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MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS: MODA, CULTURA E HISTÓRIA

Paula Campos de Castro 1


Virna Ligia Fernandes Braga 2

RESUMO

Este artigo tem como objetivo a análise do romance “Memórias Póstumas de Brás
Cubas”, escrito por Machado de Assis e publicado em 1881. Ressalta o universo
social das personagens e os padrões comportamentais existentes no Rio de Janeiro
do final dos oitocentos. Teoricamente, parte da perspectiva dos estudos culturais e
da história social, com destaque para a indumentária das personagens que integram
o romance em questão. O cenário é a cidade do Rio de Janeiro, na qual o autor
retratou o cotidiano da elite carioca do século XIX, marcada por valores tradicionais
e patriarcais. Desta forma, a literatura é utilizada neste artigo com a intenção de
possibilitar a compreensão de modos de vida específicos, os quais Machado de
Assis soube descrever como nenhum outro. Considerado um cânone da literatura
brasileira, as obras machadianas retratam o cotidiano da sociedade brasileira em
uma época na qual se fundem a tradição e a mudança.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura, História, Cultura, Moda.

INTRODUÇÃO

Como objeto principal deste artigo está a análise da obra ‘Memórias


Póstumas de Brás Cubas’, escrita por Machado de Assis. Optou-se pela utilização
da teoria de Raymond Williams como base para a reflexão aqui proposta:
compreender a sociedade patriarcal e hierarquizada do período, a fim de ressaltar os
aspectos relacionados à moda e à história do período.

1
Doutoranda do programa de Estudos Literários da UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora e
mestre em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (2012). Professora titular do Centro
Universitário Estácio de Juiz de Fora. Coordenadora do curso de Tecnologia em Design de Moda na
mesma universidade.
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Doutora em História pela UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora, tese defendida em outubro
de 2015; professora do Centro Universitário Estácio de Juiz de Fora.
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Os estudos desenvolvidos na década de 1950, por Raymond Williams,
trataram da complexidade da vida cultural e da necessidade de um novo vocabulário
e de uma nova maneira de trabalhá-la, dando um passo que levaria à reestruturação
dos estudos culturais. Williams afirma que:
(...) não devemos entender o processo de transformação em que
estamos envolvidos se nos limitarmos a pensar as revoluções
democrática, industrial e cultural como processos separados. Todo
nosso modo de vida, da forma de nossas comunidades à
organização e conteúdo da educação e da estrutura da família ao
estatuto das artes e do entretenimento, é profundamente afetado
pelo processo e pelo progresso e pela interação da democracia e da
indústria, e pela extensão das comunicações (WILLIAMS, 1969).

A análise de Williams divide os estudos da cultura em duas vertentes: de um


lado Leavis, defensor da noção de que “a vida urbana de uma sociedade industrial e
a democratização da educação e do acesso às artes iriam destruir a ideia de cultura”
(LEAVIS, 1943); e do outro lado T.S.Eliot, que afirma a cultura como um estilo de
vida (ELIOT, 2008). Para Leavis, a industrialização e sua consequente
transformação levariam à banalização da cultura. Como Leavis, Williams tem um
enorme respeito pela tradição cultural, contudo, acredita que esta deve estar
acessível ao maior número de pessoas possível.
Entretanto, Williams não defende a difusão da cultura de forma aleatória. O
autor questiona o poder dado a alguns indivíduos de decidir o que possui valor
cultural e propõe, ainda, a reapropriação desse poder para uso mais democrático.
Desta forma, ao compreender a cultura como “tudo que constitui a maneira de viver
de uma sociedade específica”, Williams inclui a valorização das grandes obras que
codificam esse modo de vida, mas também “as modificações históricas desse modo
de vida” (CEVASCO, 2008, p.51).
Um bom exemplo de como a literatura é capaz de codificar modos de vida
específicos se encontra nas obras de Machado de Assis. Considerado um cânone
da literatura brasileira e, por muitos, uma literatura dita de elite, Machado retratou
em suas obras o cotidiano da sociedade brasileira do século XIX, na qual estava
inserido. O romance Memórias póstumas de Brás Cubas foi inicialmente publicado
em folhetins para a “Revista Brasileira”, periódico de grande circulação na época,
permitindo que uma parte da população comum, considerada “menos
intelectualizada”, tivesse acesso à obra de Machado. Esta obra só se transformou
em livro um ano depois, em 1881.
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Observa-se nos textos machadianos um grande interesse pela crítica social,
sobretudo da sociedade carioca. Apesar de não ser uma crítica direta, ficam
subentendidas nas entrelinhas de seus textos as disputas por prestígio, poder e
ascensão social. Na construção de um imaginário em que a aristocracia brasileira é
vista, a um só tempo, pelo lado de fora e de dentro de suas entranhas, Machado de
Assis exibe uma classe nem sempre tão casta como proclamam outros escritores
contemporâneos a ele.
A obra Memórias póstumas de Brás Cubas apresenta uma perspectiva crítica
combinada à ironia presente em seu texto. Desta forma, Machado começou a por
em prática sua rejeição aos dois movimentos literários dominantes no Brasil na
segunda metade do século XIX: o Romantismo e o Realismo. O Brasil sempre foi
fortemente influenciado pela França, não só nas artes como também na literatura e,
a partir dos anos de 1870, dois movimentos passaram a fazer parte de sua
ideologia: o Realismo e o Naturalismo. Após 1880, porém, a transição do
Romantismo para o Realismo-Naturalismo ocorreu visivelmente no Brasil e as
primeiras obras desses dois últimos movimentos começaram a ser publicadas.
No ano em que publicou “Memórias”, Machado já considerava o Romantismo
acabado e já havia demonstrado sua oposição às limitações impostas pelo Realismo
nas produções literárias. Uma prova disso está na escolha do narrador. O fato de
Brás ser apresentado como defunto, logo no início da história, descarta qualquer
possibilidade de classificá-lo como um personagem realista. Outra característica que
exclui o narrador do Realismo é a falta de credibilidade a ele atribuída pelo autor, o
que leva o leitor a suspeitar de seu discurso. Esse fato extingue a possibilidade de
procurar uma abordagem objetiva, tão importante ao movimento Realista.

2 - SOBRE MEMÓRIAS...

Apesar de inovador e totalmente arrojado, o texto desfrutou de uma recepção


modesta na época de seu lançamento, pois o público, provavelmente, não
compreendeu o alcance de sua ousadia. Mesmo assim foi elogiado por alguns
intelectuais da época, afinal, Machado era já considerado o principal escritor
brasileiro após José de Alencar. Ao longo do romance “Memórias”, pode-se perceber
a ampla preocupação do autor com a história do Brasil e do mundo. Existem alguns

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trechos do livro que expressam bem essa preocupação, como em “Um episódio de
1814”, no qual o narrador nos conta sobre a queda de Napoleão Bonaparte:
Chegando ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de
Napoleão, houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas
nenhum chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo
público, julgaram mais decoroso o silêncio; alguns foram além e
bateram palmas. A população, cordialmente alegre, não regateou
demonstrações de afeto a real família; houve iluminações,
salvas, Te-Deum, cortejo e aclamações. Figurei nesses dias com um
espadim novo, que meu padrinho me dera no dia de Santo Antônio;
e, francamente, interessava-me mais o espadim do que a queda de
Bonaparte. Nunca me esqueci desse fenômeno (ASSIS, 2008, p.42).

Brás Cubas, segundo Regina Zilberman (2008, p.71) traça um paralelo entre
os fatos históricos, os acontecimentos políticos vividos pelo país e a história vivida
pelas personagens do romance. Porém, sempre sob a ótica da elite carioca. Através
da trajetória de Brás, demonstra sua concepção sobre a história nacional. Suas
memórias significam não apenas a eleição de uma narrativa autobiográfica, mas
uma história do Brasil contada sob o ponto de vista de um aristocrata que critica o
sistema político e econômico.
As críticas à escravidão estão mencionadas ao longo do texto, como, por
exemplo, quando mostra como tratava seu escravo na infância. Seu nome era
Prudêncio e era apena um moleque quando Brás o fazia de cavalo, punha-o de
quatro e subia em suas costas batendo com uma varinha e obrigando-o a dar
diversas voltas pela casa. Quando Prudêncio reclamava, resmungando, Brás
respondia asperamente: “Cala a boca, besta!” (ASSIS, 2008, p.38).
Memórias caracteriza perfeitamente a sociedade brasileira de meados do
século XIX: escravista, hierarquizada, patriarcal e patrimonialista. Fica claro que
Machado faz uso constante de mudanças históricas e sociais vivenciadas em sua
época como parte do contexto de suas narrativas. O lugar da mulher, do escravo,
dos pobres e da própria elite, é bem definido e inserido no relato da sociedade dos
oitocentos.
Os papéis do homem e da mulher, bem como os direitos de cada sexo,
estavam subentendidos em seu gênero. Uma mulher criada nesta sociedade,
comandada por coronéis e grandes latifundiários, não podia mesmo ter liberdade de
ir e vir como bem quisesse. Os alicerces desse sistema, do século XVI ao XIX,

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reproduziram uma hierarquia social sustentada por homens, por prestigio e também
pela posse de bens materiais. Nem atividades econômicas que criavam uma
dinâmica social mais diversificada, como a pecuária e a mineração, foram capazes
de romper com o estigma escravocrata e a forte hierarquização daquela sociedade.
A vinda da corte portuguesa para o Brasil em 1808 trouxe mudanças
significativas: construção de fábricas, estradas, escolas. D. João VI se interessou em
“civilizar” o Brasil. Sua meta era promover as artes, a cultura, e tentar infundir algum
traço de refinamento e bom gosto nos hábitos atrasados da colônia (VAINFAS,
2002). A maior iniciativa foi a contratação, em 1816, da Missão Artística Francesa.
Tratou-se de uma missão cujo objetivo era a criação de uma academia de artes e
ciências no Brasil. O país sofreu grande influência francesa em diversos aspectos
culturais durante todo o século XIX, servindo de referência na moda, nas artes,
costumes e literatura.
Nessa época, alguns costumes se tornaram comuns para a elite brasileira
como saraus, bailes, teatros e cafés que passaram a ser frequentados não só pelos
homens, mas também pelas mulheres que começaram a usufruir de certa liberdade.
Isso, porém, lhes trouxe uma maior vigilância, agora não só o marido e o pai
tomavam-lhe conta, seus passos eram vigiados por toda a sociedade, obrigando-a a
aprender a comportar-se em público.
Eram comuns, nessa época, casamentos realizados entre membros de
famílias tradicionais e de famílias consideradas “em ascensão”, um tipo de
“burguesia” iniciante composta por comerciantes, joalheiros, banqueiros, entre
outros. Tal ato corroborava para a projeção social de alguns ou para conservar o
status de outros. As mulheres, após o casamento, tornavam-se figuras importantes
na família. A elas cabia o papel de ajudar a projetar socialmente o marido, portando-
se com discrição em bailes, teatros e cafés.
Os vestidos, joias e demais adornos das mulheres deviam variar e se mostrar
caros o suficiente para afirmar o status de sua família. O casamento era visto como
uma aliança política e econômica:
É certo que relatos dos cronistas, viajantes e historiadores do
período nos exibem um quadro em que a menina ou mulher
candidata ao casamento é extremamente bem cuidada, é trancafiada
nas casas etc. (...) Todavia, essa rigidez pode ser vista como o único
mecanismo existente para a manutenção do sistema de casamento,
que envolvia a um só tempo aliança política e econômica
(D’INCAO,2008, p.235).
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O controle e a intensa vigilância exercida sobre as mulheres era parte do
sistema mantido para garantir os contratos de casamento entre a “burguesia” e
aristocracia brasileira. Tratava-se de uma forma de manter o poder, o dinheiro e a
tradição nas mãos da elite. Apesar de todo esse controle, algumas mulheres
começaram a ter acesso à literatura. Refugiavam-se, assim, no interior dos
romances, fantasiando e desejando uma realidade diferente daquela que possuíam.
Em relação à moda, havia uma atenção especial para os cabelos nesse
período. Quando não estavam cobertos com chapéus, eram penteados de uma
forma bastante elaborada, às vezes acrescentava-se cabelo postiço, na forma
conhecida como “nó de Apolo”, preso no alto da cabeça e adornado com flores,
travessas que se possuíam pedras incrustadas e, algumas vezes, feitas de ouro. A
personagem Eugênia, “a flor da moita”, possuía um penteado de uma menina
ingênua e alheia às modas da cidade, como pode ser observado no seguinte trecho:
“A mãe arranjou-lhe uma das tranças do cabelo, cuja ponta se desmanchara”
(ASSIS, 2008, p.80).
Eugênia, criada por sua mãe no bairro da Tijuca, não frequentava a cidade e
não tinha, portanto, hábitos urbanos. O narrador tenta ressaltar seu lado meigo, puro
e sem luxos como na passagem abaixo:
Eugênia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por
minha causa, - se é que não andava muita vez assim. Nem as bichas
de ouro, que trazia na véspera, lhe pendiam agora das orelhas, duas
orelhas finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um simples
vestido branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao colo, em vez de
broche, um botão de madrepérola, e outro botão nos punhos,
fechando as mangas, e nem sombra de pulseira. Era isso no corpo;
não era outra coisa no espírito. Ideias claras, maneiras chás, certa
graça natural, um ar de senhora, e não sei se alguma outra coisa;
sim, a boca, exatamente a boca da mãe, a qual me lembrava o
episódio de 1814, e então dava-me ímpetos de glosar o mesmo mote
à filha... (ASSIS, 2008, p.84).

O fato narrado se passa por volta de 1830, nessa época já havia ocorrido uma
mudança na forma dos vestidos femininos, as cinturas mudaram de lugar,
abaixaram, voltaram para a posição normal e tornaram-se mais finas. Em
consequência, o espartilho voltou a ser parte essencial do guarda roupa feminino,
mesmo para as meninas. Pode-se perceber que Eugênia tinha hábitos mais simples
e um pouco ultrapassados, uma vez que essa mudança ocorrera próxima aos anos
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1822. Seu vestido, descrito por Machado, assemelha-se aos usados no início do
século, feito de cassa que era um tecido leve e, ligeiramente transparente, de
algodão ou linho, o que dava ao vestido uma semelhança às camisolas ou vestidos
da Era Vitoriana. Tal indumentária ajuda ao leitor imaginar Eugênia como uma moça
doce e com ares quase angelicais.
O mesmo não pode ser dito de Virgília, ambiciosa e manipuladora, possuía
características fúteis. Ela se importava excessivamente com as aparências, motivo
pelo qual trocara seu amor por Brás por um casamento promissor com Lobo Neves.
O texto abaixo exemplifica sua preocupação em apresentar-se sempre bem vestida
para as ocasiões, principalmente, as aparições em público:
Virgília bateu palmas, levantou-se, deu um beijo no filho, com um ar
de alegria pueril, que destoava muito da figura; depois perguntou se
o camarote era de boca ou do centro, consultou o marido, em voz
baixa, acerca da toilette que faria, da ópera que se cantava, e de não
sei que outras coisas (ASSIS, 200, p.127).

Vaidosa ao extremo, Virgília não foi capaz de abrir mão do conforto e


segurança que seu casamento lhe proporcionava para viver um grande amor com
Brás. Sem querer desfazer-se de sua boa vida chegou a convidar o amante a
acompanhar o marido em sua viagem para assumir um cargo político importante.
Virgília foi retratada com uma mulher forte e determinada, com grande poder de
persuasão. Conseguiu manipular o amante e o marido, com sua beleza e
magnetismo.
O narrador ressalta algumas características ao descrever-lhe a indumentária,
com no caso abaixo:
Via-a dali mesmo, reclinada no camarote, com os seus magníficos
braços nus, - os braços que eram meus, só meus - fascinando os
olhos de todos, com o vestido soberbo que havia de ter, o colo de
leite, os cabelos postos em bandós, à maneira do tempo, e os
brilhantes, menos luzidios que os olhos dela... Via-a assim, e doía-
me que a vissem outros (ASSIS, 200, p.128).

Virgília foi o grande amor de Brás, possuía qualidades que o narrador


admirava, além de pertencer a uma classe social alta. Frequentadora de teatros e
saraus sabia usar a indumentária como aliada para ressaltar sua beleza e auxiliá-la
em seu jogo de sedução. Apesar de todo recato das roupas durante o século XIX,
em ocasiões como essas os vestidos ganhavam decotes generosos e os braços
eram expostos. Esse era o jogo, cobertas com capas as mulheres mostravam partes

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do corpo como o colo e as curvas, em seus vestidos ajustados no tronco sobre os
espartilhos. Virgília usava esse recurso: “Ia de sege, velado o rosto, envolvido numa
espécie de mantéu, que lhe disfarçava as ondulações do talhe” (ASSIS, 200, p.145).
O mantéu era uma espécie de capa com colarinho, usada inicialmente pelos frades,
podendo também ser chamado de mantel.
O fato de cobrir-se poderia ser recato ou apenas descrição, afinal a
personagem levava uma vida dupla entre seu casamento e o caso com o narrador.
Esse recurso foi usado diversas vezes por Virgília, como quando seu marido, Lobo
Neves, lhe surpreendeu em sua alcova no secreto local de encontro extraconjugal.
“Dona Plácida foi buscar um espelho, abriu-o diante dela. Virgília punha o chapéu,
atava as fitas, arranjava os cabelos, falando ao marido, que não respondia nada”
(ASSIS, 2008, p.183).
Os chapéus faziam parte da indumentária feminina, acompanhando-as
durante o dia e, até mesmo, à noite. Ele era amarrado firmemente sobre o queixo,
conhecido como “chapéu tipo boneca, era baixo, com o formato de um balde de
carvão e dava a impressão de extremo recato” (LAVER, 2006, p.168). E essa
decência, tão bem adornada pelo chapéu, era o que a personagem pretendia
representar e assim convencer seu marido e as demais pessoas de sua absoluta
honestidade.

3 - MODA E HISTÓRIA

O século XIX pode ser considerado uma época em que as mulheres,


excetuando-se o decote para a noite, se cobriam excessivamente e o chapéu
boneca evitava até que seus rostos fossem vistos, exceto bem de frente. Os
vestidos, que no início do século eram de tecidos leves como a musselina, a
tarlatana e o organdi passaram, por volta de 1830, a serem confeccionados em
tecidos mais pesados como o veludo, a seda adamascada, os brocados, os tafetás,
o cetim e o gorgurão. As damas de “posses” substituíram os vestidos brancos por
coloridos, principalmente em ocasiões festivas.
Segundo Gilda de Mello e Souza (1987): “O esquema cromático se apura, as
cores vivas sendo mais apropriadas aos trajes de jantar, e as claras – rosa, limão,
azul – ao baile e à Ópera” (p. 68). Virgília sabia como ninguém usar a moda a seu

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favor ora para embelezar-se, ora para parecer elegante e, ainda, para mostrar-se
inserida nos padrões morais e sociais da época.
A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi
num baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e
ostentava as luzes o mesmo par de ombros de outro tempo. Não era
a frescura da primeira idade; ao contrário, mas ainda estava formosa,
de uma formosura outoniça, realçada pela noite (ASSIS, 2008,
p.211).

Apesar de viver de acordo com os padrões da sociedade patriarcal, Virgília


conseguiu um título de nobreza e, através de sua vida dupla, conseguiu também
vivenciar seu amor com o narrador Brás Cubas. O título de marquesa obtido por
intermédio de seu marido, Lobo Neves, nos leva a levantar a hipótese da
personagem ter contribuído diretamente para a ascensão de seu cônjuge. No texto
fica clara sua forte influência sobre ele e sua grande ambição em conseguir um título
que garantisse visibilidade e reconhecimento social.
Outra personagem que merece atenção é Eulália, também conhecida como
Nhá-loló. Não era de família abastada, portanto, não lhe cabiam muitos recursos.
Segundo o narrador ela era muito bonita e graciosa, apesar de se esforçar para
parecer uma moça fina e de bons costumes “(...) faltava-lhe elegância, mas
compensava-a com os olhos, que eram soberbos e só tinham o defeito de se não
arrancarem de mim” (ASSIS, 2008, p.170).
Seu pai, que vislumbrava um futuro promissor para ela, não economizava
esforços para lhe proporcionar um guarda roupa a altura da esperança de um bom
casamento. Pode-se perceber esse esforço no trecho abaixo:
Realmente, não sei como lhes diga que não me senti mal, ao pé da
moça, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me
dava cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo casta e
redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta sutil, a saber,
que a natureza previu a vestidura humana, condição necessária ao
desenvolvimento da nossa espécie. A nudez habitual, dada a
multiplicação das obras e dos cuidados do indivíduo, tenderia a
embotar os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuário,
negaceando a natureza, aguça e atrai as vontades, ativa-as, reprodu-
las, e conseguintemente faz andar a civilização. Abençoado uso que
nos deu Otelo e os paquetes transatlânticos! Estou com vontade de
suprimir este capítulo. O declive é perigoso. Mas enfim eu escrevo as
minhas memórias e não as tuas, leitor pacato. Ao pé da graciosa
donzela, parecia-me tomado de uma sensação dupla e indefinível
(ASSIS, 2008, p.175).

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Foi um século de disseminação de novos espaços de sociabilidade burguesa
como teatro, óperas, saraus e bailes, tudo possibilitava as aparições públicas,
sobretudo das mulheres. Ximenes (2009) afirma que em meio a este cenário de fácil
disseminação da moda, “o vestuário se revelava, portanto, um incrível sinalizador de
posição social e diferenciação de sexo, mostrando que a moda opera sobre um tripé
de facetas: social, psicológica e estética”. As mulheres estavam em dupla prisão:
ficavam trancadas em um espaço privado e, também, em suas roupas, verdadeiras
embalagens de tortura, cujo exemplo mais significativo é a roupa interna, composta
por espartilhos e saiotes. Segundo Ximenes (2009): “O diálogo da mulher se fazia
pelas roupas e pelo código da sociedade patriarcal: ela precisa ser tola, impotente e
bela e, assim, se tornar o objeto máximo de consumo” (XIMENES, 2009.p.25).
A indumentária tem o poder de expressar e levar o leitor a construir uma
imagem, como reforçada por Brás, de uma personagem que era ao mesmo tempo
angelical, pura e casta. E, sutilmente, demonstrava sensualidade e instigava nos
homens, ao seu redor, os sentimentos mais eróticos. É importante mencionar que foi
através do toque do tecido do vestido de Eulália que Brás percebeu, com clareza, a
dualidade dos sentimentos e das percepções humanas.
Nesse esclarecimento, ele se assumiu hipócrita, ao citar as “cócegas de
Tartufo3”, pois dissimula suas sensações diante da sociedade. Ele também
dissimulou a valorização da castidade e fidelidade, mostrou-se moralista ao
recriminar seus desejos sensuais, como o que ele sentiu naquele momento. Aqui se
percebe o moralismo da época, que rejeitava a natureza humana, que a acusava de
perverter o homem, de levá-lo a pecar e exigia uma rigorosa moral. Tudo isso
impossibilitava que homens e mulheres pudessem exprimir seus anseios fisiológicos
e sexuais.
Segundo Gilda de Mello e Souza (1987, p.92) as mulheres dessa época
desenvolveram uma “curiosa técnica de avanços e recuos, de entregas parciais, um
se dar se negando, que é a essência da coquetterie’” Essa técnica de sedução era
uma aliada na conquista dos homens e a indumentária era utilizada como uma
importante ferramenta. Afinal, mesmo cobrindo quase que totalmente o corpo, as
mulheres eram capazes de evidenciar partes de sua anatomia que despertavam
desejo nos homens. Tem-se uma mostra de como isso ocorria no texto abaixo:

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Tartufo refere-se à hipocrisia ou falsidade religiosa.
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E se a roupa cobre conscientemente o corpo da mulher, nem por isso
deixa de acentuar-lhe as características sexuais, aumentando-lhe os
quadris, primeiro pela grande quantidade de anáguas, folhos e
babados, depois pela crinolina, contraindo-lhe a cintura para melhor
acentuar-lhe a pequenez através do contraste das mangas
excessivas. Ou transformando-a, com acréscimo da anquinha, numa
Vênus calipígia, monstruosa. O ritmo erótico, portanto, que consiste
em chamar a atenção, sucessivamente, para cada parte do corpo,
mantendo o instinto sexual sempre aceso, relaciona-se aqui,
principalmente, com a parte que a vestimenta acentua e não com a
que desnuda (SOUZA, 1987, p.93).

Além dos quadris e da cintura, o colo também foi muito usado pelas mulheres
nesse jogo de sedução. Os decotes, recurso usado por elas em seus vestidos de
noite, contribuía no processo de entregas parciais utilizados, sem ofender a moral e
os bons costumes. “Aliás, essa posse à distância, realizada pela vestimenta em
geral e muito particularmente pelo decote, foi talvez um dos mais poderosos
elementos de equilíbrio da sociedade daquele tempo” (SOUZA, 1987, p.95). Afinal,
funcionava para as mulheres de todas as classes sociais, principalmente nas festas,
saraus e teatros, onde toda mulher poderia brilhar a sua maneira, bastando para
isso usar o vestuário adequado.
Brás utilizou diversas vezes a indumentária para contribuir com sua narrativa,
quando queria mostrar as diversas classes sociais, como na situação em que, ao
lado de Nha-loló viu um aglomerado de homens apostando:
E vimos isto; homens de todas as idades, tamanhos e cores, uns em
mangas de camisa, outros de jaqueta, outros metidos em
sobrecasacas esfrangalhadas; atitudes diversas, uns de cócoras,
outros com as mãos apoiadas nos joelhos, estes sentados em
pedras, aqueles encostados ao muro, e todos com os olhos fixos no
centro, e as almas debruçadas das pupilas (ASSIS, 2008, p.202).

Tratava-se de homens de classe baixa, não apenas evidenciados pelas


sobrecasacas esfrangalhadas, que poderiam representar pessoas que tiveram seus
bens perdidos em apostas, mas também os “sem berço”. Homens do povo que não
possuíam preocupação e condições financeiras de se vestir conforme a moda da
época. As cores e a falta de peças fundamentais na indumentária, e até mesmo a
situação descrita foi usada para evidenciar a origem do pai da jovem que
acompanhava o narrador.

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Brás, ao contrário, fazia questão de mostrar que se trajava com muito apuro.
O que se percebe na passagem em que relata o furto do relógio “Meto a mão no
colete e não acho o relógio” (ASSIS, 2008, p.123). Constrói-se a imagem de um
homem bem alinhado e graciosamente trajado. Apesar de pouco se descrever, o
texto leva o leitor a formular a imagem de uma personagem bem vestida, elegante,
que seguia os padrões impostos pela cultura da época. Mesmo porque ele não era
muito audacioso. De certa forma, pode-se afirmar que ele sentia certo prazer em
deixar que a sociedade e as demais pessoas conduzissem sua existência.
Em Memórias póstumas, as personagens femininas ocupam papel de
destaque apesar de o protagonista ser do sexo masculino, um narrador. Camuflado
por uma falta de compromisso com a realidade, por se tratar de um defunto, o
mesmo se aproveita da ironia para tecer severas críticas a sociedade brasileira do
século XIX. Machado apresenta mulheres fortes, escondidas atrás de figuras
masculinas, constantemente manipuladas, como o caso de Virgília que, apesar do
sexo frágil, se revela uma mulher forte e altamente manipuladora. Talvez por ser a
única personagem que se igualava ao narrador, em sua classe social e riqueza, ela
é apresentada como a mais inteligente e capaz de se destacar na trama.
As demais mulheres da trama pertencem a outros segmentos da sociedade e
exemplificam o descaso com o qual o narrador as trata. Percebemos que era comum
nessa sociedade que homens da aristocracia ou da elite se relacionassem com
mulheres de outras classes, desde que de forma superficial e sem
responsabilidades. Elas eram usadas e abandonadas, enquanto às iguais propunha-
se o matrimônio. Esta é a lógica não só da narrativa, mas de todo o patriarcalismo
que dominava a sociedade e os costumes do século XIX.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À frente de sua época, Machado de Assis ainda pode ser considerado um


escritor contemporâneo. Com uma narrativa extremamente criativa e cheia de
detalhes, seus textos apresentam uma sociedade repleta de artifícios e artimanhas.
Retrata a realidade presente no Brasil do século XIX, porém apresentada através de
personagens caricatos que expressam bem o comportamento da época. Pode-se ter

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uma boa noção das características presentes na sociedade brasileira do final dos
oitocentos, sobretudo a aristocracia carioca, através de seus romances.
Em “Memórias póstumas de Brás Cubas” o escritor apresenta tais
características, isento de preocupações com a falsa moralidade, pois o narrador, um
morto, não se preocupa com suas palavras. Ele pôde se expressar livremente,
apresentar as demais personagens como elas eram ‘realmente’ e, principalmente,
expor seus valores sem hipocrisia.
De extrema importância, esse romance ficou conhecido como o que marcou
uma mudança significativa na carreira do autor. Determinou a ruptura de um
período, classificando suas obras em antes e depois de Memórias Póstumas de
Brás Cubas, o que causou uma grande polêmica entre os críticos literários. Realista
ou não, seu texto apresenta minuciosa descrição de lugares e pessoas, o que faz
com que o leitor se transporte para dentro da obra literária e tenha o prazer de
vivenciar um pouco da história do Brasil.
Além dessas considerações, importa ressaltar a contribuição machadiana
para a compreensão dos hábitos, costumes, códigos e representação sociais da
sociedade carioca. Seu texto permite que tenhamos uma ideia precisa de como as
roupas eram um meio fundamental de inserção social. O jogo das aparências e os
modos de viver da época, sob a perspectiva da moda, ganham contornos bem
definidos através de sua narrativa.

POSTHUMOUS MEMOIRS OF BRÁS CUBAS: FASHION, CULTURE AND


HISTORY

ABSTRACT

This article aims at an analysis of the novel "Posthumous Memories of Brás Cubas",
written by Machado de Assis and published in 1881. It highlights the social universe
of people and the behavioral patterns existing in Rio de Janeiro in the late nineteenth
century. Theoretically, part of the perspective of cultural studies and social history,
highlighting an indication of the people who make up the novel in question. The
scenery is a city of Rio de Janeiro, in which the author portrayed the daily life of the
Rio elite of the nineteenth century, marked by traditional and patriarchal values. In
this way, the literature is used in this article with an intention to make possible an
understanding of specific ways of life, which Machado de Assis could describe as no
other. Considered a canon of Brazilian literature, Machado's works portray the daily
life of Brazilian society at a time when a tradition and a change are founded.

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KEYWORDS: Literature, History, Culture, Fashion.

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