Teoria Do Complô (Ricardo Piglia)

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Teoria do complo

Gostaria de propor algumas hipoteses sobre as formas de


comp16, sobre as intrigas e os grupos que se constituem para
planejar a<;6es paralelas e sociedades alternativas.
Em principio, 0 compl6 sup6e uma conjura<;ao e e ilegal
porque secreto; sua amea<;a impllcita nao deve ser atribuida a
simples periculosidade de seus metodos, mas ao carMer clan-
destino de sua organiza<;ao. Como polltica, postula a seita, a
infiltra<;ao, a invisibilidade.
Muitas vezes, 0 proprio relato de urn compl6 faz parte do
compl6, e assim temos uma rela<;ao con creta entre narra<;ao
e amea<;a. De fato, podemos ver 0 compl6 como uma fic<;ao
potencial, uma intriga que se trama e circula, e cuja realidade
e sempre duvidosa. 0 excesso de informa<;ao produz urn efeito
paradoxal, 0 que nao se sabe passa a ser a chave da noticia. 0
que nao se sabe, em urn mundo onde tudo se sabe, obriga a
bus car a chave escondida que permita decifrar a realidade. Se
Na pagina ao lado, em pe: a crise da experiencia, situada por Walter Benjamin na Pri-
Alexander Rodchenko e meira Guerra Mundial, foi deslocada (embora nao resolvida),
vladimir Maiak6vski; sentados:
talvez seja devido a presen<;a crescente da ideia de compl6 nas
Vsevolod Meyerhold e Dmitri
Shostakovich, em 19de rela<;6es entre informa<;ao e experiencia. A paranoia, antes de
setembro de 1929;a vanguarda se tornar clinica, e uma saida para a crise do sentido.
artistica se organiza em forma Com frequencia, para entender a logica destrutiva do social,
de complO - e e urn efeito da
crise do liberalismo o sujeito privado precisa inferir a existencia de urn compl6.
©RIA Novosti/Alamy Como lembrava Leo Strauss em seu classico ensaio Persecution
and the Art of Writing [Apersegui~ao e a arte de escrever], ler
nas entrelinhas - como se sempre houvesse algo cifrado - e em
si urn ato poHtico. 0 censor Ie desse modo e tambem 0 conspi-
rador, dois grandes modelos do leitor moderno.
Por outro lado, 0 complo implica a ideia de revolu~ao. 0
partido leninista esta fundado sobre a no~ao de complo e
correlaciona complO e classe, complO e poder. Gramsci mos-
trou que 0 conceito de organiza~ao em Marx estava ligado a
primitiva organiza~ao dos clubes jacobinos e as conspira~6es
secretas de pequenos grupos. Guevara, sem duvida, exaspera
essa linha com sua no~ao do grupo guerrilheiro, isolado em
territorio inimigo, base movel da sociedade futura.
Por fim, a no~ao de complo permite pensar a poHtica do
Estado, pois existe uma poHtica clandestina ligada ao que
chamamos de inteligencia do Estado - os servi~os secretos, os
mecanismos de controle e captura -, cujo objetivo principal
e registrar os movimentos da popula~ao, dissimular e super-
visionar 0 efeito destrutivo das grandes movimenta~6es eco-
nomicas e fluxos financeiros. Em contrapartida, ja na origem
do Estado, se anuncia 0 fantasma de urn inimigo invisivel e
poderoso. Ha sempre urn complo, e ele e a amea~a diante
da qual se legitima 0 uso indiscriminado do poder. Estado e
complo aparecem juntos. Os mecanismos do poder e do con-
trapoder se entrela~am.
o complO, assim, seria urn ponto de articula~ao entre pra-
ticas alternativas de constru~ao da realidade e urn modo de
decifrar certo funcionamento da poHtica.
Nesse marco, tratarei de tres quest6es. Primeiro, a rela~ao
entre romance e complo, 0 modo pelo qual a literatura per-
cebe esses nos sociais, 0 modo pelo qual 0 romance incorpora
como tema - e torna visivel- essas tramas; segundo, a rela~ao
entre vanguarda e complO, entre pratica artistic a e consenso
social; e, por fim, as rela~6es entre economia e complo, entre
linguagem tecnica e fluxo secreta do dinheiro, a alegoria
materialist a das contas sui~as com suas senhas e numeros
bloqueados (unica interioridade garantida).

I. Primeiro romance do romantismo as SETE LOUCOS: 0 COMPLO COMO NO DA POLITICA


argentino a adotar uma personagem
feminina como protagonista. Foi escrito
Com rela~ao a primeira questao, poderiamos dizer que
pelo poeta, jornalista e escritor Jose existe urn ponto ao redor do qual se articula certa tradi~ao
Marmol (1818-1871) e teve sua primeira
parte publicada em 1844, quando ele se
do romance na Argentina; poderiamos considerar que deter-
encontrava no exilio. IN.do E.I minados escritos de fic~ao- Amalia,' em primeiro lugar - se
constituiram em torno da narra<;ao de um comp16. Se pen-
sarmos em alguns autores centrais no imaginario da nar-
rativa argentina, entre eles Arlt, Marechal, Borges e Mace-
donio Fernandez, caberia dizer que e em torno do comp16
que se constitui sua no<;aode fic<;ao.Seus textos narram a
arma<;ao de um comp16 e, ao nos contar como ele se arma,
nos contam como se constroi uma fic<;ao.
2. Romance de Roberto Arlt (1900- o exemplo paradigmatico e as sete laucas. Embora
2

1942), lan,ado em 1929. No Brasil,


sairam duas edi~6es: pela Francisco
tenha sido lido basicamente como 0 romance de Erdosain,
Alves, em 1982, e pela Iluminuras creio que e a romance do Astrologo que ocupa lugar cen-
(volume que inclui outra obra do autor,
as !anqa-chamas), em 2000.11'. do E.;
tral- a arma<;aode um grande comp16 tendo os sete loucos
como conspiradores. E ao redor da no<;aode maquina<;ao
que 0 romance constitui sua eficacia. Ai, Arlt captou algo.
Penso ser este um dos elementos que explicam sua atuali-
dade. Arlt nunca deixa de escrever a historia do presente,
na medida em que intuiu a no<;aode comp16 como no da
politica argentina; ao rele-lo, sempre reencontramos essa
tensao. 0 importante e que a politica nao e explicitada
como tema. Voces nao encontrarao elementos da realidade
politica nem fatos relevantes daqueles anos, como acontece
em outros romances argentinos da epoca, que apresentam
uma no<;aomais esquematica daquilo que se entende por
compromisso, ou rela<;aoentre literatura e politica. Em Arlt,
a rela<;aocom a politica e desmaterializada; h:i uma unica
3. Severino Di Giovanni (1901-1931), referencia a Di Giovanni,3 ligada a falsifica<;aode dinheiro,
militante anarquista italiano
perseguido pelo fascismo, chegou a
seguida de uma nota de rodape na qual 0 autor esclarece
Buenos Aires em 1923 a bordo do vapor que aquilo que escreveu nao tem a ver com 0 golpe de 1930,
Sofia, na ultima grande leva de
imigrantes italianos aportados na
ja que a romance e de 1929. Arlt capta a existencia do com-
Argentina antes da Segunda Guerra p16 como logica de funcionamento mais do social do que
Mundia\. Foi florista, professor
autodidata, tip6grafo, linotipista,
da sociedade propriamente dita; a no<;aode comp16 e tra-
operario e, sobretudo, agitador, tendo balhada como no de constru<;ao da complexidade politica e,
vivido na clandestinidade a maior parte
de sua curta existencia. Partidario da
basicamente, modo de o'sujeito isolado pensar a politica.
a,ao violenta, foi preso, torturado pela No genero romance, 0 comp16 substituiu a no<;aotragica
policia do ditador Uriburu e condenado
a morte. Entre os jornalistas presentes a de destino: certas for<;asocultas definem 0 mundo social e
sua execu,iio estava Roberto Arlt, que o sujeito e instrumento dessas for<;asque nao compreende.
retratou a cena na cronica "He vista
morir ...", publicada em El Mundo e
o romance introduziu a politica na fic<;aosob a forma de
incluida em Aguafuertes po,·telias. comp16. A diferen<;a entre tragedia e romance parece estar
Enterrado na calada da noite por ordem
das autoridades, seu tumulo no
ligada a um deslocamento da no<;aode fatalidade: 0 destino
cemiterio de Chacarita amanheceu e vivid a sob a forma de um comp16. Ja nao sao os deuses que
coberto de rosas vermelhas. [N. do T.)
decidem a sorte, sao for<;asobscuras a tramar maquina<;6es
que definem 0 funcionamento secreta do real. Os oracu-
los mudaram de lugar; a trama multipla da informa<;ao, as
vers6es e contravers6es da vida publica, eis 0 lugar visivel
e denso onde 0 sujeito Ie cotidianamente a cifra de urn des-
tino que nao chega a compreender.
A percepr;ao basica transmitida por Arlt e a de que e pre-
ciso armar urn compl6 contra 0 compl6. 0 sujeito se sente
manipulado socialmente por certas forr;as, as quais atribui
as caracteristicas de uma conspirar;ao destinada a contro-
la-Io, e, portanto, deve armar urn compl6 para resistir ao
compl6. Costumo dizer brincando que os chamados cien-
tistas sociais e analistas politicos aprenderiam ma:is sobre
a politica argentina lendo esses romances do que traba-
lhando sobre 0 discurso explicito dos politicos. A soci~dade
capitalista nao e aquilo que diz ser. Ao denunciar 0 que
sup6e funcionar mal (a corrupr;ao, a fraude, 0 crime poli-
tico), ela reforr;a a ideia de que se trata apenas de anoma-
lias de uma logica que garante sua propria autorregular;ao
e visibilidade.

o ESTADO C01\!O JOGADOR ASTUTO


Borges tambem trabalhou 0 compl6 como elemento basico
na constituir;ao da ficr;ao.Basta pensarmos em tres ou qua-
tro textos seus que me parecem fundamentais a esse res-
4. lncluido no [ivro Fie,oes. Em 2007, a peito. Em primeiro lugar, "Tlon, Uqbar, Orbis Tertius",4
Companhia das Letras lan,ou uma nova
tradu,ao feita por Davi Arrigueei Jr.
texto seminal, pois nao faz outra coisa senao narrar a his-
IN. do E.I toria de uma conspirar;ao que acaba se substituindo a pro-
pria realidade. Uma sociedade secreta e fundada para criar
urn universo alternativo, 0 qual acaba invadindo 0 mundo e
engendrando outra realidade, apenas vislumbrada no final
do conto. Urn texto como esse, que trabalha 0 compl6 como
base, permite perceber a presenr;a da ficr;aono real e na poli-
tica, a manipular;ao das crenr;as, as historias que se tornam
reais. Pode-se dizer 0 mesmo sobre "Tema do traidor e do
heroi".5 Quando urn grupo de conspiradores irlandeses des-
cobre urn traidor infiltrado na organizar;ao e comprova que
ele e seu proprio chefe, p6e-se em movimento uma vasta
conjurar;ao destinada a escrever uma versao da historia: 0
traidor e executado, mas nessa execur;ao morre como heroi.
A relar;ao entre comp16 e escrita da historia ocupa a centro
da trama. (Haveria muito que dizer sobre isso na historia
argentina, e nao so na historia argentina.) Temos, par fim,
urn texto extraordinario, que me parece 0 mais politico de
Borges - "Aloteria na BabiI6nia",6em que a Estado organiza
uma vasta maquinar;ao para determinar a experiencia de
vida dos sujeitos par meio de sorteios peri6dicos. As pes-
soas se acham a merce do Estado, que opera sob a forma de
uma loteria, extensiva a toda a popular;ao, criando premios
a principia pecuniarios, que, mais tarde, se convertem em
modos de vida. Urn individuo vivera como servo au chefe,
conforme determine a sorte. "Como todos as homens
da BabilOnia, fui proconsul; como todos, escravo", assim
comer;a a relata. As vidas possiveis, as experiencias priva-
das sao manipuladas par uma vasta conspirar;ao invisivel
dirigida pelo Estado. 0 destino e deliberado, a acaso anula
qualquer decisao pessoal.
Parece-me que a ponto de partida encontrado par Bor-
ges para escrever esse relata sabre conspirar;ao e politicas de
Estado esta num fragmento do "livro v" de A republica, de Pla-
tao, urn fragmento fantastico que gostaria de ler para voces e
que se relaciona com a problema da distribuir;ao dos gozos
7. Psicanalista e escritor argentino, de que falava German Garcia7 na semana passada: a questao
autor, junto corn Graciela Musachi, de
La entrada del psicoanalisis en Argentina.
de como estabelecer uma politica das paix6es e afetos.
IN. do E.] Obviamente, A republica e urn texto fundamental na
constituir;ao daquilo que poderiamos chamar de utopia esta-
tal, a modelo do Estado perfeito. Ao mesmo tempo, trata-se
de urn texto fundador daquilo que entendemos par constru-
r;aoda realidade a partir do Estado. 0 "livro v", uma especie
de digressao dentro do texto, reflete sabre as tipos de rela-
r;6essentimentais que teriam lugar numa sociedade perfeita,
partindo da hip6tese de que as melhores homens e mulhe-
res devem se relacionar entre si e excluir desse intercambio
aqueles considerados inferiores. 0 texto prop6e a estabele-
cimento daquilo que poderiamos chamar centros de criar;ao,
de fertilizar;aocontrolada, coletividades sexuais formadas por
seres superiores, e atribui"ao Estado a funr;ao de administrar
as relar;6espassionais entre os individuos considerados como
superiores dentro dessa estrutura social.EscrevePlatao:

E necessario que os melhores horn ens mantenham rela~5es


com as melhores mulheres 0 mais frequentemente possivel,
e os piores com as piores 0 mais raramente possivel. [...] A frm
de solucionar essa questao a contento, cumpre, pois, introdu-
zir engenhosos sorteios, de modo que os individuos inferiores
contemplados com maus acasalamentos atribuam esse fato nao
aos governantes, mas it sorte.
Como veem, trata-se de urn plano totalmente conspira-
torio: 0 complO e 0 proprio mundo social. Por meio de sor-
teios, se decidira como se estabelecem as rela<;6essexuais
entre os individuos, e a iniquidade sera atribuida a sorte.
Mas 0 extraordinario e Platao advertir que 0 Estado ira recor-
rer a trapa<;a.Primeiro, decidira como serao essas rela<;6es
desiguais; em seguida, manipulara as regras de modo que
todos atribuam a desigualdade a sorte.
Parece existir uma rela<;ao implicita entre esse frag-
mento do texto de Platao e "Aloteria na BabilOnia". Borges
leva ao extrema a ideia de que 0 Estado manipula 0 acaso e
tende a converter em determina<;ao aquilo que se poderia
considerar arbitrario. Aqui, a loteria e 0 acaso funcionam
como representa<;ao desse tipo de organiza<;ao.No exemplo
limite de controle estatal, 0 Estado e 0 grande conspirador
que manipula e ordena as rela<;6essociais.

o outro caso e 0 de Macedonio Fernandez. Em Museo de la


novela de la eterna, ele narra a arma<;aode urn complo cuja fina-
lidade e tomar a cidade de Buenos Aires para mudar a deno-
mina<;aode suas vias, seus logradouros publicos e seu passado.
o no ficcional e a arma<;aode urn complo que, por sua vez, se
superp6e a escrita de urn romance. Asmultiplas estrategias do
romanesco que perpassam 0 texto tendem a funcionar como
conjura<;aodestinada a produzir efeitos sobre a realidade e
construir urn conjunto especifico de leitores, eles proprios
8. Carlos Garcia afirma, em uma giosa
destinados a atuar como conjurados. Desse modo, 0 romance
intitulada "Macedonio, lPresidente?", constroi 0 publico como cumplice de uma conjura<;aosecreta.
nao sem antes se desculpar por sua
prosaica objetividade, que Macedonio
Por outro lado, todos sabem que 0 proprio Macedonio inven-
jamais chegou a oficializar sua tou urn complo para intervir na vida social. Urn complO iro-
candidatura, pais seu nome naG consta
da lista de concorrentes as elei~6es
nico, que ao mesmo tempo denunciava a logica do sistema
presidenciais, seja em 1922 ou 1928. politico. Uma especie de critica comica da logica liberal da
Atribui a origem da versao mais
difundida da lenda a Jorge Luis Borges e
representa<;ao politica. E fato que Macedonio se candidatou a
Enrique Fernandez Latour, em escritos presidente da republica, e que urn grupo de conjurados de seu
datados respectivamente de 1960 e
1966. Se a candidatura de Macedonio
circulo come<;oua trabalhar e difundir essa hipotese.8
nao chegou a vingar, e certo, porem, que Com isso, passamos ao segundo ponto: a rela<;ao
esse seu "vasto e vago prop6sito", nas
palavras de Borges, animou varios
entre vanguard a artistica e complo. A ideia de aplicar a
projetos literarios. Um deles e a obra sociedade urn modelo conceitual de a<;aopolitica. Uma
coletiva inacabada El hombre que sera
presidente, devida a Macedonio, Borges
interven<;ao parodica e pratica na estrutura do sistema
e outros, da qual teria se originado politico. Em teoria, qualquer urn pode ser presidente da
Museo de la novela de la eterna.
Ver http://lVww.macedonio.net/.
republica, inclusive 0 mais antipolitico e invisivel dos
[N.doT.] cidadaos argentinos: Macedonio Fernandez. A estatistica
como expressao matematica do consenso e 0 procedi-
mento que garante a l6gica conspirat6ria. E mais facil,
dizia Macedonio, ser presidente da republica que farma-
ceutico, pois ha mais gente que quer ser farmaceutico do
que presidente; logo, raciocinava Macedonio, na Argen-
tina e estatisticamente mais facil ser presidente que far-
maceutico. Esse era 0 ponto de partida de uma campanha
com todas as caracteristicas de pratica conspirat6ria, des-
tinada a produzir efeitos minimos, porem bastante meta-
f6ricos, sobre a realidade - de fato, uma critica pratica do
9. Editado no Brasil pela Companhia
funcionamento da politica.
das Letras. IN.do E.]
ro. Gera,ao de 37 designa urn grupo de
A VANGUARDA CONTRA 0 CONSENSO
jovens intelectuais que, em 1837, fundou
em Buenos Aires 0 Salao Literario. 0 A fim de amp liar essa relac;ao entre vanguarda e com-
grupo evoluiu para uma atua,ao politica
reformista e foi dissolvido por Juan
pIO,gostaria de partir de uma ideia muito interessante do
Manuel de Rosas (1793-1877), livro de Carl Schorske, Viena fin-de-siecle.9 Embora nao seja
governador de Buenos Aires com status
de presidente da republica). Domingo
nenhum livro extraordinario, tem uma ideia que me parece
Faustino Sarmiento (18u-1888), urn dos bastante original e fecunda: ao analisar a serie de elementos
e
expoentes da Gera,ao de 37, autor de
que criaram as condic;6es de possibilidade daquilo que viria
urn dos mais importantes livros da
literatura argentina, Facundo 0 a ser 0 espirito de vanguard a no final do seculo 19 e inicio
civilizaci6n y barbarie en las pampas
argentinas. Ele foi presidente entre 1868
do 20, Schorske afirma que a vanguarda e um efeito da crise
e 1874. IN. do E.] do liberalismo. Nao sei se essa correlac;ao ja tinha sido esta-
II. Juan Bautista Alberdi (1810-1884),

advogado, musico, escritor, integrante


belecida anteriormente: 0 liberalismo, como pensamento
da Gera,ao de 37, passou boa parte da dominante que se estilhac;a, produz uma serie de reac;6es
sua vida no exilio. IN. do E.]
12. General Julio Argentino Roca
e polarizac;6es que definirao as politicas do seculo 20, entre
(1843-1914), EI Zorro, foi presidente da elas, a vanguarda. Na Argentina, essa crise do liberalismo
Argentina duas vezes (1880-1886;
1898-1904). Carlos Pellegrini
assume logicamente formas especificas e e um efeito da
(1846-1906), presidente da Argentina crise produzida pela imigrac;ao e dos debates suscitados
entre 1890 e 1892. Os dois dominaram 0
poderoso Partido Autonomista
entre as classes dominantes sobre a necessidade de modi-
Nacional. IN.do E.) ficar 0 programa que Sarmiento e a Gerac;aode 37 tinham
10

13. A Ley.Nacional de Elecciones nO 8.871,


promulgada pelo presidente Roque
estabelecido como modelo. A crise se desencadeia em fins
Saenz Pena em 1912, estabeleceu 0 do seculo, como resultado da emergencia das massas, dos
sufragio universal, secreto e obrigatorio
para eleitores do sexo masculino com
enxames de imigrantes que, com seus linguajares e modos
servi,o militar comprovado, e 0 sistema de vida, alteram 0 modelo harmonioso imaginado por
de listas incompletas, segundo 0 qual a
maioria obtinha dois ter,os dos cargos,
Alberdiu e Sarmiento, produzindo uma crise politica, uma
e a primeira minoria, 0 ter,o restante. A crise de governabilidade e de representatividade, como
nova legisla,ao restringiu as praticas
eleitorais fraudulentas vigentes durante
diriamos agora, que tem seu auge e se concentra na rup-
Mcadas e foi uma rea,ao defensiva dos tura e no enfrentamento entre Roca e Pellegrini,r2e se con-
setores dominantes, alarmados pelos
fatos acontecidos no pais (revolu,oes
clui com uma resoluc;ao frouxa, digamos, com a lei Saenz
radicais, atentados anarquistas e Pena, de 1912.13 Toda essa crise foi efetivamente estudada
crescimento do movimento operario) e
na Europa (revoltas operarias na !talia,
como condic;ao de surgimento do nacionalismo, visto como
Espanha e Russia). IN. do T.) alternativa diante da crise da tradic;ao liberal. A inversao da
oposic;:ao entre civilizac;:ao e barbarie poderia ser a metafora
des sa situac;:ao, ora classica na analise da cultura argentina.
Exemplo dessa virada e a leitura que faz Leopoldo Lugones
do Martin Hierro. Caberia acrescentar aqui, porem, a rela-
c;:aoentre essa crise do liberalismo e a emergencia de uma
politica de vanguarda na cultura argentina. Diriamos entao
que, na Argentina, essa crise do liberalismo e 0 contexto de
14. a escritor e editor argentino Manuel Manuel Galvez, de Ricardo Rojas, de Leopoldo Lugones/4 do
Galvez (1882-1962) teve seu livro a mal
chama do primeiro nacionalismo argentino, mas tambem de
metafisico lan~ado no Brasil em 1920,
pela Agenda de Publica~6es Mundiaes Macedonio Fernandez e suas estrategias politicas e culturais
Braz Lauria de Rio, gra~as a seu amplo
contato com Monteiro Lobato; Ricardo
conspirat6rias e vanguardistas.
Rojas (1882-[957), escritor e critico Assim, podemos considerar a vanguarda como uma res-
literario, representante do criollismo.
posta politica pr6pria, especifica, ao liberalismo e aos pro-
Leopolda Lugones (1874-1938),
jornalista e escritor do modernismo cedimentos de construc;:ao do poder politico e cultural nele
argentino. IN.do E.]
implicitos, uma resposta as ideias de consenso e pacto como
garantias do funcionamento social, de visibilidade do espac;:o
publico, de representac;:ao e maioria como formas de legitimi-
dade. A vanguard a questionaria tais noc;:oes com sua politica
de intervenc;:ao localizada, com sua percepc;:ao conspirat6ria da
l6gica cultural e da produc;:ao do poder como guerra de posi-
c;:oes.0 modelo da sociedade e a batalha, nao 0 pacto; e 0 estado
de excec;:ao,nao a lei. A vanguarda se propoe a tomar de assalto
os centros de controle cultural e alterar as hierarquias e modos
de significac;:ao. Contra a falsa ilusao do acordo e do consenso,
recorre as manobras de fraternidade e terror dos grupos em
fusao, de que falava Sartre; contrapoe provocac;:ao a ordem,
opoe seita a maioria, tem uma politica decidida, a um s6 tempo
escandalosa e hermetica, contra 0 falso equilibrio natural do
mercado e da circulac;:ao dos bens culturais.
A vanguarda artistic a se decifra claramente como pratica
antiliberal, como versao conspirat6ria da politica e da arte, como
complo que experimenta novas formas de sociabilida.de, infil-
trando-se nas instituic;:oes existentes, tendendo a destrui-las, e
a criar redes e formas alternativas. Antes de tudo, opera um
corte entre mundo cultural e democracia, os quais apresenta
como antagonicos. A democracia e uma superstic;:ao da esta-
tistica, dizia Borges, parafraseando as ac;:oespoliticas paralelas
de Macedonio Fernandez. Obviamente, toda politica da van-
guarda tende a se opor ao gosto da maioria e ao saber sub me-
tido ao consenso. A vanguarda sempre coloca a necessidade
de armar um complO para quebrar 0 can one, para negar a tra-
dic;:aoestabelecida e impor outra hierarquia e outros valores.
A arte se desligou do consenso liberal e, a proposito, como observou Benja-
min, talvez tenha sido Baudelaire quem melhor captou esse corte, ao definir
o artista como urn agente duplo, urn espiao em territorio inimigo.

CONSTRUIR 0 OLHAR ARTiSTICO MArs QUE A OBRA


Aarte e urn campo de experimenta~ao das linguagens sociais. Antes de mais
nada, a vanguard a se prop6e a alterar a circula~ao normalizada do sentido.
Quanto ao que poderiamos chamar de campo especifico, a vanguarda nega
a especificidade. Ela se ocupa da organizar;ao material da cultura, mais que
da propria cultura. Ela se ocupa daquilo que Brecht chamava de modos de
produr;ao da gloria, modos sociais de produr;ao que definem uma econo-
mia do valor. Ela ataca os regimes de propriedade e de apropriar;ao que nao
dependem do consenso ou de uma regular;ao natural, mas antes resultam
de rela~6es de for~a e de uma luta que imp6e certos criterios e anula outros.
Nao ha vanguarda sem tradir;ao e a tradir;ao, afirma a vanguarda, se trans-
forma em senso comum, no senso comum aparentemente menos comum: 0
gosto estetico, 0 pleonasmo dos entendidos que, no dizer de Brecht, enten-
dem daquilo que entendem e sabem aquilo que todos sabem que e preciso
saber. Com certeza, Brecht ataca essa posir;ao, ataca a conven~ao e 0 acordo
implicitos. Toda a discussao sobre a arte, em consequencia, ja nao passa pela
especificidade do texto, mas por seus usos e manipula~6es. Trata-se de atuar
sobre as condir;6es que concorrem para gerar a expectativa e definir 0 valor
da obra de arte. Cai a no~ao de que 0 valor literario reside na propria obra e
comer;a a ganhar importancia a ideia de que esse valor e uma intriga social.
o que sabemos do texto antes de le-Io e tao importante quanto 0 proprio
texto. Essa disposi~ao e urn elemento basico a respeito do qual insistiu
Borges: classico, dizia, e 0 texto que lemos como se fosse urn classico. Sabe-
mos que se trata de urn classico, portanto nos dispomos a le-Io de tal modo
que mesmo seus defeitos nos parecem deliberados. Podemos dizer que a
vanguarda tentou modificar esse senso comum, esse lugar estabilizado, e
a forma que encontrou para isso foi a pratica de intervir no espa~o do con-
senso, a fim de criar outro tipo de saber previo. Definitivamente, 0 compl6
vanguardista parte da hipotese de que 0 valor nao constitui urn elemento
interno, imanente a obra de arte; antes, haveria uma serie de tramas sociais
pre vias sobre as quais 0 artist a tambem deve intervir. Sao essas tram as que
definem 0 artistico, elas proprias sao 0 artistico. Por isso, muitas vezes a pra-
tic a da vanguard a consiste em construir 0 olhar artistico, e nao a obra de
arte. E, obviamente, 0 que fizeram Duchamp ou Macedonio.

Isso pressup6e outra no~ao do que seja a critica de arte, pois a construr;ao
desse olhar e sua imposi~ao implicam urn plano, uma estrategia, uma posi-
r;aode combate, urn sistema de alianr;as. Como critic a, abandona 0 aspecto
puramente negativo e se exerce nao mais como nega~ao de
uma obra ou de uma produ~ao artistica, mas como postula-
~ao de uma rede e de uma intriga, como constru~ao de outra
realidade; abandona a obra que critic a, como se esta Fosseurn
objeto em desuso, e se dedica a criar uma alternativa. Defini-
tivamente, a vanguard a substitui a critica pelo complo.

A ECONOMIA OU A EXPERIMENTAc;:Ao SOBRE SUJEITOS


I'sso posto, para voltar ao come~o, 0 que e urn complo? Ou
melhor, como poderiamos pensar as formas antissociais,
antiestatais e antiartisticas de conspira~ao? Digamos que 0
comp16 tenta modificar rela~6es de for~a que the sao adver-
sas, tendo 0 segredo por fundamento e a fuga por condi~ao. 0
complOe sempre invisivel,ja que implica uma politica baseada
na precariedade extrema, na amea~a constante de ser desco-
berto, na iminencia de uma derrota e na organiza~ao de redes
de fuga e retirada ordenada. Por isso, 0 conspirador apaga
seus rastros, contesta a l6gica social da visibilidade como
indicador de exito. A apari~ao deve ser instantanea, explo-
siva. 0 conspirador, portanto, esta sempre disposto a tudo
abandonar, antes de mais nada, seu pr6prio nome; procura
se fazer anonimo, se transformar em ninguem. Klossowski
enxergou nele a figura do fi16sofo e chamou de "efeito
Nietzsche" essa combina~ao de segredo e amea~a, conjura-
~ao e solidao, quest6es que expos de maneira notavel em
15. Lan~ado no Brasil pela Pazulin Nietzsche e 0 circulo vicioso, publicado em 1969.15
Editora (2000). [N. do E.]
Klossowski nota que 0 pensamento de Nietzsche, a
medida que se desenvolve, abandona a esfera propriamente
especulativa para assumir a forma de urn complO. Sao as pre-
liminares de urn comp16 que se escrevem nas derradeiras
cartas, nos escritos p6stumos, no anuncio da iminencia de
uma catastrofe e no advento do niilismo.
e
Tal anuncio, decifrado por Klossowski na doen~a no iso-
lamento extremo de Nietzsche em Turim, e efeito do triunfo
do calculo economico sobre quaisquer poderes, a maquina-
~ao economica como pratica que se realiza em outra dimen-
sao e inverte as predi~6es de Nietzsche.
Ai reside 0 extraordinario da leitura de Klossowski e da
serie de pens adores que imaginaram uma teoria economica
a partir da no~ao de confabula~ao de Nietzsche. Por urn
lado, a economia e concebida sob a forma de maquina~ao
que movimenta mass as e territ6rios; por outro, ha aquilo
puramente negativo e se exerce nao mais como negac;ao de
uma obra ou de uma produc;ao artistica, mas como postula-
c;aode uma rede e de uma intriga, como construc;ao de outra
realidade; abandona a obra que critic a, como se esta fosse urn
objeto em desuso, e se dedica a criar uma alternativa. Defini-
tivamente, a vanguarda substitui a critica pelo comp16.

A ECONOMIA OU A EXPERII\IENTA<;:AO SOBRE S JEITOS


Isso posto, para voltar ao comec;o, 0 que e urn comp16? Ou
melhor, como poderiamos pensar as formas antissociais,
antiestatais e antiartisticas de conspirac;ao? Digamos que 0
comp16 tenta modificar relac;6es de forc;aque the sao adver-
sas, tendo 0 segredo por fundamento e a fuga por condic;ao.0
comp16e sempre invisivel,ja que implica uma politica baseada
na precariedade extrema, na ameac;a constante de ser des co-
berto, na iminencia de uma derrota e na organizac;ao de redes
de fuga e retirada ordenada. Por isso, 0 conspirador apaga
seus rastros, contesta a logica social da visibilidade como
indicador de exito. A aparic;ao deve ser instantanea, explo-
siva. 0 conspirador, portanto, esta sempre disposto a tudo
abandonar, antes de mais nada, seu proprio nome; procura
se fazer an6nimo, se transformar em ninguem. Klossowski
enxergou nele a figura do filosofo e chamou de "efeito
Nietzsche" essa combinac;ao de segredo e ameac;a, conjura-
c;ao e solidao, quest6es que exp6s de maneira notavel em
IS. Lan,ado no Brasil pela Pazulin Nietzsche e a circulo vicioso,publicado em 1969.15
Editora (2000). [N. do E.]
Klossowski nota que 0 pensamento de Nietzsche, a
medida que se desenvolve, abandona a esfera propriamente
especulativa para assumir a forma de urn comp16. Sao as pre-
liminares de urn complo que se escrevem nas derradeiras
cartas, nos escritos postumos, no anuncio da iminencia de
uma catastrofe e no advento do niilismo.
Tal anuncio, decifrado por Klossowski na doenc;a e no iso-
lamento extremo de Nietzsche em Turim, e efeito do triunfo
do calculo economico sobre quaisquer poderes, a maquina-
c;aoeconomica como pratica que se realiza em outra dimen-
sac e inverte as predic;oes de Nietzsche.
Ai reside 0 extraordinario da leitura de Klossowski e da
serie de pens adores que imaginaram uma teoria economica
a partir da noc;ao de confabulac;ao de Nietzsche. Por urn
lado, a economia e concebida sob a forma de maquinac;ao
que movimenta mass as e territorios; por outro, ha aquilo
que poderiamos chamar de resposta conspirat6ria a conspirac;ao: a tentativa
de integrar pequenos circulos empenhados na construc;ao de uma economia
fechada, ut6pica, regulada pelo gozo e pela troca improdutiva, a definic;aode
uma teoria economica potencial, caracteristica de uma linha significativa do
pensamento contemporaneo.
Essa teoria esta presente em Bataille, em Caillois, no Klossowski de La
Monnaie vivante [Amoeda viva] e, com certeza, tambem em Deleuze, com
suas hip6teses sobre os £luxos libidinais, a oposic;ao entre desejo e interesse,
as impossiveis trocas que regulam a 16gicado sentido. Uma sintomatologia
da vida economica que define urn novo regime de conceitos. Ja Benjamin, nas
notas para 0 livro sobre as passagens de Paris, estabelecera uma instigante
relac;aoentre 0 conceito de eterno retorno e a circulac;ao do dinheiro.
A chave da leitura de Klossowski, uma das chaves desse livro extraordi-
nario, e a ideia de economia como pratica de experimentac;ao sobre sujeitos.
Nesse sentido, a economia e uma manipulac;ao invisivel e multipla que enlac;a
e prende individuos, grupos e conjuntos aos movimentos do dinheiro. As
populac;6es estao enredadas nesses deslocamentos de capital insensatos. A
vista de todos, surgiu uma nova forma de significac;aoque, como leu Nietzsche
numa passagem do Fausto de Goethe, substitui 0 sinal da cruz por outro
sinal sinistro, cunhado na dupla face da moeda. Quem imprime 0 dinheiro,
que poder autentica seu valor, que esfinge representa esse equivalente geral
que regula 0 intercambio de massas e a repetic;ao peri6dica das crises? - eis
a indagac;ao de Nietzsche. Sua resposta ever a economia sob a forma de uma
conjurac;ao mundial. Perante essa maquinac;ao secreta, tenta uma defesa
tragica. 0 comp16 de Nietzsche e uma tentativa heroica de se opor a economia,
vista como maquinac;ao anonima que dissolve os sujeitos em seus £luxos abs-
tratos. Nesse ponto, qualquer um pode imaginar 0 sentido da intervenc;ao de
sua irma Elizabeth Forster-Nietzsche, que se ocupou da edic;aotendenciosa dos
textos ineditos, justamente aqueles de que se ocupa Klossowski. Enquanto
a manipulac;ao exaltada dos escritos ineditos realizada pelo casal Forster
anuncia uma vit6ria, Klossowski ve ai 0 fracasso de Nietzsche e, desse
modo, desloca inteiramente a discussao, inaugurando uma nova etapa na
interpretac;ao dos textos.
Essa e a derrota de Nietzsche, afirma Klossowski, e na derrota reside a luci-
dez do visionario diante das eras vindouras e 0 anuncio de crises jamais vistas.
Escreve Klossowski:

A ideia de comp16 como experimentac;:aosobre sujeitos - 0 isolamento de urn


grupo humano como metodo para criar uma serie de "plantas raras e singulares"
(uma "rac;:a"que tivesse "sua propria esfera de vida", livre de todo imperativo
de virtude) -, esse carater experimental do projeto, se nao constituia 0 propo-
sito mesmo do comp16 para Nietzsche (que planificac;:aojamais teria previsto
semelhante invernaculo?), deveria, de algum modo, se inscrever
no proprio processo da economia e ser conduzido por ele. De
fato, que regime econ6mico, sob qualquer aspecto, nao possui
atualmente esse carater experimental? E, a despeito das metas
invocadas pelos metodos que poem em prMica, qual nao tende
a engendrar uma hierarquia de "experimentadores"? Estes,
com to do 0 conhecimento de causa, san incapazes de produzir
sequer uma fra~ao de humanidade "dotada de uma esfera de
'vida propria", mas nem por isso deixam de se atribuir 0 merito,
com todos os privilegios decorrentes, de extirpar como cizania
os menores germes de "plantas raras e exoticas" ... preven~ao,
sem duvida, nao menos dispendiosa que a de cultiva-las.

Haveria uma tensao entre a pratica sobre sujeitos ima-


ginada por Nietzsche e a experimentac;ao sobre sujeitos
empreendida pela 16gica economica. Os individuos e os
grupos que, para Nietzsche, constituem justamente os
sujeitos sobre os quais se formaria a nova sociedade - plan-
tas raras e ex6ticas, como os chama, portadores de novos
valores - sao extirpados da sociedade. Esse processo cons-
titui 0 germe daquilo que Foucault chamava de biopolitica.
o cad.ter improdutivo aparece excluido do funcionamento
social; ora, para Nietzsche, e justamente esse carater 0 fun-
damento da constituic;ao de uma nova especie de sujeito.
Enquanto Nietzsche - e 0 que dizia Klossowski - tende a
imaginar a pratica, a experimentac;ao e a constituic;ao de cer-
tos tipos de sujeitos, a economia 0 faz de modo inverso, isto e,
trata de extirpar e anular esses mesmos sujeitos.
Aqui, podemos dizer que 0 complo de Nietzsche tern
por modelo basico a criac;aoartistica, no sentido de que e 0
artist a esse sujeito improdutivo que seria 0 fundamento do
complo contra a produtividade generalizada da economia
e da sociedade. Perante 0 6.16sofoe 0 sabio, perante 0 poli-
tico e 0 economista, Nietzsche coloca 0 artista como sujeito
da verdade. Artista aqui e, obviamente, 0 antiartista, e deve
16. Nascido na Polenia e radicado na ser entendido segundo Gombrowiczl6 e Macedonio: nao 0
Argentina, Witold Gombrowicz
(1904-1969) e autor de Pornografia,
artista que se autodesigna, mas 0 artista que se nega como
lan~ado no Brasil este ano pela tal, 0 sujeito da pura percepc;ao artistic a, aquele que observa
Companhia das Letras; a mesma editora
publicou Cosmos (2007) e Ferdydul'ke
de longe, se oculta, se op6e ao gosto e a estetizac;ao generali-
(2006).[N. do E.] zada, 0 artista como comediante que ri da arte. Nesse sentido,
o complo de Nietzsche nao poderia vingar, mas tao somente
anunciar 0 porvir, operando nas sombras e na solidao. Por
semelhante invernaculo?), deveria, de algum modo, se inscrever
no proprio processo da economia e ser conduzido por ele. De
fato, que regime econ6mico, sob qualquer aspecto, nao possui
atualmente esse carater experimental? E, a despeito das metas
invocadas pelos metodos que poem em priitica, qual nao tende
a engendrar uma hierarquia de "experimentadores"? Estes,
com todo 0 conhecimento de causa, SaGincapazes de produzir
sequer uma fra<;:aode humanidade "dotada de uma esfera de
vida propria", mas nem por isso deixam de se atribuir 0 merito,
com todos os privilegios decorrentes, de extirpar como cizania
os menores germes de "plantas raras e exoticas" ... preven<;:ao,
sem duvida, nao menos dispendiosa que a de cultiva-Ias.

Haveria uma tensao entre a pratica sobre sujeitos ima-


ginada por Nietzsche e a experimenta<;ao sobre sujeitos
empreendida pela l6gica economica. Os individuos e os
grupos que, para Nietzsche, constituem justamente os
sujeitos sobre os quais se formaria a nova sociedade - plan-
tas raras e ex6ticas, como os chama, portadores de novos
valores - saD extirpados da sociedade. Esse processo cons-
titui 0 germe daquilo que Foucault chamava de biopolitica.
o carater improdutivo aparece excluido do funcionamento
social; ora, para Nietzsche, e justamente esse carater 0 fun-
damento da constitui<;ao de uma nova especie de sujeito.
Enquanto Nietzsche - e 0 que dizia Klossowski - tende a
imaginar a pratica, a experimenta<;ao e a constitui<;ao de cer-
tos tipos de sujeitos, a economia 0 faz de modo inverso, isto e,
trata de extirpar e anular esses mesmos sujeitos.
Aqui, podemos dizer que 0 complo de Nietzsche tern
por modelo basico a cria<;aoartistic a, no sentido de que e 0
artista esse sujeito improdutivo que seria 0 fundamento do
comp16 contra a produtividade generalizada da economia
e da sociedade. Perante 0 fi16sofo e 0 sabio, perante 0 poli-
tico e 0 economista, Nietzsche coloca 0 artista como sujeito
da verdade. Artista aqui e, obviamente, 0 antiartista, e deve
16. Nascido na Po16nia e radicado na ser entendido segundo Gombrowiczt6 e Macedonio: nao 0
Argentina, Witold Gombrowicz
e
(1904-1969) autor de Pornografia,
artista que se autodesigna, mas 0 artista que se nega como
lan~ado no Brasil este ano pela tal, 0 sujeito da pura percep<;ao artistic a, aquele que observa
Companhia das Letras; a mesma editora
publicou Cosmos (2007) e Ferdydurke
de longe, se oculta, se op6e ao gosto e a estetiza<;ao generali-
(2006). [N.do E.] zada, 0 artista como comediante que ri da arte. Nesse sentido,
o comp16 de Nietzsche nao poderia vingar, mas tao somente
anunciar 0 porvir, operando nas sombras e na solidao. Por
isso, Klossowski compreende 0 compl6 nao mais como vontade de poder,
mas como vontade tragica, isto e, dionisiaca, fundada sobre uma economia
da despesa, da destrui<;ao e do gozo.
Esse e 0 marco da critica atual a vanguard a, que certamente decorre do
triunfo do liberalismo. Se 0 liberalismo ressurge, a vanguard a entra em crise e
acontece uma regressao geral ao mercado e as institui<;6es estabelecidas. Nesse
sentido, a afirma<;ao p6s-moderna esta ligada ao triunfo do liberalismo e do
neoliberalismo, a constru<;ao de urn novo contexto unificador. Aqui, seria opor-
tuna lembrar que 0 livro fundador da no<;ao de p6s- modernidade - The Cultural
Contradictions of Capitalism [Ascontradi<;6es culturais do capitalismoJ, de Daniel
Bell- foi escrito no inicio dos anos 1970, e sua hip6tese central (amincio de urn
verdadeiro programa de a<;ao)sustenta que nao pode haver sociedade que fun-
cione com uma cultura oposta a seu sistema de legitimidade. Ha uma contradi<;ao,
afirma Bell, entre uma sociedade fundada sobre 0 consenso e os valores tradicio-
nais, e uma arte e uma cultura que exaltam a ruptura, os valores antissociais e a
nega<;ao. Logicamente, 0 primeiro texto referido por Bell em sua critica aos cri-
tic os da sociedade e 0 nascimento da tragedia, de Nietzsche. A sociedade, afirma
Bell, nao poderia apoiar e promover uma cultura que se opoe a moral necessaria
a seu funcionamento; nao seria possivel considerar legitima uma cultura que se
op6e a norma social, a etica do trabalho, aos valores da familia, e que exalta a
destrui<;ao das normas, a libera<;ao sexual, a arte ilegivel. A sociedade necessita
de uma cultura que reforce seu funcionamento legitimo, nao de uma cultura que
con teste seus fundamentos. Bell - critico cultural refinado, em sintonia com 0
pensamento contemporaneo, leitor de Benjamin e de Adorno, figura-chave na
rea<;ao conservadora da academia norte-americana - foi quem primeiro definiu
o conceito de p6s-modernidade e caracterizou 0 sentido basico dessa rea<;ao
contra a tradi<;ao das vanguardas do seculo 20. Poderiamos dizer que, de modo
urn tanto sofisticado - na verdade, nao conhe<;o melhor defini<;ao de p6s-mo-
dernidade que a do livro de Bell-, ele faz urn uso dnico da hip6tese marxista de
que as ideias dominantes seriam as ideias das classes dominantes, de que nao
poderia haver cisao, do contrario, algo estaria falhando nessa cultura. Bell nao
apenas definiu e difundiu 0 termo "p6s-moderno", para designar uma nova con-
juntura cultural, como tambem acompanhou e antecipou aquilo que a economia
neoliberal vinha realizando por conta pr6pria, propondo uma res posta cultural
a altura da l6gica desta nova situa<;ao. E preciso construir uma cultura que legi-
time esta nova situa<;ao, afirma Bell, e, no inicio dos anos 1970, a nova cultura que
ele anuncia e define como unica legitima e a que chama de "p6s-moderna".

Parece-me que 0 triunfo do liberalismo e do neoliberalismo, e 0 retrocesso


da vanguard a, viriam dar razao a hip6tese de Schorske de que existe uma
oposi<;ao entre liberalismo e vanguarda. A prevalecer 0 liberalismo, nao
haveria entao espa<;o para a vanguarda.
DINHEIRO ENTERRADO
Para terminar, gostaria de recordar uma aula dada por
Bataille no College de Sociologie, em 1938, sobre a no~ao de
sociedade secreta. A essas reunioes, como sabemos, assistia
Benjamin, entao em Paris, escrevendo 0 capitulo sobre os
conspiradores e Fourier - 0 "comite invisivel", no seu dizer-
para 0 livro das passagens. Nessa conferencia, Bataille expoe
a existencia da sociedade secreta como uma especie de con-
tr'associedade que permite gerar uma energia para modificar
o funcionamento social. Frente a estabiliza~ao da sociedade
\
industrial, a solu~ao de Bataille e a constitui~ao do micro-
grupo de conjurados, que postula e aspira a uma contra-
economia, uma economia pulsional, uma economia do des-
perdicio e do gozo. Nesse momento, surge uma nova teoria
econamica. Gombrowicz tambem avan~a nessa linha com
sua no~ao do vicio como n6 da 16gicaeconamica. "A huma-
nidade" - afirma Gombrowicz - "foram dados certos vicios,
e sobre estes se criou urn mercado." Por sua vez, William
Burroughs concebeu 0 vicio como a condensa~ao da econo-
mia capitalista, e a droga como a mercadoria por excelencia.
A droga, diz Burroughs, e 0 produto ideal, a realiza~ao mais
perfeita da economia capitalista, na medida em que produz
o consumidor que nao pode viver sem consumir.
A economia e vista entao como produtora de sintomas
e desvios. Ai reside a tensao entre as ilusoes de uma con-
jura~ao que se opoe a sociedade, embora nao se trate de
comp16 politico em sentido explicito, e 0 funcionamento
de uma sociedade que gera naturalmente urn tipo de racio-
nalidade econamica inclinada a par 0 lucro, a circula~ao do
dinheiro, a ganancia, como formas visiveis de seu funcio-
namento, embora na realidade esconda uma rede feita de
vicios, ideias fixas e fetiches, de bens sagrados e carencias
absolutas. Essa tensao entre duas economias permeia todo
o debate sobre arte e valor. A arte, na visao de Gombrowicz
e Arlt, constitui uma atividade que tende a gerar uma eco-
nomia pr6pria, com seu pr6prio sistema de valor e troca, e
este e 0 alicerce da pratica desses artistas: a ideia de criar
uma economia que poderiamos considerar como privada,
na qual cada coisa vale aquilo que a gente diz que vale.
Nessa linha, para terminar, gostaria de ler para voces
17. Lan~ado no Brasil pela editora Imago,
uma especie de parabola de urn grande economista, Keynes.
em 1975. [N. do E.] Ela e citada em A parte maldita,'7 livro em que Bataille, na
linha de Klossowski e naturalmente de Nietzsche, tenta teorizar essa con-
traeconomia - uma economia dionisiaca, do esbanjamento e do desejo -, e
exalta a noc,:aode crise como ponto de ruptura do funcionamento normal
do sistema, e, por conseguinte, como urn momenta em que se desvenda 0
funcionamento de algo que nao e tao racional, como a principio parece que-
rer dizer 0 sistema. Somente em tempos de crise 0 sistema diz de si mesmo
aquilo que realmente e. A certa altura da analise, Bataille incorpora esse
breve relato, essa fabula, a que chama de "0 misterio da garrafa de Keynes".
Sabemos que Keynes, 0 amigo de \i\Tittgenstein, sustentava que a economia
se desenvolve quando 0 dinheiro abunda, quando se esta proximo do boom,
do crack, e nao do equilibrio. E uma maneira de pensar 0 excesso no campo
economico, a especulac,:aocomo fenomeno de massas. Deleuze analisa essa
economia de risco, realizada na medida em que se afasta da estabilidade
rumo a desordem e ao acaso. Bataille, enfim, cita a parabola de Keynes como
uma especie de alternativa subterrane a a superficie arida da economia.
Se 0 tesouro publico pusesse dinheiro em garrafas, enterrasse-as a certa
profundidade em minas de carvao abandonadas e cobrisse-as de entulho;
se, em seguida, confiasse a iniciativa privada, segundo os consabidos princi-
pios do laissez-faire, a tarefa de desenterrar 0 dinheiro - claro esta, sempre
que ela obtivesse permissao para faze-lo, mediante concess6es de explora-
c,:aodo solo onde estao enterradas as garrafas, 0 desemprego de sapare ceria,
e, grac,:asa seus efeitos, a renda real da sociedade, e mesmo seu patrimonio,
se elevariam acima dos niveis atuais.

Enterrar garrafas com dinheiro no meio da noite - mais urn complo na serie
de conjurac,:6es ironicas e politicas que circulam des de sempre, e que me
propus a discutir aqui, com voces, nesta tarde.

Urn dos mais representativos escritores argentinas contemporaneos, RICARDO PIGLIA, nas-
cido em 1941, em Adrogue, provincia de Buenos Aires, e tambem critico, ensaista e professor
de literatura na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Entre seus livros lan<;ados no
Brasil estiio A invasdo (premia Casa de las Americas, 1997), Nome [also (1998), Respira9do artificial
(2006), todos pela editora Iluminuras; Dinheiro queimado (premia Planeta, 1998), Formas breves
(2004) e 0 ultimo leito (2006), pela Companhia das Letras.
TRADUGAO DE HUGO MADER
Este texto e a transcri<;iio de uma conferencia pronunciada em 15 de julho de 2001, no ciclo Phi-
cidos Domingos, promovido pela Fundacion Start.

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