Alain de Benoist - Hayek
Alain de Benoist - Hayek
Alain de Benoist - Hayek
Dentro das doutrinas liberais, não há dúvida sobre a originalidade da abordagem de Hayek.
Distanciando-se do liberalismo "continental" (com a exceção do de Tocqueville e Benjamin
Constant), Hayek busca retornar ao individualismo e liberalismo anglo-escoceses originais (Hume,
Smith, Mandeville, Ferguson), ao mesmo tempo que restringe noções como razão, equilíbrio puro,
ordem natural e contrato social. Para fazê-lo, ele pinta uma imagem ampla. Segunda esta, ao longo
da história a humanidade tem adotado dois sistemas social e moralmente opostos. O primeiro, a
"ordem tribal", reflete condições "primitivas" de vida. Ela denota um sistema fechado cujos
membros conhecem um ao outro e organizam sua conduta em termos de objetivos concretos
determinados de uma maneira relativamente homogênea. Nessa sociedade de interações face-a-face
arranjadas em termos de objetivos coletivos, as relações humanas são majoritariamente
determinadas pelo "instinto" e estão essencialmente baseadas na solidariedade, reciprocidade e
altruísmo grupal.
Para Hayek, a sociedade moderna constitui uma "ordem espontânea" que nenhuma vontade humana
jamais poderia reproduzir ou superar, que veio a ser segundo um modelo darwiniano. A civilização
moderna não é nem um produto da natureza, nem um de um artífice, mas o resultado de evolução
cultural em que a seleção opera automaticamente. Desde esse ponto de vista, as regras sociais
desempenham o papel atribuído a mutações na teoria neodarwinista: certas regras são retidas porque
elas são "mais eficientes" e fornecem uma vantagem àqueles que a adotam ("regras do
comportamento correto"), enquanto outras são abandonadas. Segundo Philippe Nemo, "as regras
não são inventadas a priori, mas selecionadas a posteriori, em termos de um processo de tentativa e
erro e estabilização". Uma regra será retida ou rejeitada segundo se, pela experiência, ela se
demonstra útil ao sistema inteiro constituído por regras já existentes. Hayek escreve: "É a seleção
gradual de regras comportamentais cada vez mais impessoais e abstratas liberando a livre vontade
individual ao mesmo tempo que garante uma domesticação progressiva do instinto e dos impulsos
herdados de fases precedentes de desenvolvimento pessoal que tem permitido o surgimento da
'grande sociedade', tornando possível a coordenação espontânea das cada vez mais amplas
atividades de grupos humanos". Na verdade, "se a liberdade se tornou uma moralidade política, isso
segue de uma seleção natural, o que significa que a sociedade gradualmente selecionou o sistema de
valor que melhor responde às exigências de sobrevivência, que foram aquelas do maior número".
Afinal, antes de qualquer coisa, a cultura é "memória de regras comportamentais benéficas
selecionadas pelo grupo".
Após ter apresentado diacronicamente, i.e, historicamente, a distinção entre seus dois grandes
modelos de sociedade, Hayek a reposiciona sincronicamente pela contraposição entre taxis e
kosmos. O primeiro desses termos, taxis, define ordens conscientemente instituídas - todos os
projetos políticos associando coletivismo com um objetivo comum, todas as fornas de
planejamento, de intervenção estatal, a economia administrada, etc. Para Hayek, isso é obviamente
um ressurgimento da "ordem tribal". A palavra kosmos, pelo contrário, se refere a ordem
"espontânea", auto-gerada, i.e., "naturalmente" derivando das práticas que caracterizam a "grande
sociedade". Essa ordem espontânea não existe em relação a qualquer objetivo. Seus membros
participam nela enquanto buscam apenas seus objetivos individuais, a interação de suas estratégias
particulares determinando ajustes mútuos. Assim, o kosmos surge independentemente de intenções
e projetos humanos. Segundo a famosa fórmula de Adam Ferguson (1723-1816), ela "resulta das
ações do homem, mas não de seus projetos".
Essa definição de sociedade moderna como fundamentalmente e necessariamente opaca leva Hayek
a rejeitar a definição clássica de competição como um fenômeno pressupondo, para seu
funcionamento adequado, que os jogadores econômicos e sociais tenham informações tão completas
quanto possível. Hayek rejeita a idéia de um mercado transparente: a informação pertinente nunca
pode estar completamente à disposição de seus agentes. Pelo contrário, ele afirma que o melhor
argumento para a economia de mercado é que a informação é sempre incompleta e imperfeita,
porque em tais condições é melhor sempre deixar que cada pessoa se vire por si mesma com o que
ela sabe. Aqui a competição é o resultado do laissez-faire, enquanto que no modelo clássico o
laissez-faire é implicado pela hipótese da competição pura e perfeita.
O mercado é obviamente a chave para todo o sistema. Em uma sociedade de indivíduos, a troca tem
lugar dentro do contexto do mercado, que é o único meio concebível de integração. Para Smith e
Mandeville, o mercado é um modo abstrato de regulação social. Ele é governado por uma "mão
invisível" seguindo leis objetivas que supostamente regulam relações entre indivíduos,
independentemente de qualquer autoridade humana. O mercado é intrinsecamente anti-hierárquico:
é um meio de tomar decisões em que ninguém decide por mais ninguém que não si mesmo. Assim,
a ordem social se confunde com a ordem econômica, cujos resultados não-intencionais são ações
realizadas por agentes buscando seu melhor interesse.
Hayek aceita a teoria de Smith da "mão invisível", i.e., que mecanismos totalmente impessoais
operam em um livre mercado. Porém Hayek faz algumas modificações importantes. Smith opera
em um nível macroeconômico: ainda que operando de uma maneira aparentemente desordenada, os
atos individuais acabam milagrosamente contribuindo para o interesse coletivo ou para o bem-estar
geral. É por isso que Smith permite a intervenção pública quando objetivos individuais não resultam
no bem-estar coletivo. Hayek não permite essa exceção. O liberalismo clássico também afirma que
o mercado competitivo permite a satisfação óptima de fins particulares. Hayek afirma que, como os
fins não podem ser conhecidos, eles nunca são dados. Assim, não é possível dar ao mercado a
habilidade de traduzir a hierarquia de valores. Tal afirmação é tautológica porque "a intensidade
relativa da demanda por bens e serviços, uma intensidade à qual o mercado ajustará sua produção, é
ela mesma determinada pela distribuição de renda determinada por mecanismos de mercado". Não
possuindo prioridade, o mercado não está ordenado segundo objetivos: ele os deixa indeterminados
e apenas lida com a reconciliação de meios. Ademais, na teoria clássica a alocação óptima de
recursos escassos é garantida teoricamente pelo ajuste de mercados competitivos formando um
equilíbrio geral. Seguindo Mises e antecipando a crítica eventualmente empregada por G.L.S.
Schackle e Ludwig Lachmann, Hayek rejeita essa visão estática, inspirada por Walras e tenta o seu
melhor para substituir um sistema institucional óptimo por um sistema socialmente óptimo de
produção, assim substituindo o equilíbrio estático geral com um parcialmente dinâmico.
Finalmente, Hayek afirma que não é a liberdade dos agentes que torna a troca possível, mas sim o
contrário. Isso é crucial e possui consequências decisivas. Desde um ponto de vista clássico - o
mercado no sentido mais estrito do termo - ainda estava ligado à única esfera econômica, enquanto
o papel do Estado era "completar o mercado" ao garantir sua operação adequada, mesmo
ocasionalmente o substituindo. Desde o ponto de vista neoliberal, i.e., o da economia generalizada,
o mercado se torna um modelo explicativo, um esquema interpretativo aplicável a toda atividade
humana. Assim há um mercado de casamento, um mercado do crime, etc. A própria política é
redefinida como um mercado em que empresários (políticos) tentam ser eleitos ao responder às
demandas dos eleitores, eles próprios buscando seu melhor interesse. Hayek indiretamente legitima
essa visão ao não mais propôr o mercado meramente como um mecanismo econômico permitindo o
ajude milagroso dos planos privados dos indivíduos. ao invés, ele é uma formação ordenada, uma
ordem espontaneamente estabelecida antes e independentemente de qualquer ação humana, que
pelo sistema de preços permite a comunicação óptima de informação. Sob tais condições, o
mercado assume o controle do social. Não é mais apenas o modelo de atividade humana, mas da
atividade em si. Longe de lidar apenas com a atividade econômica (Hayek tende a restringir a
palavra "economia" para unidades elementares como empresas e o lar), ele se torna um sistema de
regulações sociais gerais, pomposamente chamada "catalaxe" (um neologismo emprestado de
Mises). Ele não é mais simplesmente um mecanismo econômico para a alocação óptima de recursos
em um universo tradicionalmente descrito como governado pela escassez - um mecanismo
ordenado por uma finalidade positiva (felicidade individual, riqueza, bem-estar); ao invés, ele é uma
ordem sociológica assim como política, um suporte formal instrumental para a possibilidade de
indivíduos buscarem livremente seus objetivos particulares. Em resumo, ele é uma estrutura, i.e.,
um processo sem sujeito, espontaneamente gerenciando a coexistência da pluralidade de objetivos
privados, que se impõem sobre todos na medida em que, por natureza, ele impede indivíduos bem
como grupos de tentar reformá-lo.
Pierre Rosanvallon corretamente afirma que "de algum modo, o liberalismo transforma a
despersonalização do mundo nas condições para progresso e liberdade". Os esforços de Hayek são
parte e parcela dessa visão de substituir o poder humano com regulações sociais tão impessoais
quanto possível. Locke já havia afirmado que aqueles em autoridade devem estabelecer apenas
regras gerais e universais. Para Hayek, a coerência social que resulta não de partilhar de algum
objetivo coletivo, mas do ajuste mútuo das antecipações de cada pessoa, é tanto lógica quanto
funcional. Um estado social é coerente quando suas regras comportamentais não são contraditórias
e se conformam com sua evolução. Da mesma maneira que para Popper não se pode estabelecer o
verdadeiro, apenas eliminar o falso (falseabilidade), para Hayek, não se pode definir regras justas,
apenas determinar as que não são justas. As regras menos injustas são aquelas que não atrapalham o
funcionamento adequado do mercado, que melhor conformam a ordem impessoal e abstrata, e que
se desviam o mínimo possível da prática estabelecida. A boa sociedade é, portanto, uma em que a
lei do legislador (tese) se mantém o mais próxima possível dos costumes (nomos) que permitiram a
emergência do mercado. Segue disso que uma constituição não deve lidar com direitos substanciais,
apenas com direitos neutros e abstratos, estabelecendo limites para a ação legislativa ou executiva.
O objetivo da lei não é mais organizar ações individuais em termos do bem comum ou de algum
projeto particular, mas codificar as regras cuja única função é proteger a liberdade individual de
ação, i.e., indicar "para cada pessoa com o que ela pode contar, que objetos materiais ou serviços ela
pode usar para seus projetos, e o tipo de ação em que ela pode se engajar". Segundo Hayek, porém,
a ordem legal não pode proteger a formação de antecipações individuais em acordo com a ordem já
instituída de coisas. Contrariamente, apenas aquelas antecipações individuais de acordo com essa
ordem instituída podem ser consideradas como legítimas. As regras serão então puramente normais
formais, sem qualquer conteúdo substancial - uma condição necessária para que elas sejam
universalmente válidas. Hayek enfatiza que "apenas se elas forem universalmente aplicáveis, sem
qualquer consideração por seus efeitos particulares, elas serão capazes de manter a ordem abstrata".
É claro, os indivíduos serão todos dispostos como iguais em relação a essas regras formais, mas já
que elas se referem a uma realidade concreta que não é nada além de capitalismo liberal, sua
igualdade não terá substância: a igualdade formal caminhará de mãos dadas com a desigualdade
social real.
Uma sociedade organizada segundo trocas de mercado seria capaz de obter o apoio de todos sem
jamais propor quaisquer objetivos comuns. Ela instituiria uma ordem apenas de meios, deixando
todos responsáveis por seus próprios objetivos. O que agrega homens na catalaxe, definida como "a
ordem engendrada pelo ajuste mútuo de numerosas economias individuais ao mercado", não é uma
comunidade de objetivos, mas uma comunidade de meios expressa na ordem abstrata da lei. Junto
com Hume e Montesquieu, Hayyek também acreditava na virtude pacificadora da troca. Ao evitar
os perigos de relações face-a-face típicas da "ordem tribal" e os debates concernentes a objetivos
coletivos, o mercado neutralizaria rivalidades, acalmaria paixões, e colocaria um fim a conflitos. Se
todos os membros da "grande sociedade" fossem agregados dentro de um sistema de meios em
substituição a um debate sobre objetivos, oposições logo desapareceriam ou encontrariam suas
próprias soluções.
Esse modelo social imediatamente apresenta um problema de interpretação. À primeira vista, poder-
se-ia estar tentado a considerar a idéia de uma ordem espontânea como um avatar da ordem natural,
como concebida por teóricos contrarrevolucionários mais hostis ao voluntarismo. Isso, porém, seria
um erro porque Hayek não apresenta a ordem espontânea como um retorno a um estado tanto
original quanto permanente, de alguma forma constitutivo de todas as ordens sociais, mas como
uma ordem adquirida ao longo do tempo e culminando na era moderna. É uma ordem resultando de
uma evolução "natural", mas que ainda não é uma "ordem natural". A maneira pela qual Hayek
expõe a autonomia do social dá a seu raciocínio a aparência de holismo - pelo menos na medida em
que ele vê o mercado como uma totalidade globalizante implicando relações de troca entre agentes
que não são atributos do indivíduo isolado. Finalmente, a idéia de uma ordem espontânea parece
implicar uma noção de auto-organização de teoria de sistemas, e Hayek mesmo em vários
momentos buscou integrar suas idéias com as de P.A. Weiss, com modelos cibernéticos (Heinz von
Forster), com conceitos de complexidade (John von Neumann) e "auto-poesis" (Francisco Varela,
H. Maturana), com a termodinâmica de sistemas abertas (Ilya Prigogine), etc.
Na verdade, Hayek reformula idéias mais antigas expostas por Mandeville, Smith e Ferguson - os
três fundadores da nova teoria da "sociedade civil". Dentro do contexto do pensamento liberal, a
originalidade desses autores era para se distanciarem tanto do utilitarismo ingênuo de Jeremy
Bentham e da filosofia do direito natural. Sua contribuição consiste em não mais procurar pela
origem da sociedade (que levou Locke a postular o contrato social) mas focar na regulação ou
funcionamento social. Gautier afirmou que essa evolução corresponde à transição de uma visão de
mundo baseada na teodicéia a uma baseada na sociodicéia. O ponto essencial é a dispensa da ficção
do contrato e o reconhecimento de laços sociais como componentes da natureza humana. Uma
sociedade constituindo o esquema natural da existência humana não mais necessita desvelar o
segredo de sua "origem" em um acordo contratual entre indivíduos isolados. O mecanismo de
mercado substitui o artífice do contrato como fundação da vida social. Isso evita as apoiras típicas
de teorias contratuais herdadas de Hobbes ou Locke e é a fundação da teoria smithsoniana da "mão
invisível" - uma teoria que leva em consideração hábitos, costumes e até as tradições que
acompanharam a emergência do mercado. Em alguma medida, como com Ferguson, as trocas de
mercado se tornam a modalidade específica das relações sociais baseadas no costume.
Gautier está certo, portanto, em falar de um "individualismo impuro" para descrever esse novo
processo liberal que busca fundar "a relação de cogênese do um e do todo em uma antropologia
específica" de modo a reconciliar o interesse individual e o todo social sem recorrer a um contrato
social. As consequências são cruciais. Se apenas o modelo do mercado explica o funcionamento da
sociedade, então a economia é a melhor maneira de realizar o político. Isso implica uma acusação
contra o poder público, porque se o homem é naturalmente social não é mais necessário "forçá-lo" a
viver em sociedade: "O estado não é mais constitutivo de laços sociais, ele apenas garante sua
permanência". Melhor ainda, o poder público deve sempre ser "neutralizado" de modo a impedi-lo
de "invadir" a sociedade civil. Os políticos estão portanto deslegitimados em sua tentativa de
realizar objetivos particulares. Ao rejeitar o contrato social e focar em uma ordem espontânea para
além da natureza e do artifício, Hayek se situa categoricamente dentro dessa escola. Isso explica a
aparência holística de seu sistema: o mercado é assimilado ao "todo" social e constitui a forma mais
elevada de regulação em um nível supraindividual.
Aqui as aparências não devem enganar. Pode-se falar de holismo apenas quando a totalidade tem
sua própria lógica e objetivo, i.e., características diferentes daquelas de seus elementos
constituintes. Mas isso é precisamente o que Hayek rejeita como típico de uma "ordem tribal".
Ainda que o indivíduo jamais esteja inteiramente isolado, já que ele está sempre em sociedade e,
desde um ponto de vista moral, plenamente humano apenas em relação a seus semelhantes, na
"grande sociedade" as relações sociais podem ser entendidas apenas em termos da multiplicidade de
suas partes. A sociedade é organizada apenas em termos de seus indivíduos, da mesma maneira que
o mercado é visto apenas como um agregado de preferências individuais: a sociedade é constituída
pela interação de interesses particulares. O social é assim deduzido do individual, não o contrário. O
indivíduo e a unidade irredutível final. Segue disso que a inteligência do todo é uma função de suas
partes e que não pode haver qualquer entidade coletiva, tal como um povo, uma cultura ou uma
nação, com uma identidade diferente da soma de seus componentes individuais. Finalmente, o
comportamento dos indivíduos é governado apenas pelos objetivos que eles propõem a si mesmos.
Os membros da sociedade são átomos sociais "livres para usar seu próprio conhecimento para seus
próprios objetivos". O que guia suas escolhas é obviamente a busca de seu melhor interesse. Hayek
não é tão ingênuo para acreditar que todos se comportam racionalmente. Ele afirma, porém, que tal
comportamento é vantajoso em que, em uma sociedade em que é comparativamente mais lucrativo
agir racionalmente, o comportamento racional gradualmente se difundirá por seleção ou imitação.
Assim, na vida social o indivíduo é compelido a se comportar como um agente econômico no
mercado. Isso tudo está dentro dos paradigmas do individualismo metodológico e do homo
oeconomicus.
Hayek em verdade apresenta o indivíduo mais independente que autônomo já que, como Jean-Pierre
Dupuy aponta, "a autonomia é compatível com a submissão a uma esfera universalmente válida e
supra-individual - a uma lei normativa limitando os indivíduos segundo regras de uma
normatividade auto-fundada - enquanto indivíduos independentes são incapazes de voluntariamente
ou conscientemente propor uma ordem como projeto". Para além de toda consideração sobre a
formação de estruturas ordenadas em termos de flutuações aleatórias, essa distinção indica os
limites de uma possível reconciliação entre as idéias de Hayek e a noção de teoria de sistemas de
auto-organização: este implica uma visão anti-reducionista onde o todo inevitavelmente excede a
soma de suas partes.
II
Tendo definido a "grande sociedade", Hayek segue para estudar a ideologia a que ele se opõe, que
ele chama "construtivismo". Essa ideologia, ele diz, é o resultado de uma "ilusão sinóptica". Ela
consiste em acreditar que arranjos sociais podem ser o resultado das intenções e ações voluntárias
do homem, i.e., que é possível construir ou reformar a sociedade segundo algum projeto. O
construtivismo afirma que "as intenções humanas servirão apenas a desígnios humanos se elas
foram deliberadamente elaboradas segundo esses desígnios". Porém, Hayek mantém que é
impossível relacionar instituições a atos de vontade, já que isso requer o tipo de informação
completa que nunca está disponível. Assim, o construtivismo sistematicamente superestima o papel
possível de engenheiros sociais, reformadores e políticos.
A escola liberal clássica reteve a idéia de justiça social, pelo menos no sentido de apoiar regulações
transitórias. Hayek rejeita completamente isso em uma das críticas mais violentas já escritas. A
justiça social, ele afirma, é uma "miragem", um "encantamento inepto", uma "ilusão
antropocêntrica", um "absurdo ontológico". Em resumo, é uma expressão sem sentido, exceto na
"ordem tribal", i.e., dentro de um espaço social instituído por pessoas com objetivos bem definidos.
Para provar isso, Hayek redefine a catalaxe como um jogo social. Sendo impessoal, as regras do
jogo são as mesmas para todos. Nesse sentido, todos os jogadores são iguais. Obviamente, isso não
implica que eles podem todos vencer, já que em qualquer jogo há vencedores e perdedores.
Ademais, como apenas comportamento humano resultando de escolhas deliberadas pode ser
considerado "justo" ou "injusto", é um erro lógico aplicar esses termos a coisas que não sejam ações
humanas voluntárias. A ordem social pode assim ser declarada justa ou injusta apenas se ela resulta
de atos voluntários. Porém, Hayek se esforça para demonstrar que este não é o caso. Já que o jogo
social não tem autor, ninguém é responsável por seus resultados, e é tanto infantil quanto ridículo
afirmar que ele produz "injustiça". Na verdade, não é mais "injusto" estar desempregado do que ter
deixado de escolher o número premiado na loteria, porque apenas o comportamento dos jogadores
pode ser considerado justo ou injusto, não os resultados de tal comportamento. Como o social não é
resultado de intenções ou projetos, ninguém é responsável pelo fato de que o menos privilegiado
não ganhou o primeiro lugar. Assim, os "perdedores" estão errados em reclamar. Ao invés de
cederem a "instintos atávicos", que os leva a crer ingenuamente que cada fenômeno possui uma
causa identificável, ou procurar por aqueles responsáveis pela "injustiça" que eles sofrem, eles
fariam melhor culpando a si mesmos ou admitindo que seu "azar" é o responsável pelas coisas.
Hayek também escreve: "A maneira pela qual vantagens e fardos são afetados por mecanismos de
mercado deve ser em muitos casos considerada como muito injusta se essa alocação resultasse de
decisões deliberadas de uma pessoa particular. Mas este não é o caso". Uma vez que isso é
admitido, a consequência segue. Demandar justiça social é irrealista e ilusório. Buscar justiça social
é um absurdo que resulta na ruína do sistema legal (l'Etat de droit). Assim, Nemo abertamente
escreve que a justiça social é "profundamente imoral". A noção tradicional de justiça distributiva é
imediatamente desafiada. Todas as noções de solidariedade instituída, predicadas na noção de bem
comum, são também condenadas como "vingança tribal arcaica". Segundo Hayek, "a 'grande
sociedade' não tem nada a ver com, e não pode ser reconciliada com, a solidariedade no sentido
autêntico de busca de objetivos comuns conhecidos". Hayek até mesmo rejeita a igualdade de sorte,
pois isso anularia diferenças entre "jogadores" antes do início do jogo, o que falsificaria os
resultados. É claro, os sindicatos devem também desaparecer, pois eles são "incompatíveis com a
fundação de uma sociedade de homens livres". Quanto aqueles que reclamam de serem alienados
pela ordem do mercado, eles são "seres não-domesticados e não-civilizados". Eis o "liberalismo a
serviço do povo"!
A teoria que afirma que o mercado nunca é injusto por causa de sua natureza impessoal e abstrata
obviamente tem a vantagem de proibir a medida da realidade em termos de resultados concretos.
Com o interesse geral reduzido, na melhor das hipóteses, a manter a ordem público e fornecer
alguns serviços coletivos, e com a justiça definida em termos de regras formal-universais limitadas
a regular o comportamento dos agentes, o mercado não pode ser avaliado em termos de sua
dimensão substancial, i.e., segundo seus resultados. O mesmo vale para a justiça, que não teria
conteúdo substancial porque objetivos não tem sua própria normatividade. Em sociedade não há
"conteúdo" da vida. Ademais, como a justiça social não pode ser definida positivamente, qualquer
debate sobre sua essência é inútil. O sistema está assim perfeitamente "fechado". É necessário
obedecer à ordem do mercado porque ela não foi querida por ninguém e ela simplesmente se impôs.
É necessário seguir a ordem estabelecida sem tentar compreendê-la ou se rebelar contra ela.
Similarmente, os "perdedores" devem desenvolver uma nova moral por meio da qual "é tão somente
normal aceitar o curso de eventos, mesmo quando eles são desfavoráveis". Essa é uma apologia
desqualificada do sucesso, independentemente da causa, e ao mesmo tempo a negação radical de
equidade no sentido tradicional do termo. É também uma maneira perfeita de aliviar a consciência
dos "vencedores" e de impedir os "perdedores" de se revoltarem. O ponto de vista de Hayek, assim,
leva a uma "verdadeira teorização da indiferença pela infelicidade humana". Finalmente, o mercado
substitui o Leviatã.
A "grande sociedade" acaba sendo tão não-política quanto possível. A ordem pública é vista como
resultando sem quaisquer intenções e nenhum grande projeto político pode ser fundado na vontade
ou na razão porque não há mestre social do processo histórico. Finalmente, a regra do mercado
tende a privar o poder público de um objeto. Contra Carl Schmitt, que torna a lei dependente da
autoridade e da decisão política, Hayek afirma que a autoridade não pode e não deve ser obedecida
exceto quando ela aplica a lei.
Há, porém, discrição considerável no que concerne a natureza da obrigação legal. Ao mesmo tempo,
contra o positivismo legal de Hans Kelsen, que identifica as normas (loi) com a decisão do
legislador e como a fonte essencial do direito (droit) e da justiça, ele declara que a lei sempre existiu
- antes da autoridade dos legisladores e do Estado. Seu elogio da lei comum busca demonstrar que a
lei precedeu toda legislação, que é a fundação da teoria do normativismo legal. Essa é a nova base
do sistema legal, em que o único papel do Estado é preservar a "ordem espontânea" da sociedade e
gerenciar seus recursos. Dentro desse contexto, o político é reduzido, na melhor das hipóteses, ao
papel de guardião de regras legais formais e ao gerenciamento administrativo de uma sociedade
civil já ordenada pelo mercado. Ele não tem que produzir essa sociedade, atribuir a ela um objetivo,
difundir valores ou gerar coesão. Hayek vigorosamente rejeita a noção de soberania,
tradicionalmente definida como autoridade indivisível (seja do príncipe, seja do povo), onde ele vê
apenas uma "superstição construtivista": a sociedade que funciona melhor é aquela em que ninguém
governa. "Em uma sociedade de homens livres", ele escreve, "em tempos normais a mais alta
autoridade não deve ter poder de governar ou dar quaisquer tipos de ordens". Seu objetivo essencial
e colocar o poder público à disposição da "nomocracia". Ele até mesmo nega que possa haver
"necessidades políticas". Nemo acrescenta: "Todas as coisas consideradas, a mera idéia de poder
político é incompatível com o conceito de uma sociedade de homens livres". Já que não há polícia
sem poder, essa é claramente uma chamada para a eliminação total do político.
Aqui a democracia é definida de uma maneira puramente legal e formal. Ademais, Hayek afirma
abertamente que seu liberalismo é apenas condicionalmente compatível com a democracia. Mais
precisamente, ele adere ao constitucionalismo e à teoria de um governo representativo e limitado.
Mas ele não tem teoria do Estado. Ele conhece apenas "governo", que ele define como o
"administrador de recursos comuns", i.e, um instrumento puramente utilitário. Ele acrescenta que a
democracia só é aceitável como método de governo que não questione quaisquer princípios liberais.
Na verdade, o postulado de Hayek termina negando a democracia compreendida como um regime
com conteúdo substancial (uma identidade entre o governante e o governado) e se apoiando na
soberania popular. Como o mercado, a democracia (ou o que resta dela) se torna uma questão de
regras impessoais e de procedimentos formais sem qualquer conteúdo. Hayek vigorosamente critica
a regra majoritária, que ele vê como um princípio arbitrário oposto à liberdade individual. Segundo
Nemo, a regra majoritária é valiosa como "método de decisão, mas não como fonte de autoridade
para determinar o próprio conteúdo da decisão". Disso segue a rejeição da noção de povo como
categoria política, a negação da idéia de soberania nacional ("não há vontade do corpo social que
possa ser soberana") e a recusa de todas as formas de democracia direta.
Paradoxalmente, esse ideal "não-político" traz as idéias de Hayek para perto do "construtivismo"
marxista, que critica Hegel com base em Smith ao proclamar a autossuficiência da sociedade civil.
Na sociedade sem classes, o esvanecimento do Estado finalmente leva à obsolescência da política.
Marx, que nunca rompe inteiramente com um certo individualismo, não considera o homem como
um ser social exceto na medida em que ele participa na construção da sociedade. "Dentro do
esquema marxista", escreve Bertrand Nezeys, "o socialismo deve representar o triunfo de uma
sociedade individualista ou simplesmente do individualismo - a sociedade privada representando
apenas uma forma alienada disso". Rosanvallon, que não vê problema em ver Marx como "o
herdeiro direto de Adam Smith", ressalta que "o anticapitalismo se tornou sinônimo de
antiliberalismo, de modo que o socialismo não tem outro objetivo real que realizar o programa da
utopia liberal". Ademais, "o socialismo utópico rejeita o capitalismo inteiramente, mas permanece
cego ao sentido profundo da ideologia econômica dentro da qual ele funciona. Similarmente, o
liberalismo denuncia o coletivismo, mas não o vê senão como despotismo radical; ele não o analisa
em relação ao individualismo, na medida em que ele também transmite a ilusão de uma sociedade
despolitizada dentro da qual a democracia se reduz a consenso". Permanece a ser visto como esse
ideal não é fundamentalmente totalitário, pelo menos se admitirmos, com Hannah Arendt, que o
totalitarismo é o desejo de dissolver a política, mais do que o desejo de estendê-la para todo lugar.
III
Primeiro, Hayek pretende acreditar que todo construtivismo é racionalismo, o que trai sua
concepção "tecnicista" de atos voluntários. A prática humana raramente é o resultado de exames
racionais de prós e contras. Este é claramente o caso na "ordem tribal", em relação à qual Hayek diz
que os "instintos" são o rei. Mas isso também é verdadeiro em relação a "grande sociedade",
especialmente no domínio político, onde a determinação de objetivos coletivos é inevitavelmente
uma função de juízos de valor raramente fundados na razão. Depois, Hayek argumenta como se
decisões humanas demandassem conhecimento de todos os parâmetros, que por si só permitiriam a
avaliação adequada das consequências e resultados. Isso está predicado na ignorância completa das
decisões, notavelmente do fato de que, longe de traduzir por meio de um efeito puramente linear
refletindo um tipo de onisciência, elas constantemente passam por correções - os homens sendo
sempre capazes, após as decisões iniciais, de multiplicar decisões subsidiárias intencionadas a
modificar a cadeia de causa e efeito segundo novas informações e resultados preliminares.
"Contrariamente ao que Hayek afirma", escreve Gerard Roland, "o sucesso de uma ação não
depende necessariamente do conhecimento completo dos fatos pertinentes. Pode-se assumir que
algumas ações científicas, técnicas, econômicas, políticas, sociais, ou outras, realizadas durante a
história da humanidade, não estava baseada em tal conhecimento completo. É por isso que talvez
nenhuma ação esteja totalmente isenta de erro em relação a sua intenção inicial, mas essa falta
relativa de conhecimento nunca foi um obstáculo absoluto para o sucesso de uma ação humana
individual ou coletiva. O processo de conhecimento não é e nunca foi totalmente anterior à ação.
Pelo contrário, ele está proximamente e dialeticamente entrelaçado com ela. A falha ou sucesso de
ações passadas fornece conhecimento para ações futuras, que terão sucesso ou falharão em vistas
desse novo conhecimento e daí em diante, em um processo não necessariamente linear e
imprevisível, mas sempre mercado com os objetivos que as pessoas estabelecem para si mesmas".
Na verdade, a crítica do construtivismo conflita com o bom senso, segundo o qual "analisar
sofrimento, uma crise, ou o mal, é sempre analisá-los enquanto problema, como algo que pode ser
resolvido, cuja solução é técnica". Nesse sentido, afirmar que não se pode ou, melhor ainda, não se
deve, corrigir uma situação pela qual ninguém é originalmente responsável, é um paralogismo puro.
É, na verdade, irresponsável não agir em relação a efeitos, ainda que ninguém seja responsável por
sua causa. Assim, a questão não é saber se uma situação pode ser julgada "justa" ou "injusta",
segundo critérios abstratos, mas sim se é "justo" aceitar o que não é aceitável por razões éticas,
políticas ou outras. É imaginável deixar de melhorar a segurança de navios ou aviões sob o pretexto
de que "ninguém é responsável" pela natureza dos oceanos ou do espaço? Ao mudar o critério de
"justiça" da subjetividade humana para a objetividade da situação, ao afirmar que uma situação não
possui culpado identificável de modo a concluir que é impossível mudá-la, Hayek revela suas
preferências pessoais. Mas ele não demonstra que o homem é por definição impotente em relação
ao fato social indesejado.
Finalmente, Hayek parece argumentar que o homem não é onisciente para poder retratá-lo como
impotente. Não obstante, a habilidade do homem de modificar uma situação depende muito mais
dos meios a sua disposição do que da medida de sua "informação". com Hayek, é como se a única
alternativa fosse entre uma vontade utópica de reconstruir toda a ordem social de baixo para cima,
fazendo uma "tábula rasa do passado", e uma aceitação total da ordem (ou desordem) estabelecida.
Dentro dessa lógica de tudo ou nada - metafísica por causa de seu direcionamento ao absoluto,
todos os projetos políticos, toda vontade de reformar ou transformar só pode aparecer como uma
perturbação insuportável. Tal abordagem dá vazão à condenação liberal clássica da autonomia da
política pela simples razão que, já que a política é primariamente projeto e decisão, essencialmente
não há política que não seja construtivista. Mas isso é também um processo que pode se voltar
contra seu autor. Se, como diz Hayek, é efetivamente impossível antecipar os resultados reais das
ações humanas, de modo que a atitude mais lógica é não fazer nada para tentar mudar a sociedade,
não fica claro a razão pela qual é necessário tentar estabelecer a ordem liberal, que deveria
inevitavelmente emergir por causa de sua excelência intrínseca e das vantagens que ela garante para
a sociedade que a adotar. É igualmente nebulosa a razão pela qual alguém deveria seguir as idéias
de Hayek, e.g., suas propostas monetárias ou constitucionais, que envolvem uma ruptura mais ou
menos radical em relação à situação presente.
Aqui fica claro que é impossível usar a análise de Hayek para retornar à tradição. Na verdade,
Hayek só elogia a tradição em um contexto instrumental, de modo a legitimar uma ordem baseada
no mercado. A seus olhos, as tradições só podem ser valiosas se elas constituem "regulações pré-
racionais", que favoreceram a emergência de uma ordem abstrata e impessoal em que o mercado
constitui o resultado mais avançado. Quando ele fala favoravelmente sobre tradições, é para evocar
a lenta evolução de sociedades em direção à modernidade, a sedimentação de usos que permitiram
(pelo menos no Ocidente) que a "grande sociedade" triunfasse. Assim, todas as outras tradições só
podem ser rejeitadas. Há, porém, uma contradição em princípio entre tradições que, por definição,
são sempre parte de culturas particulares, e a universalidade das regras formais que Hayek defende.
Já que, como é comumente admitido, a modernidade ocidental atropelou as tradições por toda parte,
é fácil ver aqui que o "tradicionalismo" de Hayek só se relaciona à tradição...da extinção de
tradições.
A real natureza do "tradicionalismo" de Hayek claramente aparece em sua crítica da "ordem tribal",
cujas diferentes formas de construtivismo constituem muitas ressurgências anacrônicas. A "ordem
tribal", na verdade, não é nada além da sociedade tradicional em oposição à sociedade moderna, ou
a comunidade em oposição à sociedade. Na verdade, todas as características orgânicas e holísticas
de sociedades tradicionais e comunitárias são condenadas por Hayek como traços antagônicos à
"grande sociedade". A tradição que ele defende não conhece nem objetivos coletivos, nem o bem
comum; nem valores sociais, ou imaginário simbólico partilhado. Em resumo, é uma "tradição" tida
como valiosa apenas ma medida em que nasce da desintegração de sociedades "arcaicas".
Paradoxalmente, é pensamento antitradicional camuflado de "defesa de tradições"!
Segundo Yvan Blot, "um liberalismo do tipo tradicionalista é nacional, porque a nação em si surge
da tradição e não de uma construção arbitrária do espírito". Essa afirmação pressupõe um equívoco
duplo. Por um lado, a idéia moderna da nação é verdadeiramente uma "construção arbitrária do
espírito", porque ela é primeiramente uma criação da filosofia do Iluminismo e da Revolução
Francesa - o reino da França, que historicamente a precedeu, tendo sido ele mesmo construído de
maneira necessariamente voluntarista e "construtivista" pela dinasta dos Capetos. Pelo outro lado, é
conhecimento comum que o liberalismo de Hayek ou qualquer outro não pode designar um lugar
privilegiado para a nação, porque sua concepção do social não opera em um território politicamente
afiliado, mas em um mercado. Para os mercantilistas, o território "nacional" e o espaço econômico
ainda eram confundidos e Smith, em sua Riqueza das Nações, diferencia marcadamente estes dois
conceitos. Para Smith, as fronteiras do mercado são constantemente construídas e modificadas, não
mais coincidindo com as fronteiras estáticas da nação ou do reino: é o domínio do mercado, não
mais o do território, que é a verdadeira chave da riqueza. Enquanto tal, como Rosanvallon defende,
Smith é "o primeiro internacionalista consistente". Depois de Smith, o mesmo postulado será
defendido novamente por toda a tradição liberal. Enquanto a nação pode fornecer aos cidadãos uma
identidade, ela não pode se tornar o critério de atividade econômica, nem pode controlar ou limitar
trocas. Consequentemente, é impossível unir espaços legais, políticos e econômicos dentro de um
determinado território e sob uma autoridade particular. Do ponto de vista da atividade econômica,
não pode haver qualquer fronteira: laissez-faire, laissez-passer. Correlativamente, o comerciante não
é mais qualquer coisa além de uma entidade econômica. Segundo Smith: "Um comerciante não é
necessariamente um cidadão de qualquer país particular. Ele é geralmente indiferente em relação ao
lugar em que ele realiza seu negócio, e tão somente o menor dos desgostos é necessário para que ele
decida levar seu capital de um país para o outro, e com ele toda a indústria que esse capital
financiava". Essa afirmação captura toda a ambiguidade do "nacional-liberalismo".
Retornando ao conceito de mercado de Hayek, pela instrumentalização das tradições, para resolver
a questão da fundação da obrigação no pacto social pela legitimidade do mercado. Essa é uma
preocupação constante no pensamento liberal. A questão é sempre encontrar uma fundação natural
para a ordem social: "simpatia" com Smith, "costume" para Hume, etc. Isso apresenta o problema
da hipótese do "estado de natureza", que no pensamento de Locke é resolvido por meio do
desenvolvimento da ficção de uma cena primitiva: o contrato social. Como já indicado, na linha de
pensamento de Smith, essa ficção é inútil: a "mão invisível", cuja intervenção produz os ajustes de
mercado necessários, também explica a permanência da ordem social. Diferentemente de outros
autores liberais, porém, Hayek não considera o mercado simplesmente como "natural". Pelo
contrário, ele reconhece que ele surge em um momento particular da história. Ainda assim, é apenas
esse surgimento que ele considera natural: sem ser originalmente um fenômeno natural, supõe-se
que o mercado deva aparecer "naturalmente" sob o impacto de uma seleção automática gradual. O
naturalismo de Hayek se apóia na idéia de progresso inevitável baseado em leis objetivas não
perturbadas pela evolução cultural.
A visão de Hayek de um homem "primitivo" vivendo na "ordem tribal", ainda que bastante
diferente da de Hobbes ou Locke, ou mesmo Rousseau, é de qualquer forma antropologicamente
trivial. Considerar as sociedades tradicionais como privilegiando comportamento voluntarista
("construtivista") é questionável, porque essas sociedades são governadas precisamente por
tradições que buscam se reproduzir. Pelo contrário, pode ser dito que é a "grande sociedade" que
saúda novos projetos e desígnios deliberados. Em outras palavras, são as sociedades tradicionais e
"tribais" que emergem espontaneamente, enquanto as sociedades modernas são instituídas. Alain
Caille corretamente observa que, tornar a liberdade uma função da conformidade em relação a
ordem tradicional "leva paradoxalmente à conclusão de que a única sociedade justa concebível é
uma fechada, ao invés da Grande Sociedade Liberal". Por definição, a sociedade cuja "themis" é
mais próxima ao "nomos" é na verdade uma sociedade tradicional fechada (aberta, porém, para o
cosmos): do ponto de vista de Hayek, é ainda mais "justo" (ou, ao invés, ainda menos "injusto") em
que ela busca perpetuar sua identidade fundando a si mesma nos usos.
A idéia segundo a qual instituições duradouras são o resultado da "ação de homens, mas não de seus
desígnios", não é menos questionável. A direita inglesa, frequentemente citada como um exemplo
típico de uma instituição baseada nos costumes, nasceu realmente de maneira relativamente
autoritária e brutal "após intervenções reais e parlamentares, e é o resultado do trabalho criativo de
advogados pertencentes à administração centralizada da justiça". Mais geralmente, a totalidade da
ordem liberal inglesa é o resultado do conflito entre Parlamento e Coroa no século XVII, ao invés
de uma evolução espontânea.
Quanto ao mercado, se ele não é a forma natural de troca seu nascimento não pode ser relacionado a
uma evolução lenta de costumes e instituições livres de todo "construtivismo". Ao invés, o oposto é
o caso: o mercado constituindo um exemplo típico de uma ordem instituída. Como já indicado, a
lógica do mercado, um fenômeno tanto particular quanto recente, não surge até o fim da Idade
Média, quando os Estados emergentes, preocupados com monetarizar economias para aumentar
seus recursos fiscais, começaram a unificar o comércio local e de longa distância no coração de
mercados "nacionais" que poderiam ser controlados mais facilmente. Na Europa Ocidental,
particularmente na França, o mercado, longe de ser uma reação contra o Estado, surgiu através de
sua iniciativa. Apenas subsequentemente ele se emancipou de fronteiras e limitações "nacionais",
com o crescimento gradual da autonomia da economia. Estritamente uma criação voluntária, no
início o mercado era um dos meios de que o Estado-Nação se utilizava para se livrar da ordem
feudal. Ele buscava facilitar práticas fiscais no sentido moderno do termo (trocas intracomunitárias,
não-mercadológicas eram intratáveis). Isso envolvia a eliminação gradual de comunidades
orgânicas autônomas e, consequentemente, centralização. Dessa maneira, tanto o Estado-Nação
quanto o mercado favoreciam uma sociedade atomizada em que indivíduos são gradualmente
desembaraçados de toda socialização intermediária.
Também aparece a questão relativa a como se passa da ordem "tribal" e tradicional àquela da
"grande sociedade". Ainda que essencial para seu argumento, Hayek não elabora esse ponto.Como
pode uma sociedade particular, digamos, uma comunitária e holística, "naturalmente" da origem a
uma sociedade essencialmente individualista - uma sociedade do tipo oposto? É possível responder
a essa questão seguindo Louis Dumont, i.e., pela descoberta da emergência da modernidade como o
resultado do lento processo de secularização da ideologia cristã. Mas Hayek jamais presta muita
atenção em fatores ideológicos e, de qualquer maneira, seria problemático para sua tese afirmar que
a "grande sociedade" veio de um arroubo "construtivista". (Em verdade, o que é mais construtivista
do que a vontade de criar uma nova religião?). É por isso que ele recua para o esquema
evolucionista, i.e., um darwinismo social involucrado pela idéia de progresso.
É claro, Hayek não cai em um biologismo cru. Seu darwinismo social, cuidadosamente delineado
em A Constituição da Liberdade, consiste primariamente em apresentar a história humana como o
reflexo de uma evolução cultural funcionando segundo o modelo de evolução biológica. Como em
todo liberalismo, a competição econômica é vista como promovendo progresso tal como, no reino
animal, a "luta pela vida" supostamente pavimenta o caminho para seleção. Tradições, instituições e
fatos sociais também são explicadas dessa maneira. Similarmente, há uma transição discreta
constante dos fatos às normas: a sociedade liberal e a economia de mercado são valores já que eles
tem sido "naturalmente selecionados" no curso da evolução. O valor é assim uma função do
sucesso. Essa opinião é particularmente explícita no último livro de Hayek, onde o capitalismo é
visto não tanto em termos de sua eficiência econômica, mas como o non plus ultra da evolução
humana. Essa identificação de valor com sucesso é típica de todas as visões evolucionárias da
história. Se a evolução "seleciona" o que está melhor adaptado às condições do momento, tudo que
aconteceu na história só pode ser considerado de maneira aprovadora e otimista. A seleção santifica
o melhor - a prova de que ela é a melhor coisa é o fato de ter sido selecionada. A substituição da
"ordem tribal" pela "grande sociedade", a ascensão da modernidade, o sucesso do individualismo
sobre o holismo, são assim parte da ordem de coisas. Em outras palavras, o estado da evolução
reflete exatamente o que deve ser. A história humana pode então ser lida como progresso,
reinterpretada por Hayek como a marcha da "liberdade". "Em um universo sem progresso", escreve
Henri Lepage, "a liberdade não teria razão de ser..."
Esse modelo evolucionário também conflita com a particularidade ocidental, que, como em todos os
pontos de vista etnocêntricos, é apresentada como a personificação da normalidade, enquanto, ao
contrário, ela é a exceção. Hayek nunca explica porque a ordem liberal e o mercado não foram
"selecionados" como as formas mais adequadas de vida em qualquer sociedade a não ser no
Ocidente. Ele também não explica porque, em outras partes do mundo, a ordem social
"espontaneamente" evoluiu em outras direções...ou não evoluiu de forma alguma. Mais geralmente,
Hayek não parece perceber que todas as formas de ordem "espontânea", incluindo aquelas no
Ocidente, não são necessariamente compatíveis com princípios liberais. Um sistema social pode
evoluir "espontaneamente" em direção a uma ordem tradicional ou "reacionária" assim como em
direção a uma liberal. Também é argumentando pelo "caráter natural" das tradições que a escola
contrarrevolucionária, representada principalmente por Bonald e Maistre, desenvolve sua crítica do
liberalismo e defende a teocracia e a monarquia absoluta. Hayek raciocina como se o senso comum
fosse espontaneamente liberal, o que conflita com a experiência histórica, e como se ele se
desenvolvesse autonomamente, enquanto uma das características da sociedade moderna é
precisamente sua heteronomia. Não poderia ser de outra forma: se a ascensão da ordem liberal não é
explicada apenas pela "seleção natural", todo seu sistema colapsa imediatamente.
Na verdade, porém, a ordem do mercado não foi "selecionada" em todo lugar. Então como se pode
afirmar que a seleção da qual se supõe que essa ordem resultou é "natural"? Ademais, como se pode
demonstrar que essa ordem é a melhor que há? Aqui, a dificuldade para Hayek é a de ir de afirmar
um suposto fato para afirmar uma norma. Da afirmação de que instituições não podem ser o produto
de desígnios humanos voluntários (supostamente um fato), ele conclui que não deve haver
tentativas de transformá-las (uma norma). Da afirmação de que instituições são o resultado de uma
evolução cultural funcionando segundo o modelo de evolução biológica (supostamente um fato), ele
conclui que tal resultado necessariamente constitui progresso (uma norma). Mas então ele é pego
em uma aporia clássica: "ser" não é equivalente a "dever ser". Na realidade, Hayek sabe muito bem
que sua preferência por um sistema de valores particulares, nesse caso a ordem liberal, não pode ser
logicamente embasada. É por isso que ele oculta sua escolha por trás de considerações
evolucionárias, que conferem a seu raciocínio um ar de objetividade. Ademais, há uma contradição
entre afirmar que todas as regras morais são iguais na medida em que resultam de uma "seleção"
garantindo sua adaptação à vida social, e a necessidade de Hayek de demonstrar que a sociedade
liberal é objetivamente a melhor. A questão aqui é se a ordem liberal é a melhor por causa de suas
qualidades intrínsecas, ou porque ela foi "santificada" pela evolução. Essas são coisas totalmente
diferentes. Se a resposta é que a ordem liberal é a melhor porque ela foi "selecionada naturalmente"
no curso da história, é então necessário explicar porque ela não foi selecionada em todo lugar e
porque, ademais, ordens completamente diferentes foram selecionadas. Se, pelo outro lado, a
resposta é que ela é melhor por causa de seus próprios méritos (a posição da escola liberal clássica),
então o mercado não é mais uma norma, mas um modelo, i.e., um sistema entre outros, e não é mais
possível demonstrar sua excelência se apoiando em um fato externo a essas virtudes, nesse caso, na
evolução.
Hayek não pode escapar desse dilema a não ser recuando de novo naquele utilitarismo que ele
afirmou ter deixado para trás, i.e., afirmando que o mercado não constitui mais um meio de
coordenar todas as atividades humanas sem quaisquer planos, que ele é simplesmente o modelo
genérico de organização mais condutível ao desenvolvimento humano. Assim, ele não evita recorrer
a esse processo quando ele explica que a "grande sociedade" surgiu "porque as instituições mais
eficientes prevaleceram em um processo competitivo". Mas tal raciocínio implica um inconveniente
duplo. Por um lado, leva de volta a um juízo totalmente arbitrário: afirmar que todas as aspirações
humanas se resumem a um princípio de eficiência que permite que o melhor se enriqueça
materialmente é simplesmente outra maneira de dizer que não há valor maior que esse
enriquecimento (enquanto Hayek afirma que a economia não tem como seu principal objetivo a
criação de riqueza). Mas então, pelo outro lado, não está mais claro qual é a vantagem de um
mercado definido como uma ferramenta epistemológica permitindo acesso a uma ordem global. Se
a superioridade do mercado atualmente se apóia apenas em sua habilidade de produzir riqueza, e se
a primeira prioridade é o auto-enriquecimento, não há mais qualquer razão para que aqueles que
falhem ficarem satisfeitos com sua sorte ou acharem a distribuição desigual de bens "normal".
Assim, Caille oferece a pergunta correta: "Tornar a eficiência de mercado o critério e o objetivo de
justiça não acaba equivalendo a reintroduzir em sua própria definição considerações supostamente
já dispensadas?" Ao retroceder a uma apreciação utilitária do mercado, Hayek anula e invalida tudo
que ele havia dito sobre a "não-injustiça" da "grande sociedade".
É assim que Caille define as duas aporias do racionalismo liberal crítico: "A primeira vem do fato
de que a razão crítica não é autossuficiente. Para ser crítica, a razão deve encontrar algo além de si
mesma para criticar e esse algo não pode ser algo puramente negativo. A segunda aporia segue da
primeira. A razão crítica não chega a crer que pode exaurir o real, a não ser que pressuponha que ele
se resume um raciocínio negativo, que constituiria sua única identidade. A razão liberal crítica está,
portanto, baseada em uma representação identitária das relações sociais, que contradiz a idéia de
liberdade".
Max Weber demonstrou que há sempre uma contradição entre racionalidade formal e substancial, e
que os dois sempre podem entrar em conflito. Assim, o problema do conteúdo substancial da
liberdade não pode ser abordado simplesmente pelo foco nos procedimentos que supostamente
devem garanti-la. Aqui a hipótese de ajustes espontâneos dos vários projetos em competição de
agentes econômicos e sociais em um contexto de liberdade total de trocas - ajustes óptimos não em
um sentido ideal, mas em um sentido possível, i.e., em referência às condições de vida cognitivas
reais dos membros sociais - pressupondo que não há antagonismos irredutíveis sobre interesses,
crises de mercado destrutivas, etc., se revela como profundamente utópica. Na verdade, a própria
idéia de que os valores de liberdade e de uma ordem espontânea surgindo da prática podem ser
fundidos se apoia em uma representação da sociedade sem qualquer espaço público.
Como já indicado, Hayek não hesita em dizer, junto dos liberais clássicos, que o mercado maximiza
o bem estar de todos. Ele afirma que ele constitui um "jogo" que aumenta as chances de todos os
jogadores, considerados individualmente, de alcançarem seus objetivos individuais. Essa afirmação
conflita com uma objeção óbvia: como pode o mercado maximizar as chances de indivíduos
alcançarem seus objetivos se em princípio esses objetivos não podem ser conhecidos? De qualquer
maneira, como Caille escreve, "se este fosse o caso...seria fácil manter que a economia de mercado
multiplicou os objetivos de indivíduos mais do que seus meios de realizar esses objetivos; segundo
o mecanismo psicológico analisado por Tocqueville, ele aumentou a insatisfação. Esse é um tipo de
lembrete de que os objetivos dos indivíduos não caem do céu, mas surgem do sistema social e
cultural dentro do qual eles se encontram. Assim, não é claro por que motivo, e.g., os membros de
uma sociedade selvagem não poderia tem infinitamente mais chances de realizar seus objetivos
individuais do que aqueles da 'grande sociedade'. Hayek provavelmente responderia que os
selvagens não eram 'livres' para escolher seus próprios objetivos. Isso seria tão difícil de demonstrar
quanto a idéia de que os indivíduos modernos determinam a si mesmos".
A doutrina liberal afirma que tudo pode ser comprado e vendido em um mercado autorregulado.
Como Rosanvallon ressalta, essa ideologia economicista "traduz o fato de que relações entre
homens são compreendidas como relações entre valores de mercado". Dessa maneira, ela subscreve
à negação da diferença tradicional, reconhecida pelo menos desde Aristóteles, entre economia e
política ou, ao contrário, só compreende essa diferença para inverter relações de subordinação entre
a primeira e a segunda. Ela leva, portanto, ao que Lepage chama de "economia generalizada", i.e., a
redução da dimensão social a um modelo econômico (liberal), por meio de um processo fundado em
um individualismo metodológico que legitima a si mesmo com a convicção de que, "se, como a
teoria econômica afirma, agentes econômicos se comportam de uma maneira relativamente racional
e geralmente perseguem sua melhor preferência em questões de produção, investimento, consumo,
não há razão para pensar que isso funcione diferentemente em outras atividades sociais; e.g.,
quando é uma questão de escolher um representante, escolher uma profissão, então uma carreira,
tomar uma esposa, ter filhos, garantir sua educação... O paradigma do homo oeconomicus é assim
usado não apenas para explicar a lógica de produção ou consumo, mas também para explorar o
conjunto de relações sociais baseadas na interação de decisões e ações individuais".
Os esforços de Hayek diferem do liberalismo clássico por causa de sua tentativa de refundar a
doutrina no mais alto nível possível sem recorrer à ficção do contrato social e pela tentativa de
evitar as críticas usualmente feitas em relação ao racionalismo, ao utilitarismo, ao postulado de um
equilíbrio geral ou de uma competição pura e perfeita fundada na transparência de informação. Para
fazer isso, Hayek é forçado a aumentar as apostas e transformar o mercado em um conceito global
necessário por causa de seu caráter totalizante. O resultado é uma nova utopia, predicada em
inúmeros paralogismos e contradições. Na verdade, como ressalta Caille, se não fosse pela "fala do
Estado de Bem-Estar de alcançar paz social, a ordem do mercado teria sido varrida há muito tempo
atrás". Uma sociedade baseada nos princípios de Hayek explodiria em pouco tempo. Ademais, sua
instituição só pode ser o produto de um puro "construtivismo" e indubitavelmente demandaria um
Estado ditatorial. Como Albert O. Hirschman escreve, "essa cidadania privatizada supostamente
idílica, que só presta atenção a seus interesses econômicos e serve indiretamente ao interesse
público sem jamais desempenhar um papel direto - tudo isso só pode ser alcançado dentro de
condições políticas atemorizantes". Que hoje o "pensamento nacional" esteja sendo revigorado por
esse tipo de teoria diz muito sobre o colapso desse pensamento.