedade ao levar ao extremo o argumento em favor da liberdade
em seus jogos amorosos.
Atacada pela tentação da palavra, abusava dela em detrimento
de suas idéias, e a seu pesar caminhava com a sombra de Jean-Paul
Sartre, mesmo nas ocasiões em que o abominava ou alardeava certos
aspectos de alcance transcendental em sua emancipação literária. "O
maior sucesso de minha vida é Sartre", disse ela ao reconhecer que por
meio dele descobrira que não estaria só frente ao futuro, ainda que, em
mais de uma oportunidade ao longo das décadas, seu vínculo
pseudomatrimonial parecesse mais uma peça ensaiada para o público
do que o produto harmonioso, com todas as suas conseqüências, de uma
convicção compartilhada; aquela certeza com que os dois avalizavam
sua idéia de par ideal que perdura através do tempo, não obstante
seus acidentes circunstanciais e por sobre as mesquinharias em que se
deixam cair menosprezos machistas tão ofensivos, como o que seria
proferido pelo próprio Sartre, acreditando que a elogiava: "O que existe de
mais maravilhoso em Simone" - declarou -, "é que tem a inteligência
de um homem e a sensibilidade de uma mulher". Essa realmente era a
maneira de ser do Castor, como a chamava o filósofo, embora, mesmo
em nossos dias, os homens não tenham se acostumado ao raciocínio
feminino e ainda se repita o preconceito contido na idéia de que ante
uma poderosa capacidade de discernimento, seguramente se oculta
certa virtude viril; por certo uma percepção já superada para a maioria
dos homens, pois a razão educada, no final das contas, é um atributo
da individualidade, sem distinção de sexo.
Simone de Beauvoir, desde pequena, foi dotada de uma
inteligência vivaz à qual não preocupavam muito as contradições nem
as definições explicativas, mas sim a torrente de deslumbramentos que
surgem "ao pensar contra si mesma", algo que despendia como parte
de sua reflexão sobre o papel do intelectual em provocar a consciência
dos outros. Por isso ela cedia nos pontos menores e se interessava
pelos fundamentais, já que, ao eleger a sinceridade total em sua
experiência amorosa, provou com seu companheiro que o matrimônio
era uma instituição burguesa obscena e nociva para homens e
mulheres. Somente o respeito alicerçado no reconhecimento do outro
salva o que pode perdurar entre dois que se juntam sem se casar e
sem viver sob o mesmo teto. E assim permaneceram um ao lado do
outro desde seus dias de estudantes até a morte de Jean-Paul, em uma
terça-feira, 15 de abril de 1980.
Com sua comovente despedida, A cerimônia do adeus, Simone de
Beauvoir se retirou para sempre da literatura em 1981, com estas
palavras dirigidas ao amado:

Eis aqui o primeiro de meus livros - sem dúvida o único - que você não haverá
lido antes de ser impresso. Está inteiramente dedicado a você, mas não é a
você que se refere. Quando éramos jovens e ao término de uma discussão
apaixonada um dos dois triunfava brilhantemente sobre o outro, dizia então:
"Te guardei na caixinha!". Você está agora na caixinha, não vai sair dela e eu
jamais me reunirei consigo: mesmo que me enterrem ao seu lado, de suas
cinzas para meus restos não haverá qualquer passagem.

Certamente não se abriu passagem alguma entre os restos dos


dois. Todavia, a memória conseguiu o que a matéria e a morte
impediram: eles permanecem unidos no equilíbrio inquietante de uma
época que revelou a vida como uma inadmissível contingência.
Sartre considerou o intelectual "um técnico do saber prático" que,
segundo as interpretações de Simone, "rompia a contradição entre a
universalidade do saber e o particularismo da classe dominante da qual
era produto". Desse modo, convencida ela mesma de que o novo
intelectual não podia nem devia se subtrair do sentido popular do
pensamento, resumira seu conceito de universalidade na tomada de
posição em torno daquilo que eventualmente contemplava sob a óptica
de sua postura "comprometida".
Dada a vastidão de seus objetivos, Simone de Beauvoir criou um
universo que outras escritoras contemporâneas não conseguiram
superar; viajou, ensinou, discutiu, escreveu, participou das mais
importantes atividades políticas de esquerda e manteve um olho
sempre alerta frente às mudanças. Membro do Congresso do
Movimento da Paz, viajou para Helsinque, na Finlândia; e de sua tão
freqüentemente mencionada viagem à China de Mao Tsé-Tung extraiu
sua novela, Os mandarins, laureada com o Prêmio Goncourt em 1954.
Não obstante seu êxito ao novelar suas idéias, preferiu ser fiel ao
ensaio porque aí se sentia mais livre para conciliar a memorista com a
denunciadora implacável que não desprezava a imaginação para
avivar a busca pela verdade, sempre inseparável do sentido de
sinceridade que reconheceu como norma de conduta. Além disso, era
obcecada pelas imagens do destino, pela ambigüidade e pela ética
humanista, que desenvolvia sem constrangimentos a partir de sua
postura existencialista.
A dose de astúcia com que exagerava seu papel de protagonista
naquela cultura francesa que oscilava entre as fronteiras da
intransigência ideológica, do idealismo redentor e da literatura de
compromisso, acabaria por resultar contraproducente tanto em seus
argumentos feministas posteriores a O segundo sexo - notável e original
ensaio em dois tomos -, como na consolidação de uma imagem pessoal
menos novelesca frente às gerações pró-revolucionárias que
consagravam no casal Sartre/Beauvoir o primeiro sucesso intelectual
compartilhado dos tempos modernos.
Seu problema era a tentação do excesso, nunca o
acanhamento; daí que, em décadas atribuladas por veredictos
sentenciosos e pela proliferação de ditaduras e sistemas autoritários
que atingiam inclusive as tarefas do pensamento, Simone de Beauvoir
encontrará uma correspondência social adequada à sua urgência de
mudar tudo e em profundidade, especialmente em se tratando de sua
inovação teórica sobre a servidão feminina, cujo foco libertador
coincidia como nunca com os lampejos revolucionários que an-
tecipavam uma mudança esperançosa do mundo.
O âmbito acadêmico e intelectual da metade do século XX vivia em
alerta a respeito das opiniões desses protagonistas de um
existencialismo que, conforme as pressões esquerdizantes, se inclinava
com avidez à linguagem daquilo que muito bem se definiria A força das
coisas (1963) ou Por uma moral da ambigüidade (1947), títulos
arrasadores de Simone. A intelectualidade preferiu, então, se colocar
do lado da prudência, que na confusão agravada pelo pós-guerra
mundial era representada pelo antifascismo. Um movimento que, por
uma parte, se transmudaria logo em comunismo; e por outra, se
converteria em antiimperialismo, corrente preconceituosamente
associada à expansão territorial capitalista pelos mais férreos
seguidores de uma União Soviética tão fechada que se tornava
impossível, na época, atribuir-lhe a quantidade de atrocidades que, ao
término da Guerra Fria, a revelaram como um modelo de fracasso
persecutório e de atrozes seqüelas econômicas e sociais.
Como nunca antes fizera escritora alguma no mundo, Simone de
Beauvoir pôs seus embates políticos na garupa da filosofia e, firmemente
montada em seu ateísmo - assumido desde os 14 anos de idade -
portou uma paixão criadora que a acompanhou até a morte. Praticou
com brio incomum um radicalismo demolidor daquilo que para ela
era inaceitável. Porém, após 23 livros publicados; depois de abordar
temas como a velhice e a morte a partir de perspectivas tão dolorosas
como a aceitação da decadência física e as lutas pessoais contra o
próprio passado; e depois de incontáveis batalhas contestatórias para
criar, modestamente, a desordem que talvez reordenasse algumas
vidas ou sistemas sociais, Simone confessou seu desalento diante da
derrota:

Tudo quanto existe é um imenso desespero que se expressa através de certas


formas de terrorismo. Talvez este não seja o momento de construir [...] Não
vejo uma esperança positiva nem um futuro radiante [...] mesmo depois da
derrotado capitalismo, estaremos ainda longe de destruir as atitudes
patriarcais.

Tais palavras foram professadas por ela aos 76 anos de idade,


cheia de tristeza, quando por iniciativa do governo de François
Mitterrand, em 1984, presidiu uma comissão oficial para incrementar
as expressões culturais da mulher, das quais se tornou símbolo e
precursora do século XXI.
Escrever e viver foram, para Simone, uma e a mesma coisa.
Escrever ensaios, novelas e memórias para viver, e viver para escrever
em qualquer lugar, de qualquer maneira, mas sob a condição de colocar
mais de si mesma e de sua experiência, como oportunamente lhe havia
recomendado Sartre, do que daquelas coisas que supunha importantes
pelo fato de ocupar a atenção política de seus contemporâneos. A
convidada foi sua primeira obra novelesca de grande fôlego, ainda que
dissesse lhe preocupar a exatidão do pensamento. Muito jovem ainda,
desde os 15 anos, já tinha algo a dizer; porém reconheceu em suas
primeiras páginas a imitação de suas leituras adolescentes.
Conforme escreveu citando Lagneau, em Memórias de uma moça
bem-comportada (1958), fez de seu desespero absoluto o seu único
sustento, ao menos de maneira literária, a fim de preencher a ausência
de Deus em sua vida e enchê-la de sentido. Zelosa da linguagem da
solidão, ficava aterrada com o isolamento. Para combatê-lo, hasteou
um feminismo profundamente intelectual sobre as bases de sua
necessidade de bastar-se a si mesma. Mestra de todas as mulheres,
percebeu com extrema agudeza as desigualdades de classe e os
abismos que separavam os papéis masculino e feminino em
sociedades ricas e pobres, terceiro-mundistas e avançadas.
Nasceu em Paris a 9 de janeiro de 1908, em uma família católica
e sensível ao valor da cultura. Seguramente escutou em sua infância
as notícias sobre as sufragistas inglesas, e como todos os de sua
geração, cresceu também marcada pelas guerras. Especulou sem
pudor, batalhou com as palavras, alardeou suas idéias, lamentou-se
pela atroz realidade feminina e jamais sucumbiu à tentação da
indolência ou do medo de envelhecer - que desentranhou tão
agudamente em A velhice, uma obra-prima que desmascara a cruel
marginalização do idoso que gasta seus anos se esquivando das ame-
aças da solidão e da miséria. "O infortúnio dos velhos" - assegurou - "é
um sinal do fracasso de nossa civilização contemporânea". E não se
equivocou: a própria Simone de Beauvoir preferiu se recolher desde o
desaparecimento do companheiro até sua própria morte, a 14 de abril
de 1986, aos 78 anos de idade.
Marguerite Yourcenar

Sua orfandade prematura ensinou-lhe a compreender, como já cantara


Jó, que a vida é curta mas cheia de tormentos até a saciedade.
Contudo acreditou na intensidade, e ao longo dos 84 anos em que
inquiriu o mistério de sua linhagem e reconstruiu literariamente a
casa da memória, Marguerite Yourcenar cultivou duas paixões: escrever
e viajar. Seu pai soube estimular esse entusiasmo com leituras e
situações extravagantes em uma infância tão privilegiada e contrária ao
curso rotineiro dos dias, que com ela Marguerite alimentou três obras-
primas da arte intermediária entre a biografia e a novela histórica:
Recordações de família, Arquivos do norte e A eternidade, o que é1. Por
essas páginas adquiriram vida as sombras que, em rasgos de hipocrisia
de uma classe de "ateus exigentes que esperam ver um santo em cada
eclesiástico", de leigos em nada, de eruditos burgueses e de mulheres
obstinadas em sobreviver entre a ficção e a realidade, converteram
Michel de Crayencour, seu pai, em um personagem moderno, original
e inteligente que, além de provê-la de um universo povoado de heróis e
campeões da individualidade, prodigalizou a semente idílica de um
talento aferrado à beleza como virtude.
Graças a essas cronologias familiares, enriquecidas pela influência
épica dos gregos, pelo humanismo latino e pela reflexão sobre a
intolerância que recaiu sobre inúmeros pensadores, de Campanella a
Giordano Bruno, Marguerite Yourcenar perseguiu a essência imperial
da Roma dos primeiros séculos de nossa era. Reconstruídos pela boca
de um Adriano cuja sensibilidade colocou-o muito além da história ao
meditar sobre sua realidade e seu tempo, os componentes sutis de sua
queda e a mescla de autoridade, paixão e religiosidade demonstraram,
através de um dos estilos mais depurados e belos, o alcance da sanção
poética de seu afetuosíssimo Konstantinos Kavafis: "Aí onde destruíste
tua vida, a destruíste para todo o universo...".
Sábia intérprete do significado do poder, partiu da idéia de que
um é o homem na vacilação de suas paixões, outro é o existir que nos
repete e nos faz permanecer. Tal é o nosso atavismo e a fenda que
permite vislumbrar o selo trágico do destino. Tal é a raiz do ser em sua
luta apaixonada e a causa, para todos os tempos, do afã libertador das
grandes vontades.
Reuniu o rigor da ensaísta à linguagem mais livre do criador de
ficções. Considerou a superfície, mas não se conformou frente às
aparências. Comparou testemunhos, cruzou dados e inferiu desejos,
um sonho fundador e a força secreta que antecede aos acontecimentos
até comprovar que a história é o resultado da época e do instante;
uma espiral que arrasta o eu em uma circunstância de espaço/tempo
que talvez obedeça, em sua razão primeira, ao impulso de uma emoção
recôndita.
Por isso é válido afirmar que Shakespeare é seu antecessor
literário direto, porque ambos concordaram que o poder político, ainda
que devore um reino inteiro, está vinculado à razão individual.
São atuais as figuras de Adriano e de Zenão2; igualmente o são
as meditações de Hamlet ou os extremos críticos de Henrique VIII:
entre a cobiça e o poder se erige um defensor da lei, sempre há
alguém que conduz uma esperança, que comanda o desafio de uma
nova ordem. A imagem da justiça ronda o círculo do domínio e da
responsabilidade profissional do governante que reina e se deleita em
uma época de desastres públicos, conforme escreveu em A benefício de
inventário.
O acerto de Yourcenar, como o de Shakespeare, consistiu em
subtrair de fatos políticos uma vontade que salta por sobre a história
para se elevar a emblema universal, para além de todas as épocas. É a
consciência do poder, sua luta destemida para alcançá-lo, a nostalgia
de deixá-lo e, às vezes, a própria morte por não conseguir recuperá-lo.
Yourcenar guarda a insuspeitada descoberta da dor;
Shakespeare, por outro lado, cala a complexidade da intriga.
Transumante, ele viveu entre comediantes; depois esperou a morte
retirado em sua pequena aldeia. Nômade durante metade de sua vida,
Marguerite escolheu a quietude de uma ilha solitária para criar; e
ambos ganharam notoriedade por seu repúdio às convenções.
Nascida Marguerite de Crayencour, na Bruxelas ainda muito
fechada de 1903, Yourcenar nunca ignorou sua natureza distinta nem
se lamentou pela carga de símbolos que trazia em seu desenho interior.
Foi por meio deles que criou os contornos de sua condição no mundo, e
foi por eles que veio a saber que não somos mais que "uma gota de
água no rio contínuo da existência". Mais filósofa do que novelista, as
construções secretas de "suas pequenas histórias", como gostava de
chamar as aguçadas alusões de seu espírito, remontam ao estado de
ser no tempo em busca do homem. E ao "homem" corresponde aquilo
que se descobre só por meio da consciência de ser útil aos demais e
desde a perspectiva universal de um budismo reelaborado com leituras
clássicas e duas ou três explicações que, em suas breves investigações
sexuais, lhe esclareceram uma espécie de mitologia da hostilidade que,
como no caso de Alexis3, serviram-lhe para entender as deformações
intelectuais ou morais que costumam atravessar nossas vidas.
Sempre ligada ao impulso primordial do sagrado, percebeu que
tudo é findável e mais que inútil é a vaidade, razão pela qual é
necessário trabalhar até que se atinja um determinado fim, conscientes
de que a aceitação racional da morte conduz tanto à esperança como ao
desespero; este é o verdadeiro labirinto do mundo, onde a única
aventura digna de ser vivida é a da alma que participa do todo com a
modéstia da pequena colher de pau que nos faz pensar no artesão
que a moldou, na árvore que originou sua madeira e na natureza que
a engendrou.
Convencida da fugacidade do presente, misturou o passado em
cada momento não porque acreditasse nele, mas para contemplar
melhor a natureza e apreciar aqueles escassos instantes em que se
sente algo maior do que a simples pressão do tempo. Por causa dessa
avidez de integridade, elaborou uma obra autobiográfica sem
precedentes a partir da Flandres do duque de Alba, em uma de suas
margens, e do império de Adriano na outra; mais além, abrangeu a
Grécia remota e a voz da Alexandria de Kavafis - um de seus
contemporâneos mais amados -, assim como vinculou com seu arco o
Japão legendário por meio da visão de Yukio Mishima, ou promoveu o
salto de civilização da feitiçaria divinatória à alquimia renascentista.
Tudo isso como se desejasse abarcar o sentido taoísta da totalidade sem
desatender aos pormenores do furor persecutório que recaiu sobre seu
prodigioso Zenão, nem desprezar os episódios cambiantes que através
da história confirmavam sua simpatia pela compaixão.
Marguerite Yourcenar foi, pela rica diversidade de seus temas e
por seu vigor espiritualista, uma das últimas representantes do
humanismo. Poetisa, novelista, contista, ensaísta e tradutora, sua vida
foi consagrada às letras, sem dar importância aos preconceitos que
envolvem o pertencer a uma língua, a uma nação ou a uma cultura. De
pai francês e mãe belga, viajou por quase todo o mundo até fixar sua
residência final no Maine, ao norte dos Estados Unidos, em 1939.
Sua curiosidade se concentrou na idéia do homem, esse homem
transcendente e obscuro que permanece na dinâmica do mundo.
Acima de suas obras magistrais, já consideradas clássicas, há de se
resgatar seu desejo de equilíbrio universal somente possível se o
indivíduo e a sociedade aperfeiçoarem a moral e o sentimento de
compaixão por seus semelhantes.
Apoiada na certeza de que não somos mais do que peregrinos em
um universo transitório, Marguerite Yourcenar foi se rendendo à
sabedoria "parecida com uma água límpida, às vezes clara, outras
escura, sob a qual se descobre a essência das coisas", até chegar ao
grau de se fundir, por meio de sua obra, em uma religiosidade de culto
à natureza. Essa sua substância particular é vislumbrada pelas suas
aproximações com a idéia de liberdade, sempre intimamente ligada à
viagem interior.
Através da análise do poder, Marguerite Yourcenar roçou o
enigma teológico e o furor dos dogmas que fizeram os homens
deslizarem para a morte do absoluto em troca de formas ou modelos de
contradição insolúvel, seja por seus dotes sobrenaturais, seja por suas
contrapartidas de ingênua onipotência. Ela é muito clara ao precisar
que somente o homem do Ocidente pretendeu fazer de seu Deus uma
fortaleza, e de suas alegorias sobre a imortalidade uma defesa contra o
tempo. Mais ainda, Deus, esse deus espanhol que se transluz nas
cenas flamengas, oscila entre a mais extrema violência persecutória
contra o indivíduo e as etnias - em nome da unidade do Estado - e o
legado alquimista, sempre reservado aos iniciados.
Poucas crianças como Marguerite Yourcenar cresceram com os
privilégios da inteligência e da ânsia civilizadora. O resultado de sua
excelente formação nutriu sua consciência de ser útil como escritora
e, ao mesmo tempo, transcendente como mulher, até colher com sua
vida e obra um conceito contemporâneo do humanismo: intelectual
compassiva e de olhos abertos, sempre alerta frente às dores do
mundo.
Marguerite Yourcenar morreu a 17 de dezembro de 1987,
convencida de que a palavra é a única ferramenta que permite
transformar em único o mais comum, e em universal um modesto
sonho de luz.

1. Os três títulos formam a trilogia O labirinto do mundo, de caráter autobiográfico. [N.T.]


2 Referência ao imperador romano Adriano e ao filósofo alquimista Zenão,
personagens centrais de dois de seus livros de maior sucesso. Memórias de Adriano e
A obra ao negro, publicados em 1951 e 1968, respectivamente. [N.T.]
3 Alusão ao personagem do livro Alexis ou o tratado do vão combate, de 1929. [N.T.
María Zambrano

Peregrina da luz e do despertar do pensamento, Maria Zambrano


inferiu na metáfora do coração a linha mestra de um sonho criador.
Buscou a claridade nas escuras zonas do esquecimento e da morte.
Dignificou o lugar da palavra ao exprimir a imagem da aurora como
emblema do sagrado e inquiriu os sonhos - sua estrutura e o próprio
sonhar - como se fossem a fonte do tempo, um avanço contínuo em
direção a um centro ordenador da vigília, a fim de "recuperar" a
liberdade vital.
Elevado símbolo da Espanha desterrada, Maria iniciou sua
trajetória para o saber da alma a partir do caminho da linguagem, dessa
linguagem libertadora e paradoxal que se converte em guia de
transgressões, de buscas e de indícios que tendem a purificar uma
expressão mediante a conquista de um estilo, o estilo de um escritor
autêntico que, em seu caso, consistiu em dotar de voz poética o
filósofo; ou seja, ela foi capaz de um pensar poético ao vislumbrar um
sistema de perguntas na vereda desesperada do idioma, e de conceber
ali, na região das palavras, o alvorecer da esperança como a única via
de salvação.
José Ortega y Gasset, professor e mestre de Maria Zambrano e
sua maior influência vitalista, afirmou em seu livro As duas grandes
metáforas que a poesia é metáfora, enquanto que a ciência
simplesmente se serve dela. Infiel a este ensinamento, Maria Zambrano
atacou os conteúdos e os continentes da consciência examinados por
seu mestre, para se aventurar no vigor criativo da imagem; nessa
imagem real do estar no mundo na condição de "um sonho desmedido
da vida", luminoso e intimidante, que fragmentariamente, sem as
distrações retóricas de Ortega, conduz até aquilo que José Luis López
Aranguren considera "uma completude sempre buscada mas nunca
forçada" na idéia da existência.
É a imagem clara, justamente, a sustentação desse "desnascer"
poético do sonho desmedido de Maria, o sonho como rapto do ser, que
demarca a função mediadora do pensamento naquele lugar onde "o
nascido geme e a palavra balbucia": um labirinto, conforme ela diz,
"onde o sentir, o sentir solitário sem luz e sem tempo, aguarda
quando não espreita, onde o sentir se esconde entre as raízes da
psique, da avidez e do temor".
Filósofa do sagrado e do divino, Maria Zambrano foi se inclinando
para a mística a partir desse "ficar em suspenso" na forma de sonho, o
ser atônito, que Aranguren define como uma peculiaridade inovadora:

A filososfia do filósofo puro seria outra, seria a da perplexidade, da admiração


e, caso assim se queira, seria esse o traço característico da filosofia. Na verdade,
não existe muita diferença entre a perplexidade e o sentir-se suspenso ou
atônito; mas esta diferença - e ela efetivamente existe - é aquela que se
encontra entre uma filosofia filosófica, reduplicativamente filosófica caso se
queira chamar assim, e uma filosofia poética como é a de María Zambrano. E
essa condição de estar habitando na fronteira do ser é algo de uma filosofia
poética, e não da filosofia reduplicativamente filosófica.

Ao conceber o sonho como um despertar para a realidade,


Maria Zambrano concentrou uma vigilante atenção reflexiva sobre a
imagem da visibilidade "estando" na vida, sem fraturas temporais. Tal é
o movimento do ser humano que lhe permitiu pensar seu legado
cultural como uma sombra peregrina no horizonte criativo do idioma.
Teve sobre os ombros a Espanha de dois extremos, o da criação e o da
violência, o que a situa na história como um país de sol coroado pela
bruma. E a Espanha da Inquisição e a Espanha de Cervantes, a da
conquista genocida e a do cristianismo utópico de Vasco de Quiroga;
um país, enfim, que transita entre o sacrifício e o desejo de poder, ao
modo de um toureiro que sacrifica o animal sacrificando a si mesmo
em torno da figura da morte, "para formar com ele o hieróglifo touro-
pássaro".
Luz e vítima da Espanha negra do franquismo, saiu dali Maria
Zambrano como filha do conflito entre os desígnios e os deuses. Saiu
no barco legendário, encarregada de cuidar dos órfãos, mas sua
passagem pelo México acabou sendo desventurada. Com os desígnios
velejava o sonho ambíguo de Cervantes, os mitos consagrados, o "idiota"
de Vallecas1 - misteriosa verdade envolta em sua figura opaca - e o
compêndio penumbroso que iniciaria seu "desnascer" para alvorecer
sem pretextos temporais; com os deuses, ia seu clamor piedoso, a
inibição que impediu ao homem manifestar suas pretensões de se
acreditar Deus, seu desejo de ser como Ele; no entanto, foi através dos
deuses que se iniciou a revelação da fria claridade da consciência,
sonhadora e fiel à desilusão consecutiva, que a levaria a abrigar o
princípio da esperança como o mais puro e mais elevado reflexo do
humano.
Ao longo do caminho, sempre aguilhoada por uma inescusável
urgência de voltar, desprendida em parte do destino comum do exílio
no México, rompendo sua angústia por meio da ação criadora, Maria
foi recolhendo o drama de uma realidade despedaçada como o mito de
Osíris, até orientar o despertar da inocência e se encontrar, tal como a
Espanha, com a figura da morte no cruzamento da história. Diferente
em tudo de seus companheiros de infortúnio, iniciou a exploração de
seu pensar poético com as ferramentas rigorosas do vitalismo2, já
explorado por Ortega y Gasset e também difundido por Xavier Zubiri. Em
1933, precisamente na Revista de Occidente, publica os primeiros
indícios de seu estilo com os traços que depois completaria em Hacia
un saber del alma [Para um conhecimento da alma]; é dessa época que
data sua amizade, conservada até a morte dele, com o poeta José
Bergamín, fundador da revista Cruz y Raya, para a qual ela também
colaborou e pela qual haveria de confirmar a filiação de uma geração
de desterrados.
Para ela, 1937 é uma marco decisivo: publica no Chile um ensaio
revelador que guarda a consciência ambígua de sua Espanha trágica.
Em meados desse ano, integra-se ao grupo fundador da memorável
revista Hora de España e participa ativamente em favor da República.
Também escreve em Madri, mas de forma anônima, em outra revista
notável, cujo último número ela mesma edita sem desatender seu
desempenho infatigável nos conselhos de Propaganda e da Infância
Evacuada, aos quais pertenciam outros destacados intelectuais
republicanos.
Ao despontar do ano de 1939 inicia as etapas de um exílio de
quase cinco décadas, que haveria de ser preenchido com uma obra
excepcional, a obra de um talento peregrino que se engrandeceu ao
sentir a aurora entre o coração e seu incessante despertar, e ao clamar
por piedade e misericórdia durante um longo e fecundo trânsito vital da
obscuridade até a luz. Antes de colaborar na Casa de España, no
México, ou de ensaiar uma inútil adaptação a Morélia, onde ensinou
filosofia durante um curto espaço de tempo, Maria esteve em Paris e
em Havana, onde tampouco encontrou as correlações culturais
exigidas por seu espírito em plena ebulição criadora. No México
publicou Pensamiento y poesia en la vida española e Filosofia y
poesia, bem como um ensaio começado em Barcelona para a revista
Hora de España e posteriormente publicado pela editora Sur, de
Buenos Aires, intitulado San Juán de la Cruz: de la "noche oscura" a la
más clara mística.
Embora sua permanência na América tenha sido breve,
colaborou em numerosas publicações do México e de outros países
hispano-americanos: Taller, Luminar, El Hijo Pródigo; Asomante y la
Torre; Romance, Nuestra España e Las Españas; contudo, ao menos no
que se refere à reconhecida hostilidade literária dos mexicanos, Maria
Zambrano é apenas mais um nome na quase inexplorada penumbra
americana.
É possível que tenha intuído a secura da planície, ou talvez tenha
viajado para Havana e Porto Rico para ali ensinar o que não
interessava muito em nossa terra. Não é por acaso que surgiram
pouquíssimos filósofos no México, ainda que existam alguns que
divulguem certas teorias do pensamento. Seja qual fosse a razão de sua
despedida definitiva, Maria Zambrano fixou-se desde então na Europa -
França, Itália, Suíça - para prosseguir o curso da união irrenunciável,
uma união que talvez não se alcance nunca, entre a fé e a razão, dentro
da qual tudo quanto é humano está proposto: "e que o homem há de
fazer se fazendo a si mesmo, humanizando sua própria história".
Única mulher a receber o Prêmio Cervantes (1988), começa a se
repatriar em 1981, quando foi distinguida com o Prêmio Príncipe de
Astúrias e nomeada filha predileta de Vélez-Málaga, sua cidade natal;
dois anos depois, ao receber o doutorado honoris causa da própria
Universidade de Málaga, em 1990, a Espanha socialista começa a
descobri-la, a se assombrar ante sua obra, a se deslumbrar com essa
prodigiosa anciã que por 45 anos pensou sua condição como o mais alto
e claro sonho criador da razão hispânica. Por isso sua obra começa a se
difundir, a partir de então, no mesmo ritmo de suas metáforas de luz;
por isso María, desertora da claridade e todavia presa a seu fervor pelos
liames da razão, é agora reconhecida por duas ou três gerações de
espanhóis que subitamente descobriram que Ortega y Gasset não era
o único baluarte do vitalismo nem seu representante mais apaixonado.
Assistida durante a inoportunidade de sua longa doença, protegida
pelo Estado na cidade de Madri, María foi celebrada em sua agonia
como os peninsulares costumam celebrar uma descoberta entre signos
perduráveis.
Com o doloroso ranço das penúrias do desterrado, Maria
Zambrano voltou para a sua Espanha amada no final de novembro de
1984. Seis anos depois - faltando dois meses para completar 87 anos -,
morreu esvaziada de seu germe criador, dessubstanciada de sua latente
obscuridade, como a palavra clara, a palavra-luz que emana
mansamente de seu espírito poético.
Já à beira da morte, na margem estranha do silêncio radical,
talvez Maria tenha se dado conta de que Antígona lhe falava, que lhe
sussurrava em lamento trágico algo relativo a passagem de uma
morta-viva que, na hora fundamental, repara na voz que a consola.
Contemplou-a a seu lado. Encontrou uma Antígona tão natural que
custou a reconhecê-la. Estremecida, escreveu depois a recordação
indelével das primeiras palavras que lhe revolveram o coração:
"Nascida para o amor, fui devorada pela piedade". E assim como
Antígona, talvez Maria também se tenha consumido pela piedade.
Uma piedade banhada com o melhor cristianismo, inseparável da
poesia, de onde veio a confirmar a origem sagrada do verbo e o caráter
luminoso da palavra.
De sua vasta herança, sempre oscilante entre o neoplatonismo e a
poesia, destaca-se o símbolo que a define e que define a realidade em
uma espécie de tremor de humanidade. É justamente o tremor que
clama pela aurora nesse "desnascer" dos combatentes que se
levantaram contra os deuses.

1.
Referência ao quadro "El Nino de Vallecas", de Velázquez, assim citado por
Zambrano em seu livro Algunos lugares de la pintura. [N.T.]
2.
Surgido como uma teoria biológica, o vitalismo foi apropriado no sentido
filosófico e literário por Ortega y Gasset. Admite a existência de um princípio vital,
distinto da alma e do organismo, que orienta as ações orgânicas e que seria
responsável pelo exercício do livre-arbítrio sob a orientação, mas não sob o comando,
da alma ou da consciência, que seria governada por emoções primordiais - os "quatro
gigantes da alma". [N.T.]
Este livro foi composto pela Join Bureau em Berkeley Oldstyle e
impresso pela Gráfica Vida e Consciência para a
Editora Aleph em abril de 2006.

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