Teoria Do Pensar
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Teoria Do Pensar
2017
Princípios gerais são bastante úteis, mas na vida real é sempre o caso
particular. … Portanto, o que quer que seja que você esteja fazendo,
quando você está lidando com pessoas você está lidando com uma
pessoa em particular – que, sem dúvida, se assemelha a todas as outras
pessoas, mas é também diferente.
(Bion, 1978a, p. 8)
1 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, sbpsp e do
Grupo Psicanalítico de Curitiba, gpc.
JORNAL de PSICANÁLISE 50 (92), 181-193. 2017
registro compatível com a visão científica do século XX. Nesse sentido, pode ser
vista como um novo paradigma para o pensamento psicanalítico, na intenção
com que Thomas Kuhn (1962/2006) usou este termo em epistemologia ou na
forma com que Suzanne Langer (1942/1971) usou ideia semelhante em Filosofia
em nova chave. Para ilustrar a mudança que a visão da psicanálise de Bion nos
proporciona, vou centrar-me em um ponto apenas: a substituição, na clínica, do
privilegiar as teorias psicanalíticas consagradas como uma bússola a se recorrer
na sessão analítica (a posição clássica), pela identificação da experiência emo-
cional disponível na situação analítica. Mas, antes de desenvolver este propósi-
to, acho útil deter-me, por um momento, no reconhecimento do enraizamento
do pensamento de Bion em Freud e Klein.
O legado de Bion: um novo paradigma para pensar a psicanálise | João Carlos Braga
Vamos considerar que até aqui estivemos examinando a ideia de que não
há quebra, na obra de Bion, da fidelidade aos parâmetros que Freud propôs
para a psicanálise, embora os tenha formulado em teorizações diferentes. Mas
JORNAL de PSICANÁLISE 50 (92), 181-193. 2017
as diferenças não estão só nas teorias. Com Bion, há algo de novo no campo
analítico que modifica a nossa forma de pensar a prática psicanalítica. Há uma
inflexão metodológica e epistemológica centrando o trabalho analítico na elabo-
ração da experiência emocional compartilhada na sessão e assim modificando o
estatuto dado às teorias em nossa prática clínica. Uma vez aceita esta inflexão,
o analista não mais toma as teorias psicanalíticas como geometrias (o modelo
do pensamento científico), deixando de buscar ser um mestre do conhecimento
e passando a ser um explorador renitente em suas próprias experiências clínicas,
auxiliado pelos “diários de viagem” (comunicações) de exploradores (analistas)
anteriores bem-sucedidos. Nesta última visão, teorias deixam de ser tomadas
como moldes para a experiência proteiforme e singular de cada momento e pas-
sam a ter o valor de tecidos transplantados e assimilados no analista.
É inevitável nossa necessidade de teorias para auxiliar-nos a pensar na
realidade. O que é evitável é que tomemos essas teorias como verdades – e não
como modelos que nos ajudam a dar forma ao nosso experimentar a realidade.
Não é, pois, problema da psicanálise essa confusão reducionista, mas sim um
problema de desenvolvimento dos psicanalistas.
O apoio que Bion buscou na geometria para criar modelos de suas te-
orizações sobre a vida mental é exemplo marcante de nossa necessidade de
teorias (modelos para pensar). Neste sentido, podemos tomar Transformações
(1965/2004b) como seu texto mais marcante. E seus capítulos iniciais como
a tentativa de contrastar duas visões da mente: a primeira, que acontece em
uma dimensão finita, simbólica (como a geometria euclidiana) e que pode ser
formulada como transformações em movimentos rígidos, que têm na teoria da
transferência o seu paradigma, ou seja, aquilo que é infinito (inconsciente) pode
ser apreendido (contido, reduzido) na relação analítica. A segunda visão, in-
cômoda, de estarmos às voltas com dimensões que podem ser aproximadas,
mesmo enquanto infinitas e desconhecidas, tem seu modelo na teoria da identi-
ficação projetiva. A geometria projetiva, com a noção de um ponto infinito em
que as paralelas vão se encontrar, oferece o apoio respeitável das matemáticas
para as transformações projetivas.2 Deste último domínio (desconhecido e infi-
nito) é que vão ser desdobradas as transformações em alucinose e em tornar-se
a realidade (“O”).
Se aceitarmos que só vamos reconhecer aquilo que conhecemos (Money-
Kyrle, 1968/1996), torna-se óbvia a necessidade de sermos sustentados pelas
teorias (metáforas bem-sucedidas) criadas para organizar nossa percepção dos
fenômenos com que entramos em contato. Mesmo a posição de que uma psi-
canálise é um processo de investigação – e, assim, se baseia em observações
3 A raiz etimológica de “experiente” é ex-perire, aquele que esteve exposto ao perigo e sobreviveu
a ele, retornando à sua condição anterior agora de posse de um novo conhecimento.
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Pergunta – O senhor considera algo que escreveu até agora, ou fez, como
uma contribuição original para a Psicanálise?
Bion – Eu não sei de nenhuma. Nenhuma.
P – Nem a sua… que parece-me, pelo menos, o mais original de seus li-
vros, a Teoria das Transformações, o senhor não o considera uma contribuição
original que tem?
B – De forma nenhuma!
P – Não?
4 Freud, citando Goethe: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”
(1913/1974a, p. 188).
5 Lembrar a distinção feita por Bion entre pré-concepções (um estágio genético no desenvolvi-
mento cognitivo, linha D da Grade) e préconcepções (estado emocional do analista ao usar
as teorias analíticas; fator do vínculo K). Ver Bion, Elementos de psicanálise, cap. 16, e P. C.
Sandler, The Language of Bion – a Dicctionary of Concepts.
6 Quero assinalar meus agradecimentos e minha dívida para com o dr. José Américo Junqueira
de Mattos, que me ofereceu a oportunidade de contato com esse material.
O legado de Bion: um novo paradigma para pensar a psicanálise | João Carlos Braga
B – Não! De fato, eu já disse repetidas vezes, se você ler esse livro, você
apenas irá entendê-lo quando perceber que está perfeitamente familiarizado
com a experiência.
7 Referência à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, que abriga, no panorama mun-
dial da psicanálise, um significativo grupo de analistas que assim pensam, entre os quais me
incluo.
8 Transformações, cap. IV.
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Temos, na ideia de que são as teorias que sustentam a nossa clínica, outro
ponto de partida para o exame da relação analista-teorias analíticas.
Bion opera com a teoria psicanalítica consolidada (Freud e Klein), em-
bora com os aprofundamentos que seu trabalho trouxe ao uso desses conceitos
na clínica. Além disso, como um explorador que se beneficia com os mapas
de viagens desenhados por seus predecessores, Bion vai além e desvela novas
dimensões em que a vida mental apresenta-se na relação analítica. Com isto, a
situação de cada analista complica-se. Temos um único vértice, mas com três
diferentes formas de pensamento que se interligam e se potencializam (Freud,
Klein e Bion). Qual o pensamento privilegiado pelo analista como sua base
maior? Qual seleção faz para si mesmo, ao valorizar os três? É bastante fácil
perceber a diferença entre autores que tratam as ideias de Bion com base no
pensamento de Freud ou de Klein e, por outro lado, autores que têm o pensa-
mento de Bion como sua base e por ele retomam Freud e Klein. As diferenças
assim surgidas são significativas.
Esclarecida a plataforma de cada um, reencontramos um velho proble-
ma. Qual penetração estão tendo os pensamentos dos autores escolhidos no
pensamento daquele analista específico? Está integrado em seu tecido mental,
ou permanece como prótese ou transplante? Bion nos alerta para este ponto:
está vivendo. Ser analista passa a ser a pessoa que se é, mantendo o vértice ana-
lítico. E outro posicionamento de Freud ajuda; psicanálise é teoria, tratamento
e investigação; terapia e investigação são complementares em uma psicanálise
(Freud, 1914/1974a, p. 26).
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9 Além de Bion e do conceito de rêverie, lembrar Freud em A interpretação de sonhos e sua refe-
rência a Silberer e às alucinações hipnagógicas.
O legado de Bion: um novo paradigma para pensar a psicanálise | João Carlos Braga
O legado de Bion: um novo paradigma para pensar a psicanálise | João Carlos Braga
Referências
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