Curso de Canto Gregoriano
Curso de Canto Gregoriano
Curso de Canto Gregoriano
INTRODUÇÃO AO
CANTO GREGORIANO
1
COIMBRA
2012
CAPÍTULO I
importância relativa de cada palavra isolada, quase sempre decisiva na ordenação do discurso
musical.
Assim, o director do coro, seja no quadro celebrativo, seja no de concerto, deve ter
sempre a preocupação de fornecer aos destinatários o texto latino e a respectiva versão em
vernáculo. Esta regra, válida para todos os casos em que a língua das obras interpretadas
não é acessível à grande maioria dos ouvintes (mas pouco seguida, quer nas escassas
liturgias com cantos em latim, quer, sobretudo, em tantos concertos corais em que se
facultam por vezes extensas notas curriculares de maestros e coros mas não as traduções
dos cantos, como se todos os ouvintes fossem versados em latim, alemão, italiano, etc.),
esta regra, dizíamos, torna-se particularmente imperativa, insistimos, no tocante à melodia
gregoriana, a qual, ao invés do que por vezes se crê, não é mero adorno de um texto. Como
sublinham L. Agustoni e J.B. Göschl, «o percurso que permite colher a verdadeira essência
[do gregoriano] não passa do som para um texto do qual constituiria suporte, mas antes
exactamente ao contrário, a partir de uma palavra expressa em plenitude até à completa
realização em veste melódica. A palavra é a fonte originária e original da qual jorra o melos
dos cantos gregorianos»1.
Deste modo, a iniciação ao gregoriano deve ser acompanhada do estudo progressivo das
diversas formas literárias que os cantos assumem. Em particular, requer-se adequada
propedêutica bíblica em ordem a familiarizar o executante com a linguagem da Sagrada
Escritura2, sobretudo do Livro dos Salmos, de onde é retirada a maior parte dos textos
usados nesta expressão musical3. Só pela leitura assídua da Palavra e da sua ressonância na
Liturgia da Igreja que dela se alimenta dia e noite (Salmo 1, 2), se pode avançar na
compreensão do canto gregoriano, exaltação e meditação sonora dos textos sacros.
1 L. AGUSTONI / J.B. GÖSCHL, Introduzione all’interpretazione del canto gregoriano, I, 1998, pp. 28-29, interpolação
nossa.
2 Em casos pontuais, usam-se textos provenientes de livros que, na fixação do cânone bíblico, vieram a ser
excluídos (apócrifos). Entre os exemplos mais conhecidos, contam-se os retirados do IV Livro de Esdras
(Requiem aeternam dona eis, Domine: IV Esd 2, 34; parte dos Improperia de Sexta-feira Santa: IV Esd 1,
7.10.13.14.19.20.21; e Accipite iucunditatem: IV Esd 2, 36-37), testemunho, por certo, da grande antiguidade
destes cantos, anteriores ao século IV, altura em que o referido Livro de Esdras começa a ser recusado.
3 Sobre as fontes textuais do repertório, além do clássico de C. MARBACH, Carmina Scripturarum, 1907
(reimpressão 1963), v. M. FOURNIER, «Sources scripturaires et provenance liturgique des pièces de chant du
Graduel de Paul VI», Études grégoriennes, XXI (1986), pp. 97 ss., XXII (1987), pp. 109 ss., XXIII (1989), pp. 27
ss.
b) Para além destes problemas de índole textual, não se pode esquecer que o estudo
do repertório gregoriano exige uma compreensão profunda daquilo que poderíamos
designar como o seu contexto genético, o mesmo é dizer, a celebração litúrgica. Sem
dúvida, o gregoriano constitui um dado artístico (música) que pode ser fruído, analisado e,
até, executado com base em estritas considerações técnicas e estéticas, não implicando, por
conseguinte, a crença pessoal nos conteúdos cantados nem a vinculação aos ritos para que
tais obras foram compostas. Aliás, sabemos que a manutenção do canto gregoriano nos
tempos actuais se opera mais por via dos concertos e gravações do que pela realização em
âmbito celebrativo, apesar do empobrecimento recíproco, quer das celebrações litúrgicas se
desprovidas por inteiro desta forma musical tão densa, quer do próprio gregoriano,
desenraizado do ambiente orante que lhe deu existência. Porém, a compreensão cabal do
fenómeno musical que o canto gregoriano representa não dispensa um conhecimento sério
do contexto cultural-litúrgico da sua génese. As melodias gregorianas foram elaboradas
para a função celebrativa, adequando os gestos musicais às distintas exigências rituais
impostas pelo quadro litúrgico coevo. Desta forma, e independentemente da questão
complexa de saber qual o lugar que o gregoriano deve ter nas acções litúrgicas do nosso
tempo e os termos em que essa inserção litúrgica pode ocorrer, e mesmo quando a
execução não se destine ao ambiente cultual, importa que o cantor, sobretudo o director de
coro, disponha dos conceitos fundamentais da ciência litúrgica, de modo particular sobre
os princípios estruturantes da liturgia e seus elementos constitutivos (palavra, rito, símbolo, 6
celebração), sobre os sujeitos e ministérios litúrgicos, o ano litúrgico, a estrutura da missa e
dos demais sacramentos e sacramentais, a liturgia das horas e os livros litúrgicos. Mostra-se
indispensável, ainda, um aprofundado conhecimento da história da liturgia4.
4 Graças à diligência e ao saber do P.e Dr. José de Leão Cordeiro, dispomos hoje em português de uma
inestimável antologia das fontes litúrgicas do primeiro milénio da Igreja, preciosa pelo largo acervo documental e
riqueza espiritual dos textos coligidos: Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio,
2003. Para a história litúrgica, de vasta literatura, v. M. RIGHETTI, Historia de la Liturgia I (trad. castelhana),
1955, espec. pp. 101 ss, J. A. JUNGMANN, Les Liturgies des Premiers Siècles, 1962, B. NEUNHEUSER, Storia della
liturgia attraverso le epoche culturali, 3.ª ed., 1999. Um amplo panorama da evolução da liturgia até aos nossos dias
pode colher-se, ainda, na obra recente de E. CATTANEO, Il culto Cristiano in occidente – note storiche, 2003. Os
manuais de liturgia oferecem também boas sínteses históricas; por todos, cf. V. RAFFA, Liturgia eucaristica,
2003, pp. 39-234, X. BASURKO/J. A. GOENAGA, in: La celebración en la Iglesia (dir. D. Borobio), I, 1995, pp. 49
ss.
5 Nos alvores do processo de restauração do canto gregoriano, em meados do séc. XIX, o Cónego Gonthier
advertia: «Todos os autores antigos […], depois de terem formulado as regras do canto, que conheciam
perfeitamente, são unânimes em afirmar que tais regras não se mostram suficientes para saber cantar; que é
preciso ainda ter ouvido cantar durante muito tempo e adquirido formação por meio de uma longa prática»
(A. GONTHIER, Méthode raisonnée de plain-chant, 1859 (citamos pela trad. italiana de N. Albarosa, Metodo ragionato
di canto piano, 1993, p. 32).
CAPÍTULO II
2. Ainda que as comunidades cristãs fossem criando textos próprios para o canto
das celebrações, importa sublinhar que, não só por força da matriz judaica a que o novo
culto não podia ser alheio9, mas pelo seu específico valor teológico e eucológico, o objecto
6 Solange CORBIN, no seu admirável L’Église à la conquête de sa musique (Paris, 1960), oferece-nos uma vívida
imagem destas fases recuadas. Outras referências com interesse sobre a evolução histórica do canto litúrgico
cristão podem colher-se em G. CATTIN, História de la música — el medioevo, 1979, pp. 3 ss., P. WAGNER, 8
Einführung in die gregorianischen Melodien, 1. Teil: Ursprung und Entwicklung der liturgischen Gesangsformen bis zum
Ausgange des Mittelalters, 3. Aufl., 1911, pp. 6 ss., W. APPEL, Il canto gregoriano (trad. aggiornata da Marco Della
Sciucca) [1958], 1988, pp. 49 ss., A. Pellegrino ERNETTI, Storia del canto gregoriano, 3.º ed., 1990, pp. 35 ss.
7 Um testemunho afiançado, aliás, por observadores pagãos, como comprova a conhecida carta enviada no
ano 112 por Plínio, o Moço, ao imperador Trajano e em que se descrevem os cristãos como pessoas que
tinham o «costume de se reunirem, num dia determinado, antes do nascer do sol, para cantarem entre si,
alternadamente, um hino a Cristo» (v. texto em: Antologia Litúrgica, n.º 305, p. 116).
8 Recordem-se os seguintes: «Tende entre vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo. Ele que era de
condição divina não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a Si próprio. Assumindo a
condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte e morte de cruz. Por isso, Deus O exaltou e Lhe deu o nome que está acima de
todos os nomes, para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua
proclame que Jesus Cristo é o Senhor para glória de Deus Pai» (Fil 2, 6-11); «Aquele que se manifestou em
carne humana, foi justificado pelo Espírito. Foi contemplado pelos Anjos e anunciado aos gentios. Foi
acreditado no mundo e exaltado na glória» (1 Tim 3, 16); «Desperta tu que dormes, levanta-te de entre os
mortos e a luz de Cristo te iluminará» (Ef 5, 14). «Bendito seja Deus, Pai do Nosso Senhor Jesus Cristo, que
na sua grande misericórdia nos gerou de novo – através da ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos –
para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, imaculada e indefectível, reservada no Céu para vós,
a quem o poder de Deus guarda, pela fé, até alcançardes a salvação que está pronta para se manifestar no
momento final (1 Pe 1, 3-5); «Cristo sofreu por nós, deixando-nos o exemplo para que sigamos os seus
passos. Ele não cometeu pecado algum e na sua boca não se encontrou mentira. Insultado, não pagava com
injúrias, maltratado, não respondia com ameaças. Mas entregava-se Àquele que julga com justiça. Suportou os
nossos pecados no seu Corpo sobre o madeiro da cruz a fim de que mortos para o pecado, vivamos para a
justiça. Pelas suas chagas fomos curados. Na verdade, éreis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao
Pastor e Guarda das vossas almas» (1 Pe 2, 21-25). «Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor Deus
omnipotente. Justos e verdadeiros são os vossos caminhos, ó Rei do universo. Senhor, quem não há-de temer
e glorificar o vosso nome? Porque só Vós sois santo, e todas as nações virão prostrar-se diante de Vós,
porque se manifestaram os Vossos juízos» (Ap 15, 3-4; cf., ainda, Ap 19, 1-2, 5-7; Ap 11, 17-18; 12, 10-12).
9 Não cabe aqui referir as influências judaicas na elaboração da liturgia cristã. Para uma síntese, com ampla
informação bibliográfica, v. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia, pp. 29 ss.; no plano musical, cf. G. CATTIN,
História de la música — el medioevo, pp. 7 ss., e, em profundidade, E. WERNER, The Sacred Bridge. II: The
preferencial da oração litúrgica consistia no Livro dos Salmos10. E é muito provável que as
primeiras comunidades cristãs herdassem das formas cultuais do judaísmo os modos
típicos de recitar os salmos na liturgia: a salmodia solística (ou in directum), a salmodia
responsorial – simples ou em coros alternados11.
Além desta influência de conteúdo e de estrutura cultual, é verosímil também que as
formas musicais próprias do rito judaico hajam exercido a sua influência sobre o tipo de
canto das primeiras Igrejas, sobretudo das mais vinculadas à tradição de Jerusalém. Isto
verifica-se, desde logo, no recurso aos recitativos (a cantilação), isto é, no uso de esquemas
estereotipados (os tacamîn judaicos) para proclamar o texto sagrado sobre cordas de
recitação com pequenas variações melódicas assinalando a acentuação e a pontuação literárias12.
Esta maneira simples de recitar, muito característica do canto cristão dos primeiros tempos,
aparece por vezes combinada com outra forma musical que se traduz na existência de
vocalizos ou melismas cantados em regra sobre a sílaba final da divisão do discurso literário
– o jubilus. Como sublinha D. Daniel Saulnier, trata-se de um «momento de música pura
que vem interromper a recitação silábica e contrastar com ela (...). O jubilus é uma forma
autêntica de composição musical ligada à cantilação: este jubilus não é uma música a que
retiraram as palavras ou à qual falte qualquer coisa; é um canto para lá das palavras, dos
conceitos sempre um pouco limitados que as palavras evocam»13.
Interdependence of Liturgy and Music in Sinagogue and Church during the First Millenium, 1984. Solange Corbin
sublinha essa ligação matricial entre formas musicais do culto da sinagoga e do canto cristão primitivo, que as
diferenciariam claramente da música greco-romana: «la véritable différence est dans la nature même de la
musique. Chez les Juifs et les chrétiens, elle est une amplification de la Parole sacrée, et n’existe pas seule […].
Dans l’art grec savant, la musique existe pour elle-même, par elle-même» (L’Église à la conquête de sa musique, p.
68).
10 Esta ideia tem sido muito contestada – na historiografia chegou a ganhar foros a tese de que o canto cristão
era composto na origem por hinos e que só a partir do séc. III a salmodia viria a assumir progressiva
importância. Para uma visão informada do problema, mostrando que, ao contrário, os salmos constituíram
desde os primórdios do cristianismo fonte primacial do canto, v. PH. BERNARD, Du chant romain au chant
grégorien, 1996, pp. 67 ss.
11 S. CORBIN, L’Église à la conquête de sa musique, pp. 63 ss., D. SAULNIER, Le chant grégorien, 1995, p. 32.
12 S. CORBIN, L’Église à la conquête de sa musique, pp. 61 ss.
13 D. SAULNIER, Le chant grégorien, p. 32. Cf., ainda, PH. BERNARD, Du chant romain au chant grégorien, pp. 95 s:
«les melismes sont un element extrêmement ancient, qu’on trouve dès des origins de la psalmodie. […] Loin
de jouer un role décoratif, ils étaient indispensables, car ils servaient à souligner les articulations du texte
psalmique; ils permettaient également aux auditeurs de savoir où l’on était, puisqu’ils annonçaient nottament
la fin de chaque verset ainsi que celle de la pièce de chant, indication indispensable dans un milieu de la
tradition orale» (p. 95).
Fig. 2
3. À medida que a Igreja se estendia pelo Império Romano, emergem vários tipos
de canto, adequados à diversidade cultural e cultual. Embora, como se disse, o objecto
primordial do canto tivesse sido sempre a Sagrada Escritura, sobretudo os salmos, deve 10
assinalar-se que também formas textuais não bíblicas penetraram na liturgia e, por
conseguinte, no canto. Assim, desde muito cedo teve grande importância, sobretudo nas
Igrejas do Oriente, o canto dos hinos14, composições poéticas mais ao gosto popular e que
serviam para a difusão doutrinal (e não só no seio da ortodoxia, pois algumas correntes
heréticas, v. g., o arianismo e certas seitas gnósticas, serviram-se com profusão dos hinos para a
catequese15).
A lista dos grandes poetas cujas composições enriqueceram a hinodia cristã é longa.
No Oriente, uma referência particular é devida a Santo Efrém (306-373). As Igrejas
ocidentais, sobretudo a de Roma, foram mais refractárias à aceitação dos hinos16.
14 Pertencente ao mais antigo estrato hinódico, na Igreja grega, recorde-se o Phos Hilarón, cantado no rito do
lucernário: «Luz esplendente da santa glória / Do Pai celeste, imortal, Santo, glorioso Jesus Cristo. / Chegada
a hora do sol poente /contemplando a luz do entardecer, / cantamos ao Pai e ao Filho / e ao Santo Espírito
de Deus. / Tu és digno de ser cantado em todos os momentos / Por vozes inocentes, / Ó Filho de Deus, Tu
que dás a vida / Eis que o mundo Te glorifica». Entre as mais remotas composições poéticas dos ritos latinos
contam-se os conhecidos hinos não métricos Gloria in excelsis Deo e Te Deum laudamus, bem como o menos
divulgado Te decet laus, de origem oriental: Te decet laus, te decet hymnus, tibi gloria Deo Patri et Filio, cum Sancto
Spiritu, in sæcula sæculorum. Amen. (A ti é devido o louvor, a ti é devido o hino, seja dada glória a Ti, Deus Pai e
ao Filho com o Santo Espírito pelos séculos dos séculos. Ámen.).
15 «Os hinos tornaram-se armas: armas da heresia e armas da verdade» (L. MIGLIAVACCA, Gli inii ambrosiani,
1989, p. 14).
16 Expressamente contra o uso litúrgico dos hinos se pronunciou o I Concílio de Braga (561): «além dos
Salmos ou das Escrituras canónicas do Antigo e do Novo Testamento, nenhuma composição poética se cante
na igreja» (in: Antologia Litúrgica, n.º 5157, p. 1246). Permanece mais incerto saber se a proibição prescrita no
cânone 59 do Concílio de Laodiceia (cerca do ano 363) se dirige também aos hinos ou apenas aos livros
apócrifos. A admissibilidade dos hinos no uso litúrgico constituiu recorrente problema nas Igrejas do
primeiro milénio. 50 anos volvidos sobre a mencionada proibição bracarense, o IV Concílio de Toledo (633)
considerava: «é sem razão que no ofício divino se utilizam apenas elementos e cânticos bíblicos e se rejeitam
todos os hinos não canónicos […] como o fizeram os concílios de Braga e Laodiceia. […] Componham-se,
por isso, hinos […] dado que, se nada se cantar na igreja, todos os ofícios eclesiásticos ficarão sem conteúdo».
E concluía sancionando: «Todo aquele que vier a rejeitar os hinos seja castigado com a excomunhão» (in:
Antologia Litúrgica, cit., n.º 5652, p. 1353).
17 Recorde-se o testemunho de Santo Agostinho sobre os hinos da Igreja de Milão no contexto da
perseguição movida pela imperatriz Justina: «nessa altura estabeleceu-se que se cantassem hinos e salmos […]
para que o povo não se consumisse de cansaço e tristeza» (Confissões, Livro IX, VII). Sobre os hinos
ambrosianos, seu enquadramento cultural e realização musical, v. o interessante estudo de L. MIGLIAVACCA,
Gli inii ambrosiani, 1989. Uma visão de conjunto sobre a poesia religiosa em língua latina pode colher-se em
M.-A. MARCOS CASQUERO / J. OROZ RETA, Lírica Latina Medieval. II Poesía religiosa, 1997, que oferecem,
ainda, boa amostra de composições poéticas desde o séc. III ao séc. XV. Neste extenso e admirável
firmamento contam-se verdadeiras jóias da literatura religiosa de todos os tempos, algumas das quais
acolhidas e conservadas na oração litúrgica. Ignoramos os autores de muitas delas; entre os poetas conhecidos
é justo referir, além de Santo Ambrósio, os nomes de Prudêncio, Venâncio Fortunato, S. Gregório Magno,
Adão de S. Victor, Hildegarda de Bingen, S. Tomás de Aquino. Sobre o tema da hinologia cristã, entre
inabarcável literatura, veja-se C. BLUME, v. «Hymnody and Hymnology», The Catolic Enciclopedia, vol. 7 (1910),
W. APPEL, Il canto gregoriano, pp. 534 ss., S. CORBIN, L’Église à la conquête de sa musique, pp. 126 ss., E. M.
ANDERSEN, «History, Reform, and Continuity in the Hymns of the Roman Breviary», 136. 1 Sacred Music
(2009), pp. 7 ss., J. VIRET, Le Chant Grégorien, musique da la Parole sacrée, 1986 pp. 109 ss.
18 Um argumento nesse sentido é o da versão latina dos textos: com efeito, a maioria dos cantos com texto
bíblico seguem a primeira tradução para latim da Sagrada Escritura, a Itala ou Vetus Latina, e não a Vulgata de
S. Jerónimo. Ora esta última tornou-se a versão oficial e exclusiva da Igreja a partir do séc. VII: os cantos
baseados na Itala terão, pois, de ser anteriores.
Isto dito não significa que as melodias fossem exactamente aquelas que vamos
encontrar documentadas nos primeiros manuscritos com notação, surgidos duzentos anos
depois. Com efeito, é opinião maioritária entre os estudiosos19 que o tecido musical que
designamos por canto gregoriano seja o produto da fusão, ocorrida nos finais do séc. VIII
e princípios do séc. IX, entre a tradição romana e a galicana, no quadro cultural mais
amplo da Reforma Carolíngia20, como sinal de unidade religiosa e política. Só mais tarde se
dará a este conjunto de obras o título de gregoriano – de modo a reforçar a autoridade do
novo canto litúrgico, passa a ser apresentado e venerado como criação directa de uma das mais
proeminentes figuras da Igreja: S. Gregório Magno, papa entre 590 e 60421.
7. Como se acentuou, a partir do séc. IX, este «novo» canto, dotado de sistemas de
notação entretanto inventados22, consolida-se e difunde-se, acabando por se tornar
praticamente hegemónico para a Igreja católica de rito latino23. Esta é a época de ouro do
gregoriano, na qual atingirá aquela perfeição formal, estilística, expressiva e litúrgica, que o
tornam num exemplo único e modelo para toda a música na celebração cristã. Esta época é
também a da reflexão teórica sobre o canto24, sobretudo no domínio da modalidade, que
desembocará no chamado sistema do octoechos, dos oito aspectos da melodia.
19 Em profundidade sobre o problema, v. PH. BERNARD, Du chant romain au chant grégorien, passim, espec. pp.
639 ss., K. LEVY, Gregorian chant and the Carolingians, 1998; M. ALTER, Grundlagen der Musik des Mittelalters, 1994,
pp. 7 ss., Cf., ainda, A. Pellegrino ERNETTI, Storia del Canto Gregoriano, pp. 74 ss.
20 Este processo iniciado já no tempo de Pepino, o Breve, teria o seu apogeu com a acção de Carlos Magno (†
814).
21 Para uma leitura informada sobre a obra de S. Gregório no plano litúrgico e musical, v. PH. BERNARD, Du
chant romain au chant grégorien, pp. 396 ss., G. CATTIN, História de la música — el medioevo, pp. 53 ss., J. VIRET, Le
Chant Grégorien, pp. 113 ss. Da acção deste pontífice encontram-se documentadas algumas reformas nos
costumes litúrgicos (e musicais), como a extensão do canto do Aleluia fora do tempo pascal e alterações na
forma de cantar o Kyrie, restringindo drasticamente as numerosas invocações litânicas (talvez em ordem a
conter ao máximo o uso de elementos não bíblicos na liturgia, como defende S. CORBIN, L’Église à la conquête
de sa musique, p.108; para o texto de Gregório v. Antologia Litúrgica, cit., n.º 5473, p. 1307). Também
documentada está uma outra decisão do Papa sobre os agentes do canto (a schola cantorum) – de modo a evitar
que os diáconos fossem admitidos ao ministério apenas por causa da sua bela voz e não pela exemplaridade
de vida, S. Gregório determinou que o único canto confiado ao diácono passasse a ser o do Evangelho (cf.
PH. BERNARD, Du chant romain, cit. 410-1). Mas é provável que a repercussão do grande pontífice haja sido
mais profunda.
22 Sobre este ponto v. capítulo seguinte.
23Em pormenor sobre este processo de difusão do «novo canto» pela Europa cristã, com o progressivo
apagamento dos outros repertórios autóctones, v. a detida exposição de PH. BERNARD, Du chant romain au
chant grégorien, pp. 759 ss. Interessante e profunda análise de um caso particular do repertório (mas indiciador
de mais larga leitura..), v. M.Pedro FERREIRA, «A lamentação de asteérix : « Conclusit vias meas inimicus», in:
Aspectos da Música Medieval no Ocidente Peninsular. II – Música Eclesiástica, 2010, 23-57.
24 Para uma lista das principais fontes doutrinais sobre o canto, v. W. APEL, Il canto gregoriano, pp. 77 ss.
Fig. 3
14
Fig. 4
27 Cf. J. GAJARD, «Les récitations modales des 3 e et 4e modes», Études grégoriennes I (1954), pp. 9 ss. Este tipo
de modificações evidencia-se claramente com a passagem da corda de recitação de si para dó no 3.º tom
salmódico.
Repare-se como o neuma sobre eum que exprime claramente uma função
cadencial, conclusiva, na melodia original, passa a ter, no cântico posterior, uma
função de entoação, de início de frase: atque…28.
3. O culminar deste longa evolução deu-se com uma edição do Graduale Romanum
publicada em 1614, a chamada Edição Mediceia30. Foi esta versão oficiosa (pois nunca
recebeu a aprovação normativa plena da Igreja, mas apenas um superiorum permissu), com
mais ou menos alterações, que se manteve até aos finais do século XIX, embora
paralelamente se tivessem desenvolvido formas regionais de canto plano (sobretudo em
França), bem como novas composições, mais ou menos assimiláveis ao estilo antigo
(melodias neogregorianas). Aliás, algumas obras mais usualmente identificadas com o
gregoriano datam destes tempos. Refira-se, ainda, que a execução do canto, a avaliar por
descrições coevas, se fazia de modo lento e pesado, sobretudo nos recitativos, em que o
texto era cantado de forma martelada e com sujeição a esquemas mensuralistas, recebendo 15
as notas valores temporais proporcionais31. A tal ponto a prática estava desfigurada que,
quando D. Prosper Guéranger restaurou a Abadia de S. Pedro de Solesmes (1837) e
começou a incrementar junto dos monges uma forma de cantar leve, baseada no discurso
verbal e na acentuação própria das palavras, deu-se uma verdadeira revolução musical, que
progressivamente atrairia mais e mais adeptos.
Reformato], Romæ, Ex Typographia Medicæa, 1614, e Graduale de sanctis [Iuxta ritum Sacrosanctæ Romanæ
Ecclesiæ. cum Cantu Pavli V. Pont. Max. iussu Reformato], Romæ, Ex Typographia Medicæa, 1614-15.
Existe edição edição anastática de Giacomo BAROFFIO e Manlio SODI, 2 vols., Città del Vaticano, Libreria
Editrice Vaticana, 2001. Editada pela tipografia Medici, esta publicação representava o culminar de um
processo iniciado mais de 30 anos antes, no pontificado de Gregório XII, que encarregara Palestrina e Zoilo
da revisão do Gradual. Este projecto soçobrou graças aos protestos de um erudito espanhol, Fernando de Las
Infantas, junto do Rei Filipe II e do próprio Papa. Só em 1611 a questão voltaria a colocar-se: os
compositores Anerio e Soriano prepararam a «nova» edição, que sairá, embora sem carácter vinculativo, em
1614. Sobre a «reforma pós-tridentina» do cantochão e os desenvolvimentos ulteriores, v. a síntese de J. P.
d’ALVARENGA, Polifonia portuguesa sacra tardo-quinhentista: estudo de fontes e edição crítica do Livro de São Vicente,
manuscrito P–Lf FSVL 1P/H-6, 2005, 40 ss; com incidência no cantochão mensurado em França, v. Cf. R.
PROWSE, «The Council of Trent and the Reform of Gregorian Chant», 136.3 Sacred Music (2009), pp. 33 ss.
31 Para a práxis portuguesa v. J. M. PEDROSA CARDOSO, «A mensuralidade na monodia litúrgica portuguesa
do século XVI», in: Medieval Sacred Chant: from Japan to Portugal (ed. M. Pedro Ferreira), 2008, pp. 230 ss.
Fig. 5
16
Fig. 6
32 Apresentamos o canto pela edição do Graduale Triplex, de 1979, embora a versão melódica restaurada
provenha já do Graduale de 1908.
33 Sobre a primeira fase deste processo de restauração, em profundidade, v. P. COMBE, Histoire de la restauration
du chant grégorien d'aprés documents inédits, 1969. Para uma síntese, v. E. CARDINE, «Vue d’ensemble sur le chant
grégorien», Études grégoriennes XVI (1977), pp. 88 ss., J. B. GÖSCHL, «One Hundred years of Graduale
Romanum», 135. 2 Sacred Music (2008), pp. 8 ss., A. Pelegrino ERNETTI, Storia del canto gregoriano, pp. 247 ss.
Este Antiphonale Tonale Missarum, conhecido por Codex H 159 da Biblioteca da Faculdade de Medicina de
35
Montpellier, foi publicado nos volumes VII (estudo) e VIII (reprodução fac-símile) de Paleographie Musicale (v.,
infra, em texto, a referência a esta importante edição de manuscritos; a fig. 11 reproduz fragmento deste códice).
36 A publicação fac-similada dos antigos códices, iniciada por D. Mocquereau, continua até aos nossos dias,
tendo sido editados mais de 20 volumes (nalguns casos, em virtude da destruição dos manuscritos originais
causada pelas guerras mundiais, essas reproduções permitiram a conservação da informação). Entretanto,
surgiram outras edições: Monumenta Paleographica Gregoriana (ed. G. Joppich) e Codices Gregoriani (ed. N.
Albarosa e A. Turco). Muitos dos manuscritos sangalenses podem ser consultados hoje on line: http://www.e-
codices.unifr.ch/en. Também os códices peninsulares vêm sendo objecto de estudo. Merece destaque a
recente publicação: Hispania Vetus. Manuscritos Litúrgico-musicales de los orígenes visigóticos a la transición francorromana
(siglos IX-XII), 2007, numa edição coordenada por Susana Zapke.
37 Para os textos dos documentos principais v. a colectânea: A música sacra nos documentos da Igreja, 2006. Mais
dados em D. SABAINO, «Da “umile ancella”a “compito ministeriale”. Sensi e percorsi della musica ‘sacra’da
Pio X al Vaticano II (con qualche spunto per l’attuali)», in: Fidei canora confessio» La musica liturgica a 40 anni dalla
Sacrosanctum Concilium, 2003, pp. 28-76.
se o amplo restabelecimento do gregoriano no culto bem como a participação activa dos fiéis,
também por meio do canto.
— A partir de 1905 preparam-se novos livros de canto, na linha dos estudos desenvolvidos
pelos monges de Solesmes. O trabalho, não isento de conflitos e cedências38, culminará na
chamada Edição Vaticana, com a publicação do Graduale em 1908 e do Antiphonale em 1912.
Pela primeira vez na história da música litúrgica surgia o livro único, válido por vontade da
suprema autoridade da Igreja para todo o rito latino.
— Em 1947, Pio XII por meio da Encíclica Mediator Dei, reafirma o valor do gregoriano
nas celebrações da Igreja. A formação do clero há-de incluir o canto gregoriano. E retoma
expressamente o voto de Pio XI na Divinus cultus: o fiéis devem poder participar também
por meio do canto.
— Anos depois, em 1955, Pio XII publica a Encíclica Musica sacrae disciplina – a música deve
participar das qualidades divinas da liturgia, estando ao seu serviço. O gregoriano constitui
um modelo ímpar dessas qualidades.
38 No seio da Comissão Vaticana ficaram patentes as divergências entre D. Pothier, disposto a aceitar
modificações mais tardias nas melodias, desde que houvesse uma prática comprovada, e D. Mocquereau,
defensor de uma reconstituição mais crítica. A incompatibilidade de posições traduziu-se num insucesso dos
trabalhos, pelo que a Santa Sé confiou a elaboração dos livros de canto à responsabilidade directa de D.
Pothier. Sobre o tema, v. P. COMBE, Histoire de la restauration du chant grégorien, pp. 305 ss.
a) No plano pastoral
— Instrução Geral do Missal Romano (1969): estabelece a nova forma normativa da celebração
eucarística, com numerosas disposições de directa incidência na matéria do canto.
39 Preferimos dizer assim, participação autêntica, embora com isso continuem por precisar os termos e formas
dessa verdadeira participação que toda a assembleia é chamada a viver em cada celebração litúrgica, matéria
esta que ultrapassa em muito, porém, o âmbito destas páginas. Mas importa ter bem presente a centralidade
da actuosa participatio no movimento litúrgico e na constituição conciliar, bem como a acesa controvérsia
(teológica, litúrgica e pastoral) suscitada pelo princípio – atingindo de forma directa a questão do canto e da
música na liturgia (e o gregoriano é um dos temas no centro da polémica…), ele transcende largamente o
horizonte musical, constituindo, sobretudo, um problema de eclesiologia. Permitimo-nos, de todo o modo, uma
curta referência arqueológica. O princípio da actuosa participatio aparece corporizado pela primeira vez no
Magistério de S. Pio X, no Motu proprio sobre a música sacra. E a formulação originária em língua italiana é
clara: «participazione attiva», vertida depois para latim como actuosa participatio. Não se ignora que os conceitos
evoluem; apenas nos parece curioso que em alguns sectores se procure restringir o espírito da Sacrosanctum
concilium por meio de uma compressão do alcance literal de actuosa (que não teria de ser activa, mas que se
realizaria numa participação expressiva ou, no que ao canto concerne, meramente passiva ou de escuta). Uma
interessante análise do princípio, feita logo no pós-concílio, pode ver-se em C. E. O’NEILL, «The Theological
Meaning of Actuosa participatio in the Liturgy», in: Sacred Music and Liturgy Reform afer Vatican II (ed. Johannes
Overath), 1969, pp. 89 ss.
— Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas (1971): apresenta a nova forma de celebrar o
Ofício Divino.
— Quirógrafo de João Paulo II40 por ocasião do centenário de Tra le sollecitudini (22.11.2003),
em que se reafirma o lugar cimeiro do gregoriano.
— Motu próprio Summorum Pontificum (7.07.2007) sobre a liturgia romana anterior a 1970, do
Papa Bento XVI41, pelo qual se alargam substancialmente as possibilidades de se celebrar
segundo as regras litúrgicas anteriores à reforma de Paulo VI (forma extraordinária).
21
b) No plano científico
São múltiplos os factores que, a partir dos anos 60, se repercutem na investigação
musicológica do gregoriano e que concorrem para o abandono da visão dominante. Assim,
não podem esquecer-se os profundos progressos no domínio da etnomusicologia,
salientando os processos de transmissão oral dos cantos, em que a dimensão da
improvisação assume lugar de relevo (contrastando, assim, com a leitura imobilista de uma
reprodução uniforme ancorada na existência de um livro de melodias oficial e de um
método rígido). Em linha de certo modo similar, deve ter-se em conta a investigação
aprofundada da música barroca, sobretudo no tocante à questão dos ornamentos que não
estando escritos na partitura faziam parte integrante da práxis executiva da época – por
maioria de razão, afirmam certas correntes musicológicas, o gregoriano não se confunde
com o desenho traçado no documento escrito e muito menos nos livros da restauração
solesmense. Daí que se questionem dogmas tão estabilizados como o da indivisibilidade do
tempo primeiro ou o do carácter puramente diatónico das melodias.
Neste quadro global, merece particular destaque a investigação científica que se tem
desenvolvido em dois importantes âmbitos:
40 Ao longo dos 26 anos de pontificado, João Paulo II dedicou numerosas reflexões ao problema da música
litúrgica. Para um levantamento informado, v. E.-J. PAVLICK, «John Paul II’s Statements on Music in the
Church: A Fulfillment of the Theology of Vatican II», 137.1 Sacred Music (2010), pp. 6-24.
41 É bem conhecida a profunda reflexão que o actual Papa tem votado à liturgia e à música no contexto
litúrgico. Recordem-se, inter alia, Der Geist der Liturgie. Eine Einführung, 4. Aufl., 2000 (há tradução portuguesa),
e os diversos estudos reunidos em Un canto nuevo para el Señor, 1999, bem como, já no múnus pastoral de Bispo
de Roma, a Exortação pós-sinodal Sacramentum caritatis, n.º 42.
22
CAPÍTULO III
1. Considerações preliminares
1. 2 Evolução da notação
a) A tradição oral
b) A fixação escrita do canto: manuscritos de canto mas (ainda) sem notação musical
44 Ou talvez melhor, usando a sugestiva conceptualização de K. LEVY, Gregorian chant and the Carolingians, 1998,
p. 4, transmissão aural, por contraposição a notacional.
45 Da música feita nos primeiros séculos do Cristianismo só chegou aos nossos tempos um fragmento em
notação alfabética grega de um hino — o chamado Papiro de Oxirrinco 1786 (cf. G. CATTIN, Historia de la música
— el medioevo, pp. 3).
46 Etymologiarum III, 15
47 A acreditar em Guido d’Arezzo, antes do seu sistema solfégico, seriam necessários cerca de dez anos para
os cantores conseguirem dominar a técnica da interpretação (vix decennio cantandi imperfectam scientiam consequi
potuerunt); cf. as referências em M. HUGLO, «Le noms des neumes et leur origine», Études grégoriennes, I (1954),
p. 53, n. 2.
48 Sobre este aspecto, por todos, F. RAMPI / M. LATTANZI, Manuale di canto gregoriano, p. 26.
49 Defendendo esta dimensão da improvisação vinculada no quadro global da tradição oral, v. S. CORBIN, L’Église
à la conquête de sa musique, pp. 44-46. Porém, os dados disponíveis não permitem conclusões seguras. Para uma
visão actualizada do problema, v. P. JEFFERY, Re-Envisioning Past Musical Cultures: Ethnomusicology in the Study
of Gregorian Chant, Chicago: University of Chicago Press, 1992, p*, Thomas F. KELLY (ed.), Oral & Written
Transmission in Chant, Farnham: Ashgate, 2009, p. *
50 Sobre a diversidade de livros de canto, v. M. HUGLO, Les livres de chant liturgique, 1988, pp. 60 ss., M.
RIGHETTI, Historia de la Liturgia, I, pp. 294 ss.
51 R.-J. HESBERT, Antiphonale Missarum sextuplex, 1.ª ed., Bruxelles, 1935.
Fig. 7
26
Fig. 8
– notação metense ou lotaríngia, da escola de Metz: manuscrito Laon 239, por volta do
ano 930.
A tese ainda hoje mais corrente sobre a origem dos sinais, usualmente
designados por neumas (do grego νευμα, sinal), é que derivam dos acentos gráficos
usados para o texto literário. Isto é mais patente na notação sangalense em que a
tradução gráfica dos movimentos melódicos parece servir-se, de facto, dos acentos
grave, agudo e circunflexo.
Sobre este aparecimento, veja-se, com referências, M. P. FERREIRA, «La emergencia de la escrita musical»,
52
– a Semiologia Gregoriana (que visa descobrir a razão de ser dos sinais gráficos
no contexto verbal-melódico).
d) Desenvolvimento dos sistemas gráficos de notação: notação alfabética; notação sobre linhas
– notação alfabética: cada som é representado pela letra que indica a sua posição na
escala.
Fig. 954
– notação diastemática: numa linha distinta da notação alfabética, a fixação das alturas
melódicas veio a dar-se pela utilização de linhas. De duas formas fundamentais: a da
notação aquitana, que usa uma única linha, , primeiramente imaginária, depois traçada a
ponta seca no pergaminho e finalmente desenhada; e a da notação guidoniana, com o
recurso à pauta. Em consonância, desenvolve-se o uso das claves, assinaladas pelas letras
das notas. As claves mais usadas eram o F (=fá) e o C (= dó), muitas vezes identificadas 29
com tinta colorida, indicando a corda acima do meio-tom (o fá com a cor amarela; o dó a
vermelho), embora qualquer outra letra pudesse ser utilizada55, e forneciam, pois, a chave da
leitura melódica. Com o tempo, o número de linhas foi aumentando, até estabilizar em 4,
ainda hoje usadas para o gregoriano.
Note-se, por último, que embora a evolução para a diastemasia tenha permitido
conservar (e, portanto, reconstituir) os intervalos melódicos, ela corresponde, porém, a
uma perda das subtilezas rítmico-expressivas permitidas por alguns dos sistemas de notação
in campo aperto.
As formas de representar os sons eram muito variadas: pontos, traços, até evoluir
para o modelo de notas quadradas, base do sistema actual.
Apresentam-se, de seguida, alguns exemplos de notações dos antigos códices.
Fig. 10
Fig. 11
Para informações mais pormenorizadas v. Paleographie Musicale VII (1901), pp. 10 ss. Finn Egeland Hansen,
56
H 159 Montpellier — Tonary of St Bénigne of Dijon, Copenhagen: Dan Fog Musikforlag, 1974.
Fig. 12
31
Fig. 13
Fig. 14
32
Fig. 15
Fig. 16 33
A terminar este ponto sobre a notação antiga, apresenta-se um quadro com as grafias
fundamentais dos manuscritos adiastemáticos da tradição sangalense e metense
Fig.1757
34
– pauta
– claves
– notas
– sinais de alteração
– barras
– guião 35
– figuras
– asterisco[ * ]
– flexa [ † ]
– letras
a) Pauta
Fig. 18
Alcança-se assim uma extensão para nove notas no total, o que, dado o âmbito reduzido da
maior parte dos cantos, torna a pauta de quatro linhas, em geral, suficiente para conter a
amplitude melódica58. Porém, caso a melodia seja mais ampla, pode recorrer-se à utilização
de uma linha suplementar, sobre ou / e sob o tetragrama.
Fig. 19 Fig. 20
Se apesar do recurso à linha suplementar, não for possível alcançar toda a tessitura
melódica do canto, faz-se uso da mudança da posição da clave ou, mesmo, da alteração
da clave, um fenómeno que ocorre com frequência nos Graduais (entre o refrão e o verso,
nunca no decurso da mesma frase).
Fig. 21
36
No exemplo acima, ao entrar no verso Conturbata, a clave de dó que estava na quarta linha
passou para a terceira linha.
Fig. 22
b) Claves
Fig. 23 Fig. 24
Fig. 2
A posição das claves na pauta não é fixa. Assim, a clave de dó, que se emprega nas
melodias de âmbito mais agudo, encontra-se usualmente na quarta ou terceira linhas,
embora surja por vezes também na segunda; nunca, porém, na primeira. A clave de fá,
adoptada para as melodias de tessitura grave, é colocada sobre a segunda ou terceira
linhas, nunca sobre a primeira. Sobre a quarta linha surge uma única vez: ofertório Veritas
mea (GT 483).
A figura seguinte apresenta exemplos de claves distintas e em distintas posições.
Fig. 25
37
c) Notas
As notas, primeiramente designadas por letras, receberam a partir do séc. IX, por
obra do monge Guido d’Arezzo, um nome novo: Ut, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, derivado das
sílabas iniciais de cada verso da primeira estrofe de um hino cantado na Festa de S. João
Baptista (24 de Junho).
Fig. 26
Para que os teus servos possam, com toda a sua voz, cantar os teus feitos
admiráveis, apaga o pecado dos nossos lábios manchados, ó S. João.
Fig. 27
Ut Ré Mi Fá Sol Lá 38
Mais tarde, com a passagem para o sistema octocordal, o grau acima do lá veio a ser
designado por si, das duas iniciais com que termina a referida estrofe: Sancte Ioannes. A
denominação dó em lugar do primitivo Ut deu-se a partir do século XVII, talvez devido à
escassa sonoridade desta última sílaba59.
d) Sinais de alteração
A escrita musical gregoriana usa apenas dois sinais de alteração que incidem ambos
sobre a nota Si: o bemol e o bequadro, designações que, como se salientou já, decorrem
justamente do facto de na antiga notação alfabética o si [= B] poder assumir duas posições,
uma mais baixa (b-molle), outra mais elevada (b-quadratum ou b-durum).
Fig. 28
a ocorrência de um bequadro
Fig. 29
Fig. 30
a mudança de palavra
Note-se, porém, que nalgumas obras em que o efeito do bemol se estende a toda a
melodia pode por vezes, e à imitação da prática moderna, o bemol aparecer colocado junto
da clave, afectando, pois, todas as notas si, como se pode ver no exemplo seguinte.
39
Fig. 31
e) Barras
Fig. 32
As barras não constam dos antigos manuscritos que omitem, também, os próprios
sinais de pontuação literária. Naturalmente, constituindo o canto uma forma de discurso
(verbal-melódico), mostra-se necessário estabelecer divisões e articulações. Com este 40
propósito D. Pothier, no quadro do movimento de restauração dos finais de oitocentos, vai
apresentar no seu Liber Gradualis (1883) as melodias pontuadas com dois tipos de barras
divisórias. O sistema foi posteriormente completado e a Edição Vaticana apresenta já as
quatro modalidades de barras.
Em geral, a colocação das barras constante da Vaticana faz sentido fraseológico (no
plano do discurso verbal e no plano do discurso melódico). Mas são muito numerosos os
casos em que isso não sucede, sobretudo em relação aos quartos de barra, umas vezes
excessivos, outras vezes insuficientes. Para colmatar esta deficiência, e uma vez que não é
possível suprimir as indicações constantes da Vaticana, as Edições de Solesmes introduziram
um sinal suplementar, a vírgula, que desloca a pequena respiração indicada pelo quarto da
barra para o local em que surge a vírgula.
Fig. 33
Outro sinal corrector de barras mal colocadas é a ligadura, cuja função é assinalar a
continuidade do discurso musical interrompido indevidamente por uma grande barra na
edição Vaticana. Veja-se um exemplo na figura 16, intróito Suscepimus Deus, última pauta, em
que aparece uma ligadura: o seu efeito é anular o corte a seguir à palavra terrae60.
f) Guião (custos)
É um sinal gráfico análogo a uma nota quadrada mas com dimensões reduzidas.
Surge em duas ocasiões:
1. no final de cada pauta;
2. antes de se proceder a uma alteração de clave.
Fig. 34
41
Fig. 35
61 E. CARDINE, Primo anno di canto gregoriano, p. 13, A. TURCO, Canto gregoriano – Corso fondamentale, 1996, p. 141,
L. AGUSTONI / J. B. GÖSCHL, Introduzione, p. 130.
62 F. RAMPI / M. LATTANZI, Manuale di canto gregoriano, p. 180. Cf. E. CARDINE, Primo anno di canto gregoriano, p.
13.
63 Para informações sobre a nomenclatura neumática, v. M. HUGLO, «Le noms des neumes et leur origine»,
ao longo do séc. XX, ensaiada primeiramente no Officium Hebdomadae Sanctae, de 1922, ocorreu
sobretudo com a publicação de três livros de canto: o Anthiponale Monasticum, em 1934, em que
surgiram sinais gráficos próprios para o oriscus, stropha e punctum liquescens, o Psalterium Monasticum, de
1981 e, de modo decisivo, o Liber Hymnarius (Anthiphonale Romanum, tomus alter), editado em 1983.
A. As figuras básicas64
1. punctum
a) quadratum
2. virga : indica uma nota em culminância melódica, i. é, um som mais agudo que o
anterior ou posterior.
3. quilisma : ponto quadrado de rebordo superior com forma dentada. Embora possa
ter significado melódico, assinalando contextos ascendentes sobre o meio-tom, releva
sobretudo do ponto de vista rítmico, constituindo a par do oriscus um dos chamados
neumas de condução65 do movimento. Nunca aparece isolado, mas sempre integrado noutras
formas neumáticas, sobretudo no pes ou podatus, designando-se então por quilisma-pes,
ou, mais frequentemente, no scandicus, donde o nome de quilisma-scandicus ou
scandicus quilismático. O quilisma confere uma particular densidade rítmica (um
alargamento) à nota anterior, conduzindo com leveza o movimento para a nota seguinte,
43
também ela ritmicamente relevante.
4. oriscus : esta figura traduz diversas funções rítmicas. Em geral, constitui a nota
final de um neuma que se escontra em uníssono com a nota anterior ou numa posição
melódica mais elevada. Inclui-se nos chamados neumas de condução, integrando-se em
distintas formas neumáticas (como o salicus, a virga strata, etc.). Note-se, porém, que as
edições mais correntes representam graficamente o oriscus com um ponto quadrado
comum, não permitindo identificar a figura.
64 Os espaços a seguir ao nome de cada figura foram deixados intencionalmente em branco para que o leitor
trace por sua mão a grafia correspondente.
65 Por neuma de condução entende-se «todo o grupo neumático que apresenta no seu interior um signo particular
cuja função peculiar é de “conduzir” o movimento melódico em direcção a determinados pontos» (F. RAMPI
/ M. LATTANZI, Manuale di canto gregoriano, p. 353).
66 A repercussão consiste num importante fenómeno vocal inerente aos movimentos melódicos em uníssono
tão abundantes no repertório gregoriano. A pergunta é a de saber se tal repetição gráfica de sinais deve
traduzir-se numa re-emissão, reiteração, repetição do som (e em que termos), ou se, como tem sido uso na
escola tradicional de Solesmes (e cavalo-de-batalha contra as novas correntes interpretativas!), tais sons devem
ser fundidos num único som tenuto (de dois ou três tempos simples). Não é este o momento para explanar o
problema em pormenor. Permitam-se duas notas, no entanto. Em primeiro lugar, a repercussão constitui hoje
um dado pacífico na teoria e a sua realização prática vai-se tornando corrente, apesar das dificuldades que,
sem dúvida, acarreta. Aliás, suprimir as repercussões, tão copiosamente semeadas nos manuscritos, com
múltiplas formas e particularidades rítmicas expressivas diferenciadas, traduz um desvirtuamento de um dos
correntes, as dístrofes e trístrofes são traduzidas por dois ou três pontos quadrados
comuns, não se distinguindo, pois, de outros casos de movimentos melódicos em
uníssono, como a bivirga e a trivirga. Para um exemplo, veja-se a fig. 1, ofertório Ave Maria:
sobre a sílaba acentuada María, surgem dois grupos idênticos de dois pontos quadrados.
Porém, nos manuscritos verifica-se que as duas primeiras notas são virgas (bivirga), enquanto
as seguintes são strophicus (dístrofe), circunstância que, por certo, tem significado rítmico e
interpretativo.
9. climacus : representa a descida melódica de, pelo menos, três sons. A grafia
inicia-se com uma virga e completa-se com dois ou mais pontos inclinados.
traços mais característicos da vocalidade gregoriana. A segunda nota prende-se com um aspecto
(intencionalmente?) obliterado por muitos dos partidários da escola tradicional de Solesmes, talvez por ter 44
sido apreendida, muitas vezes, não a partir dos textos fundantes, mas sim na assimilação acrítica de manuais
escolares de divulgação: a repercussão dos strophicus foi claramente reconhecida por D. Mocquereau. Basta ler
o que ele mesmo consignou no I volume do Nombre Musical: «l’existence de notes ainsi repetées dans les
mélopées grégoriennes est un fait incontestable» (n.º 440, p. 338). Porém, as exigências da prática e apenas
estas, note-se, levaram D. Mocquereau a propor que em vez da repercussão de cada uma das notas («um
artifício vocal, escreve no n.º 441, p. 338, que se mostra muito difícil no nosso tempo, pelo menos para um
coro numeroso e sem verdadeira educação musical»), se distingam apenas os grupos de duas ou três notas,
fundindo o som numa nota longa que, no entanto, deve ser «acompanhado de um ligeiro vibrato que o distinga
do simples prolongamento da mora vocis ou do som tenuto mais compacto e mais sólido do pressus». Uma
solução de compromisso, pedagógica, mas que não era a desejável para o Autor: «a execução repercutida dos
strophicus, difícil para os coros ordinários das paróquias, não é impossível nem aos coros bem formados, nem
aos solistas. Atingir esse objectivo, aí onde for possível, seria excelente» (n.º 442, p. 338). Perspectiva esta que
não é esquecida por D. Gajard: «(…) les sons du strophicus doivent être répercutés. En réalité, et si l’on s’en
tenait aux règles de l‘âge d’or grégorien, il faudrait répercuter (répercussion très légère et douce) chacune des
notes du strophicus. Comme c’est assez difficile, il vaux mieux de se contenter de répercuter seulement la
première note de chaque strophicus et la première note du neume qui suit à l’unisson» (J. GAJARD, Notions sur
la rythmique grégorienne, 2.ª ed., 1944, p. 49); e reiterada também nos Preliminares do Liber Usualis: «Singula hujus
figurae elementa olim nonnula vocis reparatione discernebantur; in choro autem canentibus, nostro quidem
judicio, satis erit, si nondum sunt exercitatissimi, uno tenore proferre[…]. Optimum quidem esset
apostropham leniter molliterque repercuter, et hic est finis ad quem tendere debent» (Liber Usualis, Proemium,
p. IX). Este horizonte para o qual se deveria tender foi sendo silenciado pela prática posterior da escola
tradicional que, reivindicando-se dos princípios de D. Mocquereau, acaba, afinal, por se afastar deles neste
ponto tão decisivo. Naturalmente, as dificuldades na execução expressiva dos sons repercutidos existem e
aumentam quando se reúne uma massa numerosa de cantores. Mas, fica a pergunta, o erro de base não estará
em ter-se pretendido que o repertório destinado na origem a grupos reduzidos de cantores ou mesmo a
solistas (os Graduais, os Aleluias…) fosse cantado por 50, 60 ou até centenas de vozes em simultâneo? E não
pretendem os cursos de gregoriano difusamente promovidos pela escola tradicional formar cantores e
mestres especializados? Coisas mais complexas do que a repercussão, porém, constituíram sempre objecto
nuclear desses cursos. Em suma, o que começou por ser apenas uma prática e depois uma cedência, tornou-se
um dos sinais distintivos de um estilo, uma imagem de marca e, como tal, ciosamente preservado, mesmo que
à custa de uma rescrita da história.
13. trigon : com origem no sinal gráfico da contracção, o trigon é uma figura de
três notas, as duas primeiras no mesmo grau melódico e a última mais grave. Esta grafia só
surge nos livros mais recentes.
B. Figuras liquescentes
A forma usual dos neumas sofre em certos casos uma alteração no desenho gráfico. 45
Dizem-se neste caso figuras liquescentes. Visam exprimir de forma plástica um problema
bastante delicado na execução do canto e que se designa, precisamente, por liquescência.
Como ensina D. Eugénio Cardine, a liquescência traduz «um fenómeno vocal que resulta
de uma articulação silábica complexa. Esta complexidade na articulação impõe aos órgãos
vocais uma posição transitória que diminui e sufoca o som»69. Em consonância, a grafia
liquescente adverte o cantor para a correcta pronunciação de uma sílaba difícil de articular.
Ocorre, sobretudo, no encontro de certas consoantes, por exemplo nf, nt (con-fun-den-tur),
ditongos au, ei, eu (gau- dete, elei-son, eu-ge), ou com as consoantes m, g entre certas vogais
(cla-mor, re-ges). Nos manuscritos, a grafia liquescente pode ser aumentativa ou diminutiva. A
Vaticana e as edições de Solesmes mais antigas não só não representam de todo a
liquescência aumentativa, como nem sequer representam sempre de modo correcto os
casos de liquescência diminutiva. As formas liquescentes básicas são: cephalicus ou clivis
liquescente; epiphonus ou podatus liquescente; ancus ou climacus liquescente, mas a liquescência
afecta outras figuras.
Fig. 36
Fig. 37
2. ponto (punctum mora): colocado junto de uma figura significa que essa nota passa a ter o
dobro do valor de duração, ou seja, e de acordo com a teoria rítmica de D. Mocquereau,
70 A inserção dos sinais rítmicos constituiu ponto de acesa polémica na elaboração da edição Vaticana que, no
final, se veio a decidir pela sua rejeição. Sobre o tema, em pormenor, P. COMBE, Histoire de la restauration du
chant grégorien, pp. 435 ss.
71 A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 82-3, p. 162.
3. episema vertical (rectum episema): este sinal, ausente por inteiro dos manuscritos, é o
mais profundamente vinculado à teoria rítmica de D. Mocquereau e também o mais
controverso. Trata-se de pequeno traço vertical, colocado geralmente sob a figura e que
indica o íctus (pancada), ou seja, os pontos de apoio da divisão rítmica binária ou ternária, a que
todo o movimento musical estaria sujeito. A determinação dos pontos de apoio ícticos
decorre da aplicação de uma tabela de regras, cujo conteúdo será explicitado noutro
capítulo, e que se baseiam no essencial no elemento duração (quantidade) da figura. Para
esclarecer os passos mais complexos, as edições de Solesmes trazem já muitos íctus
assinalados, embora, com base na informação constante da notação quadrada, também aqui
falte clareza quanto às razões que determinaram a colocação desses íctus.
Fig. 38
47
Para mais clara visualização destas diferenças introduzidas pelos sinais rítmicos
solesmenses, apresentamos de seguida em confronto duas versões gráficas da conhecida
antífona Regina Caeli, no chamado tom simples: primeiro, na lição da Vaticana (Graduale
Simplex) e depois na transcrição com os signos rítmicos do Antiphonale Monasticum editado
por Solesmes em 193473.
72 Este aspecto nem sempre é tido em conta pelos adversários da corrente semiológica (que, no fundo,
continua o caminho decididamente traçado por D. Mocquereau), e que pretendem bastar-se estritamente com
as edições em notação quadrada integradas pelos sinais rítmicos de Solesmes. Pois, perguntamos, se com os
episemas horizontais e os pontos-mora se pretendeu (também) dar expressão (em muitos casos imperfeita, é
certo, mas a possível à luz dos quadros dos princípios do séc. XX) a indicações rítmicas constantes dos
manuscritos, não será de saudar que a investigação sobre esses manuscritos progrida e que a prática
interpretativa possa beneficiar dessa mesma investigação?
73 Escolhemos intencionalmente um exemplo de canto silábico em que não é possível o recurso aos
manuscritos adiastemáticos (no caso vertente, trata-se até de melodia de factura bem recente). Com efeito, em
relação ao fundo autêntico, a informação constante da versão em notação quadrada, com ou sem sinais rítmicos
de Solesmes, é insuficiente para uma interpretação ritmicamente fundada. Existe, no entanto, um largo
repertório, incluso antigo, que não pode contar com a leitura semiológica (todo o ordinário da Missa, por
exemplo). Mesmo quanto a estes cantos os sinais rítmicos (que não passam, na intenção, de subsídios para
auxílio dos cantores) devem ser lidos com reserva, sobretudo o episema vertical, que decompõe a marcha
rítmica em pequenas unidades. Em relação aos outros dois sinais, o episema horizontal e o ponto-mora, pode
Fig. 39
Fig. 40
48
Rainha dos céus, alegra-te, aleluia, pois quem mereceste trazer no teu ventre, aleluia,
ressuscitou tal como havia dito, aleluia. Roga por nós a Deus, aleluia.
A concluir este capítulo sobre as figuras, apresenta-se o quadro global dos neumas e
elementos neumáticos tal como consta do Liber Hymnarius, editado pela Abadia de
dizer-se que em cantos deste género têm uma função quase sempre expletiva, ou, até, redundante, assinalando
demoras que decorreriam já de um correcto fraseado (assim, os pontos-mora sobre as sílabas finais dos
incisos); por outro lado, na prática interpretativa nota-se muitas vezes uma equivalência entre o episema
horizontal e o ponto.
Solesmes em 1983. Esta importante publicação, entre outros relevantes contributos, traduz
um notável progresso na notação quadrada, ao melhorar grafias anteriores e ao introduzir
mesmo novas formas de grafar as figuras, em ordem a uma mais perfeita adequação às
diferenciações gráficas dos antigos manuscritos.
Fig. 4174
49
1. Movimento resupinus (para cima), quando a um neuma que indica uma descida
melódica se acrescenta um elemento ascendente (exemplos: climacus resupinus, torculus
resupinus).
2. Movimento flexus (flectido, para baixo), quando, inversamente a uma grafia que
descreve um curso ascendente se incorpora um elemento de descida (scandicus flexus,
porrectus flexus).
Fig. 42
50
a) Asterisco *
b) Flexa †
A cruzinha designada por flexa (de flectir, baixar) é empregue na primeira parte dos
versículos salmódicos (primeiro hemistíquio) que, pela sua duração ou estrutura literária,
não permitem uma execução ininterrupta. Assim, no ponto assinalado pela flexa abandona-
se momentaneamente a corda em que se procedia a recitação e faz-se uma descida
melódica. No capítulo da salmodia se indicarão os termos de aplicação da flexa.
c) Letras
Existem ainda outros sinais gráficos. Assim, as letras i e j, que surgiam, nas edições
mais antigas, no final das invocações do Kyrie, indicavam o número de vezes (ij =duas
vezes; iij = três) que se deveria cantar cada invocação.
Fig. 43
51
OS LIVROS DE CANTO
Por diversas vezes se fez referência às várias edições contendo o repertório gregoriano em
notação quadrada, bem como à distinção entre a Edição Vaticana – a edição oficial (editio typica), a cargo
da Tipographia Poliglota Vaticana, hoje Libreria Editrice Vaticana – e as edições particulares, sobretudo
as edições da Abadia de Solesmes que, tendo por base a Vaticana, obteve autorização da Sé
Apostólica para introduzir alguns sinais complementares (editio iuxta typicam). Estes livros
testemunham o complexo processo de restauração e constituem instrumentos indispensáveis para o
estudo e prática, quer litúrgica quer em concerto. Daí a resumida notícia que damos dos mais
importantes, embora nem todos se encontrem ainda disponíveis no mercado editorial.
2. GR/1908 Graduale Romanum – editado três anos depois, apresenta os cantos do próprio da
Missa.
5. AR/1912 Antiphonale Romanum – contém as melodias para a Liturgia das Horas, embora
apenas das horas diurnas (quanto às horas nocturnas, nunca se publicou uma edição oficial). 52
8. Liber Usualis Missae et Officii, obra sucessivamente reeditada até à reforma do Vaticano II, e
que se identificava, para muitos, com o próprio canto gregoriano. Além dos cantos, continha ainda
as leituras e a parte eucológica, pelo que tanto Missa (a Missa toda e todas as Missas), como grande
parte do Ofício se poderia celebrar com recurso apenas a um livro.
10. KS/1965 Kyriale Simplex – esta publicação, juntamente com a indicada de imediato, traduz a
concretização de um propósito antigo: editar livros contendo cantos menos complexos, acessíveis,
pois, a comunidades menos preparadas (in usum minorum ecclesiarum). Elas constituem, em verdade,
um dos primeiros e mais valiosos frutos da reforma do Concílio Vaticano II em matéria de canto
gregoriano.
11. GS/1967 Graduale Simplex – completa a obra anterior, desta feita reportando as melodias do
Próprio da Missa. Integrado por melodias muito simples, recuperou alguns cantos e formas caídos em
desuso, como o psalmus responsorius. Pela primeira vez, foi autorizada a fungibilidade dos esquemas
previstos para cada missa dentro do mesmo tempo litúrgico, cessando pois a obrigatoriedade
normativa (a prática era bem diversa...) de cada momento ritual estar vinculado a um determinado
canto. Apesar dos seus méritos, o GS teve reduzidíssimo relevo, pois foi praticamente volatizado
perante a hegemonia dos novos cantos em vernáculo. Em 1975, foi publicada uma segunda edição
do GS que passou a incorporar também o KS.
12. OCM/1972 Ordo Cantus Missae – apresenta o ordenamento dos cantos de acordo com o
novo missal (Missal de Paulo VI) publicado em 1970. Contém, ainda, uma vintena de melodias
autênticas para substituir composições neogregorianas existentes no GR em vigor até então.
13. GR/1974 Graduale Romanum – editado por Solesmes, apresenta o repertório da missa
(próprio e ordinário) seguindo as regras da reforma litúrgica já enunciadas no OCM. A versão
melódica e tipográfica, no entanto, corresponde ainda à do GR de 1908.
14. GT/1979 Graduale Triplex – este livro, publicado por Solesmes, corresponde integralmente
ao GR/1974, mas apresenta, além da notação quadrada, mais outros dois sistemas de notação (daí,
Graduale Triplex): sobre a pauta e em caracteres negros, os sinais neumáticos da escola metense
(Ms. Laon 239), na transcrição de Marie-Claire Billecoq; sobre a pauta e em caracteres vermelhos,
os sinais neumáticos da Escola de S. Gall (sobretudo do Cantatorium [cod. St Gallen, Stifsbibliothek
359] e do Graduale de Einsiedeln [Stifsbibliothek 121], em transcrição de Rupert Fischer. Trata-se
da obra fundamental para o estudo do repertório da missa pois permite uma leitura comparada da
edição quadrada com os antigos manuscritos in campo aperto, e, desse modo, uma interpretação
semiologicamente esclarecida.
53
15. PS/1981 Psalterium Monasticum – embora destinado ao rito monástico, esta publicação a
cargo de Solesmes tem interesse sobretudo pela restituição de vários tons salmódicos (os tons
arcaicos e anteriores ao sistema do octoecos) caídos no esquecimento.
16. LH/1983 [= AR 2] Liber Hymnarius – este livro marca o início da nova publicação do
Antiphonale, ou seja, do livro de canto para a Liturgia das Horas. Além de larga colecção de hinos
(267), apresenta ainda os tons do salmo invitatório e alguns responsórios melodicamente corrigidos.
A obra constitui um notável marco evolutivo, no plano das versões melódicas e no plano da
notação tipográfica. Uma referência é ainda devida aos importantes Praenotanda, em que, pela
primeira vez num livro de canto, se dão indicações fundadas nas descobertas semiológicas.
17. OT/1985 Offeroriale Triplex – esta obra é uma reedição de Offertoires Neumés, saída em 1978, e
que, por seu turno, apresentava a reprodução anastática do livro Offertoriale sive Versus Offertorium
editado em 1935 por Karl Ott. Como a designação indica, este último livro apresentava em notação
quadrada as antífonas destinadas ao momento ritual do ofertório bem como os versos intercalares
constantes dos antigos manuscritos, mas que, com o decurso do tempo, deixaram de ser cantados.
Em 1978, a edição foi republicada com um valioso acrescento fruto do trabalho de Rupert Fischer:
além da notação quadrada, e à semelhança do GT, apresenta ainda os sinais neumáticos das antigas
escolas de notação adiastemática sangalense e metense.
18. Passio/1989 Passio Domini Nostri Iesu Christi – na esteira dos antigos Passionários, ou seja,
dos livros que contêm o canto dos Evangelhos na parte relativa à paixão e morte de Jesus,
proclamada durante a Semana Santa, o Vaticano publicou em 1989 esta edição típica, segundo a
versão latina da neo-vulgata. São dois os tons de recitação.
19. OM/1995 Ordo Missae cum canto – contém uma nova edição das partes do Ordo que cabem
ao Presidente da celebração litúrgica, bem como os diálogos e as partes que competem ao
Presidente e aos outros ministros cantar em conjunto com a Assembleia (por ex., o Pater noster).
21. AM/2006 Antiphonale Monasticum [=Liber Antiphonarius pro diurnis horis. II.
Psalterium] – continuação da obra anterior, com os salmos e cânticos para as diversas horas do
ofício diurno.
22. AM/2007 Antiphonale Monasticum [=Liber Antiphonarius pro diurnis horis. III. De
Sanctis] – continuação do Antiphonale monástico, desta feita com o próprio e o comum dos Santos.
54
CAPÍTULO III
75 Na verdade, o primeiro e fundamental ritmo da celebração é formado pelo dia natural. Como prescrevem
as Normas gerais sobre o ano litúrgico e o Calendário: «Cada dia é santificado com celebrações litúrgicas do povo de
Deus, de modo particular com o Sacrifício eucarístico e o Ofício divino. O dia litúrgico começa à meia-noite
e termina na meia-noite seguinte. Mas a celebração do domingo e das solenidades começa na tarde do dia
precedente» (n.º 3). Assim, o dia litúrgico segue a forma civil, derivada já do calendário romano, de medir os
dias: das O horas até às 23 h. 59’ 59’’. Porém, em relação aos domingos e às solenidades manteve-se a tradicional
forma judaica de determinar o ciclo diário, começando a contagem dos dias na tarde anterior (cf. Génesis 1, 5:
da tarde e da manhã se fez o primeiro dia). Daí o surgimento das primeiras vésperas, bem como a
admissibilidade das missas vespertinas. No centro do dia litúrgico encontra-se a celebração da Eucaristia; nos
seus dois pólos fulcrais: o começo da manhã e o fim da tarde, celebram-se as horas de laudes e de vésperas; ao
longo do dia, outras horas litúrgicas vão assinalando e santificando a passagem do tempo: tércia, sexta, noa
(hoje agrupadas sob a designação de hora intermédia); no termo da jornada diária, antes do repouso, celebra-se a
hora de completas.
76 Em continuidade clara com o culto judaico (embora, como veremos, com outro fundamento), o primeiro
ciclo assumido pela liturgia cristã é o da semana. Parece que a sucessão das fases da lua constituiu, entre os
povos nómadas de pastores, e mesmo nas comunidades mais sedentárias e agrícolas, um marco importante na
organização do tempo. Para o Judaísmo, no termo de cada semana, surge o dia do descanso, o Shabbat, o dia
em que o Senhor Deus repousou do trabalho que realizara (cf. Gn 2, 2) – desta forma, o Sábado representa a
mais importante instituição religiosa da lei mosaica. As comunidades cristãs, mantendo-se fiéis ao ciclo
hebdomadário, vão deslocar, porém, o centro litúrgico para o Domingo. O acontecimento pascal assinala a
nova criação (cf. 2 Cor 4, 17) – no primeiro dia da semana, de acordo com a forma de contar os dias no
Judaísmo, o Senhor ressuscitou e manifestou-se aos seus discípulos (cf. Mt 28, 1; Mc 16, 9; Lc. 24, 1; Jo 20,
1). E de novo se apresenta, oito dias depois, aos apóstolos reunidos, mostrando a Tomé as provas da sua
morte na Cruz (que, desde então, presidirá às celebrações litúrgicas) e da sua gloriosa ressurreição. Assim, o
«primeiro dia da semana» em breve se torna o Dia do Senhor (Kyriake hemèra, em grego, Dominicus dies, em latim)
– o domingo, o mais importante de todos os dias, o «senhor dos dias», ao qual se aplica «a exclamação do
Salmista: "Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria" (Sl 117 (118), 24)». Além de
específicos tempos e festas, esse conhecimento, dizíamos, uma vez adquirido, permitirá
perspectivar o repertório gregoriano, sob o prisma do enquadramento litúrgico, com
relativa facilidade.
domingo, o dia da festa cristã recebeu outros nomes: o primeiro dia; o dia do sol (da nomenclatura romana
mas a que se deu leitura cristológica: «que das alturas nos visita como sol nascente», canta-se no Benedictus [Lc
1, 78]); o oitavo dia, o dia que está para além do tempo, o dia sem fim, que não conhecerá manhã nem tarde.
Como se sabe, na organização romana do calendário, os dias eram designados com um nome de um planeta.
Assim, dia do Sol, da Lua, de Marte, de Mercúrio, de Vénus, de Júpiter, de Saturno. Essas denominações
transitaram, com mais ou menos força, para as línguas europeias (assim, no inglês: Sunday, Monday, etc.; no
alemão: Sonntag, etc.). A Igreja apenas designa dois dias com um nome próprio: o primeiro dia: domingo, e o
último: sábado. Os restantes são as feriae, os dias de festa: feria II, feria III, etc. A única língua a adoptar
plenamente a regra da liturgia foi o português: segunda-feira, terça-feira… O ciclo hebdomadário tem
reflexos, ainda, na organização do próprio ano: as oitavas (na actual reforma, apenas da Páscoa e do Natal) –
ou seja, sete dias que prolongam a festividade; e no tempo pascal que se estende por 49 dias (uma semana de
semanas) desde a Páscoa até ao 50º dia, o Pentecostes.
77 O terceiro importante ciclo temporal da liturgia é o ano litúrgico. A reforma conciliar trouxe algumas
alterações à ordenação do ano: assim, foram suprimidas algumas celebrações e tempos (por exemplo: o
tempo da septuagésima, sexagésima e quinquagésima). Por outro lado, procurou-se recentrar o ciclo temporal no
mistério de Cristo, algo obscurecido com a sobreposição de celebrações dos santos, missas votivas, missas
pelos defuntos, etc. Na verdade, convém não esquecer que «o ano litúrgico não é uma ideia, mas é uma
pessoa, Jesus Cristo e o seu mistério realizado no tempo, e que hoje a Igreja celebra sacramentalmente como
“ memória”, “presença”, “profecia”.» A partir deste mistério foi-se construindo o ano litúrgico, seguindo um 56
«critério que vai da “concentração à distribuição”, e pelo qual se passou progressivamente do “todo”
considerado na Páscoa à explicitação de cada um dos mistérios separadamente». Assim, ao longo do ano
surgem os diversos tempos:
a) Ciclo Pascal: Páscoa, Tríduo pascal, Tempo Pascal, Quaresma – «No primeiro período da história da
igreja, a Páscoa foi o centro vital e único da pregação, da celebração e da vida cristã. (…) o culto da igreja
nasceu da Páscoa e para celebrar a Páscoa. Nos primeiros tempos, portanto, não se celebravam os mistérios
mas o mistério de Cristo. No princípio da liturgia cristã encontra-se somente o domingo como única festa.
Depois, «surgiu cada ano um “grande domingo” como celebração anual da Páscoa que se ampliará
constituindo o tríduo pascal, com prolongamento da festa por cinquenta dias». A partir do séc. IV, «a
necessidade de contemplar e reviver o drama da paixão fez prevalecer um critério de “historicização”, que
deu origem à formação da semana santa. A celebração do baptismo na noite pascal (já no início do séc. III), a
disciplina penitencial com a respectiva reconciliação dos penitentes na manhã de sexta-feira santa (séc. V) fez
nascer também o período preparatório à Páscoa, inspirado nos “quarenta dias bíblicos”, isto é, a Quaresma».
b) Ciclo do Natal: Natal, Epifania, Advento – «O ciclo natalício nasceu no séc. IV de modo independente
da visão unitária do mistério pascal. A ocasião foi propiciada pela necessidade de afastar os fiéis das
celebrações pagãs e idolátricas do “sol invencível” que ocorriam no solstício de Inverno. As grandes
discussões teológicas dos sécs. IV e V encontraram no Natal a oportunidade para afirmar a autêntica fé no
mistério da encarnação». Neste ciclo, brilham em especial duas festas: a do Nascimento de Jesus (25 de
Dezembro) e a Epifania ou manifestação de Jesus aos povos (6 de Janeiro). «Em fins do séc. IV, para criar
um certo paralelismo com o ciclo pascal, começou a anteceder-se as festividades natalícias de um período de
preparação, composto de quatro ou seis semanas, chamado advento».
c) Ciclo do Santoral – «O culto dos mártires é antiquíssimo e está ligado à visão unitária do mistério pascal:
aqueles que derramaram o sangue por Cristo eram considerados perfeitamente assimilados a Ele no acto
supremo do seu testemunho ao Pai na cruz». Mais tarde, serão equiparados aos mártires aqueles que viveram
as virtudes cristãs de modo exemplar e heróico: os santos. «O culto a Maria, historicamente, vem depois do
culto dos mártires. Desenvolveu-se sobretudo a partir do concílio de Éfeso (431), particularmente durante o
período natalício com a comemoração da divina maternidade (séc. VI)».
«Devemos concluir que o ano litúrgico não se formou historicamente com base em um plano concebido
de modo orgânico, mas que se desenvolveu e cresceu de acordo com os critérios da vida da igreja, relacionada
com a riqueza intrínseca do mistério de Cristo, com as múltiplas situações históricas e consequentes
exigências pastorais». (A. BERGAMINI, Novo dicionário de liturgia, v. «ano litúrgico»).
B — O repertório
O próprio refere-se aos cantos específicos de uma dada celebração eucarística. O seu
texto é, pois, variável; muitas vezes reflecte e explicita o concreto aspecto do mistério
celebrado. Exemplos: Puer natus est nobis (Um menino nasceu para nós), da Missa do Natal;
Pascha nostrum immolatum est Christus (A nossa Páscoa imolada é Cristo), da Missa de Páscoa;
Requiem aeternam dona eis, Domine (Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno), da Missa pro defunctis;
etc.
Entre os textos do próprio contam-se cantos processionais (que acompanham um
rito processional) e cantos interleccionais (entre as leituras e fazendo parte integrante da
Liturgia da Palavra).
78 Nesta linha, destaca-se a sistematização ensaiada por Peter Wagner na sua fundamental Gregorianische
Formenlehre, e que contrapõe formas vinculadas (gebundene Formen), isto é, as composições que seguem modelos ou
esquemas fixos (como os recitativos e os tons salmódicos) e as formas livres (frei Formen). Cf. P. WAGNER,
Einführung in die gregorianischen Melodien, 3. Teil: Gregorianische Formenlehre, 3. Aufl., 1921. Enquadramento similar
encontra-se em W. APEL, Il canto gregoriano, pp. 269 ss.
79 Sobre a história do canto de entrada, v. as sínteses de V. DONELLA, Musica e Liturgia, 1997, pp. 170 ss., V.
Os restantes são de outros livros bíblicos, salvo o intróito da festa de Santa Águeda, Gaudeamus. Mesmo
quando o corpo do intróito não é sálmico, o verso que acompanha é sempre retirado dos salmos.
2. Gradual (Graduale) 81 — canto que sucede à primeira leitura da Missa constituindo, pois,
a resposta (meditação) poético-musical à palavra proclamada. É possível que a sua
designação (Gradual) derive do facto de o solista cantar o versículo dos degraus (gradus, em
latim) do ambão em que se proclamavam as leituras82. De início, tinha uma estrutura
musical simples83, mas com o passar do tempo recebeu um tratamento musical muito
desenvolvido – estilo melismático (veja-se o exemplo da fig. 69, Gradual Christus factus est,
embora haja alguns casos ainda mais exuberantes, como o versículo do Gradual Clamaverunt
iusti em que um dos melismas se estende por 56 notas e outro por 66). O canto tem
estrutura responsorial: canta-se o refrão, segue-se um versículo e depois retoma-se o refrão
ou responso (forma ABA)84. Nos graduais é muito frequente o recurso à centonização,
especialmente nos do V Modo (v. fig. 69 e 70)
(NB: 1. O Graduale Simplex restaurou a antiga forma do psalmus responsorius, em que o salmo
é cantado num recitativo intercalado com um pequeno refrão; 2. Nos domingos do tempo
pascal, o Gradual é substituído por um Aleluia).
81 Mais informações em V. DONELLA, Musica e Liturgia, pp. 172 ss., F. RAINOLDI, pp. 145 ss.
82 Cf. A. FORTESCUE, v. «Gradual», in: The New Catholic Encyclopedia (1909), vol. 6. Considerando que o
Gradual era cantado, tal como as demais leituras, do próprio ambão, v. A. Pellegrino ERNETTTI, Storia del canto
gregoriano, p. 121.
83 Seria talvez a cantilatio a que alude Santo Agostinho: «Tam modico flexu vocis … ut pronuntianti vicinior
essem quam canenti»: o leitor entoava o salmo com uma inflexão de voz tão pequena que parecia mais
própria de quem recita do que de quem canta (Confissões, X, 33, 2, cujo texto se pode ler na Antologia Litúrgica,
n.º 3006, p. 719). Como se reiterará em texto, essa forma de cantar o salmo responsorial foi restaurada no
Graduale Simplex.
84 Este modo de execução responsorial foi abandonado com o tempo. As rubricas do Graduale Romanum de
1908 previam duas formas, uma das quais a responsorial. Na prática, porém, só a outra se impôs: a Schola
cantava todo o Responso (A); depois, um pequeno grupo de solistas cantava o verso até um certo ponto (em
geral a última ou últimas palavras), assinalado nos livros com o asterisco, altura em que toda a Schola retomava
o verso até ao fim. As normas sobre o canto subsequentes à reforma litúrgica do Vaticano restauraram o
antigo costume responsorial (cf. Praenotanda 5); um costume, aliás, que é requerido nalguns casos pelo próprio
sentido do texto: assim, o verso do Gradual Priusquam te formarem termina deste modo et dixit mihi (disse-me);
se o canto cessasse neste ponto ficaria o sentido em suspenso: disse-me o quê? — o sentido teológico
retoma-se, porém, com a repetição do refrão Priusquam te formarem … [Deus] disse-me: «mesmo antes de te
formar no ventre de tua mãe já te conhecia».
85 V. DONELLA, Musica e Liturgia, pp. 182 ss., F. RAINOLDI, Psallite sapienter, pp. 152-3.
Fig. 44
Outros cantos
para o intróito. Cf. Versus psalmorum et canticorum ad usum cantorum pro antiphonis ad introitum et ad communionem
repetendis, 1962.
93 A solene vigília pascal é, na bela formulação de Santo Agostinho, a mater omnium sanctarum vigiliarum, a mãe
de todas as santas vigílias, na qual todo o mundo permanece vigilante (Sermão 219 in: Antologia litúrgica n.º
3857, p. 911).
94 J. GAJARD, Les plus belles mélodies grégoriennes, 1985, pp. 125 ss.
95 Sobre este tema, em profundidade, o estudo fundamental de J. Maria PEDROSA CARDOSO, O Canto da
Marilena Maniaci Giulia Orofino (ed.), Le Bibbie Atlantiche. Il libro delle Scritture tra monumentalità e
rappresentazione, Carugate: Centro Tibaldi, 2000, pp. 81-85.
97 V. DONELLA, Musica e liturgia, pp. 236-7.
— Antífona Crucem tuam, cujo texto exprime bem a globalidade do mistério pascal:
adoramos, Senhor, a Vossa Cruz, louvamos e glorificamos a Vossa ressurreição, pela árvore [da Cruz] veio a
alegria ao mundo inteiro.
— Improperia: texto pungente que põe em confronto as maravilhas realizadas por Deus em
favor do seu povo e os maus-tratos infligidos por esse povo a Cristo98. Conserva um resquício
do tempo em que a liturgia romana era celebrada em língua grega: o trisagion, cantado em dois
coros, primeiro em grego, depois em latim.
— Hino Crux fidelis: o texto do séc. VI é do poeta Venâncio Fortunato e canta os louvores
à cruz.
— Victimae paschali laudes (para dia de Páscoa), com texto de Wipo (1000-1046)
— Veni sancte Spiritus (para o dia de Pentecostes), com texto atribuído a Stephen Langton (†
1228)
— Lauda Sion (para o Corpus Christi), com texto de S. Tomás de Aquino (1225-1274)
— Dies irae (para a Missa de Requiem), com texto atribuído a Tomás de Celano († 1256)
— Stabat mater (para a Memória de Nossa Senhora das Dores: 15 de Setembro), com texto 62
atribuído a Jacopone da Todi († 1306).
Na actual ordenação litúrgica, as duas primeiras são obrigatórias (a seq. Victimae pode
cantar-se, ainda, com carácter facultativo, em todos os dias da oitava e no II Domingo da
Páscoa); as seq. Lauda Sion e Stabat Mater são facultativas. A seq. Dies irae já não faz parte da
liturgia dos defuntos, sendo cantado como hino do Ofício Divino nos últimos dias do ano
litúrgico. Constituem todas obras literárias e musicais de grande beleza.
98Para uma análise deste texto v. E. WERNER, The Sacred Bridge II, pp. 127 ss.
99Uma interessante revalorização da sequência é oferecida por L. D OBSZAY, «Life and Meaning of the
Sequence», 134.2 Sacred Music 2007, pp. 8-20. Mais dados sobre esta forma literária-musical em P. WAGNER,
Einführung III, pp. 483 ss; W. APPEL, Il canto gregoriano, pp.558 ss., A. Pellegrino ERNETTI, pp. 126 ss., V.
DONELLA, Musica e liturgia, pp. 179 ss.
assumiram uma importância musical (e ritual) assaz relevante, a ponto de constituírem por
antonomásia os cantos do ordinário: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei100.
100A este elenco fundamental pode, em certa medida, acrescentar-se a despedida conclusiva da Eucaristia, Ite,
missa est, que recebeu no gregoriano um tratamento musical específico.
Estes títulos são testemunho de uma forma literário-musical, que conheceu amplíssimo
desenvolvimento a partir do século X: o tropo. Em termos resumidos (e redutores), os 64
tropos constituem interpolações (textuais e/ou musicais) numa obra litúrgica pré-
existente101. Os tropos conheceram uma difusão espantosa, penetrando de várias formas
em quase todos os tipos de canto – recordemos os tropos aos intróitos de Natal e de
Páscoa102. Mas, sem dúvida, os exemplos mais expressivos desta prática são os Kyrie tropados
que resultam da aplicação de um texto silábico às notas dos melismas, como se pode ver no
exemplo do Kyrie XVII, dito Kyrie salve da palavra inicial do tropo.
Fig. 45
101 Em profundidade sobre os tropos, cf. W. APPEL, Il canto gregoriano, pp. 544 ss., P. WAGNER Einführung I,
pp. 277 ss.
102 Para vários exemplos de tropos (do Intróito, do Gloria, do Kyrie, do Sanctus, do Agnus, de responsórios e
antífonas e, até, das próprias leituras bíblicas e patrísticas), v. F. RAINOLDI, Psallite sapienter, anexos n.º 6a e
ss.). V., ainda, M. A. FRADE, Manual de Iniciação ao Canto Gregoriano, 3.ª ed., 2005, pp. 124 ss.
Fig. 46
65
Deste modo, estes Kyrie ficaram conhecidos pelas primeiras palavras do tropo
respectivo (ou de um dos tropos respectivos, pois diversos Kyrie receberam múltiplos
tropos): Kyrie Lux et origo, Kyrie Fons bonitatis, Kyrie salve, etc. e, por extensão, os esquemas (as
Missas) em que se integravam: Missa Lux et origo…
2. Gloria — é um hino de louvor muito antigo, talvez do século III104. Consta de duas
grandes partes: uma primeira de adoração e louvor a Deus Pai: laudamus te, …; uma segunda
dirigida a Jesus Cristo, suplicante de início (miserere nobis…) e de exultante adoração depois
(tu solus Dominus…). No final, surge uma referência trinitária. As melodias gregorianas são
em estilo silábico, cantando-se, usualmente, em coros alternados.
5. Agnus Dei (Cordeiro de Deus) — Canto litânico que acompanha o rito da fracção do
pão, antes da distribuição da comunhão108. O seu texto provém do Evangelho de João 1,
29; as melodias gregorianas são em estilo silábico e semi-ornado.
103 Para mais dados sofre o Kyrie, v., entre outros, «Kyrie eleison», Boletim de Música Litúrgica, n.º 125-127, V.
RAFFA, Liturgia eucaristica, pp. 280 ss., V. DONELLA, Musica e liturgia, pp. 189 ss., F. RAINOLDI, Psallite sapienter,
pp. 129 ss., A. Pellegrino ERNETTI, Storia del canto gregoriano, pp. 118-9.
104 Sobre a história do Gloria, v. Boletim de Música Litúrgica, n.º 128-132, V. RAFFA, Liturgia eucaristica, pp. 289
ss., V. DONELLA, Musica e liturgia, pp. 193-4, F. RAINOLDI, Psallite sapienter, pp. 136 ss., M. RIGHETTI, Historia
de la Liturgia, I, pp. 221 ss., A. Pellegrino ERNETTI, Storia del canto gregoriano, pp. 119-20.
105 Cf. M. RIGHETTI, Historia de la Liturgia, I, pp. 213 ss, V. DONELLA, Musica e liturgia, pp. 195-6, F.
litúrgica, nº 1615, p. 433-4), mas remonta seguramente a épocas muito anteriores, talvez mesmo dos finais do
primeiro século.) Para mais informações sobre o Sanctus, cf. V. RAFFA, Liturgia eucaristica, pp. 672 ss., V.
DONELLA, Musica e liturgia, pp. 197-8, F. RAINOLDI, Psallite sapienter, pp. 185 ss., A. Pellegrino ERNETTI, Storia
del canto gregoriano, pp. 118-9.
107 Sobre este conceito de centonização v., infra, Cap. VI, 4. b).
108 V. RAFFA, Liturgia eucaristica, pp. 550 ss., V. DONELLA, Musica e liturgia, pp. 199 s., F. RAINOLDI, Psallite
67
3. 3. Elementos verbais constitutivos da Liturgia das Horas: salmos, cânticos,
antífonas, leituras, responsórios, hinos, orações.
a) Salmos
109 A Didaqué (dos finais do séc. I) prescreve a oração três vezes ao dia (8, 3) enquanto na Tradição Apostólica de
Santo Hipólito de Roma (séc. III) surgem claramente indicados diversos momentos da oração quotidiana: de
manhã, à hora tércia, sexta e nona, antes do repouso, bem como a oração nocturna da meia-noite (cf. os
textos em: Antologia Litúrgica, respectivamente n.º 201, p. 96, e n.º 817, p. 239-40).
110 «É Ele mesmo […], Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, quem ora por nós, ora em nós e a quem
nós oramos (oret pro nobis, et oret in nobis, et oretur a nobis). Ora por nós, como nosso sacerdote; ora em nós,
como nossa cabeça; a Ele oramos, como nosso Deus. Reconheçamos, portanto, n’Ele a nossa voz e a Sua voz
em nós» (S. AGOSTINHO, Enarrationes, Ps. 85, 1; cf. Antologia litúrgica, n.º 3164, p. 765).
111 Na Bíblia hebraica o Livro dos Salmos, ou Saltério, é designado por Tehillim (plural irregular de tehillah,
“louvor” ou “hino de louvor”), ou por Sefer Tehillim, “livro dos louvores”. A primeira tradução grega do
Antigo Testamento (Septuaginta ou dos LXX), denominou-os Psalmoi (“salmos”) ou Biblos Psalmon (“livro dos
Como se referiu, são 150 os salmos contidos no saltério. A sua numeração, porém,
não é uniforme nas traduções da Sagrada Escritura. Com efeito, a primeira tradução
para grego (a chamada Septuaginta ou dos LXX), a Vulgata latina e as versões usadas
na liturgia dividem de modo diverso alguns poemas em relação à versão hebraica
original (e que serve de modelo às traduções modernas em vernáculo).
Assim, os salmos 9 e 10 na redacção em hebraico (texto massorético) formam um só
na versão grega dos LXX e na Vulgata latina (9,1-21 e 9, 22-39). Desde o Salmo 11
ao 113 a versão hebraica conta com uma unidade a mais que a dos LXX e a da
Vulgata. Também os 114 e 115 hebraicos são um só nas versões grega e latina
(113,1-8 e 113, 9-26). Inversamente, o 116 hebraico divide-se, nos LXX e na
Vulgata, nos Salmos 114 e 115. Mas o 146 e 147 das versões grega e latina unem-se
no hebreu para formar o 147, 1-11 e 147, 12-20 e, assim, os três últimos salmos, 148,
149 e 150, têm igual numeração.
Em esquema
1–8 1–8
9 – 10 9
11 – 113 10 – 112
114 – 115 113
116 114 – 115
117 – 146 116 – 145
147, 1-11 146 68
147, 12-20 147
148 – 150 148 – 150
Os salmos dão corpo, como se disse, ao livro de oração do povo judaico. Porém,
não constituem poemas circunscritos a uma cultura limitada – neles se exprime de forma
admirável a multiplicidade de sentimentos e de atitudes orantes do ser humano: louvor,
acção de graças, súplica…; neles emerge a alegria do doente que é curado e revela-se aquele
que olhando a imensidão dos céus louva a obra criadora de Deus; neles encontramos o
pecador que invoca a misericórdia divina e o homem injustiçado e perseguido que clama
por auxílio… Não foi apenas por isso (e este apenas já seria bastante!) que a Igreja
«adoptou» os salmos como conteúdo básico para a oração litúrgica. A centralidade do livro
dos salmos para o culto cristão decorre também e sobretudo da estreita conexão que as
primeiras comunidades cristãs encontram entre os salmos e a pessoa de Jesus. Com efeito,
os salmos são vistos como profecias do próprio Cristo: os salmos falam do Messias,
anunciando em forma poética o que haveria de realizar-se no mistério salvífico de Jesus
Cristo, como, aliás, Ele mesmo declararia aos discípulos (cf. Lc. 24, 44). Não surpreende,
por isso, que o Saltério seja o livro do Antigo Testamento mais citado nos escritos
salmos”), da circunstância de em muitos desses poemas aparecer a referência mizmor: forma substantivada do
verbo zamar que significa cantar acompanhado de um instrumento de corda, o saltério.
112 O Saltério não foi composto de uma só vez e por uma só pessoa. Muito embora a tradição atribua os
salmos ao rei David (atribuição essa, aliás, expressa em numerosos salmos), a verdade é que o processo de
composição do Saltério se estendeu por muito tempo (entre os séculos X e III a. C.) e apresenta diversos
estratos cultuais e literários. Nesse sentido, pode dizer-se com razão que o livro dos Salmos constitui uma
«colecção de colecções» (MORLA ASCENSIO, Libros sapienciales y otros escritos, 2000, p. 306).
neotestamentários, como ocorre nas passagens em que Jesus cita directamente versículos
salmódicos (p. ex., quando utiliza o salmo 109 (110): disse o Senhor ao meu Senhor: senta-te à
minha direita, para evidenciar a Sua vocação messiânica, ou o salmo 117 (118): a pedra que os
construtores rejeitaram tornou-se pedra angular, anunciando a Ressurreição); ou, ainda, nas
conhecidas referências no contexto dos Evangelhos da Paixão (cf. os salmos 21 (22): meu
Deus, meu Deus, porque me abandonastes?, repartem entre si as minhas vestes, trespassaram as minhas
mãos e os meus pés; 68 (69): dão-me fel a beber; e 30 (31): em vossas mãos entrego o meu Espírito); ou,
para dar um último exemplo, quando se invoca o texto sálmico para afirmar o
cumprimento em Jesus Cristo da promessa contida no salmo (entre muitos, veja-se o
discurso inicial de Pedro (Act. 2, 24) após o Pentecostes, que utiliza o salmo 15 (16): não
deixareis o Vosso Servo conhecer a corrupção, como alicerce da Ressurreição de Cristo). Por outro
lado, o cristianismo nascente reconhece nos salmos a voz de Jesus (Psalmus vox Christi) e
encontra nos salmos as palavras para exprimir-Lhe a sua oração incessante (Psalmus ad
Christum). Assim, o novo culto vai adoptar o saltério para base da sua própria expressão
orante e, por conseguinte, como fonte primária dos cantos, quer da Liturgia das Horas, em
que ocupam lugar central, quer dos cantos da Missa: com efeito, grande parte dos Intróitos,
Graduais, dos Ofertórios e dos versos do Aleluia é composta por versos sálmicos.
«Quando os fiéis vigiam na igreja durante a noite, David é primeiro, centro e último.
Quando pela aurora se cantam os hinos, David é primeiro, centro e último. Nas
procissões funerais e no sepultamento, David é primeiro, centro e último».
S. Jerónimo (347?-407)
b) Cânticos bíblicos
A Igreja toma também para a sua oração litúrgica outros poemas bíblicos – embora 69
em muitos casos apresentem estruturas e, mesmo, conteúdos similares aos salmos, estes
poemas não fazem parte da colecção do saltério, antes se encontram disseminados por
outros livros bíblicos; recebem o nome genérico de cânticos. Assim, o chamado cântico de
Moisés, celebrando a passagem do Mar Vermelho, constante do Livro do Êxodo, ou o
cântico dos três jovens lançados na fornalha ardente, conservado no Livro de Daniel, etc.
Também o Novo Testamento nos transmitiu alguns cânticos magníficos, tanto nas cartas
de Paulo, Pedro, Tiago, como no Apocalipse. Particular relevo é dado aos três cânticos
evangélicos: Benedictus (Lc. 1, 68-79), Magnificat (Lc. 1, 46-55) e Nunc dimittis (Lc. 2, 29-32), que
a Igreja canta todos os dias do ano na sua Liturgia das Horas, respectivamente na hora de
Laudes, de Vésperas e de Completas.
Na Liturgia das Horas, a recitação dos salmos e demais poemas bíblicos é integrada
por uma antífona, pequeno texto que, por tradição, se canta no início e no final do salmo.
Do ponto de vista litúrgico, têm uma função coadjuvante. Como se diz na Instrução Geral
sobre a Liturgia das Horas (1970), «as antífonas servem para tornar mais claro o género
literário do salmo; transformam o salmo em oração pessoal; põem em relevo esta ou aquela
sentença digna de particular atenção e que de outro modo passaria despercebida. Dão ao
salmo um colorido especial, em harmonia com as circunstâncias em que é utilizado; ajudam
muito a interpretar o salmo num sentido tipológico conforme as festas […]; finalmente,
contribuem para tornar a recitação dos salmos mais agradável e variada» (n.º 113).
O gregoriano legou-nos bastante mais de mil antífonas, pequenas mas inestimáveis
jóias da composição literária e musical. A maioria está escrita em estilo silábico e com um
constante recurso à técnica formular das melodias-tipo114.
d) Leituras
e) Responsórios
f) Hinos
Como espécie de abertura a cada hora117, canta-se um hino118: composição poética não
bíblica, embora nela encontre raízes de inspiração. Já se referiu que a hinodia cristã em
latim é muitíssimo vasta: o recente Liber Hymnarius apresenta 267 hinos, uma diminuta
porção da totalidade. Musicalmente, os hinos inserem-se no género silábico.
g) Te Deum
Pertence, juntamente com o Glória e o hino Te decet laus, às mais remotas poesias
cristãs119. A investigação actual tende a atribuir o texto a Nicetas de Remesiana (séc. V),
embora uma antiga tradição (infundada, é certo) imputasse a autoria do hino a Santo
Ambrósio e Santo Agostinho, numa inspirada improvisação conjunta aquando do baptismo
de Agostinho. Tem conteúdo doxológico, com uma primeira parte muito semelhante a uma
Oração eucarística, com prefácio e sanctus. Na ordenação litúrgica, o Te Deum é cantado no
termo do Ofício de Leituras, nos domingos e festas. Mas dado o seu carácter laudatório, foi
muito usado noutras ocasiões de acção de graça e (também) de exaltação do poder. A
história da música é rica em Te Deum.
h) Antífonas marianas
A última hora do ciclo diário, rezada antes de deitar, é, como se disse a hora de
Completas. A concluir essa celebração, canta-se uma antífona em louvor da Virgem Maria,
variável consoante o tempo litúrgico. Os livros de canto conservam duas versões ou tons
para algumas dessas antífonas: o tom solene e o tom simples. Recordamos as quatro mais
importantes120:
– Salve Regina: não se sabe ao certo quem é o autor do poema (talvez Adhémar de Monteil), 71
mas remontará ao séc. XI. O tom solene, do I modo, é muito belo e inspirou magníficas
composições polifónicas e música de órgão; mais conhecido, porém, o tom simples,
neogregoriano, do séc. XVII.
– Alma Redemptoris Mater: texto atribuído a Hermann Contractus (séc. XI). Canta-se no
tempo do Advento. O tom simples foi composto nos finais do séc. XIX, talvez por D.
Pothier ou por D. Fonteinne.
– Ave, Regina Coelorum: o texto não será posterior ao séc. XIII. O tom simples é uma
Adaptação (D. Pothier?) de um canto pascal, Ecce manu forti.
117 Tal como se infere do que se diz no texto, na actual ordenação litúrgica o hino canta-se no início da
celebração, precedendo a salmodia. Antes da reforma conciliar, a colocação do hino não era uniforme nas
diversas horas: em Laudes e Vésperas o hino cantava-se depois da salmodia. No desenho em vigor, fica
patente a sua função introdutória. Nesse sentido, diz a Instrução geral sobre a Liturgia das Horas: «A função do hino
é dar a cada hora do Ofício ou a cada festa como que a sua tonalidade própria» (n.º 42). E na verdade, a maior
partes dos hinos permite essa contextualização da celebração que se inicia: ou da concreta hora (v. g., com a
alusão ao nascer do sol, ao cair da tarde, à hora tércia…); ou com a referência explícita ao tempo litúrgico, ou
à concreta festa (pense-se em muitos hinos dos ofícios no santoral).
118 Recorde-se a clássica “definição” de hino feita por S. Agostinho: «Sabeis o que é um hino? É um cântico
de louvor a Deus. Se louvas a Deus, mas não cantas, não dizes um hino; se cantas, mas não louvas a Deus,
não dizes um hino; se louvas algo que não pertença ao louvor de Deus, ainda que cantes louvores, não dizes
um hino. Pois um hino comporta três coisas: que haja canto, que seja de louvor, e que o louvor se dirija a
Deus» (Enarrationes in Ps. 148, 17; cf. Antologia litúrgica, n.º 3246, p. 780)
119 Cf. M. RIGHETTI, Historia de la Liturgia, I, pp. 224 ss., F. RAINOLDI, Psallite sapienter, pp. 245 s.
120 J. GAJARD, Les plus belles mélodies grégoriennes, pp. 260 ss.
– Regina Caeli: cantada no tempo pascal, o seu texto terá sido composto em princípios do
séc. XII. A versão mais conhecida (tom simples) parece provir do Antifonário maurista,
com adaptações talvez da mão de D. Pothier (ver fig. 39).
72
CAPÍTULO IV
INTRODUÇÃO À SALMODIA
apresentam também uma estrutura formal: cada verso está dividido, por norma, em duas
partes: os hemistíquios. Quer a divisão em versos, quer a divisão destes em hemistíquios
exprime com efeito uma característica muito patente na poesia hebraica: o paralelismo, como
se pode ver nos exemplos seguintes:
Assim, também o tom salmódico apresenta uma estrutura binária. Essa divisão é
assinalada nos livros de canto pelo asterisco.
Fig. 48
74
Entoação Corda Rec. Flexa Cadência média * Corda rec. Cad. Final
1. Entoação (inchoatio) – é o breve inciso melódico que estabelece a ligação entre o final da
antífona e a corda de recitação. A entoação é constituída em alguns casos por 3 notas
(como no exemplo acima), ou por dois grupos binários (dois grupos de duas notas cada:
clivis e pes), por uma nota e um grupo binário, ou por um grupo binário e uma nota, sendo
necessário respeitar estes esquemas na adaptação do texto, como se pode ver na aplicação
da palavra Laudate nos dois exemplos seguintes, respectivamente dos tons salmódicos 5.º e
7.º.
Fig. 49
Fig. 50
Fig. 51
4. Cadências (clausulae) – tal como o verso se encontra dividido em duas partes, também o
tom salmódico apresenta uma divisão, assinalada pelas duas cadências: a cadência a meio
do verso, dita cadência intermédia, média ou suspensiva, e a cadência final ou
conclusiva (diferentiae, nos livros latinos).
Cada tom possui apenas uma forma para a cadência média; mas há tons que têm
diferentes formas de cadência final. Essas formas cadenciais são indicadas com a
letra correspondente à nota com que a cadência conclui. Nos livros mais antigos,
usa-se a letra maiúscula quando a terminação corresponde à final do modo e em
minúscula quando não corresponde. Um exemplo: o 8.º tom é um tom de sol: se a
cadência terminar em sol escreve-se 8.º G; se terminar em dó escreve-se 8.º c (c=
dó). Desde o Psalterium Monasticum (1981) esse costume deixou de ser observado,
usando-se a letra minúscula. Os livros de canto indicam qual a fórmula cadencial
colocando no final da antífona as notas da cadência sobrepostas às vogais Euouae,
abreviaturas, como se disse já, de saeculorum amen.
Refira-se, ainda, que em alguns tons salmódicos, antes do acento cadencial há notas
(e sílabas) de preparação.
– no máximo, por três sílabas, em que entre aquelas duas sílabas essenciais se insere
uma outra átona, formando-se, pois, um proparoxítono (Dóminus) ou um pseudo-
proparoxítono (conjugação de uma palavra paroxítona com um monossílabo): Nátus est.
Temos no exemplo seguinte, um tom salmódico com cadência média de um acento. O
ponto quadrado com fundo branco usa-se quando a palavra é proparoxítona – trata-se de
uma nota supranumerária ou nota de epêntese.
Fig. 52
Dómino.
nátus est.
77
Há casos em que a nota de epêntese faz parte do próprio acento, antecipando-o
quando a palavra é um proparoxítono, como se vê na figura abaixo na palavra pópuli.
Fig. 53
1. Bónus es tú.
2. sálvum me fác.
3. génui té.
4. declináte de té.
5. Dóminus ex Sión.
Assim, temos:
Fig. 54
Pá ter Dómini
Dóminus té cum.
Dóminus vólu-it.
123 Estes e outros exemplos em E. CARDINE, Primo anno di canto gregoriano, p. 56.
Exemplos124:
Fig. 56
Aplicação correcta
Como se pode ver acima, para adaptar a expressão splendóribus sanctórum criou-se um
acento não real (no caso, sobre bus).
80
125 Apresentam-se os tons segundo o novo Antiphonale Monasticum, I, 2005, pp. 510 ss.
81
82
83
84
CAPÍTULO V
1. Preliminares
Atendendo aos propósitos do curso, que não pretende ir além de uma iniciação,
pareceu-nos mais útil indicar alguns dos vectores essenciais implicados na modalidade
gregoriana, de modo a fornecer um primeiro referente. Aliás, mais relevante do que fixar 85
uma classificação teorética é desenvolver, no contacto assíduo com o repertório a
sensibilidade ou ouvido modal.
Para traçar esse quadro referencial, servimo-nos, quase literalmente, da concisa e
estruturada exposição que D. Daniel Saulnier dedicou em data recente ao tema128.
2. O problema do modo
embora resumindo, o estudo de D. Saulnier; as transcrições literais vão assinaladas com as devidas aspas, mas
nem sempre se fará menção da página respectiva. A modalidade, já se disse, dá azo a amplíssima literatura,
desde os tempos mais remotos. Na segunda metade do séc. XX, merece uma referência particular a
fundamental investigação de D. Jean Claire (cf., entre outros estudos, «Les répertoires liturgiques avant
l’octoechos», Études grégoriennes, XV (1975), pp. 5 ss.). Em data mais próxima de nós, veja-se o trabalho de
síntese de Alberto Turco Il canto gregoriano – II. Toni e modi, 1996, com larga resenha bibliográfica.
a) As notas modais
Quando uma nota tem um papel arquitectural forte costumamos dizer que é uma
nota modal. Há aqui um certo abuso de linguagem. Com efeito, todos os graus da escala, na
função que o compositor lhes atribui, concorrem para construir e desenhar o rosto modal
da obra; elas são todas, num certo sentido, modais. Sem dúvida, as notas arquitecturais
ficam mais presentes no ouvido, na medida em que a melodia insiste nelas (recitativos,
apoios rítmicos, cadências, etc.). As notas ornamentais desaparecem mais depressa do
campo da consciência auditiva. No entanto, elas desempenham um papel decisivo na
sonoridade do modo. De facto, é escutando a relação de vizinhança entre as notas
arquitecturais e os seus ornamentos que o ouvido pode reconhecer e identificar os graus
arquitecturais. Em gregoriano, a ornamentação não é facultativa. A nota ornamental pode
ser fraca – e nem sempre o é; mas sem ela, a composição perde a sua inteligibilidade.
86
b) Interacção entre a escala e a hierarquia dos graus
Nas músicas modais ainda existentes no nosso tempo, observa-se que “um
sentimento modal (ethos) está ligado a cada noção de modo”. […] A ideia de um laço entre
os estados de alma e as diversas categorias do discurso musica» [foi sublinhada ao longo
dos tempos]».
2. A evolução modal
Apresentamos nas figuras seguintes dois exemplos de cantos construídos sobre uma
estrutura modal arcaica, no caso no modo C (dó). No segundo exemplo, um canto de comunhão, a
modalidade arcaica aparece transposta num quadro modal posterior, no entanto continua a ser visível
que a corda de recitação é o dó (aqui escrito em fá), com as usuais descidas ao lá (aqui ré) grave e,
num caso mesmo (fidélis), ao sol grave (aqui dó). Por outro lado, os si recebem bemol, não tanto
para fugir ao diabolus in musica inerente ao trítono (fá-si), mas simplesmente porque na escrita em dó
esse Si b corresponder ao fá (mi-fá, meio-tom).
Fig. 57
GS 221
Espera em Deus, ainda O hei-de louvar:
Ele é a salvação do meu rosto e o meu Deus.
Fig. 58
GT 218
b) Tendo por base estas cordas originárias as melodias vão assumindo estruturas
modais mais complexas129.
129 Cf. A.TURCO, Il canto gregoriano – I. Corso fondamentale, pp. 284 e ss., D. SAULNIER, Les modes grégoriens, pp.
29 ss.
130 J. CHAILLEY, «Du pentatonisme a l’octoechos», Études grégoriennes XIX, 1980, pp. 165 ss.
131 Cf. D. SAULNIER, Les modes grégoriens, pp. 22, 45, A.TURCO, Il canto gregoriano – I. Corso fondamentale, pp.
291.
Fig. 59
ESCALAS MODAIS
89
Como se referiu, cada estrutura modal reveste uma cor específica, um certo sentimento ou
ethos132. Já os antigos teóricos cunharam esses sentimentos. Assim:
132 Sobre o ethos modal, v. as interessantes leituras de J. JEANNETEAU, «L’éthos du triosième mode», in:
Requirentes modos musicos (org. D. Saulnier), 1995, pp. 193 ss., «Harmonicus, Le quatrième mode», Études
grégoriennes, XXV (1997), pp. 97 ss.
CAPÍTULO VI
São muito numerosos os exemplos desta contenção melódica, que sapientemente sabe
construir com recursos tão reduzidos. Reportamos, de imediato, o canto de
comunhão da Missa da Noite de Natal, In splendoribus.
Fig. 60
90
GR 44
A melodia está construída numa escala pentatónica, sem referência aos graus
semitonais, praticamente toda à volta da corda fá134, num recitativo ligeiramente
ornamentado. Só num ponto, no acento de lucíferum a melodia sai do âmbito da
quinta (ré / lá), para tocar na corda dó. Com esta paleta tão «pobre», soube o
compositor gregoriano fazer obra de arte ao serviço de um texto e de um rito.
133 Neste sentido, aliás, a prática de usar o órgão como acompanhamento, embora possa tolerar-se em
algumas circunstâncias e para certo tipo de repertório, deve ser evitada por princípio, na medida em que
introduz um contexto harmónico estranho à estrutura melódica do canto.
134 Esta melodia, classificada no esquema dos oito modos como Tritus Plagal (6.º modo), pertence a estratos
modais anteriores a esse modelo; mais concretamente, estamos em face de uma construção melódica sobre a
corda-mãe de dó.
Neste tipo de análise, importa não esquecer, todavia, uma atitude de humildade e
de cautela que aprendemos do eminente investigador Willi Apel: não transpor para o
gregoriano os quadros estéticos em que estamos culturalmente inseridos, sobretudo
os que herdámos do romantismo musical, na sua focalização sobre a expressividade
subjectiva de sentimento, ideias, impressões. Um intróito gregoriano não é um Lied de
Schubert. Assim, há que exercer sempre vigilância sobre o nosso desejo de ler no
concreto desenho melódico a confirmação de uma ideia prévia, de uma visão pessoal
do texto. Como refere, entre outros exemplos, o mesmo Autor, há quem veja na
descida melódica inicial da Antífona Ecce ancilla Domini a profunda reverência da
Virgem Maria ante a saudação do Anjo. Porém, a utilização recorrente dos esquemas
formulares similares para textos bem diversos (vejam-se as figuras seguintes) deve
colocar o intérprete de sobreaviso quanto a este tipo de leituras figuralistas136.
135Na conhecida expressão de Cícero, a palavra encerra em si um cantus obscurior, um canto escondido.
136 Nesta mesma linha de reservas, recorda ainda Apel que a fórmula ascendente que tão bem se coaduna à
antífona Ascendo ad Patrem (Subo para o Pai) é aplicada do mesmo modo à antífona Descendi in hortum (Desci ao
jardim)? (Cf. W. APEL, Il canto gregoriano, 390 ss.).
Fig. 61
Fig. 62
92
Eis que se completou tudo o que foi dito pelo Anjo sobre a Virgem Maria.
Fig. 63
Fig. 64
Pois se aos olhos dos homens sofreram tormentos, [assim] Deus os pôs à prova.
Como ouro na fornalha Deus os provou e aceitou-os como um holocausto.
137 São numerosos os exemplos: hic calix (GT 170: Co. Hoc corpus; GT 149: Co. Pater, si non potest); cor meum (GT
278: In. Domine, in tua misericórdia; GT 474: In. Probasti), etc., etc. Extensas tabelas comparativas podem ver-se
em D. FOURNIER, Sémio-esthétique du chant grégorien, 1990, pp. 63-81.
138 Cf., com outros exemplos, A. TURCO, Il canto gregoriano, 1996, 117.
2. Os estilos melódicos
a) silábico: a cada sílaba do texto corresponde por regra uma só nota, por vezes
duas. Este estilo é típico das antífonas simples do Ofício e dos recitativos, embora se
encontrem exemplos de canto silábico noutro tipo de cantos: veja-se, por exemplo, o Agnus
Dei XVIII, o Sanctus XVIII, etc.
b) semi-ornado: nos cantos deste género muitas das sílabas do texto recebem um
tratamento musical mais desenvolvido, com pequenos grupos de notas, que se articulam
livremente com sequências puramente silábicas. Os cantos de entrada (intróito) e da
comunhão estão compostos em regra neste estilo (veja-se os exemplo da figura 11,
Suscepimus Deus e 65, Et si coram hominibus.
139 Encontra-se em alguns lugares a designação pneuma, isto é, sopro, espírito, como equivalente a melisma.
140 Ennarrationes in Ps. 32. Cf. Antologia Litúrgica, n.º 3110, p. 753.
Nos três exemplos seguintes mostra-se uma fórmula de abertura ou entoação muito
característica do I modo.
Fig. 66
Fig. 67
Fig. 68
95
Naturalmente, o emprego destes motivos formulares não é discricionário;
pelo contrário, encontra-se sujeito a regras muito precisas – pelo modo de as aplicar a
novas situações se aferia a arte do compositor. Com efeito, as fórmulas têm uma estrutura
mais ou menos rígida, enquanto os textos são muito variáveis, tanto pelo número de sílabas
como pela posição dos acentos na palavra como, ainda, pelo lugar que a palavra ocupa na
ordenação do discurso (não se poderá aplicar uma fórmula de entoação como a das figuras
anteriores a uma palavra conclusiva ou cadencial). Mas, dentro desses limites, as fórmulas
admitem modificações, de molde a poderem funcionar mesmo em textos diversos.
Modificações por:
3. contracção – a) sinérese (fusão sobre uma sílaba única de duas ou mais notas cantadas
sobre sílabas distintas); b) elisão (fusão que ocorre entre duas vocais iguais).
Fig. 69
96
Fig. 70
97
1. Eis o sacerdote eminente que durante a sua vida agradou ao Senhor e foi considerado justo.
142 Em pormenor sobre esta concreta melodia-tipo, v. B. RIBAY, «Les Graduels en II A», Études grégoriennes
XXII, 1988, pp. 43 ss.
143 J. CLAIRE, «Les formules centons des Alleluia anciens», Études grégoriennes XX, 1981, pp. 3 ss.
144 Outros exemplos, v. supra, figuras 61 a 63. Sobre este tema, em profundidade, v. P. FERRETTI, Esthétique
Este processo, que não se confina à música, antes se estende às mais diversas formas
artísticas (incluindo a literária145), designa-se por centonização, da expressão latina
cento, centonis, uma espécie de manta que os soldados romanos envergavam e que era
cerzida usando tecidos diversos (manta-de-retalhos).
Como se disse, grande parte das melodias gregorianas estão construídas de forma
centonizada, pela combinação de fragmentos – fórmulas – de origem diversa que se
combinam e articulam em ordem a dar corpo a uma obra nova.
145 Os textos litúrgicos, designadamente os destinados ao canto, são eles mesmos pródigos no uso da técnica
centonizadora: ora invertendo a ordem literal dos incisos literários, ora fundindo numa unidade fragmentos
literários mais ou menos dispersos. São incontáveis os exemplos. Entre os mais famosos, já se mencionou o
caso do texto litúrgico do sanctus, que congloba passagens de distintos livros bíblicos (Is 6, 3 – e Apo 4, 8 – Sl
117 (118), v. 26). Como se compreende, esta manipulação dos textos bíblicos não se funda apenas numa ideia
de economia, ao cortar partes do relato que seriam supérfluas. O trabalho de centonização expressa ainda
uma ideia teológica e uma intenção orante. Atente-se no caso do Intróito Justus, do XXIII Domingo – Justus es
Domine, et rectum judicium tuum: (1ª frase)/ fac cum servo tuo secundum misericordiam tuam (2.ª frase): Tu és justo,
Senhor, e os teus julgamentos são rectos; / [mas] trata o teu servo segundo a tua misericórdia. As duas frases
do intróito provêm do mesmo salmo, respectivamente os versículos 137 e 124 do salmo 118 (119), o grande
salmo em louvor da Lei. No texto bíblico, como acabou de ver-se, tais versos não só se encontram afastados,
como na ordem inversa. O compositor do texto litúrgico, ao usar assim livremente o texto bíblico, sublinha a
misericórdia que Deus manifesta para com os Seus filhos: Deus é O Justo, são rectos os Seus Juízos – então
qual deveria ser a nossa retribuição? Mas o Senhor usa de misericórdia para connosco, e nessa misericórdia
podemos confiadamente esperar.
146 P. FERRETTI, Esthétique gregorienne, pp. 117 ss. Sobre o fenómeno da centonização dos Graduais de V
modo, cf., ainda, W. APPEL, Il canto gregoriano, pp. 448 ss. As técnicas de aplicação a novos textos de motivos
formulas manteve-se para além do período de ouro, à medida que novas festas litúrgicas iam sendo
introduzidas nos calendários, quer geral quer específicos de certas famílias religiosas. Para uma atenta análise
desse processo no contexto de três festas dos do santoral português, v. M. A. FRADE, O próprio da Missa de três
notáveis santos, em Coimbra: S. Teotónio, Rainha Santa Isabel, Santo Agostinho, Roma, (diss.), Roma, 1987, espec. pp.
56 ss, 90 ss., 109 ss.
Fig. 71
99
Cristo por nós (nosso amor) fez-se obediente até à morte e morte de cruz.
Por isso, Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes.
Fig. 72
Correu então o rumor entre os irmãos de que aquele discípulo (João) não morreria.
«Mas [disse Jesus] se eu quero que ele fique até que Eu venha. Tu segue-me.
Nas figuras anteriores, apresentam-se dois Graduais de V Modo em que se verifica, sobretudo no
versículo, a técnica da centonização.
É admirável pensar que o primeiro Gradual, Christus factus est, uma das obras mais
expressivas do canto gregoriano, não constitua uma melodia original, de tal modo a música se
adapta ao texto da Carta aos Filipenses147: a descida sobre crucis, sublinhando o abaixamento, a
kenosis do Filho do Homem; e o admirável contraste do versículo, na expansão melódica que sobe
aos graus mais elevados do modo, expandindo-se num vocalizo sobre illum…: exaltou-O: Deus
exaltou Cristo148. Mas também aqui reside a genialidade da arte gregoriana: em reelaborar o material
temático, dando origem a novas formas, como um espantoso caleidoscópio que em cada nova
conjugação do mesmo conteúdo se desdobra em irrepetíveis jogos de luz.
147 O texto litúrgico deste Gradual não corresponde exactamente à versão da Escritura, acrescentando-lhe um
breve inciso: Christus factus est pro nobis obediens … Este pro nobis, esta causa da obediência de Cristo,
assumida, pois, por nosso amor (e por nós homens e para nossa salvação…), e que a Liturgia introduz no relato, está
contido, naturalmente, no espírito da Carta aos Filipenses, mas revela a releitura que a Igreja orante faz dos
textos sagrados. Outro exemplo interessante é o do canto de comunhão Mirabantur omnes de his quae procedebant
de ore Dei. O texto inspira-se no relato evangélico de Lucas 4, 22: et omnes testimonium illi dabant et mirabantur
in verbis gratiæ quæ procedebant de ore ipsius (Todos davam testemunho em seu favor e se admiravam com as
palavras repletas de graça que saíam da sua boca). Mas como se verifica, a palavra ipsius, relativa a Jesus (todos
se admiravam com as palavras de Jesus) é substituída por Dei (todos se admiravam com as palavras que saíam
da boca de Deus) – lex orandi, lex credendi.
148 Vale a pena reler as inspiradas palavras de D. Gajard sobre este Gradual. Cf. J. GAJARD, Les plus belles
Fig. 73
101
GT 227
Eleva a Deus vozes de júbilo, terra inteira, e proclama um salmo ao Seu nome.
Vinde e escutai, todos vós que temeis a Deus,
E eu vos narrarei quanto o Senhor fez por mim, aleluia.
CAPÍTULO VII
A – Considerações preliminares
Num primeiro momento (ainda não inteiramente superado), a temática rítmica foi
dominada pela controvérsia mensuralista, isto é, pelo problema de saber se o gregoriano, à
semelhança da música moderna (entenda-se, a música do século XIX), se encontra
submetido ou não a esquemas rígidos de divisão rítmica, que se sucedem ao longo da
melodia de modo fixo, medido. Muitas foram as propostas desenvolvidas nesta linha151.
Outra foi, porém a via que acabou por se impor: o gregoriano não se inclui no
ritmo mensurado, antes apresenta uma estrutura rítmica livre, embora baseada numa
unidade elementar tendencialmente isócrona (equalismo).
Neste contexto, merecem particular referência duas teorias rítmicas: a teoria do ritmo
oratório, primeiramente esboçada por Augustin Gonthier, mas aperfeiçoada por D. Joseph
Pothier; e a teoria do ritmo livre musical, também conhecida por método de Solesmes, devida a D.
André Mocquereau e que conheceu amplíssima difusão, a ponto de constituir, durante
largas décadas, a metodologia dominante no panorama internacional.
150 Propostas que partem do pressuposto de que é possível determinar critérios de ordenação rítmica. Céptico
a tal propósito, cf. W. APPEL, Il canto gregoriano, pp. 169 ss.: «é de certo modo exagerada a importância
atribuída à questão do ritmo. Os numerosos esforços feitos nesta direcção aparecem-me como respostas a um
problema que na realidade nunca existiu. Não quero dizer com isto que o canto gregoriano não tenha um
ritmo. Todavia, o seu ritmo não é regulado por um sistema rítmico preordenado, vale por dizer, por uma série
de regras claramente formuladas e aplicadas sistematicamente, regras que estabeleçam seja a duração das
notas, seja outras particularidades atinentes ao ritmo no seu sentido mais geral».
151 Entre tantas, recorde-se a tese de HOUDARD, Le rythme du chant grégorien, 1898, que sustentou a redução de
todas as figuras neumáticas a um valor fixo equivalente à moderna semínima, assim, cada ponto ou a virga
valeriam uma semínima, cada nota do pés valeria uma colcheia etc. Para mais informações sobre as correntes
mensuralistas, v., por todos, W. APPEL, Il canto gregoriano, pp. 172 ss.
152 A. GONTHIER, Metodo ragionato di canto piano, p. 46. Antes, Gonthier definira o cantochão como «uma
recitação em música cujas notas têm um valor indeterminado e cujo ritmo, essencialmente livre, é o ritmo do
discurso» (p. 37). Uma recitação bem ritmada em que consiste? Responde o autor: «em dar a cada sílaba o
som e o valor que lhe pertencem, a cada palavra o acento que lhe é próprio, a cada período a distinção dos
membros que a compõem, por meio de uma pausa regular no movimento da recitação» (p. 38).
ritmo – ritmo por natureza livre, não regular –, e que se exprime numa ideia de proporção
entre as distintas partes desse mesmo discurso153, emana das próprias leis que presidem à
oratória, designadamente do valor específico dos acentos tónicos e das articulações discursivas.
A sua aplicação prática não se condensa em regras fixas mas afere-se «pelo sentimento
íntimo de que o ouvido é critério». Assim, o canto gregoriano, nos contextos silábicos e
semi-ornados, deve cantar-se como uma leitura inteligente, em que tanto as notas como as
sílabas possuem um valor indeterminado, pois o ritmo musical confunde-se e molda-se no
ritmo oratório ou do discurso, sobretudo no começo e no fim das divisões, sem se
pretender quanto às partes restantes da melodia uma «perfeição rítmica supérflua»154.
Como principais meios auxiliares da interpretação rítmica, a notação quadrada
concebida por Pothier (e que veio a ser acolhida pela edição típica da Santa Sé) oferecia as
barras, autênticos sinais de pontuação a assinalar as várias articulações do discurso verbal-
melódico, o agrupamento dos neumas155 e o espaçamento entre as figuras (as chamadas
brancas da edição Vaticana), indicativo da mora vocis.
Fig. 74
104
2. 1 Como se referiu já, a teoria rítmica que maior difusão conheceu ficou a dever-
se ao monge beneditino André Mocquereau157 (1849-1930). Discípulo e colaborador
153 J. POTHIER, Les mélodies grégoriennes, 1880, p. 178: «La proportion entre les divisions constitue le rythme».
154 J. POTHIER, Les mélodies grégoriennes, 1880, p. 190.
155 A primeira nota de cada neuma seria ritmicamente relevante.
156 Graduale Romanum, 1908, p. XII. Para uma exposição do funcionamento das regras, v. D. JOHNER, A New
School of Gregorian Chant, 5.ª ed., 1925, pp. 40 ss. Uma recente revalorização da Edição Vaticana de 1908 e da
interpretação rítmica de Pothier pode ver-se em OSTROWSKI, J., «How to Read the Vatican Gradual», 135
Sacred Music (2008), pp. 21 ss.
157 D. Mocquereau lega à história da cultura e da música uma obra de superlativo valor, que se desdobra por
múltiplos domínios. A focalização na questão rítmica, um dos aspectos mais famosos (mas mais contestados)
do seu ensino, tem obscurecido outros planos em que rasgou caminhos que o passar do tempo revelaria
fecundos. Assim, não podemos esquecer o seu trabalho pioneiro e iluminante na investigação paleográfica
sobre os mais antigos manuscritos medievais, cuja publicação fac-similada promoveu, e que está na base dos
estudos semiológicos posteriores e da própria edição crítica do Graduale, iniciada já bem depois da sua morte
mas que recolheria as lições do seu ensinamento. Aliás, é a preocupação para aproximar a notação quadrada
das subtilezas da escrita adiastemática que está subjacente às edições rítmicas. Para uma análise dos diversos
aspectos da obra científica de D. Mocquereau, v. J. CLAIRE, «Dom André Mocquereau cinquante ans après sa
mort», Études grégoriennes XIX (1980), pp. 3 ss.
que o pudesse obscurecer, como o texto e a melodia, que só mais tarde entrarão na análise, já depois de
determinados os mecanismos do movimento rítmico nos diversos patamares em que se projecta. Mas a
pergunta surge de imediato: existirá esse mecanismo abstracto do ritmo? E ainda que existisse, servirá a sua
identificação para o canto gregoriano, quando o próprio Mocquereau reconhece que «la parole chantée ou
parlée est une matiére moins souple, moins docile. Les mots résistent parfois au Rythme, ou, du moins,
imposent quelques limites à son empire» (ob. cit., n.º 22, p. 32). Ora o canto gregoriano é isso mesmo: palavra
a que o canto amplifica as ressonâncias fonéticas e expressivas, refractárias a esquemas rígidos. Como a
prática da aplicação rígida e acrítica do método de Solesmes viria a evidenciar, porém, muitas vezes para dar
cumprimento às leis aprioristicamente definidas do ritmo em si mesmo, torna-se necessário sacrificar a
palavra.
163 Continua-se a privilegiar a elaboração teórica devida ao próprio Mocquereau, embora se tenham em conta
catedral de Burgos tem trinta metros de altura /e as pupilas dos meus olhos dois milímetros de abertura. /
Olha a catedral de Burgos com trinta metros de altura!»
165 Assim, também, E. CARDINE, Primo anno di canto gregoriano, p. 30-1.
166 A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 54, p. 42: «Nous possédons en nous-mêmes le Rythme à
l’état vivant».
167 A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 17, p. 30, n.º 21, p. 31: «Le Rythme est l’ordonnance du
movement».
Fig. 75
107
Há que sublinhar que este isocronismo é apenas tendencial e não matemático. Quer
a nível do texto, em que as sílabas não apresentam todas a mesma duração, quer a nível da
música existem nuances.
Veni, Domine.
Non confundentur.
Filii Tui.
168 A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 78, p. 52: «Ce mouvement unique avec son début et sa fin
son élan et son repos, est l’élément essentiel et en même temps le moins matériel du rythme […]. Il est la forme,
l’âme du rythme; il est le rythme lui-même».
169 Sobre esta terminologia, usada na antiguidade grega para descrever o movimento na dança (elevação: arsis;
deposição: thesis) e, por extensão, na poesia e música, cf. a explicação de A. MOCQUEREAU, Le nombre musical
grégorien, I, n.º 169 ss., p. 101 s.
170 A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 33, p. 37: «Le temps simple y est indivisible».
Nos três casos, é igual o número de sílabas (5), mas basta proferir as três locuções para
notarmos que a sua duração não é idêntica. Também no plano musical, são possíveis subtis
diferenciações de movimento, decorrentes não só do contexto silábico mas do sentido
global do texto literário e melódico – são as diferenciações da agógica171.
171 D. Mocquereau refere neste sentido que o tempo simples pode, em certos contextos, ser reduzido
(condensado) e, noutros contextos, ser alargado, embora sem ocupar o espaço de dois tempos (Le nombre
musical grégorien, I, n.º 34 e 35, p. 37.
172 A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 37, p. 38. Porém, admite a título excepcional (uma
excepção que, ao que parece foi suprimida pelos partidários do método) que «dans le cours d’une phrase
quatre notes ou temps peuvent être condenses en trois temps» (ob. cit., n.º 44, p. 40).
173 Cf. A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 85 e ss, pp. 55 ss.
174 A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 71, p. 49.
b) todos os pressus;
c) as notas alongadas pelo oriscus
3.º - a primeira nota dos neumas, excepto se for precedida ou seguida imediatamente de
uma nota que haja recebido o episema vertical;
4.º - a virga culminante dos grupos melódicos, quer se encontre no meio quer no fim
desses grupos175.
Note-se que a aplicação destas regras pode não providenciar todos os íctus, isto é, a
distância entre dois íctus pode exceder os da divisão binária ou ternária. Neste caso, a
determinação do íctus faz-se por dedução: a partir de um íctus já claramente determinado
retrocede-se, consoante o contexto, dois ou três tempos simples.
Há que insistir num ponto, fulcral para esta metodologia: a nota que recebe o íctus
não é, ipso facto, mais intensa nem, necessariamente, mais demorada: as notas longas são por
norma ícticas mas nem todas as notas que recebem o íctus são obrigatoriamente longas.
O funcionamento das regras que presidem à colocação dos íctus dá origem, como
se referiu, a pequenas divisões, como que pequenos compassos de dois ou três tempos
simples (tempos compostos binários ou ternários) em que o primeiro tempo é dado pela
nota íctica, como se pode observar no exemplo seguinte.
Fig. 76
109
175 Nestes termos, A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 261 e ss., pp. 236-238. Note-se que estas
regras vieram a ser posteriormente complementadas (cf., p ex., os Praenotanda do Liber Usualis ou as Notions sur
la rythmique grégorienne (1944), de D. Gajard, em que já se refere como íctica a nota que precede o quilisma). Para
o enunciado standard das regras, nos quadros desta metodologia, veja-se a publicação do INSTITUTO
GREGORIANO DE PARIS, 1.º ano de canto gregoriano, Lisboa, 1960, p. 30, apud M. A. FRADE, Manual de Iniciação ao
Canto Gregoriano, p. 30.
Fig. 77
A determinação do carácter ársico ou tético das notas ícticas nem sempre é fácil,
dependendo da concorrência de múltiplos factores, de modo particular da melodia176. De
todo o modo, vejamos dois exemplos:
Fig. 78
110
176 Cf. A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 141, p. 82-3. Mas o apelo à melodia,
intencionalmente deixada na obscuridade na descrição da ordem rítmica, não revela que, afinal, essa ordem
abstracta e desencarnada não pode, por si, só oferecer a chave-de-leitura do movimento?
realidade vital que é o gregoriano (canto, texto e música em integração), um esquema válido
para todas as formas musicais, constitui a maior fragilidade da doutrina de Mocquereau,
sobretudo quando, na prática pedagógica sucessiva, progressivamente mais redutora, se
quis forçar todo o repertório à métrica binária e ternária, no enclausurante quadriculado
dos íctus, ainda que à custa do sentido do texto177 ou da forma musical178.
Talvez por isso, muito do que de fecundo se oferece no segundo volume do seu Le
Nombre Musical, publicado em 1927, não tenha tido a devida ressonância. Nesta obra,
Mocquereau retoma o texto, que havia ficado silenciado no afã de identificar os mecanismos
da rítmica natural. Na sua metódica, este correspondia ao último estádio da análise: o nível
da palavra – quer no plano da constituição fonética179 da palavra isolada e do relevo do
acento180 (“alma da palavra”), quer o nível da palavra encadeada em unidades superiores
(inciso, membro, frase); quer o nível, por fim, da palavra cantada, ou seja, revestida pela
melodia). É inviável resumir aqui a vastidão de aspectos abordados neste patamar.
Focamos dois pontos apenas, aqueles que, em nosso entender, maior valia apresentam
ainda hoje, por se reportarem directamente ao fundamento originário do gregoriano: a
palavra-canto.
A melodia gregoriana não é música pura, mas sim e sempre canto, música e texto.
Este último, aliás, é quase sempre anterior à melodia que a ele se une. Ora, o próprio texto
literário apresenta também um ritmo próprio, que lhe confere sentido e, em tantos casos,
beleza e arte (pense-se na poesia). Numa simples leitura, caso o ritmo específico não seja
respeitado, o texto torna-se algaraviada, ruído que enerva ou entedia.
Os textos usados no canto gregoriano apresentam extensões variadas, podendo ser
integrados por diversas secções que se articulam entre si, assinaladas no plano gráfico pelos 111
sinais de pontuação e na leitura pela entoação, pausas, inflexões, etc.
Regra geral, existe uma simbiose muito perfeita entre o ritmo verbal e o ritmo
musical: a melodia acompanha o texto, assinalando as suas subdivisões, as hierarquias e
conexões entre os distintos elementos, quer dando realce, a nível da palavra, à sílaba tónica
177 O que se vem de dizer não significa esquecer que a música tem as suas leis próprias e que o texto não haja,
em muitas situações, de se acomodar à linha melódica. Só neste sentido, porém, se pode invocar o famoso
aforisma medieval que os partidários dos esquemas rítmicos tanto gostam de citar em seu favor: musica non
subjacet regula Donati: a música não está subordinada às regras da gramática (assim, como se compreenderá, o
próprio Mocquereau, ao estudar as relações entre o texto e a melodia; cf. A. MOCQUEREAU, Le nombre musical
grégorien, II, 1927, n.º 378 ss., p. 277). Porém, a música não é apenas ou não é sequer esquema rítmico: é
melodia, é timbre, é dinâmica, é acústica. E no canto gregoriano é, ainda e sobretudo, palavra, sílabas e
sentidos, oração e expressividade.
178 O próprio D. Mocquerau advertiu claramente contra esse perigo de uma asfixiante analítica. Cf. A.
MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, I, n.º 569, p. 417: «Plus souvent encore, dans certains traits ou
rapides ou lents, ces divisions secondaires [indicadas pelas notas ícticas] disparaissent entièrement, fondues
dans un legato ininterrompu, ne laissant que le sentiment de l’ondulation pleine et large de la phrase musicale.
Le touchement est alors si doux, si caressant, qu’il demeure impondérable, plus spirituel que matériel: le
sentiment intérieur est seul à pouvoir s’en rendre compte, quand il veut en prendre conscience; ce qui
d’ailleurs n’est pás nécessaire». Também o ensino escrito (e a direcção coral) de D. Gajard, principal obreiro
da difusão do método de Solesmes, não esquece as reservas necessárias em face de uma aplicação mecânica
dos esquemas rítmicos. Entre outros exemplos, podemos ler na La Méthode de Solesmes, 1951, p. 78: «nas
passagens melismáticas […] será temerário afirmar que os neumas tenham por eles mesmos um carácter
rítmico e que a primeira nota de cada um dos neumas indique forçosamente o ictus rítmico». Aliás, esta sagesse,
arredada infelizmente de uma escolástica imobilista que, no entanto, se reivindica da lição destes Mestres, está
bem presente no plano daquela obra, em que a rigidez das «regras da técnica» é corrigida e temperada pela
souplesse das «regras do estilo», já para não referir os exemplos gravados pelo coro de S. Pedro de Solesmes sob
a direcção do próprio Gajard que não replicam por inteiro os esquemas usuais no método solesmense.
179 A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, II, n.º 39 ss., pp. 59 ss: «les syllabes».
180 A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, II, n.º 73 ss., pp. 86 ss.: «le mot latin isolé».
(princípio vital da palavra) e à sílaba final (que a completa e confere sentido pleno), quer
assinalando as diversas secções181.
Neste plano das divisões do texto verbal-melódico, podem autonomizar-se:
a) o inciso (marcado literariamente pela vírgula e musicalmente pela pequena barra: divisio
mínima): respiração facultativa, mas preferencialmente de omitir;
b) o membro (indicado no plano da grafia musical pela meia barra: divisio minor): respiração
facultativa;
c) a frase (assinalada pelo ponto final ou dois pontos e pela barra inteira: divisio maior):
pausa obrigatória.
d) o período (reúne duas ou mais frases; assinala-se pela barra dupla: divisio finalis): é o
termo da obra.
Fig. 79
112
A semente caiu na boa terra e deu fruto, ora cem ora sessenta por um.
Note-se, no entanto, que há textos pequenos que os planos coincidem e assim não
se poderem autonomizar incisos ou membros, pois a frase não é divisível.
Fig. 80
181Cf. A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, II, n.º 376 ss., p. 276, citando Hucbald: «a cantilena divide-
se da mesma maneira que o texto». Porém, logo reafirma a independência da melodia nas suas relações com o texto –
era a rítmica natural a reivindicar os seus “direitos”.
b) A linha intensiva
Fig. 81
113
Fig. 82
Frase
182 É interessante verificar que esses postulados representem afinal o culminar de algumas intuições
fundamentais que marcaram, como verdadeiras pedras angulares do edifício, todo processo de restauração
gregoriana.
183 Assim, L. AGUSTONI / J. B. GÖSCHL, Introduzione, p. 27. Esta obra constitui um exemplo cimeiro no
corresponde a uma fulgurante intuição de D. Guéranger e trave-mestra, não apenas da teoria do ritmo
oratório de Pothier, como, sobretudo, da prática diuturna do canto solesmense desde há 150 anos.
185 E. CARDINE, Primo anno di canto gregoriano, p. 30.
186 O acento constitui o “motor” da palavra, o seu princípio vital; na venerável formulação de Martianus
Capella (séc. V), ele é anima vocis. Sobre o acento latino e sua repercussão no gregoriano, veja-se, com interesse
e abundante riqueza de fontes, A. MOCQUEREAU, Le nombre musical grégorien, II,
187 Extensivamente, L. AGUSTONI / J. B. GÖSCHL, Introduzione, pp. 141. Mas recordem-se as judiciosas análises
dedicadas por D. Mocquereau ao problema do texto no II volume do Número Musical (cf. A. MOCQUEREAU,
Le nombre musical grégorien, II, n.º 39 ss., pp. 59 ss.).
188 Um caminho que continua a rota traçada de forma admirável por D. Mocquerau, que bem intuía os limites
beneditino Eugénio Cardine (1905-1988): «a interpretação tem lugar necessariamente para além e acima dos
“dados semiológicos”», pois a «semiologia não é um método para a interpretação» (E. CARDINE, «Semiology
and the Interpretation of Gregorian Chant», 108.1 Sacred Music (1981), p. 22, 23). No entanto, continua D.
Cardine, a semiologia marca os limites dentro dos quais cada um pode movimentar-se livremente.
190 J. GAJARD, Les plus belles mélodies grégoriennes, pp. 44 ss.
Fig. 83
Fig. 84
116
É patente uma certa semelhança entre os dois cantos que se deveria traduzir, então,
numa interpretação similar. Será que essa semelhança no «estilo gráfico» da notação
quadrada corresponde à versão originária?
Os manuscritos, recorda D. Gajard, mostram que não.
Fig. 85
117
Fig. 86
EXCURSO
119
Por quironomia (do grego –χειρ, mão, νόμος, regra) entende-se o conjunto de gestos
específicos usados na direcção do canto gregoriano. Como diz D. Gajard «a quironomia é a
tradução plástica do ritmo musical, a projecção no espaço do ritmo melódico»192. De modo a
preparar com rigor o traçado quironómico no espaço, isto é, realizando os gestos corporais que
indiquem aos cantores a estrutura rítmica da obra (o grande ritmo), o método que vimos expondo
enfatiza a necessidade de se desenhar a quironomia no papel, em conexão com a melodia.
Na Escola tradicional de Solesmes, a quironomia é construída sobre as articulações rítmicas
do discurso melódico: as notas ícticas, portadoras do movimento. Movimento que, como se referiu,
traduz uma ordem relacional entre dois pólos essenciais: o impulso ou ársis, e o repouso ou thesis.
Assim, depois de identificadas as notas ícticas e determinado o carácter ársico ou tético de cada um
dos íctus, desenha-se a quironomia, usando linhas onduladas que exprimem o movimento de
elevação e repouso constitutivos do ritmo.
Fig. 87 Fig. 88
191 Em profundidade sobre a quironomia solesmense, além do próprio D. Mocquereau (Le Nombre Musical
Grégorien, I, pp. 102 ss, e II, pp. 682 ss.), v. J. WARD, Gregorian Chant II, 1949, pp. 155 ss., J. R. CARROLL, The
Technique of Gregorian Chironomy, 1955, passim.
192 J. GAJARD, La méthode de Solesmes, p. 63.
Fig. 89
Fig. 90
Fig. 91
Segundo esta metodologia de direcção, quer a linha desenhada quer a linha que se traça no
espaço com as mãos devem observar com rigor os pontos de apoio rítmicos, o mesmo é dizer, os
íctus: eles ocupam sempre a posição relativamente mais baixa no desenho e no gesto. O traçado
quironómico há-de espelhar ainda o carácter ársico ou tético dos diferentes íctus, bem como a linha
intensiva (no papel, mediante um traço mais grosso; na direcção do coro, por meio de gesto mais
vigoroso).
Refira-se, por último, que, além de outras consequências de relevo, a quironomia
gregoriana, tal como a Escola de Solesmes a teorizou, e graças a um largo processo de ensino em
todo o mundo, contribuiu de modo decisivo para a difusão de uma forma similar de dirigir e de
cantar, de tal modo que coros preparados segundo este método poderiam ser dirigidos com
facilidade mesmo por directores com quem nunca houvessem ensaiado, tal como era possível
execuções corais de muitos cantores oriundos de coros e até países diferentes (em Paris, chegaram a
cantar em conjunto mais de 1000 cantores!), na medida em que a géstica era comum. Por outro
lado, a quironomia gregoriana é particularmente importante num dos mais conhecidos métodos de
ensino da música a crianças, o método Ward, do nome da sua criadora, Justine Ward.
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