Martha Robles - MULHERES, MITOS E DEUSAS
Martha Robles - MULHERES, MITOS E DEUSAS
Martha Robles - MULHERES, MITOS E DEUSAS
Martha Robles
Tradução
William Lagos
EDITORA
ALEPH
Copyright © 1996 Fondo de Cultura Econômica Título Original:
Mujeres, Mitos y Diosas
CRÉDITOS
2006
Todos os direitos da edição em língua portuguesa adquiridos junto ao
Fondo de Cultura Econômica - Carretera Picacho-Ajusco 227, CP. 14200,
México, D.F. por:
Robles, Martha
Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos /
Martha Robles ; tradução William Lagos, Débora Dutra Vieira. - São
Paulo : Aleph, 2006.
ISBN 85-7657-019-X
06-2487 CDD-305.42
AS ORIGENS
Nix
Lilith
Eva
Ísis
Hera
Alcmena
Deméter
Coré
Afrodite
As Górgonas
Eris e as Erínias
As Moiras
DA TRAGÉDIA À HISTÓRIA
Circe
Medéia
Antígona
Cassandra
Safo
Olímpia
Estatira
Sisigambis
Cleópatra
Hipátia de Alexandria
O AMOR
Dalila
Sherazade
Isolda
Heloísa
Margarida
AS FADAS
Fadas e bruxas
Merlin e a Dama do Lago
A Dama de Shalott
Cinderela
RAINHAS
Catarina de Medici
Elizabeth I em sua agonia
Cristina da Suécia
CAMINHO DE DEUS
Malinche
Virgem Maria
Nossa Senhora das Mercês
Nossa Senhora de Guadalupe
Nossa Senhora dos Remédios
Santa Maria de Izamal
Nossa Senhora de São João
Nossa Senhora de Zapopan
Nossa Senhora da Saúde
Teresa de Jesus
Soror Juana lnés de la Cruz
NOSSO TEMPO
Virgínia Woolf
Djuna Barnes
Isadora Duncan
Maria Izquierdo
Simone de Beauvoir
Marguerite Yourcenar
Maria Zambrano
Nota à edição
brasileira
Tlalpán
Dezembro de 1995
Diotima e
o amor
[...] pois bem, se tens a convicção de que o amor, por natureza, versa sobre
aquilo com que concordamos tantas vezes, não te espantes. Neste caso, pela
mesma razão, a natureza mortal busca, dentro do possível, existir sempre e
tornar-se imortal; e somente pode consegui-lo por meio da procriação, pois
deixa sempre um novo ser no lugar do velho. Mas nem sequer durante esse
período, no qual se diz que vive cada um dos viventes, e que é idêntico a si
mesmo, o ser humano reúne sempre as mesmas qualidades; assim, por
exemplo, diz-se que um indivíduo, desde sua primeira infância até a velhice,
é a mesma pessoa. Porém, embora se diga que é a mesma pessoa, esse
indivíduo jamais reúne as mesmas coisas dentro de si mesmo, senão que está
permanentemente se renovando em aparência e, ao mesmo tempo, se
destruindo, em seu cabelo, em sua carne, em seus ossos, em seu sangue e na
totalidade de seu corpo.
E isto não ocorre somente no corpo, mas também na alma, cujos hábitos,
costumes, opiniões, desejos, prazeres, sofrimentos e temores, todas e cada uma
dessas coisas, jamais permanecem as mesmas em cada um dos indivíduos,
senão que umas nascem e outras perecem. Mas ainda muito mais estranho do
que isto é o fato de os conhecimentos não somente nascerem de uma forma e
perecerem de outra dentro de nós - de tal sorte que não somos idênticos a nós
mesmos nem sequer nos conhecimentos que adquirimos -, mas sim que
também acontece o mesmo a cada um deles. Com efeito, o que se chama
"repassar" só ocorre porque um determinado conhecimento pode nos
abandonar, pois o esquecimento é o espaço de um conhecimento, e o repasse,
ao criar dentro de nós uma nova lembrança em troca daquela que perdemos,
conserva o conhecimento, de modo que pareça ser o mesmo de antes.
É dessa forma que se conserva todo o mortal, não por ser completamente e
sempre idêntico a si mesmo, como ocorre com os seres divinos, mas pelo fato
de que o ser que se foi ou que envelheceu deixa após si um outro ser novo,
similar àquilo que ele era. Por esse meio, Sócrates, o mortal participa da
imortalidade, tanto em seu corpo como em tudo o mais; o imortal, por sua
vez, participa da imortalidade por um outro processo bastante diferente. Não
te admires, pois, se todo ser preza, por natureza, aquilo que é um renovo de
si mesmo, porque é a imortalidade a razão pela qual todo ser é acompanhado
por essa solicitude e por esse amor.
Tome por certo, Sócrates, que assim é se desejas lançar um olhar sobre a
ambição dos homens, a não ser que tenhas em mente uma idéia daquilo que
te disse, ficarias assombrado de sua insensatez ao pensar em que terrível
estado os lança o amor para se tornarem célebres e deixarem no futuro uma
fama imortal. Para alcançar esse objetivo estão dispostos a correr todos os
perigos, mais ainda do que o fariam por seus filhos, a gastar dinheiro, a
suportar qualquer fadiga e a sacrificar a própria vida. Pois então acreditas
que Alceste se deixaria morrer por causa de Admeto, ou Aquiles para vingar
Pátroclo, ou mesmo vosso Codro para salvaguardar a dignidade real de seus
filhos, se não estivessem convencidos de que permaneceria após eles essa
recordação imortal de suas virtudes, tal como a celebramos agora? Nem
mesmo pela hipótese mais remota. É para imortalizar sua virtude, segundo
creio, e para conseguir tal renome, que todos concentram seus esforços, e
com tão maior afinco quanto melhores forem, porque aquilo que mais amam
é justamente o perdurável.
Assim, pois, os que são fecundos no corpo se dirigem especialmente às
mulheres, sendo esta a maneira pela qual se manifestam suas inclinações
amorosas, porque, segundo crêem, garantem para si, através da procriação de
filhos, imortalidade, memória de si mesmos e felicidade para todo o tempo
futuro. Por outro lado, existem aqueles que são fecundos na alma... pois
existem homens que concebem nas almas, mais ainda que nos corpos, aquilo
que pertence ã alma conceber e dar à luz. E o que é que lhe pertence?
A sabedoria moral e as demais virtudes, aquelas de que são progenitores
precisamente todos os poetas e todos os artífices de quem se diz que são
inventores. Todavia, a maior e mais bela forma de sabedoria moral é, de longe,
o ordenamento das cidades e das comunidades, cujo nome é moderação e
justiça. Assim, quando alguém se encontra prenhe dessas virtudes em sua
alma desde menino, inspirado como se está pela divindade, ao chegar à idade
conveniente deseja parir e procriar, e também ele, segundo creio, se dedica a
buscar em torno de si a beleza por meio da qual possa engendrar, pois no feio
jamais o fará. Sente, desse modo, maior apego aos corpos belos do que aos
feios, em razão mesma de seu estado de prenhez; e quando neles encontra
também uma alma bela, nobre e bem-dotada, mostra extraordinária afeição
pelo conjunto e prontamente encontra ante esse ser humano uma profusão
de razões a propósito da virtude e de como deve ser o homem bom, as coisas
a que deve se aplicar e, desse modo, buscará educá-lo. E é por ter, segundo
creio, contato e trato com o belo, que ilumina e dá vida ao que havia concebido
anteriormente; a seu lado ou separado dele, recorda-se sempre desse ser, e
com sua ajuda cria em comum o fruto de sua procriação, de tal modo que
aqueles que experimentam entre si tal condição formam uma comunidade
muito maior do que a dos filhos, e têm um afeto muito mais firme, já que
geraram em comum filhos mais belos e mais imortais. E mais, todo homem
preferiria ter filhos de tal índole a tê-los humanos, se dirige seu olhar a
Homero, a Hesíodo e a todos os demais grandes poetas e contempla com
inveja a descendência que deixaram de si mesmos, que lhes garante memória
e fama imortal uma vez que essa descendência também é famosa ou imortal.
Ou se quiseres - acrescentou ela - poderão ter filhos iguais àqueles que
deixou Licurgo na Lacedemônia, que se tornaram salvadores da Lacedemônia
e, por assim dizer, de toda a Hélade. Também entre vós Sólon é honrado por
ter dado vida às leis, do mesmo modo que muitos outros homens o são em
outras partes, tanto entre os gregos como no meio dos bárbaros, por
haverem realizado muitas e belas obras e gerado virtudes de todos os
gêneros. Em honra a tais homens, e por haverem tido tais filhos, já são muitos
os cultos instituídos; por outro lado, até hoje não se presta culto e
homenagem a ninguém por ter tido apenas filhos humanos. Esses são os
mistérios do amor, Sócrates, mistérios nos quais inclusive tu poderias ser
iniciado. [...]*
1.Os egípcios acreditavam que cada ser humano possuía duas almas: o Ká, ou
Duplo, que acompanhava o corpo em sua tumba e vigiava sua própria múmia; e o Bá,
que partia para o mundo dos espíritos, viajando na barca do Sol até comparecer
perante Osíris e enfrentar o seu julgamento. [N.T.]
Hera
No princípio dos tempos, Eros foi incubado pela Noite a fim de realizar
o prodígio da criação. O Amor foi precedido pelos portadores do destino e
outros símbolos adversos relacionados com o esquecimento, o temor, a
abominável velhice, a insídia e o ódio. Até então a luz não iluminava
essa região escura da existência; portanto, a fim de afirmar seu
sentido vivificador, a potência noturna engendrou uma entidade
complementar, o Afeto, para que servisse de guia positivo às
cumplicidades e de contraponto às dores que provocam o pranto.
Antes mesmo que existisse a totalidade dos seres animados,
sentia-se a ausência de símbolos para combater a fome, a violência,
os crimes e as demais ações aziagas daqueles seres tenebrosos, netos
e descendentes do Caos, cuja obra no mundo até hoje provoca tristeza
e acarreta o vazio que se percebe no coração nas ocasiões mais
infelizes. O vigor inigualável de Eros, relacionado com agitamentos
revolucionários ou de renascimento interior, criou um dos sentidos
mais profundos do ser: pôs em movimento a vida, ativou os sentidos e
provocou o despertar das emoções tanto nos pequenos seres como
nos heróis. Perturbou a ordem desde então e, representado como uma
Ker alada, uma Fúria semelhante à Velhice e à Peste, ainda realiza suas
travessuras, disparando ao acaso suas flechas douradas a fim de
incendiar de amor suas vítimas, sem distinção de sexo ou de idade.
Existem aqueles que dizem que Eros, cujo nascimento
antecipou ao de todos os deuses, foi contemporâneo da Terra e do
Tártaro durante o primeiro impulso do Caos; outras vertentes o
consideram fruto dos amores de Afrodite com Zeus, ou que, segundo
versões que se foram somando umas às outras com o passar do
tempo, foi filho do Arco-Íris e do Vento Oeste, o que acentua seu
caráter simbólico ao relacioná-lo com a inocência perfeita e com os
jogos da luz que alegram o ânimo para recompensar as tormentas.
Sua liberdade indômita, contudo, se parece com a das criaturas
noturnas que não respeitam a nada nem a ninguém. Seu maior gozo
consiste em romper a tranqüilidade. Diferentemente das demais
entidades, o Amor transmite em sua eterna infância o símbolo de uma
enganosa candura que mascara o inesperado com essa inocente
perversidade que, eventualmente, altera todo o íntimo de suas vítimas,
quando caem em estado de desamor ou sofrem o pânico que costuma
perturbar a esperança dos amantes.
A Eros pertence a unidade. Foi através dele que se tornou
possível o primeiro abraço, o do Céu e da Terra, que propiciou o
nascimento de todos os seres divinos e humanos. Emblema da perfeita
harmonia, foi graças a ele que tomou impulso a fecundidade, que a
arte da sedutora Afrodite embelezou com inúmeras atitudes que
colocam os amantes em situação de alerta frente a quaisquer males
que possam diminuir ou prejudicar seu estado de adoração mútua.
Eros e Afrodite governam juntos o secreto e o público. São indiscretos,
intimidadores e deliberadamente perturbadores. Com aparente
ingenuidade, contempla-se a jovem formosa e o menino alado como um
par de criaturas inofensivas; porém, são capazes de sacudir até as
pedras e de remover as mais duras camadas protetoras do coração.
Ela com seu cinto mágico; ele com seu arco e suas flechas na
aljava; os dois se acompanham a fim de cativar de acordo com seus
caprichos, ainda que finjamos negar sua influência em favor da
conveniência e da segurança. No começo, seu poder é sutil: tão só um
estremecimento aqui, um suspiro que brota acolá, a curiosidade que
aviva ao reconhecer o ser amado e a fagulha levíssima que
rapidamente se incendeia como lenha seca; depois disso,
irremediavelmente asseteados, os enamorados sucumbem ao estrondo
e o mundo parece se tornar pequeno para satisfazer sua paixão.
Surgem armadilhas, interpõem-se obstáculos ou as doses de amor são
mal repartidas para impedir a reciprocidade ou arrastar à morte àqueles
que não conseguem consumar seu furor. Para os raros afortunados, o
destino lhes outorga a graça de restaurar a unidade sob a condição de
que a libertina Afrodite não retire seus dons dos casais que
alcançaram a estabilidade.
Quando se faz a corte, os corpos se embelezam, os sentidos se
apuram com o desejo de agradar e todos os movimentos se revestem de
doçura. Se Eros funde, Afrodite aproxima; é ela que provoca o desejo,
desdobra atenções que divinizam os amantes e os fazem se sentir
eternos, leves, belos e únicos. Confiantes no inesgotável poder da
deusa, alguns se descuidam dos riscos que espreitam no caminho das
convenções, e é então que ocorrem as reações indesejadas: se cedem à
frivolidade, perpetram o caos; outros não compreendem as leis do
Amor até que o sofrimento os ensine a se relacionar com sabedoria
para cultivar o sossego dos pares que, em momentos de
reconhecimento sexual, de transformações internas e de satisfações
harmônicas, absorvem o elixir afrodisíaco. A maioria não deslinda
jamais a questão amorosa, nem chega a compreender seus desvarios.
Para eles, é mais simples ceder à tentação do combate do que persistir
nos corredores emocionais que os dois que se amam são levados a
percorrer. Por essa razão a insídia reina à vontade quando fracassa a
sedução, e as entidades noturnas se apoderam dos mortais sem
trégua.
Adorados pela magia envolvente de seus dons, Amor e Afrodite
concedem ou negam seus favores aos mortais; os desafortunados
partem desta vida sem conhecer o ressaibo dos prazeres sensuais.
Também suscitam ciúmes, desencadeiam tragédias e revolvem as
consciências adormecidas daqueles que acreditam possuir para sempre
seu cônjuge, até descobrir que as travessuras de Eros provocaram a
destruição de seu pequeno universo doméstico.
Afrodite, a mais desejada e temida, inseparável de seu cortejo de
cupidos, incorporou-se à assembléia dos deuses não por compartilhar
com eles uma mesma origem, mas pelo secreto atrativo de seu cinto
mágico, que fazia com que aqueles que a vissem se enamorassem dela
até entrarem em delírio. Não satisfeita com o seduzir nem com o
desnudar-se provocador da túnica, a mais bela de todas as criaturas
tentava homens e deuses com um sem-fim de artimanhas e sortilégios
que agora chamamos "afrodisíacos". Jamais se importou com a
fertilidade, pois para isso existiam as deusas protetoras do matrimônio
e da família; tampouco praticou virtudes domésticas, e à sua
identidade não corresponde qualquer tipo de amarra. Afrodite é para a
liberdade o que o calor significa para a chama. Em seu nome
multiplicaram-se os aromas, as carícias, as poções, as texturas, as
sementes, as invocações, os encantamentos, qualquer coisa ou
recurso, contanto que se pudesse assenhorear até do mais profundo
alento do ser amado.
Eterna infiel, desleal e batalhadora, a portadora do amor se
caracteriza por sua argúcia ardilosa. Sua magia inclui o mistério da
transformação e, apesar da raiva que desperta em outras mulheres e
deusas, somente ela é capaz de administrar a paixão e manipular a
humanidade a seu capricho. Ela cura, restaura, une os diferentes,
embeleza o feio, encontra metades perdidas, reconcilia, ilumina,
enfeitiça o instinto, torna cego o mais lúcido dos seres humanos e lhe
prodigaliza satisfações que não podem ser substituídas por quaisquer
outros deleites.
Companheira natural de Ares, suas relações com o deus da
guerra confirmam que batalhar e amar são paixões afins, assim como
o impulso e a ação. Incontroláveis os dois, ambas as divindades
tramam a história dos homens e arrastam em seus múltiplos avatares
as inconstâncias que costumam acompanhar o poder. Escolheu por
esposo o incauto Hefestos, filho de Hera e imediatamente lhe pôs
chifres. Feio e trabalhador, seu domínio sobre a forja e a bigorna de
nada serviram para apagar sua claudicância e muito menos para
esconder sua deficiência. O pobre Hefestos a amava acima de tudo no
mundo; mas a volúvel Afrodite ia e vinha por muitos leitos e outros
tantos campos floridos, semeando deleites no reino dos instintos.
Foi desta maneira que suscitou guerras históricas, tais como a
sempre lembrada Guerra de Tróia. Inspirou as maiores tragédias e
crimes espantosos. Em seu nome caíram reinos e homens que se
tinham na conta de guerreiros temíveis. Até hoje há mulheres que, a
maneira das antigas gregas, a invocam com devoção. Rogam por suas
graças em voz alta. Renunciam a tudo com o fito de compartir seu
poder ou, em casos extremos, recorrem ao misticismo com o objetivo de
alcançar da divindade aqueles dotes que os seres humanos sozinhos
não são capazes de obter.
Seu mito é um dos mais perduráveis porque, ontem e hoje, um
mistério indecifrável envolve a deusa da beleza. Tão odiada quanto
invocada, Afrodite está sempre presente, sempre à espreita da paixão,
sempre sedutora, sempre certeira.
A interpretação de Hesíodo ilumina o mito de Afrodite com
símbolos de sensualidade que a colocam acima de qualquer fantasia
antiga ou moderna sobre a versatilidade do amor. Escreveu em sua
Teogonia que, na primeira geração dos deuses, quando Gaia deu à luz
Urano, em tudo semelhante a ela mesma, esperava que o deus do céu
a protegesse por todos os lados e servisse, além disso, como um seguro
assento para a felicidade dos deuses. Mas o astuto deus, que na
mitologia grega não se destacou por suas façanhas nem ganhou
importância igual à de seus descendentes olímpicos, só demonstrou
verdadeira grandeza quando, cheio de amor, se deslocou durante a
noite e abraçou Gaia, estendendo-se sobre ela; foi prontamente
definido como a primeira deidade masculina, fundando assim a
rivalidade sexual e o afã de domínio.
Além disso, Gaia gerou por si mesma, sem o auxílio do delicioso
amor, as grandes montanhas, que seriam a morada das ninfas, e o
mar estéril de ondas impetuosas. Só mais tarde decidiu unir-se a
Urano, pois o cosmos não contava com outra coisa que não fosse
produto de sua própria criação. Do matrimônio entre o Céu e a Terra
nasceram Oceanos, Ceos, Crios, Hipérion e Japeto - um nome que
talvez inspirasse o de Gepeto, o amoroso carpinteiro que construiu
Pinóquio e criou com ele um dos últimos mitos da idade
contemporânea -, do mesmo modo que Réia, Têmis, Mnemósine, Febe,
a coroada de ouro, e a amável Tétis. Ao final de tão grande estirpe
nasceu Cronos, o mais astuto e temível de todos, o deus que se
encheu de ódio contra seu próprio pai porque este emprenhava sua
mãe vezes sem conta, mas não permitia que os filhos saíssem de seu
ventre e ela, a Terra, a fim de protegê-los, os escondia debaixo de suas
dobras mais profundas.
Antes de conceber o furibundo Cronos, a Terra engendrou três
ciclopes de peito altivo e dotados de um único olho circular
localizado entre as sobrancelhas, chamados Brontes, Estéropes e o
violento Arges, os quais dariam como presente a seu jovem sobrinho
Zeus o trono e o raio - suas divisas supremas - quando este
empreendeu a luta contra seu pai, o Tempo. Frutos também de Gaia,
perturbadores por sua maldade, Cotos, Briareu e Giges foram os
monstros de cem braços e cinqüenta cabeças que decidiram o triunfo
de Zeus sobre os Titãs, aliados de Cronos. Tais gigantes, do mesmo
modo que as Fúrias, nasceram quando o sangue do castrado Urano
fecundou a Terra, que mais tarde daria à luz outro monstro, Tífon,
produto de suas relações com seu filho Tártaro.
Antes que existisse Afrodite, Urano impedia os partos de Gaia
para que sua terrível progênie não visse a luz do dia nem o desafiasse.
Inchada e dolorida, a Terra suspirava, mas isso não impedia que
engravidasse mais uma vez. Lamentava-se entre juramentos e vinganças
malignas, enquanto o Céu assumia o domínio, orgulhoso de suas más
ações, até que cansada de se sujeitar às suas normas, forjou uma foice
para atacá-lo e instigou seus filhos a enfrentarem-no, a fim de fazê-lo
pagar por todos os ultrajes que havia cometido.
Contudo, Cronos foi o único que atendeu ao chamado materno
e, armado com a foice bem afiada, lançou-se contra seu pai em uma
emboscada. Esperou que Urano se estendesse outra vez sobre Sua mãe
durante a negra noite e rapidamente, de um único golpe, decepou-lhe
os órgãos genitais. Não obstante o corte certeiro, escaparam algumas
gotas de sangue que se derramaram sobre a Terra quando o membro
foi atirado ao mar, as quais fecundaram novamente Gaia, fazendo com
que esta procriasse as poderosas Erínias, os grandes gigantes e um
gênero de ninfas que os gregos denominaram melíades.
O membro decepado de Urano ficou ali, vigorosamente embalado
pelas ondas, lançando uma espuma que se alargava cada vez mais com o
vaivém das águas. A espuma navegou primeiro até a ilha de Citera,
depois as correntes marinhas orientaram-na até Chipre, em cujas
praias se formou a partir dela uma formosa mulher, cingida com a
mais bela coroa e que tomaria o nome dessa mesma espuma: Afrodite,
ainda que depois a chamassem também Citéria, pois foi nessa ilha que
ela primeiro desembarcou da concha em que navegava desnuda, em
busca de uma morada.
Embora insignificante, a ilha de Citera foi um ponto referencial de
passagem nos tempos antigos. Dali Afrodite transladou-se para o
Peloponeso e depois para Pafos, em Chipre, onde se instituiu a
principal sede de seu culto. Acompanhada de Eros, por onde passava e
pousava os pés brotavam flores, e as Estações, filhas de Têmis,
adornavam-na com vestes de cores cambiantes. Rodeada por uma
sugestiva revoada de pombas, emblema da lascívia, a nascida da
espuma fazia-se acompanhar de seu condizente servo Hímero até
quando foi levada ao Olimpo, onde se incorporou à tribo dos deuses,
que não tardaram em torná-la também divina, apesar da aversão que
provocara nas deidades femininas.
Padroeira do amor, da beleza, do desejo e, por extensão, da
fertilidade, Afrodite inspirou desde então a intimidade, as traições
amorosas, os doces sorrisos, o prazer, o afeto e a mansidão, que eram
chamados de Titãs por seu pai Urano quando este queria injuriá-los.
Dentro da natural confusão mitográfica, considera-se também
Afrodite filha de Zeus e Dione, a deusa dos carvalhos, em que se
aninhavam as pombas e os pardais. O certo é que seu vínculo com a
espuma celeste - que serpenteia revigorada pelo movimento das ondas
- embeleza sua posição de sedutora sem par. Amante infatigável, não
se lhe conhece repouso sexual. Escolheu como esposo a Hefestos, o
ferreiro coxo construtor das armas dos aqueus, ainda que, mesmo
antes que os esponsais se consumassem, sua paixão se inclinasse
para o impetuoso Ares, o contendor patrono das guerras, com quem
gerou Fobos, Deimos e Harmonia, que fez passarem por filhos de seu
matrimônio.
Se Afrodite não tivesse permanecido por tempo demais no leito de
Ares, os raios de Hélio não os teriam delatado. Cego de ciúmes,
Hefestos forjou uma rede de bronze de trama tão fina, imperceptível e
resistente como a de uma teia de aranha e a amarrou por todos os
lados do tálamo nupcial. Afrodite regressou da Trácia cheia de
desculpas para justificar sua ausência tão prolongada. Porém Hefestos,
em vez de manifestar desagrado, anunciou que ele mesmo estava para
sair em férias por um longo período na ilha de Lemnos, sua preferida.
Segundo o previsto, Ares não tardou em atender ao chamado de
Afrodite e imediatamente os dois se prontificaram a continuar seus
amores sem imaginar que cairiam enredados na armadilha
ardilosamente estendida a seu redor.
Quando quiseram levantar-se, os amantes se deram conta de
que, desnudos e surpresos, teriam de esperar pelo regresso de
Hefestos para serem libertados. E, enquanto o coxo se demorava,
acreditando que os faria sofrer mais prolongando sua ausência, os
dois se aproveitavam da oportunidade inesperada em nome da paixão.
Encolerizado, o ferreiro não se contentou em corroborar o
adultério de sua mulher, mas chamou ainda a assembléia dos deuses
em altas vozes para que todos testemunhassem sua desonra. A lição,
todavia, não se fez esperar: divididas por pudor ou porque já
percebiam o brotar de uma sedução íntima, as opiniões emitidas
perante o enredo dos amantes não satisfizeram o esposo traído. As
deusas, por sua vez, demonstrando o falso pudor com que
administravam a seu convir uma fragilidade dissimulada, negaram-se
a presenciar tal discussão e preferiram ficar mexericando em seus
próprios aposentos.
Os deuses quase não davam atenção às queixas de Hefestos
porque todos se deleitavam com as formas saborosas da bela Afrodite,
invejando a sorte do aprisionado e sorridente Ares. O ferreiro gritava
que não deixaria sua esposa em liberdade até que lhe devolvessem
todos os presentes que dera a seu pai Zeus para que intercedesse em
favor de seu infeliz casamento. Enquanto o insultado vociferava
espumante de ódio, sem que ninguém lhe respondesse a favor ou
contra, Apolo começou a sussurrar dissimuladamente aos ouvidos de
Hermes:
- Escuta, mulher alguma é melhor que Afrodite. O caso de Ares
não é prisão, nem nada, pelo contrário, é um prêmio invejável... Não
gostarias de estar em seu lugar, apesar da rede?
Hermes jurou por sua própria cabeça a Apolo que não com uma,
mas até com três redes, qualquer que fosse o castigo, mesmo à custa da
desaprovação de todas as deusas, trocaria de lugar com Ares na cama
com Afrodite, nem que fosse por uma única vez. O comentário fez os
dois rirem tão estrondosamente que o quarto estremeceu e Zeus, com
fingida solenidade, para não precisar devolver os presentes recebidos,
ditou sua sentença: não competia a ele, o Pai dos Céus, nem a
nenhum dos deuses olímpicos ali presentes, intervir nos assuntos
particulares entre marido e mulher. Se alguma vergonha havia, era de
Hefestos, por estar a exibi-la nua aos olhos de todos, logo nos braços
de um amante tão aguerrido, vigoroso e, a olhos vistos, muito mais
competente do que ele, pois Ares mostrava-se vitorioso e até mesmo
divertido em uma situação tão ridícula. Hefestos, por outro lado, tão
orgulhoso de sua rede invencível, portava-se como uma comadre vulgar
ao proclamar sua desgraça aos olhos de todos, além de que, cúmulo
de todas as tolices, ainda se atrevia a requerer a devolução de seus
presentes sem recordar que os deuses jamais devolvem qualquer
oferenda que lhes seja feita, muito menos o cobiçoso Pai do Céu.
As situações mais dramáticas costumam coincidir
freqüentemente com as de maior ridículo. Afrodite, presa ao leito com
seu amante pela rede do laborioso Hefestos, à vista de todos os deuses,
constitui uma das cenas mais divertidas da mitologia grega. A partir
dela se desprendem numerosas aventuras da deusa e outros
acontecimentos reveladores da natureza dos imortais. Para Ares, por
exemplo, não representavam qualquer afronta as reclamações e
insultos do esposo ofendido. Sendo ele o deus da guerra, ainda mais
se divertia com seus acessos de raiva e, sem se dar ao trabalho de
separar seu corpo do de Afrodite, aproveitava a vulgaridade da ocasião
para fanfarrear ou desafiar o infeliz Hefestos, passando-o por bobo, já
que os cuidados que prodigalizava sua infiel esposa certamente não
eram dos mais honrosos.
Parado em total silêncio, de um dos lados da cama, Poseidon
enamorou-se de Afrodite ao contemplá-la desnuda, mas fez o possível
para que ninguém percebesse. Sentiu que um fogo o devorava, seu
membro cresceu de desejo e não passava mais nada por sua mente
senão a obcecada intenção de se unir também com ela, mesmo a preço
dos maiores castigos. Senhor dos cavalos, deus do mar e dos
terremotos, também conhecia os tremores imprevisíveis; fustigado
pelos ciúmes que secretamente sentia de Ares, aparentou estar do
lado de Hefestos e tomou a palavra para expor a todos uma solução
que acreditava ser conveniente.
- Já que Zeus se nega a atender ao esposo agredido - disse
Poseidon diante dos amantes que continuavam na cama - e tampouco
concorda em devolver os presentes que Hefestos lhe ofereceu a fim de
ganhar seu apoio ao desposar Afrodite, eu me encarregarei de
pressionar Ares a fim de que pague o equivalente e satisfaça assim a
honra ofendida.
- Sim, como não, assim ficará muito bem. Eu realmente desejo
esta satisfação - concordou o desafortunado Hefestos em um tom tão
lúgubre que deixava bem claro aos ouvidos de todos a dor do
apaixonado ofendido. - Mas se Ares não cumprir sua parte, como é de
esperar, então tu mesmo deverás ocupar o lugar dele na rede e,
conforme jurei ainda há pouco, não poderão sair dela nem tu nem
Afrodite, até que eu me considere totalmente desagravado.
Sábio como era, Apolo soltou uma gargalhada ao escutar uma
ameaça tão ingênua:
- Ficar na rede, tu disseste? Em companhia de Afrodite? Meu
pobre Hefestos - disse-lhe o belo, virtuoso e maduro Apolo - mas então
não te dás conta do que estás propondo?
- É que ele não pode acreditar que Ares não cumpra o seu dever -
apressou-se a intervir Poseidon, com aparente nobreza. - Porém, se
assim for, se Ares faltar com a palavra e sair por aí a continuar com
sua velhacaria, eu estou disposto não somente a cumprir seu dever
como também a desposar Afrodite, a fim de resgatar-lhe a honra e
protegê-la de novas espreitas.
Então os deuses que ali se achavam congregados deliberaram,
sempre movidos pela simpatia que lhes despertava a apetecível
Afrodite, decidindo que Hefestos deveria libertar seu rival Ares para que
este regressasse à Trácia sem causar maiores problemas, ao passo que
Afrodite deveria retornar a Pafos, sua ilha nativa de Creta, a fim de que
a espuma que a havia gerado renovasse sua virgindade quando se
banhasse no mar.
A indiscrição de Hefestos, para sua desgraça, marcou-o como o
maior e mais ingênuo cornudo na história de todos os tempos. Já
totalmente esquecida do episódio, Afrodite banhava-se em suas águas
primordiais e flertava como se nada tivesse acontecido, enquanto
Hefestos continuava sofrendo no calor de sua forja. Logo Hermes foi
visitá-la a fim de lhe confessar seu amor e adulá-la com doces palavras.
Afrodite, como era seu costume, desprendeu o mítico cinturão para se
deitar com ele durante toda uma noite sobre as areias mornas das
praias cretenses, e juntos geraram Hermafrodito, essa criatura
estranha, exposta a cultos e interpretações acomodatícias, que se
distinguiria por seu duplo sexo desde que, segundo as versões mais
remotas, foi amado por Salmácis, a ninfa da fonte em que costumava
se banhar. Cativada por sua beleza sem par, a náiade suplicou aos
deuses para que fundissem seus corpos num só, a fim de que seu
abraço perdurasse para sempre. Os deuses atenderam seu rogo e da
fusão de Salmácis com Hermafrodito surgiu a quimera bissexual, que
em parte recorda o mito platônico dos seres que foram divididos em
metades complementares.
De acordo com o combinado, e uma vez que Ares jamais
cumpriu o trato, assim como Hefestos nunca chegou a se divorciar de
Afrodite, esta também acedeu às solicitações de Poseidon, com quem
procriou Rodos e Herófilo. A tempo, Homero também cantaria em seus
Hinos outros namoros memoráveis da deusa, como o protagonizado com
o formoso e libertino deus Dionísio, do qual nasceria a uma criatura
monstruosa, o próprio emblema da fealdade, que mal conseguia
caminhar tão grandes eram seus genitais. Desse menino, chamado
Príapo, contam-se muitas lendas; a mais difundida relaciona-se com as
eternas ciumeiras de Hera que, incomodada pelas inúteis solicitações
sexuais de Zeus a Afrodite, vingou-se nesse filho dela dotando-o do mais
obsceno dos aspectos, para que quem ninguém esquecesse os efeitos da
luxúria da deusa nascida da espuma. No entanto, pacífico como era,
Príapo converteu-se no jardineiro por excelência, ofício em que honrava
sua mãe. Desde então, ele é representado trazendo suas ferramentas
de jardinagem, com as quais se dedicava ao cuidado das flores
primaveris.
Alguns mitógrafos asseguram que Zeus, irritado pela indiferença
de sua filha adotiva, levou-a a enamorar-se perdidamente de um mortal,
não obstante as exigências de sua condição de deusa. Certo é que, no
mito afrodisíaco, conta-se que Enéias talvez fosse filho de Afrodite,
fruto de seus amores com o troiano Anquises, rei dos dardânios e neto
de Ilo, a quem ela enganou entrando à noite em sua choupana,
disfarçada de princesa frígia. Ataviada com uma suave túnica vermelha
e calçando sandálias de um tecido tão fino que mal se percebiam,
Afrodite amou o troiano com grande ardor sobre um leito forrado de
peles de ursos e leões, enquanto ao seu redor zumbiam
acalentadoramente milhares de abelhas.
Ao despertar nos primeiros raios da aurora, a deusa revelou ao
monarca sua verdadeira identidade, impondo-lhe um juramento de
silêncio para que ninguém soubesse que se havia deitado com ele.
Horrorizado, Anquises recordou-se que contemplar a nudez de uma
deusa acarretava terríveis castigos, inclusive a morte, e lançou-se de
joelhos perante ela, suplicando-lhe que tivesse piedade.
Ardilosamente, Afrodite fingiu que se deixava convencer a perdoá-lo e
logo lhe anunciou o nascimento de um filho, que se destacaria por
suas ações heróicas e alcançaria grande fama. Homero recorda que,
passado o primeiro espanto, Anquises reassumiu sua personalidade
normal, e certa vez, quando bebia com alguns companheiros, foi
perguntado se preferia dormir com uma mulher real, bonita e mortal
como eles, ou com uma deusa, quem sabe a própria Afrodite, ao que
ele respondeu parecer-lhe absurda a pergunta, pois havia conhecido o
prazer de ambas as situações e qualquer comparação seria um
verdadeiro disparate.
Vigilante dos atos humanos e divinos, Zeus mantinha sempre um
olho aberto sobre os assuntos do mundo e escutou claramente as
palavras jactanciosas que eram proferidas pelos troianos. Nem bem
Anquises acabava de alardear seu feito, caiu entre ele e os demais
bebedores um raio do Olimpo, que seguramente teria lhe causado a
morte não tivesse Afrodite interposto seu cinturão para proteger o
amado. De repente, tudo estremeceu. Choveram chispas e fagulhas para
todos os lados, e ainda que a deusa tivesse desviado o raio maléfico, a
sacudida atingiu o infeliz falastrão de tal maneira que nunca mais pôde
caminhar ereto, tampouco desfrutar dos prazeres do leito.
Afrodite, movida ainda pelos rescaldos de sua paixão, nunca
deixou de manifestar sua preferência pelos troianos durante a
memorável batalha contra os gregos e, inclusive, continuou visitando
Anquises até que o nascimento de Enéias viesse a termo. Ao trazê-lo ao
mundo, porém, seu desejo apagou-se magicamente, desapareceu seu
interesse e nunca mais pôs os olhos no amante.
Inesgotáveis, as façanhas de Afrodite se revelam em suas horas
olímpicas e posteriormente, em todas as aventuras dos amantes. Sua
figura enfeitiçante é invocada por guerreiros e reis, por pastoras e pelas
mulheres mais refinadas. E ali se encontra Afrodite à espreita,
seduzindo com sua beleza perfeita, com a mão sempre colocada à altura
do cinto a fim de soltar a túnica nas ocasiões mais imprevistas.
As Górgonas
1 Rei lendário de Atenas, Erictônio era um ser híbrido, metade homem, metade
serpente.
Éris e as Erínias
Alguns dizem que Éris e seu irmão gêmeo Ares foram concebidos por
Hera quando a deusa tocou certa flor que, no que se refere ao deus
homicida, poderia ser o malmequer ou cardo branco, enquanto que
para gerar a Discórdia tocou a flor negra ou abrunheiro, da qual a
deusa também chamada Disputa veio a absorver o veneno da cizânia.
Dona de humores perversos, Éris tem nas Erínias - ou Fúrias - sua
contrapartida perfeita quando incute na alma os mais terríveis castigos
a uma conduta lesiva. Éris se apresenta e se faz perceber cada vez que
surge um problema; todavia, tal como as Hárpias, as Erínias
transformam-se em cães ou em serpentes: desafiam, ladram, mordem o
coração e semeiam o terror na consciência. Se Éris é movida pelo sim-
ples prazer de provocar altercações, as Fúrias aparecem como
instrumento da vingança divina perante as falhas humanas. A
Discórdia, segundo Homero, apresenta-se apequenada a princípio e
depois se encrespa; em seguida, vigorosa e agressiva, ergue a cabeça
até o céu e arrasta o resto do corpo pelo solo envenenando tudo o que
encontra em seu caminho.
Filhas do sangue do castrado Urano - a substância que
fertilizou Gaia -, as poderosíssimas Erínias acossam intimamente
cada criatura, aguilhoam a consciência com remorsos e, quando
querem realmente infligir castigos, infundem no espírito estados
cambiantes de autodestruição que podem variar de um mero
sentimento de culpa até as mais complexas expressões de
autodesprezo. Diversamente de Éris, que manipula o repúdio para
coroar sua discórdia com manifestações de ódios públicos, as
Erínias encarregam-se de velar, desde o interior da mente, pela
manutenção da ordem e pela prevalência da lei natural. Além disso,
elas também ratificam os excessos doentios, geralmente na esfera
privada, apesar da influência dos outros deuses e acima de qualquer
reserva da vontade que os homens interponham para aplacá-las
quando o tormento rouba-lhes o sono ou lhes impede o sossego.
Vingadoras do mal, primeiro proíbem e advertem; mas se não forem
atendidas, condenam sem limites e aniquilam o ser até suas mais
íntimas profundezas com a eficácia do remorso.
Não houve quem escapasse de suas sanções no passado. Mesmo
hoje, ninguém consegue se furtar a elas. As Erínias instigaram Édipo
desde o momento em que ele conheceu a verdade sobre seu duplo
crime, e lhe moveram as mãos para que arrancasse os próprios olhos
com a vã intenção de afastar de si a visão delas e da carga de culpa
que lhe apresentavam. Só conseguiu vencê-las no final de sua vida
quando, na paz da alma recobrada pela mediação de outros deuses,
expiou, entre sofrimentos e doses de lucidez, as trevas que até então
lhe atormentavam a consciência.
Para se libertarem dos sofrimentos que lhes provocavam as
Erínias, os homens inventaram o ato da confissão como via de
compensação ou, talvez, de permuta de um sacrifício por outro. Mas as
Erínias cruzaram os séculos, poderosas e inamovíveis, até se alojarem
na alma do homem contemporâneo, marcado por sua personalidade
culpável. Foi então que surgiu a psicanálise, e a humanidade explorou
os meandros da conduta para mitigar, fosse pela ciência, fosse pela
religiosidade, o seu vigoroso furor. Por isso não é diferente o sofrimento
de Orestes, que despertou contra si as Erínias por ter dado morte a
Clitemnestra, sua mãe e irmã de Helena de Tróia, do padecer de
qualquer mulher sem nome que assassina seu próprio filho movida
pela perfídia de Éris. As Erínias seguiam Orestes como cães de caça,
sem lhe conceder um só instante de paz; à filicida de hoje elas acossam
com o silêncio da serpente letal e com uma potência que em nada é
menor àquela que, entre nós, moveu as mãos de Jorge Cuesta1 para
primeiro se mutilar de maneira horrenda e depois se enforcar na mesma
banheira em que, de permeio a um rio de sangue, buscou uma forma
de expiação para seu possível tormento incestuoso.
As Erínias, deidades de signo dual, ao serem vencidas pela
bondade e pela purificação interior, assumem o nome de Eumênides,
um eufemismo para Benévolas, quando a razão, simbolizada por Atena,
reconduziu a consciência à harmonia. Alecto, Tisífone e Megera são os
nomes das três Fúrias em sua modalidade de espíritos cruéis, que
rastejam no mundo inferior e não cessam de torturar os criminosos.
E se Ares, o deus trácio, desde tempos imemoriais ama as
batalhas pelo simples prazer que elas lhe causam, Éris dá ocasião para
os combates por meio de rumores, insulando os ciúmes ou
despertando outras paixões perversas. Nenhum dos gêmeos toma
partido ou prefere uma facção a outra, pois seu maior contentamento é
justamente o ódio. Isso foi atestado pela llíada quando Éris, por não ter
sido convidada para as bodas de Peleu e Tétis, apadrinhada pelo
legendário Teseu e da qual participavam as outras deusas, decidiu se
interpor à conversa amistosa entre Hera, Atena e Afrodite fazendo rodar
a seus pés uma maçã de ouro na qual inscrevera a legenda "à mais
bela", fato que se converteria na causa inicial da Guerra de Tróia,
ocorrida uma geração depois.
Tampouco Pirítoo, rei dos lápitas e filho de Zeus, que sob a
forma de um garanhão correu ao redor de Dias antes de seduzi-la,
convidou qualquer dos gêmeos para seus esponsais com Hipodâmia, a
domadora de cavalos - não obstante tenham comparecido, além de
seu amigo Teseu, rei de Atenas, os demais deuses olímpicos -, porque
recordou o dano que Éris havia provocado nas bodas de Tétis e Peleu;
no entanto, a Discórdia acabou por se vingar. Apresentaram-se ao
banquete mais hóspedes do que podia comportar o palácio, e seus
primos, os centauros, juntamente com Nestor, Ceneu e vários outros
nobres tessálios, foram se sentar às mesas colocadas sob a proteção
da abóbada de uma caverna próxima à sombra de grandes árvores.
Diz-se que, desacostumados ao vinho, os centauros sentiram
pela primeira vez seu aroma e, cativados por sua fragrância, recusaram
o leite azedo que costumavam tomar e que lhes fora servido.
Apressaram-se, então, a encher suas guampas de prata e beberam o
licor derramado dos odres, sem misturá-lo com água, até perderem os
sentidos. Quando a noiva foi com seu séquito saudar os que comiam e
bebiam na caverna, Eurito se levantou de um salto, furibundo,
derrubou a mesa com violência e agarrou Hipodâmia, arrastando-a
pelos cabelos. Os outros centauros seguiram seu exemplo nefasto e,
depois de quebrarem as mesas e vociferarem, puseram-se a violentar
coletivamente as moças e os rapazes que se divertiam no interior da
caverna.
Indignados, o rei Pirítoo e seu paraninfo Teseu, coberto com sua
pele de leão, acorreram para salvar a noiva. Cortaram ambas as
orelhas e o nariz de Eurito em sinal de vingança e o arrojaram para
fora da caverna com a ajuda dos outros lápitas. Comandada por Éris e
Ares, iniciou-se uma feroz batalha que durou até o anoitecer, com um
pavoroso saldo de mortos e feridos. Esta é a origem da legendária
inimizade entre lápitas e centauros, a quem Homero descreve como
"feras peludas" e a seus vizinhos, os lápitas, como "esmigalhadores de
pederneiras"2.
As obras de Éris são tão imemoriais como incontáveis. Moveu a
mão de Caim para assassinar por inveja seu irmão Abel com uma
queixada de jumento. Marcou com rancor a história de José e seus
irmãos. Impediu a consumação dos amores de Julieta e de Romeu,
por causa dos rancores e disputas entre Capuletos e Montecchios.
Encheu de injúrias a boca de Salomé para que decapitassem João
Batista, por despeito. Éris esteve também na língua de Herodes ao
condenar à morte os inocentes a fim de eliminar o Rei dos Reis e, mais
tarde, imbuída de sua sede de conflitos, agitou a multidão para
crucificá-lo quando fez Pôncio Pilatos lavar as mãos em público, como
sinal de sua covardia.
No entanto, esses crimes inumeráveis não ficam impunes porque
detrás da Discórdia avançam as Erínias, agitando os espíritos com seus
pavorosos sentimentos de culpa, os quais, quando não provocam a
autodestruição e ainda mais mortes, tendem a fomentar alicerces
civilizadores para expiar com atos de redenção as faltas que se
debatem nas consciências contra o vigor dos imperativos morais.
Ainda que poderosos, os gêmeos Éris e Ares não são invencíveis.
Reinam agora em um mundo cada vez mais turvo e inquieto, mas
contra eles se interpõe a luta da razão e o império da ordem jurídica.
Anuladas em parte pelo fanatismo e pelo desejo de exclusão, as
Erínias não parecem ter lugar na consciência dessa humanidade
distraída com perseguições e movimentos de ódio; contudo, as Fúrias
da consciência persistem em sua obra vingadora porque, enquanto
existirem a Discórdia e os crimes dela inseparáveis, elas se
manifestarão com seu veneno letal para nos injetar remorsos e
tormentos interiores.
Outros deuses da Antigüidade foram olvidados ou seus atributos
dissipados nas conquistas humanas; de Ares, Éris e das Erínias, ao
contrário, remos notícias a cada minuto, no público e no privado. Não
existe homem que não tenha sido tocado por eles nem consciência que
não se debata, em maior ou menor grau, contra o influxo da dissensão
ou da culpa. Aí estão, sempre à testa da conduta humana, animando
as lutas entre a ordem e o caos, entre a perversidade e o sossego da
alma.
1Pramne ou Pramme era uma pequena cidade da Ásia Menor, nas cercanias de
Esmirna, hoje na Turquia. Produzia um vinho doce e capitoso, extremamente afamado
na Antigüidade. [N.T.]
2'Filho de Laerte". Era comum entre os gregos designar uma pessoa ou um deus por
um adjetivo derivado do nome de seu pai ou outro antepassado. [N.T.]
Medéia
- Aonde poderia ir, ó Jasão? Diga-me tu, por favor! - assim lhe rogava Medéia.
Para a casa de meu pai, a quem atraiçoei por amor de ti?
Juntar-me às filhas de Pélias, às quais induzi a dar morte ao sangue de seu
próprio sangue?
Oh, que desamparo o meu!
Eis que me condenas, Jasão, a me afundar no interior da pior das tristezas...
1Felipe II e Pérdicas eram filhos de Amintas II, aliado de Esparta, que reinou de 396
a 370 a.C. [N.T.]
Estatira
Perturbadora da cabeça aos pés, a mulher de Dario, rei dos persas, era
tão bela que se acreditava ter sido moldada diretamente pelos deuses.
Era a mais perfeita mulher da Ásia, segundo se dizia, e o próprio
Alexandre Magno o comprovou quando a capturou em Issus e a
manteve cativa junto com a mãe e os filhos do poderoso monarca rival.
No devido tempo se soube que estava grávida, mas nem sua prenhez
nem sua hesitação diminuíram a perturbação que causava naqueles
que, por sua vez, não resistiam à tentação de estabelecer odiosas
comparações com Barsines e Parisatis, donzelas ainda, talvez geradas por
Dario no ventre da própria Estatira, ainda que se creia terem nascido
de outra de suas muitas esposas legítimas. A descendência do rei
costumava ser contada em dezenas e até centenas de filhos de cujas
alianças matrimoniais provinha o costume de repartir generosamente
cetros e terras conforme as pressões locais, que costumavam ser
aliviadas com o estreitamento de alianças políticas alicerçadas em
uniões de sangue real.
Depois da batalha de Issus e antes de enfrentar, no célebre cerco
de Arbelas, ao exército persa - que no dizer dos cronistas superava com
grande vantagem, tanto em número como em qualidade, as tropas
macedônias -, Alexandre mandou tratar as cativas com a maior
reverência e lhes fornecer o que havia de melhor em suas luxuosas
tendas, ainda que alguns eunucos a serviço das damas persas tenham
conseguido fugir durante a debandada dos derrotados. A respeito dessa
batalha, uma das mais renhidas entre os dois monarcas, os cronistas
escreveram que os reis nunca chegaram a lutar corpo a corpo; mas que
nela tombaram cerca de trezentos mil bárbaros, enquanto morreriam
somente uns cem soldados do lado grego principalmente dentre os
chamados de Amigos do Rei, isso porque Alexandre dispôs seus
arqueiros ao longo de uma linha que cobria o flanco oposto ao curso do
rio, estratégia que fez com que os persas surpreendidos fossem
empurrados às águas caudalosas do rio, atirados contra as lanças
eriçadas [da falange macedônia] ou se deparassem com a oportuna
astúcia da cavalaria que atacava por onde menos se esperava.
Maltratado, alternando esperteza e temor, e graças às mudas
previamente estabelecidas em que trocava seus cavalos cansados, Dario
pôde empreender fuga até a Média, resguardado por seus guerreiros,
mas sem o aparato real que constituía seu séquito e deixando para
trás o escudo e o arco imperiais que, pela pressa de salvar-se, ninguém
se atreveu a resgatar. Em Arbelas, Alexandre também se apropriou de
elefantes e de carros de guerra em tão grande número, que os
adivinhos atribuíram ao eclipse lunar ocorrido no mês de
memacterion1 o sinal da preferência do destino por quem logo haveria de
cingir sua fronte com a coroa mais cobiçada do universo.
Não obstante seu poder de desposar ou reduzir Estatira à
escravidão, segundo lhe garantia o antigo direito do vencedor sobre os
cativos, Alexandre conteve seu impulso e preferiu a glória à satisfação
de um desejo; longe de submetê-la, tratou-a com toda a reverência
devida a uma rainha. Sua pele era suave como os aromas enfeitiçantes,
e ostentava a graça que somente uma persa adquiria por atributo
supremo. Havia quem chorasse ao vê-la, enquanto outros preferiam
morrer a seguir padecendo sob o aguilhão do desejo que os acossava
simplesmente por contemplar a vivacidade de seus olhos ou a
brancura finíssima de suas mãos manicuradas pelos eunucos. Era
famosa a elegância das mulheres medas, ainda que, ao se fundirem os
reinos da Média e da Pérsia imperial, agregassem a suas qualidades a
harmonia da dança e a delicadeza elaborada com que eram educadas
em seus haréns.
Muitos dos persas mais abastados, suspeitando a derrota ou,
pelo menos, intuindo a avançada helênica, enviaram de antemão suas
bagagens e mulheres para Damasco, na Síria, onde Dario também
colocou em segurança a maior parte de seus tesouros. Desse modo,
nos cofres de seu exército não se encontraram mais que uns 3 mil
talentos2, ainda que fosse comum lançar-se à guerra com pompa e
magnificência. Pouco depois, o macedônio recuperou os tesouros
escondidos por intermédio de Parmênion, o que lhe permitiu repartir o
botim entre generais e capitães, segundo seus méritos e por hierarquia
de nobreza.
Ao tomarem conhecimento de que o manto imperial, a tenda, o
escudo e o arco de Dario estavam em posse de Alexandre, as
prisioneiras romperam em prantos e rasgaram suas vestes em sinal de
luto, como se ele já tivesse morrido, motivo pelo qual o vencedor
mandou imediatamente um de seus principais ajudantes de ordens,
por nome Leonato, comunicar em cada uma da tendas por elas
ocupadas que não somente Dario continuava vivo e empreendera a
fuga, mas que poderiam continuar usando seus adornos régios, seu
nome dinástico e os serviços da criadagem real, não obstante seu
cativeiro. Ao próprio grande rei Alexandre mandou dizer, por intermédio
de um de seus numerosos e singulares correios, que, se quisesse
recobrá-las, deveria se apresentar perante ele em pessoa, prestar-lhe
vassalagem e reconhecê-lo como o único governante da Ásia e dono de
todas as possessões que outrora eram suas.
Fosse em tempos de guerra ou de paz, as mulheres da nobreza
persa viajavam em carros faustosos, com suas jóias, mobiliário e cofres
entalhados e engastados com pedras preciosas, além de uma
verdadeira coorte3 de escravos e protegidas por uma escolta dos
chamados "cem mil imortais", uma tropa de elite que conservava
sempre o mesmo número de homens, já que imediatamente se
incorporavam outros em substituição aos mortos ou feridos. O costume
de se apossar das mulheres com as insígnias de sua fortuna e
acompanhadas de todos os seus descendentes deu origem à
mestiçagem que haveria de se elevar a símbolo de tolerância, e se
converteria em um dos princípios mais perduráveis de conservação dos
usos e costumes pátrios.
Era só porque Alexandre trazia em suas veias matéria divina
que ele continha seus acessos de ardor perante Estatira. Não
acariciava o vestido entremeado de fios de ouro que ondulava sobre
seus seios, nem se deleitava aspirando os regalos secretos que sugeria
seu comportamento treinado para agradar; tampouco se atrevia a tocar
suas sapatilhas de seda, nem tentava embriagar-se com o fragrante
sândalo de sua cintura. Ao contrário, esmerou-se na vigilância da honra
da rainha persa para engrandecer por meio dessas ações sua fama de
grego e de civilizador, o que facilitava as rendições dos reis bárbaros,
alegando que, sendo ele mesmo um rei e superior ao que havia caído em
desgraça, considerava-se incapaz de humilhar os parentes do soberano
derrotado, ainda que, durante suas noites mais agitadas, se imaginasse
enlaçado pelos cabelos de Estatira em longos sonhos orgiásticos.
Agora sabemos que, na realidade, a renhida epopéia asiática
mascarou o escasso interesse que o general macedônio geralmente
demonstrava pelas mulheres. Como tantos seres fugazes, Estatira
coincidiu com um pestanejar da história que a fixou na cronologia
alexandrina por causa de sua beleza Desapareceu da narrativa
juntamente sua sogra, com as filhas e filhos de Dario, com a carga de
baús e de jóias, com seu séquito avultado e os dois ou três eunucos
comedidos que lhe aliviavam a solidão durante o tempo que
permanecia nos acampamentos reais, até que finalmente veio a morrer
de parto, talvez em seu castelo real de Susa onde, sem glória nem
façanhas concluiu seu trânsito pela memória persa. Quando, em meio
a excessivas demonstrações de luto, chegou um eunuco ao refúgio
onde se encontrava o monarca fugitivo trazendo-lhe a triste nova da
morte de Estatira, chorou Dario e choraram as carpideiras e sua corteja
reduzida, entre murros no peito, esfrega punhados de areia nos rostos e
arranhões nas faces. Foragido como se achava, escondendo-se entre as
planícies e as montanhas da Bactriana, Dario teve pelo menos o
consolo de saber, por intermédio de testemunhas de confiança, que
sua mulher partira deste mundo sem ter sido maculada por seus
captores; que recebera da parte de Alexandre um tratamento de rainha
e que tantas foram as atenções que este lhe prestara que ele não
guardou rancor pelo macedônio, ao contrário, bendisse-o por sua
nobreza, ainda que ele o houvesse privado de seus carros de guerra, de
sua família e de seus tesouros, apesar de ter-lhe despojado, de tomar-
lhe os cetros, a fama de grande guerreiro e a glória imperial.
Calístenes assegura que Estatira efetivamente morreu de parto,
ainda que não na segurança do castelo de Susa, mas ao término da
batalha de Arbelas, pouco depois de ser capturada. Salvo por alguns
detalhes congruentes com o comportamento macedônio de respeitar a
nobreza das mulheres dos vencidos, a história não registrou os
relacionamentos mantidos por Alexandre com os parentes do rei
persa até os acontecimentos transcorridos depois de seu regresso da
campanha da Índia, em 324 a.C, durante os meses imediatamente
anteriores à sua morte e pouco depois de visitar o túmulo de Ciro
quando, animado por sua idéia de unidade imperial, organizou as
chamadas "bodas de Susa" com a intenção de estabelecer laços de
sangue entre gregos e persas para assim assegurar a fusão de seus
interesses mútuos, como se as duas culturas se tivessem desposado
por virtude da tolerância.
Com luxo e solenidade, seguindo os costumes da região e sem
ofender os deuses locais, Alexandre celebrou seu matrimônio e o de
seus oficiais e governadores mais próximos, mantendo um estrito
apego à hierarquia e ao novo poder que já se calcava nas leis gregas. Ele
desposou Barsines, filha mais velha de Dario, e depois a mais nova,
Parisatis, igualmente formosa, ainda que se saiba que sua única
descendência proviria de Roxane, uma jovem bactriana com quem já se
havia casado anteriormente. A Heféstion, seu jovem amante e oficial de
maior confiança, Alexandre designou Dripétis, também filha de Dario e
irmã legítima de suas próprias esposas, porque queria que os filhos de
seu amigo mais fiel fossem também seus sobrinhos. A Crateras
entregou Amastrines, sobrinha de Dario, que havia compartilhado o
cativeiro das mulheres nobres na província de Sogdiana. A Pérdicas
sorteou Atropátis, filha do sátrapa da Média, região ainda poderosa e
que lhe despertaria maior cobiça. Artacamas e Artonis, filhas de
Artabasso, um dos irmãos de Dario e talvez o mais destacado por sua
valentia e senso político, foram dadas em casamento respectivamente a
Ptolomeu, futuro rei do Egito, e a Eumenes, o cronista real, o que
confirma a intenção de igualar as qualidades do comando e do
pensamento na câmara conjugal. A filha mais jovem do príncipe
bactriano Espitamenes foi destinada a Nearco, o navegador que
percorrera o rio Indo e autor de fábulas memoráveis; as demais, no total
oitenta donzelas da nobreza persa, em nada desmerecidas frente às
outras, foram repartidas com eqüidade entre os mais ilustres gregos,
tessálios e macedônios sob o juramento de honra de que defenderiam
como própria a nova pátria que deveriam gerar em seus ventres.
Comenta Aristóbulo que, durante a cerimônia, foram dispostos
assentos para cada consorte conforme o costume dos persas, e que
logo após o banquete os homens conduziram suas esposas para se
assentar a seu lado e celebrar as libações rituais em taças de ouro,
trocando promessas em favor da felicidade mútua; que primeiro as
mantiveram à direita e as beijaram em sinal de harmonia, repetindo
o que o possuidor de todos os cetros da Ásia já fizera com suas duas
noivas. Depois os esposos se retiraram a fim de consumar suas bodas
em palácios e câmaras suntuosamente adornadas. Alexandre
presenteou-lhes com generosidade; além disso, acreditando que assim
fortaleceria os laços sobre os quais pretendia estabelecer sua política
de governo, ordenou que os mais de dez mil macedônios que
formavam a guarnição de Susa se unissem também a mulheres
asiáticas e fundassem famílias dignas de sua memória e de suas
aspirações superiores.
Não haveria melhor maneira de enriquecer suas conquistas e de
concretizar um sonho imperial, insistiu Alexandre, do que unir no
leito e por meio de uma procriação consagrada o melhor dos povos, a
fim de prolongar o saber dos filhos de seus filhos durante gerações e
assim perdurar seu legado através dos tempos como uma poderosa
força criadora, enraizada na sabedoria de Atenas, no vigor macedônio
e na grandeza já derrotada da célebre Babilônia.
... e que trazia velas de púrpura estendidas ao vento, e era impelida por
remos com pás de prata, movidos ao compasso de sons de flautas, oboés e
cítaras. Ela navegava assentada sob um dossel de ouro, adornada com os
mesmos atavios com que se retrata Vênus. Assistiam-na de ambos os lados,
abanando-a, belos meninos parecidos com os Amores. Tinha criadas de
grande beleza, vestidas com as mesmas roupas com que se costumava
representar as Nereidas e as Graças, algumas de pé junto ao timão, outras
junto aos cabos que firmavam as vergas. Sentia-se a brisa perfumada de
muitos aromas deliciosos. Uma tuba acompanhava o navio ao longo de ambas
as margens, enquanto muitos outros desciam das cidades a fim de gozar
também de tão incomum espetáculo, ao qual rapidamente acorreu toda a
multidão que estava na praça, até quedar-se Antônio sentado sozinho em seu
tribunal...
1Os idos correspondiam ao 15a dia dos meses de março, maio, julho e outubro e ao
dia dos demais meses no calendário romano. [N.T.]
Hipátia de
Alexandria
1 James George Frazer (1854-1941), antropólogo escocês, famoso por sua teoria das
três fases do pensamento humano: mágico, religioso e científico, exposta em seu longo
livro The golden bough [O ramo de ouro], escrito entre 1890 e 1915, uma classificação
adotada até hoje pela maioria dos antropólogos. [N.T.]
Sherazade
Para onde quer que me volva aparecem diante de meus olhos aqueles deleites
e despertam outra vez meu desejo... Até durante as solenidades da missa,
quando a prece deveria ser mais pura do que nunca, imagens obscenas
assaltam minha pobre alma e a ocupam mais do que o ofício divino... Longe
de gemer arrependida pelas faltas que cometi, penso suspirando naquelas
que não posso mais cometer...
Antes que Georg Zabel mudasse seu nome para Johannes Faust, que
vende sua alma ao diabo em troca dos prazeres desta vida, já
escandalizava os aldeões nas tabernas com seus oráculos e afirmações.
Alguns crêem que viveu de 1480 a 1540, e que a lenda foi construída
sobre um fundo de verdade. Ninguém então, em seu juízo perfeito,
cobiçava a sapiência divina ou manifestava inveja pela criatividade
praticada unicamente por Deus. Considerando os desconcertos
habituais, as coisas se moviam com uma certa ordem: o Todo-Poderoso
desvendava as verdades da fé e seus prelados estabeleciam o que era
permissível aos sentidos e às fantasias. Assim se organizava a vida em
comum e todos se curvavam com resignação aos ciclos naturais da
existência. As disposições celestes eram acatadas com maior ou menor
docilidade, e os assuntos terrenos vagavam entre o tédio, a resignação
e o comedimento.
A ruptura de tal ordem, porém, ocorreu no momento em que um
homem quis extravasar suas próprias capacidades. O renomado
doutor Fausto não ignorava que Mefistófeles costuma despertar nas
altas inteligências um grande apetite pela atividade fecunda,
justamente aquela pela qual sentia uma inquietação crescente.
Acreditava que o mundo seria insípido, enganosamente pacífico e
adormecido se Deus não tivesse deixado esse demônio em liberdade
para acionar uma parte das forças que anseiam sempre pelo mal, mas
que, sem cessar, provavelmente sem pretendê-lo, acabam por conduzir
ao bem. Foi assim que ele se aventurou em seus signos obscuros e
decidiu entregar sua alma ao príncipe dos infernos em troca de
fundar o que seria mais tarde chamado mito fáustico, arrastando em
sua esteira a jovem Margarida, que perduraria para sempre como
vítima ou contraparte do símbolo da curiosidade temerária.
Aventureiro malandro, apaixonado pelo saber, esse peculiar
homem de ciência e professor particular costumava viajar de
Gelnhausen a Erfurt de Ingolstadt a Nuremberg e mesmo pelas regiões
mais afastadas da antiga Germânia para impressionar clérigos,
estudantes e taberneiros com predições extravagantes e notícias do
universo ou do tempo. Seus interesses eram totalmente distintos
daqueles que se costumava atentar naquelas aldeias medievais infiltradas
de preconceitos, de superstições e de feitiçarias tão diversas e penetrantes
que, em vez de se acostumarem à extravagância, imputavam aos seres
um pouco diferentes a fama de irreais, possessos ou endemoninhados.
"Magister Georg Sabellicus, Fausto o Jovem. Fonte dos
necromantes, astrólogo, mago de segunda ordem, quiromântico...". Era
assim que redigira sua própria apresentação manuscrita em cartões de
elaborado cursivo. Não havia quem lesse tais linhas e resistisse à
tentação de escutá-lo. Até brotavam aqui e ali certas pessoas que
juravam tê-lo visto partir na metade da noite, como foi afirmado em
Leipzig, cavalgando nas ancas de seu cavalo Pégaso, cercado por
sombras fantasmagóricas.
Escreveu o horóscopo do bispo de Bamberg e, em 1540, pouco
antes de sua morte, sempre perseguido pela justiça em razão de seus
numerosos delitos, vislumbrou acontecimentos tão pormenorizados e
insólitos como a expedição dos Welser à Venezuela, a qual, segundo
informou o cavaleiro Philipp von Hutten, "resultou tal e qual havia
predito o filósofo".
Em poucas décadas sua legendária celebridade captou a
atenção de biógrafos e poetas. De simples relato popular, sua memória
se foi convertendo em caráter dramático, figura trágica, alegoria moral,
fábula renascentista, símbolo do racionalismo e personagem mítico até
se irmanar com as criaturas melancólicas dos Oitocentos, derivadas do
romantismo, conhecido como "o mal do século". Fausto não seria
Fausto, síntese dos apetites da juventude e do desejo insaciável pelo
saber, sem que fosse complementado por Margarida, essa mártir do
furor diabólico encarnado por Mefistófeles, que é destruída para
satisfazer uma ambição que se acaba tornando igualmente
purificadora.
Antes que Goethe revisitasse, no decorrer do século XIX, os
fundamentos bíblicos do universo e explorasse variações de Lúcifer e
de Margarida em sua conhecida obra, era comum na Europa
interpretar-se das maneiras mais distintas essa lenda de cunho
claramente moralizador. A versão de Christopher Marlowe,
contemporâneo de William Shakespeare e de Ben Jonson, foi encenada
em vários países, e chegou a ser comum adaptá-la em verso ou em
prosa para o teatro de marionetes até que, recriada segundo as
concepções de nosso tempo, a novelística e o cinema se apropriassem
dessa trama, uma das mais sugestivas da literatura por conter uma
grande variedade de elementos entre a vida e a morte, sempre
complicados pela paixão, pela ânsia de poder e pelos desejos
concorrentes de possuir e de saber.
Dramaturgo e aventureiro, o próprio Marlowe foi apunhalado em
virtude de uma contenda amorosa aos 29 anos de idade. Peculiar como
seu diabólico inspirador, sua força cênica não pode ser separada de
seu próprio espírito fáustico, o mesmo que acometeria Thomas Mann e
os criadores contemporâneos que descobrem em Fausto um veio
inesgotável que costuma deixar de lado a enigmática Margarida, figura
sombria que avança através dos séculos com uma feminilidade
degradada às costas, triste e desamparada, uma personagem que nem
os psicanalistas se atreveram a analisar.
Diferentemente de outros mitos que também envolvem enredos
entre homens e deuses, este tem a inteligência e a sensibilidade como
diretrizes centrais. Reduzida, a antiga divindade se humaniza por meio
dos questionamentos de Fausto. Decresce o significado do absoluto e
se reavaliam as dúvidas acerca dos atributos do homem. Dessa
maneira, o signo fáustico é o da dignidade indivisa do humanismo, e se
transforma no símbolo mais elevado da curiosidade que suscita o
descobrimento de si mesmo e do universo diante do desafio intimidante
das regiões mais tenebrosas da alma.
Este é o drama da insatisfação que se aventura no desconhecido.
Em Fausto oculta-se o tríplice desejo de sentir, conhecer e criar para se
reconhecer no mundo, com a intenção de transformá-lo transformando
a nossa natureza interior, ou seja, ao se firmar um desafio ao destino, o
personagem masculino investe no sonho de triunfar sobre o tempo e
no empenho perdurável de transcender às limitações da natureza;
todavia, para atingir esse objetivo compromete a vontade de uma
mulher que, em sua paixão, não encontra como recompensa nada
mais que a dor e a morte.
O fáustico é, portanto, o grande mito de nossa civilização. Nele
convergem a estreiteza da religiosidade remota e a amplidão do espírito
renascentista. Filósofo, alquimista e mestre, no caráter do herói
sobressaem a triste consciência de não poder ser mais do que se é, e o
empenho de vencer a ordem que o coíbe. O trágico do Fausto mítico se
encontra principalmente no tédio do qual padece: não importa quão
profundamente se explore o desconhecido nem até onde ou como o
diabo incite à transgressão porque, cedo ou tarde, o homem acaba por
se deparar com o enfado. Para Goethe, o único antídoto para essa
imagem de silenciosa obscuridade está nos afazeres da cultura, no
movimento inexorável do espírito e no cultivo da arte de viver que, não
obstante, não atendeu às possibilidades da mulher.
Foi por isso que Goethe criou um Fausto tão contrastante nas
duas partes de seu drama, tão ávido de conhecer a ciência universal
como seu próprio lugar no mundo. Seu espírito é aquele que exaure
todos os gozos e curiosidades possíveis antes de sossegar seu ímpeto.
Mostrou as aspirações de um filósofo que entende que o valor da vida
consiste na busca e no alcance do objetivo perseguido;
conseqüentemente examinou as aspirações de um mestre que procura
esclarecer a complexidade mediante o enriquecimento da linguagem.
Demonstrou que procura compreender integralmente tanto o inculto
como o científico fascinado pelo poder transformador da vontade sobre
as coisas. Em Fausto encontramos ainda o artista que tem consciência
de como suas aspirações são ilimitadas. É um sábio que aprende a viver
por viver, satisfeito com sua insatisfação e sem padecer a dúvida sobre
se sua própria história valia a pena ou não. O mito desentranha o herói
que enfrenta as forças obscuras com as armas da razão e que não
negligencia sua parte íntegra, arrogante, lasciva e contraditória.
Fausto é obstinado, impulsivo, egoísta e tão extremamente humano
que até mesmo seu descontentamento serve para engrandecê-lo.
Mito, pois, do ser total, o doutor Fausto é capaz de harmonizar
suas atitudes espirituais para triunfar sobre o destino. O Fausto de
Goethe reúne as peculiaridades daqueles que, tanto na história
próxima como na remota, pensaram sua insatisfação vital como o
desafio digno, por exemplo, de um Hamlet, de um Kepler, de artistas
como Wagner ou do próprio Goethe, tantas vezes os objetos das
ponderações de Thomas Mann. Daí o interesse por Margarida e a
curiosidade não resolvida por entender em que consiste a intervenção
feminina na mais inflamada luta contra os verdadeiros e mais
perduráveis poderes do Bem e do Mal.
Tal como na história de Eva, Margarida é o instrumento de
Lúcifer para dobrar a virtude e o talento masculinos. Depois de Satã,
Mefistófeles é o dignitário mais temível do inferno. Desde a queda de
Adão, o demônio acreditou como certa a condenação da criatura mais
apreciada por Deus; mas em sua perversidade, impele o agente do
progresso que oscila entre a suposta candidez e a debilidade; entre o afã
da aventura e a claridade que, cedo ou tarde, outorga a graça da razão;
e entre o enganador mais astuto que acaba por ser enganado no
momento em que sua presa descobre um caminho de salvação - neste
caso, o das preces mais contritas.
Para Mefistófeles, a inteligência é perversa porque a mente tende
a se inclinar à desordem. Especialista em tentações que vão do sutil ao
grosseiro, segundo as qualidades do alvo eleito, sabe como é fácil
infiltrar-se pela via sentimental e, se pode escolher, prefere o desafio
racional, pois diferentemente dos sentidos, nele a argúcia se eleva ao
nível de jogo pelo poder, sempre atraente para sua avidez de divindade.
Enquanto Fausto expressa ao longo do drama os estados de seu
próprio espírito e submete à prova as idéias e os ideais de seu tempo,
Margarida protagoniza a vertente lírica do amor sentimental que
descobre na religiosidade o único canal para a redenção, depois de
haver transitado por todos os escaninhos da mais perfeita
arbitrariedade. Ela aparece no centro de uma tragédia que não é erótica
nem cavalheiresca, tampouco de aventuras como o Dom Quixote, muito
menos de veleidades sensuais como as donjuanescas; mas de
peripécias contra o próprio destino, as quais estabelecem a natureza do
equilibrista e colocam em relevo as situações-limite. A Fausto
pertencem a ânsia pelo conhecimento e a decisão de atuar com frenesi
ao proclamar a ação como princípio do mundo; mas a seu apesar e
incitada pelas beberagens de Mefistófeles, Margarida assume o papel
anterior ao de Eva, porque deve ser enganada não somente pela palavra,
mas com o auxílio de um elixir diabólico que submete sua consciência
em favor do desejo.
Embora nunca se tenha dito, a tragédia encerra um duplo
drama de violência e de imoralidade se considerarmos que, ao elegê-la
como objeto de seu delírio senil, Fausto vê em Margarida uma jovem
cheia de frescor que vivia em companhia de sua mãe e de seu irmão. O
fato crucial do mito é o do filósofo rejuvenescido por Mefistófeles que
enfrenta o apetite erótico com poderes diabólicos, típicos de quem a todo
custo recusa sua realidade, e que seduz a jovem ao custo de um crime
e de uma série de erros encadeados. Consciente do risco que ameaça
sua filha, a mãe de Margarida é entorpecida por uma beberagem que lhe
provoca a morte; seu irmão sucumbe igualmente ao enfrentar o amante
implacável. Ao escapar da justiça, Fausto deixa Margarida no mais
completo abandono; ela, por sua vez, novamente sem saber o que
ocorre, cai em tal estado de desespero que, em plena gravidez, a conduz
à demência e também ao crime.
O verdadeiro destino trágico recai, portanto, em Margarida, e não
sobre aquele que voluntariamente pactuou com os poderes malignos.
Sua indefensabilidade é absoluta, uma vez que ela ignora a causa que
desencadeou sua própria desgraça e o fim sangrento de sua família. Ela,
como costuma ocorrer, é usada e subjugada pelas paixões próprias de
um homem decrépito. Simplesmente não dispõe de recursos para se
opor aos caprichos masculinos. Na segunda parte do poema de Goethe,
vemos como avança a cobiça de Fausto até convertê-lo em um ser
desumano, carente de escrúpulos, insensível até mesmo durante
aqueles primeiros impulsos amorosos que o aproximaram de
Margarida. Depois do célebre incêndio da casinha de Filemon e Baucis
um dos episódios que selam seu processo autodestrutivo, ao doutor
Fausto não restam quaisquer resquícios de racionalidade ou de
nobreza. Está mais próximo da índole de Mefistófeles do que da
condição de humanidade que pudesse fazê-lo retornar a um estado
mínimo de ordem e de moralidade Em seu afã de domínio, já não mais
conduzirá o veneno diabólico com suas mãos, nem seu corpo lhe será
suficiente para seduzir e causar calamidades; nessa etapa de sua vida,
em franco declínio rumo à senilidade, apenas enreda os demais a fim de
estender um dano sem fim, que nem sequer o satisfaz porque, em seu
turbilhão, descobre que existem limites para a natureza humana,
inclusive no que se refere à maldade.
Essa oposição entre a cobiça desmesurada e a fadiga que acaba
pervertendo a imaginação através do tédio contradiz o propósito inicial
do filósofo, o qual, ao oferecer a alma a Mefistófeles com o objetivo de
ascender à plenitude da vida e do conhecimento, somente encontra seu
lado execrável, não sua contraparte de bondade nem de aprazível
sossego. Nesse sentido, o príncipe do inferno fracassa porque, cedo ou
tarde, impõe-se o fastio sobre os apetites saciados. Talvez seja essa a
causa de que, cansado de si mesmo e de sua própria dinâmica, se
perverta para prolongar os efeitos do mal, como uma maneira de
afastar o tédio.
O segundo Fausto renunciou à busca das sensações refinadas,
características de sua condição intelectual. Não se interessa pelo sutil
nem repara nas múltiplas possibilidades que o saber encerra. Agora
corrompe os outros porque sua capacidade persuasiva é a única que
alcançou seu ponto mais elevado de desenvolvimento. Aqueles que o
acompanham obedecem-lhe as ordens com uma docilidade aterradora.
Arrasa os inocentes, extermina de igual forma tanto anciãs como um
jovem caminhante ocasional; cada episódio não faz senão conduzi-lo de
volta a uma espécie de adolescência rebelde e pré-consciente, que
demonstra absolutamente não haver valido a pena o preço que pagou
por sua alma, porque o vazio é a única coisa que lhe resta. Um vazio
estarrecedor que, novamente, implica Margarida, ainda que agora em
seu papel de redentora, até fazê-lo despertar.
O Fausto enamorado da primeira parte apresenta, no máximo, um
certo interesse por sua curiosidade e pelo desejo de oferecer tudo em
troca de um instante de intensidade. Atrás dele, entretanto, cresce a
vertente trágica de uma Margarida que, na ocasião devida, demonstra
que o símbolo da feminilidade indefesa engloba todas as tentativas
possíveis para assinalar os limites de uma existência que carece de voz
e até de atrativos para o demônio. Na parte mais substancial de seu
drama, não há diferença entre sua realidade e o destino de uma
Heloísa histórica, confinada no claustro por Abelardo, seu amante
filósofo e mutilado que foge dela para sublimar sua dor por meio do
estudo e da celebrização. Cada uma a seu modo, ambas são vítimas dos
poderes supremos, e as duas, por causa do amor, perdem família, rosto,
liberdade e identidade por haverem amado homens maduros e
sedutores, apaixonados pelo conhecimento.
Fausto e Abelardo, por sua parte, têm em comum o ímpeto lírico
de seu pensamento criador, ainda que os diferencie a forma como se
manifestou o agente externo de sua respectiva maldade: Fausto, até o
momento em que, frente à morte, vislumbra os efeitos do mal que
causou e se arrepende, graças à ajuda benéfica de Margarida, obedece
ao desenrolar da ação concreta; Abelardo, por sua vez, se recolhe
oportunamente para criar à luz de Deus, para pensar as condições de
sua redenção a partir de uma cela monacal, na qual não faltam
ocasiões para lutar contra a irracionalidade de teólogos e mestres
invejosos de seu talento, abominando as ações concretas em seu
processo retificador. Sua redenção é justamente a contrária ao fim
fáustico, porque renuncia de antemão a Heloísa para purificar seu
espírito por meio da lucidez verbal. Morre na solidão típica do pensador
progressista e, se o amor selou a sua derrota, o conhecimento
outorgou-lhe uma liberação voluntária que ele mesmo negou à mesma
Heloísa. Ela, por seu lado, censura a Deus com a certeza de que não
dispõe de meios para modificar sua própria condenação. Rechaça seu
destino e lamenta a ausência do amado inclusive aos pés do altar. Já
Margarida é a vítima passiva, sempre insignificante, cujas orações
contritas a fazem triunfar sobre o mal e lhe permitem salvar também a
seu sedutor, não sem antes gerar dentro dele o sentimento de culpa
que o levará a se arrepender. Alto modelo de feminilidade histórica, ela
protagoniza a beleza e a virtude até ser prostituída pelo amante, e
oportunamente descobre o perdão purificador.
Eva rediviva, Margarida é filha dos preconceitos. Representa a
um só tempo a tentação e a esperança do outro. É também a
depositária temporal da beleza provocativa da Helena homérica. Na
realidade, a parte mais obscura do mito fáustico recai justamente sobre
ela, na sua falta de ímpeto, na sua incapacidade de demarcar a justiça
e na sua inépcia para se rebelar, o que torna o mito também um
exemplo da negação intelectual feminina ao arrastar em seu destino a
todas as outras Margaridas atemporais que, em sua fatalidade,
perpetuam como improvável a concepção cultural de uma inteligência
feminina lúcida, poderosa e atuante.
As fadas
Fadas e bruxas
Mais um relato:
Uma mulher, sem que se soubesse a causa - ainda que depois se acordasse
que era obra do demônio -, percebeu que seu ventre inchava gradualmente e
de tal forma que lhe parecia que ia rebentar. Fez-se levar à Virgem de
Guadalupe e pediu-lhe com todo o fervor e muita fé um remédio para o seu
mal Bebeu água do poço que ficava ao lado da igreja e logo depois
adormeceu. O sacristão contou, então, que debaixo do corpo da mulher saía
uma enorme cobra de nove varas de comprimento, justamente a causa do
inchaço de seu ventre. Ela despertou e se viu boa e sã, a um ponto que foi
capaz de ajudar a matar a cobra, motivo pelo qual deu muitas graças à Mãe
de Deus.
1 Tecido ralo de fio de pita (espécie de agave), feito no México. [N.T.]
2 Encomienda: instituição da América colonial espanhola cujos princípios variaram
conforme o período e o lugar em que foi estabelecida, mas que, em linhas gerais,
concedia um grupo de índios a um colonizador - o encomendem -, para que este se
aproveitasse de seu trabalho em troca de proteção e evangelização. [N.T.]
3 Na mitologia asteca, Tlaloc é o deus da chuva, o senhor do raio, do trovão, do
relâmpago. [N.T.]
4 Palavra derivada do nahuatl (tianquiztli) e que se usa até hoje para designar o
mercado público mexicano, que se instala nas ruas de uma cidade. O tianguis é uma
herança dos povos pré-hispânicos da Mesoamérica. [N.T.]
5 Os macehuales ou macehualtin representavam a maior pai e do povo asteca, a
gente comum, os governados que pagavam tributos à elite dirigente. Esse segmento
compreendia desde camponeses, artesãos e comerciantes até gente de certo poder
econômico. [N.T.]
6 Na América, aldeia de índios recém-convertidos quando nela ainda não havia
igreja paroquial ou vigário, sendo geralmente atendida por religiosos regulares. [N.T.]
7 Manta ou capa de algodão usada pelos camponeses mexicanos. [N.T.]
Nossa Senhora
dos Remédios
1 A referência é a São Tiago, o Maior. Embora morto em Jerusalém (44 d.C), Tiago
teria pregado o cristianismo na Hispânia, para onde seus restos teriam sido
transladados antes do século IX e depositados em Compostela. De acordo com
algumas tradições, Santiago teria aparecido miraculosamente em vários combates
travados na Espanha durante a Reconquista, como na Batalha de Clavijo, em 844,
sendo a partir de então apelidado de Matamoros. Santiago foi também protetor do
exército português até a crise de 1383-1385, quando seu brado foi substituído pelo
de São Jorge. [N.T.]
2 Tradicional molho à base de tomate, pimenta e coentro, freqüentemente servido
como acompanhamento de um prato principal. [N.T.]
3 Espécie de vasilha de barro na forma de uma xícara funda (México). [N.T.]
4 Certa planta herbácea, espécie de junco, usada para fazer esteiras, assentos de
cadeiras e outros objetos. [N.T.]
Santa Maria
de Izamal
1Moeda de prata que começou a circular em Castela no século XIV. Base do sistema
monetário espanhol até meados do século XIX, a partir de 1497 seu valor
corresponderia a 34 maravedis. Presentemente, o real eqüivaleria a 25 centavos de
peseta. [N.T.]
Nossa Senhora
de São João
Sobre uma colina às margens do rio Adaja, Ávila se ergue por entre a
crueza das terras castelhanas. No pequeno planalto, retalhado pela
aridez de séculos e pelo mistério que entranha um Caminho de
Perfeição repleto de árvores desnudas e de uma sensação de
profundidade que penetra até os ossos, pressente-se a distância
aquela monja carmelita que falava com Deus tratando-o por Tu. Sente-
se aroma de pão e de lareira acesa quando, sobre a paisagem
descoberta, se estendem as pedras de sua velha muralha e do casario
dos anos austeros em que se cultivou a riqueza mística em almas
plenas de humanidade. Ao longe, entre mãos cautelosas e o olhar
desconfiado que distingue o camponês espanhol, respira-se o centro do
universo, aquele no qual se banhava o espírito de Teresa quando saía
de dentro de si mesma para transbordar de ardor durante sua entrega
sem reservas aos mais altos mistérios do coração.
O tempo conservou a roupa escura, talvez imposta pelos mouros
aos costumes da península e que, por força das renúncias do corpo e
de séculos de luta diária com o enxadão e contra os rigores do clima,
acabou por ser assimilada à tempera dos camponeses. Então o
horizonte árido se revela propício ao recolhimento do espírito e às
batinas negras que perambulam vigiando as consciências. Ávila é
silêncio, uma inquietação que começa nos madeiros do crucificado,
atravessa seus recintos sagrados e, ao afastar o clamor dos antigos
comuneiros1, vai-se transformando em palavra até se elevar a oração.
Em suas ruas, a procissão cotidiana dos filhos de uma dor estranha e
certa austeridade contrapõe as notícias da descoberta do ouro
americano com os memoráveis arroubos da santa Teresa de Jesus.
A monja Maria de São José, em seu Livro das Recreações,
escreveria:
Era uma santa de estatura mediana, mais para alta que para baixa. Em sua
mocidade teve fama de ser muito formosa, e mesmo na maturidade ainda
demonstrava sê-lo. Seu rosto não era nada comum; tinha feições
extraordinárias, de tal modo que não se poderia descrever como redondo nem
aquilino; era formado por três partes de iguais proporções. A testa era larga,
simétrica e muito bela; as sobrancelhas, de coloração louro-escura, largas e
um tanto arqueadas; olhos negros, vivazes e arredondados, não muito
grandes mas extremamente bem desenhados. O nariz, redondo e retilíneo
até o meio dos olhos, afinava até igualar com as sobrancelhas, formando um
harmonioso sobrecenho. Era mais corpulenta do que magra, mas em tudo bem
proporcionada; tinha mãos muito lindas, embora pequenas; no rosto, do lado
esquerdo, tinha três pintas... formavam uma linha reta entre elas,
começando pela maior logo abaixo da boca, a outra entre a boca e o nariz e a
última no próprio nariz, mais para baixo do que para cima. Em tudo era
perfeita.
Três coisas disseram de mim no decorrer de minha vida: que era, quando
moça, bem-apessoada, que era discreta, e agora dizem alguns que sou santa.
Nas duas primeiras acreditei por algum tempo, e me confessei por haver dado
crédito a essas vaidades; mas em relação à terceira nunca me deixei enganar
tanto para alguma vez ter acreditado nela.
Por sua graça e seu talento, além da piedade que inspirava uma
menina sozinha no mundo, serviçal e discreta, foi protegida de Leonor
Maria Carreto, marquesa de Mancera, que a incorporou a seu serviço com
o epíteto de "muito querida da senhora vice-rainha", e de cuja corte de
honra somente saiu para ingressar no convento. A profunda amizade
de que privou com essa mulher famosa por sua fina educação inspirou
em soror Juana numerosos escritos de uma exaltada cortesania que
não revelam exatamente gratidão ou afinidade platônica, mas uma
paixão no mínimo estranha entre duas mulheres que somente
professaram uma admiração mútua. Dessas homenagens, alguns
críticos inferiram sintomas de lesbianismo, não confirmados se
levarmos em conta que era comum na época, inclusive nas
monarquias européias, o abuso de figuras literárias emotivas e
adjetivadas por parte dos artistas para demonstrar agradecimento por
seus protetores. Seu erotismo, porém, resulta tão sugestivo quanto sua
maneira de superar as invejas e os problemas que a cercaram a ponto
de se desfazer, no momento de sua abjuração, dos quatro mil livros
que formavam sua biblioteca, além de seus mapas e instrumentos
musicais, quando comprovou que o peso das repreensões havia
triunfado sobre o impulso natural que Deus lhe dera, talvez para
acentuar a estupidez de que são capazes homens quando percebem a
luminosidade de quem é diferente por força de seu talento.
Monja jerônima, abomina a vida conventual, mas descobre a
liberdade entre as quatro paredes de sua cela consagrada. Perseguida,
no fim de sua vida é a escritora que abjura com o próprio sangue seus
conhecimentos mundanos para rubricar o protesto de fé e amor a Deus
que a acompanhou até a sepultura. Por volta dos 46 ou 48 anos de
idade, sofre com suas companheiras de clausura os rigores de uma
febre maligna da qual pouco sabemos, exceto que morreu contagiada a
17 de abril de 1697 e que, durante os dois últimos anos de sua vida,
entregou-se ao jejum, a severidade espiritual e às mortificações do
corpo, como seria de se esperar de uma inteligência em expiação. Não
que padecesse de sentimento de culpa por sua inteligência,
característico da síndrome de Eva, mas da ameaça concreta por sua
discrepância natural, por sua maneira de ser diferente em um meio no
qual tudo estava predisposto para a obediência e a mediocridade.
Foi precoce, formosa e crioula1. Sofreu eventos trágicos em uma
cultura completamente alheia à experiência trágica clássica, mas afeita
à abjeção e ao rancor. Introduziu em nossa história literária,
juntamente a Carlos de Sigüenza y Góngora - ainda menos
afortunado do que ela -, o capítulo das perseguições ao pensamento
crítico que, com o decorrer do tempo, se transformou em hábito
característico, inclusive, do jornalismo de nosso século. Dona de uma
integridade incomum, sustentou o direito de divergir com a mesma
paixão com que lutou em favor da uma educação feminina que
demoraria mais de dois séculos até ser instituída no México, embora a
igualdade ainda esteja longe da experiência contemporânea.
Sobre ela pesou e venceu o poder da obediência, mas nem a
brutalidade de sua época conseguiu ofuscá-la. Desde então já
transcorreram mais de trezentos anos e seu enigma permanece intacto.
Cada geração se vangloria de alguma descoberta que permitiria
entendê-la melhor; soror Juana, porém, não apenas se nega a nos
revelar sua verdadeira identidade como parece cada vez mais
indecifrável sob os manifestos dos curiosos, já que, conforme ela
mesma insistiu, sua motivação era intelectual e somente para
conhecer e se maravilhar perante o divino mistério da criação.
A severa lei da qual se queixou padecer, segundo disse, por
determinação da Igreja ou por ditame da razão contrária às mulheres, foi
uma constante nos preconceitos de nossa sociedade fechada. Ela
buscou sua liberdade pessoal nas normas estritas de sua
aprendizagem e provocou, contra sua vontade, o enfrentamento com o
clero e com uma forma de ser que a exortava a que elevasse o
pensamento aos céus, fixasse os olhos no chão e se apartasse das
letras para se consagrar por inteiro à religião, conforme lhe exigiu o
cauteloso bispo de Puebla, Manuel Fernández de Santa Cruz, em sua
carta assinada com o pseudônimo de soror Filotea de la Cruz.
Em sua célebre Resposta, soror Juana insistiu que não queria se
desentender com o Santo Ofício, mas estudar "para saber menos",
propósito que, em sua infância, a fez se abster de comer queijo porque
ouvira dizer que prejudicava o entendimento; inquieta como era,
pouco depois quis se vestir de homem para poder freqüentar a
universidade. Ali, por meio desse testemunho autobiográfico sem
precedentes em nossa cultura, registrou as linhas mestras de sua
obra, com reflexões sobre os obstáculos à sua vida intelectual e alguns
desenganos que explicam seu isolamento por ser uma mulher
pensante, por ser uma monja excepcional e por haver conservado sua
fidelidade às letras até completar sua derrota com o silêncio definitivo,
que seguramente a consumiu de tristeza.
Tão-somente para sobreviver praticou, com semelhante
habilidade, a linguagem cortesã e o ocultamento típico do estilo
barroco vigente ao se aventurar pela dupla via da intuição e do
humanismo, em cujo exercício firmou seu direito à igualdade sexual
perante o pensamento.
Talvez pela ênfase com que evidenciou as causas de sua decisão
em ingressar no convento e se esquivar das obrigações que
entorpeciam sua paixão pelo estudo, Juana Inés de la Cruz resolveu,
ainda que parcialmente, a contradição entre a consciência de seu gênio
e o estado de coisas que a impedia de satisfazer seu desenvolvimento
como mulher que abomina o matrimônio. Escritora nata, ainda que
afirme não ter escrito senão "violentada, forçada e somente para dar
prazer aos outros", é notável como oportunamente descobre nos temas
profanos, principalmente comédias e sonetos, que não seria aquela
sociedade que determinaria sua história, mas que ela mesma haveria
de protagonizar os extremos irreconciliáveis de sua realidade colonial.
Em uma Nova Espanha que dava as costas ao formidável movimento
espiritual da península, corte e clero não diferiam ao invocar o amor a
Deus nem ao aplicar sanções ao pensamento rebelde, e por isso seu
apagamento foi absoluto.
Transgressora até onde era possível, percebe a influência
inquisitorial quando intimamente se debatia frente aos obstáculos
interpostos a seu talento perturbador. Um talento que a inclinava à
desobediência conforme se aventurava no desconhecido; mas que, ao
mesmo tempo, se revertia contra ela na medida em que demonstrava
que ninguém pode saltar para além dos limites de suas circunstâncias.
Uma após outra, as imagens de mitos, signos, nomes, letras e
palavras passavam de uma extremidade à outra do mesmo labirinto.
Este é o jogo incessante de soror Juana ao criar um dos maiores
poemas mexicanos, Primeiro Sonho, no qual o universo que evoca, sem
dono, ordem ou fundamento, viaja através de uma obscura espiral
metafórica desde a noite da ignorância até a luz do conhecimento.
Em Primeiro Sonho encontram-se as chaves complementares da
dolorosa autobiografia de uma mulher mexicana que somente pôde
saciar seu afã de saber por seus próprios meios. Esta é a razão de sua
metáfora, porque nós, mulheres, não temos sido no México outra coisa
que uma sombra fugidia.
Alma suspensa e sem governo, ela escolhe uma forma de morte
em liberdade: o sonho. Não o dormir, que é recompensa do corpo
fatigado. A alma admira e percebe o movimento oculto nas visões do
acontecer, do mesmo modo que o mecanismo de um relógio preciso: o
coração, o mundo, o fluxo das águas, o surgimento da idéia ou as
pulsações da vida. Soror Juana sondou o mais obscuro, luzes e cores, e
roçou a profundidade da poesia, ali onde a crítica se manifesta por si
mesma e não é possível fugir da responsabilidade a que nos
compromete a razão educada, sobretudo quando se é mulher. Tudo
começou ao adormecer em uma noite; mas depois de um dia, de outro
e de outro mais, o sonho continuava desafiando o sentido de suas
palavras, o enigma da voz, o segredo do verbo, até cair em seu silêncio
de séculos...
Qual o saber que ela buscava? Os mistérios da existência e das
coisas; tudo quanto se relacionava com o fato de viver e morrer. Não
deixa de ser revelador que fosse precisamente uma mulher quem
fundasse a literatura mexicana, uma mulher convencida de que a alma
não tem sexo e que na razão se alicerça a única substância da
humanidade. Soror Juana Inés de la Cruz é, por tudo isso, o símbolo
de uma luta pela individualidade e o emblema cultural da razão que,
apesar de tudo, não pode ser vencida.
1.
Também traduzido no Brasil como Passeio ao farol. [N.T.]
2.
Prato da culinária francesa, corresponde a um cozido, ou guisado, de carne
bovina com vinho tinto, vegetais e temperos. [N.T.]
3 Em inglês, Arthur's Education Fund - Expressão empregada por Virginia Woolf
em seu livro Três guinéus, no qual, em linhas gerais, faz uma interpretação da
relação entre masculinidade, autoritarismo e guerra. [N.T.]
Djuna Barnes
1 Referência ao teatro construído por Wagner, com a ajuda do rei Luis II da Baviera,
na cidade alemã de Bayreuth, para a representação de suas obras. Wagner compôs
seu último trabalho, a ópera Parsifal (1882), especialmente para ser encenado nesse
teatro. [N.T.]
2No original, Abbazia (em italiano). Balneário turístico localizado no extremo norte do
mar Adriático, na atual Croácia. Era o centro turístico por excelência do Império
Austro-Húngaro até a Primeira Guerra Mundial. [N.T.]
3 Doce feito à base de cannabis. [N.T.]
Eis aqui o primeiro de meus livros - sem dúvida o único - que você não haverá
lido antes de ser impresso. Está inteiramente dedicado a você, mas não é a
você que se refere. Quando éramos jovens e ao término de uma discussão
apaixonada um dos dois triunfava brilhantemente sobre o outro, dizia então:
"Te guardei na caixinha!". Você está agora na caixinha, não vai sair dela e eu
jamais me reunirei consigo: mesmo que me enterrem ao seu lado, de suas
cinzas para meus restos não haverá qualquer passagem.
1.
Referência ao quadro "El Nino de Vallecas", de Velázquez, assim citado por
Zambrano em seu livro Algunos lugares de la pintura. [N.T.]
2.
Surgido como uma teoria biológica, o vitalismo foi apropriado no sentido
filosófico e literário por Ortega y Gasset. Admite a existência de um princípio vital,
distinto da alma e do organismo, que orienta as ações orgânicas e que seria
responsável pelo exercício do livre-arbítrio sob a orientação, mas não sob o comando,
da alma ou da consciência, que seria governada por emoções primordiais - os "quatro
gigantes da alma". [N.T.]
Este livro foi composto pela Join Bureau em Berkeley Oldstyle e
impresso pela Gráfica Vida e Consciência para a
Editora Aleph em abril de 2006.