Mistérios Do Tanakh
Mistérios Do Tanakh
Mistérios Do Tanakh
I - Introdução
! É da natureza humana indagar o porque das coisas. E nenhuma época foi mais
recheada de indagações do que o tempo em que o povo de Israel esteve sob o jugo dos
selêucidas, e posteriormente dos romanos, ao final do período do Segundo Templo.
! Tais líderes, muitas vezes, precisavam sustentar suas alegações. Sendo assim,
recorriam a um misto de folclore, com supostas revelações, e atribuíam seus
ensinamentos e suas teorias a personagens bíblicos. E uma das fontes usadas para suas
teorias é justamente o fato da Torah possuir lacunas narrativas, e personagens citados
apenas de passagem.
! Por essa razão, nos tempos do Judaísmo do Segundo Templo, floresceram uma
série de pseudo-epígrafos e teorias envolvendo personagens desconhecidos, e
conhecimentos que supostamente teriam sido perdidos. Esses conhecimentos permitiriam
uma revisão no Judaísmo, que supostamente agradaria ao Eterno e poria fim ao exílio.
! Tão grande foi a profusão da chamada literatura enoquiana, que é tão extensa que
chega a dar nome no meio acadêmico ao que se apelida de Judaísmo Enoquiano.
! Isso se explica pela natureza do ser humano. O ser humano é curioso, e sempre tem
a sensação emocional de que existe algo que ele não sabe, e que lhe foi oculto, e se
lança nessa direção de buscar respostas.
! Tal é a ânsia por conhecimentos ocultos, que as pessoas facilmente passam por
cima de qualquer lógica ou razão, e adotam as teorias mais insanas possíveis, em nome
de um suposto conhecimento que as torna detentoras de uma verdade que é capaz de
restaurar Israel.
II - Mitos do Personagem
! Uma das figuras que é objeto de especulação é Malki-Ṣedeq, um rei jebuseu que é
chamado pela Torah de “kohen/sacerdote do El Elyon”.
“E Malka Zadika, que era Shem Bar Noah, rei de Yerushalem, encontrar Avram.” (Targum
Pseudo-Yonatan 14)
! Não é incomum, caro leitor, que a tradição farisaica tente associar personagens
misteriosos a outros antigos. Porém, além de claramente forçosa, pois a Torah nada diz a
esse respeito.
! Além disso, Shalem era uma cidade pertencente aos jebuseus. Os jebuseus não
eram descendentes de Shem, e sim de Kena’an:
! Essa evidente contradição fez com que alguns dos exegetas rabínicos posteriores
buscassem explicação para essa aparente contradição. Rambam, em seu comentário
sobre Gn. 14:18, afirmaria que Shem teria vindo como forasteiro para servir ao Eterno, já
Rashi, em comentário de Gn. 12:6, afirmaria que a terra teria sido primeiramente alocada
à descendência de Shem.
! Avraham (Abraão) não era apenas descendente direto de Shem, como também era
da linhagem dos primogênitos de Shem. Ou seja, se Shem fosse um kohen (sacerdote)
Avraham também o seria.
! A outra tradição judaica acerca de Malki-Ṣedeq nos vem através dos manuscritos do
Mar Morto, e é ainda mais especulativa:
"E acerca do que dizem as Escrituras: “este ano de jubileu [vós retornareis cada um
de vós à vossa propriedade” e e também o que está escrito: [“E esta] é a [fo]rma da
[remissão]: todo credor remirá a causa que é levantada [contra o próximo, não a cobrando
de um próximo que é membro da comunidade, porque] a remissão [de Elohim foi
proclamada: A interpretação] é que se aplica [aos Ú]ltimos Dias, e diz respeito aos cativos,
assim como [Yeshayahu disse: “Para proclamar o jubileu aos cativos...] e cujos
professores foram ocultados e mantidos em secre[to], isto é da herança de Malki-Ṣedeq,
pois [...] e eles são a heran[ça de Malki-Ṣe[dek], o qual os retornará ao que era deles por
direito. Ele lhes proclamará o jubileu, portanto os livrando-o[s da dívida de t]odos os seus
pecados.” (11Q13)
“[… O Eterno o separará] para o mal do meio dos Filhos da Lu[z por causa de sua
apostasia. E eles respoderão: ‘Mal]dito seja, Oh Malki-Resha, para todos os pro[pósitos
de nossos desejos culposos. Que] o Eterno [te aponte] por objeto de terro nas mãos
deles que operam vingança.” (4Q280)
!!!!!!!! Israel estaria no cativeiro por causa de suas transgressões, sobre as quais aparece
o apontamento de um outro anjo, Malki-Resha ()מלכי–רשע, literalmente, “meu rei é
impiedade.”
III - Fatos
! Isso pode ser observado, inclusive, por sua relação com outro líder jebuseu que
aparece mais adiante na narrativa do Tanakh: Adoni-Ṣedeq.
“E sucedeu que, ouvindo Adoni-Ṣedeq, rei de Yerushalayim, que Yehoshua tomara a ‘Ai, e
a tinha destruído totalmente, e fizera a ‘Ai, e ao seu rei, como tinha feito a Yeriho e ao seu
rei, e que os moradores de Guiv’on fizeram paz com os israelitas, e estavam no meio
deles, Temeram muito, porque Guiv’on era uma cidade grande, como uma das cidades
reais, e ainda maior do que ‘Ai, e todos os seus homens valentes. Pelo que Adoni-Ṣedeq,
rei de Yerushalayim, enviou a Hoham, rei de Hevron, e a Piram, rei de Yarmut, e a Yafi’a,
rei de Lakhish e a Devir, rei de ‘Eglon, dizendo: Subi a mim, e ajudai-me, e firamos a
Guiv’on, porquanto fez paz com Yehoshua e com os filhos de Israel. Então se ajuntaram, e
subiram cinco reis dos amorreus, o rei de Yerushalayim, o rei de Hevron, o rei de Yarmit, o
rei de Lakhish, o rei de ‘Eglon, eles e todos os seus exércitos; e sitiaram a Guiv’on e
pelejaram contra ela.” (Yehoshua/Josué 10:1-5)
! Dentre essas cartas, uma delas é contemporânea a tomada das terras de Kena’an
por Yehoshua (Josué) e seus homens, é escrita por Abdi-Heba, que é apresentado como
governador de Jerusalém, a um faraó do Egito.
!!!!!!!!É bem provável, portanto, que o enfraquecimento da região e a aliança com o Egito
expliquem porque Abdi-Heba não uitilizava o termo melekh (ְֶ )מֶלpara se referir a si
próprio, título esse reservado ao faraó, a quem a cidade dos jebuseus estava subjugada.
“E aconteceu nos dias de Amrafel, rei de Shin’ar, Aryokh, rei de Elassar, Kedorla’omer, rei
de ‘Elam, e Tid’al, rei de Goyim.” (Bereshit/Gênesis 14:1)
! Nesse conflito, Lot (Ló), sobrinho de Avraham (Abraão), foi tomado cativo. Isso
resultou numa ação de Avraham contra os reis estrangeiros:
! Avraham (Abraão), que na época ainda se chamava Avram (Abrão), sobe à guerra
contra os reis estrangeiros, livrando não apenas seu sobrinho Lot, mas também os reis
cananeus.
“E o rei de Sedom saiu-lhe ao encontro (depois que voltou de ferir a Kedorla’omer e aos
reis que estavam com ele) até ao Vale de Shaweh, que é o vale do rei.”
(Bereshit/Gênesis 14:17)
! Mas, ele não vem sozinho. Outro rei cananeu aparece junto com ele: Malki-Ṣedeq.
E é justamente esse texto que observaremos em detalhe agora.
! O que você verá a seguir, contudo, caro leitor, é um dos mais graves exemplos de
falsificação das Escrituras jamais registrado. Observe:
A Grande Falsificação
;ָמִגֵּן צֶָריָ בְּיֶָד- אֲשֶׁר, ּובָרּוְ אֵל עֶלְיֹון. ֹקנֵה שָׁמַיִם וָאֶָרץ, בָּרּוְ אַבְָרם לְאֵל עֶלְיֹון: וַיֹּאמַר,וַיְבְָרכֵהּו
. מִכֹּל,לֹו מַעֲשֵׂר-וַיִּתֶּן
wayvorekhehu, wayomar: barukh avram leel ‘elyon, qoneh shamayim wa’areṣ. uvarukh el
‘elyon, asher-miguen ṣarekha beyadekha; wayiten-lo ma’asser mikol.
E ele o abençou, e disse: ‘Bendito seja Avram por El Elyon, possuidor dos céus e da
terra.’ E ele lhe deu um décimo de tudo.
! O texto hebraico diz claramente: wayiten (e ele deu) lo (lhe) ma’asser (décimo)
mikol (de tudo).
! Essas são as únicas palavras que aparecem no texto hebraico. Agora observe a
falsificação nas traduções cristãs:
“”e bendito seja o D… Altíssimo que entregou teus inimigos entre tuas mãos." E Abrão
lhe deu o dízimo de tudo.” (Bíblia de Jerusalém)
“E bendito seja o D… Altíssimo, que entregou seus inimigos em suas mãos. E Abrão lhe
deu o dízimo de tudo.” (NVI)
“E bendito seja o D… Altíssimo, que entregou os teus inimigos nas tuas mãos. E Abrão
deu-lhe o dízimo de tudo.” (Almeida)
! Por um motivo muito simples. O autor do livro cristão de Hebreus diz o seguinte,
equivocadamente:
“Mas aquele, cuja genealogia não é contada entre eles, tomou dízimos de Abraão, e
abençoou o que tinha as promessas.” (Hebreus 7:6)
! O texto não deixa nenhuma dúvida de que é Avram quem recebe a oferta de um
décimo dos despojos de guerra, conforme ficará claro logo a seguir:
! O rei de Sedom pede a Avram que lhe dê hanefesh, o que pode ser entendido
como as pessoas, os animais, ou ambos. E oferece que Avram fique com os bens.
מִחּוט וְעַד- אִם. ֹקנֵה שָׁמַיִם וָאֶָרץ,יְהוָה אֵל עֶלְיֹון- הֲִרמֹתִי יִָדי אֶל:מֶלְֶ סְֹדם- אֶל,וַיֹּאמֶר אַבְָרם
אַבְָרם- אֲנִי הֶעֱשְַׁרתִּי אֶת,לְָ; וְֹלא תֹאמַר-אֲשֶׁר-אֶַקּח מִכָּל- וְאִם,נַעַל-ְשְׂרֹו
wayomer avram el-melekh sedom: harimoti yadi el-YHWH el elyon, qoneh shamayim
waareṣ. im-mihut we’ad sherokh-na’al, weim-eqah mikol-asher-lakh; welo tomar, ani
he’esharti et-avram
E disse Avram ao rei de Sedom: Ergui minha mão a YHWH, o El Elyon, Possuidor dos
céus e da terra. Jurando que desde um fio até à correia de um sapato, não tomarei coisa
alguma de tudo o que é teu; para que não digas: Eu enriqueci a Avram; -- 14:22-23
! Avram (Abrão) sai da guerra sem tomar para si qualquer despojo ou provisão,
apesar das ofertas dos reis de Sedom (Sodoma) e Shalem.
Que El Elyon?
! Mas outro ponto que chama a atenção é o contraste entre as palavras de Malki-
Ṣedeq e as de Avram (Abrão).
! Observe como Malki-Ṣedeq bendiz a Avram (Abrão) pelo El ‘Elyon, possuidor dos
céus e da terra, ao passo que Avram enfatiza que nada deseja deles por um juramento
que fez a YHWH, El ‘Elyon, possuidor dos céus e da terra.
!!!!!!!!!!!Já o termo ‘Elyon ()עליון, vem da raíz ‘alah ( )עלהque significa ascender ou subir.
‘Elyon significa portanto “Altíssimo”.
! A pergunta que fica é: Será que Malki-Ṣedeq e Avram criam no mesmo Poder
Altíssimo?
“Mas se o poderoso Ba’al vive, então o Príncipe, o Meste da Terra, reviveu. Então, em
uma visão do Criador do Todas as Criaturas, os céus deixaram chover óleo, e os wadis
correram com mel…
Ouve, rogo-te, o Mot filho de El. Por que batalhas contra o poderoso Ba’al? Cuidado,
para que teu pai, Toru-El [El, o Touro] não te ouça.” (As Batalhas de Anat - Col. III 2-7;
Col. VI 24-26)
Malki-Ṣedeq: ‘Bendito seja Avram por El Elyon, possuidor dos céus e da terra
Avram: ‘Ergui minha mão a YHWH, o El Elyon, Possuidor dos céus e da terra. Jurando
que desde um fio até à correia de um sapato, não tomarei coisa alguma de tudo o que é
teu; para que não digas: Eu enriqueci a Abrão.’
! A Torah não relata nenhum juramento da parte de Avram (Abrão) de que não
tomaria posse daqueles homens, que o ofereciam liberalmente.
“E moveu-se dali para a montanha do lado oriental de Bet-El, e armou a sua tenda, tendo
Bet-El ao ocidente, e Ai ao oriente; e edificou ali um altar a YHWH, e invocou o nome de
YHWH.” (Bereshit/Gênesis 12:8)
!
! O juramento de Avram (Abrão) pode ser porque ele havia prometido a YHWH
fidelidade.
! Poderia ter Avram (Abrão) recusado os despojos dos cananeus, dados em nome
da divindade local deles, justamente porque tinha com YHWH uma aliança de
exclusividade?
! Mas, não há nada que assegure que Malki-Ṣedeq tenha sido de fato um
personagem que adorasse ao Eterno. O autor deste texto acha a ideia acima indicada
improvável, e entende ser muito mais plausível e compatível com a fluidez da narrativa a
ideia de que Avram (Abrão) na verdade estivesse corrigindo os reis cananeus, e indicando
o verdadeiro El Elyon (Poder Supremo) como sendo YHWH.
VI - O Salmo 110
! Vale ressaltar que al-divrati não é “pela ordem”, mas sim “pelo meu dito” (divrati).
Observe uso semelhante:
“Mas quanto a mim eu buscaria a El, e a Elohim entregaria a minha causa [ ִדּבְָרתִי-
divrati].” (Iyov/Jó 5:8)
! Iyov (Jó) aqui diz literalmente que entregaria o seu dito, isto é, a sua reclamação,
ao Eterno.
! A linguagem poética do salmo também traz malki, logo após divrati, indicando que
o Eterno está falando que o salmista é o rei dEle, isto é, por Ele escolhido.
!
! Vale ressaltar ainda que kohen nem sempre significa sacerdote, podendo também
indicar um administrador ou gestor.
“E Benayahu Ben Yehoyada, tinha o cargo dos quereteus e peleteus; e os filhos de Dawid
eram ministros de estado [kohanim - ]כֹּהֲנִים.” (Sh’muel Beit/2 Samuel 8:18)
VII - Conclusão
Avram (Abrão) não entregou “dízimos” a Malki-Ṣedeq, e sim recebeu dele a décima
parte dos despojos de guerra. Lamentavelmente, muitas traduções para o português
falsificam o trecho, inserindo deliberadamente o nome de Avram (Abrão) para torná-lo o
autor da ação, que na realidade pelo contexto é de Malki-Ṣedeq.
O Sl. 110 também não traz nenhuma nova informação sobre Malki-Ṣedeq, se é que
o cita. Mesmo que o faça, certamente é estabelecendo um paralelo entre o governante
jebuseu e o trono da dinastia de Dawid, já que ambos teriam reinado sobre a mesma
cidade.
A ideia de que o salmo em questão se refira a uma ordem sacerdotal é fruto de uma
tradução absurda a partir do hebraico. Que possivelmente também se estabeleceu a
partir de conceitos tendenciosos de outras religiões.
Para o Tanakh (Bíblia Hebraica), todavia, não existe ordem sacerdotal do rei jebuseu
da antiga Shalem.