03 Oevangelhoperdido
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Julio Fontana**
Esse livro de Mack , no mnimo, polmico.1 O autor faz uma anlise profunda da fonte de ditos de Q, to profunda que chega a perder-se na escurido que adentrou. No obstante, Mack faz consideraes importantes e mostra-nos que devemos dar ao Q a sua devida ateno. O Q, para Mack, no deseja contar uma histria dramatizada sobre a vida de Jesus, mas relaciona apenas os seus ensinamentos. Os seguidores de Jesus que viviam nessa comunidade viam Jesus como o fundador do seu movimento, porm no dedicavam muita nfase a sua pessoa, sua vida ou seu destino. Estavam mais preocupados com o programa social que era proposto nos ensinamentos que pregou (p. 9). Mack est certo. Os seguidores de Jesus, aqueles da comunidade de Q,2 certamente teriam visto seu mestre ainda em vida e por isso no especulavam sobre a sua biograa. Contudo, com a expanso do movimento para outras reas (Sria e sia Menor, p. 10), comeou-se a cogitar como Jesus teria vivido, como deve ter sido o seu relacionamento com a famlia (principalmente pelo fato desses serem os lderes da Igreja) e como foi a sua infncia. O primeiro problema da teoria de Mack ocorre quando ele arma que as sentenas de Q possuem blocos teolgicos bem denidos. Ele diz que
estudos recentes mostraram que possvel identificar com razovel preciso as razes dos agrupamentos e sua disposio no conjunto da coletnea de sentenas. Podem-se identificar blocos de material homogneo organizado por tema, sentenas que ilustram ou comentam outras sentenas e unidades menores daquilo que os gregos teriam chamado de argumento completo. Freqentemente, o modo pelo qual as sentenas so agrupadas ou ordenadas faz diferena (p. 104).
Mas o problema mais polmico da teoria de Mack a pretensa evoluo teolgica sistemtica e gradual de Q. Ele arma que o Q evoluiu de um substrato, o qual ele denomina Q, para outro substrato Q, e nalmente para o Q. O material Q, para o autor, lembra extraordinariamente o discurso tpico da tradio grega da losoa cnica. Esse tipo de sabedoria no pretendia uma elucidao sobre o funcionamento do mundo a m de recomendar atitudes e comportamentos adequados. Em vez disso, observaes ferinas exploravam os momentos embaraosos das relaes humanas e as pretenses que o pensamento tradicional negligencia ou tenta encobrir com suas racionalizaes em favor de valores sociais convencionais. Da se origina a teoria de Mack, segundo a qual Jesus teria sido uma espcie de lsofo cnico (p. 49). Essa teoria uma das mais repudiadas (acertadamente) por outros estudiosos do Novo Testamento. O material de Q, entretanto, no deu continuidade ao paralelo cnico. Mack diz que
o estilo aforstico de Q entra em declnio to abrupto a ponto de quase desaparecer. Os imperativos aforsticos foram abandonados, assim como a noo de confiana nos cuidados de Deus derivada do modo como a natureza prov as criaturas de suas necessidades bsicas. Em troca, ouve-se a voz de um profeta que no se furta a pregar o castigo e o fardo da ameaa apocalptica (p. 129).
Como armei no incio da resenha, Mack faz consideraes importantes sobre as origens crists. Ele mostra que o cristianismo primitivo no era uma religio unicada e que ela tinha sido inuenciada por outras religies que lhe foram contemporneas (ver p. 28). Os textos apcrifos achados em Nag Hammadi demonstraram essa complexidade do incio da f crist. Os achados de Qumran tambm foram importantes para mostrar que o cristianismo possua idias muito semelhantes com a apocalptica judaica.
Na verdade, para a construo da mitologia de Q foram usadas duas imagens: a de sabedoria de Deus e do Filho do Homem. Aqui, tambm entram os relatos sobre Joo Batista e sobre o confronto de Jesus com os fariseus.3 Mas por que houve essa mudana? Por causa da rejeio que o povo de Q vivenciou (p. 153). A rejeio foi o motivo do recurso linguagem do julgamento para esta gerao, tema que vai perpassar todas as sentenas de Jesus em Q. A camada Q abre uma pequena janela para a comunidade de Q depois da guerra. Um importante acrscimo que ocorreu nesse estgio foi a histria da tentaes de Jesus. A histria das tentaes introduz trs novos temas caractersticos de Q. So eles: (1) a mitologia de Jesus como Filho de Deus, (2) a relao entre Jesus como Filho de Deus e o Templo de Jerusalm e (3) a autoridade das Escrituras. No nal das contas, con-
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clumos que a comunidade de Q deve ter produzido um documento muito popular que foi amplamente lido no ltimo quartel do sculo I. Esse documento deve ter sido copiado vrias vezes e compartilhado por diversos grupos do povo de Jesus em diversas localidades, pois ele foi lido e utilizado pela maioria dos evangelistas. Mesmo sendo essa teoria bem entrelaada, no possui qualquer suporte probatrio vlido. Mal podemos delimitar o contedo total de Q, quanto mais dividi-lo em estratos e substratos, sem falar de uma evoluo teolgica denida. O resultado dessa subdiviso de Q em estratos o total descartamento, pelo autor, de uma viso de mundo apocalptica por Jesus, contrariando o tradicional modo acadmico de compreenso do Reino de Deus (p. 121). Mack no parou por ai. A partir dessa evoluo teolgica, ele remontou a histria social dessa comunidade segundo esses estratos e as mudanas que apresentaram com a evoluo do tempo. O autor arma: A histria da comunidade de Q pode ser escrita observando as mudanas de discurso registradas em sua coleo de sentenas de Jesus (p. 196). Toda a sua teoria sobre a histria social da comunidade de Q infundada. infundada em razo de Mack atribuir a autoria de todas as sentenas de Q comunidade, negando qualquer origem no Jesus histrico, que para sua teoria no serve de nada. Faltou para o estudioso apenas negar a existncia histrica de Jesus, que alis chegou bem prximo. Mack devia ter analisado, seguindo critrios metodolgicos, os ditos de Q a m de avaliar quais ditos teriam grandes chances de pertencerem ao Jesus histrico e quais no teriam.4 Somente aps essa avaliao ele poderia iniciar a sua busca pela histria social da comunidade de Q. Por exemplo: no existe razo para ele colocar o bloco referente a Joo Batista em um segundo estgio de Q, ou seja, Q. O tema Joo Batista sempre esteve na agenda desde que Jesus iniciou o seu ministrio (talvez at mesmo antes). O padre John Paul Meier est certo em armar que ningum teria inventado que Jesus foi batizado pelo Batista. A relao entre Jesus e o Batista histrica e cada evangelista (tambm o Q) procurou amenizar ao seu modo o impacto que essa relao teve em suas respectivas comunidades. Mack, por rejeitar o fato de Jesus ter falado qualquer um dos ditos de Q, errou em toda a sua teoria. Outro problema est na disposio dos contedos teolgicos dos estratos. No coerente, na Palestina, um grupo ter como primeira atitude traar os limites do grupo, prescrever admoestaes ticas etc. Primeiro eles se renem em torno de um idia teolgica comum, que, no caso, o Reino de Deus iminente, e
somente depois, com o passar dos anos, e a decepo com a demora da parusia, comeam a admoestar-se, traar uma tica mais estvel e duradoura, elaborar profecias futursticas, apontar os limites da pertena etc. Dicilmente, se tivesse ocorrido uma evoluo teolgica, esta se daria no sentido que Mack almejou impor. No podemos deixar de considerar, tambm, a possibilidade do Q ter sido elaborado somente aps o evangelho de Marcos. O livro de Mack merece ser lido pelos que estudam mais profundamente as origens crists, entretanto no recomendado para cristos que no possuem conhecimento profundo sobre o tema, pois o autor expe muito bem suas idias, sempre de forma clara, coesa e at muito persuasiva. Todavia aqueles que esto atualizados na pesquisa do Jesus histrico dicilmente se deixaro levar pelas mirabolantes teorias de Mack e absorvero o grande conhecimento que o autor possui das origens e das fontes crists. A leitura bastante estimulante e um daqueles livros que se l de uma s vez. recomendado que o leitor leia e releia com ateno o texto do Evangelho perdido (pp. 71-100).
Notas
* MACK, Burton L. O evangelho perdido: o livro de Q e as origens crists. Trad. Srgio Alcides. Rio de Janeiro, Imago, 1994. 268 pp.
O autor graduando em teologia e colaborador das revistas Inclusividade e Ciberteologia. Qualquer dvida ou sugesto, envie um e-mail para <juliofontana@click21. com.br>. Desde o incio de seu livro, Mack j alerta para a polmica que ser lanada. Na pgina 15, ele diz: Diante de Q, toda a histria e a literatura do cristianismo primitivo tm que ser revistas. Se podemos especular da localizao dessa comunidade, o local mais provvel teria sido Cafarnaum. Mack indica no seu livro (pp. 132-143) o que teria ocorrido comunidade de Q para que houvesse a mudana do discurso. Mack nega-se a realizar tal avaliao. Veja os motivos na p. 185.
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