De Como Não Ler Marx Ou o Marx de Sousa Santos

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De como no ler Marx ou o Marx de Sousa Santos**


Jos Paulo Netto* :: 17.09.08

Sousa Santos, um socilogo erudito e prolixo, cultiva uma imagem progressista fundamentalmente enganadora. A sua influncia suporta-se em retrica em circuito fechado no seio acadmico, e em suposta sabedoria transcendente na arena do circuito dos movimentos sociais. um socilogo que fez a sua opo de classe e nela milita, do lado dos opressores, supostamente eruditos, contra os oprimidos, supostamente intelectualmente destitudos. Neste ensaio, o Prof. brasileiro Jos Paulo Netto arranca-lhe a mscara.

Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e catedrtico da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra , atualmente, a personalidade mais internacional dentre os intelectuais portugueses vivos (mais conhecido do que ele, apenas o escritor comunista Jos Saramago). O renome de Sousa Santos no fruto do acaso: se tem a ver com a sua interveno cvica no interior do campo democrtico e progressista, seja no marco de movimentos sociais, seja noutros espaos polticos (comenta-se que, no seu segundo mandato presidencial, Mrio Soares o tinha como conselheiro pessoal), sobretudo resultado de um intenso e mltiplo exerccio terico e analtico. Figura central na institucionalizao da Sociologia no Portugal ps-salazarista, pesquisador incansvel e organizador cientfico, Sousa Santos vem contribuindo significativamente no debate contemporneo das cincias sociais, percorrendo um leque temtico extremamente amplo, que envolve da discusso epistemolgica abordagem renovada de complexos como os da cidadania e do Direito. Sua obra, ensastica e sistemtica, divulgada em revistas especializadas de vrios pases (inclusive do Brasil, onde j fez investigaes e tem estado com freqncia) e em livros (publicados em vrios idiomas), pondervel cf., entre outros, Santos, 1988, 1989, 1990, 1991 e 1995a -, e carrega uma marca muito peculiar: a erudio de que se satura vincula-se a uma prosa clara, meridiana transparente, vinculao (diga-se de passagem incomum no universo contemporneo das cincias sociais) que, para alm dos seus mritos inerentes, garante-lhe uma comunicabilidade excepcional. Prova incontestvel desta qualidade foi o xito de Pela mo de Alice. O social e o poltico na ps-modernidade - livro que, absoluto sucesso de vendas em Portugal [1], viu-se em seguida editado no Brasil (Santos, 1995) [2].

Trata-se de um instigante conjunto de ensaios, reunindo, ademais de trabalhos inditos, estudos publicados em peridicos (de vrios pases: Portugal, Brasil, Itlia, Estados Unidos, Uruguai) entre 1985 e 1993 - porm, se cada texto pode ser tomado em sua singularidade, claramente demarcada pela imediata diversidade de objetos (da realidade portuguesa crise mundial da instituio universitria, da relao Estado/sociedade civil s questes da cidadania, subjetividade e emancipao, da funo utpica ps-modernidade, da sociologia dos tribunais globalizao da economia), nenhum deles escrito de ocasio: todos expressam momentos constitutivos da reflexo sistemtica de Sousa Santos. Esta reflexo sistemtica incide sobre o que o autor considera a transio paradigmtica prpria do fim do sculo XX, envolvente de dois processos, naturalmente conectados: a transio epistemolgica (vale dizer: do paradigma da cincia moderna ao da cincia ps-moderna) e a transio societal (vale dizer: entre diferentes modos bsicos de organizar e viver a vida em sociedade). Se o primeiro de tais processos, que parece a Sousa Santos mais evidente e explcito, ocupou-o predominantemente at a entrada dos anos 90, em Pela mo de Alice ele nos apresenta os resultados iniciais de suas pesquisas sobre o segundo. Tais resultados, diz-nos o autor, apesar de fragmentrios, tm alguma consistncia global, resumindo a investigao e a reflexo que foram sendo feitas ao longo dos ltimos anos (Santos, 1995: 9). V-se, pois, que este um livro de importncia particular na dinmica intelectual do autor - e, nele, a discusso do legado de Marx tem uma relevncia especfica, ainda que o espao a ela dedicado seja dos mais econmicos [3]; entretanto, e a despeito dessa economia, Sousa Santos julga haver procedido a a um balano geral da proposta de Marx (idem: 243) e, j por isto,um balano merece especial cuidado. Uma leitura muito simplria do marxismo Pela mo de Alice compreende trs partes: na primeira, intitulada Referncias, Sousa Santos, em dois compactos captulos, faz uma reflexo sobre das referncias tericas que tm pautado a [sua] investigao (idem:10). Na segunda, Condies de inteligibilidade, composta de quatro captulos, o centro a anlise de alguns dos aspectos da crise da modernidade enquanto paragdima societal (idem, ibidem). Enfim, na terceira parte, Cidadania, emancipao e utopia, ordenada tambm em quatro captulos, a anlise combina-se com a prospectiva (idem: 11). A riqueza temtica do livro, j assinalada, distribui-se equilibradamente pela segunda e terceira partes e de modo to orgnico que ao leitor mais atento pode mesmo escapar o fato de elas se constiturem de ensaios originalmente autnomos - o que, alm do mais, testemunha a coerncia intelectual de Santos, bem como atesta sua castigada artesania formal. Mas indubitvel a importncia da primeira parte, com seus dois densos e econmicos captulos. Se o sugere o prprio ttulo (Referncias), comprova-o o sentido que Sousa Santos lhes confere: sobre o primeiro (Cinco desafios imaginao sociolgica), diz o autor que, nele, formulo algumas das minhas perplexidades analticas perante as transformaes sociais neste final do sculo e enuncio as vias por que se podem traduzir em motivos de criatividade sociolgica (idem: 10); quanto ao segundo (Tudo que slido se desfaz no ar: o marxismo tambm?), Sousa Santos no menos direto - afirma ele: No segundo captulo, procedo a uma avaliao do marxismo enquanto tradio terica da sociologia com o objetivo de distinguir as reas ou dimenses em que continua atual, e eventualmente mais atual que nunca, daquelas em que est desatualizado e deve, por isto, ser profundamente revisto, seno mesmo abandonado (idem, ibidem). Parece inteiramente legtimo inferir, ento, que a avaliao efetuada por Sousa Santos determina a sua

posio relativamente a incorporar, e em que medida, ou no as referncias marxistas ao seu instrumental heurstico e/ou, eventualmente, s suas prospeces scio-interventivas (como veremos adiante, Sousa Santos sustenta a diferencialidade do estatuto dessas duas operaes). Ora, a avaliao em tela, Sousa Santos realiza-a em dois movimentos diversos: o primeiro consiste em um excurso sobre a histria do marxismo [4] e o segundo numa interlocuo com o que se lhe afigura o ncleo central da obra marxiana. Comecemos pelo primeiro movimento. Sousa Santos traa o que se poderia chamar, com excessiva boa-vontade, de uma sinopse crtica do desenvolvimento do marxismo, do final do sculo XIX dcada de 80 do sculo XX, organizando-a em quatro perodos, aos quais oferece tratamento bem diferenciado. O primeiro cobriria os anos de 1890 a 1920, configurando o que pode ser considerado a idade de ouro do marxismo (idem: 24) [5]; o autor cr, repetindo palmar constatao, que a riqueza da reflexo marxista tem obviamente a ver com a pujana do movimento socialista neste perodo (idem: 25). Ele destaca duas grandes cises do perodo: a poltica, inaugurada com o debate acerca das proposies de Bernstein, e a epistemolgica, sinalizada pelo neokantismo dos austro-marxistas (alis, bastante valorizados por Sousa Santos), cuja concepo cientista e sociologizante do marxismo foi fortemente contestada [depois de 1917] por tericos to diversos como Korsch, Lukcs e Gramsci (idem: 25-26) [6]. Os anos 30 e 40 constituem, na seqncia, um perodo negro para o marxismo (idem: 26). A combinao fascismo/stalinismo responderia, de um lado, pela difcil sobrevivncia, na clandestinidade e no exlio, dos austro-marxistas e da Escola de Frankfurt e, de outro, pelo fim da reflexo terica com a liquidao de Plekhanov, Bukharin, Riazanov, Trotsky (idem, ibidem) [7]. No imediato seguimento desta afirmao, Sousa Santos acrescenta, evidentemente referindo-se ao marxismo no Leste europeu, que aquela reflexo terica nunca mais renasceu. O terceiro periodo, conforme o socilogo portugus, envolveria os anos 50-70 - ele entende que, a partir dos anos 50, o pensamento marxista renasce com vigor, iniciando uma fase brilhante que se prolonga at o final da 70 (idem, ibidem). Tangenciando os processos sociais que sustentam tal renascimento, Sousa Santos aponta seus frutos nos pases perifricos [8], lista seus desdobramentos nos pases capitalistas avanados - com o desenvolvimento de uma sociologia marxista de muitos matizes? [9] e de uma historiografia brilhante de inspirao marxista (idem: 28) [10] e, na rea continental da Europa Ocidental, destaca que esse movimento se expressa no marxismo ocidental, que se evidenciaria em duas grandes orientaes: a teoria crtica da Escola de Frankfurt e o marxismo estruturalista francs (idem: 27) [11]. Finalmente, o quarto perodo, referido aos anos 80, marcaria a dcada o ps-marxismo: para Sousa Santos, a solidez e a radicalidade do capitalismo ganhou [sic] mpeto para desfazer o marxismo no ar (idem: 29). Depois e arrolar os debates que lhe parecem os fundamentais do decnio [12], ele considera que ocorre nos pases centrais a dissoluo do marxismo, enquanto, na periferia, a sociologia de inspirao marxista continuou a produzir reflexes e anlises valiosas (idem:31) [13]. Arrematando, o autor constata que o perfil ps-marxista da dcada de 80 tem um trao fundamental: anti-reducionista, antideterminista e antiprocessualista (idem, ibidem) [14] perfil este que, destacando do interior da teoria marxista o debate sobre a tenso ou equilbrio entre estrutura e ao, acabar por privilegiar, nestes anos, uma leitura antiestrutural, claramente oposta quela predominante na dcada de 60 (privilgio visvel, por exemplo, no marxismo analtico de um J. Elster) [15]. Aqui, Sousa Santos suspende o seu breve excurso pela tradio terica marxista (idem: 32), para depois interpelando ao prprio Marx avanar no sentido de indagar se o legado de Marx tem algum

futuro. Trata-se mesmo de um breve excurso e seria tolice, seno mesquinhez, reclamar do que falta numa sinopse que no se alonga por mais de dez pginas. Com efeito, no teria o menor cabimento exigir do autor o que ele no se props a oferecer Sousa Santos no prometeu uma sntese histrico-crtica do marxismo, absolutamente invivel, mesmo em suas linhas fundamentais, no espao de que se valeu e na direo dos seus interesses. Todavia, ainda que nos situemos no interior dos quadros dessa sinopse com seus limites explcitos, formais e temticos , no h como ladear o seu carter tosco e insuficiente para subsidiar mesmo a mais esquemtica avaliao do marxismo enquanto tradio terica da sociologia (idem: 10). Realmente, como entender que: a) ao abordar a idade de ouro (1890-1920), Sousa Santos no diga uma s palavra sobre os impactos da Revoluo Russa no movimento socialista, sem os quais a dinmica da reflexo terica nos anos 20 (e no s) incompreensvel? b) nessa mesma abordagem, Sousa Santos no se atenha minimamente sobre o que representaram os trabalhos (que, alis, cita) de Korsch, Lukcs e Gramsci, largando de mo, precisamente, a base de grandes polmicas dos anos 20 (e, tambm, no s deles), cujos ncleos problemticos percorreriam boa parte do marxismo posterior? [16] c) ao mencionar (nos anos 30-40) a razia efetuada pelo stalinismo, Sousa Santos afirme que a reflexo marxista no Leste europeu tenha sido ferida a ponto de nunca mais renascer, equalizando tudo sob o pesadelo stalinista (idem: 26) e descurando por completo certos desenvolvimentos particulares, como, por exemplo, na Hungria e na Polnia e, ainda, nas ento Iugoslvia e Tchecoslovquia? [17] d) com sua nfase sociolgica, Sousa Santos no se refira absolutamente, ao cuidar do terceiro perodo (anos 60-70), contribuio essencial que, nesta etapa e nesta rea, foi oferecida por Henri Lefebvre ou pelos marxistas italianos? Observe-se que no estou, reitero, questionando omisses - exceto na indagao contida em d) [18] explicveis e compreensveis num breve excurso. O que coloco em causa , em a), um vis analtico que no contempla absolutamente nenhuma dimenso do processo que, instaurando a fratura de maior magnitude no movimento socialista, condicionaria largamente os rumos posteriores da tradio marxista; em b), a incrvel superficialidade no trato de autores e obras emblemticos e paradigmticos dos dilemas da tradio marxista a partir do primeiro ps-guerra; em c), uma afirmao factualmente insustentvel acerca do evolver do pensamento marxista no interior dos pases anteriormente ditos socialistas. Em suma, a minha crtica no incide sobre as escolhas, os cortes, enfim a seleo a que Sousa Santos obrigou-se pela natureza sintica do seu breve excurso: o que dbil e frgil o tratamento tericocrtico que conferiu ao objeto desse excurso do qual resulta uma leitura vulgar e muito simplria da tradio marxista. Resultado no s injustificvel, quando se conhece o talento do autor e se reconhece a riqueza do objeto, mas sobretudo inepto para fundar qualquer apreciao sria do legado marxiano no sculo XX. Mas o trao de vulgaridade que recobre todo esse primeiro movimento da avaliao de Sousa Santos no pode ser posto na conta de um eventual deslize do autor ele me parece remeter a algo mais substantivo, a que retornarei adiante. Por agora, ocupo-me do segundo movimento de Sousa Santos, quando ele se dirige ao prprio Marx. O Marx de Sousa Santos: receita nova, pudim velho Sousa Santos interpela a obra de Marx num espao em que, de novo, h que conceder excessivamente capacidade de sntese do autor, uma vez que no gasta mais de treze pginas com objeto de tamanha magnitude a partir da condio do presente (idem: 33). J assinalei que, para Sousa Santos, essa

condio se caracteriza por uma dupla transio paradigmtica, a epistemolgica e a societal e nessa dupla dimenso que ele apreciar a obra marxiana. No campo dos que sustentam a exausto do paradigma da Modernidade, Sousa Santos distingue (numa operao que, alis, se encontra em outros analistas) duas concepes diferentes: de um lado, h aqueles para os quais o exaurimento da Modernidade significa o colapso final de suas promessas, de quaisquer objetivos transistricos, com as prticas sociais das sociedades contemporneas no tendo mais qualquer alternativa est aqui o ps-modernismo reconfortante ou de celebrao (idem: 35), seguramente portador do neoconservadorismo outrora denunciado por Habermas; doutro, localizam-se os que argem a Modernidade seja cultural, seja sociopoliticamente, verificando que as promessas da Modernidade, depois que essa deixou reduzir suas possibilidades s do capitalismo, no foram nem podem ser cumpridas (idem, ibidem), porm demandando uma nova epistemologia e uma nova socialidade tem-se a o ps-modernismo inquietante ou de oposio (idem, ibidem), no qual Sousa Santos se v inscrito. claro que, para o ps-modernismo de celebrao, no se pe o problema de um projeto societrio distinto ao do capital (nele, a histria chegou, fukuyamamente, ao fim); assim, a dupla dimenso da transio paradigmtica s se coloca para a vertente inquietante. Curiosa, mas explicavelmente, a distino entre as duas vertentes Sousa Santos assevera, expressamente, que so antagnicas (idem, ibidem), posio que est longe de ser inteiramente fundada [19] se esbate inteiramente no nvel da teoria do conhecimento quando se trata de apreciar Marx. Segundo Sousa Santos, para o ps-modernismo de celebrao, o marxismo nada tem a contribuir (idem, ibidem); mas, tambm para o prprio autor, no plano epistemolgico, o marxismo pouco pode contribuir para nos ajudar a trilhar a transio paradigmtica (idem, ibidem). Tem-se, aqui, um antagonismo relativo! A explicao reside, a meu ver, no apenas num vis irracionalista que permeia ambas as posies, [20] mas na concepo, de fato esposada pelos dois ps-modernismos, do paradigma da cincia moderna com que operam [21]. O conceito de paradigma, se pode ter alguma valia quando se trata de abordar o desenvolvimento das cincias que tm por objeto a realidade do ser natural, enferma de inteira imprestabilidade quando deslocado para a apreciao do evolver do conhecimento do ser social (recorde-se, alis, que o responsvel pela divulgao do conceito no conhecido A estrutura das revolues cientficas, Kuhn (1972), mostrou-se muito ctico quanto sua aplicabilidade nas cincias sociais, consideradas por ele como pr-paradigmticas) [22]. Ora, Sousa Santos desenvolve urna elaborada verso do paradigma da cincia moderna que estende tranqilamente da anlise das cincias duras s cincias sociais e, nessa translao, tal paradigma se converte num instrumento de reduo indiferenciada que equaliza todo o sculo XIX, enfiando no mesmo saco da cincia moderna seja a lgica hegeliana, o sistema categorial de Marx ou as tipologias durkheimianas (Weber, naturalmente, tem a um enquadramento difcil, at porque, na corrosiva ironia de Mszros [1996: 198 e ss.], um homem para todas as estaes). Nesse reino de absoluta indiscriminao, praticamente toda construo terica (insista-se nesta qualificao: terica) do sculo XIX, e no s, subsumida na razo puramente instrumental e, pois, repugna sensibilidade ps-moderna, seja ela reconfortante ou no. A determinao fundamental da qual parte Sousa Santos para interpelar Marx situa-se neste marco. Afirma o autor: Marx demonstrou uma f incondicional na cincia moderna e no progresso e racionalidade que ela poderia gerar. Pensou mesmo que o governo e a evoluo da sociedade podiam estar sujeitos a leis to rigorosas quanto as que supostamente regem a natureza, numa antecipao do sonho, mais tarde articulado pelo positivismo, da cincia unificada (idem, ibidem). Este o Marx de Sousa Santos um positivista avant la lettre, um pr-Durkheim edulcorado por uma

perspectiva utpica (e de um utopismo insuficientemente radical) [23], este o Marx que, com a facilidade viabilizada pelo desprezo textualidade e documentao, todos os ps-modernos consideram um personagem do Jurassic Park. Para esse gnero de considerao reducionista e equalizadora, as reiteradas e enfticas notaes marxianas sobre o carter tendencial e histrico das leis histrico-sociais (sistematicamente constitutivas do pensamento de Marx e explicitadas, pelo menos, a partir da Misria da filosofia) so desimportantes. desimportante que a determinao da cincia nica a histria aparea num contexto (a clebre passagem de A ideologia alem) onde est subjacente a problemtica da humanizao da natureza [24]. Igualmente, a complexa noo marxiana de progresso convenientemente vinculada s concepes positivistas de determinismo e evoluo, como se nota no conjunto da avaliao de Sousa Santos e aqui devemos nos deter minimamente. O fulcro desta avaliao encontra-se numa passagem de Pela mo de Alice situada fora do captulo que objeto do meu rpido exame polmico, mas que subsidia e complementa admiravelmente. Nela, Sousa Santos afirma, com a sua prosa sempre clara e inequvoca, que o erro de Marx foi pensar que o capitalismo, por via do desenvolvimento tecnolgico das foras produtivas, possibilitaria ou mesmo tornaria necessria a transio para socialismo. Como se veio a verificar, entregue a si prprio, o capitalismo no transita para nada seno para mais capitalismo. A equao automtica entre progresso tecnolgico e o progresso social desradicaliza a proposta emancipadora de Marx e torna-a, de fato, perversamente gmea da regulao capitalista (idem: 243). Nesta passagem, a nica referncia verdadeira a que diz respeito a que, do movimento do capitalismo, entregue a si mesmo, s pode derivar mais capitalismo como, alis, sobejamente o sabia Marx (no fosse por outra razo, ele considerava a organizao da vontade poltica dos proletrios absolutamente indispensvel para a transio socialista e, conseqente com esta convico, foi um incansvel organizador dos trabalhadores) ; todo o resto da passagem falso: 1. no se pode sustentar seriamente, a partir de uma leitura rigorosa de Marx, a hiptese de um desenvolvimento automtico, natural e/ou espontneo da fora produtiva engendrada pelo desenvolvimento tecnolgico. De 1847 a 1867 (passando pelas longas disquisies dos Grndrisse), Marx insistiu suficientemente em que o carter revolucionrio do capitalismo designao, alis, pouco utilizada por ele no que toca ao desenvolvimento das foras produtivas vincula-se s lutas entre capital e trabalho: esse antagonismo radical, cuja soluo socialmente progressista depende do nvel de conscincia e interveno sociopoltica dos trabalhadores, que leva o capital inovao cientficotecnolgica. V-se como o Marx real se distingue do Marx de Sousa Santos: nas mos deste, o primeiro terico socialista a pensar o condicionamento sociopoltico do desenvolvimento cientfico-tecnolgico se converte num vulgar apologista do determinismo tecnolgico; 2. leitura similar desautoriza liminarmente imputar a Marx uma pretensa equao automtica entre o progresso tecnolgico e o progresso social. Bem ao contrrio, no conjunto da obra marxiana o que enfaticamente destacado que, nos quadros de uma sociedade dinamizada por contradies de carter antagnico, o desenvolvimento social (que, isto me parece incontroverso, para Marx supe desenvolvimento de foras sociais produtivas) implica sistematicamente componentes de barbarizao [25]. A noo de progresso no Marx dos textos autgrafos, ao contrrio do que nos prope a visada de Sousa Santos, contempla sempre, numa ordem social como a capitalista, uma contraface que a divorcia de qualquer viso unidimensional. Por isto, seja a f incondicional na cincia moderna, que Sousa Santos atribui a Marx, seja a

fraternidade que v entre sua proposta de emancipao e a regulao capitalista mostram-se, tal como as concebe o ilustrado socilogo lusitano, completamente insustentveis. Sumario, antes de prosseguir. No marco da transio paradigmtica, do ponto de vista epistemolgico, Marx e, no fim das contas, segundo Sousa Santos, isto vale para qualquer ps-modernismo, seja o reconfortante, seja o inquietante se desfez no ar. Cabe avanar, ento e, como vimos, esse avano s tem cabimento para o ps-modernismo esposado por Sousa Santos, isto , o inquietante para a considerao de Marx do ponto de vista da transio societal. No captulo de Pela mo de Alice de que me ocupo, Sousa Santos afirma que, ao contrrio do que ocorre no interior do psmodernismo de celebrao, para a sua posio ps-moderna cabe interpelar a Marx, posto que ao ps-modernismo de oposio torna-se essencial a idia de uma alternativa radical sociedade atual, e Marx formulou, mais coerentemente que ningum, uma tal alternativa. A questo est, pois, em saber em que medida a alternativa de Marx, que to radicalmente anticapitalista quanto moderna, pode contribuir para a construo de uma alternativa assumidamente psmoderna (idem: 36). Um crtico inscrito ainda no decadente paradigma moderno poderia indagar se vale a pena, para Sousa Santos, debruar-se sobre a prospeco societal de um analista cujos referenciais terico-metodolgicos o anacronizam face da transio epistemolgica pois este, justamente, o caso de Marx para o socilogo de Coimbra. Mas o problema no se coloca para Sousa Santos: como antecipei rapidamente, ele tambm aqui se ope s cincias sociais da modernidade, que, de acordo com ele, tenderam a situar num mesmo campo gnosiolgico as operaes de explicao/compreenso da sociedade e de deteco da direo da transformao social; conseqentemente, o autor acredita que a sociologia [sic] de Marx , em geral, coerente com a utopia [sic] de Marx, mas no se confunde com ela (idem, ibidem). Assim, Sousa Santos se pe a buscar a resposta sobre a eventual atualidade de Marx para uma alternativa societal. E f-lo questionando a contribuio de Marx em trs reas temticas: processos de determinao social e autonomia do poltico; ao coletiva e identidade; direo da transformao social (idem, ibidem). Nas trs reas, que a reflexo de Sousa Santos procura explorar (idem: 33-45), a avaliao procedida pouco salva alm de um Marx utpico (alis, repita-se, insuficientemente utpico): 1. no que tange aos processos de determinao social, para alm de protocolares reverncias ao tnus da anlise marxiana, Sousa Santos considera (sem deixar aqui de mo o determinismo e o evolucionismo) que ela enferma de um insustentvel reducionismo econmico (idem: 38). claro que, tomando a teoria social de Marx como uma teoria fatorialista (o econmico, o poltico, o cultural) e, em resumidas contas, assim que Sousa Santos a visualiza (idem, ibidem) , fica relativamente fcil tergiversar e escamotear a concreta anlise marxiana das determinaes econmico-polticas que simplificada em termos de base/superestrutura. Evidentemente, para argumentar em torno desse reducionismo econmico, Sousa Santos elude o rico arsenal heurstico que Marx apurou ao largo de seu itinerrio de pesquisa (se, para um ps-moderno, compreende-se que totalidade cheire a totalitarismo, menos compreensvel a nenhuma aluso ao conceito, alis operativo, de formao econmico-social); 2. quanto ao n ao coletiva e identidade, a problematizao de Sousa Santos (idem: 39-42) pertinente e merece uma anlise cuidadosa, que no cabe nos limites desta nota polmica. Ainda que se discorde da sua interpretao sociopoltica acerca do protagonismo da classe operria no processo de transformao da ordem burguesa e da sua apreciao sobre a preciso das antecipaes de Marx quanto ao destino das classes no evolver do capitalismo, as questes que coloca referentes tanto nfase marxiana nas classes como princpio explicativo e como princpio transformador so

inegavelmente legtimas e instigantes [27], na medida em que assinalam dilemas ainda em aberto e para os quais o recurso a Marx freqentemente se revela uma forma de ladear o impstergvel exame de realidades novas [28]; 3. no que se refere direo da transformao social, Sousa Santos anota que a idia de Marx de que a sociedade se transforma pelo desenvolvimento de contradies essencial para compreender a sociedade contempornea, e a anlise que fez da contradio que assegura a explorao do trabalho nas sociedades capitalistas continua a ser genericamente vlida. O que Marx no viu foi a articulao entre a explorao do trabalho e a destruio da natureza e, portanto, a articulao entre as contradies que produzem uma e outra (idem: 44 - grifo no original; cf., supra, notas 24 e 25). Eis por que, segundo Sousa Santos, entre outras razes, a utopia que atribui a Marx insuficientemente radical e, pois, inadequada para subsidiar a transio paradigmtica societal esta exige a utopia ecolgica e democrtica (idem: 43), com a qual se alinha o autor [29]. Ao fim de sua avaliao, Sousa Santos nos oferece um Marx que, referncia das cincias sociais (aqui, no se esquea, a impostao sociolgica) e objeto de evidente respeito e simpatia, no passa pelo crivo crtico do ps-modernismo de oposio tambm no territrio sociopoltico, enfermado que est seu pensamento de determinismo, evolucionismo e reducionismo. E, emblematicamente, no se concede ao infeliz Marx qualquer benefcio de dvida ou ambigidade sequer a existncia de tenses internas no seu pensamento, como as explorou, por exemplo, Alvin W. Goudner : Sousa Santos provavelmente considera como residuais possveis ambiguidades ou tenses na obra marxiana [30]. Ora! o fato que, parte aqueles respeito e simpatia, a leitura de Marx por Sousa Santos, aparentemente sofisticada e reveladora de interesses analticos renovados, apresenta resultados extremamente similares aos j centenariamente divulgados pela grossa maioria dos cientistas sociais que, entre outras coisas, notabilizam-se pela sua plena integrao ao establishment. Correndo o risco de cometer uma indelicadeza formal, a leitura de Marx por Sousa Santos pode ser caracterizada como uma receita nova - com ingredientes como Modernidade, paradigma etc. que culmina na feitura de um pudim cujo gosto se conhece h muito determinismo, evolucionismo, reducionismo econmico. Os habituados aos velhos confeitos da Teoria Sociolgica de terno e gravata sabem que as guloseimas oferecidas por N. Timasheff no tinham outro sabor. Em sntese: uma anlise incompetente No necessria nenhuma argcia especial para concluir, a partir dessa avaliao do marxismo enquanto tradio terica da sociologia, ou deste balano geral da proposta de Marx, que a contribuio marxiana e/ou marxista para o enfrentamento da transio paradigmtica contempornea configura um aporte pouco mais que medocre Sousa Santosno o diz expressamente, mas h passagens, em Pela mo de Alice, das quais se pode inferir que o pobre Marx, para alm da sua utopia (que, como vimos, nem suficientemente radical )! No tem serventia maior que Weber e Durkheim [31]. preciso deixar muito claro que so secundrias, a esta altura, as opinies e apreciaes de Sousa Santos sobre Marx e a tradio marxista; que ele, como todos e qualquer um de ns, livre para emitir quaisquer juzos de valor sobre ambos, seja enquanto cidado, seja enquanto intelectual papis que, como sabemos, se entrecruzam sem se confundir. Mas parece no haver muita dvida de que o papel do intelectual exige modos de argumentao mais rigorosos para validar tais juzos. E exatamente aqui que se pe o problema da avaliao de Sousa Santos: a sua anlise da teoria marxiana de todo

incompetente para fundar uma interpretao que d conta, minimamente, da fecundidade ou no daquela teoria para enfrentar os grandes desafios contemporneos. Com efeito, o Marx de Sousa Santos justifica a tese de que, se a modernidade se torna hoje mais do que nunca problemtica, o marxismo ser mais parte do problema que defrontamos do que da soluo que pretendemos encontrar (idem: 35). Entretanto, j salientei quo distintos so o Marx de Sousa Santos e o Marx real, verificvel nos textos autgrafos. Com franqueza, repito: independentemente dos limites a que se imps, a anlise que, em Pela mo de Alice, Sousa Santos nos oferece de Marx e sua tradio uma anlise incompetente: se apanha alguns elementos significativos e lacunas reais da teoria marxiana (como indiquei), repete lugares-comuns insustentveis (dos quais o mais tolo a acusao acerca do reducionismo). faz afirmaes completamente absurdas (como aquela sobre a equao automtica entre progresso tecnolgico e progresso social) e elude convenientemente importantes tematizaes marxianas (como as referidas relao sociedade/natureza). Presta, com isto, dois enormes desservios investigao: de um lado, refora preconceitos ignorantes em face da teoria marxiana; de outro, no contribui para que a pesquisa identifique o que, nessa teoria, efetivamente perdeu atualidade e validez. No fim das contas, quase inacreditvel que um intelectual do nvel e da qualidade de Sousa Santos que, por outra parte e como assinalei, revela-se capaz de anlises finas e sugestivas possa nos apresentar um Marx to deformado e empobrecido e um marxismo to miservel. Mas quando um autor competente como Sousa Santos tanto se expe numa anlise assim incompetente, h que buscar razes de fundo para isto. Se se podem invocar causas e motivos de ordem episdica e pessoal (pressa em publicar textos? passageira ausncia de autocrtica?), eles no parecem procedentes em referncia a um acadmico responsvel como o pesquisador em tela. Aqui deve haver algo mais substantivo que meras idiossincrasias, mais relevante que um ou outro preconceito, mais importante que um controle maior ou menor sobre tal ou qual obra de Marx. E quer-me parecer que o buslis da questo (para retomar a expresso to cara ao velho Florestan) reside no tratamento terico-crtico que Sousa Santos dedica a Marx e tradio marxista. Nas pginas de Pela mo de Alice o que fundante na anlise que Sousa Santos faz da teoria marxiana (e da tradio marxista) uma concepo convencionalssima da obra de Marx, que teria criado, ainda que de modo no sistemtico, uma nova teoria da histria, o materialismo histrico (idem: 36), a partir do qual se viabilizariam cortes cientficos e ideais particulares donde Sousa Santos possa referir-se sociologia e utopia de Marx, como poderia referir-se a uma filosofia, a uma economia etc. Ou seja: a concepo de Sousa Santos projeta sobre a obra marxiana a diviso das cincias sociais oitocentistas, apanhando nela os recortes terico-cientficos que mais lhe convm (no caso, a nfase numa sociologia). Est claro que, com este procedimento, o que no se resgata da teoria social de Marx justamente aquilo que lhe mais visceral e medular: seu carter unitrio e totalizante/totalizador, embasado numa ontologia do ser social a partir da crtica da economia poltica historicamente constitudo no mundo do capital. O procedimento to velho quanto a prpria sociologia (como disciplina cientfica institucionalizada). E vem sendo histrica e sistematicamente reiterado (inclusive por marxistas) mas nada disto o torna legtimo, ainda que coberto de crditos acadmicos. Que os socilogos (bem como outros cientistas sociais especializados) dos mais diversos matizes tenham se inspirado em Marx e/ou nele recolhido

indicaes tericas e analticas e que, no interior mesmo da tradio marxista, se tenham gerado correntes sociolgicas no afeta a substncia da questo que, como Lukcs indicou j em 1923, consiste na relao de excludncia entre a teoria marxiana da sociedade burguesa e o discurso de uma cincia social especializada qualquer. Numa formulao mais precisa, o mesmo Lukcs (1968, cap. VI) esclareceu o fulcro da questo: o estatuto original da sociologia repousa no corte entre relaes sociais/relaes econmicas, com a explicao sociolgica das primeiras prescindindo da anlise das segundas (que, ento, se remetem a outra cincia especializada, a economia) [33]. Ainda que os praticantes do que Florestan chamou de sociologia crtica (ou radical) tenham e venham procurando romper com este corte e esta procura sensvel em Sousa Santos [34] , o quadro estrutural-categorial prprio da reflexo sociolgica (como de qualquer cincia social especializada) os compele a encontrar na crtica da economia poltica e na crtica das relaes econmicas empiricamente dadas quando muito as famosas (e engelsianas) determinaes em ltima instncia. Sousa Santos, indiscutivelmente, um socilogo crtico (ou radical) e, como todos os socilogos crticos, procede sobre a estrutura categorial prpria sociologia donde a inapreenso do carter unitrio da teoria social marxiana com a (pres)suposio dos seus nveis sociolgicos, econmicos, utpicos etc., posto que a pense moda das cincias sociais oitocentistas (idem: 38). por esta razo que ele pode fazer um balano do marxismo como tradio sociolgica sem discutir minimamente o estado da crtica da economia poltica marxista (que, obviamente, matria da economia, no da sociologia) [35]. esta a razo que faz este olhar sociolgico converter a teoria social de Marx numa enciclopdica teoria fatorialista do econmico, do social, do poltico etc.. E evidente que, sob tal luz, as determinaes complexas, bem como os seus igualmente complexos sistemas de mediaes, que articulam a totalidade concreta que a sociedade burguesa passam a oferecer o espao ideal seja para a construo reflexiva de determinismos simplistas, seja para a postulao, tambm puramente reflexiva, de autonomias relativas (regionais?) que terminam por se hipostasiar [36], Assim, bvia a dificuldade para recuperar, no plano do pensamento, as concretas interdeterminaes e mediaes entre os vrios nveis, instncias e esferas constitutivos da sociedade dificuldade que, s vezes, se converte mesmo em impossibildade [37]. este trato sociolgico da teoria marxiana que responde substantivamente (ainda que no exclusivamente) pela flagrante debilidade do balano geral com suas conseqncias na decorrente avaliao que, em Pela mo de Alice, Sousa Santos exercita pobre e esquematicamente. Trato que est longe de comprometer a Marx e tradio (terico-prtica) a ela afeta. Antes, pela ensima (mas no ltima) vez, comprova que o olhar sociolgico, ao vestir a obra de Marx com a mesma sobrecasaca de Durkheim e Weber, comporta-se diante dela como o verme drummondiano que, partilhando da alegria de zombar dos mortos, s no roeu o imortal soluo de vida que rebentava que rebentava daquelas pginas (Andrade, 1977: 105). Notas: [1] Publicado pela Afrontamento (Porto) em 1994, 0 livro esgotou a primeira edio em Maio e a segunda em Setembro, fazendo com que a editora colocasse no mercado a terceira em Novembro. [2] Todas as citaes que farei de Pela mo de Alice sero extradas dessa edio. [3] Embora as referencias a Marx e a tradio marxista estejam presentes em varias passagens, esta discusso, como se ver, ocupa somente um captulo do livro, 0 segundo (Santos, 1995: 2349). [4] A aluso ao marxismo no implica a existncia de um cnon marxista. No h uma verso

ou interpretao autorizada do que Marx verdadeiramente disse ou quis dizer. No h uma ortodoxia a que se tenha de prestar lealdade incondicional, nem inversamente fazem muito sentido protestos de renegao ou abjurao []. Numa pincelada de sociologia do marxismo pode dizerse que canonizao e ortodoxia so prprios de universos de conhecimento que se pretendem diretamente conformadores da prtica social como o caso, por exemplo, da teologia ou da psicanlise (idem: 33). Parece claro que, aqui, a noo de ortodoxia nada tem a ver com o sentido que Lukacs, no primeiro ensaio de Histria e conscincia de classe (que Sousa Santos conhece), Ihe atribuiu. [5] Sousa Santos reproduz aqui, literalmente, a apreciao de Kolakowski, para quem o periodo da Segunda Internacional (1889-1914) pode ser denominado, sem exagero, a idade de ouro do marxismo (Kolakowski, 1982: 9). [6] Aqui, Sousa Santos simplesmente remete s obras desses trs autores (em referencias bibliogrficas que suprimimos nesta citao), com um comentrio esquemtico, ao qual retornaremos adiante, de exatas seis linhas (idem: 26). [7] E inteiramente falsa essa meno a Plekhanov: o pai do marxismo russo no foi liquidado, mas faleceu num hospital finlands em 30 de Maio de 1918. [8] Rememorando, a esta altura, o impacto do maoismo, a argcia de Fannon e a teoria da dependncia, de Fernando Henrique Cardoso et alii. [9] Sousa Santos arrola, aqui, inmeros analistas, entre os quais Mills, Poulantzas, Miliband, Touraine, E. O. Wright, G., Theborn, Marcuse, R. Williams, Habermas e Bourdieu. [10] Neste passo, Sousa Santos evoca Braudel, Hobsbawm e Thompson. Entre a sociologia e a historiografia, menciona ainda uma investigao sociolgica histrica de grande criatividade, lembrando os trabalhos de B. Moore Jr. e I. Wallenstein. [11] Esta passagem do texto de Sousa Santos particularmente equivoca; de um lado, referir o marxismo ocidental como prprio deste perodo (anos 50-70) , para dizer o mnimo, uma tolice historiogrfica. De outro, situar, como ele a faz, Lucien Goldmann no marco do marxismo estruturalista francs, devedor da reflexo filosfica de Althusser e da antropologia de LeviStrauss (idem: 27), ignorar completamente a concepo goldmanniana de estruturalismo gentico. [12] Curiosamente, a autor anuncia a relevncia de quatro dentre os debates importantes da dcada, mas, ao discrimina-los, menciona cinco (idem: 30) incidentes sobre: 1) processos de regulao social nas sociedades capitalistas avanadas (Aglietta, Brender, Boyer); 2) processos de formao e de estruturao das classes nas sociedades capitalistas, considerando as novas classes e seus lugares contraditrios (E. O. Wright); 3) primazia ou no da economia, das relaes de produo ou das classes na explicao dos processos de transformao social (Offe, M. Mann, N. Mouzelis, 1. Sckopol, p. Evans); 4) natureza das transformaes culturais do capitalismo (F. Jameson); 5) avaliao do desempenho politico dos partidos socialistas e comunistas e, em geral, do movimento operrio europeu (W.Korpi, A. Przeworski). [13] Sousa Santos ilustra: A ttulo de exemplo, refiram-se os estudos sobre os novos movimentos sociais e sobre os processos de transio democrtica na Amrica Latina e os estudos de sociologia histrica sobre o contexto colonial e ps-colonial da ndia [] (idem: 31). [14] interessante observar que Sousa Santos identifica dois ps-marxismos: o da dcada de 80, a referido, e o da dcada anterior, ps-estruturalista [], fortemente tributrio de Foucault e da reflexo terica na lingstica, na semitica, na teoria literria e mesmo na psicanlise (idem: 31). [15] A propsito da articulao ao/estrutura tal como ela foi se constituindo e transformando na tradio marxista, Sousa Santos (idem: 32) reala a crtica a mais aguda e mais inovadora, oriunda da sociologia feminista e a recusa dessa dualidade no seu todo, expressa na obra de E. Laclau e C. de Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy. Toward a Radical Oemocratic Politics

(London, Verso, 1985); num passo posterior, Sousa Santos sugere sua discrepncia com esses dois autores (idem: 37). [16] Mencionamos atrs (nota 6) que, com eles, Sousa Santos gasta seis linhas; vale a pena transcrever sua notao: Convergiam estes pensadores na idia de que a converso do marxismo numa cincia positiva desarmava o seu potencial revolucionrio. As razes do marxismo eram hegelianas e faziam dele uma filosofia crtica, uma filosofia da prxis, mais virada para a construo de uma viso libertadora e emancipadora do mundo do que para uma anlise sistemtica e objetiva da sociedade capitalista (idem: 26). Deixando de lado as substantivas diferenas entre os trs autores, o que Sousa Santos no assinala concretamente o contedo antipositivista e anti-reducionista que especialmente Lukcs, batendo forte contra o marxismo vulgar da Segunda Internacional, introduz no debate; a ausncia dessa sinalizao contribui para explicar por que Sousa Santos parece ignorar que o combate aos vrios reducionismos (de natureza econmica, notadamente) surge precisamente nos anos 20, bem antes de qualquer psmarxismo; sua chave, formulou-a Lukcs na frase de abertura do ensaio sobre Rosa Luxemburgo (1921): o ponto de vista da totalidade e no a predominncia das causas econmicas na explicao da histria o que distingue de forma decisiva o marxismo da cincia burguesa (Lukcs, 1965: 47). [17] assombroso, para quem se preocupa com o desenvolvimento da sociologia, a ausncia, aqui, da menor referncia aos autores da Escola de Budapeste, reunidos em torno de Lukcs (quando se sabe, ademais, que Sousa Santos conhece os trabalhos de Agnes Heller, Ferenc Fher e G. Markus), aos empenhos de um S. Ossowsky sem falar de nenhuma aluso ao grupo Prxis e a Kosik. [18] Mas, nesse caso especfico, as duas omisses so verdadeiramente graves - se um socilogo culto no pode deixar de considerar a obra multifactica de Lefebvre, nenhum balano, por mais sumrio que seja, do marxismo nos anos 50-70 pode ser levado a srio se no consigna a produo peninsular da poca (quanto aos italianos, Sousa Santos limita-se a protocolares citaes de Labriola e Gramsci). [19] Para um pensador marxista contemporneo, essa distino j convencional (psmodernismo de celebrao/ps-modernismo de oposiol no interior do campo ps-moderno inteiramente desprovida de fundamentao (Mszros, 1996: 27-70). [20] Muito mais evidente no caso do ps-modernismo reconfortante. Parece-me que Sousa Santos recusaria de plano esta observao, que no posso desenvolver aqui; contudo, uma anlise mais cuidadosa de seu pensamento ao qual, como ele mesmo reconhece, no alheia a influncia de Heidegger (idem: 76) apontaria este vis, presente inclusive em no poucas passagens de Pela mo de Alice (cf. esp. as notaes sobre Conhecimento e subjetividade, pp. 328 e ss.). [21] Sousa Santos debateu amplamente a questo em Santos (1989l. [22] O prprio Habermas, cuidadoso como sempre, j advertira que este um conceito que s se pode aplicar com certas reservas s cincias sociais (Habermas, 1988, I: 157, nota). [23] Numa passagem de Pela mo de Alice, discutindo o pilar da emancipao do projeto da Modernidade, no perodo do capitalismo liberal (sculo XIX), Sousa Santos considera que o socialismo dito utpico , nos seus objetivos, mais radical que o socialismo dito cientfico (p. 83). [24] Sousa Santos, justamente preocupado com os desastres provocados pelo estatuto (com as suas incidncias prtico-sociais) meramente objetual de que a natureza desfruta no paradigma da cincia moderna, atribui a Marx concepo idntica desta ltima, passando inteiramente por alto as pginas que, nos Manuscritos econmico-filosficos de Paris, ele dedicou relao sociedade/natureza. [25] Apenas duas passagens, para atestar a notao: A um certo estgio da evoluo das foras produtivas, v-se o surgimento de foras de produo e meios de comrcio que, nas condies existentes, apenas causam malefcios. No so mais foras de produo, mas de destruio [];

[]. As coisas chegaram hoje ao ponto em que os indivduos se vem obrigados a se apropriarem da totalidade existente das foras produtivas no s para se afirmarem, mas, sobretudo, para resguardar a sua existncia (trechos de A ideologia alem, in Marx, 1982, /11: 1120, 1122). [26] No cabe aqui mostrar como, nesse aspecto, Marx um herdeiro direto de Hegel, cuja noo de progresso diversa das iluses hericas da Ilustrao do sculo XVIII. [27] Noutro passo de Pela mo de Alice tematizando a transformao no capitalista da sociedade atual, Sousa Santos faz uma observao que certamente o distingue de boa parcela dos socilogos contemporneos: assevera que se tal transformao no pode ser feita s com o operariado, to pouco pode ser feita sem ele ou contra ele (idem: 272). [28] No exame dessas novas realidades, fundamentalmente as que so postas pela crescente complexidade concreta da ordem tardo-burguesa, algumas contribuies de Sousa Santos merecem particular ateno - e muitas delas comparecem em Pela mo de Alice [29] A esta utopia - que, noutro desenvolvimento, Sousa Santos chamar de heterotopia corresponderia o Paradigma Eco-Socialista (idem: 336 e ss.). Quanto noo de socialismo de Sousa Santos, ela aparece lapidarmente quando discute as mini-racionalidades ps-modernas (idem: 111). [30] fato que assinala umas poucas delas (cf., por exemplo, idem: 37-38, 241), mas no as explora minimamente. [31] Marx deve ser posto no mesmo p que os demais fundadores da sociologia moderna, nomeadamente Max Weber e Durkheim. [ ] Apesar de se guardarem de uma traduo organizada das suas idias em processos de transformao social, Max Weber e Durkheim no se coibiram de fazer previses e de apontar direes desejveis ou indesejveis de transformao social. O que os distingue de Marx , neste domnio, o ato de suas previses se manterem dentro do quadro do capitalismo []. Porque se limitaram a prever variaes do presente, Max Weber e Durkheim falharam menos estrondosamente que Marx em suas previses. Mas, por outro lado, ao tentar prever mais longe e mais radicalmente, Marx apresentou, talvez contra sua vontade, uma das ltimas grandes utopias da modernidade: hoje claro que todo socialismo utpico ou no socialismo (idem: 33-34). [32] O reducionismo economicista que Sousa Santos atribui a Marx - expressa e obliquamente (idem: 36 e 120) - uma inteira fico, como Mszros, entre muitos, j demonstrou sobejamente (Mszros, 1993, parte 111). [33] Recorde-se que Marcuse, no seu estudo de 1941 - Razo e revoluo. Hegel e o advento da teoria social (Marcuse, 1969) -, pensa no mesmo compasso (desistoricizao e deseconomicizao) a constituio da sociologia. [34] Cf. esp. os dois ltimos captulos de Pela mo de Alice de notar, porm, que, nessas pginas, o trato dos processos econmicos muito mais de natureza constatativa que analtica. [35] Certamente que, no seu balano, ele menciona Hilferding e um que outro economista; mas a contribuio e/ou as polmicas derivadas dos trabalhos, apenas para citar alguns exemplos notveis, de Varga, Crossmann, Sweezy, Baran, Dobb, Boccara e Mandei seguramente lhe parecem pertencer a outro continente terico. [36] Prova-o, por exemplo, a prpria concepo que o socilogo portugus vem apresentando da Modernidade. Sousa Santos tem sabido evitar, ao longo de sua obra, a viso simplria, chapada e apologtica da Modernidade que comparece na maior parte dos idelogos ps-modernos. Muito especialmente, ele tem procurado, no plano histrico-sistemtico, discernir o Projeto da Modernidade do capitalismo (idem: 76), inclusive investigando os rebatimentos do evolver deste ltimo sobre aquele projeto (idem: 80-93). interessante, assinale-se, na sua anlise da Modernidade, a conexo que estabelece entre o pilar da regulao e o pilar da emancipao, com seus respectivos princpios e lgicas de racionalidade e com a expressa admisso de que

o projeto sociocultural moderno muito rico, capaz de infinitas possibilidades e [] sujeito a desenvolvimentos contraditrios (idem: 77). Todavia, e como se verifica em praticamente toda a literatura que tematiza a Modernidade de um ponto de vista ps-moderno, Sousa Santos tem as maiores dificuldades para explicitar concretamente tais desenvolvimentos contraditrios: no plano crtico-analtico, acaba por caucionar um paradigma da Modernidade inteiramente enquadrado pela lgica do capital - assim que, considerando os contemporneos problemas com que nos defrontamos (converso dos problemas tico-polticos em problemas tcnicos, legitimidade da propriedade privada independentemente do seu uso, obrigao poltica vertical do cidado frente ao Estado, crena produtivista no progresso), Sousa Santos no vai caa das mediaes que propiciem articul-los dinmica e lgica atuais do capital, mas v na base de tais problemas quatro axiomas fundamentais da modernidade! (idem: 321). A tenso irresoluta nessa concepo de Modernidade indescartvel: de uma parte, teoricamente, Sousa Santos substancializa o Projeto da Modernidade, autonomizando-o das concretas conexes que mantm com a ordem do capital e, de outra, analiticamente, termina por estabelecer entre Modernidade e capitalismo uma relao unvoco-funcional. [37] Quanto a isso, so ilustrativas as pginas que Sousa Santos dedica anlise da relao Estado/sociedade civil, que ele pensa como dualismo (idem: 115 e ss.). * Jos Paulo Netto ensasta, escritor e Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro ** Apndice do livro Marxismo impenitente - contribuio histria das ideias marxistas, Cortez Editora

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