Artelogie 8422

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Artelogie

Recherche sur les arts, le patrimoine et la littérature de


l'Amérique latine 
1 | 2011
Brésil, questions sur le modernisme

Lima Barreto muito além dos cânones


Nádia Maria Weber Santos

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/artelogie/8422
DOI: 10.4000/artelogie.8422
ISSN: 2115-6395

Editora
Association ESCAL
 

Refêrencia eletrónica
Nádia Maria Weber Santos, «Lima Barreto muito além dos cânones», Artelogie [Online], 1 | 2011, posto
online no dia 01 março 2011, consultado o 07 janeiro 2022. URL: http://journals.openedition.org/
artelogie/8422 ; DOI: https://doi.org/10.4000/artelogie.8422

Este documento foi criado de forma automática no dia 7 janeiro 2022.

Association ESCAL
Lima Barreto muito além dos cânones 1

Lima Barreto muito além dos


cânones
Nádia Maria Weber Santos

"A literatura, portanto, fala ao historiador sobre a


história que não ocorreu, sobre as possibilidades
que não vingaram, sobre os planos que não se
concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém
sublime, dos homens que foram vencidos pelos
fatos.”
Nicolau Sevcenko, A literatura como missão
“Existe no fundo da mente de todo artista algo
como um modelo ou um tipo de arquitetura. É
algo como a paisagem de seus sonhos; o tipo de
mundo que ele gostaria de construir ou no qual
gostaria de vagar; a estranha flora e fauna de seu
próprio planeta secreto.”
Chesterton, apud SACKS, Oliver, “A paisagem de
seus sonhos”, Um antropólogo em marte"
1 A partir da leitura dos textos dos prefaciadores das obras completas (1956) de Lima
Barreto (1881-1922), de sua biografia escrita por Francisco de Assis Barbosa e de alguns
de seus escritos, discute-se o espaço da obra do escritor na literatura brasileira. Nunca
adaptado ao cânone literário de sua época e local, marginalizado socialmente, alcoolista
e duas vezes internado em hospital psiquiátrico, as imagens literárias construídas do
Brasil pelo escritor, em suas crônicas, escritos íntimos e romances, e na sua relação com
a confluente modernidade brasileira, extrapolam as nuances de sua vida comum
exposta como pano de fundo e dão lugar a uma das mais ricas obras literárias-críticas
da história da sociedade brasileira daquele momento.
2 É, também, através da relação da história com a literatura, que se tenta chegar mais
próximo das sensibilidades, idéias e sentimentos de um outro tempo, neste caso, de um
Brasil ainda jovem em termos de República, com uma vida cultural em turbulência –

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como em outros países do ocidente geográfico – conturbado socialmente e tendo cada


vez mais jovens escritores que se debruçavam sobre determinadas problemáticas da
nação. Os escritos de Lima, transitando por romances, sátiras, tragédias, críticas,
crônicas e depoimentos, mostram o quanto sua obra ficcional é viva e mescla-se com
sua vida real. Mas, também, o conjunto de sua obra transcende sua pessoalidade,
porque é simbólica e sensível ao momento histórico.
3 As obras de Lima Barreto foram publicadas em edição completa de 17 volumes pela
Editora Brasiliense em 1956. Os textos foram organizados e anotados sob a direção de
Francisco de Assis Barbosa, com a colaboração de Antonio Houaiss e M. Cavalcanti
Proença. Cada uma das obras é antecedida por um prefácio assinado pelos seguintes
autores: Francisco de Assis Barbosa (volume I – Romance: Recordações do escrivão
Isaías Caminha), M. Oliveira Lima (volume II – Romance: Triste fim de Policarpo
Quaresma), João Ribeiro (volume III – Romance: Numa e Ninfa), Alceu Amoroso Lima,
pseudônimo de Tristão de Ataíde (volume IV – Romance: Vida e morte de M.J. Gonzaga
de Sá), Sérgio Buarque de Holanda (volume V – Romance: Clara dos Anjos), Lúcia Miguel
Pereira (volume VI – Contos: Histórias e sonhos), Osmar Pimentel (volume VII – Sátira:
Os Bruzundangas), Olívio Montenegro (volume VIII – Sátira: Coisas do reino de Jambón),
Astrojildo Pereira (volume IX – Artigos: Bagatelas), Jackson de Figueiredo (volume X –
Artigos e crônicas: Feiras e mafuás), Antonio Houaiss (volume XI - Artigos e crônicas:
Vida urbana), Agripino Grieco (volume XII - Artigos e crônicas: Marginália), M.
Cavalcanti Proença (volume XIII – Crítica: Impressões de leitura), Gilberto Freyre
(volume XIV – Memórias: Diário Íntimo), Eugênio Gomes (volume XV – Memórias:
Cemitério dos Vivos, que inclui Diário de Hospício), Antonio Noronha dos Santos
(volume XVI – Correspondência: volume I) e B. Quadros, pseudônimo de Antônio
Noronha dos Santos (volume XVII - Correspondência: volume II). 1
4 Estes prefácios, dada a importância de seus autores e de suas colaborações no âmbito da
história e da cultura brasileira, servem não como uma biografia, mas como um
autêntico suporte de crítica literária para a obra deste “escritor boêmio”. Porém, o que
vemos nestes prefácios não são posições unívocas e sim pontos de vistas que algumas
vezes dão as mãos ao paradigma modernista de 1922 (e o declaram pré-modernista) e
outras reconhecem, em Lima, um literato inserido no cerne das transformações que
estão ocorrendo na cultura brasileira daquele período como um todo. 2
5 Parte-se de uma indagação: como e por que as obras de Lima Barreto foram
‘descobertas’ e aplaudidas apenas em um período mais tardio da modernidade literária
no Brasil, mais de 30 anos após sua morte ? Problemas e questões editoriais à parte, os
leitores verão que este questionamento é pertinente ao contexto das letras brasileiras.
6 Dizemos junto com Sevcenko que os dois trabalhos – obras completas de 1956 e a
biografia de 1952, vinda a público alguns anos antes da edição das obras completas, pela
escrita de Francisco de Assis Barbosa, futuro organizador das obras – não só
reavaliaram a posição do escritor na historia literária do país, como projetaram para o
primeiro plano um período até então relativamente obscuro e que se revelaria decisivo
para a compreensão do Brasil contemporâneo É de um artigo de jornal, de autoria de
Nicolau Sevcenko, que retiramos a melhor análise lida até então, resumida, sobre a
“descoberta” das obras e da vida literária de Lima Barreto, bem como do surgimento,
naquela época tardia da modernidade brasileira, de sua biografia. Além de reproduzir a
crítica de Tristão de Ataíde, um dos prefaciadores, Sevcenko, ele historiciza um pouco
do processo desafiador que constituiu esta empreitada, assumindo o mesmo ponto de

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vista que temos em nossa pesquisa. Ou seja, Lima Barreto, ao produzir uma das mais
raras e profundas percepções da realidade social brasileira vista de baixo para cima,
julgando os poderosos pela indignação dos injustiçados, pagou um preço alto por isso
naquela época, pois a elite letrada cercou a força de sua obra com uma muralha de
silêncio por um longo tempo.3
7 Também é na vertente do pensamento de Monica Pimenta Velloso que inserimos o
debate deste artigo, ao utilizarmos a noção de ‘brasilidade modernista’ como um
processo multifacetado e polissêmico. Em sua obra “História & Modernismo”, a autora
inicia fazendo uma diferenciação entre os termos Moderno, Modernismo e
Modernidade4, importante ao mote deste trabalho. Embora assumam um caráter
fronteiriço, são diferentes em sua gênese e em sua aplicação. Iniciando por apresentar o
termo moderno, “transitório por natureza”, pois é aquilo que existe no momento, ela faz
uma verdadeira historicização desta noção, não permitindo que nos atenhamos a
épocas específicas como marcos divisórios.
8 Ao dizer “ao eleger o século XVIII como marco do moderno, corre-se o risco de desqualificar as
experiências que marcaram os séculos XVI e XVII”, a historiadora assume como
simplificadora a idéia da historiografia do moderno que associa esse período com a
figura de Baudelaire como sendo arauto verdadeiro da modernidade – porque “se perde
de vista a dinâmica de um processo que já estava em curso”, pois ele próprio dialogou
com um corpo de tradições intelectuais que o antecederam. Mesmo assim, deve-se
constatar que foi de Baudelaire o mérito de ter conferido à palavra modernité o seu
sentido definitivo: “percebeu-a como mediação entre duas percepções”.
9 Diz ainda Velloso: “A modernidade é passado/presente, integrando novidade e curiosidade à
celebração do antigo. Logo, o antigo deixara de ser configurado como exemplo, modelo e
paradigma, para transfigurar-se na historicidade do presente. A cosmovisão de modernité
ocasionou, portanto, a constituição de uma dualidade, porém uma dualidade que se definia como
harmonia.”5
10 Não podendo aprofundar todas estas questões expostas acima neste momento, ressalto
que a noção, trazida por Velloso, de processo, de períodos que não são estanques, é
importante para localizarmos Lima Barreto (1881-1922) no cenário intelectual
brasileiro. Ele foi um moderno do seu tempo… para além dos cânones… Ele encontrava
em sua experiência marginal, em sua sensibilidade de escritor e, não menos
importante, nas ruas do Rio de Janeiro, uma forma de expor o momento social, cultural,
político e econômico pelo qual passava o Brasil. Era um momento de passagem, uma
transição, que anos depois seria pensado, também, a partir de suas obras. Sua vida,
marcada por sentimentos de profunda solidão e de exclusão, foi matéria prima para
seus escritos, não obstante o literato tenha extrapolado estes sentimentos para dar
forma a uma forte obra literária. Lima insurgiu-se contra a ordem estabelecida nos
cânones literários e contra o cerceamento da liberdade na sociedade carioca que se
modernizava rapidamente. É deste Lima Barreto que falaremos neste artigo.
11 Gilberto Freyre, que prefacia o Diário Íntimo, afirma que Lima ressentia-se de ser mulato,
ou quase negro, como algumas vezes dizia: “Era assim um desajustado, a sofrer constante e
intensamente de seu desajustamento de mulato pobre”. Para ele, Lima foi obrigado, pela sua
condição econômica, a ser, em grande parte, sociologicamente, um homem de cor. Por
ser pobre, não teve oportunidade de transformar-se em mulato sociologicamente
branco como, na mesma época, “o igualmente negróide evidente” – embora bem mais claro

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de pele do que Barreto – Machado de Assis, ou mesmo como o quase negro Juliano
Moreira, “médico ilustre casado com alemã branquíssima”.6
12 Esta impressão analítica de Freyre é corroborada por muitos críticos da época, bem
como pelas próprias narrativas de Lima em várias passagens de sua obra, aliás, em
muitas delas (como em seus diários, por exemplo). Neste prefácio, ainda, o sociólogo
evoca a memória do autor, descendente de escravos e negros africanos, fazendo justiça:
justiça intelectual. A este “homem de sensibilidade quase de moça”, diz ele, faltou a certeza de
possuir inteligência excepcional e mesmo de gênio. Certo de que Lima assim queria, “ser
inteligente muito e muito !”.7
13 Mas, a outra impressão que se tem, ao ler sua obra, é que todos estes fatos foram, além
de marcantes, matéria-prima para a literatura de ficção de Lima Barreto. Suas obras são
simbólicas e exprimem sensibilidade, como já se disse. Porém, enquanto ainda vivia,
elas foram duramente criticadas por ser uma ’literatura autobiográfica’, onde, em cada
um de seus romances, diziam os críticos, seus personagens representavam verdadeiras
partes de sua personalidade, ou ainda, a imagem de seu pai – em Recordações do escrivão
Isaías Caminha ou Triste fim de Policarpo Quaresma, só para citar os mais conhecidos e
polêmicos na época. Seriam, também, aos olhos desses mesmos críticos, ’romances-
catarses’, onde o lado pessoal de sua crítica a vários setores da sociedade surgia em
detrimento da ’arte de criar’.
14 Alguns críticos foram mais amenos em suas análises, muitos entendiam os dois aspectos
da obra (catarse e criatividade) e outros foram radicais em tornar com valor negativo o
aspecto “confessional” da obra.
15 Olívio Montenegro, prefaciador de Coisas do Reino de Jambon, refere que LB foi o escritor
brasileiro que mais olhou a si - mesmo para escrever. “Desigual e híbrida como possa
parecer sua obra, nela o traço pessoal e íntimo é o que toma mais vulto.” 8 E, segundo o crítico,
Lima não foi um autor popular, em seu tempo, como exceção à regra daqueles que
gritam e atingem a alma do povo. Mas, foi no romance, “o gênero mais atraente da
ficção”, onde seu espírito de revolta se exerceu com maior liberdade.
16 Para alguns destes, a criatividade aconteceria, somente, no âmbito da ficção, jamais
podendo ter esta uma âncora na realidade. Seja uma realidade pessoal, seja a realidade
coletiva, de uma nação, por exemplo.
17 Escreveu Eugênio Gomes, no prefácio da edição de O Cemitério dos Vivos, que em seus
romances à clef, como Recordações do Escrivão Isaías Caminha, “no qual vinga
asperamente as suas humilhações em contacto com os meios jornalísticos” e, Numa e Ninfa,
“destinado a fixar a comédia política numa das épocas mais curiosas da vida republicana em
nosso país”, o humor satírico de Lima Barreto deriva para o lado pessoal, com o sacrifício
da criação literária.9
18 O que realmente, então, teriam dito sobre seu ’romance-memória’, Cemitério dos Vivos,
escrito exatamente com o intuito revelado de mostrar a vida dentro dos hospícios, por
onde ele passou ? Em entrevista a um jornal carioca, a qual consta em anexo nesta
referida obra, Lima Barreto fala sobre a escritura deste romance e refere que sua maior
ventura é a liberdade e afirma que o hospício é uma prisão como qualquer outra. 10
19 Tomando emprestadas novamente as palavras de Monica Velloso, ao se referir a Walter
Benjamin analisando Baudelaire, pode-se dizer que Lima “buscara reavivar a força da
experiência, da tradição e da memória em um mundo assolado pelo acúmulo de informações,

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sensações e velocidade”11, guardado as devidas diferenças de lugar e visão de mundo de


ambos. Ou seja, o contrário do que estes críticos acima diziam.
20 É na virada do século XIX para o XX – onde se instala com clareza a obra de L. Barreto –
que se situa o terceiro momento da genealogia histórica do moderno, conforme a
autora, acreditando-se que caberia às artes realizar a dupla tarefa de destruição e
construção – referindo-se às profundas transformações pelas quais o mundo passava
nesta época. “O Modernismo abrigou o conjunto de transformações sofridas no campo das artes
entre a década de 1870 e o início da Segunda Guerra, envolvendo toda a Europa e Estados Unidos.
Presenciando uma crise cultural sem precedentes, o movimento criou linguagens e expressões
artísticas que buscavam entender o caos social decorrente de uma mudança radical de
referências e padrões civilizatórios. Segundo a autora, a crise afetava, sobretudo, a auto-
configuração dos intelectuais e dos artistas.12
21 Ainda seguindo na corrente de idéias desta historiadora, o movimento modernista,
difundindo-se em muitos países do ocidente, conjugou fontes e tradições intelectuais
diversas, ocorreu em contextos e temporalidades distintos, transformando-se em
movimento estético e servindo para modificar o modo de pensar o mundo e ter
consciência sobre ele, transformando a própria compreensão da cultura.
22 Pensando a partir da faceta brasileira do chamado Modernismo, deixa-se de lado a
“paradigmática virada e ruptura” de 1922, para adequar-nos a esta noção de processo
multifacetado e polissêmico, num país de uma diversidade cultural enorme, de
influências externas variadas e de uma gama diversificada de intelectuais e escritores
dignos de altas notas, nacional e internacionalmente.13
23 Para a historiadora Velloso, a instauração do Modernismo compreende um longo
trajeto feito de avanços e recuos, lampejos inovadores e gestos de contenção, ação
laboriosa de leitura das tradições e adesões apaixonadas. “Desde a virada do século XIX, no
conjunto da produção artístico-literária nacional, são claros os “sinais de modernidade”. Ao
questionarmos a memória canônica, a visão hierárquica das artes e dos saberes, entendendo que
cada um deles forja juízos de valores específicos contribuindo de formas, também específicas,
para a constituição do moderno, abriu-se novas possibilidades para pensar a vida social”. 14
24 Monica Velloso, no capítulo em que discute a “busca pela brasilidade modernista”,
finaliza-o dizendo que as vozes de Gilberto Freyre, Mário de Andrade e Carlos
Drummond de Andrade, de formas distintas, ressaltaram a fraternidade, a simplicidade
e a cotidianidade como valores presentes na brasilidade. E que esta visão de moderno
ganhou, no Rio de Janeiro, traços marcantes e inconfundíveis. Mas, como capital, esta
cidade apresentava particularidades que marcaram seu processo de modernização:
existindo um abismo entre o Estado e a sociedade como um todo, as elites políticas
mostraram-se incapazes de integrar as camadas mais populares. Como diz a autora, foi
uma experiência de modernidade forjada pela exclusão social, onde uma espécie de
pacto não escrito regia as relações: “o governo negava a participação do cidadão nos negócios
públicos, em contrapartida era vetada a ingerência pública na vida doméstica”. 15
25 A proposta civilizatória não se fez acompanhar da extensão das práticas democráticas.
Identificadas com valores da cultura européia, as elites negavam as origens mestiças da
nacionalidade, reforçando-se os mecanismos de diferenciação. É neste quadro que se
inserem os intelectuais boêmios. Parte expressiva do grupo tendeu a aliar-se às
camadas populares, compartilhando sentimentos de rebeldia e exclusão. Afirma
Velloso, que a cultura modernista no Rio é indissociável da ação do grupo de
intelectuais boêmios, predominando crítica mordaz e humor, em caricaturas e crônicas,

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principalmente. Porém, não foi um grupo homogêneo e unívoco, mas todos fizeram
“barulho” nos meios cariocas da crítica, da literatura e do humor. 16
26 Olhando-se para a expressão/noção “brasilidade modernista” 17, obtém-se a “deixa”
para adentrar no palco da obra de Lima Barreto, no teatro de seus personagens, em sua
sensibilidade literária, e pensá-la em relação a este polissêmico processo
estético‑cultural brasileiro. O modernismo no qual se inserem os escritos de Lima
Barreto é resultante de um processo histórico em que se combinavam as mais distintas
tradições, espaços, temporalidades, atores e configurações. Aqui, sua literatura deixa de
ser rotulada como “pré-modernista” e passa a fazer parte deste extenso e heterogêneo
processo de transformação da cultura brasileira desde os finais do século XIX,
agregando novos valores culturais, sensibilidades e, por que não, ambivalências e
paradoxos. Curiosamente, foi em 1922 que Lima Barreto morreu. Isto é, no mínimo,
enquanto representação, paradoxal.
27 Poder-se-ia dizer, talvez ainda, que Lima Barreto é fora de época, ou um extemporâneo,
se pensar-se em cânones; porém, ele consolidou algo que é difícil em se tratando de
crítica: ele foi contemporâneo a si mesmo, ou seja, ele enxergou com lucidez (embora os
cariocas de seu tempo o tenham visto muitas vezes bêbado pelas ruas e sarjetas do Rio,
sem lucidez alguma aos moldes da lucidez racionalista) o momento pelo qual passavam
a sociedade brasileira, a ciência médica e psiquiátrica, a cidade do Rio de Janeiro e as
próprias questões literárias; escreveu sobre isto, e este é o caráter paradoxal que se
encontra em sua obra.18
28 Seus personagens revelam, muitas vezes sangrando em veias abertas, um certo
imaginário, uma certa sensibilidade sobre a nacionalidade brasileira em alguns de seus
aspectos. Lima Barreto não somente juntou-se às classes mais desfavorecidas e
acompanhou este movimento; ele vinha de classe popular: neto de escravos, pai
tipógrafo e funcionário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador, ele mesmo
funcionário público (amanuense) do Ministério da Guerra.
29 A “estética da simplicidade”, tão cara a alguns boêmios cariocas, pode ser encontrada
na obra de Lima, em suas crônicas, contos e romances. Crítico da República Velha no
Brasil, ele rompeu com o nacionalismo ufanista, escancarando a hipocrisia republicana,
que mantinha os privilégios de famílias aristocráticas e dos militares. Em sua vasta obra
e diversificada de 17 volumes – vasta, se considerarmos que morreu cedo, aos 41 anos –
cuja temática era eminentemente social e que se coadunava com esta nova estética de
simplicidade, sensibilidade, fraternidade, Barreto privilegiou os pobres, os boêmios e os
populares. Privilegiou porque identificou‑se, no cotidiano e em suas reflexões.
30 A exclusão social do regime, o seu aspecto autoritário, corrupto e desumano, além do
mal-estar intelectual, destacaram-se como os temas mais discutidos pela
intelectualidade carioca, como diz Monica Velloso: “a cultura brasileira retomou em
grande parte esse polo dissidente [refere-se à vertente anti-burguesa que traduz o mal-
estar da civilização e que é a segunda vertente da tradição fundadora do modernisno].
Caricaturistas e cronistas apontaram as ambiguidades do moderno, seja em atitude de dura
denúncia, seja recorrendo ao viés irônico e coloquial”19, e que é o caso de Lima Barreto.
31 Nas crônicas barretianas e em seus escritos íntimos, também se observa um panorama
vivo das “tramas de culturas” que existiam no Rio de Janeiro daquela época, cidade
onde ao mesmo tempo em que eram absorvidas as diversidades regionais dos outros
estados, servia de polo irradiador de culturas.

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32 Gostaria de ressaltar algo que fica implícito nestas análises e que gostaria de explicitar.
Quando se fala em “boêmios”, não está se referindo à conotação literal do termo, que
existe em dicionário de língua portuguesa (indivíduo despreocupado, vadio,
vagabundo). Mas sim alguém que se rebelou contra os formalismos e que desmoralizou
o diletantismo literário. Um crítico. E seu vício alcoólico nada tem a ver com esta figura
de boêmio que alguns críticos de sua época lhe impingiram. Foi boêmio na acepção de
Monica Velloso, criando uma nova sociabilidade carioca com pensadores críticos ao
sistema vigente. Seria um “despreocupado”, aquele que inaugurou a fase do romance
moderno no Brasil (“romance de crítica social sem doutrinarismo dogmático”, como
disse Monteiro Lobato), que foi o pioneiro desta nova concepção de romance, e que
passou a ver o homem em função da sociedade em que vive e não apenas dentro de si
mesmo ?
33 Sérgio Buarque de Holanda, no prefácio de “Clara dos Anjos”, interpreta como negativo
o fato de Lima ter conferido dignidade estética às mais humildes aparências. Aferrando-
se ao “subúrbio”, o “refúgio dos infelizes”, ele renuncia à respeitabilidade e a outras
posições, segundo Sérgio. “Essa humanidade, despojada da ‘situação normal’, exilada do seu
verdadeiro mundo, é que representa a matéria-prima de toda a obra de ficção de Lima
Barreto.”20
34 A boemia era a liberdade de imaginar um outro mundo e discutir todas as reformas
necessárias para instaurá‑lo. Os artistas e poetas boêmios opõem a sua trajetória
aventureira e revolucionária à vida medíocre e de trabalho regular do burguês médio. A
insatisfação dos boêmios era um modo de militância política. Arte, política e vida
pessoal se confundiam na sustentação de um estilo pessoal de vida marcado pela
diferença, já que hostilizavam as idéias de utilidade, dinheiro e sucesso a qualquer
preço. É orientado por valores próprios da boêmia literária que Lima Barreto não se
cansou de criticar o culto do dinheiro na civilização norte-americana e considerava
absurdo qualquer pagamento por uma página de literatura. Embora o tenha feito !
35 Pode parecer aos olhos de uma primeira leitura, que Lima Barreto escrevia com
palavras de ressentimento – o que não é de todo uma inverdade – mas a análise de sua
obra nos mostra a sutileza do escritor, nas críticas, quando por exemplo, escreve em
seu Diário Íntimo em 24 de janeiro de 1908: “Fui a bordo ver a esquadria partir. Multidão.
Contacto pleno com meninas aristocráticas. Na prancha, ao embarcar, a ninguém pediam
convite; mas a mim pediram. Aborreci-me. Encontrei Juca Floresta. Fiquei tomando cerveja na
barca e saltei. É triste não ser branco”.21
36 Nos primeiros parágrafos da primeira versão incompleta de sua obra Clara dos Anjos,
escrita em 190422, há uma descrição pormenorizada da “cidade imaginada” do Rio de
Janeiro por Lima Barreto, a cidade que tanto amava e que também ressaltou em outros
vários escritos seus – narrativa esta que introduz o enredo do romance, situando os
personagens principais nos inícios de 1886, os quais também se transformariam no
tempo. O imaginário de Lima retrata a sensibilidade do autor frente às mudanças que
ocorriam e que se transformavam em matéria prima para sua ficção: “A cidade do Rio de
Janeiro é regularmente edificada. Não se infira daí que ela o seja conforme o estabelecido na
teoria das perpendiculares e oblíquas; antes se conclua que a cidade tem se erguido acorde com a
tipografia local onde se assentou e com as vicissitudes históricas que sofreu.” E, logo adiante,
na mesma página, diz: “Se não é regular com a estreita geometria de um agrimensor, é,
entretanto, com as colinas e encostas, que a distinguem e a fazem-na formosa. Enquadra-se
garridamente nelas, explicando-as e continuando-as.” E aos poucos, no texto, vai entrando

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uma crítica sutil às transformações e “modernização” da cidade, fazendo aparecer sua


grande sensibilidade em relação à cidade em que vivia e sua população. Veja o leitor a
linda e extensa passagem do texto de Lima Barreto, na citação em anexo, que corrobora
nosso pensamento.23
37 Novamente, a extensão da citação é necessária para se ter uma noção clara da intenção
de Lima ao falar no Rio de Janeiro em sua literatura: ele sabia muito bem o que
procurava; nada de “arte desinteressada”, como disse Barbosa. 24
38 Francisco de Assis Barbosa, no prefácio do primeiro volume das obras completas de
Lima Barreto, ao traçar uma biografia resumida (no que diz respeito à sua entrada no
mundo das Letras brasileiras), refere que bem no início de sua carreira de escritor, ao
colaborar com pequenos jornais e revistas de estudantes, Lima era indeciso quanto ao
rumo a tomar: escreveria ensaios ou ficção ? Seu primeiro projeto foi de escrever uma
história da escravidão negra no Brasil e de sua influência na nacionalidade (e isto, Lima
Barreto anuncia em seu Diário Íntimo). O prefaciador utiliza a expressão “sensibilidade
ferida do adolescente de origem humilde, neto de escravos, em contato com alunos e
professores brancos, ricos, semi-aristocráticos, alguns dos quais o tratam por cima,
como a um ser inferior”, para tentar compreender esta vontade inicial do escritor, que
não se concretizou.25
39 Porém, falando sobre seu romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, que foi escrito
vertiginosamente, em menos de três meses – de janeiro a março de 1911 – e publicado
inicialmente em folhetins do Jornal do Comércio (edição da tarde), no Rio de Janeiro, de
11 de agosto a 19 de outubro de 191126, ao folhetim Época, Lima Barreto declarou em
entrevista: “… O fim de minha vida é as letras. Eu não peço delas senão aquilo que elas me
podem dar: glória ! Eu sou afilhado de Nossa Senhora da Glória. Eu não quero ser deputado, não
quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis,
não lhes peço gloríolas, peço-lhes coisa sólida e duradoura. E posso falar de carreira, porque se eu
quisesse ter estas histórias, as teria de sobra. Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é
que elas me vão dar muita coisa. É o que me faz viver mergulhado nos meus desgostos, nas
minhas mágoas, nos meus arrependimentos…”27
40 A urgência de escrever que Lima possuía, por ser um literato criativo e repleto de coisas
a dizer, mesclava-se com suas necessidades materiais, que de forma alguma retiraram o
valor de sua obra: “O Numa e Ninfa foi escrito em vinte e cinco dias, logo que saí do hospício.
Não copiei nem recopiei sequer um capítulo. Eu tinha pressa em entregá-lo, para ver se o
Marinho me pagava logo, mas não foi assim e recebi o dinheiro aos poucos. Escrevi-o em outubro
de 1914. O Marinho era diretor de A Noite.”28
41 O prefaciador desta obra, (Numa e Ninfa, volume III das Obras Completas) João Ribeiro,
admite que o romance é um estudo da vida social e política daquele tempo. “É realmente
um dos raros livros que espelham com verossimilhança senão com fidelidade, os vícios e os
costumes da sociedade política”.29
42 Porém, nos parágrafos finais, o autor faz uma crítica severa a Lima, dizendo que não há
razoável acabamento no romance, falta a “chave da abóboda”, pois todos os
personagens desaparecem subitamente. Assim também e, Policarpo Quaresma, o romance
anterior, que é “admirável pelo contexto, mas encontramos o mesmo desfalecimento,
desproporcionado na conclusão. “Todos os arabescos, toda a decoração é esplêndida, mas a
arquitetura é falha.” Ao final, o crítico questiona se não seria o fato de Lima estar
habituado a escrever em jornais – “e o jornalismo é uma arte apressada e imperfeita que não
deixa amadurecer e compor-se a congruência de obras” – o fator que o faz “escrever mal”.

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Porém, admite que Barreto é um grande escritor, “dotado de observação arguta”,


possuidor de imaginação e estilo.30
43 O que para esta confluente modernidade carioca de literatos boêmios era uma
“estética”, aos olhos dos “letrados bem pensantes” seu estilo despojado, fluente e
coloquial arruinava sua escrita. É o que também escreve Oliveira Lima no prefácio de
Triste Fim de Policarpo Quaresma, volume II de suas obras completas: “É um grande livro,
por consenso comum. A única pecha de que o tenho ouvido culpar, não me parece absolutamente
justa. Refere-se à linguagem, ou melhor, ao estilo, julgando menos cuidado e por vezes incorreto,
por ser a linguagem simples e propositalmente desataviada. Por idêntico motivo era Eça de
Querós no começo tachado de escrever mal. O Senhor Lima Barreto procura felizmente não
escrever bonito: antes, mil vezes antes, singelo, familiar mesmo, do que pernóstico.” 31
44 Ao final deste prefácio (que é um texto jornalístico da época, conforme nota acima), o
autor diz ser Policarpo Quaresma um romance onde predomina o sentimento, no qual há
um “sopro de compaixão” e uma “vibração misteriosa de piedade” que resgata qualquer
defeito de composição– “da mais prometedora vocação da geração nova, espírito no qual se
alia ao senso do pitoresco o senso social”. Oliveira Lima termina dizendo que o Senhor
Lima Barreto se contenta, sem esforços de originalidade, em “ser ele próprio.” Ou seja,
a crítica daquele momento, não engolira mesmo a obra de LB. 32
45 Porém, são nas palavras de seu biógrafo principal e organizador das obras, que se
encontra, em primeira mão, a inversão desta crítica e a idéia de intenção literária na
obra de Lima. Isto nos faz perceber o quanto ele era “moderno” e o quanto ele estava no
fluxo das mudanças que ocorriam na sociedade brasileira e, mais especialmente, na
sociedade (letrada ou artística) carioca: “Lima Barreto, desde cedo, sabia muito bem o que
procurava. Nada de arte desinteressada. Nada de artifícios verbais. Literatura, sim, mas com
objetivo certo e definido, estabelecendo entre o escritor e o público um compromisso, para ajudá-
lo a conhecer não apenas o drama íntimo de cada um, como também as competições, erros e
misérias da sociedade em que vivemos. Literatura militante, como a que sempre praticaram Lima
Barreto no Brasil e Eça de Queirós em Portugal, seguindo a lição de Taine e Brunetière, tratando
de tudo o que pertence ao desafio de todos nós, uma vez que – justificaria o próprio escritor – “a
solidariedade humana, mais do que nenhuma outra coisa, interessa o destino da humanidade.” 33
46 Lima pode ser considerado como um escritor de transição – o que lhe restituiria o
rótulo de pré-modernista, como alguns críticos o dizem – , ou estava inserido no cerne
do modernismo nascente ? Fiel ao modelo do romance realista e naturalista do final do
século XIX, procurou entretanto desenvolvê-lo, resgatando as tradições cômicas,
carnavalescas e picarescas da cultura popular, ao mesmo tempo em que manteve uma
visão neo-romântica e elegíaca da natureza, da cidade e do ser humano. Para ele,
escrever tinha finalidade de criticar o mundo circundante para despertar alternativas
renovadoras dos costumes e de práticas que, na sociedade, privilegiavam pessoas e
grupos. Para ele, o escritor tinha uma função social. A arte, para Lima, era um
fenômeno social.
47 No prefácio da primeira edição (1943) de sua obra “Na antevéspera”, Monteiro Lobato
alertava: “Escrever é gravar reações psíquicas”. E, logo adiante, completa: “O escritor
funciona qual antena – e disso vem o valor da literatura. Por meio dela fixam-se aspectos da
alma dum povo, ou pelo menos instantes da vida desse povo”34. A obra de Lima é um exemplo
ainda vivo do Brasil da Velha República, sua linguagem direta e vigorosa (para não
dizer sua “pena e línguas afiadas” !) toca em feridas que não se sabe se já foram
cicatrizadas em nosso país, como por exemplo, ao criticar também a Academia

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Brasileira de Letras e o mundo (ou a cena !) literário daquele período. Considerava-se


um homem, de vida urbana conturbada, condenado pelos literatos bem pensantes, num
país onde a literatura não passava de “uma continuação do exame de português”. Não é
para menos que foi M. Lobato o primeiro a lhe oferecer pagamento para publicar um
livro seu: Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá.35
48 Barbosa, no prefácio já citado, escreve que “decorridos mais de quarenta anos, o tempo
encarregou-se de mostrar que o romancista tinha razão.” E segue dizendo que seu
primeiro romance publicado, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, marcou a carreira
de Lima, e, a partir deste, seria sempre o autor de “romance de escândalo”, pois os
senhores da literatura, aqueles que vestiam casaca e freqüentavam a Livraria Garnier,
“jamais lhe perdoariam a ousadia da violenta arremetida, as diatribes ferinas a certos príncipes
do jornalismo e das letras, as caricaturas cruéis cobrindo de ridículo os medalhões cheios de
empáfia, os mais importantes da época.”36
49 Lima Barreto, o mulato pobre e alcoolista, fixou, anotou, registrou, comentou e criticou
todos os grandes acontecimentos da vida republicana de seu período. Como num vasto
painel que se desdobra em sucessivos quadros, surgem em suas obras os episódios
culminantes da insurreição anti-florianista, a campanha contra a febre amarela, a ação
de Rio Branco no Itamarati, o governo Hemes da Fonseca, a participação do Brasil na
primeira Guerra Mundial, o advento do feminismo, as primeiras greves operárias, a
Semana de Arte Moderna, o delírio do futebol e do jogo-do-bicho. “Tudo isto se
misturando com os nossos ridículos e as nossas misérias, mas também sem esquecer a grandeza e
a doçura do nosso povo; a mania de ostentação, o vazio intelectual e a ganância dos políticos; em
suma, toda a crise das classes dirigentes, que se agravaria de modo alarmante com a queda do
Império, isto por um lado; do outro, a bondade inata do brasileiro, a coragem do funcionário
público humilde que luta para educar os filhos, o milagre de sobrevivência da população pobre
do subúrbio carioca, que, em meio a miséria, canta e ri.”37
50 Não lhes parecem, leitores, algumas delas, preocupações ainda atuais em nossa
sociedade brasileira contemporânea, cem anos depois ?Tendo me ocupado com algumas
de suas obras na tese de doutorado38, sob o ponto de vista das representações e
sensibilidades sobre a loucura em textos literários, naquele momento pude observar
que mesmo tendo sofrido discriminações várias, ele soube, em sua literatura, ler e
escrever a realidade, mesmo sobre a loucura, um dos fatores de exclusão social mais
sério que nossa sociedade apresentava (e ainda apresenta). Mesmo sentindo-se
inferiorizado no meio social e cultural que o circundava, ele cumpriu o esforço de
ultrapassar tudo isto em nome da literatura. Esta, sua amante mais freqüente, ao
mesmo tempo que deu a ele o que pediu, também o “sugou”. Mas, mesmo depois da
morte, continuou-lhe fiel, pois é do escritor que temos a lembrança, os vestígios do
passado …’A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela’, escrevia ele em seu Diário
de Hospício…39
51 No livro de contos Histórias e sonhos, o sexto volume de suas obras completas, a
prefaciadora Lúcia Miguel Pereira, faz uma comparação entre Machado de Assis e Lima
Barreto, dizendo que há afinidades secretas entre eles e o que aproxima os dois
escritores são as explorações em profundidade que ambos realizaram; e, por serem
criadores autênticos, se não pudessem escrever ficariam mutilados, privados de seu
meio de comunicação.40 Porém ela é mais uma dos críticos que se revelam avessos à
profusão de “confissões” feitas em sua obra. E isto distinguiria Lima e seus escritos de
Machado e sua obra, ressaltando ainda sua condição de alcoolista e desequilibrado pela

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angústia existencial e alcoólica. O que para esta crítica seria avaliado negativamente,
em termos de confidências deslocadas, aos olhos de outros (incluindo a autora deste
artigo) é entendido como pura sensibilidade, carregada de memória subjetiva para
compreender o presente: “Quem fez nas primeiras idades uma representação da vida cheia de
justiça, de respeito religioso pelos direitos dos outros, de deveres morais, de supremacia do saber,
de independência de pensar e agir – tudo isto de acordo com as lições dos mestres e dos livros e
choca-se com a brutalidade de nosso viver atual, não pode deixar de sofrer até o mais profundo
do seu ser e ficar abalado com este choque a vida toda”.41 Fazendo parte do mundo dos
excluídos, os loucos sempre foram rechaçados nas sociedades. Sensível aos habitantes
do hospício, onde foi internado duas vezes em sua vida, ele escreveu em Cemitério dos
Vivos verdadeiro depoimento sobre a loucura, as internações psiquiátricas e, não menos
importante, sobre os loucos que eram seus “colegas” de enfermaria e pátio. Há uma
passagem digna de nota que o leitor lerá na nota em anexo. 42
52 Este romance (inacabado até sua morte em 1922) é a literatura que surgiu do seu Diário
de Hospício, um conjunto de notas escritas desde dentro do hospital, quando de sua
última internação (dezembro 1919 a fevereiro de 1920). Tanto o diário, com seus
escritos íntimos, como as páginas deste romance revelam toda a sensibilidade deste
escritor em relação às práticas sociais de exclusão na sociedade carioca de então, bem
como os parâmetros da Medicina psiquiátrica que “desequilibram para equilibrar”.
Absolutamente avesso a métodos de coerção, tanto dos policiais que o levaram em
camburão até o hospício, quanto do próprio “cemitério dos vivos” (nome que deu ao
hospital), em suas páginas ele faz uma crítica social a partir de sua própria experiência.
Também veremos isto noconto “Como o homem chegou”, em suas obras completas. 43
53 Nesta obra, especialmente, as fronteiras da ficção e da realidade diluem-se na vida
deste homem, atormentado em sua psique, e em seu processo criativo. Como defender-
se dos ’rótulos’ que ele mesmo colocava em si ? Mas as forças de sua inteligência e de
sua criatividade distinguem-se no meio dos gritos da loucura. Acredita-se que existia
um sentido nesta trama de sua vida. Escreveria em seu Diário de Hospício: “Não me
incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha
vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com
toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material, há seis anos, me
assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.” 44
54 Lima Barreto, no meio de seu texto, questiona-se sobre os meandros da loucura, sobre
suas origens e ramificações. Reflete sobre si mesmo e sua relação com a sociedade em
que vive e com as pessoas. Coloca a literatura em seu devido pedestal, e os médicos, a
psiquiatria e o hospício – “esta sombria cidade de lunáticos” – em seus devidos lugares.
Denuncia, aqui também, o sistema coercitivo de um Estado que se utiliza da Medicina,
do aval da Ciência, como instrumento de intervenção política para instaurar sua ordem
e controlar seus indivíduos. Ele ressalta: “É uma triste contingência, esta, de estar um
homem obrigado a viver com semelhante gente. Quando me vem semelhante reflexão, eu não
posso deixar de censurar a simplicidade de meus parentes, que me atiraram aqui, e a ilegalidade
da polícia que os ajudou. Caído aqui, todos os médicos temem pôr logo o doente na rua. Mas
seguro morreu de velho e é melhor empregar o processo da Idade Média: a reclusão.” 45
55 Possuidor de uma psique sensível às questões humanas mais prementes e como um
erudito no meio da loucura, numa reflexão aguda sobre o seu estado no hospício,
escreveu, logo em seguida de sua entrada no Pavilhão: “Voltei para o pátio. Que cousa, meu
Deus ! Estava ali que nem um peru, no meio de muitos outros, pastoreado por um bom português,

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que tinha um ar rude, mas doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já me conhecia da
outra vez. Chamava-me você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para a casa- forte e ele me deu
um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive
muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando
baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoievski, que pior deviam ter sofrido em
Argel e na Sibéria. Ah ! A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.” 46
56 Ele mesmo encarrega-se de resgatar sensibilidades passadas, identificando-se a outros
escritos e escritores. Traz à tona Dostoiévski, Cervantes, cada qual com sua dor, seus
escritos de prisões e Dante, com suas sensibilidades estéticas, com as quais Lima
comunga. Irmanam‑se nas letras e nas almas. A literatura, sempre ela, é seu refúgio.
Nela sente-se amparado, compreendido, protegido em sua alma. Talvez por isso ela
também seja carregada de motivos pessoais. Talvez somente sendo um “louco” para
isto, para compreender o âmago desta intrincada rede que se delineia na loucura. A
impressão que se tem é que ele tornou-se mais lúcido no hospício, ou pelo menos
aguçou sua própria capacidade de sentir e refletir sobre sua doença, sobre quem ele
realmente é e o que pretendia de sua vida. Ele estava com medo de morrer, dizia que
para este lugar ele não voltaria mais, “somente morto”. Assim, passou a limpo suas
percepções.
57 Nas páginas de Lima Barreto, encontramos a ele mesmo, mas também a brasilidade
modernista em ‘carne, osso e alma’ e, com sua obra, aciona uma “vasta rede de
representações, subjetividades, imaginários e práticas culturais no conjunto do Brasil”. 47
58 Osmar Pimentel, prefaciador de Os Bruzundangas, a sátira escrita por Lima, inicia sua
crítica exatamente falando sobre o que é “fazer crítica”: a crítica é sob certo aspecto,
uma variante da ficção. Referindo-se a Cervantes como “personagem de mil autores,
isto é, de mil críticos”, ele metaforiza as liberdades que os críticos tomam diante de
escritores autênticos. E revela: “como o personagem da ficção bem realizado, o bom
ficcionista é também uma suma de contradições psicológicas – não fossem, um e outro, produto
da mesma reflexão sobre os descaminhos e as surpresas da condição humana.” Completa o
parágrafo dizendo que “à semelhança de qualquer personagem literariamente vivo, o escritor
será sempre, sob certo aspecto, um enigma e uma contradição”.48
59 Lima Barreto transformou-se em vários Limas, ele é inumerável, desde o pré-
modernista, bêbado, mestiço, jornalista burocrata, homem de caráter e romancista, até
o “raro romancista brasileiro das cidades”, um “evocador amoroso da vida suburbana
do Rio”, “o solteirão pobre que entendia a alma feminina”, “o crítico implacável da
burguesia em ascensão na sociedade carioca”, “o flâneur suburbano”, “o boêmio
sensível”, entre tantos outros personagens reais do urbano e da crítica literária.
60 Então, se crítica é fazer uma espécie de ficção, compreendemos que fizemos e faremos
sempre ficções sobre Lima Barreto e seus duplos, ou seus triplos, ou seus múltiplos.
Porém, teremos certeza de algumas verdades: ele tinha uma concepção de homem e de
mundo só sua, verdadeiramente e originalmente sua, assim como de seu destino na
sociedade. E toda sua vida e sua obra (incluindo seus personagens) estão calcadas numa
visão humanista que ele sempre carregou consigo. Fazendo parte deste polissêmico
Brasil, pode-se dizer que Lima e sua obra foram trans-modernistas, atravessaram os
limites do tempo e da crítica e estabeleceram-se independentes na brasilidade da
Literatura Brasileira, como Atená que surgiu da cabeça de Zeus. Lima Barreto muito
além dos cânones.

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BIBLIOGRAFIA
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Recordações do escrivão Isaías Caminha; volume II – Romance: Triste fim de Policarpo Quaresma;
volume III – Romance: Numa e Ninfa; volume IV – Romance: Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá;
volume V – Romance: Clara dos Anjos; volume VI – Contos: Histórias e sonhos; volume VII –
Sátira: Os Bruzundangas; volume VIII – Sátira: Coisas do reino de Jambón; volume IX – Artigos:
Bagatelas; volume X – Artigos e crônicas: Feiras e mafuás; volume XI - Artigos e crônicas: Vida
urbana; volume XII - Artigos e crônicas: Marginália; volume XIII – Crítica: Impressões de leitura;
volume XIV – Memórias: Diário Íntimo; volume XV – Memórias: Cemitério dos Vivos, que inclui
Diário de Hospício; volume XVI – Correspondência: volume I; volume XVII - Correspondência:
volume II)

CHARTIER, Roger. A história cultural, entre práticas e representações. Difel, Lisboa, 1988.

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www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/critica/ult569u1123.shtml

VELLOSO, Monica Pimenta. História & Modernismo. Autêntica, Belo Horizonte, 2010.

NOTAS
1. A partir de agora, as citações feitas destes prefácios aparecerão em notas na forma [Prefácio,
vol. yy, p. zz], por questão de simplificação. As referências feitas aos escritos do próprio Lima
Barreto, também referentes às obras completas, aparecerão no formato [Obras completas, v. yy,
p. zz]. A obra completa de Lima Barreto tem sua referência completa ao final, na bibliografia. Os
originais e manuscritos do escritor encontram-se, atualmente, na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, já catalogados em coleção, diferentemente de como se encontravam na época da escrita
destes prefácios, conforme nota prévia de Gilberto Freyre, prefaciador do volume XIV (Diário
Íntimo).
2. Tristão de Ataíde, o prefaciador do volume IV (Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá), romance
que apareceu pela primeira vez em 1919, ressalta que Lima ficou fora e acima das grandes lutas
modernistas – pela obra e pela sua morte em 1922. Seu romance surgiu antes do momento de
ruptura, antes da “revolução modernista”, como ele diz, onde se dividiria o campo literário em
dois partidos, os novos e os velhos. Observa-se que Ataíde é ainda partidário desta dicotomia, que
será mais adiante discutida neste artigo. Importa aqui observar-se que mesmo ele já reconhecia
que Lima Barreto e sua obra possuíam características de independência total, dos grupos, dos
manifestos, das polêmicas de escola. Não pertenciam nem aos Novos e nem aos Velhos. “E se
tivesse que tomar partido, seria fatalmente contra passadistas e futuristas conjuntamente”. Não
porque tinha orgulho e desdém. Mas porque, de dentro de sua irresistível vocação literária, vinha
uma paixão pela verdade, uma despreocupação de si mesmo, a ternura pelo sofrimento alheio e
pelo próprio e uma consciência nítida das vaidades dos senhores da vida e do mundo. [Prefácio,
vol. IV, p. 10]
3. Este artigo jornalístico surgiu como comentário à reedição da biografia de Lima Barreto, em
2002, pela editora original José Olympio (RJ), escrita por Francisco de Assis Barbosa em 1952.
Sevcenko, Nicolau. Biografia de Lima Barreto escrita em 1952 ganha novos prefácios. (Artigo online).
Folha online. 04/01/2003. Acessado em: 20/11/2010. Disponível em: https://
www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/critica/ult569u1123.shtml “Não resisto a reproduzir o
juízo ponderado e agudo com que ela foi recebida pelo crítico Tristão de Ataíde (1893-1983). ’Foi
destacada como a melhor biografia de um escritor brasileiro já publicada em nossa língua. Foi
escrita com um cuidado, uma objetividade, uma paciência, uma elegância de estilo, um critério de
relação documental e acima de tudo com um amor, sem desvario, que realmente fazem dessa
biografia qualquer coisa à altura do biografado. Creio que basta dizer isso para dizer tudo. Temos

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nela um modelo e uma lição, de como a verdade e a beleza, quando se entrelaçam, não há quem
lhes resista. m meio à sua vida atribulada de redator-chefe da lendária ’Última Hora’ de Samuel
Wainer, Barbosa levou cerca de seis anos para compor esse trabalho. Em sua carreira no
jornalismo, passou também, entre outros, pelo ’Correio da Manhã’, ’Diário Carioca’ e Folha. Como
ele mesmo relata no prefácio à primeira edição, tudo começou quando o editor Zélio Valverde o
encarregou, em 1946, de organizar as obras completas de Lima Barreto. Ele entrou em contato
com a família e recebeu uma massa de documentos, literários e pessoais, zelosamente guardados
pela irmã do escritor, dona Evangelina, no guarda-louças de sua casa. O projeto da edição das
obras naufragou, então ele decidiu ir adiante com a biografia. Na sua modesta avaliação, Barbosa
considerou a biografia como ’uma singela narrativa literária’. Mas o fato é que o livro teve um
extraordinário impacto no momento em que veio a público, em 1952, em meio ao processo de
redemocratização da vida brasileira, pós-guerra e pós-Vargas. Na seqüência, o historiador Caio
Prado Jr. (1907-1990), para quem Lima Barreto era ’o maior e mais brasileiro dos nossos
romancistas’, sendo então o editor da Brasiliense, resolveu retomar o projeto da publicação das
suas obras completas. Para comandar a iniciativa encarregou Barbosa, o qual se acercou de
Manoel Cavalcanti Proença e Antônio Houaiss para enfrentar o desafio.A publicação, em 1956, das
’Obras de Lima Barreto’, em 17 volumes, todos prefaciados pela fina flor da crítica e da
intelectualidade, juntamente com a biografia, são um marco da cultura brasileira na segunda
metade do século 20. Inspirados nessas fontes prodigiosas, toda uma nova geração de
pesquisadores as tomariam como material estratégico para estudar a consolidação do regime e da
sociedade republicana. A biografia interagia às maravilhas com as obras completas, na medida em
que os escritos de Lima Barreto têm um caráter fortemente confessional, e Barbosa os articulou
com as sucessivas fases da vida do escritor, urdindo numa trama habilidosa as vicissitudes
dramáticas da sua existência, uma densa imaginação crítica e literária e as dores de gestação do
Brasil moderno. Por sua origem humilde e sua sensibilidade aguçada, Lima Barreto produziu uma
das mais raras e profundas percepções da realidade social brasileira vista de baixo para cima,
julgando os poderosos pela indignação dos injustiçados. Pagou um preço alto por isso. A elite
letrada cercou a força de sua obra com uma muralha de silêncio por um longo tempo. Foi esse
muro que Barbosa pôs por terra, revelando os tesouros que ele ocultava.” Leitura obrigatória em
tempos de virada. Sevcenko, Folha online, 2003. Desculpem os leitores pela extensão da citação,
mas somente na íntegra ela faz jus à beleza e profundidade de tratamento que Lima e sua obra
mereceram por parte deste intelectual/historiador brasileiro contemporâneo.
4. VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo, pp. 11-38.
5. VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo, p.16.
6. Prefácio, vol. XIV, p. 14.
7. “Faltou-lhe essa certeza. Faltou-lhe o estímulo – talvez devesse dizer a justiça: justiça social –
de uma crítica esclarecida que prestigiasse nele o intelectual, autor desde a mocidade de livros
que hoje o situam entre os romancistas mais significativos do Brasil. Sob o calor do prestígio
intelectual, compensador de deficiências de prestígio social, é possível que seu desajustamento
tivesse sido atenuado, adoçado e talvez contido ; e não chegado, como chegou, a extremos às
vezes trágicos. Ele foi uma espécie de personagem de romance russo, desgarrado nos trópicos ; e
para quem só a natureza bruta destas terras de muito sol e muita côr crua, foi algumas vezes
angelicamente azul: toda azul. Como na manhã de fevereiro que recorda numa de suas notas de
1905: azul diáfano. Tudo azul…O rolar das carroças é azul, os bondes azuis, as casas azuis. Tudo
azul.” Prefácio, vol. XV, p. 15/16.
8. Prefácio, vol. VIII, p.9.
9. Prefácio, vol. XV, p.21.
10. “…mas afinal, a maior, senão a única ventura, consiste na liberdade ; o Hospício é uma prisão
como outra qualquer, com grades e guardas severos que mal nos permitem chegar à janela. Para
mim, porém, tem sido útil a estadia nos domínios do senhor Juliano Moreira. Tenho coligido

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observações interessantíssimas para escrever um livro sobre a vida interna dos hospitais de
loucos. Leia o Cemitério dos Vivos. Nestas páginas contarei, com fartura de pormenores, as cenas
mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro destas paredes inexpugnáveis. Tenho visto
cousas interessantíssimas.” Obras completas, vol. XVI, “Uma entrevista”, p. 257. É interessante
ressaltar que Lima Barreto simpatizava com Juliano Moreira, referindo-se a ele mais de uma vez
no Diário do Hospício. Seria por que este também era ’quase negro’ como ele ? Há uma passagem
em que ele conta que o diretor do hospício [Juliano Moreira] foi ver uma algazarra que acontecia,
por conta de um paciente ter subido no telhado. LB fez um comentário a este médico sobre tal
doente e ’o diretor nada disse ; mas foi preciso ele vencer, com sua doçura, a sua paciência e a
simplicidade de sua alma, a indelicadeza desse seu hospitalizado. Hei de falar mais longamente
sobre ele, que é uma interessante figura que conheci.’ [Obras completas, vol. XV, p. 85
11. VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo, p. 17.
12. “Se eles se sentiam estimulados a forjar uma nova consciência social e estética, essa liberação
se dava em um clima de forte tensão histórica. O poder imaginativo conjugava-se à consciência da
contingência, vivenciada como catástrofe gerando a sensação de desorientação e pesadelo.” (…)
“A imaginação literária e artística rebelara-se contra a ordem científico-burguesa, ocasionando
um enriquecimento da percepção do mundo social que deixava de ser visto como algo exterior e
consensual.” VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo, p. 19-20.
13. “Foi de fundamental importância no processo de releitura do modernismo brasileiro a
geração de literatos das décadas 1970/1970, incluindo Luis Costa Lima, Alfredo Bosi e Silviano
Santiago. Enfatizando a diversidade da cultura brasileira (universal/particular, cosmopolitismo/
localismo, vanguardas/tradições) esses autores contribuíram para o entendimento da
temporalidade múltipla que marcava a brasilidade.” IN: VELLOSO, Monica Pimenta. História e
Modernismo p. 26.
14. VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo,p. 89.
15. Neste momento, a autora remete à obra do historiador José Murilo de Carvalho, que examina
com propriedade esta questão do caráter excludente da modernidade. Veja principalmente:
Carvalho, José Murilo. Os bestializados e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo,p. 79.
16. “Foi uma relação ambígua marcada pela adoção eufórica de valores, crítica virulenta e humor.
Através de suas crônicas e caricaturas, o grupo captou o espírito das mudanças trazido pelos
tempos modernos. Lima Barreto, Bastos Tigre, Emilio de Meneses e José do Patrocínio Filho e os
caricaturistas de maior projeção no momento, como Raul Pederneiras, Kalixto e J. Carlos,
compuseram um grupo que, durante três décadas (virada do século XIX até finais de 1920) atuou
em torno de revistas. Mas foi a D. Quixote (1917-1927), dirigida por Bastos Tigre, que funcionou
como verdadeiro porta-voz e lugar de memória do grupo. Nessas publicações pode-se encontrar
uma narrativa sobre a nacionalidade que se contrapõe à vertente oficial produzida pelos
intelectuais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pelo Museu Histórico Nacional.
Também as expressões artísticas produzidas na Academia Brasileira de Letras e no Museu de
Belas-Artes foram alvo de paródias.” IN: VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo,p. 77.
17. Ver esta discussão a partir da página 39 da obra citada de Monica Pimenta Velloso (2010).
18. Talvez fosse melhor dizer “caráter dialético”, o que pressupõe uma síntese ao invés de uma
contradição nos termos. Pois a obra de Lima Barreto transformou o seu “estar à margem” em
uma verdadeira escrita crítica e “militante” daquele período. Embora sucumbindo ao alcoolismo,
sua literatura revela o Brasil e mudou sua vida. Deu-lhe a “glória” que ele tanto queria.
19. VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo,p. 83.
20. Prefácio, vol.V, p. 17.
21. Obras Completas, vol. XIV, p.130.Lima Barreto está aqui se referindo à esquadra americana de
navios Lloyd, atracados no porto da cidade do Rio, em janeiro de 1908, e que trazia uma
tripulação de dezesseis mil homens, de variadas nacionalidades (franceses, portugueses, italianos,

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turcos e alemães), bem como negros e mulatos, “alguns destes bem postos e fortes”. Ele ganhou
um convite para a visita, na secretaria de Guerra onde trabalhava, mas mesmo assim, seus
sentimentos de inferioridade moral lhe tomaram conta. Há no trecho anterior desta anotação de
seu Diário Íntimo uma descrição de sensibilidade e beleza ao falar sobre os traços humanos que
ele tinha visto a bordo ; era seu imaginário sobre a diferença nacional/estrangeiro que se destaca
aqui: “Observei fisionomias. Algumas lindas ; nunca vi nas mais lindas mulheres brancas daqui o
tom doce de uma fisionomia de marinheiro que me caiu nos olhos. Entre nós, as fisionomias são
mais secas, contraídas, cheias de fogo, mas não têm a limpidez dessas fisionomias pré-rafaelistas.
Há alguma coisa de primitivo nelas, de um primitivo sem selvageria, um sentimento de além, do
desconhecido, visto pro anjos delicados. Os selvagens são sempre graves ; nós somos sempre
graves, quando não, uns abandonados às contrações sagradas do ‘purismo’”. [Obras completas,
vol. XIV, p. 129]
22. A versão completa do romance [Obras completas, vol. V] será escrita pelo autor em 1919/
início de 1920, terá publicação póstuma e será completamente diferente desta anterior. Essa
versão incompleta citada aqui se encontra ao final do volume XIV das Obras Completas (Diário
Íntimo), pois os organizadores acharam por bem colocar neste volume os variados escritos
avulsos, papéis soltos, “esquemas de romances frustrados, primeiras tentativas de ficcionistas,
ainda em plena juventude, seguidos às vezes de capítulos inteiros, talvez completos, ao lado de
outros apenas esboçados.” [Prefácio, vol. XIV, p 20]
23. “Surpreendia pela fereza das lavras de Minas, que fizeram dela seu entreposto de exportação,
a velha São Sebastião aterrou depressa alguns brejos ; e todo e qualquer material foi-lhe útil para
tal fim. A população, preguiçosa de subir de novo os morros, construiu sobre o solo de cisco, e o
rei Dom João veio descobrir praias e arredores cheios de encantos, cuja existência ela
ingenuamente ignorava. Uma coisa compensou a outra , logo que a Corte quis se firmar…
(…)Quem observa uma carta do Rio e tem de sua antiga topografia modestas notícias, define
plenamente as preguiçosas sinuosidades das suas ruas e as imprevistas dilatações que elas
oferecem. Ali, uma ponta de montanha empurrou-as ; aqui, um alagadiço dividiu-as em duas
azinhagas simétricas, deixando-o intacto, à espera de um lento aterro. Na fisionomia das casas
estereotipam-se as cousas de nossa história. Um observador amoroso e perspicaz não precisa ler ao
alto a data, entre os ornatos de estuque para saber quando uma delas foi edificada. Esse casarão
de dois andares, quês e vê na Rua do Sabão ou da Alfândega, é dos primeiros quinze anos da
Independência. Vêde-lhe a segurança afetada ; a força demasiada das paredes ; a valentia dos
alicerces que se adivinha… Quem o fez sabia das lutas do Primeiro Reinado, vinha seguro de
possuir uma terra sua para viver a vida eterna da descendência. O tráfico de escravos imprimiu
ao Valongo e aos morros da Saúde alguma coisa de cubata africana, e a tristeza do cais dos
Mineiros é saudade das ricas faluas que não chegam mais de Inhomirim e da Estrela, pejadas de
mercadorias. O bonde, porém, perturbou essa metódica superposição de camadas. Hoje, o geólogo da
cidade atormenta-se com o aspecto transtornado dos bairros. Não há mais terrenos paralelos ; as
estratificações inclinam-se ; os depósitos baralham-se ; e a divisão da riqueza e as novas
instituições sociais ajudam o bonde neste trabalho plutônico.No entanto, este veículo alastra a cidade
; cria nas pontas de seus trilhos núcleos de condensação urbana. Onde ele chega, desenha-se uma venda,
surge um botequim, um quiosque ; em torno, edificam-se casebres. Ondulações concêntricas a esse
núcleo encontram as de outro próximo, dando nascimento a uma travessa mal povoada,
tristonha, esquecida das autoridades municipais, e que vive anarquizadamente, fora de toda a
espécie de legislação, a poucas centenas de metros de outras, apertadas num cinto de
posturas. (…) A população que as povoa é hetereoclítica. Na generalidade, operários e pequenos
empregados ; mas se algum descuidado se aventurava por uma dessas travessas adentro,
surpreender-se-á sem razão ao cruzar com algum elegante da Rua do Ouvidor. Cavalheiros de
extraordinária exuberância amorosa e de apoucados rendimentos resolvem o problema de sua
natureza gastando com a família o mínimo, num desses corredores, e o máximo nos alfaiates e

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aperitivos platônicos com as cocottes [grifo do autor] nas confeitarias.” Obras completas, vol. XIV,
pp. 221-223 ; os grifos em itálico são meus.
24. Sérgio Buarque de Holanda, em seu prefácio desta obra (volume V, Clara dos Anjos), arrasa o
romancista e suas obras. Texto jornalístico escrito em partes, em janeiro de 1949 para o Diário de
Notícias, nele Sérgio revela sua opinião de crítico que não vê em Lima Barreto o gênio que o
diziam ser, sobre-exaltando o valor de seus romances. Recusa-se a compará-lo com Machado de
Assis. “A obra deste escritor é em grande parte uma confissão mal escondida, confissão de
amarguras íntimas, de ressentimentos, de malogros pessoais, que nos seus melhores momentos
soube transfigurar em arte. É essa espécie de refundição artística o que realmente importa ou
importa antes do mais no estudo de tal obra, o que de fato vai valorizar as idéias nela expressas
ou a crítica social onde apareça.” Continua dizendo que os valores estéticos não devem ser
desdenhados em benefício de outros valores. E ressalta que em Clara dos Anjos a refundição
estética não se fez de modo pleno, pois “os problemas íntimos que o autor viveu intensamente e
procurou muitas vezes resolver através da criação literária, não foram integralmente absorvidos
e nela ainda perduram em carne e osso como corpo estranho.” [Prefácio, vol. V, p. 10]
25. Prefácio, vol. 1, p. 11.
26. Sua edição integral, como romance, apareceu somente em 25 de fevereiro de 1916, pela
Tipografia “Revista dos Tribunais” e foi bancada financeiramente por ele mesmo, ou melhor,
pelos empréstimos que fez.
27. Obras completas, v. XIV, Nota do editor à p. 183.
28. Obras completas, v. XIV, p. 182.
29. Prefácio, vol. III, p.10.
30. Prefácio, vol. III, p. 12. O texto deste prefácio foi publicado pela primeira vez no O Imparcial,
periódico do Rio de Janeiro, em 7 de maio de 1917 e foi conservado para ser o prefácio à obra, nas
obras completas.
31. Prefácio, vol II, p.10. O texto deste prefácio também apareceu antes da edição das Obras
Completas, pela primeira vez, em novembro de 1916, no Estado de São Paulo, quando da primeira
publicação do romance (final de 1915), única edição deste enquanto Lima foi vivo. É importante
ressaltar que estas críticas jornalísticas foram lidas por Lima Barreto, causando muitas vezes
furor no escritor, outras vezes servindo de alento às suas tão maltratadas noções a respeito de si
mesmo.
32. Prefácio, vol. II, p. 13 – os grifos são meus.
33. Prefácio, vol. I, pp.13-14.
34. Lobato, Monteiro. Na antevéspera. Vol. VI. Obras completas – Primeira série, Literatura Geral,
13v., 2ª edição, editora Brasiliense Limitada, São Paulo:, 1948.
35. Ver Barbosa, A vida de Lima Barreto, pp. 281-293.
36. Prefácio, vol. I, p.14.
37. Prefácio, vol. I, p.14.
38. Tendo como tema a loucura, como objeto textos literários e como problema a questão da
sensibilidade, a realização da tese de doutorado envolveu um exercício interdisciplinar, e teve o
intuito de perceber a forma pela qual a literatura, e mais especificamente os escritos de si - ou
escritos auto-referenciais - são reveladores de sensibilidades sobre a loucura. Com isto, resgatou-se
um pouco da História da Psiquiatria no Brasil sob um outro ponto de vista: o do próprio paciente.
Foram analisados três conjuntos de textos - romance, diário e cartas – que versam sobre loucura
e internações em hospícios. Revisitando a história da psiquiatria brasileira nas primeiras três
décadas do século XX e cruzando com a vida e obra de três autores e de personagens da ficção,
em que alguns escrevem seus textos durante hospitalização em manicômio, descortinaram-se
nuanças na sensibilidade fina destes escritores relativa à noção de loucura que imperava. Estes
textos, fontes primárias da pesquisa, foram os seguintes: o romance simbolista de Rocha Pombo
No Hospício, publicado em 1905, no Rio de Janeiro ; o Diário do Hospício de Lima Barreto, inserido na

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edição de sua obra (romance) inacabada Cemitério dos Vivos, que relata suas memórias e
reflexões durante uma internação em hospício, Hospício Nacional de Alienados do Rio de Janeiro,
em janeiro e fevereiro de 1920 ; e as doze cartas de TR (iniciais), um paciente internado no
Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre/RS, em 1937, às quais se denominou Cartas de
Hospício. Esta tese foi publicada na obra: Santos, Nádia Maria Weber. Narrativas da Loucura e
Histórias de Sensibilidades. Ed da UFRGS, Porto Alegre, 2008.
39. Obras completas, vol. XV, p. 35.
40. Prefácio, vol. VI, p.10.. Lima Barreto repudiou Machado de Assis e sua obra em algumas
críticas e cartas. Veremos estas cartas em outro momento, em outro trabalho.
41. Obras completas, vol. IX, p. 116.
42. “Apesar de não demonstrar vestígio algum de loucura, nem mesmo a alcoólica ou tóxica, M.
era veterano no hospício e me informou muito sobre os loucos, suas manias, seus antecedentes. O
meu mergulho naquele mundo estranho foi logo profundo, naqueles quatro dias que nele passei.
Vista assim de longe, a noção do horror que se tem da loucura não parte da verdadeira causa. O
que todos julgam, é que a cousa pior de uma manicômio é o ruído, são os desatinos dos loucos, o
delirar em voz alta. É um engano. Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une
cada observação a outra, as associa num quadro geral, o horror misteriosos da loucura é o
silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos.Há indivíduos que se condenam a um
mutismo absoluto, que não conversam com ninguém, não dizem palavra anos e anos. Destes, uns
vivem de um lado para outro, outros deitados ; ainda outros fazem gestos, e certos outros
prorrompem em berreiros.Alguns, a sua doença atacou-os no aparelho de emissão da palavra.
Havia um, mas na outra secção, velho e dizem que de família importante, que falava de onde em
onde, mas logo perdia o jeito e emudecia. Tinha delírios terríveis. Corria que em estado de
loucura matara uma irmã, na fazenda paterna, com mão-de-pilão.” IN: Obras completas, vol. XV,
p. 184.
43. Ver análise aprofundada deste Diário de Hospício e do romance Cemitério dos Vivos em Santos,
Nádia Maria Weber. Narrativas da Loucura e História de Sensibilidades, 2008.
44. Obras completas, vol. XV, p. 33.
45. Obras completas, vol. XV, p. 72.
46. Obras completas, vol.XV, p.35.
47. VELLOSO, Monica Pimenta. História e Modernismo, p. 26.
48. Prefácio, vol. VII, p. 9.

RESUMOS
A partir da leitura dos textos dos prefaciadores das obras completas (1956) de Afonso Henriques
de Lima Barreto (Lima Barreto ou LB), de sua biografia escrita por Francisco de Assis Barbosa (de
1952) e de alguns de seus escritos, discute-se o espaço da obra do escritor na literatura brasileira.
Nunca adaptado ao cânone literário de sua época e local, marginalizado socialmente, alcoolista e
duas vezes internado em hospital psiquiátrico, as imagens literárias construídas do Brasil pelo
escritor, em suas crônicas, escritos íntimos e romances, e na sua relação com a confluente
modernidade brasileira, extrapolam as nuances de sua vida comum exposta como pano de fundo
e dão lugar a uma das mais ricas obras literário-críticas da história da sociedade brasileira
daquele momento.

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A partir de la lecture des préfaces de l´œuvre complète (1956) de Afonso Henriques de Lima
Barreto (LB), de sa biographie écrite para Francisco de Assis Barbosa et de quelques-uns de ses
écrits, nous discuterons sur l´espace que l´écrivain et son œuvre ont dans la littérature
brésilienne. Il n’a jamais été encadré dans le canon littéraire de son époque et de son lieu; Il fut
marginalisé socialement, ivrogne et Il a eu deux internations psychiatriques. Pour cette raison les
imagens littéraires qu´il a construit dans son œuvre et le rapport qu’il a eu avec le modernisme
extrapolent les nuances de sa vie ordinaire, qui sont exposées en arrière-plan, et laisse la place à
l’un des plus riches œuvres littéraires-critique de l’histoire de la société brésilienne à cette
époque-là.

ÍNDICE
Palavras-chave: Barreto (Lima), modernidade, prefácios, literatura brasileira, brasilidade
modernista, História e Literatura

AUTOR
NÁDIA MARIA WEBER SANTOS
Doutora em História; UNILASALLE/Canoas - Médica-psiquiatra, Doutora em História pela UFRGS,
Professora do Mestrado Profissional em Memória Social e Bens Culturais do Centro Universitário
UNILASALLE – Canoas/RS. Autora dos livros: Histórias de vidas ausentes – a tênue fronteira entre a
saúde e a doença mental (Ed. UPF, 01 mars 2011

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