Cep Eutanasia Jeronimo Trigo
Cep Eutanasia Jeronimo Trigo
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A dignidade da pessoa na fase final da vida tem sido, nos últimos meses, objecto de
debate na sociedade portuguesa. A opinião pública, e os cidadãos em particular, são
confrontados com muitos dos problemas que, justamente, são motivo de preocupação e de
reflexão, sejam eles de natureza ética, social, assistencial ou económica.
Muitas das questões actualmente em discussão são de todos os tempos, pois têm a ver
com a dificuldade em integrar a morte no horizonte da própria vida. Outras são típicas da
nossa época, porque resultam das condições que as novas possibilidades da medicina nos
proporcionam. Uma observação atenta das intervenções que surgem nos meios de
comunicação social mostra uma grande falta de rigor na terminologia usada; e é visível
que, por vezes, se pretende validar opções inaceitáveis (morte directa de um paciente)
aplicando o termo “eutanásia” a situações que não o são de facto, e que podem ser
eticamente aceitáveis.
Os Bispos de Portugal, sabendo da importância destes problemas, da intenção que, a
nível político, se tem manifestado no sentido de produzir legislação neste âmbito e perante
a ambiguidade de muitos dos conceitos que são usados, pretendem, com esta intervenção,
dar um contributo para o debate em curso e oferecer aos católicos algumas linhas de
orientação que devem ser tidas em conta nas suas reflexões.
Será conveniente recordar que esta não é uma discussão de carácter religioso ou
confessional, embora algumas posições possam ser incompatíveis com a visão cristã da
vida e do homem. Ao pensar sobre opções de carácter jurídico ou ético, é necessário,
portanto, questionarmo-nos sobre aquilo que é importante para uma vida verdadeiramente
humana, sobre o que é decisivo na realização da pessoa, sobre os valores autênticos de
humanidade, sobre o modelo de sociedade em que queremos viver.
É a este nível que se torna decisivo o contributo das intuições que brotam da fé cristã.
A revelação bíblica mostra-nos a existência humana como resultado da bondade divina,
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isto é, como um dom que suscita em nós gratidão e não nos dispensa da responsabilidade
de cuidar dele. Para o crente, a vida não está à inteira disposição de quem quer que seja,
não é arbitrariamente disponível, mas tem de ser respeitada como a condição básica de
realização pessoal. A vida humana é prévia a qualquer projecto pessoal, por isso ninguém é
senhor absoluto da sua própria vida e muito menos senhor da vida dos outros. O valor da
vida humana não brota das valorizações que a sociedade atribui ou dos critérios que no
momento são socialmente significativos, mas de uma dignidade prévia a qualquer
criteriologia. O suporte desta dignidade é a própria condição humana, que, para o cristão,
tem origem na bondade criadora de Deus e no amor salvífico de Jesus Cristo.
Esta visão crente da vida leva-nos também a encarar com realismo os limites naturais
da existência humana, já que, numa perspectiva de fé, a realização plena e definitiva da
pessoa só é possível na vida em Deus. O testemunho dos mártires cristãos mostra-nos que
não é sensato para o crente lutar pela vida a todo o custo. O horizonte da eternidade
valoriza e, ao mesmo tempo, relativiza a vida biológica de cada pessoa. Por outro lado, a
afirmação da convicção de que só Deus é o Senhor da vida, não retira ao homem a sua
responsabilidade de procurar as melhores opções para cuidar da vida que tem diante de si.
Cada pessoa deve ser respeitada como sujeito da sua própria existência e nunca
simplesmente como objecto do qual se possa dispor arbitrariamente.
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que nos deparamos no âmbito dos cuidados de saúde e do acompanhamento a doentes
terminais. A diversidade de opções gera perplexidade a quem tem de decidir.
A estes factores circunstanciais acresce o facto de o próprio processo de morrer se ter
transformado: o morrer tornou-se mais longo; na maior parte das vezes morre-se em
hospitais ou centros clínicos, nos ambientes anónimos e frios das instituições; o sofrimento
associado a longas doenças terminais causa uma insegurança adicional; diversos factores
contribuem para que os moribundos vivam uma solidão preocupante; o excesso de
tecnologia põe em causa os esforços por humanizar o cuidado dos doentes.
4. Critérios éticos
É num contexto marcado por estes desafios que tanto os profissionais de saúde como
todas as pessoas envolvidas com estas situações necessitam de critérios éticos que orientem
no sentido de uma autêntica humanização da fase terminal da vida.
4.1. A obrigação moral de garantir à vida humana uma especial protecção está
testemunhada em preceitos primordiais da humanidade, com expressões diversas em todas
as culturas, e codificada no mandamento bíblico do Decálogo: “Não matarás” (Dt 5,17). A
consciência moral das gerações que nos precederam e o próprio magistério da Igreja
procuraram, ao longo dos tempos, com os recursos culturais de cada época, encontrar
expressões e concretizações actualizadas deste mandamento, no sentido de elevar e
purificar as exigências morais nele contidas. O respeito por este imperativo é certamente
incompatível com qualquer forma de agressão directa à vida humana, sempre que ela não
ponha em causa a existência de outras pessoas.
4.2. Consequentemente, é eticamente inaceitável qualquer forma de eutanásia, isto é,
qualquer “acção ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte” (1).
Nem sequer o objectivo de eliminar o sofrimento ou livrar a pessoa de um estado penoso
pode legitimar a eutanásia, tanto mais que a medicina e a sociedade dispõem de outros
meios para socorrer os pacientes em fase terminal. Equivalente à eutanásia, do ponto de
vista ético, é qualquer forma de ajuda ao suicídio, também designado suicídio assistido.
A eutanásia é concretização de um desejo que o homem contemporâneo tem de se
apoderar da morte, antecipando-a para a situar no momento que ele próprio determina,
resultado de um medo angustiante e desesperado perante o sofrimento. A eutanásia é
frequentemente apresentada como um gesto de humanidade ou de compaixão que pretende
respeitar a dignidade com que cada ser humano quer viver. Na realidade, porém, e numa
linha de princípio, qualquer forma de eutanásia constitui uma renúncia a acompanhar a
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pessoa doente, traduz a falta de empenho de uma sociedade em procurar meios que
permitam viver dignamente todas as fases da existência humana. É, por isso, uma violação,
ainda que consentida, da dignidade fundamental que se deve reconhecer a cada ser
humano. A eutanásia ou a ajuda ao suicídio são formas desumanas de lidar com a pessoa
que vive o seu processo de morrer, constituem “uma ofensa à dignidade da pessoa humana,
um crime contra a vida e um atentado contra a humanidade” (2).
4.3. Distinta desta atitude de agressão à vida humana, é a legítima renúncia a recorrer
a todos os meios para manter viva uma pessoa em estado terminal. A obstinação
terapêutica, também conhecida por “encarniçamento terapêutico” ou “distanásia”, seria
precisamente o recurso a um conjunto de intervenções médicas já desproporcionadas face
ao bem global que a pessoa poderá vir a experimentar.
Do ponto de vista da ética, reconhece-se uma diferença fundamental entre matar e
deixar morrer, quando esta última opção não for equivalente a negligência, mas for
concretização do respeito pelo curso normal da vida humana. Esta distinção ética encontra
apoio também na já referida concepção cristã da vida, segundo a qual a vida humana é um
valor fundamental ainda que não absoluto. É moralmente legítimo, portanto, renunciar aos
meios que tenham por finalidade prolongar a vida quando da sua aplicação não se esperem
resultados terapêuticos ou ela implique o sacrifício de valores fundamentais para a pessoa
em causa.
Também esta renúncia a “tratamentos que dariam somente um prolongamento
precário e penoso da vida” (3) pode ser considerada uma opção de respeito pela vida, já
que proteger a vida não significa prolongá-la a todo o custo. O respeito pela vida humana
não se reduz a uma protecção incondicional da vida biológica, mas deve incluir também o
empenho por garantir todos os elementos que tornam humana essa vida. O direito a uma
morte digna pode significar também não esgotar todos os meios médicos, quando tal
signifique apenas um prolongamento do morrer.
4.4. Na procura de critérios éticos é fundamental também a distinção entre matar e
acompanhar o morrer. Esta última é a opção concretizada, por exemplo, nos cuidados
paliativos. Trata-se de aceitar todos os cuidados e intervenções médicas que tenham por
objectivo tornar o sofrimento mais suportável, diminuindo ou eliminando a dor,
proporcionando todo o acompanhamento humano possível e criando as necessárias
condições para um cuidado global (holístico) à pessoa em causa. O Magistério católico
ensina, já há várias décadas, que é moralmente aceitável suprimir a dor por meio de
narcóticos, mesmo que isso implique limitar a consciência ou abreviar a vida (4).
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Parece-nos que seria de evitar a expressão “ajudar a morrer”, dada a sua acentuada
ambiguidade, não sendo claro o que se quer indicar com ela, e tendo em conta que as
expressões equivalentes noutras línguas são usadas para referir aquilo que designámos por
“suicídio assistido”.
4.5. De especial actualidade é ainda a regulamentação das diversas formas de
“directivas antecipadas de vontade”. Trata-se de instrumentos, como, por exemplo o
chamado “testamento vital”, pelos quais a pessoa pode antecipadamente dispor acerca das
opções e dos valores que deseja ver respeitados quando se encontrar em situação de doença
grave ou terminal. Não havendo objecções éticas fundamentais a este tipo de
procedimentos, convém ter presente que neste campo não há a certeza de que os desejos
previamente expressos sejam actuais no momento em que é necessário decidir. Não
obstante toda a utilidade que estas determinações possam ter, para tomar decisões que
respeitem a pessoa como sujeito, convém ter presente que elas não têm um peso absoluto,
nem podem ser pretexto para justificar opções que atentem contra a vida humana. Devem
ser consideradas mais um elemento a ter em conta nas tomadas de decisão.
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ao doente acesso aos meios médicos de que necessita, assegurar um acompanhamento
humano personalizado, garantir ao paciente que não será abandonado à solidão em nenhum
momento da sua fase final, permitir-lhe a presença das pessoas que lhe são mais queridas,
facilitar-lhe a vivência das suas convicções religiosas e a satisfação das suas necessidades
espirituais, possibilitar um acompanhamento psicológico, respeitar os seus valores e
legítimos desejos, criar condições de confiança.
Numa sociedade cada vez mais dominada pela exigência de produtividade material e
regida por critérios de utilidade, é fundamental transmitir a todos os pacientes, e com maior
razão aos que se encontram em estado terminal, que a sua vida é sempre preciosa e
valorizada, mesmo nas circunstâncias dolorosas em que se encontram, que não são um
fardo para os outros, e que a sua vida continua a ser significativa para a comunidade a que
pertencem.
Sabemos que num mundo onde só têm visibilidade os bem-apresentados, os corpos
atléticos e estéticos, se torna difícil aceitar como parte da vida social um corpo desfeito
pela doença e martirizado pela dor. Na perspectiva cristã, o sofrimento, a doença e a morte
são partes da vida e têm de ser integradas no projecto pessoal de vida. Também por isso, a
humanização do morrer deve incluir um respeito profundo pela pessoa doente e um
cuidado dedicado das suas necessidades. Um morrer humano e digno exige todas as
condições de um acompanhamento global da pessoa que tenha em consideração todos os
aspectos da vida humana.
Uma vida humana nunca perde sentido nem dignidade. Também o envelhecer e o
morrer se integram no sentido da vida humana e reflectem a dignidade humana da pessoa.
“O amor para com o próximo […] torna capaz de reconhecer a dignidade de cada pessoa,
mesmo quando a doença veio pesar sobre a sua existência. O sofrimento, a idade avançada,
o estado de inconsciência, a iminência da morte não diminuem a dignidade intrínseca da
pessoa, criada à imagem de Deus” (6).
6. Uma sociedade com lugar para todos e uma vida com espaço para a morte
O recurso aos princípios éticos não ignora que as circunstâncias concretas escapam
habitualmente a todas as tentativas de regulamentação jurídica ou deontológica. Aos
cristãos pede-se que façam a sua reflexão sobre estes problemas em diálogo com os
homens e mulheres de boa vontade, certamente à luz dos dados da sua fé, num esforço por
procurar um nível elevado de moralidade.
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Mesmo admitindo que algumas situações são demasiado complexas para proferirmos
juízos prévios, e sabendo que nenhum preceito moral tem em conta a diversidade de
situações que a vida apresenta, a legitimação jurídica da eutanásia ou do suicídio assistido
teria como consequência uma pressão inevitável sobre todas as pessoas cuja vida não
correspondesse aos padrões de realização que são dominantes em determinada sociedade.
Facilmente surgiria um grupo de não desejados, vistos como peso da sociedade. Pessoas
gravemente doentes ou em estado terminal não podem ter de modo algum a impressão de
serem indesejadas, mas devem sentir de modo reforçado que são preciosas e queridas, e
que a sociedade não se dispensa de fazer tudo o que está ao seu alcance para as valorizar e
integrar.
Para além da discussão sobre a legitimidade moral de optar por alguma forma de
auto‑determinar o final da vida, parece-nos fundamental reavivar uma leitura da vida
humana, suportada pela fé cristã mas também pelas tradições humanistas da nossa cultura,
em que a morte seja integrada como momento significativo da vida de uma pessoa e ao
sofrimento seja reconhecida a possibilidade de se integrar no horizonte de sentido da
existência humana. A este propósito pode ser iluminadora a afirmação de São Paulo:
“Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos,
para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer
morramos, pertencemos ao Senhor” (Rm 14,7-8). Como explica João Paulo II, “morrer
para o Senhor significa viver a própria morte como acto supremo de obediência ao Pai
[…]; viver para o Senhor significa também reconhecer que o sofrimento, embora
permaneça em si mesmo um mal e uma prova, sempre se pode tornar fonte de bem” (7). O
cristão encontra o sentido redentor do sofrimento humano, unindo‑se a Cristo, no mistério
da sua paixão, morte e ressurreição.
Antecipar a morte, pelo suicídio assistido ou pela eutanásia, ou prolongar
desproporcionadamente o processo de morrer, tem como resultado uma expropriação da
morte, retirando ao indivíduo a possibilidade de um morrer pessoal, no respeito pelos
tempos necessários a uma integração da dor e da morte no sentido global da existência
humana. A doença e a morte são processos pessoais, que, ao mesmo tempo, exprimem a
individualidade de cada pessoa e determinam a atitude pessoal perante a própria história.
De facto, a maneira de morrer pode ser decisiva quanto ao sentido de toda uma vida. A
morte não é um problema a solucionar, mas um mistério que envolve e provoca toda a
vida.
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7. Gratidão e esperança
Todos estes são a melhor resposta a quem julga ser uma boa causa promover a
legalização da eutanásia; os seus testemunhos são maravilhosos hinos à vida, que devemos
sempre proteger.
NOTAS:
1 - JOÃO PAULO II, Evangelium vitae, Vaticano 1995, n. 65.
2 - CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração sobre a Eutanásia
(5.05.1980), in: AAS 72 (1980), II.
3 - CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração sobre a Eutanásia
(5.05.1980), in: AAS 72 (1980), IV.
4 - Cf. PIO XII, Discurso a um grupo internacional de médicos (24.02.1957), in: AAS
49 (1957), 145; CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração
sobre a Eutanásia (5.05.1980), in: AAS 72 (1980), 547; JOÃO PAULO II,
Evangelium vitae, Vaticano 1995, 65.
5 - PIO XII, Discurso a um grupo internacional de médicos (24.02.1957), in: AAS 49
(1957), 145.
6 - JOÃO PAULO II, Discurso aos participantes no XIX Congresso Internacional do
Pontifício Conselho para a Pastoral no Campo da Saúde, 12.11.2004, n. 3.
7 - JOÃO PAULO II, Evangelium vitae, Vaticano 1995, 67.