Literatura Comparada - Eduardo Coutinho

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Literatura comparada,

literaturas nacionais e o
questionamento do
"'"
canone
Eduardo F. Coutinho

Qualquer revisão crítica da Literatura Comparada em seu desenvolvimento


histórico leva de imediato à percepção de que a disciplina sofreu, de meados
dos anos 70 para o presente, considerável transformação, que poderíamos
sintetizar, sem riscos de reducionismo, na passagem de um discurso coeso e
unânime, com forte propensão universalizante, para outro plural e descentra-
do, situado historicamente, e consciente das diferenças que identificam cada
corpus literário envolvido no processo da comparação. Embora essa transfor-
mação se tenha originado dentro do grande eixo dos estudos comparatistas,
formado pela Europa Ocidental e a América do Norte, e se deva em boa parte
à voga da Teoria Literária nesse período, máxime pela importância que
adquiriram correntes do pensamento como o Desconstrutivismo, a Nova
História e os chamados Estudos Culturais e Pós-Coloniais, ela teve como
corolário o deslocamento do foco de atuação da disciplina para pólos até
então tidos como marginais nesta seara, como a China e a Índia - na Ásia -,
a África e a América Latina. É esta transformação verificada no seio do
comparatismo tradicional e as implicações daí decorrentes, sobretudo no que
diz respeito ao contexto latino-americano, que serão investigadas neste tra-
balho.
Marcada no início por uma perspectiva de teor historicista, calcada em
princípios científico-causalistas, decorrentes do momento e contexto históri-
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co em que se configurara, e em seguida por uma óptica predominantemente


formalista, que conviveu, entretanto, com vozes dissonantes de significativa
relevância, a Literatura Comparada atravessou seu primeiro século de exis-
tência em meio a intensos debates, mas apoiada em certos pilares, de tintas
nitidamente etnocêntricas, que pouco se moveram ao largo de todo esse
tempo. Dentre estes pilares, que permaneceram quase inabalados até os anos
70, é impossível deixar de reconhecer a pretensão de universalidade, com que
se confundiu o cosmopolitismo dos estudos comparatistas, presente já desde
suas primeiras manifestações, e o discurso de apolitização apregoado sobre-
tudo pelos remanescentes da chamada "Escola Americana", que dominou a
área nos meados do século XX. O primeiro expressa-se pelo anseio de que, a
despeito da diversidade e multiplicidade do fenômeno literário, é possível
constituir-se um discurso unificado sobre ele e de que a Literatura é uma
espécie de força enobrecedora da humanidade, que transcende qualquer bar-
reira; o segundo condensa-se em afirmações como a de que a Literatura
Comparada é o estudo da Literatura, independentemente de fronteiras lin-
güísticas, étnicas ou políticas, e que não deve portanto deixar-se afetar por
circunstâncias de ordem, entre outras, econômica, social ou política.
Conquanto estes dois tipos de discurso apresentem, na superfície, varia-
ções, eles encerram, no íntimo, um forte denominador comum - o teor
hegemônico de sua construção - e foi sobre este dado fundamental que se
baseou grande parte da crítica empreendida a partir de então ao comparatismo
tradicional. Em nome de uma pseudo-democracia das letras, que pretendia
construir uma História Geral da Literatura ou uma poética universal, desen-
volvendo um instrumental comum para a abordagem do fenônemo literário,
independente de circunstâncias específicas, os comparatistas, provenientes
na maioria do contexto euro-norte-americano, o que fizeram. conscientemen-
te ou não, foi estender a outras literaturas os parâmetros instituídos a partir
de reflexões desenvolvidas sobre o cânone literário europeu Ce por europeu
entenda-se o cânone constituído basicamente por obras literárias das potên-
cias econômicas do oeste do continente). O resultado inevitável foi a super-
valorização de um sistema determinado e a identificação deste sistema - o
europeu - com o universal. Do mesmo modo, a idéia de que a literatura
deveria ser abordada por um viés apolítico - fato hoje sabidamente impossí-
vel - o que fazia era camuflar uma atitude prepotente de reafirmação da
supremacia de um sistema sobre os demais.
O questionamento dessa postura universalizante e a desmitificação da
proposta de apolitização, que se tornaram uma tônica na Literatura Compa-
rada a partir dos anos 70, atuaram de modo diferente nos centros hegemôni-
cos e nos focos de estudos comparatistas que poderíamos chamar de periféri-
cos, mas em ambos estes contextos verificou-se um fenômeno similiar: a
aproximação cada vez maior do comparatismo a questões de identidade
Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do cânone 69

nacional e cultural. No eixo Europa Ocidental/América do Norte, o cerne das


preocupações deslocou-se para grupos minoritários, de caráter étnico ou
sexual, cujas vozes começaram a erguer-se cada vez com mais vigor, buscan-
do foros de debate para formas alternativas de expressão, e nas outras partes
do mundo clamava-se um desvio de olhar, com o qual se pudessem enfocar
as questões literárias ali surgidas a partir do próprio [oeus onde se situava o
pesquisador. A preocupação com a Historiografia, a Teoria e a Crítica literá-
rias continuou relevante nos dois contextos mencionados, mas passou-se a
associar diretamente à praxis política cotidiana. As discussões teóricas volta-
das para a busca de universais deixaram de ter sentido e seu lugar foi ocupado
por questões localizadas. que passaram a dominar a agenda da disciplina:
problemas como o das relações entre uma tradição local e outra importada,
das implicações políticas da influência cultural, da necessidade de revisão do
cânone literário e dos critérios de periodização.
Este descentramento ocorrido no âmbito dos estudos comparatistas, ago-
ra muito mais voltados para questões contextualizadas, ampliou em muito o
cunho internacional e interdisciplinar da Literatura Comparada, que passou a
abranger uma rede complexa de relações culturais. A obra ou a série literárias
não podiam mais ser abordadas por uma óptica exclusivamente estética;
como produtos culturais. era preciso que se levassem em conta suas relações
com as demais áreas do saber. Além disso, elementos que até então funciona-
ram como referenciais seguros nos estudos comparatistas, como os conceitos
de nação e língua, foram postos por terra, e a dicotomia tradicionalmente
estabelecida entre Literaturas Nacionais e Comparada foi seriamente abala-
da. A perspectiva linear do historicismo cedeu lugar a uma visão múltipla e
móvel, capaz de dar conta das diferenças específicas, das formas disjuntivas
de representação que significam um povo, uma nação, uma cultura, e os
conjuntos ou séries literárias passaram a ter de ser vistos por uma óptica
plural, que considerasse tais aspectos. Categorias como Literatura Chicana,
Literatura Afro-Americana ou Literatura Feminina passaram a integrar a
ordem do dia dos estudos comparatistas e blocos, como Literatura Oriental,
Africana ou Latino-Americana, instituídos pelos centros hegemônicos, reve-
laram-se como constructos frágeis, adquirindo uma feição nova, oscilante em
conformidade com o olhar que o enformasse.
O desvio de olhar operado no seio do comparatismo, como resultado da
consciência do teor etnocêntrico que o dominara em fases anteriores, empres-
tou novo alento à disciplina, que atingiu enorme efervescência justamente
naqueles locais até então situados à margem e agora tornados postos funda-
mentais no debate internacional. Nesses locais, onde não há nenhum senso de
incompatibilidade entre Literaturas Nacionais e Literatura Comparada, o
modelo eurocêntrico até então tido como referência, vem sendo cada vez
mais posto em xeque, e os paradigmas tradicionais cedem lugar a construções
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alternativas ricas e flexíveis, cuja principal preocupação reside na articulação


da percepção dos produtos culturais locais em relação com os produtos de
outras culturas, máxime daquelas com que a primeira havia mantido vínculos
de subordinação. O desafio levantado por críticos como Edward Said e Homi
Bhabha ao processo sistemático instituído pelas nações colonizadoras de
"inventar" outras culturas alcança grande repercussão, ocasionando, em lo-
cais como a Índia, a África e a América Latina, reivindicações de constituição
de uma História Literária calcada na tradição local, cujo resgate se tornara
indispensável. O elemento político do comparatismo é agora não só assumido
conscientemente, como inclusive enfatizado, e surge uma necessidade impe-
rativa de revisão dos cânones literários.
Central dentro do quadro atual da Literatura Comparada, a "questão do
cânone", como tem sido designada, constitui uma das instâncias mais vitais
da luta contra o eurocentrismo que vem sendo travada nos meios acadêmicos,
pois discutir o cânone nada mais é do que pôr em xeque um sistema de valores
instituído por grupos detentores de poder, que legitimaram decisões particu-
lares com um discurso globalizante. Um curso sobre as "grandes obras", por
exemplo, tão freqüente em Literatura Comparada, quase sempre esteve cir-
cunscrito ao cânone da tradição ocidental (na realidade, à tradição de alguns
poucos países poderosos do oeste europeu, que mantinham uma política
cultural de cunho hegemônico), e sempre se baseou em premissas que ou
ignoravam por completo toda produção exterior a um círculo geográfico
restrito ou tocava tangencialmente nessa produção, incluindo, como uma
espécie de concessão uma ou outra de suas manifestações. As reações a esta
postura têm surgido de forma variada, e com matizes diferenciados depen-
dendo do local de onde partem. Nos países centrais, é obviamente mais uma
vez da parte dos chamados "grupos minoritários·' que provêm as principais
indagações, e, nos contextos periféricos, a questão se tornou uma constante,
situando-se em alguns casos na linha de frente do processo de descolonização
cultural.
Ampla, complexa e variada, a questão do cânone literário extrapola
nossos objetivos neste trabalho, não podendo ser apreciada com o cuidado
que requer, mas mencione-se que ela se estende desde a exclusão de uma
produção literária vigorosa oriunda de grupos minoritários, nos centros hege-
mônicos, e do abafamento de uma tradição literária significativa, nos países
que passaram por processos de colonização recente, como a Índia, até proble-
mas relativos à especificidade ou não do elemento literário, dos padrões de
avaliação estética e do delineamento de fronteiras entre constructos como
Literaturas Nacionais e Literatura Comparada. Com a desconstrução dos
pilares em que se apoiavam os estudos literários tradicionais e a indefinição
instaurada entre os limites que funcionavam como referenciais, o cânone ou
cânones tradicionais não têm mais base de sustentação, afetando toda a
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estrutura da Historiografia, da Teoria e da Crítica literárias. Como construi-


rem-se cânones, seja na esfera nacional, seja na internacional, que contem-
plem as diferenças clamadas por cada grupo ou nação (entendendo-se este
termo no sentido amplo utilizado por autores como Homi Bhabha), e como
atribuir a estas novas construções um caráter suficientemente flexível que
lhes permita contantes reformulações, são perguntas que se levantam hoje a
respeito de terreno tão movediço. E é possível, se indagaria também, institui-
rem-se cânones com margens de flexibilidade, que não viessem a cristalizar-
se, tornando-se novas imposições? Seriam estes ainda cânones?
Perguntas como estas encontram-se quase sempre sem resposta na agen-
da do comparatismo, sobretudo após o desenvolvimento dos chamados Estu-
dos Pós-Coloniais e Culturais, que atacaram, com força jamais vista, o etno-
centrismo da disciplina. A crítica a este elemento, expresso por meio de um
discurso pretensamente liberal, mas que no fundo escondia seu teor autoritá-
rio e totalizante. já se havia iniciado desde os tempos de Wellek e Etiemble,
e se lançarmos uma mirada ao espectro de atuação da Literatura Comparada,
veremos que ela sempre aflorou de maneira variada ao longo de sua evolução.
Contudo. na maioria dos casos. essa crítica se manifestou à base de uma
oposição binária. que continuava paradoxalmente tomando como referência
o elemento europeu. Conscientes de que não se trata mais de uma simples
inversão de modelos, da substituição do que era tido como central pela sua
antítese periférica, os comparatistas atuais que questionam a hegemonia das
culturas colonizadoras abandonam o paradigma dicotômico e se lançam na
exploração da pluralidade de caminhos abertos como resultado do contacto
entre colonizador e colonizado. A conseqüência é que ele se vê diante de um
labirinto, hermético, mas profícuo, gerado pela desierarquização dos elemen-
tos envolvidos no processo da comparação, e sua tarefa maior passa a residir
precisamente nessa construção em aberto, nessa viagem de descoberta sem
marcos definidos.
Marcados profundamente por um processo de colonização, que continua
vivo ainda hoje do ponto de vista cultural e econômico, os estudos literários
na América Latina sempre foram moldados à maneira européia, e basta uma
breve mirada a questões como as que vêm sendo consideradas aqui de Histo-
riografia, Teoria e Crítica literárias para que tal se torne evidente. No caso da
primeira, é suficiente lembrar a periodização literária, que sempre tomou
como referência os movimentos europeus, e mais recentemente também
norte-americanos, e encarou os latino-americanos como meras extensões ou
adaptações dos primeiros. No caso da Teoria, cite-se a prática dominante de
importação de correntes emanadas do meio intelectual europeu, que adqui-
riam caráter dogmático e eram aplicadas de modo indiscriminado à realidade
literária do continente, sem levar-se em conta em momento algum as diferen-
ças de ordem histórica e cultural que distinguiam os dois contextos. E,
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finalmente, no âmbito da Crítica, mencionem-se os parâmetros de avaliação,


que sempre se constituíram à base das chamadas "grandes obras" da tradição
ocidental (leia-se "européia"), e miraram as nossas como manifestações me-
nores, cópias imperfeitas dos modelos instituídos. O cânone ou cânones
literários dos diversos países latino-americanos eram constituídos por crité-
rios estipulados pelos setores dominantes da sociedade, que reproduziam o
olhar europeu, primeiramente ibérico, à época da colônia, e posteriormente,
após a independência política, de outros países, mormente a França.
Embora, como contrapartida à sua própria condição colonial, a América
Latina já tivesse desenvolvido, ao longo de todo esse tempo, uma forte
tradição de busca de identidade, tanto na própria literatura quanto na ensaís-
tica, o comparatismo que se produzia no continente continuava, de maneira
geral, preso quer ao modelo francês de fontes e influências, quer à perspectiva
formalista norte-americana, que lhe imprimia esterilidade e ratificava sua
situação de dependência. Com as mudanças, entretanto, efetuadas dos anos
70 para o presente, ele parece ter renascido das cinzas, e é hoje um dos focos
de maior efervescência nos estudos latino-americanos. Associando-se à preo-
cupação com a busca de identidade, agora já não mais vista por uma óptica
ontológica, mas sim como uma construção passível de questionamento e
renovação, a Literatura Comparada na América Latina parece ter assumido
com firmeza a necessidade de enfocar a produção literária a partir de uma
perspectiva própria, calcada na realidade do continente, e vem buscando um
diálogo verdadeiro no plano internacional. Assim, questões como a do cânone
e da história literária adquirem uma nova feição e os modelos teórico-críticos
relativizam-se, cedendo lugar a uma reflexão mais eficaz.
A reestruturação do cânone ou cânones das diversas literaturas latino-
americanas vem ocupando a cena com grande intensidade no meio acadêmico
latino-americano, onde se clama cada vez mais a necessidade de inclusão de
uma quantidade de registros até então marginalizados pelo discurso oficial: o
das línguas indígenas ainda vivas, como o quíchua e o guarani, o da produção
em créole do Caribe francês, o chamado popular, presente. por exemplo. no
corrido mexicano ou no cordel brasileiro, e a tradição oral ou compilada.
como a das lendas indígenas dos maias. Além disso, vem sendo argumentado
que não podem ficar à margem produções como a das minorias hispânicas
radicadas nos Estados Unidos, como os chicanos e os portorriquenhos e
cubanos, ou os franceses do Québec, nem muito menos as vozes das "mino-
rias de poder" dentro do próprio continente, como as dos grupos feministas,
que têm desempenhado papel de relevo no processo de releitura crítica da
cultura latino-americana. Do mesmo modo, a necessidade de constituição de
uma nova historiografia literária, isenta das distorções tradicionais, em que a
noção de "grande literatura" ou até mesmo de "literatura" tout court, seja
problematizada, se faz cada vez mais premente, bem como a urgência de se
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desenvolver uma reflexão teórica, que tome como ponto de partida ou de


referência o corpus literário do continente.
Todas estas questões, que abordam as diferenças latino-americanas, re-
velam a ineficácia da transferência de paradigmas de uma cultura para outra.
A própria idéia de "literatura nacional", concebida no meio acadêmico euro-
peu com base em noções de unidade e homogeneidade, não pode ser aplicada,
de maneira desproblematizada, à realidade híbrida do continente latino-ame-
ricano, onde, por exemplo, nações indígenas. como a Aymara, vivem dividi-
das por fronteiras políticas instituídas arbitrariamente. Qualquer concepção
monolítica da cultura latino-americana vem sendo hoje posta em xeque e
muitas vezes substituída por propostas alternativas que busquem dar conta de
seu caráter híbrido. Estas propostas, diversificadas e sujeitas a constante
escrutínio crítico, indicam a pluralidade de rumos que o comparatismo vem
tomando no continente, em consonância perfeita com as tendências gerais da
disciplina, observáveis sobretudo nos demais contextos tidos até recentemen-
te como periféricos. A Literatura Comparada é hoje, máxime nesses locais,
uma seara ampla e movediça, com inúmeras possibilidades de exploração,
que ultrapassou o anseio totalizador de suas fases anteriores, e se erige como
um diálogo transcultural, calcado na aceitação das diferenças.

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