Cecília Meireles

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Cecília Meireles que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,


os cálculos do gesto,
Balada das dez bailarinas do cassino embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
Dez bailarinas deslizam de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
por um chão de espelho. Que delírio sem Deus, nossa imaginação!
Têm corpos egípcios com placas douradas,
pálpebras azuis e dedos vermelhos. E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que,
Levantam véus brancos, de ingênuos aromas, enganada,
e dobram amarelos joelhos. recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes.
Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Andam as dez bailarinas Animal encantado - melhor que nós todos!
sem voz, em redor das mesas. - que tinhas tu com este mundo
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores dos homens?
e com os charutos toldam as luzes acesas.
Entre a música e a dança escorre Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
uma sedosa escada de vileza. em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...

Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de


As dez bailarinas avançam relinchos...
como gafanhotos perdidos.
Avançam, recuam, na sala compacta,
empurrando olhares e arranhando o ruído. Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!
Tão nuas se sentem que já vão cobertas
de imaginários, chorosos vestidos. (in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.)

A dez bailarinas escondem Canção


nos cílios verdes as pupilas.
Em seus quadris fosforescentes,
passa uma faixa de morte tranqüila. Pus o meu sonho num navio
Como quem leva para a terra um filho morto,
e o navio em cima do mar;
levam seu próprio corpo, que baila e cintila.
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar
Os homens gordos olham com um tédio enorme
as dez bailarinas tão frias. Minhas mãos ainda estão molhadas
Pobres serpentes sem luxúria, do azul das ondas entreabertas,
que são crianças, durante o dia. e a cor que escorre de meus dedos
Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,
embalsamados de melancolia. colore as areias desertas.

Vão perpassando como dez múmias, O vento vem vindo de longe,


as bailarinas fatigadas. a noite se curva de frio;
Ramo de nardos inclinando flores
azuis, brancas, verdes, douradas. Debaixo da água vai morrendo
Dez mães chorariam, se vissem meu sonho, dentro de um navio...
as bailarinas de mãos dadas.
Chorarei quanto for preciso,
(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. para fazer com que o mar cresça,
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.)
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;


Lamento do oficial por seu cavalo morto praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
Nós merecemos a morte, e as minhas duas mãos quebradas.
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos, Murmúrio
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia! pois é muito longe e tão tarde!
Um pouco de sombra, apenas, Pensei que era apenas demora,
- vê que nem te peço alegria. e cantando pus-me a esperar-te.

Traze-me um pouco da alvura dos luares Permite que agora emudeça:


que a noite sustenta no teu coração! que me conforme em ser sozinha.
A alvura, apenas, dos ares: Há uma doce luz no silencio,
- vê que nem te peço ilusão. e a dor é de origem divina.

Traze-me um pouco da tua lembrança, Permite que eu volte o meu rosto


aroma perdido, saudade da flor! para um céu maior que este mundo,
- Vê que nem te digo - esperança! e aprenda a ser dócil no sonho
- Vê que nem sequer sonho - amor! como as estrelas no seu rumo.

Canção Motivo

No desequilíbrio dos mares, Eu canto porque o instante existe


as proas giram sozinhas... e a minha vida está completa.
Numa das naves que afundaram Não sou alegre nem sou triste:
é que certamente tu vinhas. sou poeta.

Eu te esperei todos os séculos Irmão das coisas fugidias,


não sinto gozo nem tormento.
sem desespero e sem desgosto,
Atravesso noites e dias
e morri de infinitas mortes no vento.
guardando sempre o mesmo rosto
Se desmorono ou se edifico,
Quando as ondas te carregaram se permaneço ou me desfaço,
meu olhos, entre águas e areias, — não sei, não sei. Não sei se fico
cegaram como os das estátuas, ou passo.
a tudo quanto existem alheias.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
Minhas mãos pararam sobre o ar E um dia sei que estarei mudo:
e endureceram junto ao vento, — mais nada.
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento. Discurso

E o sorriso que eu te levava E aqui estou cantando.


desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
dentro destas águas sem fim.
deixa seu ritmo por onde passa.
4o. Motivo da rosa Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
Não te aflija com a pétala que voa: e não vi nada, porque as ervas cresceram e as
também é ser, deixar de ser assim. serpentes
andaram.
Rosas verá, só de cinzas franzida,
Também procurei no céu a indicação de uma
mortas, intactas pelo teu jardim.
trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos E suicidaram-se os operários de Babel.
ao longe, o vento vai falando de mim.
Pois aqui estou cantando.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim. Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Serenata
Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de
Permita que eu feche os meus olhos, mim?
Retrato
Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro, — Para que serve o fio trêmulo
nem estes olhos tão vazios, em que rola o meu coração?
nem o lábio amargo.
Atitude
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas; Minha esperança perdeu seu nome...
eu não tinha este coração Fechei meu sonho, para chamá-la.
que nem se mostra. A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.
Eu não dei por esta mudança, O último passo do destino
tão simples, tão certa, tão fácil: parará sem forma funesta,
— Em que espelho ficou perdida e a noite oscilará como um dourado sino
a minha face? derramando flores de festa.

Gargalhada
Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas
Homem vulgar! Homem de coração mesquinho! transparentes.
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta E um campo de estrelas irá brotando
o ritmo e o som da minha gargalhada: atrás das lembranças ardentes.

Ah! Ah! Ah! Ah! Noções


Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês? Entre mim e mim, há vastidões bastantes


É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de para a navegação dos meus desejos afligidos.
ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais, Descem pela água minhas naves revestidas de
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas, espelhos.
destruir as lâmpadas, abater cúpulas, Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento
e atirar para longe os pandeiros e as liras... que
a atinge.
O riso magnífico é um trecho dessa música
desvairada. Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se
Mas é preciso ter baixelas de ouro, encontram.
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu! Verei-me sobre a minha própria existência, e
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas... contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares
Escuta bem: contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah! Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e
Só de três lugares nasceu até hoje essa música precário,
heróica: como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e
do céu que venta, inúmera...
do mar que dança,
e de mim.
Herança
Fio
Eu vim de infinitos caminhos,
No fio da respiração, e os meus sonhos choveram lúcido pranto
rola a minha vida monótona, pelo chão.
rola o peso do meu coração.
Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
Tu não vês o jogo perdendo-se essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
como as palavras de uma canção. porque vinha de um coração?
Desejo uma fotografia
E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos, como esta — o senhor vê? — como esta:
do pranto que caiu dos meus olhos passados, em que para sempre me ria
que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão? como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,


derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
Timidez um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta


Basta-me um pequeno gesto, nem de arbitrária fantasia...
feito de longe e de leve, Não... Neste espaço que ainda resta,
para que venhas comigo ponha uma cadeira vazia.
e eu para sempre te leve...
Reinvenção
— mas só esse eu não farei.
A vida só é possível
Uma palavra caída
reinventada.
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
Anda o sol pelas campinas
e une as terras mais distantes...
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
— palavra que não direi.
Ah! Tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
Para que tu me adivinhes,
de ilusionismo... — mais nada.
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
Mas a vida, a vida, a vida,
ponho vestidos noturnos,
a vida só é possível
reinventada.
— que amargamente inventei.
Vem à lua, vem, retira
E, enquanto não me descobres,
as algemas dos meus braços.
os mundos vão navegando
Projeto-me por espaços
nos ares certos do tempo,
cheios da tua Figura.
até não se sabe quando...
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
— e um dia me acabarei.
Não te encontro, não te alcanço...
Interlúdio Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
As palavras estão muito ditas Só — na treva,
e o mundo muito pensado. fico: recebida e dada.
Fico ao teu lado.
Porque a vida, a vida, a vida,
Não me digas que há futuro a vida só é possível
nem passado. reinventada.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.
Ísis
Deixa o presente. Não fales, E diz-me a desconhecida:
Não me expliques o presente, "Mais depressa! Mais depressa!
pois é tudo demasiado. "Que eu vou te levar a vida! . . .

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
"Finaliza! Recomeça!
afunda, desarvorado.
“ Transpõe glórias e pecados! . . ."
Eu não sei que voz seja essa
Fico ao teu lado.

Nos meus ouvidos magoados:


Mas guardo a angústia e a certeza
Encomenda De ter os dias contados. . .
Rolo, assim, na correnteza Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma. . .
Da sorte que se acelera,
Entre margens de tristeza,
Fica-se longe, quase morta, como ausente. . .
Sem ter certeza de ninguém. . . De coisa alguma. . .
Sem palácios de quimera, Tem-se a impressão de estar bem doente, muito
Sem paisagens de ventura, doente,
Sem nada de primavera. . .

De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma. . .


Lá vou, pela noite escura, E os galos cantam, no crepúsculo dormente. . .
Pela noite de segredo,
Como um rio de loucura. . .
Os galos cantam, no crepúsculo dormente. . .
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
Tudo em volta sente medo. . . A solitude nebulosa e irreal do ambiente. . .
E eu passo desiludida,
Porque sei que morro cedo. . .
Os galos cantam, no crepúsculo dormente. . .
Tão para lá! . . . No fim da tarde. . . Além da
Lá me vou, sem despedida. . . bruma. . .
Às vezes, quem vai, regressa. . .
E diz-me a Desconhecida:
E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
“Mais depressa, Mais depressa.” Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma. . .

Depois do sol... Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma. . .


E os galos cantam, no crepúsculo dormente. . .

Fez-se noite com tal mistério, Marinha


Tão sem rumor, tão devagar,
Que o crepúsculo é como um luar
Iluminando um cemitério. . . O barco é negro sobre o azul.
Sobre o azul os peixes são negros.

Tudo imóvel. . . Serenidades. . .


Que tristeza, nos sonhos meus! Desenham malhas negras as redes, sobre o azul.
E quanto choro e quanto adeus Sobre o azul, os peixes são negros.
Neste mar de infelicidades! Negras são as vozes dos pescadores,
atirando-se palavras no azul.
É o último azul do mar e do céu.
Oh! Paisagens minhas de antanho. . . A noite já vem, dos lados de Bruma,
Velhas, velhas. . . Nem vivem mais. . . toda negra,
— As nuvens passam desiguais, molhada de azul:
Com sonolência de rebanho. . . — a noite que chega também do mar.

Pássaro
Seres e coisas vão-se embora. . .
E, na auréola triste do luar,
Anda a lua, tão devagar, Aquilo que ontem cantava
Que parece Nossa Senhora já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.
Pelos silêncios a sonhar. . .

Suavíssima Ele amava a água sem sede,


e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
Os galos cantam, no crepúsculo dormente. . . livre de necessidade.
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente. . .
Os galos cantam, no crepúsculo dormente. . .
Não foi desejo ou imprudência: este relógio dourado
não foi nada. que ainda esperava por mim. . .
E o dia toca em silêncio
a desventura causada. Cronista enamorado do sagüim

Se acaso isso é desventura: O sagüim é um animalzinho assaz bonito:


ir-se a vida é mesmo o mais bonito de todos, pela selva;
sobre uma rosa tão bela, anda nas árvores, esconde-se, espia, foge depressa
por uma tênue ferida. e há deles, na terra viçosa, número infinito.

Máquina breve
Se qualquer rei da Europa o visse, gostaria
de possuí-lo como um brinquedo, vindo de longe, e
O pequeno vaga-lume raro.
com sua verde lanterna, Mas é o sagüim animalzinho tão delicado
que passava pela sombra que a uma viagem tão longa não resistiria.
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva; A cara do sagüim é como a de um leãozinho,
o pequeno vaga-lume, e pode-se conseguir que ele pouse no nosso ombro.
queimada a sua lanterna, O sagüim mais bonito de todos é o sagüim louro,
jaz carbonizado e triste que tem uma expressão de inteligência e carinho.
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.
Ele pode descer a comer à nossa mão! Graciosa
é a sua maneira de olhar. Gracioso é o movimento do
seu corpo inteiro,
Parecia uma esmeralda tão leve e breve! Mas os melhores, só no Rio de
e é um ponto negro na pedra. Janeiro
Foi luz alada, pequena se encontram: se encontram apenas nesta cidade, a
estrela em rápida seta. mui formosa.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo Romance II ou do ouro incansável
sabe que não a conserta.

De um lado cantava o sol Mil bateias vão rodando


sobre córregos escuros;
a terra vai sendo aberta
por intermináveis sulcos;
De um lado cantava o sol, infinitas galerias
do outro, suspirava a lua. penetram morros profundos.
No meio, brilhava a tua
face de ouro, girassol!
De seu calmo esconderijo,
o ouro vem dócil e ingênuo;
Ó montanha da saudade torna-se pó, folha, barra,
a que por acaso vim: prestígio, poder, engenho. . .
outrora, foste um jardim, É tão claro! — e turva tudo:
e és, agora, eternidade! honra, amor e pensamento.
De longe, recordo a cor
da grande manhã perdida.
Morrem nos mares da vida
todos os rios do amor? Borda flores nos vestidos,
sobe a opulentos altares,
traça palácios e pontes,
eleva os homens audazes,
Ai! Celebro-te em meu peito, e acende paixões que alastram
em meu coração de sal, sinistras rivalidades.
Ó flor sobrenatural,
grande girassol perfeito!
Pelos córregos, definham
negros a rodar bateias.
Acabou-se-me o jardim! Morre-se de febre e fome
Só me resta, do passado, sobre a riqueza da terra:
uns querem metais luzentes, E as idéias.
outros, as redradas pedras.

Amplas casas. Longos muros.


Ladrões e contrabandistas Vida de sombras inquietas.
estão cercando os caminhos; Pelos cantos das alcovas,
cada família disputa histerias de donzelas.
privilégios mais antigos; Lamparinas, oratórios,
os impostos vão crescendo bálsamos, pílulas, rezas.
e as cadeias vão subindo. Orgulhosos sobrenomes.
Intrincada parentela.
No batuque das mulatas,
Por ódio, cobiça, inveja, a prosápia degenera:
vai sendo o inferno traçado. pelas portas dos fidalgos,
Os reis querem seus tributos, na lã das noites secretas,
— mas não se encontram vassalos. meninos recém-nascidos
Mil bateias vão rodando, como mendigos esperam.
mil bateias sem cansaço. Bastardias. Desavenças.
Emboscadas pela treva.
Sesmarias, salteadores.
Emaranhadas invejas.
Mil galerias desabam; O clero. A nobreza. O povo.
mil homens ficam sepultos; E as idéias.
mil intrigas, mil enredos
prendem culpados e justos;
já ninguém dorme tranqüilo,
que a noite é um mundo de sustos. E as mobílias de cabiúna.
E as cortinas amarelas.
Dom José. Dona Maria.
Fogos. Mascaradas. Festas.
Descem fantasmas dos morros, Nascimentos. Batizados.
vêm almas dos cemitérios: Palavras que se interpretam
todos pedem ouro e prata, nos discursos, nas saúdes . . .
e estendem punhos severos, Visitas. Sermões de exéquias.
mas vão sendo fabricadas Os estudantes que partem.
muitas algemas de ferro. Os doutores que regressam.
(Em redor das grandes luzes,
Romance XXI ou das idéias há sempre sombras perversas.
Sinistros corvos espreitam
pelas douradas janelas.)
A vastidão desses campos. E há mocidade! E há prestígio.
A alta muralha das serras. E as idéias.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos. As esposas preguiçosas
Almocrafes e gamelas. na rede embalando as sestas.
Negras de peitos robustos
que os claros meninos cevam.
Os rios todos virados. Arapongas, papagaios,
Toda revirada, a terra. passarinhos da floresta.
Capitães, governadores, Essa lassidão do tempo
padres intendentes, poetas. entre imbaúbas, quaresmas,
Carros, liteiras douradas, cana, milho, bananeiras
cavalos de crina aberta. e a brisa que o riacho encrespa.
A água a transbordar das fontes. Os rumores familiares
Altares cheios de velas. que a lenta vida atravessam:
Cavalhadas. Luminárias. elefantíase; partos;
Sinos, procissões, promessas. sarna; torceduras; quedas;
Anjos e santos nascendo sezões; picadas de cobras;
em mãos de gangrena e lepra. sarampos e erisipelas . . .
Finas músicas broslando Candombeiros. Feiticeiros.
as alfaias das capelas. Ungüentos. Emplastos. Ervas.
Todos os sonhos barrocos Senzalas. Tronco. Chibata.
deslizando pelas pedras. Congos. Angolas. Benguelas.
Pátios de seixos. Escadas. Ó imenso tumulto humano!
Boticas. Pontes. Conversas. E as idéias.
Gente que chega e que passa.
Banquetes. Gamão. Notícias. Entre corredores e escadas,
Livros. Gazetas. Querelas. o cavo abismo do úmido subsolo
Alvarás. Decretos. Cartas. exala os soturnos prazeres da antiguidade:
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa! Um vozeiro arcaico vem saindo da sombra,
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro! — ó duras vozes romanas! —
E sugestões indiscretas: um quente sangue vem golfando,
Tão longe o trono se encontra! — ó negro sangue das feras!
Quem no Brasil o tivera! um grande aroma cruel se arredonda nas curvas
Ah, se Dom José II pedras.
põe a coroa na testa! — Ó surdo nome trêmulo da morte!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra! (Não cairão jamais estas paredes,
Washington. Jefferson. Franklin. pregadas com este sangue e este rugido,
(Palpita a noite, repleta a garra tensa, a goela arqueada em vácuo,
de fantasmas, de presságios . . .) as cordas do humano pasmo sobre o último estertor . .
E as idéias. .)

Doces invenções da Arcádia! Cem mil pupilas ficam aqui,


Delicada primavera: pregadas nas pedras do tempo,
pastoras, sonetos, liras, manchadas de fogo e morte,
— entre as ameaças austeras no fim do dia trágico,
de mais impostos e taxas depois daquela ávida e acesa coincidência
que uns protelam e outros negam. quando convergiram nesta arena de angústia,
Casamentos impossíveis. que hoje é pó e silêncio,
Calúnias. Sátiras. Essa esboroada solidão.
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas, (As pregas dos vestidos deslizaram, frágeis.
que amor trazem e amor levam . . . E os sorrisos perderam-se, fúteis.
Anarda. Nise. Marília . . . Sobre o enorme espetáculo, que foi o aroma dos
As verdades e as quimeras. cosméticos?)
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa. Presença em Pompéia
Nova raça. Outro destino.
Planos de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam. Esta conta não pagarás:
E os aleives. E as denúncias. — ficará sob uma cinza que não sabes.
E as idéias.

Coliseu Sob a cinza que ainda não sabes


ficará teu filho por nascer
e também os meninos que já sabiam desenhar nos
muros.
Cem mil pupilas houve:
— cem mil pupilas fitas na arena.
Os olhos do Imperador, dos patrícios,
dos soldados, da plebe. Ficarão os figos que ontem puseste na cesta.
Os olhos da mulher formosa que os poetas cantaram. Ficarão as pinturas da tua sala
e as plantas do teu jardim, de estátuas felizes,
sob a cinza que não sabes.
E os olhos da fera acossada,
do lado oposto. Os gladiadores anunciados não lutarão
Os olhos que ainda brilham fulvos, e amanhã não verás, próximo às termas,
agora, na eternidade igual de todos. a mulher que desejavas.

Cem mil pupilas: Tu ficarás com a chave da tua porta na mão;


— ilustres, insensatas, ferozes, melancólicas, tu, com o rosto da amada no peito;
vagas, severas, lânguidas . . . amo e servo se unirão, no mesmo grito;
Cem mil pupilas vêem-se, na poeira da pedra deserta. os cães se debaterão com mordaças de lava;
a mão não poderá encontrar a parede;
os olhos não poderão ver a rua. Mapa de anatomia: o olho

As cinzas que não sabes voarão sobre Apolo e Ísis. O Olho é uma espécie de globo,
É uma noite ardente, a que se prepara, é um pequeno planeta
enquanto a luz contorna a coluna e o jato d'água: com pinturas do lado de fora.
— a luz do sol que afaga pela última vez as roseiras Muitas pinturas:
verdes. azuis, verdes, amarelas.
É um globo brilhante:
Noturno parece cristal,
é como um aquário com plantas
finamente desenhadas: algas, sargaços,
miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e
Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa? peixes de ouro.
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno
transeunte?
Mas por dentro há outras pinturas,
que não se vêem:
Que vale o pensamento humano, umas são imagens do mundo,
esforçado e vencido, outras são inventadas.
na turbulência das horas?

O Olho é um teatro por dentro.


Que valem a conversa apenas murmurada, E às vezes, sejam atores, sejam cenas,
a erma ternura, os delicados adeuses? e às vezes, sejam imagens, sejam ausências,
formam, no Olho, lágrimas.

Que valem as pálpebras da tímida esperança, O mosquito escreve


orvalhadas de trêmulo sal?
O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.
E o homem tão inutilmente pensante e pensado O Mosquito pernilongo
só tem a tristeza para distingui-lo. trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.
Porque havia nas úmidas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistério
humano:
grandes como pórticos, suaves como veludo, O mosquito sobe e desce.
mas sem lembranças históricas, Com artes que ninguém vê,
sem compromissos de viver. faz um Q,
faz um U e faz um I.

Grandes animais sem passado, sem antecedentes,


puros e límpidos, Esse mosquito
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos esquisito
flancos cruza as patas, faz um T.
e noções de água e de primavera nas tranqüilas
narinas E aí, se arredonda e faz outro O,
e na seda longa das crinas desfraldadas. mais bonito.

Mas a noite desmanchava-se no oriente, Oh!


cheia de flores amarelas e vermelhas. Já não é analfabeto,
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes, esse inseto,
erguiam no ar a vigorosa cabeça, pois sabe escrever o seu nome.
e começavam a puxar as imensas rodas do dia.

Mas depois vai procurar


Ah! o despertar dos animais no vasto campo! alguém que possa picar,
Este sair do sono, este continuar da vida! pois escrever cansa,
O caminho que vai das pastagens etéreas da noite não é, criança?
ao claro dia da humana vassalagem!
E ele está com muita fome.

O canteiro está molhado

O canteiro está molhado.


Trarei flores do canteiro,
Para cobrir o teu sono.
Dorme, dorme, a chuva desce,
Molha as flores do canteiro.
Noite molhada de chuva,
Sem vento, nem ventania,
Noite de mar e lembranças..."

É preciso não esquecer nada

É preciso não esquecer nada:


nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não se esquecer de ver a nova borboleta


nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,


o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso
pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,


a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,


vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.

(1962)

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